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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional
Departamento de Antropologia Social
Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social
Christina Osward
Entre os Tupinambá:
a gesta dos franceses na Guanabara
TESE DE DOUTORADO
Rio de Janeiro
Março de 2009
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Christina Osward
Entre os Tupinambá:
a gesta dos franceses na Guanabara
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do tulo de Doutor em Antropologia
Social.
Profº Dr. Eduardo Viveiros de Castro
Orientador
PPGAS/UFRJ
Rio de Janeiro
Março de 2009
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Christina Osward
ENTRE OS TUPINAMBÁ:
a gesta dos franceses na Guanabara
Rio de Janeiro, 11 de março de 2009
________________________________________
Profº Dr. Eduardo Viveiros de Castro
Orientador
PPGAS/UFRJ
________________________________________
Profª Drª. Aparecida Vilaça
Doutora, PPGAS/UFRJ, 1996
PPGAS/UFRJ
________________________________________
Profº Dr. Otávio Velho
Doutor, University of Manchester, 1973
PPGAS/UFRJ
________________________________________
Profª Drª. Beatriz Perrone-Moisés
Doutora, USP, 1996
USP
________________________________________
Profº Dr. Ricardo Benzaquen de Araújo
Doutor, PPGAS/UFRJ, 2003
PUC-RIO e IUPERJ
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FICHA CATALOGRÁFICA
Osward, Christina
Entre os Tupinambá: a gesta dos franceses na Guanabara / Christina Osward.
Rio de Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2009.
426 pp.
Orientador: Edurado Viveiros de Castro
Tese (Doutorado em Antropologia Social) UFRJ, Museu Nacional, Programa de
s-Graduação em Antropologia Social, 2009.
1. França Antártica. 2. Século XVI. 3. Franceses. 4. Calvinistas. 5. Jesuítas. 6.
Tupinambá. I. Viveiros de Castro, Eduardo (orient). II. PPGAS-MN/UFRJ. III. Título
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Agradecimentos
A elaboração de uma tese é um trabalho extremamente solitário, que exige a
responsabilidade aluno. Talvez aí esteja a maior dificuldade. É muito bom se sentir ajudada, mas,
por outro lado, a sensação de dívida com o “mundoaumenta. Ao longo dos cinco anos em que
estudei no Museu Nacional foi gratificante estar perto de intelectuais renomados e observar a
seriedade com que conduzem o conhecimento acadêmico.
Agradeço ao meu orientador Eduardo Viveiros de Castro, pela oportunidade da orientação
e a confiança. À Frank Lestringant, pela excelente estadia em Paris. Ao Eduardo devo tudo que
sei sobre os índios, ao Lestringant sobre a França Antártica. Ambos me acolheram
carinhosamente, e a generosidade com que compartilham o que sabem é de conhecimento de
todos. Espero não decepcioná-los.
Os orientadores o os primeiros e aqueles que mais te socorrem; são como as raízes e o
tronco de uma árvore. Mas também aqueles que, a exemplo dos ramos e das flores, não têm a
obrigação de sustentar a árvore, mas dão os toques necessários para que ela se fortaleça. Com Bia
a afinidade foi imediata, e sou grata pelas nossas conversas sobre os franceses, os índios e os
séculos passados. À Aparecida devo as inspirações para conciliar etnologia e cristianismo, assim
como a participação nas bancas de qualificações. À Tania, agradeço igualmente a participação
nas bancas de qualificação e o exemplo do respeito que o pesquisador deve ter com os índios.
Ainda no Museu Nacional, tive o prazer de conhecer minha amiga “paulista” Artionka e a
felicidade de compartilhar com ela os dramas que implicam o doutoramento. Agradeço também a
toda a turma do NuTI, especialmente à Marina, Joana, Felipe, Salvador e Anne Marie. Muito
obrigada, Carla (Biblioteca) e Tânia e Beth (secretaria), vocês me quebram muitos galhos!
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Agradeço à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)
pela bolsa sanduíche nos seis meses que passei em Paris (janeiro a junho 2006), e por na volta da
viagem me conceder uma bolsa entre julho de 2006 e fevereiro de 2008.
Na França, Daniela Birman, Bonnie e Jean Pierre, Tamara, Malika e Lori, Tamara e Lucia
foram as melhores companhias que eu poderia ter.
A pesquisa em Paris foi feita em duas bibliotecas, parte na Bibliothèque Nationale de
France (BNF) e parte na Société de l‟Histoire du Protestantisme Français (SHPF). Agradeço a
todos os funciorios e, em especial, aos da SHPF, que me permitiram fotografar o acervo de
livros quinhentistas. Angela Buarque, obrigada pelo CD da Cosmographie do Thevet.
Luiza Leite e Otávio Bontet foram queridos professores durante a preparação para entrar
no Museu. Da mesma forma, agradeço à Tati, Santuza e Marcos Veneu, que sempre torceram por
mim. Paulinho ajudou com os programas de informática, que muito facilitaram minha vida.
Durante um período, Luchi, Thiago Floncio, Sheila Hue e eu formamos um grupo de
estudos que, além de tardes agradáveis, também foram importantes momentos de discussão sobre
este tema que nos fascina e reúne.
Marisa Guaranys foi meu porto seguro no francês.
Irene Black enfrentou a leitura do material bruto. Seus comentários foram fundamentais.
Obrigada Carla e Matthew Vollmer, Abhaya, Nando, Nick, Fernando, Ignez e Carlos, sem
astanga talvez não houvesse tese.
Obrigada Lívia, Lena, Rejane e Eduardo, Carlos Henrique, Cris, Lilia, Lucrécia, Flavio,
Dr. Rehimberg, sem vocês não haveria equilíbrio.
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Agradeço também aos meus amigos eternos, tão presentes e importantes na minha vida:
Adriana, Helena Lara, Helena Araújo, Rany, Lara, e Lori, Jorge, Zeka, Laura, Denis, Ricardo,
Cóia e Lili.
Ao Totem, que de tanto solicitar a minha companhia, e por não ser bem-vindo em muitos
lugares, me obrigou a descobrir alguma coisa divertida para fazer em casa.
Manoel e Renata: o que seria de mim sem vocês?
Ao meu pai, por me dizer sempre sim.
À minha avó Betty e à Silvana, vocês são insubstituíveis. Esta tese é para vocês.
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Resumo
OSWARD, Christina. Entre os Tupinambá: a gesta dos franceses na Guanabara. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) Programa de s-Graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Esta tese é uma etnografia da França Antártica com ênfase em fontes francesas, algumas
das quais desconhecidas no Brasil. Esta documentação é complementada com fontes
quinhentistas portuguesas, notadamente a literatura jesuítica. Além disso, relaciona Antropologia
e História, mais precisamente a transcrição de documentos do século XVI com a Etnologia. Esta
última funciona como recurso para buscar uma simetria entre os diferentes pontos de vista
envolvidos com a experiência da França Antártica: calvinista, católico, econômico e indígena.
Entendo, em linhas gerais que na época do que se convencionou chamar de “descobrimentos”,
havia dois projetos para a América: a ocidentalização e a indianização. Uma vez que o primeiro
foi o vencedor, busquei destacar alguns aspectos do segundo. Fiz também uma pequena
comparação da França Antártica com a Flórida protestante, na qual focalizei as semelhanças entre
ambas, tanto no que diz respeito aos ameríndios como à atuação dos franceses na América.
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Abstract
OSWARD, Christina. Entre os Tupinambá: a gesta dos franceses na Guanabara. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) Programa de s-Graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
The present thesis is an ethnography of Antarctic France based primarily on French
resources, some of which are unknown in Brazil. These documents are complemented by 5th
Century Portuguese sources, namely Jesuit literature. Moreover, this work explores the
relationship between Anthropology and History, more precisely the transcription of 16th Century
documents and Ethnology. The latter serves as a tool to establish a symmetry between the various
points of view involved with the Antarctic France experience: Calvinist, Catholic, economic and
Indigenous. I propose, in general lines, that at the time of what became known as the
discoveries”, there were two projects for America: Occidentalization and Indianization. Since
the former project became preponderant, I highlighted some aspects of the latter. I also compared
Antarctic France and Protestant Florida, focusing on the similarities between them,
10
Sumário
Introdução: Seminário internacional: o universo da França Antártica ..................... 12
Fracasso, mal-entendido e desencontro ........................................................ 16
Contrates:
Antropologia e história ................................................................................. 22
Franceses e portugueses ................................................................................ 24
Índios e etnólogos ......................................................................................... 25
Mito e história ............................................................................................... 28
A história cronológica da França Antártica .................................................. 31
Problemas e Metodologia ............................................................................. 37
Quadro bibliográfico sobre a França Antártica ............................................ 48
Divisão dos capítulos .................................................................................... 49
Capítulos:
1 A presença francesa no Brasil antes da França Antártica.............................. 54
Empreendimentos públicos e privados ......................................................... 54
Em Santa Catarina e em Pernambuco: duas experiências francesas anteriores às capitanias
hereditárias ............................................................................................................... 57
Viagens ao Rio de Janeiro anteriores à França Antártica ............................. 61
1) Os relatos das autoridades coloniais ......................................................... 66
2) Os relatos dos jesuítas .............................................................................. 71
3) O relato de um colono: Gabriel Soares de Souza ..................................... 75
2 A história da França Antártica do ponto de vista francês ............................. 83
A implementação da França Antártica ......................................................... 83
A partida da França ...................................................................................... 90
A chegada na Guanabara .............................................................................. 95
Descrições do local e topônimos .................................................................. 99
A cidade em homenagem a Henrique II ..................................................... 108
A febre pestilenta ........................................................................................ 115
A conspiração contra Villegagnon .............................................................. 117
A chegada dos calvinistas à França Antártica ............................................ 127
A controrsia sobre a Eucaristia ............................................................... 134
Pentecostes ................................................................................................. 140
A volta para a França dos calvinistas ......................................................... 148
O retorno dos cinco calvinistas à França Antártica .................................... 155
A confissão de fé ........................................................................................ 159
A execução dos três mártires e o destino do quinto ................................... 165
11
O retorno de Villegagnon para a França ..................................................... 182
Villegagnon de volta à França .................................................................... 185
Colônia francesa na Flórida: 1562-1565 .................................................... 187
3 O debate francês quinhentista sobre a França Antártica............................. 204
O debate entre Villegagnon e os protestantes ............................................ 204
Villegagnon ................................................................................................ 204
Villegagnon X panfletos protestantes anônimos ........................................ 226
O debate continua: André Thevet X Jean de Léry ..................................... 247
4 A guerra Tamoio ......................................................................................... 260
Jean de Bolés: o terceiro excluído .............................................................. 260
A guerra continua ....................................................................................... 274
Cunhambebe ............................................................................................... 304
Pindobuçu ................................................................................................... 309
Ambiré ........................................................................................................ 314
5 Ocidentalização ou indianização?................................................................ 321
Ameríndios & turcos ................................................................................... 344
Bárbaros, pagãos & infiéis .......................................................................... 345
Guerra santa & guerra justa ........................................................................ 350
Guerra de religião ....................................................................................... 353
Conclusão: os afectos indígenas ................................................................. 356
Guerra indígena .......................................................................................... 356
Canibalismo ................................................................................................ 366
Perspectivimo ameríndio ............................................................................ 369
Religião indígena? ...................................................................................... 375
Mitologia tupinambá .................................................................................. 384
“Alianças preciosas” ................................................................................... 391
Performatividade ........................................................................................ 395
Brancos divinos? ......................................................................................... 399
Bibliografia ................................................................................................. 411
12
Introdução:
Seminário internacional: o universo da França Antártica
Entre os dias 3 e 6 de outubro de 2005, o Museu Histórico Nacional organizou um
seminário para marcar os 450 anos da chegada dos franceses à Baía de Guanabara. “O seminário
Internacional: O universo da França Antártica” tinha como objetivo promover a análise e
discussão sobre o contexto, os personagens e as conseqüências deste acontecimento histórico que
desencadeou uma série de eventos importantes na história do Brasil, entre os quais a própria
criação da cidade do Rio de Janeiro, inseridos na longa trajetória de relações entre a França e o
Brasil”. O folder dizia ainda: “Realizado em parceria com o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e com a colaboração do Consulado da França, o seminário, que contará com a presença
de especialistas brasileiros e franceses, possibilitará que sejam abordadas questões relativas ao
contexto europeu no século XVI, a mundialização das guerras religiosas européias, a controversa
vida e os feitos de Villegaignon
1
e de outros personagens, que participaram deste momento da
hisria brasileira, deixando sua marca. Outros aspectos, pertinentes à história militar, envolvendo
a cartografia, as inovações tecnológicas e as fortificações militares, serão, ainda, alvo do debate”.
Em meados de 2005, comecei a me preparar para passar uma temporada em Paris, de onde
pretendia trazer fontes históricas ainda desconhecidas no Brasil, para o meu doutoramento sobre
a França Antártica. Foi, portanto, uma agradável surpresa saber que teria a oportunidade de
conhecer aqui no Brasil, aquele que seria meu tutor na França: Frank Lestringant. Especialista em
literatura do século XVI, com ênfase na história do protestantismo francês, ele certamente seria
grande estrela do seminário.
1
Villegaignon com “i” entre o “a” e o “g” é a grafia arcaica.
13
Na primeira vez que falei com Lestringant ao telefone ele me contou do convite para vir
ao Brasil e pediu que eu entrasse em contato com a organização do seminário, pois os e-mails que
ele enviara estavam voltando. Foi assim que conheci a historiadora Aline Montenegro,
coordenadora-executiva do seminário, e me tornei intermediária entre eles, encarregada de
repassar informações relativas à passagem de avião, hospedagem e translado para o hotel, como
também as três versões da comunicação que Lestringant faria no Rio de Janeiro
2
.
Conheci Lestringant pessoalmente no aeroporto do Galeão. No caminho para o hotel
Novo Mundo, que fica localizado em frente à Baía da Guanabara, ele me falou do desejo de
conhecer a ilha de Villegagnon, o que acabou se concretizando por intermédio de dois
palestrantes: o adido cultural do Consulado da França no Rio de Janeiro, Jean Paul Lefevre e o
membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Max Justo Guedes. A ilha, onde
os franceses se instalaram entre os anos de 1555 e 1560, está localizada ao lado do aeroporto
Santos Dumont, muito próxima do Museu Histórico Nacional. É atualmente de propriedade da
Marinha brasileira, sendo necessária uma autorização para entrar.
2
Aliás, Lestringant, um pouco como André Thevet e Jean de Léry, tem o hábito de reescrever suas próprias obras,
criando novas edições corrigidas e aumentadas. É o caso, por exemplo, de Le Hugenot et le Sauvage, publicado em
1990, 1999 e 2004, e também de Jean de Léry ou l‟invention du sauvage, em 1999 e 2005.
14
O perfil dos conferencistas e expositores convidados para o seminário era bastante
eclético. Havia historiadores franceses, portugueses e brasileiros, diplomatas, o embaixador
francês. Mas nenhum antropólogo e nenhum índio. Nos dois primeiros dias, salvo raras exceções,
a memória de Villegagnon foi exaltada e foram destacadas suas virtudes enquanto um bom
católico. No terceiro dia, a conferência de Lestringant estava prevista para começar às 10 horas.
Ele se levantou bem cedo, às 6h, de modo a reformular sua fala. Entendeu que era necessário
responder a determinadas colocações da véspera. Depois da conferência, foi conhecer a ilha de
Villegagnon.
15
No último dia do seminário, por causa de compromissos particulares precisei me ausentar
das palestras da tarde. Assim, não tive como obter o certificado de participação, que me era
imprescindível, para justificar a licença que recebi do trabalho. No primeiro dia útil após o
término do Seminário, fui até o Museu Histórico buscar o papel. encontrei Aline Montenegro,
conversamos e trocamos impressões sobre o seminário. Ela me contou que alguns conferencistas
o tinham gostado da fala de Lestringant, que acharam - as palavras são dela - “mística”. Um
pouco surpresa com aquela crítica, lembrei de algumas referências que Lestringant havia feito a
Claude Lévi-Strauss, ao propor uma relação entre o canibalismo ameríndio e a crítica protestante
à eucaristia católica. Na mesma ocasião, Aline me contou do projeto de publicar um livro sobre o
seminário, semelhante ao que eles haviam produzido um ano antes, quando realizaram um
seminário sobre a presença holandesa no Brasil. Ela me convidou para escrever um artigo mas,
pediu urgência, pois os conferencistas tinham os seus textos prontos.
Apesar de estar muito ocupada com a preparação para a viagem, a ideia de poder
participar de um livro sobre o tema da minha tese foi um incentivo e, com um esforço hercúleo,
em um mês redigi um texto no qual procurei mostrar alguns vínculos entre o ocorreu na França
Antártica e a experiência havaiana, tal como abordada pelo antropólogo Marshall Sahlins.
Contudo, ocorreu um adiamento, e depois outro. Fui para a França e esqueci o assunto. Em
novembro de 2007, quando comecei a redigir a tese - portanto dois anos depois da conversa com
Aline -, recebi um e-mail dela dizendo que um dos expositores, Jean Marcel Carvalho de França,
tinha pedido o texto para publicar na Revista de História da UNESP. No mesmo momento, toda a
hisria voltou à minha lembrança.
16
Fracasso, mal-entendido e desencontro:
De volta ao que tinha ocorrido no Museu Histórico, não era difícil estabelecer uma
analogia com o que acontecera, 450 anos antes, a cerca de cem metros dali. Algumas questões
começaram a brotar na minha cabeça. Será que mais uma vez católicos e protestantes tinham
feito suas divergências falarem mais alto e isso seria a causa do malogro do livro? Teríamos eu e
mais alguém sido prejudicados por não poder publicar um capítulo no livro sobre a França
Antártica? Sobre esse ponto, ao reler o texto escrito às pressas, antes de um contato mais
profundo com as fontes primárias, devo confessar que me senti um pouco aliviada. Talvez fosse
melhor elaborar e tornar mais claras aquelas questões. E aqueles que participaram do
empreendimento antártico? Será que tamm se sentiram aliviados ao ver o forte de Coligny
vazio cair por terra em 48 horas? Ficaram contentes em poder voltar para a França, ou teriam
preferido estreitar suas relações com os índios? Quais as chances de dar continuidade à colônia,
fazer riqueza com o comércio de especiarias e fortalecer o reino francês?
Normalmente, quando um autor se refere à França Antártica, é quase que compelido a
mencionar o fracasso do empreendimento. Os exemplos são numerosos. Paulo Knauss fez um
pequeno inventário sobre o tema, no qual os historiadores clássicos imputaram a responsabilidade
a Villegagnon. Segundo Varnhagen, Villegagnon era “„ambicioso e hipócrita aventureiro‟”. Para
Southey, ele foi um traidor. Gaffarel atribui-lhe o adjetivo de desertor (Knauss 1991: 47-48). Por
detrás dessas opiniões, o problema é sempre o mesmo: Villegagnon mudou de atitude e, por isso,
o conseguiu agradar nem a gregos nem a troianos. Lestringant citou outros três autores que
trataram diferentemente do assunto: Frei Vicente do Salvador, cuja crítica na verdade não é
endereçada apenas aos franceses, mas a todos os europeus que praticaram o que ficou conhecido
17
como “colonização de caranguejo”, isto é, a ocupação exclusiva da franja litorânea, com as costas
viradas para o sertão; Gilberto Freyre, que enfatiza o interdito sexual estipulado por Villegagnon
como empecilho à mestiçagem; e Marc Lescarbot, para quem a ausência de preocupação em
cultivar a terra teria sido o motivo do desastre francês (Lestringant 1989 - 1996: 43-44).
Se falar do fracasso da França Antártica hoje pode parecer um truísmo, a visão católica
francesa posterior à perda da colônia não deu relevância ao fato. Meses antes da tomada do forte
pelos portugueses, em 15 de março de 1560, Villegagnon foi para a França esclarecer suas opções
religiosas. Desde então suas publicações sempre versaram sobre teologia, de forma desatrelada a
qualquer tipo de reflexão sobre a perda da colônia. Sua preocupação manifesta nesses escritos era
com a disseminação das idéias protestantes. Thevet também jamais lamentou algum prejuízo
causado ao reino francês ou à Igreja, salvo as raras referências que fez à existência de ouro em
áreas não muito próximas à Guanabara. E a própria dinastia dos Valois abandonou o projeto, na
medida em que os problemas internos à França aumentaram.
O problema do fracasso aparece, portanto, de modo bem localizado, no âmbito do
nascente protestantismo francês. As acusações a Villegagnon em panfletos protestantes
anônimos, assim como na obra de Pierre Richer, remetem-se à hostilidade sentida pelos
calvinistas durante a permanência na América e a consequente impossibilidade do
estabelecimento de um refúgio. Pode-se dizer, portanto, que esse problema está circunscrito
àquilo que Lestringant chama de corpus huguenote (1990 - 2004). Quando Léry publicou
Histoire d‟un voyage, em 1578, o fracasso da França Antártica tinha então uma forma bem
definida, expressa, por exemplo, nas seguintes palavras do capitão do navio que levou os
protestantes de volta para a França, Fariban de Ruão, narradas por Léry: se não fosse a
apostasia de Villegagon, teríamos podido a partir daquele ano deliberar trazer de
18
setecentas a oitocentas pessoas nas grandes embarcações de Flandres para iniciar o
povoamento onde estávamos
3
/ n‟eût été la révolte de Villeganon, on avait dès la même année
délibéré de passer sept ou huit cents personnes dans de grandes Hourques de Flandres pour
commencer de peupler l‟endroit où nous étions (1578 - 1992: 204)
4
.
Além de atribuir a responsabilidade a Villegagnon, os protestantes também vincularam o
fracasso da colônia à questão nacional:
quem duvida que se os franceses tivessem permanecido ali (o que
teriam feito e hoje haveria mais de dez mil se Villegagnon não tivesse se
separado da religião reformada) não teriam os mesmos benefícios que os
portugueses, agora tão bem acomodados, conquistaram?
qui doute si les Français y fussent demeurés (ce qu‟ils eussent fait, et y
en aurait maintenant plus de dix mille si Villegagnon ne se fût révolté de la
Religion réformée), qu‟ils n‟en eussent reçu et ti le même profit que font
maintenant les Portugais qui y sont si bien accommodés?” (1578 - 1992: 98).
Enquanto no século XIX, na França, a experiência da França Antártica foi resgatada como
História mestra da vida” em que se buscava aprender com os erros do passado um caminho
para realizar a “missão” francesa enquanto potência civilizatória - hoje Lestringant não vê, em
3
Todas as traduções do francês arcaico para o português foram realizadas por mim. Apesar de eu não ter experiência
com a tarefa e das minhas dificuldades com a língua francesa, esta opção deveu-se ao fato de que, o que se pode
denominar uma gramática francesa no século XVI, como escreveu Lucien Febvre, não possui regras bem definidas
de ortografia, pontuação ou de tempo verbal; cabe ao leitor, muitas vezes, decidir o sentido dos textos. Por isso, peço
perdão pelas imperfeições e erros, mas achei que era preciso esclarecer o modo como li as fontes.
Embora existam traduções publicadas das obras de Jean de Léry, Viajem à terra do Brasil (Itatiaia); André
Thevet, As singularidades da França Antártica (Itatiaia); Jean Crespin A tragedia de Guanabara (Typo-Lith) e da
carta de Nicolás Barré de 1555, em Visões do Rio de Janeiro colonial (José Olympio), a consulta a essas edições foi
feita após eu ter traduzido os originais. As discrepâncias entre as traduções devem-se, em muitos casos, ao fato de
que fiz uma opção por uma tradução literal e o literária, em que procurei, não apenas preservar o estilo da época,
como também tornar o texto menos enrijecido e mais coloquial. As versões em francês seguem abaixo.
4
De modo a tornar a leitura da tese menos desagradável ao leitor não acostumado com o francês arcaico, as
transcrições das citações de Jean de ry foram retiradas da edição de 1992 da Histoire d‟un Voyage, modernizada
por Lestringant.
19
linhas gerais, uma distinção entre as estratégias de colonização portuguesa e francesa. Segundo
ele, a ocupação da Baía de Guanabara, que seguiu o modelo “caranguejo”, teria sido o segundo
empreendimento a dar continuidade ao estabelecido posto em Cabo Frio, onde estava
localizada a Casa da Pedra, e rumo à consolidação de um terceiro em Macaé. Para Lestringant,
foi determinante para o fracasso da França Antártica a ausência de um projeto jesuítico com seu
modelo universalizante. Por isso, se houve de fato um fracasso militar e econômico, Lestringant
também percebe um sentido positivo, relacionado ao modo como os franceses lidaram com a
alteridade indígena e que teve como consequência a manutenção da integridade sica e cultural
dos ameríndios (1989). Essa característica da colonização francesa, no entanto, deve-se a uma
instituição tipicamente francesa: os truchements (Perrone-Moisés 1996).
Tratava-se da outra ponta do modelo português. Os jesuítas tiveram muita dificuldade em
se instalar na França. Logo que retornou à pátria, Villegagnon foi pedir ajuda à ordem para
retomar seu projeto, mas havia apenas cinco jesuítas em Paris, sendo esse um dos motivos da
recusa do envio dos mesmos (Poulenc 1967: 402). Além disso, jamais houve missionários
jesuítas em estabelecimentos franceses no Brasil, apenas capuchinhos e franciscanos (Lestringant
1989: 52-53). A principal estratégia francesa de colonização foi laica e não religiosa. Os
truchements foram, segundo Lestringant, a contribuição francesa para o malogro da França
Antártica, na medida em que eles fizeram acender o fantasma do ensauvagement que rondava os
franceses, pelo menos desde a Idade Média. Deixados enquanto crianças junto aos índios para
aprender a ngua, estes acabavam por adotar os seus bitos, e isto representava a inversão do
processo civilizatório (1992 -1996).
Lestringant também analisou a relação entre a controrsia religiosa na França Antártica e
as guerras de Religião na França, quando destacou a contribuição de Villegagnon para o
20
éclatement do Brasil francês (1985). Onze anos depois, Wanegfflen desenvolveu o argumento
segundo o qual Villegagnon oscilara entre o catolicismo, o luteranismo e o calvinismo,
entendendo sua posição como extra-confessional, voltada para buscar uma solução para as
dissensões poticas e religiosas francesas via o galicanismo (1998). Essa interpretação, no
entanto, pressupõe que a identidade protestante era algo que, na época, estava definida em
oposição à católica. Entretanto, como escreveu Lestringant a prosito de Thevet, au milieu du
siècle, ont pu hésiter entre les deux camps” (1991: 66).
*
Ainda sobre o Seminário no Museu Histórico, outro problema pareceu-me constituir um
elo entre os dois episódios distanciados por quase cinco séculos. Qual teria sido a natureza
daquele debate? Tratava-se de uma divergência religiosa? Se fosse isso, deveria haver alguma
semelhança com que tinha acontecido na Fraa Antártica, pois naquela época a queixa
protestante estava dirigida à ambiguidade de Villegagnon, a sua mudança súbita de
comportamento, quando meses após receber os calvinistas de braços abertos, expulsou-os da ilha.
Teria sido esse o caso? Uma colocação, então, vinha juntar-se àqueles episódios. Alguns
brasileiros acharam a interpretação de Lestringant “mística”. O que ele teria pensado a respeito
daquele seminário?
Para abordar a controvérsia religiosa da França Antártica e seus desdobramentos na
França, Lestringant parte do pressuposto de que o que ocorreu foi fruto de um mal-entendido. Ele
escreveu: “en fait, le différend outre-Alantique est pour une part à un malentendu touchant
la nature exacte de l‟engagement de Villegagnon aux côtés de la Réforme(1985 - 1996: 119).
Foi precisamente a partir desse ponto que Wanegffelen desenvolveu seu argumento onze anos
depois. Logo no início do artigo ele escreve: mais alors se pose la question de la raison de
21
l‟échec de cette entreprise coloniale, e em seguida refere-se aos malentendus, les déceptions,
les incompréhensions” como sendo os mesmos que se repetiram de Poissy a Wassy e que levaram
a França às guerras de Religião (1998: 159).
Penso, todavia, que há outra forma de colocar a questão, que separa a ideia de fracasso da
de mal-entendido e que, pode-se dizer, indaga sobre a natureza das relações diplomáticas
estabelecidas, tal como sugere Perrone-Moisés quando afirma que: “aliança ou sujeição, sabe-se
que foram numerosos os mal-entendidos‟ a esse respeito na América, onde se enfrentavam
concepções profundamente diferentes dos rituais de „potica externa‟ que envolviam europeus e
povos indígenas” (1996: 50). Aliás, neste contexto, Lestringant escreveu: peut-on pour autant
parler de communion entre Léry et ses „Tououpinambaoults‟? Rien n‟est moins sûr. L‟évidente
sympathie qu‟il témoigne à leur égard repose sur un malentendu” (1999: 144). De fato, a
literatura antropológica outro sentido ao termo mal-entendido. Sahlins cunhou a expressão
“mal-entendido produtivo”
5
para definir algo que may entail some arrangement of conflicting
intentions and interpretations, even as the meaningful relationships so established conflict with
the established relationships (1981: 72). Este, por sua vez, pode se tornar um mal-entendido
funcional (Sahlins 1979: 326), o que significa que implica questões éticas, e é apenas então que a
questão do fracasso e do sucesso se ime. Como aconteceu, por exemplo, quando os ingleses
entenderam a doação de mulheres” como prostituição (Sahlins 1979: 328) e quando
confundiram o templo de sacrifícios havaianos com um cemitério (Sahlins 1979: 327).
De acordo com Viveiros de Castro, a Antropologia que se defronta com a dinâmica dos
mal-entendidos deve procurar traduzi-la de forma controlada, de modo que o sentido original
dado pelo nativo a alguma coisa não se perca e, desta forma, seja possível que sejam subvertidos
5
Trata-se de uma redefinição do conceito elaborado por Laura e Paul Bohannan para o contexto africano (Sahlins
1979: 315).
22
determinados pressupostos antropológicos (2004). Essa postura requer que o antropólogo leve, de
fato, o ponto de vista nativo a sério, uma preocupação que, pode-se dizer, esteve presente ao
longo dos trabalhos de Sahlins sobre a história do capitão Cook no Havaí. Para citar dois
extremos, em 1979 escrevia o antropólogo:
mon propos, cependant, est de montrer que la divinité qui en fin de
compte se fixa sur Cook, n‟était pas une erreur intellectuelle, une conséquence
d‟analogies substantielles, encore que fortuites, entre le comportement
empirique des Anglais et la pensée mythique des „indigènes‟. La substantiation
des références est une erreur de notre propre pensée” (: 324).
Em 1995, naquela longa e bela resposta, Sahlins esclareceu o ponto:
para os havaianos, a noção de que Cook era uma efetivação de Lono
dificilmente poderia ser considerada uma proposão irrefletida, o-empírica.
Foi constrda a partir de, e enquanto, relações percebidas entre a cosmologia
dos havaianos e a história de Cook. O pensamento havaiano não difere do
empirismo ocidental por uma falta de atenção ao mundo, mas sim pela premissa
ontológica de que a divindade, e de modo mais geral a subjetividade, pode ser
imanente nele” (- 2001: 21).
Contrastes:
Antropologia e história:
Como deve ter sido possível notar, a gesta dos franceses na Guanabara não apenas
envolve uma série de questões como levanta outras. Há, de saída, dois tipos de abordagens que
o necessariamente se opõem, mas que certamente têm suas peculiaridades. Falo de duas
disciplinas, a Antropologia e a Hisria, e questiono em qual delas me insiro. Depois de quinze
23
anos vinculada à História, meu fascínio pela Antropologia fez-me tentar aprender essa disciplina.
Apesar do meu esforço, sou ainda cheia de cacoetes e provavelmente vou conseguir ser apenas,
como escreveu um antropólogo em outro contexto, uma historiadora com simpatia pela
antropologia”. Mas isso não resolve o problema. Muito pelo contrário, obriga-me a pensar sobre
ele.
Como entendo, pelo menos dois pontos que estabelecem uma diferença entre essas
duas disciplinas. O primeiro é metodológico e diz respeito aos objetivos que se tem em mente; se
buscamos continuidades ou descontinuidades (Lévi-Strauss 1949 e 1962), ou seja: ou se quer, por
exemplo, explicar as guerras de Religião na França por intermédio da controvérsia religiosa na
França Antártica, e para isso é necessário preencher os espaços vazios entre esses dois
acontecimentos, ou se procura estabelecer relações entre, por exemplo, a controvérsia religiosa na
França Antártica e o incidente no Museu Histórico para, independentemente da relão causal,
propor um modelo de interpretação que sirva a outros acontecimentos análogos.
O segundo aspecto que distingue a Antropologia da História diz respeito, no meu
entender, ao conteúdo do que é estudado, e está diretamente relacionado com a questão
metodológica. Sempre que os historiadores buscam dar voz aos “vencidos”, eles recorrem à
Antropologia, nem que seja para criticá-la. A minha impressão é que, apesar de a História ser
bem mais velha que a Antropologia e de terem ambas travado uma luta interna para se libertar de
seus pais fundadores - sejam eles Heródoto, Tucídedes, Frazer ou Tylor -, não há como negar que
o compromisso da Antropologia é com as minorias. O que não implica, necessariamente, numa
oposição em relação à História. A diferença pode estar no fato de que a busca por continuidades
leva o pesquisador a aproximar aspectos que são familiares ao objeto de estudo, enquanto que,
quando se trabalha com as descontinuidades, uma possibilidade maior para que um outro tipo
24
de estrutura se manifeste. Por exemplo, eu poderia usar algumas informações que os panfletos
protestantes apresentam para refutar a ideia corrente de que o empreendimento antártico foi
concebido exclusivamente como um pólo mercantil francês. Este trabalho foi realizado por
Lestringant e, de fato, pode revelar uma série de peculiaridades de um segmento novo e
minoritário na época. Contudo, esse conhecimento, elaborado historicamente o tem força para
abalar as estruturas dominantes na medida em que foi elaborado de forma colada a elas. Por outro
lado, se o estudo das idéias protestantes, ou no caso da presente tese, das idéias indígenas for
organizado enquanto um sistema independente, parece ser mais provável que a comparação com
as idéias dominantes sofram um impacto maior.
Dois antropólogos estruturalistas, Marshall Sahlins e Peter Gow, têm posições diferentes
sobre a relação entre a história e a antropologia no que diz respeito às transformações que
ocorrem com os povos. Sahlins valoriza a práxis e consequentemente a história como espaço
procio para as mudaas: é a partir da repetição que as transformações se processam. para
Gow, as mudanças são sincrônicas, independem da diacronia. Ele sustenta que a pesquisa em
arquivos deve ser um complemento à análise etnográfica, enquanto para Sahlins foi a pesquisa
que forneceu as condições para uma abordagem não apenas antropológica como também
estrutural, em uma história passada há mais de dois séculos.
Franceses e portugueses:
O seminário no Museu Histórico pode ser visto como uma polarização entre franceses e
luso-descendentes. Além de Lestringant, estavam presentes Denis Roland, especialista no século
XVIII, Serge Elmalan, jornalista que publicou a ficção Villegagnon ou l‟utopie tropicale (2002),
25
e o embaixador da França no Brasil, Jean de Gliniasty. Ainda que essa oposição não tenha sido
marcante, pode-se dizer que o Seminário foi a primeira tentativa de confrontar as visões dessas
duas nacionalidades na análise da França Antártica. Um dos motivos de minha viagem à França
em 2006 foi tentar preencher essa lacuna, isto é, recolher o maior número possível de fontes
francesas para propor uma comparação com as portuguesas - notadamente a literatura jesuítica. O
material, ainda inédito no Brasil consiste no conjunto de panfletos protestantes, publicados
principalmente em 1561, que fazem ataques violentos a Villegagnon, assim como as respostas
dadas por ele. Esses documentos, apesar de volumosos (há alguns com mais de duzentas
páginas), tratam basicamente de questões teológicas, mais precisamente sobre a Eucaristia e
consequentemente sobre a manducação. Muito diferentes, portanto, das cartas jesuíticas que, na
maior parte do tempo lidam, com questões práticas.
No contexto da França Equinocial, Beatriz Perrone-Moisés analisou as fontes do século
XVII para compreender os motivos pelos quais os franceses, diferentemente dos outros europeus,
estabeleceram vínculos duradouros com os índios e com isso ganharam a simpatia deles. Ela
encontrou entre os franceses um modo de ser sui generis, que consistia em ir morar nas casas dos
índios, lutar ao lado deles não apenas contra os estrangeiros mas também contra índios inimigos,
e se casar com eles. A antropóloga demonstrou que a especificidade da colonização francesa, o
estabelecimento de relações preciosas” com os índios, englobou religiosos capuchinhos e
franciscanos que foram inseridos nesse quadro. E até mesmo Villegagnon, que jamais
demonstrou simpatia pelos índios, foi durante um tempo chamado pelos Tupinambá de “Pai
Colás” (1996).
Índios e etnólogos:
26
Outro contraste marcante naquele Seminário foi a ausência dos índios. Pode-se imaginar,
ao lembramos as comemorações dos 500 anos do “descobrimentodo Brasil, quando os índios
fizeram uma série de manifestações contra as festividades, o que um índio teria achado do evento
no Museu Histórico. Mesmo sem índios ou etnólogos como palestrantes, o fato é que existe uma
vasta literatura antropológica sobre os primeiros contatos entre brancos e índios que não foi
mencionada durante o Seminário.
para citar alguns exemplos, Nathan Watchel escreveu, no início da década de 70, La
vision des vaincus, em que analisa a reação dos Astecas e Maias às primeiras invasões no México
e no Peru, do ponto de vista religioso. Segundo o antropólogo, foi no plano das idéias que os
índios encontraram mais liberdade para resistir às pressões espanholas, apesar dos esforços
contrários da Igreja. Discípulo de Lévi-Strauss, ele elaborou uma teoria, esboçada anteriormente
por Métraux, para explicar o modo como os nativos, nos primeiros anos da presença espanhola,
conceberam os estrangeiros como seres divinizados.
Assim como Watchel, Marshall Sahlins, no final da década de 70, também valeu-se das
concepções de Lévi-Strauss sobre as relações entre estrutura e conjuntura e teoria e práxis para
pensar as invasões inglesas no Havaí e na Polinésia no século XVIII. Tendo como ponto de
partida a morte do capitão Cook no Havaí, Sahlins escreveu uma série de artigos e livros sobre o
motivo pelo qual os estrangeiros foram percebidos de forma semelhante àquela descrita por
Watchel. Uma importante inovação na obra do antropólogo norte-americano foi introduzir uma
análise potica sobre o fenômeno religioso. Ele observa que as atitudes nativas perante os
europeus estavam relacionadas a uma forma de conceber as relações de poder que tendem a
valorizar o exterior.
27
No final da década de 80, Stephen Hugh-Jones e Bruce Albert publicaram dois artigos na
l‟Homme sobre a percepção dos indígena sobre os brancos, relacionando mitologia e história.
Para os Barasana, povo Tukano localizado no noroeste da Amazônia, a desigualdade entre
brancos e índios é concebida em termos da escolha realizada, em algum momento, pelos
próprios índios (Hugh-Jones 1988). os Yanomami, que se acham na Amazônia (parte na
Venezuela e parte no Brasil), em um primeiro momento elaboraram uma teoria patogênica que
relacionava os momentos nos quais os brancos se aproximaram com sua organização social
(Albert 1988). Quando o contato se tornou permanente, eles redefiniram essa teoria, não mais
para entender o significado do branco para eles, mas para explicar aos brancos quem eles eram
(Albert 1993-2002).
Edward Schieffelin & Robert Crittenden (1991) e Joel Robbins (2004) também trataram
da relação entre brancos e nativos nas Terras Altas da Melanésia, onde povos com línguas e
costumes diversos reeditaram, em plena década de 1930, quando as primeiras patrulhas lá
chegaram, o que ocorreu no século XVI na América e no XVIII no Havaí: o desconhecido que
veio de fora foi associado às suas divindades.
Em An Amazonian myth and its history (2001), ao conversar com o povo Piro, do Baixo
Urubamba, no Peru, Peter Gow se viu interpelado por um mito (Lima 2002). Houve um
momento, no início do contato, em que o antropólogo foi associado aos pishtaco, espíritos
maléficos. Isso o levou a questionar o apenas a visão dos Piro sobre ele, mas também o modo
como se relacionavam com os brancos em geral. Gow analisou as transformações no ritual de
iniciação das meninas com a introdução das escolas, na arte da cerâmica e da pintura quando eles
passaram a usar as roupas de brancos, e nas festas que passaram a ser celebradas na Comunidad
Nativa, uma instituição criada na época em que ficaram sob a tutela de um chefe autoritário, mas
28
que acabou por reunir parentes que anteriormente vivam distantes. O antropólogo percebeu que
os Piro não se sentiam vítimas das mudanças, muito pelo contrário: para eles tratou-se um
processo cujo controle sempre esteve em suas mãos.
Em Quem somos nñs, os Wari‟ encontram os brancos (2006), Aparecida Vilaça estudou o
que levou esse povo, que hoje vive em Rondônia, a procurar o contato com os brancos apesar
destes ocuparem a posição de inimigos. A antropóloga mostrou que o fator determinante não foi
o acesso aos bens brancos. Assim como entre os Piro, no entender dos Wari‟ mais importante era
a possibilidade de estabelecer novas relações com o exterior de modo a fortalecer os seus laços de
consanguinidade.
Mito e história:
A relação entre Antropologia e História, especialmente no que diz respeito ao contato
entre brancos e índios, normalmente implica a relação entre mito e história. Todos os
antropólogos citados no item anterior estabeleceram esse tipo de relação. Do mesmo modo que
An Amazonian myth foi escrito a partir da narrativa sobre os pecari-de-lábios-brancos, pode-se
dizer que as questões que Vila levantou em Os Wari‟ encontram os brancos, estão todas
presentes no ciclo tico de origem do branco analisado pela antropóloga.
A relação entre o mito e a história foi tratada por Watchel. Segundo ele,
toute l‟Amérique connaît le mythe du dieu civilisateur qui, après son
régne bienfaisant, disparut mystérieusement, en promettant aux hommes de
revenir un jour. C‟est le cas de Quetzalcoatl au Mexique, qui partit en direction
de l‟Orient, et de Viracocha au Pérou, qui disparut en marchant sur les eaux de
la mer d‟Occident. Quetzalcoatl devait revenir lors d‟une année ce-acalt, tandi
que l‟Empire inca devait prendre fin sous le douzième Empereur. Or au Mexico
29
les Espagnols venaient de l‟est, et 1519 correspondait précisément à une année
ce-acall; au Pérou, ils venaient de l‟ouest, et le règne d‟Atahuallpa (ou de
Huascar) correspondait à celui du douzième Inca. Dès lors, la stupeur des
Indiens revêt une forme particulière: ils perçoivent les événements à travers la
grille du mythe et ils conçoivent l‟apparition des Espagnols comme un retour
des dieux” (1971-2004: 42).
Hugh-Jones, a partir do material tukano, percebeu que apesar de os donios do mito e da
hisria se misturarem, esses índios têm concepções distintas sobre cada nero, pois, quando
questionados sobre “brancos” específicos (identidade, tempo da chegada, atividades etc.),
respondem da mesma forma que os brancos. Entretanto, quando perguntados sobre “brancos” em
geral (origem, existência e características), eles especulam por meio da certeza transcendente dos
mitos (1988: 140-141). Para os Barasana, os mitos são cheios de acontecimentos que pertencem a
um nível de realidade acessível apenas por meio dos sonhos, do xamanismo e do ritual, enquanto
o nada na narrativa histórica que não possa ocorrer novamente no presente. No terreno dos
mitos, existe uma versão que é correta e com a qual se deve buscar estar de acordo; as
narrativas históricas tendem às variações idiossincráticas, sua exatidão se aplica à verdade dos
detalhes e não ao todo. São gêneros diferentes, porém não incompatíveis, escreveu o antropólogo
(1988:141). Em resumo, Hugh-Jones diferenciou mito e história nos termos das seguintes
oposições complementares estruturais: generalidade/especificidade; imanência/transcendência;
idiossincrasia/correção e detalhe/todo. São as circunstâncias que determinam, de um lado, um
esforço de totalização, e, de outro, o deixar seguir.
Como sugeriu Hugh-Jones, if Westerners saw, and still often see, Indians in temporal
terms as representing an earlier stage in the development of humanity, the Indians see these
differences more in spatial terms and not as a matter of relative progress” (1988: 145). Assim, os
30
pares de oposição diacronia/sincronia, história/geografia, tempo/espaço, tomados como
sinônimos constituem um aspecto fundamental a partir do qual mito e história se diferenciam
quando tratam da relação entre índios e brancos.
Como se sabe, a morte do capitão Cook foi determinada quando seu navio teve um mastro
quebrado e ele precisou voltar à ilha. Foi este posicionamento o elo com a mitologia havaiana,
segundo a qual o deus da fertilidade Lono/Cook deveria partir para que o rei guerreiro (Ku)
pudesse continuar a reinar. Entre os Yanomami a chegada dos brancos a jusante sugeria que eles
eram fantasmas que tinham fugido das costas do céu”, onde moram os fantasmas, o trovão e
diversas criaturas sobrenaturais (Albert 1988: 97). No mito de origem do branco barasana, os
brancos, depois de criados por um índio, foram enviados na direção do Oriente, de onde,
justamente, vieram os primeiros brancos (Hugh-Jones 1988: 142-145). Os diferentes povos das
Terras Altas da Melanésia também associaram a chegada da patrulha e a direção pela qual ela
chegou. Para alguns elas vinham de lugares considerados sagrados, para outros, de onde viviam
os ancestrais, ou então os inimigos espirituais (Schieffelin & Crittenden 1991). Entre os Piro, os
mitos narram a partida dos primeiros brancos para um destino desconhecido. As tentativas de
determinar esse lugar são feitas por meio de narrativas (stories) que remetem ao céu, de onde vêm
os aviões, os bens manufaturados e os missionários. É notável como nos mitos a precisão do
posicionamento e do deslocamento geográfico é mais relevante do que o momento no qual as
coisas acontecem.
*
Não resta dúvida, no entanto, de que a maior oposição suscitada pelo Seminário - o
Universo da França Antártica” - foi aquela que dizia respeito aos católicos e protestantes.
Contudo, a diferença com o que ocorreu na Baía de Guanabara consiste, no meu entender, no fato
31
de que a controvérsia sobre a Eucaristia agora meio milênio depois sequer foi citada. As
divergências que surgiram entre os palestrantes no Museu Histórico versavam sobre, por
exemplo, a existência ou não da chamada Henry Ville, citada pelo católico Thevet e criticada
pelo protestante Léry; a religiosidade de Villegagnon; católico convicto para uns, instável para
outros; além do papel que ele deveria desempenhar na hisria: hei ou vilão, ou, nas palavras de
Lestringant, um santo ou um oportunista (1993b - 1996: 55). Ou seja, o debate contemporâneo,
apesar de centrado na religião, saiu do âmbito teológico.
A história cronológica da França Antártica:
De acordo com Hemming, os primeiros religiosos chegaram ao Brasil em 1503 e eram
franciscanos
6
(1978: 98). Nestes primeiros anos do século, Américo Vespúcio escreveu que, entre
1503 e 1504, sua expedição passou cinco meses num porto na costa brasileira onde construiu uma
fortaleza - a casa da pedra (Hemming 1978: 553n.).
Por volta de 1510, os índios encontraram o náufrago português João Ramalho em uma
praia onde hoje é o estado de São Paulo. Eles o levaram até Tibiriçá, que o recebeu e lhe deu uma
filha como esposa. (Hemming 1978: 42).
No ano seguinte, a nau portuguesa Bertoa foi a Baía de Todos os Santos e Cabo Frio. Na
volta, além de pau-brasil, papagaios e peles de jaguar, trouxe também 35 índios escravos
(Hemming 1978: 10)
7
.
6
Em 1515, outros franciscanos foram para o Brasil e, em 1543, eles estabeleceram um convento em Olinda
(Hemming 1978: 98)
7
O piloto dessa embarcação chamava-se João Lopes de Carvalho. Ele depois se tornou guia da expedição de Fernão
de Magales (Hemming 1978: n. 553-554 apud Pigafetta).
32
Em 1512, uma bula papal proclamou que os ameríndios descendiam de Adão e Eva, assim
como o resto da humanidade. (Hemming 1978: 47). Uma nova determinação papal ocorreu em
1537, quando Paulo II declarou que “todos os nativos do Novo mundo eram homem livres: os
índios passariam a vender sua mão-de-obra aos colonos” (Eisemberg 2000: 22).
Em dezembro de 1519, a expedição de Fernão de Magalhães passou duas semanas no Rio
de Janeiro.
Entre 1520 e 1535, segundo Lucien Febvre, ocorreu un affair de Placards, dans la
France(1942: 28). Foi durante esse período que Inácio de Loyola viveu em Paris, no Colégio de
Santa Bárbara, precisamente entre os anos 1529 e 1535 (Leite 1956, I: 373n.).
De abril a julho de 1530, Martin Afonso de Souza esteve no Rio de Janeiro onde construiu
uma casa de pedra. 400 portugues passaram um ano na região. (Hemming 1978: n. 554 apud
Lopes de Souza)
8
.
Em 1532, Martim Afonso de Souza estabeleceu o primeiro povoamento em São Vicente.
Foi quando encontrou João Ramalho. (Hemming 1978: 41-42 e 69). Neste mesmo ano, o
emissário do rei de Portugal tomou naus de corsários franceses, enquanto, em Pernambuco,
franceses destruíram uma feitoria portuguesa e deixaram 70 pessoas (D. João III a Martim
Afonso de Souza/Serrão 1532 - 1956: 15-16).
Entre os anos de 1534 e 1536, D. João III dividiu a costa brasileira em 14 capitanias
hereditárias. Foi a primeira tentativa régia de ocupar as terras conquistadas de forma
descentralizada.
No mesmo ano em que os espanhóis descobriram prata em Poto, em 1547, portugueses
foram massacrados em Porto Seguro pela tribo de Caramuru
9
. Neste ano, Pero Fernandes de
8
Essa expedição foi relatada no Diário de Navegação de Pero Lopes de Souza, irmão de Martim Afonso de Souza
(1531-1532).
33
Sardinha, futuro bispo no Brasil, estava em Paris e escreveu ao rei de Portugal alarmando-o de
uma possível manobra francesa na América. (Hemming 1978: 79).
Em 1548, D. João III desistiu do sistema de capitanias hereditárias e escreveu o regimento
de Tomé de Souza, no qual o incumbiu de ser o governador-geral do Brasil. Tratou de centralizar
a administração da colônia. Foi também neste ano que Villegagnon, navegando pela costa norte
da Escócia, resgatou Mary Stuart, que estava prisioneira dos ingleses (Hemming 1978: 120).
No ano seguinte, Tomé de Souza chegou ao Brasil, junto com Manoel da brega,
Leornado Nunes, Azpilcueta Navarro, António Pires e os irmãos Vicente Rodrigus e Diogo
Jácome (Leite 1956, I: 7). Em 1550, foi a vez de uma segunda leva de jesuítas; em 1553, veio
para o Brasil, juntamente com o Governador Geral do Brasil, Duarte da Costa, o então Irmão,
José Anchieta.
Neste meio tempo, em 1552, chegou o Bispo Sardinha. No mesmo ano, Hans Staden foi
capturado por índios Tupinambá em Bertioga. Ali, Tomé de Souza, tinha mandado edificar, por
ordem régia, uma fortaleza que servisse de obstáculo para os ataques que os índios do Rio de
Janeiro faziam aos Tupiniquins de Piratininga. Staden permaneceu prisioneiro durante nove
meses.
Em 9 de julho de 1553, Nóbrega tornou-se provincial da Província do Brasil (Leite 1956,
I: 9). No dia 29 de agosto de 1553, ele fundou a Aldeia de Piratininga. A chefia foi entregue a
Martim Afonso Tibiriçá. (Cardim/Azevedo 1585 - 1997: 273n.). Foi igualmente neste ano que o
Provincial instituiu a potica de aldeamento indígena (Hemming 1978: 104).
***
9
Depois disso ele viajou para França com a esposa. O casal voltou ao Brasil, onde Caramuru morreu, em 1557
(Hemming 1978: 85).
34
De acordo com o historiador Charles-André Julien, a primeira expedição transatlântica
francesa, foi organizada por Verrazano e partiu de Dieppe, em 1523 (1948: 1). Ainda segundo
ele, o explorador francês estava pronto para conquistar, no final de 1527, um grande rio na costa
do Brasil (1948: 89). Entretanto, a primeira expedição francesa financiada por um monarca, foi a
viagem de Jaques Cartier ao Canadá. Ele partiu no dia 20 de abril de 1534. O objetivo declarado
por Francisco I, o era converter os selvagens, nem conquistar a região, mas descobrir
determinadas ilhas e países, onde se dizia ser possível encontrar uma grande quantidade de ouro e
outras riquezas (Julien 1948: 119)
10
.
Entretanto, em 1541, Francisco I mudou de atitude ao nomear Jean François de La Roque,
senhor de Roberval, um nobre do Languedoc, que havia se convertido ao protestantismo em
1535, para ocupar de forma permanente o Cana(Julien 1948: 147-148). A colonização, no
entanto, foi posteriormente abandonada por falta de incentivos reais.
A tentativa seguinte de estabelecer uma colônia além-mar ocorreu no reinado de Henrique
II. O chefe da expedição escolhido foi o cavaleiro da Ordem de Malta, Nicolas Durant de
Villegagnon. Em meados de julho de 1555, ele partiu da França, juntamente com o franciscano
André Thevet e com o piloto Nicolas Barré
11
(que escreveu duas cartas da França Antártica) para
estabelecer uma colônia francesa na América. As embarcações chegaram ao Brasil no final do
ano.
No início de 1556, Thevet retornou à França, onde escreveu Les singularités de la France
Antarctique. Além da partida de Thevet, que era o der religioso da colônia ao longo deste ano,
10
Apesar de católico, Cartier jamais demonstrou ardor de proselitismo. Nas duas primeiras viagens que fez ao
Canadá, não ocorreu nenhum batismo. Foi apenas no verão de 1538, quando Francisco I retomou a perseguição aos
calvinistas, que os católicos mais intransigentes puderam exercer sua influência (Julien 1948: 137-138).
Em 14 de julho de 1536, Francisco I assinou em Lyon o traité d‟amitié et d‟alliance” com João III. De
acordo com Julien, este tratado accordait au roi de France des avantages substantiels (Julien 1948: 133).
11
Barré também esteve na colônia francesa na Flórida.
35
Villegagnon passou por outras duas dificuldades importantes. Uma forte epidemia causou a morte
de rios Tupinambá. Estes atribram a doença ao chefe da colônia e os franceses tiveram de
lidar com a hostilidade dos índios. Internamente, Villegagnon também foi ameaçado pelos seus
compatriotas. Uma rebelião de trabalhadores descontentes com os tratamentos recebidos
planejaram ma-lo.
Em meados de julho de 1556, o navio do bispo Sardinha, Nossa Senhora da Ajuda,
quando estava a caminho de Portugal, naufragou no norte da Bahia. Ele e uma centena de pessoas
foram devorados pelos índios Caeté (Leite 1956, II: 448n).
No final do ano de 1556, o sobrinho de Villegagnon Bois-le-Comte partiu da França em
direção à França Antártica, junto com 14 calvinistas. Entre eles estavam o então sapateiro Jean de
Léry, que depois tornou-se pastor e escreveu a Histoire d‟un voyage, du Pont, o líder espiritual da
missão, Pierre Richer, que tinha cerca de 50 anos, era pastor e publicou na volta à França a
Refutation contra Villegagnon e Jean de Bolés, doutor da Sorbonne. Eles chegaram à Guanabara
em março de 1557. Villegagnon recebeu-os com entusiasmo, mas as relações entre ele e os
calvinistas rapidamente se complicaram.
Durante a primeira missa, em março de 1557, portanto, poucos dias após a chegada de seu
sobrinho e os calvinistas, Villegagnon demonstrou, aos olhos destes últimos um comportamento
estranho, não condizente com a recepção calorosa a que tinham sido submetidos, assim como,
com os ensinamentos doutrinários que haviam trazido. Ele e Jean de Bolés foram solicitados a
fazer testemunho da fé e abjurar ao papismo.
Em abril de 1557, enquanto os calvinistas realizaram os dois primeiros casamentos na
França Antártica (Léry 1578 - 1994: 179), Mem de Sá, terceiro Governador Geral do Brasil
36
(1558-1572), partiu de Lisboa em direção ao Brasil (Mem Sá/ Serrão 1570 - 1965: 67), para
ser o sucessor de Duarte da Costa.
Uma segunda missa foi celebrada no dia de Pentecostes. A Eucaristia foi motivo de
discórdia entre Villegagnon, os calvinistas e João de Bolés. Uma discussão calorosa tornou clara
a divergência entre eles. Diante da controvérsia, Villegagnon decidiu enviar o calvinista Chartier
à França, a fim de consultar Calvino.
Em outubro, os calvinistas foram para o continente onde permaneceram junto com os
Tupinambá à espera de um navio que os levassem de volta para França. Na hora de partir, em
janeiro de 1558, cinco calvinistas decidiram voltar para ilha por causa das condições precárias da
embarcação. Um mês depois, Villegagnon decidiu matar três deles.
Villegagnon permaneceu na França Antártica até o final de 1559, quando decidiu retornar
à França. Ele deixou seu sobrinho Bois-le-Compte no comando da colônia. Em novembro desse
mesmo ano, chegou à Bahia uma aramada de Lisboa enviada para ajudar Mem de a combater
os franceses no Rio de Janeiro. Em janeiro de 1560, a tropa viajou em direção ao Rio de Janeiro,
onde chegou em fevereiro. No dia 16 de março, após dois dias de ataques, o forte de Coligny foi
tomado pelos portugueses.
Em 22 de abril de 1560, o Provincial Luís da Grã elaborou uma petição para colher
depoimentos sobre João de Bolés.
***
Apesar de os franceses terem sidos expulsos da Guanabara em 1560, os portugueses
conseguiram tomar posse do lugar em 1567, quando eliminaram os últimos focos de resistência
Tamoio.
37
Em 1560, brega deixou o cargo de Provincial e foi para São Vicente onde estava
Anchieta
12
. De São Vicente ambos tentaram negociar a paz com os Tamoio e viajaram para
Iperoig onde viveram junto com os inimigos dos Tupiniquim.
O governo francês não enviou mais reforços para o Rio de Janeiro. Ao contrário, entre os
anos de 1562 e 1565, uma nova tentativa de estabelecer uma colônia além-mar foi realizada na
Flórida. O idealizador do projeto foi o mesmo da França Antártica: o almirante francês Gaspar de
Coligny.
Após a tentativa mal-sucedida dos jesuítas de estabelecer a paz com os Tamoio, Mem de
enviou, em 1565, seu sobrinho Estácio de ao Rio de Janeiro para dar início a povoação da
região. Uma vila foi erguida, mas ele acabou sendo flechado por um índio em 1567. Foi então
que Mem de Sá retornou ao Rio de Janeiro, quando tomou posse definitiva do local.
Problemas e Metodologia:
Antes de apresentar o modo como este trabalho está dividido, gostaria de fazer algumas
considerações sobre a metodologia empregada. Quando se aborda o material referente à França
Antártica, é tida a existência de uma assimetria entre as fontes portuguesas e francesas. Ao
contrário dos reis portugueses, que tinham o beneplácito
13
da Igreja, e dos jesuítas, cujo dever era
descrever tudo o que acontecia durante o seu apostolado, assim como um projeto conhecido de
divulgação a cristã, as expedições além-mar francesas eram sigilosas, seja porque eram
dirigidas por empresas privadas com fins exclusivamente comerciais (Julien 1948: 17), ou então,
12
O cargo de Provincial passou a ser ocupado por Luis da Grã.
13
É muito citado o fato de que Francisco I teria pedido que lhe mostrassem o testamento de Adão, no qual ele narra
que havia sido excluído da partilha do mundo.
38
no caso das tentativas de descobrimento e povoamento, porque envolviam questões diploticas
(Julien 1948: 267). Assim, temos de um lado, informações oficiais e de outro, relatos extra-
oficiais o que faz com que os registros franceses sejam bem menos coerentes que os portugueses.
Cada um poderia escrever o que bem quisesse, como diriam os franceses: n‟importe quoie,
realmente, são poucos os fatos citados que coincidem. Contudo, ao invés de buscar, como os
historiadores, a versão mais correta do que de fato aconteceu, optei por um olhar antropológico,
que tenta levantar o maior número de versões possíveis sobre determinados fatos e buscar, como
sugere Latour, construir uma rede sobre eles (1991 - 1994 e 2005 - 2006).
No contato com as fontes sobre a França Antártica, chamou minha atenção o modo como
as informações a respeito da mesma raramente eram consensuais. Essa percepção tornou-se
marcante uma vez que a maior referência sobre o tema, a obra de Lestringant, está centrada na
reconstrução do corpus huguenote”, e, neste sentido, obviamente, privilegia os fatos
concordantes. Como procurei ao longo deste trabalho fugir da dicotomia entre católicos e
protestantes, tentando, assim, fornecer uma visão não parcial dos acontecimentos, muitas vezes
fui obrigada a destacar certas contradições que foram esquecidas pelo autor. É preciso que se
diga, no entanto, que sem o trabalho de Lestringant, esta tese não teria sido produzida. Sua
erudição e organização do material foram fundamentais para que eu pudesse enfrentar a
complexidade que existe em um conjunto de fontes dispersas e quase sempre enigmáticas.
***
Gostaria de citar duas motivações que me incentivaram a fazer essa opção. Em primeiro
lugar, nos dois artigos no qual Lestringant (1985) e Wanegffelen (1998) tratam da religiosidade
de Villegagnon, ambos partem do que consideram um fato: a carta escrita por Villegagnon a
Calvino em 1556, pedindo a vinda dos calvinistas à França Antártica. Assim, em Tristes
39
tropistes” , Lestringant escreveu: Dans une lettre de janvier 1556 - dont la trace s‟est ensuite
perdu -, il [Villegagnon] le [Calvino] priait de lui envoyer, depuis Genève, une seconde fournée
de colons à la moralité plus éprouvée (1985 - 1996: 121, grifo meu)
14
.
Ao desenvolver o argumento de Lestringant de que o fracasso da França Antártica estava
relacionado à ambiguidade de Villegagnon em relão à religião, no artigo Rio ou la vraie
Réforme”, Wanegffelen escreveu que Villegagnon se sentiu ameaçado pelos franceses que já
habitavam a região antes dele chegar e então que: “c‟est sans aucun doute dans cet état d‟esprit
qu‟il s‟adresse par lettre à Jean Calvin” (1998: 160 grifo meu). Depois, refere-se a Villegagnon,
no momento em que ele retornou à França como: déterminé à tout faire pour oblier son recours
à Genève (1998: 164). E, após afirmar que d‟autant plus que les sources manquent -
notamment la première lettre adressée à Calvin au début de 1556 (1998 : 165-66 grifo meu) é
necessário interrogar sur les motivations de l‟appel à Calvin du début de 1556(1998: 166).
Finalmente, concluiu que para se compreender por que c‟est à Genève qu‟en premier lieu
Villegagnon a écrit pour demander l‟envoi de ministres de la Parole!(1998: 173) é necessário
combater o anacronismo e o confundir 1556 e 1561, ou seja, o período no qual Villegagnon
tinha uma posição extra-confessional com aquele no qual ele se juntou ao Partido Calico.
O problema é que Villegagnon nega ter pedido o envio dos religiosos a Calvino. Em uma
de suas respostas aos panfletos protestantes, Villegagnon escreveu:
Sou acusado de ter pedido a Calvino, por carta, ministros da sua
seita. Se tivesse sido o caso, Calvino teria tido prazer em enviá-los, para me
envergonhar. Não creio, porém, que ele tenha a insensatez de afirmar que
recebeu cartas minhas, à exceção daquelas que enviei um ano e meio depois
14
Essa frase de Lestringant, aliás, é repetida ipsis litteris na Introduction” da edição das Singularités (1557 - 1997:
18).
40
cheguei ao Brasil, como resposta às cartas que ele escreveu, quando enviou
seus homens
Il m‟accuse d‟avoir demandé à Calvin par mes lettres, ministres de sa
secte, s‟il est ainsy, Calvin luy fera bien plaisir de l‟en servir, pour m‟en faire
honte: mais je ne le tiens pas encores si perdu, qu‟il die avoir jamais eu letres
de moy, sinon plus de dix huict mois aprés que je fus au Bresil, en response de
celles qu‟il m‟escrivit m‟envoyant ses hommes(1561 - In Thevet 1588 - 2006:
269).
Assim, como escreveu um protestante,
n‟est pas impossible que la lettre ait été adressée à l‟Eglise de Genève,
comme dit Léry, et qu‟elle ait été complétée par des démarches orales du
porteur auprès Calvin. Le fait est que ces lettres étaient déjà perdues au XVI
e
siècle, et queVillegagnon, qui nie les avoir jamais écrites, met ses adversaires
au défi de les présenter” (Reverdin 1957: 21)
15
.
Quatro foram as referências protestantes que provavelmente serviram para que
Lestringant e Wanegffelen baseassem suas afirmativas. A primeira delas é de um panfletista
anônimo que escreveu para Villegagnon:
você diz que te acusam de ter pedido ministros a Calvino, o que
negas obliquamente. (...) Diz também que escreveu a ele apenas um ano e
15
Na Refutation, Richer escreveu:
tenho a lembrança de que no livro anterior, eu disse que o impostor Durand fez vários pedidos a
Calvino, pois queria ser o responsável pela instituição da Religião na América. Provarei isso também. Sei, com
certeza, que tive comigo a cópia e um exemplar de três epístolas com o mesmo argumento desse grande rei
Villegagnon, mas, apesar de procurar com afinco, não as encontrei. Tenho apenas o que palavra por palavra
transcrevi, de modo que todos pudessem entender como é vã, til e vazia a mente desse lunático
ie remets en memoire, que au liure precedant i‟ay dit que l‟imposteur Durand auoit fait plusieurs prieres à
Caluin de vouloir estre auteur que la Religion fust institue & plãtee en Amerique, ie prouueray cela aussi. Et ie sçay
certainement que j‟ay eu en ma possessiõ la copie & exẽplaire de trois epistres de mesme argument, de ce grand Roy
Villegaignõ : mais les ayãt chercees diligemmẽt, ie ne les ay trouuees, sinon cela peu seulement, que de mot à mot
i‟ay fait transcrite, affin que tous puissent entẽdre cõbien est vain, futile, & vuyde l‟entendement de cet hõme
lunatique (1561: 171)”.
41
meio depois que chegou ao Brasil. Para nós é a mesma coisa. Quanto tempo
você demorou para escrever desde que tomou posse das terras naquele
país? Calvino nos fez saber que foi por suas próprias palavras que ele te
enviou ministros, e que então você respondeu às cartas dele. (...) Devo dizer
que aqueles que viram e leram as cartas escritas por teu punho, nas quais
pedia os ministros, sabem com és rude, e poderão te desmentir, bem abaixo
da sua barba, se o cérebro deles não ficou com o miolo mole, confundido
por você
tu dis en apres, qu‟on t‟accuse d‟auoir demandé Ministres à Caluin: ce
que tu nies obliquement, (...) & dis que tu ne lui escriuis que diz huit moin
apres ton aduenement au Bresil. Mais ce nous est tout vn, combien de temps
tu mis à lui escrire depuis que tu prins terre en ce païs là: veu qu‟il nous appert
par tes propes mots, qu‟il t‟enouoya des Ministres, & que lors tu fis response à
ses lettres. (...) Je laisse à dire que ceux qui ont veu & leu les lettres escrites de
ta main, par lesquelles tu demandois Ministres, te sçauroent bien rabrouer, &
t‟en pourroient bien dementir en ta barbe, s‟ils n‟auoiẽt le cerueau autant
rassis, comme tu l‟as cõfus & troublé” (1561-62 ?).
A segunda referência foi retirada de Richer:
Quando João Calvino recebeu o pedido do Rei Antártico para
enviar alguns fiéis, santos e doutores para edificar sua Igreja, apesar de
estar inclinado e interessado na expansão do reino de Jesus Cristo, ao ver o
nome de Villegagnon, esmoreceu. muito tempo Calvino não se
apressava em inventar e tentar coisas novas. Ele conhecia também a
vaidade e malícia desse Villegagnon que não vale nada. Entretanto,
finalmente, João Calvino, por sua bondade se deixou persuadir que talvez
fosse um outro Villegagnon e, obedecendo as preces de muitos, convenceu a
mim e a um outro a carregar esse fardo”.
42
Iehan Caluin estant prié par le Roy Antartique d‟enuoyer quelques
Fideles, & saincts docteurs, pour instruire son Eglise, combien que ledict
Caluin soit enclin & curieux à la ditation, & accroissement du regne de Iesus
Christ, toutefois oyãt le nom de Villegaignõ: il meit ses prieres à mespris, car
comme des long temps il n‟est hastif d‟inuenter & tenter choses nouuelles, il
cognoissoit aussi la vanité & malice de ce rien ne vault Villegaignon, mais,
finalement Iehan Caluin par sa benignité se laissa persuader que ce fust vn
autre que Villegaignon, donc obtemperant aux prieres de plusieurs, à moy & à
vn autre il persuada de prendre ceste charge” (1561: 21).
A terceira referência está na ode de um panfletista anônimo, quando diz que Villegagnon:
enviou cartas a Genebra; suplicando que lhe providenciassem
ministros e pastores; para serem os condutores; de um grupo de fiéis; para
melhor servir a Deus; nesse lugar solitário; buscavam a sombra de suas
asas; Genebra aceita; um pedido tão justo; e prontamente envia; as pessoas
que foram pedidas
Lettres à Geneue enuoye; Suppliant qu‟on le pouruoye; De Ministres
& Pasteurs; Pour estre les conducteurs; Dune troupe de Fidelles; Qui pour
mieux seruit à Dieu; En ce solitaire lieu; cerchoient lõbre de ses aisles; Geneue
luy accorda; Une si iuste demande; Et tout soudain luy manda; Les personnes
quil demande” (1561b: 7).
A quarta referência é de Léry, que contou que logo que eles chegaram foram falar com
Villegagnon:
du Pont, nosso chefe, junto com Richer e Chartier, ministros do
Evangelho, brevemente lhe expuseram o motivo principal que nos motivou
a fazer essa viagem e atravessar o mar apesar de tantas dificuldades para
encontrá-lo, a saber, de acordo com as cartas que ele tinha escrito a
43
Genebra, para construir, neste país, uma Igreja reformada segundo a
palavra de Deus
du Pont notre conducteur, avec Richier et Chartier Ministres de
l‟Evangile, lui ayant brièvement déclaré la cause principale qui nous avait mus
de faire ce voyage et de passer la mer avec tant de difficultés pour l‟aller
trouver, à savoir, suivant les lettres qu‟il avait écrites à Geneve, que c‟était
pour dresser une Eglise réformée selon la parole de Dieu en ce pays-(1578
- 1992: 67).
No entanto, um panfletista anônimo em L‟amende honorable de Nicolas Durand
escreveu:
em relação às cartas que voescreveu para Calvino, não disse que
por estas você pediu ministros para ir ao Brasil (sei que você suplicou para
poder obtê-los, tendo mais crédito que você e o qual, não obstante você
pensa injuriar, quando diz ter a mesma vivacidade de Calvino). Disse, sim,
que as cartas que endereçou a Calvino, em algum momento em que você as
tenha escrito, estavam cheias de louvores, algo que não podes negar sem
ruborizar, se ainda guardas alguma vergonha e modéstia
quant aux lettres que tu as escriptes à Caluin, ie n‟ay pas dict que par
icelles tu ayes demandé Ministres pour aller au Bresil (car ie scay qui tu
supplias pour les pouuoir obtenir, y ayant plus de credit que toy, & lequel
neantmoins tu penses iniurier, quand tu le dis estres de mesme chaleur que
Caluin) mais bien ay-ie dict que tes lettres audict Caluin, en quelque temps que
tu les ayes escriptes, estoyent pleines de ses louãges: ce que tu ne peux nier
sans rougir si tu as encores retenu quelque de honte & de modestie(1561f:
A.iiij. - A.iiij.1 grifo meu).
44
Ou seja, pode-se dizer que uma brecha entre os relatos protestantes, para a
possibilidade de Villegagnon não ter escrito uma carta a Calvino pedindo o envio dos
protestantes. Ele pode ter solicitado a ajuda por um mensageiro, ou outra pessoa pode ter dito a
Calvino, em nome de Villegagnon, que ele desejava os colonos.
Há, ainda, o seguinte problema que as fontes protestantes apresentam: na História dos
Martires, Jean de Crespin narrou esta passagem:
um delles, (trabalhadores de França Antártica) não podendo continuar a
passar dessa maneira, pedio a Villegagnon que o deixasse ir viver entre os
selvagens, o que lhe foi permittido sob condição de renunciar aos seus salarios,
devendo o acto ser legalizado perante o notário, ao que o operário se
submetteu, pois desejava obter a sua liberdade” (1564 - 1917: 48 grifo meu)
16
.
Já Richer escreveu:
É necessário mostrar como Villegagnon é sutil e engenhoso no
modo como divulga suas mentiras. Ele age e diz como se, por amizade, ou
obrigado pela autoridade dos notários públicos, nos tivesse feito provar os
artigos de e da religião. Entretanto, qual de nós alguma vez viu algum
notário para elaborar contratos na Terra da América? Na ilha de Coligny
nada se compra ou vende, nada se semeia ou se colhe, não comércio de
mercadorias, ninguém tem moradia ou aluguel, ninguém cumpre ou recebe
pena. Não há papel nem pluma para anotar o que se faz
Il est necessaire de monstrer cõbien il est subtil & ingenieux de couurir
ses mẽsonges, Il fait & parle ainsi, comme si par amitié ils nous auoit requis de
prouuer les articles de la foy & religion, ou par contrainte de l‟authorité des
notaires publiques: car qui est celuy de nous, qui iamais en la Terre Amerique,
aye veu vn seul notaire pour faire contracts? En l‟Isle de Colligne rien n‟est
16
Esta passagem da obra de Crespin, assim como outras que estão em português foram retiradas da edição brasileira.
45
acheté ne vendu, on n‟y seme ne recueille rien, on n‟y fait aucune traffique de
merchandise, il n‟y a aucun qui tienne de louage, ou qui louë, ne qui preste sa
peine, ou qui la reçoiue, Il ne se trouuera en ce lieu ne papier ne plume pour
escrire ce qu‟on y fait (1561: 30).
Essa passagem de Richer é ilustrativa por dois motivos. Em primeiro lugar, porque mostra
uma contradição dentro do corpus protestante sobre o estatuto das instituições na França
Antártica. Em segundo lugar, porque exatamente nesse último trecho, quando Richer se remete a
provar os artigos de e da religião”, ele parece estar respondendo à afirmativa de Villegagnon
de que o pastor escreveu três proposições sobre a Eucaristia no período em que esteve na França
Antártica. Por outro lado, quando argumenta que lá não havia papel ou caneta, coloca a
possibilidade, como será visto no Capítulo 2, de questionar a confissão de fé protestante a que os
cinco calvinitas que retornam à França Antártica foram submetidos, e que motivou Villegagnon a
condenar três deles à morte.
***
Minha segunda motivação para tentar juntar o maior número de versões disponíveis sobre
a França Antártica está relacionada ao fato de que, quando em 1999, comecei a me interessar pelo
tema, li as obras de Jean de Léry, André Thevet e as cartas jesuíticas, sem prestar a menor
atenção nos índios. Quando decidi ingressar no Museu Nacional, conheci Marcio Goldman, então
coordenador do Programa, que me indicou O mármore e a murta”, de Eduardo Viveiros de
Castro. Eu sempre tive simpatia por índio, mas jamais pensei poder conciliar isso com meu
trabalho. Foi apenas no Museu Nacional e sob orientação de Viveiros de Castro que entrei em
contato com a Etnologia. Era, pois, necessário retornar às fontes. Não para tentar uma etno-
hisria dos Tupinambá, nem uma nova interpretação sobre eles, uma vez que esses trabalhos
tinham sido realizados, mas para fazer aquilo que estava sendo feito em outros contextos, agora
46
no âmbito da França Antártica. Isso significou escutar o que os índios tinham a dizer, com o
objetivo de restituir-lhes um pouco daquilo que tinham perdido, ao menos nas disciplinas das
Ciências Sociais que não lidavam diretamente com a Antropologia, isto é, reconhecer que
desempenharam um papel ativo na história. Não apenas os relatos dos cronistas trazem uma série
de informações sobre os índios, como também há todo um corpus etnológico que dialogava
com o que havia sido escrito sobre os Tupinambá. Logo ficou claro que os índios tinham sido
determinantes para os homens na época em que viveram entre milhares deles; e era, portanto,
necessário dar relevância a isso.
No meu entendimento, o problema da carta de 1556 de Villegagnon a Calvino é
semelhante ao meu esquecimento voluntário em relação aos índios, isto é, aquela espécie de
tirania da maioria a que se referia Alexis de Tocqueville a respeito de A democracia na América
(1835). Determinadas interpretações menores, oriundas das minorias, tinham sido ocultadas com
o tempo sem que tivessem sido devidamente discutidas. Não se trata, contudo, de substituir umas
pelas outras, apenas trazer à tona determinados problemas que têm sido colocados de lado. Uma
maneira de realizar isso me parece suspender uma oposição que pode ser cara a muitos, mas que
o ajuda muito quando o que se busca é uma abordagem simétrica, no sentido que Latour atribui
ao termo - falo da distinção entre fontes primárias e fontes secundárias.
O s-modernismo abraçou a suspeita de que tudo é ficção, muito pouco pode ser dito,
pois o qualquer possibilidade de certeza sobre os fatos. Um exercício interessante seria
propor um desafio inverso. E se tudo for verdade? Neste caso, por exemplo, se jamais será
possível ter acesso à guerra entre portugueses e franceses no Rio de Janeiro na década de 60, cada
participante, como, aliás, já mencionou Lévi-Strauss a prosito da Revolução francesa, tem sua
própria versão sobre o que ocorreu em 14 de julho, logo, no 15 de março, os relatos, as
47
interpretações e, entre estes, aqueles que, de alguma forma sobreviveram. A Gesta de Mem de Sá,
escrita por Anchieta em 1563, em latim, foi traduzida e editada em pleno século XX. Ela é menos
importante do que o que ocorreu na guerra, do que os depoimentos de Mem de Sá, apenas por se
tratar de um nero ficcional? Ou, a Gesta, apesar de obviamente não retratar com fidelidade o
que ocorreu, tem muito a dizer sobre o modo como aquela guerra se construiu no imaginário
social? É provável que daqui a cem anos ninguém mais se interesse sobre a Gesta de Mem de ,
mas hoje, seguindo os preceitos de Os mestres da verdade na Grécia arcaica, de Marcel
Detienne, parece ser importante tomar como fato aquilo que outrora foi ficção.
O que quero dizer com isso, é que não acho que a verdade tenha de ser tomada como
mentira ou vice-versa, mas que é preciso conferir um mesmo valor epistemológico a
determinadas proposições. Quando um índio afirma que virou onça, pode-se fazer a seguinte
objeção: “alguém viu”? Ora, a pergunta é pertinente, porém, ela não deve ficar circunscrita às
tradições orais, pois, como será visto adiante, nos mais de quinhentos anos que nos separam da
hisria da França Antártica, muitas fontes se perderam e, às vezes, “há” fatos baseados em
documentos que ninguém jamais viu. Isso o quer dizer de modo algum que os relatos, sejam
eles orais ou escritos, devam ser abandonados. Pelo contrário, se eles sobrevivem, o que importa
perguntar é o que se quer dizer com afirmações sobre coisas que são, de certo modo, “invisíveis”.
Um problema que se colocou para mim desde que comecei a travar contato com o
material sobre a França Antártica, foi o fato de que as fontes continham divergências
incomensuráveis. O que fazer diante de um fato que é relatado de forma tão diferente? Vem-me à
mente as Mitológicas, de Lévi-Strauss, os cursos ministrados por Viveiros de Castro e, enfim, a
idéia de que o que há são versões, umas se relacionam às outras, e nem mesmo o M1 é,
necessariamente, um ponto de partida. As inúmeras informações contidas nas fontes francesas
48
sobre a França Antártica apontavam para, pelo menos, um caminho: a história do que lá se passou
era mais complexa do que se poderia imaginar. Era necessário então trazer essas complicações à
tona.
Por fim, gostaria de esclarecer dois motivos pelos quais meu trabalho tem transcrições, às
vezes bastante longas, das fontes da época. Trata-se, em alguns casos, de um material inédito no
Brasil, o que por si já justificaria essa opção, contudo, o que considero mais importante é que
as fontes da época são tratadas como registros etnográficos e, neste sentido, algo que não está a
serviço da interpretação, mas que pode, por meio da Antropologia, ser ouvido como discurso
nativo. Procurei traçar algumas redes entre essas vozes dissonantes.
Quadro bibliográfico sobre a França Antártica:
As obras sobre a França Antártica jamais visaram uma reconstituição da mesma. Ao longo
do século XVI, o livro de André Thevet, Les singularitez de la France antarctique (1557), foi
fundamental para que ele se tornasse cosmógrafo real
17
. Histoire d‟un voyage (1578), de Jean
de Léry, serviu à formação da identidade protestante. As outras duas produções de Thevet,
Cosmographie Universelle (1575) e Histoire de deux voyages (1588), apesar de muitas vezes
repetirem e desenvolverem passagens das Singularités, trouxeram informações inéditas sobre os
Tupinambá, como a transcrição da mitologia tupinambá, e, na época, serviram em especial, para
responder ao ataques que Léry endereçou a ele.
Em 1561, entre os livros, a que tive acesso e pude pesquisar, publicados em francês, que
fazem referência às experiências vividas na Guanabara, sete eram de protestantes anônimos, um
17
Em 1558, depois de ter publicado a Cosmographie de Levant (1554) e Les singularitez de la France antarctique
(1557), Thevet pediu o afastamento da ordem dos franciscanos (Lestringant in Thevet 1554 - 1985: XIII). Em 1560,
ele se tornou cosmógrafo dos últimos Valois (Lestringant 1588 - 2006: 16).
49
de Pierre Richer, e cinco de Villegagnon. Essas pessoas, que sobreviveram à experiência
antártica, na volta para França, permaneceram discutindo teologia, e remetendo-se aos fatos
ocorridos com o intuito de ilustrar suas opiniões.
Ao longo dos séculos XVII e XVIII, a experiência quinhentista serviu para construção da
noção do bom selvagem” (Lestringant 1990 - 2004), uma tentativa racional de conhecer as
origens da humanidade que, no século XIX, serviu de base para as formulações das teorias
evolucionistas (Pagden 1982 - 1986).
No século XIX, a hisria da França Antártica foi resgatada por Paul Gaffarel; além de
reeditar as obras de Thevet e Léry, ele também dedicou um de seus livros exclusivamente ao
tema (Gaffarel: 1878). a biografia elaborada por Arthur Heulhard, enfatiza o catolicismo de
Villegagnon (1897). Esses dois autores que escreveram durante o Imperialismo europeu,
buscaram mostrar em suas obras, com os exemplos do passado, a aptidão francesa na arte de
conquistar.
Na França, na segunda metade do século XX, a história da França Antártica adotou um
padrão semelhante ao brasileiro, uma vez que aqui, desde Frei Vicente do Salvador, ela jamais foi
algo além de um capítulo pequeno da história oficial. Lá, depois desse tipo de abordagem por La
Roncière (1934) e Julien (1948), reapareceu como um capítulo da hisria do protestantismo
francês. Nessa linha, temos o livro de Reverdin (1957), o artigo de Léonard (1958) e de Bataillon
(1972) e a obra de Lestringant. Pode-se dizer que Peillard (1991) estabelece uma continuidade
com Heulhard, na medida em que busca restituir a trajetória de Villeganon enquanto um bom
católico.
Ainda no final do século, destaca-se o artigo de Michel de Certeau (1975 - 1982), que
trata a relação de Jean de Léry com a alteridade, e o de Thierry Wanegffelen (1997), sobre a
50
religião de Villegagnon durante o tempo em que comandou a França Antártica; entre Roma e
Genebra”, ele teria buscado uma concórdia para defender o Estado unificado francês. Vale
lembrar, contudo, que ambos falam de lugares bem definidos, um era jesuíta e outro é
calvinista
18
.
Divisão dos capítulos:
No primeiro capítulo, tracei um panorama sobre a presença francesa no Brasil antes da
França Antártica, onde procurei mostrar que, se ela se diferencia por não contar com o apoio do
Estado, por outro lado parece se assemelhar com o que ocorreu depois, na medida em que a
viagem de Villegagnon teve como núcleo de partida a região da Normandia, onde também havia,
na época, uma concentração de protestantes.
Antes da França Antártica, duas viagens de franceses foram documentadas. Em 1504,
Gonneville esteve, entre janeiro e julho, com índios Carijó no local onde hoje é o estado de Santa
Catarina, porque precisou consertar o navio que viajava para o Oriente. De lá, retornou à França e
levou consigo um índio chamado Essomericq, que jamais voltou à América. Já na década de 30, o
lionês Jean Dupéret construiu uma fortaleza em Pernambuco que foi destrda por Pero Lopes de
Souza, irmão de Martim Afonso de Souza.
Neste capítulo, também descrevi as primeiras viagens ao Rio de Janeiro. Em 1511, 1531 e
1532, os portugueses lá estiveram, mas não tiveram êxito em permanecer. Em 1519, Pigafetta,
que viajava na expedição de circunavegação de Fernão de Magalhães, narrou os dias passados
entre os índios Tupinambá.
18
Wanegffelen é orador laico de l‟Eglise réformée de Clermont-Auvergne, onde, quinzenalmente, dirige um grupo
de estudos sobre a Bíblia (2005).
51
Por fim, procurei mostrar como as autoridades portuguesas, os jesuítas e um colono,
Gabriel Soares de Souza, perceberam a ameaça francesa antes da França Antártica.
No segundo capítulo, descrevi a história da França Antártica, segundo as fontes francesas.
O fato de elas serem discrepantes, fez com que ao final de praticamente cada subcapítulo eu
construísse um quadro para destacar as diferenças.
Começo mostrando que, apesar de o projeto dessa colônia ser desconhecido, ele devia
estar desvinculado de uma questão confessional específica, uma vez que o idealizador, Gaspar de
Coligny, na época ainda não era protestante. Em seguida, trato dos eventos mais comentados nas
fontes: como foi a partida da França, a chegada na Guanabara, de que modo os franceses
descreveram o local, em que medida existiu uma cidade no continente, a chegada dos calvinistas,
a controvérsia sobre a Eucaristia, a celebração do Pentecostes, a volta dos calvinistas para França,
os cincos calvinistas que decidiram retornar à França Antártica, a confissão de fé calvinista, a
execução dos três calvinistas, o retorno de Villegagnon para França e o período dele antes de
dar início ao debate com os calvinistas. No final desse capítulo, destaco alguns acontecimentos da
colônia francesa na Flórida que apresentam semelhanças com a experiência da França Antártica.
Aponto a possibilidade de que ambas sejam pensadas em conjunto.
No terceiro capítulo, procurei reconstruir o debate que ocorreu na Fraa, principalmente
em 1561, entre Villegagnon e os calvinistas. Começo traçando um perfil da trajetória de
Villegagnon, e, em seguida, trato do debate dele com Richer. Foi ele quem respondeu às
interpelações que Villegagnon fez a Calvino, que jamais se manifestou a respeito. O debate,
contudo, continuou quando Villegagnon pediu a rainha mãe para responder a Marlorat, um
protestante que não teve relação com a França Antártica, mas que publicou um livro defendo o
52
protestantismo na França. A partir de então, panfletistas protestantes anonimamente endereçaram
críticas a Villegagnon e a sua atuação na França Antártica.
Esse debate ressurgiu com uma nova feição com a publicação da Histoire de un voyage de
Léry, onde discussão foi endereçada as duas publicações de Thevet sobre a França Antártica.
Este, antes de morrer, deixou um manuscrito inédito publicado apenas em 2006, no qual se pode
notar algumas tentativas de responder a Léry.
No quarto capítulo retorno ao Rio de Janeiro para tratar da guerra que durou sete anos, a
partir do ataque de Mem de à fortaleza dos franceses. Começo tratando de Jean de Bolés, que,
a meu ver foi um peça central, tanto nas dissensões internas à França Antártica, como também no
que tange ao conflito entre os franceses e portugueses. Em seguida, narro a guerra, com ênfase no
ponto de vista de Anchieta, na medida em que foi ele quem mais escreveu sobre o assunto. O
capítulo termina com dois problemas historiográficos centrados nos índios Cunhambebe e
Pindobuçu e um antropológico que envolveu Ambiré.
No quinto capítulo apresentei alguns relatos sobre europeus que quando chegaram à
América ao invés de levar adiante o projeto europeu de colonização: a ocidentalização, entendida
como um esforço de transformar os índios em ditos da coroa -, preferiram adotar o modo de
vida indígena. Entretanto, estes foram casos isolados, impedidos por diversos motivos, entre eles,
as concepções que europeus tinham de que os índios eram semelhantes aos turcos, e neste
sentido, os classificaram como bárbaros, pagãos e infiéis, dando ensejo para que determinadas
práticas européias, como a guerra santa, ganhassem na América, formas análogas, como, por
exemplo, a guerra justa. No final desse capítulo, trato do problema da violência religiosa na
França do século XVI.
53
Finalmente, na conclusão levantei alguns aspectos dos afectos indígenas, onde procurei
mostrar as diferenças das suas guerras das euroias, assim como as especificidades de suas
práticas, como, por exemplo, o canibalismo que também pode ser entendido enquanto
perspectivismo ameríndio. Questionei em que medida se pode falar em religião indígena,
procurando apontar de que forma os missionários do século XVI fizeram associações entre os
relatos indígenas e as crenças cristãs. Diferentemente, tentei entender a mitologia tupinambá,
assim como o comportamento performativo dos índios, como mensagem deles para os brancos,
cujo sentido pode ter sido sobre a possibilidade de criar aliança ao invés de separação. No final,
aponto que, assim como ocorreu entre diversos povos na época dos primeiros contatos, os índios
que lidaram com a experiência antártica, igualmente conceberam os estrangeiros como fonte de
recursos metasicos.
54
Cap 1 - A presença francesa no Brasil antes da França Antártica
Empreendimentos públicos e privados:
A presença de franceses em grande parte do território brasileiro, de norte a sul, foi sentida
desde que os portugueses chegaram à América, ou talvez, até mesmo antes. Apesar de não terem
deixado nenhum documento escrito, comme l‟affirme la Popelinière, les Normands surtout et
les Bretons maintiennent avoir les premiers découvert ces terres, et d‟ancienneté trafiqué avec
les sauvages du Brésil‟” (apud Hauser 1937: 93). Essa especulação gira em torno da viagem do
navegador de Dieppe, Jean Cousin, assim como, da dos irmãos espanhóis Vincent e François
Pinson
19
, que estiveram no Oiapoque. Cousin teria viajado ao Brasil em 1488, portanto, antes de
Colombo chegar à América.
Foi o historiador francês Desmarquets quem defendeu, no final do século XVIII, a
primazia de Cousin na América. No entanto, outro historiador francês, Charles-André Julien,
afirma que se trata de uma interpretação que se baseou em uma única fonte, que esta é posterior
ao acontecimento, e que Desmarquets escreveu um romance de aventura, portanto, não revela a
hisria (1948: 15).
Quando Capistrano de Abreu expôs suas discordâncias com Paul Gaffarel sobre esse
assunto, concluiu que “a viagem de Jean Cousin é possível geográfica e historicamente, mas, à
luz dos documentos conhecidos e dos argumentos que a defendem, não está provada” (1883 -
1976: 14). Ainda sobre esse ponto, Julien interroga:
19
Segundo Capistrano de Abreu, “o descobrimento do Brasil, realizado alguns anos depois por Pedr'Álvares Cabral,
foi precedido pela expedição de Vicente Yañez Pinzon; mas os espanhóis não alegaram prioridade nem duvidaram
coubesse a terra dos Papagaios dentro na raia portuguesa. Seus interesses estavam ao Norte, não ao Sul da
equinocial, que começou a ter valor com a expedição de d. Nuno Manuel” (1907: 114). Thevet escreveu que os
irmãos descobriram a América 12 anos antes de Américo Vespúcio e 8 de Cristóvão Colombo (1588: 262- 297). De
acordo com Lestringant, Thevet, souscrit à la thèse anti-colombienne de l‟Espagnol Francisco Lopez de Gomora,
qui agissait pour des motifs nationalistes. Benzoni, au contraire, et à sa suíte son commentateur Chauveton,
tablissaient et (sic) l‟antériorité et l‟honneur de Colomb” (1588 – 2006: 298n).
55
est-ce dire que les Français ne fréquentèrent pas les rivages du Brésil
et très tôt? Nullement. Toutefois on ne peut, en la circonstance, n‟émettre que
des conjectures car il ne s‟agit pas de voyages de couvertes tendat à
reconnaître des territoires ou à en prende possession mais d‟entreprises
privées, à des fins exclusivement commerciales et le secret était de rigueur
(1948: 17).
Ao contrário de Portugal cujo Estado incentivou as navegações além-mar, na França, no
começo do século XVI, esta atividade estava concentrada no norte do país, em torno de Jean
Ango, armador francês que fez fortuna com o envio das embarcações normandas para a América.
Segundo Charles Bourel de la Roncière,
aux ambassadeurs portugais venus pour se plaindre, François I
er
répondra selon la
légende: „Ce n‟est pas moi qui vous fais la guerre, mais Ango; arrengez-vous avec lui
(1934:
51). De acordo com Julien, partout l‟esprit d‟entreprise des provinces et des villes maritimes
contrasta avec l‟inertie ou l‟indifférence du pouvoir central (1948: 73). Assim, nul ne surpassa
en puissance, richesse et culture Jean Ango de Dieppe qui, même dépouillé de ses exploits
légendaires, demeure une des personnalités le plus originales du XVI
e
siècle (1948: 74).
De acordo com Hemming, Jean Ango foi um
Dieppe merchant who dominated the French brazilwood trade, spent
his fortune on a magnificent palace built of different tropical woods. Ango
entertained there prodigiously, with exotic animals running about the house
and decorations that included carvings of Brazilian Indians. Francis I made
Ango Viscount of Dieppe, and for a time his fleets filled the Atlantic; but he
grew over-proud and was eventually deserted by his friends and attacked by
creditors. He died in 1551 and was buried in the church of Saint-Jacques in
Dieppe, below a stone frieze showing naked Brazilian men and women
cavorting in their American paradise” (1978: 12).
56
Assim, enquanto o comércio português era regularizado pelo monopólio imposto pela
metrópole, os lucros dos empreendimentos privados franceses normalmente eram divididos em
três partes: uma para o armador e o capitão e as outras duas para a tripulação e para aqueles que
tinham avitualhado o navio (Charles e Paul Bréard apud Perrone-Moisés 1992: 40).
O que provavelmente diferencia a França Antártica das experiências anteriores no Brasil é
o fato de Villegagnon ter contado com o apoio real. Lestringant inclusive localizou um
manuscrito, datado de 23 de março de 1555, que é uma atribuição da parte do Rei a
Villegagnon: dez mil „livres tournois
20
para um determinado empreendimento que não
quer aqui especificar nem declarar / „“de par le Roy‟ à Villegagnon de dix mille livres
tournois „pour certaine entreprinse que ne voullons estre cy aultrement speciffiée ne declairée‟”
(1990 - 2004: 501). Richer por sua vez escreveu: Durand não teve qualquer gasto pessoal,
visto que nada possuía e que estava submetido à ordem dos religiosos de Rodes. O que ele
fez foi desperdiçar o dinheiro do rei: primeiro dez mil „livres‟, depois sessenta mil” /
Durand n‟a rien consudu sien, veu qu‟il n‟auoit rien, & qu‟il s‟estoit rendu à l‟ordre des
moynes & religieux Rhodiens: mais de l‟argẽt du Roy, premierement il dissipa dix mille liures,
puis soixãte mille” (1561: 14).
Segundo Lestringant,
pas d‟expédition militaire ou coloniale sans l‟aval du monarque”
(1981: 207), neste sentido, ele escreveu sobre a França Anártica: “Il s‟agissait
de concurrencer l‟impérialisme ibérique, en s‟attaquant au maillon le plus
faible de la chaîne de possessions que l‟Espagne et le Portugal avaient établie
au Nouveau Monde. Dans le même temps la concorde religieuse entre
catholiques et protestantes était instaurée à l‟échelle du modeste établissement,
20
Monnaie frappée à Tour, devenue par la suite monnaie royale (Petit Robert)
57
première étape pour transformer cette tête de pont en colonie de refuge
(Lestringant 1999a: 30).
Em Santa Catarina e em Pernambuco: duas experiências francesas anteriores às
capitanias hereditárias:
Em 1504, o armador normando Binot Paulmier de Gonneville esteve em Santa Catarina
com o navio L‟Espoir
21
. Os meandros dessa história foram reconstituídos por Leyla Perrone-
Moisés a partir de um inventário apresentado aos oficiais do Almirantado de França
22
, no qual o
capitão reclamava uma indenização pela pilhagem sofrida na volta da viagem por um corsário
inglês chamado Edouard Blunth, de Plymouth, e um pirata bretão, o capitão Mouris Fortin.
Como os diários de viagem foram perdidos, esse documento de 1505, foi elaborado na
forma de uma Relação. Nela, o capitão Gonneville conta que quando viajou em direção às Índias
Orientais e estava costeando a África, a tripulação de sessenta homens, entre eles dois
portugueses, foi atingida por uma tormenta, seguida por uma calmaria, o que fez com que a
embarcação chegasse no dia 5 de janeiro de 1504 às terras do rei Arosca, um índio Carijó. Arosca
liderava de quinhentos a seiscentos guerreiros e suas terras eram povoadas por cerca de uma
dúzia de aldeias, cada uma com cerca 38 cabanas
23
. Os franceses permaneceram até o mês de
julho consertando estragos provocados no navio. Arosca tinha aproximadamente 60 anos, era
viúvo, de estatura média, postura grave, gordinho e olhar bondoso, tinha seis filhos homens entre
15 e 30 anos. Na sequência do relato, o capitão relatou que:
21
Como observou Perrone-Moisés, Anchieta relata quena era de 1504 vieram os franceses ao Brasil” (1584: 45), no
entanto, diz ela: “também registro da viagem de outro navio de Honfleur a esta região, capitaneado por Jean
Denis, no mesmo ano de 1504” (1992: 67).
22
Órgão administrativo e judiciário que funcionava nos principais portos e acolhia todas as causas, civis ou
criminais, referentes à polícia e ao comércio marítimo (Perrone-Moisés 1992: 15n.).
23
O número de habitações por aldeia foi objeto de discussão (Perrone-Moisés 1992: 55).
58
porque é costume daqueles que chegam às novas terras das Índias
levarem dela à Cristandade alguns índios, tanto se fez, com tal gentileza, que o
dito chefe Arosca consentiu que um de seus filhos jovens, o qual se dava bem
com os do navio, viesse à Cristandade, que se prometia ao pai e ao filho
trazê-lo de volta dentro de vinte luas ao mais tardar; pois assim eles contavam
os meses. E o que lhes dava mais vontade: faziam-no crer que, àqueles que
viessem do lado de cá, ensinariam a artilharia; o que eles desejavam
intensamente, para poderem dominar seus inimigos: como também a fazer
espelhos, facas, machados e tudo o que viam e admiravam dos cristãos (...)
Tendo acreditado firmemente nessas coisas, o dito Arosca estava contente de
que levassem seu filho, que se chamava Essomericq; e deu-lhe por companhia
um índio de trinta e cinco ou quatro anos, chamado Namoa” (Perrone-Mois
1992: 24-25).
Namoa morreu durante a viagem de uma “febre maligna”. Essomericq, o filho de Arosca,
que na época tinha 15 anos, também ficou doente no navio, quando então foi batizado e recebeu o
nome do padrinho, Binot de Gonneville (Perrone-Moisés 1992: 26). Durante a viagem, os
franceses ainda pararam em terras de índios canibais, quando tentaram trazer mais dois índios
para a França que, no entanto, pularam do navio e voltaram nadando de uma distância de mais de
três léguas da costa. A tripulação chegou a Honfleur no dia 20 de maio de 1504, com 28 pessoas.
Essomericq (Binot) casou-se em 1521 com Suzanne de Gonneville e teve 14 filhos; como
seu padrinho não tivera filhos, herdou dele seus bens. Ele morreu em 1583 com 95 anos (Perrone-
Moisés 1992: 114). Jean de Paulmier, um de seus bisnetos, tornou-se abade e escreveu um livro
sobre a viagem de Gonneville.
59
Esse documento foi encontrado durante o reinado de Luis XIV, quando foi institdo o
imposto de advena para os estrangeiros
24
. Os descendentes do índio capturado no Brasil
decidiram pedir isenção. Provaram que seu bisavô tinha sido trazido à França com a promessa de
ser repatriado e que, portanto, sua permanência lá não tinha sido sua responsabilidade.
*
Outro francês, Jean Dupéret, construiu uma fortaleza próxima a Pernambuco por volta da
década de 30. Em 1532, d. João III escreveu uma carta para Martim Afonso de Souza, na qual
saúda as realizações do “amigo”, entre elas “que passastes com as Naos Francesas dos Cossairos,
que tomastes, e tudo o que nisso fizestes, vos agradeço muito(Serrão 1965: 15). O rei também
afirmou:
“na Costa da Andalusia foi tomada agora pollas minhas Caravellas, que
andava narmada do Estreito huma Nao Franceza carregada do Brazil, e trasida a
esta Cidade (Lisboa), a qual foi de Marselha a Pernambuco, e desembarcou
gente em terra, a qual desfez huma Feitoria minha, que ahi estava, e deixo láa
setenta homens com tenção de povoarem a terra” (Serrão 1532 - 1965: 16).
Sobre essa fortaleza francesa perto de Pernambuco, em 1587, Gabriel Soares de Souza
afirma que ela motivou a implantação do regime de capitanias hereditárias. Essa informação está
de acordo com a carta que Diogo de Gouveia escreveu em 1538 ao rei d. João III de Portugal.
Segundo Soares de Souza, quando Cristóvão Jacques comandou uma expedição de
descobrimento da Bahia, ele
achou duas naus francesas que estavam ancoradas resgatando com o
gentio, com as quais se pôs às bombardas, e as meteu no fundo; com o que se
satisfez, e recolheu-se para o reino, onde deu suas informações a S.A., que com
24
“Tratava-se de um tributo devido à Coroa pelos estrangeiros (aubains) radicados na França” (Perrone-Moisés
1992: 109) e que era extensivo aos descendentes.
60
elas, e com as primeiras e outras que lhe tinha dado Pero Lopes de Souza, que
por esta costa também tinha andado com outra armada, ordenou de fazer povoar
essa província, e repartir a terra dela por capitães e pessoas que se ofereceram a
meter nisso todo o cabedal de suas fazendas” (1587 - 2000: 4).
De acordo com Frei Vicente do Salvador, que segue Soares de Souza em vários pontos, os
franceses tinham construído uma fortaleza na ilha de Tamaracá, “com um presídio de mais de
cem soldados, com muitas munições e artilharia, onde se recolhia a gente de seus navios quando
vinham a carregar de pau-brasil que os gentios lhe cortavam” (1627 - 1982: 122). Para combater
os franceses, segundo do Salvador, foi enviada uma armada de Lisboa e assim os franceses da
fortaleza comaram a enfraquecer e desmaiar” (1627 - 1982: 123), mas “os franceses lhe
fugiram pela terra dentro com os gentios, donde depois nos fizeram muito mal” (1627 - 1982:
124).
Segundo Capistrano de Abreu:
“não foi (...) feliz a fortaleza galo-pernambucana. Pero Lopes, terminada
a exploração do Prata, e de viagem para a Europa, bombardeou-a durante
dezoito dias, e obrigou-a a render-se. Da guarnição parte foi enforcada; outra,
transferida ao Reino, passou longos meses de cativeiro nos calabouços do
Algarve” (1907 - 1976: 23).
Entre as versões dos franceses, La Roncière escreveu que o
Lyonnais Jean Dupéret, associé au baron de Saint-Blancard, décida
de fonder un comptoir sur la côte américaine, sans que nous puissions savoir
porquoi son choix s‟arrêta sur l‟île Saint-Alexis, près de Pernambouc, au
Brésil. La Pèlerine, qui avait transporté les colons, revenait avec du bois de
Brésil, d‟or, des perroquets et des sagouins, quand elle fut enlevée, le 15 août
1532, par le travers Malaga, par une crosière portugaise. La petite forteresse
61
que nous avions élevée dans l‟île Saint-Alexis et pourvue d‟une garnison de 70
hommes (...) capituler devant une violente attaque des Portugais de Pedro
Lopez et de ses auxiliaires indiens” (1934: 50).
Segundo Julien,
Bertrand d‟Ornesan, baron de Saint-Blamard, néral des galères de
Méditerranée, entreprenait de fonder un comptoir à Pernambouc. Après des
cent vingt hommes et ses dix-huit canots, son armament et son matériel
militaire le voyage de la Pèlerine, équipée à Marseille, prit figure d‟expédition
coloniale. Les hommes de Saint-Blancard, avec acharnement, la miniscule
garnison portugaise appuyé par de nombreaux indigènes (...) Le capitaine
vainquer éleva, peut-être sur un des terres d‟Olinda, un fort il s‟installa
avec soixante hommes et renvoya à Marseille la Pèlerine chargée de produits
exotiques obtenus par troc. Peau de temps après, la garnison française vit
arriver devant Pernambouc l‟escadre de Pero Lopes de Souza, qui revenait du
Rio de la Plata. Elle dut céder au bout de dix-huit jours d‟héroïque défense,
devant les efforts combinés des Portugais et des Indiens réevoltés (...) Ainsi finit
tragiquement le premier essai d‟établissement français au Brésil(1948: 111-
112).
Hemming acrescenta que os índios que estavam em Itamaracá eram Potiguar e que
durante meio século e aconselhados pelos franceses - lutaram fortemente armados contra os
portugueses, saindo-se, na maior parte das vezes, vitoriosos (1978: 72).
Viagens ao Rio de Janeiro anteriores à França Antártica:
Da mesma forma que não como precisar os primeiros “descobridores” da América
(Cap. 1), pouco se sabe sobre as primeiras viagens ao Rio de Janeiro. Nomes como André
62
Gonçalves, Américo Vespúcio e Gonçalo Coelho teriam estado na região logo após a viagem de
Cabral e construído uma feitoria, alguns afirmam em Cabo Frio, outros na própria Guanabara.
Thevet refere-se a Cabo Frio como um
país (...) muito bonito, no passado descoberto e habitado por
portugueses que lhe deram esse nome, pois, anteriormente, era chamado de
„Gechay‟. Ali, eles construíram um forte, na esperança de resistir e
amenizar o lugar. Porém, logo depois, não sei por quais motivos, os
selvagens mataram e comeram os portugueses, como costumam fazer com
seus inimigos
pays (...) merveilleusement beau, autrefois découvert et habité par les
Portugais, lesquels y avaient donné ce nom, qui était paravant Gechay, et bâti
quelque fort, espérant faire résidence pour l‟aménité du lieu. Mais peu de
remps après, pour je ne sais quelles causes, les sauvages du pays les firent
mourir et les mangèrent comme ils font coutumièrement leurs ennemis(1557 -
1997: 107).
Anos mais tarde, Thevet já tinha uma explicação para o ocorrido: O Cabo Frio (...),
anos antes habitado por portugueses, foi o lugar onde eles lidaram tão mal com os
Tupinambá, os selvagens do país, que não restou nenhum que não tivesse sido massacrado e
comido/ Le Cap Frie (...) quelques annes au parauant s‟estoit habituez les Portugais, est le
lieu où ils furêt si mal menez des Toupinambaux, Sauuages du païs, que pas vn seul n‟y demeura,
qui ne fust occis massacré & mangé” (1575: 913).
Em 1511, a nau portuguesa Bretoa esteve em Cabo Frio, e, em 1519, a expedição de
Fernão de Magalhães passou pelo o Rio de Janeiro. Sobre esta última viagem, há a breve, mas
63
fascinante descrão de Antonio Pigafetta. Ele conta que fazia calor no dia 13 de dezembro,
quando chegou ao Rio de Janeiro, uma terra que pertencia ao rei de Portugal.
Os brasileiros não eram cristãos, nem tampouco idólatras, pois não adoravam nada, sua
única lei era o instinto natural. Viviam muito, até 120 e 140 anos e moravam em cabanas com
cerca de cem pessoas, o que consequentemente gerava muito barulho. Suas canoas eram
construídas com tronco de árvores escavadas no centro com pedra. As árvores eram tão grandes
que as canoas podiam conter de 30 a 40 pessoas.
Os brasileiros pintavam os corpos e sobretudo a face de uma maneira estranha e de formas
diversas, que eles possuíam os cabelos curtos e “laineux” e nenhum lo sobre o corpo, pois os
retiravam. Tinham uma espécie de roupa feita de penas de papagaios e o modo como a usam lhes
dava uma aparência bizarra e ridícula. Quase todos os homens tinham os lábios inferiores furados
onde eles inseriam pequenos cilindros de pedra. As mulheres e as crianças não tinham esse
ornamento inmodo. Todos eram totalmente desnudos frontalmente. Eles tinham mais cor de
oliva que negra e o rei era chamado Cacique. Pigafetta encontrou um número infinito de
papagaios, de modo que eram dados de oito a dez em troca de um pequeno espelho. Os índios
tinham também gatos “maimons” muito belos, amarelos, parecidos com pequenos leões. Comiam
uma espécie de pão redondo e branco, que não agradou aos expedicionários. Os índios possuíam
porcos que parecia que tinham o umbigo nas costas e grandes pássaros cujo bico se assemelhava
uma cueiller”, mas que não falavam.
Pigafetta menciona que, às vezes, em troca de uma ferramenta eles nos ofereciam como
escravas jovens, mas jamais nos presenteavam com suas mulheres. De todo modo, diz ele, apesar
da libertinagem das jovens, o pudor é tal que as esposas são fiéis aos seus maridos. As mulheres
são encarregadas dos trabalhos mais “pénibles” e, com frequência, são vistas descendo a
64
montanha com cestos cheios sob a cabeça, mas jamais o s, seus maridos, que são muito
ciumentos, sempre as acompanham com flechas em uma mão e um arco na outra. Este arco era
feito de pau-brasil ou de palmeira negra.
Se as mulheres têm filhos, elas os colocam numa corda de algodão que prendem no
pescoço. O navegador continua: esse povo é extremamente crédulo e bom e será muito fácil fazê-
lo abraçar o cristianismo.
Outro tema, que será tratado no último capítulo desta tese, diz respeito à afirmação de
Pigafetta de que o acaso fez com que tivessem por nós veneração e respeito: fazia dois meses que
o chovia e como foi no momento da nossa chegada que começou a chover eles atribuíram a
chuva à nossa presença. Assim que desembarcamos para rezar a missa, eles assistiram em
silêncio, com ar de contemplação, e quando colocamos no mar as chalupas que estavam presas às
embarcações, eles imaginaram que elas eram filhas da embarcação e que esta as alimentava
25
.
Um dia, diz Pigafetta, eu e o capitão geral fomos testemunhas de uma aventura estranha.
Quando uma das mais belas jovens chegou ao navio e viu um prego do tamanho de um dedo,
achando que ninguém a notava, pegou-o e rapidamente colocou-o entre os dois lábios das suas
partes naturais. Ela imagina que o escondia? Ela pensava que estava se ornamentando? Isso nós
o pudemos saber.
No final do relato, Pigafetta contou que eles passaram 13 dias no local e que depois
costearam o país e encontraram um grande rio de água doce, onde moravam canibais. Um deles,
gigantesco, cuja voz parecia de um touro, aproximou-se do navio para tranquilizar seus
camaradas que, com medo que nós fossemos lhes fazer mal, se afastaram do rio e se retiram para
o interior do país. Para não perder a ocasião de lhes falar e vê-los de perto, diz, nós fomos até a
25
Esta última observação de Pigafetta está de acordo com a concepção animista dos ameríndios.
65
terra com cerca de cem homens e os seguimos para tentar parar alguns, mas eles tinham passadas
longas e mesmo correndo e pulando não conseguimos alcançá-los (s/d: 15-23).
Pero Lopez de Souza, que escreveu o Diário de Navegação da expedição realizada junto
com seu irmão, Martim Afonso de Souza, em 1531 e 1532, foi ao Rio de Janeiro duas vezes.
Chegaram num sábado, dia 30 de abril, por volta do meio-dia e o logo o capitão mandou construir
uma casa forte. Alguns homens foram enviados terra adentro, onde permaneceram por dois meses
e encontraram
“hũ grande Rey senhor de todos aquelles campos e lhes fez mujta honrra
veo elles ate os entregar ao capitan (...) a gente deste rio he como o da baia
de todolos santos, senam quanto he mais gentil gente (...) aqui estivemos tres
meses. tomando mãtimetos para hu año. para cccc homs q traziamos e fizemos
dous bargãtins (Lopes de Souza 1532 - Serrão 1965: 13).
Em outro trecho do diário, Lopes de Souza narra que esteve no Rio de Janeiro novamente
no ano seguinte, entre os meses de maio a julho (1532 - Serrão 1965: 14).
Alguns anos depois, Pedro Góis fortificou e fez uma povoação no rio Paraíba, onde, de
acordo com Frei Vicente do Salvador,
esteve bem os primeiros dois anos, e depois se levantou o gentio e teve
em guerra cinco ou seis anos, fazendo às vezes pazes que logo quebravam, e o
apertavam tanto que foi forçado a despejar a terra e passar-se com toda a gente
pera capitania do Espírito Santo” (1627 - 1982: 107).
Em 1551, Pedro Góis escreveu a d. João III sobre o galeão francês que encontrou em
Cabo Frio. Em 1553, Tomé de Souza escreveu contando que esteve no Rio de Janeiro com Pedro
Góis, mas não pôde construir uma fortaleza.
66
Antes de entrar na história da França Antártica, que será narrada de acordo com o ponto
de vista francês, convém mapear o modo como a ideia de uma ameaça francesa foi percebida
pelas autoridades coloniais, os jesuítas e um colono. Neste caso específico, trata-se do relato do
colono Gabriel Soares de Souza, que apesar de diferir dos outros na medida em que foi redigido a
posteriori, foi elaborado na forma de uma história e, neste sentido, fornece não apenas
informações sobre a presença francesa em todo o território nacional, como também mostra como
a questão religiosa, praticamente ausente nos anos que antecederam a França Antártica, tornou-se
central para legitimar a dominação portuguesa.
1) Os relatos das autoridades coloniais:
Três anos depois da destruição da fortaleza francesa no nordeste, o doutor Diogo de
Gouveia, o velho”, escreveu, de Paris, uma carta a D. João III, na qual pros a colonização
efetiva do Brasil, assim como que o rei convidasse os padres da Companhia de Jesus para a
conversão dos gentios da Índia. D. João não apenas acatou a sugestão como, na carta resposta,
estendeu a atuação dos jesuítas a “todas as outras conquistas que eu tenho” (LEITE 1954: I, 87).
Gouveia começou a carta assim:
Eu por vezes tenho dito a V. A. aquillo que me parecia acerqua dos
negocios de França, e isto por ver por conjecturas e apparencias grandes aquillo
que podia succeder dos pontos mais apparentes, que consigo traziam muito
prejuízo ao stado e argumentaçam dos senhorios de V.A. E tudo se emcerava
em vós, Senhor, trabalhardes com modos honestos de fazer que esta gente nom
ouvesse de emtrar nem possoir cousa de vossas navegações, por o grandissimo
damno que dahi se podia siguir: huma por elles serem poderosos sobre o
mar; há outra por a gente ser em grandissimo numero e nom ter por cousas, as
67
quaes nom podiam guardar, até nom serem fortalezas feitas nos lugares onde
elles podiam ira a resgatar: à outra que pera elles offenderem no mar a El-Rei
nom poem hum soo real, e V.A. há mester, para defender, tirar tudo da sua
bolssa; e, tirando nom sei se por agora se poderá tudo guardar ou, se se guardar,
nom sei se à derradeira passará o proveito, que será grande fadiga se se nom
oulhasse ao tempo a vir por o dano que pode trazer.
Sobreveo o requerimento do emprestemo que V.A. sabe que El-Rei vos
pidia. (Trata-se de um pedido de Francisco I a D. João III de 400 000 cruzados
para remir os seus filhos, prisioneiros do Imperador Carlos V.). (...) Veja,
Senhor, o que aproveitou, que por ella ser tam geral nos quis El-Rei aceptar o
que vós lhe queríes emprestar, e dahi naceo a letra de João Ango. (...)
Vierom os bretões que estavam no Brasil, que trouxe Christovam
Jaques, (...) Disse-vos, Senhor, mande V.A. estes homens em hum navio presos
a El-Rei de França, e que lá os apresentem, e que as testemunhas que
testimunharom que os vossos meterom os companheiros na terra até os ombros
e depois lhe tiravom com as spingardas a os matarem, sejam punidos por morte
corporal. Nom me quiserom crer e naceo daqui que oje por todo este reino está
semeado aquillo, e ficará pera filhos e netos, e pera sempre. E como os ladrões
no mar desejam que sempre aja hi differenciais, embalam os filhos com isto,
que em quanto prejuizo e dano de vossos povos a experiencia ho mostra e
mostrará, e gavias pollos homens do mar que sofrem e passam pior que os
imigos.
Segui-sse depois a tomada das naos do brasil dos da costa de
Normandia. As cousas que por isso sam feitas seriam longas de contar, porque
sam em tanto extremos, que nom a[s] sei dizer. E quanto a isso, sempre foi
minha opiniam que apontassem com elles, principalemnte com João Ango e
com Pedro Prevost, porque, aquelles apacificados, tudo o al era xua xua, (...)
O embaixador
26
disse-me que V.A. nom queria concerto. Agora nom sei o que
será. Praza a Deus que queria tudo ordenar com que vós, Senhor, sejaes fora de
brigas” (1538: I, -89-92).
26
de Portugal na França, João da Silveira.
68
Em 1548, logo pós a implantação das capitanias hereditárias, Luís de is escreveu, da
vila de Santos, a D. João:
“se com tempo e brevidade Vosa Alteza não socorre a estas capitanias e
costa do Brazill que ainda que nós percamos as vidas e fazendas Vosa Alteza
perderá a terra e que nisto perqua pouco aventura a perder muito, porque não
estáa em mais de serem franceses senhores dela, que em se acabarem de perder
estas capitanias que ficam e de ter elles hum pee no Brasil ey medo adonde
quererão e podem ter ho outro” (Serrão - 1965: 17).
Pedro de Góis, donatário da capitania de São Tomé, escreveu a D. João, de Salvador, em
1551:
achar muitas novas de franceses e que cada hum carregao muitas
vezes na costa primcipallmente na capitania de Martim Afonso de Sousa no Rio
de Janeiiro onde ja se o ousava de ir com elles” que, como sey a terra e os
franceses que a ela vem andarem tão bem armados” (Serrão - 1965: 19).
Em seguida, ele conta que por
aver tamtas novas de franceses que não ouzava nenhum navyo sair fora me detriminei ir
busquallos em duas caravellas e hum bergatim (...) Asy me fui ao Rio de Janeiro”, onde soube
dos Ymdios como na Baya do Cabo Frio estava hũa nao grande carregada, detriminei me llouo ir
busqualla”, quando “ouve vysta de hum gualleão framces muito gramde” (Serrão - 1965: 20). Ele
conclui a carta afirmando ter vergonha de contar como pelejou e que “bem seguros podem os
franceses vir a esta terra” (Serrão - 1965: 21).
69
No mesmo ano e do mesmo local que Pedro de is escreveu a D. João, apenas três
meses depois, Tomé de Souza também narrou a expedição do capitão-mor do mar. Disse ele: “o
rio de Janeiro que he aguora a mayor escala de cosayros”, assim como, que Góis, topou antre os
indios dous franceses hum grande linguoa e outro ffereyro que estavam ffazendo brasil pera
quando tornasse a nao que alli os deyxara”, e que “nom os mandey enfforcar por que tinha muita
necessidade de gente que me nom custe dinheiro, o ferreyro (...) he o mais abell homem que
tenho visto porque ffaz bestas e espingardas e todas as armas, o outro que eh linguoa traguo em
hum bragantim aferolhado” (1551 - Serrão 1965: 23). E, por fim: “no Cabo Frio (...) estava uma
nao de corsayros franceses” (1551 - Serrão 1965: 23) contra a qualis lutou.
Em 1553, nova carta de Tomé de Souza a D. João narra as vilas e povoações que visitou:
entrey no Rio de Janeiro e que “parece me que V.A. deve mandar
fazer ally hũa povoação honrrada e boa porque ya nesta costa nom rio em
que entrem franceses senão neste e tirão delle muita pimenta (...) e se eu não fiz
fortaleza esta ano no dito Rio como me V.A. escrevia foy por que o nom pude
fazer por ter pouqua gente e não me parecer siso desarmarme por tantas partes e
acerqua deste caso he de outra Bahia que se chama Angra dos Reis” (Serrão -
1965: 26-27).
Sete meses antes de Villegagnon chegar à Baia de Guanabara, Francisco Portocarrero
escreveu, de Salvador, a D. João uma carta, na qual descreve que franceses frequentavam a costa
de Pernambuco, onde “os propios framceses vão colher ho brazyll ao mais quinze e vinte leguoas
póla terá demtro ficando a nao somente com seis ou sete pesoas”, assim como, o arrecife de
Dom Rodrigo carregarão duas naos e no porto dos framceses
27
dise que carregarão tres esto
soubemos por pesoas que as vyrão” e ainda que, “no Rio de Janeyro achara hua nao framceza (...)
27
“Porto dos Franceses, hoje Porto Francês, assinalado por HOMEM DE MELO ao sul de Maceió, Estado de
Alagoas” (Leite 1954, III: 329n).
70
e no mesmo tempo estava outra no Cabo Frio” (1555 - Serrão 1965: 30). Em agosto de 1556, ele
enviou outra carta a D. João na qual informa que “os fframcezes ffazem hffortalleza no cabo
ffryo” (1556 - Serrão 1965: 32).
Em 1558, Mem de escreveu à regente D. Catarina para informar que no Rio de Janeiro
havia franceses e que “todo seu fundamento he fazerse fortes, tem muita gente e bem armada: as
suas roças não saõ senão de pimenta” (Serrão 1965: 35). No mesmo ano, D. Sebastião escreveu a
Mem de o seguinte pedido em relação aos franceses: o façaes o que tenhaes destas cousas o
cuydado que de vos espero(Serrão 1965: 36). Na correspondência de 1560, que Mem de Sá
endereçou a D. Catarina narrando a guerra no Rio de Janeiro, ele diz de Villegagnon:
ele leua muito deferente ordem gentio do que nos leuamos: hee
liberal em estremo eles, e fazlhes muita justiça: ẽforca os franceses por
culpas sem processos: isto hee muito timido dos seus e amado do gentio: o
gentio hee muito e dos maes valentes da costa: em pouco tempo se podia fazer
muito forte” (Serrão 1965: 43).
Nota-se, nesta carta, a primeira referência laica à religião dos franceses. A partir de então
as cartas endereçadas a Portugal tratam do conflito no Rio de Janeiro, tema do Capítulo 4.
71
2) Os relatos dos jesuítas:
Leonardo Nunes conta que em 1550, perto do porto de São Vicente, índios em uma canoa
se aproximaram dele querendo saber quem eram, e se “éramos franceses, a los quaes tienen
grande odio; y uno dellos dixo que allí llevava él una cabeça de un nuestro hermano” (: I, 205).
Em 1552, Manuel da brega escreveu da Baía de Todos os Santos a Lisboa, sobre sua
intenção de enviar dous meninos da terra” para passarem um ano no reino a aprender “virtudes”,
um pouco de latim e se ordenarem. Porém, diz ele: por não ter embarcassão boa e ser já tarde a
andarem franceses, os não mando este anno” (: I, 353-354).
Em 1555, Luís da Grã escreveu do Espírito Santo a Lisboa: “hum navio foi da Baia pera
Sam Vicente em que forão os Irmãos com o P. Leonardo Nunez, a quem Deus leve mais a
salvamento do que se quá diz, porque aa nova que o navio em que hia fora tomado dos
francezes”. (II: 225)
28
.
Dois anos depois, Nóbrega escreveu a Lisboa:
parece-me que se El-Rei nam provê de maneira que aquelles
contrarios
29
percam tanta soberba, que dem lugar aos moradores se extenderem
pola Britioga, que dizem que he boa terra, - ho que podia bem ser se o Rio de
Janeiro se povoara, como sempre se desejou, e se se pretendese nesta terra
senhorear os Indios como milhor podesesem - se nisto se nam provê com
brevidade a mim me parece que aquella Capitania se perderá” (1557: II, 416).
O padre também diz que os moradores do Espírito Santo “estam em perigo dos mesmos
contrairos que a Sam Vicente achegão, e dos outros da terra e dos franceses” (1557: II, 416). Em
28
Segundo Serafim Leite, Leonardo Nunes morreu no dia 30 de junho de 1554, em um naufrágio quando viajava
para Europa (1954, I: 38).
29
Tamoio.
72
outra carta de Nóbrega, que escreve da Baía, em 1559, para Tomé de Souza, que já estava de
volta a Lisboa, aparece provavelmente umas das primeiras, senão a primeira, referência ao
protestantismo. O padre escreveu: “e porque não aja pecado que nesta terra não aja, também topei
com opiniões luteranas com que as defendesse, porque, já que não tinhamos que fazer com o
gentio em lhe tirar suas erroneas por argumentos, tivessemos que disputar a fé católica” (: III,
80). No final da carta, Nóbrega comentou sobre a Capitania de São Vicente:
e agora se lhe acrescentou outra desaventura, que forão os francesses, e
temo vir alguma triste nova e estou muy arrependido de não aver já tirado meus
Irmãos de lá, porque segundo parece muito claro, está aquela terra com a
candea na mão, porque cada vez se lhe acrecenta a desventura e lhe falta o
socorro. Ho capitão do Paraguay se mandou offerecer por vezes, que sobjeitaria
os Tupis a Sant Vicente, se lhe dessem licença, e querem com os portugueses
trato e conversação, e ajudá-los contra o gentio e outros ymigos, e nem o
querem acreditar nem querem ganhar a terra, mas deixam-se estar esperando
que por huma parte os matem os franceses e os contrarios por outra e os Yndios
da terra que se alevantem e os acabem de consumir e comer a todos. Este
segredo eu não ho entendo, mas vejo yr-se a perder tudo” (: III, 104-105).
No ano seguinte, depois da guerra no Rio de Janeiro, Nóbrega escreveu: “se determinou
de ir livrar o Rio de Janeiro do poder dos franceses, todos lutheranos” (1560, III: 242) e,
estes franceses seguirão as heresias de Alemanha, principalmente as de
Calvino que está em Genevra, segundo soube delles mesmos, e pólos livros que
lhe acharão muytos, e vinhão a esta terra a semear estas heresias polo gentio; e,
segundo soube, tinhão mandados muitos meninos do gentio a aprendê-las ao
mesmo Calvino e outras partes pera depois serem mestres, e destes levou alguns
o Villagalhão, que era o que fizera aquella fortaleza e se intitulara Rey do
Brasil. Deste se conta que dizia que, quando El-Rey de França o o quisesse
favorecer pera poder ganhar esta terra, que se avia de ir confederar com o
73
Turco, prometendo-lhe de lhe dar por esta parte a conquista da India e as naos
dos Portugueses que de lá viessem, porque poderia aqui fazer o Turco suas
armadas com a muyta madeira da terra” (1560, III: 244-245).
Em junho de 1560, Anchieta escreveu de São Vicente a Roma. Nesta carta, demonstra
conhecimento das coisas que ocorreram na França Antártica, pois escreveu:
“vieram quatro franceses, que com o pretexto de ajudar os inimigos na
guerra, se queriam passar a nós, o que puderam fazer sem muito perigo. Estes,
como depois se soube, aparam-se dos seus, que estão entre os inimigos, numa
povoação, que nós chamamos Rio de Janeiro, daqui a cinqüenta léguas, e têm
trato com eles. fizeram casas e edificaram uma torre mui provida de
artilharia e forte por todas as partes, onde se dizia serem mandados pelo rei de
França a assenhorear-se daquele terra. Todos estes eram hereges, aos quais
mandou João Calvino dois, a que eles chamam ministros, para que lhes
ensinassem o que se havia de ter e crer. Daí a pouco tempo (como é costume
dos hereges), começaram a ter diversas opiniões uns dos outros, mas
concordaram nisto, que escrevessem a Calvino e a outros letrados, e o que eles
respondessem isso aceitariam todos (: III, 263:264).
Na Europa, em 1561, de Lisboa a Roma, há uma carta de Miguel de Torres que narra:
entre las cartas de nuevas de Paris, que acá emos recibido por via de
Roma, se hazía mención en una de una de un cavallero de Rhodis
(Villegagnon) que avia estado en América, que es el Brasil, tierras deste Reino
de Portugal, adonde andan los nuestros, e querria bolver allá y llevar gente de
nuestra Compañia. Asabiamos ya deste hombre y como el y todos los que
consigo tenia eran lutheranos, y occupava una parte que se dize el Rio de
Herero.
Y porque se sabia que era herege e assi con sus heregías como con
otros modos podia hazer mucho daño en lo spiritual y temporal, en demás de
74
estar allí tiranicamente, ordenó El Rei de Portugal de proveer como le
hechassen fuera” (: III, 320-321).
Uma nova menção à questão religiosa vinculada aos franceses foi feita por Leonardo do
Vale, da Baía a Lisboa, em 1562, na carta em que narra a prisão de Jean de Bos (Cap. 4). Antes
de abordar o fato, porém, escreveu:
dantes se temião nesta costa de Franceses, como de homens cobiçosos
de fazendas alheas, e agora como de herejes, que se (ho que Deos não permita)
tomasem alguma destas Capitanias, seria muy grande lastima polo perigo que
averia de muitos serem contaminados como são os de pequena idade, criando-
sse com eles, e outros, que por medo do mao tratamento que dão aos fieis,
podião correr o mesmo perigo. Porque pouco que indo de quá hum barco
para Fernãobuco desgarrou e foy ter aos Patiguares, onde estavão Franceses, os
quaes, posto que lhe não fizerão mal mas antes determinavão mandá-llos como
tivesem tempo como mandarão, tomao por passatempo escarnecer e zombar
dos livros de rezar, que levarão, e imagens, dizendo, deos de pao, deos de
frades, deos na caxa, e chamando-lhes de papistas, e outras cousas em que lhes
parecia favorecerem sua cegeira (: III, 497-498).
Em 1563, ao tratar da guerra no Rio de Janeiro, Anchieta reportou-se aos franceses da
seguinte forma: “Infelizes! começam já a sentir as chamas do inferno em que os ímpios corações,
manchados pela heresia, sofrerão o eterno castigo que seus crimes merecem” (- 1970: 197 e 199).
Na carta de 1565, na qual descreve o período em que passou em Iperoig, Anchieta escreveu:
“nos viemos a estes lugares de São Vicente, onde agora se está
refazendo, com determinação de tornar a fazer povoação ao Rio de Janeiro,
assim por desarraigar dali a sinagoga dos contrários calvinos, como porque ali é
a maior força dos tamoios e seria uma grande porta para sua conversão” (: 250).
75
Diz também que o Tamoio Ambiré antes de tratar com nós outros, praticou com um
francês luterano que trazia consigo” (: 220). E que, “esse francês se ficou praticando conosco na
língua brasílica, e dele soubemos como todos os seus que estão no Rio são „fiéis‟ e não papistas e
o têm missa, antes perseguem e ainda matam aos que a dizem, que eles crêm em Deus (:
221).
Sobre os relatos jesuítas, Lestringant escreveu:
dans le portrait qu‟ils tracent du Français en truchement adamite et
pervers, „séparé de l‟Eglise catholique et retourné à la vie sauvage‟, se décèle
le recours délibéré à l‟amalgame pour mieux discréditer la puissance rivale qui
vient d‟être battue militairement, mais dont l‟influence parmi les Indiens est
intacte et le retour toujours à craindre. Il y a aussi, et plus profondément, la
hantise d‟un ennemi remarquablement adapté au terrain et qui semble d‟autant
mieux faire corps avec la chair du Nouveau Monde que sa dissidence
religieuse, en d‟autres termes son libertinisme, s‟accorde apparemment avec
l‟hédonisme naturel des sociétés indigènes” (1992 - 1996: 185).
3) O relato de um colono: Gabriel Soares de Souza
A associação entre franceses e protestantes perdurou. É notável que em 1587, depois de
Gabriel Soares de Souza ter feito inúmeras referências laicas ao perigo francês ao longo do seu
Tratado descritivo do Brasil, quando traçou um perfil da colonização portuguesa, ele tenha
terminado a obra com uma espécie de advertência moral e religiosa. Seguem alguns trechos nos
quais o colono alerta para o perigo dos franceses no Brasil até a passagem que finaliza o relato.
Logo no início do Tratado ele escreveu:
esta província muito abastada de mantimentos (...) está hoje em
tamanho perigo, que se nisso caírem os corsários, com muito pequena armada
76
se senhorearão desta província (...) porque se os estrangeiros se apoderarem
desta terra custará muito lançá-los fora dela” (1587 - 2000: 2).
Em seguida, expôs a presença francesa no nordeste:
Do cabo de S. Roque à ponta de Goaripari são seis léguas (...) De
Goaripari à enseada de Itapitanga são sete léguas (...) entram naus francesas e
surgem nesta enseada à vontade (...) Neste rio (Rio Pequeno) entram chalupas
francesas a resgatar com o gentio e carregar pau-de-tinta (...) Andando os filhos
de João de Barros correndo esta costa, depois que se perderam, lhe mataram
neste lugar os Pitiguares, com favor dos franceses, induzindo deles muitos
homens (...) “Neste rio (Rio Grande) há muito pau-de-tinta, onde os franceses o
o carregar muitas vezes” (1587 - 2000: 12).
Soares de Souza diz também que perto do
porto de Búzios está a enseada de Tabatinga, onde também
surgidouro e abrigada para navios em que detrás da ponta costumam anconrar
naus francesas e fazer carga de pau-da-tinta (...) e entre um e outro rio está a
enseada Aratipicaba, onde dos arrecifes para dentro entram naus francesas e
fazem sua carga” (1587 - 2000: 13).
Em seguida afirma:
do rio Camaratibe até a Baía de Traição são duas léguas (...) onde
ancoram naus francesas (...) e porque entravam cada ano neste rio (Maguape)
naus francesas a carregar o pau-da-tinta (...) e porque o gentio Pitiguar andava
muito levantado contra os moradores da capitania Itamaracá e Pernambuco,
com favor dos franceses, com os quais fizeram nesta capitania grandes danos,
queimando engenhos e outras muitas fazendas, em que mataram muitos brancos
e escravos; assentou Sua Majestade de o mandar povoar e fortificar” (1587 -
2000: 14).
77
Depois:
os moradores de Pernambuco e Itamaracá pediram muito
afincadamente ao governador Manoel Teles Barreto, que então era do Estado
do Brasil, que os fosse socorrer contra o gentio Pitiguar que os ia destruindo,
com o favor e ajuda dos franceses (...) Em os franceses vendo essa armada
puseram fogo às suas naus e lançaram-se com o gentio” (1587 - 2000: 15).
Também: este rio da Paraíba é muito necessário fortificar-se, a uma por tirar esta
ladroeira dos franceses dele” (1587 - 2000: 16). E que “este gentio (Tupinambá) é muito belicoso,
guerreio e atraiçoado, e amigo dos franceses, a quem faz sempre boa companhia, e industriado
deles inimigos portugueses” (1587 - 2000: 17).
E ainda: “deste rio (Aramama) ao da Abionabiajá são duas léguas, cuja terra é alagadiça
quase toda, e entre um rio e outro ancoravam os temos passados naus francesas” (1587 - 2000:
17). E que:
a vila de Olinda é a cabeça da capitania de Pernambuco, a qual povoou
Duarte Coelho (...) onde muitos anos teve grandes trabalhos de guerra com o
gentio e franceses que em sua companhia andavam, dos quais foi cercado
muitas vezes, mal ferido e muito apertado onde lhe mataram muita gente; mas
ele com a constância de seu esforço não desistiu nunca da sua pretensão, e não
tão-somente se defendeu valorosamente, mas ofendeu e resistiu aos inimigos,
de maneira que os fez afastar da povoação e despejar as terras vizinhas aos
moradores delas, de onde depois seu filho, do mesmo nom, lhe fez guerra,
maltratando e cativando neste gentio, que é o que se chama Caité (1587 -
2000: 19 e 20).
78
Assim, Soares de Souza entende que “se devia ter mais conta com a fortificação dela, (vila
de Olinda) e não consentir que esteja arriscada a um corsário a saquear e destruir, o que se pode
atalhar com pouca despesa e menos trabalho (1587 - 2000: 21).
Continuando seu mapeamento, escreveu o colono: “do rio de Santo Antônio Mirim ao
Porto Velho dos Franceses são três léguas, onde eles costumam ancorar com as suas naus e
resgatar com o gentio (1587 - 2000: 22-23). Já, “do rio de São Miguel ao Porto Novo dos
Franceses são duas léguas, defronte do qual fazem os arrecifes que (vão correndo a costa) uma
aberta por onde os franceses costumam entrar com suas naus” (1587 - 2000: 23). E
“da ponta da barra Currurupe, contra o Rio de São Francisco se vai
armando uma enseada de duas léguas, em a qual bem chegado à terra estão os
arrecifes de D. Rodrigo, onde também se chama o Porto dos Franceses, por se,
eles costumarem recolher aqui suas naus à abrigada desta enseada” (1587 -
2000: 23).
Soares de Souza continua o relato:
deste rio Ubirapatiba a sete léguas está o rio Seregipe (...) costumam
entrar os franceses com suas naus (...) acabaram de acarretar o pau que ali
resgatavam com os Tupinambás, onde também resgatavam com os mesmos
algodão e pimenta da terra (...) convém muito que se fa povoação, assim para
atalhar que não entrem ali franceses” (1587 - 2000: 28-29).
Por isso, ele pede “para que esta costa esteja segura do gentio, e os franceses
desenganados de não poderem vir resgatar com ele entre a Bahia e Pernambuco, convém ao
serviço de S. Majestade, que mande povoar e fortificar este rio, o que se pode fazer com pouca
despesa” (1587 - 2000: 30).
O colono parte então para a descrição da presença francesa no sudeste do país:
79
O Cabo Frio está em vinte e três graus (...) Duas léguas do Cabo da
banda norte está a Baía Formosa (...) No fim desta baía para o norte está a Casa
da Pedra, perto da qual está um rio pequeno (...) Costumavam os franceses
entrar por esse rio pequeno a carregar pau-brasil” (1587 - 2000: 61-62).
Soares de Souza descreve o Rio de Janeiro: “A ilha de Viragalham, que se chama assim,
por ser este o nome do capitão francês, que esteve com uma fortaleza nesta ilha, que é a quem
Mem de Sá tomou e arrasou” (1587 - 2000: 63).
Conta o que lá se passou:
E como El-Rei D. João III, de Portugal fosse informado como os
franceses tinham feito neste Rio uma fortaleza na ilha de Viragalham, que foi o
capitão que nela residia, que se assim chamava, mandou a D. Duarte da Costa
que neste tempo era governador deste Estado, que D. Duarte fez com muita
diligência, e avisou disso a S. A. a tempo, que tinha eleito para governador-
geral deste Estado Mem de a que encomendou particularmente, que
trabalhasse por pôr esta ladroeira fora deste Rio” (1587 - 2000: 67).
A tomada do forte de Coligny: “E como os franceses se viram apertados despejaram o
castelo e fortaleza numa noite; e lançaram-se na terra firme com o gentio Tamoio, que os
favorecia muito” (1587: 67). Assim como as diversas tentativas de conquistar o Rio de Janeiro:
1) Partindo Mem de para o Rio de Janeiro (...) chegou ao Rio de Janeiro (...) a qual
depois reedificou Cristovam de Barros, sendo capitão deste Rio” (1587 - 2000: 68-69).
2) Salvador Corrêa defendeu esta cidade alguns anos muito valorosamente, fazendo
guerra ao gentio, de que alcançou grandes vitórias e dos franceses, que do Cabo Frio se vinham
ajudar e favorecer (...) em tão pequeno espaço” (1587 - 2000: 69).
80
3) “No tempo que Antonio Salema governou o Rio de Janeiro (1572), iam cada ano naus
francesas resgatar com os gentios ao Cabo Frio, onde ancorava, com suas naus na baía que atrás
fica declarado e carregavam de pau-de-tinta à sua vontade; e vendo Antonio Selema tamanho
desaforo determinou de tirar essa ladroeira desse lugar (...) os Tamoios foram entrados, mortos
infinitos, e cativos oito ou dez mil almas (...) não tornaram mais naus francesas a Cabo Frio a
resgatar” (1587 - 2000: 70).
Descreve também a relação dos franceses com os índios:
“Com esse gentio (Tamoio) tiveram grande entrada os franceses, de que
foram bem recebidos no Cabo Frio e no Rio de Janeiro, onde os deixaram
fortificar e viver até que o governador Mem de os foi lançar fora; e depois
Antonio Selema no Cabo Frio. Nestes dois rios costumavam os franceses
resgatar cada ano mil quintais de pau-brasil, aonde carregavam dele muitas
naus que traziam para França” (1587 - 2000: 73).
Depois de narrar a luta contra os franceses no Rio de Janeiro, Soares de Souza descreve o
embate na Bahia:
“Mem de Sá (...) que subjugou e desbaratou todo o gentio Tupinambá da
comarca da Bahia e a todo o mais até o Rio de Janeiro, de cujos feitos se pode
fazer um notável tratado (...) Mem de Sá destruiu e desbaratou o gentio que
vivia de redor da Bahia, a quem queimou e assolou mais de trinta aldeias, e os
que escaparam de mortos ou cativos fugiram para o sertão” (1587 - 2000: 94).
E a permanência de franceses no nordeste:
Este rio de Paraguaçu (...) e tomando acima no cabo destas duas guas
está uma ilha, que chamam dos Franceses, muito alterosa, que terá em roda
seiscentas braças, onde eles em tempo atrás, chegavam com suas naus por ter
81
fundo para isso, e estavam nesta ilha seguros do gentio, com o qual faziam dela
seus resgates à vontade” (1587 - 2000: 115).
Mais uma vez retoma o tema da relação dos franceses com os índios:
“Ainda que pareça fora de propósito (...) pareceu decente escrever aqui
(...) para melhor entender a natureza e condição, dos Tupinambás, com os
franceses, alguns anos antes que se povoasse a Bahia, tinham corcio; e
quando iam para França com suas naus carregadas de pau-de-tinta, algodão, e
pimenta, deixavam entre os gentios alguns mancebos para aprenderem a língua
e poderem servir na terra, quando tornassem de França, para lhes fazer seu
resgate (...) há hoje muitos de seus descendentes, que são louros, alvos e sardos,
e havidos por índios Tupinambás, e são mais bárbaros que eles” (1587 - 2000:
291).
Chama atenção o fato de que após tantas referências à presença de franceses no Brasil,
Soares de Souza finalize o Tratado tocando em um tema que até então não havia mencionado. O
colono dirige-se a S. Majestade e afirma que o fundamento de suas lembranças,
é mostrar as grandes qualidades do Estado do Brasil, para se haver de
fazer muita conta dele, fortificando-lhe os portos principais (...) o que se devia
pôr em efeito com muita instância, pondo os olhos no perigo em que está de
chegar à notícia dos Luteranos parte do conteúdo neste Tratado, para fazerem
suas armadas, e se irem povoar esta província, onde com pouca força que levem
de gente bem armada se podem senhorear dos portos principais, porque não hão
de achar nenhuma resistência neles, pois não têm nenhum modo de fortificação,
donde os moradores se possam defender nem ofender a quem os quiser entrar
(...) o que Deus não permiti; de cuja bondade confiamos, que deixará estar
estes inimigos da nossa santa católica com a cegueira que está agora tiveram
de não chegar à sua notícia o conteúdo neste Tratato, para que lhe o fam
tantas ofensas estes infiéis, como lhe ficarão fazendo se se senhorearem desta
82
terra, que Deus deixe crescer em Seu santo serviço; com o que o Seu santo
nome seja exalçado, para que Sua Majestade a possa possuir por muitos e
felizes anos com grandes contentamentos” (1587 - 2000: 311).
*
É possível afirmar que até o estabelecimento da França Antártica em meados do século
XVI não havia qualquer outra ameaça externa ao reino português. O mundo parecia estar bem
dividido entre espanhóis e portugueses, e os corsários ingleses ainda o tinham se aproximado
da costa brasileira. No entanto, o modo como essa presença francesa foi descrita, difere quando é
feita uma comparação com os registros das autoridades portuguesas, dos jesuítas e dos colonos.
As primeiras estavam interessadas desde cedo na manutenção do território, os jesuítas, por sua
vez, começaram a se preocupar com os franceses quando inferiram uma ameaça religiosa, e
colonos (representados aqui por Gabriel Soares de Souza), demonstravam essas duas inquietudes.
Veremos agora como a história da França Antártica foi narrada pelos franceses.
83
Capítulo 2 - A história da França Antártica do ponto de vista francês:
A implementação da França Antártica:
A importância dos Tupinambá na Normandia pode ser notada na festa realizada em
Rouen, em 1550, quando, à exceção das demais comemorações para celebrar as entradas régias,
esta o encenou temas religiosos, mas a vida dos Tupinambá. Desta representação participaram
50 índios e 250 marujos franceses. Além dos aspectos da vida cotidiana das tribos, eles
apresentaram à corte as guerras que realizavam contra os portugueses e os inimigos, nas quais os
franceses e os Tupinamsagravam-se vencedores. De acordo com Beatriz Perrone-Moisés, “era
a aliança entre normandos e Tupinambá o tema central da festa em Rouen. A mesma aliança que
viabilizaria a instalação da França Antártica na Guanabara, cinco anos mais tarde” (Manuscrito
inédito: 8).
Ainda hoje não se conhece a versão oficial do projeto da França Antártica. Vale lembrar
que o pedido de financiamento real veio acompanhado de uma observação de que se tratava de
um empreendimento que não se queria divulgar. É importante sublinhar também que o
idealizador do projeto, o almirante Gaspar de Coligny,
“ne s‟engagea pas dans le protestantisme avant sa capivité au château de
l‟Écluse puis à Gand, de 1557 à 1559 (...) le Brésil, ce n‟est pas une terre dont
les calvinistes auraient le monopole mais un refuge ceux d‟entre eux qui
voudraient s‟expatrier pourraient exercer leur culte, en compagnie de
catholiques” (Julien 1948: 187 grifo meu).
Villegagnon jamais esclareceu suas motivações pessoais. Foi possível encontrar no
material pesquisado algumas indicações que permitem imaginar três motivos que teriam levado
84
Henrique II a solicitar a Villegagnon que implementasse essa colônia além-mar. Em uma carta
aos franciscanos de Paris, o rei Francisco II, em 16 de agosto de 1560, escreveu resumidamente a
intenção de seu pai a respeito da França Antártica:
vous avez bien peu entendre de la conqueste que le feu Roy notre très
honoré Seigneur et père, (Henri II, 10 juillet 1559) que Dieu absolve, feit
faire de son vivant de certain endroit au Brésil, qui a depuis esté nommé la
France Antarctique, et que la principale occasion de son entreprise fut le désir
qu‟il avoit d‟y faire planter notre relligion chrétienne et y faire prescher et
annoncer la parolle de Dieu” (In Poulenc 1967: 404).
um panfletista anônimo relacionou a viagem de Villegagnon aos problemas poticos
franceses:
Quando Villegagnon era vice-almirante da Bretanha, ele entrou em
desacordo com o capitão do castelo de Brest, principal fortaleza da região,
a respeito das fortificações do tal castelo. Esse desentendimento gerou
descontentamento e ódio mortal entre ambos, a ponto de espreitarem
ocasiões em que um poderia surpreender o outro. Essa querela chegou aos
ouvidos do rei Henrique II, que foi favorável ao capitão do castelo.
Naquela época, vivia em Brest, um comissário do Tesouro da
Marinha que frequentava a casa de Villegagnon. O comissário, em razão
dos negócios que concerniam ao vice-almirantado, da superioridade e de
sua grande experiência em muitas áreas, contou a Villegagnon, durante
uma refeição, de uma longa viagem que fez às Índias Meridionais, no
Brasil. Ele elogiou a temperatura do país, a beleza, a serenidade do céu, a
fertilidade da terra, a abundância de víveres, as riquezas e os bens que a
terra possuía, assim como outras coisas dignas de recomendações
singulares, totalmente desconhecidas pelos antigos. Essa conversa íntima
agradou muito a Villegagnon, que, por várias vezes, pediu ao comissário
85
que repetisse a narrativa, com a fantasia de conquistar o Império naquelas
terras.
O desejo de viajar aumentava dia após dia, mas Villegagnon não
tinha os meios necessários, pois queria partir da França com honra e
reputação e, para isso, teria de gastar muito dinheiro, e não tinha de onde
tirar tal montante.
Foi do interesse do rei que Villegagnon se retirasse voluntariamente
para se juntar aos homens mais estranhos e distantes da humanidade que
havia sob o céu. Por isso, o rei anunciou aos seus aliados, de quem esperava
ajuda, que eles poderiam dar prosseguimento ao empreendimento, pois
desejava ardentemente e com uma afeição inacreditável encontrar um
lugar de repouso e tranquilidade para retirar aqueles que sofriam por
causa do Evangelho na França. Depois de refletir durante bastante tempo
sobre qual seria o lugar ideal para o retiro, evitando assim as crueldades e
tiranias dos homens, ele se lembrou da terra do Brasil.
Essa solicitação foi feita com tanta diligência que, logo em seguida,
Villegagnon obteve dois belos e grandes navios armados com artilharia,
munições e outras coisas necessárias, como dez mil francos para cobrir as
despesas dos homens que viajariam com ele e também artilharia, pólvora,
balas e armamento para construção e defesa de um forte. Assim, essas
coisas foram felizmente obtidas, junto com capitães, mestres de navegação
e pilotos para conduzir os navios em busca de pau-brasil e de outras
comodidades daquela terra. A todos que o procuravam, e em todos os
lugares onde podia, Villegagnon dizia que estava à procura de pessoas
tementes a Deus, pacientes e boas, e que estes seriam beneficiados por
causa da esperança que tinham de reunir uma assembleia de pessoas de
bem, dedicadas ao serviço de Deus
estant Nicolas de Villeg. ordonné Vis-admiral en Bretaigne, entra en
discord auec le Capitaine du chasteau de Brest, principale forteresse de tout le
pays, à raison des fortifications dudict chasteau. Ce discord engendra
86
mescontentement & haine mortelle entr‟eux, jusques à espier les occasions
pour se surprendre l‟vn l‟autre. Leur querelle paruint jusques aux oreilles du
roy Henry II de ce nom: duquel estoit beaucoup plus fauorisé le Capitaine du
chasteau, que Villeg. qui luy donna tresmauuaise esperance de l‟issue de sa
querelle.
Pendãt ce tẽps, audict lieu de Brest residoit vn cõmis du Thresorier de
la marine, qui frequentoit familierement ledit Villeg. Cesluy tant pour les
affaires de son estat qui concernoyent le faict de la Visadmirauté, que pour sa
preudhommie & grãde experience de beaucoup de choses, lesquelles iceluy
Cõmis racõtoit en table, & propos familier, d‟vn lointant voyage, qu‟il avoit
autrefois fait és Indes meridionales en partie du Bresil: louant grandement la
temperature de lair duditpays, la beauté & serenité du ciel, la fertilité de la
terre, l‟abõdance des viures, les richesses & grands biens qui prouiennẽt en la
terre, & autres choses dignes de singuliere recommandation, incognuës
totalement aux anciens. Les deuis de ce Commis pleurent merueilleusement à
Villeg. & par grande desir faisoit souuẽtefois repeter les mesmes paroles, & ia
auoit par fantasie enuahy l‟Empire de toute celle terre: le desir d‟y aller de
jour en jour augmẽtoit, mais les moyens ne luy estoyent grads. Car voulant
sortir de France en hõneur & reputation, il luy conuenoit faire vne grande
despense, laquelle il n‟eust peut fournir: jonct q le Roy eust trouué fort seruice,
pour se retirer en exil volontaire avec vn genre d‟hommes les plus estranges &
eslongnez d‟humanité qui soyent sous le ciel. A ceste cause par faisant entendre
à tous ceux, desquels il esperoit grand support, & qui pouuoyent auancer son
entreprinse heureusemẽt, qu‟il auoit vn ardent desir & affection incroyable de
cercher vn lieu de repos & tráquillité, pour retirer ceux qui sont affligez pour
l‟Euãgile en ce pays de Frãce: & qu‟ayant longuemét pensé en quelle part il
seroit bon de se retirer pour euiter les cruautez & tyrannies des hommes, il
sestoit souuenu de la terre du Bresil.
Cest affaire fut sollicité en toute diligence, que bien tost apres Villeg.
obtint deux beaux & grãs nauires armez d‟artillerie, munitions, & autres
choses necessaires: ensemble dix mille francs pour la despense des hommes
87
qu‟il conuien droit passer: auec ce vn grand nombre d‟artillerie, poudre à
canon, boulets, & armes pour la construction & defense d‟uv fort. Ces choses
ainsi heureusement obtenues, compofa auec des capitaines, maistres de nauires
& pilotes, pour conduire ses vaisseaux, & faire la charge du bois de bresil, &
autres commoditez en ladite terre. Pour à quoy paruenir, faisoit entẽdre par
tous les endroits il pouuoit, qu‟il ne demandoit que gens craignans Dieu,
patiens & benins: sachãt que de tels tireroit plus de seruice & commodité que
d‟autres, pour l‟esperance qu‟ils auroyent d‟y voir vne assemblee &
congregation de gens de bien, dediee au seruice de Dieu(1561 - 1565: A.iii.1.
- A.iiii.3).
Outro panfletista, no entanto, narrou assim o episódio de Brest e sua relão com a
viagem de Villegagnon à América:
quando você era protegido por uma pessoa influente e tinha o
cargo de vice-almirante na Bretanha, você se apresentou ao Rei Henrique
e, ao seu serviço, foi enviado para fortificar o castelo de Brest. Porém,
como Deus quer mostrar, pois condena tua hipocrisia, você foi mal
sucedido na tarefa, de modo que foi superado pelo capitão do Castelo, na
frente do rei, a respeito das falsas acusações que fez contra ele. Assim, você
perdeu a esperança de se tornar lebre neste reino. Não obstante, não
perdeu a grande e inacreditável ambição que te possuía (...) e, portanto,
decidiu ir buscar bem longe aquilo que não pode encontrar com facilidade
perto de você.
Como a reputação que tinhas de ser prudente e virtuoso começou a
lhe faltar, não lhe restou outro remédio a não ser o pretexto de favorecer a
divulgação do Evangelho. Você se utilizou disso e com toda força se fez
parecer um grande zelador do Evangelho junto àqueles que você esperava
impressionar.
Assim, quis imprimir em seus corações, algo que não possuía, a
saber, a vontade de servir a Deus e à expansão de suas palavras. Quantos
88
sentimentos você demonstrou de boa vontade? Quantas promessas você
disse que realizaria quando os meios necessários te fossem oferecidos?
Você se lembra das cartas que escreveu? E daquelas endereçadas a
Calvino, nas quais procurava mostrar seu zelo e afeição sincera a serviço
de Deus? Louvando e aprovando a doutrina que ele ensinava e querendo
divulgá-la na medida das suas possibilidades? Eu falo deste Calvino que
agora você se esforça para destruir através de teus escritos. Falo da
doutrina contra a qual você hoje se bandeia, com uma deslealdade
inestimável. Em suma, você tanto insistiu que foi enviado às terras novas
estant doncques bien auant en la bonne opinion & estime d‟vn grand
Seigneur, tu te fis congnoistre au Feu Roy Henry, & employer a son seruice,
estant vice-Admiral en Bretaigne, & enouye pour reparer & fortifier le
Chasteau de Brest. Mais (comme DIEV vouloit desia monstrer, combien il
condamnoit ton hyprocrisie) tu eus assez mauuais succez à tes affaires, & tel
qu‟estant surmonté par le Capitaine du Chasteau en ta faute accusation contre
luy, deuant le Roy, tu perdis l‟esperance que tu auois conceue, de te faire
gramd en ce Royaume, ne pouuant neantmoins perdre la grande & incroyable
ambition que te possedoit (...) de faict, tu prins vn nouueau conseil &
deliberation, d‟aller cercher bien loing, ce que tu n‟auois peu trouuer si prés de
tes commoditez & plaisirs.
Or, desia l‟estime de ta prudence & vertu commeçoit fort à s‟effacer &
ne te restoit autre remede, sinon le pretexte de vouloir fauoriser à la
predication de l‟Euangile. Tu prens donc ceste occasion, & mets toute peine
pour te faire apparoistre grand zelateur de l‟Euangile a l‟endroict de ceux,
desquels tu esperois te preuasoir, voulant imprimer en leur cueur, ce qui
n‟estoit pas au tien, ascauoir, que tu eusses volouté de seruit à Dieu, & à
l‟auancement de sa parolle. Combien de protestations faisois tu de ta bonne
volonté? Combien faisois tu de promesses, que tu la mettrois en effect &
execution, quand le moyen t‟en seroit offert? Te souuient-il des lettres que tu en
as escrires, & mesmes à Caluin, par lesquelles tu luy faisois entendre ton zele
89
& sincerité affection au seruice de DIEV, le louant, approuuant la doctrine
qu‟il enseignoit, & la voulant auancer, entant qu‟il te seroit possible? Ie parle
de ce Caluin, lequel maintenant tu tasches à deschirer par tes escriptz. Ie parle
de la doctrine, contre laquelle tu te bandes maintenant, auec vne desloyauté
inestimable. En somme, tu fis tant par tes menées, que d‟obtenir ce que tu
demãdois auec si grande instance. Tu es enuoyé aux terres neufues(1561b:
59-60)
30
.
Motivo da viagem
de Villegagnon
Panfletista (1561b)
Após fracassar na
condução das
fortificações em
Brest, o ambicioso
Villegagon procurou
tornar-se célebre na
América.
Para tanto, e sem
escrúpulos, se valeu
dos piores meios,
como mentir sobre
sua disposição de
ajudar os
protestantes.
30
De acordo com Heulhard a respeito dos desentendimentos de Villegagnon com Marc de Carné, capitaine de
Brest et vice-amiral de Bretagne, antecessor de Villegagnon no cargo: un conflit était fort probable, sourtout à
pareille distance de la Cour et en matière d‟administration maritime le contrôle royal échouait misérablement.
Là tout était désordre, compétition, concussion, gaspillage” (1897: 69).
90
A partida da França:
pelo menos quatro datas para a partida da expedição à França Antártica. Segundo
Barré,
No dia 12 de julho de 1555, Villegagnon aparelhou e organizou
tudo que lhe pareceu necessário ao empreendimento. Muitos nobres,
trabalhadores e marinheiros foram equipados com dois belos barcos cheios
de armamentos e outras mercadorias doadas pelo rei Henrique II. No
porto, cada um dos duzentos barris estava munido de artilharia, tanto para
defesa das ditas embarcações como para serem utilizadas em terra. Havia
também uma embarcação holandesa de cem toneladas que continha
víveres e outras coisas. Quando tudo estava organizado, naquele mesmo
dia, às 15 horas, Villegagnon deu ordem para levantar as velas.
As embarcações partiram de Havre de Grace. O mar estava bonito
por causa do vento nordeste que vinha da Grécia; se tivesse permanecido,
seria propício para conduzir a navegação em direção às terras do
Ocidente. Mas no dia seguinte e nos outros que se seguiram, o vento mudou
para sudoeste e nos atormentou de tal forma que fomos obrigados a buscar
a costa da Inglaterra, um lugar chamado Blanquet, onde ancoramos na
esperança de que a fúria daquele vento passasse. Mas não adiantou.
Tivemos de retornar à França, em direção a Dieppe, sob uma tormenta.
No navio em que estava Villegagnon a água começou a entrar com
muita força. Em menos de meia hora, foram retirados das sentinas entre
oitocentos e novecentos potes de água que se tornaram quatrocentos
baldes. Algo estranho e desconhecido para um navio que saiu de um porto.
Por causa disso, nos aproximamos de Dieppe com muita dificuldade.
Contudo, os habitantes de Dieppe, (segundo o costume louvado e honesto)
estavam presentes em grande número para puxar os cabos e, assim,
conseguimos chegar no porto no dia 17 de julho. (...) Permanecemos
durante três semanas, tanto para esperar um bom vento como para o
91
conserto dos navios. Pouco depois, o vento voltou a soprar nordeste, então
voltamos para o mar, esperando sempre poder afastar a embarcação da
costa e alcançar o alto-mar.
Por causa da violência do vento, tão contrário como antes, não
conseguimos navegar em alto-mar e nos foi conveniente fazer uma escala
em Havre, de onde tínhamos partido. permanecemos até a spera da
festa de Nossa Senhora em meados de agosto. Neste período, cada um se
esforçou para retomar o ânimo para voltar pela terceira vez ao mar no dia
escolhido pela clemência e benignidade de nosso bom Deus. De acordo com
as nossas preces, Ele aplacou a ira do mar e a ria do céu contra nós (...)
Mais uma vez, com a esperança que ainda tínhamos, pela terceira vez
embarcamos. Começamos a velejar no dia 14 de agosto
l‟an du Seigneur mil cinq cens cinquãte cinq le douzième iour de
juillet, monsieur de Villegaignõ ayant mis ordre et appareillé tout ce qu‟il
sembloit estre conuenable à son entreprinse: accõpagné de plusieurs
gentilshommes, manouuriers et mariniers, desquels équippa en guerre et
marchandise deux beaux vaisseaux, lesquels le roy Henri second de ce nom lui
avoit faict deliurer, du port chacun de deux cents tonneaux, muniz et garniz
d‟artillerie, tant pour la deffense desdicts vaisseaux que pour en delaisser en
terre: auec vn hourquin
31
de cent tonneaux, lequel portoit les viures, et autres
choses nécessaires en telle faction. Ces choses ainsi bien ordonnées,
commanda qu‟on fist voile, ledict iour sur les trois heures après midi, de la
ville du Haure de Grace: auquel lieu s‟estoit faict son embarquement. Pour lors
la mer estoit belle, afflorée du vent northest, qui est Grec leuant, lequel (s‟il
eust duré) estoit propre pour nostre nauigation, et d‟icelluy eussions gaigné la
terre occidentale. Mais le lendemain et jours suiuants il se chãgea au sud ouest,
auquel auiõs droictement affaire: et tellement nous tourmenta, que fusmes
contraincts relascher à la coste d‟Angleterre nommé le Blanquet, auquel lieu
moullames les ancres, ayãts esperãce que la fureur de cestuy vẽt cesseroit;
31
Hourque: bâtiment de transport à varangues plates et à flancs renflés, en usage en Hollande. (Petit Robert)
92
mais ce fut pour rien, car il nous conuit icelles leuer en la plus grande
diligence qu‟on sçauroit dire, pour relascher et retourner en France, au lieu de
Dieppe. Auec laquele tourmente il suruint au vaisseau auquel s‟estoit embarqué
ledict seigneur de Villegaignõ, vn lachemẽt d‟eaue, qu‟en mois de demie heure
lon tiroit par des sentines le nombre de huict à neuf cents bastonnées d‟eau, qui
reuiennent à quatre cẽts seaux. Qui estoit choses estrãge et encor non ouye à
nauire qui sort d‟vn port. Pour toutes ces choses nous entrasmes dans le haure
de Dieppe, à grande difficulté (...) mais les Dieppois (selõ leur coustume
louable et honneste) se trouuèrent en si grand nombre pour haller les emmares
et cables, que nous entrasmes par leur moyen le dix-septième iour dudict moys
(...) Nous demourasmes lespace de trois semaines, tãt pour attẽdre le vent
bon, et second, que pour la radoubemẽt desdictes nauires. Puis apres le vent
retourna au northest, duquel nous nous mismes encor en mer, esperants
tousiours sortir hors les costes et prendre la haulte mer. Ce que ne peusmes,
ainsi nous conuint relascher au Haure d‟ou nous estions partis, par la violence
du vent, qui nous fut autant contraire qu‟auparauant. Et là demourasmes
iusques à la vigile de la Nostre dame de la my aoust. Entre lequel chacun
s‟efforça de prẽdre nouueaux rafrechissements pour r‟entrer de nouueau, et
pour la troisieme fois en mer. Auquel jour nous apparut la clemẽce et benignité
de nostre bõ Dieu: car il appaisa le courroux de la mer, et le ciel furieux contre
nous, et les changea selon que nous lui auions demandé par nos prieres (...)
dérechef auec plus grand espoir que n‟auions encore heu, pour la troisieme fois
nous nous embarquames, et feismes voile ledict iuor quatorzieme d‟aoust
(1555: 103-105)”.
Um panflestista anônimo escreveu: a companhia embarcou nos navios, levantou as
âncoras e partiu do Havre de Grace no dia 15 de julho de 1555/ la compagnie s‟embarque
dãs les nauires, & les ancres leuees, font voile du Haure de grace, l‟an 1555, le 15 Iuillet(1561
- 1565: A.iiii.5).
93
Thevet forneceu ainda outras datas. Segundo ele,
no dia 6 de maio de 1555, após as ordens de Villegagnon destinadas
à segurança e comodidade da viagem, dos barcos, das munições e das
outras artilharias de guerra, com mais dificuldade que uma armada
terrestre, devido ao número e à diversidade das pessoas, nobres, soldados e
a uma variedade de artesãos, em resumo, equipados da maneira que foi
possível, chegou o momento do nosso embarque. Partimos do Havre de
Grace, na Normandia, do nosso grande mar e oceano gálico
le sixième jour de mai Mille cinq cent cinquante cinq, après que ledit
Sieur de Villegagnon eut donné ordre, pour l‟assurance et commodité de son
voyage, à ses vaisseaux, munitions et autres choses de guerre, mais avec plus
grande difficulté que en une armée marchant sur terre, au nombre et à la
qualité de ses gens de tous états, gentilshommes, soldats et variété d‟artisans,
bref, le tout dressé au meilleur équipage qu‟il fut possible, le temps de nous
embarquer au Hable de (...) située en Normandie à notre grand mer et océan
Gallique, où, abandonnant la terre, fîmes voile” (1557 - 1997: 44-45).
Na Histoire de deux voyages, Thevet repetiu a mesma data: 6 de maio de 1555/ le
sixiéme jour de May, mil cinq cens cinquante cinq e acrescentou que, por causa de ventos
contrários, tiveram que ir até Dieppe, onde ficamos durante 4 dias esperando o vento
propício, até que no dia 12 de maio, às 11 horas da manhã, levantamos as âncoras/
nous feusmes quatre jours pour attenir le vent. Le douziéme dudit mois sur les onze avant midy
levasmes les ancres” (1588 -2006: 56-57).
Reverdin e Heulhard utilizaram o 12 de julho como data da saída da França, mesmo que
esta tenha sido uma falsa partida. De acordo com o primeiro, deux forts vaisseaux et un navire
de charge, ayant à bord les membres de l‟expédition et de la pacotille pour comercer avec les
94
Sauvages, appareillent au Havre de Grâce. La traversée dura quatre mois (1957: 15). Todavia,
6 de maio, 12 de julho, 15 de julho ou 14 de agosto, o fato é que se realmente foram três as
tentativas de sair da França. É provável que dos homens que partiram, la moitié moins que
Cabral en 1500(Heulhard 1897: 105), uma quantidade bem menor de pessoas deve ter chegado
ao Rio de Janeiro. Como conta Barré, muitos dos nossos nobres se contentaram em ter visto
o mar, de acordo com o provérbio Mare vidit et fugiti. E também rios soldados,
trabalhadores e artesãos, desgostosos, desistiram da viagem / plusieurs de noz
gentilshommes se contentèrent d‟auoir veu la mer, accomplissants le prouerbe, Mare vidit et
fugit. Aussi plusieurs soldats, manouuriers, et artisans furent desgoutez et se retirerent(1555:
104).
Soma-se a isso o fato de que durante a viagem, o
calor insuportável causou uma febre pestilenta no navio onde
estava Villegagnon. Era de dar piedade, pois as águas estavam infectadas e
fedidas e as pessoas do navio não podiam deixar de bebê-la. Essa febre foi
tão contagiosa e perniciosa que das cem pessoas contaminadas, apenas dez
se salvaram, algo de dar pena e fazer chorar
chaleur extreme causa une fiebure pestilẽtieuse, dãs le vaisseauu ou
estoit ledict seigneur (Villegagnon), pour raison que les eaues estoient puantes
et tant infectes que c‟estoit pitié, et les gens dudict nauire ne se pouuoient
garder d‟en boire. Celle fieuvre fut tant cõtagieuse et pernicieuse, que de cent
personnes elle n‟en espargna que dix, qui ne fussent moururent, qui estoit
chose pitoyable et pleine de pleurs (Barré 1555: 106).
95
Data da
partida
Barré
Panfletista
anônimo 1561-
1565
Thevet
Reverdin &
Heulhard
Havre
12/7/1555
15/7/1555
6/5/1555
12/7/1555
Dieppe
17/7/1555 + 3
semanas =
7/8/1555
4 dias
Havre
14/8/1555
12/5/1555
A chegada na Guanabara:
Apesar dos inconvenientes narrados por Barré, é digno de nota o fato de Thevet não
mencionar qualquer incidente que tenha ocorrido durante a viagem. É como se, já na qualidade de
cosmógrafo, ele tivesse passado a viagem na proa vislumbrando apenas a paisagem. A propósito,
na Cosmographie Universalle, ele escreveu que “tudo o que vou discorrer e narrar não
aprendi de modo algum em qualquer escola de Paris, ou em alguma universidade na
Europa, mas na cadeira de um navio, sob a lição dos ventos / tout ce que je vous discours &
recite, ne s‟apprend point és escoles de Paris, ou de quelle que ce soit des vniuersitez de
l‟Europe, ains en la chaize d‟vn nauire, soubz la leçon des vents” (1575: 907)
32
.
Thevet refere-se à chegada à América, sem qualquer alarde. Diz ele:
no dia 2 de novembro, chegamos a um lugar chamado Macaé (...)
quando nossos barcos estavam chegando próximos à terra, apenas quatro
32
Lestringant escreveu um livro sobre Thevet com este título (2003).
96
anciãos, selvagens do país, se apresentaram, pois os jovens tinham partido
para guerrear. Logo que nos viram, esses anciãos fugiram de nós,
pensando que éramos portugueses, seus inimigos, mas nós lhes
transmitimos tanta confiança que por fim eles se aproximaram de nós.
Todavia, permanecemos lá apenas 24 horas e, em seguida, levantamos vela
em direção ao Cabo Frio, distante de lá vinte e cinco léguas
33
au deuxième de novembre, que nous entrâmes en un lieu nommé
Maqueh (...) auquel lieu, nos esquifs dressés pour mettre pied en terre, se
présentèrent seulement quatre vieillars de ces sauvages du pays, pource que
lors les jeunes étaient en guerre, lesquels de prime face nos fuyaient, estimant
que ce fussent Portugais, leurs ennemis; mais on leur donna tel signe
d‟assurance, qu‟à la fin s‟approchèrent de nous. Toutefois ayant séjour
vingt-quatre heures seulement, fîmes voile pour tirer au cap de Frie, distant de
Maqueh vingt-cinq lieues” (1557 - 1997: 107).
Mais à frente, no entanto, Thevet escreveu: com a clemência de Deus, depois de tantos
trabalhos comuns a uma viagem tão longa, não tão rapidamente como desejávamos - e
esperávamos -, chegamos à terra firme no dia 10 de novembro/ après que par la divine
clémence, avec tant de travaux communs et ordinaires à si longue navigation, fûmes parvenus en
terre ferme, non si tôt que notre vouloir et espérance le sirait, qui fut le dixième jour de
novembre” (1557 - 1997: 113).
Em seguida ele diz: novamente velejamos até o Cabo frio, onde os selvagens do país
nos receberam muito bem, mostrando à sua maneira, sinais de alegria; todavia, ficamos
apenas três dias / fîmes voile derechef jusques au Cap de Frie, nous reçurent très bien les
33
Cerca de 100 quilômetros.
97
sauvages du pays, montrant selon leur mode évidents signes de joie; toutefois nous n‟y
séjournâmes que trois jours” (1557 - 1997: 113).
Thevet continua a narrativa:
como as condições de permanência em Cabo Frio não eram das
melhores (...) decidimos partir e velejar para outro lugar. Os habitantes do
país lamentaram, pois esperavam que permanecêssemos mais tempo para
que pudessem estabelecer aliança conosco (...) navegamos durante quatro
dias, até o dia 10, quando encontramos esse grande rio chamado
Guanabara
n‟ayant meilleure commodité de séjourner au cap de Frie (...) il fut
question de quitter la place, faisant voile autre part, au grand regret de gens du
pays, lesquels espéraient de nous plus long séjour et alliance (...) naviguâmes
l‟espace de quatre jours, jusques au dixième, que trouvâmes cette grande
rivière nommée Guanabara(1557 -1997: 117).
De fato, trata-se de uma estranha cronologia: depois de passar o dia 2 de novembro, ou o
dia 10 de novembro, em Macaé, Thevet foi a Cabo Frio onde permaneceu três dias. Quatro dias
depois, chegou a Guanabara, novamente no dia 10 de novembro. Veremos, no entanto, mais à
frente, que Léry também não é preciso em relação à sua chegada.
Barré, por sua vez, escreveu:
seguimos nosso itinerário levados por esse segundo vento,
trabalhando dia e noite, de modo que, no dia 3 de novembro, numa manhã
de domingo, conhecemos a Índia Ocidental, quarta parte do mundo,
chamada América, nome daquele que a descobriu em 1493. Não é preciso
perguntar se ficamos contentes, e se nós demos graças ao Senhor, visto as
condições precárias, o tempo e a distância que nos separavam da nossa
partida. Esse local que nós descobrimos é denominado Paraíba pelos
98
selvagens. Ele é habitado por portugueses e por uma nação que está em
guerra mortal contra aqueles que têm aliança conosco. Desse lugar são três
graus até o trópico de Capricórnio, o que equivale a 80 léguas. Chegamos
ao rio da Guanabara no dia 10 de novembro
nous poursuyuimes nostre chemin auec ce vent second, et feismes tãt
par jour et par nuict que le troisieme iour de nouembre vng dimenche matin
nous eusmes congnoissance de l‟Inde occidẽtale, quarte partie du mõde, dicte
Amerique, du nom de celuy qui la decouurit l‟ã mil quatre cens nonante trois. il
ne fault demander si nous eusmes grande ioye, et si chascun rendoit graces au
Seigneur, veu la poureté et le long tẽps qu‟il y auoit que nous estiõs partis. Ce
lieu que nous descouurimes est par vingt degrez, appellé de sauuages Pararbe.
Il est habité des Portugois, et d‟vne nation qui ont guerre mortelle auec ceulx
ausquels nous auons alliãce. De ce lieu nous auõs encor trois degrez iusques
au tropique de Capricorne, qui vallent octante lieues. Nous arriuasmes le
dixieme de nouembre en la riuiere de Ganabara” (1555: 108).
A chegada a
Barré
Thevet
Paraíba
3/11/1555 (indios
inimigos)
Macaé
2/11/1555 (indios aliados)
10/11/1555
24 horas
Cabo Frio
(a 25 léguas)
3 dias
Guanabara
10/11/1555
10/11/1555
99
(a 80 léguas)
4 dias depois
Descrições do local e topônimos:
Quando chegou, Barré descreveu o lugar onde Villegagnon decidiu se estabelecer:
o lugar é naturalmente bonito e fácil de proteger, visto que a
entrada é estreita e costeada por duas altas montanhas. No meio dessa
entrada, Villegagnon construiu um forte de madeira, onde colocou parte
da sua artilharia, de modo a impedir que os inimigos lhe causem danos.
Esse rio é tão espaçoso que qualquer navio pode ancorar com segurança.
Ele é semeado de belas ilhas, cujos bosques estão sempre verdes. Em uma
dessas ilhas, próxima ao canhão que Villegagnon mandou proteger, ele
colocou o resto da artilharia e das pessoas, temendo que os selvagens nos
saqueassem para pegar as mercadorias. A terra produz apenas milho, que
se chama em nossa terra trigo sarraceno, com o que eles fazem vinho, junto
com uma raiz que eles chamam de mandioca (...) Dessa raiz eles fazem
farinha mole, que é tão saborosa como o pão. Vi uma erva que eles
chamam de petun (...) da qual eles extraem fumaça, e que os faz aguentar a
fome por oito ou nove dias. ainda dois tipos de frutas muito saborosas,
uma se chama Nanam e vem de uma planta parecida com os aloés. A outra,
é uma espécie de figo que eles chamam de Pacona (...) A terra produz (...)
boa alimentação, como cana-de-açúcar, mas não em grande quantidade,
assim como laranja, limão e lima, que são poucos porque os habitantes
negligenciam seu cultivo. Reconheci ainda a beldroega, a murta e o
manjericão. Todo o resto é tão distante e selvagem que, mesmo se mestre
João, o herbanário, aqui estivesse, não conseguiria reconhecê-las. Acho que
poderemos encontrar algum metal, uma vez que os portugueses
encontraram, ouro, prata e bronze, a cinquenta léguas de distância.
100
A terra é regada por belos rios de água doce, das mais salubres que
bebi. O ar é temperado, tendendo mais para o calor do que para o frio.
O verão é no s de dezembro, quando o sol, a zênite, nasce do trópico. No
final da tarde chove e troveja durante três horas, mas, quando o sol se põe,
durante o equinócio, em direção ao trópico de Câncer, faz, como eles
dizem, o mais belo tempo do mundo. Enfim, eis o que há sobre a fertilidade
da terra, a salubridade e a disposição do ar
le lieu est naturellemẽt beau et facile à garder, à raison que l‟entrée en
est estroicte, close des deux costez de deux haults monts. Au milieu de ladicte
entrée (...) monsieur de Villegaignon a faict vng fort de bois, y mettant vne
partie de son artillerie, pour empescher que les ennemys ne viẽnent les
dõmager. Celle riuiere est tant spacieuse que toutes les nauires du mõde y
seront à l‟ancre seuremẽt. Icelle est semée de preaux et isles tant belles,
garnies de bois tousiours verd: à l‟vn desqueles (estant à la portée du canon de
celuy qu‟il a fortifié) a mis le reste de son artillerie et touts ses gens, craignant
que s‟il se fust mis en terre ferme, les sauuages ne no
s
eussẽt saccagez, pour
auoir sa marchandise. La terre ne produict que du mil, que l‟on appelle en
nostre pais bled sarrazin, duquel ils font du vin auec vne racine qu‟ils appelent
maniel, (...) D‟icelle ils font de la farine molle, qui est autant bõne que du pain.
J‟ay veu vne herbe qu‟ils appellent petun (...) dont ils succẽt le ius et tirẽt la
fumée, et auec celle herbe peuuent soustenir la faim huict ou neuf iours. Oultre
il y a deux sortes de fruicts merueilleusement bons: l‟un qu‟ils appellent Nanam
et vient dans vne plante semblable à l‟aloës: (....) L‟autre, est vne espèce de
figues, qu‟ils appellent Pacona (...) La terre produict (...) bon nourrissement:
de la cãne de sucre, mais non pasa en grande quãtité. Semblablemẽt des
orenges, citrons, et limõs: mais tant peu que ce n‟est rien, car les habitants sont
negligẽts de la cultiver. Quant aux autres simples, je n‟en recongnu que du
pourpié, du myrthe et du basilic. Tout le reste est tant sauuage et eslongné, que
si maistre Jean demonstrateur des herbes y estoit, il y seroit bien empesché. Je
pense que nous y trouuerons quelques metaulx. Car les Portugoys ont trouué,
101
or argent, et cuyure, cinquante lieues plus aual, est cinquãte lieues plus amõt.
La terre est arrousée de fort belles riuieres d‟eaues doulces, des plus saines
que ie beu iamais. L‟air est temperé tendant touteffois plus à chaleur qu‟à
froideur. Leur esté est au moys de decembre, quand le soleil vient en son
tropique, et qu‟il leur est pour Zenith. Tout le tẽps que le soleil s‟approche
d‟eux les soirs ils ont de la pluye et tonnerre durant trois heures: le reste du
temps que le soleil se retire en son aequinoxe et en son tropique de Cancer, il y
faict (comme ils disent) le plus beau temps du monde. Voyla quant à la fertilité
de la terre, salubrité et dispositiõ de l‟aer” (1555: 108-110).
Na segunda carta que escreveu, no ano seguinte, Barré forneceu novas informações sobre
o lugar:
esse lugar é uma pequena ilha que mede seiscentos por cem passos,
rodeada pelo mar. (...) O local é naturalmente forte, sendo que nós o
fortificamos e cercamos tão bem que quando os nativos vêm nos ver em
suas canoas, eles tremem de medo. É verdade que temos um problema de
água doce, mas construímos uma cisterna que pode nos guarnecer durante
seis meses
Ce lieu est vne islette de six cents pas de long, et de cent de large,
enuironnée de tous costez de la mer, (...) Le lieu est fort naturellement, et par
art nous l‟avons flancqué et remparé telemẽt que quand ils nous viennẽt veoir
dans leurs auges et almadas, ils tremblẽt de crainte. Il est vray qu‟il y a une
incommodité d‟eaue doulce, mais nous y faisons vne cisterne, qui pourra
garder et contenir de l‟eaue, au nombre que nous sommes, pour six mois
(1556: 116).
Sobre a cisterna, Léry, anos mais tarde, fez o seguinte comentário: Não existe nesta ilha
fonte, poço ou rio. De água doce apenas uma cisterna, ou melhor, um esgoto de toda
102
chuva que cai na ilha. Ela estava verde, suja e fétida, era, na verdade, um velho fosso
coberto de rãs / il n‟y a en cette île fontaine, puits ni riviére d‟eau douce, de l‟eau d‟une
cisterne, ou plutôt d‟un égout de toute la pluie qui tombait en l‟île, laquelle était aussi verte, orde
et sale qu‟est un vieil fossé couvert de grenouilles (1578 - 1992: 68).
Thevet também descreveu o lugar:
Depois de permanecer por dois meses e pesquisar muitas ilhas e
terras, o país distante que s descobrimos foi nomeado por mim, França
Antártica. O lugar mais conveniente que encontramos para construção e
fortificação foi uma pequena ilha, com apenas uma légua de
circunferência, situada quase no início desse rio que falamos
anteriormente. O rio foi denominado Coligny e, pelo mesmo motivo, o forte
construído. Esta ilha é muito agradável, pois possui uma grande
quantidade de palmeiras, cedros e árvores do Brasil, que permanecem
verdes e cheirosos durante todo o ano. É verdade que não água doce, a
não ser em um lugar bem distante de lá
après avoir séjourné l‟espace de deux mois et recherché tant en îles
que terre ferme, fut nommé le pays loin à l‟entour par nous découvert, France
Antarctique, où ne se trouva lieu plus commode pour bâtir et se fortifier qu‟une
bien petite île, contenant seulement une lieue de circuit, située presque à
l‟origine de cette rivière dont nous avons parlé, laquelle pour même raison
avec le fort qui fut bâti, a été aussi nommée Coligny. Cette île est fort plaisante,
pour être revêtue de grande quantité de palmiers, cèdres, arbres de brésil,
arbrisseaux aromatiques verdoyants toute l‟année; vrai est qu‟il n‟y a eau
douce que ne soit assez loin” (1557 - 1997: 118).
Quando voltou ao tema em 1575, Thevet escreveu:
encontramos uma ilha que não estava povoada (...) nesse lugar
onde ficamos não tinha menos de uma légua de circunferência e foi onde
103
construímos um forte com cinco canhões, guarnecido com artilharia média
e pesada para superar nossos inimigos. Continuamos a fortificação com a
maior diligência que nos era possível e com a ajuda de um bom número de
selvagens que colocamos para trabalhar (...) nesse trabalho, eles
demonstraram empenho em poder servir ao rei em um empreendimento
tão perigoso
nous trouuasmes vne ilse, pour lors despeuplee: (...) & l‟endroit ou
nous arrestasmes, laquelle ne sçauroit auoir plus d‟vne lieuë de tour pour le
moins. Ce fut en ce lieu que nous fismes bastir vn fort, composé de cinq
boulleures
34
, garnis de grosse & moyenne artillerie, pour nos preualoir contre
noz ennemis: & poursuyuãt la fortification en la plus grande dilligence que
faire nous estoit possible y faisions trauailler bon nombre de Sauuages (...)
demonstrant en ce faisant, l‟affection qu‟ils auoient de faire seruice au Roy, en
vne entreprinse si perilleuse” (1575: 908).
Mais à frente, Thevet disse que: o principal motivo desta ilha estar desabitada era
porque havia vermes, o que causou uma série de doenças aos moradores, além de um
outro grande inconveniente, a saber, a ausência de água doce/ la cause principale pour
laquelle ceste Isle estoit sans habitation, estoit, pource qu‟il y a tant de vermine que rien plus. Ce
qui pouuoit estre occasion de plusieurs maladies aux habitans: joinct qu‟il y a vne autre bien
grande incommodité, à sçauoir la faulte d‟eauë douce ” (1575: 909).
Villegagnon descreveu brevemente o forte ao duque de Guise: “é possível abrigar 60
pessoas (...) onde poderiam plantar e semear, para viver do seu trabalho” (1557).
De acordo com Richer, Villegagnon
34
Não encontrei uma tradução para essa palavra, porém o sentido da frase indica que se trata de uma arma.
104
exigiu governar uma ilha deserta e despovoada. Depois que ele
retomou a coragem, deixou o medo de lado e nomeou a ilha de Coligny.
Com muito esforço, começou a construir um estábulo de madeira, coberto
de folhas para se proteger da chuva e dormir à noite. Todas as ilhas desse
local (que são muitas) são desabitadas, cheias de animais ferozes e
perniciosos. Dentre todas essas ilhas, apenas uma possuiu água doce e foi
essa que, a cada dois dias, forneceu água à ilha de Coligny. Os habitantes
comem peixes e répteis, eles não têm outra carne para comer. As raízes que
conseguem dos selvagens (não sem grande perigo) lhes servem de pão e de
vinho. Dez portugueses expulsos dessa ilha pelos selvagens, no pouco tempo
que lá permaneceram, deixaram algumas madeiras cortadas e pedras
retiradas da terra, com o que Durand construiu outro estábulo e uma
pequena cabana. Representam a grande herança de Villegagnon, da qual
me referi; nomeou-a a Torre inexpugnável, apavorando fortemente
todos os selvagens
requier d‟estre mené en vne Isle deserte, & vuide d‟hommes, laquelle,
apres auoir repris courage, & laisse sa peur, il nomma l‟Ilse de Colligne (...) &
commençea de construire auec grand labeur vne estable de boue & de fueilles
couuerte, pour se garde de la pluye, & pour les nuicts y prende son repos. (...)
toutes les Ilses de ce lieu (qui ne sont en petit nombre) sont entierement lieux
deserts, pleine de bestes cruelles & pernicieuses, & de tant d‟Isles, il y en a vne
seule de laquelle on puisse auoir de l‟eau douce pour le necessaire vsage des
hommes, de laquelle eau douce il faut que l‟Isle de Colligne soit fornie de deux
iours en deux iours. La viandre des habitãs de ce lieu ce sont poyssons &
couleuures, ils n‟õt poit d‟autre chair pour manger. Les racines, qu‟ils ont des
sauuages par chãge de merceries, (nõ sans grand peril) leur seuruent de pain,
& de vin. Dix Portugallois, qui lors depuis vn peu de temps auoyent esté
chassez de ceste Ilse par les Sauuages, y auoyent laissé quelque bois couppé, &
des pierres arrachees de la Terre, ce que Durãd feit amasser, & de cela, auec
vn peu d‟ais & plancher de bouë & de fueillage, outre l‟estable par luy bastie,
105
il fait vne petite Case (qui represenente ce grand heritage Villegaignon, duquel
cy dessus j‟ay parlé). La nommant la Tour inexpugnable, & donnant
espouuentable crainte à tous Sauuages(1561: 16-17).
Quando Léry chegou em 1557, ele contou que nas extremidades da ilha dois
morros nos quais Villegagnon mandou construir em cada um uma pequena casa; sobre um
rochedo de cinquenta ou sessenta pés de altura, que está no meio da ilha, ele tinha
construído sua casa / y ayant deux montagnes aux deux bouts, Villegagnon sur chacune
d‟icelle fit faire une maisonnette: comme aussi sur un rocher de cinquante ou soixante pieds de
haut, qui est au milieu de l‟île, il avoit fait bâtir sa maison” (1578 - 1992: 82).
Sobre as acomodações das 80 pessoas que então se encontravam na ilha, Léry fez a
seguinte observação:
reparem que, à exceção da casa sobre a rocha, onde houve um
pouco de trabalho de carpintaria, assim como do espaço de alvenaria onde
a artilharia foi colocada, as outras habitações foram arquitetadas pelos
selvagens e, portanto, construídas ao seu modo, a saber, de madeira e
cobertas por ervas
notez, qu‟excepté la maison qui est sur la roche, il y a un peu de
charpenterie, et quelques boulevards sur lesquels l‟artillerie était placée,
lesquels sont revêtus de telle quelle maçonnerie, que ce sont tous logis, ou
plutôt loges, desquels comme les sauvages en ont été les architectes, aussi les
ont-ils bâtis à leur mode, à savoir de bois ronds, et couverts d‟herbes(1578 -
1992: 82).
106
Ainda segundo ele, foi Villegagonon que, achando que agradaria a Gaspar de
Coligny, almirante da França (...) nomeou o forte na França Antártica de Coligny /
pensant faire chose agréable à messire Gaspard de Coligny Admiral de France (...) nomma
Coligny en la France Antartique ” (1578 - 1992: 82).
Thevet escreveu um capítulo da Cosmographie Universelle com o título: porque essa
terra foi denominada por mim de França Antártica, e por outros, erradamente de Índias
pourquoy ceste terre a esté par moy nomee France Antarctique, & par d‟autres faussement
nommee Indes”, onde afirma:
visto que cheguei muito antes neste país, é preciso notar que rias
pessoas que descobriram tantas províncias desta terra acharam que elas
fossem as Índias. (...) Em primeiro lugar, vejamos onde as Índias se
encontram, vejamos o Globo, a esfera redonda, e se é possível compartilhar
de tal opinião (pois de acordo com a esfera plana não se pode julgar com
segurança). Dada a experiência que adquiri, a França Antártica, com
respeito, foi nomeada por mim, Thevet
puis que je suis si avant touchant ce païs, il fault noter, que plusieurs
d‟entre ceux, qui ont faict la descouuerte de tant de Prouinces qui sont
contenues en ceste terre, ont estime que ce fussent les Indes (...) Em premier
lieu, voyons ou c‟est que les Indes sont possé, & voyons au Globe & Sphere
ronde, si telle opinion se peult compatir (car par la Shere plate vous n‟en
sçauriez tirer iugement asseuré) (...) veu l‟experience que j‟en ay euë : d‟autant
aussi que la France Antarctique, ainsi nommee par moy Thevet, por bon
respect ” (1575: 910).
107
Depois de expor a divisão do mundo em quatro partes, tomando como referência os
trópicos e de narrar as descobertas de Cristóvão Colombo, Jacques Cartier, Américo Vespúcio e
Fernão de Magalhães, Thevet continua:
seguindo o exemplo desses homens, e tendo visitado esta grande
terra desconhecida dos antigos, habitada por Tupinambá, Tupiniquim,
Tabajara, Maragato e outros vizinhos, quando eu estava no grande rio da
Guanabara, distante do trópico de Capricórnio um grau e meio, tendo
parado e permanecido lá, não me dei conta de ter sido o primeiro a chamar
e nomear o país de França Antártica
suyuant le mesme exẽple cy dessus deduit, & ayant visité ceste grande
terre incogneuë aux anciens, frequentant les Toupinambaux, Toupinanquins,
Tabaiarres, Margageaz, & autres qui nous estoient voisins, lors que j‟estois sur
la grãde riuiere de Ganabare, delà le tropique de Capricorne vn dregré &
demy, estãt arresté & demeurant, je n‟ay point fait grande conscience
d‟appeller, & le premier nommer ce païs: la France Antarctique” (1575: 911).
Contudo, continua Thevet:
alguns franceses, com inveja da minha glória, acharam ruim ter sido eu o primeiro
a chamar este país de França Antártica e não quiseram que a justa atribuição a que eu
tinha direito, permanecesse a louvar meu nome e trabalho” / quelques vns dentre noz
François, enuieux de ma propre gloire, ont trouué mauuais, que i‟ay le premier de la France,
nommé ce païs la France Antarctique, ne voulans point que ce qui m‟est iustement attribué, me
demeure auec la louange de mon labeur & industrie” (1575: 912).
Em 1588, Thevet reeditou o capítulo e voltou a falar dos invejosos dos meus escritos/
tels envieux de mes escrits (- 2006: 302). Segundo Lestringant, Thevet responde aqui a Léry,
quando este escreveu, na Historie d‟un voyage, que, se Villegagnon não tivesse abandonado a fé
108
reformada, os franceses possuiriam agora, sob a obediência do rei, um grande país na terra
do Brasil, que de direito, neste caso, poder-se-ia continuar a chamar de França Antártica/
possederoient maintenant sous l‟obeissance du Roy un grand pays en la terre du Bresil, lequel à
bom droit, en ce cas, on eust peu continuer d‟appeler France Antartique” (1588 - 2006: 302n.).
Quando Laudonnière, na introdução da Histoire de la Floride, fez uma descrição da
América, escreveu que: “em uma parte desta terra, sob o trópico de Capricórnio, viveu
Villegagnon. Ele denominou o lugar de França Antártica, pois está situada na direção do
pólo antártico, assim como está a nossa terra em relação ao pólo ártico/ en une partie de
ceste terre s‟abitua Villegaignon, droit sous le tropique de Capricorne, et l‟a nomée la France
Antarctique, à cause qu‟elle tire au pole Antarctique, ainsi que la nostre à lArctique (1586 -
1853: 4)
35
.
A cidade em homenagem a Henrique II:
No contexto dos documentos sobre a França Antártica, a primeira referência a uma cidade
nas proximidades da França Antártica é de Richer. Segundo ele:
Durand, logo após edificar tais beldades, espalhou a notícia
mentirosa que tinha edificado uma cidade chamada Henricopole. Todavia,
35
Quando narrou os primeiros combates entre portugueses e franceses, Anchieta descreveu assim a ilha:
“forte por suas rochas inacessíveis, fervendo ao embate do mar furioso e gemendo ao som de grutas
soturnas. Para o lado do ocaso se levanta pequena colina: uma que outra palmeira ao longe a cobre de sombra com
seus verdejantes leques. Perto dessa colina está enorme rochedo talhado todo ao redor pelo picão tenaz. Em cima da
pedra imponente se eleva o baluarte altivo, prenhe de artilharia. Mais além há uma pequena altura e à sua direita uma
cisterna, com casas dum lado e doutro, repleta de água. Bombardas numerosas defendem as estreitas veredas. Entre
estas e a cisterna enorme abertura, onde as ondas remugem espumando de raiva. Ponte de um pau estreita
passagem por cima do abismo. Transposta esta, do lado da aurora esplendente, depara-se um monte que parece subir
às estrelas, com escarpas a pique em redor. É impossível subir ao cume, ou descer de para o baixo. Um
caminho escarpado e estreito conduz à altura: talhou-o na pedra, à fôrça de golpes teimosos e muito suor, o duro
picão dos Franceses. E protegeu-o com baluartes de alvenaria. No cume ergue-se a tôrre sob armação de grossos
madeiros defendida por bombardas e pela estratégia do posto: o rochedo todo é inacessível e se lança às alturas qual
gigantesca montanha e inexpugnável penhasco(1563 - 1970: 205 e 207).
109
ele não possui nada e também não construiu nada, apenas uma horta
onde plantou algumas coisas espalhadas, num espaço menor que meio acre
e dentro do qual não consta forma ou cultura de cultivo. uma casa
onde, com esforço, é possível dizer que caberiam dez porcos. Os nossos
compatriotas, quando viram a tal casa feita de argila, chamaram-na de
Tuillerie. Essa casa, que ele tinha obtido dos selvagens depois de muito lhes
implorar, estava situada a quase cem passos do lugar chamado por ele de
Henricopole
Durand, apres ces beaux bastimens, fait incontinent courir le bruit
menteur, qu‟il a edifié vne ville nomee du nom du Roy Henricopole, en laquelle
toutefois il ne possede rien, il n‟a edifrien, qu‟vn iardin non clos, n‟ayant
espace que de demi arpent, & dedãs lequel il n‟appert forme ne culture de
iardinage. C‟est vne maison en laquelle à grand peine on pourroit tenir dix
porceaux. Et ceux de nostre nation, voyant ladicte maison faite d‟argille, luy
ont dõné le nom de Tuillerie, laquelle distante de cent pas (a peu pres) du lieu
par luy nõme Henricopole, il a obtenue des sauuages auec grandes prieres
(1561: 17).
Um panfletista anônimo, cuja narrativa depois foi incorporada à Histoire des Martyres de
Crespin, escreveu a respeito da volta dos cinco calvinistas à França Antártica:
quando entravam no rio de Coligny (...) avistaram a fortaleza de
Villegagnon e a vila dos franceses, que estava situada no continente a uma
certa distância do forte. Quando desceram em terra encontraram
Villegagnon. Ele tinha chegado ao vilarejo pela manhã para resolver
algumas coisas
estãs entrez dans la riuire de Colligny (...) si apperceurent la forteresse
de Villegaignon, & le village des François, situé en terre cõtinente, esloigne
dudict fort la portee d‟vne coleurine. Estans descendus en terre, ils trouuerent
110
Villegaignon, audict village, qui y estoit allé au matin, pour quelques siennes
affaires (1561 -1565: Biiii8).
Crespin, ao se referir ao momento em que Jean de Bolés foi expulso da ilha narrou que:
Du Pont, Richer e os seus companheiros estavam no continente, a
meia legua de distancia do forte de Coligny, numa aldea construida mezes antes
por alguns pobres Francezes que Villegaignon expulsára da ilha como bocas
inuteis e entre os quaes se contava o proprio Cointac!” (1564 - 1917: 45).
Durante o processo que levou a condenação à morte dos três calvinistas, Crespin afirmou
que Villegagnon:
“n]a sexta-feira trágica - 9 de fevereiro de 1558 (,) informado de que na
véspera deste dia, pela manhã, o seu barco iria ao continente para transportar
mantimentos, ordenou aos tripulantes que lhe trouxessem Jean du Bordel e os
seus companheiros, todos domiciliados na aldeia dos Francezes” (1564 - 1917:
72).
Na Cosmographie Universelle, Thevet apresentou uma ilustração da “Ilse et fort des
François”, na qual, à esquerda, figura Henryville:
111
Thevet diz que quando os portugueses vieram atacar a França Antártica, os franceses
estavam em terra, onde estava a cidade que ficava perto do rio Carioca, chamada por s
de Ville-Henry, nome desse grande e honrado rei da França, Henrique II / les François
estoient en terre ferme, estoit la ville, nommee par nous Ville-Henry, du nom de ce grãd &
heureux Roy de France, Henry second du nom, assise pres la riuiere de Cariobe ” (1575: 910).
Léry críticou severamente Thevet a respeito:
112
direi que não cesso de admirar que Thevet (...) querendo parecer
agradável ao rei Henrique II, então no poder, não apenas mandou
desenhar um mapa desse rio da Guanabara e do forte de Coligny e
retratou, à esquerda, em terra, uma cidade que chamou de Ville-Henri,
como também, mesmo tendo tido tempo suficiente para refletir que se
tratava apenas de uma chacota, não obstante, ainda a colocou na sua
Cosmographie. Nós partimos do Brasil mais de 18 meses depois que Thevet,
e, portanto, asseguro que não havia qualquer construção, menos ainda
vilarejo ou cidade no local onde ele marcou e forjou algo realmente
fantástico. Ele mesmo, incerto sobre o que iria acontecer com nome dessa
cidade imaginária (...), a denominou, no primeiro mapa de VILLE-HENRI,
e no segundo de HENRI-VILLE
je dirai que je ne me puis aussi assez émerveiller de ce que Thevet (...)
voulant semblablement complaire au Roi Henri second, lors régnant, non
seulement en une carte qu‟il fit faire de cette rivière de Ganabara et fort de
Coligny, fit portraire à côté gauche d‟icelle en terre ferme, une ville qu‟il
nomma VILLE-HENRI; mais aussi, quoiqu‟il ait eu assez de temps depuis pour
penser que c‟était pure moquerie, l‟a néanmoins derechef fait mettre en sa
Cosmographie. Car quand nous partîmes de cette terre du Brésil, qui fut plus
de dix-huit mois après Thevet, je maintien qu‟il n‟y avait aucune forme de
bâtiments, moins village ni ville à l‟endroit où il nous en a forgé et marqué une
vraiement fantastique. Aussi lui-même étant en incertitude de ce qui devait
procéder au nom de ceste ville imaginaire (...) l‟ayant nommé VILLE-HENRI
en sa premiere Carte, et HENRI-VILLE en la seconde” (1578 - 1992: 82-83).
Ainda segundo Léry, permanecemos cerca de dois meses no lugar que apelidamos de
Briqueterie, em certas casas que os trabalhadores franceses construíram para ter um
abrigo quando iam pescar ou fazer outras coisas / “au lieu que nous appelions la
Briqueterie; auquel, dans certaines telles quelles maisons que les manouvriers français, pour se
113
mettre à couvert quand ils allaient à la pêcherie ou autres affaires de ce côté-là, y avaient bâties,
nous demeurâmes environ deux mois” (1578 - 1992: 203).
Ele fez também um apelo:
a fim de que ninguém pense que eu falo sem propósito, eu me dirijo
a todos que fizeram essa viagem, mesmo aos homens de Villegagnon,
muitos ainda vivos, a saber, se havia sinal de cidade onde se quis situar esta
que eu despacho junto com a ficção dos poetas
afin que nul ne pense que j‟en parle autrement qu‟il ne faut, je me
rapporte à tous ceux qui ont fait ce voyage, et même aux gens de Villegagnon,
dont plusieurs sont encores en vie, à savoir s‟il y avait apparence de ville où on
a voulu situer celle que je renvoie avec les fictions des Poètes(1578 -1992:
83).
Cidade
Richer
Panflestista
Anônimo
(1561-1565) &
Crespin
Thevet
Léry
Nome dado por
Villegagnon
Henricopole
Henry-Ville /
Ville-Henry
Henry-Ville /
Ville-Henry
Nome dado
pelos
protestantes
Briqueterie
Nome
le village des
114
François /
aldeia dos
Francezes
Lestringant analisou quatro mapas relativos à França Antártica recolhidos por Thevet, por
volta de 1586, para o não publicado Grand Insulaire, entre eles, o que está na Cosmographie
Universelle. A partir da premissa de que no Renascimento saber e poder são indissociáveis, quer
dizer, é a monarquia que prescreve a produção intelectual, ele percebeu uma transformação
iconográfica na qual o projeto colonial militar foi substituído por uma homenagem à dinastia dos
Valois, e, no que diz respeito à nominação da cidade, a uma forma de imortalizar os dois últimos
reis Henrique, o II e o III. Neste sentido, Lestringant endossa as críticas de Léry a Thevet, e
afirma que tratou-se de uma “cité-fantôme” (1981: 235), uma “ville inventée” (1981: 238);
discorda de Lescarbot, quando escreveu: se houve ou não uma cidade, não acho isso que seja
motivo de censura, a não ser a respeito do procedimento dos franceses na época em que
possuíram essa terra, que agiram de modo a convencer o rei a investir nesse
empreendimento/ „“soit qu‟il y ait ville, ou non, je n‟t trouve point sujet de blame sinon a
égard au temps que les François possedoient cette terre, ayant fait cela, à fin d‟inviter le Roy à
avancer cette entreprise‟” (in Lestringant 1981: 240).
115
A febre pestilenta:
Apesar da excelente acolhida dos Tupinambá, Barré refere-se
ao que aconteceu aos selvagens quando fomos à terra: eles foram
contaminados por uma febre pestilenta, que matou mais de oitocentos
índios. Isso os levou a pensar que tinha sido Villegagnon que os tinha
matado e assim ameaçaram guerrear contra nós caso ssemos ao
continente, mas o lugar em que estamos nos protege deles
ce qu‟il est aduenu que les Sauuages ont esté persecutez d‟vne fieure
pestilentieuse depuis que nous sommes en terre, d‟ont il en est mort plus de
huict cents: leur ont persuadé que c‟estoit monsieur de Villegaignon qui les
faisoit mourir: parquoy conçoiuent vne opinion contre nous, qu‟ils nous
voudroient faire la guerre, si nous estions en terre continente: mais le lieu ou
nous sommes, les retient” (1556: 116).
Thevet escreveu:
quando ainda estava nesta ilha, apareceu uma doença que matou
grande parte do povo (...) Os bárbaros ficaram de tal forma
impressionados e agressivos conosco que eles diziam que Tupã, quer dizer,
na sua língua, aquele que faz trovoar e chover, lhes enviou essa punição
por terem a companhia de pessoas tão más. Por isso, um dia, quando eu
estava com essa doença, eles me pegaram e me colocaram sobre a areia,
achando que eu estava morto. Pilharam minhas coisas, roubaram meus
livros, papéis e as roupas que eu tinha, mas felizmente o tradutor estava
e os fez entenderem que os livros tinham sido enviados pela lua e pelas
estrelas e que eu era amigo de Tupã. Esse pobre povo achou que, por ter
cometido esse erro, Deus tinha lhes enviado a doença e assim me deixaram,
impressionados com o que tinha acontecido com eles. E vendo a autoridade
116
que nosso capitão exercia sobre nós, curvado diante deles, como fazia
quando punia os seus criminosos, acharam que ele tivesse poderes
religiosos superiores aos nossos. Por isso diziam a ele: senhor, fazei com
que não morramos mais, tende piedade de nós e de nossas crianças (...)
os selvagens mais perversos aconselharam seus companheiros a matar
Villeganon. Isso teria acontecido por causa do instinto dos nossos homens
maus, mas o complô foi descoberto por um selvagem, que advertiu um de
nós que estava amancebado com a sua filha. Fomos contrários a essa união,
pois não é correto que um fiel se acasale com um infiel. Esses Selvagens
diziam que nossas almas eram ruins, que pecavam e que essa era a causa
da morte deles
i‟estois encor en ceste Ilse, il y aduint vne maladie, laquelle emporta
vne grãde partie du peuple (...) Cecy estonna tellemente ces barbares, & les
aigrit contre nous, qu‟ils disoient, que Toupan, c‟est à dire, en leur langue,
celuy qui fait tonner & plouuoir, leur enouoyoit ceste punition, pour auoir de si
meschantes gens en leur compagnie: qui fut cause, que en ceste opinion ils me
prindrent vn jour, & porterent, estant attaint de ceste maladie, sur le sablon,
pensans que je fusse mort, me pillans & robans liures, pappiers & habillemens
que j‟auois: mais par bon heur, nostre Truchement estant là, leur feit entendre,
que ces liures estoient enouoyes de Iachu-tata, & Iachuc, qui est Lune & les
Estoiles, & que j‟estois amy de Toupan. Ce Pauure peuple pensa, que pour
auoir fait ceste faulte, Dieu leur euuoyé ceste maladie: pource me laisserent là,
estonnez de ce qui leur aduenoit. Et voyans nostre Capitaine auoir telle
authorité sur nous, que tout flechissoit deuant luy, & comme il punossoit ceux
d‟entre les siens qui faisoient quelque crime, estimerent qu‟il fust quelque
chose de plus grand, & ayãt plus de puissance sur l‟ame, que nous autres.
Parquoy ils luy disoient Morbicha, c‟est à dire Seigneur, fais que nous ne
mourions point, & te prious d‟auoir pitié de nous & de nous enfans (...)
D‟autres d‟entre ces Sauuages qui estoient les plus meschans, donnoient
consiel à leurs compaignõs de tuer le Gouuerneur: ce qui se faisoit par
117
l‟instinct de quelque meschant d‟entrenous: mais les conseils & complots furent
descouuerts par vn Sauuage mesme, lequel en aduertist vn des noz gens, qui
entretenoit sa fille, chose qui auoit esté estroitement defenduë par nous autres,
pour n‟estre honneste, que le fidelle s‟accouple auec l‟infidelle: & disoient ces
entrepreneurs, que noz Cheripicouares, sçauoir noz ames, estoient meschantes,
& qui auec leur peché estoient cause de leur mort” (1575: 909).
Febre pestilenta
Barré
Thevet
Estratégia de defesa
Permanecer na ilha e não
no continente
Dizer aos índios que era
amigo de Tupã
A conspiração contra Villegagnon:
Como aludiu Thevet, no depoimento sobre a febre pestilenta, outro incidente ocorreu em
1556: uma tentativa por parte dos franceses de matar Villegagnon. Barré conta que
no dia 4 de fevereiro de 1555, descobrimos que todos os cerca de
trinta artesãos e trabalhadores que tinham vindo da França, estavam
conspirando contra Villegagnon e nós, não mais que oito que o defendiam.
Soubemos que a conspiração tinha sido liderada por um tradutor, que
tinha sido dado a Villegagnon por um nobre normando, que tinha vindo
junto com ele. Esse tradutor estava amancebado com uma selvagem, com
quem ele não queria casar tampouco abandonar. Ora, Villegagnon, no
início, governou como homem de bem e temente a Deus. Ele defendia que
nenhum homem poderia se juntar a essas cadelas selvagens sem se casar,
do contrário, seria condenado à morte (...) O tradutor não querendo deixar
sua meretriz para ter uma vida superior, viver como homem de bem e em
118
companhia dos cristãos, primeiro propôs envenenar Villegagnon e a nós,
mas um de seus companheiros o dissuadiu.
Então, ele se dirigiu aos artesãos e trabalhadores, que ele sabia que
viviam se lamentando pelos trabalhos excessivos e por estarem mal
alimentados (...) propôs a eles liberdade e riquezas e uma vida de prazer
junto aos selvagens. Eles logo concordaram e, de imediato, quiseram
incendiar os explosivos que estavam dentro de um celeiro feito às pressas,
sobre o qual nós dormíamos. Entretanto, alguns foram contra, pois assim
perder-se-ia todas as mercadorias e móveis, ter-se-ia mais a perder do que
a ganhar.
Concluíram que nos saqueariam e cortariam nossa garganta
quando estivéssemos dormindo. Todavia, encontraram dificuldade quando
tentaram seduzir três escoceses da guarda pessoal de Villegagnon, pois
estes, quando souberam dos planos, vieram me advertir e contaram tudo.
Imediatamente repassei a Villegagnon e aos meus companheiros e
prontamente prendemos quatros dos principais conspiradores, na frente de
todos. Mas o líder não estava lá. No dia seguinte, um dos presos, com
determinação, conseguiu chegar perto da água e se afogou, outro foi
estrangulado. Alguns foram feito escravos e o resto parou de resmungar e
começou a trabalhar mais do que antes. O líder tradutor (uma vez que não
estava mais lá) foi avisado que seu plano tinha sido descoberto. Ele não
retornou mais. Está hoje entre os selvagens, onde perverteu a todos os
outros 25 tradutores que estão e que fazem e dizem as piores coisas que
podem para nos impressionar e nos fazer voltar para França
le quatrieme jour de feburier mil cinq cents cinquante six, nous
decouurismes vne coniuration faicte par tous les artisans et manouuriers
qu‟auions amenez, qui estoient au bre d‟vne trentaine: contre monsieur de
Villegaignõ, et tous nous autres qui estiõs auec luy, qui n‟estions que huict de
deffese. Nous auons sceu que ce auoit esté conduict par un truchement, lequel
auait esté donné audict seigneur par vn gentilhomme normand, qui auoit
119
accompagné ledict seigneur iusques en ce lieu. Ce truchemẽt estoit marié auec
vne femme sauuage, laquelle il ne voulait ny laisser ne la tenir pour femme. Or
ledict seigheur de Villegaignon, en son commencement regla sa maison en
hõme de bien, et craignant Dieu: deffendãt que nul hõme n‟eust affaire à ces
chienes sauvages, si l‟on ne les prenoit pour femmes, et sur peine de mort. (...)
Pourtant luy faisait mal de delaisser sa putain, et vie supérieure, pour viure en
homme de bien, et en cõpagnée de chrestiens. Primierement proposa
d‟empoisonner monsieur de Villegaignon, et nous aussi: mais vn de ses
compagnons l‟en destourna. Puis s‟adressa à ceux des artisans et manouuriers,
lesquels il congnoissoit viure en regret, en grand travail, et à peu de nourritue.
(...) leur proposant la grande liberté qu‟ils auraient, et les richesses aussi par
apres, desquelles donneraient aux Sauuages en abandon, pour viuure à leur
désir. Lesquels voluntairement s‟accorderent, et à la chaude voulurent mettre
le feu aux poudres, qui auoient esté mises dans vn cellier faict légèrement, sur
lequel nous couchions tous: mais aucuns ne le trouuerent pas bon, parce que
toute la marchandise, meubles, et ioyaux que nous auions, eussent esté perduz,
et n‟y eussent rien gaigné. Ils conclurent donc entre eux de nous venir
saccager, et couper la gorge, durant que nous serions en nostre premier
somme. Touteffois, ils trouuerent vne difficulté, pour trois Escossois qu‟auoit
ledict seigneur pour sa garde: lesquels s‟efforcerent pareillement seduire. Mais
eux, après auoir congneu leur mauuais vouloir, et la chose estre certaine, m‟en
vindrent auertir, et decelerent tout le faict. Ce que soudainement ie declaray
audict seigneur, et à mes compagnons pour y remedier. Nous y remediames
soudainemẽt, en prenant quatre des principaux, qui furent mis à la chaisne et
aux fers deuant tous: l‟autheur n‟y estoit pas. Le lẽdemain, l‟vn de ceux qui
estoient aux fers, se sentant conuaincu, se traisna pres de l‟eaue, et se noya
miserablement: vn autre fut estranglé. Les autres seruent ores comme esclaues:
le reste vit sans murmure, trauillant beaucoup plus diligemmẽt qu‟au parauant.
L‟autheur truchemẽt (parce qu‟il n‟y estoit pas) fut auerty que son affaire auoit
esté descouuerte. Il n‟est retourné du depuis à nous: il se tient maintenãt auec
les sauuages: lequel a desbauché tous les autres truchements de ladicte terre,
120
qui sont au nombre de vingt ou vingt et cinq: lesquels font et disent tout du pis
qu‟ils peuuent, pour nous estonner, et nous faire retirer en France(1556:113-
115).
Villegagnon também se referiu ao episódio na carta que enviou a Calvino no dia 31 de
março de 1557:
eis como escapamos do perigo. Chamei cinco dos meus soldados
particulares e parti para cima deles. O terror tomou conta dos conjurados,
de modo que, sem perdão, quatro instigadores do crime, que tinham sido
denunciados, foram capturados e presos. Em seguida a esse fracasso, os
outros, apavorados, baixaram as armas e se esconderam. No dia seguinte,
retiramos da prisão um dos homens para que ele pudesse pleitear sua
defesa mais livremente. Ele, porém, se precipitou em direção ao mar e se
afogou.
Os outros prisioneiros quando solicitados a fazer o mesmo,
expuseram espontaneamente aquilo que o denunciador nos havia dito. Um
deles, que havia sido punido por mim um pouco antes, porque tinha se
unido a uma meretriz, demonstrou espírito particularmente deplorável, e
concluímos que ele tinha sido o instigador da conspiração e também tinha,
com presentes, se unido ao pai da meretriz para sal-la do nosso domínio,
caso eu tentasse impedir que ele mantivesse a união com ela. Ele expiou o
seu crime na forca.
Livramos dessa condenação os outros dois culpados para que eles
trabalhassem na terra, presos às correntes. Achei que não deveria
questionar a falta dos outros, apesar do medo de deixar passar sem
punição o crime, para não ser obrigado a castigar, uma vez que a
responsabilidade do crime era de muitos, e, se assim tivesse procedido, não
haveria mais ninguém para continuar o empreendimento para nós
121
voici comment nous avons échappé au danger: j‟ai appelé cinq de s
domestiques aux armes et j‟ai commencé à m‟avancer ver eux. Alors une telle
terreur s‟empara des conjurés et un tel trouble que, sans aucune peine, les
quatre instigateurs du crime qui m‟avaient éte dénoucés furent saisis et mis aux
fers. A la suite de cet échec, les autres, effrayés, ayant déposé les armes, se
cachèrent. Le lendemain, nous délivrâmes de ses chaînes l‟un des prisonniers
pour qu‟il pût plaider sa cause plus librement. Mais il se précipita dans la mer
dans une course désordonnée et se noya. Les autre prisonniers, lorqu‟ils furent
délivrés de leurs liens pour plaider leur cause, exposèrent spontanément, sans
question, ce que nous avions appris par le dénonciateur. L‟un d‟entre eux, qui
avait été puni par moi peu avant parce qu‟il s‟était uni à une prostituée, fut
reconnu d‟un esprit particulièrement déplorable et on apprit qu‟il avait été
l‟instigateur de la conjuration, qu‟il s‟était attaché par des présents le père de
la prostituée pour l‟arracher à notre pouvoir au cas je tenterais d‟empêcher
tout commerce avec la prostituée. Il expia ce crime par la pendaison. Nous
avons fait grâce aux deux autres coupables, à cette réserve près qu‟ils devaient
travailler la terre avec des chaînes. Je n‟ai pas pensé devoir rechercher en quoi
tous les autres avaient fauté de peur que je ne laisse passer sans le punir un
crime reconnu et pour ne pas être amené à châtier alors que le crime
concernait toute une foule: si je l‟avais fait il ne serait resté personne pour
continuer l‟oeuvre entreprise par nous” (1557 - 1991: 141-142).
Um panfletista anônimo narrou o episódio da seguinte forma:
Os artesãos, como previ, pessoas de pouco valor (...) a maior parte
saudável e bem disposta (...) tinha feito um complô e reunido aqueles que
consideraram dignos de serem admitidos no conselho de tal
empreendimento. Eles debateram qual seria a maneira que poderiam
evitar o fardo de servidão que lhes havia sido imposto, contrário a todas as
leis civis e humanas. Alguns tinham a convicção que eles deveriam se
retirar e ir viver com os selvagens, nada mais; outros pensavam o
122
contrário, a saber, que deveriam se render aos portugueses que moravam
bem perto de lá. Os que representaram a pluralidade das opiniões, que
frequentemente supera a melhor, não aprovaram nenhuma dessas duas
opiniões, pois pareceu-lhes pouco vantajosas para conseguir uma liberdade
plena.
Assim, um entre eles, o mais audacioso, advertiu-lhes que seria
excessivo deixar que Villegagnon e aqueles que o defendiam vivessem mais
tempo.
Eles escolheram o dia da execução e a senha: espionariam
Villegagnon em um domingo, sem serem percebidos, quando cada um fosse
para sua casa. Uma coisa parecia prejudicar-lhes e impedir o projeto, a
saber, três soldados escoceses que faziam a guarda de Villegagnon. Eles
tentaram cooptá-los, de modo a evitar obstáculos à façanha que tinham
proposto realizar. Porém, quando os soldados escoceses foram
comunicados, fingiram que tinham aprovado o ato, alegando várias
grosserias que eles tinham recebido de Villegagnon, tanto na França, como
durante a viagem. Dissimulados desta forma, os soldados escoceses se
informaram de toda verdade, do dia, da hora, dos meios e dos mplices,
para poderem fazer um relato acurado.
Devidamente instruídos, acharam o ato muito desumano, indigno de
ser realizado; dirigiram-se a um dos mais próximos de Villegagnon (...) a
fim de adverti-lo, e fazer com que o plano pudesse ser remediado, o que
faria com que fossem lembrados pela posteridade. Quando Villegagnon foi
noticiado, juntou os que estavam do seu lado, armou-os e prendeu quatro
dos principais conspiradores, sendo que deu punição exemplar a um deles,
de modo que os outros o obedecessem. Dois foram presos e acorrentados.
Eles trabalharam nas obras públicas durante certo tempo. Tal foi o fim
dessa maravilhosa conjuração
Les artisans, comme i‟ay predit, gens de petit consideration (...) la pl
9
part sains & dispos (...) Parquoy ayans fait vn cõplot entre eux, & assemblé
123
ceux qu‟ils estimoyẽt dignes d‟estre admis au conseil d‟vne telle entreprise,
cõsulterent ensemble par quel moyen ils pourroyent euiter le cruel ioug de
seruitude qu‟on leur vouloit imposer contre toutes loix ciuiles & humaines.
Aucuns estoyẽt d‟opiniõ de foy retirer auec les naturels habitans de la terre,
sans entreprendre plus outre: les autres estoyẽt d‟opinion cõtraire: assauoir
que plustost ils se deuoyent rédre aux Portugalois qui habitent bien pres de là:
aucuns qui furent la pluralité des voix, qui souuente sois surmonte la meilleure,
n‟approuuerẽt les deux susdites opinions, veu qu‟elles leur sembloyẽt peu
auantageuses pour obtenir pleine & entiere liberté. Par ainsi vn entre les
autres, le plus audacieux, leur remonstra qu‟ils s‟abusoyent grandement, s‟ils
saissoyent longuement viure Villeg. & tous ceux qui le voudroyent defendre.
Le iour auquel l‟execution se deuoit accõplir, fut assigné, le mot du guet
donné: ils espierent iceluy fort à propos en vn Dimanche, lors qu‟vn chacun
s‟estoit retiré en sa maison sans aucune deffiance. Vne chose leur sembloit
nuire & empescher leurs dessein, c‟est assauoir trois soldats Escossois, qui
estoyent de la garde de Villeg. Ils tenterent de les induire à leur deuotion, afin
d‟auoir moins de nuisance & empeschement à l‟exploit de ce qu‟ils auoyent
proposé. Or les soldats Escossois en estants auertis, font semblat d‟approuuer
tel acte, allegans beaucoup de rudesses qu‟iceux aouyent receuës dudit Villeg.
tant en Frãce, que sur le voyage. En ceste dissimulation lesdicts Escossois
s‟informent diligemment de la verité, du iour, de l‟heure, du moyen & des
complices, pour faire le rapport plus certain. Estans deuëment instruits,
iugerent l‟acte trop inhumain, & indigne d‟estre celé: partant s‟adresserent à
vn des plus familiers dudit Villeg. (...) afin qu‟en estát aduerti, on y peust mettre
tel ordre, qu‟il en fust memoire à la posterité. Ainsi Villegaignñ aduerti,
ensemble tous ceux qui estoyẽt de bõ vouloir auec luy, s‟emparent des armes, &
saisisfent au corps quatre des principaux coniurateus, desquels on fit punition
exemplaire, pour retenir les autres en leur deuoir & estat: deux furent retenus
en prison aux chaines & fers, besongnans aux oeuures publics iusques à certain
temps. Telle fut la fin de celle malheureuse coniuration” (1561 -1565: A.iiii.7. -
B.i.1).
124
A versão de Thevet traz variações maiores. Ele escreveu:
esse forte de fato era suficiente para assegurar ao país selvagem a
defesa contra qualquer outro inimigo, caso o adversário não estivesse entre
nós, visto que, desses que se diziam cristãos, houve quem conspirasse
contra vida do capitão, assim como, outros que, junto com os Bárbaros,
queriam nos atacar e se apoderar dos nossos navios e riquezas. Mas tendo
isso sido descoberto, confirmado e provado por dois Flamengos que
confessaram a traição quando inquiridos, assim como o complô feito com
seis portugueses que havíamos resgatado das mãos desse povo rbaro,
que pouco tempo antes tinham sido pegos quando o destino os impediu de
ancorar no rio das Vazes, foi o motivo pelo qual nós fortificarmos o lugar
um ano e meio depois. (...) os culpados e líderes da traição foram punidos
de morte e se precipitaram, junto com os dois flamengos, no fundo do mar
ce fort veritablement estoit suffisant pour tenir le païs sauuage en
bride, & se deffendre de tout autre ennemy, si l‟aduersaire n‟eust esté parmy
nous mesmes, d‟autant que de ceux qui se disoient Chrestiens, il en y eut qui
conspirent contre la vie du Capitaine, d‟autres qui pratiquoient les Barbares,
pour nous les faire courir sus, & se rendre maistres des vaisseux & de la
richesse qui y pouuoit estre. Mais cecy estãt descouuvert, aueré, & prouué par
deux Flamans, qui confessoiẽt la trahison à la question qui leur fut donnee, &
le cõplot fait auec six Portugais, que nous auions recours des mains de ce
peuple Barbare, desquels peu de temps auparauãt ils auoient esté prins, la
furtune les ayant contraint d‟ancrer en la riuiere des Vazes, fut cause que ce
lieu fut par nous fortifié vn an & demy apres (...) les coupables du faict &
autheurs de la trahison furẽt puniz de mort & precipitez, auec les deux Flamãs,
au parfond de la mer” (1575: 908).
125
Léry, por sua vez, escreveu sobre Villegagnon e os conspiradores: por causa dos maus-
tratos que ele infligia antes que fôssemos àquele país, eles conspiraram para jogá-lo no
mar/ parce qu‟à cause du mauvais traitement qu‟il leur faisait avant que nous fussions en ce
pays-là, ils avaient conspiré entre eux de le jetter en mer” (1578 - 1992: 77).
Richer forneceu três nomes de pessoas punidas provavelmente por causa dessa
conspiração, segundo ele, Villegagnon
exercia uma crueldade desumana sobre seus servidores, os
mantinha presos por correntes. Notamos que ele queimava cruelmente um
Bárbaro que estava sob sua sujeição deixando cair as chamas ardentes
sobre seu corpo nu (...) Ele tinha também um alfaiate na sua prisão, que
antes havia sido seu criado, em relação a quem era muito cruel porque ele
tinha assistido às nossas prédicas. E ainda três outros cativos, a saber,
Roquan, Dodalle e Jean le Gras, os quais ele dizia terem conspirado conta
sua majestade antártica
exerçoit inhumaine cruauté enuers ses seruiteur, qu‟il tenoit du
rementz liez de chaines. Nous apperceumes vn Barbare de sa subiection, lequel
de sa main mesme il brusloit cruellement, en laissant tomber les flãmes
ardentes sur sa chair nue (...) il auoit aussi vn Tailleuer en ses prisons, qui
premierement auoit esté son domestique, enuers lequel il vsoit d‟vne grande
cruauté, pource qu‟il auoit assisté à noz saintes predicatiõs, & encores trois
autres qu‟il tenoit captifs, à sçauoir, Roquan, Dodalle, & Iean le Gras, lesquels
il disoit auoir cõspiré contre sa maiesté Antartique” (1561: 29).
Conspiração
Barré
Villegagnon
Panfletista
anônimo
(1561-1565)
Thevet
Léry
Motivo
Concubinato
Maus-tratos
Os
Maus-tratos
126
de um
truchement
com uma
índia e
maus-tratos
(excesso de
trabalho e
fome)
truchements,
dois
flamengos,
seis
portugueses e
os
trabalhadores,
queriam se
apossar da
ilha
Plano
1º)
Envenenar
Villegagnon.
2º) Incendiar
a ilha.
3º) Cortar a
garganta de
Villegagnon.
1º) Ir viver
com os
selvagens.
2º) Entregar-
se aos
portugueses.
3º) Matar
Villegagnon.
Afogar
Villegagnon
Punição
O líder
fugiu;
quatro dos
principais
foram presos
com ferros;
um suicidou-
se no mar,
outro foi
estrangulado,
e os outros
dois
tornaram-se
Quatro
foram presos
com ferros, o
truchement
foi
estrangulado,
um suicidou-
se no mar, e
os outros
dois
tornaram-se
escravos.
Quatro
foram presos
e sofreram
punição
exemplar.
Afogamento
127
escravos.
A chegada dos calvinistas à França Antártica:
De acordo com Léry,
Depois que Bois-le-Comte, o sobrinho de Villegagnon, que estava
em Honfleur antes de nós, equipou para guerra, à custa do rei, três belos
navios com víveres e outras coisas necessárias à viagem, no dia 19 de
novembro, nós embarcamos. Bois-le-Comte, que estava com cerca de 80
pessoas, entre as quais, soldados e marinheiros, em um navio chamado
Petit-Roberge, foi eleito vice-almirante. Embarquei em um outro navio
chamado Grand Roberge, onde éramos ao todo 120 pessoas
Après donc que le sieur de Bois-le-Comte, neveu de Villegagnon, qui
était auparavant nous à Honfleur, y eut fait équiper en guerre, aux dépens du
Roy, trois beaux vaisseaux; fournis qu‟ils furent de vivres et d‟autres choses
nécessaires pour le voyage, le dix-neuvième de novembre nous nous
embarquâmes en iceux. Ledit sieur de Bois-le-Comte avec environ octante
personnes, tant soldats que matelots étant dans l‟un des navires, appelé la
Petite Roberge, fut élu notre Vice-Admiral. Je m‟embarquai en un autre
vaisseau nommé le Grand Roberge, nous étions six vingts en tout(1578 -
1992: 41).
Além de Léry, havia outros 13 calvinistas: Philippe Du Pont de Corguilleray, Pierre
Richer, Guillaume Chartier, Pierre Bordon, Matthieu Vernevie, Jean du Bordel, André la Fon,
Nicolas Denis, Jean Gardien, Martin David, Nicolas Raviquet, Nicolas Carmeau e Jaques
128
Rousseau (Léry 1578 - 1994: 111n.)
36
. Segundo Villegagnon, foram 15 que vieram me
encontrar no Brasil, todos instruídos em Genebra e Lausanne / quinze qui me vindrent
trouuer au Bresil tous instituez à Genesue & à Losane (1561a: 12).
De acordo com Léry, o terceiro navio chamava-se Rosée, e nele estavam
seis jovens, que nós levamos para aprender a língua dos Selvagens
e cinco moças acompanhadas por uma governanta (foram as primeiras
francesas levadas ao Brasil. Os Selvagens, como veremos mais à frente,
jamais tinha visto mulheres vestidas e por isso ficaram muito espantados
quando elas chegaram), havia em torno de noventas pessoas
six jeunes garçons, que nous menâmes pour apprendre le language des
Sauvages, et cinq jeunes filles avec une femme pour les gouverner (qui furent
les premières femmes françaises menées en la terre du Brésil, dont les
Sauvages dudit pays, ainsi que nous verrons ci-àpres, n‟en ayans jamais vu
auparavant de vêtues, furent bien ébahis à leur arrivée), il y avait environ
nonante personnes” (1578 - 1992: 41).
Em um primeiro momento, Léry conta que:
desejando chegar o mais rápido possível, não permanecemos como
gostaríamos muito tempo em Cabo Frio. Assim, no final da tarde desse
mesmo dia, equipamos o navio, levantamos as velas e singramos tão bem,
que no domingo, 7 de março de 1557, afastamo-nos à esquerda, do lado
leste, do alto-mar, e entramos na baía e no rio salgado, chamado
Guanabara pelos selvagens e Janeiro pelos portugueses
36
Um panfletista anônimo informa que: l‟vn nom M. Pierre Richer aagé de 50 ans, l‟autre s‟appeloit M.
Guillaume Chartier de l‟aage de 30 ans” (1561 - 1565: B.ii1).
129
ne sirant rien plus que d‟y arriver au plus tôt, à cause de cela nous
ne fîmes pas si long séjour au Cap de Frie que nous eussions bien voulu. Par
quoi dès le soir de ce même jour ayans appareillé et fait voiles, nous cinglãmes
si bien que le Dimanche septième de Mars 1557 laissans la haute mer à
gauche, du côté de l‟Est, nous entrâmes au bras de mer, et rivière d‟eau salée,
nommée Ganabara par les sauvages, et par les Portugais Genèvre (1578 -
1992: 65).
No entanto, logo em seguida, ele afirma: “nossa chagada, que foi numa quarta-feira, 10
de março de 1557/ notre arrivée, qui fut un mercredi dixième de Mars 1557” (1578 - 1992:
168).
Assim que os calvinistas chegaram, segundo Richer, Villegagnon:
no começo do mês de março, em 1556, tendo nos buscado e nos
convidado com preces fervorosas, após longa e perigosa navegação, nos
recebeu na sua ilha de Coligny, mais humanamente do que se poderia
esperar de um animal tão cruel, (...) e nos fez deixar o porto e nossos navios
para nos receber
au commencemnt du moys de Mars, en l‟an mil cinq cens cinquante &
six, nous ayant faict chercher & inuiter par abondantes prieres, apres longues,
& dangereuses nauigations, il nous receut en son Isle de Colligne plus
humainement qu‟on ne deuoit esperer d‟vne telle, & tant cruelle beste (...) &
no
9
faisãt laisser le port & noz Nauires, pour nous receuoir” (1561: 23).
Sobre esses primeiros dias, Villegagnon escreveu a Calvino: não sei se é possível
expressar a alegria que sua carta me trouxe, assim como os irmãos que vieram com elas (...)
a chegada dos irmãos me consolou / je ne pense pas que puisse être exprimée quelle joie ta
130
lettre m‟a causée, ainsi que les frères qui sont venus jusqu‟à moi en même temps (...) l‟arrivée
des frères m‟a soulagé” (1557 - 1991: 139-140).
Léry, por sua vez, escreveu sobre a recepção inicial de Villegagnon:
Quanto a mim, (ele disse), tendo muito tempo, e de todo meu
coração desejado tal coisa, recebo-vos de boa vontade nessas condições,
mesmo porque quero que nossa Igreja tenha o renome de ser a mais bem
reformada de todas e, desde já, exijo que os vícios sejam reprimidos, a
suntuosidade das vestimentas reformada, em suma, que tudo aquilo que
poderia impedir de servir a Deus, seja suprimido do meio nós
Quant à moi (dit-il), ayant voirement s longtemps, et de tout mon
coeur desiré telle chose, je vous reçois très volontiers à ces conditions; mêmes
parce que je veux que notre Eglise ait le renom d‟être la mieux réformée par-
dessus toutes autres, dès maintenant j‟entends que les vices soient réprimés, la
somptuosité des accoutrements réformée, et en somme, tout ce qui nous
pourrait empêcher de servir à Dieu ôté du milieu de nous” (1578 - 1992: 67).
Ainda sobre esse momento inicial, Richer escreveu:
após render graças a Deus pela ventura da nossa navegação,
Durand nos abraçou com lágrimas e nos levou aos nossos abrigos. No dia
seguinte às preces públicas, que tínhamos o costume de fazer, realizamos
um sermão sobre o Salmo 27, que foi recebido com contentamento e prazer
por todos, principalmente por Villegagnon
apres graces rendues à Dieu, pour nostre nauigation heureseusement
accomplie, Durand nous ambrasse en plorant, & nous conduict en nostre logis.
Le lendemain apres les publiques prieres, comme nous auons accoustumé de
faire, par nous fut fait vn sermon sur le vingtseptieme Psalme, auec grand
131
plaisir & contentement de toute l‟Assemblee, & pricipalement de Villegaignon
(1561: 25).
Segundo Léry, Villegagnon reuniu todos em uma pequena sala no meio da ilha, onde os
Salmos 5 e 27 foram cantados por todos. O fato de Villegagnon tê-los acompanhado, os agradou
muito (1578 - 1994: 162-163). A ponto de “Pierre Richer, nosso ministro mais velho, a fim de
nos incentivar, disse que nós tínhamos encontrado um segundo São Paulo em Villegagnon/
maître Pierre Richier notre plus ancien Ministre, afin de nous accourager davantage, disait que
nous avions trouvé un second saint Paul en Villegagnon” (Léry 1578 - 1992: 69).
De acordo com Richer,
quando apresentamos nosso pensamento ao rei de Coligny, ele,
subitamente, com lágrimas copiosas, elevando os olhos ao céu disse: eu,
miserável e estrangeiro, rendo-te graças, Pai celeste, por ser digno de
receber tamanho benefício, o envio, a esse local solitário, de profetas santos
e puros, como és santo e puro, para compartilhar sua doutrina celeste. Que
possas clarificar nosso entendimento e colocar o espírito de sua sapiência
em nossos corações, para que nos sirva de regramento e moderação. Seja
testemunho, oh grande Deus, de quanto desejo afetuosamente me dedicar a
sua Igreja, a fim de que, pela e pelas santas operações, eu possa agradar
a Jesus Cristo, que nos une a ti, em algum lugar onde somos por ti
dispersados
quand nous eumes descouuert nostre pensee au Roy de Colligne,
soudainement auec copieuses larmes seintes
37
en leuãt les yeux au Ciel, il va
dire ainsi: Ie te tend graces, pere celeste, qui à moy miserable & estrange as
daigné faire vn si grand benefice, d‟enuoyer en ces lieux solitaires prophetes
pour sainctement & purement, cõme tu es sainct & pur, nous repaistre de ta
37
Outra opção de tradução para essa palavra pode ser: verdadeiras, ou sentidas.
132
celeste doctrine, moyẽnant que tu nous ouures l‟entendement, & que tu
colloques l‟esprit de ta sapience en noz cueurs, qui nous serue de regime &
moderation. Sois moy tesmoing, ô treshaut Dieu, combien ie desire
affectueusement me dedier à tõ Eglise, à fin que par foy, & par sainctes
operations ie te puisse complaire par Iesus Christ, qui nous assemble & unit à
toy, en quelque lieu que nous sayons par toy dispersez” (1561: 24).
Na carta a Calvino, Villegagnon contou que quando os calvinistas chegaram: eles me
encontraram constrangido a ponto de ter de acumular as funções políticas e eclesiásticas.
Isso me trouxe muita inquietude. Eu gostaria de ter sido poupado desse tipo de vida, mas
era preciso assumir/ ils m‟ont trouvé réduit à ce point que je suis obligé d‟assurer le
gouvernement et de me charger du ministère ecclésiastique. Or cette chose m‟avait causé la plus
grande inquiétude. Ozias m‟avait détourné de ce type de vie, mais il fallait l‟assumer(1557 -
1991: 139).
Provavelmente foi por este motivo que, como diz Léry, na primeira semana que os
calvinistas chegaram, Villegagnon “não apenas consentiu, como também estabeleceu essa
regra: a saber, que além das preces públicas que eram feitas sempre no fim da tarde depois
de terminado o trabalho, os ministros rezariam duas vezes no domingo e todos os dias úteis
durante uma hora / non seulement consentit, mais lui même aussi établit cet ordre, à savoir,
qu‟outres les prières publiques, qui se faisaient tous les soirs après qu‟on avait laissé la besogne,
les Ministres prêcheraient deux fois le dimanche, et tous les jours ouvriers une heure durant
(1578 - 1992: 69).
Já na França, Villegagnon escreveu no prefácio ao leitor das Propositions:
sabendo Calvino que eu, que o tinha conhecido no passado, tinha
ido para o Brasil com a intenção de ali plantar a palavra de Deus, enviou-
133
me, em seu nome e no de Genebra, os ministros mais sábios que existiam, e,
junto com eles, alguns artesãos que vieram munidos de todos os livros de
Calvino (...). Quando eles chegaram, se ornamentaram com um belo título:
se nomearam a Igreja reformada. Por isso, foram recebidos por mim da
forma mais humana possível, pois achei que eles seriam úteis ao meu
empreendimento
sçachãt maistre Iehã Caluin, que i‟estoye allé au Bresil, en intention
d‟y planter la parolle de Dieu, meu de nostre ancienne cognoissance, m‟enuoya
tant en son nom, que de la ville de Genesue, des Ministres de sa doctrine, des
plus sçauans qui se peurent trouuer, auec quelques artisans, lesquels vindrent
muniz de tous les liures dudict Caluin (...) Eulx arriuez s‟ornérent d‟ung fort
beau tiltre. Ils se nommoyent l‟Eglise reformee. Au moyen de quoy furẽt de moy
receuz le plus humainemẽt qu‟il me fut possible, cuidant qu‟ils me fussent utiles
à mon entreprinse” (1560 - 1562: 8).
Segundo Reverdin,
dans la lettre qu‟ils adressèrent à Calvin le 1
er
avril, soit un peu plus
de trois semaines après leur arrivée, Richier et Chartier écrivent: „Nous avons
trouvé Nicolas Villegagnon, sur l‟Ile Coligny, tel un père, et un frère, que le
ciel y aurait mis pour nous accueillir. Père parce que nous a embrassés
commes ses fils, qu‟il nous nourrit et nous réchauffe: frère parce qu‟avec nous
il invoque notre seul Père céleste, Dieu‟”
38
(1957: 39).
Contudo, segundo o mesmo autor,
dans une autre lettre, écrite la veille, soit le 31 mars, par Richier à un
destinataire inconnu, nous lisons que Villegagnon, le jour même de l‟arrivée
des Genevois, aurait exigé que l‟on prêchât publiquement la Parole de Dieu; la
38
Opera Calvini, lettre n.º 2613.
134
semaine suivante, il aurait participé à un service de Sainte Cène
39
(1957: 39-
40).
Data da chegada dos
protestantes à França
Antártica
Richer
Léry
Março de 1556
7 de março 1557 / 10 de
março
A controvérsia sobre a Eucaristia:
De acordo com Richer, uma semana depois que os calvinistas chegaram,
no dia escolhido, nos reunimos para Comunhão. Quando o sermão
terminou (...) Durand, ao nos ver discutindo com Hector, foi por duas vezes
dissimulado, ao dizer: não posso pacificar essa controvérsia entre vocês,
mas ordeno que se adira a opinião de Calvino, pois acredito que tenha sido
apenas ele que muito tempo, e mais profundamente, soube penetrar o
mistério das coisas santas e tratar a doutrina sagrada. Mas, depois de tal
resolução, ele foi se divertir em outro lugar e começou a não trabalhar
mais conosco segundo a fé, de modo que foi fácil reconhecer que éramos
para ele desagradáveis e odiosos
au jour assigné, nous sommes assemblez pour la Cene, le sermon finy,
(...) Durand toutefois nous oyant disputer auecque Hector, dissimula deux fois,
en disant: Ie ne puis pacifier & accorder ceste controuerse entre vous, mais ie
commande qu‟on adhere à l‟opinion & sentence de Caluin, car à mon iugement
39
Opera Calvini, lettre n.º 2609.
135
c‟est celuy seul, qui des long tẽps, le plus profondement a penetré les choses
saintes, & traicté de la sacree doctrine. Mais apres tels propos, il fut diuerty
ailleurs, & commencea de ne besongner auecques nous selon la foy, de sorte
qu‟il estoit facil de cognoistre que nous luy estions odieux & molestes(1561:
25-26).
Ainda segundo o pastor, Du Pont foi conversar com Villegagnon e Hector (Bolés)
40
,
quando este último:
vomitou a seguinte blasfêmia: se vocês invocam apenas as
escrituras da Bíblia, vocês trabalham em vão, pois isso é não saber nada,
porque tais escritos tomam diversos sentidos que devemos conhecer por
meio dos escritos dos sábios da Antiguidade. Quando respondemos com
liberdade e dignamente às coisas ditas por Hector, Durand nos repeliu e
começou a mostrar sua inimizade contra s, a nos injuriar e a nos
molestar de diversas maneiras. Ele passou a realizar os sermões cotidianos,
a fim de que os seus não fossem afastados dos afazeres diários, à exceção
dos domingos, quando o sermão tinha apenas meia hora de duração, sob a
condição de que os ministros não blasfemassem a ociosidade, a
prodigalidade e os abusos do Papa, dos prelados e dos monges
va vomir le blaspheme qui s‟ensuyt: si vous n‟alleguez autre chose que
les escritures de la Bible, vous travaillez en vain, car cela c‟est ne sçavoir rien,
pource que tels escrits se tournent en divers sens, dont nous y debuons estre
instruicts de long usage & coustume, & par les escrits des hommes sçavans.
Quand grauement & librement nous respondons à ces dicts prononcez par
Hector, Durand nous deboute, & depuis commencea de descouurir contre nous
son inimité, nous iniurier, & en diuerses manieres molester, & par lui furent
defendus les sermons quotidians, à fin que les siens ne fussent diuertis de leur
40
Como será visto no Capítulo 4, Jean de Bolés é chamado assim pelos portugueses; é chamado Hector por Richer,
Cointa por Jean de Léry e Cointat pelos panfletistas anônimos e por Villegagnon.
136
ordinaire besongne, excepté le jour du Dimanche, ou le sermon ne durast que
demie heure, soubs ceste condiont, que les Ministres ne blasmeroyent
l‟oysiueté, la prodigatité, & abus du Pape, des Euesques, & de Moynes(1561:
26-27).
Dirigindo-se a Calvino, numa resposta aos calvinistas,Villegagnon negou que tivesse
impedido a pregação da doutrina. Segundo ele,
eu quis colocar à prova vossa doutrina, tendo comigo durante dez
meses inteiros seus ministros vivendo na religião de Genebra, pregando
todos os dias com toda liberdade que quiseram. Ordenei que fossem
custeados em todas as suas necessidades, mas eles se mostraram tão
incertos e irresolutos que não conseguiram coisa alguma, onde havia
aparência de verdade
i‟ay voulu faire preuue de vostre doctrine, ayant eu auec moy dix mois
entiers vos Ministres, viuans en la Religion de Geneue, preschans tous les iours
en toute la liberté qu‟ilz voulurent apporter, car i‟auois dõné charge de les
defrayer de tout ce qu‟ilz vouldroient demander, ou ie les trouuay si incertains,
& irresoluz ~q ie n‟en ay peu tirer aucune chose, ou il y eust seulement
apparẽce de verité” (1561a: 162).
No domingo, 21 de março, foi celebrada a primeira missa desde a chegada dos calvinistas.
Foi nesse momento, conta Léry, que Jean de Bos, antes de comungar, foi convidado a fazer a
confissão pública de sua fé, quando abjurou o papismo. Em seguida, Villegagnon se levantou e
disse que todos os outros que ainda não tinham professado a religião reformada, não estavam
capacitados a tal mistério e, assim, os fez saírem para que não vissem o pão e o vinho serem
administrados. Depois, Villegagnon, de joelhos, fez duas orões em voz alta. Léry transcreveu
essas orações palavra por palavra (com a pia que obteve) e comentou que no final delas
137
Villegagnon se ajoelhou para receber a hóstia. De acordo com Lestringnat, l‟agenouillement est
perçu par ry comme un vestige du „papisme‟ (1578 - 1994: 167n.). Lestringant também
esclarece que dans la Cène huguenote, les espèces, d‟ordinaire, circulent de main en main
parmi les fidéles et ne sont pas reçues, comme ici, des propres mains du ministre(1578 - 1994:
175n.).
Nas orações de Villegagnon, segundo Léry, há uma passagem em que ele diz: assim
como a carne terrestre por meio do calor do estômago se converte em sangue e alimento do
corpo, queria nutrir e sustentar nossas almas com a carne e o sangue de seu Filho, até que
nós nos tornemos um / Et ainsi que la viandre terrestre par la chaleur de l‟estomac se
convertit en sang et nourriture du corps: veuille nourrir et sustenter nos âmes de la chair et du
sang de ton Fils, jusqu‟à le former en nous, et nous en lui” (1578 - 1992: 71).
Lestringant fez o seguinte comentário a respeito: cette formulation est assez vague pour
que l‟on ne pense pas que Villegagnon souscrive ici au dogme de la transsubstantiation. La chair
et le sang du Christ sustentent l‟âme‟ et non le corps du fidèle, en accord avec l‟interprétation
spirituelle de Calvin et de Bèze (1578 - 1994: 171n.). nos comentários de Léry sobre o
comportamento de Villegagnon e de Bolés, ele afirma que ambos, apesar de terem abjurado ao
papismo, não obstante tinham mais vontade de debater e de contestar do que de aprender e
aproveitar, logo não demoraram a fomentar disputas sobre a doutrina / avaient néanmoins
plus d‟envie de débattre et contester que d‟apprendre et profiter; aussi ne tardèrent-ils pas
beaucoup à émouvoir des disputes touchant la doctrine” (1578 - 1992: 72)
41
. E também que:
41
Em nota à essa passagem, Lestringant comentou: a dispute sur l‟Eucharistie est cruciale: c‟est elle qui, dans la
France des années 1560-1562, empêchera l‟„union‟, espérée par Catherine de Médicis et le chancelier Michel de
L‟Hospital, entre les catholiques et protestants. La rupture sur ce point sera consommée lors du colloque de Poissy,
de septembre à novembre 1561 (1578 - 1994: 175n).
138
apesar de eles rejeitarem a transubstanciação da Igreja romana
como uma ideia que eles diziam abertamente ser grosseira e absurda, e de
também não aprovarem a consubstanciação, não consentiam que os
ministros ensinassem e provassem, com a palavra de Deus, que o pão e o
vinho não se transformavam, realmente, no corpo e no sangue do Senhor
combien qu‟ils rejetassent la transsubstantiation de l‟Eglise Romaine,
comme une opinion laquelle ils disaient ouvertement être fort lourde et
absurde, et qu‟ils n‟approuvassent non plus la Consubstantiation, si ne
consentaient-ils pas pourtant à ce que les Ministres enseignaient et prouvaient
par la parole de Dieu, que le pain e li vin n‟étaient point réellement changés au
corps et au sang du Seigneur” (1578 - 1992: 73).
A primeira concepção da Eucaristia, a transubstanciação é um dogma para os católicos, a
consubstanciação é luterana e os calvinistas rejeitam ambas. Para eles, a Eucaristia é espiritual, e
um bom exemplo disso é a discussão que surgiu na França Antártica, quando os calvinistas
estavam vivendo entre os Tupinambá no continente, sobre a possibilidade de celebrar a missa
com outra bebida na ausência de vinho. Léry narrou assim o episódio:
E porque após a última Comunhão que realizamos naquele país,
não nos restava mais do que um copo de todo vinho que tínhamos trazido
da França, não havendo jeito de conseguir outro, a seguinte questão foi
colocada entre nós, a saber, se na ausência de vinho poderíamos celebrar
com outras bebidas. Alguns (...) eram da opinião de que na falta de vinho
era melhor abster-se do signo do que mudá-lo. Os outros, ao contrário,
diziam que, uma vez que Jesus Cristo estava na Judéia quando instituiu
sua Comunhão, ele falou da bebida que era comum por lá, e que se ele
estivesse na terra dos selvagens, é certo que ele não apenas teria
mencionado a bebida que eles usavam no lugar do vinho, mas também a
farinha de raiz que eles comiam no lugar do pão
139
Et parce qu‟après la dernière Cène que nous fîmes en ce pays-là, il ne
nous resta qu‟environ un verre de tout le vin que nous avions porté de France,
n‟ayant moyen d‟en recouvrer d‟ailleurs, la question fut émeue entre nous, à
savoir, si à faute de vin nous la pourrions célébrer avec d‟autre breuvages.
Quelque uns (...) étaient d‟opinion que le vin défaillant il vaudrait mieux
s‟abstenir du signe que de le changer. Les autres au contraire disaient, que
lorsque Jésus-Christ institua sa Cène, étant au pays de Judée, il avait parlé du
breuvage qui y était ordinaire, et que s‟il eût été en la terre des sauvages il est
vraisemblable qu‟il eût non seulement fait mention du breuvage dont ils usent
au lieu de vin, mais aussi de leur farine de racine qu‟ils mangent au lieu de
pain” (1578 - 1992: 79).
Léry diz que embora a maioria tenha compartilhado da segunda opinião a questão se
manteve indefinida.
Celebração da 1ª missa
protestante
Richer
Léry
Os calvinistas se
indispuseram com Bolés.
Num primeiro momento,
Villegagnon ficou do lado
dos protestantes, mas agiu
hipocritamente, pois
mudou de comportamento
em relação a eles.
Bolés foi convidado a fazer
confissão pública da sua fé
e abjurou o papismo. Ao
rezar, Villegagnon
ajoelhou-se demonstrando
sinal de relação com o
papismo.
140
Villegagnon passou a
dividir as funções
sacerdotais com os
calvinistas. Ele fazia as
prédicas diárias e os
protestantes as de meia
hora aos domingos
Pentecostes:
De acordo com Richer,
quando as pessoas se reuniram para celebrar a segunda Eucaristia,
Durand, persuadido por Hector, ordenou, sob pena de perder a vida, que
os ministros não apresentassem o vinho dentro do cálice, caso ele não
estivesse misturado com água, porque ele tinha aprendido isso com
Cipriano e Clemente. Antes que os ministros pudessem demonstrar ao
povo que o mistério do Batismo não deveria ser realizado apenas com o
mistério da água, mas misturando também o óleo e o sal, ele adicionou
outras coisas vãs e ridículas das relíquias da Eucaristia, a superstição das
coisas que tínhamos criticado. Esse furioso Polypheme Cyclopien veio nos
ameaçar, com injúrias e violência, chamando Calvino de herético; este, que
não tendo podido expandir e publicar sua falsa doutrina no seio da
cristandade, tinha enviado esses falsos profetas. Du Pont não pode
aguentar e usou essas palavras: você mentiu contra seu chefe, contra o
santo Evangelho de Deus, contra Jesus Cristo, oh impostor, filho da
perdição, que blasfema assim esse santo e verdadeiro profeta de Deus com
suas palavras execráveis, maledicências e blasfêmias! Evite que isso te
141
aconteça novamente, pois, caso volte a essas injúrias e vitupérios, sentirás
pelas minhas mãos a ira da vingança de Deus.
Assim, esse magnânimo Durand, mais mudo que um peixe,
abrandou subitamente sua raiva, pois se ele tivesse murmurado, o perigo
estaria próximo e sua ruína aparente. Depois disso, o cruel soldado,
cavaleiro a pé, não mais ousou contestar Du Pont. A exemplo dos
Apóstolos, ele permitiu que um piloto, junto a outros dois, tomassem o
caminho de Genebra para consultar Calvino sobre a religião contenciosa
quand l‟assemblee fut faicte pour la second Cene, Durand par la
persuation de son Hector, commanda soubs peine de pertition de la vie, que les
Ministres ne presentassent le vin dedans la sainct Calice, s‟il n‟estoit mixtionné
d‟eau, pource qu‟il auoit cet enseignemẽt de Cyprian & de Clement.
D‟auantage que lesdits Ministres demonstranssent au peuple, que le Baptesme
ne se debuoit faire du seul mystere d‟eau, mais aussi de mixtion d‟huylle, & de
Sel, il adiousta quelques autres choses vaines & ridicules des reliques de la
Cene, la superstition desquelles quand nous luy eumes remonstree, ce furieux
Polypheme Cyclopien vint aux menaces, violences & iniures, appelant Caluin
heretique, qui n‟ayant eu pouuoir d‟espandre & publier sa fausse doctrine par
la Chrestienté, luy auoit enouoyé ses faux Prophetes. Ce que du Pont ne
pouuant souffrir luy vsa de ce language: Tu as menty contre ton chef, contre le
sainct Euangile de Dieu & contre IESVS CHRIST, ô imposteur, fils de
perdition, de blasmer ainsi ce sainct & veritable Prophete de Dieu par tes
execrables maleditions, & blãsphemes! mais donne toy garde que cela ne
t‟aduienne vne autre foys, car si tu retournes à ce vitupere & iniure, tu sentiras
pas mes mains l‟ire vengeresse de Dieu.
A donc ce magnanime Durand, plus muet qu‟vn poisson abaissa
soubdainement sa cholere, car s‟il eust murmuré, son peril estoit prochain, &
sa ruyne apparente: & depuis ce temps, le cruel gendarme, & Cheualier de
pied; n‟osa contester auec du Pont. Mais à l‟exemple des Apostres il permeit,
142
qu‟vn Nocher (...) auecques deux autres, prinst le chemin de Geneue, pour de la
Religion contentieuse consulter Caluin” (1561: 27-28).
Diante da controvérsia sobre a Eucaristia, Villegagnon, segundo Léry,
enviou à França o ministro Chartier, em um dos navios (que, após
ter sido abastecido com pau-brasil e outras mercadorias do país, partiu, no
dia 4 de junho, para depois retornar), a fim de que trouxesse as opiniões de
nossos doutores e as de Calvino sobre esse diferendo a respeito da
Comunhão, que ele dizia querer acatar
42
renvoya en France Chartier ministre dans l‟un des navires (lequel,
après qu‟il fut chargé de Brésil et autres marchandises du pays, partit le
quatrième de Juin, pour se revenir) afin que sur ce diffeérent de la Céne il
rapportât les opinions de nos docteurs: et nommément celle de maître Jean
Calvin, à l‟avis duquel il disait se vouloir du tout soumettre” (1578 - 1992: 73).
Segundo Reverdin, em
juin 1557 Chartier avait quitté le Brésil avec Bois-le Comte. Il avait
l‟ordre de consulter Calvin sur la nature de la présence du Christ dans les
espèces de l‟Eucharistie. Débarqué en France dans le courant de l‟automme
1557, Chartier demeura quatre à cinq moins sans donner signe de vue; puis en
février, il adressa un mémoire à Calvin, qui s‟en ouvre à Farel en des termes
très vifs: „J‟ai par devers moi une apologie, rédigée par un personnage
frénétique, que nous avions envoyé en Amérique; l‟intempestivité de son esprit
fait qu‟il y défend mal une bonne cause‟
43
. Le 5 mars, le pasteur Macard écrit
de Paris au Réformateur que Chartier (qu‟il qualifie ironiquement de
Charterius antarcticus) s‟impatient de n‟avoir pas encore de réponse, et craint
que ses compagnons restés au Brésil ne l‟accusent de déloyauté ou de
42
Neste navio, partiram também dez índios, entre nove e dez anos, cativos dos Tupinambá, que foram presenteados a
Henry II que, por sua vez, os presenteou outras pessoas. Além de Chartier, no dia de abril, Nicolas Carmeau,
segundo Léry, tinha levado cartas de Villegagnon a Calvino, assim como um recado a ser dado verbalmente no qual
Villegagnon prometida gravar em bronze os ensinamentos de Calvino (1578 - 1992: 74).
43
Opera Calvini, Correspondance, lettre n.º 2814.
143
négligence si le prochain navire qui appareillera de France ne leur apporte pas
les éclaircessements qu‟ils attendent
44
. Calvin répond, excédé, le 16 mars, que
Chartier n‟a qu‟à s‟en prendre à lui-même, et à son long silence; que le
mémoire qu‟il a fini par envoyer n‟est qu‟une apologie prolixe et futile; que
d‟ailleurs, pour se prononcer, il lui faudrait disposer également du mémoire de
la „partie adverse‟, autrement dit des thèses de Villegagnon
45
. A quoi Macard
replique qu‟il n‟entend pas se faire le défenseur de Chartier, mais que celui-ci
a des excuses: Bois-le-Comte retient les lettres du Brésil. Vainement, Chartier
les lui a clamées, et c‟est faute de les avoir reçues qu‟il a sans cesse différé
son départ pour Genève. Mais Coligny a été sollicité d‟intervenir, et son
majordome (Architriclinus) cherche à obtenir les lettres en question
46
. Le 12
avril, Macard ne les avait pas encores reçues
47
. Nous ignorons si elles
parvinrent jamais à Genève (1957: 65-66).
De acordo com Lestringant,
Chartier fut fort mal accueilli et sa démarche suscita l‟irritation de
Calvin (...) À ce moment-là, le Réformateur de Genève ne songeait encore
nullement à incriminer Villegagnon, mais bien les deux pasteurs, assez
maladroits et vétilleux pour compromettre sur un point de doctrine la réussite
du Refuge en terre d‟Amérique” (1578 - 1994: 177n.).
Foi após o Pentecostes, portanto que, segundo Richer: ocorreu a separação entre nós e
os outros. Aos homens de Durand que nos quiseram ouvir, não cessamos de administrar a
palavra de Deus e de realizar, publicamente, o sacrifício divino/ la separation fut faicte
entre nous, & aux nostres, & à ceux de Durand qui nous vouloyent ouyr, ne cessames
d‟administrer la parole de Dieu, & de accomplir publiquement le divin Sacrifice (1561: 28).
44
Opera Calvini, Correspondance, lettre nº. 2826.
45
Opera Calvini, Correspondance, lettre nº. 2833.
46
Opera Calvini, Correspondance, lettre 2838 . Cf. aussi lettre n.º 2841.
47
Opera Calvini, Correspondance, lettre n.º 2850.
144
Então, continua Richer, Hector, que tinha ousado começar a expor algumas lições sofistas,
abandonou-as, porque ignorava o que deveria ser dito” / Hector, qui osa commencer de faire
quelques leçons sophistiques, lesquelles il laissa incontinent, pource qu‟il estoit ignorant de ce
qu‟il debvoit dire (1561: 28).
Léry narrou os fatos tal como Richer, disse que a cisão com os calvinistas teve início
quando Villegagnon começou a proferir argumentos teológicos, entre os quais que na celebração
da Eucaristia era necessário colocar água no vinho e era preciso crer que a hóstia beneficiava
tanto o corpo como a alma/ le pain consacré profitait autant au corps qu‟à l‟âme(1578 -
1992: 75). Esse comportamento de Villegagnon foi entendido por Léry como uma maneira de
buscar calar a boca de Calvino/ clore la bouche à Calvin(1578 - 1992: 76). Assim como
Richer, Léry contou que Bolés se s a proferir lições blicas / “se mit à faire leçons
publiques” (1578 - 1992: 76), e que:
logo após essa comunhão de Pentecostes, Villegagnon, declarou
abertamente que tinha mudado de opinião sobre o que achava de Calvino.
Sem aguardar a resposta que ele havia mandado o ministro Chartier
buscar na França, disse que Calvino era um herético maldoso desviado da
fé. E, de fato, desde então, fazia cara feia e dizia que não queria que a
pregação durasse mais do que meia hora. A partir do fim de maio, ele
participou de poucas
incontinent après cette Cène de Pentecôte, Villegagnon, déclarant tout
ouvertement qu‟il avait changé l‟opinion qu‟il disait autrefois avoir eue de
Calvin, sans attendre sa réponse, qu‟il avait envoyé quérir en France par le
ministre Chartier, dit que c‟était un méchant hérétique dévoyé de la foi: et de
fait dès lors nous fort montrant mauvais visage, disant qu‟il voulait que le
prêche ne durât plus que demie-heure, depuis la fin de May, il n‟y assista que
bien peu” (1578 - 1992: 76).
145
Para Léry, essa mudança bita de opinião de Villegagnon foi motivada por cartas de
franceses influentes, que o acusavam de ter abandonado a religião católica (1578 1992: 77).
Villegagnon disse que quando observou os calvinistas exercendo suas funções, achei
que eles tinham usurpado um título pelo outro, ou seja, no lugar da Igreja reformada, eles
queriam reestruturar tudo/ s‟estans mit à faire leur office, ie trouuay qu‟il auoiẽt usurpe
ung tiltre pour ung aultre, que au lieu d‟Eglise reformee, ils debuoient dire informee tout de
nouueau” (1560 - 1562: 8). Em seguida, Villegagnon começa a falar de Jean de Bolés:
Esse jacobino queria seguir uma doutrina a parte (...), não tendo eu
encontrado ordem, e querendo melhorar, comecei a buscar entender as
duas religiões de acordo com os livros antigos da Igreja, de trezentos anos
antes de Jesus Cristo, na época em que a Igreja ainda não estava
corrompida. Tornei-me um discípulo de Calvino tão rapidamente que, em
poucos dias, nenhum dos ministros poderia se comparar a mim nesta
ciência. Estando eles de acordo comigo sobre o espírito da doutrina,
comecei a considerá-la e impugná-la, junto com o irmão Pierre Richer, le
Pont e outros, de acordo com a autoridade dos antigos. Eles porém, não
podendo responder, negaram-me
Ce Iacobin voulut suiure une douctrine apart (...) n‟y trouuãt ordre,
i‟en voulu faire mon prouffict, ie me mit à vouloir bien entẽdre l‟une & l‟autre
religion & la cõferer aux anciens liures de gens de l‟Eglise, de trois cents ans,
apres Iesus Christ, qui est le temps (...) que l‟Eglise n‟estoit corrumpue. Ie me
rẽdy si diligent disciple de Caluin, qu‟en peu de iours, nul des Ministres qui
estoiẽt cõsumez en sa doctrine, ne se pouuoit cõferer à moy en ceste science.
Eulx estans d‟accord auec moy de l‟intelligence de la doctrine, je me mit à la
considerer & impugner, auec frere Pierre Richer, le Pont, & autres, par la
146
autorité des liures anciens. Mais ils me les nioyent, non y pouuans respondre
(1560 - 1562: 9-10).
Para Léry e os calvinistas, o fato de Villegagnon ter rompido com a religião
reformada significou que eles não mais se consideravam seus súditos e, por isso, não eram
mais obrigados a trabalhar para ele, “carregar terra e pedras no seu forte” / à porter la
terre et les pierres en son fort(1578 - 1992: 78). A partir de junho, diz Léry, ainda que
nós continuássemos a fazer as prédicas públicas (o que ele não ousava ou não podia
impedir) para evitar que nos importunasse quando celebrávamos a Comunhão,
passamos a fazê-la à noite e sem o seu conhecimento / encore que nous fissions
toujours publiquement le prêche (qu‟il n‟osait ou ne pouvait empêcher), si est-ce, pour
obvier qu‟il ne nous troublât et brouillât plus quand nous célébrerions la Cène, du depuis
la fîmes de nuict, et à son désu(1578 - 1992: 79). Ainda segundo Léry, Villegagnon, “no
fim de outubro (...) ordenou que saíssemos/ “sur la fin du mois d‟Octobre (...)
commanda que nous en sortissions” (1578 - 1992: 80). Na visão de Villegagnon,
esse conflito durou dez meses até que chegou um navio no qual eles
embarcaram de volta para França. Le Pont tinha achado o país muito
bonito e cômodo, ao mesmo tempo, invejava o refúgio que eu tinha feito
para o Evangelho de Genebra. Por isso, secretamente, começou a seduzir
meus homens, os mais próximos de mim, dizendo a eles que voltassem para
França para trazer mais pessoas, pois com força poderiam plantar a
religião que eu tinha recusado. E para preservar esses meus homens que
ele tinha ganho, fez reconhecer uma pequena ilha a três léguas de mim,
onde designou se retirar. Ele estava então morando em terra firme, na casa
da minha roça, para mais comodamente plantar seus víveres
147
Ce conflit dura dix moys, qu‟arriua ung nauire auquel ils
s‟embarquerẽt, pour s‟en reuenir. Le Pont auoit trouue le pais fort beau &
commode, auec ce il auoit ung regret & desplaisir merueilleux, du refuz, que
I‟auoye faict de l‟Euangile de Genesue. Au moyen de quoy secretement se mist
à seduire mes hõmes, & les plus proches d‟aupres de moy, leur disant qu‟il en
retournoit en France, pour ramener tant de gens, que par force n pourroit
planter la religion, que i auye refusee: & pour confirmer ceulx de mes hommes
qu‟il auoit gaignez, feist recõgnoistre une islette à trois lieües de moy, ou il
designoit de se retirer, il estoit lors demeurant en terre ferme, en la maison de
mes iardins, pour plus comodement faire ses viures” (1560 – 1562: 10-11).
De qualquer modo, depois de quase oito meses na ilha, os calvinistas foram para o
continente e durante dois meses esperaram um navio para poder retornar à França.
Pentecostes
Richer
Léry
Villegagnon
Conflito
Villegagnon quis
misturar água ao
vinho para celebrar
a Eucaristia.
Villegagnon quis
misturar água ao
vinho para celebrar
a Eucaristia.
Os calvinistas
vieram subverter a
ordem; Jean de
Bolés deu início ao
diferendo.
Consequência
Reação de Du Pont;
envio de um piloto
para consultar
Calvino; Bolés
começa a fazer
prédicas públicas;
cisão.
Bolés começa a
fazer prédicas
públicas; envio de
Chartier (ministro)
para consultar
Calvino; cisão.
Expulsão da ilha.
Os ministros foram
intransigentes; Le
Pont, com inveja,
retirou-se da ilha.
148
A volta para a França dos calvinistas:
Um panfletista anônimo, cujo relato foi incorporado à Histoire des Martirez, narrou assim a
saída dos calvinistas da América. Segundo ele:
Villegagnon previu que muitos dos seus homens poderiam deixá-lo
por causa dos maus-tratos infligidos, uma vez também que a verdadeira
religião tinha começado a ser invertida, julgou que seria melhor afastar
uns dos outros e enviou alguns em um navio ao rio da Prata, a mais de 500
guas do pólo antártico. Neste navio, colocou 18 pessoas e dois outros para
servi-los. Essa viagem tinha como objetivos abastecer a companhia, a fim
de que ela não se associasse a outros (como ele achava), e também buscar
alguma mina de ouro ou prata, de modo a gratificar o rei Henrique.
Um dia antes da partida, o capitão recebeu a denúncia de que o
chefe do navio tinha violado um dos seus parentes, um menino. Essa
ocorrência execrável muito perturbou o capitão e seus homens, uma vez
que estavam sob sua responsabilidade. Todavia, o capitão interrogou o
marinheiro, mas como ele não quis confessar seu crime, enviou-lhe para
Richer, que ainda era ministro (não obstante ter sido destituído, ele jamais
foi deposto). O ministro denunciou ao marinheiro a grandeza do pecado.
Compreendendo o julgamento de Deus, ele quis se jogar no mar, ou perder
heroicamente a vida, declarando de forma exterior que estava arrependido
de ter cometido tal ato.
O navio equipado levantou as velas no rio de Coligny para entrar no
mar sob grande descontentamento de Villegagnon e de alguns marinheiros,
aos quais havia sido solicitado impedir a volta da embarcação, ou, ao
menos, dificultar o caminho (...) Quando o navio chegou a alto-mar, a 25
ou 26 léguas, começou a encher de água (ou porque estava muito
carregado, ou porque era muito velho). A essa aventura seguiu-se um
incrível acidente: a inundação no paiol de pão e biscoito (...); a maior parte
dos passageiros, ao ver os marinheiros retirando a água, quis voltar para
149
terra (...). Vendo o trabalho daqueles que procuravam conter águas, (...) o
capitão decidiu que deveria enviar alguns passageiros de volta para que os
outros pudessem prosseguir a viagem. E, como Du Pont, Richer e outros
estavam prestes a entrar no barco, o capitão os deteve, e encorajou-os
dizendo que tudo ficaria melhor do que o esperado. Todavia, se havia
outros passageiros que quisessem retornar, ele, de bom grado, daria o tal
barco, uma vez que os víveres que restaram não poderiam satisfazer a
tantas pessoas em uma viagem tão longa.
Entre os passageiros, cinco tiveram a mesma intenção e aceitaram a
proposta do capitão, mal grado todos seus companheiros que bem
previram que Villegagnon poderia lhes fazer mal (...). Estes, com
permissão dos seus companheiros e amigos, com muitos suspiros e
lamentações, embarcaram, e pediram proteção a Deus tanto para os que
estavam no navio em direção à França, como para aqueles passageiros do
barco, que retornariam à terra do Brasil. Quando o barco se separou do
navio, eles puderam se distanciar da terra 18 ou 20 guas. Ora, aqueles
que entraram no barco para retornar ao Brasil nada conheciam da arte de
navegar, pois não estavam habituados com o mar (...) No mais, o tal barco
não possuía mastro, velas, cordas, nem outros aparelhos necessários à
navegação. Tendo passado quatro dias, ocorreu que alguns habitantes
naturais mostraram muito carinho com os pobres e aflitos franceses.
Todavia, vendo-os com necessidade de víveres, venderam a eles, bem caro,
algumas raízes e farinhas, visto que eles têm curiosidade das roupas dos
franceses. No mais, conviveram tão bem com os nossos que muito
desejaram que eles permanecessem durante um longo tempo. O que os
nossos não puderam fazer tanto porque eram importunados pelos
habitantes, como por se lamentar de terem sido privados da companhia
dos franceses. Partiram deliberadamente para se retirar com os cristãos e
pessoas que falavam a mesma língua.
Principalmente os que estavam pouco decididos, não conseguiram
recuperar a saúde, permanecendo longamente com os brasileiros, isentos
150
de toda honestidade cristã. Os mais sãos não eram dessa opinião, previam
que Villegagnon poderia maltratá-los, por causa da vontade que
tinham com a religião. Passaram alguns dias com essa dificuldade. Enfim,
os doentes pediram tão afetuosamente aos seus companheiros, que eles
decidiram partir dessa ilha em direção ao porto de Coligny, distante do
lugar onde estavam (...). Os brasileiros quiseram impedir sua partida.
Levaram três dias para navegar trinta léguas, por causa da contrariedade
dos mares, que são muito violentos (...). Eles se apresentaram a
Villegagnon e declaram os motivos da interrupção: o perigo onde eles
tinham deixado o navio; suplicaram que os recebessem como servidores,
tendo eles a audácia de retornar sob seu domínio, considerado que tinham
a consciência de jamais tê-lo ofendido; assim, preferiam estar com os
franceses do que se render aos portugueses, com quem eles talvez tivessem
sido bem recebidos, ou com os brasileiro do rio das Vases, de quem tinham
recebido um tratamento bom, honesto
Villeg. preuoyãt que plusieurs de sa compagnie le pourroyent laisser
pour le mauuais traitemẽt qu‟il leur faisoit, aussi qu‟il auoit comencé de
renuerser la vraye religion, iugea qu‟il feroit bien à propos de les eslogner les
vns des autres, en enouoyant les vns dans vn nauire en la riuiere de Plate,
tendant au pol Antartique plus aual 500 lieuës lequel posa 18. personnes, &
deux pages pour les seruir. Celle descouuerture se fasoit tant pour faire
absenter la compagnie, afin qu‟elle ne se peust adioindre auec les autres
(comme il auoit opinion) que pour cercher quelque mine d‟or ou d‟argent,
pretendant par tel moyen gratifier le Roy Henry. Le iour precedent qu‟ils
denoyent partir, il fut denoncé au Capitaine que le maistre du nauire auoir
violé vn sien parent, ieune enfant. Ce faict execrable troubla ledit Capitaine &
son equipage merueilleusement: consideré que c‟estoit sur leur departement.
Toutesfois ledit Capitaine ayant interrogué ledict marinier, lequel ne vouloit
cõfesser son crime, l‟enuoye à Richer lequel estoit tousiours Ministre,
nonobstant que Villeg. luy eust donné congé car il ne fut iamais deposé. Le
151
ministre denonce au marinier la grandeur de son peché, & iugement horrible
de Dieu sur ceux qui commettent tels vices. Le marinier apprehendant le
iugement de Dieu, se voulant ietter en mer, ou perdre malheureusement sa vie:
declarant exterieurement qu‟il estoit desplaisant d‟auoir fait & comis tel acte.
Pourtant le lendemain le Capitaine part auec le maistre du nauire. Ledit nauire
appareillé fait voile de la riuiere de Colligny pour se mettre en mer, au grand
desplaisir & mescontentement de Ville. & d‟aucuns mariniers, lesquels auoyent
esté sollicitez pour empescher ledit retour: ou pour le moins leur donner ennuy
par le chemin (...) Ce nauire ayãt prins la haute mer vingtcing ou vingtsix
lieuës, comença à puiser beaucoup d‟eau (ou pour auoir esté trop chargé, ou
de viellesse). A cest auenture suruint vn merueilleux accident du regorgement
d‟eau, dans la soute au pain biscuit (...) la pluspart des passagers voyant les
matelots desbauchez, se vouloyẽt retirer en terre (...) Ledict Capitaine ayant
entendu par ceux qui trauailloyent à trouuer le cours de l‟eau (...) seulement il
deuoit renuoyer vne partie des passagers, pour faire place aux autres. Et
comme du Pont & Richer & quelques autres estoyent prests à se mettre dans le
barque, ledit Capitaine les retint, leur donnant bon courage, que le tout se
porteroit mieux qu‟on n‟esperoit. Toutefois s‟il y en auoit d‟autres desdits
passagers qui s‟en voulussent retourner, volontiers leur donneroit ladite
barque: veu que les viures qui restoyent, ne pouuyẽt satisfaire à tant de
personnes pour vn si long voyage.
Du nombre desdits passagers, se trouuerent cinq personnes d‟vn mesme
vouloir, lesquels accepterent dudit Capitaine contre le g de tous leurs
compagnons, qui preouyoyent bien ~q Villegagnon leur pourroit faire quelque
desplasir (...) Par ce ayants prins congé de leurs compagnons & amis, auec
grands souspirs & regrets, s‟embarquent dans le bateau, se recommandans en
la garde de Dieu les vns les autres, tant ceux du nauire qui passoyent en
France, que ceux de la barque, qui retournoyent en la terre du Bresil. Lors que
ceux du bateau se departirent du nauire, ils pouuoyent estre loin de terre
dixhuict ou vingt lieuses. Or ceux qui entrerẽt dans le bateau pour retorner au
Bresil, estoyent totalement ignorans de la navigation, pource qu‟ils n‟auoyent
152
hanté la mer (...) D‟auantage, ladite barque n‟auoit ne mast, voiles, cordages,
n‟autres appareilleures necessaires à la nauigation. Ayant seiourné quatre
iours pour se refreschir, il suruint quelque nombre des habitans naturels, qui
monstroyent assez bõne caresse aux poures affligez Frãçois. Toutefois les
voyans en necessité de viures, leurs vendoyent bien cher quelques racines &
farines, pource qu‟ils sont curieux des habillemens des François. Au reste ils
conuenoyent si bien auec les nostres, qu‟ils eussent grandement desiré qu‟iceux
eussent faict long seiour. ce que les nostres ne pouuoyent faire, tant pour
l‟importunité desdicts habitãs, que pour le regret qu‟ils auoyent d‟estre priuez
de la compagnie des François. Partant delibererent se retirer auec les
Chrestiens, & gens de mesme langage. Principalmente ceux qui estoyent mal
disposez, ne pouuoyẽt recouurer santé, cõuersans longuement auec lesdits
Bresiliens exempts de toute honnesteté Chrestienne. Aucuns comme les plus
sains, n‟estoyent de cest aduis, preuoyans que Villeg. les pourroit maltraiter,
pour le mauuais vouloir qu‟il leur portoit à cause de la religion: & furent
quelques iours en ceste difficulté. En fin les malades prierent si affectueusemét
leurs compagnõs, que cela fut resolu de departir de ceste isle, pour aller au
port de Colligny distãt par mer du lieu òu ils estoyent. (...) Les Bresiliens
vouloyent empescher ce departement desplaisans d‟iceluy. Ils mirent pres de
troid iours à faire lesdictes trente lieuës, à raison de la cõntrarieté des vents &
marees qui sont fort violẽtes. (...) Ils se presenterent à luy, declarãs les
causes de relaschement, le peril ils auoyẽt laissé leur nauire: & le supplient
de les vouloir retenir au nõbre de ses seruiteurs, & auoyẽt d‟autant osé
entreprendre de retourner sous sa puissance, consideré qu‟ils estoyent asseurez
en leur conscience de ne l‟auoir iamais offensé: par ainsi auoyent mieux aimé
se retirer estans François, auec les François, que se rendre aux Portugalois,
auec lesquels ils eussent, peut estre, esté bien recueillis, ou auec les Bresiliens
de la riuiere des Vases, desquels ils auoyent receu bon & hõneste traitemẽt
(1561 - 1565: B. iii.1 - B.iiii.8).
Outro panfletista narrou na sua “Ode que Villegagnon:
153
não permitiu que eles retornassem para França (...) tentou
submetê-los (...) foi possível, enfim; que voltassem em direção à Europa, a
rota do seu caminho; e retornar em grupo. Os primeiros 16 avançaram; e
assim continuaram; em um navio avariado; que quando se afastou; do rio
antártico, caiu em extremo perigo; de afundar e submergir; num terrível
naufrágio; cinco que estavam em um pequeno barco; fugiram do furor da
água; e para segurança, evitando esse perigo; retornaram ao Brasil; e à sua
França Antártica; Villegagnon percebeu que eles vinham retomar a terra;
e temerosamente acreditou que iam guerrear contra ele
il ne leur eut permis; De ramer deuers la France, (...) les tenant submis
(...) il leur est loisible en fin; De retracer vers l‟Europe; La route de leur
chemin; Et s‟en retourner en trope. Seize des premiers s„auancẽt; Et le
demeurant deuancent; Sur vn nauire cassé; Qui loing estant repoussé; De
l‟antartique riuage; Tumbe en extreme danger; De perir & submerger; Par vn
horrible naufrage; Cinq, dans vn petit basteau, Fuient la fureur de l‟eau; Et
pour plus grande asseurance, en euitant ce peril; Il vont reuoir le Bresil; Et
leur antartique France; Villegaignon s‟apperçoit, Qu‟ils viennent reprendre
terre; Et temerairement croit, Que c‟est pour luy faire guerre” (1561b: 9).
Léry não menciona a viagem em direção ao Rio da Prata que Villegagnon teria compelido
os calvinistas a fazer, nem que um jovem teria sido violado pelo comandante do navio. Segundo
ele, Villegagnon escreveu uma carta ao capitão do navio, na qual comunicava que não se
opunha à nossa viagem / écrivit une lettre au maître dudit navire, par laquelle Il lui mandait
qu‟il ne fît point de difficulté de nous repasser pour son égard(1578 1992: 203-204). Diz
também que nesse “navio, que era chamado de Le Jaques / ce navire qu‟on appelait, Le
Jacques (1578 -1992: 204), estavam em torno de 45 pessoas.
154
Como escreveram os panfletistas anônimos, segundo Léry, a água entrou em
grande abundância no nosso barco/ l‟eau entra en si grande abondance dans notre
vaisseau(1578 - 1992: 205). A partir daí, outra divergência aparece entre os dois relatos.
De acordo com o primeiro relato do panfletista anônimo, du Pont e Richer estavam
prestes a mudar de embarcação para retornar à ilha quando foram detidos pelo capitão da
embarcação. Léry relatou: éramos seis, que, considerando o naufrágio de um lado,
e a fome que se anunciava de outro, deliberamos retornar à terra dos selvagens /
nous fûmes six qui, sur cela, considérant le naufrage d‟un côté et la famine qui se
préparait de l‟autre, délibérâmes de retouner en la terre des sauvages (1578 - 1992:
206). Léry diz que foi “salvoquando um deles, lamentando que eu partisse e levado
por uma singular afecção de amizade que tinha por mim, estendeu a mão até o barco
onde eu estava e me disse: „peço-te que fique conosco/ l‟un d‟iceux, du regret qu‟il
avait à mon départ, poussé d‟une singulière affection d‟amitié quil me portait, me
tendant la main dans la barque où j‟étais, il me dit: „Je vous prie de demeurer avec nous
(1578 - 1992: 206). Segundo Lestringant, en réécrivant cet épisode à son avantage, Léry
marque sa solidarité avec les trois futurs martyrs du Brésil, tout en découvrant le symbole
de son élection particulière” (1578 - 1994: 511n.).
.
A volta
para a França
Villega
gnon
Panfletista
anônimo
(1561-
1565)
Panfletista
anônimo (1561b)
Léry
Os
calvinistas
pretendiam
Villegagnon quis
se livrar dos
calvinistas
Villegagnon
hesitou ao decidir
se deixaria os
Villegagnon
incentivou a
partida dos
155
recrutar mais
pessoas para
voltar à
França
Antártica e
implantar a
nova religião
enviando-lhes ao
Rio da Prata em
uma embarcação
sem condições de
navegação, onde
estavam 20
pessoas. Du Pont
e Richer foram
impedidos de
desistir da
viagem pelo
capitão e
conseguiram
retornar à França
protestantes
retornarem à
França. Eram 16.
calvinitas em um
navio mercante,
sem preparo para
viajar, com cerca
de 45 pessoas.
Quando ia voltar
para França
Antártica, Léry
foi convidado a
permanecer na
embarcação e
conseguiu chegar
à França.
O retorno dos cinco calvinistas à França Antártica:
Os cinco calvinistas que retornaram à França Antártica foram “Pierre Bourdon, Jean du
Bordel, Matthieu Verneuil, André la Fon, et Jacques le Balleur” (Lery 1578 - 1992: 206). Assim
que eles encontram Villegagnon, o mesmo panfletista anônimo da Histoire des Martirez narrou
que:
eles ofereceram seus serviços a Villegagnon, suplicando-lhe que
permitisse viver junto como os outros trabalhadores até quando nosso
Senhor lhe desse um meio de voltar para França (...) Villegagnon
respondeu-lhe de forma doce e honesta (...) permitindo que eles vivessem
com os seus com a mesma independência e liberdade (...); com dificuldade
eles permaneceram durante 12 nessa tranquilidade
156
offroyẽt leur seruice audit Villegaignon: le suppliãs leur permettre de
viure auec ses seruiteurs, iusques à ce que nostre Seigneur leur donneroit
moyen de repasser en France (...) Villegaignon leur fit vne response douce &
honneste (...) leur permettant viure auec les siens, aux mesmes franchises &
libertez (...) a peine demourent-ils en ceste tranquillité & repos douze iours
entiers,
pois, quando contaram que tinham retornado por causa da precariedade da embarcação que os
levaria para França, Villegagnon não acreditou neles e passou a achar que a embarcação que
tinha sido enviado ao Rio da Prata voltaria, junto com du Pont e Richer, uma noite qualquer, para
surpreender a fortaleza.
Assim, continuou o panfletista, Villegagnon:
por causas dessas falsas conjecturas, persuadido de que os que
retornaram eram espiões e traidores, concluiu que era necessário, e mesmo
oportuno, matá-los. Ele considerou várias maneiras para evitar que os
homens o culpassem ou o reprovassem, seu desejo era convencer que tinha
havido uma traição, mas isso não se poderia provar, nem por conjectura,
nem por qualquer verossimilhança. Considerou que dessa forma ele não
poderia agir sem incorrer em nota de infâmia, mesmo entre aqueles que
eram indiferentes à religião. Ele se deu conta que eles partilhavam das
opiniões de Lutero e Calvino sobre a religião
s‟estant par telles faulses coniectures persuadé que les personnes
reuenues, estoyent traistres & espies, proposa en luy mesme qu‟il estoit fort
necessaire, & mesmes expedient, de les faire mourir. Il considere beaucoup de
moyens pour euiter le blasme & reproche des hommes: son desir estoit les
conuaincre de trahison, mais cela ne se pouuoit prouuer ne par coniecture ne
par verisimilitude de quelconque. Partant considerant que par ce moyen il ne le
pouuoit faire, sans encourir note d‟infamie, mesmement entre ceux lesquels ne
157
portent aucune faueur à la religion: il s‟aduisa qu‟ils estoyent de l‟opinion de
Luther & Calvin en la religion” (1561 - 1565: Ciii.1.).
Na versão de Villegagnon, depois que os calvinistas partiram,
em vinte dias chegou um barco com cinco homens, dos quais eu
conhecia três monges renegados, que desceram no vilarejo dos meus
homens, de onde eles tinham partido. Eles me encontraram e eu perguntei
o que eles vinham fazer, visto a provocação que Du Pont havia feito antes
de partir, e se eles vinham para corromper meus homens, para instigar
problemas entre eles e eu e impedir que eles voltassem a seguir sua
primeira religião (...) se eles quisessem abjurar para seguir a nossa religião,
seriam bem-vindos, caso contrário eu não queria duas religiões em minha
companhia. Eles me pediram um lugar para se retirar e realizar as suas
cerimônias, o que eu recusei (...); notei a esperança que tinham que de Pont
retornasse.
Em suma, proibi que eles divulgassem a sua doutrina aos meus
homens e que impedissem a afeição que eles me deviam, sob pena de
perderem a vida. Três dias depois, fui advertido por um dos meus de que
eles (...) persuadiram meus homens para que eles se retirassem junto de
certos tradutores banidos em um lugar onde le Pont deveria retornar, e
que se então eu lhes fizesse mal, eles se defenderiam e instigariam os
selvagens contra mim. Assim entendido, chamei-os em minha ilha, os três
monges foram processados e eu fiz com que se afogassem
au bout de vingt jours, arriua une barque auec cinq hommens, desquels
ie cognoissoye trois moynes reniez, qui s‟en vindrent descendre au village de
mes gens, dont ils estoient partiz: ils m‟y trouuerent, ie leur demãday qu‟ils y
venoiẽt faire, veu le deffimẽt que m‟auoit faict du Pont à son partement, s‟ils
venoient pour corrumpre mes hommes, pour cõciter trouble entre eulx & moy,
et empescher qu‟ils ne retournassent à leur premiere religiõ (...) s‟ils vouloient
158
abiurer leur religion pour tenir la nostre, qu‟ils seroient bien venuz: sinon que
ie n‟estoye pour souffrir deux religions em ma cõpaignie. Ils me demanderent
ung lieu pour se retirer, & vacquer à leurs ceremonyes, que je leur refusay (...)
ie voioye leur esperãce du retour de Pont. Ensomme ie leur feiz defense de ne
(...) parler leur doctrine à mes gens, ne empescher l‟affection qu‟ils me
deuoient porter, sur peine de leur vie. Trois iours apres ie fuz aduerty par ung
des miens, qu‟ils (...) persuadants à mes gens, de se retirer auec certains bãniz
truchemens, à ung endroict, ou debuoit arriuer le Pont à son retour: & que si
ce pendant ie leur vouloye faire mal, qu‟ils se defendroient, & cõci teroyent les
sauuaiges contre moy. Cela entendu, ie les feiz appeller en mon ilse, & le
proces des trois moynes faict, ie les faiz noyer” (1560 - 1562: 12-13).
Na Reponse aux libelles, Villegagnon escreveu que executou os monges depois de
serem por mim alimentados e mantidos durante dez meses, e enviados, passivamente; eles
retornaram para perturbar nossa religião e instigar meus homens contra mim, esperando
que seu capitão retornasse / moines aprés avoir par moy esté nourris, et entretenus l‟espace
de dix mois, et renvoyés paisiblement, seroient retournés pour troubler en nostre religion, et
conciter mes gens contre moy, attendant le retour de leur Capitaine(1561 - in Thevet 1588 -
2006: 268).
O temor de Villegagnon diante do retorno dos calvinistas é confirmado por um panfleto
protestante, quando afirma que: ele sonhava (com as pessoas sanguinolentas e espíritos que
não são de Deus) que cortariam sua garganta. Outra vez, que Du Pont e Richer, com um
grande número de pessoas, tentariam cercá-lo sem lhe mostar qualquer concessão / il
songeoit (comme gens sanguinolents, & auec lesquels l‟Esprit de Dieu n‟habite point) qu‟on luy
coupoit la gorge: autre fois que du Pont & Richer auec grãd nombre de gens le tenoyẽt assiegé
estroictement, sans luy presenter aucune composition (1561 - 1565: C.iii.).
159
Tanto os calvinistas, como Villegagnon parecem estar de acordo que a volta dos cinco foi
recebida com apreensão. Ocorre, no entanto, que os calvinistas acrescentaram um dado que não
foi confirmado por Villegagnon, a saber, o fato de eles terem sido submetidos a uma confissão de
fé.
A confissão de fé:
O mesmo panfletista anônimo da Histoire des Martirez narrou assim o procedimento de
Villegagnon em relação aos cinco calvinitas que retornaram à França Antártica:
para realizar a execução que tinha deliberado, Villegagnon
endereçou uma lista de artigos que ele queria que os cinco respondessem.
Quando enviou, determinou que, dentro de doze horas
48
, eles
respondessem por escrito. Esses artigos podem ser entendidos como sua
confissão de fé, que será inferida abaixo. Os franceses que estavam no
continente queriam impedir de qualquer forma afirmar sua a esse
tirano, visto que ele buscava uma ocasião para matá-los. Por isso, os
persuadiram a se retirar junto aos brasileiros que estavam a trinta ou
quarenta léguas de lá, ou a se render aos portugueses, com quem
encontrariam mais cortesia do que com Villegagnon, (...) sempre tirano e
cruel.
48
onard comparou o conteúdo da confissão de fé com a teologia calvinista e entedeu que ela estava mais próxima
do lutenarismo. Ele fez também o seguinte comentário: Crespin, ou plutôt son informateur, assure que Villegagnon
avait exigé réponse à ses articles dans les douze heures. Si le fait était sûr, jamais confession de foi n‟aurait été plus
rapidement composée. Il est déjà bien étonnant que du Bordel, sans autre livre qu‟une Bible, ait pu rédiger un texte
utilisant saint Augustin, saint Ambroise, saint Cyprien et Tertullien (1958: 206). Mas, à frente, no entanto, ele
afirma que: sans doute Villegaganon avait-il noté sur un papier, sans ordre, les questions qu‟il jugeait
embarrassantes pour ses prisonniers” (1958: 208).
160
Os franceses do continente queriam impedir a todo custo ( de qualquer
forma), mostrar ( de afirmar) sua a este tirano que esperava uma
boa ocasião para matá-los.
Porém, contra a opinião de todos esses conselheiros, nosso Senhor
fortaleceu essa pobre gente com uma constância admirável, uma vez que
eles poderiam ter escolhido apenas se retirar para onde bem quisessem,
sem que Villegagnon pudesse impedi-los.
Voluntariamente partiram invocando a ajuda do Senhor para
responder aos artigos enviados por Villegagnon (...) Esses artigos eram
numerosos e alguns incluiam certos pontos mais difíceis da santa Escritura,
de modo que um bom teólogo, mesmo tendo todos os livros necessários ao
estudo das santas Escrituras, não conseguira fazer em um mês. As pobres
pessoas tinham apenas uma Bíblia para ajudá-los, e ainda por cima uns
estavam pouco decididos, outros surpreendidos de temor e pouco
conheciam as Escrituras
pour proceder à l‟execution de ce qu‟il auoit deliberé, il dressa vn
cataloque des articles, ausquels il vouloit ~q les susdicts cinq respondissent: &
leur enouoyant, cõmanda que dans douze heures, ils deliberassent de respondre
par escrit. Lesdicts articles se pourront entendre par leur cõfession de foy,
laquelle sera inferee cy apres. Les François de la terre continente, les vouloyẽt
empescher par tous moyẽs, de ne rendre raison de leur foy à ce tyrãt, qui ne
cerchoit que l‟occasion de les faire mourir. Au contraire leur persuadoyent de
se retirer auec les Bresiliens, à 30. ou 40. lieues de là, ou qu‟ils se rendissent
plustost à la merci des Portugalois, auec lesquels ils trouueroyent plus de
courtoisie sans comparaison, qu‟auec Villegaignon, (...) à toute tyrannie &
cruauté.
Mais contre l‟opinion de tous lesdicts Conseillers, nostre Seigneur
fortifia ces poures gens d‟uve constance admirable, veu qu‟ils auoyent option
de faire l‟vn ou l‟autre, & se pouuoyent retirer la part de la terre, bon leur
161
eust semblé, sans que Villegaignon ne les siens eussent peu leur dóner
empeschemẽt.
Partant tres volontairement ayant inuoqué l‟aide du Seigneur,
entreprenẽt de faire la response aux articles enuoyez par ledit Villegaignon (...)
Lesdicts articles estoyent en grand nõbre, & d‟aucuns poincts les plus difficiles
de toute la saincte Escriture: ausquels vn bon Theologien, voire ayant tous les
liures necessaires à l‟estude des sainctes Escritures, se fust trouué bien
empescen vn mois. Les poures personnes à peine auoyent-ils vne Bible pour
le soulagement des passages: ioint que les vns estoyent mal disposez, les autres
surpris de crainte, & peu exercez aux Escritures (1561 - 1565: C.iii.1 -
C.iiii)
49
.
Segundo Léry,
Certas personagens dignas de fé, que nós deixamos naquele país,
de onde retornaram quatro meses depois de nós, quando encontraram du
Pont em Paris, não apenas lhe asseguraram de que lamentavelmente
tinham assistido ao afogamento dos três no forte de Coligny, a mando de
Villegagnon por causa do Evangelho, a saber, Pierre Bourdon, Jean du
Bordel et Matthieu Verneuil, mas também que tinham trazido, por escrito,
tanto a confissão de fé, como todo o processo de Villegagon contra eles.
Elas deram para du Pont, de quem obtive logo depois (...) me sentindo
obrigado a ter o cuidado de que a confissão de dessas três boas
personagens fosse registrada no catálogo daqueles que em nossa época
constantemente suportaram a morte pelo testemunho do Evangelho, em
1558 eu dei-a ao editor Jean Crespin
Certains personnages dignes de foi que nous avions laissé en ce pay-
là, d‟où ils revinrent environ quatre mois après nous, ayans rencontré le sieur
49
A confissão de calvinista apareceu pela primeira vez publicada no panfleto protestante anônimo Histoire des
choses memorables de 1561. A partir de 1564 passou a fazer parte da Histoire des Martyrs, de Jean Crespin
(Lestringant 1993 - 1996: 143n). Em 1565, a mesma versão de 1561, foi publicada no Brief Recueil.
162
du Pont à Paris, ne l‟assurèrent pas seulement qu‟à leur grand regret ils
avaient été spectateurs quand Villegagnon à cause de l‟Evangile en fit noyer
trois au fort de Colligny, à savoir Pierre Bourdon, Jean du Bordel et Matthieu
Verneuil, mais aussi outre cela, ayant apporté par écrit tant leur confession de
foi que toute la procédure que Villegagnon tint contre eux, ils la baillèrent
audit sieur du Pont, duquel je la recouvrai aussi bientôt après (...) me sentant
sur tous autres obligé d‟avoir soin que la confession de foi de ces trois bons
personnages fût enregistrée au catalogue de ceux qui de notre temps ont
constamment enduré la mort pour le témoignage de l‟Evangile, dès cette mesme
année 1558 je la baillai à Jean Crespin imprimeur” (1578 - 1992: 221).
Essa passagem de Léry foi, ao longo da década de 90, matizada por Lestringant. Em 1990,
ele escreveu:
la confession des trois martyrs aurait été recueillie sur place par
„certains personnages dignes de foy‟, que Léry s‟abstient de nommer, et
transmise ensuite à Du Pont de Corguilleray, le chef du continente huguenot à
Guanabara. Entre ce dernier et l‟imprimeur genovois Jean Crespin, qui reçoit
dès 1558 ce témoignage de la persécution de l‟Evangile sous les latitudes
tropicales et qui l‟insère en 1564 dans l‟Histoire des Martyrs, Léry aurait fait
fonction d‟intermédiaire, joignant à la „confession de foi brésilienne‟, la
narration circonstanciée du recueil et de la dispersion de la première Eglise
réformée du Nouveau Monde” (Lestringant - 2004: 99).
Já em 1993, Lestringant afirmou:
l‟intinéraire suivi par la confession de foi brésilienne se reconstitue
donc aisément. Un rédacteur qui n‟a pas été lui-même présent à tout, et qui
pourrait être Léry, a consigné le récit des témoins directs du drame, sans doute
des serviteurs de Villegagnon inclinant en faveur des victimes, mais trop
timorés pour s‟opposer à la tyrannie de leur maître et professant un
163
nicodémisme de circonstance. Seuls en effet des proches du „roi d‟Amérique‟
étaient à même d‟assister à l‟agonie des trois martyrs, qui nous est rapportée
dans les moindres détails” (- 1996: 146).
Finalmente, em 1996, ele redigiu uma nota em que afirma: quant à la paternité de ry
(...) mon opinion n‟est pas définitivemenet arrêtée sur ce point” (: 93).
Villegagnon não mencionou que tenha submetido os calvinistas à confissão de fé,
diferentemente, transcreveu em Les propositions contenus, o seguinte requerimento feito na
França Antártica sobre três proposições redigidas por Richer e comentadas por Villegagnon: no
dia 27 de dezembro de 1557, antes de du Pont embarcar (...) foi enviado por Villegagnon
onde estava Pierre Richer para ter uma exposição correta de três proposições que ele tinha
escrito e enviado ao dito senhor sobre os sacramentos/ le vingtseptiesme iour de Decembre
1557, auant l‟embarquement du seigneur du Pont (...) fus envoyé par monsieur de Villegaganon
la part ou estoit maistre Pierre Richer Ministre, pour auoir exposition certaine de trois
propositions qu‟il auoit escriptes & enuoyoes audict seigneur touchant les sacramens(1560 -
1562: 32). Tais proposições, segundo Villegagnon, eram diferentes da doutrina de Calvino,
seu mestre” / differentes à la doctrine de Caluin son maistre” (1560 - 1562: 32).
No corpo do livro Villegagnon também comentou a respeito do que Richer havia escrito:
se esta proposição furiosa e raivosa é tão absurda que parece
inacreditável, eu a mostrarei escrita pelo próprio punho de Richer, como
ofereci fazer aos magistrados de Genebra quando eles me designarem um
lugar seguro, à custa de ser encontrado, convencido e punido como
caluniador
si ceste furieuse & enragee proposition est trouuee si absurde, qu‟elle
semble incroyable, ie la monstreray escripte de la propre main dudict Richer:
164
cõme ie me suis offert de faire aux Magistrats de Genesue, m‟estãt par eulx
assigné lieu seur, à peine d‟estre attainct, conuaincu & puny, comme
calomniateur” (1560 - 1562: 246-247).
Em 1561, na longa resposta às Remonstrances, de Marlorat, Villegagnon voltou, pelo
menos, duas vezes ao tema. Citou um texto que, segundo afirmou: eu tenho isso escrito pela
o do irmão Pierre Richer, nosso ministro no Brasil/ j‟ay cecy escript de la main de frere
Pierre Richer nostre ministre au Bresil (1561a: 11). E depois escreveu: a esperança não
pertence ao corpo, como me deixou por escrito vosso irmão Pierre Richer/ l‟esperance
n‟en appartienne au corps, cõme m‟a laisse par escrit votre frere Pierre Richer(1561a: 69).
Léry apenas respondeu a essas afirmações de Villegagnon na quarta edição da Histoire
d‟un voyage (1599). Negou que Richer tivesse escrito as tais proposições, acusando Villegagnon
da mesma forma como atacou Thevet. Consta como acréscimo, portanto, nessa edição, o seguinte
comentário:
Sem levar em consideração a mentira bastante imprudente no
começo de seu livro, onde ele diz que M. Auberi foi enviado até Pierre
Richer, na França Antártica, no dia 28 de setembro de 1558 - uma vez que
Richer tinha partido conosco no dia 4 de janeiro daquele ano e chegado à
França no s de maio, como será visto, que todos nós chegamos, com a
graça de Deus, no último capítulo dessa história - como isso poderia ter
ocorrido em setembro? Como? Veja como Villegagnon e Thevet,
invertendo o tempo e as estações, nada mais fazem do que mentir em todos
os seus discursos, ludibriando o mundo
Sans mettre en conte le tres-impudent mensonge qu‟il a mis au
commencement de sondit livre, il dit que M. Auberi fut envoyé vers maistre
Pierre Richier en la France Antartique le 28. de Septembre, 1558. attendu que
165
ledit Richier, avec nous, estant parti des le quatrieme de Janvier precedent de
ceste mesme année, et arrivé en France sur la fin de May suyvant, comme on
verra que nous fismes tous, par la grace de Dieu, au dernier chapitre de ceste
histoire, comment y pouvoit-il estre en Septembre? Mais quoi ? voila comme
Villeganon et Thevet renversans les temps, et les saisons, ne faisans que le cerf
(serf, dans 1611) de mentir en tous leurs discours ont abusé le monde(1578 -
1994: 184.n.)
Alguns tópicos da confissão de fé estão no próximo capítulo desta tese.
Escritos protestantes na
França Antártica
Protestantes
Villegagnon
Confissão de fé calvinista
Proposições sobre a
Eucaristia
A execução dos três mártires e o destino do quinto:
Segundo o panfletista que transcreveu a confissão de fé, foi Jean du Bordel, o mais velho e
mais instruído, quem a escreveu, como resposta aos artigos propostos por Villegagnon. O
conteúdo dessa confissão de fé será tratado no capítulo sobre o debate travado na França entre
Villegagnon e os calvinistas a respeito da Eucaristia. Por ora, gostaria de tratar somente do
destino dos cinco calvinistas que retornaram à Guanabara, destacando que apenas quatro
assinaram o documento: Iean dv Bordel, Piere Bovrdon, Matthiev Vermeil e Andre La-Fon.
166
O relato da execução dos dias que se seguiram à confissão de foram narrados
detalhadamente por um panfletista anônimo e depois incorporado à Histoire des Martyrez.
Segundo ele, Villegagnon
não tinha vergonha de dizer que não era permitido deixá-los viver
mais, a fim de que o resto da companhia não fosse surpreendido com o seu
veneno. Tendo pela última vez decidido que eles deveriam morrer,
dissimulou o que pretendia fazer muito engenhosamente, com medo de que
os pobres homens fossem advertidos da traição que ele tramava. Dizia-se
que ele não se comunicou com nenhuma pessoa da sua companhia e que se
manteve assim, em segredo, até a sexta-feira, 9 de fevereiro de 1558, dia em
que, desde o período da manhã, sabendo que seu barco deveria ir à terra
firme buscar alguns víveres, ordenou aos marinheiros que trouxessem Jean
du Bordel e seus companheiros, que estavam morando com outros
franceses. Estes julgaram que seriam interrogados sobre a confissão de fé,
portanto ficaram temerosos e aterrorizados. Os franceses, com choro e
lágrimas, os dissuadiram de se render à carnificina. Não obstante, Jean du
Bordel, homem virtuoso e dotado de uma constância maravilhosa, rogou a
todos os franceses que não intimidassem mais os companheiros e exortou-
os não apenas a partirem, como também a oferecerem a vida se assim Deus
quisesse (...)
Quando desceram na ilha, Villegagnon ordenou que fossem levados
diante dele, eles tinham a confissão de nas mãos e foram questionados se
haviam assinado a confissão e se estavam preparados para defendê-la. Eles
responderam em uníssono que haviam assinado e cada um reconheceu a
sua assinatura, entendendo-a como cristã, tirada das santas escrituras, de
acordo com a confissão dos santos apóstolos e mártires da Igreja primitiva.
Quando tinha acabado de pronunciar essas parcas palavras,
Villegagnon, demonstrando uma expressão furiosa e colérica, com muita
audácia, ameaçou-os de morte, caso mantivessem esta opinião miserável
(como ele dizia) e condenável. Logo em seguida, ordenou ao seu capataz
167
que os acorrentassem pelas pernas. Cada corrente foi suspensa com
cinquenta ou sessenta libras. (Dizia-se que ele estava provido de tais
ferramentas, como os quais instrra os pobres brasileiros a dar pena, em
vez de ofertar-lhes, com doçura, a inteligência de Deus). Não contente de
-los acorrentados, ordenou que fossem para uma prisão fétida e obscura,
cuidadosamente guardada por homens armados. Os pobres prisioneiros,
ao contrário, se juntaram e se consolaram uns aos outros, rezando,
cantando os Salmos e louvando a Deus com grande zelo e afeição.
Ora, toda a companhia da ilha foi fortemente perturbada com esse
ato e cada um ficou apavorado onde quer que estivesse. Não obstante,
alguns deles, quando Villegagnon precisava repousar ou ir para outro
lugar, secretamente visitavam os prisioneiros, consolando-os com
esperança, partilhando com eles os víveres, os quais tinham muita
necessidade. Entre eles não havia um homem sequer com autoridade ou
aparência que pudesse ter a audácia necessária para repreender
Villegagnon da injustiça e tirania que ele cometia, menos ainda podiam
esperar daqueles da ilha. Durante todo esse dia, Villegagnon ordenou que
nenhuma embarcação poderia saber o que acontecia na fortaleza.
Nesse dia, Villegagnon quase não repousou, passeando pensativo
por toda a ilha. Com frequência, ia até as prisões checar se as portas
estavam bem fechadas e trancadas. Ele apanhou as armas que os soldados
e artesãos guardavam nos seus quartos para defender o lugar, de pânico
que as pessoas se levantassem contra ele.
Com as coisas organizadas dessa forma, ele refletiu durante o resto
do dia e da noite sobre como eles deveriam ser mortos. Enfim, concluiu que
eles deveriam ser estrangulados e afogados no mar, visto que seu capataz
não tinha outra espécie de recurso para matá-los. Apesar de estarem
presos, Villegagnon não descansou naquela noite, ia e corria visitar as
prisões de hora em hora.
Enquanto isso, Jean du Bordel continuava e perseverava a exortar
seus companheiros a louvar a Deus e render-lhe graças da honra do
168
chamamento à confissão de seu santo Nome, naquele país tão rbaro e
estranho, dando-lhes esperança de que Villegagnon não era tão cruel a
ponto de matá-los; que apenas eles esperassem estar quites, permanecendo
servos e escravos por toda a vida. Mas os companheiros que conheciam a
natureza de Villegagnon tinham pouca esperança; consideravam que há
muito tempo ele buscava a oportunidade, que agora estava ali.
Na manhã do dia seguinte, na sexta-feira do mesmo mês, ele chegou
bem armado a uma pequena sala e mandou que trouxessem Jean du
Bordel acorrentado, a quem pediu explicações sobre o artigo do
Sacramento, onde ele confessava que o pão e o vinho eram signos do corpo
e do sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, confirmando pelas palavras de
Santo Agostinho.
Quando Jean du Bordel quis citar a passagem para confirmar o que
tinha dito, Villegagnon cheio de raiva desmentiu-o, levantou o punho
contra ele e golpeou-o no rosto de tal forma que imediatamente o sangue
começou a sair do nariz e da boca de forma abundante. Quando o atingiu
disse essas palavras: você mentiu indigente, Santo Agostinho não
compreendeu assim. Hoje, antes de comer, farei com que sinta o fruto da
sua obstinação. O pobre homem assim ultrajado respondeu apenas que
fosse em nome de Deus. Como algumas lágrimas de dor pelo grande golpe
que tinha sofrido caíram junto com o sangue, Villegagnon zombou dele,
chamando-o de mole e tenro porque chorava por causa de um piparote.
Novamente, perguntou se ele queria manter o que tinha escrito e
assinado. Jean du Bordel respondeu que sim, na medida em que aquilo era
o que tinha sido ensinado pela autoridade da santa Escritura. Villegagnon,
notando a segurança de Jean du Bordel, ordenou que ele fosse amarado
pelos braços e pelas mãos e que fosse levado para cima de uma rocha que
ele tinha escolhido, onde o mar, duas vezes ao dia, se elevava a três pés.
Com seu ajudante, e com armas em punho, conduziu esse pobre paciente
ao lugar determinado.
169
Quando Bordel passou perto da prisão onde estavam seus
companheiros, gritou bem alto para que eles tivessem coragem, visto que
eles seriam levados dessa vida miserável. Caminhou em direção à morte
com grande alegria, cantando os Salmos e catingas ao Senhor (...).
Quando subiu na rocha, quase não pôde receber a graça de Deus
antes de partir desse mundo por causa da pressa que Villegagnon exigiu do
seu capataz. Todavia, conseguiu se jogar de joelhos sobre a rocha, onde
confessou a Deus seus pecados e culpas, pedindo-lhe graça e perdão, em
nome de seu Filho Jesus Cristo, nas mãos de quem recomendou seu
espírito. Depois, tirou a camisa, submetendo-se à vontade do capataz,
rogando que ele não o fizesse languir. Vendo Villegagnon que a execução
demorava, ameaçou açoitar o capataz, caso ele não seguisse a diante. O
capataz jogou no mar esse pobre homem que invocou a ajuda do nosso
Senhor até quando, afogado com grande violência e crueldade, rendeu a
Deus seu espírito.
Depois que Jean du Bordel foi executado, o capataz trouxe Matthieu
Vermeil que, apesar de impressionado com a morte de seu companheiro, se
manteve firme e constante. Quando o levou ao lugar da execução,
Villegagnon, que não tinha por ele o mesmo ódio que tinha por Jean du
Bordel, perguntou-lhe se ele queria a condenação, mas esse homem,
virtuosamente o repeliu. É verdade que se esfolou na rocha e morreu. Ele
quis saber a razão das mortes e disse: Villegagnon, nós roubamos ou
ultrajamos os vossos servidores mais humildes? Nós planejamos a vossa
morte, ou procuramos algo que vos desonrasse? Faça comparecer algum
dos seus que nos acusam disso. Não, indigente, respondeu Villegagnon.
Você e seus companheiros não vão morrer por alguma coisa que alegam
mas, na medida em que vocês são pestes muito perigosas separadas da
Igreja, é preciso que sejam cortados como membros podres, a fim de que
não corrompam o resto da minha companhia.
O pobre paciente respondeu nesses termos: ora, visto que é assim,
que usa a religião como pretexto, eu vos peço, você não fez (não havia
170
ainda passado oito meses) ampla confissão dos pontos e artigos pelos os
quais hoje nos faz morrer? Oh Deus eterno, visto que pela luta de seu Filho
Jesus Cristo nós sofremos hoje para manter a santa palavra e doutrina que
nos leva à morte, queria por sua clemência, acordar, assistir aos seus,
tomando a causa que é sua em suas mãos, de modo que esse Satã e as
potências do mundo não consigam me vencer. Retornando a face em
direção a Villegagnon, rogou que não o matasse, mantendo-o como
escravo. Villegagnon envergonhado, respondeu de forma tosca a esse pobre
paciente que não tinha em que empregá-lo, estimando-lhe menos que a
torpeza do caminho. Todavia, prometeu que pensaria, caso ele quisesse
voltar atrás do que havia dito e confessar os erros. Assim, Vermeil, vendo
que a esperança que lhe era ofertada prejudicaria sua salvação e, ainda
que com incerteza, gritou alto que preferia morrer para viver eternamente
com o Senhor do que viver um pouco de tempo para morrer com Satã.
Depois rezou sobre a rocha, recomendou sua alma a Deus e entregou-se
voluntariamente. Gritou alto: Senhor Jesus, tenha piedade e mim e rendeu
o espírito.
O terceiro, o alfaiate André-La-fon, foi levado pelo capataz ao lugar
do suplício. Caminhando, pediu que se tivesse ofendido alguém, que fosse
perdoado, uma vez que era a vontade de Deus que ele morresse pela
confissão do seu santo Nome. Ora, Villegagnon, quis mantê-lo por causa
das suas habilidades, visto que não tinha nenhum alfaiate em sua casa.
Todavia, ele não poderia proceder assim sem ser reprimido, pois poderiam
achar que favoreceu um em detrimento de outro.
Dizia-se que ele tinha instruído um criado a agir assim: pois esse
criado, junto com outro, advertiu a La-fon de que se ele quisesse salvar a
sua vida era conveniente expor a Villegagnon que ele não era
suficientemente versado nas santas Escrituras para ter respondido todos os
pontos que poderiam ser perguntados. La-fon não levou muito a sério o
conselho, pois tinha a opinião de que não precisava do perdão dos homens,
mas sim do de Deus.
171
Os criados fizeram o capataz esperar e foram apressadamente até
Villegagnon, que não estava muito distante de lá. Eles pediram que
perdoasse o alfaiate, uma vez que este não tinha estudo, que não queria
manter uma opinião obstinada e que com o tempo o pobre alfaiate poderia
mudar de opinião. Alegaram também que o alfaiate seria necessário por
causa da sua habilidade e que substituiria outro que lhe acarretaria muitas
despesas.
A princípio Villegagnon indeferiu muito rudemente às súplicas,
alegou que o alfaiate tinha permanecido obstinado com a mesma opinião
dos seus companheiros, o que o desagradava muito e que tinha conhecido
um homem pacífico, que poderia realizar a tarefa. Mas, se ele quisesse
reconhecer o erro, seria perdoado. De outra forma não poderia garantir-
lhe a vida. Ele mandou que antes de o capataz estrangu-lo fosse
perguntado isso ao alfaiate. Esse pobre homem, estando quase a vencer o
obstáculo, foi solicitado pelo criado e seu companheiro a desdizer, ou
prometer reconhecer seu erro, ou ao menos assegurar que não queria
continuar obstinado. De outra forma, não teria como salvar sua vida.
Enfim, esses conselheiros persuadiram de tal forma o alfaiate, que
para evitar a morte, ele disse que não queria estar obstinado, nem pertinaz
nas suas opiniões, quando lhe ensinassem o contrário sobre a palavra de
Deus, insistindo naquilo que ele entendeu desdizer. Villegagnon
compreendeu que ele havia prometido abjurar aquilo que tinha tão
constantemente sustentado, mandou que o capaz o desamarrasse e o
deixasse ir em paz para a fortaleza onde estava preso, e na qual
permaneceu cativo trabalhando para Villegagnon e sua gente.
Todas essas coisas foram expedidas naquele dia, antes das nove
horas da manhã e antes que a maior parte das pessoas que estavam na ilha
fosse avisada. Depois que conheceram a crueldade e a barrie de
Villegagnon, blasfemaram, de direito, sua pusilanimidade, uma vez que
ninguém quis se opor à injustiça da efusão do sangue inocente. Não houve
nenhum homem para impedi-lo, cada um se manteve em seu quarto sem
172
ousar proferir uma palavra daquilo que pensava. Foi permitido que
Villegaggnon executasse tal crueldade como bem quis.
Ora, ele ainda não tinha concluído seu sacrifício, pois restava o
quarto calvinista, Pierre Bourdon, aquele que Villegagnon odiava
extremamente. Pierre Bourdon, como dito anteriormente, tinha
permanecido muito doente, em terra firme, portanto não pode embarcar
junto com seus companheiros. Villegagnon, para perfazer a execução que
tinha começado, entrou num barco com alguns marinheiros (temendo que
na sua ausência o torneiro fosse favorecido pelos seus servidores), desceu
em terra pela segunda vez, enquanto os outros permaneceram no barco.
Quando entrou na casa, perguntou pelo torneiro, que lhe foi apresentado
semimorto por causa da doença. O primeiro cumprimento que ele fez a
esse pobre doente foi mandar que se levantasse e embarcasse com
diligência.
E porque ele tinha declarado, tanto por palavras quanto por causa
da sua grande debilidade, que não poderia servir naquilo que se queria
empregá-lo, visto que, no momento, estava inutilizado, Villegagnon lhe
respondeu que era para ele pensar e tratar. E vendo que esse pobre doente
não podia se manter em (tanto que quase não conseguia andar), fez com
que fosse carregado para o barco. E assim perguntou-lhe se queria manter
a confissão de fé que tinha assinado; ele respondeu que pensaria.
Todavia, sem esperar, quando desceram em terra, o capataz
(segundo o comando que lhe havia sido dado) o amarrou e depois o levou
ao lugar onde os outros tinham sofrido, advertindo-o de que colocasse a
mão na consciência. Então, esse pobre paciente levou os olhos ao céu, e,
com os braços cruzados, não contristou de forma alguma, julgando que
naquele lugar seus companheiros tinham obtido a vitória contra a morte.
Ele recomendou sua alma a Deus e gritou alto as seguintes palavras:
Senhor Deus, eu sou da mesma matéria que meus companheiros, que com
glória e honra apoiaram esse combate pelo seu Nome; eu te suplico de me
dar a graça, para que eu não sucumba no meio dos assaltos, que me livre
173
de Satã, do mundo, da carne e que queira perdoar todos os erros e ofensas
que cometi contra a Majestade, em Nome de seu Filho, muito amado, nosso
Senhor. Tendo orado assim, voltou-se para Villegagnon a quem perguntou
o motivo da sua morte. Ele respondeu que era porque ele tinha assinado
uma confissão de fé herética e escandalosa. E como ele quis replicar e
entender sobre qual ponto ele era declarado herético, visto que não a tinha
examinado, que, se assim fosse, se convenceria. Mas essas advertências não
fizeram efeito porque (como diz Villegagnon) não havia tempo de
contestar; seu capataz recebeu ordem de agir rapidamente. Esse pobre
homem, vendo que as leis humanas e divinas, as prescrições honestas e
civis, a humanidade e a cristandade estavam sepultadas, com firmeza se
submeteu, e invocando o favor de Deus expirou no Senhor. Sufocado e
estrangulado foi jogado na água como seus companheiros
n‟auoit point honte de dire qu‟il n‟estoit loisible de les laisser
longuement viure: afin que de leur poison le reste de sa compagnie ne fust
surpris. Ayant pour la derniere fois resolu de les faire mourir, dissimula ce
qu‟il auoit enuie de faire fort ingenieusement, de peur que les poures hommes
ne fussent aduertis de la trahison qu‟il brassoit. On disoit qu‟il ne communiqua
à homme viuant de son entreprise, & se contint ainsi secret iusques au
Vendredi neusieme iour de Feurier M. D. LVIII. auquel iour dés le matin,
sachant que son bateau deuoit aller en terre ferme cercher quelques victuailles,
commanda à ceux du bateau de luy amener Ieã du Bordel & ses compagnons,
qui pour lors s‟estoyent longez auec autres François. Le commandemẽt estant
fait, iugerent que c‟estoit pour les interroguer sur leurdicte confession de foy:
partant furent saisis de crainte & tremblement. Les François en pleurs &
larmes les dissuadoyent de s‟aller rendre à la boucherie. Nonobstant Iean du
Bordel homme vertueux & doué d‟vne constance merueilleuse, pria tous les
Frãçois de n‟intimider plues ses compagnons, lesquels aussi par telles paroles
exhorta non seulement d‟y aller, mais aussi se presenter à la mort, si Dieu le
vouloit (...)
174
Estant descendus en l‟isle, Villeg. comande qu‟ils fussent amenez deuant
luy, ausquels (tenant leur confession de foy en la main) demanda s‟ils l‟auoyent
signee, & s‟ils estoyent prests de la soustenir. Ils respondent tous ensemble,
qu‟ils l‟auoyent faite & signee, recognoissant chacun son seing: & attendu
qu‟ils la pensoyent Chrestienne, puisee des sainctes Escritures, selon la
confession des saincts Apostres & Martyrs de la primiue Eglise.
A peine eurent-ils respondu ce peu de paroles, que Villegaignon
demonstrant vn visage furieux & courroucé, de grãd‟audace les menace de
faire mourir s‟ils cõtinuoyent e celle opiniõ malheureuse (comme il disoit) &
damnable. Et tout à l‟heure commanda à son bourreau les enferrer par les
iãbes, à chacune chaine estre suspendue la pesanteur de cinquante ou soixante
liures. On dit qu‟il estoit fourni suffisamment de tels engins, dasquels il
instruisoit les poures Bresiliẽs à pieté, au lieu de leur dõner l‟intelligence de
Dieu par douceur. Non content de les auoir fait enferrer, commande qu‟ils
fussent ferrez estroitement en vne prison puante & obscure, & soigneusemẽt
gardez par les armez qu‟il auoit ordonnez pour ce faire. Les poures
emprisonnez au contraire se resiouissent & consolent l‟vn l‟autre en leurs
liens, prient, chãtent Pseaumes & louanges à Dieu d‟vn grãd zele & affection.
Or toute la cõpagnie de l‟isle fut grandement troublee de cest acte, &
chacun en son endroit conceut vne grãde crainte: neantmoins aucuns d‟eux,
quand Villegaignon estoit esmpesché à son respos, ou autre lieu, secrettement
visitoyent les prisonniers, les consolant de quelque espoir, pareillement de
viures desquels ils auoyent grande necessité. Mais à raison que entr‟eux il n‟y
auoit homme d‟authorité ou apparence qui peust prende la hardiesse de
remõstrer audit Villeg. l‟iniustice & tyrannie qu‟il cõmettoit, esperoyent moins
de secours de ceux de ladite isle. Tout ce iour Villeg. defend que barque ne
bateau ne peurent estre aduerris de ce qui se brassoit en la forteresse.
Ce iour Villegaignon eut peu de respos, se pourmenant tout autour de
son isle, pensif, luy deuxieme. Souuent il alloit aux prisons voir si portes
estoyent biẽ closes, & aux ferrures si elles n‟estoyent fausses. Il se saisit des
175
armes que les soldats & artisans tenoyent en leurs chambres pour la garde &
defense du lieu. C‟estoit d‟vne crainte que le peuple ne s‟esleuast contre luy.
Ses affaires ainsi bien ordonnees, le reste du iour & de la nuict consulta
à part soy de quelle espece de mort il les deuoit faire mourir: en fin il conclut
de les faire estrãgler & suffoquer en mer, pource que son bourreau n‟estoit
stylé aux autres especes de mort. Et combien qu‟il l‟eust arresté, si est-ce que
celle nuict ne reposa aucunement: mais alloit & enouoyoit visiter les prisons
d‟heure en heure. Ce tẽps pendant, Iean du Bordel continuoit & perseueroit
d‟exhorter ses compagnons à louer Dieu, & luy rendre grace de l‟honneur qu‟il
leur faisoit, les appellãt à la cõfession de son sainct Nom, en ce pays-là si
barbare & estrange, leur dõnant espoir que Villeg. ne seroit si trãsporté de
cruauté, de les faire mourir: seulement ils s‟attendoyent estre quittes
demourans serfs & esclautes toute leur vie. Mais lesdicts cõpagnõs cognoissans
le naturel dudit Villegaignon, auoyent peu d‟esperance en leur vie: attendu que
dés long temps ice-luy auoit cerché l‟opportunité qui lors luy estoit venue fort à
propos. Le lendemain matin, iour de Vẽdredi audit mois, il descend bien armé
auec vn page en vne sallette, dãs laquelle il fait amener Ieã du Bordel enferré,
auquel il demãda l‟explication de l‟article du Sacremẽt, il confessoit que le
pain & le vin estoyẽt signes du corps & du sang de nostre Seigneur Iesus, le
confermant par le dire de sainct Augustin. Ledit du Bordel luy voulant citer le
passage pour confermer son dire, Villegaignon esmeu de grande cholere,
desment ce poure patient: & leuant le poing luy en donne vn tel coup sur le
visage, que tout incontinent le sang sortit du nez & de la bouche en abõdance.
En le frappant adiousta semblavles paroles, Tu as menty paillard, S. Augustin
ne l‟a ainsi entendu: parquoy auiourd‟huy premier que ie mange, ie te feray
sentir le fruict de ton obstination. Ce poure homme ainsi outragé, ne luy feit
autre respõse, qu‟au nom de Dieu fust. Cõme il luy tomboit quelques larmes
auec le sang, de la grande douleur du coup qu‟il auoit receu, Villeg. se
mocquãt l‟appelloit douillet & tendrõ: pource qu‟il pleuroit d‟vne chiquenaude.
De rechef luy demanda s‟il vouloit maintenir ce qu‟il auoit escrit &
signé. Il fut fait responde par ledit du Bordel qu‟ouy, iusques à ce ~q par
176
authorité de la saincte Escriture il fust enseigné du contraire. Villeg. voyant la
ferme& asseurance dudit du Bordel, cõmandé à son bourreau le lier par les
bras & les mains, & le mener sur vne roche, laquelle il auoit luy-mesmes
choisie à propos, la mer s‟esfle deux fois le iour de trois preds: luy auec son
page, les armes au poing, cõduisent ce poure patient au lieu assigné. Bordel
passant pres de la prison estoyent ses compagnons, s‟escria à haute voix
qu‟ils prinssent bon courage: veu qu‟ils seroyent bien tost deliurez de ceste vie
miserable. Et en allant à la mort de grand ioye, chãtoit Pseaumes & catiques
au Seigneur (...). Estant monté sur la roche, à peine obt~ir-il fauer de prier
Dieu, premier que de partir de ce monde, pour la precipitation que faisoit
Villegaignon à son executeur. Toutesfois par maniere d‟acquit luy permit se
ietter à genouil sur ladite roche, il fit cõfession à Dieu de ses fautez &
pechez, luy demãdant grace & pardõ, au nom de son Fils Iesus Christ: entre les
mains duquel il recommanda son esprit. Puis il se despouilla en chemise, se
submettant à la mercy du bourreau, le priant de ne le faire languir. Villegag.
voyant que l‟execution tardoit trop, menace le bourreau de luy faire donner les
estriuieres, s‟il ne se hastoit: partant à l‟estourdi le bourreau iette en mer ce
poure homme inuoquant nostre Seigneur Iesus à son aide, iusques à ce ~q noyé
par grande violence & cruauté, il rendit à Dieu son esprit.
Iean du Bordel executé, le bourreau amena Matthieu Vermeil estonné
grãdement de la mort de son compagnon, toutesfois demeura ferme & constant.
Car en le menant au lieu de l‟execution, Villeg. qui ne luy portoit telle haine
qu‟à Iean du Bordel, luy demãda s‟il se vouloit perdre & dãner: mais cest hõme
vertueusemẽt le repoussa. Vray est qu‟ẽ se despouillãt sur la roche, il
apprehẽdoit la mort: & sur ce requit qu‟on luy dist àquelle raison on les faisoit
mourir. O seigneur Villeg. (disoit-il) vo
9
auõs-nous desrobé, ou outragé le
moindre de vos seruiteurs? auõs-nous machiné vostre mort, ou procuré chose à
vostre deshonneur? (...) faites comparoir ceux s‟il y en a aucuns qui nous
accusent de ce. Non paillard, respõdit Villegaignon: toy ne tes compagnons ne
mourreez pour aucune de choses que tu as allegue: mais d‟autant que vous
estes pestes tres-dangereuses separez de l‟Eglise, il vous faut retrencher comme
177
membres pourris: afin que ne corrompiez le reste de ma compagnie. Ce poure
patient respond en ces termes, Or puis qu‟il est ainsi que prenez la religion
pour couuerture, ie vous prie, n‟auez-vous fait (il n‟y a pas huict mois passez)
encores ample cõfession de poincts & articles, pour lesquels auiourd‟huy vous
nous faites mourir? O Dieu eternel, puis que pour la querelle de ton Fils Iesus
Christ no
9
souffrõs auiourd‟huy, puis que pour maintenir ta saincte parole &
doctrine on nous meine à la mort, vueille par ta clemence te resueiller &
assister aux tiens, prenãt leur cause, qui est la tienne, en ta main: à ce que
Satan, ne les puissances du monde, n‟ayent victoire sur moy. Retournat la face
vers ledit Villegaignon, le pria qu‟il ne le fist mourir, le retenant pour son
esclaue. Villeg. honteux de vergongne, ne fauoit que respondre aux pitoyables
requestes de ce poure patient: sinon qu‟il ne pourroit à quoy l‟employer,
l‟estimant moins que l‟ordure du chemin. Toutefois il luy prometoit d‟y pẽser
s‟il se fust voulu desdire, & confesser qu‟il erroit. Lors ledit Vermeil voyant que
l‟espoir qu‟on luy donnoit, estoit au grand preiudice de son salut, & encores
incertain, tout resolu cria à haute voix, Qu‟il aimoit mieux mourir pour viure
eternellement au Seigneur, que viure vn peu de temps pour mourir à iamais
auec Satan. Puis ayant fait sa priere sur la roche, & recommandé son ame en
la garde de Dieu, laissa volontairement faire le bourreau: & criãt à haute voix,
Seigneur Iesus aye pitié de moy, rendit l‟esprit.
Le troisieme, André La-fon tailleur d‟habillemẽs, fut amené par le
bourreau au lieu du supplice. En y allant requeroit que s‟il auoit offensé
quelqu‟vn, on luy pardõnast, veu que c‟estoit le vouloir de Dieu qu‟il mourust
pour la confession de son sainct Nom. Or Villegaig. eust bien voulu retenir
celuy-là pour le seruice qu‟il luy pouuoit faire de son estat, attendu qu‟il
n‟auoit aucun tailleur en sa maison: toutefois il ne le pouuoit faire sans en
estre reprins, afin qu‟on ne l‟estimast porter plus de faueur à l‟vn qu‟à l‟autre.
On disoit qu‟il auoit instruit vn sien page de ce faire: car cestuy page auec vn
autre aduertirent ledit La-fon, que s‟il vouloir sauuer sa vie, il luy conuenoit
remonstres audit Villegaignon, qu‟il n‟estoit beaucoup versé aux
saictes Escritures pour respõdre à to
9
les poincts qu‟on luy pourroit demander.
178
Ledit La-fon ne feit grand conte de leur conseil, ayant opinion qu‟il n‟auoit
affaire du pardon des hommes, mais de Dieu. Ce page & l‟autre sont retarder
le bourreau: & ce temps pendant accoururent à Villegaignon qui n‟estoit loin
de là. Ils luy requirent qu‟il pardonnast la vie au tailleur, luy remonstrans qu‟il
n‟auoit estudié, & qu‟il ne desiroit tenir vne opinion obstinément :& se pourroit
faire auec le temps que le poure tailler changeroit d‟opinion. Dauantage
alleguans que ledit tailleur luy seroit fort necessaire pour son seruice,
suppleeroit le lieu d‟vn autre, qui luy cõuiendroit entretenir en grande
despense. Villegaignon de prime face reboute tresrudement les supplians de
leurs requestes, alleguant que ledit tailleur demeuroit obstiné en l‟opinion de
ses compagnons: dont il estoit fort desplaisant. Car il auoit cognu hõme
paisible, duquel il pouuoit tirer seruice: s‟il vouloit recognoistre erreur, il
luy pardonnoi: autrement il ne le pouuoit garentir de mort. Il commanda qu‟on
seust cela de luy, premier que le bourreau l‟estranglast. Ce poure homme
estant prest de passer le pas, fut sollicité & practiqué par le page & son
compagnon, de le desdire: ou promettre de recognoistre son erreur: ou pour le
moins qu‟il protestast de ne vouloir estre obstiné: autrement il n‟y auoit moyen
de luy sauuer la vie. En fin ces conseillers persuadent tellement le tailleur, que
pour euiter la mort il descendit à dire qu‟il ne vouloit estre obstiné, ne pertinax
en ses opinions, quand on luy enseigneroit le contraire par la parole de Dieu,
insistãt en ce qu‟il entendoit se desdire. Villegaignon ayant entẽdu qu‟il
promettoit d‟abiurer ce qu‟il auoit tant constammẽt soustenu, mande au
bourreau qu‟on le desliast & laissast aller en paix en la forteresse laquelle luy
fut donnee pour prison, & dans laquelle il est demeuré captif ouurãt de son
estat pour ledit Villeg. & ses gens.
Toutes ces choses furent expediees ledit iour auant neuf heures du
matin, & premier que la plus grande partie des personnes qui estoyent en l‟isle,
en fust aduertie. Dont apres auoir cognu la cruauté & barbarie de
Villegaignon, blasmoyent à bon droict leur pusillanimité, par ce que personne
ne s‟estoit voulu opposer à l‟inuiste effusion du sang innocent. Pource qu‟il n‟y
auoit homme pour entreprendre de faire ladite remonstrance, chacun se contint
179
en sa chambre, sans oser proferer vn seul mot de ce qu‟il pẽsoit partãt il fut
loisible à Villeg. d‟executer telle cruauté que bon luy sembla.
Or il n‟auoit du tout accompli son sacrifice: car le quatrieme restoit qui
estoit Pierre Bourdon, celuy qu‟il haissoit extremement. Ce Pierre Bourdon,
(comme i‟ay deuãt dit) estoit demeuré en terre ferme bien malade: partant ne
s‟estoit peu embarquer auec ses compagnons. Villegaignon pour parfaire
l‟execution qu‟il auoit commencee, entra en vn bateau auec quelques mariniers
(craignant qu‟en son absence le tourneur ne trouuast faueur en ses seruiteurs)
puis descẽd en terre luy deuxieme, le reste demeure dans son bateau. Estãt
entré en sa maison, demande le tourneur, lequel on luy presente à demi mort de
maladie. La premiere salutation qu‟il fait à ce poure malade, fut de luy
commander de se leuer & s‟embarquer en diligence.
Et comme iceluy eust declaré tant par paroles que par grande debilité,
qu‟il ne pouuoit faire seruice en ce à quoy on le vouloit employer, veu que pour
lors il estoit inutile, Villegaignon luy fit response que c‟estoit pour le faire
penser & traiter. Et voyant que ce poure malade ne se pouuoit soustenir debout
(tant s‟en faut qu‟il eust peu marcher) il le fit porter iusques au bateau. Comme
on le portoit, il demanda si on le vouloit soustenir la confession qu‟il auoit
signee, fit response qu‟il pẽseroit : toutesfois sans autre dilation, quand ils
furent descendus en terre, le bourreau (selon le commandement qu‟il luy estoit
fait) le lia, puis le mena au lieu où les autres auoyent souffert, l‟aduertissant de
pẽfer à sa conscience. Lors ce poure patient leua les yeux au ciel &, les bras
croisez, se cntrista aucunement, iugeant qu‟audit lieu ses compagnons auoyent
obtenu victoire contre la mort. Il recommanda son ame à Dieu & escria à
haure voix en tels termes, Seigneur Dieu, ie suis de la mesme paste que mes
compagnons, qui ont auec gloire & honneur soustenu ce combat en ton Nom: ie
te suppli me faire la grace que ie ne succombe au milieu des assaux que me
liure Satan, le monde & la chair, & me vueilles pardonner toutes mes fautes &
offenses que i‟ay commises contre la Maiesté, & ce au Nom de ton Fils bien
aimé nostre Seigneur. Ayãt ainsi prié, se retoura vers Villegaignon, auquel il
demanda quelle estoit la cause de la mort. On luy fit responde que c‟estoit
180
pource qu‟il auoit signé vne cõfession heretique & scandaleuse. Et comme il
vouloit repliquer & entendre sur quel poinct il estoit declaré heretique: veu
qu‟il n‟auoit esté aucunement examiné, tant s‟en faut qu‟il eust esté cõueincu.
Mais ses remontrances n‟eurẽt aucun lieu, par ce (comme disoit Villegaignõ)
qu‟il n‟estoit tẽps de contester, commãdant au bourreau de faire diligence. Ce
poure homme voyant que les loix diuines & humaines, les ordonnances
honnestes & ciuiles, l‟humanité, la Chrestienté estoyent comme enseuelies, bien
resolu se soumit au: & inuoquãt se serours & faueur de Dieu, expira au
Seigneur: suffoqué & estranglé, fut ietté en l‟eau comme ses compagnons
(1561- 1565: D.iii.1 - E.iii.2.).
Diferente do panfletista, Thevet refere-se quase de passagem ao episódio. Diz ele:
no mais, esqueci de dizer-lhe que, pouco tempo antes, ocorreu uma
sedição entre os franceses por causa da divisão e parcialidade de quatro
ministros da nova religião, que Calvino enviou para plantar seu Evangelho
sangrento. O principal deles era um ministro sedicioso chamado Richer,
que havia sido carmelita e doutor em Paris, alguns anos antes da sua
viagem. Esses gentis predicantes, querendo enriquecer e agarrar o que
podiam, fizeram ligas e intrigas secretas, que foram as causas pelas quais
alguns dos nossos foram mortos por eles. Mas parte desses sediciosos,
quando pegos, foram executados e seus corpos dados de alimento aos
peixes. Os outros se salvaram, entre eles Richer, que logo depois tornou-se
ministro em la Rochelle, onde acho que ele ainda vive. Os selvagens,
irritados com tais tragédias, por pouco não saltaram sobre nós e mataram
os que restaram
au reste, i‟auois oublié à vous dire, que peu de temps auparauant, y
auoit eu quelque sedition entre les François, aduenuë par la diuision &
partialitez de quatre Ministres de la religion nouuelle, que Caluin y auoit
enuoyez pour planter sa sanglante Euãgille, le principal desquels estoit vn
181
Ministre seditieux nommé Richer, qui auoit esté Carme & Docteur de Paris
quelques annees auparauant son voiage. Ces gentils predicans ne taschans
qu‟à s‟enrichir, & attraper ce qu‟ils pouuoient, feirent des ligues e menees
secretes, qui furent causes que quelques vns des nostres furent par eux tuez.
Mais partie de ces seditieux estans prins furent executez, & leur corps donnez
pour pasture aux poissons: les autres se sauuerent, du nõbre desquels estoit
ledit Richer, lequel bien tost apres s‟en vint rẽdre Ministre à la Rochelle,
i‟estime qu‟il soit encor de present: Les sauuagez irritez de telles tragedies, peu
s‟en fallut qu‟ils ne se ruassent sur nous & missent à mort ce que
restoit (1575: 908-909).
É interessante notar que o destino do quinto calvinista não é mencionado em nenhuma das
duas fontes. O que teria acontecido a Jacques le Balleur? Como foi escrito anteriormente,
Villegagnon, não mencionou a confissão de fé como motivo para a execução dos três calvinistas
e, em relação aos outros dois, ele se limitou a dizer: eu conservei os outros dois que não me
pareciam tão perigosos/ ie conservay les deux aultres, que ne me sembloyent si dangereulx
(1560 - 1562: 13).
Uma antiestrofe da “Ode”, que abre um panfleto protestante, foi composta assim:
porque eles estavam desprovidos; de meios para se defender;
rapidamente foram presos; dos cinco, ele prendeu quatro, o quinto
escapou; foi consolar os maus; com os animais; dessas florestas sombrias;
que alimentam voluntariamente, nas matas e balças, mil animais
perigosos
parce qu‟ils sont despourueux; De moyen, pour se deffendre; Aussi tost
les fait-il prendre. Des cinq, les quatre il attrape, Le cinquiesme luy eschappe;
Qui va soulager les maux; Auecques les animaux; De ces forests vmbrageuses;
Qui nourrissent volontiers, Dans leurs taillis & halliers, Mille bestes
dangereuses” (1561b: 17).
182
Richer foi igualmente vago em relação a ele, pois descreveu a profissão dos outros quatro,
mas limita-se a dizer onde o quinto homem nasceu: Pierre Bordon, torneiro; Matthieu
Veneur, carpinteiro; Jean du Bordel, faqueiro; um chamado André, alfaiate; e le Balleur,
parisiense/ Pierre Bordon, Torneur, Matthieu Veneur, Menusier, Iean du Bordel, Coustellier,
vn nome André, Cousturier, & le Balleur, natif de Paris” (1561: 29).
Rocha Pombo, baseado no relato do pastor presbiteriano Alvaro Reis, entendeu que ele
teria sido enforcado no Rio de Janeiro, em 1567, com participação de Jode Anchieta (Ribeiro
in Crespin 1917: 83-84n.).
O retorno de Villegagnon para a França:
Villegagnon escreveu, que após a execução dos três calvinistas,
eu contive meus homens com temor e obediência. Embora alguns
deles mostrassem que não estavam totalmente decididos, com frequência
me diziam que seria para a consciência deles muito bom saber o que
Calvino poderia responder sobre o que eu tinha objetado aos ministros,
contra sua doutrina. O que não apenas beneficiaria a eles, como também a
tantas pessoas na França, que haviam abandonado por completo as suas
tradições. Essas coisas me induziram a redigir tudo o que havia sido
debatido entre nós e apresentar a Igreja cristã. Para verificar, eu mesmo
iria à França, na esperança de encontrar Calvino e lhe mostrar, com os
escritos de seu ministro, o que eu havia aprendido, a fim de que não me
imputassem ter eu inventado. Também para que ele respondesse às
dificuldade que eu havia encontrado em seus livros
ie contins mes gens en craincte & obeissance: Ceneantmoins aulcuns
d‟eulx monstroyent n‟estre du tout resoluz, & souuent me disoyent, que ce leur
seroit ung grãd bien, & repos de conscience, de sçauoir ce que Caluin pourroit
183
respondre, à ce que i‟auroye obiecté à ses Ministres, contra sa doctrine: que
non seulemẽt pourroit prouffiter à eulx, mais em Frãce à tant de peuples, qui
s‟abandonnoient du tout à ses traditions. Ces choses m‟induirent à rediger par
escript, tout ce qui auroit esté debatu entre nous, & le faire entendre à l‟Eglise
Chrestienne: & pour les verifier m‟en venir moymesme en France, esperant me
trouuer avec Caluin, & luy monstrer par l‟escripture de son Ministre, ce que
i‟en auroye apprins, affin que lon ne me peult imputer les auoir controuuees.
En outre qu‟il me respondist aux difficultez, que ie trouuoye en ses liures
(1560 - 1562: 13-14).
No final desse mesmo livro, Villegagnon, voltou ao tema:
vejam vocês, leitores cristãos, quantos monstros apareceram a
mim, no meu deserto, contra os quais eu combati durante os dez meses em
que os calvinistas estiveram. E para aqueles a quem essas reflexões são
tão horríveis e absurdas, a ponto de dificilmente parecerem críveis, que o
mais herético do mundo foi maculado pela metade, decidi divulgá-los a fim
de que os homens simples se preservassem de serem induzidos, em parte
pela indulgência da liberdade que lhes é apresentada, e em parte da espécie
de santidade da qual essa seita está mascarada. Para mostrar que eu não
sou impostor, resolvi vir para cá para verificar o que encontraria e prestar
contas de mim. E para fazer isso, me encontrar com Calvino, ou outro que
a senhoria de Genebra quiser delegar em seu nome, que eu já os interpelei
por cartas que vocês imprimiram, onde assinalei o lugar onde eu esperaria
sua resposta no espaço de quarenta dias após a distribuição das minhas
cartas, para saber que lugar eles designariam para que eu pudesse me
transportar com segurança. Mas quando Calvino recebeu e leu as minhas
cartas, como se estivesse possuído de raiva de ver sua doutrina ser
descoberta e exposta ao vento, em resposta, pisou sobre elas
184
vous voyes, lecteur Chrestien, combien de monstres se sont apparuz à
moy en mon desert, contre lesquelz i‟ay eu à combattre l‟espace de diz moys,
que les Caluinistes y ont esté: & pour ce que ces resueries sont si horrible &
absurdes, qu‟il me sembla qu‟a peine seroit croyable, que le plus heretique du
monde, en fust entaché de la moitié, ayãt eu opinde les diuulguer, affin que
les simples hõmes s‟en gardassent, qui seroiẽt induictz, partie par l‟indulgẽce
de la liberté, qui leur est presentee, partie de l‟espece de sa saincteté, de
laquelle ceste secte est masquee. Pour monstrer que ie n‟estoye imposteur, ie
me resolu de venir par deça, pour verifier ce que i‟en auroye trouué, & rendre
cõpte de moy. Et pour ce faire, me trouuer auec Caluin, ou autre que la
seigneurie de Genesue vouldroit delequer en son nom, dont ie les ay interpellez
par lettres, ~q vous auez veu imprimees: leur ayant assigné le lieu auquel
i‟attendroye leur respõse l‟espace de quarãte iours, de puis la distribution de
mes lettres, pour sçauoir quel lieu ils me nõmeroient ou i‟eusse à me
transporter à saulueté. Mais Caluin ayant receu & leu les lettres, comme estant
esprins de rage de voir sa doctrine descouuerte, & esuentee, foula les lettres
aux pieds pour la respõse” (1560 - 1562: 247-248).
Mem de Sá, quando escreveu à regente D. Catarina sobre a guerra no Rio de Janeiro, disse
que “o monseur De Vila ganhaõ auia outo ou noue meses que se partira para França com
determinação de trazer gẽte e naos paa hir esperar as de V. A. que vem da India, e destruir ou
tomar estas capitanias, e fazerse hum grade senhor” (1560 - 1965: 43). segundo Thevet,
Villegagnon voltou à França para falar com o rei que assim tinha ordenado a ele/ “parler au
Roy qui l‟avoit mandé” (1588 - 2006: 272).
A volta de
Villegagnon à
França
Villegagnon
Mem de Sá
Thevet
185
Para encontrar
Calvino e saber sua
opinião sobre as
pregações dos
ministros na França
Antártica e, ao
mesmo tempo,
esclarecer pontos
obscuros da
doutrina calvinista
para o bem dos
franceses.
Para trazer mais
pessoas para poder
tomar posse das
terras.
Para falar com o rei
a mando dele.
Villegagnon de volta à França:
No final de 1559, Villegagnon partiu para França e deixou seu sobrinho, Bois-le-Compte
no comando da França Antártica. Chegou lá no início de dezembro do mesmo ano. Uma carta de
6 de março de 1560, de um jesuíta em Paris, endereçada ao superior em Roma, relata uma
entrevista com Villegagnon, na qual fica claro que assim que ele chegou, foi procurar Charles de
Guise (que depois se empenhou ativamente para fazer reconhecer oficialmente a Companhia de
Jesus na França), que prometeu ajudá-lo. Villegagnon fez um pedido ao Padre Provincial, doutor
da Sorbonne, que ele considerava amigo. A resposta, no entanto, foi que nada poderia ser feito
sem autorização do Padre Geral em Roma.
Além disso, a comunidade jesuítica parisiense tinha apenas cinco padres, sobrecarregados
de ocupações e, portanto, não seria possível escolher alguém para enviar em uma missão além-
mar. Villegagnon não se deu por satisfeito. De acordo com Poulenc:
186
visiblement contrarié, se mit alors à déployer toute son éloquence pour
tenter d‟aboutir malgré tout. Se laissant quelque peu emporter par la vivacité
de ses sentiments et faisant peu cas des justs motifs qui lui étaient opposés, il
alla jusqu‟à se lancer dans une exhortation enflammée au zèle apostolique, qui,
proclama-t-il, ne doit s‟effrayer d‟aucun danger. Il n‟y avait du reste,
renchérit-il, aucun péril en vue pour son expédition et il s‟emploierait près du
roi afin que les religieux ne manquassent de rien de ce qu‟ils jugeraient
nécéssaire d‟emporter. Revenant ensuite au véritable problème, il se déclara
prêt à faire intervenir le roi et le Cardinal de Lorraine auprès du Souverain
Pontife, afin d‟obtenir directement de lui le concours d‟une douzaine de
missionnaires de la Compagnie. Enfim il pensa intéressant d‟attirer l‟attention
sur le fait que plusiers jeunes gens son entourage pourraient, par leur
connaissance de la langue du pays, être immédiatement d‟utiles auxiliaires en
servant d‟interprètes-cathéchistes (...) En terminant l‟entretien on l‟engagea
chaudement à se confesser et à recevoir la sainte communion pour attirer la
faveur divine sur ses projets. Il s‟y déclara tout disposé, ajoutant aussitôt qu‟il
avait déjà accompli ces pieuses démarches et ce, justement auprès des Pères de
la Compagnie en l‟église Saint Germain. Si l‟on tient présent à l‟esprit que ses
sympathies passées à l‟egard du Protestantisme étaient de notoriété publique,
toute semble s‟être passé dans ce petit épisode comme si du côté des religieux
on avait voulu en finale s‟assuer avec tact la garantie tangible d‟une rupture
définitive avec une attitude antérieure au moins teintée d‟hérésie. On ne voit
pas autrement pourquoi une simple anecdote édifiante aurait été jugée digne
d‟une relation détaillé. La réplique prompte et habile du chevalier vient
renforcer cette impression. Elle paraît indiquer que, s‟attendant à devoir en
quelque manière justifier sa parfaite orthodoxie, il vait, peut-être avec l‟aide de
quelque sage conseil, pris sciemment et à bon escient les dispositions
adéquates” (1967: 402-403).
187
Como se sabe, em 15 de março de 1560, Mem de tomou o forte de Coligny.
Entretanto, em 16 de agosto de 1560, o rei Francisco II escreveu ao convento dos Cordelier de
Paris:
“nous vous mandons et enjoignons que, sans vous arrester aux congés,
vous permettiez aux dicts relligieux, jusqu‟au nombre de six ou huit, si tant il en
voeult aller par de là, de faire voyage. Et le sieur de Villegaignon, qui est notre
Lieutenant-général en la dicte conqueste, les y fera porter sur son dict navire,
ainsy que nous luy avons ordonné” (In Poulenc 1967: 404).
Três dias após, réuni le 19 août, le Discrétoire décide à l‟unanimité de se plier sans
réserve à la volonté du souverain
50
(In Poulenc 1967: 397). Apesar desses esforços, Villegagnon
o retornou mais à América. Ele permaneceu na França onde se envolveu no debate com os
calvinistas sobre a Eucaristia.
Assim que chegou à França, Villegagnon se empenhou em retornar à América com ajuda
de católicos jesuítas e franciscanos. Provavelmente a notícia da destruição da fortaleza tenha feito
Villegagnon mudar de ideia e permanecer na França, onde deu início ao debate com os
calvinistas.
Colônia francesa na Flórida: 1562-1565
Como se de notar no relato dos franceses sobre a França Antártica, a conversão dos
índios o foi uma prioridade. Desde a partida de Thevet, até a chegada dos calvinistas, foi
Villegagnon quem acumulou as funções religiosa e militar e não qualquer menção de
50
(Archives nationales LL 1514, fol. 6IV-62r).
188
participação de índios em atividades religiosas. a vinda dos calvinistas foi concebida por eles
como um refúgio para a sua salvação espiritual e material. Como escreveu Lestringant, nous
avons sugeré ailleurs (1980) que l‟hypothèse de la terre dasile ouverte aux chrétiens persécutés
d‟Europe avait été choisie au détriment du prosélytisme” (1985 - 1996: 193).
O mesmo pode ser dito em relação à colônia francesa na Flórida, pois, apesar de os dois
chefes protestantes do empreendimento, Laudonnière e Ribault,
51
de alguma forma terem
vislumbrado a possibilidade da conversão dos índios, o primeiro escreveu no prefácio:
os príncipes enviaram de suas terras alguns bons empreendedores para se
habituarem ao país e, se possível, trazer os habitantes ao verdadeiro conhecimento do nosso
Deus/ les princes ont faict partir de leurs terres quelques hommes de bonne entreprise pour
s‟habituer en pays, et si possible estoit reduire les habitans à la vraye cognoisssance de nostre
Dieu” (1586 - 1853: xv) e o segundo, que era um corsário, logo no início do manuscrito escreveu
que povo bruto e ignorante de Jesus Cristo, talvez, com a sua graça, chegue a algum
conhecimento das suas leis e regras sagradas” / brutiche people and ignoraunt of Jesus
Christ, may by his grace come to some knowledge of his holly laws and ordynaunces(1563: 54)
seus relatos não apontam nessa direção.
Há outro aspecto semelhante às duas experiências. Laudonnière, assim como Villegagnon,
quando voltou para França procurou com os seus escritos responder aos seus detratores. No
prefácio da obra, Laudonnière escreveu:
isso que pretendo descrever nesta presente história com uma
verdade tão evidente que a majestade do rei, meu príncipe, estará satisfeita
em parte do dever que realizei em seu nome e, que as mentiras dos meus
51
Segundo Lestringant, ambos eram protestantes (1985 - 1996: 203).
189
caluniadores sejam tão descobertas que em nenhum lugar poderão ser, de
direito, mantidas
ce que je pretens discourir en ceste presente histoire avec une verité si
evidente, que la majesté du Roy mon prince sera satisfaire en partie du devoir
que j‟ay faict en son service, et mes calomniateurs se trouvent si descouverts en
leur imposture mensongere, qu‟il n‟auront aucun lieu pour se mantenir en
droit” (1586 : xvi).
Ambos, além de Ribault e Thevet, foram parcimoniosos, senão silenciosos, em relação à
vida religiosa nas colônias. Os relatos dos conflitos religiosos, os aspectos sangrentos e rdidos,
foram narrados por pessoas o envolvidas diretamente na liderança de tais empreendimentos,
como Le Challeux, que era um construtor de navios e descreveu o massacre espanhol na Flórida;
Léry, um sapateiro, que depois se tornou pastor; e Richer, que apesar de pastor, não chegou a
comandar a França Antártica.
Não se trata, como poderia parecer, de uma distinção social, mas sim política. Ao que
parece, os deres, tanto na Guanabara como na Flórida, estavam vinculados à coroa francesa,
enquanto os colonos pareciam buscar a defesa ou a formação de um novo segmento, ou ainda a
identidade de um grupo que já existia. Visto sob esse ponto de vista, o conflito religioso na
França Antártica, assim como o que ocorreu na Flórida, foi primeiramente endógeno e menos
surpreendente do que poderia parecer.
A rede de relações estabelecida entre índios e franceses antes das tentativas de
colonização das regiões não era necessariamente entre índios e franceses, mas entre normandos e
bretões (homens de comércio marítimo e de maioria protestante) e os Tupinambá e os índios da
Flórida. uma passagem na qual Léry afirma que logo após o rompimento dos calvinistas,
190
Villegagnon hesitou em puni-los, pois “assim como já tanto disse, os principais dos seus
homens eram da nossa religião e em consequência insatisfeitos com ele por causa da sua
apostasia/ ainsi que j‟ai tantôt touché, les principaux de ses gens étant de nostre Religion, et
par conséquent malcontents de lui à cause de sa révolte” (1578 - 1992: 79 - grifo meu). Em outra
passagem, Léry disse que Villegagnon executou os três protestantes porque Du Pont, a quem
temia, já havia partido para França.
Neste sentido, discordo da afirmação de Lestringant de que,
dans la France Antartique de Villegagnon, c‟est la querelle intestine
surgie entre un chef revenu au catholicisme et la minorité protestante qui
précipite la décadence de l‟établissement. En Floride, au contraire, la colonie,
plus homogène du point de vue religieux, paraît tout entière acquise à la
Réforme. Elle est détruite de l‟extérieur par l‟Espagnol qui se manifeste dans
son rôle favori d‟extirpateur de l‟hérésie. Les massacres de septembre 1565 ne
peuvent se comprende, dans leur caractère systématique et leur cruauté, que
comme la liquidation rituelle du „luthéranisme‟ exécré (1990 - 2004: 52-53).
Assim como os protestantes não eram uma minoria na França Antártica, sem pretender de
modo algum negar a participação espanhola nos massacres e extermínio dos franceses na Flórida,
interessa ressaltar que houve conflitos internos nas duas experiências.
***
Na Histoire notable de la Floride (1586)
52
, Laudonnière conta que no dia 18 de fevereiro
de 1562 viajou com outros nobres e o capitão Jean Ribault, a mando do “Admiral de Chastillon”
52
Antes de ser publicado, o manuscrito ficou durante vinte anos nas mãos de Thevet. O capelão e geógrafo inglês
Hakluyt roubo-o de Thevet e a publicou em 1586 (Lestringant 1999 -2004: 256-263).
191
(Coligny), em direção à Flórida. Quando chegaram, foram acolhidos pelos índios com toda
doçura e amizade/ avec toute douceur et amitié(Laudonnière 1586-1853), nas palavras de
Ribault, “confiança e amizade” / assurance and ffrendship (1563: 67). Depois de deixar
alguns franceses no local para a construção do Chalesfort, Laudonnière e Ribault e os dois índios
que seriam presenteados à rainha voltaram para França, onde chegaram no dia 20 de julho do
mesmo ano.
Sob o comando do capitão Albert, os franceses que ficaram fizeram aliança com o chefe
indígena Andusta. Um dia, convidados a celebrar a festa de Toya, os franceses foram colocados
na casa do der durante as cerimônias secretas. Laudonnière conta que: um dos nossos
franceses insistiu tanto que, através de meios sutis, saiu da casa de Audusta e, secretamente
foi se esconder atrás de uma moita, de onde, à vontade, pode apreciar as cerimônias da
festa” / l‟un de nos François feit tant, que par subtils moyens il sortist hors la maison
d‟Audusta, et secrettement s‟alla cacher derrière en fort buisson, à son plaisir il peut
aisément recognoistre les cérémonies de la feste(Laudonnière 1586 - 1853: 45). A semelhança
com o relato de Léry é impressionante. Um dia, ele foi dormir numa aldeia com outros dois
franceses. Na manhã seguinte, presenciaram a chegada de muitos índios que, juntos com os que
estavam, contavam mais de quinhentos para festejar. Léry narrou que: eu pedi
insistentemente aos meus companheiros que permanecêssemos para ver esse mistério; o
que foi permitido/ je priai instamment mes compagnons que nous demeurissions là pour voir
ce mystère, ce que me fut accordé (1578 - 1992: 155). Os Caraíbas disseram que eles não
podiam sair da casa onde estavam junto com as mulheres e as crianças. Quando os homens
começaram a cantar, apesar do truchement dizer a Léry que durante os seis ou sete anos em que
vivia, jamais ousou participar de uma festa como aquela, Léry decidiu contar com a amizade
192
de alguns índios com quem já havia estado quatro ou cinco vezes, e, assim, diz ele: a fim de ver
à vontade, fiz com as mãos um pequeno buraco na cobertura/ afin de mieux voir à mon
plaisir, je fis avec les mains un petit pertuis en la couverture(1578 - 1992: 156), por onde, em
seguida, entrou com seus companheiros.
Na Flórida, com ajuda dos índios, os franceses receberam alimentos e constrram
edificações. Ocorreu um incêndio que fez com que eles perdessem tudo, mas foram socorridos
pelos índios. De acordo com Laudonnière, as dissensões internas começaram quando os índios
mostraram pérolas e prata aos franceses. A partir de então,
começaram as parcialidades e as dissensões que tiveram origem
com um soldado chamado Guernache, que era um conhecido falastrão nas
companhias francesas, o qual (...) foi cruelmente enforcado pelo seu
capitão que aproveitou a ocasião para ameaçar os soldados franceses que
demoravam a obedecer-lhe e que, antes, como era de se presumir, não lhe
obedeciam. Por esse motivo eles se amotinaram, de modo que com mais
freqüência o capitão executava suas ameaças. Por isso, eles o perseguiram
de tal forma que finalmente o mataram (...) Os soldados que viam essas
fúrias aumentarem dia após dia. Com medo de que lhe acontecesse o
mesmo, resolveram matá-lo (...) Ora, quando retornaram, eles se uniram
para eleger um chefe para eles, o capitão Nicolás Barré, homem digno de
comandar e que soube tão bem realizar sua tarefa, de modo que o rancor e
a dissensão cessou. Eles viveram pacíficos uns com os outros
ils entrèrent doncques en partialitez et dissentions, qui prindrent leur
origine d‟un soldat nommé Guernache, qui a esté connu tabourin aux
compaignies françoises, lequel (...) fut assez cruellement pendu par son propre
capitaine et pour assez maigre occasion, lequel capitaine usant encore de
menaces envers les soldats françois qui estoient demourez pour luy obéyr, et
qui paravanture, com il est à présumer, ne luy obeissoient, fut cause qu‟ils se
193
mutinèrent, d‟autant que le plus souvent il mettoit ses menaces à exécution,
dont ils le pourchasèrent tellement, qu‟enfin ils le firent mourir (...) Les soldats
qui voyoient ces furies s‟augmenter de jour en jour, et craignans de tomber aux
danger des premiers, résolurent de le faire mourir (...) Or estans de retour ils
s‟assemblèrent tous, pour eslire un chef sur eux, qui se nommoit le capitaine
Nicollas Barré, homme digne de commandement; et lequel se sceut si bien
acquiter de sa charge, que toute rancune et dissention cessa entr‟eux, et
vesquirent paisibles les uns avec les autres” (1586 - 1853: 53-54).
Mais uma vez, é surpreendente a semelhança com a rebelião na França Antártica, quando
foi planejada a morte de Villegagnon, sem contar que o mesmo Barré que fora piloto na França
Antártica e que denunciou o complô a Villegagnon, na Flórida tornou-se o líder dos rebelados.
Apesar da intervenção de Barré, alguns franceses que estavam resolveram construir um
bergatim para retornar à França. Essa embarcação foi constrda com cordas cedidas pelos índios.
Laudonièrre contou que não restava nada mais que as velas e que estas foram feitas com
camisas e com os lençóis das camas/ il ne restoit plus que les voilles, lesquelles ils feirent de
leur propres chemises, et des draps des licts(1586 - 1853: 55). Diante de uma calmaria de três
semanas, os víveres começaram a se tornar escassos. Os franceses comeram sapatos, beberam
água do mar e a própria urina. Uma parte da tripulação morreu de fome. Após a calmaria, ventos
contrários encheram metade do barco de água. Eles ficaram três dias sem comer nem beber, até
que:
alguns propuseram que era mais conveniente que apenas um
morresse do que tantos perecessem. Eles então prenderam um, para que
morto alimentasse os outros. Isso aconteceu com Lachère (...) sua carne foi
repartida igualmente entre seus companheiros
194
quelques uns d‟entr‟eux proposèrent qu‟il estoit plus expédient qu‟un
Seul mourut que tant de gens périssent; ils arrestèrent doncques que l‟un
mourroit pour substanter les autres. Ce qui fut executé en la personne de
Lachère, (...) la chair duquel fut partie également à sés compagnons
(Laudonnière 1586 - 1853: 58).
Vale lembrar aqui o relato de um panfletista anônimo sobre a partida dos calvinistas da
França Antártica, quando entraram em um barco que “não tinha mastro, velas, cordas ou
outros instrumentos necessários à navegação / n‟auoit ne mast, voiles, cordages, n‟autres
appareilleures necessaires à la nauigation (1561 1565: B.iiii.5.). Assim como algumas
passagens do relato de Léry sobre a viagem de volta à França, quando escreveu:
não podendo mais conduzir o barco, foi necessário dei-lo ir ao
sabor das ondas e dos ventos, de modo que isso impediu que durante todo
esse tempo, apesar da nossa grande necessidade, conseguíssemos pescar um
peixe; no mais, estávamos novamente, num golpe só, salgados por
dentro e atormentados pelas ondas por fora
ne pouvant plus autrement conduire le vaisseau, il le fallut laisser aller
au grè des ondes et du vent, de manière que cela empêcha qu‟en tout ce temps,
et à notre grande nécessité, nous ne pûmes pêcher un seul poisson; somme,
nous voilà derechef toutcoup en la famine jusques aux dents, assaillis de
l‟eau par dedans, et tourmentés des vagues au dehors” (1578 - 1992: 214).
A situação se tornou de tal forma desesperadora, diz Léry, que: houve entre nós quem
chegou ao ponto de comer suas gravatas de marroquim e o couro dos seus sapatos / en y
eut-il entre nous qui vinrent jusque-là, de manger leurs collets de maroquins et cuirs de leurs
195
souliers(1578 - 1992: 214). Léry narrou talvez o momento mais dramático da viagem de volta
quando escreveu:
posso assegurar verdadeiramente que durante nossa fome no mar,
estávamos tão tristes que, embora fôssemos impedidos pelo temor a Deus,
pouco podíamos falar uns com os outros sem nos afligir e, o que era pior (e
que Deus nos queria perdoar) sem nos lançar olhares de través,
acompanhados de algumas s intenções que dizem respeito a esse ato
bárbaro
je puis assurer véritablement, que durant notre famine sur mer, nous
étions si chagrins, qu‟encore que nous fussions retenus par la crainte de Dieu,
à peine pouvions-nous parler l‟un à l‟autre sans nous fâcher, voire, qui pis était
(et Dieu nous le veuille pardonner), sans nous jeter des oeillades et regards de
travers, accompagnés de quelques mauvaises volonté touchant cet acte
barbare (1578 1992: 217).
Mas, diferente do que aconteceu com os franceses que voltaram da Flórida, isso não
aconteceu. Após terem se alimentado dos ratos da embarcação, Léry narra, com tristeza, que
comeu um belo papagaio que seria presenteado a Coligny.
Laudonnière contou que quando voltou para a França em julho, após cinco meses na
Flórida, encontrou o país em guerra civil. Em março, em Wassy, François de Guise tinha matado
protestantes quando estes se reuniam para celebrar o culto. Os protestantes, liderados por Louis
Conde, contra-atacaram até que em março de 1563, Catarina de Médicis estabeleceu o édito de
Amboise, que autorizava o culto protestante em locais circunscritos. Laudonièrre atribuiu a essas
turbulências francesas o fato de não terem recebido ajuda na Flórida. Ele contou que o capitão
Albert foi assassinado e a colônia francesa na Flórida abandonada.
196
O período de paz na França durou até 1567 quando começou a segunda guerra de religião.
Devido a essa trégua, Laudonnière escreveu que Coligny conseguiu junto ao rei a permissão para
os franceses voltarem à Flórida. Dessa vez, Laudonnière foi como capitão. No dia 22 de abril de
1564, ele partiu e, no dia 22 de junho chegou à Flórida. No dia seguinte à chegada, ele disse que
encontrou um local para morar e construir um forte que foi chamado de Caroline em homenagem
ao rei Carlos IX. Laudonnière, no entanto, acabou por se desentender com seus antigos aliados.
Ele escreveu que:
o ódio de Paracousi Satouriona permanecia contra mim, tanto que
no dia 29 de agosto caiu sobre nosso forte um raio do céu, mais digno
(acredito) de ser admirado e descrito em palavras do que todos os sinais
estranhos que já foram percebidos no passado e que os historiadores
jamais escreveram
la haine du Paracousi Satouriona duroit contre moy, tant que le vingt-
neuviesme du mois d‟aoust, il tomba à my lieue nostre fort un foudre du ciel,
plus digne (ce croy-je) d‟estre admiré et couc par escrit, que tous les
estranges signes que l‟on ait veuz par le passé, et dont les historiens ayent
jamais escrit” (1586 - 1853: 105).
Depois do raio, ocorreu uma segunda tentativa de conspiração contra o capitão francês
que, desta vez, era Laudonnière. Ele narrou assim:
enquanto eu trabalhava para fazer amigos com uns e outros,
alguns soldados da minha tropa foram subordinados, durante muito
tempo, por um chamado Roquette, do país de Perigort, que os fez
acreditarem que era um grande mágico que, com os segredos da magia,
tinha descoberto uma mina de ouro e prata acima do rio, lugar onde cada
soldado poderia tirar cerca de dez mil escudos, sem falar nos mais de
quinze mil que seriam destinados a majestade do rei. Eles então se aliaram
197
a Roquette e a outro confederado chamado Genre, quem, não obstante, eu
confiava muito. Genre com cupidez de lá enriquecer e com apetite de
vingança porque eu não quis lhe dar o pacote para que ele levasse para
França, disse secretamente aos soldados já subordinados a Roquette que eu
queria impedir que eles tivessem esse grande ganho e por isso os fazia
trabalhar todos os dias sem enviá-los para descobrir as terras (...) o que
eu descobri logo depois, através da confissão de Genre, e das cartas que ele
me escreveu. Os soldados fizeram isso com a única intenção de me matar,
assim como meu lugar-tenente, caso eu tivesse em relação a eles algum mau
propósito
pendant que je travaillois ainsi à gaigner et acquéris des amys, et à
pratiquer tantost cestuy, tantost celuy-la, quelques soldats de ma troupe furent
subornez de longue main par un nommé la Roquette, du pays de Perigort,
lequel leur donant à entendre qu‟il estoit grand magicien, et que par les secrets
de la magie il avoit descouvert une mine d‟or et d‟argent à mont rivière, de
laquelle sur sa vie chaque soldat tireroit en essence la valleur de bien dix mille
escus, sans toucher à plus de quize cens mil, qui seroient resouz à la majesté du
Roy. Ils s‟allièrent doncques à la Roquette, et autre sien confederé, nommé le
Genre, auquel nonobstant je me fiois beaucoup. Ce Genre cupide du tout à
s‟enrichir par delà, et appétant la vengence de ce que je ne luy avois voulu
bailler le paquet pour porter en France, feit entendre secrettement aux soldats
ja subornez par la Roquette, que je les voulois frustrer de ce grand gain, en ce
que journellement je les entretenois au travail, sans les envoyer çà et
descouvrir les terres (...) ce que j‟ay descouvert puis après, et mesme par la
confession du Genre, portée par lettres qu‟il m‟en a escritrs, ces gentils soldats
ne faisoient cela quà l‟intention de me tuer, et mon lieutenant aussi, si
d‟avanture je leur eusse tenu quelque propos fascheux (1586 - 1853: 110-
111).
198
Mais uma vez, nota-se que Villegagnon não foi o único líder colonial francês cujos
subordinados desejaram assassinar.
Por volta de 20 de setembro, Laudonnière ficou doente e Genre sugeriu que fosse eleito
outro capitão. Junto com seus mplices ele tentou misturar veneno aos medicamentos, mas o
apotecário recusou. Em seguida tentaram incendiar a cama de Laudonnière. Ele ficou sabendo
que Genre tinha dado a um nobre que iria para França um livro cheio de calúnias sobre ele. O
capitão então reuniu seus soldados, que eram 66, e leu em voz alta o livro a fim de que
testemunhassem a seu favor. Depois, quando novamente ficou doente, os cinco que tinham
conspirado contra ele, entraram em seu quarto, armados, dizendo que queriam ir para Nova
Espanha em busca de aventuras.
Prenderam Laudonnière durante 15 dias em um navio, no meio de um rio, quando ainda
estava doente, e sob ameaça de cortar-lhe a garganta obrigaram-no a assinar a permissão para
partirem. Quando eles voltaram, por volta de 25 de março, Laudonnière escreveu:
fiz com que fossem acorrentados pelos pés, pois não era a minha
vontade punir os outros, uma vez que eles tinham sido subornados e que
meu conselho, expressamente reunido por causa de fato, decidiu que
apenas esses quatro deveriam morrer para servir de exemplo aos outros
je feis mettre les fers aux pieds, car ce n‟estoit mon dessein de faire
punir les autres, entendu qu‟on les avoit subornez, et que mon conseil
expressement assemblé pour ce faict, avoit arresté que ces quatre seulement
devoient mourir pour servir d‟exemple aux autres (1586 - 1583: 125).
Assim, continuou o capitão, “de acordo com aquilo que tínhamos deliberado em
conselho, por causa dos crimes cometidos por eles, tanto contra a majestade do rei, como
contra mim, que era seu capitão, ordenei que fossem suspendidos e estrangulados
199
/ suivant ce que nous avions arresté au conseil, pour raison des crimes par eux commis, tant
contre la majesté du Roy, que contre moy, qui estois leur capitaine, je les condamanay d‟estre
pendus et estranglez (1586 - 1583: 127).
Laudonnière ficou lá mais um ano e meio. Seus soldados preferidos tinham retornado
para França e ele passou o tempo junto aos índios, guerreando com eles e recebendo alimentos.
Lamentou que talvez fosse possível permancer mais tempo naquele lugar:
se no momento e no local adequado, segundo a promessa que
haviam nos feito, nós estivéssemos protegidos, se a guerra entre nós e
Outina não tivesse ocorrido, e não tivéssemos descontentado os índios, os
quais, com todas as dificuldades do mundo, eu mantinha uma boa amizade
(...) se eu não tivesse perdido a aliança de oito reis e senhores que eram
meus vizinhos, que sempre me forneceram tudo o que lhes era possível
si en temps et en lieu, et selon la promesse que l‟on nous avoit faite,
nous eussions esté secourus, la guerre entre nous et Outina ne fust advenue, et
n‟eussions eu occasion de mal contenter les Indiens, lesquels j‟avois avec
toutes les peines du monde entretenu en bonne amitié (...) si n‟avoy-je perdu
l‟alliance de huict roys et seigneurs mes voisins, lesquels m‟ont tousjours
secouru de tout ce qui leur a esté possible” (1586 - 1853: 170).
Assim, em agosto de 1565, Laudonnière decidiu que era o momento de partir. Entretanto,
no dia 28 de agosto de 1565, o capitão Ribault chegou à Flórida e pediu-lhe que o fosse
embora. Laudonnière respondeu-lhe que não poderia ficar, uma vez que ele trazia cartas do rei
pedindo que retornasse e que Ribault tinha vindo para substituir-lhe. Havia acusações contra
Laudonnière na corte, entre elas, a de ter levado uma mulher com ele para lá. Laudonnière afirma
que se tratava de uma pobre servente que ele havia encontrado em uma hotelaria e trazido para
200
trabalhar. Na Flórida, ela teve entre seis e sete pedidos de casamento, e acabou se casando na
França com um desses pretendentes.
No dia 4 de setembro seis navios espanhóis se aproximaram, mas depois foram embora.
Quatro dias depois, Ribault partiu atrás dos espanhóis e Laudonnière, que estava doente,
permaneceu no forte com a seguinte retaguarda:
dos nove, quatro eram jovens, serviam ao capitão Ribaut
53
e
cuidavam dos seus cães, o quinto era seu cozinheiro. Entre os que estavam
fora do forte e que eram da mesma tropa do capitão Ribaut, havia um
carpinteiro que tinha, no mínimo, sessenta anos, um cervejeiro, um velho
arqueiro, dois sapateiros, quatro ou cinco homens com suas esposas, um
tocador de espineta (...) e cerca de 25 ou 26 homens rudes, além de crianças
e mulheres
de neuf, il y en avoit quatre jeunes, lesquels servoient le capitaine
Ribaut et luy gardoient sés chiens; le cinquiesme estoit son cusinier; entre ceux
qui estoient hors du fort, et qui estoient de la mesme trupe du capitaine Ribaut,
il y avoit un charpentier aagé de soixante ans pour le moins, un faiseur de
biere, un vieil arbalestrier, deux cordonniers et quatre ou cinq hommes qui
avoient leurs femmes, un joueur d‟espinette, (...) et environ quatre vingt cinq ou
six goujats, que femmes et enfants (1586 - 1583 : 196).
Na madrugada do dia 20 de setembro, uma tropa de espanhóis desceu em terra.
Laudonnière, mesmo doente fugiu para uma embarcação. Ribault negociou com os espanhóis e
Laudonnière decidiu que era o momento de voltarem para França, o que aconteceu no dia 25 de
setembro. No dia 11 de novembro, eles chegaram à Inglaterra.
53
Há duas formas de grafar esse nome: com “l” entre o “u” e o “t” e sem o “l”.
201
No final do relato sobre a terceira viagem à Flórida, Laudonnière acusou Ribault pelo
fracasso do empreendimento, quando escreveu:
uma coisa eu direi plenamente: o atraso no embarque do capitão
Ribault e os 15 dias que ele viajou ao longo da costa da Flórida antes de
chegar a Caroline foram as causas da perda da Flórida, pois desde 14 de
agosto, ele tinha descoberto a costa. Ele gastou o tempo que era
necessário para descarregar o navio e para que eu pudesse embarcar de
volta para França, navegando de rio em rio
une chose diray-je plainement, que le long délay faict à
l‟embarquement du capitaine Jean Ribaut et les quinze jours qu‟il fut voguant
le long de la coste de la Floride, avant de venir trouver à Caroline, ont esté
cause de la perde de la Floride; car il descouvrit la coste dès le quatorziesme
jour d‟aoust, et employa le temps à aller de rivière en rivière, lequel luy eust
esté suffisant pour descharger ses navires, et à moy pour m‟embarquer et
retourner en France” (1586 - 1583: 205-206).
De acordo com Laudonnière, houve ainda uma quarta viagem à Flórida: “o capitão
Gourgues, nobre de Bordeaux, possuído por um desejo de vingança de elevar a honra da
sua nação, tomou empréstimo de seus amigos e vendeu parte de seus bens para equipar da
melhor maneira três navios médios / Le capitaine Gourgues, gentilhomme Bourdelois,
poussé d‟un desir de vengeance, de relever l‟honneur de sa nation, emprute de ses amys, et vend
partie de ses biens, pour dresser et fournir de tout le besoin trois moyens navires (1586 - 1853:
207).
Com 150 soldados e oitenta marinheiros, ele partiu no dia 22 de agosto de 1567. Quando
chegaram à Flórida, logo reataram a aliança com os índios. Depois de três dias navegando,
202
chegaram ao rio de Maio, onde tinha sido erguido o forte Caroline e encontraram os espanhóis
bem instalados em três fortes.
Em abril de 1568, Gourgues armou seus homens e atacou os espanhóis. Estes, por sua
vez, colocaram seiscentos homens armados com arcabuzes para atacar os franceses. Os franceses
reagiram e os espanhóis fugiram para floresta, onde foram flechados pelos índios. O forte vazio
pegou fogo quando um índio cozinhava um peixe.
O resto dos espanhóis levados com os outros, depois que o chefe
lhes reprovou a injúria que tinham feito sem motivo a toda nação francesa,
foram pendurados nos galhos das mesmas árvores em que tinham estado
os franceses. Cinco deles foram estrangulados por um espanhol, que diante
de tal desastre confessou sua culpa e a justa punição que Deus o fazia
sofrer. Mas no lugar que Pedro Melandes escreveu essas palavras
espanholas, Não faço isso aos franceses, mas aos luteranos, Gourges
escreveu com ferro quente em uma mesa de pinho, não faço isso aos
espanhóis, nem aos marinheiros, mas aos traidores, ladrões e matadores
Les restes des Espagnols menez avec les autres, après que le chef leur
eut remonstré l‟injure qu‟ils avoient fait sans occasion à toute la nation
françoise, furent tous pendus aux branches des mesmes arbres qu‟avoient esté
les François: cinq desquels avoient esté estranglez par un Espagnol, qui se
trouvant à tel desastre confessa sa faute, et la juste punition que Dieu luy
faisoit souffrir. Mais au lieu de l‟escriteau que Pedro Melandes leur avoit
donné, portant ces mots en Espagnol, Je ne fay cecy comme à François, mais
comme à Lutheriens, Gourgues fit escrire en une table de sapin avec un fer
chaud: Je ne fay cecy comme à Espagnols, ny comme à Mariniers, mais comme
à traistres, voleurs et meurdriers(1586 - 1853: 218-219).
203
Depois disso, Gourgues, junto com os índios, derrubou os três fortes em um dia. Os
franceses antes de partirem, no dia 13 de maio de 1568, recomendaram aos índios que
mantivessem a aliança com eles. Chegaram na França 34 dias depois.
Segundo Laudonnière, os espanhóis apresentaram outra versão sobre o que ocorreu e a
cabeça de Dominique de Gourgues foi colocada a prêmio. Nos 25 ou 30 anos anteriores, ele havia
trabalhado para os reis trèscristãos, como o da Espanha e, quando estava preste a receber uma
recompensa dos espanhóis, seu navio foi capturado pelos turcos e ele foi levado a Constantinopla.
Ele foi resgatado pela armada de Malta. Depois disso, fez uma viagem pela costa da África e foi
até o Brasil. Depois, curioso para vingar o nome da França, teve o sucesso na Flórida que
vocês viram, rendida por contínuas ações guerreiras, terrestres e marítimas/ Puis curieux
de vanger le nom François, donne à la Floride avec tel succez que vous avez veu, si que rendu
par continues actions guerrres, terrestres et maritimes” (Laudonnière 1586 - 1853: 222).
Quando é concluída a leitura dos relatos de Laudonnière e de Ribault, sendo que, deste
último o manuscrito guardou apenas impressões gerais sobre a Flórida, não se compreende, por
exemplo, como Lestringant escreveu um artigo cujo título é: “Une saint-Barthélemy aricaine:
l‟agonie de la Floride huguenote”. Ocorre, no entanto, que Lestringant privilegiou outras duas
fontes. O construtor de navios Nicolas Le Challeux, que sobreviveu ao ataque espanhol e
escreveu Discours de l‟histoire de la Floride (1566), e as cartas de Pero Menéndez de Avilés
endereçadas a Filipe II. Não é o momento nem o espaço para discutir tais fontes. Só gostaria de
marcar, mais uma vez, quão diferente um relato pode ser, dependendo do ponto de vista de quem
observa.
204
Capítulo 3 O debate francês quinhentista sobre a França Antártica
O debate entre Villegagnon e os protestantes:
Villegagnon:
Antes de reconstituir o debate sobre a Eucaristia, que ocorreu por meio de publicações, na
França, convém traçar um breve perfil de Villegagnon.
A biografia de Nicolas Durand de Villegagnon não é algo fácil de ser reconstituída. Em
seus escritos, ele não faz referência à sua vida privada, apesar dos inúmeros ataques pessoais que
recebeu depois que comandou a França Antártica. Desde então, Villegagnon sempre foi
parcimonioso em relação a outros temas que o fossem dirigidos à religião. Arthur Heulhard
dedicou-lhe um livro, que, no entanto, não reproduz a maior parte das acusações recebidas dos
panfletistas protestantes anônimos. É preciso que se diga então, que o resgate de tais
considerações não será feito com o intuito de denegrir sua imagem, trata-se apenas de não
silenciá-las, na medida em que elas se vinculam à sua vida pública e que ajudam a esclarecer a
relação dos protestantes a ele.
Começo expondo resumidamente os escritos de Villegagnon para depois traçar sua
trajetória antes da instituição da França Antártica.
Em 1542, Villegagnon publicou Caroli V. imperatoris expeditio in Africam ad Argieram,
per Nicolaum Villagagnonem, equitem Rhodium gallum, ad D. G. Bellaium Langaeum,
Subalpinarum gentium proregem. Trata-se de um relato da expedição à Argélia que empreendeu
junto com Carlos V, contra os turcos infiéis, quando já era cavaleiro da Ordem de Malta. Ele se
feriu em uma batalha e foi para Roma, onde redigiu a obra. Em 1553, publicou um segundo livro
sobre Carlos V: De Bello melitensi, ad Carolum caesarem Nicolai Villagagnonis commentarius.
205
Os protestantes atribuem a Villegagnon ter escrito, em 1556, uma carta a Jean Calvino, da
França Antártica, requerendo a vinda de calvinistas para povoar a colônia. Villegagnon negou
peremptoriamente (Introdução). Contudo, no dia 31 de março de 1557, ele escreveu uma carta a
Calvino, enviada em dos navios (o Rosée) da frota que trouxe os calvinistas, aos cuidados do
genovês Nicolas Carmeau. Nessa carta ele expressou a felicidade com a chegada dos irmãos,
narrou as dificuldades que estava passando e agradeceu os conselhos enviados por Calvino em
outras correspondências
54
. No último dia de novembro do mesmo ano, portanto quando os
calvinistas haviam saido da ilha e estavam vivendo entre os índios, Villegagnon escreveu uma
carta ao duque de Guise, na qual narrou a conclusão da construção do forte e pediu ao nobre que
intercedesse junto ao rei para o envio de mais recursos
55
.
Em 1560, quando voltou para a França, Villegaganon publicou: Responce av livre inscrit,
pour la maiorité du roy François second, no qual se posicionou a favor dos Valois. No dia 13 de
julho do mesmo ano, Villegagnon escreveu uma carta ao Magistrado de Genebra pedindo para
que no prazo de quarenta dias
56
fosse marcado um encontro com Calvino para esclarecer sua
atuação na França Antártica em relação a Pierre Richer, líder espiritual da missão genovesa
57
. No
mesmo ano, Villegagnon publicou Ad artículos calvinianae de sacramento eueucharistiae
traditionis, ad ejus Ministris in Francia Antarctica evulgatae, Responsiones, traduzido no ano
seguinte como: Les propositions contentieuses entre le chevalier de Villegaignon et maistre
Jehan Calvin concernant la verité de l‟Eucharistie. São 34 catulos, que correspondem ao
mesmo número de proposições de Calvino, comentados por Villegagnon
58
. Após a publicação
54
A transcrição da carta encontra-se em Richer 1561: 171-176 (com a data de 10/4/1557); em Léry 1578 - 1994: 67-
73 e em Peillard 1991: 139-143.
55
O original desta carta está exposto no Museu da Marinha, no Rio de Janeiro.
56
Segundo Lestringant, na edição em latim, o prazo era de 30 dias.
57
A carta foi publicada na 2ª edição de 1562, de Les propositions contentieuses. pp. 26-31.
58
Há uma edição em latim, de 1562, divida em três livros, em que constam 216 proposições.
206
desse livro, o Conselho de Genebra pediu a Richer que escrevesse uma resposta. No mesmo ano,
o pastor publicou: La des folles resversies, execrables blasphemes, erreurs et mensonges de
Nicolas Durand (Lestringant 1980 - 1996: 93).
Ainda em 1561, Villegagnon publicou De coenae controversiae Philippi Melanchthonis
judicio..., no qual, segundo Lestringant, utilizou-se do arsenal polêmico e teológico dos luteranos
ortodoxos, entre eles, Mélanchthon, para combater as opiniões de Calvino e Pierre Richer sobre a
Eucaristia (Lestringant 1990 - 2004: 571). E onde, dans l‟épître à l‟Empereur Ferdinand et aux
princes-électeurs du Saint-Empire, Villegagnon reconnaît avoir poursuivi des relations avec des
luthériens à son retour du Brésil et avoir été séduit par leurs thèses sur la Cène(Lestringant
1588 - 2006: 269n.). Ainda de acordo com Lestringant, le chevalier de Malte, de retour à Paris,
continuait d‟entretenir des relations suivies avec les représentants de la Réforme allemande”,
como, por exemplo, com o editor da maior parte de seus livros, André Wechel (1985 - 1996:
127).
Foi em 1561 que Villegagnon começou a responder aos panfletos protestantes publicados
contra ele. Neste contexto, publicou: Reponse par le Chevalier de Villegagnon aux remontrances
faictes a la reine mère du Roy; Reponse aux libelles d‟injures, publiez contre le Chevalier de
Villegagnon, au lecteur chrestien
59
; Lettres du chevallier de Villegaignon, sur les remonstrances,
a la royne mere du roy sa souveraine Dame.
Em 1562, Villegaganon publicou uma edição revisada de Paraphrase dv chevalier de
Villegaignon, sur la resolution des Sacrements, de Maistre Jehan Calvin, Ministre de Geneve, no
qual retomou as críticas à doutrina calvinista iniciada com o Ad artículos calvinianae de
sacramento (1560), mas de forma simplificada.
59
Thevet reproduziu em Histoire de deux voyages (1588: 268-271).
207
Em 1569, depois de sete anos de silêncio, Villegagnon retornou à controvérsia sobre a
Eucaristia em De consecratione, mystico sacrifício et duplicis Christi ... (Lestringant 1990 -
2004: 571).
A trajetória da vida de Villegagnon é recheada de polêmica e poucos são os fatos
incontestáveis. Nascido em 1510, na província de Provins, em Champagne, segundo Heulhard,
seu pai foi Louis Durand, seigneur de Villegagnon, que morreu em 1521, e sua mãe, que se
chamava Jeanne du Fresnoy, morreu em 1564 (Heulhard 1897: 2). Já Dauber afirma que o:
François Nicole Durand de Villegagnon was born in 1510 in his father‟s castle in Provins, in
the province of Brie, region of Ile de France, not far from Paris(1995: 7). Segundo Richer, ele
era filho de um pobre trabalhador do campo (1561: 2), não-letrado (1561: 7), o que é contestado
por um panfletista anônimo (L‟amende honorable 1561f: Aiij), que diz que ele era filho de um
procurador do rei. O mesmo afirma Reverdin (1957: 13), que segue, neste ponto, Heulhard (1897:
3). Heulhard também escreveu que na época em que Villegagnon fez a faculdade de Direito em
Orléans, seu pai ainda não tinha adquirido a propriedade de Villegagnon e, portanto, chamava-se,
apenas, Nicolas Durand, como Richer, e outros protestantes, insistiu em nom-lo em 1561. Em
relação a essa propriedade, Richer diz que a casa era constrda de palha, madeira e argila e que
parecia um estábulo (1561: 12-13).
À exceção de Richer, há uma unanimidade de que Villegagnon foi condiscípulo de
Calvino na faculdade de Direito. Contudo, ele não seguiu a carreira da magistratura. Entrou, em
1531, aos 21 anos, na Ordem dos cavaleiros de Malta (Heulhard 1897: 6), onde de acordo com
Heulhard, Villegagnon a tout ce qu‟il faut pour reconquérir le tombeau du Christ (1897: 7).
Segundo Richer, como o pai de Villegagnon não tinha dinheiro para nutrir a família,
Nicolas Durand foi ajudado por um tio que era padre e que o instruiu nas letras humanas. Assim,
208
tendo ele conhecido alguns rudimentos do direito civil aproximou-se dos advogados do senado
parisiense. Lá, ele teria apresentado uma requisição para ser recebido como advogado, quando foi
desonrado e condenado. Ele pediu para se defender, mas acabou sendo preso. Na prisão,
desculpou-se por seus atos no Parlamento. Ainda segundo Richer, com ajuda de alguns amigos,
Villegagnon abandonou a graciosa batalha das leis civis e seguiu para batalha armada, algo mais
inclinado aos seus costumes. Foi ordenado cavaleiro de Malta, sem que lhe inquirissem sobre sua
linhagem, algo necessário à entrada nessa ordem (1561: 7-10). Já de acordo com Dauber,
Villegagnon‟s spiritual upheaval, his enormous vivacity and his
unlimited energy induced him to become a leader of some kind of the student‟s
revolt. The consequence of these activities, notwithstanding the young
Villegagnon‟s excellent progress in his studies, was a reprimand followed by
expulsion from the University” (1995: 7).
Em 1541, Villegagnon foi à Argélia com Carlos V combater os infiéis e publicou o livro
sobre a expedição. No ano seguinte, lutou contra os turcos na Hungria (Lestringant 1994: 106n.).
No dia 20 de maio de 1548, Villegagnon partiu em uma armada francesa do porto de Brest em
direção à Escócia, com a intenção de resgatar a rainha Mary Stuart, então com seis anos, noiva do
herdeiro do trono francês, Francisco II. Villegagnon conseguiu trazê-la para França, pois
surpreendeu os ingleses quando escolheu o caminho mais difícil para chegar ao castelo de Saint-
Andrews, pelo norte da Escócia.
O próximo fato significativo da trajetória de Villegagnon foi sua nomeação a vice-
almirante da Bretanha. Segundo Heulhard, isso ocorreu por volta de 1553, e quem o indicou foi o
recém escolhido Almirante da França, Gaspar de Coligny (1897: 79). Dois anos depois, ele foi
para Guanabara implantar a França Antártica.
209
Quando Villegagnon voltou à França, às vésperas das guerras de Religião, ele se juntou ao
partido católico dos Guise. No que diz respeito à sua vida pessoal, quer dizer, aos aspectos não
relacionados diretamente à França Antártica, os panfletistas protestantes acusaram-no de ter sido
marcado por uma flor-de-lis no ombro, (Richer 1561: 2 e Espovssete des armories de
Villegaignon (1561e) e de ser proveniente de uma família insana.
Em 1563, João Pereira Dantas, embaixador português na França, escreveu ao rei D.
Sebastião sobre uma petição que Villegagnon fez ao rei francês. O motivo da carta, dizia respeito
ao fato de que Villegagnon tinha procurado o embaixador para que este corroborasse suas
demandas. João Pereira Dantas pediu então orientação sobre como proceder. Sobre a petição, o
embaixador apenas informa que Villegagnon reclamava ter perdido na França Antártica “montes
e maravilhas” (1965: 52), mas aconselha ao rei que
aynda que o dito cavalleiro de Villa guanhaõ naõ tenha nenhum direito
no que Requere. Mas antes merecia perder tudo o que nisto perdeo, por aver
hido abitar nas terras que sabia claramenete serem de V. A. todavia por ser
homem fidalguo E taõ bom catholico E zellozo da Relligiaõ como he (...)
merece verdadeiramente que V. A. folque de lhe fazer merece, E usar cõ elle de
maior equidade do que se podesse usar qualquer outra pessoa em que naõ
concorressem estas callidades” (1965: 52).
Villegagnon morreu doente, mas, como escreveu Heulhard,
on ne s‟accorde pas sur l‟année Villegagnon partit pour le dernier
voyage. Est-ce le 9 janvier 1571, comme le dit l‟inscriptio, jadis relevée sur sa
pierre tombale? Est-ce en décembre de la même année, comme le dit le P. de
Saint-Romuald? Est-ce plus tard encore, le 29 janvier 1572, comme je les
crois? Il n‟importe” (1897: 302-303).
210
Villegagnon X Richer:
A controvérsia sobre a Eucaristia que teve início na França Antártica foi retomada por
Villegagnon quando de volta à França. Em 1560, ele publicou em latim uma série de proposições
de Calvino as quais acrescentou seus comentários. Neste livro, traduzido para o francês, consta
uma cópia da epístola escrita pelo cavaleiro de Villegagnon e enviada ao Magistrado de
Genebra / dovble de l‟epistre escripte et envoyee av Magistrat de Genesue, par le cheualier de
Villegaignon”, na qual ele explica porque decidiu estudar o pensamento de Calvino.
Segundo Villegagnon,
Pierre Richer, ex-carmelita, veio da vossa parte e de Jean Calvino
ao meu deserto para nos instituir a vossa religião. Quando chegou, por
causa da autoridade do seu preceptor, como da vossa cidade, lhes demos
autorização para realizar sua tarefa (...) Ele não esqueceu de nada que
fazia parte do seu trabalho. A primeira coisa que ele quis fazer, foi se
esforçar para que nós deixássemos a devoção que tínhamos à religião
católica para melhor poder imprimir a vossa. Para não perder tempo, eles
nos fez breves resumos da tradição de Calvino, que ele queria que
decorássemos (...) Todavia, a fim de que essas tradições permanecessem
sigilosas e pouco conhecida pelos selvagens, ele exprimia máximas
envelopadas por não sei quais palavras obscuras. Agindo desta forma, ele
despertou em mim um desejo inacreditável de entender o segredo da
ciência e descortinar as coisas minuciosamente, o quanto me era possível
alcançar devido à fraqueza do meu entendimento. Desse modo, beneficiei-
me de tal forma, que penetrei as coisas mais profundamente escondidas
das tradições até alcançar as ideias santas
Pierre Richer Carme deffreequé, est venu de par vous & de maistre
Iehan Caluin en nostre desert, pour nus instituer en vostre religion. Estant
arrivé, tant pour l‟auctorité de son precepteur, que de vostre ville, nous luy
211
dõnasmes cõgé d‟executer sa charge (...) il n‟oublia rien de toutes les choses
appartenãtes à son office. La premiere qu‟il voulut faire, fut de i efforcer de
nous oster la deuotion, que nous auions à la religion catholique, pour mieulx
apres nous imprimer la vostre: luy semblant ne perdre tẽps, ils nous feist des
briefs sommaires des tradition de Caluin, qu‟il nous donnoit pour apprẽndre
par coeur (...) Toutefois affin qu‟elles ne fussent descouuuertes, & trop
communes aux indignes, il couuroit ses sentences de je ne sçay quels
enuelopemẽs de parolles obscures: Ce faisant il m‟enslãba de desir incroyable
d‟entendre le secret de la science, & esplucher les choses par le menu, tant que
ie pourroye atteindre par la foiblesse de mon entendement. En quoy faisant ie
prouffitay si bien, que ie penetray iusques aux plus profundes cachettes des
traditions, si que i‟attouchay les sainctes idees (1560 - 1562: 26-27).
Sob o título: Das coisas contenciosas entre o cavaleiro de Villegagnon e mestre João
Calvino para o sacramento do Altar / Des choses contentievses entre le chevalier de
Villegaignon, & maistre Iehan Caluin pour le Sacrement de l‟Autel, Villegagnon expôs as
proposições de Calvino a serem impugnadas. A primeira delas era que a Eucaristia, enquanto
matéria corruptível do pão, seria a figura do corpo de Jesus Cristo, cuja carne é incorruptível.
Villegagnon responde que uma figura é algo menor que a divindade, portanto, a hóstia deveria ser
diferida de objetos como santos e crucifixos. Sobre a “similitude entre a natureza comestível do
pão e a de Jesus Cristo”, quando Calvino afirma que a alma come espiritualmente o corpo de
nosso senhor”, Villegagnon contrapõe argumentando que não é a alma que come, mas o corpo
inteiro, pois, a alma, que não possui dentes apenas fé, não come/ l‟ame, qui n‟a nulle dents
que de foy, ne mange pas(1560-1562: 20-21).
Ainda sobre o problema da figura, na terceira
proposição, Villegagnon expõe uma preocupação:
Se, todavia, Calvino quer que o pão material sem ser oferecido e
sacrificado seja a figura do corpo de Jesus Cristo ofertada e sacrificada,
212
não é preciso que se acrescente que ele é ofertado e morto espiritualmente e
não corporalmente? E, em consequência, negar a paixão, entendendo-a
apenas como espiritual?
si veult Caluin toutesfois que, le pain materiel, nullement offert, ne
sacrifié, soit figure spirituelle du corps de Iesus, offert pour nous, & sacrifié:
fauldroit il pas adiouster offert & mort spirutuellement, & non corporellement?
Et par ainsi nier la passion sinon spirituelle?” (1560 - 1562: 45).
Mais à frente, na quarta proposição Villegagnon retoma o mesmo argumento:
se Jesus Cristo é oferecido apenas em espírito (como diz Calvino), teria sangrado
no lugar santo, em espírito, e, assim, poder-se-ia dizer que ele apenas sofreu em espírito, o
que seria aniquilar a paixão e o sacrifício da nossa salvação / si Iesus Christ n se seroit
offert qu‟en esprit (comme dict Caluin) n‟auroit porté son sang au lieu Sainct qu‟en esprit, lon
pourroit dire, qu‟il n‟auroit souffert hors la porte qu‟en esprit, qui seroit aneantir la passion &
sacrifice de nostre salut (1560 - 1562: 64). Para ele, sem sangue não haveria purificação,
nem a remissão dos pecados / sans le sang n‟y auoit il mondation ne remission de pechez
(1560 - 1562: 65). Villegagnon volta à questão na décima segunda proposição:
se a alma dos calvinistas é realmente nutrida do corpo de Jesus,
mas não corporalmente em relação ao corpo dele, será ela participante
daquele que sofreu a morte e a paixão? Jesus sofreu realmente e não
corporalmente? Ou essa doutrina tenta apenas abolir a paixão de nosso
Senhor?”
si l‟ame des Caluiniens est nourrie du corps de Iesus reallement, &
non corporellement, au regard dudict corps, sera elle participãte de ce qui a
souffert mort & passion? Iesus à il souffert reallement & non corporellement?
213
Ou tend ceste doctrine, sinon à l‟abolition de la passion de nostre Seigneur?
(1560 - 1562: 140).
Sobre a questão de como é possível o corpo de Jesus estar em dois ou mais lugares ao
mesmo tempo, Villegagnon responde, na nona proposição, que é necessário lembrar o milagre da
multiplicação dos peixes e dos pães, que está em São João. Aquele teria sido um momento no
qual Jesus preparou os homens para compreenderem o milagre da distribuição de seu corpo que,
alguns, como ironiza Villegagnon, acham tão estranho (1560 - 1562: 115).
Em uma passagem, Villegagnon afirma que o sol, apesar de uno, ilumina a todos (1560 -
1562: 118-119). Entretanto, na proposição de número 13, transcreve Calvino: assim como o sol
irradia sua substância na terra para dar vida às frutas, a virtude do Santo Espírito, como
canal, não é menor para traduzir em nós a comunhão da carne / tout ainsi que le soleil
traiecte sa substance en terre, pour vegeter les fruicts d‟icelle: que la vertu du Sainct Esprit,
comme canal, n‟est pas moindre à traduire en nous la communion de la chair(1560 - 1562:
143). Em seguida, afirma que não tem vergonha de dizer que não compreende a sentença, pois
sol, carne e espírito são de substâncias diversas (1560 - 1562: 143). Portanto, nós mostramos
que a comunhão, na medida que ela é uma ação, não pode ser difundida nem traduzida,
senão tudo se decompõe em fumaça/ nous auons monstré que la communion, en tãt qu‟elle
est action, ne se peult ne diffondre, ne traduire, parquoy tout se resoult en fumee(1560 - 1562:
146).
A comunhão segundo Calvino, diz Villegagnon: se faz (...) pela virtude
incompreensível do espírito/ se faict (...) par la vertu incomprehensible del esprit (1560 -
1562: 142). Em seguida, Villegagnon pergunta:
214
mas por que Calvino teria esse crédito de nos retirar da nossa
enraizada religião para nos dar uma que é incompreensível a ele e a nós?
Visto que ninguém o compreende e sabendo que a nossa não era inteligível,
não é melhor se ater àquilo que se recebeu dos nossos padres, do que
mudar de forma assim tão incerta? Quem é Calvino, quem cnele? De
um pequeno mestre separado e maculado, fugitivo em certas
contrariedades e palavras indiferentes, ele, com palavras vãs e confusas, se
faz de legislador que, com falácia e artifícios de linguagem tenta, aspira sob
a sombra de uma religião que ele diz incompreensível, subverter a paz e a
união desse reino
mais pourquoy est ce que Caluin aura ce credit de nous oster de nostre
inueteree religion, pour nous en donner vne incomprehensible à luy & à nous?
Puis que nul ne l‟entend, saçoit que la nostre ne fust intelligible, vault il pas
mieulx se tenir à ce que lon a receu des peres, que changer si incertainement?
Qui est Caluin, que lon croye en luy? D‟vng petit maitre descole crotté, fugitif
pour quelque despit & indiferetes parolles, il sest par vaniloquence faict vng
legislateur, qui par fallace & artifice de gauge, tend soubs ombre d‟vne
religio, qu‟il dict incomprehensible, subuertir la paix & vnion de ce
royaume (1560 - 1562: 142).
Em outra proposição, número 27, Villegagnon remete-se ao teólogo protestante Todore
de Bèze, para discutir outra das mais excelentes doutrinas da catequese, que vocês também
acharão ridícula” / une autre des plus excellentes doctrines du Catechisme, que vous ne
trouuerez moins ridicule, a saber:
que a comunhão do corpo, que se realiza na Eucaristia, se realiza no
Batismo, e também por meio do Evangelho, como na Eucaristia. Mas no
Batismo se realiza em parte e na Eucaristia plenamente. Bèze, contra
Westphalus, defende enfaticamente essa proposição, mas nem ele, nem os
215
outros com quem falei, definiram uma coisa: em quantas partes eles
desmembram o corpo de Jesus Cristo, e quais as partes que se come no
Batismo, no Evangelho, e quais restam à Eucaristia. Quanto a mim,
sempre acreditei que nosso Senhor oferece todo o seu corpo, pois o rito
não está nas partes, mas no conjunto
que la munion du cops, qui se faict à la Cene, se faict au Baptesme,
& par l‟Evãgile aussi, me elle est faicte à ladicte Cene: Mais que ce n‟est
qu‟en partie, & qu‟elle se faict plainement à la Cene. Beze contre Westphalus,
defend fort cest propositiõ, mais ne luy, ne autres, à qui i‟ay parlé, ne m‟ont
resolu d‟vne chose, en cõbien de parties ils desmembrẽt le corps de Iesus Crist:
ne quelles parties lon mange au Baptesme, quelles a l‟Euangelie, quelles
restent à la Cene pour le demeurant. Quant à moi, i‟ay tousiours creu, que
nostre Seigneur donne son corps entier: car le merite n‟est de pieces, mais de
tout emsemble” (1560 - 1562: 193).
Na vigésima proposição: da esperança de salvação da carne negada por Calvino
segundo a sua doutrina/ de l‟esperance dv salut de la chair niee par Caluin selon sa
doctrine, Villegagnon, afirma que:
Richer, discípulo de Calvino, não está aqui em acordo com o seu
mestre. Ele confessou-me que esse pedaço de pão não tinha a força que
Calvino dizia, pois haveria muito mana, contra a palavra de Jesus Cristo.
Vossos pais comeram o mana e morreram; quem come esse pão, viverá
eternamente. E, assim, Richer atribuiu a causa eficaz da salvação a nossa
carne, a nossa alma, aquela que estando saciada pela divina carne nesse
mundo, pela fé, comunicará sua vida ao novo corpo que será dado
Richer, disciple de Caluin, n‟a en cecy esté d‟accord auec son maistre:
il me confessa, que ce morcelet de pain, n‟auoit telle force que dict Caluin: Car
la manne en auroit autant en, contre la Parolle de Iesus Christ. Voz peres ont
216
mangé la manne, & sont morts: Qui mange ca pain, viura eternellement: Et par
ainsi, ledict Richer attribuoit la cause efficiente du salut de notre chair, à notre
ame, laquelle ayãt es repue de la diuine chair en ce mõde, par foy,
communuquera sa vie au corps qui luy sera redonné (1560 - 1562: 172).
Villegagnon, no entanto, comentou: Não posso me contentar com essa contemplação,
pois está escrito que aquele que come minha carne, eu o ressuscitarei. É preciso, para tanto,
que o corpo tenha sido comido, pois ele ressuscita nossa alma” / “Ie ne peulx contenter de cete
contemplation: Car il est escript, Qui mãge ma chair, ie le ressusciteray: il fault à ce propos que
le corps l‟aye mangé: car il a de ressuscister l‟ame (1560 - 1562: 172-173). Villegagnon
também escreveu:
o carmelita Richer, tendo sido enviado por Calvino à França
Antártica, não se contentou em se igualar ao seu mestre, mais quis
acrescentar à sua doutrina alguns artigos sujos e de importância diversa;
que era não preciso rezar, nem adorar Jesus Cristo necessariamente; (...)
que a adoração é indiferente (...) Quando ele me deixou escrito que Jesus se
deu a nós realmente e verdadeiramente, não corporalmente, me pareceu
que ele pecava
le Carme Richer, m‟ayãt esté enuoyé par Caluin en la France
Antarticque, ne sest contenté d‟estre egal au maistre, mais a voulu adiouster à
sa doctrine quelques articles aussi poisans, & d‟importance, que les autres de
son maistre. Qu‟il ne falloit prier, n‟adorer Iesus Christ de necessité (...) que
l‟adoration est indifferente (...) Quant il m‟a laisse par escript, que Iesus se
donnoit à nous reallemẽt & vrayement, non corporellement il m‟a semblé qu‟il
pechoit (1560 - 1562: 245-246).
Mais uma vez ele repete que Richer:
217
deixou-me (...) por escrito que a verdade da qual consiste o
sacramento, segundo disse, é o corpo de Jesus Cristo, é uma espécie, tal
como são as ideias de Platão. Sua explicação é que a recepção do corpo de
Jesus Cristo jaz apenas na e no entendimento, de modo que se você c
que comeu o corpo, assim será, de outra forma não terá comido o pão
m‟a laissé (...) par escript, que la verité, de laquelle consistoit le
sacrement, qui, à son dire, est le corps de Iesus Christ, est vne espece, comme
sont les Idees de Platon. Sa raison est, que la reception du corps de Iesus
Christ, ne gist qu‟en foy & en l‟entendement: tellement qui si vous croyez, &
cuidez auoir mangé le corps, il est ainsi, autrement n‟aura esté mangé que du
pain (1560 - 1562: 247).
Richer foi novamente citado, na trigésima proposição. Escreveu Villegagnon:
uma coisa me impressiona muito, como a alma que está no corpo
de Calvino aqui em baixo pode pretender comer o corpo de Jesus Cristo,
que está no céu, senão em fantasia e, como diz Richer, seu discípulo,
idealmente, como realidade não corporal, visto que existe uma distância
entre ambos, como há entre o céu e a terra
une chose en cecy m‟esbahist fort, cõmẽt l‟ame estant au corps de
Caluin, icy bas, peult prendre & manger Iesus Christ estant au ciel, sinon par
phantasie, & comme dict Richer son disciple, idealemẽt, cõme reallité nõ
corporelle: puis qu‟il y a telle distance entre deux, comme de la terre au ciel
(1560 - 1562: 220).
Esta questão foi respondida durante o Colóquio de Poissy, em 1561, por Bèze: le corps
du Christ est éloigé du pain et du vin autant que le plus haut ciel est rapproché de la terre(In
Lestringant 1999 - 2004: 59-60 apud Delumeau 1968: 150). Abro um parêntese aqui para expor,
218
segundo Wanegffelen, o colóquio de Poissy. Segundo o historiador, tratou-se de une authentique
discussion théologique, et non (...) l‟audition d‟accusés pénitents (Wanegffelen 2005: 278) que
começou com um debate sobre a Eucaristia. O Cardeal de Lorraine (Duque de Guise) e Théodore
de Bèze, dias antes, fizeram um ensaio nos aposentos da rainha mãe. O cardeal pretendia chegar a
um consenso sobre o tema, mas, nesse meio tempo, Bèze recebeu cartas de Calvino, de Genebra,
que o incentivaram a mudar de atitude. Após o chanceler Michel l‟Hospital ter aberto a sessão, no
dia 9 de setembro, com um discurso que dizia que não se devia, de jeito algum, estimer ennemis
ceux qu‟on dit de la nouvelle religion, qui sont chrétiens comme [les prélats assemblés], et
baptisés”, Bèze proferiu a famosa frase sobre a distância entre o corpo de Cristo e a hóstia. A
reação católica foi imediata: il a blasphémé‟. L‟émotion est immense. L‟scandal est arrivé,
conjointement, par un Pasteur et un cardinal
60
” (Wanegffelen 2005: 279).
No dia 16 de setembro, Charles de Lorraine tentou uma conciliação com a confissão
luterana, mas Bèze, no dia 24, pela segunda vez tomou a palavra para recusar qualquer tipo
concessão. Outras tentativas foram feitas, até que finalmente Lorraine,
mis hors de lui par la conjonction des excès confessionnels opposés, il
explique alors à l‟assemble des prélats et aux ministres que, comme c‟est
principalement sur l‟eucharistie que les chrétiens sont divisés, il est inutile de
débattre si on ne trouve pas un terrain d‟accord sur cette
matière”(Wanegffelen 2005: 279).
No dia seguinte, Catarina de Médicis marcou uma série de encontros privados entre seu
teólogo, Lorriane e seu teólogo e Bèze, mas as discussões foram infrutíferas em termos de
acordo. Na sessão do dia 26 de setembro, o jesuíta espanhol Diego Laínez, sucessor de Inácio de
Loyola, a quem grande parte das cartas escritas no Brasil foram endereçadas, comparou os
60
François de Tournon.
219
ministros a serpentes, raposas e macacos. Em seguida, afirmou em voz alta que esse colóquio não
deveria ter ocorrido, primeiro porque o colóquio de Trento havia sido convocado novamente pelo
papa um ano antes e depois, porque não se deveria discutir com heréticos, eles deveriam apenas
ser doutrinados e convencidos. Enquanto Lainez falava, lágrimas copiosas verteram dos olhos da
rainha. Talvez tenha sido esta a única vez em que Catarina chorou em blico, apesar de estar
constantemente de luto por causa da morte do marido e de quase todos os filhos. O colóquio que
terminou no dia 14 de outubro foi considerado um desastre para França.
No final do livro em que se valeu do Antigo Testamento para combater Calvino,
sobretudo aquilo que considerava mais perigoso na doutrina, a saber, as analogias e as
metonímias, Villegagnon escreveu:
Digo, em consciência, que creio ser melhor ser selvagem, sem
qualquer religião, do que seguir e abraçar essa que Calvino nos forjou e
continua nos forjando todos os dias novamente, acrescentando ou
diminuindo alguma coisa, até que de tudo, não reste mais nada
ie dy, en ma cõscience, que i‟aym croyre mieulx estre sauuage, sans
aucune religion, que de suiure, n‟y embrasser celle, que Caluin nous a forgee,
& nous forge tous les iours de nouueau, y adioustant ou diminuant quelque
chose, iusques à que du tout il n‟en tienne plus aucune” (1560 - 1562: 239).
Como se sabe, Calvino jamais respondeu a Villegagnon. A única pessoa que assinou uma
resposta, provavelmente com ajuda de Bèze, foi Richer (Lestringant 1985: 1996: 135). Em La
refvtation des folles resveries, execrables, blasphemes, erreurs & mensonges de Nicolas Durand,
qui se nomme Villegaignon: divisee en deux liures, Richer escreveu que: conforme a vontade
do Senhor Deus, nós estamos unidos a Jesus Cristo, que é nosso chefe, e aos seus membros.
Somos parte da sua carne e da sua bebida, osso de seus ossos, carne de sua carne/ renduz
220
conformes au Seigneur Dieu, nous sommes vnis à Iesus Christ, qui est nostre chef, & à ses
membres, & sommes faits participans de sa viãde & breuuage, os de ses os, & chair de sa chair
(1561: 38). Ainda sobre a Eucarístia, Richer afirma que:
o pão e o vinho são as marcas que representam o alimento invisível
que nós recebemos da carne e do sangue de Jesus Cristo (...) os espíritos
não são alimentados de carnes materiais e corporais; é preciso então que a
refeição seja espiritual, de onde nossos espíritos recebem sua alimentação
le pain & le vin sont les marques qui representent l‟inuisible aliment
que nous receuõs de la chair & du sang de Iesus Christ (...) les esprits ne sont
pas nourris de viandes materielles & corporelles: il faut donc que le repas soit
spirituel, duquel noz esprits reçoyuent leur nourrissement” (1561: 38).
Coisas como esta, continua Richer, Durand não compreendeu, um estômago carnal
não pode compreender nem conceber / Durand n‟a pas entendu, & vn estomach charnel ne
le peult entendre ne conceuoir(1561: 40). Segundo Richer, a única forma de comer Jesus
Cristo é por meio da / on ne mange point Iesus Christ, sinõ par foy(1561: 42-43), assim
como,
quando Jesus Cristo ensinou aos seus discípulos sobre a refeição da
sua carne na comunicação perpétua da fé, ele explicou também o que era
figurado e realizado na Eucaristia, e, por isso, esta doutrina deve ser
referência à Eucaristia, a saber, é o Espírito que vivifica, a carne não se
beneficia em nada
quãd Iesus Christ a enseigné à ses diciples le repas de sa chair, en la
perpetuelle cõmunication de foy, il explique aussi ce qui est figuré & accompli
en la Cene, & par ce moyẽ ceste doctrine doit estre referece à la cene, c‟est à
sçauoir, l‟Esprit est qui viuifie, la chair ne profite en rien” (1561: 44).
221
Portanto, é preciso que o pão e o vinho na Eucaristia sejam signos, por meio dos
quais as promessas, como pinturas em um quadro vivo, são representadas/ il fault que le
pain & le vin en la Cene soyent signes, par lesquels les promesses, comme painctes en vn tableu
viuement, sonnt representees” (1561: 46).
Mais à frente Richer afirma:
eu confesso, sim, que por causa dessas razões extraídas da palavra
de Deus, eu muito debati e disputei contra Hector (na presença de Durand,
mudo e sem língua), que os homens maus e infiéis não recebem a
Comunhão e que eles não recebem Jesus Cristo, mas apenas figuras vãs e
frias do pão e do vinho
ie confesse, certes, que par ces raison extraictes de la parole de Dieu,
i‟ay auecques grand debat & contention soustenu contre Hector, (en la
presence de Durand, mais muet & sans laugue) que les hommes meschans &
infideles n‟ont point de Cene, & qu‟il ne reçoyuent IESVS CHRIST, mais
seulement des vaines & froides figures de pain & de vin(1561: 48).
Para Richer,
frente à impostura da transubstanciação, é conveniente opor os
testemunhos claros e aparentes da santa escritura, nos quais o pão é
chamado pão quando está distribuído e também na natureza dos
sacramentos, pois, se o pão não é mais pão, mas se transmuta no corpo de
Jesus Cristo, não existe signo. Se não existe signo, não qualquer coisa
que signifique, pois não existe analogia e relação entre as coisas que nada
são e aquelas que são
à l‟imposture de la transsubstantiation il cõuient opposer les clairs &
apparẽs tesmoignages de l‟escriture sainte, par lesquels le pain est appelé pain
en sa propre distribution, puis en la nature des sacremens: car si le pain n‟est
222
plus pain, mais transmué en corps de Iesus Christ, il n‟y a point de signe: s‟il
n‟y a point de signe, il n‟ya dõc point de chose signifiee: car il n‟y a point de
analogie & relation entre les choses qui ne sont point, & entre celles qui sont
(1561: 59-60).
Assim, ele continua: é algo admirável ver chamar esses homens de cristãos, que
presumem que por meio da boca corporal o corpo de Jesus Cristo desce até a sua barriga/
c‟est vne chose admirable de voir appellez ses hõmes Chrestiẽs, qui presumẽt que par la bouche
corporelle le corps de Christ descẽd en leur ventre” (1561: 67).
Um dos problemas de Villegagnon em relação à doutrina calvinista eram as analogias.
Para ele, se o pão e o corpo de Cristo são de naturezas e espécies diferentes, um o pode
significar o outro (1560 - 1562: 70-71). Ao contrário, para Richer, por meio do pão enquanto
espécie, somos distintamente nutridos do corpo de Cristo e, por meio do vinho como
espécie, bebemos separadamente seu sangue, a fim de que, finalmente, tenhamos dele uma
frutificação inteira/ soubs l‟espece du pain, nous sommes distinctement nourris du corps de
Chist, & sous l‟espece du vin, nous beuuons separement son sang, à fin que finalement nous
ayons de luy entiere frutiõ (1561: 67). Outra crítica de Villegagnon era a respeito das
metonímias. Villegagnon escreveu que Calvino dizia em todos os lugares que o pão era o
corpo de Jesus Cristo, por metonímia, quer dizer, um apelido para aquilo que ele significa e
figura/ dict par tout, que le pain est le corps de Iesus Christ, par metonymie, c‟est à dire, de
surnom, pour ce qu‟il le signifie & figure (1560 - 1562: 139). Richer responde que
pronunciações, tais como: Este é o meu corpo? / Cela est mon corps? são figuradas e,
portanto que, é preciso que haja figura e metonímia em tudo, pois essa frase e a maneira de
falar dos sacramentos é tal, que o nome da coisa significante é atribuída ao signo/ il fault
223
que par tout il y ait figure, & metonymie: car ceste phrase & maniere de parler des sacremens
est telle, que le nom de la chose signifiée, est attribué au signe” (1561: 74).
Na quinta proposição de Calvino, Villegagnon se remeteu ao mistério da encarnação. De
acordo com ele, este se come do Anjo, do Verbo e da fé na Virgem, sendo que esta última é a
pureza imaculada da matéria, tal como ocorre no sacramento (1560 - 1562: 77).
A questão da Eucaristia é, deste modo, colocada no mesmo plano da virgindade de Maria,
pois para ele, se a carne fosse designada em espírito, nada teria nascido da Virgem/ si la
chair fust desinee en esprit, il ne fust rien né de la Vierge” (1560 - 1562: 80).
Villegagnon em seguida afirma:
se isso hoje parece estranho, que o pão seja transformado em
carne, imagine há 1560 anos, quando se considerava que o pó no qual Adão
retornou, seria restituído ao mesmo corpo que foi feito no começo do
mundo. Algo tão miraculoso e difícil de fazer, como o que nós dizemos
si cela se trouue estrange auiourd‟huy, que le pain soit tourné en
chair, qui estoit il y a mil cinq cents soixantes ans: que lon prenne garde que la
pouldre, en laquelle Adam est retourné, sera restituee au mesme corps, qui fut
faict au commencement du monde: chose aussi miraculeuse & difficile à faire,
que ce que nous disons (1560 - 1562: 88).
Richer comentou essa interpretação de Villegagnon. Segundo o pastor,
ele diz que a santa e imaculada Virgem Maria concebeu Jesus
Cristo, filho de Deus, não por meio da fé, pela qual ela creu nas promessas
de Deus anunciadas pelo Anjo Gabriel, mas pelas palavras que o anjo
divulgou e pronunciou. Tolamente, ele crê que o Padre tem essa força na
Comunhão: de fazer o corpo de Jesus Cristo, por meio de um certo número
de palavras. Por isso, o sutil teólogo Durand, coloca o mistério da
224
encarnação entre os sacramentos, não sabendo que isso não é o que se deve
chamar de sacramento. Ele mistura o Céu com a Terra e confunde todas as
coisas
il dit, que la sainte & immaculee vierge Marie conceut Iesus Christ le
fils de Dieu, non par la seule foy, par laquelle elle creut aux promesses de Dieu
annoncees par l‟ange Gabriel: mais par les paroles que l‟ange espandit &
prononça, cõme follemẽt il croit que le Prestre a ceste puissance en la Cene, de
faire le corps de Iesus Christ par certain nombre de paroles: pour ceste cause
le subtil Theologien Durand colloque le mystere d‟incarnation entre les
Sacremens, ne sachant que c‟est, ne ce qui doibt estre appelé Sacrement, sinon
qu‟il mesle le Ciel auec la Terre, & cõfond toute choses (1561: 123).
Outra questão que, segundo Villegagnon, ele começou a discutir com Richer na França
Antártica, quando o pastor teria escrito as três proposições que foram comentadas e publicadas,
foi retomada na epístola enviada ao Magistrado de Genebra, quando acusou o pastor:
ele usou o sacramento da vossa comunhão para aprovar a vossa
doutrina, pregando que ela consistia em duas espécies, uma visível e a
outra invisível. Da invisível, ele dizia que era uma realidade intelectual,
não corporal, que vós recebeis pela fé, de modo que se você crê que Jesus
seja morto e ressuscitado por vós, que ele vos é ofertado, assim é, de outro
modo vós comeis na Comunhão apenas pão
il usoit du sacrement de vostre Cene pour approuuuer vostre doctrine,
preschant qu‟il consistoit en deux especes, une visible, l‟autre inuisible. Il
disoit de l‟inuisible, que c‟estoit une realité intellectuelle, non corporelle, que
vous receuez par foy, tellement que si vous croiez que Jesus soit mort &
ressucité pour vous, & qu‟il vous est offert, il est ainsi, autrement vous ne
mangez à votre Cene que du pain(1560 - 1562: 27).
225
Na Refutation, Richer respondeu assim:
essa infusão temporária do santo Espírito é chamada corretamente
de coisa enviada ou dom; ela é dupla, a saber, visível e invisível. Visível
quando ela está aparente nas espécies manifestadas, e nos testemunhos
exteriores: de pombos, de línguas de fogo, pelo sopro enviado pela boca e
pelo barulho de um ventinho. O invisível é quando, por benefício de Deus,
a fé, a esperança e a caridade são dadas e aumentadas. Isso é um e
mesmo esrito
ceste temporelle infusion du saint Esprit est appelle proprement chose
enouoyee, ou don: & elle est double, à sçauoir, visible & inuisible: visible,
quãd elle est apparente soubs especes manifestes, & tesmoignages exterieurs:
de coulombe
61
, de langues de feu, par soufftement de bouche enuoyé, & par le
bruit d‟vn petit vent. L‟inuisible, c‟est quand par le benefice de Dieu, la foy,
l‟esperance & la charité est donee & augmentee. Est c‟est vn seul & vn mesme
esprit” (1561: 167).
Sempre que se referia à pessoa de Villegagnon, Richer era extremamente agressivo, por
exemplo, quando escreveu que ele era:
muito melhor cozinheiro do que teólogo, ignorante de todas essas
coisas e tendo apenas sentimentos culinários, estimava que nosso corpo era
nutrido e aumentado por meio do corpo de Jesus Cristo; porque ele, e
aqueles que a ele se assemelhavam, tomavam esse divino corpo pelos dentes
e pela boca
bon Cuisinier, plus tost que Theologien, ignorant toutes ces choses, &
n‟ayant aucun sentimẽt que de la cuisine, estime que noz corps soyent nourris
61
Le mot du vieux français désignant un grand poteau dans les cloisons ou un pan de bois sur lequel portant une
poutre.
226
& augmentez par le corps de Iesus Christ, pource que luy & ses semblables
prennent ce diuin corps par les dẽts & par leur bouche” (1561: 101).
Logo à frente, Richer continua: é, de forma abundante e à moda dos cozinheiros,
tratar das coisas santas e sagradas e infelizmente adaptar o espírito de Deus à gula da
barriga, breve é confundir o Céu e a Terra / c‟est grassement & à la mode des cuisines
traiter des choses saintes & sa crees, & malheureusemẽt adapter l‟esprit de Dieu à la
gourmandise du ventre: brief, c‟est confondre le Ciel & la Terre (1561: 104). Finalmente,
Richer acusa-o assim: você diz ser teólogo, mas você queria dizer um guloso, um adulador
ou um gourmand de cozinhas/ tu te dis estre Theologien, mais tu voulois dire vn gourmand,
vn flateur, ou vn happelopin
62
des cuysines (1561: 160). Na página 12 do livro, uma
representação de Villegagnon sob otulo de “Polypheme”, com vários dizeres injuriosos.
Villegagnon X panfletos protestantes anônimos:
Paralelamente ao livro de Richer, uma série de panfletos protestantes anônimos começaram
a aparecer em 1561, assim como respostas de Villegagnon. Um dos panfletos mais extensos é
Histoire de choses memorables advenves en la terre dv Bresil, partie de l‟Amerique Australe,
sous le gouuernement de N. de Villeg. depuis l‟an 1555. iusques à l‟an 1558”, publicado
primeiramente junto com outros cinco panfletos na Histoire du Brésil, depois com o título “La
persécution des fidèles en terre d‟Amérque” na Histoire de Martyres (1564) e, finalmente, como
Bref Recueil de l‟affliction et dispersion de l‟Eglise des fideles au pays du Bresil, partie de
62
Autrefois chien de chasse ardent âpre à la curé (parte do animal caçado que se dá aos cães).
227
l‟Amerique Australe: ou est contenue sommairement le voyage & navigation, faicte par Nicolas
de Villegaignon, audict pays du Bresil, & de ce qui en est avenu (1565).
Essa narrativa, diferente dos demais panfletos protestantes, não se apresenta como
polêmica, mas como um registro, cuja primeira edição começa assim: o quanto é útil e
agradável à posteridade (amigo leitor) as declarações das coisas passadas, com segurança e
verdade, que s chamamos História / combien est utile & delectable à la posterité (Amy
lecteur) la declaration des choses passees, auec certitude & verité, que nous appellons Hystoire
(1561a: 2). Foi neste panfleto que o martírio dos protestantes sob o jugo de Villegagnon foi
narrado em detalhes, assim como, onde se encontra a confissão de fé protestante.
Eis, em resumo, algumas passagens da confissão de fé: cremos em apenas um Deus
(...) que é reconhecido em ts pessoas, o Pai, o Filho e o Santo Esrito, que, em essência,
formam uma mesma substância eterna e uma mesma vontade / nous croyons en vn seul
Dieu (...) lequel est distingué en trois personnes, le Pere, le Fils, & le S. Esprit: qui ne font
qu‟vne mesme substance en essence eternelle, & vne mesme volonté (1561- 1565: C.iiii.2.). O
segundo artigo afirma que: adorando nosso Senhor Jesus Cristo, nós não separamos uma
natureza da outra, confessando as duas naturezas, a saber, divina e humana, nele
inseparáveis/ adorans nostre Seigneur Iesus Christ, nous ne separons vne nature de l‟autre
confessans les deux natures, assauoir diuine & humaine, en celuy inseparables(1561- 1565:
C.iiii.3.). O quinto artigo trata da Eucaristia, nele está escrito que
cremos que no santo sacramento da Comunhão, com os signos
corporais do pão e do vinho, as almas fiéis são alimentadas, realmente e de
fato, da própria substância do nosso senhor Jesus Cristo, como nossos
corpos são nutridos de carne. E se não entendemos dizer, nem crer que o
pão e o vinho são transformados ou transubstanciados no corpo e no
sangue dele, é porque o pão permanece em sua natureza e substância,
228
assim como o vinho, não sofre mudança ou alteração. Nós, todavia,
distinguimos o pão e o vinho do outro pão que é dedicado ao uso comum;
assim ele nos é signo sacramental do qual a verdade é infalivelmente
recebida.
Ora, essa comunicação se faz apenas por meio da fé, e não convém
imaginar nada de carnal, nem preparar os dentes para comer, como santo
Agostinho nos ensina quando diz: por que você prepara os dentes e a
barriga? Creia e terás comido. O signo então não nos a verdade, nem a
coisa significada, mas nosso Senhor Jesus Cristo, pela sua força, virtude e
bondade, nutre e entretém nossas almas e faz com que ela participe da sua
carne e do seu sangue, assim como de todos os seus benefícios. Vamos à
interpretação das palavras de Jesus Cristo: „esse é o meu corpo‟.
Tertuliano, no livro quarto contra Márcio, explica essas palavras assim:
esse é o signo e a figura do meu corpo. Santo Agostinho disse: o Senhor não
hesitou quando disse: esse é meu corpo, quando ele dava apenas o signo do
seu corpo. Portanto, (como foi ordenado no primeiro cânone do Concílio de
Nice), nesse santo Sacramento nós não devemos imaginar nada de carnal e
nem nos distrair com o pão ou com o vinho, que nos são propostos como
signos, mas elevar nosso espírito ao céu para contemplar pela o filho de
Deus
nous croyons qu‟au sainct Sacremẽt de la Cene, auec les signes
corporels du pain, & du vin, les ames fideles sont nourries realement & de
faict, de la propre substance de nostre Seigneur Iesus, comme nos corps sont
nourris de viandes: & si n‟entendons dire, ne croire, que le pain & le vin soyent
transformez, ou transsubstanciez au corps & sang d‟iceluy: car le pain
demeure en sa nature & substance, pareillement le vin: & n‟y a changement ou
alteration. Nous distinguons toutesfois ledict pain & vin de l‟autre pain qui est
dedié à vsage comum: entant que ce nous est vn signe sacramental, sous lequel
la verité est infalliblement receuë.
229
Or ceste communication ne se fait que par le moyen de la foy: & n‟y
conuient imaginer rien de charnel, ne preparer les dent pour le mãger, comme
sainct Augustion nous enseigne disant, Pourquoy apprestes tu les dents & le
ventre? croy & tu l‟as mangé. Le signe donc ne nous donne pas la verité, ne la
chose signifiee: mais nostre Seigneur Iesus Christ par sa puissance, vertu, &
bonté, nourrit & entretient nos ames, & les fait participantes de sa chair & de
son sang, & de tous ses benefices. Venons à l‟interpretation des paroles de
Iesus Christ: Ceci est mon corps. Tertullien au liure quatrieme cõntre Marcion,
explique ces paroles ainsi, Ceci est le signe & la figure de corps. Sainct
Augustin dit, Le Seigneur n‟a point fait doute de dire, Ceci est mon corps,
quand il ne donnoit que le signe de son corps. Partant (comme il est comandé
au premier canon du Concile de Nice) en ce saint Sacremẽt nous ne deuõs
imaginer rien de charnel, & ne nous amuser ni au pain ni au vin qui no
9
sont en
iceluy proposez pour signes, mais esleuer nos esprits au ciel pour contempler
par foy le Fils de Dieu” (1561 - 1565: C.iiii.4 C.iiii.5 C.iiii.6).
Quanto à mistura da água ao vinho, a confissão de fé coloca que:
cremos que se fosse necessário colocar água no vinho, os
evangelistas, mesmo São Paulo, não teriam omitido uma coisa de tamanha
relevância. E quanto a isso que os doutores antigos observaram
(fundamentando-se no sangue misturado com a água que saiu das costas de
Jesus Cristo), visto que tal observação não tem qualquer fundamento na
palavra de Deus, mesmo depois da instituição da santa Comunhão, sucede
que: nós não podemos hoje necessariamente admitir
nous croyons que s‟il eust esté necessaire de mettre de l‟eau au vin, les
Euãgelistes, ne mesme sainct Paul, n‟eussent omis vne chose de si grande
consequence. Et quant à ce que les Docteurs anciens l‟ont obserué (se fondans
sur le sang meslé auec l‟eau qui sortir du costé de Iesus Christ) d‟autant que
telle obseruation n‟a aucun fondement en la parole de Dieu, veu mesmes
230
qu‟apres l‟institution de la saincte Cene cela aduint: nous ne la pouuons
admettre auiourd‟huy necessairement” (1561 - 1565: C.iiii.6. - C.iiii.7).
Ao que tudo indica, além das atitudes de Villegagnon na França Antártica em relação aos
calvinistas, houve um outro fator que levou senão ao aquecimento, ao menos à continuação do
debate com os calvinistas. Tratou-se do escrito protestante de Augustin Marlorat intitulado La
remonstrance à la Royne mere dv roy, par ceux qui sont persecutés pour la parole de DIEV. En
laquelle ils rendent raison de principaux articles de la Religion, & qui sont auiordhuy en dispute
(1561)
63
. O texto é composto de duas partes. Na primeira, não qualquer refencia direta à
França Antártica ou a Villegagnon e, diferente dos outros panfletos protestantes, trata-se de uma
delicada lamentação. Busca, como diriam os franceses doucement”, convercer a rainha e a
aceitar a nova religião, diante da resolução tomada na assembleia de Fontainebleau, de seguir as
determinações do Concílio de Trento (1561: 2-4). Já a segunda parte, que começa com a seguinte
colocação: nós somos acusados diante do rei e diante de vós, madame, de sermos inimigos
de Deus/ nous sommes accuses deuante le Roy & deuant vous, MADAME, d‟estre ennemis de
Dieu(1561: 57), trata das seguintes questões teológicas: a missa, a comunhão, o purgatório e os
santos (1561: 37 -.248).
Segundo Villegagnon, o livro de Marlorat chegou às suas mãos enquanto aguardava o
salvo-conduto de Calvino. Assim, ele pediu, na carta de 10 de maio de 1561, uma permissão para
respondê-lo, publicada na Lettres du chevallier de Villegaignon, sur les remonstrances, a la
royne mere du roy sa souveraine Dame.
Um panflestita anônimo por sua vez, publicou: La Response aux lettres de Nicolas Durant
(1561b), que começa com o seguinte provérbio: o louco que se remete à sua loucura é como o
63
Remonstrances são discursos dirigidos aos reis pelos antigos parlamentos, expondo os inconvenientes de um édito,
ordenação etc.
231
cachorro que retorna ao seu vômito / le fol qui se remet à sa follie, est comme le chien
retournant à son vomissement e conm uma “Ode” que faz uma breve descrição da viagem
de Villegagnon ao Brasil e das crueldades por ele exercidas / vne briefue description du
voyage de Villegaignon au Bresil, & des cruautez qu‟il y a exercees. Neste panfleto,
Villegagnon é chamado de “Cyclope” e de “Polypheme”, alguém que recebeu muita ajuda para
viajar
ao país temperado e sábio; que só foi cultivado; por um povo
selvagem; repentinamente iniciou a guerra; nesta nova terra, contra os
novos homens; com uso de facas, que são fortemente resistentes; para suas
espadas de madeira, contra as brilhantes vestimentas; que esse cavaleiro
usava
Au tempere pay sage; Qui ne fut onc cultiué; Que par vn peuple
sauuages; Tout soudain dresse la guerre; En ceste nouuelle terre, Cõtre des
hommes nouueaux; A l‟usage des cousteaux, Qui sont resistence forcé; Par leur
espées de bois; Contre les luisant harnois; Que ce cheualier apporte(1561b:
6).
O autor da Ode” afirma que Villlegagnon requereu ministros à Genebra e que quando os
viu, os abraçou e tratou-os muito bem, com muita alegria. Contudo, como se tratava de uma
pessoa versátil, que mudava de opinião e sentimento, junto com Bolés, mudou de atitude em
relação aos calvinistas.
O panfletista começa o texto assim:
apesar de os escritos que você começou a publicar algum tempo
não merecerem que alguém os honre com alguma resposta (...) não
obstante tendo visto as cartas endereçadas à rainha mãe, achei que era
necessário responder alguma coisa, tanto para descortinar os traços de
232
heresia e de sedição manifesta que são semeados em todos os lugares, a fim
de que as pessoas se previnam, como para que todos entendam, e mesmo as
nações estrangeiras, onde as cartas podem chegar, o grande mal que você
fez à rainha, endereçando a ela algo não apenas estúpido e impertinente,
mas igualmente muito perigoso e cheio de sedição
combien que les escrits que tu as mencé de publier depuis quelque
tẽps, ne meritẽt pas qu‟on les honore de quelque respõse (...) neãtmoins, ayãs
veu les lettres que tu as mises en auãt depuis quelques iours, & addressees à la
Reyne mere du Roy: i‟ay estimé qu‟il estoit necessaire y faire quelque response,
tant pour descouurir les traicts d‟heresie, & de manifeste seditiõ qui y sont
semez par tout, afin que on s‟en donne garde: que pour faire entẽdre à tous, &
mesmes aux nations estranges, ausquelles les lettres pourroient paruenir, le
grand tort que tu fais à la Reyne, luy addressant chose, non seulement sotte &
impertinente: mais aussi tresdangereuse & pleine de sedition” (1561b: 16).
Como em outros panfletos, as duas ocupações” de Villegagnon foram colocadas em
contraste de forma irônica, quando se refere à: audácia de um velho pirata e a imprudência
de um novo e ignorante teólogo/ & l‟audace d‟vn vieil Pyrate, & l‟impudence d‟vn nouueau
& ignorãt Theologien(1561b: 17). Comentário que foi repetido pelo panfletista, mais à frente,
quando escreveu que os Sorbonistas, sabendo que você passou a maior parte da sua vida a
fazer viagens a locais distantes (...) e que se hoje você as mistura à teologia, é como saldar
uma nova terra na qual você jamais colocou o pé/ scauent que tu as employé la plus part de
ta vie, a faite des voyages loingtains (...) & que si tu te mesles maintenant de la Theologie, cest
comme saluant vne nouuelle terre, en laquelle tu nauois iamais mis le pied(1561b: 28).
O panfletista tocou na questão da transubstanciação, quando, por exemplo, escreveu:
233
eu te pergunto: onde você viu nas santas escrituras que o corpo de
Jesus Cristo esteve sob uma pequena espécie de pão? (...) Quanto a mim,
acho que o pão que é ofertado na Comunhão é chamado pão e que o vinho
é chamado fruto da vinha (...), considero que a intenção de Jesus Cristo
nesse sacramento é de nos significar que ele nutre nossas almas, assim
como o pão nutre nosso corpo. É preciso então que haja correspondência
entre o signo e a coisa significada (...) Mas como pode ser (você diria) que
uma mesma coisa seja chamada de pão e corpo de Jesus Cristo ao mesmo
tempo? Eu te respondo que ela é chamada pão em relação a sua substância
e que é chamada corpo de Jesus Cristo por causa do seu uso e efeito, nos
sendo dado por instrumento, a fim de que possamos verdadeiramente
receber o corpo de Jesus Cristo
ie te demande, ou tu as veu en l‟escriture sainte, que le corps de Iesus
Christ soit soubs vn petite piece de pain? (...) Quant a moy, ie trouue que le
pain qui est donné en la Cene, est appellé pain, que le vin est appellé fruict de
vigne (...) ie cõsidere l‟intention de Iesus Christ, en ce sacrement, qui est de
nous signifier qu‟il nourrit noz Ames tout ainsi que le pain nourrit noz corps. Il
faut donc qu‟il y ait correspondace entre le signe & la chose signifiée (...) Mais
comment se pourra-il faire (diras tu) qu‟vne mesme chose soit appellée pain, &
corps de Iesus Christ, tout ensemble ? Ie respõ, qu‟elle est appellé pain au
regard de sa substance, & est appellée corps de Iesus Christ, a cause de son
vsage & effect, nous estant donnée pour instrument, afin que nous puissions
vrayement recepuoir le corps de Iesus Christ” (1561b: 35-36).
E depois: sabe-se que a Transubstanciação foi inventada quatrocentos ou
cinquentos anos após Clóvis, de modo que se te forçarem a provar todos os fatos que você
alega, você semaravilhosamente impedido/ on scait que la Transubstantiation n‟a pas
234
este inuentée de quatre ou cinq cens ans apres le dict Clouis, de façon que que
64
si on te
contraignoit de prouuer tous les faicts que tu allegues, tu serois merueilleusement empesché
(1561b: 47). Esse panfletista também respondeu às questões poticas que abriram as
Remontrances de Marlorat e, desta forma, defendeu o caráter não sedicioso do protestantismo.
Depois da carta à rainha mãe, Villegagnon publicou a Responce par le chevalier de
Villegaignon aux remonstrances faictes à la Reyne mere du Roy. Essa Response, tem mais de
duzentas páginas, sendo que muito dos argumentos que já havia escrito foram retomados.
O livro começa assim: madame, visto que aquele que vos faz as admoestações não
ousa se nomear, nem comparacer em vosso Conselho para ouvir aquilo que parece que
alguém pode opor-se, eu me coloquei (até onde me foi possível) a examiná-las/ madame,
puis que celluy qui vous faict les remonstrances ne selt ause nommer, ny comparoistre en votre
Conseil pour ouïr ce qu‟il semble que lon y peut opposer, Ie me suis mis (tant qu‟il m‟a esté
possible) à les examiner (1561: 3). Segundo ele, a verdade está do meu lado” (...) é preciso
que a modéstia dos cristãos sectários se manifeste a todo o mundo/ la verité est de mon
costé, (...) il fault que la modestie des Chrestiẽs sectateurs d‟icelle, soi manifeste à tout le monde
(1561: 4) e o único remédio para a ressurreição do corpo à glória é pela manducação da
divina carne/ le seul remede de la resurrectiõ du corps à gloire, est par la mãducation de la
diuine chair(1561: 13). Villegagnon repete o argumento quanto trata da Eucaristia: a fim de
que nosso corpo ressuscite em glória, cremos que ele precisa comer a ressurreição na
esperança da vida eterna, não a alma/ affin que nostre corps resuscite à la gloire, nous
croyons qu‟il a besoing de mãger la resurrection en esperance de la vie eternelle, non l‟ame
seule” (1561: 35).
64
O original está escrito desta forma, repetindo o que duas vezes. Entretanto na tradução inferi que ele poderia
estar colocado no lugar errado.
235
Segundo Villegagnon, a Igreja
crê que o pão é convertido no corpo que foi sacrificado e é
oferecido presentemente por Jesus Cristo, de modo que ele próprio é o
sacrificador. Do padre é dito que ele oferece para os vivos e os mortos em
nosso Senhor, presentes e ausentes, e que pelas suas preces e pronunciação
de palavras operantes e efetivas do corpo sacrificado é feita a
transubstanciação
croit que le pain est conuerty au corps qui a esté sacrifié, & est offert
presentement par Iesus Christ: tellement que c‟est luymesmes qui en est le
sacrificateur & le prestre est dict offrir pour les viuans & mortz en nostre
Seigneur, presens & absens, & que par ses prieres, & prononciation des
parolles operatrices & effectiues du corps sacrifié, est faict la
transubstantiation” (1561: 37-38).
Villegagnon cita São João para corroborar o argumento: se você não comer minha
carne e não beber o seu sangue, não haverá vida em vós (...) Aquele que come minha carne e
que bebe meu sangue permanece em mim e eu nele/ si vou ne mangez ma chair & beuuez
mõ sang vous n‟aurez point de vie en vous (...) Qui mange ma chair & boit mon sang demeure en
moy, & moy en luy(1561: 41-42). E depois escreve: assim como toda a Eucaristia é o corpo
do nosso Senhor, toda a Igreja é o corpo de nosso Senhor / tout ainsi que l‟Eucharistie
entiere n‟est que le corps de nostre Seigneur, ainsi l‟Elise entiere n‟est que le corps de nostre
Seigneur(1561: 51). Em outra passagem desse livro, Villeganon diz: ora, da minha parte,
fico contente que vós creiais naquilo que queiram. Mas eu preferiria ser turco ou selvagem
a crer como vós/ or quant à ma part ie suis content que vous croyez ce que vous vouldrez.
Mais i‟ay amerois autant estre Turc ou Sauluage, que croyre comme vous” (1561: 153).
236
Após essa Reponse de Villegagnon, apareceram quatro novos panflestos protestantes.
L‟estrille, de Nicolas Dvrant, dict le Cheuallier de Villegaignon (1561c) foi escrito, por causa
de algum escrito, de um fulano, mestre Nicolas Durand, que se denomina cavaleiro
Villegagnon, publicado contra uma certa admoestação feita à rainha mãe / à cause de
quelque escrit faict par vn quidam maistre Nicolas Durant, qui se nomme Cheuallier
Villegaignon, lequel il a composé & fait publier contre vne certaine Remonstrace faicte à la
Roine mere”. Apesar de o autor afirmar: “minha intenção não é (como os leitores poderão ver)
disputar a respeito do conteúdo do livro, contra o qual Villegagnon combateu/ mon
intẽtion n‟est pas (cõme les lecteurs le pourrõt veoir) de disputer du contenu du liure, auquel
Villegainõ fait la guerre, ele remete-se à questão da transubstanciação quando expõe a opinião
de Villegagnon a respeito, por exemplo, que não se pode comunicar com o corpo de Jesus
Cristo a não ser mordendo-o com força, nem com seu sangue, se ele não passar pela
garganta/ qu‟õ ne peut cõmuniquer au corps de Iesus Christ, sinon en le mengeant à belles
dẽts: ni son sang, qu‟il ne passe par le gosier”, assim como, quando diz: o que Villegagnon
propõe? Que o pão consagrado na Comunhão não é mais pão, mas a carne de Jesus Cristo,
que se engole na barriga/ qu‟est ce que Villegaignõ propose? C‟est que le pain consacré en
la Cene n‟est plus pain, mais le chair de Iesus Christ, qu‟on aualle en son ventre.
O panfletista questiona:
um ponto notável que não deve ser omitido, como Villegagnon
colocou no início do seu prefácio: ele suplicou à rainha mãe para trazer
Calvino e todos os que aderiram a ele, se oferecendo a disputar contra eles
e caso eles fossem punidos à extremidade. Mas veja se ele é este grande
zelador, por que não vai à Genebra, onde teria liberdade para falar?
237
Il y a vn poinct notable, qui ne doit pas estre omis, comme
Villegaignon l‟a mis le premier en sa preface: c‟est qu‟il a supplié la Roine
mere de faire venir Caluin & tous ses adherẽs, s‟offrant de disputer contre eux:
& en cas qu‟ils fust puni à l‟extremité. Voire-mais, s‟il est si grand zelateur,
que ne va-il à Geneue, ou il auroit liberté de parler?
O panfletista também escreveu que para decifrar sua vida, seria necessário fazer um
longo registro, o que prefiro deixar para os outros/ pour deschiffrer sa vie, il faudroit faie
vn lõg registre: & i‟aime mieux laisser cela à d‟autres”, o que, de fato, será feito ou tentado por
outros panfletistas. Inspirado em Richer, inúmeros foram os adjetivos utilizados para denegrir
Villegagnon. Ele foi chamado de: babuíno que se faz de advogado do papado/ babouins, q
se meslent d‟estre aduocat de la Papauté”, de alguém que tem uma natureza rbara e
ciclópica, (como ele é chamado)/ qu‟il est d‟vne nature barbare & Cyclopique, (comme on
appelle), de um grande touro que levanta os chifres contra o céu, sem lei, nem religião/
vn gros taureau, q hurte des cornes cõtre le ciel, n‟ayãt ne loy ne religiõ”e de mendigo/
belistre” (1561c: a.iiij - aiiij.9.).
La svffisance de maistre Colas Durand, dict Cheualier de Villegaignon, pour sa retenue
en l‟estat du Roy (1561d), endereçado igualmente à rainha mãe, refere-se “à resposta que ele vos
endereçou contra a admoestação feita a vós pelo advogado (que ele chama) dos mendigos/
la Respõse qu‟il vous a adressee cõtre la Remonstrãce à vous faicte par l‟aduocat (qu‟il
appelle) des belistres”, onde Villegagnon, santamente tratou da maducação corporal da
carne divina/ sainctemẽt traité la mãducation corporelle de la chair diuine. Trata-se de um
panfleto no qual os autores asseveram: Madame, nós vos certificamos do nosso dever, que
tudo que está abaixo é verdadeiro e que esse é nosso julgamento e opinião / Madame, nous
vous certifions & rapportons sur le deuoir de noz estats tout ce que dessus estre veritable & tel
238
estre nostre iugement & aduis, e que tem como objetivo que todos peritos que conhecem, por
experiência ou de outra forma a diversidade dos humores loucos, insensatos, furiosos e
maníacos, e outras loucuras, se manifestem aqui / commander que par ceux qui sont experts
& cognoissans par experience ou autrement la diuersité des humeurs des folz, insensez, furieux,
maniaques, & autres fols qui de-present se manifestent”.
Portanto, eles continuam: Madame, em virtude de vossa comissão, nós ouvimos e
examinamos o mestre Colas Durand, que se diz cavaleiro de Villegagnon, e inquirimos a
quantidade da sua loucura, tanto no passado, como no presente / Madame, en vertu de
vostre dicte cõmission nous auons proceà l‟audition & examen de maistre Colas Durand, soy
disant Cheualier de Villegaignon, & à l‟inquisition de la suffisance de sa folie, tant du passé que
su present. Assim, começo pela pessoa do mestre Colas Durand, licenciado em Direito, esse
grande louco, eu digo, que se diz cavaleiro de Villegagnon/ commencent en la personne de
maistre Colas Durand licencier en Droict, ce grand fol di ie, qui se dit Cheuallier de
Villegaignõ. E continua:
Eu me lembro (...) muito tempo, quando eu estava morando em
Provins, um grande maltrapilho, muito parecido com o nosso homem, com
expressão de descontentamento, triste e raivoso, passou e repassou por três
vezes, acompanhado de umas crianças daquela cidade
Il me souuient (...), de fort long temps, qu‟estant logé à Prouins, vn
grand clacquedent de Durand, fort resemblant à nostre homme, renfrongné,
chagrin & despit, passa & repassa par trois fois bien accompagné d‟enfans de
ladicte ville”.
Após narrar algumas sandices da família, como cantar e dançar em plena rua, o panfletista
conta que o pai tinha uma condenação e que o filho (Villegagnon) disse que um tio que havia
239
sido condenado em processo, literalmente comeu os papéis. O panfleto termina assim: não
tema, Madame, perder loucos ingênuos, pois essa raça dos Durand perdurará. Nós vos
pedimos conservar cuidadosamente e guardá-los para o prazer da República / ne
craignez, Madame, auoir faute de fols nayfs, tant que ceste race des Durands durera, que nous
vous prions biẽ & songneusement cõseruer & faire garder pour le plaisir de la republique
(1561d: A.ij. - C.j).
De acordo com Lestringant, Espovssete des armories de Villegaignon, pour bien faire
luire la fleur de lis que l‟Estrille n‟a point touchee (1561e), foi publicada em anexo a La
suffisance e, assim como, L‟estrille, foi impresso clandestinamente (Lestringant 1578 - 1994:
183n.).
O panflestista da L‟estrille remete-se a Espovssete quando diz: ali ele foi decifrado
como sua raça que há muito tempo era enobrecida de loucos, como seu pai, seu tio chamado
Fresnoy, cônego de Noyon, que era totalmente maníaco/ il fut deschiffré comme sa race
a esté de lõg temps annoblie de fols: tesmoing son pere: son oncle nommé du Fresnoy, chanoyne
de Noyon, lequel n‟estoit que maniaque. Esse panfleto acusa Villegagnon de ser estigmatizado,
quando afirma: pediu-se a ele que mostrasse seu ombro, para saber por que motivo ele
carregava uma flor-de-lis. Ora, porque ela estava um pouco apagada por causa do tempo,
ele a manteve bem lavada, mergulhando no mar/ on luy demanda qu‟il mõstre son espaule,
pour sçauoir à quel titre il porte la fleur de lis. Or pource qu‟elle estoit vn peu flestrie par longue
espace de tẽp, il se cuida bien lauer, se plongeant en la mer (1561e: C.ij.-Cij2). Segundo
Lestringant, essa insinuação que teve início quando Richer escreveu que Villegagnon foi
castigado com uma flor-de-lis impressa no seu ombro com um ferro quente/ ayãt eu le
240
fouet, & la fleur de lis auec vn fer chauld imprimee en son Espaule” (1561: 13) - écalomnieuse
(1578 - 1994: 184n.).
De acordo com Lestringant, l‟auteur anonyme du Leurre de Villegagnon, (...) s‟inspire
vraisemblablement de Richer (1980 - 1996: 105)
65
. Esse planfleto, que logo no início se
posiciona contra a Resposta que foi feita às cartas que você endereçou imprudentemente a
rainha/ contre la Response qu‟on auoit faire aux lettres, par toy impudemment adressees à la
Reine, faz apenas uma breve alusão à transubstanciação quando faz a seguinte acusação: você
importuna nos seus belos discursos, dizendo que te acusam de ter divulgado que Jesus
Cristo desce do céu para vir se introduzir no pão da missa / tu poursuis en tes beaux
discours, disant qu‟on te charge d‟auoir mis en auant, qu Iesus-christ descend du ciel pour se
venir fourrer au pain en la Messe. A maior parte do panfleto é feita de acusações à pessoa de
Villegagnon, como por exemplo, que te caluniam quase todos os domingos, pregando o seu
suposto nome em todas as encruzilhadas de Paris/ te descrient presque tous les dimenches,
attachant ton nom supposé, à tous les carrefours de Paris, que Villegagnon exalava um cheiro
ruim / mauuaise odeur”, que ele tinha tinha uma estatura gigantesca / Cyclopique
stature”, que sendo um velho pirata, sabia melhor manusear um remo do que um livro, que
conhecia mais o nome de várias espumas do mar do que de bons autores que escreveram
sobre teologia/ vieil Pyrate que tu es, qui sçaurois mieux manier vn auiron, qu‟vn liure, & qui
sçais trop mieux le nom de plusieurs escumeurs de mer, que des bons aucteurs qui ont escrit en
Theologie, finalmente, compara-o a um velho cavalo que serve para arrastar a carroça
nas ruas/ vn vieux cheual qui ne sert plus de rien qu‟à trainer le tombereau par les rues, e
65
Le levrre de Nicolas Dvrant, dit Villegaignon (1561 - 1562?).
241
afirma que ele perturbou e confundiu a região antártica / as min en trouble & cõfusion la
region Antartique” (1561 - 1562? s/p).
Após esse panfletos, Villegagnin publicou: Response avx libelles d‟inivres, pvbliez contre
le cheualier de Villegagnon, au lecteur chrestien (1561). Ali, ele reclamou que os panfletos
publicados escondem o nome do autor/ tiennent caché le nom de l‟auther(In Thevet 1588
- 2006: 268), refere-se assim ao homem sem nome/ homme sans nom (In Thevet 1588 -
2006: 269) e chama os panfletsitas de pessoas sem religião, filhos do diabo / gens sans
religion, enfans du diable (In Thevet 1588 - 2006: 269).
Na verdade, Villegagnon dirigiu-se mais especificamente ao autor anônimo de La
Response aux lettres de Nicolas Durant. Neste sentido, ele afirmou que pediu o salvo-conduto
para Calvino em um lugar não suspeito / en lieu non suspect” para poder esclarecer tudo o
que eu tinha escrito contra ele e os seus, e tomar conhecimento (a custa da minha vida) de
tudo que queriam imputar a mim, seja sobre a execução que eu ordenei no Brasil dos três
monges renegados, como de outras coisas/ esclarcir tout ce que j‟avois escrit contre luy, et
les siens, et rendre conte peine de ma vie) de tout ce que lon me voudroit imputer, soit en
l‟execution que j‟ay fait faire au Bresil de trois moines reniés, qu‟autres choses” (In Thevet 1588
- 2006: 268).
Disse também: ele mostra estar impressionado que eu tenha entendido o segredo do
estilicídio da comunhão do corpo de Jesus Cristo pelo santo Espírito como canal. Eu não
entendi, não quero entender, por tratar-se de uma ficção/ il monstre estre esbahy que je
n‟ay entendu le secret du decoulement de la communion du corps de Jesus Christ, par le st Esprit
comme canal. Je ne l‟ay entendu, ne veux entendre, parce que c‟est une fiction” (In Thevet 1588
- 2006: 270).
242
Villegagnon demonstra preocupação política quando escreve que:
se o rei vier a abandonar aquilo que ele recebeu da Igreja romana
para se ater a Calvino, ele condenará a outra (...) visto que o Estado do
reino foi estabelecido nessa nossa religião. Se vier a condenar e abolir
poderá seguir a destruição do Estado e de seus nervos
si le Roy venoit à delaisser celuy qu‟il a receu de l‟Eglise Romaine,
pour prendre celuy de Calvin, il condamneroit l‟autre (...) puis que l‟Estat du
Royaume a esté élevé en cette nostre religion, se venant à condamner, et aboir,
pourroit ensuive la destruction de l‟Estat, et de ses nerfs(In Thevet 1588 -
2006: 270-271).
Este panfleto, no qual Villegagnon nega ter pedido a Calvino que enviasse religiosos à
França Antártica (introdução), termina assim: esta é a última resposta que eu dou a essa gente
sem nome, para não vir a combater sombras vãs / c‟est la derniere response que je veux
faire à gens sans nom, pour n‟estre veu combattre des vaines ombres (In Thevet 1588 - 2006:
271).
O mesmo autor anônimo que escreveu a Response aux lettres de Villegagnon, respondeu
essa última resposta de Villegagnon, no panfleto intitulado L‟amende honorable de Nicolas
Durand, surnommé le Cheualier de Villegaignon (1561f). O panfletista começa afirmando que “o
principal ponto que eu almejava era combater a heresia contra a autoridade dos reis e
príncipes que você começou a divulgar, para tristeza de muitas pessoas de bem. O perigo
eminente foi o único motivo que me faz escrever contra você / le principal poinct auquel ie
pretendois, qui estoit de couper chemin à l‟heresie contre l‟authorité des Rois & Princes,
laquelle tu commençois à faire courir au regret de beaucoup de gens de bien. Qui a esté la seule
cause de me faire escrire contre toy pour le dange eminent”.
243
Em seguida, ele responde à acusação de anonimato:
você me chama de „qualquer um‟ e de homem sem nome,
fundamentado que eu não me nomeio nos meus escritos, e faz como se não
tivesse lido nada sobre aquilo que eu escrevi, tanto para defender o autor
da admoestação como a mim, alegando muitos livros antigos que, todavia,
não possuem o nome dos seus autores. Mas eu fiquei muito impressionado
com a sua imprudência em me acusar disso que você é manifestadamente
culpado, e no que você coloca a maior parte da sua glória, nomeando-se
cavaleiro de Villegagnon, no lugar do seu verdadeiro nome Nicolas
Durand, que você suprime, e suprimiu até hoje, talvez por algumas boas
causas que você conhece.
Assim, eu prefiro muito mais não me nomear de jeito algum e não
me mostrar de forma alguma ao povo do que, fazer como você, colocar a
cabeça na janela, com a marca de outro nome que não é o meu
tu m‟appelles Ie ne scay qui, & homme sans nom, fondant cela sur ce
que je ne me nomme point en mes escripts: & fais semblant de n‟auoir rien leu
de ce que i‟ay escript tant pour la defense de l‟autheur de la Remõstranem que
la miẽne, allegant beaucoup d‟excellens liures anciens, qui toutesfois ne
portent pas le de leur autheur. Mais je m‟esbahy grandement de ton
impudence, de m‟accuser de ce dont tu es manifestement coulpable, & en quoy
tu mets la pluspart de ta gloire, te nommant le Cheualier de Villegaignon, au
lieu de ton vray nom de Nicolas Durand, lequel tu supprimes & as supprimé
iusques à presẽt, peust-estre pour quelques bonnes causes qui te sont cogneües.
Tant y a que i‟aime beaucoup mieux ne me nommer point du tout, & ne me
monstrer aucunement au peuple: que, faisant comme toy, mettre la teste à la
fenestre, estãt masqué d‟vn autre nom que n‟est le mien”.
No final do panfleto há o seguinte texto, que o autor gostaria que Villegagnon assinasse:
244
Eis, Durand, como eu estimo que os leitores te perdoem disso que é
preciso que eu faça por você, e que você mesmo deverá fazer. Receba,
então, o favor que te faço e não recuse utilizar esse pedido de perdão que se
segue, que preparei para o seu benefício, segundo o mérito da sua culpa, a
qualidade daqueles que são ofendidos e o respeito à pessoa:
Eu, Nicolas Durand, apelidado cavaleiro de Villegagnoon (...)
teólogo indigno e ignorante, confesso e reconheço, perante Deus e aos
homens, ter maldosamente acreditado e indiscretamente publicado nas
minhas cartas à rainha mãe uma opinião errônea, sediciosa e escandalosa
contra a autoridade dos reis, a saber, que não é necessário obedecer aos
reis que renunciaram à Igreja romana, pois eles eram infiéis e filhos do
diabo e, portanto, que é preciso se dispensar da sua dominação e das leis
que conservam essa dominação.
Abjuro essa falsa opinião, como contrária à palavra de Deus, aos
deveres para com o rei e à tranquilidade pública. Em primeiro lugar,
suplico-te Deus, perdoar a ofensa que cometi contra sua verdade, como
está testemunhada na sua Escritura. Depois, peço perdão à majestade do
rei, a quem eu notadamente ofendi, juntamente à rainha, sua mãe, a quem
eu ousei endereçar minhas cartas estúpidas e perniciosas, não tendo
observado o mérito da sua grandeza, nem a indignidade das minhas
reflexões. Peço também a todas as cortes soberanas, particularmente a de
Paris, e sucessivamente a todos os outros Magistrados desse reino,
condenar minha heresia e, no lugar do direito à publicação, que queimem
minhas Cartas a fim de que a posteridade não seja infectada.
Finalmente, suplico a todos aqueles e aquelas que receberam ou
poderão receber minhas cartas, que não as considerem. Assim se encerra
na muito humilde e fiel obediência e sujeição que elas devem ao Rei.
Prometo me comportar de tal forma daqui em diante que sua majestade
ficará satisfeita, comigo, com meu dever e com a minha heresia
perpetuamente sepultada
245
Voyla, Durand, comme i‟estime que les lecteurs t‟excuseront, de ce
qu‟il me fault faire pour toy, de ce que tu deurois faire toymesme. Reçoy donc
le plaisit que ie te fay, & ne refuse point d‟vser de ceste amende honorable qui
s‟ensuit, laquelle i‟ay dressee en ta faueur, selon le merite de ta faulte, la
qualité de ceux qui sont offenses, & le respect de la personne.
Ie NICOLAS DVRAND, surnommé le cheaualior de Villegaignon, (...)
indigne & ignorant Theologien, Confesse & recognous deuant Dieu & les
hõmes auoir meschamment creu, & indiscretement publié par mes Lettres
addressees à la Roine mere du Roy une opinion erronee, seditieuse &
scandaleuse côtre l‟authorité des Rois, ascauoir, qu‟il ne falloit obeir aux Rois
qui se despartiroyent de eglise Romaine: parce qu‟ils seroyent infideles &
enfans du diable: & partant qu‟il se falloit exempter de leur domination, & loix
conseruatrices d‟icelle. Laquelle fausse opinion i‟abiure, comme contraire à la
parolle de Dieu, au seruice du Roy, & à la tranquillité publique. Et
primierement te supplie Dieu me remettre l‟offense que i‟ay commise contre sa
verité qui nous est testifiee en son Escripture: Puis ie demande pardon à la
Maiesté du Roy, laquelle notadamment i‟ay offensee: Ensemble à la Royne sa
mere, à qui i‟ay bien osé addresser mes sottes & pernicieuses Lettres, ne
regardant au merite de sa grãdeur, ny à l‟indignité de mes resueries:
Requerant aussi toutes les Cours souueraines, singulierement celle de Paris, &
consecutiuement tous autres Magistrats de ce Royaume, condemmer madicte
heresie, & au lieu du priuilege donné, faire brusler publiquement mesdictes
Lettres narratiues d‟icelle, à fin qu‟aucun cy apres n‟en soit infecté. Et
finalement ie supplie tous ceux & celles auquels mesdictes Lettres seroyent
paruenues, ou pourroyent paruenir, n‟y auoir aucun esgard: ains se contenir en
la treshumble & tresfidele obeissance & subiection qu‟ils doiuent au Roy: A
laquelle te promets me renger tellement par cy apres, que sa Maiesté
demeurera satisfaicte, moy en mon deuoir, & heresie perpetuellement
enseuelie” (1561f: - A.ij.0.- B.iiij.1).
246
A discussão que começou na França Antártica sobre a controvérsia sobre a Eucaristia
perdeu força quando o debate foi retomado na França, na medida em que não houve um
aprofundamento das questões teológicas, mas a centralização em ataques pessoais. Quase vinte
anos depois, quando Léry publicou a Histoire, o problema da França Antártica reapareceu de
outra forma. Villegagnon estava morto e, embora ele continuasse a ser alvo de inúmeras
críticas, um novo personagem recebeu o foco das atenções, tratava-se de Thevet que, três anos
antes, tinha publicado a Cosmographie universelle, onde dedicou o capítulo XXI, do livro quarto,
ao Brasil, baseado na sua experiência na Guanabara e no livro sobre ela que tinha escrito
anteriormente: Les singularités. Ao responder a Thevet, Léry introduz um critério que até então
o tinha sido abordado nos debates: a verdade. Quando os panfletistas, por exemplo, acusavam
Villegagnon de usar um nome falso, ele não era desmerecido por mentir, mas por não ser um
nobre. O que estava agora em questão era a verdade dos fatos. Não se tratava mais de discutir o
monopólio da verdade divina, mas sim a verdade humana. Por isso, antes de observar o debate
entre Thevet e Léry, é preciso ter em mente a seguinte colocação de Lestringant:
a vrai dire, Thevet et Léry mentent également, si l‟on s‟en tient à cet
étage assez vil de la critique d‟humeur. La différence est que Thevet s‟empêtre
dans ses propes affabulations, incapable par exemple de donner une
chronologie cohérent pour son autobiographie fictive d‟éternel voyageur. Léry
au contraire domine avec une remarquable maîtrise un passé réécrit de fond en
comble en fonction d‟une loguique intrisèque et contraignante (1990 - 2004:
127).
247
O debate continua: André Thevet X Jean de ry
Junto com Villegagnon, veio para a América como capelão o franciscano André Thevet.
Ele tinha feito anteriormente uma viagem à África e à Ásia, entre 1549 e 1552, que resultou na
publicação do seu primeiro livro Cosmographie de Levant (1554)
66
.
Em 1557, Thevet publicou Les singularités de la France Antarctique. O livro apresenta
dois problemas interessantes: o primeiro é que ele o foi redigido por Thevet. De fato, o estilo
literário desse livro contrasta com as outras obras de sua autoria, que se caracterizam por um
acumulado de dados etnográficos e parcos comentários. Ao contrário, a narrativa das Singularités
é fluida, romanceada e repleta de referências aos clássicos da Antiguidade. O livro foi escrito por
um médico helenista chamado Mathurin Héret, que organizou o material de Thevet a pedido da
editora e que no dia 14 de dezembro de 1557, conseguiu do Parlamento de Paris uma grande
indenização, mas não o direito e colocar o nome no livro (Lestringant 1557 - 1997: 21-28)
67
. É
inegável, porém, que Thevet teve em mãos o conjunto mais rico de dados etnográficos da época
sobre a América (Métraux 1928: XXXIII), a maior parte deles, provavelmente adquirido dos
truchements
68
.
O segundo problema das Singularités, é que Thevet não explicita claramente a data da sua
partida da França Antártica. Em uma passagem vaga ele escreveu:
depois de ter permanecido algum tempo nesse país, o tanto que me
propus e que foi suficiente para o contentamento do espírito a respeito dos
66
Esse livro foi dedicado a François de La Rochefoucauld, que mais tarde se tornou protestante (Lestringant 1554 -
1985: XIII).
67
Segundo Lestringant, Cosmographie de Levant, também não foi escrito por Thevet (1588 - 2006: 18) e a
Cosmographie Universelle contou com um escriba (1588 - 2006: 15-16).
68
De acordo com Lestringant, si Thevet ne Voyage plus, sa charge officielle lui permet de recueillir les relations
des voyageurs au long cours, ainsi que les mémoires et documents touchant les horizons lointains (1588 - 2006 :
19).
248
lugares e das coisas que existiam, passei a esperar o momento e os meios
oportunos para retornar, pois tínhamos decidido não nos prolongar
après donc avoir séjourné quelque espace de temps en ce pays, autant
que la chose pour lors le requérait et qu‟il était nécessaire pour le
contentement de l‟esprit, tant du lieu que des choses y contenus, il ne fut
question que de regarder l‟opportunité et moyen de notre retour,
puisqu‟autrement n‟avions délibéré y faire plus longue demeure (1557 - 1997:
229-30).
Mais à frente, sem mencionar o ano, ele escreveu: assim, no último dia de janeiro, às
quatro da manhã, embarcamos junto com aqueles que tinham trazido os navios.
Levantamos as velas/ ainsi le dernier jour de janvier à quatre hours du matin, embarqués
avec ceux qui ramenaient les navires par-deçà, fîmes voile (1557 - 1997: 230). As referências
cronológicas seguintes que Thevet forneceu, ainda sem precisar o ano, indicaram que, em razão
dos ventos contrários, logo no primeiro dia de viagem foram direcionados ao Cabo Frio, onde
permaneceram oito dias (1557: 230); além disso, Thevet narrou que passou fome durante quatro
meses no navio (1557 - 1997: 252); que em torno do dia 1º de abril deu prosseguimento à viagem
em direção ao equinócio (1557 - 1997: 256-257); e que na primeira quinzena desse mês chegou
ao cabo do Norte (1557 - 1997: 258). A partir de então, Thevet ne donnera plus une seule
indication chronologique jusqu‟à la dernière ligne de son récit(Lestringant 1991: 92). Thevet
ainda contornou a costa atlântica, das Antilhas passou pelo Haiti, pela Flórida até chegar ao
Canadá. Ele não precisou que dia chegou à França.
Anos depois, Thevet parecia ainda manter certa liberdade em relação a essa cronologia,
quando escreveu: o nosso forte foi tomado seis anos depois da nossa partida/ fut nostre
fort pris six ans aprés nostre departement(1588 - 2006: 272). Quando reproduziu a Response
249
aux libelles de Villegagnon, inseriu uma frase que não constava na versão original de
Villegagnon. Em 1561, Villegagnon escreveu André Thevet pode testemunhar que quando
viemos ao Brasil/ André Theuet peult tesmoigner qu‟a nostre venüe au Bresil” (A iij 2). Já em
1588, Thevet “transcreveu”: AndThevet que me assistiu fielmente durante alguns anos,
pode testemunhar que quando viemos ao Brasil/ André Thevet, qui m‟a quelques années
fidelement assiste, peut tesmoigner qu‟à nostre venuë du Bresil(1561 - In Thevet 1588 - 2006:
270).
Jean de Léry, na Histoire d‟un voyage (1578), escreveu logo no início do prefácio que o
primeiro livro de Thevet é “singularmente cheio de mentiras / “singulièrement farci de
mensonges(1578 - 1992: 22) e que no segundo, La cosmographie universelle, ele não apenas
renovou e aumentou seus primeiros erros, mas o que é pior (...) com digressões falsas,
ferrenhas e injuriosas, nos atribuiu crimes/ il n‟a pas seulement renouveet augmenté ses
premières erreus, mais, qui plus est (...) avec des digressions fausses, piquantes, et injurieuses,
nous a imposé des crimes (1578 - 1992: 22). Assim, continua o calvinista, a fim, direi, de
repelir essas imposturas de Thevet, me senti compelido a iluminar todo o discurso da nossa
viagem/ afin, dis-je, de repousser ces impostures de Thevet, j‟a été comme contraint de mettre
en lumière tout le discours de notre voyage” (1578 - 1992: 22).
A principal queixa de Léry na Histoire d‟un voyage era a respeito da forma como ele e os
calvinistas foram tratados por Villegagnon na França Antártica e, uma das estratégias utilizadas,
foi questionar a credibilidade dos relatos de Thevet, a partir da distinção “estar lá” e ouvir
falar”
69
. Neste sentido, a data da partida de Thevet da França Antártica adquiriu uma grande
importância.
69
Esta questão, que remonta ao debate entre Heródoto e Tucídides, foi recentemente tratada por James Clifford em
“Sobre a autoridade etnográfica”.
250
Ainda no prefácio da Histoire, Léry escreveu sobre o Thevet: eu mostrei que ele
permaneceu ao todo em torno de dez semanas na América, a saber, do dia 10 de novembro
de 1555 até o último dia do s de janeiro seguinte/ j‟aie montré qu‟il ne demeura en tout
qu‟environ dix semaines en l‟Amérique, à savoir depuis le dixième de Novembre 1555 jusques au
dernier de janvier suivant (1578 - 1992: 29). No entanto, na primeira edição do livro, ele tinha
escrito: “Thevet, quando retornou da América em 1557/ Thevet à son retour de l‟Amerique,
en l‟anne 1557” (in Lestringant 1588 - 2006: 263n.). Isso foi retificado na segunda edição quando
então escreveu: Thevet, em 1558, e em torno de dois anos depois de seu retorno à América
/ “Thevet en l‟an 1558 et environ deux ans après son retour de l‟Amérique” (1578 - 1992: 82).
Na Cosmographie, em duas referências feitas aos calvinistas, Thevet descreveu os fatos
que os envolveram, sem precisar se tinha estado presente (1575: 908-909). Ele inclusive escreveu
assim:
se eu tivesse demorado mais tempo naquele país, eu teria
conseguido ganhar as almas desgarradas desse pobre povo (...) e me
espanta ter estimulado Calvino a me tachar, em uma Apologia que ele
mandou imprimir em Genebra, como um dos primeiros que assistiu a
morte e o estrangulamento dos ministros, ordenados por Villegagnon, que
os fez afundar no fundo do mar, visto que havia em torno de três anos que
eu tinha retornado à França, como se pode ver no meu livro das
Singularidades
si j‟eusse demeuré plus temps en ce païs là, j‟eusse tasché à gaigner
les ames esgarees de ce pauvre peuple (...) et m‟esbahis qui a incité ledit
Caluin de me taxer, en une Apologie qu‟il a fait imprimer à Geneve, comme
l‟un des premiers qui assista à la mort & suffoquement desdits ministres, que
feit faire le Seigneur de Villegaignon les faisant precepiter au parfond des
abismes de la mer, veu qu‟il y avoit trois ans ou environ que j‟estois de retour
251
en France: comme il appert dans mon livre des Singularitez (1575: 925 grifo
meu).
É notável que Léry, na Histoire d‟un voyage tenha escrito uma passagem semelhante a
essa de Thevet, quando afirmou: acho que, se Villegagnon não tivesse se separado da religião
reformada e nós tivéssemos permanecido mais tempo naquele país, teríamos trazido e
ganho alguns a Jesus Cristo / j‟ai opinion, si Villegagnon ne se fût révolté de la Religion
réformée, et que nous fussions demeurés plus longtemps en ce pays-là, qu‟on en eût attiré et
gagné quelques-uns à Jesus Christ (1578 - 1992: 160-161).
Segundo Lestringant, na Cosmographie, Thevet procurou responder a Richer, quando este
escreveu que Villegagnon, a fim de persuadir o rei,
e agradá-lo em tudo, assim que chegou nesses lugares rbaros,
mandou de volta And Thevet, da ordem dos franciscanos, companheiro
da sua navegação que ele tinha trazido para esses lugares para ser o
primeiro sacrificador, apesar dele ignorar toda ciência e principalmente as
letras santas. Todavia, não o mandou embora, antes que a história da sua
navegação fosse escrita, para ser publicada e trazida à luz no nome de
franciscano, de modo a haver um testemunho digno de suas mentiras e
que, com suas sutilezas, o renome desse nosso grande Durand fosse
expandido copiosamente a todos
tout ce qu‟il luy plaist, incõtinẽt q fut arriué en ces lieux barbares, il
rẽuoya André Theuet de l‟ordre des Cordeliers, cõpagnon de sa nauigation,
qu‟il auoit mené en ces lieux pour estre le premier sacrificateur, cõbien qu‟il
fust ignorant de toute science, & principalement des lettres saintes: ne le
renuoyant toutefois, que premierement l‟histoire de sa nauigatiõ ne fust escrite,
pour estre publiee & mise en lumiere sous le nom de ce Cordelier, affin qu‟il
252
eust vn tesmoin digne de ses mẽsonges, & que par ses subtilitez, la renommee
de nostre grand Durãd fust enuers tous copieusement espandue(1561: 18-19).
na Histoire des deux voyages (1588), originalmente um manuscrito, cuja publicação é
póstuma - é preciso que isso fique claro, para matizar as críticas endereçadas a ele -, o debate não
era mais entre Thevet e Richer, mas sim entre aquele e Léry (Lestringant 1588 - 2006: 265n.).
Thevet inclusive devolve a acusação de Léry quando o acusa, afirmando: que ele jamais foi a
meia légua do continente, nos cinco meses e meio que permaneceu por ali / qu‟il ne fut
jamais à demie lieuë de terre continente, en cinq moys et demy qu‟il a demouré en ces quartiers
(1588 - 2006: 223). Neste livro, Thevet não apenas alargou o seu tempo de estadia na França
Antártica - e assim a voz passiva com a qual narrou a maior parte dos acontecimentos em 1575,
cedeu espaço à utilização da primeira pessoa do plural e de pronomes possessivos -, como
também afirmou que anteriormente já tinha estado no Brasil.
Segundo Lestringant, o título Histoire de deux voyages é claramente, uma resposta à
Histoire de un voyage. Neste sentido, em algumas passagens Thevet refere-se: tanto a minha
primeira como a minha segunda viagem / tant à mon premier que second voyage, sendo
que, em uma dessas passagens, ele escreve: eis o trajeto que fizemos em minha primeira
viagem, quatro anos depois da segunda / voila la route que nous feismes à mon premier
voyage, qui fut quelque quatre ans après le second (1588 - 2006: 327).
Thevet também se contradiz quando primeiro afirma: em 1551, que foi a primeira
viagem que fiz por lá, e 1555, que foi a segunda viagem/ “l‟an mil cinq cens cinquante un,
qui fut le premier voyage que je feis pardelà, et cinquante cinq, qui fut le second voyage (1588 -
2006: 109-110 - grifo meu) e depois escreve,
253
confesso em algum lugar que cheguei à América em 1550, que foi
minha primeira viagem, sob a condução desse valoroso pilote e capitão
Testu, que depois terminou seus dias nas terras peruanas. Em 1555, fiz
outra viagem, acompanhado de Villegagnon, com quem eu permaneci
alguns anos
je confesse, en quelque endroit que j‟arrivay en l‟Amerique, en l‟an mil
cinq cens cinquante, qui fut mon premier voyage, soubz la conduitte de ce
valeureux pilote et capitaine Testu, qui dépuis a finy ses jours en la terre
continente du Peru. Dépuis l‟an cinq ces cinquante cinq je feis un autre voyage,
et accompagnay le Seigneur de Villegagnon, avec lequel je demouray quelques
années” (1588: 262-63 grifo meu).
Mais à frente, Thevet afirma que o julgamento dos calvinistas por Villegagnon
foi, alguns meses depois da minha partida daquele país / quelques mois aprés mon
departement de ce païs (1588: 264). Entretanto, em uma passagem da Cosmographie
transcrita por Léry, Thevet havia escrito que:
a fidelidade eu também conheci em certo número de nobres e
soldados que nos acompanharam nos navios a esses países distantes na
França Antártica, por causa de algumas conjurações feitas contra nossa
companhia de franceses normandos (...) para nos matar, junto com dois
régulos do país, os quais tinham prometido o pouco dos bens que tínhamos.
Mas os escoceses quando foram advertidos, levaram ao conhecimento de
Villegagnon e ao meu também, o que fez com que esses impostores fossem
muito bem castigados, bem como os ministros que Calvino enviou, que
beberam um pouco mais da conta estando envolvidos na conspiração
la fidélité desquels j‟ai aussi connue en certain nombre de
Gentilshommes et soldats nous accompagnant sur nos navires en ces pays
254
lointains de la France Antarctique, pour certaines conjurations faites contre
notre compagnie de Français Normands (...) pour nous faire mourir tous, avec
deux Roitelets du pays, auxquels ils avaient promis ce peu de biens que nous
avions. Mais lesdits Escossais en étant avertis, découvrirent l‟entreprise au
Seigneur de Villegagnon et à moi aussi, duquel fait furent très bien châtiés ces
imposteurs, aussi bien que les Ministres que Calvin y avait envoyéz, qui burent
un peu plus que leur saoul, étant compris en la conspiration(1575: 665 - In
Léry 1578 1992: 27 grifo meu).
Nas Singularités, Thevet havia dito que perto do Natal (...) eu estava doente /
environ Noël (...) j‟étais malade (1557: 166-67). O que é confirmado por Villegagnon na
Reponse aux libelles ...: André Thevet pôde testemunhar que quando fomos ao Brasil, a
pedido meu, teria rezado a missa de Natal e teríamos comungado se a doença que o
surpreendeu não o tivesse impedido/ André Theuet peult tesmoigner qy‟a nostre venüe au
Bresil à mon instance eut dit la Messe le jour de Noel, & nous eut communié, si la maladie qui le
surprint ne l‟en eut empesché (1561 : Aiij. 2).
Na Cosmographie, quando Thevet fez comentários sobre o cauim, disse: eu não podia
ver fazer tais bebidas sem me sentir mal do coração, mas por fim, cansado de beber
água, atingido por uma doença, por conselho dos meus amigos, fui forçado a bebê-lo, e
achei muito gostoso/ je ne pouvois veior faire tels breuvages, que le coeur ne m‟en feist mal:
mais à la fin me lassant de boire tousjours de l‟eau, estant attaint de maladie, par le conseil de
mes amis, fuz quasi contraint d‟en boire : & le trouvay fort bon (1575: 917).
Além disso, o editor das Singularités explicou no l‟avertissement, que o “autor”, meses
após chegar à França, estava febril (Lestringant 1991: 92-93 e 95).
A pergunta que então se impõe foi colocada por Lestringant:
255
qui n‟hésite pas à essuyer les périls d‟une longue traversée vers la
France. Une convalescence sur place n‟aurait-elle pas été préférable aux
risques d‟une navigation de plusieurs mois, allongée de surcroît par le détour
ver les parages de la Floride et de la Norambègue?(1991: 96).
Para Lestringant, nas entrelinhas dos escritos de Villegagnon, Léry e Belleforest, se pode
entender que a viagem de Thevet foi motivada por razões diplomáticas (1991: 96). Se foi este o
motivo, Thevet esteve doente a ponto de não poder celebrar uma missa, mas, um mês depois,
embarcou em uma longa viagem transatlântica, em pleno século XVI, e sobreviveu. Ou então,
ainda segundo Lestringant, como nada se sabe sobre a doença de Thevet e a única especulação a
respeito, de que ele teria contrdo varíola, não é digna de crédito (1991: 96n.), deve-se supor que
a doença o era muito grave; em um mês ele melhorou, depois teve uma forte recaída após
passar fome durante quatro meses na viagem, mas após um tempo na França ele se curou.
O quarto e último livro publicado por Thevet em vida foi Les vrais pourtraits et vies des
hommes illustres grecz, latins et payens ... (1584), do qual, Cunhambebe faz parte. Dois
manuscritos foram deixados inacabados, quando, em 1592, Thevet morreu: Grand Insulaire ...,
um atlas das ilhas do mundo, entre elas, L‟isle Henri”, na Baía de Guanabara e Histoire des deux
voyages.
*
Jean de Léry era sapateiro quando aos 20 anos viajou para a França Antártica,
acompanhado de outros 14 calvinistas e algumas mulheres núbeis, em busca de liberdade para
exercer a religião. Vinte anos depois, e após ter perdido dois manuscritos sobre o relato da
viagem, deux fois redige, deux fois perdu dans le bouleversement des guerres civiles - en 1563,
à Lyon, à La Charité-sur-Loire en 1572 -, et recouvré comme par miracle „l‟an pas1576
256
(Lestringant 1999: 37), ele publicou Histoire d‟un voyage (1578). Em vida, o livro contou com
cinco edições diferentes: 1578, 1580, 1585, 1599-1600, 1611 - cada uma delas aumentada e
corrigida pelo autor
70
. Histoire d‟un voyage foi celebrado por pessoas como Claude Lévi-Strauss,
que o considera uma obra-prima da literatura etnográfica” (1955: 75) e o chamou de “breviário
do etnólogo(1955: 73); Michel de Certeau, que entende que com o livro teve início a reflexão
sobre a alteridade (1975); e Lestringant, para quem cette Histoire, au sens étymologique de
„témoignage‟, inaugure le récit de voyage moderne (1999: 14), na medida em que introduz a
dimensão subjetiva na narrativa - acabou por se impor comme seule source crédible pour
l‟histoire de la colonie française du Rio de Janeiro” (Lestringant 1980 - 1996: 77).
De fato, é inegável o valor etnográfico da obra. Três semanas após a chegada à ilha de
Coligny, Léry deu uma escapada para o continente onde encontrou os Tupinambá que o
convidaram a experimentar o de um inimigo. E depois de três meses com Villegagnon, a
experiência de oito meses entre os índios resultou em uma série de informações sobre eles. No
final do livro, Léry escreveu uma frase que se tornou famosa: eu lamento frequentemente não
estar entre os selvagens/ je regrette souvent que je ne suis parmi les sauvages(1578 - 1992:
205). Contudo, é o teor religioso do livro que cabe destacar no momento.
Jean de Léry nasceu na Borgonha, em 1534, mas foi para Genebra por razões religiosas.
Por um lado, no Brasil, face aux Indiens Tupinamba vertueux, généreux, mais privés de la grâce
divine, Léry découvre aussi le privilège de son élection(Lestringant 1999: 22 e 1980 - 1996:
86). Neste sentido, ao perceber os selvagens à luz da doutrina da pré-destinação, realizou, na feliz
expressão de Lestringant uma “etnografia às avessas”, ou a contrario (1980 - 1996: 87). Isso
o significa, no entanto, que Léry não tenha hesitado sobre a condenação das almas indígenas.
70
Utilizo a segunda edição (1578 - 1994), em cujas notas Lestringant faz referências às variações entre as edições. A
edição de 1594, segundo Lestringant, é igual à de 1580 (1578 - 1994: 632).
257
Certa vez, ele conta que foi questionado sobre o conteúdo de suas preces por um índio ancião e
que, em resposta, falou durante duas horas sobre a criação mundo, dos homens,
de modo, eu dizia, que se eles quisessem transformar os erros no
quais os caraíbas mentirosos e enganadores os detinham e juntamente
deixar sua barrie e não comer mais a carne dos seus inimigos, que eles
teriam as mesmas graças que sabiam que tínhamos recebido
de façon, leur disai-je, que s‟ils se voulaient convertir des erreus
leurs Caraibes menteurs et trompeurs les détenaient, ensemble laisser leur
barbarie, pour ne plus manger la chair de leurs ennemis, qu‟ils auraient les
mêmes grâces qu‟ils connaissaient par effet que nous avions (1578 - 1992:
160).
Reverdin cita uma carta de Richer a Calvino na qual o primeiro escreveu que ils avaient
une double mission: ériger en refuge huguenot la colonie que le vice-amiral Nicolas Durand de
Villegagnon avait fondée dix mois auparavant dans la baie de Rio de Janeiro, et évangéliser les
„Sauvages‟ qui peuplaient la contrée (In Reverdin 1957: 8 grifos meus). Segundo Lestringant, na
quarta edição da Histoire (1599-1600), Léry infléchit la rigueur de son jugement initial (...) les
Tououpinambaoults pourraient très facilement être „réformés selon l‟Évangile et ne pas
encourir les flammes éternelles (1980 -1996: 108). Na última edão da Histoire, Léry, deixa
essa questão em aberto (Lestringant 1999: 134 e 142).
O livro de Léry expressa um ressentimento que o aproxima dos panfletos protestantes
publicados em 1561 contra Villegagnon. Ao analisar aquilo que denominou de corpus huguenote,
Lestringant, focou, de forma brilhante, o modo como a relação dos franceses com os ameríndios,
particularmente a partir da publicação de Léry, construiu um estilo para se contrapor à legenda
negra atribuída aos espanhóis. (1990 - 2004). Assim, l‟ennemi espagnol, champion du
258
catholicisme en Europe et dans le monde, représente le bouc émissaire ideal, un autre infiniment
plus maléfique et menaçant que le Brésilien mangeur d‟hommens” (Lestringant 1999: 103).
Contudo, para além desse aspecto lúdico, vale lembrar aqui o título do prefácio de Lestringant à
edição de bolso da Histoire: “Léry ou le rire de l‟Indien” -; a Histoire contém também uma
dimensão violenta, ausente em Thevet.
De acordo com Lestringant, Léry prend la place de Richer; en réalité, l‟Histoire de 1578
éclipse la Refutation de 1561, dont elle intègre, en son chapitre VI, l‟essentiel de la matière
(1999: 42 e 1990 - 2004:103). Mais do que isso, como mostra Lestringant na comparação que fez
entre essas duas obras, Villegagnon l‟insulaire occupe, dans la Refutation, cette place que
détient le Sauvage continental dans lHistoire (1980 - 1996: 96). Tal deslocamento, segundo
Lestringant separa Léry e Richer em duas correntes distintas dentro do nascente movimento
protestante francês. De um lado a “grande tradição” que trata de elaborar um tipo de mito
reformado a partir da fábula exemplar do exílio em terras distantes, de outro, a “tradição satírica”,
que tende a apagar a figura do selvagem, como os panfletos protestantes publicados em 1561
contra Villegagnon (1980 - 1996: 107).
Léry se tornou predicante em 1562 e pastor em 1564 (Lestringant 1999: 33). Durante as
guerras de Religião, ele se refugiou na fortaleza Sancerre, que resistiu quase um ano após o
massacre de São Bartolomeu às tropas católicas. No ano seguinte, publicou Histoire memorable
de la ville de Sancerre, que narra o cerco à cidade, a fome, e o caso de uma mãe que comeu o
próprio filho (Lestringant 1999: 34). Nesse período que separa as duas experiências
antropofágicas, Léry deixou de ser um personagem secundário do movimento calvinista como
tinha sido no Brasil, para se tornar uma figura central em Sancerre, onde foi encarregado das
259
negociações que terminaram com a capitulação da cidade, em 20 de agosto de 1573 (Lestringant
1980 - 1996: 80). Ele morreu em 1613, de peste (Lestringant 1578 - 1994: 30).
260
Capítulo 4 - A guerra Tamoio
Quando a maior parte dos franceses foi embora debater na França a experiência nas terras
da Guanabara, Jean de Bolés, que tinha vindo junto com os calvinistas em 1557, permaneceu no
Brasil. Vejamos as diversas opiniões a respeito deste que é chamado por três nomes diferentes:
Jean de Bolés pelos portugueses; Cointa, por Léry; Cointat pelos protestantes anônimos e por
Villegagnon; e Hector por Richer.
Jean de Bolés: o terceiro excluído
O casamento de Jean de Bolés foi celebrado por Richer no dia 17 de maio de 1557. A
noiva era uma jovem de Rouen e segundo Léry, com esse casamento, ele se apoderou da herança
da moça, que consistia em muitas facas, pentes, miçangas, anzóis entre outros objetos (1578 -
1992: 74). De acordo com Léry, os ministros não tinham boa opinião sobre um certo Jean
Cointa, que se fazia chamar senhor Hector, outrora doutor da Sorbonne, que tinha
atravessado o mar conosco/ n‟avaient pas bonne opinion d‟um certain Jean Cointa, qui se
fasait appeler monsieur Hector, autrefois docteur de Sorbonne, lequel avait pasla mer avec
nous”.
Como foi dito no capítulo anterior, para Léry, Cointa era aliado de Villegagnon e, neste
sentido, é possível que a importância da sua atuação na França Antártica tenha sido eclipsada.
Segundo Crespin, Cointac era um “acadêmico da Sorbonne, de certa illustração, impellido
pelo desejo insensato de passar por mais sabio que aquelles, pretendia a Superintendencia do
Episcopado, allegando que o logar lhe fora promettido em França” (1564 - 1917: 31-32). Por esse
261
motivo, ele é tido como alguém que tinha odio mortal(1564 - 1917: 32) dos ministros, que era
irritadiço e “guardou em seu coração um profundo ressentimento(1564 - 1917: 34). Para ele,
Cointac, foi “a causa das perturbações” (1564 - 1917: 31), que se sentindo humilhado, juntou-se a
Villegagnon para despertar “as questões que estavam como adormecidas” (1564 - 1917: 34).
No entanto, a ruptura entre ambos aconteceu quando Villegagnon resolveu impor a
transubstanciação, a invocação dos Santos, as orações pelos mortos, o purgatorio e o sacrifício da
Missa” (1564 - 1917:38). Neste momento, Cointac foi expulso da ilha e foi viver no continente
junto com os calvinistas (1564 - 1917: 45).
Na Reponse aux libelles d‟injures, Villegagnon escreveu sobre: um jacobino renegado,
chamado Cointat” / “un Jacobin renié, nommé Cointat”, e disse que ele
tinha traído meu forte. Ele era um daqueles que vieram me
encontrar junto com os de Genebra, a mim recomendado não por Calvino,
mas por outro de mesma afeição calorosa. Ele ensinava a confissão de
Augusto, motivo pelo qual surgiram os debates que engendraram tantos
problemas religiosos
a trahi mon fort. C‟est vn de ceux qui me vint trouver avec ceux de
Geneve, à moy recommandé non par Calvin, mais par autre d‟une mesme
chaleur d‟affection. Il enseignoit la confession d‟Auguste
71
. Au moyen dequoy
sourdirent les debats qui nous engendrerent tant de troubles de religion(1561
In Thevet 1588 - 2006: 269).
De acordo com Lestringant, para Villegagnon, Jean de Bolés, puisqu‟il n‟est ni
calviniste, ni catholique, il faut qu‟il soit luthérien” (1985 - 1996: 125).
71
Na nota Lestringant esclarece:ou d‟Augsbourg. Il était donc luthérien” (2006: 269n.).
262
Na edição das Propositions contentieuses, na parte em que se dirige ao leitor/ av
lectevr, Villegagnon escreveu que quando os calvinistas de Genebra passaram por Paris, um
jacobino renegado, chamado João Cointat, homem de entendimento perspicaz e versátil/
ung Jacobin renyé, nommé Jehan Cointat, homme d‟entendement prompt, & versatile(1562:
8), juntou-se a eles. Escreveu também que
esse jacobino querendo seguir uma doutrina à parte, se pôs a
defender e divulgar a confissão de Augusto e, sem dissimular, impugnar a
doutrina de Calvino. Disto decorreu uma discórdia tão grande que não foi
possível remediá-la, a não ser enviando de volta um dos ministros de
Genebra
ce Jacobin voulut suivre une doctrine apart, il se mist à defendre &
publier la confession d‟Auguste, & sans dissimuler, impugner la doctrine de
Calvin: dont s‟esmeut discorde si grande, qu‟il ne fut possible d‟y remedier,
sinon en renvoiant l‟ung des Ministres de Genevue” (1562: 9).
Segundo Villegagnon, os calvinistas, passaram a odiar esse jacobino, dizendo que ele
era ministro de Satã, suscitado para atrapalhar e impedir o crescimento do reino de Deus/
se mirent à hair plus perfectement ce Jacobin, disans qu‟il estoit le Ministre de Satan, suscité
pour troubler, & empescher l‟advancement du royaulme de Dieu (1562: 10). Quando Bolés
estava no continente junto com os calvinistas, segundo Villegagnon, ele me advertiu do
empreendimento, mandou que todos os meus homens que fossem fiéis a ele, me deixassem, e
se retirassem junto com ele quando retornasse/ m‟advertit de l‟entreprinse, me mandant
que tous mes hommes luy donnoient la foy, de me laisser, & se retirer avec luy à son
retour (1562: 11).
263
Richer também tem sua versão sobre Hector, homem não tão sedicioso, como
ignorante e iletrado/ Hector, homme non point tãt seditieux, que ignorãt, & sans literature
(1561: 25-26), que “não parou de nos contrariar e molestar/ ne cessa de nous estre
contraire & moleste” (1561: 26). E que junto com
os monges sofistas, gendarme de chapéus vermelhos, pegaram e
extraíram de nossas homilias ao povo gaulês quando estávamos na
América, algumas sentenças intempestivamente e distorcidas do
verdadeiro sentido, tanto pela ignorância das santas escrituras como por
causa da inimizade contra nós. Mais por causa da intenção maligna, do que
por uma culpa ou ofensa de nossa parte
Hector & les moynes Sophistes, gensdarmes des rouges chapeux ont
prins & extraict de noz Homelies au peuple Gaulois, quand nous estion en
Amerique, quelques sentences, mais mal à propos, & destournees du vray sens,
tant par lignorance des saintes escritures, que par l‟inimitié conceüe contre
nous plus tost par leur maligne intention, que par aucune coulpe & offence
procedente de nostre part (1561: 31-32).
Segundo Richer, Bolés teve uma significativa influência sobre Villegagnon, na medida
em que: Durand, aliciado pelos ministros de Satã e pelos sofistas da Sorbonne, se esforçou
em fazer valer suas mentiras e falsas adorações/ Durant, alleché des Ministres de Satan, &
des Sophistes de Sorbonne, s‟efforce de faire valoir ses mensonges & faulses adorations(1561:
85). E no último capítulo do livro ironizou: Eis as belas e graves sentenças e os ditos
memoráveis desse grande rei antártico e caluniador Durand, aprovados por esses velhos
barcos de vinho da Sorbonne/ Voyla les belles & graves sentences & dicts memorables de ce
grand Roy Antarctique, & calomniateur Durant, approuvez par ces vieux vaisseaux à vin de
Sorbonne” (1561: 166).
264
Em pelo menos um panfleto protestante encontra-se referência a Bolés. Na “Ode” da
Reponse aux Lettres, há um epodo que faz a seguinte alusão à inflncia exercida por Bolés sobre
Villegagnon:
Mas sua vontade pusilânime; Bem cedo de outro lado; uma
volta e retorna; Como o fardo de uma casa, com a brisa e o vento do
outono, um vão cata-vento se vira. Ele muda de afeição; com a opinião de
um sorbonista, que não é religiosa, nem verdadeiramente cristã, nem
papista
Mais sa lasche volonté; Bien tost d‟un autre costé; Prend la volté, & se
retourne; Comm‟au faix d‟une maison, A la Bize & vent d‟Auton, Un vain
giroüet se tourne. Il change d‟affection; A L‟adveu d‟un Sornoniste, Qui n‟est
de religion, Ni vray Chrestien, ni Papiste (1561b: 7).
No final desse documento, uma informação sobre Jean de Bolés que corresponde às
das fontes portuguesas. O panfletista pergunta a Villegagnon:
Direi que sendo solicitado por um bacharel em teologia chamado
Cointat você abandonou a doutrina do Evangelho? Citarei novamente a
excelência e o memorável julgamento de Deus que recaíram sobre você
quando, tendo rejeitado Cointat, ele foi se retirar com os portugueses e,
tendo bom conhecimento dos acontecimentos na sua ilha, fez com que eles
lá entrassem e depois tomassem seu forte?
Diray je comment estant sollicité par un Bachelier en Theologie,
nommé Cointat tu te revoltas de la doctrine de l‟Evãgille? Reciteray je
l‟excellent & memorable jugement de Dieu, sur toy lors qu‟ayant rejetté ledict
Cointat il se retira ver les Portugois, & ayãt bonne congnoissance des avenues
de ton isle, les y a faict depuis entrer & prendre ton fort?(1561b: 61-62).
265
Quando em 1570, Mem de decidiu pedir uma indenização pelos prejuízos causados na
guerra do Rio de Janeiro
72
, os diferentes depoentes convocados repetiram a declaração do
governador-geral, de que “foi ao Rjo de Janeiro pelo Recado que lhe vejo por monseor de bolles”
(Serrão 1965: 67). Segundo Mem de Sá,
“hão tempo que me queria partjr dos Ilheos veio da capitania de são
vicemte hum gentil homem francez que se chamaua monçeor de bolees pesoa
de sangue segundo os francezes afirmauão ho qual viera de frança pera pouoar
ho Rio de Janeiro onde estaua outro fydalguo monçeor de villa ganhão que
tinha feito huma fortalleza muito fortee e por desavemças que com elle teue se
sajo de sua companhia e se foi pera são visemte e dahy veo ter comiguo e me
descobrjo algumas Roins determinaçojs de villa ganhão em prejuizo desta terra
e do servjço de sua allteza” (Serrão 1965: 68).
As variações nos depoimentos dos depoentes são pequenas. O cavaleiro fidalgo João de
Araújo, afirmou:
estando elle governador na capitania dos Ilheos viera hay ter da
caputania de são Vicente hum francez per nome monçeor de boles homem
nobre segundo se depois vyo ho quall lhe dera novaas como estando em huma
fortaleza no Rjo de Janeiro que hay tinhaão hos francezes muy forte elle por ter
deferenças com monçeor de villagalhaão que nella estaua por capitão se fora
sem sua licença e escondido delle pera são vicente (...) donde viera ter com ele
governador como dito hee o quel lhe descobrira a determinação do dito
villagalhão e dos malles que detreminava de fazer nesta costaa” (1570 - Serrão
1965: 70).
72
Em 1559, ele já havia escrito à regente D. Catarina: “peço a V. A. que em pago de meus serviços me mãde hir para
o Reino e mande vir otro gouernador, porque afirmo a V. A. que naõ saõ para esta terá: eu nela gasto muito mais do
que tenho de ordenado (...) sou velho; tenho filhos que andaõ desagasalhados” (In: Serrão 1965: 41).
266
Segundo Heitor Antunes, cavaleiro da casa real: “a estaa capitania viera hum francez per
nome monçeor de bolles e o que elle acomselhara e disera ao dito governador ele fizera” (1570 -
Serrão 1965: 73). Sebastião Álvares, tamm cavaleiro da casa real, disse:
quando vejo o dito governador dos Ilheos trouxera em sua companhia
hum francez pesoa nobre segundo parecia per nome moeor de bolles ho quall
dizia que viera de França ao Rjo de janeiro onde estaua por capitão outro
francez pesoa nobre per nome monçeor de villagalhão (...) por desauenças que
com ele tiuera se saira de sua companhia e fora ter a são Vicente por terra (...)
com o dito governador a quem descobrio a determinaçam do dito villagalhão”
(1570 - Serrão 1965: 74).
Outro cavaleiro da casa real, Francisco de Morais torna a dizer que:
estando o dito governador pera partir dos Ilheos pera estaa capitania
chegara a ella monçeor de bolees da capitania de Sao Vicente que parecia
homem omrrado e fidallguo o quall viera de França pera pouoar o Rjo de
Janeiro honde estaua outro framcez fidalguo momçeor de villagalhão o qual
tinha huma fortalleza muito fortee e dera conta que por desavemças que com
elle tiuera se saira de sua companhia e se fora pera a capitania de são Vicente
por terra”... (1570 - Serrão 1965: 75-76).
Também Diogo Moniz Barreto, alcaide-mór da cidade do Salvador, depôs: he verdade
que aqui vejo ter hum framcez homem homrado e dezião que hera lleterado per nome monçior de
bolles o qual dizião que vinhaa do Rjo de Janeiro”... (1570 - Serrão 1965: 78). O mesmo afirmou
o bacharel mestre Afonso.
Apesar de as autoridades civis no Brasil terem sido gratas às informações de João de
Bolés sobre as atividades de Villegagnon no Rio de Janeiro, as autoridades jesticas, tiveram
uma impressão diferente do francês, como se pode notar a partir da “Petição do provincial Luís
267
da Grã e depoimentos de diversos padres da Companhia de Jesus em defesa da católica no
processo do francês fugitivo João de Bolés”, elaborada no dia 22 de abril de 1560. Tratava-se de
averiguar as heresias semeadas pelos franceses que estavam no Rio de Janeiro, baseado em
denúncias de coisas “escandalosas” que se tinha escutado do senhor de Bolés. Segundo o
depoimento de Pero de la Cruz:
Primeiramente que dezia Monsior de Bolés que a igreja de Roma não
tinha mais que ha de Lisboa ou de Paris, que tamta denidade tem um Bispo
como ho Papa, e ho papa hum homem como s, um bugiarão, que tem em
Roma putarias de homens, por que pagam dinheiros; e que Nosso Senhor
mandou a São Pedro que pregase aos judeus e São Paulo aos gentios, e que São
Pedro não havia de sair do mandado de Deus pera deixar de pregar aos judeus,
e ser Papa, negamdo ho que dele se diz que foi vinte e quatro anos Papa; que as
bulas do Papa huma falsydade mui grande, que as faz por tirar dinheiros e
por dois reales asove de culpa e pena; e que não há-de crer outra cousa senão ho
que está na Sagrada Escritura, e que isso dise São Paulo que ainda que viese
algum anjo do seo a pregar fora do que eles pregavão, que não no cresem; e que
o se crea aver outros santos senão os apostolos e que os outros não se podem
chamar santos; e que não hi Prugatoreo, senão que ou vão loguo / direitos a
gloria ou imferno, e que a Paixão de Jesus Christo basta para levar homem ao
seo ainda que estê no artiguo da morte com dizer: Senhor, avei misericordia de
mim pela Paixão que viestes a padeser; e que as hobras, que fazemos boas, são
boas por amor de Deus, mas que cuidamos que por nosas obras nos avemos de
salvar, que fazemos gramde peccado e nos ymos ao imferno; e que mais
perfeito ho imferno, diguo, e que mais perfeito ho matrimonio que a
Relegião, e que Deus não defende os Padres sejão casados. E, falando numa
excomunhão, que vosa mercê fizera, respondeo: rio-me eu desas excomunhões.
E asi disera que se há-de dar ha comunhão aos leyguos com pão e vinho
consagrado; e que ho Pero de la Cruz lhe perguntara: e vós avei-lo de tomar
268
tambem? E que ele lhe reponsera: toma-lo-ey como ho tomam os outros” (III:
179-180).
De acordo com Nóbrega, “ho dito Monsior de Bolés sobre o sacramento da unsão e,
tratamdo da epistola de Samtiaguo que delle trata, elle dito Monsior de Bolés disera que folgara
de saber o que Calvino, que hé um grande eretíquo de Janevra, dezia sobre aquilo” (III: 185-186).
O testemunho de Anchieta, assim como o de Luis da Grã, não traz novidade, o padre
apenas confirma as acusações de Pero de la Cruz. Outro testemunho, o Padre Adão Consalvez,
forneceu detalhes sobre a aproximação de Bolés com o luteranismo. Contou que,
estando no Rio de Janeiro quando se tomou fortaleza; ouvio ele
testemunha humas porfias grandes que tinhão sertos homens com ho dito
Monsior de Bolés, as quais ele testemunha não ouvio bem por estar arredado, e,
imdo elle testemunha depois para onde tiverão as ditas porfias, lhe contarão
aqueles homens, que / aly estavão, que as porfias foram ele dito Monsior querya
sostentar hos francezes, que haly estavão, de boons cristãos, dado caso que não
tivesem igrejas nem cruzes nem outras cousas que lhes os ditos homes que hi
estavão, estranharão: dizendo que a santidade não estava nas igrejas, nem nas
cruzes, nem nas contas, e outras palavras que davão escamdalo às pesoas que as
ouvião; e dizendo que os francezes que herão mais santos que os Padres de
Jesus, o que tudo ysto naquele fragante lhos contarão a ele testemunha os que
estavão com ho dito Monsior de Bolés; e dise elle testemunha que no Rio de
Janeiro não se achou cousa que paresese synal de chistãos, porque não tinhão
cruz nem imagem; e do seisto artigo não dise mais nem dos outros atrás por não
saber mais dos outros atrás, senão deste; e dise mais ele testemunha que ao
tempo que ho dito Monsior viera de São Vicente a primeira vez viera ter a Porto
Seguro, omde ele testemunha estava, a achando-se elle testemunha em quasa de
Felype Gilhem, provedor da fazenda de Sua alteza, estando presentes Dioguo
Alvares e Gaspar Barbosa, ahi moradores, vindo a falar com ho dito Monsior
sobre a teyma que tinhão os luteranos, dizendo eles que tinhão má tensão
269
naquilo que sostentavão e o dito Monior respondeo, perante elle testemunha e
das que asima o escritas, que não tinhão má opinião os luteranos, mas antes
hera boom o que tinhão e gabando-os que tinhão boa opinião; e que lhe parese a
ele testemunha que ho diria a seu pareser deles luteranos e que tambem os
gavava de boons leterados; e que, segundo o pareser delle testemunha, o que
vio no dito Monsior hera sostentar os ditos luteranos; do que loguo, sem ho aver
nunqua visto nem conhecido nem saber dele nada, teve muito roim sospeita
dele e lhe parreserão muito mal suas cousas. E isto o que elle testemunha
dise que sabia. E mais não dise” (III: 19 -193).
A Petão termina com uma resposta de Luis da Grã, na qual afirma:
eu amoestey ho povo na Villa de São Vicente que se gardasem dos
Francezes que amtam herão chegados do Ryo de Janeiro, honde vivião
lluteranamente, como elles mesmos o pregavão, e se vya pellos llyvros que
trazião, e que os que vyerão da Carioca erão todos huns; ho que eu emtendia
por Monseor de Bollés e seus companheyros, como cllaramente se emtendia”
(III: 195).
Outros dois jesuítas escreveram cartas nas quais se referem a Jean de Bolés. Anchieta, em
junho de 1560, a Roma, e Leonardo do Vale, em junho de 1562, a Lisboa. O primeiro contou que
em uma
povoação, que nós chamamos Rio de Janeiro” (III: 263), um deles,
instrdo nas artes liberais, grego, e hebraico, e mui versado na Sagrada
Escritura, ou por medo de seu capitão, que tinha diversa opinião, ou por querer
semear seus erros entre os portugueses, veio-se para (São Vicente), com
outros três companheiros idiotas que, como hóspedes e peregrinos, foram
recebidos e tratados mui benignamente. Este, que sabe bem a língua espanhola,
começou a blasonar que era fidalgo e letrado, e, com esta opinião e uma fácil e
alegre conversação, que tem, fazia admirar-se os homens e que o estimassem.
270
Escreveu também uma breve carta ao Pe Luís da Grã, que estava então
em Piratininga, na qual lhe dava conta de quem fosse e do quem havia
aprendido, dizendo que depois que o moderador de sua adolescência, varão
singular, o havia metido nas covas das Piérides, e bebera na fonte cavalina
ameníssimos arroios de sabedoria, passara ao estudo da Sagrada Teologia e
Divina Escritura, que para mais facilmente alcançar havia aprendido a língua
sacra, isto é a hebréia, dos mesmos rabinos, dos quais havia ouvido muitos
segredos, que praticaria com um padre, quando se vissem (...)
Não se passaram muitos dias, quando ele começou a vomitar de seu
estômago seus fétidos erros, dizendo muitas coisas das imagens dos santos, que
aprova a Santa Igreja, do Santíssimo Corpo de Cristo, do Romano Pontífice, das
indulgências e outras muitas coisas, que temperava com certo sal de graça, de
maneira que ao paladar do povo ignorante, o somente não pareciam amargas,
mas até muitos doces. Sabendo isto o Pe.Luís da Grã, veio logo de Piratininga a
se opor à pestilência e arrancar as raizes ainda tenras deste mal, que começava a
brotar. Tendo receio disto, e não sem favorecedor fortasse, para indignar ao
padre contra si e fazê-lo suspeito, se porventura denunciasse a seu respeito,
mandou-lhe uma invectiva (...) Na qual o acusava e repreendia mui acremente,
porque não partia o pão da doutrina aos portugueses, por trabalhar na conversão
dos infiéis. E por esse teor amontoou outras muitas coisas, com que lhe parecia
que se exasperava o padre.
Mas o padre (...) foi-se ao vigário, requerendo-lhe que não deixasse ir
por diante esta peçonha luterana. E nos sermões públicos admoestava ao povo
que se guardasse destes homens e dos livros, que trouxeram, que eram cheios
de heresias. Mas o vulgo imperito, em freqüentes práticas, louvava ao francês,
maravilhando-se de sua sabedoria e eloqüência, e apregoava o conhecimento
que tinha das artes liberais. E pelo contrário caluniava ao Pe. Luis da Grã,
dizendo, que, desgostoso pela invectiva que lhe mandara, o perseguia (...) Tanto
valeu derrepente sua autoridade para com todos, que mui facilmente diminuiu a
boa opinião do padre, a quem todos tinham em muita reputação por seu
exemplo de vida e doutrina singular.
271
Depois disso o mandaram à Bahia, para que lá se conhecesse de sua
causa mais largamente” (: III, 264-266).
O padre Leornardo do Vale escreveu sobre aquele que
está preso, como já saberão, passa de hum anno ou vay em dous, em
huma cadea que parece se pode mais chamar mazmorra que cadea, e contudo
tam pertinaz como se outro letrado não ouvera no mundo. E aly, onde está, não
deixa de fallar o que lhe vem à vontade, e hé ele tam gabado de sutil e delicado
engenho que se Nosso Senhor por sua bondade não ajudase nesta parte tanto
Nação Portuguesa, como sempre ajudou, não poderia deixar de se apegar algum
aos que ally vão. E, porem, elles, com sua fee de enche-mão, dando-lhes humas
rezões, que para rir, e cuidarão que o concluirão; e vem-se depois gavar que
se tiverão muy bem com Monsior de Bollés, o que não fizerão alguns franceses
que aqui estavão quando elle veo do Rio de Janeiro; mas neses pouquos dias,
que aqui andou, se aproveitarão bem de sua doctrina, e sendo presos dous
moradores antigos e cassados na terra, sayo hum com huma penitencia solemne
na See e outro com hum sambenito para sempre e que não saise fora dos muros
e visitasse este Collegio duas vezes cada dia. O Monsior de Bollés deixa de ser
queimado por estar remetido ao Cardeal. Pouquo tempo que fugindo, por
hum descuido, dous presos da cadea, de dia, acudio o Ouvidor Geral e achando
que o hereje estivera tambem pera isso, por andar sem ferros, lhe mandou
deitar, o que elle não quis consentir, e foy nisso tam remisso que duas ou tres
vezes mandou a Justiça apontar nelle com huma seta pera o matar, e ele
todavia, por ver o perigo tam imminente, tam soberbo que por o mostrar
fraqueza disse que o deixassem fallar ao Senhor Ouvidor; e dise-lhe que não
por medo, mas por amor de sua mercê, os queria tomar. E assy escapou do que
por ventura lhe fora milhor por não estar cada dia acrecentando tormentos pera
o inferno (1562: III, 498-499).
272
Depois da prisão na Bahia, Jean de Bolés foi enviado à Inquisição em Lisboa. Em 1564,
ele foi absolvido ao abjurar depois de ter sido considerado um católico que se tornara luterano, ou
calvinista, mas que havia se arrependido (Leite 1958: III, 175-176). Contudo, novo processo o
levou à fogueira, em Goa, no dia 20 de janeiro de 1572 (Viotti 1989: 85).
Para Lestringant, Jean de Bolés, teria representado na França Antártica, na condição de
luterano, le tiers exclu”, daí a animosidade suscitada tanto pelos calvinistas como por
Villegagnon. Isso também explica como ele pôde se aproximar dos mesmos. De um lado, foi para
a França Antártica junto com os calvinistas como mais um protestante, de outro, o interesse
esporádico e momentâneo de Villegagnon por Lutero teria sido um fator de união entre ambos.
Porém, por não ser uma coisa nem outra, quando ocorreu a controrsia sobre a Eucarística, ele
foi rejeitado pelos dois lados (1985 - 1996: 123-128). Essa interpretação, que torna
compreensível a insisncia das fontes portuguesas no perigo do luteranismo francês no Rio de
Janeiro, enquanto as fontes francesas versam quase que exclusivamente sobre o calvinismo e o
catolicismo, também fez com que Jean de Bolés ganhasse importância nos desdobramentos dos
acontecimentos na França Antártica, seja pelo lado civil, seja pelo religioso.
Se os calvinistas acusaram Villegagnon de toda sorte de crueldade, culpando-o pelo
fracasso da sonhada zona de refúgio, Villegagnon por sua fez, quando responde a um panfletista
sobre a perda do forte, diz: ele me censura que um jacobino renegado, chamado Cointat,
como ele diz, traiu meu forte/ il me reproche un Jacobin renié, nommé Cointat, lequel ce dit
il, a trahi mon fort”, (1561 - Thevet 1588 - 2006: 269) e depois continua: depois ele censura
meu forte, que ele diz, eu perdi frouxamente, como se, estando eu aqui, pudesse defendê-lo
e guardá-lo das traições dos falsos cristãos da sua seita/ puis il me reproche mon fort,
273
lequel dit que j‟ay perdu laschement, comme si estant icy, je le pouvois defendre là, et le garder
des trahisons des faux Chrestiens de leur secte” (In Thevet 1588 - 2006: 269).
Jean de Bolés:
Léry
Crespin
Villegagnon
Lestringant
Cointa
Cointac
Cointat
Outrora doutor da
Sorbonne, apoiou
as idiossincracias
de Villegagnon.
Acadêmico da
Sorbonne que
desejava liderar as
funções religiosas na
França Antártica.
Jacobino renegado.
Enviado por
Calvino, defendia o
luteranismo. Traiu
o forte de Coligny.
Luterano.
Richer
Panfletista
protestante
Mem de Sá e
depoentes
Jesuítas
Hector
Cointat
Senhor de Bolés
Senhor de Bolés
Ignorante,
maldosamente
distorceu a doutrina
calvinista. Ele teve
influência sobre
Villegagnon.
Sorbonista, ele não
era cristão
(calvinista), nem
papista (católico).
Exerceu influência
sobre Villegagnon,
mas depois o traiu,
quando forneceu
aos portugueses
informações que
culminaram na
perda do forte.
Nobre e letrado;
depois que se
desentendeu com
Villegagnon, foi,
por terra, até São
Vicente.fornecer
informações sobre a
fortaleza de
Villegagnon.
Luterano.
274
É notável que as principais referências sobre a França Antártica citem aquele que,
provavelmente, foi o principal dispositivo de sua derrocada, tanto por incentivar a controvérsia
sobre a Eucaristia como por ter passado informações para o lado português, tenha ele sido Bolés,
Cointat, Hector ... Se Thevet não fez qualquer referência direta a ele, veremos mais à frente que,
em 1588, ele pode ter feito uma alusão, quando se remeteu aos espiões que o capitão
(Villegagnon) deixou em terra e que possibilitaram a aproximação dos portugueses do forte de
Coligny.
A guerra continua:
Em julho de 1560, Mem de escreveu uma carta à regente D. Catarina na qual narrou
sua participação na guerra do Rio de Janeiro. Disse que, logo depois que a armada de Lisboa
chegou, no final de novembro do ano anterior, ele saiu com a tropa da Baía, no dia 16 de janeiro,
e chegou no Rio de Janeiro, no dia 21 de fevereiro. Assim que chegaram, avistaram uma nau
francesa e a capturaram.
Segundo Anchieta:
uma naú francesa carregada de inimigos e armas estava surta no
interior do porto sinuoso, Por ordem do Governador para lá se dirige pequena
galé, que a ataca e rende: salvam-se apenas a nado os índios com os franceses
acolhendo-se à praia. A nau rendida é ligada à popa da nossa: a fortaleza tenta
impedir-lhe a volta com projéteis incendiários e o monstro de ferro vomita suas
bolas de fogo. Com ajuda divina em vão as balas cortam os ares” (1563 - 1970:
197).
275
Anchieta afirma que antes, os portugueses tinham visto a fortaleza francesa, que ela,
apesar de bem armada, na ocasião tinha poucos vigias, pois os franceses estavam dispersos pelas
rias aldeias indígenas (1563 - 1970: 197).
De acordo com o padre, “enquanto correm estas negociações de uma parte e de outra o
general português manda pedir à cidade, que se ufana do nome ilustre do Mártir Vicente, enviem
reforços e tropas índias de auxilio” (Anchieta 1563 - 1970: 201).
Mem de forneceu uma versão inversa desse fato: após capturar a nau “De vila
ganhon” foi que viram “a fortaleza a sua fortaleza: a aspereza do tio; a muita artilharia, e gente
que tinhã” (1560 - 1965: 42). Nóbrega que viajou a caminho de São Vicente junto com a tropa de
Mem de
73
, narrou o episódio de toda aquella viagem em que me achey presente” (1560, III:
243) assim:
“no mesmo dia que chegamos se tomou huma nao que estava no Rio
pera carreguar de Brasil, a gente della fugio pera terra, e recolheo-se na
fortaleza do sitio em que estavão os franceses e que tinhão consiguo os Índios
da terra, temerão de a combaterem e mandarão pedir ajuda de gente a S.
Vicente” (1560, III: 243).
Primeiro combate
Anchieta
Mem de Sá
Nóbrega
Os portugueses
avistam poucos
franceses na
fortaleza . Uma
Os portugueses
capturam uma nau
francesa e depois
veem a fortaleza
Os portugueses
tomaram uma nau
que carregava pau-
brasil. Os franceses
73
De acordo com Pereira: “o Padre Nobrega se partio daqui (Baía) para Sant Vicente na armada com o Senhor
Governador Men de (...) o qual, com os navios, que trouxemos, e com outros que quá ajuntou, se foy ao Ryo de
Janeyro, que está no caminho de Sant Vicente, para deitar dahí os Franceses, onde estavão muy fortes em huma
fortaleza que tinhão feita com muita munição de artelharia para se defender; he hé vinda parte da armada, da qual
soubemos como os Franceses, mais milagrosa que humanamente, foo lançados da terra e a fortaleza posta por terra
e tomados muytos despojos he huma nao que tinhão no porto, e elle partido para Sant Vicente” (1560, III: 287).
276
pequena galé
portuguesa rende
uma nau francesa
bem armada. A
fortaleza revida. A
armada pede
reforço indígena.
cheia de pessoas e
artilharia.
fugiram para a
fortaleza. A armada
pede ajuda a São
Vicente.
Segundo Mem de Sá, antes de começar a guerra, requererãme que lhes escreuesse
primeiro hũa carta e os amoestase que deixasem a terra, pois era de V. A.: eu lhes escreui e me
responderaõ suberbamẽte” (1560 - 1965: 42). Como se sabe, Villegagnon havia partido para
França e quem estava no comando da França Antártica e respondeu a carta foi seu sobrinho Bois-
le-Comte. De acordo com Anchieta, esse era o conteúdo do “bilhete” enviado por Mem de Sá:
a fama, general glorioso, te canta como excelente em feitos prestantes,
e longa experiência da guerra e também as belas artes tôdas te poliram a alma.
Não creio pois que te hás de lançar a emprêsa tão árdua para defender uma
causa injusta, contra todo o direito divino e humano, com a morte de tantos
soldados. Essa terra que habitas é nosso domínio intangível: pois que a
conquistou o trabalho esforçado dos lusos. Se te aprouver abandonar nossos
reinos, de grado, como ordena o nosso e vosso rei, será suprimida da ocasião
de manchar nossas dextras com sangue, e nada sofrerá por isso a tua honra de
chefe. De outro modo, decididos estamos a atacar sem piedade a fortaleza e a
travar horrendo combate, manchar as mãos de sangue e a tingir de vermelho as
naus, os rochedos e as praias brancas de areia. Fa-lo-ei contra a vontade,
testemunha me seja Deus aqui presente: tu darás conta tremenda do que
suceder, no tribunal do Senhor. Responsável tu só serás dos crimes, das ruínas e
sangue que se derramar: do alto do céu nos contempla Cristo que um dia virá
julgar-nos os atos da vida” (1563 - 1970: 199).
277
A resposta do Bois-le-Comte teria sido:
qual seja melhor ou mais justo partido, ótimo chefe, não cabe a mim
decidí-lo, é alçada daquele por cuja ordem habito os litorais do Brasil: foi êle
quem me confiou a defesa do forte. Por mandado de Henrique o soberano, a
fortíssima rre, que vês, ergue a fronte até aos lumes celestes. Sem ordem do
grande Francisco, a quem coube por dita o govêrno da França, que dirige os
destinos da pátria de cetro ilustre na mão e coroa na fronte, jamais abandonei
essas muralhas que erguemos. Vive eternamente o supremo juiz do universo
que pesa as culpas de cada homem em rigorosa balança: Êle me guardará as
os, puras de todo o atentado e livres de todo sangue: tu bem a guerra que
intentas. Temos grande soma de munição, espadas luzentes, artilharia rija,
dardos incendiários, armaduras para proteger os corpos afeitos a guerras
contínuas. Tudo enfim está bem preparado: aqui estou eu a postos para defender
os rijos muros da fortaleza. Vamos pois! prontos estamos para a defesa do
forte” (Anchieta 1563 - 1970: 199 e 201).
Em 1575, Thevet escreveu que, quando os portugueses tomaram o forte, Bois-le-Comte
estava em terra firme (: 908), em 1588, que, durante a guerra, o capitão chamado Bois-le-
Comte e alguns escoceses que o seguiram, estavam em Cabo Frio para se alegrar e divertir
/ le capitaine nommé Bois le Conte, et quelques Escossois qui le suivoient, estoient lors au Cap
de Frie pour s‟esgayer, et prendre leurs plaisirs” (1588: 272).
As primeiras
negociações
Mem de Sá
Anchieta
Thevet 1575
Thevet 1588
Escreve para
Bois-le-Comte
e este responde
prontamente.
Mem de Sá
escreve para
Bois-le-Comte
que se recusa a
Bois-le-Comte
estava no
continente
quando os
Bois-le-Comte
estava em
Cabo Frio se
divertindo.
278
ceder.
franceses
chegaram.
Segundo Anchieta, Mem de teria decidido enfrentar os franceses apesar da “relutância
de todos. Diziam êles que não era possível com armas algumas escalar o forte, cercado por rochas
enormes, defendido por constrões numerosas. Mas o chefe magnânimo tinha a peito acima de
tudo propagar a fé” (1563 - 1970: 203). Portanto, falou aos seus homens:
estou enfim decidido a atacar a fortaleza altiva: bem sei a posição
estratégica do lugar e as construções montadas de inúmeras peças, os muitos
braços do inimigo e os Franceses postados a perder a vida ou a salvar o forte a
preço de sangue. Mas que são essas fôrças para a onipotência divina? (Anchieta
1563 - 1970: 203).
A seguir, Anchieta narra em detalhes os ataques portugueses. O primeiro ataque teria sido
a colina das palmeiras, onde os Franceses postaram inumevel guarnição de selvagens, que a
defendem afastando os esquadrões portugueses (Anchieta 1563 - 1970: 207). Em seguida,
inspirados pelo “Onipotente” foram em direção à praia “para que o incauto inimigo cresse nos
apertava grande falta de água e enganado por essa idéia abandonasse a colina(Anchieta 1563 -
1970: 207). Vendo isso, os que estavam na ilha, correram em direção à praia. Assim, os
portugueses retornam à colina onde “rompem, como chama de fogo, pelo meio das rochas,
escalam de um salto colina, ocupam-lhe os cimos, escavam fundas trincheiras e no alto do cume
ficam vitoriosa a bandeira da cruz resplendente” (Anchieta 1563 - 1970: 207 e 209). Sobre os que
restaram, Anchieta escreveu: “fogem os franceses e pelos penhascos, seguros a cordas,
apressados se escapam ao alto refúgio da tôrre” (Anchieta 1563 - 1970: 209). Os portugueses
279
foram então em direção à segunda colina. Alguns soldados morreram e eles retornam para
preparar novo ataque, enquanto, do alto da colina, franceses lançavam balas de canhão.
Ao amanhecer, os franceses e os Tupinambá que estavam no continente continuaram o
contra-ataque e conseguiram retornar a ilha, “portanto, índios e franceses, multidão numerosa,
atiram-se ao campo inimigo (Anchieta 1563 - 1970: 211) contudo, “de parte a parte voam nos
ares flechas velozes e o combate flutua daqui e dali, com sorte indecisa. Não cedem estes, nem
aqueles recuam vencidos; nem estes arredem pé, nem voltam costas aqueles” (Anchieta 1563 -
1970: 213). Após o meio dia, os franceses
assim armados, se precipitam da penha, cercados pela chusma dos
índios. Brandem as espadas que chispam ao sol fronteiro e cortam o ar com
golpes freqüentes. Sem temor algum transpõem a estreita ponte de um tronco.
Começa a chover denso granizo de flechas” (Anchieta 1563 - 1970: 213).
De outro lado, “já as fôrças começam a faltar aos nossos, cansados de tanta peleja, já lhes
nasce o desejo da fuga” (Anchieta 1563 - 1970: 215). E,
com a morte de muitos as naus se afastam da terra. o mais
bombardeiam os muros da tôrre elevada: imenso cansaço prostrara os batalhões
que pelejavam em terra, tão porfiadamente. Não meio algum para o cêrco do
forte altivo, valentes franceses e ferozes selvagens” (Anchieta 1563 - 1970:
215).
Sobre atuação da ordem jesuítica, Anchieta escreveu:
e que direi dos Jesuítas e dos ministros sagrados? Dia e noite, com
fervor sua mente e seus lábios se voltam ao Pai celeste, ao Filho divino e ao
Espírito Santo (...) Pedem-lhe que os auxilie e aos nossos guerreiros a mais
gloriosa vitória e o mais estrondoso triunfo. Foram êles, estou certo, que com
seus gemidos e queixas comoveram os céus e lhes abriram as portas da graça;
280
êles que, dardejando do peito ardente setas de fogo, moveram o Pai eterno a
prostrar o inimigo, incutir-lhe terror e afugentá-lo para longe do forte” (1563 -
1970: 201).
Anchieta sugere ainda que foram os jesuítas que, através de suas preces, influenciaram
Mem de Sá, a rogar: “porque há de o francês conspurcado pelo crime feio da heresia, insultar teus
soldados cristãos e fiéis? (...) Olha, Pai Celeste, para os que carecem de todo recurso. Estende a
o bondosa e sinta teu furor justiceiro a raça inimiga” (Anchieta 1563 - 1970: 217).
No prosseguimento do relato Anchieta escreveu: “Não houve demora (...) eis que Deus
chama um ministro do exército alado Manda-lhe que corte os espaços com as céleres asas
afugente os inimigos do posto altaneiro, insulflando-lhe o terror pelas trevas da noite” (1563 -
1970: 217). Ocorreu então que apenas o terrível temor transpôs os umbrais altaneiros da
primeira porta, já todos de dentro começam a empalidecer (...) Em breve é a fuga por rochas e
ondas. Sem demora, sem descanso: o temor agarra-se aos ossos” (1563 - 1970: 217). Assim,
continua Anchieta, tamanho era o terror que o Senhor Deus onipotente lhes metera nas mentes e
corões apavorados! Nos aflitos arraiais lusos espalha-se em breve o boato da fuga pelos
rochedos e abandono do forte” (1563 - 1970: 219).
Findo o combate, os portugueses “entram finalmente nas casas desertas. Dentro se achava
número enorme de munições, cuja fôrça não poude segurar os Franceses” (Anchieta 1563 - 1970:
219). Segundo Anchieta, “encontrava-se aí um grande móvel, cheio de livros que encerram
doutrinas crivadas de impiedades e erros. Martim Lutero os compôs com mente perversa (...) e o
petulante Melanton de coração mal-cheiroso (...) Calvino, a serpente de coleio variado e
horrendo” (1563 - 1970: 221).
281
Antes de terminar, o padre fez uma referência à controvérsia sobre a Eucaristia, quando
escreveu: a geração de Calvino rejeita com impiedade o alimento celeste, nem crê que as
espécies de pão encerram a Cristo (Anchieta 1563 - 1970: 221).
Nóbrega tinha escrito a respeito da guerra:
“A maravilha de Nosso Senhor (a primeira teria sido dar coragem a
Mem de para combater apesar da resistência dos seus homens), foy que
depois combatida dous dias e não se podendo entrar e não tendo já os nossos
pólvora mais (...) sabendo que na fortaleza estavão passante de 60 franceses de
peleja e mais 800 Indios e que já eram mortos 10 ou 12 homens com bombardas
e espingardas: mostrou então Noso Senhor sua misericórdia e deu tam grande
medo nos franceses e nos Indios, que com elles estavão, que se acolherão da
fortaleza e fugirão todos, deixando o que tinhão sem o poderem levar” (1560,
III: 244).
O relato de Anchieta no mesmo ano é muito semelhante:
quando nas naus não havia lvora e os que pelejavam em terra
desfaleciam , pelo muito trabalho, fugiram os franceses, desamparando a torre
e recolhendo-se às povoações dos bárbaros em canoas. De maneira que é de
crer que mais fugiram com o espanto, que lhes incutiu o Senhor, que com as
forças humanas” (1560, III: 268).
A opinião de Mem de Sá, não era diferente da de Anchieta e de brega, segundo ele, “o
obra foi de Noso Snõr que naõ quis que nesta terra prãtase gente de taõ maos zelos e
pensamentos: eraõ luteros e caluinos: o seu exercicio era fazer guerra aos cristãos e dalos a comer
ao gentio” (1560 - 1965: 43).
Na carta de 1560, Mem de Sá escreveu que na fortaleza
282
auia nela setenta e coatro frances ao tempo que cheguei e alguns
escrauos: depois ẽtraraõ mais coarẽta: dos da nao e outros que andauaõ em
terra, e avia muito mais de mil homẽs dos gentio da terra, tudo gente escolhida
e t bons espingardeiros como os franceses, e nos seriamos cento e vinte
homes portugueses e cento e coarenta dos do gentio, os mais desarmados e com
pouca vontade de pelejar” (- 1965: 42-43).
Dez anos depois, quando Mem de Sá foi pedir indenização pelos danos da guerra, o
número dos inimigos aumentou um pouco, eram “majs de cento e vinte francezes e mill e
quinhentos yndios” (1570 - 1965: 68). O número se altera novamente segundo o depoimento do
cavaleiro real, Sebastião Álvares: “dizião que avião nas ditas fortallezas majs de çento e vinte
homens francezes e averião oito çentos yndios tamojos” (1570 - 1965: 74).
Do lado francês, de uma referência de um panfletista anônimo na Histoire des choses
memorables que na edição posterior foi suprimida:
os portugueses que tomaram sua fortaleza de Coligny, em Valois,
não encontraram qualquer resistência interna porque Villegagnon,
surpreendido por uma apreensão de que os selvagens iriam comê-lo (partiu
para França sabendo o que lhe tinha sido revelado por um oráculo, que ele
restituiria o império papal), não organizou a companhia com pessoas
necessárias para defesa do lugar, apesar de que alguns eram valentes e
tinham experiência com as armas; todavia, na medida em que estavam
acompanhados de pessoas que não eram aguerridas e estavam mal
preparadas, não conseguiram atenuar o furor do inimigo
les Portugallois qui on prins sa forteresse de Colligny en Valois,
n‟ayant trouué aucune resistance dedans. parce que ledict Villegaig. estant
surpris d‟une apprehension que les sauuages le viendroyent manger (se retira
en France saignant qu‟il luy estoit reuelé par oracle qu‟il restitueroit l‟empire
283
papal) n‟auoit pas ordenné telle cõpagnie de gens necessaires pour la defense
d‟un tel lieu, combien qu‟au nõbre il y en fust quelques uns vaillans & bien
experimentez aux armes, toutesfois d‟auant qu‟ils estoyent accompagnez de gẽs
mal aguerris, mal entretenus, du tout attenuez la fureur de l‟ennemy” (1561: 5).
As outras versões francesas disponíveis sobre a guerra são de Thevet, que consagrou, no
entanto, poucas páginas ao fato. Na Cosmographie, Thevet, primeiramente, contou desta forma a
tomada do forte:
ora, nosso forte foi tomado pelos portugueses e Maragatos, que
advertidos por esta fortaleza vizinha enviaram dois anos antes, após a
conclusão da fortaleza, 26 navios guerreiros e alguns barcos a remo e, com
esse equipamento, sitiaram o forte e o tomaram. Todavia, (...) havia dez
homens dentro, sem víveres nem munições, os outros estavam em terra
firme com o capitão Bois-le-Comte.
Os portugueses prosseguindo seu empreendimento foram recebidos
e apoiados com tamanha alegria e coragem por esse pequeno número de
sitiados que, para cada francês morto, ficaram mais de vinte e seis dos
seus. Mas, por fim, depois de 19 dias de cerco, rederam o local (...) os
inimigos não obstante tais convenções e promessas, assim que colocaram os
pés em terra pilharam e saquearam tanto o que estava no forte como o que
eles encontraram na ilha. E, não satisfeitos, escravizaram essas pobres
pessoas que se renderam à sua fé
or, fut nostre fort prins par les Portugais & Margageaz, lesquels
aduertis de ceste forteresse qui les auoisinoit, y enuoyerent deux ans apres la
perfection d‟icelle vingtsix nauires de guerre, & quelques vaisseaux à rame, &
auec tel equipage assiegerent ledit fort, & le prindrẽt: toutefois ce ne (...) qu‟il
n‟y eut que dix hommes dedans, sans viures ne munitions aucunes, le reste
estant en terre ferme auec leur Capitaine nommé Boisleconte, car les Portugais
poursuyuant leur entreprinse furent si gaillardement receuz & soustenuz d‟vn
284
tel courage par ce petit nombre d‟assiegez, que pour vn François qui fut tué, il
y demeura plus de six vingts des leurs. Mais à la fin, ayans enduré le siege
dixneuf iours, rendirent la place (...) les ennemis nonobstant telles conuentions
& promesses, ayans mis pied à terre, pillerent & saccagerent tant ce qui estoit
au fort que ce qu‟ils trouueren en l‟Isle. Et non contens de ce, emmerent
esclaues ces pauures gens, qui s‟estoient renduz soubz leurs foy (1575: 908).
Algumas páginas depois, Thevet forneceu outra versão:
Depois que Villegagnon partiu desse país para voltar para a
França, os portugueses que sempre estiveram na espreita para
surpreender nossas pessoas e se fazer senhores do forte, por causa dos
habitantes do país vizinho que estavam em terra firme, secretamente
enviaram uma armada com 22 navios e outros barcos a remo com
guerreiros bem equipados com artilharia e munição (...) nos tais barcos
estavam dois mil homens, ou em torno disso, para atacar e defender
quando fosse necessário. Assim que essa companhia chegou à ilha, eles a
encontraram desguarnecida, tanto por causa da partida do capitão como
porque os franceses estavam em terra firme (...) esse forte foi surpreendido
por uma grande tropa, foi necessário que os portugueses atacassem
durante bastante tempo, com muita fúria, apesar de não haver mais de
treze dos nossos dentro, mal armados e com pouca munição e víveres (...)
os que estavam dentro resistiram durante 21 dias, quando mataram um
bom número de inimigos. Por fim, vendo que não havia ordem para se
defender, que os víveres estavam escassos e que era impossível buscá-los
em terra firme, quando estavam a ponto de negociar para compor com o
inimigo, os atacantes colocaram os pés em terra e vieram furiosamente
assaltar o forte que eles tomaram e logo depois saquearam; colocando tudo
em pedaços, se fizeram mestres da artilharia francesa
285
apres que le seigneur de Villegaignon fut party de ce païs pour s‟en
venir en France, les Portugais qui estoient tousiours en aguet pour surprẽdre
noz gens, & se faire seigneurs du fort, & par consequent des habitans du païs
voisin, qui estoient en terre ferme, dresserent secretemẽt vne armee de
vingtdeuz Nauires, & autres vaisseaux de guerre à rames, bien equippez, tant
d‟Artillerie que d‟autres munitions (...) audits vaisseaux meirent deux mil
hommes, ou enuiron, pour assaillir & defendre quand il seroit besoing. Dés que
ceste companie est arriuee en l‟Isle, ils la treuuent desgarnie, tant pour le
depart dudit Capitaine, que aussi pource que les François estoient en terre
ferme (...) ce fort estant ainsi surprins, & par vne si grande trupe, si fault-il que
les Portugais le battissent long temps, & auec grande furie, iaçoit que les
nostres ne fussent que treize dedans, & ceux mal armez, & à peu de munition &
viures, (...) ceux de dedans tindrent vingt & vn iour entiers, non sans tuer bon
nombre des ennemis. A la fin, les nostres voyant qu‟il n‟y auoir ordre de se
defendre, & que viures leurs defaillans, il estoit impossible d‟en auoir de terre
ferme, comme ils estoient sur le poinct de parlementer, pour composer auec
l‟ennemy, les assaillans meirent pied à terre, & vindrent furieusement donner
l‟assault au fort, qu‟ils prindrent peu apres, & saccagerent, mettant tout par
pieces, & se feirent maitres de l‟Artillerie Françoise (1575: 910).
Em 1588, Thevet apresentou uma terceira versão do episódio. O forte teria sido tomado
por causa da discórdia entre aqueles que Villegagnon tinha deixado dentro/ discord de
ceux que Villegagnon avoit laissé dedans” (: 272). Além disso,
como os portugueses foram advertidos que o chefe tinha vindo
para cá, logo depois vários barcos grandes e médios vieram de Portugal
para esse país (...) eles foram tão suficientemente advertidos pelos traidores
e pelos espiões que Villegaganon tinha deixado lá, que dois mil portugueses
puderam entrar nessas grandes embarcações de guerra, quatro galeões,
dez navios e quatro pequenos barcos de guarda
286
advertis que furent les Portugais que le chef estoit pardeçà, bien tost
aprés plusieurs vaisseaux grands, et moyens vindrent de Portugal en ces païs
là, (...) estans assés advertis par les trahistres, et espions du reste de ceux, que
Villegagnon avoit laissés pardelà, tellement que lesdits Portugais deux mil
qu‟ils pouvoient estre dans si grands vaisseaux de guerre, quatre galliens, et
dix navires, et quatre pataches (: 272).
Número de
Combatentes
Mem de
Sá 1560
Nóbrega
1560
Mem de
Sá 1570
Sebastião
Álvares
1570
Thevet
1575a
Thevet
1575b
Thevet
1588
Portugueses
120 +
18
2000
74
2000
Tupiniquin
140
Franceses
74 + 40
60
+ de 120
+ de 120
10
13
10
Tupinambá
1000
800
1500
800
Os portugueses não mencionam o tempo que permaneceram no local, de acordo com
Mem de Sá, o combate teria começado: “hũa sesta feira quinze dias de março (...) e todo aquele
dia e o outro pelejamos sem descançar, de dia nem noite” (1560 - 1965: 42), segundo Sebastião
Álvares a peleja durrou a sesta feira depois do mejo dia em diantee e toda a noite seguinte e ao
sabado todo dia e noite do sabado fogirão e se forão em allmadias e outras embarquaçojs pera a
terra firme” (1570 - 1965: 74). Thevet primeiro escreveu que o cerco levou 19 dias (1575: 908),
depois, “dezoito dias” / “dix huit jours” (1588: 272).
74
Nota-se que Thevet não faz diferença entre portugueses e índios, o número provavelmente corresponde aos
inimigos como um todo.
287
O que os depoimentos de 1570 mencionam é que Mem de Sá, após a guerra no Rio de
Janeiro, “e despois de ser tudo desbaratado se fora a são viçente onde prouera a dita terra e posera
em paaz por ho gentio estar allevantado(João de Araújo - 1965: 71). Em seguida, tornando o
governador de São Viçente pera esta capitania viera ter a capitania do espirito santo onde o gentjo
della estauva allvoraçado e o dito governador trabalhara e fizera tudo o que foi neçesario pera o
quietar e sosegar e por em paz com os cristãos e o mesmo fizera em porto seguro” (João de
Araújo - 1965: 72).
O mesmo afirma Sebastião Álvares:
tomada a ditaa fortalleza ho dito governador deu em duas alldeias no
dito Rjo de Janeiro que estauão allevantadas contra nos e muj fortes e as
destrojo e se foi a são Vicente onde achou muito gentio alleuantado que poz em
paaz e asoçegaar a terra e na dita yda gastou sete hou oito mezes puquo majs ou
menos (...) foi a capiatania do espirito santo e achou hay o gentio alleuantado
(- 1965: 75).
***
Apesar da tomada do forte de Coligny a guerra no Rio de Janeiro o terminou. Em 1561,
Manuel de Araújo escreveu de Londres que “estes dyas pasados escrevi a Sua alteza de como
partiam pera a costa da mina mallageta e daly ao Brasil a tornar a fazer ho castello de Villaganon
quatro naos franceses muyto bem armadas e com muyta gente e municon” (Serrão - 1965: 47).
No ano seguinte, Brás Cubas, provedor da capitania de o Vicente, pediu
a Vossa Alteza olhar por esta terra he mamde a prover de polvora de
bombarda e d‟espingarda e pelouros e chumbo e bombardeiros porque tem
muita necessidade diso e com brevidade porque he muito a meude combatida
dos comtrayros he tendo gramde arreceo que se perqua se Vossa Alteza a não
prove loguo e não mandar povoar o Rio de Janeiro porque nam aja framceses
que favoreção estes contrarios que são muito nosos vizinhos porque os
288
framceses lhe dão muitas armas de foguo e muita polvora com que lhes dão
muito hanimo pera cometerem o que quiserem como fazem” (Serrão 1562 -
1965: 50).
Essa segunda fase do conflito que se caracteriza sobretudo pela participação indígena (dos
Tupinambá do Rio de Janeiro, conhecidos como Tamoio; e dos Tupiniquim de São Vicente), foi
praticamente toda ela narrada por Anchieta em duas cartas: uma escrita de São Vicente, em 16 de
abril 1563, e outra de Salvador, em 9 de julho de 1565.
No início da carta de 1563, Anchieta escreveu:
“nisto nos ocupamos, estando sempre esperando os embates dos
inimigos, de uma parte - dos contrários destes, com quem vivemos, e, de outra,
dos mesmos nossos, que estão espargidos pelo interior do país, como muitas
vezes tenho escrito. E destes nossos nos temíamos mais, por ser ladrões de casa
e haver muitos anos, que nos têm ameaçado com guerra” (: III, 548)
75
.
Em seguida, o padre narra o caso de uma índia, viúva de um cristão que foi aprisionada
pelos seus parentes tupiniquim, que disseram que ela havia se suicidado. Continua o padre:
acabado isso, começaram logo a apregoar guerra contra Piratininga, coisa que a muito
tencionavam, porque tão carniceira é essa gente que parece impossível poder viver sem matar” (:
III, 193). Em 3 de julho de 1562, Anchieta fica sabendo que índios contrários planejavam um
ataque a Piratininga. Entre sete a oito aldeias tupiniquim vieram à vila, sendo que os catecúmenos
e os cristãos se colocaram na defesa. Houve também alguns que não tomaram partido e se
refugiaram na selva. O ataque começou na manhã do dia 9 de julho.
75
Utilizo aqui a tradução de Viotti (Edição Loyola 1984).
289
Anchieta fala em contrários, mas não fica claro se são Tupinambá ou Tupiniquim.
Quando ele se refere à índia que teria se suicidado, está tratando de um Tupiniquim, mas, mais à
frente escreve: “e agora, no tempo que estes índios se levantaramrefere-se aos índios “destoutra
banda do Norte, (...) contrários, inimigos também desses nossos índios” (: III, 563). O que se sabe
é que no dia 11 de julho, muitos Tupiniquim foram flechados, mas nenhum morreu, os aliados se
uniram e trouxeram de volta quarenta cativos, sendo que três morreram e alguns fugiram.
Anchieta também faz uma alusão a “diversos assaltos que os inimigos vinham fazer pelos
caminhos, nos quais sempre levaram a pior” (: III, 553).
Durante a quaresma daquele ano, Anchieta conta que ele, um padre e um intérprete foram
à vila de Santos, depois a Itanhaém, onde foram recebidos com entusiasmo pelos índios.
Contudo, após esse rápido refrigério, o padre retoma o tema dos contrários, que têm justiça
contra os portugueses” que “tomaram e mataram mais de quarenta almas cristãs de escravos e
filhos de portugueses” (: III, 563). E, nessa linha, vai terminando a carta:
“vendo o Pe. Manuel da Nóbrega os grandes trabalhos e inquietação de
toda esta capitania, com as contínuas incursões destes contrários, se
determinou, encomendando isso muito a Nosso Senhor, de ir tratar pazes com
eles (...) E havendo já dois anos e mais que Nosso Senhor lhe isso a sentir, e
faltando sempre oportunidade, agora quis Deus abrir caminho para tal” (: III,
563-564).
Foi ao refletir sobre esses ataques que Anchieta escreveu: “esta guerra foi causa de muito
bem para nossos antigos discípulos, que são agora forçados pela necessidade a deixarem as
habitações todas, em que se tinham espalhado, e a recolherem-se todos em Piratininga (: III,
553-554). Em seguida completou: “para esse nero de gente, o melhor pregação que a
espada e a vara de ferro, na qual, mais que nenhuma outra, é necessário que se cumpra o compelle
290
eos intrare”. Vivemos agora nesta esperança, se bem que postos em perigo por estar toda a terra
levantada (: III, 554).
No mesmo ano em que fez essa declaração, Anchieta publicou os Feitos de Mem de
(1563). Neste livro, uma passagem que ilustra aquilo que Viveiros de Castro chamou de
“virada em direção à linha dura” (1993 -2002: 224n.):
“se o prazer destes bárbaros, justamente nisso consiste, atirar-se sempre
em novas e ferozes batalhas, provocar os outros à guerras em que sempre
viveram, rasgar-lhes com as unhas a carne, e piores que tigres, fincar dentes em
lanhos palpitantes de vida: devem agora aprender a esquecer seus furores, criar
almas meigas e corações de cordeiro? Acaso não voltará sobre nós o feroz
inimigo todas as iras e todos os braços devastando a cidade, se faltarem outros
em que saciem a sede de sangue? Como é possível julgar que se mudem agora
costumes que se embeberam na torrentes de séculos?” (1563 - 1970: 131).
Dois anos depois, Anchieta descreveu o seu envolvimento e o de brega na guerra no
Rio de Janeiro. As informações sobre esse período do conflito posterior à França Antártica e
anterior à chegada de Estácio de Sá, descritas pelo padre de forma cronológica, foram todas
retiradas da carta de 1565, que começa assim: é chegada a esta terra a tal estado que já não
devem esperar novas de fruto na conversão da gentilidade” ( - 1984: 210).
Ele lembra: “nas cartas passadas toquei algo das grandes opressões que dão a esta terra
uns nossos inimigos chamados tamuya, do Rio de Janeiro, levando continuamente os escravos,
mulheres e filhos dos cristãos, matando-os e comendo-os, e isto sem cessar” (1565 - 1984: 210).
Diante desse quadro, determinou o Padre Manoel da Nóbrega de tratar pazes com eles”
(Anchieta 1565 - 1984: 210) e assim “de se partir em dois navios bem aparelhados à terra dos
contrários” (Anchieta 1565 - 1984: 211). Antes de ir ao Rio de Janeiro, Anchieta e Nóbrega, em
291
19 de abril de 1563, partiram, em uma canoa, em direção a Bertioca. Permaneceram durante
cinco dias e quando os navios estavam aparelhados, em 25 de abril, foram em direção a Iperoig.
No dia 6 de maio, quando ainda estavam no mar, três canoas de índios se aproximaram e
propuseram que dois portugueses fossem à terra, enquanto três ou quatro deles ficariam no navio
para conhecê-los. Os que desceram em terra lá dormiram uma noite e na volta disseram que os
índios queriam que eles permanecessem lá. Anchieta conta que: desejando eles que saíssemos à
terra a ver seus lugares (...) saímos e conosco oito ou nove portugueses, ficando muitos inimigos
nos navios, não como reféns, mas de sua própria vontade, como em casa de amigos” (1565 -
1984: 212).
Anchieta, já bem familiarizado com o idioma tupinambá, diz que foi às aldeias pregar em
voz alta, “como é seu costume, dizendo-lhes que se alegrassem com nossa vinda e amizade, que
queríamos ficar entre eles e ensinar-lhes as coisas de Deus, para que eles lhes desse abundância
de mantimentos, saúde e vitória de seus inimigos” (1565 - 1984: 212).
O padre sabia que:
a principal razão que os moveu a quererem a paz não foi o medo que
tivessem dos cristãos, aos quais sempre levaram de vencida, fazendo-lhes
muitos danos, nem necessidade que tivessem de suas coisas, porque os
franceses que tratam com eles lhas dão com tanta abundância, assim roupas,
como ferramentas, arcabuses e espadas, que as podem os cristãos comprar a
eles, mas o desejo que têm de guerrear com seus inimigos tupis, que até agora
foram nossos amigos” (1565 - 1984: 212-13).
Anchieta disse também que 12 índios jovens foram em um navio em direção a São
Vicente e outros cinco “dos mais estimados” foram em outro navio ao Rio de Janeiro, “onde está
a maior força dos seus” (1565 - 1984: 213). Em Iperoig, Anchieta e Nóbrega começaram a
292
doutrinar os índios para modificar-lhes os costumes relacionados ao canibalismo e o que
consideravam luxúria. No dia 14 de maio, foram morar na casa de um dos Principais que tinha
ido ao Rio de Janeiro. Segundo Anchieta, os índios de Iperoig tinham mais de duzentas canoas
para guerrear, em que cabiam entre 20 e 30 pessoas.
No dia 23 de maio, Pindobuçu chegou a Iperoig com seu irmão e genro. Apesar de ser
ameaçado por este último, Anchieta diz que Pindobuçu, vendo que os padres diferiam dos outros
cristãos, pois não possuíam nem queriam mulheres, se afeiçoou a ele.
Em 27 de maio, Ambi chegou com dez canoas disposto a trocar os reféns pelos
portugueses. No mesmo dia também chegou um navio que ia em direção ao Rio de Janeiro.
Ambiré foi conversar com o capitão que lhe deu cartas para serem levadas aos franceses que
estavam no Rio de Janeiro para tratar da paz. Ambiré desceu em terra,
com muitos dos seus com um arco e flechas na mão, vestindo uma
camisa, e assentando em uma rêde começou a tratar das pazes. E a tudo que lhe
dizíamos se mostrava incrédulo e duro, trazendo à memória quantos males lhe
haviam feito os nosso, e como a ele mesmo havia já prendido em outro temo
com o pretexto de pazes, mas ele por sua valentia, com uns ferros nos pés,
saltara do navio e havia escapado de suas mãos, e com isso arregaçava os
braços e bulia com as flechas, contando suas valentias” (Anchieta 1565 - 1984:
219).
No dia seguinte, Pindobuçu disse a Anchieta que fosse até o navio trazer o capitão à terra
para conversar com Ambiré. Anchieta e o capitão foram até a aldeia encontrar Ambiré que
“insistiu muito que lhe havíamos de dar e matar e comer dos principais de
nossos índios que se haviam apartado dos seus, assim como em outro tempo
havíamos feito a eles (...) E como nisso altercárssemos um pouco, concluiu ele
293
com poucas palavras: pois que sois escassos dos contrários, não tenhamos
pazes uns com os outros‟” (1565 - 1984: 221).
Para se desembaraçar de Ambiré, o capitão disse-lhe que não tinha autoridade para
prometer-lhe o que desejava.
Ambiré partiu deixando lá um francês, que de acordo com Anchieta,
dele soubemos como todos os seus que estão no Rio são „fiéis‟ e o
papistas e não têm missa, antes perseguem e ainda matam aos que a dizem, que
eles crêem em Deus. Deste mesmo e dos índios que de lá vinham, soubemos
como de França foram ali enviados 12 frades, que segundo parece deveriam ser
da Ordem de São Bernardo, os quais fizeram casa e mantimentos um ano que aí
estiveram e viviam apartados dos seus, dos quais eram perseguidos e
maltratados, porque eram papistas e diziam missa (...) [alguns] não conhecendo
bem as raizes, comeram uma vez a mandioca assada, e houveram de morrer, o
qual este francês contava com muito gosto e prazer que disso tinha” (1565 -
1984: 221-222).
Outros religiosos franceses, como ocorreu na Flórida quando um índio incendiou o forte
quando foi cozinhar um peixe (Capítulo 2), “queimando um pedaço de mato cortado, para nele
plantar mantimento, pegou fogo às casas e queimou toda sua pobreza, que tinham, e ornamentos
da Igreja” (Anchieta 1565 - 1984: 222).
O capitão que ia para o Rio de Janeiro, provavelmente depois que Ambiré “aconselhou
(...) que se tornassem porquê, se fosse adiante, punha-se em grande perigo de ser morto com
todos os seus” (1565 - 1984: 219), voltou para o Vicente, onde chegou antes dos índios que
iam combater a fortaleza de Bertioca.
294
Anchieta conta que foram 15 dias de muita angústia e que “desta maneira vivíamos em
contínuos temores, esperando cada dia por canoas, assim do Rio, como das que eram passadas à
Beriquioca” (1565 - 1984: 219). Aque, no dia, 9 de junho, quando os índios estavam no bosque
e Anchieta e brega na praia, avistou uma canoa, das sete ou oito que vinham do Rio de
Janeiro.
Anchieta comentou:
este foi um outro trabalho, o maior, aos menos um dos maiores que o
padre Manuel da brega teve em sua vida, porque estando ele mui fraco de
suas contínuas indisposições e, junto com isso, a vida que ali se passava, se
queria correr não podia, se o corria punha-se em perigo de vida. Todavia
correu quanto pôde, até o fim da praia (...) o Padre ia com botas e calças que
comumente traz pelas chagas que tem nas pernas” (1565 - 1984: 224-225).
Anchieta contou também que para atravessar um rio e tentar chegar a uma canoa levou
Nóbrega nas costas, mas não aguentou todo o trajeto e foram se refugiar atrás de umas árvores,
até que, com muita dificuldade, conseguiram chegar à aldeia. Lá, um dos filhos de Pindobuçu foi
para uma das canoas “querendo ser ele quem levasse a honra de nossa morte” (1565 - 1984: 225).
Segundo Anchieta, os índios que vinham do Rio de Janeiro não confiavam neles, pois
diziam: “é certo que tratais verdades nestas pazes? Olhai que os franceses nos dizem que não
pretendeis senão que vamos juntos a vossas terras, e matar-nos, e que vós haveis de fugir e
deixar-nos em branco” (1565 - 1984: 226).
Por outro lado, o padre afirma que Cunhambebe estava do lado dele, de modo que, no dia
10 de junho, Anchieta foi até a aldeia de Cunhambebe, que há dias o esperava e já tinha inclusive
construído uma casa onde pudesse rezar missa.
295
No dia 20 de junho, chegou um bergatim para buscar Anchieta, pois em São Vicente
imaginava-se que as pazes estavam negociadas. No entanto, naquele mesmo dia chegaram dez
canoas do Rio para se juntarem as outras 11 que tinham acabado de partir de Iperoig em direção a
São Vicente. No dia 21 de junho, Nóbrega voltou para São Vicente e deixou Anchieta em
Iperoig, apenas na companhia de um homem devoto (1565 - 1984: 228).
Em 25 de junho, os índios de Iperoig decidiram matar um escravo do companheiro de
Anchieta, o que foi feito de acordo com o ritual do canibalismo, juntamente com um contrário.
Três dias depois, Anchieta soube de um menino que acabara de ser enterrado pela sogra da mãe.
A moça, que tinha sido deixada pelo primeiro marido, casou-se novamente e nesse meio tempo
engravidou, tornando a criança mestiça dos dois pais
76
. Anchieta desenterrou o menino. Assim,
diz o padre: “a este espetáculo tão novo, concorreram muitas mulheres da aldeia e com elas um
índio com uma espada de pau para quebrar-lhe a cabeça, ao qual disse que o deixasse que eu o
queria tomar por meu filho e com isto se foi(1565 - 1984: 231). Sem jeito, apesar das mulheres
o quererem pegar o menino para la-lo, uma velha disse-lhe como cortar o umbigo. Anchieta
conta que ela: tomou-me a mão, dizendo-me não o cortasse por , que morreria e me ensinou a
cortar” (1565 - 1984: 231). A criança viveu apenas um mês, pois não houve mulher que o
amamentasse.
Em de julho, chegaram mais cinco canoas do Rio e cinco dias depois, algumas canoas
de São Vicente que, de passagem para o Rio de Janeiro, trouxeram de volta Nóbrega. Um índio
que vinha do Rio advertiu aos de São Vicente que os cristãos planejavam matá-los. Estes,
também ameaçaram os do Rio, que decidiram fugir levando consigo índios de Iperoig. Anchieta
diz que conversou com Pindobuçu e Cunhambebe e que “desfez” o mal-entendido, antes que, no
76
Para os Tupinambá, a concepção de uma criança era realizada exclusivamente pelo pai por meio de aportes
sucessivos de sêmen, a mãe era apenas um recipiente.
296
mesmo dia, chegassem do Rio outras dez canoas, cujo Principal vinha em retaliação à morte de
outro Principal morto pelos índios de São Vicente. permaneceram cinco dias, provavelmente
dispostos a cooptar os índios para guerra no Rio de Janeiro, o que não ocorreu porque Pindobuçu
afirmou sua aliança com os cristãos, principalmente com Anchieta, de quem esperava que
intercedesse para que tivesse longa vida.
Pindobuçu contou a Anchieta que na aldeia de Cunhambebe, que ficava próxima de onde
eles estavam, os índios “queriam matar um contrário, para com ele fazer festa àqueles do Rio, que
ainda não eram idos” (1565 - 1984: 236). Apesar de advertido por Pindobuçu de que não deveria
se locomover para , Anchieta decidiu ir. Foi então que o padre presenciou o diálogo cerimonial
entre o matador e o cativo: “matai-me, que bem tendes de vos vingar em mim, que eu comi a
fulano vosso pai, a tal vosso irmão, e a tal vosso filho” e que fez o comentário sobre o cativo, que
“mais parecia ele que estava para matar os outros do que para ser morto” (1565 - 1984: 236).
Nóbrega voltou a Iperoig para encontrar Cunhambebe e irem juntos para Itanhm, a sete
guas de São Vivente, formar uma aliança com alguns Tupi que, no momento lhe eram
simpáticos, tais como, o próprio Cunhambebe e Pindobuçu. No dia seguinte à sua chegada, houve
uma guerra entre os Tupi. Neste momento da carta de Anchieta, fica-se sabendo que além do
conflito que existia entre São Vicente e Rio de Janeiro, havia outro entre os Tamoio do Campo
que habitavam o rio Paraíba e a vila de Piratininga.
Cunhambebe passou um s e meio em São Vicente (1565 - 1984: 238), e, no dia 14 de
agosto retornou a Iperoig com um contrário que havia tomado (1565 - 1984: 242). Cinco dias
depois chegou um índio do Rio. No dia 5 de setembro, Pindobuçu foi a São Vicente com o
companheiro de Anchieta, deixando o padre sozinho em Iperoig, na espera de poder ir embora.
Uma índia alegou que se o padre permanecesse lá os do Rio e os do Campo iriam matá-lo, outras
297
porém queriam que ele ficasse como garantia pelos seus maridos que haviam partido. No dia 14
de setembro, Anchieta, enfim, partiu de Iperoig com outros 20 índios. No caminho encontram
índios do Rio que disseram que os de Piratininga haviam matado um deles. O padre chegou a
Bertioga no dia 21 de setembro.
Anchieta entendeu que a partir de então ocorreu verdadeiramente fim da paz e princípio
de nova guerra”, quando os Tamoio do rio Parba chegaram à vila de Santos e índios que ainda
o tinham atacado foram até Piratininga (1565 - 1984: 246). Anchieta diz que estes últimos
disseram-lhe que “não nos fiássemos dos do Rio de Janeiro, porque estão mui soberbos com as
muitas coisas que lhes dão os franceses” (1565 - 1984: 246).
Em Bertioga, Anchieta escreveu que gostaria que “pudesse o governador, por quem
esperávamos, povoar o Rio de Janeiro em paz” (1565 - 1984: 247). Mas, por outro lado, afirmou,
logo em seguida, que dos do Rio já quase tínhamos o desengano que não queriam pazes, porque
tínhamos certa notícia que eu havia mui bem alcançado em Iperuí dos mesmos índios que tinham
cerca de 200 canoas juntas” (1565 - 1984: 247).
Anchieta conta que chegaram a Bertioga 10 ou 11 canoas dos índios do Rio, que Nóbrega
aconselhou as autoridades que as retivessem, mas que não foi acatado, e que depois chegaram
outras sete canoas que capturam alguns índios e dois mestiços. Assim, continuou Anchieta:
estando as coisas nestes termos chegou a armada que esperávamos da Bahia (1565 - 1984:
248).
***
No início de 1564, escreveu Mem de Sá, “por o gentio do Rjo de Janeiro não fiquar de
todo pasifiquo (...) mandei huma armada bem pequena pera tornar ao Rio de Janeiro e por estaa
298
capitania não estar de todo pasifiqua e não parecer as pesoas da terra que a deuia deixar/ madei
estacio de saa meu sobrinho houvjdor gerall(1570 - 1965: 68-69).
Segundo Anchieta, quando a armada com Estácio de chegou ao Rio, “quase cem
canoas, acometeram uma nau e um barco(1565 - 1984: 248) de portugueses que se dirigiam a
São Vicente e, entre os índios, havia franceses. O rei Dom Sebastião escreveu que: “achara o dito
capitão moor huũa naao framceza e tomara per forças darmas (...) e que depois pellejara no dito
Rio com mais tres naaos framcezas e com perto de dozẽtas almadias do gentio do Rio que vinhã
em sua companhia” (1568 - 1965: 60).
No dia 19 de março de 1564, um navio pequeno enviado por Estácio de a São Vicente
saiu de com brega e Anchieta em direção ao Rio. Antes, porém, eles passaram em Iperoig
onde Anchieta recolheu pertences que havia deixado.
Chegaram ao Rio de Janeiro à meia-noite do dia 31 de março e logo desceram em “uma
ilheta, que foi dos franceses”, onde “acharam todas as casas onde os nossos pousavam queimadas
e alguns corpos de escravos que ali haviam morrido de doença, desenterrados e as cabeças
quebradas, o que haviam feito os inimigos” (Anchieta 1565 - 1984: 249).
A armada de Estácio de Sá, dois dias antes, tinha saído em direção a São Vicente, mas por
causa dos ventos retornou ao Rio de Janeiro no dia de abril, um domingo de Páscoa. Naquele
dia, uma missa foi celebrada na ilha de Villegagnon e, em seguida, todos voltaram para São
Vicente, pois a armada precisava se restabelecer, segundo Anchieta, com determinação de tornar
a fazer povoação ao Rio de Janeiro, assim por desarraigar dali a sinagoga dos contrários calvinos,
como porque ali é a maior força dos tamoios” (1565 - 1984: 250). O padre Quiricio Caxa também
estava em São Vicente na época e escreveu:
depois de ter escripto a V. R. o iro Jodas novas e bom sucesso no
Rio de Janeiro, chegou aqui a nau capitanea, que lá ficara quando elle veiu, para
299
se concertar por estar muito desbaratada (...) Ao tempo que o Irmão de lá partiu
ficavam esperando por um combate mui grande de contrarios e Francezes (...)
Juntou-se muito Gentio que seriam uns 3000, que foi o que se poude saber, e
vieram em 160 canôas com ... espadas, espingardas e bombardas, que os
Francezes lhes dão (...) ajuntaram-se com elles em sua ajuda tres naus francezas
de Lutheros e Calvinos, as quaes elles foram appellidar ao Cabo Frio, onde ellas
estavam” (In Cartas avulsas 1565 - 1988: 478-479).
A nau capitanea foi combatê-los, mas sofreu danos e mortes. Estácio de veio em
socorro, quando se deparou com 160 canoas de Tamoio e com franceses que lhe disseram que
esperavam em outubro uma grande armada da França. Segundo o depoimento de João de Araújo,
ele governador mandara ao Rjo de Janeiro por o gentio estar de guerra
estacio de saa seu sobrinho e ho prouedor moor bras fraguoso con huma armada
pequena os quajs forão ao dito Rjo onde tiverão guerra con os gentios e por não
poderem asentar nem fazer povoaçao se forão a são viçente donde estaçio de
saa tornara sem o dito brás freguoso e fizera huma pouoação apesar do gentio
serquada de taipas de mão muito bem comsertada domde fazia muita guerra ao
gentio na qual esteue ate que foi ele governador llaa ter sostentado a sempree
con muito Risquo de sua pessoa” (1570 - 1965: 72).
São semelhantes as palavras de Sebastião Álvares: “acharão os yndios muito de guerra e
tiuerão com elles pelleja e não poderão ter pouoação e depois foi o dito estaçyo de saa ao dito Rjo
e fez uma vila que sostentou com muito trabalho” (1570 - 1965: 75). De acordo com Mem de Sá,
seu sobrinho fez “huma villa e a sostentou perto de dous anos com muita gerra e trabalhos sem
outro socorro alguum majs que o de deus e ho que lhe Eu mandaua sostentandoo sempre a mjnha
custa e dando ele mesa a muitas pesoas” (1570 - 1965: 68-69).
300
Leonardo do Valle escreveu de São Vicente que em dezembro de 1564 lá chegou uma
canoa de Tamoio, cujos índios foram presos, pois Estácio de Sá desejava levá-los para o Rio para
negociar pazes. Estes índios, no entanto, fugiram da cadeia e entre o final de fevereiro e o início
de março, “logo tornaram a se vingar com algumas quatro canôas” (In Cartas avulsas 1565 -
1988: 470). Primeiro foram a São Vicente, onde cativaram alguns índios, e oito dias depois até
Santos. Na época, o padre também escreveu:
é o grande aperto de fome em que se começam a vêr os soldados e
capitães do Rio de Janeiro, faltos de muitas cousas necessarias a que de
continuo peleja contra Francezes, Lutheranos e Tamoios em sua propria terra,
sendo tantos em numero que parece haver cento para cada um dos nossos”
(Leonardo do Valle In Cartas avulsas 1565 - 1988: 474).
Em 1566, Mem de Sá escreveu que
“mandou sua Alteza outra armada pera o Rjo (de acordo com as fontes
essa seria, portanto, a terceira armada enviada por Portugal) e me mandou que
fose em pesoa por ser emformado que os francezes pelo sertão e junto ao maar
fazião mujtas fortallezas e se tinhão apoderado dos Jndios e estauão jaa muito
fortes com muita artelharia” (1570 - 1965: 69).
Ao chegar ao Rio, Mem de combateu a fortaleza de “biraoaçu merin”, quando foram
presos nove ou dez franceses e Estácio de Sá, flechado, morreu. Poucos dias depois, Mem de
conta:
“mandei dar em outra fortaleza do parnapocu avia majs de mil homeens
de guerra e muita artelharia e tres dias a combaterão continoamente (...) e
estando prestes pera yr a outra fortaleza mais forte que todas em que estauão
muitos francezes não housarão a esperar e deixaraõ a fortaleza a qual tinha tres
serquas fortisimas muitos balluartes e casas fortes” (1570 - 1965: 69).
301
Em seguida, o governador afirma:
por o sitjo onde estácio de saa hedefiquou o ser que pera majs que
pera se defender em tempo de guerra/ com parecer dos capitais e doutras pesoas
que no dito Rjo de Janeiro estauão escolhi hum sitio que parecia mais
comviniente pera hedefiquar nelle a cidade de são sebastião o qual sityo era de
hum grande mato especo cheo de muitas arvores e grossas (...) fiz a Jgreja dos
padres de Jhesu onde agora Residem (...) dey ordem e fauor ajuda com que
fizessem outras muitas casas telhadas e sobradadas tendo ysto feito, por se
revellarem huns primçipais que estauam em humas fortalezas de muitas serquas
dei sobre eles e os desbaratei e se matarão muitos” (Mem de 1570 - 1965:
69-70).
Mais uma vez, como tinha acontecido em 1560, Mem de ficou sabendo que os índios
no Espírito Santo estavam “alevantados”, por isso se dirigiu para lá, deixando outro sobrinho,
Salvador Correa de Sá, como capitão da cidade do Rio de Janeiro.
***
Em 1567, o padre Balthasar Fernandes esteve em São Vicente de onde escreveu que os
padres faziam visitas regulares a Itanhaem e, ao repeito do Rio de Janeiro disse que: “o
Governador (estava) em paz com o Gentio da terra, e os Francezes estão botados já fóra della por
guerra, ainda que todavia o deixam de vir algumas náus ao Cabo Frio a fazer e levar Brasil,
contra quem não póde ir a nossa armada” (In Cartas avulsas - 1988: 508-509).
Anos mais tarde, ele acompanhou a armada que destruiu os Tamoio em Cabo Frio (infra).
Segundo Hausser, d‟après M. de la Roncière, quatre navires français reparurent en juin 1568
devant l‟île de Villegaignon. Ils eurent la surprise de trouver la place bien défendue et furent
obligés de s‟enfuir jusqu‟à leur mouillage habituel du cap Frio” (1937: 114).
302
De acordo com Lestringant, a partir de então, o foco de resistência Tamoio se concentrou
na “Casa da Pedra”, um forte construído na entrada do canal de Itajuru, de onde era possível
controlar a lagoa de Araruama (1989 - 1996: 44).
No dia 27 de agosto de 1575, o governador do Rio de Janeiro Antonio Selema e o padre
Balthasar Fernandes (supra), que tinham feito parte da “junta em que se definiu a questão da
guerra justa e do resgate dos índios” (Viotti 1984: 328n.), foram em uma expedição destruir o
local. Segundo Anchieta “os tamoios, que daquela guerra ficaram escravos, foram muitos e
repartidos com os soldados” (1584 - 1989: 141). Ainda segundo Lestringant,
en 1582 l‟amiral Philippe Strozzi, cousin de la reine mère Catherine de
Médicis projette de reconquérir le littoral du Rio de Janeiro et, qui sait, de
faire rentrer le Brésil, une première fois perdu, dans l‟orbitre fançaise. Un
désastre naval au large de La Terceira, dans l‟archipel des Açores, lors d‟un
affrontement décisif avec l‟armada espagnole du marquis de Santa Cruz, au
mois de juillet 1582, brise net ce rêve de revanche (1989 - 1996: 45).
Em 1597, Knivet saiu de Paraty com setecentos portugueses e dois mil Guainá em seis
canoas para combater os Tamoio, que segundo os índios de Parati, os tinham desafiado e
poderiam ser alcançados dentro de um mês. Depois que os Tamoio não foram encontrados (1625
- 2007: 92- 114), Knivet se separou da expedição com outros 12 portugueses e foi até uma aldeia
Tamoio, que reunia 30 mil índios, onde passou mais de seis meses, sendo o único branco a não
ser devorado, pois disse a eles que era francês. Certo dia, Knivet narrou que um ancião,
começou a conversar comigo dizendo sentir falta do tempo em que estavam em Cabo Frio, pois
podiam comerciar com os franceses e nada lhes faltava, mas que agora não tinham facas nem
machadinhas, ou outras coisas, e se achavam tão desprovidos” (1625 - 2007: 92- 123-124).
***
303
Nos Feitos de Mem de Anchieta associou a guerra contra os franceses à vingança da
morte do filho de Mem de Sá, Fernão de Sá, flechado na batalha do rio Cricaré ou de São Mateus,
no Espírito Santo, assim como, à morte do bispo Pedro Fernandes Sardinha. Segundo Anchieta,
estava o Governador valente decidido a vingar-se dessas mortes cruéis e a domar o feroz
inimigo com represálias: se maiores combates não o chamassem a outro campo(1563 - 1970:
193). Nesta última frase, ele refere-se ao Rio de Janeiro. O mesmo escreveu Nóbrega sobre a
mudança nos planos de Mem de Sá, quando armada enviada de Lisboa para combater os
franceses chegou:
“sendo o Governador de muytos requerido que fossem vingar a morte do
Bispo e dos que com elle hião, por ser hum grande opprobrio dos Christãos e
ser causa dos Indios ganharem muyta soberba porque morreo ali muyta gente e
muyto principal: elle se fazia prestes aparelhando muytos Indios da Bahia, mas
isto estorvou a vinda da armada que veyo” (1560, III: 241)
77
.
É interessante notar que dos quatro livros que comem o épico de Anchieta sobre as
atividades guerreiras de Mem de Sá, apenas o quarto trate da guerra no Rio de Janeiro. Pois,
enquanto os cronistas repetem que os índios guerreavam constantemente entre si, demonstrando,
portanto, o caráter fractal da guerra ameríndia, para o padre, a guerra do Rio de Janeiro fazia
parte de um conjunto que reunia portugueses de um lado e índios de outro.
É possível que o conceito de Confederação dos Tamoio, utilizado desde o romantismo
brasileiro para designar uma aliança tupinambá contra os portugueses fundada a partir do Rio de
Janeiro, tenha sua raiz. Contudo, se é possível afirmar que havia, pelo menos desde meados do
século XVI, uma aversão generalizada dos índios em relação aos portugueses, essa, certamente
77
A armada a quebrega refere-se é aquela enviada por Portugal para auxiliar Mem de Sá na guerra no Rio de
Janeiro.
304
existia no plano das ideias, pois, como salientou a leitura de Perrone-Moisés de Clastres, os
ameríndios formavam uma confederação contra o Estado, pois segundo a antropóloga,
“longe de fazerem guerra contra algo que não conheciam, muitos povos
indígenas que fizeram guerra contra os portugueses no Brasil colonial haviam
passado por experiências de aldeamento e aliança e sabiam, portanto,
exatamente contra o quê lutavam. Sob esse aspecto de guerra de resistência ao
projeto colonial, certos casos fazem irresistivelmente pensar na formulação de
Clastres (1982): tratar-se-ia, de fato, de guerras contra o Estado, contra a
submissão ao poder da Coroa portuguesa, por intermédio de seus representantes
na colônia. Com Clastres, seria possível retomar sob outra perspectiva a
afirmação (...) de que a guerra era a negação do projeto colonial” (2003: A32).
***
Três índios foram citados por Anchieta no desenrolar da guerra na Guanabara,
Cunhambebe, Pindobuçu e Ambiré. Traço agora um perfil dos dois primeiros de acordo com
fontes não jesuíticas, pois ambos apresentam um mesmo problema, a saber, se foram os mesmos
índios que estiveram com os jesuítas e com os franceses. Em seguida, apresento um
deslocamento interessante dentro do catolicismo em relação ao terceiro índio.
Cunhambebe:
Cunhambebe era o principal chefe dos Tupinambá. Hans Staden, que esteve no Rio de
Janeiro entre 1549 e 1554
78
, conta que o conheceu quando era cativo e que o índio que tinha
reunido em Aribab vários chefes indígenas, pediu que o levassem lá, pois queria -lo. Antes
desse encontro, ambos tinham ouvido falar um do outro. Quando Staden disse-lhe que sabia
que era um grande guerreio este, que usava uma grande pedra verde nos lábios e um colar com
78
Nos anos de 1547 e 1548 ele havia estado em Pernambuco.
305
muitas conchas, começou a caminhar orgulhosamente na frente dele. Cunhambebe pediu
informações sobre os portugueses e os Tupiniquim e quis saber o motivo pelo qual o arcabuzeiro
tinha atirado contra eles de Bertioga. Disse-lhe também que o sabia inimigo por não ser capaz de
conversar com um francês, que ele chamava de filho. Após jactar-se de ter matado vários
portugueses, falou-lhe: que tinha ajudado a aprisionar e a comer cinco portugueses; êstes
todos haviam pretextado que eram franceses, e tinham assim mentido (Staden 1557 - 1974: 98).
Ao fim desse colóquio, Cunhambebe recomendou àqueles que estavam encarregados de Staden
que o guardassem com muita atenção. (Staden Cap. 28)
O segundo encontro entre os dois ocorreu quando rios chefes tupinambá se reuniram
para atacar Bertioga com o intuito de capturar inimigos. Foi a primeira vez que Staden partiu em
uma expedição guerreia e isso aconteceu por causa da insistência de Cunhambebe. Cerca de 14
de agosto de 1554, época de piracema, partiram em 38 canoas, cada uma com 28 pessoas.
Na noite em que chegaram o local, Cunhambebe, que liderava a expedição, percorreu o
campo e, então, incitou a todos a prestarem atenção aos seus sonhos. Dançaram até tarde,
esperançosos. No dia seguinte de manhã, os chefes se reuniram em torno de um recipiente de
peixe cozido e começaram a narrar os sonhos. Quando avistaram os inimigos que estavam em
cinco canoas, se esconderam atrás de uma rocha para surpreendê-los, mas estes perceberam a
movimentação e começaram a remar rapidamente. O ataque durou quatro horas, alguns formam
mortos, outros feitos prisioneiros (Staden Cap. 41).
Um dia depois de voltarem, Staden foi à cabana de Cunhambebe propor um resgate para
os prisioneiros, mas ele respondeu-lhe que não queria que eles se juntassem novamente aos
inimigos. Foi então que Cunhambebe roendo um osso inimigo, depois de ser repreendido por
306
Staden, disse-lhe uma frase que se tornou célebre: sou um jaguar. Está gostoso(1557 - 1974:
132).
Nas Singularités de la France Antarctique, Thevet diz que conheceu Cunhambebe quando
esteve em uma região próxima ao rio de Vases, onde moravam muitos franceses por causa da
abundância de peixes e das facilidades de navegação. Segundo ele, Cunhambebe chefiava essa
região, onde tinha seu “paláciodecorado do lado de fora por cabeça de portugueses
79
que, no
entanto, não se diferenciava das outras habitações indígenas. Sua aldeia e território eram
fortificados. Assim que soube da chegada dos franceses, Cunhambebe veio ao encontro deles,
onde permaneceu por seis dias.
Thevet conta também que Cunhambebe vivia em guerra perpétua com os portugueses e os
índios que habitavam a região em direção ao rio da Prata (o Vicente) e que o índio passou a
maior parte do tempo narrando suas vitórias e ações belicosas contra os inimigos; dizia ter
matado e comido mais de cinco mil, e que com gestos ameaçava os portugueses que ele
denominava de peros (1557 - 1997: 206-207).
Thevet repete essa história, com mais detalhes e duas mudanças, na Cosmographie
universelle. Ao invés de seis dias, Cunhambebe teria passado um mês (1575: 924) junto aos
franceses; as cinco mil vítimas se tornaram dez mil (1575: 924 e 1588: 247).
Segundo Thevet, Cunhambebe era o rei dos selvagens (1575: 952), “o mais temido diabo
da região, que para nos ver percorreu quase 80 ou 100 léguas
80
/ le plus redouté diable de
toute la contree, lequel nous estant venu veoir de prest de quatre vingts ou cent lieuës”. Em
seguida, ele afirma que o canibalnos mostrou em seus propósitos ter virtudes extensas
escondidas sob esta brutal alimentação e, sobretudo, opinião de que a alma é imortal /
79
Staden também conta que dava para ver umas 15 cabeças aos pés da cabana de Cunhambebe (1557 - 1997: 101).
80
Antiga medida que corresponde a em torno de 4 quilômetros. O percurso narrado pode ser calculado como de,
aproximadamente, 400 quilômetros.
307
nous monstra par ses propos, de grands rayons de vertu, cachez soubs ceste brutale nourriture,
& sur tout l‟opinion de l‟imortalité de l‟ame” (Thevet 1575: 923).
Depois que Cunhambebe comeu e bebeu com os franceses, ele arrotou e rindo disse que
sua alma se alegrava dentro do seu corpo. Batendo as mãos no estômago, ombros e coxas (como
eles fazem quando falam com afecção) se jactou de ser mais hábil que os Maragatos, pois fazia
deles guisados de carne (1575: 924). Thevet apresentou o retrato dele, que depois foi reproduzido
no Les vrais portraits et viés des hommes illustres (1584), ao lado de figuras ilustres, além das
citadas na introdução, Alexandre, César e Francisco I (Thevet 1557/Lestringant 1997: 26),
Aristóteles, Platão, cero, Erasmo, e outros seis reis indígenas do Novo Mundo, entre eles,
Paracoussi (Thevet 1558/ Lestringant 2006: 19-20).
Segundo Thevet, Cunhambebe era alto e forte, tinha cerca de oito pés de altura
81
e era o
mais cruel e temido entre todos os “reis” das províncias vizinhas. Ele dava conselhos aos
franceses sobre como guerrear, quais rios deveriam tomar posse, quais ilhas se aproximar e para
construir fortes de defesa. Nesse encontro, os franceses deram-lhe uma espada e roupas
vermelhas e verdes, facões e tesouras. Os discursos e arengas, quando narrava suas façanhas
guerreiras e ameaçava os portugueses inimigos, duravam duas horas. Dizia: comi tantos
portugueses e Maragatos; sou grande, poderoso e forte. Existe algum homem que possa se
comparar a mim? (1575: 924).
Thevet continua: o havia homem que, vendo-lhe caminhar nu, batendo nos ombros e
nas coxas, falando com uma voz grossa, repugnante e terrível, o tremesse ao ouvi-lo falar.
Villegagnon (nosso capitão) o recebeu e nenhum dos seus homens ousou rir com medo de irritá-
lo, assim como os outros índios. Cunhambebe era venerado por todos os selvagens, mesmo os
81
Cerca de 2 metros e 60 centímetros.
308
que não habitavam aquela região. O modo como fortificou sua aldeia com plataformas de terra e
bastões foi copiado dos portugueses e servia para se defender deles (1575: 924 e 1588: 247).
Thevet também diz que viu Cunhambebe apreender duas caravelas portuguesas e se apoderar de
toda pólvora assim como de outras máquinas de guerra (1575: 942 e 1588: 222).
Para Thevet, esse rei tinha um grande coração e era realmente muito generoso, seu único
prazer era ser digno de ser estimado, honrado e reverenciado por ter matado e comido várias
pessoas. Ele afirma também que Cunhambebe tinha muito prazer em observá-los durante as
preces, que se ajoelhava e estendia as mãos para o céu, como os via fazer, e que tinha tanta
curiosidade de saber o que diziam que pediu que lhe ensinassem alguma oração (1575: 924 e
1588: 247).
Thevet ainda menciona a preferência pela uxorilocalidade tupinambá, à exceção dos casos
em que o índio se destacava como um grande guerreiro, quando então lhe era admitida a
poligamia, como Cunhambebe, que tinha oito mulheres além de outras cinco fora de casa (1575:
933 e 1588: 194).
De acordo com Thevet, Cunhambebe morreu junto com outros chefes indígenas,
estimados entre oito mil e nove mil homens/ estimée de huit à neuf mil hommes(1588 -
2006: 222), de uma doença pestilenta que os Tupinambá atribuíram ter sido enviada por
Villegagnon (1575: 923). Já segundo Barré, essa febre matou mais de oitocentos índios (Capítulo
2). Mesmo sendo bárbaro, diz Thevet, creio que se ele vivesse mais, teria feito grandes coisas
com a ajuda dos franceses (1575: 924). Apesar de dizer em outra passagem que quando
encontrou Conÿan-bep, ele tinha, no mínimo, cem anos/ estoit il aagé de cent ans pour le
moins” (1588: 194).
309
Thevet ainda diz que o significado de Cunhamebe é o nome do pássaro urubu /
Quoniambec (...) est le nom de l‟oiseaux vaultour(1588 - 2006: 220). Por fim, acrescenta que
quando estava na América, Cunhambebe tomou seis barcos cheios de portugueses e de
selvagens inimigos que, ao procurarem se defender, foram na maior parte mortos e o resto
pego, morto e comido / print six basteaux tous charges de Portuguais, et de sauvages ses
ennemis, lesquels se mettans en defense furent la plus part tués, le reste pris, tués, et
mangés (1588 - 2006 : 296).
Segundo Capistrano de Abreu, o Cunhambebe a que se refere Anchieta não era o mesmo
índio que esteve com Thevet e Staden. O historiador sugere que o segundo era filho do primeiro.
Em termo de localização geográfica, segundo Staden, Uberaba devia ser distante de Bertioga
cerca de trinta milhas, 66 quilômetros (1557 - 1974: 87). Anchieta afirma que Iperoig estava
cerca de vinte léguas de Bertioga, 132 quilômetros (1565 - 1984: 211), sendo que a aldeia de
Cunhambebe ficava na praia e era próxima de Iperoig (Anchieta 1565 - 1984: 236).
Para Viotti, a descrição (de Anchieta) corresponde à topografia de Ubatuba, com o Rio
Grande e a colina, que a ele se segue. O que confirma a tradicional identificação entre Iperuí
(Iperoig) e Ubatuba” (1984: 254n.).
Pindobuçu:
Assim como Cunhambebe, também se pode questionar se Pindobuçu foi o mesmo chefe
tupinamque esteve com Thevet e Anchieta. Na Histoire de deux voyages, Thevet escreveu: o
rei Pinda-houssoub, que é o nome de um grande anzol/ “Pinda-houssoub, qui est le nom
d‟un grand hameçon(1588 : 245). Ele também afirma que teve um familier (criado) chamado
Pinda, que significa um anzol / qui signifie un hameçon” (1588: 159 & 1575: 916). Por outro
310
lado, Thevet reproduziu nos três livros que escreveu sobre a experiência antártica que quando
chegou a Cabo Frio entre outros, veio, no lugar onde colocamos os pés em terra, o rei do
país, chamado Pindo, que significa palmeira na sua língua/ entre autres vint, sur le poinct,
que nous mettions pied en terre, un Roy dudit païs, nommé Pindo, qui signifie Palmier en leur
langue” (1575: 196). E essa declaração está de acordo com Anchieta, que afirmou que Pindobuçu
quer dizer “Folha grande de palma” (1565 - 1984: 217).
Segundo Thevet, Pindo,
o rei, estava nu, carregava sua espada de madeira sobre os ombros
e junto com outros dois da sua escolta nos saldou um após o outro, com
essa palavra que estão acostumados: Carajubé, ou Erajubé
82
, que quer
dizer ao mesmo tempo, que boa vida e sejam muito bem-vindos. Nós lhes
respondemos com apenas uma sílaba, dizendo Pa
83
, que significa: “vocês
também”. O morbischia ouassoub, quer dizer, esse grande rei, nos
presenteou com uma certa farinha feita de raiz e com o seu cauim, que é
uma bebida composta de milho grande como ervilha e chamada, na sua
terra, Avaty
lequel Roy toud nud qu‟il estoit, & ayant son espee de bois sur les
espaules, avec deux de sa suytte, nous salua les uns apres les autres, de ce mot
à eux accoustumé, Carajubé, ou Erajubé, que vault autant à dire, que bonne
82
No “Colloque de l‟entrée ou arrivée en la terre du Brésil”, de Léry, (cap. XX da Histoire), Eré-ioubé é a primeira
palavra dita pelo Tupinambá, que foi traduzida como: “Você veio?” / “Es-tu venu?” (1578 - 1992 : 187).
83
No prefácio da Histoire, Léry transcreveu a seguinte declaração de Thevet que não consegui encontrar na
Cosmographie: ele teve mais certeza do que tinha escrito do modo como os selvagens viviam, depois que
aprendeu a falar a língua deles/ qu‟il fut plus certain de ce qu‟il a écrit de la manière de vivre des Sauvages,
après qu‟il eut appris à parler leur langue (1578 1992: 29). Ao contrário, localizei rias passagens em que
Thevet pede ajuda aos truchements para se comunicar com os índios, sendo que, quando ele diz: foi o que
experimentei quando estava lá e tenho convicção que não podia falar bem a língua deles no início, como agora
eu começo a entender” /ce que i‟ay experimenté, estant par delà & estoy bien marry, que ie ne pouuois aussi bien
parler leur langue, au cõmencement, comme ie commençois à l‟entendre”, parece remeter a um aprendizado de
gabinete e não de campo. Contudo, na sequência da crítica de Léry, ele escreveu que apesar de Thevet dizer aquilo:
de fato, não obstante em outro lugar, tão prova que Pa, que nesta língua brasileira quer dizer sim, ele
expõe como „e vocês também / en fait néanmoins ailleurs si mauvaise preuve que Pa, qui en cette langue
brésilienne veut dire oui, est par lui exposé, „Et vous aussi‟?” (1578 - 1992: 29).
311
vie, & soyez le tresbien venu: & nous leur respõdions d‟une syllabe seule,
disans, Pa, qui signifie, & à vous aussi. Le morbischia ouassoub, c‟est à dire,
ce grand Roy, nous feit present de certaine farine faicte de racine, & de leur
Cahouin, que est un breuvage composé de mil gros comme pois, & se nomme
en leur langue, Avaty” (1575: 916).
Em outra passagem da Cosmographie Thevet escreveu:
fui visitar um rei dessa região, chamado Pindabuçu. Estando
acamado, presa de uma febre persistente, ele me perguntou o que era feito
das almas depois que saíram do corpo. Respondi-lhe que eles iam para
junto de Tupã, no alto, no céu, com aqueles que viveram bem e que não
se vingaram da inria de seus inimigos; ao que o rei deu fé, e caiu em
grande contemplação (...)
Dois dias mais tarde, mandou-me buscar, e estando eu diante dele,
me disse: „Vem cá, eu te ouvi dizer grandes coisas de um Tupã que pode
tudo. Rogo-te que fales a ele por mim, e faze com que me cure; assim que
eu estiver de e com saúde, eu te darei grandes presentes, e terei prazer
em me paramentar como tu, e usar barba comprida, e honrar Tupã como
tu fazes‟. Ao que respondi que, se ele queria curar-se, e crer Naquele que
fez o céu, a terra e o mar, e não crer mais (...) em seus Caraíbas e
feiticeiros, e que se não mais se vingasse, nem comesse seus inimigos, como
fizera toda sua vida, (...) sem dúvida ele se curaria, e sua alma, após a
morte, não seria atormentada pelos espíritos malignos, como eram as de
seus antepassados.
Ao que esse senhor régulo me respondeu que com prazer, uma vez
curado pelo poder de Tupã, ele se conformaria a todos os artigos que eu lhe
propusera, com a exceção de um só, que era o de não se vingar de seus
312
inimigos; e que, mesmo se o próprio Tupã lho ordenasse, ele não poderia
assentir, e se por acaso o fizesse, mereceria morrer de vergonha
84
Un Roy aussi de ce païs, nommé Pinda-houssoub, que je fus voir, luy
estant au lict, attaint d‟une fievre continue, me demanda que devenoient les
ames apres qu‟elles estoient sorties hors du corps: et comme je luy eusse
respondu, qu‟elles alloient avec Toupan, hault au ciel, avec ceux qui avoient
bien vescu, et qui ne s‟estoient vengez de l‟injure de leurs ennemis, y adjoustant
foy, entra en grand contemplation (...) Deux jours apres il m‟envoya querir, et
estant devant luy me dist, Vien-ça, je t‟ay faire grand compte d‟un Toupan, qui
peut toutes choses: Je te prie parle à luy pour moy, et fais qu‟il me guerisse, et
lors je seray debout, et en santé je te ferai de grands presens, et veux estre
acoustré comme toy, et porter mesme grand barbe, et honorer Toupan comme
tu l‟honore. Auquel je feis response, que s‟il vouloit guerrir, et croire en iceluy,
qui a fait le ciel, la terre, et la mer, et qu‟il ne creust plus (...) à leirs Caraibes
et enchanteurs, et qu‟il ne se vengeast, ny mangeast ses ennemis, comme il
avoit fait toute sa vie (...) sans doute il gueriroit, et que son ame apres sa mort
ne seroit tourmentee des esprits malins, comme estoient celles de ses peres et
meres. A quoy ce maitre Roytelet me fit response, que volontiers estant guery
par la puissance de Toupan, qu‟il accordait presentement tous les articles que
je luy avois proposez, hors mis un, qui estoit de ne venger de ses ennemis: et
encores quand Toupan luy commanderoit de ne le faire, il ne scauroit
accorder: Ou si par cas fortuit il l‟accordoit, il meritoit mourir de
honte (1575: 923).
Viveiros de Castro fez o seguinte comentário a respeito:
“nota-se que o „régulo‟ indígena não argumenta com Thevet em termos
metafísicos, recusando a chantagem cris em nome de uma soteriologia
diferente, mas em termos éticos, com a simples afirmação de um imperativo
84
Sigo a tradução de Viveiros de Castro em “O mármore e a murta”. A mesma passagem, com pequenas
modificações, encontra-se em Histoire de deux voyages (1588: 245-246).
313
categórico. Note-se, enfim, que para ele, como para o principal de Nóbrega, é a
vingança o ponto inegociável, não o canibalismo a ela associado” (1993 - 2002:
198).
Thevet narrou o desdobramento dessa passagem: quando vi e conheci a obstinação
desse pobre macaco de Deus, deixei-o doente como estava e ele começou a gritar para mim
belas injúrias, dizendo que se ele pudesse se levantar, me quebraria a cabeça, pois nem
Tupã, nem eu, quisemos curá-lo/ Quãd je vi & cogneuz l‟obstination de ce pauvre singe de
Dieu, je le laisse tout malade qu‟il estoit, il commença à crier apres moy à belle injures disant,
que s‟il pouvoit lever, il me rõproit la teste, pour ce que Toupan, ne moy, ne l‟arions point voulu
guerir (1575: 923).
Na Histoire de deux voyages, Thevet conta que, dentre os índios doentes que atribuíram
a causa a Villegagnon e ao desejo dele de vingança, estavam quatro filhos do Roy Pinda”.
Ameaçado de ser massacrado por cerca de seiscentos índios, Thevet diz que um truchement
advertiu a companhia, e fez com que esse rei gentil, seus filhos e os da sua companhia,
entendessem que logo estariam curados/ advertit la compagnie, faisant entendre tant à ce
gentil Roy, qu‟à ses enfants, et à ceux de leur compagnie, que bien tost ilz seroien gueris” (1588 -
2006: 221).
Apesar das variações de nomenclatura, algo comum na ortografia do francês arcaico, além
do fato de que a carta de Anchieta de 1565 a que tive acesso está em português moderno e da
distância entre Cabo Frio, onde Thevet encontrou o índio e Iperoig, e o local onde Anchieta
esteve com ele, é possível que ambos estivessem falando da mesma pessoa.
314
Ambiré:
Ambiré foi um líder tupinam referido apenas por Anchieta, que fez dele um
personagem no Alto de São Lourenço (1586). Antes disso, porém, o padre contou que o conheceu
em Iperoig, em 1563. Escreveu que ele era “grande inimigo dos portugueses, por causa dos
franceses de quem é grande amigo, e tem a um deles por genro, amancebado com sua filha, de
que tem uma neta” (1565: 218). Esse genro francês lutou ao lado de Ambiré contra os
portugueses.
Segundo Anchieta, quando Ambiré,
encontrou com o navio que ia tratar as pazes ao Rio de Janeiro, de que
era capitão JoAdorno, tio do nosso irmão Francisco Adorno e sabendo que
o era português entrou no navio, abraçando-o e mostrando muito
contentamento das pazes, e deu aviso de como os índios que vinham com ele
determinavam de tomá-los às mãos, e matá-los, aos quais ele tinha tirado de
seu mau propósito.
E dali se tornou levando cartas do capitão aos franceses moradores do
Rio, em que lhe pedia dessem favor para o cumprimento da paz que tratava. E
aconselhou a José Adorno que se tornasse, porquê, se fosse adiante, punha-se
em grande perigo de ser morto com todos os seus, e mandou dizer a seu sogro
por um índio seu irmão, que ia em o navio, que consentisse nas pazes. Com o
que se tornou o navio e chegou aonde nós estávamos no mesmo dia as dez
canoas” (1565 - 1984: 218-19).
De acordo com Anchieta, Ambiré
era homem alto, seco, e de catadura triste e carregada e de que
tínhamos sabido ser mui cruel, do que contarei um exemplo. Uma de suas
mulheres, de umas vinte ou mais que tinha, lhe fez adultério, à qual tomou e
315
cravou num pau de pés e os e com uma espada a abriu pelos peitos e barrigas
e depois mandou queimar” (1565 - 1984: 219).
O padre repetiu o mesmo episódio, quando tratou “dos casamentos dos índios do Brasil”:
como me contaram de Ambiré, um grande principal do Rio de Janeiro,
naturalmente crudelíssimo e carniceiro, e grande amigo dos franceses, o qual
dalgumas vinte mulheres que tinha, por lhe fazer uma adultério, a mandou atar
a um pau, e abrir com um manchil pela barriga. E o adúltero, que era seu
sobrinho, andou algum tempo ausentado dele, com medo de ser morto; mas isto
bem parece que foi lição dos franceses, os quais costumam dar semelhantes
mortes, porque nunca índio do Brasil fez, nem tal morte deu” (1584 - 1989: 77).
Após essa breve referência na Informação dos casamentos dos índios do Brasil, Anchieta
voltou a se referir a Ambiré, no Auto da festa de São Lourenço (1586). Ali, Ambiré foi
transformado no primeiro dos dois criados do Diabo (Guaixará), a quem foi confiada a tarefa de
influenciar as aldeias, fomentando os vícios dos índios, cuja fonte é posta na cauinagem.
Depois de Ambiré descrever algumas de suas façanhas, Guaixará pergunta-lhe que
recurso usastes para que não nos fugissem”, o que Ambiré responde que apenas as velhas, que
fazem feitiços e mandingas instrdas pelo Diabo, lhe bastaram (: 6-7). Ambiré, em seguida,
narra seus projetos de “arrastar outras presas nessa guerra pouco santa” (: 7). Diz que Tupinam
de vários locais já lhe pertencem e, que,
Todos os tamoios foram
Jazer queimando no inferno.
Mas há alguns que ao Padre Eterno
fiéis, nesta aldeia moram,
livres do nosso caderno” (1586: 7).
316
Por outro lado, Ambiré se queixa: “Estes maus Temiminós, nosso trabalho destroem(:
7). E faz uma alusão à destruição do forte francês Rio de Janeiro:
Eu lembro de outra batalha
em que Guaixará entrou.
Muito povo te apoiou,
e, inda que lhes desses forças,
na fuga se debandou.
Não eram muitos cristãos.
Contudo nada ficou
da força que te inspirou,
pois veio Sebastião,
na força fogo ateou” (1586: 9)
85
.
Ocorre um encontro entre o Santo e o Diabo, no qual este último começa se apresentando:
Sou Guaixará embriagado,
sou boicininga, jaguar,
antropófago, agressor,
andirá-guaçu alado,
sou demônio matador” (: 13).
Depois é a vez de Aimbiré:
Sou jiia, sou socó,
o grande Aimbirê tamoio.
Sucuri, gavião malhado,
sou tamanduá desgrenhado,
sou luminosos demônio (: 13).
85
A outra vez, é o Anjo que faz a seguinte referência: “os franceses seus amigos, inutilmente trouxeram armas. Por
nós combateram. Lourenço, jamais vencido, São Sebastião flecheiro” (: 25).
317
Quase quatrocentos anos depois da publicação do Auto de São Lourenço, em 1984, o
Conselho Indigenista Missionário (CIMI) publicou o livro: Confederação dos Tamoios: a união
que nasceu do sofrimento, que trata do período de 1554 a 1567 e tem ilustrações dos índios
Tapirapé.
Neste livro, Ambiré é um sobrevivente do ataque à aldeia Uruçumirim, no Rio de Janeiro.
Após o massacre, ele foi levado preso junto com o pai para São Vicente (1984: 22). Ambos
tornaram-se escravos no engenho de açúcar de Brás Cubas, governador de São Vicente, onde
Ambiré passava o tempo lembrando as mortes dos parentes (: 27). Depois que seu pai morreu,
Ambiré reuniu os companheiros e combinou uma fuga do engenho (: 29). Ele se reuniu com
outros chefes, entre eles Cunhambebe e Pindobuçu, e formaram a confederação dos Tamoio (:
33-35). O primeiro chefe da Confederação foi Cunhambebe, mas depois de sua morte por causa
de uma peste, Ambiré foi escolhido para substituí-lo (: 57).
Trata-se de um livro didático que narra que na época do governador-geral Mem de Sá, “os
portugueses atacaram a aldeia de Aimberê”, quando os Tamoio tinham arma de fogo. Tinham
arma de fogo igual aos brancos. Armas que eles ganharam dos franceses” (: 63). Assim,
“Aimberê dividiu o grupo dele em duas turmas. Uma turma ficou
lutando com os índios. A outra turma foi atrás dos portugueses medrosos. Os
Tamoio não cansavam de lutar. Eles sabiam que era preciso lutar para não ficar
ESCRAVO. Eles sabiam que era preciso lutar para continuar GENTE LIVRE”
(: 66-67).
Após algumas vitórias, os Tamoio foram negociar o tratado de paz. Naquela época, “os
portugueses ficaram com muito medo dos Tamoio. Foram pedir a ajuda de Nóbrega. Foram pedir
a ajuda de Anchieta”.(: 94) Aimbe prendeu Anchieta para que pudesse ir junto com Nóbrega
318
negociar as condições da paz impostas pelos Tamoio ao governador, que as aceitou (: 96-99).
Eles então “viviam livre de novo na sua Terra: plantando, pescando, caçando, dançando” (:113).
Porém, “a paz não durou muito(: 115), pois os portugueses não cumpriram a palavra e
atacaram Iperoig. Os Tamoio então mudaram a estratégia e comaram a atacar em grupos
pequenos. Entretanto, os portugueses eram fortes, tinham canhão ... Aimbeestava vendo
que os Tamoio iam perder. Aimberê sempre lutava com coragem, sempre falava a verdade,
sempre respeitava as pessoas” (: 139). Mas os portugueses cortavam a cabeça dos índios mortos.
Enfiavam a cabeça do morto num pau. Enfiavam de maldade! para mostrar que estavam
ganhando. Então, para se defender os índios também matavam” (: 142). Um dia, morreu
Aimbe (: 143). Foi assim que “os Tamoio reunidos morreram para defender a Terra deles!
Morreram para defender a liberdade deles”! (: 146-47).
Como se pode notar, os quatrocentos anos que separam as publicações de Anchieta da do
CIMI mostram uma grande mudança na forma como a Igreja Católica percebeu a atuação desse
índio na época da colonização. Como notou Hélène Clastres, de povo sem fé, lei ou rei, os Tupi-
guarani se transformaram no século XX em “teólogos da América do Sul”.
Ao analisar a atuação do CIMI junto aos índios, Judith Shapiro publicou dois artigos nos
quais desenvolveu essa observação de Clastres. No primeiro deles, a antropóloga mostrou como
os missionários no século XVI estabeleceram uma série de identificações entre os relatos
indígenas e a doutrina católica, de modo a poder traduzir aos índios os ensinamentos de que eram
portadores. Além disso, a
identification of shamans with the Devil was one major strategy
adopted by missionary priests in their struggle to capture the shamans‟
monopoly over the spiritual life of the Indians; the other was to deny that
319
shamans had any real powers at all and to view them instead as mere
charlatans who engaged in low forms of trickery” (Shapiro 1987: 130).
De acordo com Shapiro, com o surgimento do CIMI na década de 70, uma nova
orientação em relação aos índios foi proposta, cujo resultado foi o afastamento do proselitismo
em direção a uma potica advocacional. Essa forma de engajamento foi posteriormente
legitimada por uma nova leitura da incarnação, na qual os missionários passaram a seguir o
exemplo do Cristo, procurando incarnar nas culturas nativas. Neste sentido, o CIMI entendeu que
fé e religião poderiam permanecer dissociadas (1987: 133).
A partir de então, uma nova série de identificações começou a ser produzida, por
exemplo, ali onde os cronistas do século XVI escutaram dos índios que havia uma “terra sem
mal”; os missionários converteram na luta pela posse da terra. Apesar dessa diferença, o
comentário de Shapiro ao final do artigo: in brief, the pressing concern of today‟s radical
missionaries is less the conversion of the Indians than the conversion of the Catholic Church
(1987: 136), aproxima o CIMI dos católicos e dos protestantes do século XVI.
Isso porque, segundo l‟Estoile, a salvação dos índios era condição sine qua non da dos
padres, e, de acordo com Lestringant, os protestantes encontraram nos ameríndios uma antítese
da sua condição de predestinados à salvação.
No artigo de 1981, Shapiro analisou a atuação de três grupos missionários
contemporâneos, entre eles “Little sisters of Jesus”, que trabalhou junto aos índios Tapirapé que
ilustraram o livro do CIMI sobre os Tamoio e que seguiam orientações semelhantes em alguns
aspetos as do CIMI. A antropóloga conta que ao reencontrar esses missionários após quatro anos,
eles estavam orgulhosos de, ao adotar práticas indígenas, tais como sentar no chão ao invés de
320
usar mesas e bancos para comer, entre outras coisas, estarem se tornando “mais Tapirapé” (:
140).
Na mesma época, os missionários do CIMI, também buscaram “virar índio”, mas, como
observou Shapiro, desde que os índios pudessem igualmente se tornar “missionários” no
sentido de serem cooptados a lutar pelos mesmos ideais.
321
Capítulo 5- Ocidentalização ou indianização?
De modo geral, pode-se dizer que havia no século XVI dois projetos sobre o contato
interétnico. De um lado, aquilo que se pode denominar indianização, isto é, o modo de ser
indígena, ou o virar-índio, que, de fato, foi a opção de alguns europeus, sobretudo dos franceses,
principalmente antes da chagada dos jesuítas. A esse respeito, mais uma vez, foi Lestringant
quem colocou uma pergunta capital: Et si, au lieu de le dominer et de lui faire partager ses
valeurs, le colon était assimilé par le sauvage? (1992 - 1996: 181). De outro lado, havia o
projeto vencedor: a ocidentalização.
Logo que chegou à Baía, brega escreveu a Lisboa que encontrou homens pogamos,
como os índios: “nesta terra um grande peccado, que he terem os homens quase todos suas
negras por mancebas, e outras livres que pedem aos negros por molheres, segundo ho custume da
terra que é terem muitas molheres (1549, I: 119 grifo meu). Mas essa adoção dos costumes
indígenas não era exclusividade dos colonos, pois, um ano depois, uma carta endereça a mesma
pessoa em Lisboa, Nóbrega voltou ao tema, desta vez em latim:
um religioso sacerdote, movido pelo demônio, levou um dia um
principal duma Aldeia ao seu contrário para o matar e comer; e não o querendo
fazer o dito contrário, dizendo que para isso o queria tomar em guerra e o por
engano, aquele sacerdote começou a provocá-lo que era vil e pusilânime que
o matava o seu inimigo, até que o fez e comeu, sem nenhuma outra utilidade
daquele religioso senão que recebeu não sei que coisa pouca. Casos
semelhantes acontecem muito freqüentemente; e por isso digo que quanto mais
longe estivermos dos velhos cristãos, que aqui há, tanto se fará mais fruto”
(1550, I: 164)
86
.
86
Tradução Itatiaia 2000.
322
No ano seguinte, outra carta a Simão Rodrigues em Lisboa, brega escreveu: “andam
muitos filhos dos Cristãos pelo sertão perdidos entre os Gentios, e sendo Cristãos vivem em seus
bestiais costumes” (1551a, I: 269)
87
. No mesmo ano, em outra carta a Lisboa, o padre diz: “Avia
muy pouco cuidado de salvar almas: os sacerdotes que cá avia estavão todos nos mesmos
pecados dos leigos e os demais irregulares, outros apostatas e excomungados” (1551b, I: 285).
Também escreveu a D. João que “ho sertão está cheo de filhos de christãos grandes e pequenos,
machos e fêmeas, com viverem e se criarem nos custumes do gentio” (1551c, I: 290). Foi nesta
carta que Nóbrega escreveu uma frase que foi bastante comentada: “ho converter todo este gentio
mui facil cousa, mas ho sustentá-lo em boons costumes nam pode ser senam com muitos
obreiros, porque em cousa nenhuma crem, e estão papel branco pera nelles escrever vontade
(1551c, I: 291-292). Não “a inconstância da alma selvagem” está aí descrita, como também
muito se especulou sobre a noção dos índios como página em branco. Ainda nesta carta, Nóbrega
reporta-se aos “filhos de christãos que andão perdidos pollo sertão” (1551c, I: 292). Dois anos
depois, Nóbrega refere-se a petra scandali que, segundo o padre, era a vida de João Ramalho.
Em 1559, na carta em que escreveu a Tomé de Souza, da Baía a Lisboa, Nóbrega fez os
seguintes comentários:
“já se achou christão mastigar carne humana pera dar com isso bom
exemplo ao gentio. Outros matam em terreiro maneira dos Yndios, tomando
nomes, e o somente o fazem homens baixos e mamalucos, mas o mesmo
capitão, à vezes! Ó cruel costume! Ó deshumana abominação!” (III: 77).
87
Tradução Itatiaia 2000.
323
Diante desse quadro, Nóbrega, em 1561, escreveu de São Vicente a Roma, novamente - já
o tinha escrito em 1552 - sobre o seu desejo de fazer um intercâmbio entre crianças indígenas e
portuguesas. A respeito dos gentios, disse:
aqui é perigoso criá-los, porque têm mais ocasiões para não guardar a
castidade depois que se fazem grandes, mandem-se antes deste tempo à Europa,
assim dos mestiços, como dos filhos do gentio, e de nos enviem quantos
estudantes moços puderem para estudar nos nossos Colégios, porque nestes
o tanto perigo, e estes juntamente vão aprendendo a língua da terra, que é
a mais principal ciência para mais necessária, e a experiência tem mostrado
ser este útil meio. Porque alguns dos órfãos, que de Portugal enviaram, que
depois cá admitimos na Companhia, são agora úteis operários. Esta troca queria
eu fazer ao princípio, e enviei alguns mestiços, e deles um está agora em
Coimbra, mas fui avisado que o mandasse mais” (III: 363)
88
.
Essa impressão de indianização não era, no entanto, uma exclusividade dos jesuítas,
Gabriel Soares de Souza tamm fez referência a isso, quando escreveu:
“neste Rio Grande achou Diogo Paes de Pernambuco, língua do gentio,
um castelhano entre os Pitiguares, com os beiços furados como eles, entre os
quais andava havia muito tempo, o qual se embarcou em uma nau para Fraa,
porque servia de ngua dos franceses” (1587 - 2000: 12).
Contudo, diferente dos jesuítas, o colono não achava, talvez por causa do ano em que
escreveu, que esses procedimentos fossem motivo de preocupação, muito pelo contrário, o que
predomina em sua narrativa são relatos de aprendizados que os brancos adquiriram com os
índios, concebidos em termos de trocas culturais, como, por exemplo:
88
Tradução Itatiaia 2000
324
“serve esta carimã (raiz seca de mandioca) para os meninos que têm
lombrigas, aos quais se a beber na água, como fica dito, e mata-lhes as
lombrigas todas; e uma coisa e outra está muito experimentada, assim pelos
índios, como pelos portugueses. Da mesma farinha da carimã se faz uma massa
que posta sobre feridas velhas que têm carne pobre lhe a come toda” (1587 -
2000: 138).
A farinha era utilizada também “para os mordidos de cobra” (Soares de Souza 1587 -
2000: 138).
Havia também “Caraobuçu (...) amendoeira (...) da folha se aproveitam os índios (...) do
que também se aproveitam os portugueses, que têm necessidade desse remédio para curarem seus
males, de que muitos têm muitos” (1587 - 2000: 165)
89
.
Além de lidar com as doenças, Soares de Souza fala da alimentação:
costumam os portugueses, imitando o costume dos índios, secarem esta
pimenta, e depois de estar bem seca a pisam de mistura com o sal, ao que
chamam juquiraí, na qual molham o peixe e a carne, e entre os brancos se traz
no saleiro, e não descontenta a ninguém” (1587 - 2000: 146).
Assim como, que: “há outras ervas menores, pelos campos, de muita virtude, de que se
aproveitam os índios e os portugueses” (Soares de Souza 1587 - 2000: 170).
O colono também mostra admiração pelos conhecimentos indígenas, pois afirma:
estes pássaros (Acauã) comem cobras que tomam, e quando falam se
nomeiam pelo seu nome; em os ouvindo, as cobras lhes fogem, porque lhes não
escapam; com as quais manm os filhos. E quando o gentio vai de noite pelo
89
Fernão Cardim também notou o fascínio dos brancos pelo tabaco quando escreveu que: “ele é muito medicinal,
principalmente para os doentes de asma, cabeça ou estômago, e daqui vem grande parte dos Portugueses beberem
este fumo, e o têm por vício, ou por preguiça, e imitando os Índios gastam nisso dias e noites” (1590 - 1997: 175).
325
mato que se teme das cobras vai arremedando estes pássaros para as cobras
fugirem” (1587 - 2000: 195).
E depois que
os Tupinambás terem este conhecimento da terra e do fogo, se faz
muita conta deles, quando se oferece irem os portugueses à guerra a qualquer
parte, onde os Tupinambá o sempre adiante, correndo a terra por serem de
recado, e mostrando a mais gente o caminho por onde hão de caminhar, e o
lugar onde se hão de aposentar cada noite” (1587 - 2000: 280).
E, “das árvores que estas hastes tiram, muitas de que se podem fazer muita picaria, e
infinidade de dardos de arremesso, que os Tupinambás sabem muito bem fazer” (1587 - 2000:
307).
Se antes das capitanias hereditárias havia brancos vivendo segundo os costumes indígenas
e isso era percebido pelos jesuítas como uma ameaça; para os franceses, de acordo com Beatriz
Perrone-Moisés, tratava-se de um procedimento constitutivo do seu projeto de colonização.
Na ausência de um poder secular ou religioso que tivesse incentivado de forma
universalizante a colonização francesa na América do século XVI -, os franceses iriam adotar
um tipo de estratégia como esta, dois séculos mais tarde, e, desta vez, através da busca de impor
seus valores morais para o mundo: liberdade, igualdade e fraternidade -, o projeto francês esteve
baseado no envio dos truchements, e estes, na convivência com os índios para aprender a língua,
foram adotando os costumes indígenas, justamente aquilo que, como notou Viveiros de Castro
(1993 - 2002), os jesuítas viam como o maior empecilho à conversão.
De acordo com Barré, a tentativa de matar Villegeganon em 1556 (ver Capítulo 2) foi
liderada por um truchement que: tinha vivido (como todos os outros viviam) na maior
326
abominação e vida epicurista, de forma que é impossível descrever: sem deus, sem fé, nem
lei, durante sete anos / auoit vescu (comme tous les autres viuent) en la plus grande
abomination et vie Epicurienne, qu‟il est impossible la raconter. Sans Dieu, sans foy, ne loy,
l‟espace de sept ans” (1556: 113).
Já para Thevet a convivência com os índios era uma estratégia francesa de colonização:
para reinar nesse país é preciso cultivar a amizade dos selvagens,
de outro modo eles se revoltam e saqueiam tudo o que podem encontrar
com mais frequência. É necessário também se posicionar segundo as ligas,
querelas, amizades ou inimizades que existem entre eles
pour régner en ce pays, il faut pratiquer l‟amitié des sauvages;
autrement ils se révoltent et saccagent tous ceux qu‟ils peuvent trouver le plus
souvent. Et se faut accommoder selon les ligues, querelles, amitiés ou inimitiés
qui sont entre eux (1557 - 1997: 248).
Anos depois, Thevet forneceu outra reflexão sobre o apoio dado pelos índios aos
franceses nas guerras: eis como, por acaso, os cristãos se misturaram com essas nações
bárbaras se rendendo totalmente à sua vontade. Todavia, esses selvagens os reconheciam
como seus melhores amigos e aliados/ voilà comment les Chrestiens se mettent en hazard
avec ces nations Barbares, et se rendent totalement à leur mercy: toutefois ces Sauvages les
recognoissent comme leurs plus grands amis, et alliés (1588 - 2006: 129).
De acordo com Richer, logo que os calvinistas chegaram à França Antártica, antes da
controvérsia sobre a Eucaristia, eles começaram a pescar, buscar raízes para comer, fazer barcos
e a frequentar os selvagens e rbaros, com quem jamais tivemos
desentendimentos ou disputas (o que Durand temia acima de tudo). Eles
327
não nos molestaram, nem nos contrariaram. Eles também nos visitavam,
mas raramente e nós usamos para com eles de todas as formas de amizade
& frequẽter les Sauuages & Barbares, auec lesquels nous n‟eumes
iamais debat ne contention (ce que Durand craignoit sur toute chose) & auec
eux ne nous aduint aucune chose moleste ne fascherie, ils nous visitoyent aussi,
mais rarement, & nous vsions enuers eux de tous offices d‟amitié” (1561: 25).
De forma recorrente, na Flórida e no Rio de Janeiro, os franceses se indispuseram com
os seus e foram viver com os índios, ao contrário do que ocorria com os portugueses e espanhóis
que, quando o faziam, normalmente era porque naufragavam. Villegagnon faz uma referência que
pode ser interpretada neste sentido, quando se queixa que os irmãos que fizeram a travessia da
França comigo, tocados pela injustiça de nossa situação, uns com um pretexto, outros com
outro, foram de volta para o Egito/ les frères qui avaient fait la traversée depuis la France
avec moi, émus par l‟iniquité de notre situation, prétextant l‟un une raison, l‟autre une autre,
étaient retournés en Égypte. Peillard fez o seguinte comentário sobre o significado da palavra
Egito neste contexto: avaient quitté le travail et s‟étaient retirés dans le fort ou dans la forêt
(1557 - 1991: 140).
Em outra passagem da mesma carta, Villegagnon afirma que assumiu as funções
eclesiásticas na França Antártica, com medo que nossos trabalhadores, que eu tinha trazido
em troca de um salário, influenciados pelos bitos indígenas, fossem contaminados pelos
seus vícios, ou que eles se desabituassem da religião em direção à apostasia/ de peur que
nos travailleurs que j‟avais amenés en leur proposant un salaire, influencés par les habitudes des
indigènes, ne soient contaminés par leurs vices, ou qu‟ils se déshabituent de la religion pour se
tourner vers l‟apostasie” (1557 - 1991: 139).
328
Segundo Reverdin, referindo-se a Villegagnon, beaucoup des ses compagnons l‟ont
abandonné, les uns pour renter en France, les autres pour aller vivre parmi les Sauvages” (1957:
41).
Um panfletista anônimo escreveu “ao leitor” que na guerra contra Mem de (Capítulo
4) os soldados de Villegagnon tinham se retirado junto com os selvagens/ se retirerent auec
les sauuages”, onde os homens que ficaram em terra receberam o jugo cruel dos selvagens,
vivendo sem qualquer forma de religião, algo tão triste e lamentável de narrar, que meu
coração geme e meus olhos lançam lágrimas / les hommes retirez en terre, ont receu le cruel
ioug des sauuages, vivant sans aucune forme de religion, chose si triste et lamentable à compter,
que mon coeur en gemit, & mes yeux en iettẽt larmes” (1561a: 5-5.1).
Segundo Jean Crespin, Villegagnon foi muito cruel com os franceses que trabalhavam na
ilha de Coligny, por isso,
um delles, não podendo continuar a passar dessa maneira, pedio a
Villegagnon que o deixasse ir viver entre os selvagens, o que lhe foi permittido
sob condição de renunciar aos seus salarios, devendo o acto ser legalizado
perante o notário, ao que o operário se submetteu, pois desejava obter a sua
liberdade” (1564 - 1917: 48).
E, quando Villegagnon impôs uma confissão de aos calvinistas (Capítulo 2), os
Francezes do continente procuraram dissuadil-os de darem as razões da sua ao tyranno, que
outra coisa não buscava sinão tirar-lhes a vida, e aconselharam-n‟os a se retirarem para os
indígenas” (1564 - 1917: 62).
As duas correntes a que se refere Lestringant, que dividiram o nascente protestantismo
francês, a “tradição satírica” e a grande tradição” (Capítulo 3), trataram a questão da
indianização de forma distinta. De um lado, um panfletista anônimo escreveu a Villegagnon:
329
vejo bem que desde a sua viagem em direção ao Brasil (....) e o
profundo hábito que você adquiriu com os selvagens do Brasil (...) você não
faz nada além de chicanear e agitar debates, que são testemunhos evidentes
dos bons costumes que você trouxe dessas terras habitadas por bárbaros
je voy bien que depuis ton voiage vers le bresil (...) & la longue
habitude que tu as euë auec les hommes Sauuages du Bresil, (...) ne fais tu rien
que chicaner & esmouuoir debats, qui sont tesmoignages euidens des bonnes
moeurs que tu rapportes de ces terres habitees par les Barbares (1561-1562 ?:
s/p).
Outro panfleto seguiu uma direção similar quando sugeriu que na França Antártica,
Villegagnon:
de tal maneira entre os rbaros trabalhou com fome e sede,
comeu piolhos e vermes, ele avançou tanto em suas loucuras que, sem
livros ou estudos, tornou-se teólogo até os dentes, no que ele se baseia de
forma tão perfeita, como seu companheiro Nostradamus da astrologia
en telle maniere qu‟entre les Barbares trauaillé de faim & de soit,
mãgé de poux & de vermine, il s‟est tellement auancé, & ses folies, qui sans
liures & estudes il est deunenu Theologien iusques aux dents, dont il s‟ayde
aussi parfaictement que son compaignon Nostradamus de son astrologie
(1561d: Aiij.1).
Esse é igualmente tema do panfleto Reponse aux lettres, que faz uma série de
associações com a experiência na América, por exemplo: que você se apresente desarmado de
toda boa razão, estando apenas coberto por algum ornamento de bacharelice e sofisma,
como de uma vestimenta de plumas desses selvagens / que tu presentes desarmé de toute
330
bõne raison, estãt seulemẽt couuert de ~qlque parure de babil & sophisterie, comme d‟vn
accoustrement de plumes de ces Sauuages” (1561b: 19).
Assim como, quando pergunta:
você acha que ainda está no seu reino imaginário de terras novas,
onde sem razão e sem equidade, com apenas um movimento e autoridade
tirânica, você comandou e oprimiu muitas pessoas boas, as quais a ditosa
memória infelizmente lembra perpetuamente? Você não está mais com os
bárbaros e selvagens
penses tu estre encore en ton royaume imaginaire des terres neufues,
ou sans raison sans equité, de ton seul mouuemẽt de ta seule authorité
tyrannique, tu as condamné & opprimé beaucoup de bons personnages,
desquels l‟heureuse memoire rendra la tienne malheureuse perpetuellement?
Tu n‟es plus auec les sauuages & barbares(1561b: 22).
Em outra passagem, o panfletista questiona:
São esses os estatutos do seu reino antártico: não defender de modo
algum os aflitos, oprimir os bons, espalhar o sangue inocente e sustentar
toda crueldade e injustiça? É verdade que isso não seria estranho em você,
que nasceu com um coração hipócrita e o nutriu com toda a crueldade, por
meio da comunicação que você teve durante tanto tempo com os inimigos
Bárbaros
Sont-ce les statuts de ton feu royaume Antartique, ne deffẽdre point
les affligez, oppresser les bons, espandre le sang innocent, & maintenir toute
cruauté & iniustice? Il est vray que cela ne seroit pas trouué estrange en toy,
qui es né auec vn cueur felon, & qui l‟as nourri en toute cruauté, par la
communication que tu as eue si long temps auec les ennemys Barbares
(1561b: 44).
331
O panfletista fez ainda uma terceira pergunta:
você não acha que Deus te levou uma vez em direção a esses
Bárbaros para parangonar de mais perto sua desumanidade com a dele, a
fim de que aparecesse claramente que você é mais bárbaro que os próprios
bárbaros, e mais selvagem que os homens mais selvagens que existem sobre
a terra?
ne pense tu pas que Dieu t‟ayt mené vne foys vers ces Barbares, pour
paragonner de plus prés ton inhumanité, auec la leur, afin qu‟il apparust
clairemẽt que tu es plus Barbare, que les Barbares mesmes, & plus sauuagem
que les hommes les plus sauuages qui soyent sur la terre?(1561b: 64).
Se os panfletos protestantes publicados em 1561 tenderam a aproximar Villegagnon dos
“selvagens”, Léry, como demonstrou Lestringant, elaborou o seu relato na forma de um exílio
exemplar e, neste sentido, sua etnografia indígena foi feita às avessas, isto é, o índio foi colocado
como contraponto à sua pré-destinação. Neste sentido, os truchements são recriminados, pois
como Léry se refere:
alguns normandos, que muito tempo antes (...) estavam entre os
selvagens, viviam sem temor a Deus, em luxúria com as mulheres e as
jovens (como eu vi tinham filhos com idade entre quatro ou cinco anos).
Tanto, digo, para reprimir isso, como para deixar claro que nenhum
daqueles que moravam em nossa ilha e em nosso forte não abusasse desta
forma, Villegagnon, com o parecer do Conselho, defendeu a custa da vida
que ninguém que tivesse o título de cristão poderia viver com as mulheres
dos selvagens
332
certains Normands, lesquels dès longtemps auparavant (...) étaient
demeurés parmi les sauvages, où, vivans sans crainte de Dieu, ils paillardaient
avec les femmes et filles (comme j‟en ai veu qui en avaient des enfans âgés
de quatre à cinq ans), tant, dis-je, pour réprimer cela, que pour obvier que nul
de ceux qui faisaient leur résidance en notre île et en nostre fort n‟en abusât de
cette façon: Villegagnon, par l‟avis du conseil, fit défense à peine de la vie, que
nul ayant titre de Chrétien n‟habitât avec les femmes des sauvages (1578 -
1992: 74-75).
E depois:
apesar de muito lamentar, me sinto obrigado a citar novamente
aqui que alguns intérpretes da Normandia que passaram oito ou nove anos
naquele país para se acostumar com os habitantes, levando uma vida
ateísta, não apenas se poluíram de todo tipo de luxúria e vilania entre as
mulheres e as jovens, um deles, na minha época, tinha um menino de três
anos, como também, superando os selvagens em desumanidade, escutei que
se vangloriavam de ter matado e comido prisioneiros
à mon grand regret, je suis contraint de réciter ici que quelques
truchements de Normandie, qui avaient demeuhuit ou neuf ans en ce pays-là
pour s‟accommoder à eux, menant une vie d‟Athéistes, ne se polluaient pas
seulement en toute sortes de paillardises et vilenies parmi les femmes et les
filles, dont entre autres de mon temps avoit un garçon âgé d‟environ trois ans,
mais aussi, surpassant les sauvages en inhumanité, j‟en ai ouï qui se vantaient
d‟avoir tué et mangé des prisonniers” (Léry 1578 - 1992: 370).
Consequentemente, nas comparações entre os Tupinambá e os franceses, muitas vezes, a
balança pendeu para o lado dos ameríndios. Léry conta que por causa dos maus tratos infringidos
por Villegagnon, alguns dos carpinteiros o abandonaram, preferiram ir para terra firme
333
com os selvagens (que os tratavam mais humanamente) que permanecer com ele/ aucuns
d‟entre eux, charpentiers de leur étant, l‟abandonant, aimèrent mieux s‟aller rendre en terre
ferme avec les sauvages (lesquels aussi les traitaient plus humainement) que de demeurer avec
lui” (1578 - 1992: 77).
Se Léry se parece com os panfletistas anônimos quando tece comentários sobre a
humanidade e a desumanidade das pessoas - a aproximação de Villegagnon do selvagem pelos
primeiros é uma forma de enquadrá-lo na categoria de animalidade por outro lado, ele se
distancia deles, quando destaca algumas qualidades dos índios. Neste sentido, ele escreveu sobre
os penteados:
em relação ao ornamento de cabeça dos nossos Tupiniquim
90
, a
coroa no topo e os cabelos caídos para trás (...) eles amarram e arrumam as
plumas das asas dos pássaros vivos, vermelho e de outras cores, com os
quais eles fazem as testeiras, muito semelhantes ao modo dos cabelos falsos
ou verdadeiros, chamados raquettes ou ratepenades, cujas senhoras e
senhoritas da França e de outros países daqui usam algum tempo; dir-
se-ia que elas receberam essa invenção dos nossos selvagens que chamam
esse utensílio de Yempenambi
quant à l‟ornement de tête de nos Tououpinamkuins, outre la couronne
sur le devant et cheveux pendants sur le derrieèe, (...) ils lient et arregent des
plumes d‟ailes d‟oiseaux incarnates, rouges et d‟autres couleurs, desquelles ils
font des fronteaux, assez ressemblants, quant à la façon, aux cheveux vrais ou
faux, qu‟on appelle raquettes ou ratepenades, dont les dames et damoiselles de
France et d‟autres pays de deçà depuis quelque temps se sont si bien
accommodées; et dirait-on qu‟elles ont eu cette invention de nos sauvages,
lesquels appellent cet engin Yempenambi” (1578 - 1992: 88).
90
Segundo os cronistas quinhentistas, esse penteado era usado pelos Tupinambá.
334
Assim como, sobre os ornamentos:
eu afirmo que os ornatos, arrebiques, falsas perucas, os cabelos
retorcidos, grandes golas encrespadas, anquinhas, sobressaias e outras
infinitas bagatelas, cujas mulheres e moças de usam para se sustentar e
que jamais são suficientes, sem comparação, causam males maiores que a
nudez comum das mulheres selvagens, as quais, ao natural, não devem
nada em beleza às outras
je maintiens que les attifets, fards, fausses perruques, cheveux tortillés,
grands collets fraisés, vertugales, robes sur robes, et autres infinies bagatelles
dont les femmes et filles de par-deça se contrefont et n‟ont jamais assez, sont
sans comparaison, cause de plus de maux que n‟est la nudité ordinaire des
femmes sauvages; lesquelles cependant, quant au naturel, ne doivent rien aux
autres en beauté (1578 - 1994: 234-235).
Léry também diz a respeito das redes:
no que toca as camas de algodão, que são chamadas Inis pelos
selvagens, (...) eu me dirigido àqueles que tiveram a experiência: se não é
melhor dormir, principalmente no verão, do que nas nossas camas
comuns; e mesmo se foi sem razão que eu disse na história de Sancerre que
em tempos de guerra é, sem comparação, mais fácil prender desse modo as
mortalhas, para que uma parte dos soldados possa repousar, enquanto os
outros fazem a vigília, que se acostumar a dormir em cima de um colchão
de palha, onde sujando as roupas, não apenas se enche de piolhos, mas
também quando é o momento de se levantar para formar os grupos têm-se
as costelas machucadas pelas armas, as quais somos todos obrigados a ter
sempre presas à cintura, assim como quando estivemos sitiados nessa
cidade de Sancerre, onde, quase sem intervalo, o inimigo durante um ano
não saiu da frente das nossas portas
335
touchant les lits de coton qui sont appelés Inis par les sauvages (...) je
me rapporte à ceux qui en ont fait l‟expérience, s‟il y fait pas meilleur coucher,
principalement en été, que sur nos lits communs; et même si, c‟est sans raison
que j‟ai dit en l‟histoire de Sancerre qu‟en temps de guerre cela est, sans
comparasion, plus aide pendre en cette façon des linceuls par les corps de
garde pour reposer une partie des soldats qui dorment, pendant que les autres
veillent, qu‟à l‟accoutumée se vautrer par-dessus des paillasses, où en salissant
les habillements on ne se remplit pas seulement de vermine, mais aussi quand
ce vient à se lever pour faire la faction, on a les côtés tout cassés des armes,
lesquelles on est contraint d‟avoir toujours à la ceinture, ainsi que nous les
avons eues étans assiégés dans cette ville de Sancerre, presques sans
intervalle l‟ennemi un an durant n‟a bougé de nos portes (1578 - 1992: 173).
E, como observou Lestringant a respeito do modo de fermentação adotado pelas índias no
cauim, les Français ont tenté de lui substituer une autre technique, en portant la mixture à
ébullition: mais le résultat ne répondant pas à leur attente, ils adoptent sans plus de réticence la
recette „sauvage‟” (1578 - 1994: 31-32).
Há ainda uma passagem célebre na qual Léry descreve a moral indígena:
uma vez, um índio ancião (...) me fez essa pergunta: quer dizer
que vocês, Mairs e Péros, quer dizer, franceses e portugueses, vem de tão
longe buscar madeira para se aquecer? Não madeira no seu país? (...)
Ha, ha, disse meu selvagem, você me conta maravilhas. Depois, tendo
compreendido corretamente o que eu tinha dito, me fez outra interrogação,
disse: „mas esse homem tão rico de quem você me fala, não morre de jeito
nenhum? (...) E quando ele morre, a quem ele deixa todos os seus bens? (...)
Verdadeiramente, disse então meu ancião (quem, vocês julgariam, não era
de forma alguma estúpido), nessa hora, eu asseguro que vocês, Mairs, quer
dizer franceses, são muito loucos, pois fazem tanto para atravessar o mar,
(como vocês nos dizem quando chegam aqui) passam por tantas
336
dificuldades para acumular riquezas para vossos filhos ou para aqueles
que sobrevivem após vocês? A terra que vos nutriu não é suficiente para
nutri-los? Nós (ele acrescentou) temos pais e filhos que, como você vê,
gostamos e prezamos, mas porque sabemos que após a morte a terra que
nos alimentou alimentará a eles, sem nos inquietarmos com o futuro, nós
confiamos nisso
il y eut une fois un vieillard d‟entre eux (...) me fit telle demande: -
Que veut dire que vous autres Mairs et Péros, c‟est-à-dire Français et
Portugais, veniez de si loin quérir du bois pour vous chauffer? N‟en y a-t-il
point en votre pays?‟ (...) Ha, ha! dit mon sauvage, tu me contes merveilles.
Puis ayant bien retenu ce que je lui venais de dire, m‟interrogeant plus outre,
dit: „Mais cet homme tant riche dont tu me parles, ne meurt-il point? (...) E
quand donc il est mort, à qui est tout le bien qu‟il laisse? (...) Vraiement, dit
lors mon veillard (lequel, comme vous jugerez n‟était nullement lourdaud), à
cette heure connais-je, que vous autres Mairs, c-est-à-dire Français, êtes de
grands fols, car vous fault-il tant travailler à passer la mer, sur laquelle
(comme vous nous dîtes étant arrivés par-deçà) vous endurez tant de maux,
pour amasser des richesses ou à vos enfans ou à ceux qui survivent après vous?
La terre qui vous a nourris n‟est elle pas aussi suffisante pour les nourrir?
Nous avons (ajouta-il) des parents et des enfants, lesquels, comme tu vois, nous
aimons et chérissons, mais parce que nous nous assurons qu‟après notre mort
la terre que nous a nourris les nourrira, sans nous en soucier plus avant, nous
nous reposons sur cela” (1578 - 1992: 126-127)
91
.
René Laudonnière, na l‟Histoire notable de la Floride, contou quatro casos de europeus
que foram viver com os índios: O primeiro era um francês, em que ele confiava, mas que foi
91
Em edições subsequentes Léry fez analogias dessa passagem com os ensinamentos de Sócrates e do Evangelho
(Lestringant 1578 - 1994: 312n).
337
embora em busca de ouro e prata e que, como foi visto, planejou destituir Laudonnière da direção
da colônia.
Segundo o francês, Genre se retirou nas florestas com medo de ser preso e viveu
algum tempo com os selvagens com a minha permissão/ Genre, qui s‟estoit retire dans les
forests, craignant d‟estre attrapé, il vesquit quelque temps depuis avec les sauvages par ma
permission (1586 - 1583: 113).
No segundo caso, Laudonnière narrou que: um dia, dois índios vieram me
cumprimentar da parte de um rei chamado Marracou/ deux Indiens me vindrent un jour
saluer de la part de leur roy nommé Marracou e lhe disseram que tinham duas pessoas nas casas
de dois outros reis. Imaginando que poderiam ser cristãos, Laudonnièrre pediu que fossem até o
forte. Quando lá chegaram
eles estavam nus e tinham os cabelos longos até os jarretes, como é
o costume dos selvagens. Eram espanhóis, mas tão bem acostumados à vida
neste país que, a primeira vista, eles acharam nosso jeito estranho (...) Ora,
examinando que lugares eles podiam ter estado e como eles tinham
chegado ali, eles responderam que fazia 15 anos que três navios em que
estavam se perderam ao passar por um lugar chamado Calos
ils estoient nuds, portans les cheveux longs jusques au jarret, ainsi que
font les sauvages, et estoient Espagnols de nation, si bien neantmoins
accoustumez à la façon de ce pays, que de première face ils trouvèrent notre
maniere estrange (...) Or, les examinant des lieux ausquels ils pouvoient avoir
esté, et comme ils estoient venus, ils me respondirent qu‟il yavoit desja quinze
ans passez, que trois navires, en l‟une desquelles ils estoient, se perdirent au
travers d‟un lieu nommé Calos(1586 - 1853: 130-131).
338
No terceiro caso, Laudonièrre conta que alguns de seus homens estavam viajando para
conhecer a região quando foram visitar
Outina, que os recebeu muito humanamente. Quando eles foram
embora da sua casa, ele fez tanto com suas súplicas importunas, que seis
dos meus homens ficaram com ele, entre eles um nobre chamado
Groutauld, que após passar em torno de dois meses lá, e fazer grandes
descobertas com outro que tempos eu tinha deixado com esse objetivo,
veio me encontrar no forte e me disse que jamais tinha visto um país mais
bonito
Outina, qui les receut fort humainement: et quand ils partirent de sa
Maison, feit tant par prières importunes, que six de mes hommes deumeurèrent
avec luy, du nombre desquels estoit un gentilhomme nommé Groutauld, qui
après y avoir séjourné environ deux moys, et faict grand devoir de descouvrir,
avec un autre, que de longtemps j‟y avois laissé à ceste fin, me vint retrouver
au fort, et me dit que jamais il n‟avoit veu un plus beau païs (1586 - 1583:
138).
O último caso ocorreu na quarta e última viagem dos franceses à Flórida. O líder da
expedição, Gourgues encontrou, Pierre de Bré, nativo do Havre-de-Grace, que tinha
escapado do forte pelo mato enquanto os espanhóis estavam matando outros franceses, e foi
então alimentado por Satouriona / Pierre de Bré, natif du Havre-de-Grace, autrefois
eschappé jeune enfant du fort à travers les bois, pendant que les Espagnols tuoient les autres
François, et depuis nourry par Satouriona (1586 - 1853: 210), um dos deres dos índios da
região.
No entanto, não foram apenas os franceses que narraram suas predileções pela vida
selvagem. Esse fenômeno foi igualmente observado por Anchieta, que escreveu em 1565:
339
a vida dos franceses que estão neste Rio é já não somente hoje apartada
da Igreja Católica, mas também feita selvagem. Vivem conforme os índios,
comendo, bebendo, bailando e cantando com eles, pintando-se com suas tintas
pretas e vermelhas, adornando-se com as penas de pássaros, andando nús, às
vezes, com calções, e finalmente matando contrários, segundo o rito dos
mesmos índios, e tomam nomes novos como eles, de maneira que não lhes falta
mais que comer carne humana, que no mais sua vida é corruptíssima, e com
isso e com lhes dar todo gênero de armas, incitando-os sempre que nos façam
guerra e ajudando-os nela, o que são ainda péssimos” ( - 1984: 222).
Assim, como sugere Vainfas, portugueses e franceses no Brasil, assim como espanhóis
ou ingleses noutras partes da América, quaisquer europeus estavam sujeitos a essa aculturação às
avessas, indianizando-se‟ ao invés de impor a sua cultura aos nativos. Contrariam, portanto, a
tendência ocidentalizante do colonialismo” (1995: 148).
Sobre o colonialismo, Vainfas segue as interpretações de Serge Gruzinski a respeito da
colonização no México, e, neste sentido, ambos percebem a reação indígena à colonização como
uma espécie de sincretismo ou hibridização cultural. Gruzinski refere-se à “indianização do
sobrenatural cristão” (1988 - 2003: 283), mas compreende que “há que se considerar as
mestiçagens americanas a um tempo como um esforço de recomposição de um universo
desagregado e como um arranjo local dos novos quadros impostos pelos conquistadores. Os dois
movimentos são indissociáveis(1999: 110). Segundo ele, “a Roma dos papas indigeniza-se à
medida que o além dos índios se cristianiza. Os dois processos são indissociáveis” (1999: 253).
Castelnau l „Estoile, por exemplo, chamou atenção para a prática comum entre os
missiorios de jamais irem desacompanhados às aldeias. A diretriz era que fossem, no mínimo,
sempre dois, pois, a perda da disciplina religiosa era considerada o maior perigo nas aldeias
340
(1999: 133). Segundo ela, que se baseou no relato de Fernão Cardim, o maior inimigona aldeia
era a mulher indígena, encarnação do pecado da carne (1999: 134).
Havia também, por parte de Roma, uma vontade de que os coadjutores temporais não
fossem encarregados das missões. Isso para não acumular o déficit de identidade nas aldeias
(1999: 135). Por isso, a partir de 1568, os jesuítas pararam de enviar meninos com menos de 14
anos às aldeias para aprender o tupi, visto que essas crianças não se adaptaram a disciplina
jesuítica, ao contrário, as crianças eram impregnadas dos costumes indígenas (1999: 155).
Contudo, se por um lado, era necessário consolidar a identidade jesuítica antes que as crianças se
indianizassem (1999:170), não se deve esquecer que, por outro lado, a estadia na aldeia era uma
provação que um jesuíta em formação deveria realizar (1999: 136).
De acordo com Lestringant, o pavor medieval do ensauvagement esteve presente nas
viagens dos Descobrimentos. No entanto, ele distingue dois tipos: o ensauvagement violente o
ensauvagement „doux‟”. No primeiro caso, cita três exemplos espanhóis: a campanha de
Veragua nos confins setentrional da Colômbia e do Panamá atuais, quando em 1536, segundo o
historiador oficial da Conquista, Francisco Lopez mara, les conquérants assoiffés d‟or et
affamés de viande se précipitent les uns surles autres pour s‟entredévorer, déchirant à belles
dents le cadavre de leurs compagnons morts de fièvre(1992 - 1996: 178); a expedição de Pedro
de Manchossa ao Rio da Prata, onde l‟abattage clandestin des chevaux precede de peu le
découpage des suppliciés pour vol, dépecés à même le gibet, en une sorte d‟accélération de la
transgression alimentaire (1992 - 1996: 178); e
le célèbre Alvar Nuðez Cabeza de Vaca, (qui) connut la fortune d‟être,
au cours de son aventureuse existence, successivement „ensauvagé‟ et chef
d‟expédition - colporteur, guérisseur et chamane indien de la Floride au
341
Mexique, avant de revenir, dans une seconde vie, sous les traits du gouverneur
du Rio de la Plata (1992 - 1996: 181).
no segundo caso, o de ensauvagement doux‟”, estariam as tentativas de colonização
francesa na América do século XVI, onde devido a uma série de fatores “le stade initial de troce
et d‟alliance avec les tribus côtières n‟a jamais été dépassé au profit d‟une occupation frontale,
génératrice de conflits et de destructions” (1992 - 1996: 179).
Para Lestringant os truchements são: je ne dirais pas métisse (1992: 182), mas uma
figure hybride et mitoyenne (...) instrument et obstacle tout à la fois dans le processus de
colonisation”, pois ele é
le premier dans le rapport à l‟autre. Intégré par métissage au terreau
indigène - il prend femme dans la tribu d‟accueil (...) devenu rebelle à toute
autorité, qu‟elle soit politique ou religieuse, le truchement passe de l‟autre côté
du miroir. Partageant les valeurs de la „vie sauvage‟, pratiquant la polygamie
et parfois le cannibalisme, allant nu ou presque, à la mode des Indiens (...)
D‟allié devenu ennemi, il est alors dénoncé comme l‟obstacle principal à la
réussite de la colonisation. Plus haïssable que le sauvage qui siste, le
truchement qui se dérobe à l‟assujettissement représente en effet un rique
majeur pour le conquérant européen. Son exemple ne peut manquer d‟être
contagieux et à terme menace d‟éclatement la colonie de peuplement. De plus,
il annonce au colonisateur sa défaite possible, en mettant à nu le fond de
sauvagerie commun à l‟Indien et au colon (1992 - 1996: 180).
No início da missão jestica, houve uma flexibilidade nas práticas religiosas de modo a
poder atrair um maior número de índios. Minha impressão é que antes da chegada do bispo
Sardinha, os jesuítas tinham feito adaptações na liturgia católica.
342
Em 1558, quando escreveu o que ficou conhecido como o “plano civilizador
92
, Nóbrega
interrompeu esse processo, quando propôs o aldeamento e a sujeição pelo medo (Eisenberg
2000). Uma nova inversão no quadro teria tido início em 1576, quando Anchieta se tornou
Provincial e começou a questionar os procedimentos ditados por Roma. Antes disso, ele, como os
outros jesuítas, viam com apreensão o dilema dos índios, que ora recorriam aos padres, ora aos
seus feiticeiros, como narra o padre quando descreveu o caso de dois índios doentes, um
catecúmeno que tinha dito ter sido curado por um feiticeiro e uma menina de quatro anos que
recusou o remédio do feiticeiro, preferindo ser curada na Igreja (Anchieta b1554: II, 109-10)
93
.
Nóbrega chegou a escrever que “nas enfermidades dos gentios usam também estes feiticeiros de
muitos enganos e feitarias. Estes são os maiores contrários que cá temos” (1549: I, 152).
As alianças matrimoniais realizadas no Brasil do século XVI podem ser observadas em
três gradações: em uma ponta, a liberdade e mesmo o incentivo dacolonização” francesa,
“sustentada” pelos truchements, ao estabelecimento de relações à moda indígena, como diria
Marshall Salhins performativa”, isto é, os casais se formavam à medida em que ocorriam os
vínculos de afinidade.
No meio termo, os casamentos inter-étnicos como propostos, mas não realizados por
Villegagnon: as índias deviam ser batizadas para que pudessem se unir sob a égide dos
sacramentos.
Finalmente, as uniões intra-étnicas que consistiam no envio de mulheres europeias para se
casarem como os colonos, excluindo os índios sempre que possível dessa relação. O maior
exemplo dessa última gradação no Brasil foi Nóbrega, como mostrou Vainfas em Trópicos dos
92
Carta ao Padre Miguel de Torres em Lisboa, da Bahia, 8 de maio de 1558.
93
brega chegou a escrever que nas enfermidades dos gentios usam também estes feiticeiros de muitos enganos e
feitiçarias. Estes são os maiores contrários que cá temos” (1549: I, 152).
343
pecados
94
. Neste quadro, vale lembrar, que os calvinistas também trouxeram mulheres euroias
para se casarem. No dia 3 de abril, foram realizados dois casamentos na França Antártica, e no
dia 17 de maio, casou-se João de Bolés. As outras duas mulheres que vieram da França se
casaram com dois truchements. Mas foi só.
Segundo Léry:
apesar das admoestações que várias vezes fizemos a esse povo
bárbaro, não teve um que, deixando sua velha pele, quisesse reconhecer
Jesus Cristo como seu salvador; assim, durante todo o tempo em que estive
lá, não houve qualquer francês que tenha tomado uma mulher
nonobstant les remontrances que nous avons par plusieurs fois faites à
ce peuple barbare, il n‟y en eut pas une qui, laissant sa vieille peau, voulût
avouer Jésus-Christ pour son sauveur; aussi, tout le temps que je demeurai là,
n‟y eut-il point de Français qui en prit à femme” (1578 - 1992: 75).
Como sugere Viveiros de Castro, ao contrário dos missionários que, de alguma forma,
tentaram ver os índios como irmãos, para os índios o tipo de papel que os brancos deveriam
ocupar seria o de cunhados. Não-parentes e idealmente inimigos, eles poderiam se transformar
em aliados se estabelecessem relações de alianças, casando-se, por exemplo, com suas índias.
Assim, em resumo, em termos de relações sociais, poder-se-ia dizer, generalizando, que se
o projeto da ocidentalização foi um esforço de, ao tornar o outro semelhante a si, apagá-lo, o
ideal indígena era usufruir das qualidades do outro e, neste sentido, preservá-lo.
94
Segundo Lévi-Strauss, o rei da Espanha “fazia importar em 1512 escravas brancas para as Índias Ocidentais com o
único objetivo de impedir que os espanhóis casassem com indígenas” (1955 – 1993: 67).
344
Ameríndios & turcos:
Como escreveu Foucault, até o século XVI, a semelhança desempenhou um papel
construtor no saber da cultura ocidental” (1966 -1992: 33). Naquela época, em termos de viagens
a lugares distantes associadas à arte da conquista, o horizonte mental dos europeus estava pautado
pela experiência nas Cruzadas e pelo contato com os mouros.
De acordo com Julien, publia-t-on en France, au XVI
e
siècle, deux fois plus d‟ouvrages
et dix fois plus de brochures sur la Turquie que sur l‟Amérique(1948 :320). Assim, não é de se
estranhar que, como afirmou Hanke, “Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil em 1500,
levava consigo instruções detalhadas que determinavam ter os clérigos de explicar a fé aos
mouros e aos outros ilatras que encontrassem com „admoestações e requerimentos‟ insistindo
para que abandonassem suas „idolatrias, diabólicos ritos e costumes‟. Se recusassem a aceitar a fé
ou a permitir comércio pacífico, os portugueses deveriam fazer „crua guerra‟ contra eles” ([s/d]:
139). Neste sentido, mesmo se tratando de um novo continente, a América foi denominada Índias
Ocidentais.
Em 1551, Pero Correia escreveu de São Vicente a um padre que estava na África:
scrívanos mui amenudo de allá cómo se han en todas las cosas porque
sepamos acá cómo nos avemos de aver en otras semejantes, porque me parece
que esta gentilidad en algunas se parece con los moros, así como en tener
muchas mugeres, y en praedicar por las mañanas de madrugada, y el pecado
contra naturaleza, que dizen ser allá muy común, lo mismo es en esta tierra” (I:
224-225).
Também não parece ter sido coincidência que se Tomé de Souza “foi um fidalgo honrado,
ainda que bastardo, homem avisado, prudente e muito experimentado na guerra de África e Índia,
345
onde se mostrou muito valoroso cavaleiro em todos os encontros em que se achou” (Soares de
Souza 1587 - 2000: 90), Villegagnon, como foi visto no Capítulo 3, também teve experiências
bélicas contra os turcos antes de ir para América.
Bárbaros, pagãos & infiéis:
Essa associação entre os ameríndios e os mouros, no entanto, não foi suficiente para
definir o estatuto que os povos da América deveriam adquirir dentro do quadro da conquista.
Como escreveu Lévi-Strauss, na época em que europeus chegaram à América,
os colonizadores nomeavam comissões atrás de comissões a fim de
determinarem a sua natureza (dos indígenas). Se eles fossem realmente homens
seriam os descendentes das dez tribos perdidas de Israel? Mongóis que tivessem
chegado montados em elefantes? Ou escoceses trazidos culos antes pelo
princípe Modoc? Continuariam pagãos ou seriam antigos católicos relapsos
batizados posteriormente por S. Tomás? Não havia sequer certeza que fossem
realmente homens e o criaturas dialicas ou animais. (...) Perante os
esforços de Las Casas para suprimir o trabalho forçado, os colonos mostravam-
se mais incrédulos do que indignados: “Pois então (exclamavam eles) nem
sequer poderemos servir-nos de animais de carga? (1955 - 1993: 67).
Segundo Gerbi Antonello,
desde os primeiros decênios após o desembarque de Colombo, viu-se
na cristianização do Novo Mundo uma „compensação‟ para as conquistas do
islã; (...) Claramente conectada com essa idéia havia outra, já implícita na bula
de Alexandre VI, Inter coetera divinae, e prontamente acolhida pelo povo
espanhol, por publicistas e poetas, segundo os quais as Índias eram a
compensação devia à Espanha pelos oito séculos de luta contra a mouraria. Não
mais indenização pela derrota, mas o troféu da revanche. Tanto a diferença
346
como a conexão entre as duas iias aparecem bem nas interpretações que
Levene dá à bula pontifícia, não tanto prêmio quanto investidura, a convite a
continuar além do oceano aquela luta contra os Infiéis, para a qual a Espanha se
prepara desde os séculos da Reconquista e pela qual dava as melhores garantias
de pureza católica e valor militar” (1955 - 1996: 111-112).
Assim, como argumentou Gruzinski a propósito da colonização espanhola,
l‟idolâtrie observée par Cortés fournissait aussi et d‟abors un
splendide alibi politico-militaire, puisqu‟elle légitimait la conquête en faisant
miroiter les gloires d‟une nouvelle Reconquista, comme s‟il était possible de
poursuivre en terre américane la croisade menée en Espagne contre l‟islam
(1988: 14).
Ao analisar o modo como a coroa espanhola buscou legitimar sua autoridade no Novo
Mundo contra as pretensões do Sacro Império e dos protestantes, utilizando a concepção
psicológica aristotélica sobre os rbaros para construir um conceito no qual os índios pudessem
ser inseridos dentro de uma história considerada evolucionista, Pagden debruçou-se sobre
inúmeras formas de classificar os ameríndios ao longo de quatro séculos. Neste sentido, forneceu
informações valiosas sobre o modo como os europeus entenderam os índios no século XVI.
Segundo ele, o ponto de partida para pensar os índios foi o conceito grego de 'bárbaro', que era
um termo utilizado para distinção social e cujo antônimo era 'civil' e 'potico'.
Quando os católicos leram Aristóteles por meio de Tomás de Aquino, deduziram que a
diferença entre o rbaro e o civil/potico não era de natureza, mas de grau. Inferiores, os
rbaros, assim como os índios, foram considerados semelhantes às crianças.
De acordo com Pagden, até o final do século XV, pagão significava aquele que não crê. A
maior parte dos juristas da época fazia referência a uma formulação segundo a qual os pagãos
347
eram divididos em três categorias: 1) os que viviam fora da Igreja, mas em terras que fizeram
parte do Império Romano e assim estavam sob domínio da Igreja; 2) aqueles que vivam em
qualquer lugar e eram legitimamente súditos de um príncipe cristão; e 3) e os Infidelis homens
que habitam terras não sujeitas a um governo cristão legítimo e que também nunca pertenceram
às fronteiras do Império Romano. Não eram, portanto, súditos de iure como os primeiros, nem de
facto como os segundos.
Além disso, os pagãos eram tradicionalmente agrupados em dois grupos extensos: 1)
segundo Tomas de Aquino os “ignorantes insuperáveis”, que jamais tiveram a oportunidade de
escutar o Evangelho e 2) O “ignorante superável”, homens como os judeus e os muçulmanos que
ouviram a verdade, mas se recusaram a escutá-la.
Para Pagden, a identificação que os índios teriam estabelecido entre Quetzacoatl e São
Tomás na América espanhola, não foi suficiente para que eles fossem considerados infiéis
(Conclusão). O mesmo parece poder ser dito em relação à América portuguesa. Aqui, no
cotidiano, termos como “infiel” e pagão foram utilizados de forma indiscriminada para se
referir aos índios.
Contudo, o mito tupinambá que faz referência a Sumé, como será visto no próximo
capítulo, foi interpretado pelos jesuítas como uma evidência da passagem de São Tomé na
América.
Como observou Sérgio Buarque de Holanda, tratava-se de um argumento histórico que
justificava a universalidade do reino de Deus (1559 1994: 108-110) e, neste sentido, corrobora
a tese central de Pagden de que a concepção do ameríndio sofreu um deslocamento do
psicológico para o histórico (infra). Por outro lado, se essa referência do mito não foi suficiente,
348
ou pelo menos não foi amplamente utilizada para justificar ações bélicas contra os índios, ela
certamente contribuiu para formar uma imagem pejorativa dos mesmos.
***
No Diálogo sobre a conversão do gentio, Nugueira e Gonçalo entendem que os índios,
assim como Léry, faziam parte das Escrituras, mas que eles eram inferiores aos gregos, visto que,
houve uma “maldição de seus avoz, porque estes creemos serem descendentes de Chaam, filho de
Noé, que descobriu as vergonhas de seu pai bebedo, e em maldição, e por isso, fiquarão nus e tem
outras mais miserias” (Nóbrega 1556-1557, II: 336-337).
Quando Léry escreveu sobre: de onde esses selvagens podem ter descendido/ d‟où
peuvent être descendus ces sauvages, ele mesmo respondeu: em primeiro lugar, é bem certo
que eles saíram de um dos três filhos de Noé/ en premier lieu, qu‟il est bien certain qu‟ils
sont sortis de l‟un des trois fils de Noé e apostou que parece que é mais correto concluir que
eles são descendentes de Cam (...) e que receberam a maldição que Deus lhe o fez/ il
semble qu‟il y a plus d‟apparence de conclure qu‟ils soient descendu de Cham (...) et ont succédé
à la malediction que Dieu lui donna (1578 - 1992: 162-163).
No entanto, a forma como Nugueira complementou seu argumento, associando os índios
aos filhos de Adão e Eva: toda essa maneira de gente, huma e outra, naquilo em que se crião,
tem huma mesma alma e hum ente[n]dimento, e prova-sse polla Escriptura, porque logo os
primeiros dous irmãos do mundo hum segio huns custumes e outro outros” (Nóbrega 1556-1557,
II: 337)
95
, difere da visão de Léry: o título de Caim da América foi atribuído por ele e pelos
protestantes anônimos a Villegagnon e não aos índios (Léry 1578 - 1992: 222).
95
De acordo com Castelnau l‟Estoile, segundo a doutrina monogênica de que Nóbrega é adepto, e Mateus Nogueira,
o porta-voz, os índios são descendentes de Caim, filhos malditos de Noé (1999: 99n).
349
É notável que brega e Léry tenham elaborado um diálogo sobre os índios. A
comparação entre ambos pode ajudar a elucidar o modo como jesuítas de um lado, e calvinistas
de outro, pensaram a relação com os “selvagens”.
A primeira diferença entre os “Diálogos” é que o jesuítico trata do tema da conversão,
enquanto o calvinista aborda os primeiros encontros entre índios e franceses, portanto, pode-se
dizer que um é vertical, e outro horizontal. O primeiro é um diálogo entre um homem de ação e
um intelectual a respeito de um terceiro sujeito a ser definido; o segundo é entre dois sujeitos que
desejam se conhecer.
O Tupinambá de Léry é quem faz as primeiras perguntas e quando a curiosidade é
preenchida, o francês começa a colocar outras questões, até que a conversa passa a ser recíproca.
Ambos, no entanto, estabelecem uma aliança e o colóquio termina com uma lição de gramática
franco-tupinambá.
Já no Diálogo jesuítico, o índio não tem voz.
Como argumentou Lestringant, o fato desses primeiros calvinistas na América não terem
se interessado pela conversão dos índios, e sim pela sua condição de povo eleito pré-destinado à
salvação, contribuiu para o reconhecimento da alteridade indígena. Ao contrário, como sugere
Castelnau l‟Estoile, a salvação dos índios, era para os jesuítas condição sine qua non da sua
própria salvação. Da realização de uma dependia o sucesso da outra e, pode-se dizer que esse
contraste entre as duas religiões está por trás da diferença entre os dois “Diálogos”.
350
Guerra santa & guerra justa:
Essas imagens ocidentais sobre o índio no século XVI repercutiram no modo como foram
estabelecidas as poticas em relação aos ameríndios e, consequentemente, nas relações sociais
entre ambos. Um exemplo pode ser notado a partir do conceito de guerra justa, que, de acordo
com Ernst Kantorowicz, acompanhou um processo no qual o universalismo católico suplantou os
particularismos territoriais. Segundo ele,
ao discutirem a noção de bellum iustum, a „guerra justa‟, os canonistas,
desde o fim do século XII, salientavam que a guerra era justificada, no caso
de „necessidade inevitável e urgente‟, tanto para a defesa da patria como para a
defesa da e da Igreja, e costumavam exemplificar essas necessitas referindo-
se às guerras que os cristãos orientais moveram contra os infiéis na Terra Santa.
Coincidiam com os civilistas que sustentavam que, no caso de emergência, o
imperador tinha o direito de impor taxas para a defesa da pátria” (1957 - 1998:
149).
Por volta do século XIII,
a idéia da soberania de Roma foi transmitida às monarquias nacionais
e, com ela, a idéia de lealdade a Roma e ao império universal. Em outras
palavras, a lealdade à nova patria territorial limitada, a pátria comum de todos
os súditos da Coroa, substituía os laços supranacionais de um Império universal
fictício. De acordo com a Lei, admitia-se que uma guerra justa poderia ser
declarada e movida apenas pelo Príncipe, mas acrescentava-se „a menos que
isso se dê para que a patria não tenha superior, e a partir da premissa ou fato de
que „atualmente o império está em pedaços‟, concluía-se que todo Príncipe est
in patria sua imperator” (Kantorowicz 1957 - 1998: 155).
351
De acordo com Perrone-Moisés, a guerra justa, conceito jurídico construído no contexto
da „guerra santa‟ contra os mouros, foi objeto de debate e reformulação ao longo do século XVI,
para poder-se aplicar aos povos indígenas americanos” (2000: 153). Neste sentido, a guerra justa
pode ser entendida como um desdobramento das guerras santas, com a diferença, segundo a
antropóloga, que “conceito já antigo, a guerra justa foi motivo de muita discussão a partir do
século XVI, quando se tratou de aplicá-lo a povos que, o tendo conhecimento prévio da , não
podiam ser tratados como infiéis” (2003: A26). Nesse processo de redefinição,
as causas reconhecidas como legitimas para uma guerra justa eram a
recusa à conversão ou o impedimento da propagação da Fé, a pratica de
hostilidades contra vassalos e aliados dos portugueses (especialmente a
violência contra pregadores, ligada à primeira causa) e a quebra de pactos
celebrados” (Perrone-Moisés 2003: A26).
Segundo a antropóloga, “dois outros motivos aparecem nas discussões sobre a guerra
justa: a salvação das almas e a antropofagia” (2003: B 21). Portanto, não como negar que o
espírito de cruzada manteve-se presente no imaginário dos homens que foram enviados em
missões de comando na América. No Brasil, ela foi pensada pelos jesuítas como parte do Plano
civilizador.
Em 1552, Nóbrega escreveu a Lisboa:
com a vinda do Bispo se moverão algumas duvidas, nas quais eu não
duvidava, porque sam soberbo e muito confiado em meu parecer, as quais nos
pareceu bem communicá-las com V. R. pera que as ponha em disputa entre
parecer de letrados e me escreva o que devo fazer (…) se hé licito fazer guerra a
este Gentio e cativá-los, hoc nomine et titulo, que nam guarda a lei de natura,
por todas vias” (: I, 408).
352
Em 1558, o padre não tinha mais vidas quando escreveu:
“sujeitando-se o gentio, cessarão muitas maneiras de haver escravos mal
havidos e muitos escrúpulos, porque terão os homens escravos legítimos,
tomados em guerra justa, e terão serviço e vassalagem dos Índios e a terra se
povoará e Nosso Senhor ganhará muitas almas e S.A. terá muita renda nesta
terra, porque haverá muitas criações e muitos engenhos que ao haja muito
ouro e prata” (: II, 449).
Segundo John Monteiro, em 1562, Mem de apelou para guerra justa com forma de
retaliação à morte do Bispo Sardinha. Luis da Ge Anchieta participaram, em 1566, de uma
junta organizada pela Coroa para definir a potica indígena, da qual resultou a lei de 20 de março
de 1570, que regulamenta, mas não proibia, o cativeiro indígena no caso de guerra justa ou de
cativos que iam participar dos ritos antropofágicos (Monteiro 1994: 41-42).
As juntas, de acordo com Pagden, eram um debate aberto entre um teólogo, um
representante do direito civil e outro do direito canônico. Tinham a função de legitimar, não de
julgar. Nelas foi resolvida a natureza dos índios. Essa natureza, contudo, deveria estar baseada
num esquema que oferecia uma explicação para a estrutura do mundo, da natureza e do
comportamento de tudo, dos seres animados e inanimados. Qualquer elemento novo que fosse
introduzido era considerado uma ameaça ao conjunto. Assim, a questão não era meramente
resolver um problema potico, de leis humanas, mas sim de leis divinas e de natureza ontológica,
isto é, quem e o quê eram aqueles índios e qual a relação deles com os europeus (1982 - 1986).
353
Guerra de religião:
É necessário ainda distinguir a guerra justa das guerras de religião da época. Nathalie
Zemon Davis se propôs a decifrar o significado social por detrás do que considerou a aparente
“irracionalidade” dos levantes religiosos franceses na segunda metade do século XVI, ou seja, a
violência praticada entre calicos e protestantes. O primeiro aspecto distinguido pela
historiadora foi que os ânimos de ambos se exacerbavam quando entendiam estarem defendo a
verdade. Em seguida, que os levantes religiosos eram entendidos como ritos de purificação. Ela
escreveu:
o quanto os protestantes eram vistos como vasos da poluição é sugerido
por uma crença popular a respeito da origem do nome „huguenote‟. Na cidade
de Tours, le roi Huguet era o nome genérico para os fantasmas que, em vez de
passar seu tempo no purgatório, voltavam para bater portas, assombrar a
magoar as pessoas à noite (...) Os protestantes eram assim tão sinistros como os
espíritos dos mortos” (1973 - 1990: 133-134).
Os católicos também abominavam a liberdade sexual a que os pastores tinham direito. Os
protestantes, por sua vez, viam a poluição no comportamento clandestino sexual do clero e na
forma como ministravam os sacramentos, contaminando o que era considerado sagrado.
O terceiro aspecto analisado por Davis foi o potico. Os levantes tratavam de realizar
aquilo que as autoridades constituídas normalmente deveriam fazer, mas por algum motivo não
fizeram. A violência seria, neste sentido, análoga àquela praticada pelos magistrados que usavam
a espada, faziam execuções exemplares públicas e puniam de acordo com as imposições do clero.
Segundo a historiadora, “os levantes também ocorriam durante a discussão de casos judiciais,
354
para apressar o julgamento ou quando os veredictos nos casos religiosos eram considerados muito
severos, ou muito lenientes” (1973 - 1990: 137).
Ainda segundo Davis, “enquanto os manifestantes mantinham um compromisso religioso,
raramente exibiam culpa ou vergonha por sua violência. Todos os sinais mostram que as
multidões acreditavam que suas ações eram legítimas” (1973 - 1990: 139). Isso podia ocorrer por
terem, às vezes, recebido o apoio de autoridades oficiais, mas também porque atribuíam a
legitimidade de seus atos à vontade de Deus. Os religiosos em geral a todo tempo agiam desta
forma, às vezes, iam mais além como Anchieta, quando escreveu sobre a guerra no Rio de
Janeiro e considerou que os franceses abandonaram o forte porque foram afugentados por um
exército alado enviado por Deus (Capítulo 4). Milagres” como estes foram igualmente
reconhecidos por protestantes, como no famoso caso de uma árvore velha e estéril que começou a
florir no Cimetière des Innocents, durante os massacres de São Bartholomeu.
Além disso, Davis sustenta que a ocasião para a maior parte da violência religiosa era
durante o culto ou ritual religioso” (1973 - 1990: 143). Neste sentido, aos vários exemplos citados
por ela, entre eles o casamento real entre Margarida de Valois e Henrique de Bourbon, que
precedeu o massacre de São Bartholomeu, poderia ser acrescentada a missa no dia de Pentecostes
na Guanabara, quando o conflito que estava latente atingiu uma dimensão irreversível.
Na conclusão do artigo, Davis afirma que os ritos de violência religiosa têm como
“fato crucial que os assassinos devem esquecer é que suas timas são
seres humanos. Essas pessoas daninhas à comunidade - o padre diabólico ou o
odioso herege - tinham sido transformadas pela multidão em vermes‟ ou
„demônios‟. Os ritos de violência religiosa completam o processo de
desumanização” (1973 - 1990: 152).
355
Além disso, diz a historiadora: “a violência religiosa é intensa porque está intimamente
relacionada com os valores fundamentais e a autodefinição de uma comunidade” (1973 - 1990:
155).
As guerras religiosas francesas e as guerras justas empreendidas na América contrastam
com as guerras ameríndias na medida em que o que motiva estas últimas é justamente o contrário
das primeiras. Enquanto para os europeus a guerra era uma forma de se livrar dos inimigos, para
os Tupinambá, a prática de capturar cativos para devorá-los sugere uma interpretação inversa. De
modo a tornar mais clara essa afirmação, convém começar por um sobrevoo a respeito do modo
como os índios praticavam a guerra.
356
Conclusão: os afectos indígenas
Guerra indígena:
Segundo Thevet e Léry, os maiores inimigos dos Tupinambá eram os Maragato, índios
que habitavam a região onde é hoje a Ilha do Governador e que eram aliados dos portugueses. A
presença dos franceses na região talvez tenha contribuído para o deslocamento desses índios para
o Espírito Santo, fugidos diante do arsenal lico emprestado aos Tupinambá. Segundo
Lestringant,
l‟Ile des Margageats aurait d‟ailleurs été l‟enjeu, s‟il faut en croire
Thevet, d‟une tentative de conquête victorieuse - mais sans doute provisoire -
de la part des Tupinamba de Quoniambec qui bénéficiaient de la „faveur et
ayde‟ des soldats de Villegagnon. Léry, de son côté, relate une attaque
nocturne particulièrment féroce portée par ces mêmes Indiens contre les
adversaires de la grande Isle‟ et qui se serait achevée par le „boucanage‟ de
toute la population insulaire” (1981: 226-227).
Staden conta que a primeira tentativa de construir uma fortaleza em Bertioga ocorreu dois
anos antes de sua chegada
96
. Segundo Staden, o primeiro objetivo dos portugueses foi construir
uma barreira para impedir a passagem dos Tupinambá até São Vicente. Na época, foram enviados
cinco mamelucos e o pai português para darem início às construções. Contudo, assim que os
96
Não há como precisar a data, pois não se sabe se qual é o seu referencial: a primeira viagem ao Brasil, a segunda
ou a chegada a São Vicente.
357
Tupinambá souberam, viajaram em torno de 25 milhas em direção ao local. Eles chegaram à
noite, em setenta canoas, colocam fogo em tudo e depois foram embora (1557 - 1974: 73-74)
97
.
De acordo com os relatos de Thevet, Léry e Staden, os Tupinambá da Guanabara
guerreavam, antes mesmo da chegada dos franceses, com seus vizinhos Tupiniquim da Ilha do
Governador e de São Vicente. É provável que a aliança destes últimos com os portugueses tenha
ocorrido a partir do casamento de João Ramalho com a filha de Tibiriçá. De outro lado,
igualmente, Ambiré tinha um genro francês. Foi, pois, um cenário estabelecido de aliança e
guerras que Mem de Sá encontrou ao chegar à Guanabara para expulsar os franceses.
Os jesuítas em geral perceberam o vínculo entre a guerra e o canibalismo e o caráter
contínuo da guerra ameríndia. Assim, em 1549, brega escreveu: “estes desta terra sempre tem
guerra com outros e asi andão todos em discordia. Comem-se huns a outros, digo contrarios” (I:
111). No mesmo ano, o padre disse ainda:
“se acontece que tomem alguns dos contrários na guerra trazem-nos
presos algum tempo e dão-lhes as suas filhas por mulheres e para que os sirvam
e guardem, e depois matam e comem, com grandes festas e ajuntamento dos
vizinhos que vivem ao redor (...) E não têm guerra por cubiça que tenham,
porque todos não têm nada além do que pescam e caçam e o fruto que toda a
terra dá, mas somente por ódio e vingança” (I: 136-137)
98
.
Léry também notou esse último aspecto da guerra ingena descrito por Nóbrega, que a
diferencia das guerras justa e de religião:
não é que esses Bárbaros fizessem a guerra para conquistar os
países e as terras uns dos outros (...) menos ainda que os vencedores
97
Mais tarde, a fortaleza de Bertioga foi edificada por Tomé de Souza, por ordem régia, e, entre 1552 e 1553, o
governador-geral acompanhado por Manuel da Nóbrega em viagem de inspeção introduziu melhoramentos na
fortaleza. (Cardim/Azevedo 1585/1997: 269 n.).
98
Tradução Itatiaia 2000.
358
pretendessem enriquecer espoliando com resgates e com as armas dos
vencidos (...) pois, como eles mesmos confessam, a única afecção que
possuem é, cada um do seu lado, vingar seus pais e amigos que no passado
os capturaram e comeram
nos pas, quant à ces Barbares, qu‟ils se fassent la guerre pour
conquérir les pays et terres les un des autres (...) moins que les vainqueurs
prétendent de s‟enrichir des dépouilles, rançons, et armes des vaincus (...) Car,
comme eux-mêmes confessent, n‟étant poussés d‟autre affection que de venger
chacun de son côté ses parens et amis, lesquels par le passé ont été prins et
mangés (1578 - 1992: 135).
Assim como Nóbrega, Thevet afirma a perpetuidade da guerra: uma coisa estranha é
que esses americanos jamais fazem entre eles qualquer trégua ou pacto” / “une chose étrange
est que ces Amériques ne font jamais entre eux aucune trêve ni paction (1557 - 1997: 152) e
também, Léry: seus ódios são tão inveterados que eles permanecem perpetuamente
irreconciliáveis / leurs haines sont tellement invétérées qu‟ils demeurent perpétuellement
irréconciliables” (1578 - 1992: 135).
Em 1554, Anchieta observou:
toda esta costa marítima, na extensão de 900 milhas, é habitada por
Índios, que sem excepção comem carne humana; nisso sentem tanto prazer e
doçura que freqüentemente percorrer mais de 300 milhas quando vão à guerra.
E se cativarem quatro ou cinco dos inimigos, sem cuidarem de mais nada,
regressam para com grandes vozearias e festas e copiosíssimos vinhos, que
fabricam com raízes” (II: 113).
359
Além de percorrer longas distâncias em busca dos inimigos, os índios podiam permanecer
de quatro a seis meses nessas expedições. Eles iam acompanhados das mulheres que cuidavam da
alimentação dos guerreiros e que carregavam as redes (Thevet 1588 -2006: 223).
Nos três livros que escreveu sobre a viagem à Guanabara, Thevet dedicou um capítulo ao
“modo como os selvagens guerreavam”. O texto é basicamente o mesmo com pequenas
alterações. Thevet afirma que para irem à guerra os índios podiam reunir de 6 a 12 mil homens
(1557 - 1997: 152), segundo Léry, eles variavam entre 8 a 10 mil (1578 - 1992: 138). Porém,
antes de partir para a guerra, como também narrou Staden, os mais velhos se reuniam sem as
mulheres e as crianças, de modo que cada um pudesse falar de uma vez, com graça e modéstia, e
para que os outros fossem escutados (Thevet 1557 - 1997: 153). Os mais sábios se distinguiam
dos demais, pois, ao invés de sentarem no chão, tinham suas próprias redes.
Segundo Thevet, os índios, com o corpo assentado e em repouso, os espíritos, eles
dizem, ficam mais prudentes e mais aptos a exercer as suas funções e usar os discursos da
razão/ car le corps estant rassis, et en repos, les esprits disent ils, sont plus prudents, et plus
aptes à exercer les functions, et user des discours de la raison (1588 - 2006 : 218). Essas
reuniões poderiam servir para que fossem narrados os sonhos dos guerreiros sobre o resultado
que a guerra teria (Staden 1557 - 1974: 127-128), para consultar os espíritos dos antepassados, ou
ainda para que os mais idosos exortassem os companheiros a serem corajosos e não covardes
como seus inimigos (Léry 1578 - 1992: 136).
Segundo Anchieta,
“na véspera de entrarem em luta, os que tinham vindo doutras partes,
como é costume deles, construiram uma pequena cabana [e] começaram a
oferecer sacrifício aos seus feiticeiros (a quem chamam pagés), perguntando-
lhes que lhes iria suceder no combate” (II: 108-109).
360
De acordo com Soares de Souza, nas noites anteriores à partida para guerra, o Principal ia
às casas incentivar os índios ao combate (1587 - 2000: 280).
Os índios tinham o costume de atacar de madrugada para surpreender os inimigos, embora
o hesitassem em fazer muito barulho até chegar ao local, como narrou Soares de Souza e Léry
sobre o trajeto percorrido pelos Tupinambá. De acordo com o colono, “os roncadores levam
tamboril, outros levavam buzinas, que vão tangendo pelo caminho, com que fazem grande
estrondo, como chegam à vista dos contrários” (1587 - 2000: 280).
Segundo Léry,
tanto ao se desalojar do seu país, como ao partir de algum lugar
onde eles pararam e permaneceram, a fim de ter os outros sob cuidados, há
sempre alguns que fazem soar no meio das tropas as cornetas que eles
chamam Inubia, da largura e da extensão da metade de uma lança, mas
que na extremidade de baixo têm a largura de cerca de meio-pé, como um
oboé. Mesmo alguns têm pífanos e flautas feitos dos ossos dos braços e coxa
daqueles que anteriormente foram por eles mortos e comidos”
tant au déloger de leur pays, qu‟au départir de chacun lieu ils
s‟arrêtent et séjournent, afin d‟avertir et tenir leurs autres en cervelle, il y en a
toujours quelques-uns, qui avec des cornets, qu‟ils nomment Inubia, de la
grosseur et longuer d‟une demie-pique, mais par le bout d‟en-bas large
d‟environ demi-pied comme un Hautbois, sonnent au milieu des troupes.
Mêmes aucuns ont des fifres et flûtes faites des os des bras et des cuisses de
ceux qui auparavant ont été par eux tués et mangés” (1578 - 1992: 138).
De acordo com Thevet, assim que chegavam ao local determinado, punham fogo nas
casas dos inimigos para fazê-los sair com todas os seus pertences, mulheres e crianças /
361
pour les faire sortir hors avec tout leur bagage, femmes et enfants (1557 - 1997: 153). Em
seguida, começavam a flechá-los e
lutavam e mordiam com os dentes e com os lábios que tinham
perfurados em todos os lugares que podiam. Às vezes, para intimidar,
mostravam os ossos daqueles que tinham sido vencidos e comidos na
guerra, em breve, eles usavam de todos os meios para irritar seus inimigos
ils se prennent et mordent avec les dents en tous endroits qu‟ils se
peuvent rencontrer et par les lèvres qu‟ils ont pertuisées, montrant quelquefois
pour intimider leurs ennemis les os de ceux qu‟ils ont vaincus en guerre et
mangés; bref, ils emploient tous moyens pour fâcher leurs ennemis (Thevet
1557 - 1997: 154).
na Cosmographie, Thevet escreveu que quando os Tupinambá guerreavam contra São
Vicente, agiam de forma suis generis, pois não colocavam fogo nas casa, mas,
com fumaça eles dominavam seus inimigos e matavam rios,
arrebatavam as mulheres que são as escravas, filhas dos habitantes do país.
Ora, eles faziam essa fumaça com o da pimenta (...) que colocam na
entrada das casas de pedra que os portugueses constrram. Depois, tacam
fogo nesse pó, que atira tal vapor e fumaça, que é quase impossível
suportar a veemência. E, apenas desse jeito, eles enfumaçavam as pobres
pessoas dentro das suas casas
avec la fumee ils se saisissent de leurs ennemis, en tuẽt plusieurs,
rauissent leurs femmes, qui sont les esclaues, filles des habitans du pays. Or
font-ils ceste fumee de poudre de leur poiure (...) laquel le ils semẽt à l‟entree
des maisons de pierre, que les Portugais y ont bastie: puis met tent le feu en
ceste poudre, laquelle iette vne telle vapeur & fumee, qu‟il est presque
362
imposible d‟en endurer la vehemence, & par ce seul moyen ils enfument ces
pauures gens dans leur maisons” (1575 : 942).
Thevet atribuiu essa diferença em São Vicente ao fato de que as casas construídas pelos
portugueses eram de pedra e, portanto, o pegavam fogo com a rapidez das casas de palha dos
índios. Contudo, é interessante encontrar esse método de guerra associado à cosmologia de um
povo tão belicoso como os Tupinambá e que também praticava o canibalismo: os Yanomami.
Bruce Albert analisou o ciclo tico da “fumaça do metalyanomami. Na década de 80, o
antropólogo percebeu que a cosmologia e a organização social daquele povo constituíam uma
filosofia sobre as relações sociais que eles estabeleciam com os outros seres que habitavam
regiões geograficamente posicionadas em relação a eles, em uma escala concêntrica de
proximidade e distanciamento.
Segundo os Yanomami, a fumaça é o veículo pelo qual os inimigos causam danos que
podem chegar a serem letais. De acordo com o antropólogo, essa filosofia em um primeiro
momento serviu para que os índios pudessem avaliar a aproximação dos brancos e seus efeitos
nocivos (1988).
Na década de 90, Albert percebeu que determinadas transformações nessa mitologia
provocaram uma “virada semântica”, que mostravam que o mito da fumaça do metal não era
mais um mecanismo para que eles pudessem assimilar o contato com branco, ele tinha se tornado
um meio para os índios explicarem para os brancos quem eram (1993)
99
.
Laudonnière forneceu uma descrição da guerra indígena na Flórida que apresenta
semelhanças à guerra tupinambá, por exemplo, na forma como abordavam os inimigos. Escreveu
Laudonnière: os reis do país fazem guerra abordando uns aos outros de surpresa / les
99
Ver também: (Osward 2008).
363
roys du païs se font fort la guerre les uns aux autres laquelle ne se meine que par surprise” (1586
- 1853: 7). Continua ele: matam todos os homens que podem capturar para arrancar-lhes a
cabeça e ter o cabelo, o qual eles levam consigo para chegarem às suas casas em glória. Eles
salvam as mulheres e as crianças, às alimentam e as mantêm com eles / et tuent tous les
hommes qu‟ils peuvent prendre, puis leur arrachent la teste pour avoir leur chevelure, laquelle
ils emportent à leur retour, pour, estans arrivez en leurs maisons, en faire le triomphe: ils
sauvent les femmes et les enfans, et les nourrissent et retiennent toujours avec eux” (1586 - 1853:
7-8).
Apesar de esses índios praticarem o escalpo e não o canibalismo como os Tupinambá,
ambos celebravam suas vitórias da mesma forma.
Sobre os índios da Flórida, escreveu Laudonnière: de volta à guerra, eles juntam a
todos e, alegremente, passam três dias e três noites a dançar e a cantar/ estans de retour
de la guerre, ils font assembler tous leurs sujets, et d‟allégresse ils sont trois jours et trois nuicts
à faire bonne chere, dancer et chanter(1586 - 1853: 8). Porém lá, ao invés do moquém, eles
fazem com que mesmo as mulheres mais velhas do país dancem com os cabelos dos inimigos
nas mãos. Dançam e cantam louvores ao sol, atribuindo-lhe a honra da vitória/ ils font
mesme dancer les plus anciennes femmes du païs, tenans les chevelures de leurs ennemis en la
main, et en dançant chantent louanges au soleil, lui attribuans l‟honneur de la victoire(1586 -
1853: 8).
Assim como os Tupinambá, na Flórida, no combate eles gritam e fazem exclamações.
empreendem a guerra quando, por várias vezes, se reúnem e se aconselham bastante
antes de tomar a decisão / en combatant ils font de grand cris et exclamation. Ils ne font
d‟entreprise qu‟ils n‟assemblent par plusieurs fois leur conseil, et conseillent fort bien une
364
affaire devant que le resouldre(Laudonnière 1586 - 1853: 9). Laudonnière continuou assim o
relato sobre a guerra indígena:
se alguma coisa a fazer, o rei chama os jaruars, quer dizer, os
padres e os mais velhos e pede a eles suas opiniões. Depois, ele pede que
seja feito o casiné, que é uma bebida composta de folhas de uma
determinada árvore. Esse casiné é bebido quente (...) Eles dão tanta
importância a essa bebida que ninguém pode bebê-la sem ter demonstrado
ser um bom guerreiro
s‟il y a quelque chose à traicter, le roy appelle les jaruars, c‟est à dire
leurs prestres et les plus anciens, et leur demande leur advis; puis il comande
que l‟on face du casiné, qui est un breuvage composé des fueilles d‟un certain
arbre; ce casiné se boit tout chauld (...) Ils font si grand cas de ce breuvage,
que nul ne peut boire en ceste assemblée s‟il n‟a fait preuve de sa personne à la
guerre” (1586 - 1853: 10).
Trata-se de um costume análogo à restrição tupinambá, segundo a qual o jovem pode
se casar após ter matado, pelo menos, um inimigo.
Sobre a guerra indígena, Anchieta observou que os índios,
“naturalmente são inclinados a matar, mas não são cruéis: porque
ordinariamente nenhum tormento dão aos inimigos, porque se os não matam no
conflito da guerra, depois tratam-nos muito bem, e contentam-se em lhes
quebrar a cabeça com um pau, que é morte muito fácil, porque às vezes os
matam de uma pancada ou ao menos com ela perdem logo os sentidos. Se de
alguma crueldade usam, ainda que raramente, é com o exemplo dos portugueses
e franceses” (Anchieta 1584 - 1989: 60).
365
Como escreveu Viveiros de Castro sobre os Tupinambá, “em lugar de terem guerra de
religião, como as que vicejavam na Europa do século, praticavam uma religião da guerra” (1993 -
2002: 212). O antropólogo, que fez uma releitura da interpretação de Florestan Fernandes sobre
a função da guerra na sociedade tupinambá”, na qual esta havia sido entendida como um
mecanismo de equilíbrio social, sugere que a guerra “à moda indígena” mantém a
indispensabilidade do outro, e, neste sentido, jamais poderia ser encarada como uma forma de
extermínio. Escreveu Viveiros de Castro: “embora talvez caiba rotular os Tupinambá de
extremamente belicosos, seria muito difícil considerá-los particularmente violentos” (1993 -
2002: 248).
Pelo menos, dois cronistas quiseram saber dos índios o motivo pelo qual eles guerreavam
entre si. Vespúcio escreveu: “quis saber deles as causas das duas guerras e me responderam nada
saberem salvo que nos tempos idos os seus pais assim faziam e por recordação deles a eles
deixada” (1502 - 1984 83).
Anos depois, Thevet escreveu: “se você perguntar por que esses selvagens fazem
guerra uns contra os outros (...), você vai logo entender que a causa da guerra é muito mal
fundamentada: apenas o apetite de vingança, sem outro motivo / si vous demandez
pourquoi ces sauvages font guerre les uns contre les autres (...) vous suffira entendre que la
cause de leur guerre est assez mal fondée, seulement pour appétit de quelque vengeance, sans
autre raison(1557 - 1997: 156).
É interessante notar que essas duas razões dadas pelos índios sejam alogas às respostas
que eles deram quando questionados sobre o motivo pelo qual praticavam o canibalismo: o
costume e a vingança.
366
Canibalismo:
Pigafetta descreveu assim o mito de origem do canibalismo:
os homens e as mulheres são tão bem formados como nós. Às vezes,
eles comem carne humana, mas apenas a dos inimigos, pois não é por
necessidade, nem pelo sabor, que comem, mas por causa de um costume
que, segundo nos disseram, foi introduzido da seguinte forma: uma velha
tinha apenas um filho que foi morto pelos inimigos. Algum tempo depois, o
matador do seu filho tornou-se prisioneiro e foi levado diante dela. Para se
vingar, essa mãe se atirou como um animal feroz sobre ele e despedaçou o
seu ombro com os dentes. Esse homem teve a felicidade não apenas de
escapar, como também de retornar para junto aos seus, aos quais mostrou
a marca dos dentre sobre o ombro, e fez com que eles acreditassem (talvez
ele mesmo acreditasse) que os inimigos queriam devorá-lo vivo. Para não
serem inferiores em ferocidade diante dos outros, eles se determinaram a
comer realmente os inimigos que eles capturavam nos combates, e estes
fizeram o mesmo. Entretanto, eles não os comem imediatamente, nem
vivos, mas os decepam e repartem entre os vencedores. Cada um leva
consigo a parte que lhe cabe, a defuma, e a cada oito dias assa um pequeno
pedaço para comê-lo. Eu soube disso por Jean Carvajo, nosso piloto que
passou quatro anos no Brasil
les hommes et les femmes sont bien bâtis, et conformés comme nous.
Ils mangent, quelquefois la chair humaine; mais seulement celle de leurs
ennemis. Ce n‟est ni par besoin ni par goût qu‟ils s‟en nourrissent, mais par un
usage qui, à ce qu‟ils nous dirent, s‟est introduit chez eux de la manière
suivante. Une vielle femme n‟avoit qu‟un seul fils qui fut tué par les ennemis.
Quelques temps après le meutrier de son fils fut fait prisonnier, et conduit
devant elle: pour se venger, cette mère se jeta comme un animal féroce sur lui,
et lui déchira épaule avec les dents. Cet homme eut le bonheur non-seulement
367
de se s‟évader; mais aussi de s‟en retourner chez les siens, auxquels il montra
l‟empreinte des dents sur son épaule, et leur fit croire (peut-être le croyit-il lui-
même) que les ennemis avoient voulu le dévorer tout vif. Pour ne pas céder en
férocité aux autre, ils se déterminèrent à manger réellement les ennemis qu‟ils
prendroient dans les combats, et ceux-ci en firent autant. Cependant ils ne les
mangent pas sur-le-champ, ni vivans; mais ils les dépècent, et les partagent
entre les vainqueurs. Chacun porte chez soi la portion qui lui est échue, la fait
sécher à la fumée, et chaque huitième jour il en fait rôtir un petit morceau pour
le manger. J‟ai appris ce fait de Jean Carvajo, notre pilote, qui avoit passé
quatre ans au Brésil (s/d: 17/18).
Uma pequena variação nos forneceu Francisco Soares. Segundo ele, o dispositivo para a
prática canibal não foi uma relação de filiação, mas o comerem carne humana foi que um irmão
fez injúria ao cunhado, não o sofreu o cunhado, matou-o e comeu-o, e assim de (sic) dividiram
com guerras” (1591 1989).
Portanto, enquanto o relato de Pigafetta sugere que os índios viviam em estado de
guerra e que o canibalismo é resultado de uma relação consanguínea; na versão de Soares, o
canibalismo teria tido início a partir de uma relação de afinidade e seria a causa das guerras.
Outros europeus também perguntaram aos índios porque eles comiam carne humana. O
padre Azpilcueta escreveu em 1550 que um dos motivos pelos quais se recusava batizar os índios
era porque:
estaren muy araygados en el comer carne humana, de tal manera que,
quando están el traspasamiento deste mundo, piden luego carne humana,
deciendo que no lleva outra consolación sino esta, y si no les aciertan allar,
dicen que va[n] más desconsolados hombres del mundo; la consolación es su
vingança. El más del tiempo gasto en reprender este vicio. La respuesta que
algunos me dan es que no comen sino las viejas. Outros me dicen que sus
368
abuelos comieron, que ellos an de comer tanbién, que es costunbre de se
vengaren de aquella manera, pues los contrarios comen a ellos: que porqué les
quiero tirar su verdadero manjar?” (I: 182).
De acordo com Staden, os índios devoram seus inimigos não para matar a fome, mas por
hostilidade, por grande ódio (1557 - 1974: 176).
Segundo Thevet, a maior vingança praticada pelos selvagens, a que lhes parece mais
cruel e indigna, é comer os seus inimigos/ la plus grande vengeance dont les sauvages usent,
et qui leur semble la plus cruelle et indigne, est de manger leurs ennemis(Thevet 1557 - 1997:
158). Anos depois, Thevet diz que após assistir a um ritual de canibalismo, me informei sobre o
que faziam. Me responderam que era para tornar o coração jovem, a fim de ani-lo a
caminhar corajosamente na guerra contra os seus inimigos, com a esperança de tal honra,
depois de mortos/ m‟estant informe d‟eux de ce façons de faire, me respondirent, que c‟estoit
pour hausser le coeur à la ieunesse, & à fin de l‟animer à marcher hardiment en guerre contre
leurs ennemys, auec l‟espoir d‟vn tel honneur, apres qu‟ils seront decedez (1575: 928). Em
outra passagem, Thevet escreveu: é um engano achar que esse povo come carne humana,
algo muito errado, como se pode inferir pelo que eu disse em outro lugar, pois, isso que
fazem é apenas uma forma de vingança que faz parte do costume/ ce peuple ne mange
gueres autre chair que de celle des hommes: chose tresfaulse comme pourrez cognoistre par le
discours que ie vous en ay fait ailleurs: car ce qu‟ils en fon n‟est que pour vne forme de
vengeance accoustumee entre eux” (1575: 948).
Segundo Léry, a principal intenção deles é, perseguindo e roendo assim os mortos
até os ossos, apavorar e assustar os vivos/ leur principale intention est qu‟en poursuivant et
369
rongeant ainsi les morts jusques aux os, ils donnent par ce moyen crainte et épouvantement aux
vivants” (1578 - 1992: 147).
A opinião de Soares de Souza, também o difere das demais. Ao se referir aos Aimoré
(Tapuia) em comparação aos Tupinambá, ele escreveu primeiro: “comem estes selvagens carne
humana por mantimento, o que não tem o outro gentio que a o come senão por vingança de
suas brigas e antiguidade de seus ódios” (1587 - 2000: 42), e depois, que os Tupinambá comem
os cativos “senão por vingança” (1587 - 2000: 288). Cabe acrescentar que, de acordo com
Barré, eles comiam com tanto prazer, que diziam que era ambrosia e ctar” / ils mengent
auec si grand plaisir, qu‟ils disent que c‟est ambrosie et nectar” (1555: 111).
Não parece restar dúvida que, de acordo com o relato dos cronistas, os Tupinambá
comiam seus inimigos segundo seus costumes e o faziam para que a vingança fosse maximizada.
Viveiros de Castros e Carneiro da Cunha mostraram que a vingança indígena, não pode ser
traduzida em termos cristãos, na medida em que ela, longe de visar um afastamento do próximo
(o outro sofre e eu me alegro com esse sofrimento), serve, ao contrário, para marcar laços de
indissolubilidade que devem ser mantidos. O contrário de uma é o perdão, da outra, a indiferença.
Outra forma de se referir a esse costume tupinambá foi elaborada por Viveiros de Castro e Tania
Stolze, trata-se do perspectivismo ameríndio.
Perspectivimo ameríndio:
Algumas características do perspectivismo permitem que se compreenda certas atitudes
indígenas sob um novo ângulo. Thevet, como outros, descreveu o que entendeu por superstição
dos índios. Sobre as arraias, afirmou que
370
os selvagens do país não a comem de jeito nenhum, assim como a
tartaruga, pois estimam que do mesmo modo que esse peixe é lento quando
se desloca na água, fará com que os que o comem fiquem lentos, o que será
motivo de serem capturados facilmente pelos inimigos e de não poder
segui-los rapidamente durante a corrida
les sauvages du pays n‟en mangeraient pour rien, non plus que de la
tortue, estimant que tout ainsi que ce poisson est tardif à cheminer en l‟eau,
rendrait aussi ceux qui en mangeraient tardifs, qui leur serait cause d‟être pris
aisément de leurs ennemis, et de ne les pouvoir suivre légèrement à la course
(Thevet 1557 - 1997: 120).
Na nota, Lestringant fez o seguinte comentério: cette croyance est symétrique de celle
qui fonde le cannibalisme chez ces mêmes Indiens(1557 - 1997: 345n).
Essa passagem de Thevet, e outras que abundam na literatura dos cronistas, costumam, de
fato, ser interpretadas como uma forma de substancialização indígena que resulta na teoria do
canibalismo como uma extração das propriedades do inimigo através da ingestão. No entanto,
como observou Oliver Allard (2003) a propósito da comensabilidade indígena, concebida de
acordo com a “economia teórica da alteridade”, não é o compartilhar do conteúdo das refeições
(ambos comemos um bife no almoço, logo teremos um comportamento agressivo à tarde), mas o
fato de compartilharmos refeições com frequência, o que estabelece um vínculo entre as pessoas:
porque comemos juntos, conversamos, temos um paladar semelhante, “lavamos a louça” (ou
discutimos sobre isso) preparamos a comida, a roça, enfim, passamos um longo tempo juntos e,
por isso, estreitamos nossas relações.
Essa mesma interpretação no âmbito do perspectivismo ameríndio torna a questão sobre a
manducação indígena mais abrangente. Pode-se dizer que os índios não ingerem os animais
371
lentos e pesados, não porque “acreditam” que essa carne tenha um efeito imediato sobre o seu
corpo, mas porque comê-los (aliás, como os outros animais) normalmente implica uma série de
negociações diplomáticas que podem ser, por exemplo, com os espíritos protetores desses
animais.
Se não se pode afirmar que para os Tupinambá a caça implicava relações desse tipo, ao
menos, sabe-se que eles viviam em um contexto anímico. Para eles, certos não-humanos também
possuíam alma e, neste sentido, subjetividade. Essa concepção sugere que o canibalismo não trata
necessariamente de uma transferência de substâncias, mas que ele é uma forma de relação que o
perspectivismo definiu como a captura do ponto de vista do outro. Não uma unanimidade
neste ponto, mas, segundo Léry, o nome que o matador adquiria não era necessariamente o da sua
tima, ele podia escolher aquele que lhe aprouvesse. Portanto, a perspectiva capturada sequer
precisava ser da vítima.
O diálogo entre o matador e a vítima é um momento privilegiado no qual se pode perceber
um mecanismo, além da contagem das luas, de construção do tempo tupinambá. Ali, ocorre uma
troca de perspectivas, em que a morte é uma continuação da vida, ou seja, da mesma forma que
se vive para matar, se morre para viver, pois aquele que morre abre a possibilidade para a
ocorrência de outras vingaas, e assim sucessivamente. Léry descreveu assim a atitude da
tima:
você acha que (...) ele baixa a cabeça? De jeito algum, pois, ao
contrário, com uma audácia e uma segurança inacreditáveis, se
vangloriando das proezas passadas, ele diz àqueles que o mantêm
amarrado: „eu mesmo, valente que sou, anteriormente prendi e amarrei
vossos pais‟, depois, sempre se exaltando cada vez mais, com a mesma
atitude, vira de um lado ao outro e diz a um: eu comi seu pai; e ao outro:
„eu abati e moqueei seus irmãos‟ (...) „não duvide que para vingar minha
372
morte, os Maragato da minha nação vão também comer o quanto de vocês
eles puderem apanhar‟
pensez-vouz que (...) il en baisse la tête? Rien moins; car, au contraire,
avec une audace et asseurance incroyable, se vantant de ses prouesses passées,
il dira à ceux qui le tiennent lié: „J‟ai moi-même, vaillant que je suis,
premierèment ainsi lié et garrotté vos parents‟; puis s‟exaltant toujours de plus
en plus, avec la contenance de même, se tournant de côté et d‟autre, il dirá à
l‟un: „J‟ai mangé de ton père‟; à l‟autre: „J‟ai assommé et boucané tes frères‟
(...) „ne doutez pas que, pour venger ma mort, les Margajas de la nation dont je
suis n‟en mangent encores ci-après autant qu‟ils en pourront attraper‟” (1578 -
1992: 143-144).
Thevet narrou o diálogo desta forma: nós somos, eles dizem em seu dialeto, valentes e
audaciosos, comemos seus pais, assim como vocês comeram os nossos, e nós teremos suas
mulheres e crianças / nous sommes, disent ils en leur patois, vaillans, et hardis, et avons
mangé voz parents, aussy vous mangerons nous, et aurons vos femmes, et enfans(1588 - 2006:
225).
Esse diálogo, como parte do complexo ritual da guerra tupinambá é um momento sui
generis, no qual é possível vislumbrar o intercâmbio de perspectivas que define o canibalismo.
Máquina do tempo que permite que passado e futuro sejam constitdos no presente, o diálogo é
igualmente um exemplo daquilo que Viveiros de Castro e Tania Stolze definem como
perspectivismo ameríndio. A tima captura a posão do referente, e com ela de humanidade,
tornando o matador um animal. Este, então, mata o humano como animal, mas para acionar a
quina do tempo não come a vítima e passa por um processo de reclusão que lhe restitui a
humanidade, permitindo assim que seus companheiros tornem-se animais e devorem a vítima.
373
Trata-se de um processo que pode parecer complicado a primeira vista, mas que está baseado no
princípio de que quem tem o ponto de vista detêm igualmente a prioridade da humanidade e,
aqueles que agem de forma diferente são consequentemente não-humanos, no caso animais. Daí a
famosa resposta de Cunhambebe a Staden quando este o censurou por estar comendo um
semelhante: “sou um jaguar. Está gostoso” (1557 - 1974: 132).
Segundo Thevet,
as onças que são os animais mais perigosos daquele país porque
elas guerreiam com os animais e com os homens (...) quando esse animal é
capturado (...) a presa é levada ao centro da aldeia, as mulheres as vestem
com plumagem de todas as cores (assim como fazem com um prisioneiro
quando chega o momento de ele ser comido), colocam braceletes nos
braços, e, com o animal dessa forma, dizem chorando na sua língua: peço-
te que não querias vingar nossas crianças pequenas por você ter sido
capturada assim, morta por causa da sua ignorância, pois não fomos nós
que te enganamos, mas você mesma (...) Portanto, que sua alma não
aconselhe aos seus semelhantes a vingar sua morte sobre nossas crianças.
Ai de mim!
vous y trouuez des Onces, qui sont les bestes les plus dangereuses de
tout ce pays là, parce qu‟ils font la guerre aux bestes & aux hõmes (...) trouuãs
cest animal prins (...) la proye portee au millieu du village, laquelle les femmes
accoustrent de pennaseries de toutes couleurs: (tout ainsi qu‟il font vn
prisonnier lors qu‟il doit estre mangé) luy mettant des brasselets aux bras, &
tenant la beste assise la pleurent, disant en leur langage: Ie te prie ne vueille
pas venger sur noz petis enfans de ce que tu as esté ainsi prins & tué par ton
ignorance, car ce n‟a pas esté nous qui t‟auons ainsi trompé, mais bien toy
mesmes (...) Partant que ton ame ne donne conseil aux autres tes semblables de
venger ta mort sur noz enfans, helas!(1575: 937).
374
Ou seja, de acordo com esse relato de Thevet, a onça sofre o mesmo tratamento ritual do
cativo,
100
exceto o conteúdo do diálogo cerimonial. Não se constrói o devir com a onça, ao
contrário, suplica-lhe que não se vingue. O canibalismo é demasiadamente humano.
Em seu livro O canibal, Lestringant escreveu:
essa figura, na qual o corpo ingerido está no epicentro, é, semvida, a
Eucaristia. Na comunhão católica, anglicana ou luterana, um corpo
indestrutível, que comemos indefinidamente e do qual se nutre e cresce, ao
longo das semanas, dos anos e dos séculos, a comunidade dos fiéis. Esse corpo
que os calvinistas relegam ao céu, aos antípodas de uma terra pegajosa, feita de
carne partilhada e de sangue derramado, os católicos não cessam de o oferecer
em sacrifício propiciatório. Eis aí, indiscutivelmente, o cerne do caso canibal
que precisaria de outros volumes para ser explicado” (1994 - 1997: 20).
Pode-se se dizer que a discussão sobre a Eucaristia que, segundo Berger, teve início nos
primórdios do cristianismo
101
, perdeu hoje, no âmbito confessional, a centralidade que tinha, por
exemplo no século XVI. Por outro lado, por mais lábil que seja o caráter do canibalismo stricto
senso, como escreveu Lévi-Strauss: “em todas as observações de que dispomos desde o século
XVI até nossos dias, vemos tais costumes surgirem, se difundirem e desaparecerem num lapso de
tempo por vezes muito breve” (1984 - 1991: 142), o fato é que os modos à mesa jamais
deixaram de fazer parte do cotidiano indígena, despertando reflexões filoficas, sobretudo
porque delas, muitas vezes, dependem a sobrevivência das pessoas.
100
Ver também Cardim (1590 - 1997: 68).
101
Diz ele: “alguns comentaristas modernos acham graça nos violentos debates na Igreja primitiva sobre a questão se
Deus é Cristo deveriam ser entendidos como homoiousion („de substância semelhante‟ ou como homoousion („da
mesma substância‟) toda essa agitação por causa de uma letra! Mas nesta letra grega iota estava a questão toda de
como Cristo podia ser a esperança de salvação do homem. A fórmula homoousion foi finalmente aceita pela Igreja,
não por causa de alguma esotérica lógica filosófica, mas porque era necessário à afirmar que era Deus,
verdadeiramente Deus, que estava encarnado em Cristo, sofreu e ressuscitou para a salvação do homem” (1969 -
1973: 120).
375
Religião indígena?
Uma questão interessante que começou a ser discutida logo que os primeiros europeus
encontram os índios, diz respeito ao que se pode considerar como religião indígena. O adágio
“sem f, l e rfoi repetido por inúmeros cronistas, que na maioria das vezes o sabiam como
conciliar a ausência de uma religião indígena com os relatos que ouviam sobre a imortalidade da
alma e o contato com os espíritos.
Em um capítulo do livro de Staden denominado No que acreditam”, ele afirma que os
índios idolatravam o maracá e que havia entre eles uma espécie de profeta, que chamavam de
pajé. Estes visitam os índios uma vez por ano, quando entravam em suas cabanas e os índios
falavam com os maracás. Escreveu Staden: ordenam-lhes então os adivinhos que partam para
guerra na captura de inimigos, pois apetece aos espíritos que estão nos maracás comer carne
escrava” (1557 - 1974: 174). Ainda segundo Staden,
com o verdadeiro Deus, que creou o céu e a terra, o se preocupam.
Crêem, de longa tradição, que o céu e a terra sempre existiram. Aliás, nada
sabem de particular do início do mundo, apenas narram que houve uma vez
uma vastidão de águas na qual todos os seus antepassados morreram afogados.
Somente alguns daí escaparam numa embarcação e outros sobre altas árvores.
Penso que deve ter sido o dilúvio (1557 1974: 174).
Em 1557, Thevet intitulou De la religion des Amériques” um capítulo do seu livro. Ele
começa assim: nós dissemos que essa pobre gente vive sem religião e sem lei, o que é
verdade/ nous avons dit que ces pauvres gens vivaient sans religion et sans loi, ce qui est
véritable(- 1997: 123). Em seguida, assim como Léry cita Cícero, quando afirma que não
criatura no mundo capaz de ao ver a ordem da natureza não julgar que ela tenha sido elaborada
376
por alguém superior aos homens, por conseguinte, não existe nação tão bárbara, que por um
instinto natural não tenha alguma religião e algum conhecimento de Deus. Ambos, como, aliás,
também fizeram os jesuítas, procuraram entender como povos sem religião se relacionavam com
as divindades.
Uma maneira foi estabelecer uma associação entre Deus e Tupã. Segundo Thevet, os
índios que não tinham nenhuma forma de rezar ou de honrar/ n‟ont aucune manière de
prier ni honorer (1557 - 1997: 123) descreviam Tupã como grande e sem moradia fixa, que
contava segredos para os profetas. Ele diz que quando falou-lhes de Deus, eles escutaram com
admiração e perguntaram se por acaso não era aquele que os tinha ensinado a plantar a batata-
doce.
Léry conta que, junto com os calvinistas quando souberam que os índios chamavam o
trovão de Tupã,
aproveitamos a ocasião para dizer-lhes que era Deus que nos
falava, que ele, para mostrar sua grandeza e força, fazia assim tremer o
céu e a terra. A resposta deles a isso foi que, uma vez que ele os
amedrontava dessa forma, não valia nada
prenoins de particulièrement occasion de leur dire, que c‟était le
Dieu dont nous leur parlions, lequel pour montrer sa grandeur et puissance,
faisait ainsi trembler ciel et terre, leur résolution et réponse à cela étaient, que,
puisqu‟il les épouvantait de telle façon, qu‟il ne valait donc rien(1578 - 1992:
152).
Léry iniciou o capítulo Ce qu‟on peut appeler religion entre les sauvages Américains”,
com a mesma passagem de Cícero citada por Thevet. Sobre ela, escreveu: “quando eu considero
de perto nossos Tupinambá da América, não me acho, de forma alguma, impedido no que
377
toca à aplicá-la naquele lugar / quand je considère de près nos Toüoupinambaoults de
l‟Amerique, je me trouve aucunement empêché touchant l‟application d‟icelle en leur endroit
(1578 - 1992: 151). Apesar, diz ele, de serem politeístas, e, como também escreveu Thevet, do
fato de que “não confessam, nem adoram qualquer deus celeste ou terrestre/ ils ne
confessent, ni n‟adorent aucuns dieux célestes ni terrestres(Léry 1578 - 1992: 151), pois, não
obstante todas as cerimônias que fazem, não adoram de joelhos ou de outras formas
externas seus Caraíbas, nem seus maracás e nem quaisquer criaturas, menos ainda rogam
ou as invocam/ nonobstant toutes les rémonies qu‟ils font, n‟adorent par fléchissement de
genoux ou autres façon externes leurs Caraïbes ni leurs Maracas, ni créatures quelles qu‟elles
soient, moins les prient et invoquent” (1578 - 1992: 159).
Além disso, diz Léry, “ignorando a criação do mundo” / ignorant la création du
monde” (1578 - 1992: 151) contam o tempo pelas luas e não possuem a escrita. A prosito, para
Léry, foi por esse motivo que os índios atribuíram aos brancos o dom da profecia, a saber,
quando notaram que prescindiam da oralidade para se comunicarem. Como nos conta Léry,
quando no início eu fui ao seu país para aprender a língua, eu
escrevia algumas frases e lia para eles em seguida. Eles, estimando que isso
era feitiçaria, diziam entre si: „não é maravilhoso que este que ontem não
soube dizer uma palavra na nossa língua, em virtude desse papel que ele
tem, e que ele faz falar, seja agora compreendido por nós?‟ Essa é a mesma
opinião que os selvagens da Ilha Espanhola têm dos espanhóis que lá
primeiro chegaram, pois aquele que escreveu essa história disse assim: „os
índios sabem que os espanhóis sem ver nem falar entre si, apenas enviando
cartas de um lugar para o outro, se entendiam. Deste modo, acreditavam
que eles tinham o espírito da profecia ou que as missivas falavam
378
quand du commencement que je fus en leur pays pour apprendre leur
langue j‟écrivais quelques sentences, leur lisant puis après devant, eux estimant
que cela fût une sorcellerie, disaient l‟un à l‟autre: N‟est-ce pas merveille que
cestui-ci qui n‟êut su dire hier un mot en notre langue, en vertu de ce papier
qu‟il tient, et qui le fait ainsi parler, soit maintenant entendu de nous?‟ Qui est
la même opinion que les sauvages de l‟Ile Espagnole avaient des Espagnols qui
y furent les premiers; car celuy qui en a écrit l‟histoire dit ainsi: „Les Indiens
connaissant que les Espagnols sans se voir ni parler l‟un à l‟autre seulement en
envoyant des lettres de lieu en lieu s‟entendaient, de cette façon, croyaient ou
qu‟ils avaient l‟esprit de prophétie, ou les missives parlaient (1578 - 1992:
151-152).
Algo semelhante ocorreu quando Gonneville esteve na América. Segundo ele, os Carijó
também dizem que se os cristãos fossem anjos descidos do céu não
seriam mais estimados por esses pobres índios, que estavam todos assombrados
com a grandeza do navio, com a artilharia, os espelhos e outras coisas que eles
viam, e sobretudo com o fato de que, por um recado escrito que se enviasse
de bordo aos tripulantes que estavam nas aldeias, se lhes fizesse saber o que se
queria; eles não conseguiam explicar como o papel podia falar. Também por
isso os cristãos eram por eles temidos” (Perrone-Moisés, Leyla 1992:23).
no século XX, ao presenciar o fenômeno entre os Nambiquara, quando então um chefe
se apropriou, à maneira indígena, desse procedimento, Lévi-Strauss, pode notar na prática a
relação entre a escrita e o poder (1955 - 1993: 278-288).
Havia outro problema para os cronistas. De acordo com Hemming,
as early as 1514, a European visitor [um alemão chamado Anon] to
Brazil reported: „They have a recollection of St Thomas on the interior of the
country. When they speak of St Thomas they call him little god, but say that
379
there was another greater god In the country they frequently call their sons
Sumé” (1978: 46-47).
No mesmo ano que chegou ao Brasil, Nóbrega escreveu da Baía:
“me contou pessoa fidedigna que as raizes de que se faz ho pão, que
S. Thomé as deu, porque cá nom tinhão pão nenhum. E isto se sabe da fama que
anda entre elles, quia patres eorum nuntiaverut eis. Estão daqui perto humas
pisadas figuradas em huma rocha, que todos dizem serem suas” (1549, I: 117).
Em outra carta, no mesmo ano, ele disse que os índios,
m notícia do dilúvio de Noé, posto que o segundo a verdadeira
hisria, porque dizem que morreram todos excepto uma velha que escapou
numa árvore alta. E também têm notícia de São Tomé e de um seu
companheiro; e nesta Baía estão umas pegadas numa rocha que se têm por suas,
e outras em São Vicente, que é no cabo desta costa. Dizem dele que lhes deu o
mantimento, que eles agora têm, que são raízes e ervas; estão bem com ele,
posto que de um seu companheiro dizem mal, e o sei a causa, a o ser a que
ouvi dizer que as frechas que lhe atiram se tornavam aos que as atiravam e os
matavam. Espantam-se muito em ver o nosso culto divino e a veneração que
temos às coisas de Deus” (brega 1549, I: 138)
102
.
Uma terceira vez o padre voltou ao tema:
dizem eles que Santo Tomé, a quem chamam Zomé, passou por aqui. E
que suas pisadas estão sinaladas junto de um rio, as quais eu fui ver por mais
certeza da verdade, e vi com os próprios olhos quatro pisadas mui sinaladas
com seus dedos, as quais algumas vezes cobre o rio, quando enche. Dizem
também que quando deixou estas pisadas, ia fugindo dos Índios, que o queriam
frechar, e chegando ali s lhe abrira o rio, e passara por meio dele, sem se
102
Tradução Itatiaia 2000.
380
molhar, à outra parte. E dali foi para a Índia. Assim mesmo contam que quando
queriam frechar os Índios, as frechas se tornavam para eles e os matos lhe
faziam caminho por onde passasse. Outros contam isto como por escárnio,
Dizem também que lhe prometeu que havia de tornar outra vez a vê-los” (1549,
I: 153-154).
Em 1552, o irmão Vicente Rodrigues também anunciou a presença do Apóstolo. Em uma
carta escrita na Baía, ele diz que: hua cruz hicimos y fuimos en procissión, y pusímosla en las
pisadas de S. Thomas, que está cerca(I: 411). “Yo estoi en uma de estas Aldeas, cerca de las
pegadas de S. Thomas” (I: 412). O que foi confirmado por Francisco Pires, quando disse que:
“ho irmão Vicente Rodriguez está daqui quatro legoas pella Baya
adentro e tem cuidado de visitar algumas Aldeas de gentios, onde por terem
mais comunicação hos Padres e serem mais achegados parentes destes
novamente convertidos, e nos terem muita afeição, está mui certo antre elles; e
junto donde dizem estar as pegadas de Sancto Thomé” (1552, I: 397).
Anchieta entendeu que os índios:
m alguma notícia do dilúvio, mas muito confusa, por lhes ficar de
o em mão dos maiores e contam a hisria de diversas maneiras. Também
lhes ficou dos antigos notícia de uns dois homens que andavam entre eles, um
bom e outro mau, ao bom chamavam Cume, que deve ser o apóstolo S. Tomé, e
este dizem que lhes fazia boas obras mas não se lembram em particular de nada.
Em algumas partes se acham pegadas de homens impressas em pedra, máxime
em São Vicente, onde no cabo de uma praia, em uma penedia mui rija, em que
bate continuamente o mar, estão muitas pegadas, como de duas pessoas
diferentes, umas maiores e outras menores que parecem frescas como de pés
que vinham cheios de areia, mas reverá elas estão impressas na mesma pedra.
Estas é possível que fossem deste Santo Apóstolo e algum seu discípulo(1584
- 1989: 62).
381
Segundo Soares de Souza,
do porto de Paripe se vai a terra afeiçoando à maneira de ponta lançada
ao mar, e corre assim obra de uma légua, onde está uma ermida de São To
em um alto, ao do qual ao longo do mar estão umas pegadas assinaladas em
uma lájea, que diz o gentio, que diziam seus antepassados que andara por ali
havia muito tempo um santo, que fizera aqueles sinais com os pés” (1587 -
2000: 108).
Cardim também tocou no assunto:
“não deixam cair cabelo nas partes de seu corpo, porque todos arrancam,
somente os da cabeça deixam, os quais tosquiam de muitas maneiras, porque
uns trazem comprido com uma meia lua raspada por diante, que dizem tomaram
este modo de São Tomé, e parece que tiveram dele alguma notícia, ainda que
confusa” (1590 - 1997: 170).
Enquanto os jesuítas escutaram dos índios que o Tomé havia estado na Bahia e em São
Vicente, Léry que esteve com os índios do Rio de Janeiro, narrou detalhadamente uma cerimônia
que presenciou junto com outros dois companheiros. Os índios cantaram, dançaram e usaram os
maracás para se comunicarem com os espíritos. O truchement traduziu para Léry que os índios
lamentaram seus antepassados mortos e muito valentes, mas que se consolavam, pois sabiam que
após a morte eles se encontrariam atrás das montanhas, onde dançariam e se alegrariam. Em uma
das caões, os índios mencionaram que uma vez as águas cobriram toda a terra, quando todos, à
exceção dos seus avôs que se salvaram no topo das árvores mais altas que existiam, se afogaram.
Léry interpretou essa canção como prova de que os índios tiveram conhecimento de Noé.
Em outra passagem, Léry contou que durante duas horas falou aos Tupinambá sobre a
criação do mundo. Um ancião então lhe disse:
382
sua arenga me faz rememorar o que nós escutamos nossos avôs
narrarem várias vezes, a saber, que muito tempo, tantas luas que
nem podemos contar, um Mair, quer dizer, um francês ou um estrangeiro,
vestido e barbado como algum de vocês, veio a esse país. Pensando
submetê-los à obediência de seu Deus, usou a mesma língua que vocês hoje
usam conosco, mas, como entendemos de pai para filho, eles não quiseram
acreditar. Depois que ele partiu, veio um outro que, signo de maldição,
tomou-lhe a espada, com a qual, desde então, nós nos matamos uns aos
outros
votre harangue m‟a fait remémorer ce que nous avons ouï réciter
beaucoup de fois à nos grands-pères: à savoir que dès longtemps et dès le
nombre de tant de lunes que nous n‟en avons peu retenir le compte, un Mair,
c‟est-à-dire Français ou étranger, vêtu e barbu comme aucuns de vous autres,
vint en ce pays ici, lequel, pour les penser ranger à l‟obéissance de votre Dieu,
leur tint le même langage que vous nous avez maintenant tenu; mais, comme
nous avons aussi entendu de re en fils, ils ne voulurent pas croire; et partant
il en vint un autre, qui, en signe de malédiction leur bailla l‟épée de quoi depuis
nous nous sommes toujours tués l‟un l‟autre” (1578 - 1992: 160).
Para Léry, essa narrativa indígena significava que um dos Astolos, provavelmente São
Matheus, havia anunciado o Evangelho para os índios. Assim, ali, onde os católicos viram a
presença de São Tomé, Léry entendeu ter sido São Matheus. Como se pode notar, foi no contexto
daquilo que os cronistas entenderam por “religião indígena” que eles inseriram o que entenderam
como referências feitas pelos índios a São Tomé e ao dilúvio universal
103
.
103
De acordo com Gerbi, “em fins do século XIII Marco Polo e outros haviam encontrado traços seguros de
cristianismo na Índia e, com base em uma tradução apócrifa, mas suficientemente antiga, os atribuíram a um dos
doze apóstolos, o Tomé (o incrédulo). Assim, quando o alucinado genovês descobriu as „Índias‟ ocidentais, a
Europa já estava predisposta a acreditar em uma tese análoga, o que aconteceu quase imediatamente e com tal efusão
que o sábio Guicciardini (morto em 1540) considerou oportuno manifestar seu ceticismo (: 238).
383
Como ironicamente observou Viveiros de Castro, “não deixa de ser sugestivo, caso os
índios tivessem reconhecido o santo calico, a escolha, justamente, pelo o único que ficou
conhecido como o incrédulo” (Viveiros de Castro 1993 - 2002: 185).
Em “O rmore e a murta”, o antropólogo desenvolveu o argumento segundo o qual não
é possível entender a relação dos índios com os não-humanos partindo do pressuposto de que
para eles crer em alguma coisa é uma questão. Neste sentido, gostaria de chamar atenção para o
seguinte problema: os índios narraram repetidamente a europeus de origens diversas uma
passagem da sua mitologia que dizia respeito a Sumé e a uma inundação que no passado teria
atingido quase todos os seres. Além disso, é notável que o mesmo mito tenha sido narrado em
lugares diferente (Bahia, São Vicente e Rio de Janeiro), que as mesmas “pegadas” de Sumé
estivessem nos três lugares. Assim, ao invés de indagar sobre a condição ou não universal da
humanidade, como fizeram os homens do século XVI, talvez fosse o caso de procurar pensar essa
mitologia indígena à luz daquilo que Gow sugeriu sobre o mito dos pecaris de lábios brancos
entre os Piro, isto é, que o mito tupinambá não era apenas um mito sobre o branco, mas,
sobretudo um mito para o branco (2001: 185-186).
Como escreveu Hélène Clastres: quant aux sources du XVII
e
, elles sont tout aussi
laconiques et elles donnent à penser que sormais les Indiens ne racontaient plus de leurs
mythes que ce qu‟ils savaient intéresser les Blancs” (1975 : 29).
Lévi-Strauss (1991-1993) e depois Viveiros de Castro (2000 e 2002) analisaram a
mitologia tupinambá e demonstraram o caráter filofico da mesma, no sentido em que ela
expressa a ideia de um sistema em perpétuo desequilíbrio que, em última análise, retrata a
concepção que os índios tinham - e provavelmente ainda têm - da natureza das suas relações
sociais com os brancos. Trata-se de um ciclo tico que remonta há pelo menos cinco séculos. A
384
ideia de que os índios tentaram durante todo esse tempo dizer isso aos brancos, leva-nos a olhar
mais de perto a mitologia tupinambá.
Mitologia tupinambá:
Na História de Lince, Lévi-Strauss mostrou determinadas correlações estruturais entre o
mito tupinambá descrito por Thevet
104
e mitos contemporâneos coletados na América do Norte
que tratam do problema da “gemelaridade” e da origem dos Brancos. Em ambos, há os seguintes
incidentes: o herói é feio, mas no final se revela belo; uma gravidez que ocorre porque a
mulher come um peixe, ou lambe esperma ressecado, ou urinam sobre ela; ocorre uma prova de
reconhecimento da paternidade na qual a criança tem que escolher o arco e a flecha do pai, que
também aparece como forma de determinação o sexo, quando é oferecida a criança um cesto ou
um arco; a presença de gêmeos; a fecundação de um dos irmãos meos por pais diferentes;
crianças que conversam com a mãe no ventre. Seguem duas passagens do mito tupinamnas
quais esses incidentes estão presentes. De acordo com o relato de Thevet:
eles dizem que um pai de família tinha na sua casa um criado do
grande Monan chamado Maire Pochy, que ele mantinha como servidor e
escravo. Esse Pochy, apesar de feio e desfigurado, era de muita valia em
todas as coisas para seu mestre. Quando ia caçar ou pescar jamais
retornava sem trazer alguma coisa, pois ele sabia os segredos de Monan e
era um grande Caraíba, apesar de sua aptidão, grande poder e excelência
não serem conhecidos. Quando um dia Maire Pochy retornou da pescaria,
trouxe certo peixe, o qual Quoniathe, a saber, a filha do seu senhor, pediu
um bocado para matar a fome. Mas, assim que ela comeu, se sentiu
grávida de Cognomimery, que é de criança. Sem limite de tempo e sem
104
Não se sabe como Thevet teve acesso a esse mito. Especula-se que algum truchement o tenha transcrito.
385
esperar o termo prefixado às outra mulheres, ela deu a luz à uma bela
criança. Todos os parentes da moça ficaram espantados com o acidente,
sobretudo a mãe que tinha sido uma guard muito cuidadosa. Ela
perguntou a filha quem tinha feito aquilo, e a filha respondeu que jamais
homem algum havia tocado-a. Não obstante, ela chamou todos os homens
da aldeia com seu arco e suas flechas para presentear a criança e ver de
quem ela pegaria o arco e as flechas, certa de que aquele seria o pai da
criança, assim como os antigos Caraíbas tinham ensinado. A criança se
recusou a pegar o arco e a flecha de todos os pretendentes. No fim, a mãe
sugeriu que Maire Pochy viesse e trouxesse seu arco que ainda não tinha
sido oferecido para a criança. A pequena criança pegou-o nas suas mãos
ils disent qu‟un pere de famille avoit en sa Maison un familier du
grand Monan, lequel se nommoit Maire Pochy, lequel il tenoit comme son
serviteur et esclave. Ce Pochy, quoy qu‟il fust laid et desfiguré, estoit de grand
profit en toutes choses pour son maistre, d‟autant que fust à la chasse, à la
pescherie, il ne s‟en venoit jamais sans aporter quelque chose; car il sçavoit les
secrets de Monan, et estoit grand Caraibe, quoy qu‟on ne congneust point sa
suffisance, grand pouvoir et excellence. Ce Maire Pochy venant un jour de la
pescherie, apporta certain poisson, duquel la Quoniathe, a sçavoir la fille de
son Seigneur, luy demanda quelque peu pour s‟en repaistre; ce qu‟il luy
accorda. Mais des qu‟elle en eut mangé, elle se sentit grosse de Cognomimery,
qui est d‟enfant: laquelle sans temps limité, et sans attendre le terme prefix aux
autres femmes, enfanta un fort bel enfant. Tout les parents de la fille furent
estonnez d‟un tel accident, et sur tout la mère, qui en avoit esté tressoigneuse
gardienne; laquelle s‟enquerant qui ce avoit fait, luy fut respondu par la fille,
que jamais homme ne l‟avoit attouchee. Ce nonobstant feit on venir tous les
hommes du village, portants chacun son arc et ses flesches, pour les présenter à
l‟enfant, et voir dequi il prendroit les flesches et l‟arc, s‟asseurans que celui
seroit son pere, ainsi qu‟ils avoient esté enseigné par les anciens Caraibes.
Mais le enfant refusa de prendre l‟arc de quelque ce fust des assistans. La mère
386
à la fin conseilla, que Maire Pochy vint, et portast son arc à l‟enfant, lequel ne
l‟eut pas si tost presenté, que le petit enfant le receut, et print de sa
main (Thevet 1575: 918).
Na sequência do mito, os índios se separam de Pochy e de sua família e se tornam
carentes de tudo. Vivendo em abundância, Pochy resolve se vingar dos índios que o aceitaram
ele ter engravidado a jovem e fez com que eles fossem transformados em porcos e pássaros,
que eles chamam Marganan-tressatá, que são espécies de papagaios, entre outros/ furent
changez en pourceaux et oyseaux, qu‟ils appelent Marganan-tressa qui sont espèce de
Pèrroquetz, et autres”. O sogro se transformou em crocodilo, a sogra em tartaruga de água doce e
os outros parentes em cigarras e grilos (Thevet 1575: 918).
Maire-Pochy teve um neto, Maire-Ata. Este
tomou uma mulher em seu país. Quando ela engravidou, ele
fantasiou ir para regiões distantes. Para isso, pegou sua esposa e se pôs no
caminho. Ela, que estava pesada por causa da gravidez, não podendo
acompanhar o ritmo do marido, começou a descansar. Ele que queria
prová-la, deixou-a só. O fruto que ela tinha na barriga falava com ela e a
confortava, ensinado-lhe o caminho que o pai tinha seguido (...). Ora, esse
filho do Caraíba começou a se irritar e a despistar a mãe porque ela se
recusou a dar a ele pequenos legumes que haviam pelo caminho. Parou de
respondê-la e de ensinar-lhe o caminho. Esse foi o motivo pelo qual a pobre
mulher se perdeu de modo que trocou um caminho pelo o outro e foi parar
numa horta de um homem chamado Sarrigóys. Ele a recebeu e, vendo-a
perdida, pediu que ela descansasse na sua casa, na esperança de seduzi-la e
desfrutá-la. Ela, que precisava descansar, obedeceu e se deitou. Mas o
homem quando a viu dormir foi se deitar com ela e usou de sua companhia
como quis, de forma que a engravidou de outro filho. Este, na barriga dela,
teve a companhia do primeiro filho
387
qui print une femme de son pais: et elle estant enceinte, luy prinst
fantaisie de s‟en aller és regions lointaines: pour ce prenant sa femme, se meist
en chemin. Elle qui estoit pesante à cause de sa grosseur, ne pouvant aller
autant que son mary se meist à reposer: luy qui voulut l‟esprouver, la laissa
toute seule (...) Le fruict qu‟elle avoit au ventre, parloit avec elle, et la
confortoit luy enseignant le chemin que son père avoit suivy (...) Or ce fils du
Caraibe se commença à courroucer, et despiter contra sa mere, à cause qu‟elle
refusa de luy donner de petites legumes, qui estoient par les chemins: et pource
cessa il de luy donner response, et luy enseigner le chemin: qui fut cause, que
la pauvre femme s‟esgara si bien que prenant un chemin pou l‟autre, elle vint
en un jardinage, se tenoit un homme appelé Sarrigóys, lequel la receut, et la
voyant lasse, la pria de se reposer en sa maison, espérant la decevoir et en
jouir. Elle qui avoit besoing du repos, luy obeyt, et se coucha: Mais ledit
homme la voyant endormie, se vint coucher avec elle, et eust sa compaignie,
comme bon luy sembla, si bien qu‟il lengrossit encor d‟un autre fils, lequel tint
au ventre compaignie au premier (Thevet 1575: 919).
Esses meos de pais diferentes nascem e saem em busca de vingar a mãe e encontrar o
pai. Este obrigará as crianças a uma série de provas nas quais o filho “verdadeiro” sempre vai
ajudar o “bastardo”.
A prova da determinação do pai da criança que no mito norte-americano aparece como
determinação do sexo da criança, faz parte daquilo que Lévi-Strauss chamou de sentença
fatídica”, isto é, um caso de gemelaridade em estado virtual, que afirma que “toda unidade
contém uma dualidade”, mas que, quando se atualiza, expressa a ideia de que “não importa o que
se queria o que se faça, não pode haver verdadeira igualdade entre as duas metades” (Lévi-
Strauss 1991 1993: 67)
388
À temática da sentença fatídica, Viveiros de Castro acrescentou outras duas: a da “má
escolha e a da “vida breve” (2000). Começo pela primeira, exemplificando-a por meio da
análise de Hugh-Jones de um mito tukano.
Segundo uma versão do mito Barasana, depois que terminou de preparar o mundo,
Wãrabi criou o primeiro povo que veio do oriente na barriga de uma anaconda até região Vaupés.
emergiram da água os ancestrais dos diferentes grupos exogâmicos. O último a nascer foi o
ancestral dos Brancos. Quando o herói cultural ordenou que se banhassem, o Branco foi o
primeiro a mergulhar na água e saiu dela limpo e branco. Ele foi seguido pelo ancestral dos
Negros que adquiriu a cor da água que estava suja. O índio, com medo da água, não se banhou e
por isso se tornou inferior aos Brancos.
O herói cultural então ofereceu uma espingarda, um arco e alguns ornamentos rituais.
Com a primazia da escolha, os índios escolheram o arco e os ornamentos e deixaram para o
homem branco a espingarda (Hugh-Jones 1988: 143-144).
Ao analisar essa passagem do mito, Hugh-Jones afirmou:
the contrast between Whites and Indians is characterized by an
ambiguity which is also evident in contexts other than that of myth. Although in
reality it is the more powerful White People who have largely determined the
Indians present situation and although it was they who imposed the category
„Indian‟ which the Indians themselves now use, the myth suggest otherwise. By
failing to choose the gun and by refusing to accept baptism and incense, the
symbols of Christianity, the Indians are presented as having determined their
own status and as being responsible for their present situation” (1988: 145).
Segundo Manuela Carneiro da Cunha, interpretações como esta fazem parte da
percepção de uma potica e de uma consciência histórica em que os
índios são sujeitos e o apenas timas (...) É significativo que dois eventos
389
fundamentais - a nese do homem branco e a iniciativa do contato - sejam
freqüentemente apreendidos nas sociedades indígenas como produto de sua
própria ação ou vontade” (1992: 18).
De acordo com Hugh-Jones, embora haja culpa e autocrítica, os mitos também sugerem
the Indians‟ moral superiority”, pois especulam sobre noções como caráter, essência,
comportamento e temperamento e neste sentido, estabelecem um contraste entre a agressividade
dos Brancos e as qualidades dos índios, tais como a tranquilidade, a reflexão e o controle. Tais
características, afirma o antropólogo, estão por trás da recusa do banho e de pegar a espingarda.
Se o arco implica fraqueza, ele também representa adaptação à floresta, algo que os Brancos são
ineptos (1988: 146-147).
Como escreveu Viveiros de Castro, “o tema da escolha das armas aparece nesta mesma
forma entre os Tupinambá do Maranhão seiscentista (ele foi registrado por Abbeville junto aos
Tupinambá de Momboré-uaçu), na mitologia alto-xinguana contemporânea, e em muitas outras”
(2000: 9). E,
“no mito quinhentista de Thevet, a ruptura do demiurgo (de quem os
brancos seriam os “sucessores e verdadeiros descendentes”, diz o frade francês)
com a humanidade índia, fruto da ingratidão ou agressividade desta, pode
igualmente ser tomada como um caso de „má escolha‟, de ausência de
discernimento por parte dos humanos (dos índios)”
O antropólogo complementa,
a esse esquema que faz dos brancos os descendentes daqueles que o
cometeram o erro cometido pelos índios, a mitologia yanomami apresenta uma
alternativa interessante. Os brancos foram criados a partir do sangue de índios
mortos em virtude da ruptura de um interdito sexual. Os brancos são aqui, não
390
os que fizeram a boa escolha, mas o produto direto, os sucessores e
verdadeiros descendentes” de uma escolha feita pelos índios” (Viveiros de
Castro 2000: 15n).
A temática da “vida breve” aparece associada aos brancos em um mito desana (Viveiros
de Castro 2000: 8-10), assim como em mitos piro e yanomami. Os Piro utilizam os termos
sacacara e pishtaco para se remeter à desfiguração do rosto e à predação do corpo. De acordo
com Gow, o primeiro termo normalmente aparece associado à tecnologia dos brancos, como
aviões, quinas e cirurgia plástica, coisas que, segundo eles, os brancos utilizam para se
reproduzir sem precisar estabelecer relações de parentesco. O antropólogo descreveu relatos piro
sobre brancos que vão ao Baixo Urubamba em busca de gordura nativa para utilizar como
combustível de avião, e a concepção piro de cirurgia plástica como forma de trocar de pele, como
fazem animais como a cobra que tem nestas cosmologias status de imortalidade. Bruce Albert
reproduziu um mito yanomami no qual uma passagem em que os índios afirmam que os
brancos são responsáveis pelo envio do espírito maléfico da epidemia (xawara) que, “é faminto
de carne humana, não quer nem caça nem pesca, gosta mesmo é da banha do Yanomami”
(1993: 253).
Ao analisar “os mitos de origem da vida breve” que explicitam a condição mortal da
espécie humana, Viveiros de Castro comentou:
“no que concerne à mortalidade natural da espécie, somos
sobrenaturalmente „imortais‟ (inumeráveis e indestrutíveis). Mas no que
concerne à vida de relação, às formas socialmente institdas da subjetividade,
os brancos somos indiscutivelmente sub-humanos” (2000: 12).
391
Como mostrou Lévi-Strauss, o mito tupinambá é todo ele organizado em forma de
bipartições, sendo que, em um determinado momento, os brancos foram colocados como o par
oposto dos índios, isto é, eles já existiam em estado virtual e a sua chegada foi percebida como a
atualização de algo considerado dado.
“Alianças preciosas”
105
:
Foi com entusiasmo que os índios receberam os franceses na Guanabara. Como narrou
Barré:
No lugar onde colocamos os pés em terra (...) encontramos de
quinhentos a seiscentos selvagens todos nus, com arcos e flechas. Nos
disseram na sua língua que éramos bem-vindos. Nos ofertaram seus bens e
nos aclamaram como aqueles que vieram para defendê-los dos portugueses
e de outros inimigos mortais e capitais
nous mismes pied en terre (...) Auquel lieu trouuasmes de cinq a six
cens sauluages, tous nudz, auec leurs arcs et fleches, nous signifiant en leur
langage que nous estions les bien venus, nous offrants de leurs biens, et faisants
les feuz de joye, dont nous estions venuz pour les deffendre cõtre les Portugoys
et autres leurs ennemys mortelz et capitaulx (1555: 108-109)”.
Muito semelhante ao que disse Barré, um panfletista anônimo escreveu: “quando os
franceses desceram em terra os habitantes do país se achavam em grande número para bem
recebê-los. Os presentearam com víveres da terra e outras coisas singulares para selar com
eles uma aliança perpétua / a la descente des François en terre, les habitans du pays se
105
Parte do título da tese de doutorado de Beatriz Perrone-Moisés.
392
trouuent en grande nombre pour les receuoir auec bon recueil: leur faisant present de viures de
leur terre & autres choses singulieres, pour traiter auec eux vne alliance perpectuelle(1561 -
1565: A.iiii.5).
Esse fenômeno o foi descrito unicamente pelos franceses na Guanabara, Gonneville,
por exemplo, escreveu que Arosca “bem gostaria que alguns do navio o acompanhassem com
suas armas de fogo e artilharia, para atemorizar e desbaratar seus ditos inimigos; mas disso a
gente se escusou” (Perrone-Moisés 1992: 23).
Na Flórida, Laudonnière contou que quando se encontra um chefe indígena ele “vai
discorrer na sua língua sobre o grande prazer e contentamento de -los naquele lugar,
afirmando ser um amigo tão fiel no futuro que, contra todos que quiserem ser inimigos, ele
seria fiel” / le roy à l‟instant va discourir en son langage indien le grand plaisir et contentement
qu‟il avoit de les voir en ce lieu, protestant de leur estre si loyal amy à l‟advenir, que contre tous
ceux qui leur voudroient estre ennemis il leur seroit fidèle” (Laudonnière 1586 - 1853: 48).
Em Cabo Frio, Léry contou que
encontramos navegando no rio um grande mero de selvagens
chamados Tupinambá, aliados e confederados da nossa nação. Além do
carinho e do bom acolhimento que nos deram, nos contaram novidades
sobre Paycolas (assim eles chamavam Villegagnon)
nous troumes d‟abordée sur le rivage grand nombre de sauvages,
nommés Tououpinambaoults, alliés et confédéres de notre nation; lesquels
outre la caresse et bon accueil qu‟ils nous firent, nous dirent nouvelle de
Paycolas (ainsi nommaient-ils Villegagnon) (Léry 1578 - 1992: 64-65).
Os ameríndios demonstraram interesse em conhecer e participar da vida dos estrangeiros
no além-mar. Issomeriq viajou para Fraa com o consentimento do pai. Américo Vespúcio
393
contou que quando esteve na América “acordamos nesse lugar levar um par de homens, para que
nos mostrassem a ngua; e vieram três de sua vontade para vir a Portugal” (1504 - 1984: 128).
Laudonnière escreveu que, logo que chegaram à Flórida,
Jean Ribaut decidiu retornar em direção aos índios que moravam
no braço ocidental do rio e levar com ele um bom número de soldados, pois
seu objetivo era pegar dois índios desse lugar para levá-los à França, assim
como o rei havia ordenado. (...) Pegamos novamente a primeira rota, de
modo que chegamos ao mesmo lugar onde antes havíamos encontrado os
índios. Ali, nós levamos, com a autorização do rei, dois índios. Sentindo-se
mais favorecidos que os outros, acharam que estavam muito felizes em
ficar conosco
Jean Ribaut delibera retouner encore ver les Indiens qui habitoient le
bras occidental de la rivière, et mener avecques luy bon nombre de gens de
guerre: car son dessein estoit de prendre deux Indiens de ce lieu pour faire
passer en France, ainsi que la Royne luy avoit commandé. (....) nous reprismes
la route première, tant qu‟enfim arrivasmes au lieu mesmes premièrement
nous avions trouvé les Indiens, de nous emmenasmes par le congé du Roy
deux Indiens; lesquels se sentans mieux favorisez que les autres, s‟estimoient
fort heureux de demourer” (1586 - 1853: 26-27).
Quando Laudonnière retornou à Flórida ele contou que o líder indígena
Paracousi Satouriona enviou-me alguns índios para saber se eu
queria continuar com a promessa que eu havia feito a ele na primeira vez
que estive naquele país, que era de me mostrar amigos dos seus amigos e
inimigo dos seus inimigos, acompanhá-lo com um bom mero de
arcabuzeiros quando ele achasse conveniente e fosse a ocasião oportuna de
ir para guerra
394
Paracousi Satouriona envoya quelques Indiens vers moy, pour
entendre si je voulois continuer en la promesse que je luy avois faire, lorsque
premièrement j‟estois descendu en ce païs: qui estoit de me montrer amy de ses
amys, et ennemy de ses ennemys: mesmes de l‟accompaigner avec un bon
nombre de harquebusiers, quand il verroi expédient, et trouverroit l‟occasion
opportune d‟aller en guerre (1586 - 1853: 97-98).
Os estrangeiros em geral, mas os franceses em particular, foram chamados pelos
Tupinambá de Maíra, que vem a ser o herói transformador da mitologia tupinambá.
Neste sentido, chama atenção que duas referências, uma de Thevet e outra de Anchieta,
afirmem que esses índios tenham atribuído juízo de valor a Maíra, uma vez que o contexto tico
o se caracteriza por esse tipo de abordagem. A filosofia dos mitos jamais está estruturada em
termos maniqueístas, pois, apesar de ser constituída de forma de binária, contém uma dimensão
concêntrica que lhe confere o dinamismo.
Segundo Thevet, depois de um tempo, os canibais passaram a chamar os estrangeiros,
por desprezo e opróbrio Maíra, que era o nome de um dos seus antigos profetas, que eles
detestavam e desprezavam/ par mépris et opprobre Mahire, qui était le nom d‟un de leurs
anciens prophètes, lequel ils détestèrent et eurent mépris(Thevet 1557 - 1997: 125). Anchieta
escreveu sobre o outro homem (que os índios) chamavam Maira, que dizem que lhe fazia mal e
era contrário de Cume, e por esta causa os que estão em guerra com os portugueses lhe chamam
Maira” (1584 - 1989: 62).
Entretanto, nos fragmentos da mitologia tupinambá descrita por Thevet em 1575 e 1588,
Maíra e Su(Cume, segundo Anchieta) não estão em oposição, ao contrário, como mostrou
Lévi-Strauss, ambos são transformações de Monan, o primeiro homem (1991 - 1993: 55).
395
Métraux, que enfatizou o caráter transformador dos heróis ticos tupinambá, em
oposição à ideia de que eles eram criadores, pensa que ambos podem ser a mesma pessoa (1928 -
1979: 8-9).
É provável, portanto, que esse sentimento dos Tupinamem relação aos Maíra, descrito
por Thevet e por Anchieta, tenha sido gerado especificamente na época da França Antártica, uma
vez que os Tupinambá, quando Villegagnon esteve, sofreram uma epidemia que dizimou
rios índios. Ao contrário, como mostrou Beatriz Perrone-Moisés, os franceses ao participar das
guerras, viver nas aldeias e casar com as índias, conseguiram estabelecer “alianças preciosas”
com os Tupinambá (1996 e 2008).
Performatividade:
Outro aspecto relacionado à boa receptividade dos índios em relação aos estrangeiros
chamou a atenção dos cronistas.
De acordo com Thevet: outra coisa que estraga tudo. Antes de casar suas filhas,
os pais e as mães as oferecem ao primeiro que chega por qualquer pequena coisa,
principalmente aos cristãos que passam por lá, se eles quiserem u-las” / il y a une autre
chose qui gâte tout: que avant que marier leurs filles, les pères et mères les prosternent au
premier venu pour quelque petite chose, principalement aux chrétiens allant par-delà, s‟il en
veulent user (Thevet 1557 - 1997: 168). Ele disse também que “assim que eles veem alguém de
longe chegar ao país os presenteiam com víveres, moradia e uma moça para servi-los /
invontinent qu‟ils verront quelqu‟un de loin arriver en leur pays, ils lui présenteront vivres,
396
logis, et une fille pour son service, comme nous avons dit en quelque endroit (Thevet 1557 -
1997: 176)
106
.
Na Cosmographie, Thevet desenvolveu o comentário:
o pior que eu encontrei nesse povo foi que, sem qualquer respeito,
o pai prostitui a filha com os estrangeiros por qualquer coisa de preço vil.
Quando você chega ao país te dão uma moça para servir o tempo que
estiver lá, ou quanto queira, sendo permitido tomá-la da forma que achar
melhor. Assim, logo que você chega, eles te perguntam: vem aqui, o que
você me dará para eu te dar minha filha para te servir? Ela é bela e te
servirá bem em todas as suas necessidades. Ela te proverá de peixe, farinha
e outras utilidades do país, mesmo para ir e vir nos seus negócios, também
terás nossa companhia. Homem algum, por amor a nós, se apresentará
diante de você para te ofender. Tal é a condição das moças
le pire que ie trouue en ce peuple, c‟est que sans esgard quelconque, le
pere prostituera sa fille aux estrangers, pour quelque chose de vil pris: si que
vous estant arriué en ce pays, on vous donera vne fille pour vous seruir le tẽps
que vous y serez, ou tout ainsi que voudrez, vous estant permis la rendre, quand
bom vous semblera. Aussi dés que vous arriuez, ils vous demandent, Vien ça,
que me dõneras-tu, & ie bailleray ma fille pour te seruir? Elle est belle, & te
seruira bien en toutes tes necessitez. Elle te pouruoira de poisson, de farine, &
d‟autres commoditez du pays: mesmes pour aller & venir à tes affaires: ioint
que tu auras nostre accointance, & homme pour l‟amour de nous, ne se
presentera deuant toy pour t‟offenser. Telle est la condition des filles(1575:
933).
A percepção de Léry o foi diferente. Disse ele:
106
O mesmo comentário, com pequenas variações, foi repetido por Thevet (1588: 203).
397
é verdade que os pais e os parentes antes de casar as moças
facilitam a prostituição delas com o primeiro que chega, de modo que,
como já disse alhures, apesar dos intérpretes da Normandia antes que
fossemos aquele país tenham abusado em várias aldeias, por causa disso,
elas não foram difamadas
Il est vrai que les pères et parents, avant que marier leurs filles, ne font
pas grand difficulté des les prostituer au premier venu; de manière, ainsi que
j‟ai touché autre part, qu‟encores que les Truchements de Normandie, avant
que nous fussions en ce pays-là, en eussent abuen plusieurs villages, pour
cela elle ne recevaient point note d‟infamie(Léry 1578 - 1994: 429).
O fenômeno, entretanto, não correu apenas com os franceses. Anchieta fez duas
observações semelhantes ao longo de mais de dez anos. Em 1554, escreveu: as mulheres andam
nuas e não se sabem negar a ninguém, antes elas mesmas acometem e importunam aos homens,
lançando-se com eles nas redes, porque têm por honra dormir com cristãos” (II: 77)
107
. E, em
1565:
os índios nos faziam todo o bom trato possível à sua pobreza e baixeza.
E como têm por grande honra, quando vão cristãos a suas casas, dar-lhes suas
filhas e irmãs para que fiquem por seus genros e cunhados, quiseram nos fazer
tal honra, oferecendo-nos suas filhas, insistindo muitas vezes; mas como lhe
déssemos a entender que não somente aquilo que era ofensa a Deus
aborrecíamos, senão que não éramos casados, nem tínhamos mulheres, ficaram
eles e elas espantados, como éramos tão sofridos e continentes” (Anchieta
1565: 215).
Soares de Souza também fez um comentário a respeito:
107
Tradução Viotti (Edição Loyola 1984).
398
também as moças deste gentio, que se criam e doutrinam com as
mulheres portuguesas, tomam muito bem o cozer e lavrar, e fazem habilidade, e
para fazerem coisas e doces, e fazem-se extremadas cozinheiras; mas são muito
namoradas e amigas de terem amores com os homens brancos” (1587: 274).
No Havaí, Marshall Sahlins encontrou um tipo de sociedade que ele chamou de
performativa - em oposição às sociedades prescritivas africanas, descritas por Radcliffe-Brown -
na medida em que era a intenção, o amor e a vontade que contavam nas definições das relações
de parentesco. Foi neste sentido que Sahlins empregou o termoetnografia do amor”, para
designar a elaboração de uma socialidade, na qual, são as práticas que estabelecem as normas
sociais. Ao que parece, os Tupinambá, que também podem ser descritos como um povo
performativo, adotaram uma prática semelhante a dos havaianos nas relações cross-sex com os
estrangeiros. Como observou Sahlins a propósito das havaianas, agindo desta forma, as mulheres
tupinam poderiam estar buscando, especialmente se engravidassem, capturar o mana
estrangeiro.
399
Brancos divinos?
Outro fator chama atenção quando se compara os Tupinambá com os havaianos e tem a
ver com os primeiros contatos com os brancos. Segundo Thevet,
quando esse país foi descoberto (...) esses selvagens, espantados em
ver o modo como os cristãos agiam, de uma forma que jamais tinham visto,
os estimaram como profetas e os honram como deuses, até o ponto que essa
gentalha, vendo que ficavam doentes, morriam e estavam sujeitos as
mesmas paixões que eles, começaram a desprezá-los e a maltratá-los mais
do que o normal, como àqueles que então foram lá, espanhóis e
portugueses, de forma que se alguém os irrita, eles facilmente matam um
cristão e o comem, assim como fazem com seus inimigos. Mas isso ocorre
especialmente com os canibais que comem apenas isso, como nós aqui
comemos vaca e carneiro. Assim, deixaram de chamá-los de Caraíbas, que
quer dizer profetas ou semideuses
lorsque premièrement ce pays fut découvert (...) ces sauvages étonnes
de voir les chrétiens de cette façon qu‟ils n‟avaient jamais vue, ensemble leur
manière de faire, ils les estimaient comme prophètes et les honoraient ainsi que
dieux; jusques à tant que cette canaille, les voyant devenir malades, mourir et
être sujets à semblables passions comme eux, ont commencé à les mépriser et
plus maltraiter que de coutume, comme ceux qui depuis sont allés par-delà,
Espagnols et Portugais, de manière que si on les irrite, ils ne font difficulté de
tuer un chrétien et le manger, comme ils font leurs ennemis. Mais cela se fait en
certains lieux et spécialement aux Cannibales, qui ne vivent d‟autre chose:
comme nous faisons ici de boeuf et de mouton. Aussi ont-ils laissé à les appeler
Charaïbes, qui est à dire prophètes ou demi-dieux” (Thevet 1557 - 1997: 125).
400
Além disso, há um comentário de Thevet nas Singularités que corresponde a uma
passagem do mito tupinambá. Em 1557, ele escreveu: alguns deles me disseramentre outras
coisas, que o profeta tinha previsto nossa chegada. Eles chamam esse espírito de
Houioulsira. Isso e rias outras coisas me afirmaram alguns cristãos que muito tempo
estão lá/ quelqu‟un d‟eux me dit, entre autre choses, que leur prophète leur avait prédit notre
avenue. Ils appellent cet esprit Houioulsira. Cela et plusieurs autres choses m‟ont afirmées
quelques chrétiens qui de longtemps se tiennent (Thevet 1557: 147). Em 1575, quando estava
descrevendo o mito tupinambá, Thevet escreveu: eles dizem que nós somos os sucessores e
verdadeiros filhos de Maire-Monan e que sua verdadeira raça volveu em nossas terras/
ils disent, que nous sommes les successeurs & vrays enfans de Maire-Monan, & que sa vray
race s‟est tournee en noz terres” (: 914). E depois fez o seguinte comentário:
eu não vou entrar na disputa sobre se o diabo sabe e conhece as
coisas futuras... Mas uma coisa posso dizer: muito tempo antes que s
chegássemos, seu espírito lhes tinha predito nossa vinda: e sei disso não
apenas por eles mesmos, mas por rios cristãos portugueses aprisionados
por esse povo bárbaro
108
ie ne passeray aussi plus outre sur la dispute, si le diable sçait &
congnoist les choses futures (...) Mas vn cas vou diray-ie bien, que long temps
auant que nous y arriuassions l‟esprit leur predit nostre venuë, & ie le sçay,
non seulement d‟eux mesmes, mais aussi de plusieurs Chrestiẽs Portugais, qui
estoient detenuz prisonniers de ce peuple barbare (: 922)
109
.
Ainda na Cosmographie, Thevet escreveu sobre um índio: que achou que Magalhães
(Fernão) e seus homens tivessem descido do céu porque ele não tinha o costume de ver
108
Tradução de Viveiros de Castro (1993 - 2002: 202).
109
A mesma passagem, com pequenas modificações está em Thevet (1588 2006: 166).
401
homens tão pequenos vestidos e navios e equipamentos tão grandes/ pensoit que Magellan
& les siens fussent descẽduz du Ciel, à cause qu‟il n‟auoient accoustumé de voir tels hõmes ainsi
accoustrez, & si petits, & tels grands vaisseaux & equipage (1575: 903).
Colombo, por sua vez escreveu:
„“são crédulos, sabem que um Deus no céu, e estão convencidos que
viemos de lá‟ (12.11.1492) (...) Ainda agora, depois de tanto tempo comigo, e
apesar de numerosas conversas, continuam convencidos de que venho do céu‟:
(fevereiro-março de 1493)” (In: Todorov 1982 - 1999: 49).
É difícil avaliar a extensão desse tipo de associação e em que medida é possível enquadrar
os franceses que estiveram na Guanabara. Contudo, em geral, pode-se dizer que: deuses,
inimigos, europeus eram figuras da afinidade potencial, modalizações de uma alteridade que
atra e devia ser atrda; uma alteridade sem a qual o mundo soçobraria na indiferença e na
paralisia” (Viveiros de Castro 1993 - 2002: 207).
*
É interessante notar contudo que, ao contrário do que ocorreu no Havaí quando o capitão
Cook foi morto de acordo com os mitos e ritos locais, três personagens de que tratamos nesta
tese, narraram trajetórias heróicas de sobrevivência em situações adversas, são eles: Staden,
Anchieta e Thevet.
Staden contou que quando estava navegando com os Tupinambá eles lhe pediram: fala
ao teu Deus que a grande tempestade não nos faça nenhum mal (1557 - 1974: 85).
Em outro momento,
vieram então à minha choça e exigiram que eu devia entender-me com
o meu Deus para que a chuva cessasse. Pois o seu tempo de plantação já havia
chegado, e se não parasse a chuva, não poderiam plantar.
402
Respondi que a culpa era sua. Haviam encolerizado o meu Deus,
arrancando o lenho junto o qual eu costumava falar-lhe. Como acreditassem
que eles mesmos tinham provocado a chuva, ajudou-me o filho do meu amo a
erigir uma nova cruz. Isto foi, s julgar pelo sol, mais ou menos a uma hora da
tarde. Quandon se levantou a cruz, tornou-se o tempo belo, embora tivesse
estado ruim de manhã. Admiraram-se todos e pensaram que meu Deus fazia o
que eu queria” (1557 1974: 136).
Staden também narrou que:
veio em pessoa o irmão de meu segundo amo à minha choça, sentou-
se, s-se a clamar e disse que seu irmão, sua mãe, os filhos do seu iro,
todos tinham ficado doentes; seu irmão Nhaêpepô m‟o havia enviado e me
mandava dizer que eu tinha que conseguir do meu Deus que se tornassem de
novo sãos” (1557 1974: 106).
Em determinado momento, segundo Staden, um índio, tinha
ameaçado novamente de matar-me, antes que os outros me tivessen
trazido ao local onde devoraram o escravo. E quando eu agora voltava a
Ubatuba, ficara êle, durante a minha ausência, com os olhos doentes. Precisava
de repouso; por algum tempo não podia ver nada, e dizia-me sempre que eu
devia pedir ao meu Deus que lhe ficassem os olhos outra vez sãos. Eu estava
pronto para isso, mas depois precisava que não mais me desejasse mal.
Prometeu-o. Alguns dias mais tarde estava curado” (1557 1974: 114).
Ao longo da narrativa, Staden arrolou uma série de casos semelhantes, por exemplo:
durante a viagem me perguntaram muitas vezes os índios se eu achava que eles aprisionariam
alguem(1557 - 1974: 125). Também que: quando se deitava, disse meu amo, que eu sonhasse
tambem alhuma coisa de bom. Respondi porém: „Não creio em sonhos, êles são falsos‟.
403
Acrescentou então: „Mesmo assim, entende-te com o teu Deus para que apanhemos inimigos
(1557 1974: 127). Disse Staden, “estavam portanto os selvagens bem intencionados para
comigo, pois eu lhes havia profetizado por acaso dizendo que os selvagens viriam ao nosso
encontro. Quando isso aconteceu, que eu era um profeta melhor que os seus maracás (1557 -
1974: 131). Aque, finalmente,
entregaram-me a um chefe chamado Abatí´-poçanga, recomendando-
lhe que não devia causar-me, nem deixar que me causassem dano, pois meu
Deus se vingaria daqueles que me fizessem algum mal. Isto tinham visto
quando eu ainda me achava com eles, e tambem eu mesmo advertia: logo
viriam meus irmãos e amigos com um cheio de mercadorias, e se me tratassem
bem, eu lh‟as daria; eu sabia certamente que o meu Deus logo faria vir o navio
de meus irmãos. Isto lhes agradou. O chefe chamo-me de filho, e com os seus
filhos ia à caça (1557-1974: 139).
Neste momento, não é que Staden tenha se indianizado, como aconteceu com outros
europeus, mas o que parece é que ocorreu um processo de consanguinização, no qual ele deixou
de ser percebido como um afim e então sua salvação, mesmo que ele não fosse considerado um
profeta, tornou-se possível. No momento da libertação, o então dono de Staden, segundo ele,
principiou então a vociferar, dizendo posto que queriam levar-me consigo a todo transe
devia eu então voltar novamente com o primeiro navio, pois me havia tratado como filho e ficado
muito enraivecido com os de Ubatuba, porque me tinham querido comer (1557 - 1974: 143).
Cabe enfatizar aqui, não apenas um processo por meio do qual Staden foi percebido como um
profeta, mas também o fato de que a construção da consangüinidade contribuiu para sua
libertação.
404
O caso de Anchieta quando esteve em Iperoig é semelhante ao de Staden na
dramaticidade e no desfecho. O jesta jamais esteve a um passo do moquém canibal como
Staden que chegou à aldeia amarrado. No entanto, na carta de 1565, ele narrou nove tentativas de
matá-lo. A primeira ameaça ocorreu quando no dia 23 de maio Pindobuçu chegou acompanhado
do irmão. O genro deste, vendo que Anchieta ocupava-lhe a casa,
com uma espada na mão perguntou ao sogro: „Quem é este?
Respondeu-lhe: „O português‟. Disse o outro: „Português?Como homem que
havia achado coisa mui desejada para executar seu ódio mortal, que todos nos
têm. Eu disse-lhes: „Eu sou vosso amigo, que hei de estar convosco daqui em
diante‟. Mas ele mui indignado e soberbo respondeu: „Não quero tua
companhia‟ e outra coisas ásperas” (: 217).
Os índios que estavam o convenceram a não agir. Contudo, quatro dias depois chegou
Ambiré “e logo determinou de nos tomar e matar” (: 218). Ele desistiu quando lhe falaram que os
índios que pretendiam matá-lo tinham sido dissuadidos. Entretanto, no dia seguinte, Ambiré
mudou de ideia e novamente “insistiu muito que lhe havíamos de dar a matar e comer dos
principais de nossos índios, assim como em outro tempo havíamos feito a eles (...) E pouco faltou
para logo as quebrar, com quebrar-nos a cabeça” (: 221). Pindobuçu intercedeu e nada aconteceu.
No dia 9 de junho ocorreu a quarta ameaça, quando Nóbrega e Anchieta estavam sozinhos
na praia e chegaram canoas do Rio. Ambos correram em direção à casa de Pindobuçu, onde
encontraram seu filho que, segundo Anchieta, quis “ser ele quem levasse a honra de nossa morte”
(: 225). Desta vez, eles foram socorridos por Cunhambebe.
A quinta vez que Anchieta quase foi morto foi em 25 de junho quando os índios do Rio
determinaram matar um escravo de seu companheiro e começaram a preparar a festa. Segundo
Anchieta, lhe disseram que também a nós quebrariam as cabeças” (: 229). Entretanto, apenas o
405
escravo foi morto e Anchieta escapou, pois convenceu os índios que não desejaria vingança em
troca do escravo.
A sexta ameaça ocorreu no dia de julho, quando novamente chegaram cinco canoas do
Rio. Como narrou Anchieta, elas estavam “trazendo a mesma intenção de nos matar” (: 232). O
padre apenas diz que depois de sentir muito medo, os índios mudaram de ideia, mas não explicou
o porquê.
Uma sétima vez Anchieta achou que iria morrer e ser devorado quando decidiu ir sozinho
à aldeia de Cunhambebe nas proximidades de Iperoig para tentar salvar a alma de um contrário,
antes dele ser morto. Foi quando, decepcionado por não conseguir mais uma alma, ouviu o
famoso diálogo entre o matador e a vítima.
Na oitava vez, Anchieta contou: “entre esses enfermos foi um que estava dos do Rio,
que porventura também veio com intenção de me matar” (: 240). Ao curá-lo, Anchieta mais uma
vez escapou.
Finalmente, uma nona vez o padre esteve a perigo quando Cunhambebe e uma índia
conversaram se deveriam deixá-lo partir de Iperoig. Cunhambebe argumentou que não, mas a
mulher, ao dizer que se não fizesse isso os do Rio viriam para matá-lo, o convenceu do contrário.
É provável que o processo de consanguinação de Anchieta não tenha se dado na mesma
proporção que o de Staden, no entanto, dois procedimentos do padre foram fundamentais para
que ele pudesse escapar com vida.
Em primeiro lugar, a convivência com os índios fez com que ele aprendesse sobre os seus
costumes, imitando-os em certos casos, fazendo-lhes promessas que os interessava. Como
Anchieta contou, junto combrega,
“visitamos (...) as aldeias e, entre eles, eu falado em voz alta por suas
casas como é seu costume, dizendo-lhes que se alegrassem com nossa vinda e
406
amizade: que queríamos ficar entre eles e ensinar-lhes as coisas de Deus, para
que ele lhes desse abundância de mantimentos, saúde e vitória de seus inimigos
e outras coisas semelhantes, sem subir mais alto, porque essa geração tão feroz
sem este escalão não quer subir ao céu” (1565 - 1984: 212).
Em outro momento, Pindobuçu teria dito a ele: “„vós sabeis todas as cousas, Deus vos
descobre tudo, rogai-lhe que me longa vida, que eu me porei por vós contra os meus‟” (1565 -
1984: 223-224). Assim como referiu-se a Anchieta: „“Este é o que trata as coisas de Deus e o
verdadeiro mestre dos cristãos. Se lhe fazem algum mal, logo nos Deus de destruir a todos‟
(...) „Bem vês como sempre te defendo e falo por ti, por isso olhe Deus por mim e -me longa
vida‟” (1565 - 1984: 235).
Em segundo lugar, Anchieta realizou uma série de tratamentos médicos nos índios e
consequentemente algumas curas. Como certa vez lhe falou Pindobuçu, „“Se nós temos medo de
nossos feiticeiros, quanto mais o devemos ter dos padres, que devem ser santos verdadeiros, e
teriam o poder para nos fazer virmaras de sangue, tosse, dor de cabeça febre e outras
enfermidades de que todos morrêssemos‟” (Anchieta 1565 - 1984: 218).
Ao se referir à Bahia, Anchieta escreveu, em carta datada de 1584,
duas coisas referirei apenas, dignas de nota, nas quais reluz com toda a
clareza quanta seja a nos sacramentos entre esse povo. Achando-se à morte
uma índia ainda pagã, e perdida em todos a esperança de que se viesse a salvar,
pediu o batismo com muita instância e, sendo instruída com muita diligência e
feita cristã, imediatamente recuperou a saúde. Ferido certo índio profundamente
num braço, de que corria muito sangue de uma veia dilacerada, nem se
encontrando remédio para se estancar o sangue, perdia a cada passo o sentido e,
quando já não parecia haver nenhum remédio, após rápida confissão com o
padre e recebendo a eucaristia, estancou-se incontinenti o sangue e o enfermo
voltou à vida (- 1984: 374-375).
407
Em outro momento, Anchieta contou que no Colégio do Rio de Janeiro, “sofrendo de
forte dor de dentes, uma índia dirigiu-se a São Lourenço (a que a povoação está consagrada), para
que a livrasse daquela dor. E instantâneamente se viu livre dela. Correndo até o padre, contou
como São Lourenço lhe fizera desaparecer inteiramente a dor” (1584 - 1984: 379).
Esse procedimento de cuidar dos índios doentes, embora realizado na maior parte das
vezes por Anchieta, também foi praticado por outros jesuítas, como narrou Nóbrega:
Estava in extremis o filho do principal duma Aldeia, em termos que
todos desesperavam de sua vida e o pai chorava, vendo que não ajudavam
nem redios nem manhas de feiticeiros. Sabendo-o o P. Navarro foi vê-lo e
achando à roda dele os feiticeiros, começou a repreen-los e mandou-os sair,
rogando ao pai do rapaz que fosse contente em o deixar baptizar, e que
tivesse esperança em Jesus Cristo, que podia sarar o seu filho. O negro
duvidando de que o Padre não ajudasse antes a morrer mais depressa, como lhe
tinham dito aqueles feiticeiros, o o queria ouvir e zombava; e o Padre veio ter
comigo a perguntar-me se podia baptizar sem consentimento do pai. E porque
São Tomás diz que o desistíssemos sem ter primeiro procurado com todo o
empenho que consentisse, como fez com muitas exortações eficacíssimas,
asssim se baptizou. E aprouve depois ao Senhor dar-lhe saúde, com muita
edificação dos outros e grande crédito do P. Navarro” (I, 1550: 159-160)
110
.
Thevet e Villegagnon, também estiveram nessa condição de quase-mortos pelos índios
quando a doença contagiosa (febre pestilenta) matou não apenas vários Tupinambá, como
também índios de uma aldeia distante. Como narrou Thevet:
essa doença contagiosa se espalhou por todos os lugares, tão
estranhamente que muitos de nós morremos, assim como, um número
110
Tradução: Itatiaia 2000.
408
infinito de selvagens. Fiz com que eles entendessem que Tupã os tinha
punido por causa das coisas que furtaram e do descontentamento deles.
Mas, com o mal piorando, eles acharam que tinha sido nosso Capitão ou eu
que os tinha feito morrer (...) nosso Capitão foi acompanhado de 14 ou 15
dos nossos a uma aldeia chamada Tipiré, bem longe do nosso forte, a fim
de ver o rei do lugar, que era dos mais famosos e temidos por causa do
grande número de inimigos que tinha matado na guerra e da quantidade
de prisioneiros que tinha massacrado e comido.
Ocorreu que quando chegamos, o rei e quatro dos seus filhos
ficaram doentes, também muitos Morbichatz e pessoas do lugar que até
então não tinham sido contaminadas. De repente, eles berraram conosco.
Tinham como certo que nós tínhamos levado essa doença para que eles
morressem e, assim, se uniram para nos matar e massacrar. O que seria
bem fácil, pois éramos apenas 15 e mais de quatrocentos queriam juntos
executar o empreendimento. Mas a misericórdia de Deus nos preservou
por intermédio de um que entendia a língua do país e nos advertiu sobre o
que queriam fazer.
Ele também foi apaziguá-los, e disse a eles que nós éramos amigos
de Tupã e que nem o rei, nem os outros morreriam (...) Mas quando
estavam um pouco apaziguados, fui com nosso Capitão ver o rei doente e
seus filhos, e (...) quando estávamos em prece, Deus nos fez esse favor e essa
graça, que o rei e os seus se encontrassem bem. Foi o motivo, não apenas
dos Bárbaros esquecerem o mal designo e conspiração, como também
virem de todas as partes me ver e frequentemente tocar minha túnica, me
dizendo, Iehay, Omiano opé Ióurou, que quer dizer, faz com que eu não
morra
ceste maladie contagieuse couroit par tout si estrangement, que
plusieurs de nous en moururent, & des Sauuages vn nõbre infiny, ausquels ie
feis entendre, que Toupan les punissoit des larcins qu‟ils faisoient noz loges,&
du mal contentement qu‟auions d‟eux. Mais comme le mal allast en empiran t,
409
ils eurent opinion, lors que c‟estoit nostre Capitaine, ou moy, qui les faisions
mourir (...) nostredit Capitaine fust allé, accompaigné de quatorze ou quinze de
nous autres, à vn village nommé Tipiré, assez esloigné de nostre fort, afin de
veoir le Roy dudit lieu, qui estoit des plus fameux, & redouté de tout païs, à
cause du grãd nombre d‟ennemis, qu‟il auoit occis en guerre, & de la quantité
de prisonniers qu‟il auoit massacrez & mangez. Il aduint que des aussi tost que
nous y fusmes arriuez, (...) le Roy tomba malade auec quatre de ses enfans, &
plusieurs Morbichatz, & du peuple sauuage dudit lieu, qui n‟auoient encor rien
senty de ceste cõtagion. Soudan ils crient tous contre nous, & tiennent pour
certain, que nous leur auions porté ceste maladie pour les faire mourir: & ainsi
complottent ensemble, de nous massacrer & manger: Ce qui leur eust esté bien
aisé à faire, nous n‟estans que quinze en nombre, & eux plus de quatre cens
desia assemblez pour executer leur entreprise. Mais la misericorde de Dieu
nous preseua par le moyen d‟vn, qui entendoit la langue dudit païs, qui nous
aduertissant de leur mauuais vouloir, les alla aussi appaiser, leur disant, que
nous estion amis de Toupan, & que le Roy ny ses enfans ny les autres ne
mourroinet point. (...) Mais eux estant vn peu appaisez, ie fus auec nostre
Capitaine voir le Roy malade & ses enfans: & (...) pendant que nous estiõs en
priere, Dieu nous feit ceste faueur & grace, que ce Roy & les siens se trouuerẽt
bien. Qui fut cause, que non seulemẽt ces Barbares oublierẽt leur mauuais
vouloir, & conspiration qu‟ils auoit faite, ains encor venoient de toutes parts
vers moy, & souuẽt touchoiẽt à ma robbe, me disans, Iehay, Omiano opé
Ióurou, qui est à dire, faits que ie ne meure point” (1575: 923).
Na Histoire de deux voyages, Thevet disse que os quatro índios doentes eram filhos do rei
Pinda e que ele foi vê-lo com Villegagnon junto com outros 18 homens, contra mais de seiscentos
índios prontos para ma-los (1588: 221).
410
O fato de Staden, Anchieta, Thevet e Villegagnon terem sobrevivido diante de um número
discrepante de brancos pode ser considerado como análogo à morte de Cook
111
. Nos dois casos,
pode-se dizer que os brancos foram apreendidos de acordo com um padrão de comportamento
que ainda hoje abunda na literatura sobre a etnologia ameríndia. Trata-se de uma concepção na
qual o outro, o exterior e o além são considerados fonte de poder. Neste sentido, como observou
Perrone-Moisés, baseada nas análises de Viveiros de Castro, Sahlins e Lévi-Strauss:
“se considerarmos a concepção pan-americana de um poder espiritual
vindo de fora, de que os estrangeiros são portadores considerando-se a sua
tecnologia e sua resistência às doenças, além do mero fato de serem
estrangeiros indicar que possuem poder (proveniente de fora, por definição),
o espanta que a presença de apenas alguns bastar para os índios: o poder é de
ordem sobrenatural, e portanto não é a qualidade que conta” (1996: 134-135).
Essas considerações fazem supor que, caso os índios tivessem participado do Seminário
sobre a França Antártica no Museu Histórico, é provável que eles tivessem sugerido que se
discutisse também questões metafísicas, tal como os franceses tentaram fazer na Guanabara
quando debateram sobre a Eucaristia.
111
Aprofundei essa comparação em: Osward 2008.
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