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revisionista sobre a ciência moderna, objetiva-se aqui unicamente assinalar a
importância de se reconhecer as origens “marginais” da ciência moderna, a partir do
Renascimento, como forma de melhor compreender o processo que culminou na
expansão das tecnologias digitais contemporâneas.
É possível verificar em estudos como o de Alexandre Koyré, o quanto
personalidades centrais do racionalismo científico – Francis Bacon, René Descartes,
Galileu Galilei, Isaac Newton, Gottfried Leibniz –, deixaram transparecer em seus
trabalhos um forte vínculo com uma longa tradição anterior que mesclava ciência e
religião. Sobretudo com sua vertente hermética (KOYRÉ, 2006).
A ciência considerada como uma espécie de religião contemporânea é um
tópico recorrente, uma metáfora utilizada por numerosos críticos para retratar os
excessos do cientificismo como mentalidade dominante na sociedade
. Porém, a
ciência contemporânea ser associada aos mitos herméticos, justamente a expressão
tradicional das chamadas pseudociências que com tanto afinco combate, parece
uma temeridade. Porém, a tecnologia em seu conjunto e, em especial, as
tecnologias digitais parecem reavivar, ao menos num plano hipotético, um imaginário
mítico arcaico, principalmente a mitologia do hermetismo
. Tal suspeita encontra
Desde os anos 1970 surgiram enfoques críticos qualificando a ciência moderna como uma espécie de religião,
como, por exemplo, o de Jaubert e Lévy-Leblond em (Auto) critique de la science (1973) ou Paul Feyerabend
em Contra o método (2007). Nesse aspecto, foram premonitórias as críticas e os conceitos que identificam a
ciência como fenômeno quase religioso, muito além do cientificismo, como as de Roger Garaudy em Los
integrismos (1992); Ivan Illich em In the mirror of the past (1992); Paul Virilio em Cibermundo: a política do
pior (2000); Michael Shallis em The silicon idol, the micro revolution and its social implications (1985);
Theodore Roszak em The cult of information; ou Marshall McLuhan em A galáxia de Gutemberg (1972) e Os
meios de comunicação como extensões do homem (2002); e Vicente Verdu em El planeta americano (1999).
O conglomerado de crenças, mitos e práticas comumente denominado hermetismo (ao qual se aplicam
tradicionalmente, com maior ou menor acerto, outros termos como gnosticismo, ocultismo ou esoterismo)
representa uma tendência filosófica, geralmente, vista pelos teóricos como uma pseudociência, cujo precedente
do método científico era a prática da magia. O hermetismo conservou uma série de mitos religiosos,
provenientes da tradição judaico-cristã e gnóstica (ALONSO; ARZOZ, 2002, p. 68). Hermético refere-se a todo
preceito complexo, a qualquer doutrina “acessível apenas a quem possua uma chave para interpretá-la”
(ABBAGNANO, 1998, p. 498). Na mitologia egípcia, o deus Thoth ou Tot era considerado como o equivalente
do deus grego Hermes, representante da comunicação e responsável pela invenção de técnicas como a aritmética
e a escrita. Filósofos neopitagóricos e, depois, os neoplatônicos, entre outros, atribuíram a Tot a autoria de um
conjunto de escritos ao qual denominaram Corpus Hermeticum, como uma referência ao seu correspondente
mitológico na cultura grega Hermes Trimegistos. Trata-se de uma série de informações diversificadas,
englobando temas de medicina, filosofia, alquimia, astrologia, física, etc. Alguns autores, como Reitzenstein
acreditaram que o Corpus Hermeticum destinava-se a grupos herméticos como a “confraria Poimandres”, para
utilização em seus rituais. Apesar de abordar assuntos sobre moral e religião, e até mesmo apresentar receitas de
magia, os textos não fazem referências à sua utilização nesse sentido, de cultos ou rituais. O hermetismo pode ser
dividido em duas correntes, conforme o tipo de abordagem das temáticas do conjunto de escritos do Corpus
Hermeticum: filosófica e astrológica. O primeiro tipo está mais relacionado ao pensamento grego do que egípcio,
apesar das constantes referências à mitologia egípcia e a intenção de vincular as religiões das duas culturas.
Incluem-se nessa vertente os textos de Plutarco, Asclepíades e Jâmblico, entre outros, sobre mitos e mistérios
egípcios. Dentre eles, destacam-se os Tratados herméticos, cuja autoria foi atribuída a Poimandres e Asclépio.
Seguem a linha de pensamento grego e as temáticas apresentam-se como revelações de Hermes sobre