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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Christiane Maria da Bôa Viagem Oliveira
A construção discursiva da mulher brasileira em Retrato Falado, quadro
humorístico do programa de televisão Fantástico da Rede Globo
Doutorado em Comunicação e Semiótica
Tese apresentada à Banca Examinadora como
exigência parcial para obtenção do título de
Doutor em Comunicação e Semiótica (Área de
concentração: Signo e Significação nas Mídias;
Linha de pesquisa: Análise das Mídias) pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sob orientação da Profa. Dra. Ana Claudia Mei
Alves de Oliveira
São Paulo
2009
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BANCA EXAMINADORA
A minha mãe Miryam (in memoriam)
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira, pela
sua dedicação, disposição e pela sua “fé inabalável” em seus orientandos.
Aos Professores Dr. Eric Landowski e Dr. Ricardo Monteiro pelas
contribuições dispensadas a este trabalho em meu exame de qualificação.
Ao CNPq e à CAPES, pelo incentivo à pesquisa.
À Unicap, pelo apoio a este trabalho.
RESUMO
A pesquisa estuda à luz da semiótica de A. J. Greimas o quadro hu-
morístico Retrato Falado veiculado pelo tradicional programa de televisão Fan-
tástico (Rede Globo). Aponta e identifica como se a construção discursiva do
simulacro da mulher brasileira. O estudo é baseado nos 15 episódios que foram se-
lecionados e reunidos em DVD, lançado em 2005, pelo seu destinador Rede Globo.
Durante seus sete anos no ar, Retrato Falado, em vários episódios, chegou a ser o
pico de audiência do Fantástico, configurando assim um público telespectador es-
pecífico que vai além do público do programa. Exibido semanalmente apresentava-
se como uma peça televisiva humorística do dia-a-dia feminino. A análise do quadro
televisivo nos levou justamente aos temas referentes à mulher no seu universo co-
tidiano e como eles são apresentados ao telespectador pelo seu destinador. Enten-
demos, assim, que Retrato Falado se mostra com uma peculiar e significativa con-
strução discursiva da “mulher brasileira” que é organizado a partir de depoimentos
de mulheres de vários lugares do Brasil que contam uma história jocosa acontecida
na sua própria vida. Mantendo o bom humor, essa é transformada numa peça para
a televisão a partir de uma dramatização do relato, intercalado pelo próprio depoi-
mento da mulher e enriquecido com estatísticas e dados curiosos por meio de ani-
mações gráficas. Com estas histórias de fatos cotidianos femininos, Retrato Falado
apresenta papéis do “ser” da mulher brasileira, construindo assim o seu simulacro.
Os procedimentos da construção discursiva do enunciador se dão pelo sincretismo
de linguagens uma vez que o audiovisual do televisual é utilizado para manipular o
destinatário, bem como levá-lo à “sensibilização” e, pela estesia, condição de sentir
o sentido sintonizá-lo com as suas ações lúdicas risivamente. A partir dos estudos
do semioticista francês Eric Landowski, apontamos as lógicas interacionais estabe-
lecidas entre destinador e destinatário que se dá tanto pelo regime da manipulação
quanto pelo do ajustamento, interações essas que se reúnem e se misturam en-
quanto experiências vividas que ganham visibilidade no quadro em estudo. Retrato
Falado reitera e reforça o fazer da mulher na sociedade e a sua importância dentro
da visão de mundo apresentada. Esta mulher ainda mostra-se submissa a um poder
masculino que é assumido por uma agregação de vários destinadores: a Rede Globo,
a sociedade e a própria mulher. O estudo aprofunda como a mídia, em particular,
a televisão, é orientada para a consolidação axiológica, papel esse que revitaliza as
estruturas e comportamentos sociais.
Palavras-chaves: semiótica discursiva/ televisão/ simulacro da mulher
brasileira/ Retrato Falado/ Fantástico/ Rede Globo
ABSTRACT
Found on the semiotic theory of A. J. Greimas, this research work in-
vestigates the humorous sketch Retrato Falado which is part of tradicional Sunday
TV program, Fantástico (Rede Globo). It aims and identifies the discursive construc-
tion of the brazilian woman simulacrum. This study is based on 15 episodes which
was selected and joined together in DVD, published in 2005 by Rede Globo, Re-
trato Falados addresser. Retrato Falado was exhibited for seven years and during
this time, many episodes made it biggest peak audience of Fantástico. It means
that Retrato Falado had a specific public further the audience of that TV program.
Transmited weekly, it presented as a humorous sketch about feminine day after day.
The analysis of this sketch pointed us to themes about woman’s daily universe and
how these are showed to the audience. Then we understand that Retrato Fala-
do shows itself with a singular and signifcative discurse construction of “brazilian
woman” and it is organized from testimonies of women from many brazilian places
who tell a cheerful history about their own lifes. Maintaining good humour, the
history is transformed in a TV product from stage reports inserte between woman’s
testimony, in addition to grafics about statistics and curious datas. What with these
histories of feminine daily facts, Retrato Falado presents roles of brazilian woman
“being”, constructing then its simulacrum. The enunciator proceedings for discur-
sive construction are done by semiotic system and process syncretism once the TV
audiovisual is used to manipulate the addressee, which also is guided to
sensitiza-
tion” and, for the estese, a condition to feel the meaning, is coordinated to humor-
ous ludic actions. From studies of the french semiotician Eric Landowski, we could
aim to interactions logics established between addresser and addressee which occur
by manipulation and ajustement regimes, interactions that assemble and mix while
lively experience gain visibility in this sketch. Retrato Falado
reiterates and reaffirms the
woman’s doing in the society and its importance inside this world’s vision presented. This woman
still presents herself submissive by a masculine power that is assumed by an association of many ad-
dressers: Rede Globo, society and woman. This work
makes a profound study of media, in
particular, television media which is orientated for consolidate axiology, role which revitalizes social
structures and behaviors.
Key words: discursive semiotic/ television/ brazilian woman simulacrum/
Retrato Falado/ Fantástico/ Rede Globo/
SUMÁRIO
Lista de ilustrações...........................................................................................10
Capítulo 1 – O problema e nossa abordagem
Considerações iniciais: o contexto midiático
e o universo feminino...............................................................................13
Retrato Falado: os caminhos para a análise............................................21
Retrato Falado: a “fantástica” mulher brasileira.....................................31
O destinador Rede Globo.........................................................................40
Considerações sobre o fazer desta pesquisa .............................................52
Capítulo 2Retrato Falado e suas vinhetas de abertura
O sincretismo de linguagens na televisão..................................................55
A expressão “retrato falado” ...................................................................59
Análise da primeira vinheta: o simulacro da brasileira ...............................62
A construção do simulacro da “brasileira”................................................71
A segunda vinheta: recorrências de elementos, mas uma
perda de visibilidade da mulher brasileira .................................................74
A terceira e a quarta vinhetas: Denise Fraga como
co-enunciador. Mesmo percurso do sujeito com novo plano da expressão 79
As vinhetas e o quadro.............................................................................85
Capítulo 3 – A enunciação em Retrato Falado: a projeção
de pessoa, espaço e tempo
A enunciação em Retrato Falado ..........................................................88
A delegação de vozes...............................................................................90
O sincretismo de papéis: os atores do discurso e a identificação
do enunciatário com eles .......................................................................102
A projeção do tempo .............................................................................108
A projeção do espaço.............................................................................114
A enunciação e o sincretismo de formatos .............................................117
Capítulo 4 – Tematização e figurativização e o plano
da expressão: o discurso que leva ao riso
Tematização em Retrato Falado............................................................120
Figurativização: a ironia de Retrato Falado ...........................................138
Outra estratégia da construção da ironia: os conectores
isotópicos...............................................................................................150
A plasticidade do riso.............................................................................152
Capítulo 5 – Os regimes de sentido e interação
O fazer operatório do destinador: o fazer ser........................................154
A manipulação em Retrato Falado: o fazer fazer a
serviço do fazer ser ...............................................................................155
Contágio por impressão: o fazer sentir a serviço
do fazer ser ..........................................................................................162
A interação pelo fazer sentir: sensibilidade reativa e/ou
perceptiva? ............................................................................................172
Capítulo 6 – Considerações finais: a mulher “fantástica”
e o destinador social
A mulher “fantástica” de Retrato Falado .............................................182
O destinador social.................................................................................186
Considerações finais...............................................................................189
Referências bibliográficas .............................................................................191
Anexo
Lista dos episódios .................................................................................198
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
CAPÍTULO 1
Figura 1 – Cenas do episódio “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos” com a
Protagonista Zulmerina (Zuca) de São José do Rio Preto-SP..................29
CAPÍTULO 2
Figura 2 – Início da primeira vinheta....................................................................64
Figura 3 – Seqüência inicial da primeira vinheta de abertura................................66
Figura 4 – Algumas das protagonistas desta primeira vinheta..............................67
Figura 5 – Seqüência inicial da segunda vinheta de abertura ...............................76
Figura 6 – Finalização da segunda vinheta de abertura........................................78
Figura 7 – Terceira vinheta de abertura................................................................81
CAPÍTULO 3
Figura 8 – Apresentações de Denise Fraga com a presença
de profissionais da produção em quadro.............................................92
Figura 9 – Interlocutores-entrevistados: na última imagem,
temos a protagonista olhando para o telespectador............................97
Figura 10 – A inversão do uso da tela widescreen. A primeira linha traz o
episódio “Marias Cecílias” (primeiro do DVD) e a segunda,
“Anjos da guarda, ou melhor, da aeromoça (o 9º no DVD)................98
Figura 11 – Cenas do episódio “Entre o brasão e o passaporte”:
o narrador implícito .......................................................................101
Figura 12 – Cenas da primeira animação gráfica do episódio
“Dona-de-casa unida jamais será vencida!” ....................................102
Figura 13 – Denise Fraga: uma apresentadora jocosa e bem humorada.............104
Figura 14 – Denise apresenta no cenário de gravação da história ......................106
Figura 15 – Cenas do episódio “A verdadeira carga pesada”:
a apresentação é feita no cenário ...................................................116
CAPÍTULO 4
Figura 16 – Cenas do episódio “De cabelo em pé”: o ator-Isabel pintando o
cabelo e a sua participação com o marido em um show..................122
Figura 17 – Cenas do episódio “Dente por dente, ou jaqueta por jaqueta”
com o povo fala sobre beleza feminina ...........................................124
Figura 18 – A protagonista Ruth e a animação gráfica sobre “ser magra”
do episódio “Baixaria nas alturas”...................................................126
Figura 19 – Cenas de Quitéria, Célia, Terezinha e Senira
em suas relações com o marido ......................................................131
10
Figura 20 – Cenas do episódio “Os anjos da guarda, ou melhor, da aeromoça”...133
Figura 21 – Jutta e o primeiro biquíni de Salvdor-BA..........................................134
Figura 22 – Ruth com medo de avião e Luciana, sonâmbula, assusta o marido..135
Figura 23 – O comentarista de futebol Casagrande, Senira e o marido..............136
Figura 24 – Cenas do episódio “Denise Alice ou Renata Fraga?”.......................137
Figura 25 – Ruth: “o avião está caindo?”..........................................................139
Figura 26 – Animação gráfica do episódio “De cabelo em pé”..........................142
Figura 27 – Seqüência de cenas da ida de Isabel ao banco no episódio
“De cabelo em pé”.........................................................................144
Figura 28 – A receita de Célia de como emagrecer 4 kg em duas semanas........146
Figura 29 – O jantar de Célia com os seus dois namorados: um húngaro
e o outro austríaco..........................................................................147
Figura 30 – Início e fim da animação gráfica do episódio
“Dona-de-casa unida jamais será vencida”......................................148
Figura 31 – Cenas do episódio “A bela que virou fera (em futebol)” .................150
CAPÍTULO 5
Figura 32 – Conversando com o telespectador, Célia faz “cara-ou-coroa”
para decidir entre os dois namorados..............................................157
Figura 33 – Imagem aérea de telejornal exibida no episódio “Anjos da
guarda, ou melhor, da aeromoça” ..................................................158
Figura 34 – Márcia conversa com a mãe antes de ir ao trabalho........................159
Figura 35 – Luciana, em segundo plano, com uma faca na mão.
Em primeiro plano, o seu marido e o seu pai conversam sobre ela ....161
Figura 36 – Luciana, o marido e o pai: em BG a música do filme “Psicose” .......161
Figura 37 – A decepção de Gislene e suas amigas com o stripper......................163
Figura 38 – Início da seqüência de cenas de Isabel no ponto do ônibus:
faz-nos sentir o que o outro sente...................................................168
Figura 39 – O telespectador identifica-se com a figura de Denise Fraga.............169
Figura 40 – Início do episódio “A verdade nua e crua”......................................170
Figura 41 – Gislene e suas amigas ansiosas por escolher o stripper....................170
Figura 42 – A ansiedade de Gislene e suas amigas para ver o striptease ............171
Figura 43 – O riso “contagioso” de Gislene e suas amigas ................................172
Figura 44 – Ao escovar os dentes, Mariza perde o pivô do dente
da frente no dia do casamento da filha, um domingo .....................175
Figura 45 – Ruth conversa com o telespectador sobre
o seu medo de voar de avião ..........................................................177
Figura 46 – Final do episódio “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos” .............178
10
13
Retrato Falado
: o problema
e a nossa abordagem
C
IAIS: O
C
ONTEXTO MIDIÁTI
C
O
E O UNIVERSO FEMININO
No século XXI, em nossa sociedade midiática e tecnológica, é possível
observar um vasto universo feminino apresentado pelos mais variados meios de co
-
municação. No livro
Breve História da Mulher no Mundo Ocidental
1
, particularmente
no capítulo em que se refere à história da mulher no Brasil do século XX, observa
-
mos que as idéias de emancipação da mulher ganharam força com a divulgação
delas através dos meios de comunicação, expandidos e alguns criados durante este
período.
No Brasil, foi durante as décadas de 1940 e 1950 que, por meio do
rádio e da televisão, se estimulou a formação de uma nova mentalidade, tornando
a presença da mulher cada vez mais notada e respeitada
2
no cenário nacional. Ao
longo da década seguinte, os canais de comunicação começam a abrir espaço para
as denúncias sobre a condição marginal da mulher, contribuindo para novas con
-
quistas no Código Civil como a eliminação do princípio que, ao se casar, a mulher
abria mão de vários aspectos de sua condição de cidadã como, por exemplo, assinar
contrato de trabalho com autorização do marido
3
.
Carlos Bauer acrescenta que na década de 1970, no país, crescem os
movimentos organizados de mulheres e as teorias de Simone de Beauvoir e Betty
1
Cf. C. Bauer,
Breve história da mulher no mundo ocidental
.
2
Ibid.
, p. 136.
3
Ibid
.
1
14
Friedan
4
são amplamente debatidas nos vários espaços sociais: como em universi-
dades, fábricas, sindicatos e partidos políticos. Foi a partir desse período que as mu-
danças aconteceram com mais velocidade e, nos anos seguintes, foram derrubadas
inúmeras barreiras legais e culturais para o desempenho da mulher no país. Citemos
o ingresso da mulher em redutos tradicionais masculinos como as Forças Armadas,
a Academia Brasileira de Letras e o Poder Judiciário.
Entretanto, a mídia não divulgou, nem divulga idéias que buscam
igualdade e direitos da mulher. um amplo universo feminino construído pelos
vários discursos midiáticos. Com um rápido olhar, podemos encontrar uma diversi-
dade enorme de material confeccionado pensando na mulher: adulta, jovem, ado-
lescente e até mesmo criança. São dezenas de revistas de diferentes editoras, suple-
mentos e cadernos nos diversos jornais, programas de rádio e televisão nas mais
variadas emissoras, uma infinidade de sites, além da publicidade veiculada por estes
meios. São mídias que tanto tem alcance regional quanto nacional.
A Editora Abril, por exemplo, possui dezoito
5
tipos de revistas, que
circulam por todo o país, voltadas ao público feminino como Cláudia, Casa Cláudia,
Elle, Boa Forma, Estilo, Saúde, Contigo, Caras, Nova, Manequim, Capricho, Gloss,
Minha Novela etc. Cada uma delas constroem discursos pensando nos diferentes
tipos de destinatários femininos. Com um olhar um pouco mais atento, apontamos
que a Cláudia é voltada para a mulher que tem uma certa estabilidade na vida
profissional e familiar; a Elle apresenta uma mulher mais sofisticada; a Gloss está
direcionada ao universo da adolescente e da jovem etc.
Em outros meios, encontramos mais tantos outros aspectos da mulher
desde discussões de gênero e seus direitos específicos publicados em jornais impres-
sos de organizações não governamentais feministas
6
a assuntos ligados as mães
e recém-nascidos veiculados por televisão em circuito fechado em maternidades
7
,
4 O livro O segundo sexo de Simone de Beauvoir analisava as causas da existência da mulher como o “outro
em relação ao mundo masculino e o livro Mística da feminilidade de Betty Friedan denunciou o auto-exílio da
mulher norte-americana na própria casa. Cf. C. Bauer, Breve história da mulher no mundo ocidental, p. 139.
5 Informações contidas no site da Editora Abril (www.abril.com.br).
6 O jornal chama-se Folha Feminista publicado pela ong Sempreviva Organização Feminista (SOF).
7 A televisão se chama TV Mulher & Mãe, tendo sua programação transmitida 24 horas por dia para mais de
300 mil mulheres em diversas maternidades por todo o país. Informações colhidas no site www.tvmulhere-
mae.com.br em 13.03.2008
15
até a moda de celebridades em sites de figuras femininas famosas como a modelo
Gisele Bündchen
8
.
Este mundo da mulher construído na mídia é uma questão presente
também em pesquisas nas diversas disciplinas
9
como psicologia, ciências sociais,
comunicação etc. O artigo Uma representação de mulher na cultura: leituras de um
comercial de televisão
10
, publicado pela revista Psico, de Porto Alegre-RS, em 1992,
traz uma análise de um comercial de televisão de uma loja que comercializa artigos
femininos como lingerie, cosméticos, roupas, sapatos etc. Entre outras conclusões,
o texto afirma que, através da beleza e emoção, o comercial legitima “o modelo pa-
triarcal, onde o homem dá sentido à existência da mulher e esta, em contrapartida,
enfatiza sua posição no jogo”
11
.
Com este exemplo, chegamos à mídia que nos interessa nesta inves-
tigação: a televisão, por considerarmos o veículo de comunicação mais penetran-
te, abrangente e influente no Brasil de hoje. Passando o olhar pelas décadas que
sucederam ao surgimento da televisão no Brasil, observamos que esse meio sempre
esteve ligado a idéias do poder político, social e econômico dominante, veiculando
modelos mais conservadores de modos de vida. O citado trabalho sobre o comercial
já se mostra nessa linha de nossa observação e, com uma visão de mais de uma dé-
cada atrás, estimula-nos questionar, por exemplo, se houve mudanças durante este
período.
Por entendermos que a televisão também se constrói como lingua-
gem, “fenômeno extremamente complexo”
12
, como nos explica Fiorin, optamos por
8 O site www.giselebundchen.com.br é voltado para os fãs da modelo, trazendo informações sobre a carreira
de Gisele e até concurso para concorrer a brindes.
9 Pesquisas em psicologia: C. Tondo e D. Amon, Uma representação de mulher na cultura: leituras de um co-
mercial de televisão, Psico, v. 24, n.2.; ciências sociais: E.H. Gouveira, Imagens femininas: a reengenharia do
feminino pentecostal na televisão (tese de doutorado) e R.S.C. Leite, A imprensa feminista pós-luta-armada
(tese de doutorado); Comunicação e semiótica: M.P.S.P. Guimarães, Nova” 30 anos da mulher de 30, (dis-
sertação de mestrado); história: S.G. Prado, Imagens femininas na revista A Cigarra São Paulo 1915/1930
(dissertação de mestrado).
10 Cf. C. Tondo e D. Amon, Uma representação de mulher na cultura: leituras de um comercial de televisão,
Psico, v. 24, n.2.
11 Ibid., p. 94.
12 J.L. Fiorin, Linguagem e ideologia, p. 8.
16
estudá-la através dos seus discursos enunciados que possuem uma estrutura própria
que veremos no decorrer desta pesquisa. E é pela dimensão mais superficial do
discurso que podemos identificar a visão de mundo de seu destinador numa dada
sociedade numa determinada época, ou seja, suas determinações ideológicas
13
.
No livro Anos 70 Televisão, que trata do período em que ocorreu o
maior desenvolvimento deste meio no país, há um depoimento que vem de encon-
tro ao que estamos dizendo. No final daquela década, o conhecido jornalista Ar-
mando Nogueira, então diretor do telejornalismo da Rede Globo – dirigiu a Central
Globo de Jornalismo de 1966 a 1990
14
, afirmava que “a TV não é um instrumento
revolucionário. A TV está a serviço da ideologia vigente”
15
. Com ousadia, dizemos
que é pouco provável que o jornalista tenha mudado de idéia durante as últimas
décadas, por toda a relação que a emissora ao qual se dedicou teve – e ainda tem –
com a chamada “ideologia vigente”.
Para José Luís Fiorin, em seu livro Linguagem e Ideologia,
“a esse conjunto de idéias, a essas representações que servem para justificar e
explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as relações que ele
mantém com os outros homens é o que comumente se chama ideologia”
16
.
Com esta breve definição, Fiorin acrescenta que ideologia é uma “visão
de mundo”, o ponto de vista de uma dada classe social a respeito da realidade, é
a maneira como esta classe ordena, justifica e explica a ordem social que percebe.
Assim, existem tantas “visões de mundo” quantas forem as classes sociais.
Com isso, perguntamo-nos a respeito do universo feminino veiculado
por esta mídia. Nesse contexto televisivo, um modelo de mulher pensada pela
“visão de mundo” de uma dada emissora? E o discurso construído para a mulher,
perpetua os estereótipos femininos conhecidos, como nos indica o exemplo do
comercial citado? Em nome desta “ideologia vigente ou dominante” como a mulher
contemporânea nos é apresentada pela tevê? Estas e outras questões nos impul-
13 J.L. Fiorin, op.cit., p. 21.
14 Informações contidas no site do jornalista Armando Nogueira: www.armandonogueira.com.br, acessado em
07/04/2008.
15 Cf. E. Carvalho, M.R. Kehl e S.N. Ribeiro (orgs.), Anos 70 – Televisão, p. 39.
16 Cf. J.L. Fiorin, op.cit., p. 28.
17
sionam a investigar o que propomos neste presente trabalho: a mulher no contexto
midiático da televisão.
O mercado brasileiro de televisão está dividido entre seis redes priva-
das (Globo, SBT, Bandeirantes, Record, CNT e Rede TV) que possuem 138 grupos
afiliados e controlam 668 veículos, entre TVs abertas e por assinaturas; além de
outros veículos de comunicação. Os brasileiros assistem cerca de 5 horas de televisão
por dia
17
, sendo que 81% da população assiste tevê todos dos dias
18
. Além disso, a
televisão é, muitas vezes, a principal opção de lazer para milhares de adultos e crian-
ças, de modo particular, aqueles com poucas condições financeiras.
Neste panorama, podemos ressaltar a maior rede do país, a Rede Glo-
bo de Televisão. Nesses mais de 40 anos de história, desde sua constituição como
rede durante os anos de 1970, possui os maiores índices de audiência em relação
às outras emissoras e redes e chegou a atingir 80% em todo o país. Por diversas
circunstâncias – que veremos posteriormente, a Globo atualmente tem uma média
nacional de 40%
19
de audiência, mas mantém sua liderança. É também a que faz a
maior cobertura do território nacional, chega a 99,53% da população e atinge mais
de 5.400 municípios brasileiros
20
de um total de 5.564
21
.
Nesta perspectiva, detemo-nos no que nos interessa: o universo femi-
nino construído por esta rede de televisão. Em sua história, a Globo realizou diver-
sos programas envolvendo o contexto da mulher como o seriado Malu Mulher de
1979 que discutia a problemática da época como a separação do casal; o programa
diário TV Mulher de 1980/1981 que “inovou o gênero feminino na tevê”
22
; outro
seriado, este dos anos de 1990, Mulher, que trazia a relação de mulheres no campo
profissional, e o atual programa Mais Você que está em exibição e ensina receitas
17 Informações veiculadas pelo site Observatório da Imprensa em 24/06/2006 (http://observatorio.ultimosegun-
do.ig.com.br/artigos.asp?cod=378TVQ005) entre outros.
18 Cf. C. Castro, Por que os reality shows conquistam audiência?, p. 31.
19 Cf. S.H.S. Borelli e G. Priolli (orgs.), A deusa ferida: por que a Rede Globo não é mais a campeã absoluta de
audiência, p. 10.
20 Informações presentes no site da própria Rede Globo (http://redeglobo.globo.com)
21 Este dado está presente no site do IBGE e data de 2005.
22 Cf. E. R. de Amorim, Televisão, uma trajetória de 50 anos, no site www.centrocultural.sp.gov.br/linha/dart/
revista7/televisao.htm (07/04/2008).
18
de culinária, bem como exibe entrevistas e promove concursos. Além desses, temos
as personagens femininas marcantes em sua teledramaturgia como a famosa Odete
Roitman da novela Vale Tudo de 1988 ou as quatro jovens da periferia de São Paulo
da minissérie Antônia de 2006.
Diante destes pontos levantados sobre a televisão brasileira e o univer-
so feminino, para a nossa presente investigação, nos propomos analisar o quadro
23
Retrato Falado que apresenta histórias de mulheres do programa de televisão
Fantástico, veiculado aos domingos, pela Rede Globo, no horário das 20h30min às
23h
24
. Consideramos que o quadro possui algumas características bem particulares
para deter a nossa atenção – que veremos a seguir – além de ser bastante relevante
o programa e a emissora que o veiculam.
O Fantástico é um dos mais tradicionais programas brasileiros, está no
ar há 35 anos, usando o mesmo formato desde o seu início – sendo veiculado pela
maior rede de televisão do país: a Globo, como já observado, cuja hegemonia de
audiência data de mais de 40 anos, apesar das recentes crises, mas que não a colo-
cam em situação de perda de liderança.
O quadro Retrato Falado, esteve durante sete anos no ar, também
levou a emissora continuar líder de audiência neste horário: durante sua exibição,
em vários domingos, chegou a ser o pico de audiência do Fantástico, ou seja, era
o quadro mais visto do programa. Atingiu 39 pontos
25
, cerca de 3,1 milhões de
telespectadores na Grande São Paulo
26
e uma média de 47 pontos em todo
o país
27
. Isso nos mostra que o quadro tem um público específico que ultrapassa
aquele público do programa.
23 Como entendemos que ainda há discussões a respeito da classificação de nomes usados para produtos reali-
zados para televisão, como nos aponta Arlindo Machado na sua definição de programa de televisão em seu
livro A Televisão Levada a Sério (p. 27), resolvemos nos referir a Retrato Falado como quadro para manter o
termo mais utilizado no próprio veículo televisão em casos como esse.
24 O horário do Fantástico não é rigidamente fixo. Ocorrem variações, mas seu início se normalmente na
faixa horária das 20h às 21h.
25 Segundo o Ibope, em seu site na internet, “um ponto de audiência corresponde a 1% do universo de pes-
soas ou domicílios que estavam sintonizados em um canal ou assistindo um programa específico”.
26 Informações do jornal Folha de São Paulo pela editoria TV Folha nos anos de 2000 e 2002.
27 Informações do jornal A Notícia - Tevê de 11/12/2000 (Joinville-SC).
19
O quadro possui uma peculiar e muito significativa construção discur-
siva: a da “mulher brasileira” como veremos no decorrer das análises. A peça tele-
visiva é feita a partir de relatos das próprias donas das histórias e pela encenação do
fato em si. Através de histórias cotidianas, que consideramos até mesmo comuns,
banais, de mulheres de qualquer canto do país e de certas classes sociais (médias e
baixas), acontecidas em diversas épocas, são retratadas pela televisão, em horário
nobre do domingo. São histórias que retomam na tevê o contexto do vivido, do dia-
a-dia, dando colorido e ressaltando traços comuns como traços excepcionais.
Perguntamo-nos: O que torna esta “mulher comum” em mulher “ex-
cepcional”, “fantástica”? Quem é esta “mulher brasileira” apresentada pela Rede
Globo? um modelo de “mulher brasileira” que cria um “simulacro” que fun-
ciona como retrato daquela telespectadora que nela se encontra e se projeta?
Podemos ainda nos perguntar: qual é a “visão de mundo” que Retrato
Falado através do Fantástico e da Rede Globo nos apresenta do feminino voltado
para o público feminino? Como este quadro feminino mostra a própria mulher na
tevê? Como as situações do cotidiano feminino são caracterizadas em sua projeção
na tevê? Como o quadro nos faz ver a sua audiência feminina? Como a sua estru-
turação “atrai e cativa” suas telespectadoras?
As histórias são jocosas e levam o telespectador ao riso pela sua con-
strução televisual que possui um tom irônico, além de sua apreensão sensível
como veremos no último capítulo. Para Landowski, em seu texto Não se brinca com
o humor: a imprensa política e suas charges, o discurso irônico propõe um mundo
perfeitamente inteligível e mais tranqüilizador pelas “certezas” que apreendemos
ao “escutá-lo”, certezas estas que “aparecer-nos-ão sempre como a contrapartida
positiva da perda de alguma ‘ilusão’ anterior”
28
. O autor ainda afirma que este tipo
de discurso estabelece
“com uma particular insistência, um sentido, o sentido, o ‘verdadeiro’ ou
pelo menos aquele que o ironista procura fazer passar como tal (e que, por
sua vez, o humorista justamente questionaria)”
29
.
28 E. Landowski, Não se brinca com o humor: a imprensa política e suas charges, Revista Face, v. 4 n. 2, p. 74.
29 Ibid.
20
Com isso, Retrato Falado, em seu discurso irônico, não nos leva a refle-
tir sobre o que está diante de nós, mas simplesmente a aceitar o que nos é apresen-
tado como a sua “verdade”, a “verdade” do enunciador-destinador, levando-nos,
assim, a “entendermos” e nos “tranqüilizarmos” com o que vemos, justamente a
não nos preocuparmos.
A partir daí, podemos levantar ainda outras questões: Que construção
discursiva é esta que traz a ironia ao quadro? A mulher vendo a si mesma em seu
dia-a-dia, de forma irônica, gera algum tipo de criticidade em sua vida? Ou o que
vemos e rimos fica estabelecido como “verdade”? É o cotidiano feminino risível que
cativa este público que sustentou a exibição do quadro durante sete anos? É o riso
que “qualifica” as histórias de mulheres comuns irem ao ar?
Assim, diante destas observações e questões, a presente pesquisa se
propõe a investigar o papel da “mulher brasileira” construído pela Rede Globo. Para
nossa análise, utilizaremos o aparato teórico da semiótica discursiva concebida por
Algirdas Julien Greimas e seus desenvolvimentos por seus colaboradores. Esta teoria
contribuirá para investigar a mulher no recorte midiático escolhido e caracterizar
quem é esta mulher construída diante de nós, na televisão, num dos programas
brasileiros mais tradicionais, exibido pela maior e mais importante rede do país.
Para esta análise, nos basearemos nos 15 episódios reunidos em DVD
lançado em 2005, pela Globo Vídeo, empresa que pertence às Organizações Globo
no entanto, não nos privaremos de citar episódios que não façam parte deste
DVD. Naquele ano, o quadro completava 6 anos no ar e, até então, tinham sido
veiculadas 150 histórias. Escolhemos concentrar a nossa pesquisa nas histórias re-
unidas no DVD, por entender que a própria Rede Globo, mediante desta seleção,
nos faz ver a sua concepção do “retrato” da “mulher brasileira”.
21
RETRATO FALADO: OS CAMINHOS PARA A ANÁLISE
Para nossa análise, precisamos nos deter, por um momento, no con-
ceito de texto, pois é o objeto de estudo da semiótica greimasiana ou discursiva
30
a qual nos serve de base para continuarmos o estudo. Para Diana Luz Pessoa de
Barros, “o texto existe quando concebido na dualidade que o define objeto
de significação e objeto de comunicação”
31
. Como objeto de significação, implica
considerá-lo como um todo de sentido que é constituído por “uma estrutura, que
garante que o sentido seja apreendido em sua globalidade, que o significado de
cada uma de suas partes dependa do todo”
32
. Assim, ainda para Barros, estudando
os textos, procura-se “descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para
dizer o que diz
33
, identificando, deste modo, o seu todo de sentido.
No entanto, para quê se debruçar sobre textos e entender a significa-
ção que constroem? É justamente a segunda definição que nos motiva a estudá-los,
pois texto é também um objeto de comunicação, ou seja, a interação estabelecida
entre dois sujeitos – o destinador e o destinatário. Segundo Eric Landowski,
“é somente ao enunciar ao fazer surgir sentido por seus atos semióticos,
qualquer que seja sua natureza (falar ou gesticular, ou, ao invés, suspender o
gesto, o movimento ou a fala) – que os sujeitos se constroem eles próprios,
construindo o mundo enquanto mundo significante”
34
.
Assim, consideramos texto como objeto cultural que está inserido
numa sociedade e é determinado por formações ideológicas próprias, ou seja, per-
tencente ao “mundo significante”: a determinado contexto social, histórico e cul-
tural. Deste modo, cada texto também estabelece relações com outros textos e, re-
ciprocamente, se atribuem sentido(s). Assim, sendo o próprio contexto considerado
como um dispositivo semiótico abrangente, a sua análise se revela necessária pela
constituição e análise do próprio texto
35
.
30 Cf. D.L.P. Barros, Teoria semiótica do texto, p.7.
31 Ibid., p.8.
32 J.L. Firion, A noção de texto em semiótica, Organon, p. 23.
33 D.L.P. Barros, op.cit., p.7
34 E. Landowski, Aquém ou além das estratégias, a presença contagiosa, p.14.
35 Ibid., p.13.
22
Desta forma, podemos dizer que cada texto possui sua própria signifi-
cação, carregada da visão de mundo de quem o produz; relaciona sujeitos e relacio-
na-se com a sociedade da qual faz parte e onde foi produzido. Os textos como ob-
jetos culturais presentes em nossa sociedade se apresentam através de várias formas
de expressão como oral, escrita, visual, gestual etc., ou com mais de uma linguagem
e/ou forma, que chamamos de sincrética. Apontemos uma grande variedade destes
textos, por exemplo, uma poesia, um artigo de jornal, uma gravura, uma peça de
teatro, uma pintura, um filme, um programa de televisão etc.
Com isso, perguntamo-nos qual é a interação que se estabelece entre
Retrato Falado e sua telespectadora. Entendemos que um dos modos de intera-
ção entre o destinador e o destinatário no quadro em questão se pelo riso. É a
construção discursiva que leva a mulher que assisti a rir da mulher que é apresentada
na tevê? Seria isso um modo dela rir de si mesma, ou seja, a mulher rir de outra
mulher? Como o enunciador constrói o discurso centrado no fazer rir, questiona-
mos: por que é tão importante o riso desta telespectadora para o destinador? Talvez
esta construção que leva ao riso – o divertimento – seja uma estratégia de manipu-
lação para manter o público fiel ao quadro e o riso do telespectador, uma sanção
positiva do que se vê.
Ainda observando a interação entre o destinador e o destinatário,
perguntamo-nos quem é esta mulher que está em Retrato Falado. E a mulher que
assiste ao quadro? Qual é a identidade destas mulheres? Como elas fazem para se
mostrar, ter visibilidade? De que modo elas interagem na sociedade? Como se dá a
sua sociabilidade?
Através da análise dos episódios propostos, poderemos chegar a estas
respostas, estudando o todo de sentido do texto. Seguiremos o “percurso gerativo
de sentido”, proposto pela semiótica como uma divisão operacional para facilitar a
sistematização do estudo. Ele é abstrato e geral e seu emprego depende da orga-
nização interna do texto estudado. Além disso, procuraremos analisar o plano da
expressão televisivo formas de expressão pela qual o texto se articula também
pelas postulações semióticas. E, com a linha de estudos sociossemióticos, propomos
identificar os regimes de interação presentes no conjunto de textos em análise.
23
Algirdas Julien Greimas nos explica que é por esta perspectiva de ge-
ração que todo objeto semiótico pode ser definido pelo seu modo de produção e
que “os componentes que intervêm nesse processo se articulam uns com os outros
de acordo com um [este] percurso que vai do mais simples ao mais complexo, do
mais abstrato ao mais concreto”
36
. São três níveis a percorrer e cada um deles se
subdivide em estruturas sintáticas e semânticas.
O nível fundamental é aquele no qual se encontram a relação minimal
sobre a qual está fundada a signifcação, posição que derivam os valores eufóricos/
positivos e disfóricos/negativos. O segundo nível, o chamado narrativo, encontra-
mos, no regime da junção, as estruturas narrativas que abrigam os sujeitos em con-
junção ou disjunção com objetos de valor e que geram buscas diferenciadas, moda-
lizações do ser e do fazer que produzem efeitos de sentidos passionais. Ainda neste
nível, postula-se o regime da união no qual os sujeitos interagem pelas dimensões
da presença, do sensível e do estésico
37
. E, por fim, o terceiro nível, o discursivo, o
que mais nos interessa por ser o mais próximo da manifestação textual, e, como
observado, é a dimensão pela qual identificamos a visão de mundo de seu destina-
dor em sua sociedade.
Este nível discursivo é o patamar das estruturas mais complexas e se-
manticamente mais ricas que são encarregadas de retomar as estruturas semióti-
cas mais profundas e “colocá-las em discurso”, fazendo-as passar pela instância da
enunciação
38
. A enunciação é esta instância de produção do discurso que é logica-
mente pressuposta pela existência do enunciado, o seu produto que dela contém
traços e marcas. É ainda através da análise da figurativização e da tematização que
chegaremos à visão de mundo do destinador que é evidenciada por temas que se
mostram de forma abstrata nos textos que são concretizados pelas figuras, objetos
reconhecíveis do mundo natural, do senso comum. Com isso, apreenderemos de
forma mais superficial e concreta os valores do destinador que traz para a sua inte-
ração com o destinatário.
36 A.J. Greimas e J. Coutrés, Dicionário de semiótica, p. 206 (verbete: gerativo – percurso).
37 E. Landowski, op.cit., p.18.
38 Cf. A.J. Greimas e J. Coutrés, op.cit., p. 208 (verbete: gerativo – percurso).
24
Com estas observações, consideramos cada episódio de Retrato Falado
como um texto, um objeto de significação (um todo de sentido) e de comunicação,
que se estabelece entre dois actantes da comunicação, em sua acepção mais geral,
o destinador e o destinatário
39
. Como um produto cultural pertencente à sociedade
brasileira, ele está carregado de formações ideológicas, ou seja, de uma visão de
mundo própria. Também é um enunciado, produto da enunciação que é a instância
responsável pela “colocação em discurso”.
A partir daí, nosso objetivo é explicitar esta visão de mundo mediante
a identificação dos temas e das figuras que manifestam esta ideologia, além de
estabelecer relações entre os próprios textos os episódios e com o contexto no
qual está inserida e também com outros textos desta mesma sociedade como os
da própria audiência do quadro. Entendemos que esse texto é um concretizador de
determinações sociais as quais pertencem à ideologia manifestada.
O corpus escolhido para análise, os 15 episódios de Retrato Falado
reunidos em DVD, como dissemos antes, é um conjunto de textos de um mesmo
autor ou, no caso da televisão, uma autoria coletiva
40
. Levaremos em conta o fato
de que estes textos são fechados e representativos de um modelo pelo qual procu-
raremos explicar a partir de nossas hipóteses
41
que serão colocadas no desenvolver
deste capítulo.
Cada episódio de Retrato Falado tem a duração média de 10 minutos,
é uma costura bem feita entre trechos de depoimentos reais, gravados no tradicio-
nal plano médio
42
usado em programas de notícias ou entrevistas, e a dramatização
com atores da história narrada. Ainda se utiliza, de forma divertida, de outros recur-
sos televisuais como a animação gráfica acerca do tema tratado, caracterizando o
universo feminino e reiterando-o.
39 A.J. Greimas e J. Coutrés, op.cit., p. 114 (verbete: destinador/destinatário).
40 A questão da autoria em produtos televisivos é bem complexa, porque é um grupo enorme de pessoas que
se dedica a sua realização: roteiristas, diretores, produtores etc. Entretanto o que nos interessa é o único
sujeito realizador do enunciado, o enunciador.
41 Cf. A.J. Greimas e J. Coutrés, op.cit., p. 89.
42 E. Stashef (org.), O Programa de Televisão: sua direção e produção, p. 27.
25
Com essa síntese de como se apresenta o quadro, Retrato Falado
manifesta-se pela combinação de diversas formas de expressão: verbal escrito, verbal
oral, visual, sonora, etc.; é um texto sincrético
43
. Essa articulação das várias lingua-
gens e/ou formas de expressão
44
proporciona ao suporte televisivo uma infinidade
de combinatórias para construir seus textos, estando cada linguagem em relação
com outra e dependendo dos tipos de relações para gerar significação. A articulação
dessas linguagens e formas de expressão num texto sincrético se dá por uma única
estratégia global de enunciação. Trataremos a este respeito no desenvolvimento do
presente trabalho.
Nestes nossos textos em análise, temos o destinador de Retrato Falado
manifestado pela Rede Globo e o seu destinatário, o telespectador do programa
Fantástico, mais especificamente, do quadro, como foi dito. Como Retrato Falado
está inserido no programa de televisão Fantástico, ou seja, está englobado no pro-
grama e este, por sua vez, está englobado na programação da Rede Globo; enten-
demos que tanto o quadro quanto o programa possuem o mesmo destinador Rede
Globo. Os sentidos e os valores presentes no objeto Retrato Falado são o resultado
da necessária participação dos sujeitos envolvidos
45
na relação comunicativa, o des-
tinador e o destinatário. De modo particular, o destinador é o responsável pelos
valores estabelecidos nesta relação e o destinatário vai em busca destes.
É o destinador que delega
46
ao sujeito complexo da enunciação o
enunciador e o enunciatário a produção do enunciado, ou seja, Retrato Falado é
um enunciado produzido pelo(s) referido(s) sujeito(s) na instância da enunciação que
é sempre pressuposta ao discurso-enunciado
47
. O enunciador tem o seu fazer em
produzir o sentido do texto criado e o enunciatário cumpre o seu fazer interpretativo
deste texto.
43 A.J. Greimas e J. Coutrés, op.cit., p. 426.
44 A. S. Médola, Novela das oito e suas estratégias de textualização, Terra Nostra, a saga ressemantizadora, p.
47. Neste trabalho, baseada na sensorialidade perceptiva, Médola descreve a composição dos sistemas que
constituem a linguagem da TV: o visual e o sonoro. O sistema visual compõe-se pelas formas “imagética,
verbal escrito, gestual, proxêmica, de figurino” e o sonoro pelas formas “verbal oral, musical, ruídos”.
45 Cf. E. Landowski, Para uma abordagem sócio-semiótica da literatura, Significação, n. 11/12, p. 23.
46 Cf. A.J. Greimas e J. Coutrés, op.cit., p. 114 (verbete: destinador/destinatário).
47 Ibid., p. 145 (verbete: enunciação).
26
Apontamos que o enunciador se faz ver primeiramente pelos nomes
dos profissionais que fazem parte da equipe de produção roteiristas, diretores,
produtores, atores escritos na tela enquanto se desenrola a sua vinheta de aber-
tura. Temos os nomes da conhecida atriz Denise Fraga que vive a personagem
principal em todas as histórias contadas em cada programa; do diretor Luiz Villaça
e dos roteiristas José Roberto Toredo, Lícia Manzo, Mariana Veríssimo e Maurício
Arruda
48
.
É na instância de produção do discurso que o sujeito da enunciação
faz suas opções de pessoa, espaço, tempo, temas, figuras. São pelos “traços e mar-
cas” deixados no seu produto, o enunciado Retrato Falado, que podemos recons-
truir a enunciação e identificar os procedimentos utilizados para a construção dos
mecanismos de interação com o seu o enunciatário.
Entendemos que o enunciador de Retrato Falado se mostra como um
destinador manipulador e sensibilizador, como veremos que se apresenta com um
fazer operatório, o fazer ser. Postulamos que, para cumprir este fazer ser, o destina-
dor se utiliza da manipulação (fazer fazer) e da sensibilidade (fazer sentir) para levar
a manutenção ou a adesão de sua visão de mundo por parte do seu enunciatário-
destinatário. Entretanto, para haver essa adesão, é preciso que o sujeito-destinatário
também compartilhe os valores que estão presentes no discurso-enunciado.
Admitimos em nível de hipótese que o discurso construído em Re-
trato Falado reitera estereótipos, de modo particular, femininos, pertencentes a
uma ideologia de uma classe social dominante que, em nossa sociedade capitalista,
poderíamos dizer que é a ideologia burguesa. Levantamos esta questão pelas rela-
ções estabelecidas entre os textos em estudo, o seu destinador e o contexto ao qual
fazem parte. Mostraremos, mais adiante, quando nos deteremos na constituição do
destinador Rede Globo, estas relações apresentadas nesta hipótese.
Explicando melhor o que entendemos por estereótipos, recorremos a
outra disciplina que pode nos ajudar a fundamentar nossas idéias. Como dissemos,
48 Retrato Falado é uma produção do Núcleo Guel Arraes que também está “englobado” pela Rede Globo,
reproduzindo assim a visão de mundo da emissora.
27
ideologia seria o ponto de vista de uma determinada classe social a respeito da reali-
dade, a sua maneira de ordenar, justificar e explicar a ordem social
49
. E “os estereó-
tipos segundo Ferres – são uma manifestação mais clara da ideologia latente em
um discurso”
50
, que cumprem uma função de justificar a conduta do grupo que o
estabeleceu. O autor ainda acrescenta o risco dos estereótipos se mostrarem na sua
aparente obviedade ou naturalidade
51
.
Em suma, postulamos que o destinador Rede Globo utiliza estratégias
de manipulação e procedimentos estésicos, sensíveis, para levar o seu enunciatário-
destinatário, o telespectador de Retrato Falado, a adesão ou a manutenção de sua
visão de mundo que está ligada a uma ideologia pertencente a uma classe social
dominante como veremos ao analisar o Fantástico. Através das estratégias de
manipulação, o destinador quer fazer com que o seu destinatário creia, bem como
fazer com que ele faça o que lhe a conhecer: assumir ou manter o “papel da
mulher brasileira”.
No quadro, esta “mulher brasileira”, apresentada de uma forma ri-
sível, eufórica, faz parte de uma multidão de anônimos, mas tem voz e quer, sabe e
pode falar ali na televisão – na maior emissora do país. É uma “mulher comum” que
pertence a uma cidade, uma região do Brasil; possui traços físicos próprios do povo
brasileiro que surgiu pela mistura de raças; possui seu próprio modo de falar, seu
próprio sotaque. Resumidamente, essa brasileira, construída nesse canal de tevê,
tem o que falar e sabe contar a sua própria história vivida no seu cotidiano ordinário.
E, acima de tudo, é bem humorada, sabe rir de si mesma, de sua vida no dia-a-dia.
Mostraremos de forma mais elucidativa essa “mulher” no desenvolver do presente
trabalho.
Para explicar esta colocação sobre as estratégias de manipulação,
apontamos a recorrência em todos os episódios de formas para convencer o enun-
ciatário ao que se passa na tela. Por exemplo, o efeito de sentido de subjetividade,
de aproximação do discurso, criado a partir da relação “eu/tu” da enunciação pro-
49 Cf. J.L. Fiorin, op.cit., p. 29.
50 J. Ferrés, Televisão subliminar, p. 136.
51 Ibid., p. 136-7
28
jetada no discurso-enunciado
52
, faz com que o enunciatário sinta-se próximo, per-
tencente ao que na tela da tevê. A utilização dos pronomes “nós” ou “nosso”,
“nossa”, também faz com que o sujeito que assiste ao quadro sinta-se convidado
a fazer parte da história contada, a participar do discurso, identificando-se com os
personagens da narração. Este efeito de sentido citado está presente no início de
todos os episódios, na apresentação que a atriz Denise Fraga faz da história, tanto
em off quanto enquadrada em primeiro plano.
Além da manipulação, um outro modo de convocar a adesão do
telespectador é pelo estésico, através de uma construção discursiva sensível que,
em Retrato Falado, ocorre pelo risível, é um discurso que leva ao riso. No livro O
riso e o risível na história do pensamento, Verena Alberti percorre textos de vários
filósofos contemporâneos, entre outros, e conclui que “hoje situa-se o riso ao lado
do impensado, daquilo que revela ao pensamento a necessidade e a impossibilidade
de ultrapassar seus limites”
53
. Outro aspecto levantado sobre o assunto, nas teorias
relacionadas às ciências sociais, é a interpretação do riso como síntese de prazer (ou
desprazer)
54
.
Deste modo, podemos dizer que este procedimento de construção
discursiva do quadro em que leva o seu enunciatário-destinatário ao riso, é uma
forma de fazê-lo sentir prazer e, ao mesmo tempo, levá-lo a esta dimeno do
“impensado”, que podemos considerar o sentir a partir do sentir do outro, o
sentir pelo contágio
55
. Ou seja, ao rir, o telespectador sente prazer e sente o que
apreende na tevê.
Por exemplo, o episódio “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos” con-
ta a história de Zulmerina Rosa de Jesus de São José do Rio Preto-SP. Logo no início,
em off, Denise Fraga diz: “Esta semana Retrato Falado vai contar a história cabeluda
da Zulmerina, ou melhor, Zuca, de São José do Rio Preto”. Com o adjetivo “cabe-
luda”, esse começo já traz um tom jocoso. Em seguida, a apresentação da atriz
52 Trataremos com mais detalhes sobre este assunto no Capítulo 3.
53 V. Alberti, O riso e o risível na história do pensamento, p. 24.
54 Ibid., p. 29.
55 Trataremos a respeito do “contágio” no Capítulo 5.
29
que, de um modo bastante particular, pela sua fala divertida, sorriso nos lábios e
gesticulação acentuada das mãos, nos evidencia que é a introdução de uma história
engraçada, risível, que vai nos provocar o riso.
Zuca, a protagonista, ao narrar sua história, conta que casou com
um homem que “não a deixava cortar o cabelo”. Quando casou, tinha os cabelos
na altura dos ombros e o tempo foi passando e o cabelo, crescendo. Os diálogos
que se desenrolam entre Zuca e o marido durante a encenação são bastante
risíveis pelo trocadilho de palavras e expressões. Por exemplo, o artista Antônio
Calloni, que desempenha na dramatização o marido, diz: “... só de pensar nisso dá
vontade de arrancar os cabelos de raiva”, enquanto conversavam sobre a esposa
cortar os cabelos. Denise, no papel de Zuca, responde: Pois arranque os meus,
não arranque os seus!”. Com isso, o
bservamos elementos que trazem o risível que
caracteriza o quadro.
FIGURA 1
Cenas do episódio “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos” com a protagonista
Zulmerina (Zuca) de São José do Rio Preto-SP
No desenrolar da narra
tiva, o casal se muda para um sítio. Por ser um
tiva, o casal se muda para um sítio. Por ser um
lugar distante, com pouco movimento de pessoas, Zuca decide deixar de pentear
os cabelos, criando um motivo pelo qual o marido deixar-lhe-ia cortar os cabelos:
30
a vasta cabeleira emaranhada que, acrescentamos, iria deixá-la “feia”. Com vários
diálogos jocosos encenados, o telespectador ri com a história. Ao final do episódio,
o marido pede para a sua irmã ir até a casa dele – no momento em que não estava
–, para dizer a esposa que a “deixava cortar o cabelo”.
Com esse exemplo, juntamente com os outros episódios, postulamos
que o destinador do quadro nos faz ver, de uma forma cômica, quem é a “mulher
brasileira”, porém, através de estereótipos que aparentemente se mostram óbvios
ou naturais. Assim, temos a hipótese de que o destinador de Retrato Falado, pelo
sensível do riso, reitera o “papel da mulher brasileira” que, na história citada, traz
um estereótipo de uma “mulher que se submete” ao homem, cumprindo as suas
“ordens”. Entretanto, essa mesma mulher mostra-se como alguém que pensa e
prepara antecipadamente seu objetivo, alcançando-o, sem deixar de cumprir o que
o homem quer. Mostra-se como uma mulher que sabe articular e fazer o que deve
para alcançar o que deseja; sem “desrespeitar” ou “passar por cima das ordens” do
companheiro. Essa mulher brasileira constrói um modo próprio de fazer, de agir.
Com essas duas questões, perguntamo-nos se esse destinador, pelas
suas estratégias de manipulação, apresenta-se também como um programador, pois
a cada semana veicula um aspecto do “papel da mulher brasileira”, persuadindo a
telespectadora também ou principalmente pelo estésico risível a segui-lo, eviden-
ciando a cada domingo este papel exibido a cada novo episódio. Poderíamos ain-
da questionar se este destinador Rede Globo cria uma “formatação televisual” da
“mulher brasileira”, um “programa” a ser seguido pelo destinatário para também
ser como esta “mulher”, que sabe rir de si mesma, se apreciar e fazer-se apreciar
pelo Brasil inteiro que a vê na maior rede do país.
Para apontarmos a construção discursiva de Retrato Falado, que mani-
festa quem é a “mulher brasileira” apregoada pela visão de mundo da Rede Globo,
por intermédio do Fantástico; iremos evidenciar como postula Landowski, as “situa-
ções” as quais o quadro se apresenta em seu contexto, que, uma vez “semiotizado,
torna-se um dispositivo gerador de significação”
56
. Assim, entendemos que a signifi-
56 E. Landowski, op.cit., p. 31-3.
31
cação é gerada a partir da relação existente entre o quadro e o seu contexto, pois,
segundo o mesmo semioticista, “compõem juntos uma única realidade significante
que os engloba e na qual interagem”
57
Para Landowski, o contexto mostra-se como um “macrotexto en-
globante” que
“apresenta-se a priori como um espaço aberto, sem fronteiras definidas, e do
qual não se pode dizer de antemão exatamente nem onde ele começa, nem,
ainda menos, onde termina. Para dele falar, deve-se, portanto, em primeiro
lugar construí-lo
58
.
Dessa forma, daremos continuidade a nossa análise a partir da cons-
trução do macrotexto ao qual Retrato Falado pertence, está “englobado”.
RETRATO FALADO: A “FANTÁSTICA” MULHER BRASILEIRA
Neste início do século XXI, há um aspecto que consideramos bastante
relevante para trazermos a este trabalho e que movimenta e modifica a realiza-
ção de produtos televisivos: a presença de pessoas anônimas. Segundo o livro A
deusa ferida, uma migração do mundo da ficção para o mundo da vida real,
“o grande público tem-se interessado também pela experiência de vida de pessoas
comuns, que passaram por situações semelhantes às que ele está passando e as
superam...”
59
.
No ano de 2000, a revista Veja (16/08/2000) registra este fato em
sua capa com a manchete para a matéria “O povo na TV”, na qual evidenciava o
aumento da audiência de programas nas quais “as grandes atrações não são ce-
lebridades, e sim pessoas comuns”
60
. A revista classificava como um “fenômeno”
o que estava acontecendo e afirmava que não era no Brasil, mas na televisão
mundial. O programa evidenciado pela revista era No Limite, então veiculado pela
Rede Globo, mas a reportagem mostrava o “fenômeno” expandido para outros
programas das várias emissoras.
57 E. Landowski, op.cit., p. 38.
58 Ibid., p. 33.
59 S.H.S. Borelli e G. Priolli (orgs.), op.cit., p. 119.
60 Informações veiculadas pela Revista Veja em edição datada de 16/08/2000 (www.veja.com.br).
32
Para Cosette Castro
61
, este “fenômeno” anunciado pela revista passa
a fazer parte de um novo formato televisivo, os chamados reality shows, surgido no
início do nosso século. A autora pontua, no seu livro Por que os reality shows con-
quistam auidências?, como sendo um marco, um verdadeiro divisor de águas e cita,
no Brasil, os programas No Limite (Globo), Casa dos Artistas (SBT) e o maior sucesso
de todos, o Big Brother Brasil (Globo). Ainda segundo Castro, citando Vilches, diz
que os reality shows trouxeram mudanças no modo de fazer e olhar a televisão
62
.
Diríamos que esse “fenômeno” presente nos reality shows, como tam-
bém mostram outras reportagens
63
, modificou a realização de outros programas em
busca de maiores audiências como é o caso dos populares Domingo Legal, de Gugu
Liberato (SBT), e Domingão do Faustão, de Fausto Silva (Rede Globo), que criaram
quadros próprios para mostrar as pessoas comuns – seriam as mudanças no modo
de fazer televisão? Isso também chegou ao jornalismo e fez render-se um dos mais
tradicionais programas brasileiros, o Fantástico, que também passou a desenvolver
quadros nessa linha, depois de pesquisas encomendadas a esse respeito pela Rede
Globo
64
.
Diante destas considerações, perguntamo-nos se esse “novo modo de
fazer televisão” é constituído por mudanças temáticas ou figurativas; ou se há mu-
danças na articulação de elementos que trazem uma “nova” construção discursiva
nestes programas; ou ainda e principalmente, tendo Retrato Falado como nosso ob-
jeto, se são os procedimentos estésicos, sensíveis – como levar ao riso – que fazem
parte dessa “nova” construção discursiva para persuadir o seu telespectador.
Retrato Falado foi um dos primeiros produtos televisivo que trouxe “o
povo para a tevê” e, particularmente, o que nos interessa: a mulher. Ou seja, traz a
“mulher do povo” para a tevê, e, com esta receita, se manteve no ar durante sete
61 Cf. C. Castro, Por que os reality shows conquistam audiência?.
62 Cf. C. Castro, op.cit., p. 39.
63 Informações veiculadas pelo jornal Folha de São Paulo em 07/07/2000 em matéria: Por que não tem Big
Brother no Brasil? e em 07/08/2000, Bandeirantes faz programa de TV realidade para teens (www.folha.
com.br).
64 Informações veiculadas pela Revista Veja em edição datada de 16/08/2000, matéria: O povo na TV (www.
veja.com.br)
33
anos
65
. Começou a ser exibido no Fantástico no ano de 2000 depois de passar
alguns meses no humorístico Zorra Total
66
da mesma emissora.
Assim, com Retrato Falado, o Fantástico
67
passa a mostrar fatos co-
tidianos da mulher comum: uma simples dona-de-casa ou uma que sonha com o
casamento ou uma trabalhadora responsável. Como o próprio nome do programa
nos revela, o que aparece durante sua exibição é “fora do comum, extraordinário,
prodigioso”
68
, é “fantástico”.
Desse modo, assumindo a veiculação de histórias cotidianas de mulheres
comuns de todo o Brasil, essas mulheres passam também a ser “extraordinárias”,
“fantásticas”. Entretanto, não seria uma contradição o Fantástico exibir o que é
“ordinário”? Por que o programa exibe histórias do dia-a-dia, chegando estas até
mesmo serem banais? O que leva as histórias de Retrato Falado ganhar o título de
“fantásticas”?
O Fantástico, o show da vida foi o nome com o qual foi criado em
1973 e que aboliu a expressão “o show da vida” em 1988, mas ainda a considera
em suas apresentações de matérias ou quadros durante sua veiculação, em seu site,
em sua versão impressa
69
e em tantos outros meios no qual o programa possa estar
ou se mostrar.
A palavra “fantástico”, pelo dicionário eletrônico Houaiss, possui mais
de uma definição, mas entendemos que aquela usualmente identificada para classi-
ficar o programa é “fora do comum, extraordinário, prodigioso” – como já citamos.
No entanto, outras duas definições que não estão completamente descartadas
do sentido pelo qual o Fantástico se constrói. Elas são: “tem caráter caprichoso, ex-
travagante” e “que não tem nenhuma veracidade; falso, inventado”.
65 Retrato Falado foi concebido para ser exibido no programa humorístico da Rede Globo, Zorra Total, que vai
ao ar aos sábados às 22h. Mas, em maio de 2000, passou a ser exibido semanalmente no Fantástico até o
ano de 2003. A partir daí, é veiculado em temporadas, ou seja, durante alguns meses do ano. Esteve no ar
até o ano de 2007.
66 O programa humorístico Zorra Total é veiculado semanalmente, aos sábados, às 22h, pela Rede Globo.
67 Também foram criados outros quadros com esta mesma perspectiva de mostrar a “pessoa comum” como o
Me leva Brasil com o jornalista Maurício Kubrusly e Central da Periferia com Regina Casé.
68 Definições do verbete “fantástico” pelo Dicionário Eletrônico Houaiss.
69 Fantástico, o show da vida em revista é a versão impressa do programa de tevê. Começou a ser publicada
em novembro de 2007 e sua circulação acontece a cada três meses. Segundo o site, a revista é “o seu show
da vida agora no formato revista” (www.revistafantastico.globolog.com.br).
34
O programa, ao longo dos seus 35 anos, sempre trouxe para nossa
tela algo “caprichoso ou extravagante” como as suas próprias vinhetas de abertura
como nos diz o Almanaque da TV Globo: “... eram e ainda são um acontecimento,
a cada estréia, a cada nova coreografia e ‘roupagem’. O ‘Show da vida’ sempre foi
antecedido por um espetáculo de balé e de efeitos cada vez mais especiais”
70
. De
modo particular, a partir da década de 1980, as aberturas criadas pelo designer tele-
visivo da própria emissora, Hans Donner, tornaram-se superproduções com imagens
geradas em computador de última geração e edições sofisticadas realizadas em ou-
tros países como EUA e Inglaterra
71
.
A terceira definição do dicionário apontada aqui “que não tem ne-
nhuma veracidade; falso, inventado” – também encontramos no Fantástico através
de seus quadros voltados à ficção, encenação ou dramatização. Ao longo deste
período, podemos elencar o quadro de humor com o mímico Juarez Machado ou
um mais recente O Super Sincero que conta histórias de “um homem que não con-
segue mentir para ninguém”
72
.
A letra da música-tema de abertura do programa reitera estas
definições apontadas. A canção com a letra foi usada em seus primeiros anos de
exibição, depois foi deixada de lado, sendo apenas a música veiculada e esta, por
sua vez, se tornou uma marca de identidade do programa mesmo com a mudança
de ritmos ao longo de sua história.
A letra evoca a atenção do telespectador (“Olhe bem, preste aten-
ção!”) para o que vai assistir: “Assim é a vida, olhe para ver”. Chama-se para se
ver esta “vida” que existe na tela do Fantástico que abarca toda a história da hu-
manidade, desde a “idade da pedra ao homem de plástico”. É uma vida a ser vista
(e por que não vivida?); vida cheia de magia, sonhos, miragem, emoção, riso, sexo,
guerra, amor, tecnologia, mito. É este “show da vida” que é “fantástico”. Esta “vida
fantástica” está diante de nós, na tela de nossa tevê, para nos levar a ver o “extrava-
gante”, o “fora do comum”, o “extraordinário”; tudo aquilo que não faz parte de
nossa vida cotidiana que é “simples”, “comum”, “ordinária”.
70 M.S. Maior, Almanaque da TV Globo, p. 112.
71 Cf. S. Mesquita, Fantástico 27 anos no ar: o caleidoscópio da tv brasileira, p. 131.
72 Informações no site do Fantástico http://fantastico.globo.com acessado em 16/04/2008.
35
Esse “fantástico” apresentado no programa é produzido a partir de
recursos fait divers e de um tipo de jornalismo espetáculo. Segundo Samla Mes-
quita, em sua dissertação de mestrado Fantástico 27 anos, o caleidoscópio da TV
brasileira, o programa sempre fez uso dos fait divers, ao longo de sua história, algu-
mas vezes mais, outras menos
73
; foi o primeiro a usar esse recurso até então inédito
na televisão do país.
Para o Dicionário de Comunicação
74
, fait divers é um jargão da im-
prensa francesa que define notícia que implica em rompimento da ordem dos acon-
tecimentos do cotidiano, fato extraordinário. O dicionário considera que são nar-
rativas típicas do “jornalismo sensacionalista e popularesco”
75
. Ainda no Dicionário,
os autores apontam que Barthes passa a usar o termo “para dar conta das notações
muito aberrantes do real”
76
. Segundo Fábia Angélica Dejavite, em seu artigo que
discorre sobre o poder do fait divers no jornalismo, o termo significa fatos diversos
que cobrem escândalos, curiosidades e bizarrices
77
.
Muniz Sodré, em seu livro O monopólio da fala, traz uma definição
para fait divers: “entenda-se: o crime passional, o fato extraordinário, as anomalias”
78
e explica-o, baseado em Barthes, que este tem uma significação fechada, imanente
à própria informação. É uma informação completa em si mesma que não remete
a nada além dela própria; não é necessário conhecer nada além do que se con-
some num fait divers para compreendê-lo. Então, temos que fait divers é algo “ex-
traordinário” que dialoga com o imaginário do homem e que contém em si mesmo
as informações que se bastam para ser compreendido.
Citemos o próprio Almanaque da TV Globo que, ao falar do Fantás-
tico, apresenta um exemplo de uma matéria realizada ainda nos primeiros anos do
programa e que a consideramos uma produção de fait divers. Realizada pelo então
repórter internacional Hélio Costa, a matéria mostrava o “congelamento de corpos”
73 Cf. S. Mesquita, op.cit., p. 45-6.
74 Cf. C.A. Rabaça e G.G. Barbosa, Dicionário de Comunicação, p.296.
75 Ibid.
76 Ibid.
77 Cf. F. A. Dejavite, O poder do fait divers no jornalismo: humor, espetáculo e emoção, Intercom 2001.
78 M. Sodré, O monopólio da fala: função e linguagem da televisão no Brasil, p.31.
36
de milionários de várias partes do mundo que estavam reservando “cápsulas de
criogênio” em busca da imortalidade; seriam congelados até quando fossem desco-
bertas a cura de suas doenças, então teriam seus corpos descongelados e voltariam
à vida
79
. Outro exemplo mais recente do dia 07/10/2007 é a matéria do “pão-duris-
mo”, que apresenta três homens que fazem de tudo para economizar como tirar a
pilha do relógio de parede quando sai de casa ou cortar o palito de fósforo ao meio
para ter o dobro de palitos na caixa.
Segundo Mesquita, que faz um apanhado do sentido de fait divers
ao longo da história, afirma que “para ser fait divers, os temas devem apresentar
uma ruptura da vida cotidiana, um desequilíbrio da ordem. E isto significa buscar o
diferente...”
80
. É assim que o programa faz para ser “fantástico”, ele rompe com o
“cotidiano” para mostrar o “extraordinário”.
O domingo em nossa sociedade é considerado um dia para o des-
canso, que deixamos a vida cotidiana de lado, que rompemos com a nossa rotina da
semana. É justamente quando o programa vai ao ar, um dia em que há uma quebra
no nosso cotidiano “simples e comum”. É na véspera do retorno ao “ordinário”, na
noite do domingo, que o Fantástico nos oferece, há 35 anos, no conforto de nossa
casa, uma “vida fantástica” que se apresenta e nos convoca a vê-la – e por que não
a vivê-la?
Entendemos que além da manipulação pela dimensão cognitiva
81
, o
enunciador-destinador Rede Globo, em seu fazer operatório, o fazer ser, põe em
jogo “um outro tipo de relação entre os actantes, da ordem do contato, do sentir”,
o que Landowski chama de “regime da união”
82
. Nesta relação temos, de um lado,
sujeitos dotados de “sensibilidade”, de “competência estésica” o telespectador,
e, de outro, manifestações, realidades materiais que possuem uma consistência
estésica”, qualidades “sensíveis”
83
– o programa de televisão Fantástico.
79 M.S. Maior, op.cit., p. 114.
80 S. Mesquita, op.cit., p. 46.
81 Trataremos das questões da manipulação no desenrolar deste trabalho.
82 E. Landowski, Aquém ou além das estratégias, a presença contagiosa, p. 19.
83 Ibid., p. 18.
37
É pelo arranjo sincrético do suporte televisivo que se articulam as
diferentes linguagens e formas de expressão que constituem a sua sensorialidade
visual e sonora
84
. É esta sua combinatória que leva o enunciatário-destinatário, o
telespectador, a “sentir” sinestesicamente o que se passa diante dele. Ele é levado a
“sentir” o “fantástico”: “os actantes entram estesicamente em contato dinâmico, é
sua co-presença interativa que será reconhecida como apta a fazer sentido, no ato,
e a criar valores novos”
85
.
A partir daí, postulamos que Retrato Falado, inserido no Fantástico,
também é um texto sincrético televisual e a sua persuasão passa por esse fazer
sentir que ganha uma valoração dentre as estratégias de convencimento. Assim, é
este “sentir” pelo “risível”, pelo que faz “rir”, que qualificam as mulheres e suas
histórias jocosas com o grau de “fantásticas”. É a construção discursiva que, além
das estratégias de manipulação, cria procedimentos estésicos que convocam pelo
sensível, pelo “sentir”, o enunciatário-destinatário e, nesta interação, o que se vê e
se sente faz sentido.
Outra hipótese que levantamos sobre essas “mulheres comuns”
tornarem-se “fantásticas” é a sua maneira de lidar com os fatos cotidianos. Essas
mulheres se mostram “articuladas”, “descoladas”, com “jogo de cintura”, “cheias
de artimanhas”, sabem dar um “jeitinho” para alcançar o que desejam sem des-
cumprir o pedido ou a “ordem” do companheiro. É o modo de agir destas brasileiras
que as levam a tela do mais antigo programa de domingo.
O Fantástico foi desenvolvido a partir da ótica do então criado “padrão
Globo de qualidade” – do qual falaremos mais adiante – que adota(va) uma sofisti-
cação técnica e de linguagem em suas produções. Por isso, foi um grande inovador
na história da televisão brasileira, buscando uma fórmula que fugisse do persona-
lismo dos apresentadores da época, estilo amplamente adotado pelas emissoras
concorrentes
86
. Além disso, foi precursor do que conhecemos hoje como videoclipe
84 Voltaremos a este aspecto da linguagem sincrética da televisão no desenrolar deste trabalho.
85 E. Landowski, op.cit., p. 19.
86 Cf. S. Mesquita, op.cit., p. 33.
38
que ao longo dos anos o desenvolveu e aperfeiçoou
87
e foi um dos primeiros progra-
mas a ser transmitido em cores.
Em busca desse novo “formato”, o programa foi inspirado no “que
acontece com as revistas impressas”
88
. Assim, foi logo considerado uma “revista
eletrônica” como ainda aparece hoje em seu site e em suas apresentações por
ter sido concebido como um programa de variedades, em que
“a sua espinha dorsal... teria que ser o jornalismo com notícias do dia, resu-
mo dos eventos esportivos e reportagens sobre todos os assuntos medicina,
curiosidades, entrevistas, assuntos científicos ou históricos etc.”
89
.
E sua variedade também traria humor, música, dramaturgia
90
.
Além da revista impressa, o Fantástico possui muitas características do
teatro de revista. Para Neyde Veneziano, em seu livro O teatro de revista no Brasil,
os meios de comunicação assumiram a “fachada lúdica das revistas de ano”
91
. O
gênero nasceu na França e chegou ao Brasil por volta de 1833, ano em que há re-
gistro dos primeiros textos. Em 1859, estréia a primeira revista brasileira. O gênero
seguiu a estrutura clássica por algum tempo, mas passou por algumas transforma-
ções, adequando-se ao país. Segundo Veneziano, no Brasil, o teatro de revista
“consistia em um resumo crítico dos acontecimentos do ano anterior. As vis-
tas do público, desfilavam os principais fatos do ano findo relativos ao dia-a-
dia, à moda, à política, à economia, ao transporte, aos grandes inventos, aos
pequenos crimes, às desgraças, à imprensa, ao teatro, à cidade, ao país. Era
uma história miniaturizada sob o painel anual, em linguagem popular, teatral-
izada. Equilibrava-se entre o registro factual e a ficcionalização cômica”
92
.
A partir desta citação e das considerações de Veneziano, em seu livro,
entendemos que o Fantástico pode ser considerado como um exemplo dessa pas-
sagem do teatro de revista para os meios de comunicação. Por se utilizar de uma
diversidade de assuntos, montados em vários formatos, o programa cria na televisão
87 Cf. S. Mesquita, op.cit., p. 56-8.
88 Ibid., p. 33.
89 Ibid., p. 33-4. Esta definição do Fantástico foi uma declaração concedida à autora da dissertação, em 1999,
por Edvaldo Pacote, secretário de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, um dos criadores do programa
Fantástico.
90 Ibid.
91 N. Veneziano, O teatro de revista no Brasil: dramaturgia e convenções, p. 185.
92 Ibid., p. 88.
39
a variedade do teatro de revista. E o quadro Retrato Falado se encaixa nesta monta-
gem diversa com o seu traço risível, cômico.
Para Mesquista, o formato do Fantástico, fazendo uso de fait divers e
do jornalismo espetáculo, compõe uma variedade que concede “exatamente esta
versatilidade que dá a receita básica do sucesso do programa por anos a fio”
93
. Ao
longo do tempo, variando entre mais entretenimento e menos jornalismo ou menos
entretenimento e mais jornalismo, o sucesso foi ameaçado várias vezes, no início
dos anos de 1990
94
, pelas crises de audiência vividas, chegando a perder a liderança
por vários domingos.
Entretanto, conseguiu se reerguer seguindo a mesma “fórmula” do
início, tendo sempre o mesmo destinatário, a saber, a família brasileira
95
: “Falando
para a classe média conservadora, o programa buscava em textos valores religiosos
cristãos para atingir um telespectador passivo sentado à espera do que o Fantástico
trazia naquele domingo”
96
. E hoje a história não mudou, essa mesma família ainda
é evocada, como diz a apresentadora Glória Maria, no programa de 07/10/2007:
“O Fantástico é de toda a família, para todas as idades”. Assim, o Fantástico não é
para a família, é mais do que isso, ele pertence à família, a família brasileira que
está em praticamente todos os municípios do país onde chegam as transmissões da
Rede Globo.
Nestes últimos anos, sua estrutura se constituiu por vários quadros
que evidenciam o perfil dessa família como o quadro que se tem uma conversa aber-
ta entre adolescentes ou matérias que mostram crianças aprendendo culinária ou
como cuidar da higiene dos objetos dos bebês ou ainda dicas de como se comportar
no trabalho. A “revista televisual” é voltada para toda a família: filho adolescente ou
criança, mães e pais, como vimos pelos exemplos.
Neste destinatário-família, o que nos interessa é particularmente a
mulher dessa família, seja ela solteira, casada, mãe, jovem ou velha. Com um rápi-
93 S. Mesquita, op.cit., p. 53-4.
94 Ibid., p. 162-175.
95 Ibid., p. 28.
96 Ibid., p. 143.
40
do olhar na história do Fantástico sobre o universo feminino, podemos trazer um
quadro que foi exibido durante os anos de 1984 a 1989 e que se chamava As Garo-
tas do Fantástico. A cada domingo, uma jovem brasileira era “eleita” pelo programa
e eram mostradas imagens da moça de biquíni fazendo poses sensuais.
Ao longo dos anos, o Fantástico sempre apresentou matérias que en-
volvessem mulheres como aquela em que a mãe jogou a filha, dentro de um saco
plástico usado para o lixo, na Lagoa da Pampulha em Belo Horizonte-MG. Dentre
os quadros veiculados neste último período, o que se chama Sexo Oposto que
mostra a relação do casal encenada pelos artistas Fernanda Torres e Evandro Mes-
quita. São histórias bem humoradas nas quais se evidenciam as diferenças entre o
homem e a mulher e sexo e amor.
Com isso, perguntamo-nos qual é o lugar que a mulher tem no Fan-
tástico. Que papel ela cumpre no que é mostrado pelo programa? Quem é essa
mulher? Para chegar a algumas respostas, como dissemos antes, iremos analisar o
quadro Retrato Falado que apresenta a mulher em seus diversos papéis. Ou seria um
único papel de mulher? Essa mulher em Retrato Falado é “fantástica” por que faz
rir? Ou é “fantástica” pelo seu papel (ou papéis?) de “mulher brasileira”? Ou por
que se mostra “descolada”, “articulada” e sabe dar um “jeitinho em tudo”?
Para dar seguimento à nossa análise, continuemos a construção do
nosso “macrotexto englobante”, passando agora a observar qual é o papel do des-
tinador Rede Globo na construção discursiva da mulher em Retrato Falado, conse-
qüentemente, no Fantástico.
O DESTINADOR REDE GLOBO
Atualmente a Rede Globo possui cinco emissoras próprias e 112 afilia-
das; possui equipes de reportagens em todos os 27 estados da federação, formando,
assim, o único veículo de comunicação presente em todo o território nacional com
quase 100% de cobertura de recepção e jornalística do país
97
. Como destinador, é
97 Cf. Jornal Nacional: a notícia faz história, Memória Globo, p. 12.
41
responsável pelos valores presentes em seus textos e estabelece as relações de inte-
ração com seu destinatário, persuadindo-o através de estratégias de manipulação e
procedimentos estésicos a aderir ou a manter a sua visão de mundo. Por utilizar uma
linguagem sincrética, se articula a partir de várias formas de expressão baseadas nas
sensorialidades visual e sonora para conquistar o seu destinatário-telespectador pelo
sensível. Observaremos a seguir como foi constituída a Rede Globo em sua história
que nos leva a dizer que a maior rede do país – pela sua hegemonia de liderança de
audiência, possui um poderio político, econômico e social que está presente em suas
manifestações textuais.
Segundo Venício A. de Lima, é inquestionável o enorme poder político
que a televisão desfruta na sociedade contemporânea
98
. No Brasil, a relação tele-
visão e política é muito íntima e se pode perceber com maior evidência durante a
ditadura militar, pois foi nesse período em que a televisão mais se desenvolveu pelo
forte investimento que recebeu para servir aos fins do regime que pregava uma “in-
tegração nacional” e a televisão era a sua melhor parceira. Assim, “o regime poderia
persuadir, impor e difundir seus posicionamentos, além de ser a forma de manter o
status quo após o golpe”
99
.
Com esse interesse na integração nacional para poder “manter a or-
dem, a segurança, acelerar o progresso e a modernização”
100
, o governo militar
investiu em infra-estrutura para estabelecer um sistema de telecomunicações no
país. Dessa forma, segundo Sérgio Mattos, em seu livro História da televisão brasilei-
ra, “os veículos de comunicação de massa, principalmente, a televisão, passaram a
exercer o papel de difusores não apenas da ideologia do regime como também da
produção de bens duráveis e não-duráveis”
101
.
Foi nesse período que se estabeleceu as instituições como o Ministério
das Comunicações, o Departamento Nacional de Telecomunicações (Embratel), o
Conselho Nacional de Comunicação, além da criação de leis e decretos que con-
98 V.C. Brittos e C.R.S. Bolaño (orgs.), Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia, p. 104.
99 S.A.S. Mattos, História da televisão brasileira – uma visão econômica, social e política, p. 35.
100 Os termos citados constam em várias fontes que falam sobre as idéias do regime militar.
101 S.A.S. Mattos, op.cit., p. 88.
42
tribuíram com a estrutura técnica necessária às telecomunicações. A esse respeito,
Mattos afirma: “Isso facilitou a ingerência política nos meios de comunicação, evi-
denciada até mesmo no conteúdo veiculado e sempre sob a justificativa de controle
técnico”
102
. Essa estrutura estava ligada a forte participação do Estado na economia,
as facilidades criadas para atrair investimentos estrangeiros, tudo isso direcionado
a construção de uma sociedade capitalista que levou o Brasil ao chamado “milagre
econômico”.
Mattos considera que “o crescimento da televisão foi direta e indire-
tamente influenciada pelo desenvolvimento econômico do país”
103
. Durante o “mi-
lagre econômico”, o governo militar concedeu 67 licenças para novas emissoras de
tevê em todo o território nacional, foi o chamado “boom da televisão”. Além disso,
proporcionou o crédito direto ao consumidor e a facilidade de compra de produtos
nacionais. A televisão foi beneficiada com um crescimento na venda de televisores,
chegando a ter um aumento de 20% entre 1970 e 1973. Vale ressaltar que, do ano
de 1964 até o de 1988, as concessões de licenças para explorar freqüências refor-
çaram o controle do Estado, “pelo simples fato de que tais permissões só eram con-
cedidas a grupos que originalmente apoiaram as ações adotadas pelo regime”
104
.
Durante o “milagre econômico” houve muita repressão política e con-
trole dos meios de comunicação através da censura policial, da lei de Segurança
Nacional e do Ato Institucional n°5, pois “o governo precisava manter uma imagem
de estabilidade social e política, a qual, de acordo com os conceitos do regime mili-
tar, era fundamental para o desenvolvimento econômico”
105
. Assim, os veículos de
comunicação, principalmente o rádio e a televisão, foram usados para construir um
espírito nacional baseado na preservação de crenças, culturas e valores da visão de
mundo do regime vigente.
Este “espírito nacional” foi possível ser criado através do estabeleci-
mento das redes de televisão que surgiram depois da instituição da Embratel e da
102 S.A.S. Mattos, op.cit., p. 90.
103 Ibid., p. 41.
104 Ibid., p.91.
105 Ibid., p. 40.
43
associação do Brasil à Intelsat
106
para transmissões via satélite. Nesta época, a TV
Tupi possuía muitas emissoras coligadas, 15 ao todo; a Rede Globo tinha cinco e a
Rede de Emissoras Independentes (REI) contava com duas. Desta forma, a televisão
foi a maior beneficiada com a sua expansão em todo território nacional, mas, ao
mesmo tempo, “foi usada para promover as idéias do regime autoritário”
107
. Além
disso, a expansão das redes de televisão passou a ter influência direta na promoção
e venda de produtos em larga escala pelo seu alcance nacional.
Segundo Elisabeth Carvalho, “o gigantesco esforço de integração na-
cional através do vídeo feito pelo Estado encontrou a noiva perfeita em fins dos anos
60: a TV Globo”
108
. Hoje temos, no Almanaque da TV Globo, sobre a primeira déca-
da de existência da emissora, uma exaltação a própria cobertura em rede promovida
desde então e que envolve e persuade também o seu destinatário-telespectador:
“nós, milhões de brasileiros de todos os cantos, debruçados sobre a mesma janela:
a televisão”
109
. O livro evidencia esse “único povo”, próximo, o “nós” reunido pela
competência da própria rede: “De repente, estávamos nós, distantes uns dos
outros e tão próximos, tão ligados, ao mesmo tempo. O imigrante alemão do in-
terior gaúcho, o ribeirinho da Amazônia, o metalúrgico do ABC paulista”
110
. É a
Rede Globo que teve e tem a competência, quer, pode e sabe fazer para “integrar
a nação brasileira”.
No ano de 1962, a emissora carioca se associa secretamente ao grupo
norte-americano Time Life que receberia 45% dos lucros obtidos. Por meio dessa
ligação, se introduz no país uma nova mentalidade de fazer televisão: é uma indús-
tria como qualquer outra. Esse novo modo de fazer televisivo, trazido pelo grupo
e aperfeiçoado pelos profissionais da Globo, passou a ter mais agilidade e eficácia
e mostrou ser a Globo “a emissora ideal para a veiculação do moderno modelo
econômico brasileiro”
111
.
106 Intelsat é um companhia comercial de serviços de satélite em funcionamento desde 1965
(www.intelsat.com).
107 S.A.S. Mattos, op.cit., p. 5.
108 E. Carvalho, M.R. Kehl e S.N. Ribeiro (orgs.), Anos 70 – Televisão, p.105.
109 M.S. Maior, op.cit., p.5.
110 Ibid., p. 15.
111 E. Carvalho, M.R. Kehl e S.N. Ribeiro (orgs.), op.cit., p.105.
44
Essa relação entre a Time Life e a Rede Globo foi bastante conturbada,
mas evidencia a ligação entre o poder político vigente, o poder do capital e as idéias
de atuação da emissora. Com uma CPI instaurada em meados da década de 1960,
para investigar a associação entre a Globo e o grupo americano, veio a tona que
tinha havido a influência de dois ministros do então governo nas negociações e a
“CPI decidiu que os acordos feriam a Constituição”
112
porque não era permitido que
companhias estrangeiras tivessem direito de propriedade sobre os meios de comuni-
cação brasileiros
113
. Porém o então governo Costa e Silva arquivou o inquérito, decla-
rando infundadas as acusações. Entretanto, com as pressões políticas, pouco tempo
depois, o inquérito foi reaberto e a emissora, nacionalizada. Tem-se a união evidente
entre poder político e capital na televisão brasileira, a visão de mundo de uma classe
dominante. Nesta época, a Globo ainda era uma emissora sem expressão, pouco
rentável e de baixa audiência, criando desinteresse pelo grupo norte-americano que
facilitou a venda de sua parte das cotas ao grupo de Roberto Marinho.
A sua inauguração ocorreu em 1965, ainda como TV Globo do Rio de
Janeiro. A influência da Time Life foi muito importante do ponto de vista técnico,
pois a emissora recebeu um gerenciamento direto e treinamento de funcionários
com alguns viajando aos Estados Unidos. Assumiu, assim, um modelo americano já
consolidado
114
. Foi este aspecto tecnológico que tornou a Globo a maior e mais im-
portante televisão do país – e ainda é esse um dos seus diferenciais até hoje. Desde
sua fundação, a emissora já contava com o videoteipe, que revolucionou a televisão
pela possibilidade de gravar antes de exibir, e equipamento profissional de edição.
No início da década de 1970, visando a copa do mundo de futebol em
1974, o governo implantou o sistema para transmissão de imagens coloridas. Isso
requeria muito investimento por parte das emissoras, incluindo a compra de novos
equipamentos e a melhora da produção como cenários, maquiagens etc., pois tudo
o que iria ao ar seria colorido. O livro A deusa ferida considera que foi o “diferencial
financeiro que colocou a Globo em vantagem, por ser ela uma das poucas, senão a
112 E. Carvalho, M.R. Kehl e S.N. Ribeiro (orgs.), op.cit., p. 105.
113 Cf. S.A.S. Mattos, op.cit., p. 95.
114 Cf. S.H.S. Borelli e G. Priolli (orgs.), op.cit., p. 82.
45
única, a dispor de saúde financeira para tamanho investimento”
115
, sendo o capital
herança da relação com a Time Life. Com o estabelecimento da televisão em cores,
a Globo consolidou de vez sua liderança no mercado.
Além da tecnologia, a Rede Globo estabeleceu novos critérios de
programação, preocupada em cativar sua audiência; de veiculação de publicidade,
criando cotas ao invés de patrocinadores exclusivos que interferiam na produção
modelo este usado até então; criou também as hoje conhecidas vinhetas de pas-
sagem entre o programa e o intervalo comercial. Dessa forma, foi possível criar uma
programação mais homogênea, mesmo com “programas populares”, linha seguida
por todas as emissoras naquele período.
Um dos feitos mais importantes para se estabelecer como rede acon-
teceu em 1969 com a transmissão do Jornal Nacional, primeiro telejornal veiculado
em cadeia nacional e que está no ar até hoje. Foi criado como um desafio para
solidificar um telejornalismo nacional e romper com o que era vigente no momento,
o Repórter Esso. E conseguiu, fazendo o seu principal telejornal ser líder absoluto de
audiência desde que foi ao ar pela primeira vez até hoje
116
e adquiriu um poderio de
“eleger presidente” ou “aprovar indicação de ministro”
117
.
Naquele início de história, havia a preocupação da Globo com a per-
feição técnica como podemos observar no Almanaque da TV Globo que afirma sobre
a chegada do homem à lua: “A nitidez das imagens geradas do espaço via satélite
era tanta que muitos telespectadores duvidaram da chegada do homem à lua”. Essa
“perfeição técnica” é um outro elemento na construção discursiva da Rede Globo
que pode ser, muitas vezes, “exaltada” na sua própria programação como é o caso
do Vídeo Show, programa voltado a publicizar suas próprias produções.
Naquele primeiro ano de exibição, ao final de suas transmissões, o
Jornal Nacional ressaltava que era “um serviço de notícias do primeiro jornal real-
mente nacional da TV brasileira”. Apresentava-se principalmente como “integrador
115 S.H.S. Borelli e G. Priolli (orgs.), op.cit., p. 84.
116 Cf. Jornal Nacional: a notícia faz história, p.13.
117 Cf. V.C. Brittos e C.R.S. Bolaño (orgs.), Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia, p. 103-29.
46
do Brasil novo, com imagem e som de todo o país” e, em busca da aproximação
com o público, afirmava: “é um Brasil ao vivo aí na sua casa”
118
.
O livro Jornal Nacional: a notícia faz história, publicado em comemo-
ração aos 35 anos do seu principal telejornal, vem reiterar uma idéia recorrente no
discurso construído pela própria emissora, ao longo dos anos, em suas veiculações
jornalísticas de que a emissora é aquela que “noticia a verdade”. No final do
prefácio de João Roberto Marinho, vice-presidente das Organizações Globo, vem
confirmar o referido discurso: “Quando o leitor virar a última página, esperamos que
ele tenha a mesma certeza diária que tem ao terminar de assistir ao Jornal Nacio-
nal: a de que o que acabou de ler, goste-se ou não, é a pura verdade”
119
. A própria
emissora se constrói como aquela que auto-afirma-se em relação a sua qualidade
jornalística em que há “correção, agilidade, isenção”.
Ainda segundo o livro A deusa ferida, citando a revista Imprensa (junho,
1991), o Jornal Nacional era incentivado pelos militares por ser o primeiro jornal em
rede nacional a possuir, desde então, um alto padrão de qualidade com reportagens
de todo o país. Entretanto, ainda segundo a revista, o seu ponto fraco era um tom
“oficialesco”, “ainda que os caciques da Globo atribuam este defeito à censura
exercida na época em toda a imprensa”
120
. Reiterando esta idéia, o artigo publicado
no livro Anos 70 – Televisão por Maria Rita Kehl aponta que, no final da década de
1970, o Jornal Nacional dava muito destaque aos pronunciamentos governamentais
e as viagens que o então presidente fazia pelo país em busca de popularidade.
Com estas observações, podemos apontar que o único informativo
que atingia mais de 30 milhões de pessoas na época
121
mostrava que a emissora
convergia às idéias do então regime. No ano de 1973, referindo-se ao Jornal Nacio-
nal, o então presidente Médici afirmou:
“Sinto-me feliz, todas as noites, quando ligo a televisão para assistir
ao jornal. Enquanto as notícias dão conta de greve, agitações, atentados e conflitos
118 S.H.S. Borelli e G. Priolli (orgs.), op.cit., p. 51-2.
119 Jornal Nacional: a notícia faz história, p.13.
120 S.H.S. Borelli e G. Priolli (orgs.), op.cit., p. 52-3.
121 Cf. E. Carvalho, M.R. Kehl e S.N. Ribeiro (orgs.), op.cit., p. 34.
47
em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É
como se eu tomasse um tranqüilizante, após um dia de trabalho”
122
Essa afirmação evidencia que a atuação feita pela Globo, na época,
respondia a “preocupação” do então regime militar com o que era exibido na tele-
visão. Foi no início desta década, afirma o autor Mattos, que “o regime começou a
se preocupar com o conteúdo dos programas televisivos”
123
e desaprovar a violência
e a falta de “padrão cultural” na televisão. E, mais uma vez, a Globo se mostrou
apoiando as idéias dos militares, criando o seu “padrão de qualidade”. Esse “padrão
Globo de qualidade”, contando cerca de 40 anos depois de seu surgimento, é hoje
explicitamente publicizado pela emissora nos intervalos comerciais, tendo seus ar-
tistas e jornalistas como protagonistas para reiterar o seu “Q” de qualidade. É uma
exaltação a própria competência como rede de televisão.
Em nome dessa qualidade técnica e de linguagem, a própria emissora
possuía uma censura interna com um funcionário dedicado exclusivamente para re-
visar os textos e informar à direção da empresa “prováveis deslizes na programação
e assim evitar ‘conseqüências mais graves’”
124
. Segundo o próprio autor de novela
das 20 horas na época, Lauro Cezar Muniz, ele não tinha seu texto censurado pela
Polícia Federal, mas sofria cortes pela própria censura da emissora
125
.
Ainda segundo Kehl, o “padrão Globo de qualidade” se firmou, so-
bretudo, a partir de 1973 com a chegada ao Brasil da televisão colorida. A autora
afirma que “a opulência visual eletrônica criada pela emissora contribuiu para apa-
gar definitivamente do imaginário brasileiro a idéia de miséria, de atraso econômico
e cultural” e completa trazendo uma idéia de “hipótese antisséptica” que a emis-
sora se utilizava: “quando é imprescindível mostrar a pobreza convém ao menos
desinfetá-la: em vez de classes miseráveis, um ‘povo humilde, porém decente’ para
não chocar ninguém”
126
.
122 E. Carvalho, M.R. Kehl e S.N. Ribeiro (orgs.), op.cit., p. 31.
123 S.A.S. Mattos, op.cit., p.43.
124 E. Carvalho, M.R. Kehl e S.N. Ribeiro (orgs.), Anos 70 – Televisão, p. 28.
125 Ibid., p. 28.
126 Ibid., p. 12.
48
Esse visual colorido, deslumbrante e exuberante explorado particu-
larmente pelo Fantástico atendia plenamente ao tipo de televisão que o governo
militar queria e o programa chegou a ter o maior orçamento da emissora para suas
produções. Ainda contribuiu decisivamente para a escalada da Globo na liderança
de audiência nacional, por ser precursor de um novo formato como vimos antes,
mesmo recebendo, ao final da tarde de domingo, um representante do então gov-
erno para fazer os cortes necessários devido a censura em vigor.
A Rede Globo, com seu padrão de qualidade, manteve-se líder ab-
soluta de audiência do final dos anos de 1970 até o início dos anos de 1990. Em
reportagem publicada pela Veja em 06/10/1976 com o título O futuro de um
império
127
, a revista mostra a dimensão da empresa com produções dignas de
“hollywood”, com faturamento mensal em torno de 10 milhões de dólares, fazendo
uma cobertura que atingia a metade da população brasileira. É evidenciado o ta-
manho de seu poder.
Nessa mesma reportagem, a Veja ainda informa que as decisões de
escolha de programação da emissora era – e ainda é – feita baseada em pesquisas
com seu público telespectador. E naquele final dos anos de 1970, o seu público era
a classe média, particularmente, a mulher, como afirma a reportagem: “Eis por que,
para a casa dessa mulher está voltada toda a programação da Globo”
128
, com os
programas e as várias telenovelas envolvendo o universo feminino. Isso nos estimula
a perguntar: e hoje a programação continua pensando na mulher? Na mulher con-
temporânea? Ou essa seria ainda a mesma?
Sua produção de alta qualidade levou sempre a emissora a dominar o
horário nobre praticamente durante a década de 1980, mesmo com o surgimento
de novas redes de televisão que conseguiram, em programas pontuais, altos índices
de audiência
129
. No entanto, a Globo reinava absoluta, tendo, em 1988, 70 a 80%
127 Revista Veja em 06/10/1976 com matéria: O futuro de um império: a Rede Globo de Televisão só tem medo
de uma coisa: dela mesma (www.veja.com.br).
128 Revista Veja em 06/10/1976 com a mesma matéria anterior (www.veja.com.br).
129 Cf. S.H.S. Borelli e G. Priolli (orgs.), op.cit., p. 97-101.
49
dos aparelhos de TV ligados nela, chegando, muitas vezes, perto de 90%
130
. Mas a
história começou a mudar quando passou a viver uma crise de audiência no início
dos anos de 1990 como afirmam os autores do livro A deusa ferida: “pela primeira
vez, a Rede Globo tem [teve] realmente de enfrentar a concorrência”
131
.
Foi na década de 1990 que começou a segmentação na televisão
brasileira que passou a afetar a audiência da Globo. Primeiramente, foram se de-
finindo horários para a exibição de programas como a parte da manhã dedicada às
crianças e a tarde aos programas femininos. Com o fim da política de integração
nacional, houve a necessidade de dar espaço a produção local, por exemplo, crian-
do os telejornais locais com maior duração. Assim a Globo também passou a pro-
duzir suas novelas em outros estados, pois “o Brasil parecia não mais se reconhecer
apenas nas locações, atores e sotaque do Rio de Janeiro”
132
.
A segmentação ainda se deu pela distinção entre as próprias tevês
abertas que começaram a direcionar a sua programação para um público-alvo
específico como é o caso da Rede Bandeirante que, em meados dos anos de
1980, começou a se distinguir das outras emissoras se autodenominando o “canal
do esporte”. Também os canais transmitidos em UHF passaram a um direciona-
mento específico e a MTV é um dos melhores exemplos, criando uma programação
para o jovem.
A televisão por assinatura foi mais um motivo que levou o público
a migrar, deixando a Globo em diversos horários. A inserção do controle remoto
nos lares também levou as pessoas, principalmente, os jovens a zapear de um ca-
nal a outro durante os intervalos comerciais e até permanecerem em outro canal,
deixando para trás o que assistiam. Outro elemento que fez com que a Globo so-
fresse queda de audiência foram os programas popularescos que invadiram as emis-
soras concorrentes levando o público a segui-los e deixar a Globo sobre pressão em
nome do seu “padrão de qualidade”.
130 S.H.S. Borelli e G. Priolli (orgs.), op.cit., p. 109.
131 Ibid., p. 101.
132 Ibid., p. 106.
50
Durante esse período, pelos motivos apontados, a Rede Globo amar-
gou uma perda significativa de 16,5 pontos percentuais, ou seja, “trata-se de um
contingente de público três vezes maior do que o da Rede Bandeirantes. Ou, di-
zendo de outra forma: em dez anos a Globo perdeu três Bandeirantes”
133
. Mas isso
não quer dizer que perdeu sua hegemonia, ela ainda segue liderando. Este público
que migrou da Globo não se estabeleceu em nenhum canal específico, é um público
que “flutua” entre as emissoras.
Com essas considerações feitas, podemos dizer que a televisão no Bra-
sil, de um modo geral, favorece aos objetivos capitalistas de produção “tanto quando
proporciona novas alternativas ao capital como quando funciona como veículo de
valorização dos bens de consumo produzidos, através das publicidades”
134
. Ainda
amplia o mercado consumidor da indústria cultural e age como instrumento man-
tenedor da ideologia e da classe dominante
135
.
O lugar de liderança sempre rendeu a Rede Globo muitos benefícios
tanto econômicos com cerca de 55% do mercado publicitário deste meio em
todo o país; quanto político, influenciando decisões até mesmo governamentais
136
que afetaram o Brasil para trazer benefícios às suas organizações. Com isso, con-
sideramos a Globo uma mantenedora dessa ideologia de uma sociedade de classes
pregada pelo sistema capitalista. Pelo que vimos, a Rede Globo se constrói como
a emissora que chega a todo “o povo brasileiro”, ao “brasileiro de verdade” que
vive de norte a sul do país; que diz a “pura verdade” em seus telejornais; que
tem uma “qualidade técnica e artística” insuperável, que “só se vê na Globo”; leva
o seu público a se identificar com ela por meio de seus personagens das novelas e
jornalistas: “a Globo e você – tudo a ver” etc. É uma rede de televisão que se diz a
melhor, porque preza pela qualidade, chega a todos os brasileiros para dizer a “pura
verdade” e emocionar com sua teledramaturgia.
133 S.H.S. Borelli e G. Priolli (orgs.), op.cit., p. 11.
134 S.A.S. Mattos, op.cit., p. 58.
135 Ibid.
136 Cf. V.C. Brittos e C.R.S. Bolaño (orgs.), op.cit., p. 103-29.
51
Em análise de alguns momentos da recente história da política do Brasil
e sua relação com a Rede Globo, Lima insiste que o papel mais importante da refe-
rida rede de tevê é decorrente do poder de longo prazo que ela tem na “construção
da realidade”
137
de diferentes aspectos da vida: etnias (brancos/negros), gêneros
(masculino/feminino), gerações (novo/velho), estética (feio/bonito) etc
138
. Tudo isso
presente tanto na programação jornalística quanto na de entretenimento, sobretu-
do, nas novelas. O autor fala que a Rede Globo de Televisão se distingue das outras
redes privadas pela sua “construção de representações sociais dominantes”
139
.
Acrescentamos que esse conglomerado que são as Organizações Glo-
bo que incluem revistas, jornais, companhias cinematográficas, indústria fonográ-
fica, emissoras de rádio e tevê, televisão a cabo e Internet, contribui para fazer com
que o interesse público do brasileiro, seus gostos, crenças, cultura e valores, fiquem
“sob controle de corporações, as quais estão criando uma estrutura de dependência
a fim de reforçar e impor seus valores e produtos à sociedade”
140
.
A visão de mundo pregada pela Rede Globo está pulverizada em outros
meios citados antes. Para dar um exemplo que nos interessa diretamente, voltemos
a observar o Fantástico. Paralelos ao programa foram lançados nove DVDs reunindo
episódios de seus quadros, como é o caso de Retrato Falado como informado;
além de publicações como a revista “Fantástico, o show da vida em revista” e 10
livros que também são baseados em seus quadros. Retrato Falado também ganhou
a versão impressa, em 2005, com o nome “Retrato Falado, Histórias Fantásticas da
Vida Real” de autoria da própria atriz Denise Fraga que relata 31 histórias veiculadas
e, dentre elas, seis que estão no DVD, além de acontecimentos de bastidores e curio-
sidades da produção, ilustrados com fotos dos protagonistas e das gravações.
137 O grifo é do autor: V.C. Brittos e C.R.S. Bolaño (orgs.), Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia, p.
125.
138 Ibid.
139 Ibid., p. 104.
140 S.A.S. Mattos, op.cit., p. 47.
52
CONSIDERAÇÕES SOBRE O FAZER DESTA PESQUISA
Diante da perspectiva apresentada, ainda como postulações que re-
querem comprovações, esta presente pesquisa procurará estudar a construção dis-
cursiva de Retrato Falado nos seus 15 episódios reunidos em DVD, por eles terem
sidos selecionados por seu próprio destinador Rede Globo, expressando assim sua
visão de mundo, mediante o seu retrato da “mulher brasileira”. Descreveremos e
analisaremos tanto o seu plano do conteúdo como o seu plano da expressão para
identificar quem é essa “mulher” apresentada; se ela é estigmatizada; que lugar
ela tem na família, público-alvo do Fantástico; se um “papel da mulher brasilei-
ra” com caracterizações e qualidades apresentadas a serem seguidas pelos seus
telespectadores.
Postulamos que, na relação entre destinador e destinatário, o des-
tinador Rede Globo para fazer o seu destinatário ser utiliza-se de procedimentos
de manipulação, fazer fazer, e estésicos, fazer sentir. Como esse destinador quer
fazer o seu destinatário ser a “mulher” apresentada no quadro em questão? Quais
são as estratégias de manipulação utilizadas para fazer o destinatário fazer o que
é necessário para ser a “mulher brasileira”? Quais são os procedimentos estésicos
para fazer o destinatário sentir e, pelo sensível, aderir ao que é proposto? A Rede
Globo se apresenta como um destinador-manipulador?
Postulamos que esse destinador, por exibir esta “mulher brasileira” a
cada semana, todo domingo, apresentando a cada episódio de Retrato Falado uma
nova característica, “formata” a “mulher brasileira” que é vista e revista no Fantás-
tico. É, de fato, uma “formatação” da “mulher”? Manifesta-se como um destina-
dor-programador? Como esse destinador apresenta, a cada semana, características
a serem seguidas pelo destinatário para ser essa “mulher fantástica” que está ali
na tevê, em horário nobre, na maior rede de televisão do país, sendo assistida pelo
público do país inteiro?
O sincretismo de linguagens e formas de expressão que constituem os
textos em análises contribuem para este fazer operatório, fazer ser, do destinador?
53
Como a sensorialidade visual e sonora do texto leva o destinador a convencer o seu
destinatário pelo “risível”? Como esse discurso faz com que o destinatário ria, sinta
e tenha ou mantenha-se de acordo com a visão de mundo apresentada, do “papel
de mulher brasileira” que nos faz ver?
Como o destinador interage com o seu destinatário? Para essa inte-
ração, o destinador se utiliza dos regimes da manipulação, do ajustamento e da
programação?
55
Retrato Falado
e suas
vinhetas de abertura
O SINCRETISM
O
DE LINGUAGENS NA TELEVISÃ
O
Todo texto é composto pela reunião dos dois planos da linguagem: o
plano do conteúdo e o plano da expressão que estão em relação de pressuposição
recíproca, um está implicado no outro e vice-versa. Esta reunião dos dois planos é
chamada de semiose que se no ato da linguagem, no momento da construção
do texto. Para Ana Cláudia de Oliveira, “a semiose que se produz é a própria fun
-
ção semiótica que articula a significação”
1
. E para se apreender esta significação,
estuda-se os elementos que compõe o plano da expressão, nas suas articulações em
figuras e categorias, relacionando essas com as do plano do conteúdo.
Ainda para Oliveira, com o estudo desta semiose, é possível apreender
o sistema axiológico em que o texto foi construído, os seus valores em circulação,
bem como os efeitos de sentido desencadeados pela relação estética
2
. Entendemos,
assim, que para adentrarmos em nossa análise de
Retrato Falado
, devemos estudar
os dois planos e a semiose que se estabelece entre eles, para apreender como os
sentidos estão presentes nas formas sensíveis que o manifestam.
No capítulo anterior, dissemos que
Retrato Falado
é um texto sincré
-
tico
3
, ou seja, o seu plano de expressão, a sua manifestação se dá pela combinação
de várias linguagens como o gráfico do verbal escrito, gestual, sonoro, visual etc.
Para Jean-Marie Floch, esse processo de combinação intersistemas se por uma
1
A.C. de Oliveira (org.),
Semiótica plástica
, p. 122.
2
Ibid
.
3
Cf. A.J. Greimas e J. Courtés,
Dicionário de semiótica
, p. 426 (verbete: sincretismo).
2
56
única estratégia global de comunicação sincrética que administra o contínuo do
discurso que é resultante da textualização
4
dos dois planos (conteúdo e expressão)
no ato da linguagem. Entendemos, então, que essa única estratégia global de enun-
ciação é realizada por um mesmo enunciador que articula as linguagens e formas de
expressão na construção do(s) sentido(s) do texto. Por isso, ainda para Floch, é pos-
sível abordar essa articulação como um todo de significação e, para tanto, se deve
proceder analisando primeiramente o plano do conteúdo
5
.
Para Oliveira, o plano de expressão de uma dada configuração repousa
sobre a organização sintática e semântica, ao seu plano do conteúdo; temos, então,
que realizar um estudo tanto do enunciado quanto da enunciação para examinar-
mos como esses estão articulados por traços e regras do sistema ou de intersistemas.
O estudo do enunciado possibilita a caracterização das relações e funções das quali-
dades plásticas e dos actantes. O da enunciação evidencia a intencionalidade dis-
cursiva do enunciador pelo conjunto de marcas deixadas na manifestação textual e
como essas são concretizadas materialmente para direcionar o olhar do observador
a ver como o enunciado se mostra. Aprofundaremos estes aspectos no capítulo 3.
Entendemos, primeiramente, ser necessário nos deter por um momen-
to na constituição da linguagem televisual o plano de expressão da tevê com o
intuito de observar em detalhes a sua composição para trilhar caminhos para nossa
análise. Identificando os arranjos sincréticos do plano da expressão produzidos pela
articulação de linguagens e formas de expressão, refletiremos sobre os efeitos de
sentidos criados por esta articulação no plano do conteúdo
6
. Consideramos, então,
importante identificar aquelas “qualidades de expressão” que “têm algum papel na
produção do sentido”
7
do texto em estudo.
Apontemos os sistemas semióticos presentes em um texto televisual.
A sensorialidade perceptiva deste veículo a visão e a audição nos evidencia que
4 Cf. A.J. Greimas e J. Courtés, Semiótica: Diccionario razonado de la teoria del lenguaje Tomo II., p. 234.
5 Ibid., p. 233.
6 Cf. A. S. Médola, Novela das oito e suas estratégias de textualização, Terra Nostra, a saga ressemantizadora,
p. 46.
7 J.M. Floch, Semiótica plástica e linguagem publicitária, Significação, n. 6, p. 34.
57
nessas duas formas de registro são possíveis serem inscritas diversas linguagens.
São justamente por esses dois sentidos que o enunciatário percebe o discurso enun-
ciado. A partir deste suporte audiovisual, Ana Sílvia Médola, em sua tese de dou-
torado, divide as linguagens e formas de expressão em dois sistemas semióticos: a
visualidade e a sonoridade televisiva. Para os sistemas visuais, ela traz o “imagético,
verbal/escrito, gestual, proxêmica, figurino” e para os sistemas sonoros, “verbal/
oral, musical, ruídos”
8
.
Para termos como exemplo a explicação dos sistemas televisivos, ci-
temos a primeira vinheta de abertura de Retrato Falado em que temos no visual:
cada letra do nome do programa inserido em negativos de fotografias de modelo
3x4; diversas fotos também 3x4 que se movimentam em várias direções e os créditos
do programa com os nomes dos atores, roteiristas, diretores. Simultaneamente ao
que vemos, temos a música base do programa, que o caracteriza, e o off
9
de Denise
Fraga apresentando de quem é a história do dia. É justamente essa articulação que
gera significação nessa introdução, construindo o simulacro da “brasileira” como
veremos mais a diante ao analisarmos esta vinheta.
Médola ainda faz uma segunda classificação das linguagens: “é pos-
sível apontar para o fato de que as articulações sincréticas do texto televisivo que
alinham e/ou imbricam sistemas semióticos são de caráter lingüístico, paralingüístico
e não-lingüístico”
10
. Os lingüísticos seriam a língua natural que pode ser apresen-
tada escrita e falada; no nosso exemplo, são o nome do quadro, os créditos e a fala
de Denise. Os paralingüísticos são “proxêmica, ruídos, gestualidade, entonação”
11
.
Voltando ao exemplo, a proxêmica é a disposição na tela das fotos; a música traz
vozes que não são compreendidas, ou seja, são ruídos; uma gestualidade pela
expressão fisionômica dos rostos nas várias fotos e a entonação fica por conta do off
de Denise Fraga que fala de forma divertida voltaremos a tocar nesse aspecto mais
8 A. S. Médola, op.cit., p. 47.
9 Off em televisão é um texto lido por um apresentador ou repórter ou é um trecho de uma fala de um en-
trevistado em que não aparece a imagem de quem ou fala. Esse texto também pode ser lido por outro
profissional de tevê como, no nosso caso, pela atriz Denise Fraga ao apresentar o quadro.
10 A. S. Médola, op.cit., p. 48.
11 Ibid.
58
adiante. Os não-lingüísticos são “moda/figurino, música, comportamento, com-
posição da imagem, cenário”
12
. No exemplo da vinheta, temos do sonoro apenas a
música e na composição do visual entram a moda/figurino das pessoas nas fotos, os
seus comportamentos com expressões corporais, as distâncias entre essas pessoas e
os objetos e o seu ocupar no espaço que compõe o cenário.
Em toda esta descrição, tendo como exemplo a primeira vinheta de
Retrato Falado, temos que a manifestação televisual, por um lado, apresenta-se
como um tecido pronto (um todo de significação) e, por outro, um entrelaçamento
de fios que formam este tecido. Se houver alguma mudança nesta tessitura, deixa
de ser este tecido e passa a ser outro, com outra totalidade de sentido. Estes são os
desafios e os estímulos que nos motivam a estudar textos sincréticos da televisão.
Através dos sistemas semióticos visuais e sonoros e do caráter lingüís-
tico, paralingüístico e não-lingüístico, toda essa composição e articulação sincrética
apresentada proporciona ao suporte televisivo uma infinidade de combinatórias de
construção textual que mantêm as linguagens e formas de expressão em interde-
pendência, criando diversos tipos de relações que geram significação. Observaremos,
ao longo deste capítulo, com mais atenção, essa articulação com a comparação das
análises das quatro vinhetas de Retrato Falado.
Para Greimas e Courtés, quando os nossos sentidos entram em contato
com uma semiótica subjacente, no nosso caso a sincrética do televisual, produzem
uma “impressão de realidade” que são os chamados efeitos de sentidos
13
. Em textos
televisivos, para Médola, “a construção dos efeitos de sentidos são mais eficientes
à medida que as estratégias de enunciação promovem uma tensão entre as lingua-
gens no estabelecimento de relações de significação”
14
. Com isso, entendemos que
a apreensão do sentido em texto da televisão se dá pelos efeitos de sentidos criados
pelo enunciador para levar a compreensão do enunciado-discurso.
Nesta perspectiva, citemos Landowski que nos explica que o efeito
de sentido que se desprende da percepção constitui uma totalidade no plano semi-
12 A. S. Médola, op.cit., p. 48.
13 Cf. A.J. Greimas e J. Coutrés, Dicionário de semiótica, p. 136 (verbete: efeito de sentido).
14 A. S. Médola, op.cit., p. 48.
59
ótico, embora a audição, a visão e os outros sentidos possuam cada um suas pecu-
liaridades
15
; no entanto, atuam articulados no televisual. Segundo ele, isso acontece
no caso dos efeitos sinestésicos produzidos pela convocação simultânea de dois ou
mais canais sensoriais. Assim, o texto televisivo, utilizando-se da sensorialidade vi-
sual e sonora, produz efeitos sensíveis no enunciatário. O autor conclui que os dois
níveis de percepção – visual e sonora – concorrem para uma só experiência estética
experimentada de maneira global e concreta. Desta forma, a televisão proporciona
uma apreensão estética e estésica do que é apresentado, que atua na formação da
significação tanto quanto a apreensão cognitiva.
Pelas observações feitas, o plano da expressão da televisão manifesta-
se sincreticamente que, por sua vez, leva o enunciatário a uma experiência, além da
cognitiva, estésica. A partir do próximo tópico, estudaremos as vinhetas de abertura
e seu plano do conteúdo e faremos as homologações necessárias com o que será
analisado no plano da expressão também a construção estésica. Desta forma,
chegaremos aos sentidos construídos neste início do quadro que consideramos tão
importante e, até mesmo, fundamental no estabelecimento do todo de significação
de Retrato Falado.
A EXPRESSÃO “RETRATO FALADO
O quadro Retrato Falado se inicia por uma vinheta de abertura que no
DVD em análise – encontramos quatro, sendo que a última estava no ar nos últimos
episódios exibidos no ano de 2007. A “vinheta de abertura” ou simplesmente “aber-
tura” é uma seqüência inicial de imagens e sons que informa ao telespectador que
entrará no ar um determinado programa. Dessa forma, torna-se uma marca que o
caracteriza como, por exemplo, a abertura das novelas ou dos telejornais como o Jor-
nal Nacional. É comum um programa mudar, ao longo do tempo de sua exibição, sua
vinheta de abertura, mantendo normalmente a música que criou sua identidade. O
próprio Fantástico mudou diversas vezes sua abertura, porém, se ouvirmos a sua músi-
ca sem ver o que se passa na tevê, já sabemos que se trata do referido programa.
15 Cf. A.C. de Oliveira (org.), op.cit., p. 101.
60
Com essa mesma idéia, a vinheta ganha também função de passagem
de um bloco do programa ao intervalo comercial e a sua volta deste, chamada assim
de “vinheta de passagem”. Ou é usada para a passagem de um bloco a outro do
próprio programa. No nosso caso, optamos em usar o nome “vinheta de abertura”
para identificar a introdução do quadro em questão, pois esse, como observamos,
está inserido no Fantástico, assim, a vinheta de Retrato Falado marca o início de sua
exibição no programa.
Resolvemos dedicar este capítulo para a análise das quatro vinhetas
de abertura presentes no DVD, porque entendemos que essas são fundamentais na
construção dos sentidos do quadro. Mas antes faremos algumas considerações a
respeito da expressão “retrato falado”, imprescindível na construção desses senti-
dos. Nas quatro vinhetas, a expressão “retrato falado” é apresentada nomeando o
quadro. Na primeira, a expressão está no início e nas outras, no final. As três primei-
ras vinhetas manifestam de formas diferentes a referida expressão e nos deteremos
neste particular, quando analisarmos cada uma delas mais a frente.
Se nos detivermos primeiro no termo “retrato”, o dicionário eletrônico
Houassis nos indica que é a “imagem de uma pessoa (real ou imaginária) repro-
duzida pela pintura, pelo desenho ou escultura”
16
. “Retrato” também é usado como
sinônimo de fotografia, particularmente, em casos nos quais a imagem obtida é de
uma pessoa. Para Landowski, nas explicações iniciais do que deva ser um retrato em
seu texto Flagrantes delitos e retratos
17
, ele afirma que de acordo com a tradição e
o senso comum, “o princípio de base é o da semelhança: o valor desse tipo de ima-
gens resulta em primeiro lugar de suas qualidades miméticas”
18
. Nesta perspectiva,
reportemo-nos a Arlindo Machado quando ele estuda a fotografia. Para ele, “isso a
que nós chamamos o ‘reconhecimento’ de um objeto ou pessoa numa foto depende
muito mais da topologia geral da imagem do que de qualquer fetiche homológico”
19
e traz como exemplo “o retrato falado, utilizado para identificação policial”
20
.
16 Dicionário Houaiss eletrônico (verbete: retrato).
17 Cf. E. Landowski, Flagrantes delitos e retratos, Galáxia, n. 8, p. 31-70.
18 Ibid., p. 39.
19 A. Machado, A ilusão especular – introdução a fotografia, p.91.
20 Ibid.
61
A expressão “retrato falado”, pertencente ao universo policial, é usa-
da para designar o desenho realizado por um profissional que registra os traços e
formas de um determinado indivíduo que está sendo procurado, a partir do relato
descritivo de testemunha(s)
21
. Ou seja, o “retrato falado” de alguém leva as pessoas,
os policiais, a identificarem quem está sendo procurado. É realizado um “retrato”,
normalmente do busto da pessoa, que registra as particularidades e os detalhes do
rosto do indivíduo, sua dimensão “antropométrica”
22
.
Hoje em dia, a confecção desse “desenho”, em muitos casos, foi subs-
tituída por programas de computador como o Photocomposer
23
ou Retrato Falado
24
que, a partir de um banco de dados próprio, o operador é capaz de montar o rosto
do suspeito
25
. Neste contexto, Machado afirma:
“Escolhendo um a um o tipo característico do suspeito num para-
digma de possibilidades (portanto, num código fisionômico) e depois combinando
os traços escolhidos num sintagma artificialmente produzido, pode-se sintetizar a
fisionomia que se procura”
26
.
Segundo peritos, um aspecto importante sobre essa confecção do
“retrato falado” é saber entrevistar a(s) testemunha(s) para poder obter dela(s) as
informações necessárias para compor de forma adequada o retrato. Confeccionado
o “retrato falado” de algum suspeito, esse é normalmente divulgado através das
várias mídias para atingir um maior número de pessoas no intuito de que o sujeito
procurado seja encontrado.
A partir dessas considerações, a expressão “retrato falado” nos leva
a observar dois aspectos fundamentais manifestados no quadro do Fantástico: o
relato de pessoas e o retrato realizado. Entendemos que esses aspectos fazem parte
21 Cf. Dicionário Houaiss eletrônico (verbete: retrato, locução: falado).
22 Ibid. (verbete: antropometria).
23 Informações do site http://www.citynet.com.br/retratofalado/Software3.htm visitado em 24/04/2008.
24 Informações do site http://www.inova.unicamp.br/inventabrasil/isnard.htm visitado em 24/04/2008.
25 Atualmente, a polícia também possui um banco de dados nacional com fotos de vários infratores da lei, o
Sistema Fotocrim, em que é possível comparar o “retrato falado” realizado com os diversos rostos presentes
neste sistema. O Sistema Fotocrim está sendo desenvolvido pela Polícia Militar desde 1996 e também já está
disponível para uso da Polícia Civil. Informações no site http://www.inova.unicamp.br/inventabrasil/isnard.
htm. Acesso: 24/04/2008.
26 A. Machado, op.cit., p.91.
62
de Retrato Falado através de uma construção de sentidos jocosa e alegre que se
opõe à ênfase negativa que a expressão possui no âmbito policial. Assim, o quadro
se propõe a “retratar” alguém, de forma risível, a partir daquilo que é “falado” – as
histórias jocosas contadas pelos personagens envolvidos.
Segundo o dicionário eletrônico Houaiss, “retratar”, como é obser-
vado nessa questão, é “fazer retrato de (pessoa real ou imaginária), por meio de
pintura, desenho etc.; reproduzir (algo, alguém ou a si mesmo), mediante processo
fotográfico; fotografar (-se)”
27
. Assim, entendemos que, a partir do que é contado,
“falado”, o quadro do Fantástico “retrata” alguém por meio de um fato vivido por
esta pessoa com os recursos da televisão entrevistas, dramatização, animação grá-
fica etc. Assim, Retrato Falado produz um “retrato televisual”.
ANÁLISE DA PRIMEIRA VINHETA:
O SIMULACRO DA “BRASILEIRA”
Iniciemos a análise pela sua primeira vinheta
28
de abertura exibida,
pois entendemos que é, pela vinheta, que apreendemos as primeiras construções
discursivas que levam a constituir a “identidade” de Retrato Falado e a construção
de simulacros. Daremos continuidade fazendo a comparação com as outras vinhetas
presentes no DVD para apreender algum novo elemento ou sentido.
A primeira vinheta apresenta três seções visuais, sendo cada uma
delas acompanhada por uma frase musical, ou seja, perfazendo um total de três
frases musicais. A primeira seção visual se inicia com a expressão “retrato falado”
escrita na cor branca e em letras maiúsculas, cada letra está dentro de um retângulo
na vertical – são 14 divididos em 3 linhas: a primeira com 7 (com o nome “retrato”),
a segunda com 6 (com o nome “falado”) e a terceira com 1 (com a expressão “com
27 Dicionário Houaiss eletrônico (verbete: retratar).
28 Esta primeira vinheta de abertura exibida em Retrato Falado está em 11 dos 15 episódios do DVD lançado
pela Rede Globo em 2005. Os episódios são “Marias Cecílias” (Shenca Loyolla), “Entre o brasão e o pas-
saporte” (Célia Flores), “Dona-de-casa unida jamais será vencida!” (Nadja Belém), “A bela que virou fera
(em futebol)” (Senira Magalhães), “De cabelo em pé” (Maria Isabel Salomão), “Passando a noite em claro”
(Luciana Moreira), “Baixaria nas alturas” (Ruth Rendeiro), “O ABC do ciúme” (Quitéria Firmino), “Anjos da
guarda, ou melhor, da aeromoça” (Márcia Gaiotto), “A verdadeira carga pesada” (Terezinha da Silva) e “O
primeiro biquíni a gente nunca esquece” (Jutta Lange).
63
Denise Fraga”). Esses retângulos se mostram em primeiro plano, centralizados na
tela (com exceção do último) e estão posicionados lado a lado de forma não uni-
forme, estão inclinados para a direita ou esquerda; além de não estarem lineares, não
seguem a linearidade gráfica da linha, uns se encontram mais alto do que outros.
Em cada retângulo das duas primeiras linhas, por trás de cada letra,
encontra-se a forma de um busto de uma pessoa em cores claras e escuras, como se
fossem negativos de fotografias em que os claros e escuros são o contrário do ob-
jeto fotografado. Assim, entendemos que esses retângulos figurativizam negativos
de fotografias que são usadas em documentos de identificação (cédulas de identi-
dade, passaporte, carteira de motorista etc.) como os modelos 3X4 enquadra-se
apenas o busto da pessoa.
Os negativos são de fotos de uso funcional que servem para “identi-
ficar” pessoas, “a precisão da imagem e a exatidão de sua semelhança em relação
ao modelo são nessa perspectiva absolutamente essenciais”
29
. Landowski, em seu
texto Flagrantes delitos e retratos
30
, ao analisar as práticas sociais do retrato, afirma
que uma boa foto de identidade deve permitir associar com o mínimo de erros um
nome próprio a traços fisionômicos para ser possível reconhecer o indivíduo porta-
dor desse nome e verificar sua identidade comparando a imagem fixada pelo docu-
mento fotográfico.
São negativos de fotos quase de uso exclusivo em documentos oficiais
que pertencem a práticas sociais cotidianas de caráter sério, de responsabilidade,
de certa obrigação. Quem possui esses tipos de documentos são considerados ci-
dadãos. No entanto, na vinheta, estes retratos estão posicionados de forma não
uniforme e não linear, rompendo com a seriedade. Assim, temos que a expressão
“retrato falado” não está inserida no seu contexto de “seriedade” do universo poli-
cial, mas possui a sua importância por estar escrita em letras maiúsculas.
O último negativo, em posição horizontal na terceira linha, encontra-
se margeado à direita das linhas precedentes. E, como dissemos, contém a frase
29 E. Landowski, op.cit., p. 39.
30 Ibid.
64
“com Denise Fraga” escrita também em branco que, por sua vez, está em duas li
-
nhas: a primeira tem a preposição “com” em letras minúsculas e a segunda, “Denise
Fraga” em letras maiúsculas. Também está posicionado de forma não uniforme, tem
seu lado direito voltado para cima. Este retângulo cria um paralelismo com a tela
da tevê também retangular na horizontal. É ali na tevê que temos a atriz “Denise
Fraga” no quadro risível, mas importante, que se mostra para nós. Este é o único
momento durante a vinheta em que são usados negativos.
Com isso, o quadro
Retrato Falado
vai “revelar” esses negativos na
tela da tevê – por mostrar uma infinidade de retratos ao longo da abertura –, fazen
-
do-nos ver quem são aquelas pessoas através da sua foto e, com as letras, compor
os seus nomes (como veremos a seguir); do mesmo modo como os documentos
de identificação se fazem pela relação da foto e do nome, além de outros dados.
Porém, tudo de forma “não séria”, “sem obrigação”. O negativo que traz o nome
de Denise Fraga também vai ser revelado e trará a atriz desempenhando a persona
-
gem principal em cada episódio exibido.
FIGURA 2
Início da primeira vinheta
Continuando a vinheta, ainda na primeira seção visual, observamos
Continuando a vinheta, ainda na primeira seção visual,
passar, por trás destes negativos, retângulos maiores em movimento acelerado
contínuo da direita para a esquerda, com linearidade, também na vertical. Ocupam
o espaço da tela da tevê de cima a baixo. Dentro de cada retângulo, ainda a
forma de um busto de uma pessoa, a exemplo dos negativos, mas nestes, as cores
não são claras e escuras como nos negativos. São fotos coloridas como as vemos
normalmente, mas também em preto e branco. Entendemos que estes grandes
retângulos figurativizam fotos do mesmo tipo dos negativos descritos, como o mo
-
65
delo 3x4 usadas em documentos. Assim classificamos essas fotos como “retratos”
pelas observações feitas anteriormente. Com o movimento acelerado, não é possível
ver com clareza as pessoas.
Entendemos que as cores e a falta delas manifestam as histórias que
vão nos relatar que podem ser de qualquer época: histórias atuais manifestada pe-
las cores e antigas, pelo preto e branco. As crianças e os adultos presentes nestes
retratos reiteram este mesmo efeito: histórias antigas e atuais. Com o movimento
contínuo e linear desses retângulos que passam ao fundo até o final da vinheta,
podemos dizer que teremos narrativas coerentes.
Em seguida, observamos que as três linhas com a expressão “retrato
falado” e “com Denise Fraga” se dispersam, saem por baixo e por cima da tela e pe-
las laterais, esquerda e direita. Com isso, a primeira parte visual é finalizada, marcada
por um acorde que indica a mudança da visualidade na vinheta. A música utilizada
não começa do seu início de uma ordem lógica, começa no meio, e, desse modo,
uma homologação da continuidade musical com a da visualidade do contínuo de
retratos. A musicalidade é alegre e sua cadência é de um samba-funk com uma or-
questração feita com instrumentos eletrônicos, criando-se assim timbres e texturas
que trazem para o texto um traço de contemporaneidade.
A segunda seção visual tem, ao centro da tela da tevê, uma seqüên-
cia de mais retângulos na vertical que possuem em sua superfície formas de busto
de pessoas como os descritos anteriormente. São a figurativização de mais retratos
3X4. Como se estivessem caindo uns sobre os outros também em ritmo acelerado
contínuo, estes retratos aparecem grandes, maiores do que a altura da tela (de cima
a baixo), e vão diminuindo à medida que vão sendo movidos para algum lugar na
tela. Vão sendo espalhados como se fossem cartas de um baralho sendo jogadas so-
bre a mesa de forma assimétrica, desuniforme, preenchendo toda a tela, uma certa
desordem controlada.
Esses retratos são transparentes e, com o efeito televisivo de fusão, se
fundem uns nos outros, impossibilitando ver com clareza e nitidez os rostos. O ritmo
acelerado também dificulta vê-los. Mas é possível perceber que são retratos de ho-
66
mens, mulheres, jovens, crianças – pessoas de cores e tipos diferentes. Entendemos
que são retratos de pessoas que não podemos identificá-las pelo que foi apon
-
tado, ritmo acelerado e falta de nitidez. São rostos sem nomes, de uma “multidão”
heterogênea, assimétrica e desuniforme, um conjunto de anônimos.
FIGURA 3
Seqüência inicial da primeira vinheta de abertura
Ainda durante esta seqüência, aparecem na tela o nome dos atores,
diretores e roteiristas em letras brancas e maiúsculas e, com isso, são nomes sem
rostos, reiterando, assim, uma falta de identificação das pessoas. Entretanto, são
nomes de pessoas que, de certa forma, são conhecidos pela sociedade por serem
atores, diretores e roteiristas com certo destaque social pelos trabalhos desenvolvi
-
dos em suas áreas de atuação. Assim, mesmo sem ver os seus rostos, são nomes
que possuem certa identificação. A música que acompanha essa seqüência visual é a
mesma que nos referimos e, mais uma vez, para finalizar esta seção, um acorde
que privilegia a característica de continuidade, reiterada também pela visualidade.
A terceira seção visual mostra que os retratos cessam o movimento
de serem espalhados pela tela e, com o zoom aproximativo, um retrato localizado
à direita superior da tela ganha movimento, ampliando-se até uma dimensão que
ocupa todo o centro da tela, de cima a baixo. Como é um retângulo na vertical, nas
laterais se vêem algumas das fotos – em dimensões bem pequenas – que foram es
-
palhadas. É um rosto que se sobressai à multidão heterogênea, se mostra um retrato
simétrico e uniforme, em oposição a todos os
outros.
67
Esse retrato amplia
do também se diferencia dos demais pela gestua
-
lidade apresentada. Em quase todos os episódios que começam com esta vinheta,
a pessoa com o retrato ampliado está sorrindo ou levemente posicionada de lado
(para a sua direita ou esquerda) ou há um elemento a mais na composição do retra
-
to como, por exemplo, na vinheta em que é apresentada Célia Flores: há flores em
volta de seu rosto. É uma diferença evidente e que chama atenção, pois os outros
retratos mostram o padrão usado neste tipo de foto para uso em documentos: rosto
sério, posição ereta, olhar fixo para frente.
Quando esse retrato diferenciado pára de crescer, o movimento
de dois nomes (nome e sobrenome) que saem em diagonal da direita superior à
esquerda inferior do retrato ampliado. São nomes próprios em cor branca que pos
-
suem apenas a primeira letra em maiúsculas.
FIGURA 4
Algumas das protagonistas desta primeira vinheta
Acompanhando toda esta visualidade da terceira seção, a continui
-
dade, já mencionada, que se estende até a última nota que quebra o contínuo para
evidenciar o retrato ampliado. São os metais anunciando a identidade a ser conhe
-
cida. É justamente ao final da vinheta que os metais marcam uma descontinuidade
sonora e assim anunciam a mulher que nos contará a história do dia. O som dos
metais é o anúncio da protagonista, da identidade a ser revelada, daquela pessoa
que faz parte da multidão de anônimos, uma mulher comum.
Outro componente desta música é um rumor de vozes que nos reme
-
te ao som de várias pessoas falando ao mesmo tempo como numa feira livre,
reiterando o seu aspecto de muita gente, de multidão, de povo. É possível perceber
que são pessoas que falam em português. O samba-funk e o rumor de vozes nos
remetem a contemporaneidade, descontração, desenvoltura.
68
Entendemos que a visualidade nos mostra uma multidão de pessoas
anônimas que são impossíveis de serem identificadas pela quantidade de retratos
apresentada em movimento e com falta de nitidez. A musicalidade brasileira mani-
festa um rumor de vozes que reitera esse “anonimato” que é visto, pois não é
possível entender o que é dito ou saber quem diz algo. uma reiteração do que
se e do que se ouve: os retratos não são identificados, nem as vozes, e o que é
dito não é possível compreender para ser identificado. Entendemos que são pessoas
anônimas, desconhecidas, que não revelam o nome. No entanto, essa musicalidade
nos remete a pessoas descontraídas.
Um pouco antes de cessarem os retângulos de serem espalhados pela
tela, antes de ampliar o retrato diferenciado, entre a segunda e a terceira seção
visual da vinheta; a música vai a BG
31
e ouvimos um off de Denise Fraga que apre-
senta a mulher protagonista da história que vamos ver. Nesse momento, o retrato
desta mulher é ampliando, como vimos. Ela é identificada pelo aumento de seu
retrato, pelo seu nome escrito nele, além da apresentação em off feita por Denise.
É essa mulher que terá um fato jocoso de sua vida narrado no Fantástico para todo
o país.
Em todos os episódios em que são exibidos essa vinheta, o início do
texto que a atriz fala é o mesmo: “Essa semana o Retrato Falado vai contar a história
de...”; com freqüente conclusão referindo-se ao nome da cidade onda a mulher
mora. O texto é coloquial e falado também dessa forma, numa entonação humorís-
tica criada pela modulação vocal de graves e agudos. Em alguns episódios, o texto
traz algum trocadilho de nomes ou adjetivos mais específicos sobre a história a ser
narrada manifestando a desenvoltura da pessoa e do quadro.
A partir dessas considerações feitas sobre a expressão “retrato falado”
e a descrição da vinheta, entendemos que Retrato Falado é um enunciado que apre-
senta um discurso com valores ligados a “ser reconhecido”, “fazer-se conhecer” por
muitos. Podemos dizer que os valores fundamentais de Retrato Falado são “renome”
31 BG ou Background é uma expressão que vem do inglês e, no meio televisivo, no que se refere a som,
quer especificar o “fundo musical ou ruído-ambiente sobreposto por um narração ou outro som qualquer”
(E.Stasheff et al, O programa de televisão, p. 260).
69
vs. “anonimato” tendo como subcontrários “identificação” vs. “desidentificação”,
demonstrados no quadrado semiótico a seguir. Temos “renome” e “identificação”
como eufóricos e os outros, disfóricos.
Como descritos, observamos que os movimentos na tela, durante
o desenrolar da vinheta, reiteram alguns sentidos construídos. o movimento de
zoom out
32
, usado nas fotos que são espalhadas pela tela: as fotos começam num
tamanho grande e vão diminuindo, cobrindo a tela de pequenos retratos, uma rei-
teração do anonimato disfórico.
Se nos detivermos no nível narrativo do enunciado em estudo, obser-
vamos o percurso do sujeito em busca do valor eufórico fundamental, o “renome”.
Primeiramente este sujeito apresenta-se disjunto do valor “renome”. Ele está con-
junto com “anonimato”: as pessoas dos retratos não são identificadas com o nome,
pertencem a uma multidão sem nome, nem é possível saber de quem é o “retrato
falado” pelo movimento acelerado e falta de nitidez. Observamos ainda que a
manifestação do valor “identificação” pelos nomes dos roteiristas e atores, um “não
anonimato”.
Entretanto, o sujeito entra em conjunção com os valores eufóricos.
Essa conjunção é manifestada por um movimento de câmera em diagonal da direi-
ta para a esquerda (sai da parte superior direita da tela para o centro) e de zoom
aproximativo, enquadrando-se, assim, por exemplo, o retrato da senhora Shenca
Loyolla, sorrindo, dentre tantos espalhados na tela. O nome “Shenca Loyolla”, em
letras brancas, faz o mesmo movimento em diagonal do lado superior direito da
tela e vai até a parte inferior do retrato. Entendemos que esse é um retrato diferen-
ciado dos outros, porque a pessoa em evidência vai ter o seu “retrato televisual”
realizado. Por isso o sorriso que manifesta a “alegria” por entrar em conjunção com
o “renome”.
Ainda com o exemplo de “Shenca”, em seu percurso, esse sujeito
passa do “anonimato” à “identificação”, alcançando, por fim, o “renome”. Enten-
32 O zoom out é o afastamento pela lente zoom da câmera de TV (E. Stasheff et al, op.cit., p. 268)
70
demos que o programa de base do sujeito-Shenca é a busca pelo objeto Retrato
Falado para alcançar o valor descritivo “renome”. Para adquiri-lo, deve cumprir pro-
gramas de uso como escrever para a emissora, contar um fato jocoso de sua história
e tê-lo encenado na tevê. Em conjunção com o seu “retrato falado”, exibido na
maior rede de televisão do país, o sujeito-Shenca tem “renome” – realizou um feito
em que ganha celebridade, fama.
Estes movimentos de câmera ao final da vinheta leve movimento
em diagonal da direita para a esquerda e zoom in
33
enfocam a pessoa a qual vai
contar a história naquele dia. A cada história, a vinheta manifesta um novo sujeito,
mas este vive o mesmo percurso dos anteriores. A mulher que contará a história no
dia passa de uma disjunção ao valor almejado, a uma conjunção com ele: adquire
“renome”, alcança o almejado, tornando-se reconhecida por outras pessoas.
A competência para este fazer é doada pelo destinador-manipulador
que entendemos como o destinador Rede Globo. Observamos que o sujeito, o desti-
natário, é instalado por receber o valor modal virtualizante, o querer fazer (aparecer
na tevê e ser reconhecido), que o torna existente enquanto sujeito, e, em seguida, é
atualizado pelos outros valores modais doados: saber fazer (escrever e enviar carta ou
e-mail para a emissora para alcançar o renome) e poder fazer (“oportunidade” para
ser reconhecido, ter renome). Isso se através de uma manipulação pressuposta
que não é manifestada no texto
34
: o sujeito é persuadido a enviar sua história à
emissora para receber o valor “renome” que, por sua vez, acontece por meio de um
percurso que passa pela “identificação” (não anonimato).
Essa vinheta de abertura nos faz ver a passagem da disjunção à con-
junção do sujeito com os valores almejados, manifestando-o como realizado (con-
junto com o “renome”) pelo seu retrato, seu nome e a apresentação em off feita por
Denise Fraga. Essa conjunção do sujeito com o objeto-valor Retrato Falado lhe
existência modal de poder ser, saber ser e não dever não ser: é possível, verdadeiro e
33 O zoom in é a aproximação pela lente zoom da câmera de TV (E.Stasheff et al, op.cit., p. 268)
34 Em vários episódios de Retrato Falado exibidos no Fantástico, ao final, era apresentado o endereço para o
telespectador enviar a sua história, acompanhado pelo off de Denise Fraga fazendo o “convite”. Assim, a
manipulação se mostra explícita, mas não altera o percurso do sujeito.
71
realizável o “renome”. Além disso, estar conjunto com o objeto-valor Retrato Falado
é receber a sanção positiva pelo destinador-julgador, que entendemos ser o próprio
destinador-manipulador, a Rede Globo, a partir dos contratos de fidúcia e veridicção
estabelecidos anteriormente.
A CONSTRUÇÃO DO SIMULACRO DA “BRASILEIRA”
Recobrindo os procedimentos apontados na construção da vinheta de
abertura, produzidos para manipular, persuadir, convencer o enunciatário, encon-
tramos percursos temáticos que recebem investimentos figurativos para assegurar
a coerência semântica do discurso apresentado, criando o efeito de sentido de rea-
lidade. Entendemos que são procedimentos manipulatórios criados para convocar
a adesão do enunciatário ao que é dito, atrair a confiança dele e garantir o “dizer-
verdadeiro” do discurso.
É nesta dimensão figurativa que observamos o simulacro construído
na primeira vinheta de abertura exibida no discurso de Retrato Falado. Segundo
Landowski
35
, os simulacros são figuras de componente modal e temático pelas
quais o enunciador e o enunciatário se deixam apreender mutuamente pelo dis-
curso enunciado. Essas figuras do conteúdo são investidas de competências pelos
actantes da comunicação que se atribuem reciprocamente e, por isso, a construção
de simulacros se dá na dimensão cognitiva e, de antemão, em todo o programa de
manipulação intersubjetiva
36
.
Observando os temas e as figuras apresentadas na vinheta, consi-
derando também a apresentação da atriz, podemos dizer que os negativos e retra-
tos que se espalham pela tela da tevê são figurativizações de temas explorados no
discurso: identificação e fazer retrato, retratar. As fotos em modelo 3X4 figurati-
vizam um modo de como é possível fazer a identificação de alguém, pois são retra-
tos usados geralmente em documento de identificação como já apontado.
35 No dicionário Semiótica Diccionario Razonado de La Teoria del Lenguaje, o verbete “simulacro” foi escrito
por E. Landowski.
36 Cf. A. J. Gremias e J. Courtés, op.cit., p. 232 (verbete simulacro).
72
Por outro lado, o grande número de retratos que se fundem e se es-
palham em toda a tela é a figurativizão do anonimato. o fotos que o feitas
para identificão, mas, com a grande quantidade mostrada, umas sobre as ou-
tras, é quase impossível saber quem é quem. Percebemos que o pessoas anôni-
mas, mas posveis de serem identificadas. E ali na televisão é possível identificá-las
através do quadro que se mostra: Retrato Falado. Além disso, essa identificação
leva ao renome por ser exibido num programa de televio em rede nacional, na
maior emissora do país.
Pela sonoridade do texto sincrético, entendemos que as vozes que
falam e que não são entendidas, como observado anteriormente, figurativizam
essa multidão que passa rapidamente pelos nossos olhos. É possível dizer que essas
vozes falam em português pelo ritmo empregado e pela sonoridade do que é dito.
É uma multidão que tem voz e fala, mesmo que não se compreenda o que é dito.
Além dessas “vozes anônimas”, a música da vinheta traz uma sonoridade brasileira
pelo samba-funk que é um ritmo alegre e contemporâneo, além de não apontar
para uma posição geográfica específica como o ritmo do maracatu que é pernam-
bucano. Entendemos que essas inúmeras pessoas mostradas na tela são brasileiras
sendo uma qualificação reiterada pela musicalidade.
Pela diversidade de tipos físicos apresentados, essas fotos nos reme-
tem à idéia de que o povo brasileiro foi constituído por diferentes povos, uma mis-
tura que se deu ao longo da história do país – que o quadro também faz referência.
São retratos de pessoas com características das mais diversas. Além da visualidade,
entendemos que a figurativização do brasileiro, do homem ou da mulher do Brasil,
acontece, na abertura do quadro, pela referência verbal da cidade, da região, a qual
pertence à mulher que contará sua história naquele dia.
E, dentre essa multidão do povo brasileiro, um retrato ganha evidência
que é identificado com o aumento desta imagem, com o nome da pessoa e entrada
dos acordes de metais na música da vinheta. É uma mulher que, sob a voz em off de
Denise Fraga e o que apontamos, figurativiza o tema “renome”. A cada progra-
ma, uma mulher de um lugar diferente do Brasil é “eleita” dentre uma multidão de
73
anônimos, é esta “brasileira” que falará naquele dia. Ela apresenta-se em conjunção
com o “renome”, pois terá sua imagem e sua história “retratada” na televisão, em
primeiro plano, falando com sua própria voz, num dos programas mais tradicionais
da televisão brasileira, o Fantástico, exibido pela maior rede de televisão do país, a
Rede Globo. Além disso, o que contar será encenado por uma atriz conhecida e com
“renome”, Denise Fraga.
Com o que apontamos, entendemos que a abertura de Retrato Falado
constrói o simulacro da “brasileira”. Ela é apresentada como aquela que faz parte de
uma multidão de anônimos, mas tem voz e quer, sabe e pode falar ali na televisão
– na maior emissora do país. É uma “mulher comum” que pertence a uma cidade,
uma região do Brasil, possui traços físicos próprios do povo brasileiro que surgiu
pela mistura de raças, possui seu próprio modo de falar, seu sotaque. Essa brasileira,
construída na tevê, tem o que falar e sabe contar a sua própria história. E, acima de
tudo, é bem humorada, sabe rir de si mesma, de sua vida.
A “brasileira” que ganha evidência na abertura, conta a sua história
que envolve outras pessoas: marido, mãe, avó, irmão, tia, amigo, filho. É uma
“brasileira” que se relaciona com outras pessoas no seu dia-a-dia e que também
estão ali na tela da tevê num dos retratos que passam pelos nossos olhos. O homem,
o “brasileiro”, presente em Retrato Falado, só se constrói na relação com a mulher.
É a mulher, a “brasileira”, que tem a competência de ter voz e querer, saber e poder
fazer para ter “renome”, estar ali na televisão para o Brasil inteiro ver.
Este simulacro da “brasileira” construída em Retrato Falado, com to-
das essas características e competência, está ali para levar o público a identificar-se
com ela, deixar-se assim ser manipulado para assistir ao quadro que se inicia e aderir
ao que é apresentado, a visão de mundo de saber rir de si mesmo nos fatos simples
do cotidiano.
74
A SEGUNDA VINHETA
RECORRÊNCIA DE ELEMENTOS, MAS UMA PERDA
DE VISIBILIDADE DA MULHER BRASILEIRA
A segunda vinheta
37
presente no DVD também é composta por três
seções visuais, sendo cada uma acompanhada por uma frase musical compondo
3 frases. Há ainda uma recorrência de elementos encontrados na primeira como os
retratos do tipo 3x4 utilizados em documentos de identificação e a sonoridade que
acompanha a vinheta. Com os retratos é possível reconhecer alguém, mas a identi-
ficação se pelo conjunto do documento oficial: a foto com o nome, além de
outras informações que constam nele. Nesta vinheta, a manifestação figurativizada
por esses retratos é feita de forma diferente, adquirindo uma mudança de sentido
em relação a primeira.
Ainda comparando a primeira com a segunda vinheta, compreende-
mos que o nível narrativo é o mesmo, o sujeito em busca do valor “renome”, tendo
a passagem da disjunção à conjunção manifestada na vinheta. Conjunto com o
anonimato figurativizado pelos inúmeros retratos na tela, em movimento e com o
tamanho muito pequeno, o sujeito passa a identificação quando tem a apresenta-
ção em off da atriz durante a manifestação na tela do nome do quadro. E entra em
conjunção com o renome quando aparece na tela, sozinha, em primeiro plano,
falando com a sua própria voz.
Nesta primeira seção visual dessa segunda vinheta, ao centro da tela
da tevê, vemos um grande retângulo na vertical, dividido em partes e nelas são
manifestadas formas de diferentes rostos que mudam sucessivamente até formar
um único rosto. Explicando melhor, o retângulo é dividido em quatro partes: os dois
quadrantes na posição superior do retângulo o esquerdo e o direito, onde ficam
os olhos, a testa e os cabelos; um retângulo que corresponde à parte da boca e das
bochechas e a parte inferior que corresponde ao pescoço da pessoa na foto.
Entendemos que esse retângulo é a figurativização da base onde são
feitas as montagens de diferentes retratos ao longo da vinheta; figurativiza o pro-
37 Esta segunda vinheta inicia os episódios “A verdade nua e crua” (Gislene Villas Boas) e “Debaixo dos caracóis
dos seus cabelos” (Zulmerina Rosa de Jesus).
75
cessar de um computador com um programa específico para montar “retratos”.
Com a conclusão da vinheta, em que traz o nome do quadro, entende-se que este
processo é para fazer “retratos falados”. Além disso, a sonoridade nos remete ao
próprio quadro reconhecido aqui pelo seu áudio. E o que se mostra é para “retratar”
alguém, no caso, compor um “retrato televisual”.
Este proceder constitui a primeira seção visual e é feito com um mo-
vimento extremamente acelerado, trocando-se as partes citadas até formar novos
rostos. Esse processamento se faz por meio da procura em seu repertório de partes
de rostos de pessoas diversas, montando os retratos no retângulo central que, de-
pois de prontos, vão ocupando os espaços vazios da tela, enfileirando-se. Os retratos
estão em posição uniforme por estarem todos na posição vertical como são nor-
malmente usados, ou seja, são pessoas passíveis de serem identificadas, mas, neste
caso, não é possível como veremos.
Esta movimentação agrupa retratos de muitas pessoas que ocupam
toda a tela. Cada um desses retratos é levado a instalar-se em um espaço vazio,
compondo o painel de retratos que se mostra, em sua montagem, organizado por
fileiras horizontais (e verticais). Temos aí o início da segunda seção visual que é mar-
cado por um acorde musical que cria o mesmo efeito de sentido de continuidade
que encontramos na primeira vinheta – temos a mesma música em as vinhetas.
Nesta segunda seção visual, o painel montado não é uma multidão
de pessoas aglomeradas sem ordem e desuniforme, mas um conjunto grande de
pessoas, ordenado e organizado. São pessoas que não tomam o lugar de ninguém,
preenchem os locais vazios, onde vaga; são pacíficas, pois cumprem a ordem e
a organização do grupo. Esta formação do painel se diferencia da primeira vinheta
que mostra os retratos ocupando toda a tela de modo assimétrico e desuniforme;
uma verdadeira multidão como se cada um se posicionasse e se dispusesse a seu
modo, sem seguir muitas regras. Não é mais uma desordem controlada, é uma
ordem completamente controlada.
Este retângulo, no qual realiza a montagem dos retratos, começa
grande, ocupando a tela de cima a baixo, e vai diminuindo até sumir diminuto
76
FIGURA 5
Seqüência inicial da segunda vinheta de abertura
ao centro. Temos um movimento de
zoom out
do retângulo central, abrindo por
out
completo a imagem de toda a tela que nos proporciona ver os pequenos retratos
enfileirados, formando o grande painel de fotos. Esse movimento de câmera é o
mesmo usado na primeira vinheta ao espalhar inúmeros retratos de diversas pessoas
por toda a tela – como comparamos a um baralho sendo jogado na mesa.
Nesta segunda vinheta, é este o movimento que nos faz ver todos
os retratos passíveis de identificação, mas não é possível identificar as pessoas pela
aceleração da montagem, pela quantidade enorme de retratos e por seu tamanho
muito pequeno, quando finalizados. Esse processo de “montagem de retratos em
série” tem a mesma função dos negativos na primeira vinheta, “revelar”, “fazer
retratos” de diversas pessoas ao longo da exibição da vinheta.
Quando a tela está completa pelos retratos enfileirados início da
segunda seção visual um movimento oposto, o de
zoom in
que nos leva de
volta ao centro da tela. Ao longo desse movimento de aproximação, os retratos,
começando pelo centro, vão saindo por todos os lados de forma linear, em seqüên
-
77
cia como seguissem uma fila. Aparentemente parece uma completa dispersão, no
entanto saem de forma ordenada e organizada a partir do centro como se fosse
uma grande coreografia ensaiada para nos parecer indicar uma dispersão.
Os retratos saem por completo e nos deixam ver mais retratos, porém
estes se encontram na posição horizontal e tomam todo o campo da tela da tevê por
poucos segundos. São retratos que se sobrepõem em fusão, um retrato na vertical
com a cabeça indicando a esquerda e o outro, o contrário. Eles estão presentes ao
fundo em todo desenrolar da vinheta e mudam constantemente, são quase trans-
parentes, mas é possível observar melhor neste momento. Nesse fundo predomina
a cor vermelha em um tom mais suave, durante o desenrolar da vinheta.
Até este momento da vinheta, temos, desde a primeira imagem, os
nomes dos atores, roteiristas e diretor. Entendemos, a exemplo da primeira vinheta,
que são nomes sem rostos, mas são conhecidos pelo trabalho desenvolvido em suas
áreas de atuação, não fazendo parte do anonimato e sim da identificação.
A sonoridade, como dissemos no início deste tópico, que acompanha
todo o desenvolvimento da visualidade dessa segunda vinheta é a mesma usada na
primeira, criando parte da identidade do quadro do Fantástico e o efeito de sentido
de continuidade. O rumor de vozes que faz parte desta música reitera o conjunto de
pessoas que vemos na tela do mesmo modo como ocorre na primeira vinheta. O
samba-funk e o rumor de vozes nos remetem para a descontração, a desenvoltura
e a contemporaneidade.
A terceira seção visual da vinheta é marcada pelo mesmo acorde musi-
cal que cria o efeito de sentido de continuidade. Os pequenos retratos montados,
enfileirados e que saíram de cena, retornam um junto do outro, em fila, formando
as letras da expressão “retrato falado”, tendo sempre ao fundo os retratos na hori-
zontal em fusão. Cada letra é formada por uma seqüência de retratos em linha
como se seguissem uma ordem – encontrada na disposição deles na tela; porém os
retratos não estão uniformes, não estão em sua posição convencional. Essa desuni-
formidade traz um caráter de desordem controlada.
78
Com a expr
essão montada e centralizada na tela tendo a palavra
“retrato” numa linha e “falado” na de baixo –, surge, chegando pela parte infe
-
rior, separadamente, a expressão “com Denise Fraga” em letras brancas minúsculas
(apenas as iniciais do nome da atriz estão em maiúsculas), mesma cor utilizada na
primeira vinheta. Esta seqüência é marcada, novamente, por um movimento de
zoom out
e pelo
out
off
de Denise Fraga. Neste momento, com a música em
off
BG
, temos
o título do quadro e o “retrato” a ser feito será da mulher apresentada em
off
, com
off
off
a voz de Denise num tom engraçado, e que entra em seguida. É a manifestação do
tema identificação.
Nesse momento final da vinheta, na parte musical, entram os metais
e manifestam a quebra da continuidade visual e sonora como observamos. No
entanto, nesta vinheta, o acorde de metais vem ressaltar o nome do quadro e da
atriz, ou seja, os metais anunciam Denise Fraga que, por sua vez, vai interpretar a
senhora que entrará no quadro em seguida. O espaço ao final da vinheta delegado
à protagonista anônima que receberia identificação – a exemplo da primeira vinheta
– passa a dar visibilidade à atriz como intérprete da mulher a ser apresentada.
A protagonista tem a sua primeira aparição assim que se conclui a
vinhe
ta. Ela aparece em primeiro plano, sem nenhum movimento de câmera, e re
-
cebe sua identificação com o próprio nome escrito na tela, no lado inferior es
-
querdo. Não sonoridade musical que chame a atenção do telespectador para a
mulher anônima que faz parte da multidão vista anteriormente. Não se anuncia a
sua aparição. Dar-se a conquista do “renome”, não por um movimento de câmera,
como na primeira vinheta, nem por uma específica sonoridade musical, mas por
um não movimento, um
take
parad
o e a voz da protagonista. Consideramos que
FIGURA 6
Finalização da segunda vinheta de abertura
79
a aquisição do renome é manifestada porque será interpretada por Denise, além
disso, por estar sozinha em quadro, em primeiro plano, falando com a própria voz
para dizer a que veio. Temos o mesmo sentido construído na primeira vinheta que
Retrato Falado vai “retratar, fazer retrato de” uma mulher brasileira.
Como dissemos, a manifestação dessa vinheta tem acréscimo semân-
tico no simulacro da “brasileira” comparando com a construção feita na primeira
vinheta. As pessoas são anônimas, passíveis de identificação pelos retratos usados
em documentos oficiais com esse propósito, mas pela movimentação na tela e ta-
manho diminuto, não é possível identificá-las. Esta multidão anônima, entendida
como o povo brasileiro na primeira vinheta, recebe outras qualificações. Ao invés
de uma multidão de pessoas aglomeradas, é um conjunto de pessoas pacíficas por
seguirem a ordem e a organização que se de uma maneira uniforme. São ci-
dadãos que ocupam apenas o seu espaço, o que lhes pertence. Em Retrato Falado,
são essas pessoas cumpridoras do próprio dever que entram em conjunção com o
renome, mais especificamente, a mulher cidadã que se mostra, identificada pela
sua imagem e seu nome e ainda tem direito a voz. No entanto, Denise Fraga ganha
mais espaço na visibilidade do que a mulher brasileira anônima vinha recebendo na
primeira vinheta.
A TERCEIRA E A QUARTA VINHETAS:
DENISE FRAGA COMO CO-ENUNCIADOR.
MESMO PERCURSO DO SUJEITO COM
NOVO PLANO DA EXPRESSÃO
A terceira e quarta (e última) vinhetas
38
com as quais nos deparamos
no DVD estão presentes nos dois últimos episódios. O que diferencia uma da outra
é a música utilizada: no penúltimo episódio, a sonoridade é a música do Fantástico
e no último, a própria música-identidade do quadro, que foi utilizada nas duas vi-
nhetas já analisadas.
38 A terceira vinheta está presente no episódio “Dente por dente, ou jaqueta por jaqueta” (Mariza da Silva)
com a música do Fantástico e a quarta vinheta (mesma visualidade da terceira) está em “Denise Alice ou
Renata Fraga?” (Renata Alice), com a música do quadro.
80
O penúltimo episódio do DVD foi realizado especialmente em come-
moração aos 30 anos do programa Fantástico que ocorreu em 2003, mas esta vin-
heta esteve no ar até os últimos episódios de 2007, porém, com a música caracterís-
tica do quadro. O referido episódio comemorativo começa com a apresentação de
Denise Fraga explicando que, para homenagear o programa, o Retrato Falado solici-
tou aos telespectadores que escrevessem contando um “domingo inesquecível” que
viveram. E, conclui com ela dizendo que a equipe de produção selecionou a história
que será contada naquele dia, “o domingo de Mariza da Silva”.
nessa apresentação, temos a instalação de um narrador figurati-
vizado por Denise Fraga. Ao falar olhando para o telespectador (a câmera), traz para
o discurso o público que assiste ao programa. Esse narrador mostra-se divertido por
seu tom de voz bem-humorado que transparece pela modulação vocal entre os tons
graves e os agudos; além de uma gesticulação mais solta e expressão facial sorri-
dente. Ele introduz a protagonista da história, a mulher que contará um fato jocoso
de sua vida.
Em seguida, entra a vinheta. O início é com um plano geral de uma
pessoa (aparece de corpo inteiro), uma mulher, de pé, com uma câmera fotográfica
nas mãos para tirar foto do “telespectador” – olha para a câmera de tevê. Está ves-
tida com uma camisa vermelha, calças pretas e sapatos também vermelhos, sendo
que a camisa está aberta na altura da barriga, que se faz ver rapidamente.
A imagem dessa mulher não está em suas cores originais na versão
que comumente vemos na televisão, parece com um “desenho animado”, porém
manifesta uma mulher jovem, branca e de cabelos castanhos curtos, que considera-
mos como a figurativização da própria Denise Fraga. Entendemos que nesta vinheta
o uso de um efeito de edição, que se utiliza, de contraste de cores com a pre-
dominância de tons vermelhos e, com ele, se perde a definição dos detalhes como a
pele, os olhos, o nariz etc. E essa composição cria o efeito de sentido de “diversão”,
como explicaremos mais a frente.
No desenrolar da vinheta, este sujeito fotógrafa, “desenho” de De-
nise, aparece em plano médio (busto), ainda olhando para a câmera de tevê, ges-
81
ticulando com a mão direit
a, como se indicasse para quem está sendo fotografado
(o telespectador) a posição correta a ficar. Aponta com o dedo indicador direito a
câmera fotográfica como se mostrasse que é para olhar para lá, pois vai tirar uma
foto. Sorrindo, segura a câmera com a mão esquerda. Completa a seqüência de
gestos com o polegar direito fazendo o sinal de positivo, confirmado com a cabeça,
como se a posição da “pessoa” estivesse justa para sair bem na foto. Em seguida,
olha pela câmera e, com o acionamento da luz do flash, entendemos que tira a foto
da pessoa, o “telespectador” que assiste a tudo isso.
Ao acender a luz do flash, a seqüência de imagens seguintes é a que
forma a expressão “retrato falado” na tela a qual passa a ter um fundo verde em
que as letras entram rolando pelo lado direito e formam duas linhas cada pala
-
vra numa linha. Esse movimento das letras manifesta um certo ar de diversão do
quadro. Cada letra, em cor branca, está dentro de um retrato 3x4. Usa-se o mesmo
efeito de edição, que não é possível ver com nitidez os rostos nas fotos, além de
outras cores como o verde ao fundo e em outros tons em alguns retratos, bem como
tons de azul. Em seguida,
entra a primeira fala da protagonista.
FIGURA 7
Terceira vinheta de abertura
82
Entendemos que toda esta performance do ator Denise fotógrafa
manifesta a “seleção” de qual sujeito-telespectador vai entrar em conjunção com o
valor de aparecer na televisão, adquirir “renome”. Ele dá todas as dicas para a pes-
soa ficar bem para ser “retratada” ali na tevê. Temos que, fotografar, a “revelação”
ocorre pelo nome do programa com o acompanhamento “com Denise Fraga”. A
sonoridade pontua esta finalização da vinheta. Não temos mais o anúncio pelo som
dos metais da mulher anônima que sai da multidão como na primeira vinheta. O
“renome” se adquire pela aparição da mulher já apresentada pelo narrador-Denise.
Ela é a primeira a entrar em cena no episódio ela está em primeiro plano, bem
como a sua identificação com o seu nome escrito na tela e falando a sua história
com a sua própria voz. Com as considerações que já fizemos a respeito do significa-
do da expressão ”retrato falado”, ao surgir o nome do quadro, temos o “retratar”,
“fazer retrato de” que, na seqüência, se dá pela construção do “retrato televisual”
de Mariza da Silva.
As diferenças evidentes entre essa vinheta e as outras duas já analisa-
das é a apresentação de Denise, logo no início do quadro, e a presença do sujeito que
tira fotos, figurativizado pelo ator “desenho de Denise fotógrafa”, que entendemos
como a figurativização do destinador-manipulador (Rede Globo, como dissemos)
e esse se mostra fazendo a sua escolha de qual destinatário-sujeito vai contar a sua
história para o país inteiro ver. Além disso, a sonoridade é a música-tema do Fantás-
tico. Ao tirar a foto, o destinador-manipulador manifesta sua competência para esco-
lher o destinatário-sujeito a quem vai doar os valores modais para adquirir “renome”
que é a protagonista, a primeira a entrar em cena após a conclusão da vinheta.
O sujeito fotógrafa ainda é a manifestação do próprio enunciador, que
é a equipe de produção do quadro, mencionada pela própria apresentadora, o nar-
rador Denise. É um delegado do enunciador, figurativizado pelo “desenho de Denise
fotógrafa” que tira fotos do “telespectador”, de quem está assistindo, instalando,
assim, o enunciatário no texto pela direção do seu olhar para a câmera de tevê, olha
para o próprio telespectador. Este procedimento leva o telespectador a “querer se
ver”, “ver sua foto” em Retrato Falado, mais uma forma de conquistar, de manipu-
lar o enunciatário a assistir ao quadro, a identificar-se com o que é visto.
83
No primeiro segundo da vinheta, por trás desse ator que fotografa,
monta-se um painel de fotos do tipo 3x4 de diversas mulheres com cabelos lon-
gos, curtos, jovem, idosa, negra, branca etc., que fica em cena durante todo o
desenrolar da vinheta. As fotos estão organizadas como se fossem um tabuleiro de
xadrez, onde cada casa é um retrato, porém, há uma casa “vazia” que é preenchida
com o movimento de algum outro retrato que passa a compor este espaço, dei-
xando para trás, mais uma vez, uma casa vazia que é preenchida novamente, e
assim sucessivamente. Deste modo, cria-se esta movimentação constante durante
todo o tempo da vinheta.
Cada foto do painel é modificada pela fusão com uma outra que passa
a aparecer em seu lugar, criando, assim, mais movimentação. Porém, esses retratos
também não estão em suas cores originais, pertencem a uma escala de cores deriva-
das do vermelho: os tons de marrom, mistura do vermelho com preto; o alaranjado,
vermelho com o amarelo; o rosa, vermelho com o branco e ainda outros tons. Essas
cores combinam com a mulher vestida de vermelho e preto.
Entendemos que esse painel é a manifestação da revelação das fotos
tiradas pelo sujeito fotógrafa em um tempo anterior e que também será formado
pelas outras fotos que ele tira no futuro. O que chama mais atenção é que o painel
é composto exclusivamente por retratos de mulheres. Com isso, o quadro se mostra
explicitamente voltado a “falar” de assuntos relacionados com o universo feminino, a
“contar” histórias de mulheres. Além disso, como mencionado antes, as cores usadas
nestes retratos também reiteram o mundo feminino, por usar tons que nos remetem
ao “rosa”, cor esta que é considerada em nossa sociedade uma “cor feminina”.
Se nos detivermos no nível fundamental, consideramos que nesta
vinheta ocorre o mesmo que nas anteriores: “renome” vs. “anonimato”. E a
manifestação do mesmo percurso do sujeito que passa da conjunção com o “anoni-
mato”, manifestado pelas fotos pouco definidas em um painel em movimento cons-
tante e pelo telespectador que faz parte do enorme público do programa, eviden-
ciado pelo sujeito fotógrafa. A conjunção com o “renome” é alcançada pelo sujeito
que recebe a doação dos valores modais, tendo a sua imagem, o seu nome e a sua
84
voz na seqüência de cenas que entra imediatamente depois da expressão “retrato
falado” ser escrita na tela.
No entanto, a mulher comum, anônima apresentada na primeira vi-
nheta do quadro não é mais o motivo central das atenções. Ela está em segundo
plano no painel de retratos, tendo a figura do “desenho de Denise fotógrafa” como
central, que ganha toda a atenção durante o desenrolar da vinheta.
Esta composição plástica da vinheta em análise está centrada no uso
do referido efeito de edição que não apresenta os retratos em suas cores originais,
além de não ter muita definição nas imagens exibidas. O traço utilizado no “de-
senho” da fotógrafa nos leva a comparar a vinheta a um desenho animado que, por
sua vez, normalmente é feito para divertimento. Outro elemento a ser considerado
é o ritmo das imagens, estão em um movimento acelerado, em fast forward, como
se estivessem a adiantar, com certa velocidade, cenas de um filme que assistimos.
Com tudo isso, apontamos que nessa vinheta cria-se um efeito de sen-
tido que demos o nome de “diversão”. Segundo o Dicionário Houaiss, “diversão”
significa “ato ou efeito de divertir(-se)” e divertir(-se), por sua vez, “entreter(-se)
com brincadeiras, distrair(-se); rir ou fazer rir, alegrar(-se)”
39
. Assim, entendemos
que a vinheta nos direciona ao que vamos assistir, algo que vai nos “divertir”,
“alegrar”, “distrair”. É a construção do “discurso que leva ao riso”, na sua vin-
heta de abertura.
A música do Fantástico nesse penúltimo episódio reitera o que a apre-
sentadora disse: a comemoração dos 30 anos do programa. No último episódio
do DVD que tem a mesma visualidade dessa vinheta, retoma-se a música tema do
quadro, garantindo a sua identidade. No entanto, não mais o rumor de vozes
que figurativizavam o falar do brasileiro. Há a música que se apresenta com as três
frases musicais, a mesma orquestração de instrumentos eletrônicos e o traço de
contemporaneidade. Também expressa a continuidade melódica que não começa
com uma ordem lógica como observamos antes. No entanto, nessa quarta vinheta
39 Dicionário Houaiss eletrônico. Diversão significa “ato ou efeito de divertir(-se)” e divertir(-se), “entreter(-se)
com brincadeiras, distrair(-se); rir ou fazer rir, alegrar(-se)”.
85
(visualidade com a fotógrafa e música do quadro), a continuidade não se homologa,
mais com o anonimato disfórico fortemente presente nas vinhetas já analisadas.
Com as modificações apontadas nessa terceira vinheta, entendemos
que o enunciador do quadro se mostra na figura do sujeito fotógrafa, afirmando
que é ele mesmo quem elege as mulheres que serão protagonistas. O painel com
as mulheres por traz desse sujeito reitera o universo feminino que será abordado. E
as cores usadas também trazem para o quadro o feminino. Além disso, a apresen-
tadora Denise Fraga, narrador delegado pelo enunciador, é o primeiro elemento a
se mostrar e permanece em primeiro plano durante toda a vinheta. As mulheres do
painel estão em segundo plano, mostram-se menos importantes do que a figurati-
vização de Denise fotógrafa que é competente para nos dizer quem é a mulher que
vai aparecer em conjunção com o “renome”.
Os retratos presentes no painel não possuem mais a característica de
identificação, de serem fotos para documentos oficiais de identificação, por serem
manifestadas com o efeito de sentido de diversão.
AS VINHETAS E O QUADRO
A partir das análises apresentadas, a vinheta de abertura é uma peça
importante na construção discursiva do quadro ou de qualquer programa de tele-
visão. Em Retrato Falado, ela nos descortina a “mulher brasileira” que iremos co-
nhecer a partir dali. É uma peça fundamental que concentra a essência de signifi-
cação do quadro para a construção do seu todo de sentido. Assistindo apenas a
vinheta, é possível saber do que se trata o quadro ou programa que se inicia, pois é
uma parte concentrada do todo.
Apontamos que as alterações da terceira e quarta vinhetas de ab-
ertura tiveram mudanças relevantes em sua plasticidade comparando com as das
anteriores, havendo mudança de sentido. O sujeito fotógrafa é o delegado do enun-
ciador, figurativizado por Denise Fraga. Essa vinheta é também a figurativização
da interação entre Denise e a telespectadora, pois ela olha, gesticula e tira foto de
quem está assistindo a Retrato Falado. Entretanto, com o uso de planos bem próxi-
86
mos deste sujeito, o enunciador traz a atenção do telespectador para a figura de
Denise. Ela ganha mais importância do que a mulher que nos contará a história no
dia que nos é revelada por meio da fotografia tirada.
Se nos detivermos na observação das vinhetas juntamente com os
episódios que as acompanham, temos que a mulher brasileira, anônima e comum
se funde com a figura de Denise Fraga. No início, a brasileira saía da multidão de
anônimos, mostrava a sua identidade e adquiria renome. No final do DVD, ela está
com sua identidade de protagonista diluída, em segundo plano ao do sujeito fo-
tógrafa. O último episódio conta a história de Renata Alice, uma mulher que tem
sua aparência confundida com a da própria atriz Denise Fraga. Então, podemos nos
perguntar: é Retrato Falado com Denise Fraga ou de Denise Fraga? O Retrato Falado
“retrata” a mulher brasileira ou “retrata” Denise e suas personagens?
Com estas mudanças na plasticidade da vinheta, estas alterações
fazem parte de um modo como o enunciador interage com o seu enunciatário para
o qual mostra como valoriza o seu delegado no enunciado, Denise Fraga, ao qual
doa toda a competência de escolha e interpretação dos papéis das protagonistas.
Denise apresenta-se tão valorizada que, ao longo da cronologia dos episódios no
DVD, ela assume o lugar da “mulher brasileira” que nos conta suas experiências.
Temos uma exaltação a figura de Denise em detrimento ao daquela mulher que está
na tevê contando fatos de sua vida.
Entendemos também que há ajustes entre o quadro e o seu enuncia-
tário. A figura de Denise é aquela pela qual o enunciatário se identifica e pela qual
é “contagiado”, estabelecendo assim uma interação entre o destinador e o destina-
tário. Ou seja, como figura central de Retrato Falado, Denise estabelece a interação
entre o telespectador e o quadro. Observaremos esse aspecto no capítulo 5.
88
A enunciação em
Retrato Falado:
a projeção
de pessoa, espo e tempo
A ENUNCI
A
ÇÃO EM RET
RA
TO F
RA
RA
A
L
A
DO
Como já observamos anteriormente, os textos em análise são objetos
de comunicação entre dois actantes da comunicação, em sua acepção mais geral, o
destinador e o destinatário
1
. No nosso caso, o destinador é manifestado pela Rede
Globo e o destinatário, o telespectador do programa, mais especificamente, do
quadro. Para se chegar aos valores que estão em jogo nos nossos textos, precisamos
analisar as estruturas discursivas, o patamar mais superficial da geração de sentido,
pelo qual é possível identificar os recursos de persuasão utilizados para manipular
o destinatário e conquistá-lo a aderir ou manter-se ao que é proposto no discurso.
Para produzir o discurso, o destinador delega a um outro sujeito o
fazer
necessário
fazer
para isso, o sujeito da enunciação
2
.
A enunciação é uma insncia linística logicamente pressuposta
pela própria existência do enunciado (que dela contém traços e marcas)”
3
, ou seja,
o enunciado é o estado dela resultante”
4
, é o produto da enunciação. Assim,
entendemos que
Retrato Falado
é o enunciado e pressuposto a ele a instância
que o produziu, a enunciação. É a enunciação o lugar da gerão do discurso, é
onde se dá a “colocação em discurso” que é a retomada das estruturas narrativas
1
Cf. A.J. Greimas e J. Courtés,
Dicionário de semiótica
, p. 114 (verbete: destinador/destinatário).
2
Ibid.
3
Ibid.
, p. 146 (verbete: enunciação).
4
Ibid.
, p. 148 (verbete: enunciado).
3
89
e a sua transformação nas discursivas: “o discurso é justamente o que é colocado
pela enuncião”
5
. E quem realiza o discurso-enunciado é o sujeito da enunciação
que, por sua vez, é instaurado em duas instâncias: a do enunciador e a do enun-
ciario
6
.
Desta forma, para Greimas e Courtés, a enunciação é o lugar de ins-
tauração do sujeito e este é o ponto de referência das relações espaço-temporais.
“Assim, explica Fiorin, o espaço e o tempo estão na dependência do eu, que neles
se enuncia. O aqui é o espaço do eu e o presente é o tempo em que coincidem o
momento do evento descrito e o ato de enunciação que o descreve”
7
. Com isso, a
enunciação é o lugar do eu-aqui-agora (ego, hic et nunc).
Fiorin ainda nos explica que quando o sujeito da enunciação põe a
linguagem em funcionamento, designando-se como eu e se apropriando da lingua-
gem inteira
8
, “constrói o mundo enquanto objeto ao mesmo tempo que se constrói
a si mesmo”
9
como afirma Greimas. Esta construção se pela intencionalidade
do sujeito em uma relação orientada, transitiva, “um ato de mirar o mundo”
10
. A
enunciação está fundada na intencionalidade do sujeito. Desta forma, a enunciação
permite que todo ser, através de um processo de personificação, possa se tornar
enunciador e, para isso, é preciso que este se dirija a um enunciatário instaurado seja
ele concreto, abstrato, presente, ausente e até mesmo inexistente
11
.
A partir do que dissemos, entendemos que analisar o discurso é tam-
bém estudar a sua produção para chegarmos as relações do sujeito da enunciação
com o seu discurso-enunciado, além das relações que se criam entre enunciador
e enunciatário. Para isso, examinaremos as diferentes projeções da enunciação no
enunciado Retrato Falado para identificar as relações entre a sua enunciação e o
discurso criado e entre os dois sujeitos, o enunciador e o enunciatário. Há duas for-
5 Cf. A.J. Greimas e J. Coutés, op.cit., p. 127.
6 Ibid., p. 150 (verbete: enunciador/enunciatário).
7 J.L. Fiorin, As astúcias da enunciação, p. 42.
8 Ibid.
9 A.J. Greimas e J. Courtés, op.cit., p. 147 (verbete: enunciação).
10 J.L. Fiorin, op.cit., p. 42.
11 Ibid.
90
mas de projeção da enunciação no enunciado: a debreagem e a embreagem que
explicaremos durante as análises que virão a seguir.
São pelos “traços e marcas” deixados por estes sujeitos – enunciador
e enunciatário no enunciado é que podemos reconstruir a enunciação e identificar
os mecanismos utilizados para manipular, persuadir o destinatário. O enunciador
possui o seu fazer persuasivo para convocar o enunciatário que, por sua vez, vai
se valer do seu fazer interpretativo para “interpretar” o discurso-enunciado. Para
reconhecer a relação de manipulação estabelecida entre enunciador e enunciatário,
analisaremos o nível das estruturas discursivas pelo qual se apreende com maior
facilidade esta relação.
Entendemos que o enunciador – delegado do destinador implícito, no
caso, a Rede Globo – se apresenta como destinador-manipulador que é responsável
pelos valores do discurso e capaz de levar o enunciatário, seu destinatário, a crer e a
fazer
12
. Nos textos em análise, os nossos enunciados, apontamos que o enunciador
se faz ver primeiramente pelos nomes dos profissionais que fazem parte da equipe
de produção roteiristas, diretores, produtores, atores que aparecem escritos na
tela enquanto se desenrola a vinheta de abertura do quadro.
A seguir, observaremos em Retrato Falado como são utilizados os pro-
cedimentos enunciativos e enuncivos para convocar e persuadir o público telespecta-
dor, de modo particular, os mecanismos que levam o enunciatário ao riso que enten-
demos como uma das principais formas de convencimento ao discurso proposto.
A DELEGAÇÃO DE VOZES
Entendemos que em Retrato Falado, logo no início, em sua vinheta de
abertura, através de um debreagem enunciva, o enunciador projeta um “não-eu”
no enunciado, criando o efeito de sentido de objetividade, de afastamento ao que
é dito – trataremos sobre isto mais adiante. Com esta delegação de voz, o discurso
é assumido por um narrador que está implícito no enunciado.
12 Cf. D.L.P. Barros, Teoria do discurso, p. 92-3.
91
O narrador e o narratário
13
são sujeitos diretamente delegados pelo
sujeito da enunciação instância sempre pressuposta ao discurso e podem estar
implícitos ou explícitos no enunciado. Para construir o objeto-discurso, o sujeito da
enunciação doa a um ou mais narradores o dever e o poder fazer que os instauram
como sujeitos e os qualificam, os dotam de “voz”
14
. O narrador é a projeção do
enunciador e o narratário, do enunciatário. Além de conduzir o discurso, o narrador
desempenha funções de distribuir os atores, fazer projeções internas no texto, dele-
gando vozes aos interlocutores, etc.
Este narrador implícito instalado no enunciado, no início da vinheta do
quadro, não diz “eu” nem se utiliza da linguagem verbal oral para narrar e constrói-
se de forma a não se deixar ver
15
. São através de suas escolhas que “vemos e ouvi-
mos” o que se passa na tela. Com esta delegação de voz, estabelece-se a condição
de diálogo com o “tu” do enunciatário que, neste início, não é manifestado no
texto. Assim, instaura-se a categoria de pessoa, a projeção do sujeito da enunciação
no enunciado.
No livro As Astúcias da Enunciação, essa projeção de pessoa é definida
como sendo uma categoria essencial para que a linguagem se torne discurso: “o eu
existe por oposição ao tu e é a condição do diálogo constitutiva da pessoa porque
ela se constrói na reversibilidade dos papéis eu/tu
16
. Vale ressaltar o que Fiorin nos
explica a este respeito: “o eu não se refere a um indivíduo nem a um conceito, ele
refere-se a algo exclusivamente lingüístico”
17
.
Na metade da primeira vinheta, enquanto as inúmeras fotos estão
sendo espalhadas pela tela como apontamos; ouve-se um off da atriz Denise
Fraga que introduz a história que vai ser contada naquele dia, por exemplo, o do
episódio “Maria Cecílias”. Ela diz: “Esta semana Retrato Falado vai contar a história
da tia Shenca e da confusão que ela se meteu com três mulheres chamadas Maria
13 Cf. A.J. Greimas e J. Courtés, op.cit., p. 294 (verbete: narrador/narratário).
14 Cf. D.L.P. Barros, op.cit., p. 84.
15 Cf. A. S. Médola, Novela das oito e suas estratégias de textualização, Terra Nostra, a saga ressemantizadora,
p. 78. Neste texto, Médola observa este narrador onisciente e onipresente no discurso da telenovela.
16 J.L. Fiorin, op.cit., p. 41.
17 Ibid.
92
Cecília
”. O final da frase em
off
(a parte sublinhada) se com Denise Fraga, em
off
primeiro plano, olhando e falando para o telespectador, no estúdio de gravação
da encenação da história. Em todos os 11 episódios que são iniciados pela referida
vinheta, é deste modo que Denise se mostra em sua apresentação das personagens
da história, ela está no set de gravação onde há uma movimentação de pessoas ar
-
ar
ar
rumando o local por traz do primeiro plano dela –, além de completar, as vezes,
esta introdução também com um texto posterior em
off
.
off
off
FIGURA 8
Apresentações de Denise Fraga com a presença de profissionais da produção em quadro
discurso a um segundo narrador, a Denise que, por sua vez, diz “eu”. E, com sua
posição olhando para a câmera, para o telespectador, instala no texto também o
“tu”, o narratário, estabelecendo então uma situação de diálogo. Identificamos es
-
tes dois sujeitos explícitos no texto em análise, como apontamos antes: Denise
como narrador e o telespectador como narratário.
Essa projeção de pessoa no enunciado se instaura também pela fala de
Denise neste trecho do quadro. Com a “voz” do discurso e assumindo o seu papel
de narrador, Denise se utiliza da primeira pessoa, o “eu” da instância da enunciação,
como por exemplo: “... eu não posso falar agora...” e “... eu posso dizer...”. Esta
projeção do “eu” no enunciado, debreagem enunciativa, cria o efeito de sentido
de subjetividade, de aproximação ao discurso, fazendo com que o telespectador se
sinta parte do discurso, do que ele vê na tevê.
Citemos um outro exemplo deste narrador, o do episódio “A bela que
virou fera (em futebol)”. Em
off,
Denise diz: “Essa semana
Retrato Falado
vai contar
a história de Senira de Santa Bárbara d’Oeste-SP” e em sua fala na apresentação diz:
93
“A Senira virou o jogo. Ou o jogo virou a Senira. Vocês vão ver”. Neste episódio, o
narrador-Denise não faz o uso do “eu”, porém quando ela usa o “vocês” estabelece
a relação com o narratário-destinatário, envolvendo-o também no que se passa na
tela. uma reiteração deste efeito de subjetividade também pelo seu posiciona-
mento, olhando para câmera, ou seja, falando diretamente com o telespectador.
Além disso, a atriz usa também o “nós” para trazer para o enunciado
o “tu”, o enunciatário-telespectador, envolvendo-o no que se passa na frente dele.
Ela diz no episódio “Marias Cecílias”: “... nossa história...”; “vamos à história”. En-
tendemos que o “nós” engloba o “eu” da atriz como apresentadora, o “eles” dos
membros da equipe de produção e o “tu” do telespectador. É a “minha”, a “deles”
e a “sua” história: é a “nossa história” que “nós” – eu, eles e você “vamos” ver.
Com isso, o discurso envolve quem está assistindo, criando o sentido de que Retrato
Falado é também de quem o assiste, do telespectador. É uma reiteração do efeito
de sentido de aproximação ao discurso, uma forma de interação pelo regime da
manipulação com o seu público.
Um outro exemplo deste efeito de aproximação está no episódio “A
verdadeira carga pesada”. Em sua apresentação, olhando para o telespectador (para
a câmera), o narrador-Denise se utiliza da expressão “a gente” que nos traz o mes-
mo sentido do “nós”. Ela diz: “A Terezinha vai mostrar pra gente que na vida não
existe marcha ré. Tem que engatar a primeira, a segunda, a terceira, a quarta, o que
não é pra ficar em ponto morto”. Neste exemplo, mais uma vez, a apresenta-
dora “envolve” quem está assistindo ao mesmo tempo em que se mostra também
“envolvida” com o que se verá na tela. Além disso, este envolvimento cria uma
aproximação maior com o público pelo uso da referida expressão, “pra gente”, que
é carregada de informalidade, é bastante coloquial e de uso corriqueiro. É quase
uma exacerbação da proximidade com o público.
O narrador-Denise também se mostra como conhecedor de tudo que
veremos naquele quadro a partir de sua apresentação. Entendemos como onisciente
pelo que diz (no episódio “Marias Cecílias”): “... não posso falar agora senão eu vou
estragar a surpresa...” e “Por enquanto, a única coisa que eu posso dizer é que uma
94
simples coincidência de nomes como essa pode dar um rolo danado!”. Em outro
exemplo já citado (o episódio: “A bela que virou fera – em futebol”), quando ela se
utiliza da expressão “vocês vão ver”, é uma forma de mostrar-se como aquela que
sabe do que se trata a história a ser vista. Além disso, cria um efeito de sentido de
suspense para que o telespectador continue assistindo ao quadro.
Outro exemplo da onisciência do narrador-Denise é o episódio “De
cabelo em pé”. Em sua apresentação, em primeiro plano, olhando para a câmera,
ela diz: “A Isabel se meteu numa aventura literalmente de arrancar os cabelos. Ela
foi pra praia com a família, o marido... que aí...”. Pela sua fala onisciente e aproxi-
mação com o narratário/enunciatário, o narrador manipula, criando, mais uma vez,
um efeito de sentido de suspense para manter, segurar o telespectador para que ele
assista àquele Retrato Falado.
Os episódios que se iniciam com as duas outras vinhetas – analisadas
no capítulo anterior, observamos os mesmos procedimentos enunciativos daqueles
apontados até aqui. Por exemplo, o episódio que se inicia com a segunda vinheta,
“A verdade nua e crua”, na apresentação da atriz, ela se posiciona olhando para a
câmera, para o telespectador com quem fala: “Pois é, era aniversário da Gislene e
ela queria fazer uma coisa diferente. Aliás, bem diferente!”. Com o seu posiciona-
mento, estabelece-se a relação entre “eu” narrador com o “tu” narratário, como já
observado. Além disso, este narrador também se apresenta onisciente e com o que
diz cria o efeito de suspense para manter o telespectador assistindo ao quadro.
No episódio “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”, também ini-
ciado com a segunda vinheta, há uma recorrência do uso do “nós” que convoca o
narratário-enunciatário para o texto quando ela diz: “Olha só a história dessa nossa
rapunzel!”. Com o pronome “nossa”, o narrador envolve quem está assistindo ao
que se passa na tela: a história é de Zuca, a protagonista, e é ela a “nossa rapunzel”.
A história é dela, mas também é de Denise que está apresentando e do telespecta-
dor que está assistindo. É uma história minha, sua, é “nossa”! Desta forma, todos
que fazem e assistem ao quadro estão envolvidos no que se passa na tela, o Retrato
Falado pertence a todos.
95
Quando se encerra a participação do narrador-Denise, a “voz” do dis-
curso é assumida pelo narrador implícito que inicia Retrato Falado como obser-
vamos. Como veremos, é um narrador que se apresenta onisciente e onipresente
e, através de suas escolhas, nos mostra as situações vividas pelos personagens e as
falas dos entrevistados no decorrer do quadro. Ele faz nos ver, seguir, a história sem
se mostrar.
Ainda sem se fazer notar, este narrador implícito delega a “voz” do
discurso a “entrevistados”, que entendemos ser interlocutores que contam a história
em discurso direto, referindo-se aos fatos ocorridos diretamente com eles usando
“eu”. Entendemos que essa delegação de “voz” que o narrador implícito passa
para esses interlocutores-entrevistados cria o efeito de sentido de verdade e de rea-
lidade, de que o que está sendo dito é real. Para explicar este efeito, vamos nos
deter, por um momento, no contrato de veridicção, o dizer-verdadeiro do discurso
enunciado.
O enunciador produz discursos pelo seu fazer cognitivo para persuadir
o enunciatário ao que é apresentado, fazer ele “crer” no seu discurso, na sua ver-
dade discursiva. Assim, cria procedimentos que permitem o enunciatário, pelo seu
fazer interpretativo, chegar a “verdade” do discurso construído, ao seu dizer-ver-
dadeiro. O reconhecimento de um dizer-verdadeiro num discurso pode estar ligado
ao conhecimento e saber coletivo de uma determinada cultura
18
, e segundo Barros,
pode estar ligado a contratos de veridicção anteriores próprios de uma formação
ideológica, um sistema de valores, de discurso e seus tipos
19
. Deste modo, o formato
escolhido de exibição desses interlocutores-entrevistados pertence ao universo cul-
tural da televisão brasileira no que diz respeito à apresentação de fatos pertencentes
ao mundo cultural e natural, “fatos reais”, como em programas de entrevistas,
noticiários e documentários. Formato este que é amplamente veiculado pelas emis-
soras e redes de televisão e largamente assistido
20
.
18 Cf. A. J. Greimas e J. Courtés, p.486 (verbete Veridicção).
19 Cf. D.L.P.Barros, op.cit., p.94.
20 Cada emissora aberta nacional, regional ou local, possui seu próprio telejornal e o formato televisivo utiliza-
do nesses noticiários é o mesmo, variando em alguns recursos diferenciados.
96
Consideramos esses primeiros interlocutores a se mostrar no texto em
análise como pessoas entrevistadas, pois são enquadrados no tradicional plano usa-
do pela televisão para gravação de entrevista para noticiários, programas de entre-
vistas e documentários. Eles aparecem no mesmo enquadramento da atriz quando
está se apresentando, em plano médio, e encontram-se também sentados. Além
disso, se dirigem, pela direção do olhar, a um interlocutário que está ausente do
campo de visão da tela – que o narrador não nos faz conhecer –, que consideramos,
pela disposição da cena, como o jornalista que faz a entrevista.
Ainda reiterando a identificação desses interlocutores como entrevis-
tados, eles recebem também a identificação do próprio nome na parte inferior es-
querda da tela, em letras brancas, na primeira aparição que fazem no decorrer da
história, do mesmo modo como se faz em programas de entrevistas, noticiários ou
documentários.
A mulher vista pela foto com o próprio nome escrito que aparece na
primeira vinheta de abertura ou a primeira entrevistada do quadro nos outros episó-
dios, e que é apresentada por Denise, é um desses interlocutores-entrevistados que
são manifestados na tela como observado. A identificação deles, além de ter o
nome do interlocutor quando este aparece na tela, é acrescida de uma outra infor-
mação também comumente utilizada em entrevistas em noticiários ou documentá-
rios televisivos. Escreve-se a profissão ou o cargo público ocupado ou a empresa em
que trabalha ou ainda uma informação que mostre a relação do entrevistado com o
fato que está sendo exposto. No caso do Retrato Falado, é comum utilizar a relação
de parentesco que o interlocutor-entrevistado tem com a personagem central da
história. Por exemplo, “Benedito de Godoy, Marido da D. Shenca” ou simplesmente
“Andréa dos Santos, Empregada”, como se utiliza nos noticiários.
Esses interlocutores-entrevistados também convocam para essa con-
versa o interlocutário-telespectador, devido a rápida olhada que fazem, de vez em
quando, para a câmera, para o próprio telespectador. Nesta situação, o público do
quadro passa a fazer parte da conversa como mais um interlocutário, faz parte do
diálogo criado.
97
Ainda neste universo dos contratos de veridicção, acrescentamos que
para o enunciatário “crer” no dizer-verdadeiro do discurso, é preciso que antes se
estabeleça um contrato de fidúcia, que haja confiança entre o enunciador e o enun
-
ciatário. Para que isso ocorra, os valores apresentados pelo enunciador no discurso
devem ser compartilhados pelo enunciatário. É deste modo que se dá a persuasão,
que o enunciatário se deixa ser manipulado. Neste caso de formatos televisivos de
noticiários ou documentários, a confiança estabelecida está implícita pela ampla
aceitação deste tipo de construção discursiva, como já apontado.
O enunciatário do quadro, pelo seu fazer interpretativo, vai “identifi
-
car” o formato de noticiário ou documentário utilizado em
Retrato Falado
e, com
isso, “entender” que os interlocutores-entrevistados são pessoas que pertencem
ao mundo cultural e natural, que falam de si, contam seus pontos de vista, ou seja,
são pessoas “reais” que contam suas histórias “reais”, “verdadeiras”. É assim que
o enunciador constrói os efeitos de sentido de verdade e de realidade, o discurso
“parece e é” verdadeiro.
Quando esses interlocutores-entrevistados surgem na tela da tevê,
apresenta-se uma diferenciação visual com o recurso do
widescreen
tipo de tela
usado em televisão para adaptar os filmes feitos para o cinema. As imagens são
apresentadas ao centro da tela com faixas em cor preta nas partes superior e in
-
ferior. Entendemos que o uso deste recurso pelo enunciador é para evidenciar as
diferenças entre estes interlocutores com os que entram em seguida no quadro,
estabelecendo uma interdependência entre o que uns “dizem” e o que os outros
“dramatizam” como veremos. Os primeiros são os “entrevistados” que “contam” a
FIGURA 9
Interlocutores-Entrevistados: na última imagem, temos a
protagonista olhando para o telespectador.
98
história “real” e são mostrados em tela
widescreen
; os outros são os que a “ence
-
nam” e são apresentados em tela tradicional como nas telenovelas. É uma forma de
diferenciar os dois tipos de formatos televisivos, documentação e ficção, que criam
efeitos de sentidos próprios.
A partir do oitavo episódio, uma inversão no uso da tela
widescreen
.
Os interlocutores-entrevistados são mostrados na tela de formato tradicional da tevê
e a parte do quadro que é encenada se apresenta em tela
widescreen
. Com esta
mudança, a “encenação” exibida em
widescreen
cria o efeito de sentido de simula
-
ção, daquilo que vemos é uma história encenada, dramatizada como costumamos
ver no cinema por usar o mesmo tipo de tela. um acréscimo de sentido na tela
tradicional da televisão na qual se vêem os “entrevistados”: as pessoas “reais” que
contam suas histórias “verdadeiras” aparecem no mesmo formato de tela dos no
-
ticiários ou documentários.
FIGURA 10
A inversão do uso da tela widescreen. A primeira linha traz o episódio “Marias Cecílias”
(primeiro no DVD) e a segunda, “Anjos da guarda, ou melhor, da aermoça” (o 9º no DVD)
O narrador implícito, ao conduzir o discurso, contando a história pre
-
tendida, utiliza-se, como dissemos, de interlocutores-entrevistados em discurso
direto pelos quais se criam os efeitos de sentido de verdade e realidade. Ao longo
de sua narração, cria uma alternância entre estes interlocutores-entrevistados e os
outros interlocutores, ou seja, entre as “pessoas reais” e os que desempenham,
representam em cena, que chamaremos interlocutores-personagens. Entendemos
99
que o narrador mantém um discurso direto ao longo do quadro, uma debreagem
interna de segundo grau, criando uma situação de diálogo por delegar a voz a in-
terlocutores que dizem “eu”.
Entendemos que o discurso estabelece uma continuidade “diferen-
ciada” através de construções que se mostram como “verdade” e “ficção”. O de-
senrolar da história nos faz ver que o acontecimento foi “verdadeiro e real” e que
é possível ou provável ter acontecido através do efeito de verossimilhança que pre-
domina na encenação da história, na ficção. Com esta construção, numa história
simples e plausível do cotidiano, algo parecido pode suceder com qualquer um de
nós, como o telespectador que assiste.
Segundo Médola, na telenovela,
“o efeito de realidade é obtido pela exacerbação da objetividade que leva à
ficção... é para fazer crer, não pelo efeito de veridicção, mas pelo efeito de
verossimilhança, do parecer real, mas, sem fazer crer que é real e sim fazer
crer que é ficção”
21
.
Assim relacionamos à parte da “encenação” da história em Retrato
Falado como ficção, construindo um discurso verossímil, fazendo crer que é ficção.
Para Greimas, “o discurso verossímil não é apenas uma representação ‘correta’ da
realidade sócio-cultural, mas também um simulacro montado para fazer parecer
verdadeiro e que ele se prende, por isso, à classe dos discursos persuasivos”
22
.
É pelas inúmeras possibilidades de combinação das várias linguagens
e formas de expressão do texto sincrético que o narrador nos faz seguir a história
a partir da sucessão de imagens e sons que escolhe e vai expondo na tela, criando,
assim, o efeito de sentido de objetividade, de que a história se narra por si.
Um exemplo que podemos trazer deste narrador é o de uma cena
do episódio “Marias Cecílias”, em que a família (Shenca, o marido e a mãe) chega
ao condomínio da sobrinha, em Presidente Prudente-SP. Neste momento, entra o
interlocutor-entrevistado Maria Cecília Loyolla de Almeida, sobrinha da Shenca que
21 A.S. Médola, op.cit., p. 81.
22 A.J. Greimas e J. Courtés, op.cit., p.490 (verbete: verossimilhança).
100
diz: “Chegou na portaria, ela [Shenca]
23
falou assim:”. A fala da sobrinha é cortada
neste ponto, sem conclusão, e é acrescida em seguida a personagem Shenca, vivida
por Denise Fraga, falando com o porteiro: “Boa tarde, nós vamos à casa da Maria
Cecília...”. Entendemos, com isso, que o narrador, sem se mostrar, insere a fala
da sobrinha, que cria os efeitos de sentido de realidade e verdade, e, em seguida,
acrescenta a fala da personagem que traz o efeito predominantemente de veros-
similhança, de que podemos ver algo que é possível ou provável por não contrariar
o nosso mundo cultural e natural, além de ser plausível
24
.
Citemos um outro exemplo, o do episódio “Entre o brasão e o pas-
saporte”. Quando o noivo da protagonista Célia Flores termina a relação com ela
um mês antes da cerimônia de casamento, Célia, em seu papel de interlocutor-
entrevistado, diz: “Passei duas semanas em que eu fazia chorar e perdi o ape-
tite, não comia, emagreci quatro quilos em duas semanas... Aliás, eu recomendo,
é uma ótima dieta você entrar em depressão”. Neste ponto, esta fala é cortada e
entra o interlocutor-personagem Célia figurativizado por Denise Fraga nos deter-
emos neste aspecto no próximo capítulo que fala olhando para a câmera, para o
telespectador, uma “receita”.
O ator-Célia na figura de Denise está numa cozinha diante de uma
mesa com ingredientes como ovos, farinha de trigo, leite, e em suas mãos um casal
de pequenos bonecos usados para enfeitar bolos de casamento. Assim, começa a
dar a “receita”: “Minha amiga, hoje nós vamos aprender como perder quatro quilos
em apenas duas semanas. Arranje um homem cafajeste ou emocionalmente ima-
turo, reserve. Misture-se bem com ele até você ficar bem envolvida...”. Com isso, o
delegado do enunciador, o narrador implícito, usa a fala citada da protagonista que
recomenda a “dieta para emagrecer” e, em seguida, cria uma cena numa cozinha
com uma personagem ensinando uma “receita”. A seqüência citada e muitas outras
são escolhas do narrador-enunciador para levar o telespectador ao riso.
23 O grifo é nosso.
24 O Dicionário Eletrônico Houassis traz o termo “verossímil” com o seguinte significado: “que parece verda-
deiro; que é possível ou provável por não contrariar a verdade, plausível”.
101
No episódio “A verdade nua e crua”, é aniversário da protagonista
Gislene Villas Boas e ela resolve comemorar com as amigas, contratando um homem
para fazer
striptease
. Como interlocutor-entrevistado, Gislene diz: “Dá vontade de
ver um
striptease
... (risos) Ninguém tinha coragem de pedir ao marido para fazer um
strip
, então... surgiu a vontade de a gente vê”. A fala é cortada e, em seguida,
entra a cena do ator-Gislene na figura de Denise Fraga com mais duas amigas em
uma mesa numa cozinha. As três olham para a câmera, o telespectador, e uma das
amigas diz: “A gente? Eu não disse nada” e a outra responde: “Nem eu”. Aqui se
evidencia a seleção deste narrador-enunciador em escolher certa fala da protago
-
nista e completa com uma cena que cria uma situação engraçada.
Em
Retrato Falado
, apontamos ainda um terceiro narrador
25
. Ele en
-
tra nas histórias através de uma inserção na duratividade da história para “infor
-
mar” sobre algum aspecto do assunto tratado. Esta inserção tem o formato de uma
pequena nota jornalística com a narração em terceira pessoa, criando o efeito de
objetividade no discurso. Isso faz com que o que se diz “pareça ser” “verdadeiro”.
Além disso, a narração é feita em voz masculina para estabelecer credibilidade
26
. En
-
tretanto, o tom de voz deste locutor é próximo de quem fala sorrindo, é risonho; o
ritmo é acelerado para dar um tom cômico a situação narrada, além de visualmente
são animações gráficas que levam a telespectador ao riso.
No episódio “Dona-de-casa unida jamais será vencida”, dois exem
-
plos deste narrador. A primeira inserção entra quando o interlocutor-entrevistado
25
Este narrador é um recurso utilizado em outros episódios de
Retrato Falado
e até mais explorado do que
neste, “Marias Cecílias”.
26
alguns estudos que afirmam que a voz masculina usada em rádio ou televisão dá mais credibilidade ao
que está sendo veiculado.
FIGURA 11
Cenas do episódio “Entre o brasão e o passaporte”: o narrador implícito
102
Nadja Belém conclui sua descrição de todo o serviço doméstico que fazia em sua
casa. A “nota informativa” traz quantas calorias uma dona-de-casa pode perder
ao fazer tais serviços. O narrador diz: “O trabalho de uma dona-de-casa faz com
que ela gaste muitas calorias. São 140 arrumando as camas, 170 cozinhando, 350
cuidando do jardim... O que 1780 calorias”. Cria-se um discurso objetivo por
ser em terceira pessoa e crível por ser feito por uma voz masculina, mas risível pela
plástica da animação.
A outra inserção entra no fim do episódio informando o quanto
ganharia uma dona-de-casa se ela recebesse pelo serviço doméstico realizado. O
narrador fala: “Se uma dona-de-casa recebesse um salário justo, este salário seria a
soma do salário de cozinheira, 400; lavadeira, 100; babá, 300... O que daria 2.320
reais”. São utilizados os mesmos procedimentos, uma voz masculina narrando em
terceira pessoa, criando assim a objetividade. No entanto, o risível é evidente na
construção discursiva.
Entendemos que estas inserções reiteram um simulacro de mulher que
o quadro
Retrato Fala
do
constrói ao longo de seus vários episódios
O
SINC
R
ETISMO DE P
A
PÉIS: OS
A
TO
A
A
R
ES DO DISCU
R
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IO COM ELES
Aponta
mos anteriormente que Denise Fraga assume o papel de nar
-
rador do discurso no início de
Retrato Falado
. Ainda nesta perspectiva narratológi
-
ca da enunciação
27
, observamos
que este narrador é um ator que assume papéis
27
Cf. D.L.P. Barros,
op.cit
., p. 80.
FIGURA 12
Cenas da primeira animação gráfica do episódio “Dona-de-casa unida jamais será vencida!”
103
actanciais de sujeito e destinador, dotados dos valores modais dever fazer e poder
fazer e papéis temáticos de narrar o discurso. Entendemos ainda que, nesta cober-
tura semântico-temática, este ator-narrador assume também os papéis temáticos de
“apresentadora” de Retrato Falado
28
e de “atriz” que representa no quadro. Con-
sideramos que esta combinação de papéis temáticos e suas figurativizações levam
o telespectador a se identificar com a figura de Denise que se torna um elemento
central no quadro e, conseqüentemente, este telespectador também se identifica
com os personagens da história.
Entendemos que este ator cumpre o papel temático de “apresen-
tadora” pela sua manifestação como o seu posicionamento de estar sentada em
frente à câmera – no início do quadro, logo em seguida à vinheta de abertura como
comumente ocorre com os apresentadores de tevê – e a função que assume em dar
a conhecer quem é a mulher que vai contar a história do dia. Em alguns episódios,
ainda apresenta outros personagens envolvidos e se alterna em texto em off e em
seu primeiro plano na tela.
O enquadramento realizado é em plano médio até a cintura o qual
mostra Denise Fraga sentada, olhando para o telespectador. Este tipo de enquadra-
mento é tradicionalmente usado em programas televisivos de entrevistas, noticiá-
rios ou documentários para mostrar os apresentadores que também se utilizam de
textos em off para informar. Entendemos que esta disposição na tela figurativiza
Denise como “apresentadora” de Retrato Falado, fazendo com que ela assuma esta
função.
Nesta posição, enquanto Denise fala, surge na tela, no canto inferior
esquerdo, em cor branca, o nome “Denise Fraga”, indicando o nome da atriz que
está falando. Este recurso de usar simplesmente o nome e o sobrenome da pessoa
enquanto apresenta é comumente utilizado nas aparições dos apresentadores de
programas televisivos. Não nenhum acréscimo de informação, como observamos
anteriormente: não indicação de profissão, cargo público, empresa etc. Este re-
curso é mais uma forma de manifestação do papel temático “apresentadora”.
28 Denise Fraga desempenha este papel temático de “apresentadora” em todos os episódios exibidos de Re-
trato Falado.
104
Entretanto, esta “apresentadora” manifesta-se, de um modo bastante
particular, pela sua fala divertida, sorriso nos lábios e gesticulação acentuada das
mãos – recursos pouco utilizados por apresentadores de noticiários, por exemplo. O
excesso de sua gestualidade nos remete ao cômico, ao engraçado, ao humorístico.
E também a sua modulação vocal é bastante ampla, varia entre os tons graves e
agudos, criando, deste modo, um certo excesso vocal que também nos remete ao
humorístico. Assim constrói-se um papel temático de uma “apresentadora” jocosa,
que nos introduz a uma história engraçada, divertida, que vai nos provocar o riso.
Além disso, a sua fala também é extremamente coloquial e usa ex
-
pressões populares ou trocadilhos para introduzir o quadro. Por exemplo, ela diz:
“Essa semana
Retrato Falado
vai contar uma história cabeluda...” ou “... uma sim
-
ples coincidência de nomes às vezes pode dar um rolo danado” ou ainda “A Senira
virou o jogo. Ou o jogo virou a Senira...” ou “... se meteu numa aventura literal
-
mente de arrancar os cabelos” ou “...já fez altas baixarias”. Além disso, Denise
Consideramos que a construção discursiva deste ator-narrador que as
-
sume o papel temático de uma apresentadora jocosa figurativizada por Denise, leva
o enunciatário a identificar-se com este ator-apresentadora pelo seu desempenho
no quadro. Em sua condição de narrador, utilizando-se do “eu”, Denise cria uma
situação de diálogo com o enunciatário que assume o papel de narratário, o “tu”
a quem o “eu” se dirige como observamos antes. Neste diálogo, o narrador-
apresentadora Denise envolve o narratário-telespectador pelo seu posicionamento
que fala olhando para o telespectador (para a câmera) e pelo uso de expressões que
trazem o telespectador para o texto como, por exemplo, utiliza-se do “nós”, “eu”
e “tu” ou “você”.
Consideramos que a construção discursiva deste ator-narrador que as
FIGURA 13
Denise Fraga: uma apresentadora jocosa e divertida
105
Nesta dinâmica criada pelo quadro, o telespectador sente-se muito
próximo da figura de Denise pelo seu modo coloquial e envolvente de falar. Este
narrador-Denise, onisciente, assumindo o papel temático de apresentadora, mostra-
se como alguém que sabe como se dará a história que apresenta, mas não antecipa
nada e, sorrindo, deixa o telespectador curioso e em suspense ao que vai assistir.
Assim, esta figura de Denise mostra-se como um elemento central de identificação
para o telespectador que a verá com uma nova manifestação durante o desenrolar
da história do dia como veremos a seguir.
Enquanto cumpre com o seu papel temático de “apresentadora”, en-
tendemos que este ator manifesta figuras que recobrem outro papel temático: o de
“atriz”, aquela pessoa que desempenha, representa em peças de teatro, novelas de
televisão, filmes etc. Quando surge na tela, falando para o telespectador, este ator-
apresentadora traz figuras deste universo da encenação: ela se encontra ao lado de
um espelho de camarim, com lâmpadas em volta, e uma bancada com fotos de out-
ras pessoas que desempenham papéis em teatro, um enfeite de jarro de flores etc.
Ainda enquanto apresenta, uma movimentação por trás dela de pessoas arru-
mando o cenário e os equipamentos de gravação como, por exemplo, uma câmera
passando por trás dela (Figura 8). Concretizando ainda este outro papel de atriz, em
sua apresentação, por exemplo, no episódio “Marias Cecílias”, o cabelo de Denise
está sendo preparado por outra pessoa, como se ela estivesse se caracterizando para
entrar em cena.
Além disso, o cenário onde ela se encontra, por trás do seu primeiro
plano, é o mesmo que vemos quando esta “atriz” entre em cena. No episódio “O
ABC do ciúme”, por exemplo, há, por trás dela, uma cozinha pela composição
do cenário que possui objetos de cozinha, cortina numa janela basculante e uma
parede de azulejos brancos e brancos com quadrados vermelhos ao centro. Ao en-
trar a primeira cena, temos o mesmo cenário como a mesma janela e cortinas e a
parede com os mesmos azulejos, mas com enquadramento e disposição de objetos
para a cena apresentada.
Ocorre o mesmo procedimento no episódio “O primeiro biquíni a
gente nunca esquece”. No cenário, por trás da apresentadora Denise, temos uma
106
cama e ao lado, um criado mudo que tem um abajur vermelho. Por trás, uma
penteadeira com espelho, vidros de perfumes e um vaso de flores. As paredes do
quarto são cor-de-rosa. Na primeira cena, temos este mesmo cenário, enquadrado
em um plano diferente para a gravação do diálogo entre as personagens. Mais uma
vez, o ator-apresentadora se encontra no cenário em que se passa a história.
No quadro, não demora muito para vermos a figura “Denise Fraga”
se manifestar durante a narrativa numa cobertura semântica de um outro ator, por
exemplo, a senhora Shenca, do episódio “Marias Cecílias”. No vel narrativo da
história contada, Shenca cumpre vários papéis actanciais como um sujeito do fazer que
manipula sujeitos a sua volta; é um sujeito competente, realizador etc. Passando para
o nível discursivo, o sujeito-Shenca torna-se ator, recebendo investimentos temáticos
de filha, tia, esposa, dona de casa, consumidora etc. Mas entendemos que este ator-
Shenca manifesta-se figurativamente de duas formas durante o decorrer do discurso:
ora é figurativizado pela “Shenca real”, a pessoa que é entrevistada, que contribui na
criação dos efeitos de verdade e realidade, como apontamos; ora é figurativizado
por “Denise Fraga”, recobrindo o efeito de verossimilhança, pois Denise desenvolve
sua encenação caracterizada pelo vestuário e acessórios próprios da personagem,
além de se utilizar de entonação de voz e interjeições também da personagem.
FIGURA 14
Denise apresenta no cenário de gravação da história
107
Com Denise figurativizando um outro ator, no caso citado, o ator-
Shenca; entendemos que a identificação que o telespectador estabeleceu no início
do quadro com a figura de Denise, cobrindo o papel de ator-apresentadora, leva
este mesmo telespectador a identificar-se com a protagonista e sua história, no
exemplo, Shenca. Num outro exemplo, o do episódio “Anjos da guarda, ou melhor,
da aeromoça”, no qual o telespectador – por se identificar com a figura de Denise
como apresentadora e como uma das manifestações do ator-Márcia –, é levado a
envolver-se, ao final do episódio, com a pessoal “real” entrevistada Márcia Gaiotto.
Enquadrada em plano próximo (busto), Márcia olha para o telespectador (para a
câmera) e compartilha com ele o seu agradecimento aos dois rapazes que a aju-
daram em sua obstinada busca de chegar ao trabalho pontualmente.
Deste modo, o telespectador se identifica com o simulacro da mu-
lher brasileira que é construído no discurso como veremos no próximo capítulo.
Consideramos este procedimento como uma das formas que o enunciador leva o
telespectador a ver semelhanças entre sua vida e o que se passa na tela; a observar
que, em sua vida, fatos que podem ser risíveis como os que estão em Retrato
Falado e que ele pode também rir do seu cotidiano. Com este mecanismo, o enun-
ciador também convoca o telespectador para que ele queira ver mais um episódio
no domingo seguinte.
Apontemos ainda que os papéis temáticos manifestados pela mesma
figura “Denise Fraga”, de “apresentadora” e de “atriz”, cria um procedimento com
acréscimo semântico que contribui para que este discurso leve ao riso. Primeira-
mente, em sua apresentação, Denise fala diretamente ao telespectador de forma
jocosa, engraçada –, informando o que veremos naquele dia no quadro. Ali Denise é
aquela atriz reconhecida nacionalmente, que tem vários papéis cômicos em seu cur-
rículo; antecipa-nos que veremos um discurso risível, também pela sua fala divertida.
Em sua segunda aparição que se mantém até o fim da história encenada –, reco-
nhecemos Denise atuando, em cena, como artista representando uma personagem
de uma história engraçada.
Este mesmo procedimento ocorre com os outros atores do discurso
como o marido de Shenca, Godoy. O ator-Godoy é manifestado pelo homem que
108
é entrevistado e pertencente ao mundo natural, é “real”, bem como pela figura de
“Otávio Augusto”, conhecido artista profissional que desempenha, representa em
teatro, cinema e televisão. A figura de Otávio Augusto, como os outros profissionais
que encenam a história, assume o papel temático de artista, intérprete que faz en-
cenações em programas de tevê, peças ou filmes.
Entendemos que escolher Denise Fraga para atuar nesta peça televi-
siva é uma estratégia discursiva para a manipulação, para persuadir o telespectador
a assistir à história contada, além de convencê-lo de que o discurso vale à pena ser
visto. A encenação em Retrato Falado traz outros reconhecidos profissionais que
representam em teatro, cinema e televisão. Este recurso que mostra o mesmo ator
sendo figurativizado de mais de uma forma, sendo uma delas figuras de famosos
profissionais da área, reitera o efeito de sentido de verossimilhança que evidencia ao
enunciatário que o discurso construído está entre “o real e a ficção”.
A PROJEÇÃO DO TEMPO
Segundo Machado, a característica mais importante da televisão, do
ponto de vista de sua produção simbólica, é a simultaneidade entre o tempo da
enunciação e o tempo da recepção
29
. A programação televisiva como um todo é rea-
lizada em transmissão direta, até os programas gravados tem a sua hora certa para
serem inseridos no fluxo “ao vivo” da televisão.
Observando o tempo em Retrato Falado, consideramos que este
quadro faz parte do programa Fantástico que o engloba. Então, temos o quadro
como englobado numa unidade englobante. O Fantástico é transmitido “ao vivo”
com seus apresentadores no estúdio durante a sua exibição, como num telejornal
que é veiculado em transmissão direta. Por ser “ao vivo”, o programa cria o efeito
de verdade e realidade no enunciado, o que é apresentado pelos dois jornalistas.
Esta característica de ser “ao vivo” contamina a realização de Retrato
Falado que é um produto gravado e editado antecipadamente
30
e é, principalmente,
29 Cf. A. Machado, A arte do vídeo, p.15.
30 A maioria dos quadros veiculados no Fantástico tem sua produção e edição feitas com antecedência para
serem inseridos no script do programa.
109
pensado e realizado para ser exibido no domingo a noite, horário em que o progra-
ma vai ao ar. Temos, assim, na apresentação da atriz Denise Fraga, a manifestação
no enunciado desta simultaneidade entre o tempo de exibição e o tempo de recep-
ção. O narrador-Denise fala em tempo presente, no “agora” da enunciação, como
veremos, simulando o mesmo presente que o telespectador vive naquele momento.
Reitera-se, assim, no quadro, o efeito de sentido de verdade e realidade.
Esta projeção do tempo da enunciação, o “agora”, no enunciado,
instala uma debreagem enunciativa do tempo da enunciação. No início do quadro,
ainda na vinheta de abertura, no off do narrador-Denise, em quase todos os episó-
dios, ele diz: “Essa semana Retrato Falado vai contar a história de...”. Este “vai
contar” se refere a um futuro próximo que acontecerá logo em seguida, quando
começar o desenrolar da história que, por sua vez, é toda encenada no tempo pre-
sente, no “agora” da enunciação.
Entendemos que este narrador, ao nos adiantar o que será apresen-
tado, se encontra também no tempo presente, um simulacro do mesmo presente
em que vivemos e estamos assistindo a Retrato Falado. Podemos trazer o exemplo
do episódio “Marias Cecílias” em que o “agora” enunciativo é manifestado ver-
balmente no enunciado. Quando o narrador-Denise faz a apresentação das perso-
nagens, uma parte em off e o restante no set de gravação, ele diz: “Esta semana
Retrato Falado vai contar a história de tia Shenca e da confusão que ela se meteu...
eu não posso falar agora, senão eu vou estragar a surpresa”.
Percebemos que este narrador ao dizer o que o quadro “vai contar”,
apresenta-se na posição de um observador do desenvolvimento do enunciado, crian-
do assim o efeito de sentido de aspectualização
31
, de que o que está acontecendo
na tela está em processo, as ações estão em processo
32
. Em sua manifestação que
instala o narratário-enunciatário no quadro quando está olhando e falando para
a câmera, o telespectador, e o envolve com o uso do “nós” ou “nosso” –, este
narrador-Denise instala também o enunciatário como um observador ao usar ex-
31 Cf. A. J. Greimas e J. Courtés, op.cit., p. 28-30.
32 Cf. J.L. Fiorin, op.cit., p. 139.
110
pressões como “senão vou estragar a surpresa” ou “vocês vão ver” ou ainda “Olha
só a história...”, por exemplo.
Ao mencionar esta posterioridade do tempo que ainda a de vir, “quan-
do ainda não é”
33
, cria uma expectativa para o desenrolar do discurso, do que vai ser
falado, mostrado. Com isso, o telespectador é manipulado a permanecer e assistir
ao quadro em questão. Com o uso do tempo presente, cria-se o efeito de sentido
de que o processar do enunciado, do que está se passando diante de nossos olhos,
é concomitante a nossa vida que é vivida sempre em tempo presente. Fiorin nos lem-
bra que “a temporalidade do enunciador é aceita como sua pelo enunciatário”
34
,
quando esta aceita a manipulação presente no discurso.
Ainda com o discurso na “voz” do narrador-Denise, em sua apre-
sentação em plano médio, ele faz uma referência ao fato que aconteceu, por
exemplo, no episódio citado “A bela que virou fera (em futebol)”. O narrador-
Denise, olhando para a câmera, o telespectador, afirma: “A Senira virou o jogo. Ou
o jogo virou a Senira. Vocês vão ver”. A história mencionada é um acontecimento
que já passou, é anterior ao “agora” enunciativo projetado no texto, porém vai ser
evocado pela memória através do que será contado logo depois, na continuidade
do “agora” da enunciação. Podemos, então, considerar que “o eixo ordenador do
tempo é, pois, sempre o momento da enunciação”
35
, e o tempo do “agora” será o
nosso marco temporal no nosso enunciado.
Esse tempo que “virá depois” será o do desenrolar da história, que
vai se apresentar em tempo presente, que consideramos concomitante ao “agora”
enunciativo. A narrativa é desenvolvida a partir do que é dito pelos interlocutores-en-
trevistados e completada pelos interlocutores-personagens que encenam a história.
Enquanto os entrevistados narram o fato acontecido no passado, a encenação recria
o acontecimento através dos atores-personagens (interlocutores-personagens) que
revivem o “passado” em tempo presente, apresentam-se no “agora” e suas falas
têm como referência temporal este mesmo tempo enunciativo.
33 J.L. Fiorin, op.cit., p. 143.
34 Ibid.
35 Ibid.
111
Segundo Médola, em seu estudo sobre telenovela, o que se encontra
é uma ênfase na representação de um tempo sempre presente ou concomitante ao
vivido pelo telespectador, mesmo em se tratando de novelas
36
de épocas (passadas
ou futuras), criando assim o efeito de sentido de uma temporalidade similar à da
cotidianidade
37
. Citemos um outro exemplo do episódio “Marias Cecílias”. Nele, o
ator-Shenca, figurativizado por Denise, diz a mãe: “... mamãe, a gente providencia
uma sopa pra senhora agora mesmo...”. Temos aqui a simulação do tempo pre-
sente, uma manifestação da projeção do “agora” da enunciação.
Entendemos que todo o desenrolar da narrativa que definimos como
“ficção” a encenação da história contada apresenta-se tendo como referência
o marco temporal da enunciação, o “agora”. Esta debreagem temporal enuncia-
tiva de segundo grau relacionada com a mesma debreagem que se em relação
a “voz” do discurso, como vimos anteriormente, cria-se um efeito de sentido
de simultaneidade
38
do tempo da história, a qual se passa no tempo presente, o
“agora” da enunciação, com o tempo vivido por nós. No episódio “A verdadeira
carga pesada”, uma fala do ator-Terezinha, figurativizado por Denise, evidencia este
tempo presente na história. Terezinha quer aprender a dirigir caminhão como o
marido que é caminhoneiro, mas ele não quer ensiná-la por ela ser mulher. Então,
ela diz ao marido: “Hoje em dia não tem mais esse negócio, não. Nós estamos na
década de 70!”. Com isso, usando o tempo presente, a história apresenta-se em
simultaneidade com a temporalidade de nossa vida, possibilitando a identificação
do telespectador com o que se passa na tela.
No episódio “Dente por dente, ou jaqueta por jaqueta”, o tempo
passado do acontecimento também é trazido para o “agora” da narração, mas é
utilizado para um outro efeito, causar o riso no telespectador. Em sua apresentação
no início do quadro, o narrador-Denise nos revela que o episódio foi realizado para
comemorar os 30 anos do Fantástico que aconteceu em 2003. Conta a história de
36 Entendemos que não são somente as telenovelas que criam esta temporalidade similar à “realidade”, mas
todo produto que se utilize da ficção como mini-séries, seriados, séries etc.
37 Cf. A.S. Médola, op.cit., p. 81-6.
38 Este efeito de sentido de simultaneidade tem estreita ligação com o efeito de verossimilhança que já cita-
mos, mas que ainda iremos tratar no próximo tópico.
112
uma mãe, Mariza da Silva, que perdeu um dente no dia do casamento da filha, um
domingo, antes da cerimônia.
No domingo do casamento, ao escovar os dentes pela manhã, Mariza
ouve um barulho na pia, mas não sabe o que causou o ruído. Quando ela se olha
no espelho, percebe que o pivô do seu dente da frente tinha caído pelo ralo. Depois
desta seqüência, entra a entrevista de um dentista que afirma: “O pivô teria que
ser substituído. Mas como esta história foi a vinte anos atrás o procedimento era
mais demorado. Hoje em dia, de um dia para o outro, ela teria o dente”. Temos o
dentista, interlocutor-entrevistado, que usa o tempo presente da narração para fazer
sua consideração do acontecido no passado.
Com a revelação do início, feita pelo delegado do enunciador, o nar-
rador, é evidenciado que se tratava de um acontecimento que poderia ter ocorrido
até 30 anos anteriores àquele ano. Com a fala do dentista, se pontua o tempo do
acontecido, 20 anos atrás. Com estas informações apresentadas ao enunciatário,
entra a encenação com o ator-Mariza, vivido por Denise, que, com base na fala
do dentista, diz: “Ah, eu não posso esperar 20 anos pelo avanço da odontologia,
o casamento é hoje”. Temos aqui o uso do tempo presente na narração tanto do
dentista quanto da personagem que cria a “simultaneidade”, mas o humor surge
da fala do ator-Mariza que não saberia, na época do acontecido, os avanços que a
odontologia faria e poderia solucionar seu problema rapidamente.
Este tempo presente utilizado durante a encenação da história reitera
um outro efeito de sentido, o de verossimilhança. Com o desenrolar da história
acontecida, por exemplo, nos anos 70 ou 80, de acordo com os exemplos que aca-
bamos de citar, simulando a coincidência do “agora” da enunciação com o “agora”
da recepção, simulando o nosso tempo em que vivemos; temos nos cenários e no
vestuário, por exemplo, uma recriação de possíveis ambientes dos períodos citados.
Tanto num episódio quanto no outro, o uso de objetos e móveis nos cômodos
da casa da personagem principal, daquele período, baseando-se na classe social da
mesma. Com a figurativização do período que se passa o acontecido, reitera-se o
efeito de sentido de verossimilhança como algo possível, provável ou plausível de ter
acontecido.
113
No episódio “Entre o brasão e o passaporte”, além do cenário e ves-
tuário que nos remeter ao período em que se passa a história – durante os anos de
1970, o efeito de verossimilhança é criado também quando são mostradas fotos
da protagonista e ela ppria, Célia Flores (interlocutor-entrevistada), se refere a
moda da época, afirmando que a tanga brasileira fazia sucesso na Europa, onde
tinha passado a morar. Para reiterar a verossimilhança, além da ppria verdade
discursiva, uma inseão de um entrevistado, o ex-marido de Célia
39
, que con-
firma o que ela dizia.
Os diálogos entre estes atores-personagens também são referencial-
izados por este tempo presente. Citemos uma outra fala, do episódio “Marias Cecí-
lias”, do ator-Shenca, com a figura de Denise Fraga, quando conversa ao telefone
com a sobrinha: “Assim que acabar o exame, eu vou com a mamãe para a tua
casa...”. Um outro exemplo que podemos trazer é o do episódio “Debaixo dos car-
acóis dos seus cabelos”. O ator-Geraldo, figurativizado por Antônio Calloni, diz a
esposa, a personagem principal Zuca, vivida por Denise Fraga, para arrumar as malas
e os móveis para se mudarem para um sítio, o seu novo trabalho. Ele diz: “... bota
as nossas coisas nas caixas que amanhã cedo a gente vai embora...”. Podemos dizer
que tanto o ator-Shenca como o ator-Geraldo estão no tempo presente da narrativa,
referindo-se a um futuro em relação a narrativa. Este tempo presente é o “agora”
enunciativo, a projeção do tempo da enunciação no enunciado.
Por outro lado, temos nas falas dos interlocutores-entrevistados, o
tempo pertencente a um “não-agora” que se refere a algo que já aconteceu, a um
passado, um “então”. Por exemplo, na fala da sobrinha Maria Cecília (interlocutor-
entrevistada), ainda no episódio “Marias Cecílias”, ela diz: “O porteiro indicou a
rua e ela veio, só que ela achou uma casa, acho, duas quadras acima da minha...”.
Citemos ainda a continuação do exemplo dando do episódio “Debaixo dos caracóis
dos seus cabelos”, na fala de Zuca (interlocutor-entrevistada). Ela conta: “Aí fomos
39 Neste episódio “Entre o barão e o passaporte”, usa-se apenas o áudio da entrevista com o ex-marido de
Célia Flores, a protagonista. A imagem fica por conta do mapa da Alemanha, onde ele mora e sua foto.
Faz-se uso de um recurso comum no telejornalismo em que há o áudio e apenas a foto do correspondente
da emissora que relata fatos ocorridos no exterior ou em cidades muito pequenas e afastadas dos grandes
centros onde não é possível gravar imagens. Este uso é comum para noticiar localidades que estejam em
guerra.
114
pro sítio. Era uma casinha de 3 cômodos...”. Entendemos que estes interlocutores-
entrevistados se referem ao passado, tendo como referência temporal o presente
da narração que coincide com o “agora” enunciativo, porém é uma anterioridade
a este “agora”.
Consideramos que este jogo com o tempo no discurso, tendo o “ago-
ra” da enunciação como referência temporal, reitera o efeito de sentido do que está
sendo contado é real e verdadeiro, pois tudo o que é dito pelos interlocutores-entre-
vistados se refere a uma história ocorrida no passado, antes do tempo apresentado
na narração. Além disso, todas as falas que constroem a “ficção” – a encenação da
história pelos personagens – cria o efeito de simultaneidade com o tempo de quem
está assistindo ao quadro, bem como reitera o efeito de verossimilhança, que é pos-
sível ou provável ser “verdade”, plausível, o que se passa na tela da tevê.
A PROJEÇÃO DO ESPAÇO
No que se refere ao espaço, entendemos que uma projeção do
“aqui” da enunciação no enunciado no qual acontece a narração do narrador-Denise
(“eu”, projeção da enunciação), no estúdio de gravação. Entendemos que “o es-
paço da narração é sempre um aqui, projetado ou não no enunciado”
40
. Em Retrato
Falado, esta projeção do “aqui”, o estúdio de gravação, se pela manifestação
deste espaço, como já observado, com a movimentação de pessoas compondo o lo-
cal como set de filmagem, equipamentos de gravação e pelo próprio ator-narrador-
Denise, por exemplo, tendo seu cabelo arrumado por uma outra pessoa, o que nos
faz ver que está se caracterizando para entrar em cena. É o espaço do delegado do
enunciador, o narrador-Denise (projeção do “eu) que fala no “aqui”, projetado pela
enunciação, constituindo assim numa debreagem enunciativa da enunciação
41
.
Entendemos que este espaço do estúdio de gravação é também o
espaço dos personagens na “ficção”, os interlocutores-personagens. Identificamos
que a visualidade do cenário nos mostra que o local onde o narrador-Denise se apre-
40 J.L. Fiorin, op.cit., p. 291.
41 Ibid.
115
senta é o mesmo em que os personagens encenam. Apontemos, por exemplo, o
episódio “O ABC do ciúme” (Figura 14). Na apresentação do ator-narrador-Denise,
que está diante de um espelho de camarim, há por trás de seu primeiro plano, uma
cozinha pela composição do cenário que possui objetos de cozinha, cortina ver-
melha numa janela basculante e uma parede de azulejos brancos e vermelhos. Ao
entrar a primeira cena, com o ator-Quitéria, figurativizada por Denise Fraga, temos o
mesmo cenário como a mesma janela e cortina e a parede com os mesmos azulejos,
mas com enquadramento e disposição de objetos para a cena apresentada.
Este mesmo procedimento acontece também em outros episó-
dios como “O primeiro biquíni a gente nunca esquece” em que o cenário por trás
de onde está o narrador-Denise é um quarto com uma penteadeira e um aba-
jur vermelho, o mesmo cenário onde se desenrola a primeira seqüência de cenas
(Figura 14). Outro episódio é “A verdadeira carga pesada” em que o cenário que se
dá a apresentação de Denise é o mesmo que se desenrolam as cenas: uma cozinha
com uma geladeira verde. Entretanto, entendemos que, ao se encerrar a participa-
ção do narrador-Denise, instala-se o narrador implícito como vimos, e este, oni-
sciente e onipresente, nos faz ver suas escolhas de falas, imagens, enquadramentos,
sons no desenrolar do quadro, bem como delega a “voz” do discurso a interlocu-
tores. Este narrador é a projeção de um “não-eu” no enunciado e seu espaço é a
projeção de um “não-aqui”.
Com esta narração deste narrador implícito, o espaço que nos é apre-
sentado é o do enunciado em que se localizam os interlocutores que são delegados
por este narrador. Por exemplo, no episódio “Entre o brasão e o passaporte”, a
interlocutor-entrevistada Célia Flores, em sua primeira participação, diz: “Moro em
Brasília e trabalho no Itamaraty”. Temos o espaço onde este interlocutor vive e está
demarcado no enunciado a partir desta delegação de “voz”; é o “lá” enuncivo que
se constrói no texto.
116
Na seqüência do quadro, o espaço mencionado nos vários episódios é
figurativizado por várias cidades e até mesmo por outros países. Por exemplo, as ci
-
dades de Presidente Epitácio e Presidente Prudente, ambas no estado de São Paulo,
são o espaço onde se desenrola a história do episódio “Marias Cecílias”. É o “lá”
enuncivo que se manifesta na narrativa. Observamos que este “lá” está em con
-
comitância ao tempo passado usado pelos interlocutores-entrevistados, reiterando
a construção do efeito de sentido de verdade e realidade. São estes interlocutores
que verbalizam o nome das duas cidades citadas.
No episódio “Entre o brasão e o passaporte”, citado, temos vários
espaços diferentes onde se passa a narrativa. Como dissemos, a protagonista
Célia Flores vive em Brasília-DF; a um certo ponto, passa a morar na Suíça e, em
seguida, vai de férias para as Ilhas Gregas. A narrativa manifesta o “lá” enuncivo por
estes diversos lugares. Esta manifestação se pela oralidade do nome dos locais
que delimita onde se passam as ações. A partir daí, a encenação da história tem
sua localização mesmo que visualmente as cenas se passem basicamente em estúdio
e não seja manifestada nenhuma característica visual do lugar “real” possível de ser
reconhecida. É um procedimento que instala assim o espaço enuncivo, o “lá”, no
enunciado.
Observando o conjunto dos episódios presentes no DVD, entendemos
que o espaço construído em cada narrativa é um espaço pertencente ao Brasil. As
protagonistas que são entrevistadas pertencem cada uma a uma cidade diferente
que é manifestada oralmente, pelo seu nome, ou é trazida pela visualidade com
FIGURA 15
Cenas do episódio “A verdadeira carga pesada”: a apresentação é feita no cenário
117
imagens do local. Assim, Retrato Falado se constrói como “brasileiro”, está no es-
paço do Brasil, trazendo a cada domingo uma mulher, uma brasileira, que pertence
a um lugar diferente do país.
A ENUNCIAÇÃO E O SINCRETISMO DE FORMATOS
Observamos que o enunciador em Retrato Falado se utiliza de um
sincretismo de formatos televisivos para construir o seu discurso. Para designar a
presença de mais de um formato televisivo em um produto televisual, comumente é
utilizado o termo hibridismo. No entanto, optamos por usar o termo sincretismo por
pertencer ao campo da semiótica, além do próprio termo designar um procedi-
mento ou seu resultado que consiste em estabelecer a presença de dois ou vários
42
formatos combinados que manifestam um novo produto com uma única totalidade
de sentido.
Entendemos que em Retrato Falado temos a presença dos formatos
de “documentação” e “ficção”. São nas estruturas do nível discursivo que é pos-
sível observar os dois formatos televisivos e considerar este procedimento como uma
estratégia de manipulação e um certo tipo de ajustamento com o telespectador.
Neste caso do quadro em questão, o uso destes dois formatos contribua para criar
um discurso que “leva ao riso”.
Ao longo do discurso de Retrato Falado, observamos uma “alternân-
cia” entre a documentação e a ficção. O formato que chamamos de “documen-
tação” está presente na construção discursiva que cria os efeitos de sentido de
verdade e realidade que ocorre quando os interlocutores-entrevistados contam a
própria história. Como explicado, os recursos deste formato é amplamente uti-
lizado em programas de notícias e de entrevistas na televisão brasileira, assim, está
implícito e estabelecido para este telespectador o contrato de veridicção, ou seja, o
dizer-verdadeiro do discurso do quadro “parece e é verdadeiro”.
42 Cf. A. J. Greimas e J. Courtés, op.cit. p. 426 (verbete: sincretismo).
118
Entretanto, paralelamente (ou em união), o quadro também constrói o
efeito de sentido de verossimilhança que o discurso é possível ou provável ter acon-
tecido ou acontecer por não contrariar o nosso mundo cultural e natural; é plausível,
“parece ser verdadeiro”. Esta construção é evidenciada quando temos a “encena-
ção” da história, a ficção, que está sendo contada pelos interlocutores-entrevistados.
Neste formato, o enunciador tem um leque maior de possibilidades de produção de
um discurso sensível, que faça o enunciatário senti-lo, e por que não, vivê-lo?
Outro procedimento que contribui observar a utilização dos dois for-
matos televisivos no quadro é o uso pelo enunciador de um mesmo ator ser figura-
tivizado de mais de uma forma: manifestado pelo pessoa “real” e pelo profissional
que representa durante a encenação.
Entendemos, com isso, que Retrato Falado se utiliza destes dois for-
matos (documentação e ficção) para mostrar um fato “real” acontecido no cotidia-
no de uma mulher comum que pode ser qualquer pessoa que assiste ao quadro,
pois esta se relaciona com tantas outras durante a vivência do fato. Porém este fato
“real” é engraçado e, para elucidar esta dimensão do risível e sensível, o discurso se
utiliza do recurso da ficção que cria o efeito de sentido de verossimilhança o qual
liberdade ao enunciador em “explorar” o humor, a comicidade do ocorrido, além da
dimensão estésica do enunciatário.
Assim, entendemos que a manipulação no quadro em questão, utili-
zando-se dos dois formatos apontados, tem a intencionalidade de fazer um discurso
que leva ao riso, que faça seu enunciatário, o telespectador, rir do que vê diante de
si. E, pela identificação com os atores do discurso, também passe a observar fatos
simples e risíveis de seu próprio cotidiano e saiba rir de si mesmo.
Além disso, o formato ficção abre amplas possibilidades para o enun-
ciador utilizar a dimensão sensível do discurso em questão. Com a exploração do
fazer sentir, o enunciado apresenta-se com um potencial a levar o enunciatário a
sentir o que o outro sente, os atores do próprio enunciado, e, pela sua percepção
sensível, levá-lo a dimensão estésica, um possível “contágio”. Trataremos mais a
respeito dos regimes de estratégia ou manipulação e sensibilidade ou ajustamento
no capítulo 5.
120
Tematização e figurativização
e o plano da expressão:
o discurso que leva ao riso
TEMA
T
TEMA
TEMA
IZAÇÃO EM
RET
R
RET
RET
ATO FALADO
R
R
Chegamos a apontar anteriormente alguns temas e figuras nos nossos
enunciados em análise. Aqui pretendemos mostrar que o riso ao qual o discurso nos
leva se pela concretização de sua estrutura sêmio-narrativa através dos procedi
-
mentos de tematização e figurativização que assegura a sua coerência semântica
vale ressaltar que estes procedimentos são tarefas do sujeito da enunciação.
Para Greimas e Courtés
1
, a tematização é um procedimento que toma
os valores fundamentais atualizados (em conjunção ou disjunção com sujeitos)
no nível narrativo e dissemina sob a forma de temas pelos programas e percursos
narrativos para uma eventual figurativização. Trataremos sobre a figurativização no
próximo tópico.
Observando todos os episódios do DVD de
Retrato Falado
, temos uma
recorrência de temas ligados ao universo feminino que recebe o investimento figu
-
rativo de diversas formas e, através destes temas, os episódios nos revelam quem é
a mulher brasileira apresentada pelo destinador Rede Globo: como ela é, o que faz,
o que gosta etc. Um dos temas tratados é o da beleza feminina. No episódio “De
cabelo em pé”, por exemplo, a história gira em torno do tema da beleza feminina
em relação aos cuidados com o cabelo.
1
Cf. A.J. Greimas e J. Courtés,
Dicionário de semiótica
, p. 454 (verbete: tematização).
4
121
Na narrativa, em busca de embelezar-se, o sujeito do fazer recebe o
investimento figurativo de nome Isabel, tornando-se um ator que decide fazer refle-
xo
2
no cabelo antes de viajar com a família para a praia. O ator-Isabel (interlocutor-
entrevistada) diz: “Eu resolvi pintar meus cabelos de última hora. estavam todos
os preparativos arrumados, né? Ah, eu disse: não vou com esse cabelo todo feio,
vou fazer alguma coisa diferente”. Com isso, o ator-Isabel apresenta-se em papéis
temáticos de esposa prestativa que cumpre os afazeres domésticos e mulher vaidosa
que gosta de se arrumar.
Logo no início do episódio, depois da fala do ator-Isabel manifestada
pela protagonista entrevistada; um diálogo entre o ator-Isabel com a figura da
atriz Denise Fraga e do ator-marido figurativizado pelo artista Otávio Muller, em que
a esposa informa que vai fazer reflexo no cabelo enquanto o marido vai buscar o
caminhão, veículo com o qual vão à praia. O ator-marido pergunta: “Mas pintar o
cabelo pra quê, mulher? O seu cabelo está ótimo!”. O ator-Isabel responde, per-
guntando desde quando ele repara no cabelo dela para dizer que “está ótimo!”.
Na continuação da conversa, ela afirma que o marido sempre diz que o cabelo dela
“está ótimo!” para se livrar das perguntas que ela faz sobre a sua beleza.
Neste exemplo, temos no tema da beleza feminina a importância para
a mulher em cuidar do próprio cabelo e deixá-lo agradável. Paralelo a isto, a
manifestação de que o homem, o marido, não costuma reparar no que ela faz no
cabelo. Para reiterar esta diferença, em seguida ao diálogo, entra uma animação
gráfica que afirma: “... enquanto os cabelos dos homens servem apenas para serem
penteados, os cabelos das mulheres passam por processos bem mais complicados
tais como alisamentos, toucas, escovas, tinturas...”. Ao término da animação, entra
um povo fala
3
somente com homens, perguntando a eles o significado dos nomes
de processos e técnicas – citados na animação – usados pelos cabeleireiros para tra-
tar ou modificar os cabelos. Nenhum dos entrevistados conhecia as técnicas ou os
processos indagados.
2 Reflexo é um recurso para deixar o cabelo com mexas finas em tom dourado espalhadas pelo couro cabelu-
do.
3 Povo fala ou Fala povo é uma expressão usada no telejornalismo e radiojornalismo para designar uma seqü-
ência de pequenas entrevistas com pessoas anônimas.
122
outro aspecto do tema da beleza trazido por este episódio. Apre
-
senta-se que vale a pena fazer sacrifícios e sofrer para ficar bela. Na seqüência da
narrativa, é mostrado o ator-Isabel, na figura de Denise, diante do espelho, fazendo
o reflexo. Com uma touca de borracha na cabeça, puxa os primeiros fios do cabelo
a serem tingidos com uma agulha de crochê. Mas ela sente dor e diz: “Aí, caramba,
isso dói! Seja forte, Isabel. Não pense na dor, pense no resultado. Você pode sofrer
um pouco agora, mas em compensação o seu marido... mas o pior é que ele nem
vai reparar. Mas não faz mal... porque ele pode não reparar, mas em compensação
todos os homens da praia vão ficar caidinhos por você”.
Além do sofrimento para alcançar a beleza, esta fala do ator-Isabel
traz um outro elemento. Embora que o marido não repare, outros homens vão pres
-
tar a atenção na sua beleza, nos cuidados com seus cabelos. A figurativização deste
aspecto do tema se dá justamente na seqüência de cenas da participação do casal,
o ator-Isabel e o ator-marido, num show que acontece na praia onde estão passan
-
do férias. Ela mostra-se tão animada, dançando, que é paquerada pelos homens a
sua volta, além de ganhar um prêmio concedido pela banda para quem dançasse
melhor. Com estes acontecimentos, o marido fica enciumado e decide que devem
voltar para casa antes do tempo previsto por eles de retorno das férias.
FIGURA 16
Cenas do episódio “De cabelo em pé”: o ator-isabel pintando o cabelo
e a sua participação com o marido em um show
123
Esta temática da mulher cuidar dos cabelos e o marido não prestar
atenção no que foi feito é trazida também em outros dois episódios: “Dente por
dente, ou jaqueta por jaqueta” e “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”. No pri-
meiro, o tema é figurativizado por uma seqüência de cenas do ator-Mariza, na figura
de Denise, que vai ao cabeleireiro para fazer mechas
4
no cabelo para ir ao casamen-
to da filha dois dias depois. Mas a cabeleireira faz mechas em três cores (vermelho,
amarelo e marrom) que não agradam o ator-Mariza. Ao chegar em casa, chateada,
diz ao ator-marido: “Olha o que fizeram comigo!” e ele não entende o motivo da
afirmação. Então, o ator-Mairza diz: “Você não está notando nada de diferente em
mim?”. O ator-marido indaga: “O batom? O brinco?”. E ela irritada diz: “Ah, isso é
demais! Tudo bem que homem não repara quando a mulher corta o cabelo, mas eu
estou com um arco-íris na cabeça, Santo Deus!”.
Quanto termina esta seqüência, entra um povo fala sobre o assunto –
recurso utilizado no episódio citado antes –, perguntando se o homem nota quando
a mulher faz alguma mudança no cabelo. O primeiro entrevistado afirma: “Se for a
minha mulher eu não percebo, mas se for a mulher dos outros, eu percebo”. Uma
jovem diz desanimada: “É uma pena, porque a gente gasta o maior dinheiro pra
ficar bonita e ninguém repara”. Por fim, um jovem conclui: “São poucos homens
que reparam na mulher quando ela faz algo diferente no cabelo. Tanto é que, ge-
ralmente, quando elas fazem, o que elas falam é o seguinte: você viu que eu mudei
meu cabelo?”.
O outro episódio que trata da beleza feminina em relação aos cuida-
dos com os cabelos é “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”. Neste, o ator-Zuca
quer cortar os cabelos longos que estava achando-os feios (“esta juba”), porém
o ator-marido não a deixa cortá-los. O ator-Zuca, então, decide não pentear mais
os cabelos para fazer com que o marido, ficando “feia”, permita que ela os corte.
Reiterando a mesma idéia de que o homem não percebe a mudança nos cabelos da
companheira, este episódio traz que o ator-marido de Zuca não percebia os cabelos
da mulher longos e despenteados, considerados pela esposa “uma coisa horrível”
os próprios cabelos.
4 Neste caso, o que o cabelo é descolorido em mechas largas em um tom louro muito claro, quase branco.
124
Nestes exemplos, o cuidado feminino com a beleza dos cabelos é bas
-
tante evidenciado por considerar um atributo importante, diríamos essencial, para
compor a própria beleza, embora que para isso seja preciso passar por sacrifícios.
Para esta mulher, vale sofrer para ser bela, apesar de saber que o companheiro possa
não perceber a mudança no seu visual como ela gostaria, particularmente, quan
-
do ela faz algum tratamento ou mudança nos cabelos. Assim, em
Retrato Falado
,
constrói-se uma mulher que se preocupa com a própria beleza, de modo particular,
com o cuidado dos cabelos e é capaz de fazer sacrifícios para conquistá-la. Além dis
-
so, tem consciência de que outros homens a notarão e ainda poderá ser paquerada,
causando ciúmes ao companheiro.
Mas ainda outro aspecto importante trazido pelo quadro em re
-
lação à beleza feminina: ser magra. No episódio “Entre o brasão e o passaporte”,
com o cancelamento de seu casamento pelo ator-noivo húngaro, o ator-Célia fica
deprimida e emagrece quatro quilos em duas semanas. O ator-Célia, figurativizado
por Denise, falando para o telespectador (olha para a câmera), diz como fazer para
emagrecer como se fosse uma “receita de cozinha” ensinada em um programa de
culinária na televisão. Diz: “Minha amiga, hoje nós vamos aprender como perder
quatro quilos em apenas duas semanas. Vamos lá....”. Esta construção é realizada
de forma jocosa e divertida como veremos no tópico da figurativização.
FIGURA 17
Cenas do episódio “Dente por dente, ou jaqueta por jaqueta”:
o povo fala sobre beleza feminina
125
Outro episódio que traz o “ser magra” como um atributo importante
na beleza feminina é “Dona-de-casa unida jamais será vencida”. Na narrativa, o
sujeito do fazer Nadja busca que o seu trabalho doméstico seja reconhecido pelo
sujeito João, seu marido. Para entrar em conjunção com o seu objeto-valor, o sujeito
Nadja manipula o sujeito João por provocação, realizando programas de uso como
deixar de limpar a casa, deixar de varrer a casa, deixar de preparar o almoço etc.
Passando para o nível discursivo, o sujeito do fazer recebe o investimento semântico,
cumprindo o papel temático de uma esposa prestativa e cumpridora dos afazeres
domésticos. Entretanto, para alcançar o reconhecimento de seu trabalho, os pro-
gramas de uso são figurativizados pela “greve” do ator-Nadja que deixa de fazer os
serviços de casa. Esta é a temática central da narrativa deste episódio.
Entretanto, logo no início, quando o ator-Nadja (interlocutor-entre-
vistada) conclui a sua exposição de cada um dos seus trabalhos domésticos ma-
nifestação do tema do trabalho; o enunciador insere uma animação gráfica que
evidencia que o trabalho doméstico feito pela mulher contribui para as perdas de
calorias necessárias para emagrecer. Entendemos que a narrativa do sujeito Nadja
apresenta valores ligados ao reconhecimento do trabalho, mas, no nível discursivo,
o enunciador faz o investimento semântico do tema trabalho com acréscimo de
sentido através da figurativização que se dá pela animação gráfica que traz que os
afazeres domésticos levam a perda de calorias.
Na animação, o desenho de mulher com o rosto de Nadja vai pas-
sando por cada cômodo da casa e vai realizando afazeres domésticos e em cada
atividade realizada, as calorias perdidas são mostradas na tela, por exemplo, “...
140 arrumando as camas; 170 cozinhando; 350 cuidando do jardim...”. No final,
a boneca Nadja surge em cena “magra”, porém com os cabelos assanhados, e ao
lado dela, o número de 1.780 calorias perdidas com a arrumação da casa. Neste epi-
sódio, Retrato Falado nos mostra que a beleza pode ser adquirida com as próprias
atividades domésticas que estão ligadas às atividades femininas.
No episódio “Baixaria nas alturas”, o enunciador usa a mesma es-
tratégia para abordar o tema “ser magra” como atributo da beleza feminina. Na
126
narrativa, o sujeito Ruth entra em conjunção com uma promoção no trabalho, seu
destinador, e passa a
dever fazer
viagens por todo o Brasil. Entretanto, este sujeito
fazer
patêmico, em estado de tensão
não-quer-ser
, tem medo de voar de avião, meio pelo
qual deve fazer as viagens. No nível discursivo, o ator-Ruth cumpre o papel temático
de trabalhadora que deve viajar para cumprir suas tarefas e o papel patêmico de
uma pessoa que tem medo. Temos uma narrativa com temas ligados ao trabalho e
ao medo.
Em uma de suas viagens, o ator-Ruth, desesperada por estar voando
de avião, diz: “Por que eu não fui a pé? Ainda perdia uns quilinhos!”. Neste mo
-
mento, entra uma animação mostrando a distância de 5.290 km entre Manaus e
Belém, o trecho que o avião percorreria. A animação ainda mostra que se pode fazer
este percurso de balsa em 96 horas e, finalmente, se pode ir a o que demoraria
oito dias. E conclui: “Nesta viagem, Ruth perderia 130.000 calorias”. Entendemos
que o enunciador se utiliza da imagem do ator-Ruth (interlocutor-entrevistada) que
se mostra acima do peso e traz para o texto o tema do emagrecimento a partir da
perda de calorias através da caminhada.
FIGURA 18
A protagonista Ruth e a animação gráfica sobre
“ser magra” do episódio “Baixaria nas alturas
Mais um exemplo que completaria esta temática da beleza é o episó
-
dio “Anjos da guarda, ou melhor, da aeromoça”. O ator-Márcia é aeromoça e, para
ir ao trabalho, sai da praia do Guarujá, onde estava passando o final de ano com
127
a família, para ir ao aeroporto de São Paulo. No caminho, um enorme engarra-
famento por conta de uma queda de uma barreira. O ator-Márcia estava pronta
para o trabalho, estava vestida com o uniforme da empresa, com o cabelo arrumado
e maquiada. Com os carros parados, pergunta a um motorista o que tinha aconteci-
do. Ele responde, mas começa a paquerá-la com olhares insinuantes, solta um beijo,
além de dizer: “... a gata aí está no lugar certo. Além de aeromoça é um tremendo
avião”. Temos aqui a reiteração de que, com a aparência de bem cuidada, a mulher
chama atenção de outros homens, é paquerada.
Com o que apontamos até aqui, a beleza em Retrato Falado é um
atributo essencial para mulher. Constrói-se uma mulher que tem boa aparência por
cuidar e manter os cabelos bonitos, mesmo que, em contrapartida, seu compa-
nheiro não perceba. Se precisar fazer sacrifícios, esta mulher acha que vale a pena,
porque outros homens a notarão, irão paquerá-la. Esta mulher também busca ser
magra: mais um elemento para compor a sua beleza. Para isso, ela precisa perder
calorias, embora seja exercendo os trabalhos domésticos. Assim o quadro constrói
um papel temático da mulher brasileira: o papel de uma mulher que gosta de se ar-
rumar, embelezar-se – mesmo com sacrifícios – para apresentar-se bem às pessoas,
aos homens – companheiros ou não.
A partir dos episódios citados, levantaremos outros temas que estão
presentes nos exemplos. Apontamos que um deles é a subordinação ou submissão
da esposa às vontades do marido, a um certo “poder masculino”. Dissemos que,
no episódio “De cabelo em pé”, o ator-Isabel cumpre o papel temático de esposa
prestativa que realiza os afazeres domésticos além do papel temático de mulher
vaidosa que gosta de se arrumar, como observado. Isabel afirma que tinha
preparado tudo para a viagem à praia com o marido e a família, então decide fazer
reflexo no cabelo, porque não iria com o “cabelo todo feio”.
Quando faltavam 15 minutos para tirar a tinta do cabelo, o ator-ma-
rido, na figura do artista Otávio Muller, manipula o ator-Isabel (Denise Fraga) por
intimidação para que ela ao banco para sacar dinheiro para eles poderem viajar.
Ele diz: “Bom, você escolhe: ficar loira em casa ou continuar morena, mas vai para
128
a praia”. O ator-Isabel, irritada, decide ir ao banco, mas não iria lavar a tintura antes
da hora. E afirma: “Pois você vai ver como é que eu vou a essa praia. E loira!”. O
ator-Isabel faz a vontade do marido e, depois de muitas peripécias divertidas para ir
ao banco sem tirar a tinta do cabelo, perde a hora certa de lavar o cabelo que ficou
em três cores branco, alaranjado e vermelho. Apesar de tudo, no final, eles viajam.
E por conta dos ciúmes que ela causou ao marido pelo seu divertimento no show,
como dissemos antes, eles voltam mais cedo para casa, por decisão dele. Temos
aqui uma mulher que faz o que o marido quer, mostrando-se cumpridora de seu
papel de esposa, porém não deixa de lado suas vontades nem de se divertir.
Ainda sobre o tema da subordinação ou submissão da mulher ao ma-
rido, temos o episódio “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”. Como dissemos, o
ator-Zuca quer cortar os cabelos longos, mas o ator-marido não deixa cortá-los. Ela
fica inconformada com a posição do companheiro. No desenrolar da história, eles
se mudam para trabalhar num sítio onde não haveria companhia de outras pessoas.
Sem ninguém por perto para vê-la, além do marido, o ator-Zuca decide, então, não
pentear os cabelos, assim ficaria “feia” e “obrigaria” o marido a deixá-la cortar os
cabelos. No final do episódio, o ator-Zuca, de fato, corta os cabelos; o ator-marido
permite que a esposa o faça, porém manda a irmã informar a sua decisão a Zuca
que, feliz, vai ao cabeleireiro.
Este episódio também nos traz a subordinação ou submissão da es-
posa às decisões do marido, porém com uma história que o aborda com mais in-
tensidade. Entretanto, Zuca tem o mesmo posicionamento de Isabel: cumpre o seu
papel de esposa, mas também não deixa de fazer suas vontades. Com a decisão
de não pentear os cabelos, ela não contraria a vontade do marido e, ao mesmo
tempo, é uma estratégia criada para convencê-lo a deixá-la cortar os cabelos. Com
isso, Retrato Falado constrói uma mulher brasileira que cumpre seu tradicional pa-
pel de esposa, companheira e dona-de-casa, mas, ao mesmo tempo, sabe articular
estratégias para conquistar também os seus objetivos. Esta mulher não propõe uma
mudança diante deste “poder masculino”, não propõe algo de novo nesta relação,
simplesmente cria suas formas de driblar este “poder”, mantendo-se assim a ordem
social vigente.
129
Resolvemos enfocar mais de perto o tema da subordinação ou sub-
missão da mulher por está bastante evidenciado, de modo particular, no episódio
que acabamos de analisar, “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”. Entretanto,
consideramos este tema englobado num tema mais amplo, o da relação de casal, de
marido e mulher. Mostramos a relação que Isabel e Zuca têm com os seus maridos,
uma relação quase de submissão. Mas há outros modos de se relacionar como é o
caso de Shenca e seu marido Godoy no episódio “Marias Cecílias”. Nesta narrativa,
os sujeitos Shenca, o seu marido Godoy e sua mãe vão visitar a sobrinha Maria Cecí-
lia e erram o endereço e, sem saber, entram numa casa de uma outra Maria Cecília,
vizinha da sobrinha.
O ator-Shenca cumpre alguns papéis temáticos: de mulher faladeira
e invasiva por se meter na vida dos outros; de filha dedicada por acompanhar a
mãe ao médico; de esposa que sabe cuidar da casa. Entretanto, a combinação dos
papéis de esposa e faladeira e invasiva faz com que o ator-Godoy assuma um per-
curso temático que se apresenta como um marido impaciente e intolerante com os
falatórios exagerados da esposa. vários diálogos entre o casal que figurativizam
esta relação.
Cumprindo estes referidos papéis temáticos, a relação de Shenca e
Godoy faz com que o marido se irrite com a esposa, criando um clima de “estresse”
por parte dele. Shenca mostra-se como uma pessoa que nem percebe o que o ma-
rido está dizendo, não atenção ao que ele acha das situações. Mostra-se quase
indiferente as suas opiniões. E ele ressentido, fala com a esposa com impaciência e
irritação. Apresenta-se uma relação não de subordinação ou submissão por parte da
mulher, mas quase de revolta por parte do marido pelas características da esposa.
No episódio “O ABC do ciúme”, a narrativa traz o sujeito Quitéria
como patêmico, modalizado pelo ciúme em relação ao marido. É também um sujei-
to disjunto de ser alfabetizado, não sabe ler. No nível discursivo, os temas do ciúme
e da analfabetização são figurativizados pelo ator-Quitéria como Denise Fraga bis-
bilhotando a carteira do marido enquanto ele não estava por perto. O ator-Quitéria
encontra um papel “cheio de coraçõezinhos” e diz: “isto está parecendo coisa de
130
mulher”. Por não saber ler, pede a uma amiga para ler o que estava escrito no papel.
A amiga também não era alfabetizada informação que o ator-Quitéria desconhe-
cia mas, fingindo ler, inventou uma história de que era uma carta da amante do
marido de Quitéria.
O ator-Quitéria briga com o marido e decide sair de casa, embora o
ator-marido negasse que tinha uma amante. O ator-Quitéria, para provar a existên-
cia da amante, voltou à casa da amiga para que ela lesse de novo o nome da mulher.
Nesta segunda ida, descobriu pela irmã da amiga que ela não sabia ler. Então, as três
levaram o papel para uma menina alfabetizada. Com isso, o ator-Quitéria descobriu
que o que estava escrito era a oração do Pai Nosso que a mãe do marido tinha dado
ao filho. Por fim, Quitéria decide e aprende a ler.
Ainda no tema da relação de casal, o episódio “Entre o brasão e o pas-
saporte” traz um novo aspecto. O ator-Célia vai morar na Suíça transferida pelo seu
trabalho no Itamaraty. Lá ela conhece um homem rico, húngaro, por quem se apai-
xona e, então, eles decidem casar. No entanto, o ator-húngaro, em dúvidas sobre a
decisão, cancela o casamento. Entristecida, o ator-Célia viaja e conhece um guia tu-
rístico austríaco que é nobre, tem o título de barão. No seu retorno, o ator-húngaro
decide voltar a namorá-la, no entanto o ator-Célia já tinha iniciado o namoro com o
ator-barão. Assim, o ator-Célia fica namorando os dois homens ao mesmo tempo.
Embora dividissem a mesma mulher, os dois namorados decidem se conhecer e se
tornam amigos, chegam até a jogar tênis juntos. Temos aqui uma relação adversa
das demais apresentadas.
Este tema da relação de casal é trazido ainda no episódio “A verda-
deira carga pesada” que também se passa na década de 1970. O ator-Terezinha
convence o marido que a ensine a dirigir caminhão, pois ele era caminhoneiro. O
ator-Marido reluta na decisão “porque caminhão é coisa pra homem”. Entretanto,
insistindo, o ator-Marido ensina-a a dirigir e o ator-Terezinha começa a ajudá-lo nos
serviços de entrega até que um dia ele morre. Assim, o ator-Terezinha assumi defini-
tivamente a profissão de caminhoneira que a faz sustentar os oito filhos. Neste epi-
sódio, o quadro figurativiza a relação entre Terezinha e o marido como uma relação
de companheirismo, de troca entre o casal.
131
O último episódio que manifesta o tema da relação de casal, entre
marido e mulher, é “A bela que virou fera (em futebol)”. Mostra uma certa insatis
-
fação por parte do ator-Senira em relação ao marido, o ator-Clóvis, pois ele não
a atenção que a esposa gostaria por estar muito voltado ao universo esportivo do
futebol. O ator-Senira faz de tudo para chamar a atenção do ator-Clóvis quando
este se encontra ligado a alguma partida de futebol na televisão ou no rádio. A um
certo momento, cansada de sentir-se colocada de lado, trocada até pelos amigos
do futebol, o ator-Senira (interlocutor-entrevistada) afirma: “Se você não vence o
inimigo, você tem que se juntar a ele”. A partir daí, o ator-Senira passa a estudar
as regras do futebol, ir aos jogos com o marido nos estádios, assistir aos que eram
exibidos pela televisão. Deste modo, o casal se reaproximou e o ator-Senira sente-se
parte da vida do marido.
Com todos estes modos de tratar o tema da relação entre marido e
mulher, na maioria dos episódios, o final traz a reconciliação do casal. Por exemplo,
no episódio “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”, o ator-Zuca (Denise), após
cortar os cabelos, reencontra-se com o marido e se mostra com o cabelo curto, com
os ombros e as orelhas a mostra. O ator-marido (Antônio Calloni) afirma: “Você
sabe, eu vendo essas suas maravilhas, assim, tudo de fora, tá me dando umas idéias
aqui na minha cabeça...”. E, com isso, o marido sorrindo, carrega a esposa e os dois
felizes entram em casa.
FIGURA 19
Cenas de Quitéria, Célia, Terezinha e Senira em suas relações com o marido
132
Acontece também a mesma situação de alegria com os casais Nadja
e João do episódio “Dona-de-casa unida jamais será vencida” em que, na última
cena, se encontram na cama, comendo uvas, assistindo à televisão e João fazendo
massagens nas costa da esposa a pedido dela. No episódio “De cabelo em pé”, o
casal Isabel e o marido, voltando da praia no caminhão, aparentam brigados, mas, a
um certo ponto, o marido diz para a esposa que começava a gostar do cabelo dela
daquele jeito – tinha ficado colorido com o reflexo que não deu certo. E ator-Isabel
(Denise) responde que também gosta daquela “barriguinha” que o marido tem. E
os dois se abraçam felizes.
Com Quitéria e Jorge não foi diferente. Depois de desconfiar que o
marido tinha uma amante, Quitéria insiste para que Jorge a perdoe. Na última cena
interpretada pelos artistas Denise Fraga e Tuca Andrada, o casal encontrava-se na
cama e o ator-Jorge ainda aborrecido estava de costa para a esposa sem querer
conversa. Mas o ator-Quitéria insiste pelo perdão e o marido, sorrindo, diz: “Então,
bom, vamos fazer as pazes” e conclui: ”... vem minha pretinha”, puxando o
lençol sobre eles. A cena final do episódio “A bela que virou fera (em futebol)” se
do mesmo modo. O casal Senira e Clóvis encontra-se na cama, beijando-se, e
também o marido puxa o edredom sobre o casal.
Com o que apontamos, Retrato Falado constrói mais um papel temá-
tico da mulher brasileira. Esta mulher apresentada é uma esposa dedicada, embora,
de vez em quando, viva algumas desavenças com o marido, mas, para manter uma
boa relação, sabe contornar as situações difíceis e conquistar o carinho e atenção do
companheiro. Por vezes, mostra-se submissa, mas não deixa de criar suas próprias
estratégias para alcançar os seus objetivos.
Nos episódios de Retrato Falado, um tema que é trazido de diferen-
tes maneiras: o trabalho. Todas as mulheres que contam suas histórias no corpus em
análise trabalham. Já citamos três donas-de-casa: Quitéria, Zuca e Nadja, a que não
tem seu trabalho reconhecido pelo marido. Terezinha também era dona-de-casa,
mas, no decorrer da história, torna-se caminhoneira. Célia trabalha no Itamaraty, é
transferida para a Suíça e retorna a Brasília, e Ruth cumpre suas tarefas viajando pelo
133
Brasil, embora tenha medo de voar de avião. Ainda temos Isabel que é professora,
informação esta que é apenas citada no final do episódio.
FIGURA 20
Cenas do episódio “Os anjos da guarda, ou melhor, da aeromoça”
No entanto, no episódio “Os anjos da guarda, ou melhor, da aeromo
-
ça”, o tema trabalho é tratado de uma maneira muito diferenciada. Como dissemos,
o ator-Márcia é aeromoça e estava indo ao trabalho de carro quando fica presa num
grande engarrafamento. Com hora marcada para chegar ao aeroporto, fica deses
-
perada porque o trânsito não melhora. Para não perder o emprego, ela decide pegar
uma carona com um motociclista que passava pelo local. Para isso, deixa o seu carro
com um passageiro de um ônibus que também estava preso no engarrafamento e
ele devolveria no dia seguinte ao seu namorado. Com tudo arrumado, o ator-Márcia
pega a carona e chega ao trabalho na hora certa. E o seu carro, de fato, é devolvido
como combinado.
Neste episódio, a narrativa é a busca do sujeito Márcia para cumprir
os deveres empregatícios, chegar pontualmente na empresa. Para isso, convicta,
toma a decisão de fazer de tudo para ir ao trabalho com medo de perdê-lo. Ao final
da narrativa, o sujeito entra em conjunção com o cumprimento do trabalho. Obser
-
vando ainda este episódio, encontramos um outro tema: a obstinação. No nível dis
-
cursivo, esta obstinação é figurativizada pelo ator-Márcia que pega carona com um
134
desconhecido, além de deixar o seu próprio carro com outro, tudo isso para chegar
a tempo para trabalhar. Classificamos que o ator-Márcia também figurativiza o tema
da ousadia pelas referidas atitudes tomadas.
Este tema da
ousadia é também manifestado por outro episódio
“O primeiro biquíni a gente nunca esquece”. A história se passa entre os anos de
1960/61 em Salvador-BA, quando ator-Jutta era adolescente. Recebe de presente o
seu primeiro biquíni, numa época em que ainda não era usado pelas mulheres para
ir à praia. No banheiro da escola, o ator-Jutta desfila com o biquíni para mostrar as
suas amigas. Uma delas provoca o ator-Jutta, desafiando-a se ela teria coragem de
ir vestida de biquíni a praia. Sem titubear, marcam que, ao término das aulas do
dia, iriam à praia que ficava perto da escola. O ator-Jutta desfila de biquíni e chama
a atenção de todos pela nova peça de vestuário que ainda não era vista nas praias
de Salvador. Na escola, o diretor recebe a informação de que uma aluna estava de
biquíni na praia e ele vai em bu
sca da garota para puni-la. Mas não consegue.
FIGURA 21
Jutta e o primeiro biquíni de Salvador-BA
Além de Mária e Jutta, o ator-Terezinha também cumpre um papel
temático de uma mulher obstinada e ousada, pois enfrenta o preconceito do marido
e, principalmente, da sociedade para conquistar o seu desejo: ser caminhoneira. São
estas histórias que fazem com que
Retrato Falado
, mais uma vez, construa um papel
temático da mulher brasileira: ela é obstinada e ousada. Em busca de seus objetivos,
esta mulher desafiada, enfrenta o que está a sua volta para conquistar o que deseja.
Mesmo encarando o desconhecido, ela não desiste.
Ainda observando o nosso corpus, encontramos o tema do medo. Está
presente em percursos temáticos como da aeromoça Márcia que faz de tudo para
135
chegar pontualmente ao emprego com medo de perdê-lo. Ruth também figurativiza
um sujeito patêmico, modalizado pelo medo; tem verdadeira aversão em voar de
avião. Um outro episódio que trata do tema medo é “Passando a noite em claro”. O
casal Luciana e Ivanildo, recém-casado, mudam-se para uma outra cidade, distante
da família da esposa. Por estar longe da convivência com a família, o ator-Luciana
começa a ter uma seqüência de pesadelos que a faziam gritar, agredir o marido ou
andar sonâmbula por dentro de casa. Estas atitudes começaram a assustar o marido,
mas, com a primeira gravidez, o ator-Luciana parou de ter pesadelos.
FIGURA 22
Ruth com medo de avião (encima) e Luciana,
sonâmbula, assusta o marido (embaixo)
nça de vida que faz com que Luciana passa a ter
medo. Já Márcia sente um medo que é comum na população brasileira pelas crises
em que a economia do país já passou. É o medo de perder o emprego. O medo de
voar de avião, aquele que afeta Ruth, também consideramos como um medo co
-
mum. Entretanto, em Ruth, ele é exacerbado e até compromete o seu desempenho
profissional. Mas ela não se deixa vencer e passa a fazer um tratamento psicológico
para superá-lo. Com isso, encontramos um outro papel temático da mulher brasi
-
leira construído em
Retrato Falado
: o da mulher que sente medo, mas, de alguma
forma, tenta superá-lo.
136
A diversão e o entretenimento também são temas abordados pelos
episódios de
Retrato Falado
. No episódio analisado, “De cabelo em pé”, a diversão
é evidenciada pela participação de Isabel e seu marido num show na praia onde vão
passar férias (Figura 16). Isabel diverte-se bastante, dançando durante todo o show
e, no final, recebe um prêmio por ser a pessoa que dançou melhor. Outro episódio
que traz a diversão e o entretenimento é “A verdade nua e crua”. O ator-Gislene de
-
cide comemorar seu aniversário apenas com as amigas e contrata um homem para
fazer
stripteaser
porque “ninguém tinha coragem de pedir ao marido para fazer”.
stripteaser
Enfim, contrata um
stripper
e ela e suas amigas assistem entretidas e animadas o di
stripper
-
vertimento. Temos aqui mais um outro papel temático construído em
Retrato Falado
:
uma mulher que sabe se entreter, se divertir com o marido ou com as amigas.
Apontamos mais um outro tema presente no quadro em análise. É
uma auto-referência ao programa que o exibe e também à própria emissora que o
veicula. O episódio “A bela que virou fera (em futebol)” traz, em vários momentos,
a figurativização desta referência ao programa
Fantástico
e aos profissionais da Rede
Globo. Na cena em que o casal Senira e Clóvis está na cama namorando, com a
televisão ligada, ouvimos o áudio da voz de Léo Batista anunciando os gols do
Fan
-
tástico
. Neste momento, o ator-Clóvis se levante para assistir ao programa por ser
aficionado por futebol. Em outro momento, o ator-Senira e o ator-Clóvis estão assis
-
tindo a um jogo de futebol pela televisão, quando o ator-Senira faz um comentário.
Do aparelho de televisão,
falando com o casal que está em casa, o comentarista
Casagrande confirma o que a esposa disse e afirma: “A Senira está certa...”.
FIGURA 23
O comentarista de futebol Casagrande, Senira e o marido
137
Em outro episódio, “Dente por dente, ou jaqueta por jaqueta”, o ator-
Mariza, ao perder o pivô do dente da frente no dia do casamento da filha, fica deses
-
perada e diz ao marido que não vai à cerimônia. O marido inconformado afirma que
ela não pode faltar porque é a mãe da noiva. Angustiada, o ator-Mariza grita: “Você
quer que eu vá assim pro casamento da minha filha? Banguela? Pra virar matéria do
Fantástico
?”. Em seguida, entra o apresentador Cid Moreira narrando a escalada
5
do programa que foi exibido no ano de 1982 – período em que se passou a história,
e anuncia o que seria visto no programa naquele dia. As imagens são trechos das
matérias que seriam veiculadas e, no final, apresenta ainda na voz de Cid Moreira
6
:
“E mais, a incrível mulher que foi ao casamento da filha sem o dente da frente”.
Em “Denise Alice ou Renata Fraga?”, também este tema que traz uma
auto-referência da emissora é manifestado. No episódio, o ator-Renata é conside
-
rada muito parecida com a atriz Denise Fraga. Por conta desta semelhança, o ator-
Renata é confundida com a atriz nos lugares aonde vai. Por exemplo, o ator-Renata
vai com o marido a um restaurante em que o
maitre
a reconhece como Denise Fraga
(Figura 24). Afirma que não era a atriz, mas causa uma grande confusão. Por fim, o
maitre
acreditando que ela é mesmo Denise Fraga, pergunta quem é o homem que
a acompanha. Então, o ator-marido entra na brincadeira e responde: “Eu sou Evan
-
dro Mesquita” e, de fato, é o artista Evandro Mesquita quem interpreta o marido
da personagem Renata. Com a descontração instalada, o
maitre
, então, afirma: “Se
você é o Evandro Mesquista, eu sou o Reginaldo Faria”, que é justamente o artista
que interpreta o
maitre
. Estabelecida a grande diversão nesta cena, temos um auto-
5
A escalada é o texto lido no início do telejornal ou noticiário, informando tanto pela narração quanto pelas
imagens, o que será veiculado no programa do dia.
6
Cid Moreira foi apresentador do
Fantástico
por 30 anos e até hoje faz narrações para o programa.
FIGURA 24
Cenas do episódio “Denise Alice ou Renata Fraga?”
138
referência que o destinador Rede Globo criou, fazendo com que os seus próprios
artistas usassem o nome verdadeiro para compor a situação.
Com todos estes temas levantados, entendemos que Retrato Falado
cria vários papéis temáticos femininos para que as telespectadoras se identifiquem
com eles por serem elas também mulheres brasileiras como as protagonistas das
histórias. Temos, então, a construção de uma mulher que tem a beleza como um
atributo essencial e gosta de embelezar-se – mesmo com sacrifícios – para apresen-
tar-se bem aos homens companheiros ou não. É também uma esposa que sabe
contornar as situações difíceis e conquistar o carinho e atenção do companheiro. É
uma mulher trabalhadora, obstinada e ousada para enfrenta os desafios, mas, ao
mesmo tempo, sabe se divertir. Apesar de tudo isso, também sente medo, mas não
deixa que o atrapalhe, enfrenta-o. Também em alguns momentos mostra-se sub-
missa, mas sabe criar as próprias estratégias para alcançar os seus objetivos, é uma
mulher articulada. E, além disso, reconhece os profissionais e artistas da emissora
que veicula o quadro, além do próprio programa Fantástico.
FIGURATIVIZAÇÃO: A IRONIA DE RETRATO FALADO
No nível discursivo, os percursos temáticos – observados no tópico an-
terior são figurativizados, recobertos por figuras que nos permitem interpretá-las
como representantes de algo do mundo natural
7
– “considerando o mundo natural
como o mundo do senso comum”
8
. Com isso, o que é mostrado no quadro nos
remete ao nosso mundo natural e cultural como o nome das pessoas; as cidades
onde moram; as casas onde vivem; a vida cotidiana como usar o carro, limpar a casa,
fazer compras; o dia-a-dia dos casais; a utilização dos móveis e armários de casa etc.
Toda esta figurativização reitera os efeitos de sentido mencionados: de verdade,
realidade e verossimilhança. São as figuras que nos remetem ao nosso mundo coti-
diano em que vivemos, o mundo do senso comum, levando-nos assim a “acreditar”
no que vemos.
7 Cf. A.J. Greimas, Semiótica figurativa e semiótica plástica, Semiótica plástica, p. 77-81.
8 Ibid., p. 78.
139
Em
Retrato Falado
, por ser um quadro exibido por um programa de
televisão, é um texto que se utiliza de forma intensa do procedimento de figurativi
-
zação, atingindo o seu segundo patamar, o de iconização “que visa revestir exausti
-
vamente as figuras, de forma a produzir ilusão referencial
9
que as transformaria em
imagens do mundo”
10
. Este discurso que leva ao riso é possível de ser identificado
se nos detivermos neste procedimento de figurativização.
O enunciador se utiliza da figurativização para deixar o discurso en
-
graçado. Por exemplo, no episódio “Baixaria nas alturas”, em um diálogo, é usada a
sonoridade parecida das palavras para manifestar o pavor que o ator-Ruth sente em
voar de avião. Sentada em uma poltrona no avião, o ator-Ruth, figurativizada por
Denise Fraga, muito aflita na decolagem, coloca dois chumaços de algodão, um em
cada ouvido, “para não ficar surda” com o barulho. Enquanto uma aeromoça passa
ao corredor, um dos chumaços de algodão cai do ouvido do ator-Ruth. A aeromoça,
então, diz: “O algodão está caindo, senhora”. E o ator-Ruth responde desesperada:
“Caindo? O avião? Aí, meu Deus! Eu sabia que um dia isso ia acontecer...”.
9
Para Greimas, ilusão referencial seriam os efeitos de sentido de realidade e verdade constituídos no texto (Cf.
A.J. Greimas e J. Courtés,
Dicionário de semiótica
, p. 379).
10
A.J. Greimas e J. Courtés,
Dicionário de semiótica
, p. 187 (verbete: figurativização).
FIGURA 25
Ruth: “o avião está caindo?”
140
Neste diálogo, o ator-Ruth se encontra numa situação de completa
exposição de seu estado patêmico: o medo de voar de avião. Sentado em uma
poltrona dentro de um avião, no momento da decolagem, com o barulho das
turbinas acionadas, algodão nos ouvidos, este sujeito é observado pela aeromoça
que tranqüilamente tenta apenas avisar que “o algoo escaindo, senhora”.
Tomado pelo medo, o ator-Ruth grita desesperada. Este estado é oposto ao do
outro ator, a aeromoça. Com isso, o quadro constrói um discurso transparente,
sem dúvidas, sem ambigüidades: o que é para ser entendido está diante de nós
para nos levar ao riso.
A partir destas primeiras observações, entendemos que o discurso de
humor de Retrato Falado é o da ironia como entende Landowski em seu texto “Não
se brinca com o humor”. Neste texto, o autor trata do humor a partir da observação
de charges e fotografias políticas de grandes jornais franceses e afirma que “a re-
ceita mais elementar repousa sobre uma substituição de simulacros”
11
. A partir daí,
Landowski diferencia duas formas de fazer humor: o humor no “sentido estrito” e
a ironia.
O humor no “sentido estrito” apresenta um tom mais ou menos eufó-
rico, “coloca-nos diante de um universo fundamentalmente inquietante na medida
em que não oferece nenhuma certeza realmente definitiva”
12
. Ao contrário, o dis-
curso da ironia traz claramente a posição assumida pelo enunciador, é um discurso
da transparência das coisas, estabiliza o sentido e “arrisca certamente menos a per-
turbar a tranqüilidade intelectual dos leitores”
13
. Ainda para Landowski, o ironista
precisa do “discurso do outro” ou “de um discurso de referência” para criar o seu
próprio.
Entendemos que Retrato Falado constrói um discurso da ironia como
nos explica o semioticista francês. O “discurso de referência” ao qual o quadro se
baseia é o discurso da própria emissora que o veicula. No exemplo citado, a situação
vivida por Ruth nos remete a vida cotidiana de parte da população brasileira que
11 E. Landowski, Não se brinca com o humor: a imprensa política e suas charges, Face, v.4, n.2, p.66.
12 Ibid., p.74.
13 Ibid.
141
se utiliza, ou se utilizou, de alguma forma do meio de transporte avião. Além dis-
so, é transparente, não “perturba a tranqüilidade intelectual” dos telespectadores,
apresentando um sentido construído estável, sem dúvidas, que não leva a uma in-
quietação do pensamento. A partir de agora, iremos apontar, pelo procedimento de
figurativização, este discurso da ironia que o quadro constrói, nos referindo a alguns
exemplos citados anteriormente.
No episódio “De cabelo em pé”, o tema da beleza feminina em relação
aos cuidados com o cabelo é figurativizado, primeiramente, por um diálogo entre o
ator-Isabel e o ator-marido. O ator-Isabel diz ao marido que vai fazer reflexo no cabelo
antes de viajarem a praia. O ator-marido não entende a decisão, afirmando que o
cabelo da esposa “está ótimo”. A esposa pergunta ao marido desde quando ele re-
para no cabelo dela para dizer isso. E afirma que vai demorar 40 minutos para tingir o
cabelo. Então, o ator-marido diz que, enquanto isso, vai buscar o caminhão e conclui,
fazendo o comentário: “Mas oh ‘complexozinho’ demorado, hein?” (Figura 16).
Esta última frase do marido manifesta que ele talvez não “repare”
mesmo no cabelo da esposa, pois nem conhece o nome da técnica que ela vai usar
para tingir o cabelo. Reiterando esta idéia, entra uma animação gráfica que afirma
que “os cabelos dos homens servem apenas para serem penteados” e os das mu-
lheres passam por “processos bem mais complicados como alisamentos, toucas,
escovas, tinturas, permanentes, massagens...”.
Ao citar cada um destes processos, na tela temos o processo de iconi-
zação para reproduzir a ilusão referencial e levar o telespectador a identificar como
“imagens do mundo”. Entretanto, em Retrato Falado, esta iconização é usada mui-
tas vezes para causar o riso no enunciatário, pois se utiliza, numa mesma seqüência,
de uma verdadeira “mistura” de materiais de várias ordens como desenho, fotos
ou imagens congeladas, brinquedos, escrita, além da música, para expor o assunto
tratado. É justamente esta “mistura” que causa o riso, pois “sacode” as referências
que criam os efeitos de sentido de verdade e realidade, bem como o de verossimi-
lhança, produzindo um novo efeito de sentido que chamaremos de diversão como
define o dicionário Houaiss: “algo que serve para divertir”
14
.
14 Dicionário Houaiss eletrônico (verbete: diversão).
142
Observemos o exemplo da citada animação gráfica. Quando traz que
“os cabelos dos homens servem apenas para serem penteados”, temos na tela um
rosto masculino de uma pessoa “real” com um corpo desenhado com os braços
que se mexem, penteando os cabelos (Figura 26). Este “boneco” está dentro de um
carro que é visivelmente um brinquedo, uma miniatura de um automóvel “real”.
Ao final de sua aparição, o “boneco” tem o cabelo penteado como o de “super-
homem”, com uma pequena mecha em espiral na testa. Depois, mexe apenas uma
de suas sobrancelhas como se aprovasse a sua “bela” aparência. Assim, as estraté
-
gias enunciativas, pela figurativização, criam o efeito de sentido de diversão – pela
mistura de elementos de várias categorias. Além disso, manifesta que o homem
também gosta de se cuidar, mesmo que seja apenas pentear os cabelos, mostrando
como um galã conquistador, um “super-homem”.
FIGURA 26
Animação gráfica do episódio “De cabelo em pé”
Na continuação da animação gráfica, enquanto o
Na continuação da animação gráfica, enquanto o
off
off
cita o que as
cita o que as
off
off
mulheres fazem nos cabelos, o rosto congelado do ator-Isabel (interlocutor-en
-
trevistada) e a mudança do seu cabelo a cada novo nome de processo. Por exemplo,
em “alisamentos”, uma colagem na cabeça de Isabel de uma imagem de cabelos
longos, lisos e loiros e, em “tintura”, a imagem colada é de um cabelo curto de cor
azul forte. Além desta mudança de cabelo, para se criar uma nova expressão no
rosto de Isabel, a sua boca que sorri é “puxada” de um dos lados para cima ou para
baixo. Por trás do primeiro plano do rosto de Isabel, um fundo com flores que
143
tem a predominância da cor alaranjada e gira em sentido horário durante todo o
tempo. Esta construção discursiva produz uma mulher satisfeita com o que faz nos
cabelos e o espaço onde se processa estas mudanças apresenta-se alegre.
Esta evidência de “colagem” de cabelos que não são da protagonis-
ta, o uso de cores que não são comuns em tinturas capilares como o azul, a boca
que é “puxada” e a mistura com desenhos nos remetem às “imagens do mundo”.
Entretanto, como dissemos, os elementos das várias categorias diferentes como
desenho, imagens congeladas, cores fortes, brinquedo misturados numa mes-
ma composição, fazem com que o enunciatário não tenha apenas uma ordem de
referência para “ler” o discurso, mas várias simultaneamente. E é a convergência
destas várias ordens que levam o telespectador a se divertir com o que vê, o discurso
produz o referido efeito de sentido de diversão. Para reiterar este divertimento, a
música em BG traz uma sonoridade engraçada por utilizar sons que simulam ruídos
e barulhos de diferentes tons e ritmos.
Em seguida a esta animação gráfica, entra um povo fala somente com
homens anônimos, do povo, que expressam o seu saber (ou não-saber) a respeito
do assunto tratado: a posição masculina de não conhecer o que a mulher faz no
cabelo. Consideramos que este recurso é também uma forma de figurativização do
referido tema.
Ainda neste episódio, também pelo procedimento de figurativização,
o enunciador cria estratégias para que o discurso seja engraçado, mais uma vez,
utilizando-se de diálogos. Quando o ator-Isabel, na figura de Denise Fraga, vai ao
banco a pedido do marido; usa um plástico na cabeça e, por cima, um boné para
poder sair de casa sem ter que parar o processo da tintura do cabelo. Para ir mais
rápido e dar tempo de tirar a tinta na hora certa, decide ir de moto, porém não usa
o capacete para não sujar tudo quando tivesse que tirá-lo no banco.
No caminho, uma blitz de fiscalização de veículo e, para não ser pa-
rada – que atrasaria mais a retirada da tinta –, coloca o capacete na cabeça. Ao che-
gar ao banco, entra na fila usando o capacete. Na sua vez, no caixa, o funcionário
não entende o que o ator-Isabel quer, porque não consegue ouvi-la. Então, o ator-
144
Isabel, gesticulando as mãos com os dedos indicadores apontando para o bancário e
os polegares para o alto, como as crianças brincam para criar um revólver, diz: “... eu
vou falar mais alto”. E, pelo trocadilho de sons, o ator-funcionário assustado grita:
“Assalto! Assalto!”. Temos aí o discurso risível, produzido pelo enunciador por meio
da figurativização, com a gesticulação das mãos como se fosse um revólver para
assaltar, e as palavras com sonoridades parecidas.
FIGURA 27
Seqüência de cenas da ida de Isabel ao banco no episódio “De cabelo em pé”
O telespectador compreende tranquilamente o discurso simples e
transparente produzido pelo enunciador. O discurso da ironia, neste caso, se
através de uma troca de simulacros entre a jovem esposa vaidosa que foi ao banco
simplesmente para sacar dinheiro para viajar com o marido, substituído pelo simula
-
cro de um assaltante do ponto de vista de quem a observa, o sujeito funcionário do
banco que está no caixa. No nível do enunciado, temos o bancário assustado com
o assalto, mas, no nível da enunciação, o enunciatário reconhece o “trocadilho”: o
assaltante é simplesmente a jovem esposa.
Entendemos que
Retrato Falado
constrói o discurso que leva ao riso
figurativizando na tela da tevê o cotidiano de quem o assiste, o do povo brasileiro,
particularmente, o da mulher brasileira. Para Landowski, o discurso do ironista é
tanto mais tranqüilizador quanto as certezas que podemos adquirir ao aceitá-lo,
aparecendo este como a contrapartida positiva da perda de alguma “ilusão” ante
-
145
rior
15
. Com isso a reprodução do dia-a-dia da mulher brasileira feita pelo enunciador
faz com que o telespectador, se identificando com o que vê, aceite o discurso como
“verdade”. Assim, mostra-se tranqüilizador por não trazer questionamentos ou am-
bigüidades a respeito dos temas tratados, constrói-se um mundo perfeitamente in-
teligível e positivo diante da vida “real” de quem o assiste.
Outro episódio que podemos trazer para analisar a figurativização é
“Entre o brasão e o passaporte”. Nele, o tema da beleza feminina também é trazi-
do, mas com um outro aspecto: ser magra como sinônimo de ser bela. Para a mu-
lher construída em Retrato Falado, este atributo é essencial para a sua beleza. No
referido episódio, o ator-Célia, ao ter o seu casamento cancelado pelo noivo, fica
deprimida e emagrece quatro quilos em duas semanas. Esta figurativização se
com o ator-Célia, interpretada por Denise Fraga, como uma apresentadora de um
programa de culinária na televisão para ensinar a receita ao público.
Numa cozinha com ingredientes (ovos, leite, farinha de trigo) numa
bancada a sua frente, o ator-Célia tem nas mãos um casal de noivos usados como
enfeites em bolos de casamento. Olhando para o telespectador (olhando para a câ-
mera), diz
16
: “Minha amiga, hoje nós vamos aprender como perder quatro quilos em
apenas duas semanas... Arranje um homem cafajeste ou emocionalmente imaturo...
Misture-se bem com ele... e marque a data do casamento. Depois é deixar des-
cansando e esperar que o cafajeste resolva desistir de tudo. Aí, minha amiga, che-
gou a hora de bater... Bata na cara, nas costas, no peito... Mas o mais importante,
minha amiga, é que, indo embora o casamento, ele leva com ele todo o seu apetite.
E fará com que você em pouco tempo entre naquele biquininho mínimo que você
não usava há um tempão e possa arranjar um novo marido”.
15 Cf. E. Landowski, op.cit., p.74.
16 Transcrevemos aqui a “receita” de como emagrecer quatro quilos em duas semanas: Minha amiga, hoje
nós vamos aprender como perder quatro quilos em apenas duas semanas. Vamos lá, hum?! Arranje um ho-
mem cafajeste ou emocionalmente imaturo. Reserve. Misture-se bem com ele até você ficar bem envolvida.
Misture-se e marque a data do casamento. Depois é só deixar descansando e esperar que o cafajeste resolva
desistir de tudo. Aí, minha amiga, chegou a hora de bater. Bata bem. Bata na cara, nas costas, no peito; dê
uns beliscões também, o que vai ajudar você a queimar aqueles quilinhos extras. Mas o mais importante,
minha amiga, é que, indo embora o casamento, ele leva com ele todo o seu apetite. E fará com que você
em pouco tempo entre naquele biquininho mínimo que você não usava há um tempão e possa arranjar um
novo marido”.
146
FIGURA 28
A receita de Célia de como emagrecer 4 kg em duas semanas
Com esta construção figurativa de um programa de culinária na televi
-
são, o discurso produz mais uma vez a ironia. O simulacro da ex-noiva deprimida dá
lugar a uma mulher que sabe ensinar como lhe dar com o que a deixa triste. O seu
saber é tal que ela protagoniza um programa de televisão para ensinar a sua receita.
E o decorrer da narrativa nos evidencia que o que ela ensinou deu certo, pois ela, de
fato, “arranja um novo marido”. É a substituição de simulacros que leva o telespec
-
tador ao riso. Além disso, mais uma vez, o discurso produz na tevê o cotidiano da
mulher brasileira que é figurativizado por um programa de televisão, pela culinária,
por um noivado desfeito e outro casamento marcado.
Outra troca de simulacros que nos leva ao riso é a decisão do ator-
Célia em namorar dois homens ao mesmo tempo. Com o noivado desfeito e o
casamento cancelado, o ator-Célia, deprimida, viaja de férias e conhece um guia
turístico com o qual começa a namorar. Na volta de sua viagem, o ex-noivo retoma
o relacionamento com ela e, assim, decide manter a relação de namoro com os dois.
Os namorados demonstram o desejo de se conhecerem e, para isso, o ator-Célia os
convida para jantar em sua casa.
Na entrevista, o ator-Célia (interlocutor-entrevistada) situa que a sua
relação com os dois se passa fora do Brasil. Como a história acontece na Suíça e um
namorado é húngaro e o outro, austríaco; eles não falam português. Então, durante
147
o jantar, o ator-Célia pergunta-os se se incomodariam de serem dublados, explican
-
do: “... para que o público no Brasil possa entender o que os dois estão falando”.
Neste momento, os três, sentados a mesa, olham diretamente para o telespectador
(para a câmera), observando quem os assiste. Aqui o enunciador tira o véu que
cobre o quadro como uma história que se narra por si com pessoas que não sabem
que estão sendo observadas. Rompe o simulacro da verossimilhança e insere o teles
-
pectador para fazer parte da encenação, produzindo o discurso da ironia.
FIGURA 29
O jantar de Célia com os seus dois namorados: um húngaro e o outro austríaco
O enunciador continua a sua construção discursiva, desmascarando
O enunciador continua a sua construção discursiva, desmascarando
também o quadro nas cenas do jantar que são dubladas com uma evidente falta
de sincronia entre o som e os movimentos dos lábios, além das vozes serem as dos
próprios artistas que interpretam os personagens. Além disso, o ator-Célia, na figu
-
ra de Denise, é a única que não é dublada, caracterizando bem a situação de que
os homens são estrangeiros. No nível da enunciação, o telespectador “ganha” do
enunciador este lugar privilegiado de observação destes pontos de vistas que não
fazem parte do enunciado, assistindo a um jogo de estratégias enunciativas para o
levar ao riso.
Como a história se passa durante os anos de 1970, a figurativiza
-
ção deste período se também pela dublagem que se utiliza de palavras comuns
usadas nas traduções das séries americanas exibidas na televisão brasileira naquela
década como os seriados
Jeannie é um gênio
e a
Feiticeira
. Por exemplo, as palavras
“pequena” e “boneca” são ditas pelos artistas e eram comumente usadas para se
referir a namorada ou a garota com que o rapaz iria ter um encontro.
A troca de simulacros do ator-Célia é evidente na conversa que os três
têm durante o jantar. Os dois homens decidem dividir os dias da semana para que
148
cada um tenha seus momentos a sós com o ator-Célia. Mostrando-se assustada, o
ator-Célia indaga: “Mas que é que é isso? Vocês decidem tudo sozinhos? E eu nessa
história?” e conclui: “E no domingo, eu fico com quem?”. Com a sua última inda
-
gação, o discurso troca o simulacro de uma mulher que parecia estar sendo usada,
pelo de uma mulher que se mostra também dona da situação.
No episódio “Dona-de-casa unida jamais será vencida”, o enunciador
também figurativiza o discurso se utilizando de uma animação gráfica, produzindo
o referido efeito de sentido de diversão. A animação figurativiza o tema de que os
afazeres domésticos também são uma forma de perder calorias e emagrecer, adqui
-
rindo assim um atributo importante na composição da beleza da mulher construída
em
Retrato Falado
.
A animação se dá com um desenho de uma mulher que tem o rosto
do ator-Nadja (interlocutor-entrevistada) com um batom vermelho nos lábios que
são cobertos no formato de uma boca sorrindo. As maçãs do rosto são ressaltadas
com o uso de um
blush
rosa passado em forma de círculo e os olhos, com sombras
azuis. Este rosto pintado e o corpo desenhado nos remetem a uma boneca de brin
-
quedo. A casa onde esta boneca está também nos leva a identificar como uma casa
de bonecas no estilo “Barbie” por ser feita de material plástico em tons rosa.
Esta mistura de objetos de diferentes categorias como desenho e brin
-
quedo e a música em
BG
com um ritmo bem compassado, mas acelerado que cria
leveza nas imagens apresentadas, criam o efeito de sentido de diversão, como
FIGURA 30
Início e fim da animação gráfica do espiódio
“Dona-de-casa unida jamais será vencida!”
149
mencionado. No final da animação, a boneca Nadja surge em cena “magra”, po-
rém com os cabelos assanhados de tanto trabalho, e ao lado dela, o número de
1.780 calorias perdidas com a arrumação da casa. Neste episódio, com o discurso
da ironia, Retrato Falado nos mostra que a beleza pode ser adquirida com o próprio
trabalho doméstico que está ligado às atividades femininas.
No episódio “Baixaria nas alturas”, a animação gráfica também figu-
rativiza o tema da beleza feminina. A fala final do ator-Ruth (“Ah, meu Deus, por
que eu não fui a pé? Ainda perdia uns quilinhos!”), no diálogo já citado com o ator-
aeromoça, o enunciador se utilizou da imagem do interlocutor-entrevistada Ruth Ren-
deiro que está acima do peso exibida antes do diálogo e trouxe para o texto o
tema da perda de calorias para ficar bela através de uma animação gráfica (Figura 18).
A animação mostra um mapa com uma fita métrica entre Manaus e Belém para
apontar a distância de 5.290 km entre as duas cidades, o trecho que o avião percor-
reria. Os quilômetros são escritos na tela. Ainda mostra outras formas de fazer este
percurso e a última opção é ir a pé, porém demoraria oito dias, afirmando: “Nesta
viagem, Ruth perderia 130.000 calorias”.
um desenho de uma mulher gorda com roupa de corrida e usando
tênis e esta tem o rosto do interlocutor-entrevistada Ruth. Esta “boneca” aparece
correndo e, ao final, saindo detrás de uma árvore, está bem magrinha. Junto a ela,
o número escrito na tela das calorias perdidas. A figurativização desta animação
segue o mesmo estilo das analisadas anteriormente. Com os elementos de várias
ordens (desenho, imagens congeladas e brinquedos), esta combinação cria o efeito
de sentido de diversão. A música em BG também manifesta no enunciado um tom
de leveza que se combina com o divertido.
Um outro exemplo de construção do discurso da ironia pela troca de
simulacros é o episódio “A bela que virou fera (em futebol)”, quando o ator-Senira
decide ir aos estádios de futebol com o marido. O ator-Senira (interlocutor-entrevis-
tada) afirma: “E você sabe o que é estádio de futebol, né? Quem não está acostu-
mado, 99% é homem. Todo mundo gritando, berrando, xingando o juiz... falando
esses palavrões horríveis, cuspindo”. O quadro nos mostra o simulacro de uma mu-
150
lher sensível, horrorizada com a falta de educação das pessoas que vão aos estádios
de futebol.
Entretanto, a cena que entra em seguida é o ator-Senira, na figura
de Denise, sentada ao lado do marido na arquibancada de um estádio de futebol,
gesticulando muito e gritando com quem está a sua volta: “Você quer ter o favor
de ter mais educação. Palavrão não, ora...” e a seqüência da fala é repleta do “bip”
usado pelas emissoras de televisão em substituição aos palavrões que são ditos pe
-
las pessoas em seus programas. Este contraponto de um simulacro de uma mulher
educada, delicada, avessa ao tratamento usado pelos torcedores em estádios de
futebol; é justamente substituído pelo simulacro de uma mulher “mal-educada”
que usa palavras vulgares e gestos exagerados. Como dissemos, é esta mudança
inesperada que leva o telespectador ao riso.
O
U
T
RA ES
T
RA
T
RA
RA
ÉGIA DE CONS
T
RUÇÃO DA IRONIA:
OS CONEC
T
ORES ISO
T
ÓPICOS
Outro recurso usado em
Retrato Falado
para causar o riso é o conector
de isotopia que é uma “unidade do nível discursivo que introduz uma ou várias leitu
-
ras diferentes”
17
ao texto. Encontramos este recurso em vários episódios. O exemplo
mais evidente é no episódio “Dente por dente, ou jaqueta por jaqueta”, em que o
ator-Mariza, interpretada por Denise, perde o pivô do dente da frente ao escovar os
dentes no dia do casamento da filha. Sem saber o que fazer, pergunta-se: “como é
que eu vou ficar sem pivô?”.
17
A.J. Greimas e J. Courtés,
op.cit.
, p. 72 (verbete: conector de isotopias).
FIGURA 31
Cenas do episódio “A bela que virou fera (em futebol)”
151
Logo em seguida, entra uma entrevista com o técnico de basquete,
Marcel de Souza, respondendo como é ficar sem pivô num time de basquete. Te-
mos, então, “pivô” como um conector de isotopia. Numa primeira leitura o termo
se refere à arcada dentária do ator-Mariza. Mas é justamente pela segunda leitura
que surge o humor do discurso. Quando o técnico de basquete explica a falta do
“pivô”, causa-nos o riso por mostrar-se num plano diferente da narrativa que nos
foi apresentada até ali: a perda do “pivô” de um dente. Com isso, apresenta-se mais
uma estratégia de construção discursiva do humor do quadro em estudo.
Outro episódio que se utiliza de conectores de isotopia para causar o
riso é “Entre o brasão e o passaporte”. O ator-Célia, ao ter o seu casamento can-
celado pelo noivo, fica deprimida e emagrece rapidamente. Figurativizada como
uma apresentadora de um programa de culinária na televisão, ensina ao público
a receita para emagrecer. Enquanto explica, alguns termos usados pela apresenta-
dora têm mais de uma leitura, por exemplo, quando ela diz “misture-se bem com
ele” (o namorado). Ao dizer isso, une, junta, esfrega os dois bonecos do casal de
noivos usados para enfeitar bolos de casamento que têm nas mãos. Em seguida
diz: “... minha amiga, chegou a hora de bater... Bata na cara, nas costas, no pei-
to...”. Temos aí o verbo “batercomo outro conector de isotopia. Primeiramente
se refere ao verbo com significado de bater o bolo, já que se trata de um programa
de culinária. Mas o que nos causa o riso é o termo “bater” no noivo que desistiu
de casar. E a apresentadora faz isso com os dois bonecos do casal de noivos que
está em suas mãos.
Outro conector de isotopia usado para ter dupla leitura e uma delas
causar o riso é o termo “pelada” no episódio “A bela que virou fera (em futebol)”.
Há uma animação gráfica que fala de uma pesquisa inglesa que aponta a preferên-
cia dos homens em assistir a uma partida de futebol do que fazer sexo com a mulher
dos sonhos. Então, a animação conclui dizendo: “Entre uma pelada de futebol e
uma pelada de verdade, os homens preferem uma pelada de futebol”. Assim, temos
o riso pelas duas leituras do mesmo termo.
152
A PLASTICIDADE DO RISO
Diante de todas as considerações que fizemos neste capítulo, fica cla-
ro que o discurso que leva ao riso se constrói a partir da figurativização e, de modo
particular, dos arranjos plásticos do texto. Os temas apontados levam ao riso pelos
procedimentos de figurativização que o enunciador faz no enunciado. No entanto,
entendemos que são os procedimentos dos arranjos plásticos do plano da expressão
que fazem com que o enunciatário tenha apreensões sensíveis pela sua capacidade
perceptiva. O plano da expressão é o patamar em que são possíveis apreensões es-
tésicas.
154
Os Regimes de Sentido
e de Interação
O FAZER
O
PERATÓRI
O
D
O
DESTINAD
O
R:
O FAZER SER
No primeiro capítulo, postulamos que o destinador se apresenta com
um fazer operatório,
fazer ser
, pelo qual quer
fazer
o seu destinatário
fazer
ser
a mulher
ser
brasileira que apregoa em seus episódios a cada domingo. Como observamos no
capítulo anterior, o discurso são apresentados vários papéis temáticos femininos
figurativizados de diversas formas e também de modo a levar ao riso,
fazer rir
, e
esta composição cria o simulacro da mulher brasileira construída a partir da visão de
mundo do destinador Rede Globo.
O simulacro construído é de uma mulher que tem a beleza como atri
-
buto essencial e o gosto de se cuidar para estar bela aos olhos dos homens, mesmo
que para isso seja necessário fazer sacrifícios; é uma esposa que contorna as situ
-
ações difíceis sem confrontos com o companheiro, pelo contrário, sabe conquistar
sua atenção e carinho; é trabalhadora, obstinada, enfrenta desafios, conquista o
que quer; é criativa e articulada em situação difíceis e, principalmente, sabe achar
graça da sua vida, sabe rir de si mesma; além de outras características.
Para Landowski
1
, os simulacros são figuras de componente modal e
temático pelas quais o enunciador e o enunciatário se deixam apreender mutua
-
mente pelo discurso enunciado. Essas figuras do conteúdo são investidas de compe
-
tências pelos actantes da comunicação destinador e destinatário que se atribuem
1
No dicionário
Semiótica Diccionario Razonado de La Teoria del Lenguaje
, o verbete “simulacro” foi escrito
por E. Landowski.
5
155
reciprocamente e, por isso, a construção de simulacros se dá na dimensão cognitiva
e, de antemão, em todo o programa de manipulação intersubjetiva
2
.
A partir desta consideração, já observamos qual é o simulacro atribuí-
do ao destinatário-enunciatário, o da mulher brasileira que se manifesta aos moldes
do destinador Rede Globo que, por sua vez, constrói-se como um destinador-enun-
ciador que conhece bem o povo brasileiro por estar tão próximo dele, numa relação,
diríamos, até de amizade, figurativizada pelo seu slogan “a gente se por aqui”
anunciado durante a sua grade de programação. E é neste “aqui”, na sua tela, que
mostra as “suas” mulheres brasileiras em Retrato Falado.
Entretanto, para este destinador-enunciador fazer o destinatário-
enunciatário ser a mulher brasileira apresentada em Retrato Falado, utiliza-se do
regime da manipulação, o fazer fazer, através de estratégias de persuasão em seu
discurso. E ainda se utiliza do sensível proporcionado pela articulação sincrética do
texto televisual, um fazer sentir, também para conquistar o seu destinatário-enun-
ciatário. Trataremos sobre isso a seguir.
A MANIPULAÇÃO EM RETRATO FALADO:
O FAZER FAZER A SERVIÇO DO FAZER SER
Entendemos que é justamente pelo regime da manipulação entre su-
jeitos que se dá a principal forma de interação entre Retrato Falado e o seu público.
A partir da análise da instância da enunciação realizada no capítulo anterior, apon-
tamos várias estratégias de manipulação utilizadas pelo destinador-enunciador Rede
Globo para persuadir o seu destinatário-enunciatário telespectador a ser como a
mulher brasileira construída no seu discurso em questão.
Para se a manipulação, entendemos que se estabelece um con-
trato de veridicção ou dizer-verdadeiro, entre destinador-enunciador e destinatário-
enunciatário como observamos anteriormente. É pelo fazer cognitivo que o
2 A. J. Gremias e J. Courtés, Semiótica Diccionario Razonado de La Teoria del Lenguaje, p. 232 (verbete: simu-
lacro).
156
destinatário-enunciatário interpreta o que é apresentado e aceita ou não o que se
constrói diante de si, levando em consideração se os valores propostos no discurso
pelo destinador-enunciador estão de acordo com a sua visão de mundo. Aceitando
os valores em jogo, o destinatário-enunciatário é manipulado, sendo esta manipu-
lação uma doação de competência para a performance, para fazer o destinatário-
enunciatário ser esta mulher brasileira.
O quadro Retrato Falado mostra-se como a sanção positiva (“apa-
recer na tevê”) do destinador-julgador, que entendemos ser o próprio destinador
Rede Globo. Ao assumir ou manter caso tenha aderido anteriormente os
valores propostos pelo discurso, o destinatário-sujeito vai em busca do valor funda-
mental “renome”. E quando tem sua história veiculada pelo quadro em questão,
o destinatário-sujeito é sancionado euforicamente, cumprindo, assim, o percurso
o qual mostramos na análise da primeira vinheta de abertura no capítulo 2. Este
destinatário-sujeito é a manifestação no enunciado da mulher brasileira apregoada
pelo destinador, a concretização em última instância do fazer ser do destinador.
Com isso, esta mulher (destinatário-sujeito) que tem sua história contada torna-se
co-destinador juntamente com a Rede Globo.
Para se dá esta aceitação ao discurso, é necessário que haja confiança
do destinatário-enunciatário para com o destinador-enunciador, sendo assim possí-
vel o manipulador (destinador-enunciador) se utilizar de seu fazer persuasivo para
convencer o seu destinatário-enunciatário. No caso em questão, uma das formas
de convencimento ao que se passa na tela são os efeitos de sentidos criados pela
construção discursiva.
O efeito de sentido de subjetividade, de aproximação ao discurso,
criado a partir da relação “eu/tu” da enunciação projetada no discurso-enunciado,
faz com que o enunciatário sinta-se próximo, pertencente ao que na tela da tevê.
Além disso, é mais uma vez convocado quando se utiliza “nós”, “nosso”, “prá
gente”, “vocês”; é convidado a fazer parte da história contada, a participar do dis-
curso, identificando-se com o simulacro da brasileira ou com os outros construídos
na história.
157
Ainda so
bre este ef
eito, entendemos que uma reiteração quando
qualquer ator do discurso fala diretamente com o telespectador olhando para a
câmera. Este efeito é criado primeiramente pelo ator-apresentadora Denise que, ao
dirigir-se ao enunciatário, envolve-o pela sua forma de falar e seu posicionamento
olhando para o telespectador, a câmera.
No episódio “Entre o brasão e o passaporte”, por exemplo, o ator-
Célia figurativizado por Denise, olhando todo o tempo para o telespectador (para a
câmera) e conversando com ele, estabelece uma situação de diálogo com o enun
-
ciatário. Com uma moeda na mão, o ator-Célia explica ao telespectador que, num
“cara-ou-coroa”, vai decidir entre os dois namorados com que estava se relacionan
-
do (Figura 32). Toda a sua tomada de decisão é compartilhada com o telespectador
pelo seu modo de falar, por exemplo, quando ela diz: “Vamos fazer o seguinte...”.
O “nós” – como já dissemos
– aproxima o enunciatário ao discurso.
O seu posicion
amento diante da câmera também reitera esta aproxi
-
mação pelo seu enquadramento em plano próximo (busto da atriz). Este efeito de
sentido de aproximação ao discurso, criado pelo verbal oral, é reiterado, diríamos
até de forma exacerbada pela plástica do televisual, criando assim uma intimidade
com o telespectador, pois é com ele que o ator-Célia vai tomar a sua “importante”
decisão. A cena nos remete a uma conversa de Célia com uma “amiga próxima”
com quem ela pode dividir as suas dúvidas e decisões. A composição desta cena
também se utiliza da dimensão sensível do telespectador para persuadi-lo, como
veremos no próximo
tópic
o.
FIGURA 32
Conversando com o telespectador, Célia faz “cara-ou-coroa”
para decidir entre os dois namorados
158
Uma outra estratégia de manipulação é a criação do efeito de sentido
de suspense para manter o telespectador assistindo ao quadro. Isto se dá quando o
narrador-Denise estabelece a proximidade com o telespectador através do efeito de
sentido de subjetividade e, em sua onisciência manifestada durante a sua apresen
-
tação, não revela mais detalhes sobre o que acontecerá no episódio do dia. É como
acontece no episódio “De cabelo em pé”, quando o ator-apresentadora diz: “Isabel
foi para a praia com a família... que aí...”; a afirmação deixa o enunciatário na
expectativa do que virá pela frente na história.
Com os efeitos de sentido de verdade e realidade,
Retrato Falado
se
constrói como uma peça televisiva que “reproduz”, com todos os seus recursos te
-
levisuais, um fato da história “real” de uma mulher brasileira. Esta mulher fala com
sua própria voz este fato simples e risível de seu cotidiano, rindo de si mesma. Cite
-
mos um episódio que se utiliza de forma mais intensa desses efeitos, é o episódio
“Anjos da guarda, ou melhor, da aeromoça”. Ainda no início da história, quando o
ator-Márcia está fazendo o percurso de carro entre a praia do Guarujá, litoral norte
do estado de São Paulo, à cidade de São Paulo; ele depara-se com um grande en
-
garrafamento na estrada. Neste momento, entra uma seqüência de imagens aéreas
de uma longa fila de carros parados numa estrada sob o crédito de uma matéria
veiculada no telejornal local, o SPTV, em dezembro de 1999 (Figura 33). As imagens
são acompanhadas pelo
off
de um repórter da Rede Globo que informa sobre a
off
queda de uma barreira na Via Anchieta que causou um engarrafamento de mais de
15 quilômetros.
FIGURA 33
Imagem aérea de telejornal exibida no episódio
“Anjos da guarda, ou melhor, da aeromoça”
159
Entendemos que a inserção deste trecho da reportagem cria e reitera
os efeitos de sentido de verdade e realidade. Por ter sido uma matéria veiculada em
um telejornal, apresenta-se como um “fato real”, que aconteceu “de verdade”;
pois, em nossa cultura, o que é veiculado em telejornais e programas de notícias são
acontecimentos tidos como reais e verdadeiros. Com isso,
Retrato Falado
se utiliza
do recurso da exibição de uma reportagem de arquivo para evidenciar que a história
que está sendo contada é verdadeira e real, que sua protagonista, de fato, viveu o
que está contando.
Simultaneamente aos efeitos de sentido de verdade e realidade, cons
-
trói-se o efeito de sentido de verossimilhança, criado no quadro pela utilização da
ficção que é uma construção discursiva de objetividade. Entendemos que a encena
-
ção da história também cria os efeitos de sentido de verdade e realidade por trazer
elementos do mundo natural e cultural no qual vivemos. No entanto, a exacerbação
desta objetividade construída, como apontamos antes, cria o efeito de verossi
-
milhança. “E, em Retrato Falado, acrescentamos ainda que o paralelismo entre a
utilização da construção discursiva da ficção e a construção discursiva do documen
-
tário – manifestado, por exemplo, pelas entrevistas (como apontamos anteriormen
-
te) reitera os efeitos de sentidos de verdade e realidade e de verossimilhança, ao
mesmo tempo que eles fazem sentido nesta interdependência. Entendemos como
uma construção discursiva que se utiliza de um sincretismo de formatos televisivos.
Voltaremos a este ponto mais adiante.
FIGURA 34
Márcia conversa com a mãe antes de ir ao trabalho
160
Ainda no episódio citado antes, observamos que o efeito de verossi-
milhança se apresenta, por exemplo, na cena em que o ator-Márcia, na figura de
Denise Fraga, conversa com o ator-Mãe, no quarto, enquanto o primeiro se arruma
para ir ao trabalho – e que, no caminho, ficará preso no engarrafamento (Figura 34).
O cenário do quarto da moça traz elementos do nosso mundo natural e cultural
efeitos de verdade e realidade e, ao mesmo tempo, cria-se o efeito de verossi-
milhança, de que podemos ver algo que é possível ou provável por não contrariar o
nosso mundo cultural e natural, além de ser plausível
3
. A cena constrói esta verossi-
milhança pela conversa entre os dois atores, o modo como o ator-Márcia se veste e
usa a maquiagem (Márcia é aeromoça), a mãe arrumando a cama da filha etc.
Apontamos como mais uma estratégia de manipulação a construção
discursiva que leva ao “riso”. No capítulo 4, explicamos a dinâmica utilizada pelo
enunciador para fazer com que o telespectador ria do que ele vê na tela. Pelo que
observamos, é pela figuratividade e o seu plano da expressão que o quadro nos faz
rir; é uma predominância de um fazer rir que se dá primeiramente pela cognição.
Por exemplo, no episódio “Passando a noite em claro”, Ivanildo, o
marido de Luciana, assustado com as atitudes agressivas de sua esposa quando está
sonâmbula, decide ir conversar com o pai da moça sobre o assunto. Nesta cena, en-
contram-se em primeiro plano Ivanildo e o pai de Luciana sentados em torno de um
pequena mesa redonda numa cozinha. Eles conversam sobre a noite em que Luciana
pegou uma faca na cozinha e cortou frutas. O pai dela responde: “Ainda bem que
é frutas que ela corta”. Ivanildo pergunta: “O que o senhor está querendo dizer
com isso?” E o pai acena com a cabeça negativamente. Ivanildo, desconfiado, olha
para as suas “partes”. Neste momento, entre eles, ao fundo, está Luciana (na figura
de Denise) com uma enorme faca na mão e olha séria para os dois (Figura 35).
3 O Dicionário Eletrônico Houassis traz o termo “verossímil” com o seguinte significado: “que parece verda-
deiro; que é possível ou provável por não contrariar a verdade, plausível”.
161
Na seqüência, entra a interlocutor-entrevistada Luciana que lembra
que o pai contou ao marido “histórias do interior” de possíveis mortes causadas por
pessoas sonâmbulas. Em seguida, volta a cena da cozinha, com o ator-Luciana, na
figura de Denise Fraga, com a faca na mão, cortando pedaços de queijo na mesa na
frente do pai e do marido (Figura 36). Ela está séria e mostra-se decidida, utilizando-
se de força ao usar a faca. Os dois homens demonstram medo com a atitude dela.
A cena ganha força com a música usada, a famosa trilha que marcou o filme “Psi
-
cose”, de Alfred Hitchcock.
FIGURA 36 –
FIGURA 35
Luciana, em segundo plano, com uma faca na mão.
Em primeiro plano, o seu marido e o seu pai conversam sobre ela
Neste exemplo, temos uma percepção cognitiva para compreender a
situação e isto é o que nos causa o riso. Ivanildo está sentindo-se ameaçado pela
esposa e a música reitera a sensação do marido, entretanto, causa-nos o riso, pois,
até ali, o discurso nos mostra uma história jocosa que está sendo narrada. Com este
tipo de construção discursiva do quadro – como também já citamos anteriormente,
cria-se no telespectador uma expectativa ao
riso
, ele sabe que
Retrato Falado
vai lhe
fazer rir
. E espera por isso.
A manipulação criada pela articulação textual sincrética faz com que
o enunciatário-telespectador seja levado também a observar em sua vida cotidiana
Neste exemplo, temos uma percepção cognitiva para compreender a
FIGURA 36
Luciana, o marido e o pai: em BG a música do filme “Psicose”
162
acontecimentos risíveis, que o seu dia-a-dia também pode ser engraçado, que pode
rir de si mesmo. Este telespectador é envolvido ao ponto de querer assistir ao pró-
ximo episódio no domingo seguinte. Enfim, o principal regime de interação entre
destinador e destinatário em Retrato Falado é a manipulação. Entretanto, como
dissemos, o sensível, o estésico, também é usado para convocar e conquistar o
enunciatário como veremos a seguir.
CONTÁGIO POR IMPRESSÃO: O FAZER SENTIR
A SERVIÇO DO FAZER SER
Até o momento, consideramos que a relação entre destinador e des-
tinatário se pela dimensão cognitiva, a partir do fazer persuasivo do primeiro e
do fazer interpretativo do segundo, estabelecendo-se assim o regime de interação
pela manipulação. Este regime faz parte da lógica da junção – conjunção ou disjun-
ção entre sujeitos e objetos de valor, no qual o destinador-manipulador faz com
que o destinatário-sujeito aceite suas estratégias de convencimento para entrar em
conjunção ou disjunção com determinado objeto – como observamos até aqui.
A partir deste ponto, entendemos que esta interação pela lógica da
junção entre destinador e destinatário em textos sincréticos, particularmente, tele-
visuais, como é o nosso caso, utiliza-se de forma bastante acentuada de sua capa-
cidade estésica. Como já observamos no capítulo 2, o texto televisual, por convocar
simultaneamente, e articulados entre si, dois canais sensoriais – o visual e o sonoro
–, produz efeitos sensíveis no enunciatário pela combinação de arranjos sincréticos
realizados por uma única estratégia global de comunicação.
Citemos o episódio “A verdade nua e crua”. Quando o ator-Gislene,
na figura de Denise, atende a porta do seu apartamento ao homem que faria o
striptease na sua festa de aniversário, mostra-se decepcionada juntamente com as
suas amigas (Figura 37). A plástica televisual nos faz ver o stripper de um ângulo
alto, criando a impressão de que o homem é baixo e magro. Neste momento, o
discurso se utiliza de uma música em BG com cadência muito compassada de um
som grave de um instrumento de sopro que caracteriza a “decepção” das mulheres
163
que esperavam por um homem alto e musculoso simulacro do
stripper
. E é isso
que causa o riso! A expectativa de Gislene e suas amigas por este momento é com
-
pletamente desfeita, porque há a troca de simulacros: ao invés de um homem alto
e forte, aparece um baixo e magro.
FIGURA 37
A decepção de Gislene e suas amigas com o stripper
Com este exemplo e o citado anteriormente do episódio “Passando
Com este exemplo e o citado anteriormente do episódio “Passando
a noite em claro”, entendemos que o riso provocado por
Retrato Falado
é produzi
-
do pela articulação das duas sensorialidades o visual e o sonoro na construção
discursiva do quadro que leva tanto a uma percepção cognitiva quanto estésica. É
pela sensorialidade perceptiva do telespectador que faz com que ele
sinta
pelo riso
a “consistência estésica”
4
do quadro. Podemos nos perguntar, com isso, se este
fa
-
zer sentir
– que se dá pelo riso – é mais uma estratégia de manipulação criada pelo
sentir
enunciador para convencer o seu enunciatário; se é uma estratégia que se utiliza do
“sensível” para manipular.
Para Landowski, ao observarmos elementos pertinentes à dimensão
do sensível, do estésico, saímos dos limites de uma semiótica da junção para entrar
na dimensão de outro regime de sentido, o da união. Landowski afirma, sobre o
regime da união q
ue
“entram em relação, de um lado, sujeitos dotados de ‘sensibilidade’ de uma
aptidão para sentir, e, portanto, de uma
competência estésica
– e, do outro,
manifestações dotadas, enquanto realidades materiais, de uma
consistência
estésica
, isto é, de qualidades ditas, elas também, ‘sensíveis’ (especialmente
de ordem plástica e dinâmica), oferecidas à nossa percepção sensorial”
5
.
4
E. Landowski,
Aquém ou além das estratégias, a presença contagiosa
, p.18.
5
Ibid
.
164
Esta relação actorial pode se apresentar seja como sujeitos (humanos
ou não), seja como simples objetos (obras de arte, paisagens etc)
6
.
A partir dos exemplos citados, apontamos que, na interação entre Re-
trato Falado e o seu público, esta dimensão sensível com a “competência estésica”
do telespectador que é dotado de percepção sensorial que o faz sentir e o quadro,
por sua vez, possui a “consistência estésica” capaz de fazer sentir no telespectador,
principalmente, pelos arranjos plásticos sincréticos do texto televisual em questão.
Neste segundo regime de sentido, um processo classificado por
Landowski como “contágio” que se caracteriza pelos actantes entrarem estesica-
mente em contato dinâmico, sendo a sua co-presença interativa reconhecida como
apta a fazer sentido, no ato, e a criar valores novos
7
. É a sua “co-presença sensível,
ou corpo-a-corpo estésico”
8
, que traçam diferenças em modos de estar-no-mundo
e de estar presente para o outro, em relação ao regime de junção que é fundamen-
tado na troca de objetos
9
. O contágio se no modo da simultaneidade com uma
partilha de afetos do corpo e da alma, é um sentir recíproco. Landowski afirma ainda
que “é a própria presença de um sujeito rindo desejando, etc. junto ao seu outro
que faz com que o segundo, quer de bom grado quer não, se encontre comovido,
transformado, contaminado pelo primeiro”
10
.
Como podemos pensar em “contágio” a partir de um programa de
televisão? Como pode haver um “corpo-a-corpo estésico” e um “sentir recíproco”?
É possível se dar a contaminação, o contágio? Podemos trazer o texto “Viagem às
nascentes do sentido” do próprio Landowski para refletir sobre isso. A partir do
exemplo de uma certa pintura
11
, o autor considera que
“a encenação que ele [o quadro pintado] do modo de se articular di-
namicamente a co-presença, corporalmente vivida, entre um certo sujeito e o
ambiente que o circunda, consegue fazer-nos sentir o sentir do outro, in situ,
quase como se nós também estivéssemos aí”
12
.
6 E. Landowski, op.cit., p. 18.
7 Ibid., p.19.
8 Ibid., p. 24
9 Ibid.
10 Ibid., p.40.
11 Obra de Corot, Souvenir de Monterfontaine (1864 – Museu do Louvre).
12 I.A. Silva (org.), Corpo e Sentido, p. 35.
165
É a organização plástica da pintura que fornece uma interpretação
da ordem “estésica”; é a simulação pictórica que media uma experiência da co-
presença, e segundo ele, “quase intersomática”
13
. Como vimos, a própria televisão
já se utiliza, em sua plasticidade, das sensorialidades visual e sonora para “nos fazer
sentir”. Em Retrato Falado, entre os actantes da comunicação o destinador e o
destinatário –, uma “co-presença interativa”, em ato, primeiramente, porque o
tempo da recepção do telespectador coincide com o tempo da veiculação do qua-
dro, instaurando aos dois sujeitos a presença mútua.
Sabemos que o quadro é um produto realizado com certa antecedên-
cia a sua veiculação, entretanto o seu momento de exibição é o mesmo em que o
telespectador recebe em seu aparelho de televisão. É no tempo presente que se
a interação entre os sujeitos, o mesmo agora que é manifestado no enunciado Re-
trato Falado, como vimos anteriormente
14
. E é no aqui da enunciação projetado no
enunciado o set de gravação onde se passa toda a história que o enunciatário
“vive” esta interação em ato e, pelos efeitos sensíveis do texto, também estésica. É
no agora e no aqui que se realiza a interação sensível entre os sujeitos.
O eu – projetado no enunciado – é assumido primeiramente pelo nar-
rador-Denise e sua relação com o narratário-telespectador se pelo diálogo esta-
belecido no discurso, uma relação intersubjetiva. Pela visualidade do actante Denise
Fraga, com seu posicionamento em plano próximo, gesticulando e olhando para o
telespectador, e pela sonoridade de sua fala envolvente, voltada a quem assiste, e o
seu tom de voz jocoso, instaura-se também uma relação intersomática entre os dois
sujeitos. Além da fala da apresentadora, entendemos é o próprio corpo de Denise
que “emana” ao telespectador o seu “bom humor” e esta percepção “sensível” se
pela articulação das duas sensorialidades – visual e sonora – do texto da tevê e se
cria uma “empatia” do telespectador para com Denise.
Entendemos que se uma “co-presença sensível ou corpo-a-corpo
estésico” entre Denise e o telespectador e há o “contágio” do estado “bem humo-
13 Cf. E. Landowski, op.cit., p. 35.
14 Esta análise da enunciação foi realizada no capítulo 3.
166
rado” do primeiro sujeito em relação ao segundo. Consideramos que a dimensão
“sensível” pela “consistência estésica” do quadro atinge o enunciatário no plano
somático por ele “ver e/ou sentir” o riso do seu interlocutor. São as duas dimensões
a intelegível e a sensível que se reúnem e se misturam na própria experiência
vivida
15
do enunciatário ao assistir a Retrato Falado.
Entendemos que é esta interação “sensível” que se cria com a figura
de Denise que leva o telespectador a sentir, rir, fazer. Ele é convidado pelo ator-
apresentadora Denise, e “contaminado” pelo seu bom humor, a envolver-se com
a história do quadro. Reconhecendo a sua figura durante a história, é levado a “se
identificar” com o simulacro da “mulher brasileira” que ela figurativiza através dos
diversos personagens que interpreta. Para Landowski, é no mundo natural que nos
circunda, através dos espaços sociais, que podemos nos identificar com o outro pela
sua presença física, como corpo visível e sensível
16
. Assim, consideramos que a tele-
visão também é um meio pelo qual encontramos o outro em sua dimensão sensível.
A identificação do telespectador também pode se dar pela relação que a “brasileira”
estabelece com outros simulacros, por exemplo, com o do “homem brasileiro” que
se constrói na relação com a mulher.
É a figura de Denise, que se mostra primeiramente como apresenta-
dora, que leva o telespectador a identificar-se com a protagonista da história do dia,
tanto figurativizada por Denise quanto pela pessoa que vivenciou o fato contado. É
a “co-presença sensível” entre Denise e o telespectador que o leva a identificar-se
com o actante na figura de Denise que sente e o contagia, levando-o a sentir tam-
bém. Indentificando-se com ela, o enunciatário adquire o poder e saber fazer para
assumir o papel da mulher brasileira apresentado no quadro. E, “contagiado” pelo
seu bom humor, sente a história contada e ri dela.
No exemplo que citamos no início deste capítulo, do episódio “Entre
o brasão e o passaporte”, em que o ator-Célia, em um diálogo com o enunciatário,
decide com quem vai continuar namorando (Figura 32); o discurso cria uma con-
15 Cf. E. Landowski, op.cit., p. 26.
16 Cf. I.A. Silva (org.), Corpo e Sentido, p. 33.
167
versa íntima entre o ator-Célia (Denise) e “seu/sua amigo(a)” telespectador(a) que
compartilha a sua tomada de decisão. É uma “co-presença sensível” entre os dois
sujeitos da relação capaz de criar ou afirmar uma identificação do enunciatário com
a figura de Denise.
No episódio “De cabelo em pé”, por exemplo, na seqüência de cenas
em que o ator-Isabel, na figura de Denise, vai ao banco com o capacete de motoci-
clista na cabeça e não o tira para não estragar o processo de tintura que estava no
cabelo
17
; entendemos que uma percepção estésica por parte do enunciatário-
telespectador. Como observamos antes, é a simulação criada pela plasticidade tele-
visual que, com a co-presença corporalmente vivida entre um sujeito e o ambiente
em que se encontra, nos “faz sentir o que o outro sente”, como se também esti-
véssemos ali. O telespectador parece sentir junto com o ator-Isabel o que ela sente,
ao esperar na fila, o ônibus para voltar para casa (Figura 38). Isabel agita agoniada
a cabeça e com as mãos bate no capacete e tenta coçar a cabeça. O enunciatário
parece sentir a sensação de incômodo, ardência e coceira na cabeça depois de tan-
to tempo com a tinta no cabelo coberto com tantos objetos touca de borracha
para o reflexo, plástico, boné e capacete – e ainda estar parada embaixo de um sol
quente.
Neste exemplo, temos uma construção discursiva que se utiliza de
procedimentos de manipulação como observamos no início deste capítulo e
no capítulo 4 que faz o telespectador rir da seqüência de cenas apresentadas até
então, a partir da troca de simulacros. Assim temos um fazer sentir pelo riso numa
dimensão inteligível. Como texto sincrético, estes procedimentos são criados pelas
sensorialidades visual e sonora que articuladas produzem efeitos sensíveis no enun-
ciatário, uma dimensão estésica que faz este enunciatário também ser “contagia-
do” pela figura de Denise e ter uma percepção “sensível” do que sente o ator-Isabel
durante a sua trajetória ao banco.
17 No episódio “De cabelo em pé”, a protagonista Isabel decide fazer reflexo em casa antes de viajar com a
família para a praia. Quando faltavam 15 minutos para tirar a tinta do cabelo, o marido pede para que ela
ao banco sacar dinheiro antes da viagem. Ela decide ir sem tirar a tinta do cabelo e, para isso, usa um
plástico para cobrir o cabelo e um boné. E, durante o trajeto até o banco que faz de moto, coloca o capacete
na cabeça ao ver uma blitz rodoviária.
168
No quadro estudado, observamos a interação pelo regime da junção
pela manipulação e da união pela estesia provocada no telespectador, o “contágio”.
É uma dinâmica em que os componentes cognitivos e estésicos estão tão interliga
-
dos que não seria possível dizer onde começa um e onde termina o outro
18
. Lando
-
wski nos ensina que “na prática, é raro que as coisas sejam tão nítidas”
19
, não é de
forma mecânica que observamos separadamente os dois regimes de sentido, o da
junção e o da união.
Com estas considerações, entendemos que a interação entre
Retra
-
to Falado
e o seu público se pelos dois regimes de sentido abordados aqui. Na
dimensão sensível, observamos que o corpo-a-corpo estésico entre a figura de
Denise e o enunciatário que é “contagiado” por ela. Entretanto, esta interação não
é um “sentir recíproco”, uma via, aquela entre Denise e o enunciatário. Para
Landowski, este tipo de interação é chamado de “contágio por impressão” que é
desenvolvida no plano sensível, intersomático, em que a relação se passa, do ponto
de vista do resultado, como se ainda estivesse sob o regime da junção
20
. Ou seja, no
quadro, o enunciador constrói seu discurso, utilizando-se do sensível para
fazer
o
fazer
seu enunciatário
ser
a mulher brasileira em questão.
ser
Ainda para Landowski, esta interação reproduz, de forma calculada,
processos pré-estabelecidos, dentro do quadro da manipulação esquematizada pela
gramática narrativa
21
. É uma forma unilateral de contágio que tende a fazer com
18
Cf. E. Landowski,
op.cit.,
p. 26-7.
19
Ibid.
, p.26.
20
Ibid.
, p. 50.
21
Ibid
.
FIGURA 38
Início da seqüência de cenas de Isabel no ponto do ônibus:
faz-nos sentir o que o outro sente
169
que o sujeito contaminado percorra fases de um programa predefinido pelo outro
que o contamina e “que resta apenas, em suma, executá-lo”
22
, no caso, assumir o
papel da mulher brasileira apresentada por
Retrato Falado
.
Voltemos ao epidio “A verdade nua e cruapara mais um exem
-
plo sobre ocongio por impreso”. No início do quadro, o ator-apresentadora
Denise Fraga introduz o episódio dizendo que era aniversário de Gislene a pro
-
tagonista da hisria e que “ela queria fazer uma coisa diferente... aliás, bem
diferente!”. Neste momento, cria-se a identificação do telespectador com a figura
de Denise que se mostra bem humorada, sorrindo, e o deixa em suspense para a
hisria que vai começar. Quando se inicia a encenação, o ator-Gislene, na gura
de Denise, mostra-se no centro da tela de todas as cenas seguintes: está na cabe
-
ceira da mesa e ao centro do sofá, ou apresenta-se em primeiro plano praticamen
-
te em todo o episódio.
FIGURA 39 –
No início da encenação, o ator-Gislene, na figura de Denise, conta
para as amigas que, para comemorar o seu aniversário, vai contratar “um homem
lindo” para fazer
striptease
. Ao dizer isso, o ator-Gislene, ao centro da tela e suas
duas amigas, uma de cada lado, gritam animadas com a idéia. Neste momento, en
-
tra o ator-Gislene, na figura da pessoa “real”, que afirma: “Dá vontade de ver um
striptease
. Ninguém tinha coragem de pedir ao marido para fazer um
strip
, então...
surgiu a vontade da gente vê”. Volta à encenação, no mesmo cenário e com o
mesmo enquadramento, com todas as três mulheres olhando para o telespectador,
a câmera, e uma das amigas diz: “A gente? Eu não disse nada” (Figura 40). Com
22
Cf. E. Landowski,
op.cit.,
p. 50.
FIGURA 39
O telespectador identifica-se com a figura de Denise Fraga
170
esta cena, os sujeitos estabelecem contato com o público pela visualidade e, mais
uma vez, a figura de Denise se sobressai por estar ao centro da tela.
A seqüência de cenas seguintes mostra o ator-Gislene e suas amigas,
lendo um jornal, sentadas num sofá, ansiosas por escolher o
stripper
para a festa
stripper
de aniversário. Elas gritam animadas ao lerem os anúncios, levantando e mexen
-
do as pernas, demonstrando “ansiedade” e “agitação”. O enunciatário “sente” o
mesmo a partir da plástica televisual que explora as sensações das três mulheres. O
enquadramento de um ângulo alto traz, ao centro da tela, as três amigas no sofá,
uma ao lado da outra, por trás de um jornal aberto. Não se vêem os rostos das
três, apenas as pernas que se mexem “agitadas”, evidenciando a “ansiedade” por
cada anúncio lido que se ouve acompanhado por “gritinhos” quase histéricos. Esta
“animação” leva o enunciatário a “animar-se”, curioso por ver também o que elas
lêem. Neste momento, o enunciador desvenda para o telespectador os anúncios,
colocando duas cenas em seqüência, cada uma com um homem que fala olhando
para o telespectador, anunciando seus trabalhos de
stripper
como se falasse para as
stripper
três amigas.
FIGURA 40
Início do episódio “A verdade nua e crua”
FIGURA 41
Gislene e suas amigas ansiosas por escolher o stripper
171
Com o
stripper
escolhido, o ator-Gislene, na figura de Denise, ainda
stripper
ladeada pelas amigas no sofá, fala ao telefone, contratando-o. São as expressões
corporais das três mulheres que contagiam o enunciatário, elas se mexem ansiosas.
A plástica televisual de um enquadramento em plano próximo com câmera parada
concentra a atenção do telespectador nas três amigas ansiosas, nos seus corpos que
se mexem e remexem inquietos. A ansiedade delas também é mostrada pela fala.
O áudio ao “clima de ansiedade” um tom jocoso à situação por trazer uma so
-
noridade de instrumentos simples e ritmo com batidas espaçadas. Quando Gislene
conclui a ligação, ela e as amigas gritam de ansiedade porque vão ver o
striptease
(Figura 42). São os corpos que sentem e, pela construção sincrética, estabelece uma
co-presença sensível com o telespectador, contaminam-no a partir de sua percepção
sensorial.
Esta “contaminação” do telespectador pelas sensações dos sujeitos
continua ao longo das cenas seguintes pela plástica televisual. Com enquadramento
próximo e câmera parada, exploram-se as expressões corporais, bem como o modo
de falar e os gritos e a movimentação dos corpos no cenário. E é a sonoridade
do samba que acompanha as cenas que a situação um tom divertido, jocoso.
Constrói-se assim o riso. É através deste sincretismo de linguagens que o público se
“contagia”, ficando tão ansioso quanto os atores da narrativa, mas divertindo-se
com o episódio que está no ar.
FIGURA 42
A ansiedade de Gislene e suas amigas para ver o striptease
172
Apontamos até aqui elementos que nos indicam que um “contá
-
gio por impressão” neste episódio. Abordamos a dimensão sensível do quadro e a
sua percepção sensorial pelo telespectador. Entretanto, não podemos nos esquecer
que simultâneo ao sensível, a construção discursiva também explora a dimensão
inteligível. o
fazer rir
do quadro pelo regime da manipulação como abordamos
rir
antes, ainda neste capítulo. Como nos diz Landowski, “... não nos sentimos, em
caso semelhante, de forma alguma obrigados a escolher entre os termos de uma
alternativa”
23
. As duas dimensões podem se diferenciar analiticamente, mas se r
-
nem e se misturam enquanto experiências vividas.
A
INTERAÇÃ
O
PEL
O
FAZER SENTIR
: SENSIBILIDADE
REATIVA E/
O
U PER
C
EPTIVA?
Entendemos que os destinadores das várias mídias em geral constro
-
em discursos baseados no regime da manipulação em busca de conquistar ou man
-
23
E. Landowski,
op.cit.
, p. 26.
FIGURA 43
O riso “contagioso” de Gislene e suas amigas
Ao final
da performance do
stripper
, após a sua saída, uma mudan
-
ça do que as três amigas sentem, elas não param de rir (Figura 43). É um riso que
também contagia o telespectador por “ver” e “sentir” o riso delas. Durante toda a
história, a figura de Denise continua em destaque, mostra-se sempre em primeiro
plano, bem mais perto do enunciatário.
173
ter o seu destinatário vinculado aos seus valores e verdades. Entretanto, pelo que
apontamos até aqui, é possível observar outros tipos de interação. Identificamos os
dois regimes de sentido, o da junção e o da união em Retrato Falado, um produto da
mídia televisiva que é englobado a um dos mais tradicionais programas de televisão
do país. Num primeiro momento, abordamos o regime de sentido por junção com
a interação pela manipulação que consideramos como o eixo central da construção
discursiva do quadro em questão. No entanto, apontamos também como se o
regime da união pelo contágio por impressão.
Citemos o livro Lês Interactions risquées
24
de Landowski, na parte
em que explica o modelo proposto com os quatro regimes de interação
25
e, a um
certo ponto, se detém no exemplo do político. O autor afirma que a profissão da
política não é feita apenas de discursos programados pela razão e de discursos mani-
puladores através de promessas. Para ele, além ou aquém da argumentação, a polí-
tica requer, em certos momentos, de uma presença íntima, “estésica”, ajustando-se
às disposições, às esperas, aos movimentos, aos humores dos cidadãos para, assim,
poder captar e realizar o potencial da própria política
26
.
A partir desta consideração, podemos fazer uma analogia com a pró-
pria mídia, em particular, o quadro em estudo. Entendemos que Retrato Falado tam-
bém pode ser pensado além (ou aquém?) da manipulação. Primeiramente, em sua
co-presença sensível de sujeitos em ato, observamos que o quadro se utiliza de um
fazer sentir o qual é construído pela plástica televisual para que o enunciatário “sin-
ta” o que os atores da narrativa “sentem” contágio por impressão. Além disso,
um fazer sentir que se dá pelo riso ao discurso apresentado, um riso provocado pela
dimensão cognitiva e/ou estésica.
Ainda observando esta dimensão sensível que nos indica o regime de
sentido por união, podemos trazer um outro regime de interação, o do ajustamen-
24 Cf. E. Landowski, Les ineractions risquées.
25 Landowski expõe quatro regimes de interação: a programação, a manipulação, o ajustamento e o acidente.
Retoma os dois primeiros da semiótica narrativa clássica e propõe os dois últimos para compor um quadrado
semiótico para que este possa ser um modelo geral para a disciplina.
26 Cf. E. Landowski, op.cit., p. 78.
174
to
27
. No ajustamento, são os sujeitos em contato que se vêem com um corpo capaz
de sentir, possuem uma sensibilidade. É o fazer sentir recíproco em contato direto e
o modo de fazer junto que fundamenta este tipo de interação. Os actantes (pessoas
ou coisas) em relação podem ter sua competência modal – fundamental ao regime
da manipulação –, mas o que diferencia a manipulação do ajustamento é o corpo
que sente. Os sujeitos não vão mais atrás apenas da liquidação da falta ou da satis-
fação de desejos pessoais, mas buscam uma forma possível de realização mútua.
Landowski nos apresenta, no livro citado acima, dois tipos de sensi-
bilidades: a reativa e a perceptiva
28
. Ao exemplificar o ajustamento que se pela
sensibilidade reativa, o autor atribui a este tipo de interação ao que “sentimos” ao
tocar um teclado de computador ou um pedal de um acelerador quando estes pos-
suem uma tecnologia sofisticada que nos impressiona com as mais sutis e discretas
reações. Seguindo este pensamento, podemos dizer que este tipo de ajustamento
se por uma via unilateral de efeitos sensíveis entre os actantes em relação, a
exemplo do contágio por impressão. Assim, consideramos que, em Retrato Falado,
encontramos o ajustamento a partir de uma sensibilidade reativa que se dá pelo riso
do enunciatário, uma reação sensível e imediata de contato direto entre o enuncia-
tário e a consistência estésica do discurso em questão.
Para o ajustamento pela sensibilidade reativa, citemos o exemplo do
epidio Dente por dente, ou jaqueta por jaqueta”. A cena em que o ator-Mariza,
após escovar os dentes, ao se olhar no espelho, grita assustada quando percebe
que o seu pivô do dente da frente tinha caído pelo ralo; o enunciatário ri com o
próprio grito e a expressão de pavor da protagonista. Com o que já observamos, o
enunciatário não tem vidas de que a situão mostrada é mica, é para fa-
lo rir. Com este riso a partir do que é percebido que não é apenas cognitivo,
mas estésico; entendemos que se uma reação imediata do telespectador, uma
reação para ajustar-se a consistência estésica do quadro. Assim, podemos pensar
a interação entre Retrato Falado e o seu telespectador como um ajustamento pela
sensibilidade reativa.
27 Cf. E. Landowski, op.cit., p. 39-47.
28 Ibid.
175
O outro tipo de sensibilidade, a perceptiva, segundo Landowski, per
-
mite que os actantes em contato experimentem pelos sentidos o mundo exterior,
a partir da presença de outros sujeitos ou mesmo objetos, e sintam alterações que
afetam os estados do corpo, além de proporcionar interpretar essas sensações dife
-
renciadas, fazendo elas mesmas sentido
29
. Este segundo tipo de sensibilidade leva
a um ajustamento que possui uma via de mão dupla que faz com que os actantes
em contato se sintam reciprocamente e, nesta interação, estejam aptos a perceber
o mundo e competentes a lhe dar sentido.
No tópico precedente, fizemos considerações sobre a competência es
-
tésica do enunciatário-destinatário de
Retrato Falado
, além da sua percepção tam
-
bém sensível. Ao longo do período em que esteve no ar, observamos que no quadro
ocorreram algumas mudanças na forma de manifestação dos episódios. Estas alte
-
rações não seriam um ajustamento que se dá pela sensibilidade perceptiva entre os
actantes enunciador-destinador e enunciatário-destinatário? A partir desta relação
sensível, a consistência estésica do quadro não poderia ter sido modificada para se
ajustar ao seu enunciatário?
Se pensarmos o desenrolar de uma telenovela, o seu encaminhamen
-
to muita vezes é mudado a partir da reação do público. Como não é um produto
finalizado para posterior exibição, a sua realização se quase concomitante a sua
produção; não poderíamos considerar esta relação entre os actantes destinador e
destinatário da telenovela como um ajustamento pela sensibilidade perceptiva? Este
tipo de ajustamento não poderia ocorrer entre o público e uma telenovela ao longo
29
Cf. E. Landowski,
op.cit.
, p. 43-47
FIGURA 44
Ao escovar os dentes, Mariza perde o pivô do dente da frente no
dia do casamento da filha, um domingo
176
de sua realização e veiculação? Ou as mudanças ocorridas na telenovela a partir
da reação do público apenas estariam ligadas a interação por manipulação? Como
dissemos antes, as duas dimensões sensível e inteligível – base dos regimes de senti-
do – não se excluem mutuamente; estão tão ligadas que seria difícil ver com nitidez
os limites entre elas. Assim, consideramos, nesta relação entre destinador e desti-
natário de uma telenovela, a possibilidade de um ajustamento pela sensibilidade
perceptiva.
Observemos, então, em Retrato Falado, algumas mudanças na sua
manifestação – consistência estésica do quadro –, ao longo do tempo, que conside-
ramos como ajustamento a partir da sensibilidade perceptiva entre os actantes desti-
nador e destinatário. Como estes actantes delegam o fazer para o sujeito complexo
enunciador e enunciatário –, comecemos por apontar as modificações feitas por
este sujeito na produção do quadro. Temos que, ao longo do período que esteve no
ar, Retrato Falado passou a ter mais cenas na sua parte ficcional em que os atores
estabelecem uma relação direta com o telespectador, reiterando a relação “eu/tu”
criada a partir do narrador Denise.
No episódio “Entre o brasão e o passaporte”, o segundo que consta no
DVD, na cena em que o ator-Célia, na figura de Denise, juntamente com os outros
atores-namorados, olha para a câmera e fala com o telespectador, assume a voz do
discurso e estabelece a relação “eu/tu” com o enunciatário. Os três atores olham para
a câmera, enquanto o ator-Célia pergunta aos namorados se eles poderiam ser dubla-
dos para serem compreendidos por ela e pelo público brasileiro (Figura 29 – Cap. 4).
O narrador implícito voz ao interlocutor-personagem ator-Célia que estabelece
uma relação direta com o telespectador que passa a ser também interlocutário.
Ainda neste episódio, num outro exemplo citado anteriormente,
o ator-Célia conversa com o telespectador, compartilha com ele a sua decisão de
escolha de um entre os dois namorados (Figura 32). Mais uma vez, temos o enun-
ciatário como interlocutário. Entendemos que, com este tipo de procedimento, o
enunciador rompe com o modo tradicional de narrar a história, fazendo com que o
enunciatário também sinta-se parte dela.
177
Este recurso de narração volta a ser usado pelo enunciador de modo
mais freqüente a partir do sétimo episódio do DVD, a sua metade. Volta-se a dele
-
gar a voz, de modo particular, aos personagens interpretados por Denise, a figura
central das histórias de
Retrato Falado
, aquela que estabelece a “empatia” com o
telespectador, além da sua identificação por ele. O episódio “Baixaria nas alturas”
utiliza, em duas cenas do início, este recurso do ator na figura de Denise “conver
-
sar” com o enunciatário-interlocutário. São as cenas dentro do avião em que o ator-
Ruth compartilha todo o seu medo de voar de avião com o telespectador, olhando
e falando com ele.
Um outro episódio
que observamos o uso de um recurso parecido com
este é “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”. No início e, principalmente, no fim,
o ator-Zuca e seu marido olham para o telespectador, estabelecendo contato, con
-
tudo não conversam com ele, apenas comentam a animação gráfica que foi exibida
e vista pelo telespectador. É como se os atores do enunciado também assistissem
junto com o enunciatário ao que foi exibido. Este recurso usado pelo enunciador
desvenda, mais uma vez, que o tradicional discurso ficcional da televisão não está
sendo seguido, criando assim um modo de interação entre os atores do discurso e o
enunciatário: juntos compartilham tudo o que vêem.
Na última cena do referido episódio, os dois atores, olhando para o
público, pedem para “cortar” a gravação. Sorrindo e brincando, mostram-se como
os personagens da história, mas sabem que estão sendo “filmados”, que estão na
televisão (Figura 46). O enunciador desvela, outra vez, o seu fazer do enunciado ao
enunciatário. Estes procedimentos de realização citados tornam-se mais presentes
no discurso do quadro, uma forma de aproximação e interação com o seu público,
que consideramos como u
m modo de ajustar-se ao seu destinatário.
Um outro episódio
que observamos o uso de um recurso parecido com
FIGURA 45
Ruth conversa com o telespectador sobre o seu medo de voar de avião
178
O ajustamento que se pela sensibilidade perceptiva em
Retrato
Falado
pode ser observado ainda pela inserção de pessoas famosas nos episódios.
Temos a cantora Elba Ramalho e o dançarino de Hip Hop Nelson Triunfo (“Debaixo
dos caracóis dos seus cabelos”) que comentam sobre o cabelo crespo; o ex-jogador
e técnico de basquete (“Dente por dente, ou jaqueta por jaqueta) que fala da difi
-
culdade em não ter um pivô no jogo, e episódios que trazem a própria história de
pessoas conhecidas como a cantora Ângela Maria
30
. Entendemos como maneiras de
proceder para manter a atenção do seu enunciatário-destinatário ao quadro, uma
forma de ajustamento ao desejo do telespectador em ver pessoas famosas que são
ídolos de muitos.
Retrato Falado
passou também a exibir histórias de mulheres que são
fãs de celebridades, trazendo, assim, essas para participar do quadro como a apre
-
sentadora Xuxa, o cantor Roberto Carlos e a dupla sertaneja Zezé de Camargo e Lu
-
ciano
31
. Além disso, há sempre nos episódios um artista famoso do elenco da Rede
Globo conhecidos do grande público da emissora –, interpretando algum perso
-
nagem da história contada como Otávio Augusto, Eloísa Mafalda, Flávia Alessandra,
Evandro Mesquita, Reginaldo Faria etc. Mais uma vez, consideramos um modo de
ajustar-se ao querer do telespectador, como dissemos antes.
Também apontamos como “ajustamento” o aumento da participação
de profissionais de áreas específicas inseridos nos episódios para explicar certos as
-
suntos abordados. Por exemplo, temos a entrevista do psiquiatra Dr. Edson Engels
30
Este episódio não consta no DVD de
Retrato Falado
, mas foi exibido no
Fantástico
e está no site do progra
-
ma para ser assistido.
31
Estas histórias estão em episódios que não constam do DVD de
Retrato Falado
, entretanto foram exibidos
no
Fantástico
e estão a disposição no site do programa para quem quiser assistir.
FIGURA 46
Final do episódio “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”
179
para explicar o uso do álcool pela personagem Ruth; do Tenente Moreno do Poli-
ciamento de Trânsito que informa sobre a penalidade do não uso do capacete pelo
motociclista e seu carona na história de Márcia e do cabeleireiro Mauro Freire para
falar sobre o uso das mechas no cabelo da personagem Mariza. Este é um recurso
também para reiterar o efeito de sentido de verdade e realidade. Não poderíamos
considerar este recurso também como um modo do quadro ajustar-se ao seu teles-
pectador?
Encontramos também a mudança do uso da tela widescreen no qua-
dro como observamos no capítulo 3. As entrevistas das pessoas “reais” ficam
em formato da tela da tevê pela qual assistimos aos telejornais ou noticiários, reite-
rando, mais uma vez, os efeitos de verdade e realidade. E a encenação da história
passa a ser exibida em tela widescreen que nos remete ao cinema, meio pelo qual
se privilegiam as histórias ficcionais, irreais, um imaginário de um mundo sem sofri-
mentos, um mundo feliz, de sonhos. Entendemos esta mudança também como um
ajustamento do quadro ao seu público.
Outra forma que consideramos como o ajustamento em Retrato Fa-
lado é a própria alteração da vinheta de abertura, modificada 3 vezes durante o
tempo em que esteve no ar. A última vinheta que consta no DVD, a mesma que
estava no ar até o ano de 2007, teve uma mudança relevante em sua plasticidade
comparando com as anteriores – como observamos no capítulo 2. Há a manifesta-
ção no enunciado de um sujeito fotógrafa que consideramos como o próprio enun-
ciador. Este sujeito é a figurativização de Denise Fraga, aquela que contagia e cria
identificação com o enunciatário; ela é o delegado do enunciador. Na narrativa, a
figura de Denise fotógrafa, que olha para o telespectador e o “prepara” para a foto,
é a figurativização do processo de escolha da pessoa que vai contar a história, pois
mostra que é o enunciador quem escolhe.
O painel por trás desta fotógrafa é formado exclusivamente por fotos
de mulheres e isto evidencia que a escolha deste enunciador será de uma mulher. As
cores que predominam na plástica televisual são tons claros do vermelho, que nos
remetem ao cor-de-rosa, uma cor dita feminina. Assim, a vinheta é também a figu-
180
rativização da interação entre Denise e o telespectador, ou melhor, a telespectadora:
ela olha, gesticula e tira uma foto “dela”. Entendemos, com isso, que a mudança
da plasticidade da vinheta faz parte do ajustamento que se pela sensibilidade
perceptiva entre enunciador e enunciatário – Denise e as mulheres.
Com a mudança da vinheta, o verbal-escrito do nome do quadro não
tem mais o complemento “com Denise Fraga” como explicamos no capítulo 2. De-
nise recebe apenas a sua identificação quando aparece em sua apresentação que
passou a ser antes da exibição da vinheta de abertura. Entendemos, com isso, que
um ajustamento entre o quadro e o seu enunciatário. Não é preciso mais dizer que
é Retrato Falado com Denise Fraga, pois o telespectador “já sabe disso”. A imagem
de Denise e o crédito do seu nome bastam para que o telespectador reconheça
que ela é a atriz principal de Retrato Falado e que faz o papel principal de todos os
episódios já assistidos. A figura de Denise, a qual o enunciatário se identifica e pela
qual é contagiado, estabelece a interação com o telespectador.
182
Considerões finais:
a mulher “fantástica”
e o destinador social
A MULHER “F
A
NTÁSTIC
A
” DE
RET
R
RET
RET
ATO FALADO
RR
Em
Retrato Falado
, a mulher protagonista mostra-se como uma pes
-
soa comum, ordinária, que vive o seu dia-a-dia como todas as pessoas, os telespec
-
tadores. São mulheres que trabalham, estudam, tomam conta dos filhos, do marido,
cuidam da casa. Mas o que faz as suas histórias serem diferentes é ter a regularidade
do seu cotidiano rompida por algum acontecimento. E é esta ruptura da cotidiani
-
dade que ganha espaço e visibilidade na televisão.
O cotidiano em sua rotina, sua regularidade, a sua mesmice muitas
vezes levam as pessoas ao tédio, a uma perda de sentido da vida, a própria insignifi
-
cância
1
. O que quebra esta continuidade que faz sentido e, por isso, ganha evidência
na tevê. Em
Retrato Falado
, a continuidade da vida cotidiana é “ordinária, comum”,
e o que se opõe a isso, a descontinuidade, é “extraordinário, fantástico”. O próprio
dia de domingo em que o quadro é exibido assume o caráter de descontinuidade
do cotidiano, da quebra da rotina dos afazeres da semana. Além disso, o próprio
programa de televisão no qual é exibido se autodenomina “fantástico”.
No episódio “Marias Cecílias”, por exemplo, o fato apresentado é
o da senhora Shenca ter entrado na casa errada ao invés da casa da sobrinha. Na
continuidade do cotidiano de Shenca, ela vai com a família visitar uma sobrinha;
fato rotineiro na vida de famílias brasileiras. O rompimento desta continuidade se
1
Cf. E. Landowski,
Les interactions risquées
, pp. 53-71.
6
183
através de um acidente
2
: a programação da tia era ir visitar a sobrinha Maria Cecília
em sua casa, entretanto confunde-se e entra na casa da vizinha também chamada
Maria Cecília. A quebra da rotina de Shenca chama atenção e faz o enunciador re-
cobrir o esquema narrativo com os procedimentos da semântica discursiva, fazendo-
nos ver a ruptura da continuidade como um acidente cômico.
No episódio da dona-de-casa Nadja, ela se sente provocada pelo ma-
rido por ele achar que ela não faz nada em casa. O rompimento do cotidiano se dá
a partir da decisão de Nadja de não realizar os afazeres domésticos. Ela manipula
o sujeito marido por provocação para entrar em conjunção com o objeto-valor que
é ter seu trabalho doméstico reconhecido pelo marido. Neste caso, a ruptura da
continuidade se por um querer fazer que leva a uma manipulação. O esquema
narrativo é recoberto ricamente pela semântica discursiva.
No episódio “Baixaria nas alturas”, o rompimento do cotidiano de
Ruth se pelo seu medo em voar de avião. Ao ser promovida no trabalho, deve
cumprir suas atividades em diversas cidades do país e, para isso, precisará voar de
avião. O seu estado passional faz com que ela cumpra com muito sofrimento a pro-
gramação definida pela empresa em que trabalha, o seu destinador. Ruth passa a
tentar de diferentes modos superar o seu medo. São estas “tentativas” que ganham
espaço de visibilidade na televisão. A ruptura da regularidade do dia-a-dia de Ruth
está ligada ao seu estado passional e este medo é tematizado e figurativizado de
diversas maneiras, produzindo um discurso da ironia.
Cada episódio de Retrato Falado tem esta mesma estrutura narrativa
que é recoberta pelo enunciador através dos procedimentos da semântica discursiva
para causar o riso no telespectador. O discurso produzido nos faz ver o rompimento
de uma continuidade. É a descontinuidade do cotidiano que interessa a este enun-
ciador exibir na televisão, explorando pela tematização, figurativização e plastici-
dade os eventos que causaram esta quebra. São os fatos que rompem a rotina do
dia-a-dia, a regularidade cotidiana, a repetição monótona das mesmas coisas que
são explorados com figurativização diversa e de modo risível.
2 Cf. Ibid.
184
Estes fatos que são apresentados nas histórias estão ligados ao “aca-
so”, são os acidentes, como no episódio de Shenca, citado, mas também o de
Mariza que perde o pivô do dente da frente no dia do casamento da filha; Renata
que se mete em situações “embaraçosas” por parecer fisicamente com a atriz De-
nise Fraga. Outros fatos que causam ruptura têm um “estado passional” como pro-
pulsor da quebra cotidiana como o episódio mencionado de Ruth, além das histórias
de Quitéria que é movida pelos ciúmes que tem pelo Marido; Gislene que deseja
ver um striptease masculino etc. E a “manipulação” entre sujeitos é outro fator que
causa a quebra do cotidiano como no episódio citado de Nadja, mas também no
de Jutta que é provocada para desfilar de biquíni na praia numa época em que as
mulheres no Brasil ainda não usavam esta peça de vestuário; Zulmerina que provoca
o marido para ele deixá-la cortar os cabelos etc.
Alguns desses fatos “extraordinários” levam a atitudes que provocam
certa estranheza como, por exemplo, ir ao banco com o capacete de motociclista na
cabeça ou ter dois namorados ao mesmo tempo ou ainda largar o carro em pleno
engarrafamento na estrada e pegar carona com um motociclista desconhecido para
não perder o emprego. No entanto, esta mulher não se apresenta “estranha” ou
“anormal” por agir assim. Ela sabe o que faz e acha graça, ri de si mesma. E sem
questionamentos, retoma normalmente ao seu cotidiano, volta a regularidade, a
continuidade do seu dia-a-dia.
Esta maneira singular de agir se mostra como uma certa inventividade
por parte da mulher brasileira de Retrato Falado. Quando ela se vê em certa situação
que vai de encontro ao seu desejo ou ao que pensa, cria maneiras de buscar seus
objetivos como Zulmerina que, para fazer o marido deixá-la cortar os cabelos, deixa
de penteá-los. Ou como Senira que estuda sobre futebol para adquirir conhecimento
deste esporte e, com isso, conquistar mais a atenção do marido, seu objetivo primei-
ro. Zulmerina se utiliza da manipulação por provocação para convencer o marido. E
consegue. Por seu lado Senira, como sujeito de estado e do fazer, adquire o conhe-
cimento sobre futebol necessário para estar mais próxima do marido, o seu objeto-
valor. Temos assim protagonistas que têm um saber fazer para buscar a competência
necessária para a sua performance e entrar em conjunção com o seu objeto-valor.
185
Estas mulheres escrevem ao destinador Rede Globo contando estas
rupturas de continuidade e, com suas histórias selecionadas, ganham visibilidade.
Ao aparecerem na tevê, contando suas experiências femininas vividas em algum
canto do país, são “retratadas” pelo quadro do Fantástico como sujeitos que vivem
uma experiência diferenciada, e até mesmo imprevisível. No dia da semana carac-
terizado pelo mesmo semantismo, o domingo, dia que tudo pode vir a ocorrer, é
bastante propício para exibir este quadro que mostra o rompimento de uma regula-
ridade, da rotina do dia-a-dia.
Em cada episódio, as histórias retomam na tevê o contexto do vivido,
mas não de um vivido que é regido pela previsibilidade e sim pela quebra da con-
tinuidade. A partir de determinado evento ocorrido em sua rotina a ruptura da
regularidade –, ela passa de uma mulher comum a ser uma pessoa “não ordinária,
inabitual, inusitada”. Por esses fatos insólitos, fora do comum exibidos na televisão
que esta mulher se torna “extraordinária, fantástica”.
Com isso, ela adquire “renome” por atingir um patamar de traços
“extraordinários” por serem exibidos no Fantástico, um dos mais tradicionais pro-
gramas da maior rede de televisão do país. A partir do que consideramos até o
momento, a mulher de Retrato Falado passa de “anônima” a “renomada”. Do seu
“anonimato” cotidiano, torna-se “renomada” ao aparecer na tevê, no Fantástico,
no show da vida.
Com essas considerações, podemos relacionar o nosso quadrado se-
miótico de Retrato Falado, apresentado no capítulo 2, com um outro depreendido
do quadro em estudo sobre a mulher brasileira apresentada.
Não ordinária, inusitada
Identificada (Reconhecida)
Desconhecida
Extraordinária, Fantástica
Renomada
Não extraordinária, mediana
Desidentificada
VS. Ordinária, Comum
Anônima
186
Após atingir o patamar de fantástica e renomada por estar neste pro-
grama de televisão com circulação nacional; na continuidade de sua vida cotidiana,
esta mulher passa a ser reconhecida, ser identificada pelas pessoas nas ruas. Ela não
sai da euforia da complementariedade renome e identificação. Ao contar essas his-
tórias de experiências vividas, o enunciador doa a competência a seu enunciatário
para que ele saiba e possa também ser a mulher brasileira apresentada: passa de
comum, ordinária, a inusitada no seu dia-a-dia e ainda é qualificada por saber rir
da quebra de rotina no seu próprio cotidiano. Além disso, o enunciatário, no seu
percurso original, torna-se competente não por cumpri-lo de modo adequado,
mas, sobretudo, por fazer de modo risível e criativo todos os papéis sociais que a
envolvem no dia-a-dia.
Desta forma, consideramos que Retrato Falado também pode ser clas-
sificado como um fait divers. No primeiro capítulo, trouxemos a definição desta ex-
pressão pelo Dicionário de Comunicação
3
que define como notícia que implica em
rompimento da ordem dos acontecimentos do cotidiano, fato extraordinário. São
justamente os fatos que rompem com o cotidiano que levam estas mulheres a serem
“extraordinárias”. Assim, Retrato Falado também está na ordem do “extraordinário”,
o que exibe é “fora do comum”, é “fantástico”, faz parte do “show da vida”.
O DESTINADOR SOCIAL
Nos capítulos precedentes, apontamos rios papéis temáticos vividos
pelos atores-mulheres nos episódios analisados como o de esposa prestativa, dona-
de-casa eficiente, trabalhadora dedicada etc. São papéis encontrados na análise do
nosso corpus que estão ligados ao destinador Rede Globo que delega ao enunciador
o fazer para produzir o discurso de Retrato Falado. E pelos regimes de interação por
manipulação e ajustamento, o enunciador faz o enunciatário fazer e sentir a mulher
brasileira construída no Fantástico para justamente fazê-lo assumir este papel. Este
enunciador-destinador dá competências de saber e poder fazer para o enunciatário-
3 Cf. C.A. Rabaça e G.G. Barbosa, Dicionário de Comunicação, p.296.
187
destinário ser esta mulher brasileira, faz ele ser. Além disso, também faz ele sentir para
ser atras das experiências vividas pelas mulheres que as contam na televisão. Temos,
então, estratégias de convencimento (fazer fazer) e procedimentos de sensibilização
(fazer sentir) para fazer com que haja uma adesão ao simulacro da mulher brasileira.
Esta mulher “renomada, fantástica”, com visibilidade, ao escrever
para o destinador Rede Globo, agrega-se a ele, tornando-se um co-destinador. Ao
escrever, ela concorda com a visão de mundo da emissora, bem como a apóia. E, ao
estar na televisão, quer ser também um exemplo de mulher, daquela que sabe agir
em seus papéis sociais, satisfeita com a própria vida, o próprio cotidiano.
Mesmo com sua inventividade, suas estratégias engenhosas para al-
cançar os seus objetivos, esta mulher brasileira apresentada ainda mostra-se sub-
missa a um “poder masculino” que poderíamos considerá-lo como um destinador
masculino e este, por sua vez, assumido ou agregado pelo destinador Rede Globo.
Esposa ou companheira, ela é cumpridora dos seus deveres, dos seus vários papéis
sociais de esposa, dona-de-casa, trabalhadora etc. Não contesta as decisões do ma-
rido em nenhum momento, nem questiona o que lhe é imposto.
Esta mulher brasileira é passiva, mantém-se fiel à sua conduta, ao que
é esperado pelo destinador masculino. Não propõe uma nova ordem social em rela-
ção às questões de gênero já estabelecidas; não propõe uma insurreição. A mulher
brasileira construída em Retrato Falado mantém-se de acordo com as normas sociais
vigentes e, na televisão, reforça todo este modo de viver, cristalizando a estereotipia
desta mulher pelo seu simulacro construído. Com isso, apresentamos a “fantástica
mulher brasileira” de Retrato Falado!
O quadro em questão reitera a fala de Armando Nogueira, citada no
primeiro capítulo deste trabalho, em que diz: “a TV não é um instrumento revolucio-
nário. A TV está a serviço da ideologia vigente”
4
. Esta mulher “fantástica” apresen-
tada, co-destinadora com a Rede Globo, assume e reitera esta visão de um mundo
masculino que ainda impõe suas regras a serem cumpridas, apesar da enunciação de
4 E. Carvalho, M.R. Kehl e S.N. Ribeiro (orgs.), Anos 70 – Televisão, p. 39.
188
Retrato Falado manifestar uma estética contemporânea. São valores antigos apre-
sentados por um modo atual do fazer televisivo. A criatividade desta mulher é para
burlar estas normas antigas, rompendo em alguns momentos o seu cotidiano para
conseguir dar continuidade a sua vida diária. Sua inventividade não propõe manei-
ras de mudar esta sua situação cotidiana sujeitada a este destinador masculino com
valores de uma anterioridade, mas apenas apresenta algumas formas de driblar as
normas vigentes.
Os jogos da enunciação criados pelo enunciador atuam para a per-
manência deste simulacro de mulher em nossa sociedade. A sintaxe televisual pro-
porciona a criação de um envolvimento com o enunciatário por procedimentos de
várias ordens, estabelecendo uma certa relação de “amizade” com quem assiste ao
quadro. Esta “intimidade”, que é criada pela construção do discurso risível, faz com
que Retrato Falado revigore o simulacro da mulher brasileira, levando o seu enun-
ciatário a aceitá-lo quase de uma forma anestesiada e em silêncio. Não há conflito,
choque ou confronto com os papéis femininos apresentados.
Entendemos que a ironia ainda traz leveza a estas questões que são
reproduzidas para serem apreendidas e revividas pelo telespectador a partir dos
exemplos trazidos por estas mulheres através de suas atitudes. A ironia do discurso
não leva o enunciador a pensar ou questionar a ordem social, apenas o faz rir. Este
riso provocado é para o divertimento. A experiência vivida por estas mulheres que é
contada e encenada também é conhecimento adquirido pelo telespectador através
dos regimes de interação pela manipulação e pelo ajustamento pelo inteligível e
sensível com passagens abertas, intercomunicantes.
Segundo Fiorin, em seu livro Linguagem e Ideologia, “a linguagem
condensa, cristaliza e reflete as práticas sociais, ou seja, é governada por formações
ideológicas”
5
. Nesta perspectiva, com os usos de linguagem que nos debruçamos a
estudar, a da televisão, um uso sincrético do audiovisual, não é diferente. Em Retrato
Falado, a sua dimensão semântica, do nível discursivo, “sofre determinações sociais,
5 J.L. Fiorin, Linguagem e ideologia, p. 54.
189
mas tem um papel ativo no processo de aquisição do conhecimento”
6
. Assim, pode-
mos dizer que o quadro estudado é um meio pelo qual é possível reproduzir idéias
e práticas de uma particular visão de mundo, não pelo destinador Rede Globo,
mas também pela mulher que se torna destinadora ao querer e ser presentificada
na tevê, reiterando e validando a ideologia da emissora de tevê que está ligada a um
poder social masculino.
Entendemos que agregações de vários destinadores para delegar
ao enunciatário-destinatário de Retrato Falado cumprir e seguir as normas sociais
vigentes e aceitas. Além da Rede Globo, da mulher e de um poder masculino, um
outro destinador é a própria família que é o destinatário primeiro do Fantástico. A
família esta inserida na sociedade que, por sua vez, faz com que perdurem estes
papéis femininos que são apresentados no quadro em estudo. Assim, a família e a
sociedade também se mostram como co-destinadores. A sociedade sustenta as for-
mações ideológicas que são apresentadas na televisão e a família as reforça.
Entendemos que nesta rede de destinadores, a mulher faz um contra-
to com a sociedade e vice-versa para que os papéis femininos sejam mantidos.
Retrato Falado vem renovar esta relação através de figuratividades e plasticidades
diversas dos mesmos estereótipos. A sociedade se mostra como um destinador que
tem competência e, sobretudo, intencionalidade para falar para esta mulher desti-
natária que, quando faz ver sua experiência vivida na televisão, torna-se destinadora
e “ensina” a mulher destinatária o como fazer para ser a mulher brasileira, ela doa
competência para este fazer ser. Retrato Falado vem reiterar e reforçar o fazer da
mulher na sociedade e a sua importância dentro da sua visão de mundo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho foi um passo no estudo das questões semióticas
que consideramos relevantes como os regimes de sentido e interação e a plasticidade
da expressão do televisual por meio dos arranjos do seu sincretismo de linguagens.
6 Ibid.
190
Entendemos que são pelas articulações do plano da expressão que se pode observar
como o texto leva o seu destinatário a “sentir”, ou seja, como o texto faz sentir. E
são pelos regimes de interação que é possível compreender como esta sensibilidade
gera significação no todo de sentido do texto. Consideramos que ainda muito
que avançar nesta complexidade de relações como apreender os comportamentos,
os estilos, os gostos, que traçamos algumas linhas nesta direção e onde estão estam-
padas a continuidade de nossa investigação.
191
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www.revistafantastico.globolog.com.br.
www.intelsat.com.
http://redeglobo.globo.com.
198
ANEXO
Relação dos episódios do DVD Retrato Falado
PROTAGONISTA EPISÓDIO LOCAL
1 Shenca Loyolla Marias Cecílias Presidente Epitácio-SP
2 Célia Flores Entre o brasão e o passaporte Brasília-DF
3 Nadja Belém
Dona-de-casa unida jamais será
vencida!
Cabo de Sto. Agostinho-PE
4 Senira Magalhães
A bela que virou fera (em
futebol)
Santa Bárbara d’Oeste-SP
5 Maria Isabel Salomão De cabelo em pé
(não é citado o lugar onde
se passa a história)
6 Luciana Moreira Passando a noite em claro São Paulo-SP
7 Ruth Rendeiro Baixaria nas alturas Belém-PA
8 Quitéria Firmino O ABC do ciúme Maceió-AL
9 Márcia Gaiotto
Anjos da guarda, ou melhor, da
aeromoça
Cerquilho-SP
10 Terezinha da Silva A verdadeira carga pesada Arapiraca-SP
11 Jutta Lange
O primeiro biquíni a gente
nunca esquece
Salvador-BA
12 Gislene Villas Boas A verdade nua e crua Salvador-BA
13 Zulmerina Rosa de Jesus
Debaixo dos caracóis dos seus
cabelos
São José do Rio Preto-SP
14 Mariza da Silva
Dente por dente, ou jaqueta
por jaqueta
(não é citado o lugar onde
se passa a história)
15 Renata Alice Denise Alice ou Rentat Fraga? São Paulo-SP
Obs:
01 ao 11, os episódios começam com a % primeira vinheta
12 e 13 começam com a % segunda vinheta
14 com a % terceira vinheta ( música do Fantástico)
15 com a % quarta vinheta (música do quadro)
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