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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
IVETE JANICE DE OLIVEIRA BROTTO
ALFABETIZAÇÃO: UM TEMA, MUITOS SENTIDOS
CURITIBA
2008
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IVETE JANICE DE OLIVEIRA BROTTO
ALFABETIZAÇÃO: UM TEMA, MUITOS SENTIDOS
Tese apresentada ao curso de Pós-Graduação em
Educação, Setor de Educação, Universidade
Federal do Paraná, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor em Educação.
Orientador: Prof. Dr. Gilberto de Castro
CURITIBA
2008
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Catalogação na publicação
Sirlei do Rocio Gdulla – CRB 9ª/985
Biblioteca de Ciências Humanas e Educação - UFPR
Brotto, Ivete Janice de Oliveira
Alfabetização: um tema, muitos sentidos / Ivete Janice
de Oliveira Brotto. – Curitiba, 2008.
238 f.
Orientador: Prof. Dr. Gilberto de Castro
Tese (Doutorado em Educação) – Setor de Educação,
Universidade Federal do Paraná.
1. Alfabetização. 2. Letramento. 3. Linguagem. 4.
Ensino Aprendizagem. Título.
CDD 372.4
CDU 372.41
ii
Dedico esta tese a minha mãe Adélia e aos meus amados
José Antonio, Aline, Jaqueline e Nicole
iii
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador professor Dr. Gilberto de Castro pela amizade,
tranqüilidade, paciência e cuidado com que orientou o meu trilhar pela teoria
bakhtiniana na produção desta tese.
Aos professores e colegas da linha de pesquisa Cultura, Escola e Ensino, em
especial às professoras Dolinha, Maria Rita, Tânia Stoltz e ao professor Gilberto pelas
discussões e conhecimentos proporcionados durante os seminários.
Às professoras Tânia Braga e Miriam Pam pelos caminhos seguros apontados
durante o exame de qualificação.
À Rejane, minha parceira de disciplinas e de orientador, pela serenidade das
conversas e amizade que sempre me dedicou.
À equipe do CECA, Carmem, Daiane, Cristina e, em especial, à diretora
Elenita por não medir esforços para que todos os professores pós-graduandos do
Centro pudessem ter melhores condições para freqüentarem seus cursos.
Aos professores alfabetizadores participantes desta pesquisa, sem os quais esta
tese não teria o mesmo sentido.
À coordenação, secretários e professores do colegiado do curso de Pedagogia
campus Cascavel, pelo auxílio recebido durante meu afastamento parcial e integral.
À Elenita, minha amiga de todas as horas, minha irmã, pela sua presença na
minha vida e na de minhas filhas; pelos muitos momentos compartilhados; pela sua
atenção incondicional. Meu carinho para você.
À Ruth, irmã de minh’alma, amiga querida e prestativa que ouviu e
compartilhou comigo muitos momentos da vida, inclusive este, em especial.
À Andréia prima, sempre meiga, pela sua amizade e carinho.
À Sandra, minha cunhada e irmã, pelas suas leituras cuidadosas, pelas suas
sugestões que muito contribuíram para a produção desta tese, pela força e pelas horas
que tirou de si e de sua família para dedicá-las a mim.
À Flávia, amiga querida, companheira de alfabetização, a interlocutora
especialíssima desde as inquietações que fizeram brotar esta tese até o seu desfecho.
iv
A todos meus familiares que torceram por mim e contribuíram de um modo ou
outro para tornar menos penosa a distância do lar e me possibilitaram cursar a pós-
graduação com mais tranqüilidade. Em especial, minha sogra e minha cunhada Maria
do Rocio.
À Elenita, Ruth, Carmem, Cida, Andréa, Andréia Prima, Geórgia, Marijane,
Simone, Tânia, Dagui, Mari e Beth, pela amizade e força nos momentos da travessia.
Especialmente, ao meu amor, José Antonio, e aos meus tesouros Aline,
Jaqueline e Nicole, que são o sentido da minha vida.
v
SUMÁRIO
RESUMO..........................................................................................................................vii
ABSTRACT .....................................................................................................................viii
INTRODUÇÃO ...............................................................................................................01
1. QUESTIONAMENTOS E ABORDAGENS SOBRE O LETRAMENTO NO
BRASIL: UMA LEITURA A PARTIR DA DÉCADA DE 1980 ................................10
1.1 QUESTIONAMENTOS: COMO, QUANDO E POR QUE O TERMO
LETRAMENTO É TEMA DO PROCESSO DE ENSINO E DO APRENDIZADO DA
LÍNGUA ESCRITA MATERNA ESCOLAR..................................................................12
1.2 O DISCURSO ACADÊMICO SOBRE O LETRAMENTO NA
ALFABETIZAÇÃO ESCOLAR.......................................................................................21
2. LETRAMENTO OU DEBATE SOBRE O ENSINO DA LINGUAGEM
ESCRITA SOB OUTRA ROUPAGEM?......................................................................44
2.1 CONCEPÇÕES SOBRE LINGUAGEM: OS MESMOS PRESSUPOSTOS DO
LETRAMENTO................................................................................................................46
3. AS VOZES PERMITIDAS, NÃO PERMITIDAS, PRESENTES E AUSENTES
NAS CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM DOS PROFESSORES
ALFABETIZADORES – O OUTRO-ALUNO.............................................................86
3.1 O OUTRO-ALUNO DO PROFESSOR: UMA ÉTICA ALTERITÁRIA..................89
3.1.1 As razões para a oralidade em sala de aula ..............................................................89
3.1.2 A negação do Outro no processo de ensino em alfabetização .................................97
3.1.3 Os métodos: dos modelos, das incertezas e dos diagnósticos..................................103
3.1.4 Do Ciclo Básico ao Ensino Fundamental de nove anos...........................................125
4. À GUISA DE UMA CULTURA PROFESSORAL..................................................135
4.1 PRÁTICAS ESTRATÉGICAS PARA PROMOÇÃO DO APRENDIZADO DO
ALUNO .............................................................................................................................136
4.2 CONCEPÇÕES SOBRE ALFABETIZAÇÃO...........................................................139
4.3 A FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA PÚBLICA E ALGUNS “OUTROS”
DISCURSOS .....................................................................................................................160
vi
4.4 LIVRO DIDÁTICO E GRAMÁTICA: OS OUTROS “MAL-DITOS” DA
ALFABETIZAÇÃO..........................................................................................................174
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................201
REFERÊNCIAS ..............................................................................................................216
ANEXOS...........................................................................................................................224
LISTA DE ANEXOS ........................................................................................................225
ANEXO I – FOLDER .......................................................................................................226
ANEXO II – QUESTIONÁRIO........................................................................................228
vii
ALFABETIZAÇÃO: UM TEMA, MUITOS SENTIDOS
RESUMO: Letramento é um termo que se inseriu no contexto educacional brasileiro
na década de 1980 sob várias formas de divulgação. Em relação à alfabetização
escolar, vem sendo entendido e disseminado por alguns teóricos da educação como
abordagem necessária no processo de ensino da língua materna a que a alfabetização
não tem correspondido. Ao que quer parecer uma revolução conceitual, percebe-se que
estudos de outras áreas também apontavam para a necessidade de nova abordagem
para a linguagem ensinada na escola. Assim, com o objetivo de identificar e analisar as
concepções de professores alfabetizadores sobre letramento, realizou-se pesquisa
empírica com professores alfabetizadores da rede pública municipal de Cascavel e de
Santa Helena Oeste do Paraná. Os instrumentos metodológicos utilizados foram
imagens gravadas durante curso de extensão ministrado para os professores
alfabetizadores e questionários com perguntas abertas e fechadas. A análise do
conteúdo empírico desenvolveu-se à luz das categorias bakhtinianas: dialogismo,
plurivocalidade, alteridade e tema; compreendidas na relação com o tema ‘letramento’,
no Brasil, especificamente na área de alfabetização infantil, e com os estudos sobre
linguagem situados a partir da década de 1980. Chegou-se à conclusão de que o tema
‘letramento’ não procede como nova abordagem para o ensino da alfabetização, uma
vez que ambos, letramento e alfabetização, tratam de um mesmo objeto: o ensino da
língua materna. No entanto, os estudos sobre o letramento, especificamente em relação
à alfabetização na série inicial do ensino fundamental, mostram que esta ainda não
atende ao seu objeto, motivo pelo qual quer se imprimir outra denominação. As
concepções de linguagem dos professores alfabetizadores e as filiações que
movimentam seu ensino é uma dessas investigações. As vozes capturadas de suas
enunciações mostraram que: o que lhes têm feito sentido no seu processo de ensino é a
concepção pela qual foram ensinados a pensar a língua; nada está resolvido ou
esgotado sobre a forma de conceber a natureza da linguagem que base ao ensino da
língua em alfabetização, para o professor; o Outro-aluno ainda não é visto como um
falante, conhecedor da língua falada e habitante de um mundo que se organiza e se
define pela linguagem.
Palavras-chave: alfabetização; letramento; linguagem; ensino-aprendizagem.
viii
BEGINNING READING INSTRUCTION: ONE THEME, SEVERAL MEANINGS
ABSTRACT: Literacy is a term introduced in the Brazilian educational context in the
decade of 1980 and publicized in several ways. Regarding the initial reading and
writing instruction, literacy has been seen and spread by some education theorists as
a necessary approach in the first language teaching process to which the concept of
beginning reading instruction has not corresponded. Although this may seem a
conceptual revolution, the fact is that studies in other areas of knowledge have already
pointed to the need of a new approach for teaching language at school. Thus, with the
aim of identifying and analyzing the conceptions of literacy by teachers who act at this
level of education reading and writing instruction –, we carried out an empirical
research with teachers from municipal public school in Cascavel and Santa Helena
(west of Paraná). The methodological instruments used in this research were the
images and speeches recorded during a course offered to the teachers, as well as
questionnaires with open and closed questions. The analysis of the empirical content
was carried out on the basis of Bakhtin’s categories of dialogism, plurivocality, alterity
and theme, considered in its relation with the theme ‘literacy’, in Brazil, especifically
in the area of initial reading and writing instruction, and with the studies on language
which have been carried out since the decade of 1980. The results show that the theme
‘literacy’ is not considered as a new approach for beginning reading and writing
instruction, since both literacy and reading and writing instruction deal with the same
object: the teaching of first language. However, the studies on literacy show that the
concept of reading and writing instruction still does not properly name its object and
motivates another, more suitable concept. The language conceptions of teachers who
act at this level of education and the theoretical assumptions that underlie their
teaching constitute one of these investigations. The voices present in their speeches
showed that: what has been meaningful in their teaching process is the language
conception by which they were taught; nothing is solved or exhausted concerning the
form of conceiving the nature of language that supports language teaching at the
beginning reading instruction; the learner is still not seen as a speaker, as someone
who knows the spoken language and who lives in a world which is organized and
defined by language.
Key-words: beginning reading instruction; literacy; language; teaching-learning.
INTRODUÇÃO
Letramento é um termo recente que tem sido utilizado para conceituar e/ou
definir variados âmbitos de atuação e formas de participação dos sujeitos em práticas
sociais relacionadas de algum modo à leitura e à escrita. Pode se referir a práticas de
letramento de crianças em período anterior ao período de escolarização; à
aprendizagem escolarizada da leitura e da escrita, inicial ou não; à participação de
sujeitos analfabetos ou alfabetizados o escolarizados na cultura letrada, ou, ainda,
referir-se à condição de participação de grupos sociais não alfabetizados ou com um
nível precário de apropriação da escrita em práticas orais letradas. É utilizado também
para definir parâmetros e medir graus de analfabetismo ou de alfabetismo de jovens e
adultos, assim como pode se referir ao impacto e aos efeitos da escrita sobre uma dada
população ou sociedade; designar o nível de participação dos sujeitos em movimentos
sociais ou definir práticas e eventos relativos ao domínio da cultura eletrônica ou
digital.
Nesta tese, porém, trataremos apenas do tema letramento escolar, na
especificidade do ensino escolarizado da leitura e da escrita da língua materna na série
inicial de alfabetização de crianças. Nesse âmbito, o termo tem sido utilizado
largamente para designar a participação de sujeitos alfabetizados, mas não letrados, em
sociedade. Alfabetizados por se tratarem de sujeitos que sabem ler, escrever, contar.
No entanto, esse conhecimento básico de letras e meros não é suficiente para inserir
os sujeitos em práticas sociais que exigem o domínio efetivo e conseqüente da leitura e
da escrita isso é o letramento. Em decorrência da necessidade dessa inserção é que o
tema letramento, ao longo de quase três décadas, especialmente no meio acadêmico,
tem estado presente nas mais diversas formas de divulgação. Vemo-lo em forma de
livros (grande parte destes oriunda de pesquisas acadêmicas), e como tema de
congressos, tema de coleção de manuais didáticos e de palestras.
A tendência tem sido compreender a relação entre alfabetização e letramento
escolarizado a partir da definição de cada um deles, vistos como partes distintas,
porém, indissociáveis. Se o letramento não substitui a alfabetização, “complementa-a”,
2
no sentido de que ser letrado é saber empregar nas diferentes situações sociais,
cotidianas ou o, a leitura e/ou a escrita, de modo a participar ativamente dessas
práticas. Essa necessidade, relativamente à alfabetização, a partir da década de 1980,
manifestada em forma de escritos e de pesquisas, evidenciou a “nova” condição
exigida pela sociedade: a de que as pessoas não apenas soubessem ler ou escrever seu
nome, um bilhete simples, tomar um ônibus, mas soubessem utilizar esse tipo de
linguagem nas práticas sociais mais amplas, que exijam posicionamentos, posturas.
Em decorrência, muitos estudos buscaram investigar as razões que levavam ao
analfabetismo, ou então, que levavam a classificar alguém como analfabeto ou
alfabetizado. Este se tornou um campo de investigação profícuo, pois, desde as
estatísticas censitárias educacionais, passou-se não a estabelecer, mas também a
questionar os critérios adotados para a classificação dos sujeitos segundo seu nível de
escolarização. Os resultados de exames de proficiência em leitura, escrita e em
conhecimento matemático assumiram âmbitos estaduais, nacionais e internacionais.
Seja na forma de dados estatísticos ou não, o fato é que esses eventos, ao definirem
quem é alfabetizado ou analfabeto, também se revelaram instigadores e configuraram
tema de investigação de muitos pesquisadores.
Frente a esse entendimento em relação à alfabetização e ao letramento escolar,
formulamos o problema que orientou o tema de nossa pesquisa: qual a concepção que
os professores alfabetizadores m sobre o letramento e como esta mobiliza os seus
saberes e os seus fazeres docentes?
Nossa hipótese era a de que o letramento escolar guarda em sua essência algo
nada diferente do sentido da alfabetização, se considerada a concepção de linguagem
como interação verbal (e escrita) permeando o processo de ensino da leitura e da
escrita. Hipótese esta intrinsecamente relacionada ao modo como concebemos a
alfabetização, o processo de ensino e aprendizado da leitura e da escrita em língua
materna, que como atividade discursiva constitutiva das relações humanas, ocorre por
meio de textos/enunciados produzidos por alguém e dirigidos a alguém, num dado
contexto enunciativo, isto é, sob determinadas condições, intenções e “modos de
“dizer”. Cremos que a condição de alfabetizado do aluno é o resultado de um processo
3
de ensino intencional, deliberado, em que o professor, principal mediador entre a
criança e a língua escrita, trabalha a partir de uma concepção de linguagem.
Para responder ao problema posto, a partir de um objetivo geral, compreender
como os professores alfabetizadores estavam constituídos (ou não) do tema letramento
nos seus saberes e nos seus fazeres em alfabetização, definimos os objetivos
específicos que orientaria nossa investigação: conhecer a produção acadêmica em
torno do letramento escolar, nas últimas décadas; conhecer as concepções de
linguagem postas em circulação pelo meio acadêmico no mesmo período em que se
produziam os estudos sobre letramento escolar; conhecer as vozes que se destacavam,
ou que pudessem ser inferidas dos enunciados dos professores alfabetizadores sobre
alfabetização e letramento; apreender o tipo de diálogo mantido com essas vozes e
analisar esses diálogos as concepções sobre linguagem que constituíam seus saberes e
fazeres no processo de ensino da língua escrita.
Assim, o primeiro recorte investigativo, visou a conhecer o estado do
conhecimento em alfabetização, engendrado a partir dos anos 80, do século passado.
Situamos o período de 1980 porque foi a partir dele que houve todo um movimento de
abertura sócio-política no Brasil, o qual possibilitou discussões e alterações
educacionais. Novos estudos, novas teorias, especialmente a proliferação de obras de
teóricos estrangeiros, deram novo impulso às pesquisas nacionais. Nesse momento,
organizações associativas foram criadas e se dedicaram a questionar e a apontar novos
rumos para a educação a partir de então. Indagamos se os novos rumos não criaram
possibilidades para que o ensino da leitura e da escrita se efetivasse nas salas de aula
para além dos objetivos escolares. Ou, ainda, se o que se efetivou foi um determinado
tipo de ensino que não visava à postura crítica e ao posicionamento do aluno como ser
social, portanto, histórico. Os muitos estudos nas diversas áreas: Lingüística,
Sociolingüística, Psicolingüística, Pedagogia, não contribuíram para que os
professores de alfabetização ensinassem a língua escrita materna de modo a
possibilitar o aprendizado do aluno, capaz de inseri-lo nas práticas sociais que exigem
o conhecimento mais conseqüente das atividades discursivas de leitura e da escrita?
Ou as novas pesquisas e seus resultados não alcançaram os saberes do professor e seus
4
fazeres em sala de aula? Senão, será que o problema da alfabetização, explicitado
como a necessidade de seu ensino voltar-se para as práticas sociais, ou mesmo o
problema do analfabetismo, é somente da escola, do professor de língua materna? Ou é
social? Muitas outras questões poderiam se somar a estas. No entanto, assinalamos que
um conjunto de fatores que merece análise e que pode auxiliar a entender o que
engendra o processo de alfabetização. As concepções de linguagem dos professores,
de ensino da língua escrita, de criança, são alguns desses fatores.
Geraldi (1985), no início da década de 1980, propunha um ensino de
linguagem que substituísse o “o quê”, “o como”, e “o por quê” ensinar, para o “para
quê” ensinar: para que” o professor ensina o que ensina em língua? (p. 42). Esse
deslocamento das perguntas já mostrava a preocupação com um ensino de língua
escrita que fazia com que o próprio professor refletisse sobre a relação de ensino;
questionasse com que propósitos ensinava a ler e a escrever seu aluno; para que seria
importante o aluno aprender o que ele ensinava, do modo como ele ensinava. Dessa
maneira, o autor incitava também a pensar a relação de ensino direcionada para o
Outro-aluno. No entanto, para desenvolver o exercício docente nesse sentido, seria
necessário que o trabalho em sala de aula fosse concebido e dirigido numa perspectiva
de linguagem voltada para a interação social.
Na mesma direção do pensamento de Geraldi, compreendemos o ensino da
língua escrita e o tratamento da linguagem na escola sob estas bases: a concepção de
linguagem como interação orienta a alfabetização. Esta terá melhores resultados se
também a relação de ensino ocorrer num ambiente de interação. A interlocução entre
professor e aluno deve abarcar tanto o ensino das relações internas entre palavras,
como as relações externas da linguagem. O que implica um entendimento de
linguagem em uso, isto é, como esta funciona na organização da sociedade. A função
do professor não é “apenas” mostrar ou explicar as funções sociais da linguagem, mas
possibilitar ao aluno interagir e aprender com as diferentes formas lingüísticas
estabilizadas socialmente, e possíveis de serem levadas para o contexto pedagógico,
nas salas de alfabetização.
5
Assim, de acordo com a perspectiva de linguagem assinalada, no primeiro
capítulo focamos os estudos sobre letramento escolar no Brasil. Nele, respondemos às
seguintes questões: quem foram e quem são aqueles que discutem o letramento
atualmente no Brasil? O que tem sido gravado nos/pelos discursos desses autores?
Como tem sido entendido o letramento e quais são os argumentos que fazem reiterar a
sua necessidade no campo da alfabetização? Estará o letramento, realmente, tratando
de algo novo, diferente? Ou grande parte das pesquisas e de estudos outros que tratam
da alfabetização, estes do mesmo período em que apareceu o letramento no discurso
educacional, não chegou aos professores? Seriam apenas os parâmetros estatísticos os
utilizados para medir” a população alfabetizada ou analfabeta, ou alfabetizada
funcionalmente, que estariam definindo o letramento escolar?
Um segundo passo que consideramos fundamental no processo de
compreensão a respeito das concepções dos professores sobre letramento vinculava-se
aos modos de entender a linguagem, ou melhor, ao ensino da língua escrita materna,
paralelamente às discussões sobre letramento escolar. Para tanto, no segundo capítulo,
invocamos o tema das concepções de linguagem, trazendo as inovações propostas, a
partir da década de 1980, principalmente devido à profusão dos estudos da Lingüística
e sua repercussão no ensino de áreas relacionadas à alfabetização escolar
Sociolingüística, Psicolingüística, Pedagogia que pudessem redimensionar as
práticas pedagógicas. Essa é a discussão do capítulo.
Para conhecer a concepção de linguagem dos professores alfabetizadores,
buscamos identificar as vozes presentes nas suas enunciações: autores, obras, sujeitos,
que marcam instituições e eventos, comunidade escolar, bem como o tipo de diálogo
estabelecido; destacar os ditos e os não-ditos de seus discursos sobre suas práticas e
posicionamentos e os compreender em relação à alfabetização e ao letramento.
A pesquisa de campo a busca dessas concepções dos professores
constituiu-se em dois momentos. O primeiro foi um curso de extensão (ANEXO I)
intitulado “A alfabetização e o letramento na série inicial do ensino fundamental:
concepções, limites e perspectivas”. Este foi ofertado no período de 24 a 27 de
setembro de 2007, para professores da rede pública municipal de Cascavel e de Santa
6
Helena (Paraná) e perfez um total de vinte horas/aula de atividades, destinadas quatro
destas para a leitura de textos pelos participantes. O intuito foi o de dialogar com esses
professores, conhecê-los em sua constituição profissional e compreender os
movimentos que destacavam em relação ao ensino da linguagem escrita em
alfabetização. Foram abertas trinta vagas e todas foram preenchidas. Entretanto,
participaram do primeiro dia de curso vinte e sete (27) professores. Destes, um (01)
professor esteve impedido de dar continuidade à participação por motivos particulares,
totalizando, portanto, vinte e seis (26) o mero de participantes. Estes compuseram o
universo investigativo desta pesquisa.
Os sujeitos de nossa pesquisa constituíam um grupo de professores com a
seguinte formação: Pedagogia (13), um (01) destes cursando; Letras (04); Pedagogia e
Letras (01); Ciências Sociais (01); História (02); três (03) professores não
especificaram o curso de graduação em que se formaram, mencionaram “3º grau”;
Normal Superior (01); um (01) professor é formado em nível médio Magistério, e
cursava Pedagogia. Desses professores, quatorze (14) eram pós-graduados nas
seguintes áreas: Psicopedagogia (04), Educação Especial (02), Gestão e Supervisão
Escolar (02), Gestão e Educação Ambiental (01), Lingüística Aplicada (01), OTPGE
(Organização do Trabalho Pedagógico e Gestão Escolar) (01) e Literatura Brasileira
(01). Dois (02) professores não mencionaram o curso em que se especializaram. A
participação desses professores no curso de extensão foi gravada e arquivada em
DVD, para possibilitar as análises posteriores.
O segundo momento da pesquisa de campo constituiu da aplicação de um
questionário (ANEXO II), respondido no primeiro dia, logo ao início do curso
supracitado. O questionário continha três partes: uma delas trazia os dados pessoais e
profissionais dos professores alfabetizadores; a outra era composta por questões
abertas sobre os saberes e fazeres dos professores; a última parte compunha-se de
questões fechadas, as quais tinham o propósito de investigar o conhecimento desses
professores a respeito das obras e autores selecionados, a maioria deles nos capítulos I
e II, por serem considerados clássicos na área em que atuam.
7
Um dos aspectos metodológicos mais importantes a ser destacado na
realização do curso foi a sua duração: quatro dias. De certo modo, houve mais tempo
para que os professores formulassem e reformulassem suas idéias, seus conceitos e
conclusões; revissem essas conclusões e posicionamentos a partir da fala do Outro. Em
síntese, houve tempo para que as contradições fossem expostas, as quais foram
elucidativas para melhor compreendermos as concepções dos professores sobre
letramento.
Dos enunciados dos professores registrados durante o curso e nos
questionários reunimos as concepções que se podiam inferir sobre o tema em questão.
Essas concepções expressavam relações sociais, e, portanto, davam concretude ao
tema. Os dados concretos, após compilados, constituíram-se em documentos que
formaram a base material da análise empreendida sobre o tema.
Elegemos os estudos teórico-metodológicos do círculo de Mikhail Bakhtin
para proceder às análises do material empírico. Desses estudos privilegiamos as
categorias dialogismo, plurivocalidade, alteridade e tema para a procedermos à análise
dos documentos. O dialogismo refere-se tanto aos diálogos estabelecidos entre sujeitos
da fala/escrita, sem necessariamente significarem ausência de conflitos, tensão, como
diz respeito também aos diálogos entre os diferentes discursos de uma sociedade e
cultura; é o discurso de outrem constituindo novos discursos. O dialogismo é
constitutivo da linguagem. Plurivocalidade diz respeito à multiplicidade e diversidade
de “vozes” que constituem os sujeitos, suas experiências, e que se deixam perceber nos
diálogos com Outros, nos seus enunciados. A plurivocalidade equivale ao conceito
bakhtiniano de polifonia, mas preferimos aquele a este por entendermos o termo
polifonia mais característico do dialogismo marcado na obra literária. A alteridade diz
respeito ao Outro: a consideração, o reconhecimento, a importância que tem e se
dispensa ao Outro da linguagem, da cultura, da interação, da interlocução, enfim, o
Outro das e nas relações humanas. A categoria tema refere-a aos elementos que
compõem o contexto do enunciado/enunciação, para além da formulação sintático-
frasal, lexical: o tempo histórico, os sujeitos presentes e ausentes, a situação, a
8
intenção e tudo o mais que for possível identificar (ou não) que faz daquele momento
de interação único e irrepetível.
O modo marcadamente inter-relacionado com que tratamos os dados, a partir
dessas categorias, coaduna-se com nossa concepção de linguagem: um processo de
interação entre sujeitos que se constituem dialogicamente, no encontro com outros
sujeitos e conhecimentos, cotidianamente, e tem como referência um dado momento
histórico, pois só assim penetramos ativamente na corrente da existência humana.
O aprofundamento do que entendemos por essas categorias e a compreensão
dos enunciados registrados a partir dos instrumentos referidos estão apresentados nos
terceiro e quarto capítulos.
O terceiro capítulo intitula-se “As vozes permitidas, o permitidas, presentes
e ausentes nas concepções de linguagem dos professores alfabetizadores o Outro-
aluno” e abriga as discussões que versaram sobre o Outro-aluno. O objetivo foi o de
mostrar o espaço que esse Outro ocupa na relação de ensino, assim como as
percepções que os professores têm sobre seu aprendizado. Fazem parte dessas
percepções a forma recorrente com que o tema “oralidade” foi referido pelos
professores, o auxílio e a presença dos pais no aprendizado dos filhos, a maneira como
foi posta a questão dos métodos em alfabetização, do ciclo básico e do ensino
fundamental de nove anos.
No quarto capítulo, desenvolvemos o tema “cultura professoral”. Estamos
chamando de cultura professoral, analogamente ao que Forquin (1993, p. 167) definiu
por cultura escolar. Para o autor, essa cultura realiza-se segundo as orientações gerais
das políticas educacionais que organizam o funcionamento das instituições de ensino.
Cultura professoral diz respeito então ao modo específico com que os professores
alfabetizadores conhecem, agem e se manifestam em relação a sua profissão, ao seu
saber, nas séries de alfabetização inicial. Cultura professoral refere-se, também, ao
modo como esses professores denotam, em seus discursos, a adesão, filiação ou não, a
determinadas concepções e teorias. Reservamos para este capítulo a análise
desenvolvida sobre algumas estratégias de que o professor diz utilizar-se para que o
aluno alcance o aprendizado escolar da língua escrita materna, as suas concepções
9
sobre alfabetização, sobre a função da escola pública e sobre o modo como
compreendem os contextos que fazem do livro didático e da gramática, por vezes,
“vilões”, por vezes, “mocinhos” durante o período da alfabetização escolarizada.
Assim, pela análise das concepções dos professores alfabetizadores sobre
letramento buscamos compreender se este se distinguia ou não, e em quê, da sua
concepção de alfabetização. Buscamos apreender nos enunciados dos professores, as
vozes dos seus Outros, suas filiações, a configuração de sua concepção de linguagem.
Acreditamos que conhecer os interlocutores dos professores alfabetizadores e o
diálogo mantido com eles auxilia a compreender melhor seus saberes e seus fazeres,
suas crenças e o sentido que atribuem ao ensino da língua escrita. Assim como as
vozes presentes e ausentes permitem definir outras concepções que alicerçam sua
prática docente e revelam formas do professor conceber a linguagem.
10
1. QUESTIONAMENTOS E ABORDAGENS SOBRE O LETRAMENTO NO
BRASIL: UMA LEITURA A PARTIR DA DÉCADA DE 1980
Alfabetização e Letramento foi o tema da segunda conferência magna
realizada no Fórum Nacional Extraordinário da União dos Dirigentes Municipais de
Educação (UNDIME), ocorrido em 24 de maio de 2006, em Brasília. Telma Ferraz
Leal, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro do Centro
de Estudos em Educação e Linguagem (CEEL), do Centro de Educação/UFPE, e
Elvira Souza Lima, consultora em alfabetização e letramento, foram as palestrantes da
conferência.
1
Telma Ferraz Leal diferenciou os conceitos de alfabetização e letramento.
Definiu o primeiro como o processo de apropriação do sistema alfabético de escrita, e
o segundo como sendo o conjunto de práticas de uso de diferentes materiais escritos.
Afirmou que o sucesso na aprendizagem da língua portuguesa depende do
desenvolvimento de ambos os processos. Elvira Souza Lima abordou o tema por outro
prisma. Para a consultora, a fala se desenvolve naturalmente, é determinada
geneticamente; a escrita e a leitura são aprendidas e envolvem funções diferentes do
cérebro. Para Lima, mais importante do que entender como a criança aprende é
explicar o que acontece quando a criança não aprende, afirmando que “a aquisição da
leitura e da escrita está relacionada ao desenvolvimento da capacidade simbólica do
ser humano.”
Esses enunciados são exemplos de que existe atualmente uma crescente
preocupação em esclarecer a distinção entre alfabetização e letramento. Especialmente
quando muitos autores, se não todos os que discutem o tema, afirmam que ambos são
faces distintas de um mesmo processo. A nós, entretanto, essa situação oculta a
existência de outros elementos relevantes que, por não serem discutidos, mascaram a
compreensão do processo escolar em alfabetização.
1
Com o título “Fórum discute alfabetização e letramento”, a repórter Adriana Maricato divulgou, em
24 de maio de 2006, matéria sobre a citada conferência no portal do MEC, disponível no endereço
<http://portal.mec.gov.br/index>.
11
Desse modo, pensamos que mais do que esclarecer conceitos, importa
compreender por que alfabetização e letramento estão sendo utilizados para nomear
fenômenos intrinsecamente relacionados se respondem a um mesmo objeto. Esse
mesmo objeto é o ensino e o aprendizado da língua materna, que, conforme a
concepção de linguagem adotada, produz práticas mais eficazes na alfabetização do
aluno. Por exemplo, se a concepção de linguagem com que trabalha o professor for de
interlocução, de interação verbal e escrita entre sujeitos, suas práticas alfabetizadoras
voltam-se para o ensino de uma linguagem viva, cambiante, que se altera no decorrer
da história, do tempo e do espaço. Entendemos que apreender essas práticas
alfabetizadoras e compreender a concepção de língua materna, de ensino de língua
escrita e de criança que as norteiam pode redirecionar os encaminhamentos dados à
alfabetização, ao invés de “acoplar” outra denominação ao que lhe é objeto de ensino.
O fato de não se pensar as práticas alfabetizadoras nesta perspectiva, a de
compreender as concepções de linguagem que as embasam, leva a questionar por quais
motivos, embora sendo tematizados mais de vinte anos, os discursos produzidos
institucionalmente nos mais diversos setores em torno da alfabetização, e, mais
especialmente, em torno do neologismo brasileiro letramento, não alcançaram as salas
de aula.
Para compreendermos a concepção que os professores formulam sobre
letramento, objeto central desta tese, faz-se necessário entender o processo histórico
sobre o qual se constituiu o termo. Partimos do pressuposto de que as concepções
formuladas pelos professores engendram os princípios teóricos dos autores presentes
em sua formação acadêmica e/ou nos materiais didáticos a que tiveram acesso nas
últimas décadas.
12
1.1 QUESTIONAMENTOS: COMO, QUANDO E POR QUE O TERMO
LETRAMENTO É TEMA DO PROCESSO DE ENSINO E DO APRENDIZADO DA
LÍNGUA ESCRITA MATERNA NA ESCOLA
Embora as estatísticas atestem avanços em torno da alfabetização da
população, essa mesma população não se encontra preparada para fazer uso social do
que a escola lhe ofereceu como práticas educativas em alfabetização. Ou melhor, a
escola não ofereceu práticas alfabetizadoras que lhe possibilitassem agir
conseqüentemente em meio à sociedade da cultura escrita
2
. Essa tem sido a
justificativa apresentada para valorizar os estudos em torno do letramento.
Em decorrência de um processo alfabetizador não voltado para a atuação
social, produz-se o analfabeto funcional, aquele sujeito com quinze anos ou mais que
não freqüentou a escola por, no mínimo, quatro anos, mas que é capaz de “funcionar”
na sociedade (IBGE, 2001). É esse tipo de alfabetizado” que permite a produção de
um discurso que atesta a redução do número de analfabetos no país, bem como
alavanca um discurso de que a educação e, em especial, a alfabetização, diminuem a
pobreza e a injustiça social. Em outras palavras, esses discursos forjam a crença de que
a educação e a alfabetização são meio de alçar nova condição econômica e, portanto,
social para os sujeitos, desconsiderando outros determinantes sociais como
distribuição de renda e oferta de empregos.
O INAF – Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional
3
revela dados
importantes sobre a questão do analfabetismo funcional, inclusive dando-lhe outra
conotação quando altera a sua denominação para alfabetismo funcional. Por um lado,
demonstram a necessidade de abordar o alfabetismo da população em termos de níveis
(do analfabeto aos níveis 1, 2 e 3) e não em termos de analfabetismo funcional para
2
No decorrer deste capítulo, apresentaremos alguns autores que fazem análises criteriosas das
estatísticas trazidas sobre alfabetização. Para situar o leitor no particular deste parágrafo, pode ser
consultado no Dossiê Letramento da Revista Educação e Sociedade, volume 23, de dezembro de 2002,
o artigo de Alceu Ravanello Ferraro intitulado “Analfabetismo e níveis de letramento no Brasil: o que
dizem os censos?” (p. 21-47).
3
Para uma leitura crítica dos dados do INAF de 2001 a 2005, ver texto de Percival Leme de Britto na
coletânea Alfabetização no Brasil: questões e provocações da atualidade (2007). Referências
completas no final desta tese.
13
caracterizar o nível de conhecimento e o uso que o sujeito faz da leitura, da escrita e do
cálculo. Por outro, atestam que a escolarização é que tem possibilitado o alfabetismo,
isto é, o aprender a ler e a escrever e usar a escrita nas práticas sociais. A escola é
tomada como o principal fator para o alfabetismo da população (BRITTO, 2007, p.
31).
Se a educação escolar não pode ser tomada como solução para todos os
problemas sociais, segundo o INAF, a escola tem-se evidenciado como um importante
locus de apropriação dos conhecimentos científicos, intencionais e sistematizados.
Esse fato contraria alguns outros pontos de vista que entendem a escola atual como
uma instituição sem razão de existir, uma vez que ela o tem conseguido atender às
necessidades sociais dos indivíduos. Entretanto, não podemos esquecer ou
desconsiderar que o processo de democratização da escola, apesar dos limites
apresentados na efetiva educação escolar das classes populares, garantiu o acesso de
muitos ao saber escolarizado. Sem denotar uma visão romântica e/ou ingênua do que
significou a criação dessa instituição durante a Revolução Industrial, acreditamos que
tanto pior seria se o acesso escolar ficasse restrito apenas às classes com melhores
condições econômicas.
A escola pública contemporânea nasceu em um contexto específico: no
cenário inglês, por força do movimento histórico industrial e tecnológico, de
organização da legislação inglesa que retirava progressivamente da fábrica a força de
trabalho da criança e organizava uma outra estrutura educacional. As condições sócio-
políticas e econômicas daquele momento produziam uma escola que haveria de estar
comprometida tanto com a educação do filho recém-desempregado do trabalhador,
como com a educação do filho do capitalista. Assim, a escola tradicional foi-se
transformando e emergiu a proposta da escola burguesa única, universal e gratuita,
formulada pelo escolanovismo (ALVES, 2006). A escola brasileira também sofreu
influência desse contexto e, historicamente, tem passado por algumas transformações.
Portanto, atualmente, essa escola não pode mais ser concebida do mesmo modo como
fora criada porque as condições históricas e as necessidades são outras.
14
O mesmo ocorre em relação à alfabetização. Não podemos pensar em
alfabetização nos dias atuais sob os mesmos pressupostos com que se ensinava a
leitura e a escrita logo ao início de sua história, nem com os mesmos pressupostos do
início do século passado, ou mesmo com os pressupostos do cenário sócio-político que
antecedeu a era da inserção do computador ou da abertura política. Sem dúvida, na
medida em que alguma alteração na base da organização material, seja cultural,
econômica, tecnológica, novas necessidades são engendradas e a educação e a escola
como partícipes do contexto social em que tais necessidades o produzidas não ficam
à margem dessas alterações.
O contexto brasileiro, interpenetrado por estudos sobre linguagem e
orientações sobre alfabetização promovidos em outros países, engendra diferentes
matizes para o ensino em alfabetização que precisam ser consideradas. Assim, apesar
de não desconhecermos que a alfabetização no Brasil abarca diferentes entendimentos
e práticas de ensino decorrentes dessas formas de entendimento, cremos que seja
necessário pensá-la, refletir sobre ela a partir de um elemento comum, o seu próprio
objeto: a leitura e a escrita da língua materna. E pensamos, ainda, que esse objeto é
que deve ser tomado para análise em todos os seus aspectos, esgotando-se todas as
possibilidades para compreendê-lo no que nele de fundamental. Entretanto, se
constatações de que as crianças não estão sendo alfabetizadas de modo a produzirem
sua existência numa sociedade que exige a condição letrada constantemente, isso é
outro caso. Caso que, diríamos, que ser investigado, levantando-se as condições e
se buscando alternativas para reconduzir o processo de alfabetização escolar.
No entanto, percebemos que produções científicas na esfera educacional
brasileira (TFOUNI, 1988; KLEIMAN, 1995; SOARES, 2004; 2003 entre vários
outros) que declaram a necessidade de um novo termo, o letramento, para denominar a
condição de alfabetizado como nós comumente a concebemos: o conhecimento e a
utilização da leitura e da escrita no exercício da atividade humana.
Assim, temos visto o termo letramento recorrentemente gravado em livros,
periódicos, artigos, livros didáticos e documentos oficiais ao longo das últimas
décadas do século XX e início deste novo século para justificar uma nova maneira de
15
entender o que seja o processo de alfabetização. Ou melhor, a justificativa que tem
sido apresentada para a instauração e a legitimação do letramento junto a
pesquisadores, educadores e professores, especialmente os de alfabetização, é
precipuamente o fato de que o termo alfabetização não contempla e não responde à
necessidade posta pelo atual momento histórico. A sociedade contemporânea,
extremamente centrada na escrita, requer sujeitos que façam uso da língua escrita com
propriedade e saibam lidar com os mais diferentes gêneros textuais produzidos na e
pela sociedade. Nesse sentido, também o argumento de que o termo letramento
definiria essa instância de atuação do sujeito, pois alfabetização diria respeito apenas
ao caráter individual de domínio das especificidades do digo escrito (SOARES,
2003; RIBEIRO, 1999; KLEIMAN, 1995; TFOUNI, 1995). Desse modo, não basta ser
alfabetizado: é preciso ser letrado.
Alguns estudos (SOARES, 2003, 2004; KLEIMAN, 1995; MATENCIO,
1995) têm mostrado o termo letramento como algo recente em nossa literatura.
Segundo Soares (2003), palavras novas surgem quando novos fenômenos ocorrem,
quando uma nova idéia, um novo fato, um novo objeto surge, pela necessidade que o
homem tem de nomear as coisas, sem o que a coisa ainda não existe. Nas suas
palavras,
Convivemos com o fato de existirem pessoas que o sabem ler e escrever, pessoas
analfabetas, desde o Brasil Colônia, e ao longo dos séculos temos enfrentado o problema de
alfabetizar, de ensinar as pessoas a ler e escrever; portanto: o fenômeno do estado ou
condição de analfabeto nós o tínhamos (e ainda temos...), e por isso sempre tivemos um
nome para ele: analfabetismo.
À medida que o analfabetismo vai sendo superado, que um mero cada vez maior de
pessoas aprende a ler e a escrever, e à medida que, concomitantemente, a sociedade vai se
tornando cada vez mais centrada na escrita (cada vez mais grafocêntrica), um novo
fenômeno se evidencia: não basta apenas aprender a ler e a escrever. As pessoas se
alfabetizam, aprendem a ler e a escrever, mas não necessariamente incorporam a prática da
leitura e da escrita, não necessariamente adquirem competência para usar a leitura e a escrita,
para envolver-se com as práticas sociais de escrita (...). (SOARES, 2003, p. 45-46, grifos da
autora).
Se a justificativa da autora para o surgimento da palavra ‘letramento’ no nosso
vocabulário educacional é que o aprendizado da leitura e da escrita não permite a
atuação nas práticas sociais que exigem seu domínio, questionamos se não haveria a
16
necessidade de formularmos outras perguntas para direcionar a busca de respostas, ao
invés da substituição ou da inclusão de novos termos (letramento), para compreender o
que ocorre com um mesmo objeto.
A partir dessa indagação e visando a ampliar o debate, para dialogar com a
resposta de Soares, trazemos os estudos de Mortatti (2000), abrangendo o período de
1876 a 1994, sobre os Sentidos da alfabetização. É uma obra que situa o tema no
contexto educacional paulista, e, ainda que seu foco de investigação seja outro, a
perspectiva histórica com que a autora trabalha também responde à questão colocada
por Soares.
Maria do Rosário Longo Mortatti (2000) entende que realizar uma leitura
histórica da alfabetização é contar a história das lutas dos homens de um determinado
tempo para vencerem as dificuldades e/ou necessidades do cenário social e
educacional. Em decorrência dessas necessidades, no período de investigação por ela
determinado, buscava-se desenvolver novas tematizações, especialmente no tocante
aos métodos para alfabetizar, com vistas a superar o fracasso escolar na alfabetização.
Substituía-se algo tido como “antigo”, ou “tradicional”, por algo “novo”, “moderno”,
em torno do que se normatizavam e se concretizavam orientações de cunho oficial,
refletidos nos manuais de alfabetização, para os professores ministrarem em suas
práticas, nas salas de aula. Assim, as necessidades postas requeriam novos métodos,
que, no limite de sua aplicação, seriam desenvolvidos pelos professores.
No contexto de nossa abordagem, é possível indagar se, à maneira dos estudos
de Mortatti, não se estaria colocando uma nova tematização, fruto de pesquisas e
assunto de centros especializados e academias; se não se estaria buscando, na
proposição de uma revisão conceitual, disputar um espaço entre os mais modernos, ou
melhor, entre os contemporâneos. Isso, no entanto, desconsideraria os estudos que
outros teóricos também vinham desenvolvendo no mesmo período, com as mesmas
preocupações, ou melhor, trilhando outros caminhos para embasar teórico-
metodologicamente as práticas no ensino da língua materna e, assim, tentar vencer os
fracassos em alfabetização. No entanto, percebemos que estes estudos se chocam com
aqueles no sentido de que realizar estudos para motivar reflexões e, quiçá, novas
17
concepções para o ensino da língua não é o mesmo que inserir terminologias, dividir
conceitos e, com eles, separar objetos. Mas, ainda assim, se uma nova tematização
estava ocorrendo, sob que bases estariam se sustentando para tematizar esse “novo”
elemento?
Quem critica a alfabetização justifica essa crítica apoiando-se no fato de que a
leitura e a escrita é ensinada e aprendida descontextualizada das situações reais de uso
da linguagem. Essa crítica, no entanto, faz-nos recordar que embora a criança o
domine a leitura e a escrita de modo sistematizado, escolarizado, é capaz de
reconhecer e estabelecer vínculos entre a escrita e o sentido, conforme o contexto em
que é utilizada essa forma de linguagem. A criança faz leituras incidentais e
inferências lingüísticas conforme a forma gráfica de letras e/ou palavras, cor, tamanho,
som. Ela também pode fazer inferências extralingüísticas: uma situação, um local, um
horário, o encontro com determinada pessoa, pode levar a criança a estabelecer sentido
para determinados atos de leitura e de escrita. Em vista disso, acreditamos que o
inverso é que é difícil da criança estabelecer. Ou seja, o difícil é a criança
desvencilhar-se dos demais elementos que concorrem para a compreensão que elabora
da palavra escrita.
Se o professor desconsidera essa capacidade de produção de leitura e
entendimento da escrita pela criança, e ensina letras desprovidas de um contexto
significativo, isto é, sem sentido, temos que admitir então que seu ensino está voltado
para a língua morta. Um ensino que retira a linguagem das condições sociais de uso. É
o que faz, por exemplo, um professor que, ao trabalhar com um texto, utiliza-se dele
apenas para “retirar” palavras com uma determinada letra, ou para circular sílabas
relacionadas com a letra que quer ensinar, ou destacar os sinais de pontuação, ou
ainda, marcar como devem ser utilizadas as letras maiúsculas. Ao abster-se de discutir
o conteúdo desse texto, sua organização textual e social; o modo como funcionalmente
esse texto organiza a vida dos homens em sociedade, interagindo com esse texto como
unidade significativa da linguagem, um todo coerente que se refere a uma situação
específica de interação, que provoca reações, esse professor negligencia o ensino da
linguagem segundo a função social que lhe é característica. E o aprendizado da língua
18
destacado da sua condição de uso efetivo não faz sentido para aquele que está se
iniciando na apropriação do sistema de escrita para interagir ativamente nas práticas
sociais cotidianas de uso da língua.
Apesar disso poder acontecer, cremos ser difícil o ensino de palavras ou
mesmo de letras sem estas configurarem ou fazerem parte de um contexto. Como
ensinar palavras sem contextualizá-las, sem colocá-las num contexto de sentido, de
uso real, numa situação cotidiana de uso? Ao ensinarmos a escrita descontextualizada
não estamos tratando de linguagem, então. Aí sim, estamos tratando de palavras soltas,
sem nexo, ou, sem produzirem sentido. Nenhuma palavra existe por si só. Ela que
provocar no outro algum sentido. O grafismo empregado em qualquer palavra é forma,
é norma, mas seu “significado” produz nas relações humanas ressonâncias de sentido,
isto é, carrega juízos e valores, supõe um contexto que gera e define esse sentido, a
maneira pela qual respondemos ao mundo em que vivemos. Nossas respostas provêm
de nossas experiências, nossas vivências, nosso entendimento de mundo, que são
capazes de ser expressos.
De certo modo, aceitar a crítica em relação à alfabetização é o mesmo que
aceitar que os professores, no seu cotidiano escolar, “ensinam apenas sinais, sempre
idênticos entre si e imutáveis, e não signos” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p.
96). Da mesma maneira, podemos entender o letramento também como produção
ideológica, porém, em um nível acadêmico-científico, como gênero secundário de
elaboração de conhecimentos mais próximo das ideologias enformadas. Ele é a
expressão da visão que alguns teóricos da educação formulam sobre a língua e sobre o
ensino da língua. Entretanto, nas suas formulações, parecem deixar de analisar este
elemento importante em relação ao ensino da linguagem escrita: a impossibilidade de
se ensinar/aprender meros sinais como linguagem humana, desprovidos de reflexos e
refrações da realidade. Ou então, caso isso ocorra, necessário se torna investigar como
e por que se produz um ensino da língua, com esse nível de compreensão da
linguagem.
Por compreendermos que linguagem é signo, isto é, caracteristicamente
flexível, mutável, moldável, plástica no sentido de que se altera conforme o contexto
19
de ocorrência, o auditório social que encerram e expressam, não podemos deixar de
questionar essa ideologia “enformada” do letramento. Esta que denuncia um ensino de
língua distanciado das práticas sociais de uso da leitura e da escrita e, assim, justifica a
introdução do letramento, com um objeto específico, junto à alfabetização.
A nós, parece-nos que essas ideologias contribuem para que as práticas em
alfabetização não produzam os efeitos esperados. E isso justamente por defenderem
certos encaminhamentos teórico-metodológicos no ensino de língua que podem não ter
sentido para os professores, dadas suas experiências, sua visão de mundo, sua
vivência. E mais, acabam por produzir outro tipo de efeito, como, por exemplo, a
ênfase em um ensino voltado para o conteúdo gramatical da língua, não como
forma de resistência, mas como o que de fato lhe constitui o entendimento de língua.
Se essa forma de ensino da língua é certa, viável, não é a questão neste momento. O
que ressaltamos é que ao considerarmos essa situação, podemos estar no caminho de
compreender o porquê de práticas como o ensino de gramática ainda serem tão
acentuadas em alfabetização; ou por que pais com vel de escolaridade menor que o
do professor conseguem alfabetizar com bastante propriedade. Essas são questões que
vamos abordar no terceiro e quarto capítulos, quando da análise dos diálogos e das
vozes que se fazem presentes nos modos de o professor alfabetizador compreender o
ensino da língua.
É possível pensarmos que o letramento é que tem alimentado, nestas últimas
décadas, a ciência pedagógica as pesquisas, as orientações teórico-metodológicas, as
discussões acadêmicas e governamentais nas suas ideologias; que tem devolvido
para as esferas ideológicas cotidianas o resultado das suas reelaborações. Estas,
entretanto, nem pelo fato de serem oficiais, são absorvidas mecanicamente pela esfera
ideológica no seu grau mais primitivo a ideologia do cotidiano –, no qual a
consciência valorativa do professor a respeito dos discursos da ciência pedagógica
no nosso caso, o letramento entra em ação, ou reação. Acreditamos que, ao
apontarmos essas considerações, estamos realizando um pequeno movimento para
refletirmos acerca de algumas “verdades” colocadas pela própria ciência pedagógica
para os que trabalham com a alfabetização.
20
Não desconhecemos os muitos movimentos que aconteceram no contexto
brasileiro a partir da década de 1980. Foi um período de muitas mudanças e
transformações sociais, políticas, econômicas e culturais no Brasil. Na educação, além
de mudanças estruturais, desenvolveram-se novos ideários educacionais e diferentes
encaminhamentos teórico-pedagógicos proliferaram nas mais diferentes áreas do
conhecimento. Na linguagem, por exemplo, as bases teórico-metodológicas vão se
direcionar para a Lingüística e outras vertentes como a Análise do Discurso e a Teoria
da Enunciação. Assim como os estudos de Emília Ferreiro e de Vygotsky, Luria e
Leontiev, estes traduzidos para nossa língua, geraram inquietações e outros
direcionamentos no que diz respeito aos “modelos” tradicionais de ensino em
alfabetização.
No entanto, é na década de 1990 que podemos verificar o discurso e a
produção acadêmica que também se torna oficial acerca da alfabetização trazendo,
como centro da discussão, o discurso do letramento. Período em que apesar das
produções que chegavam ao Brasil em termos de teorias, pesquisas, tradução de livros
e artigos que mostravam pesquisas que “davam certo”, conforme uma ou outra nova
orientação teórico-metodológica, o fracasso escolar, o analfabetismo e a evasão
continuavam (e continuam) a fazer parte da história da alfabetização da escola
brasileira
4
.
A seguir, abordamos as discussões e os enunciados produzidos
academicamente em torno do letramento, na sua relação com a alfabetização escolar.
4
Dados sobre a condição escolar e a alfabetização de brasileiros poderão ser consultados no site do
Ministério da Educação e Cultura, no SAEB Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica –,
pelo Resultado da Prova Brasil, no PISA Programa Internacional de Avaliação de Alunos (no item
“leitura”, dados de 2000, e em “matemática”, há dados de 2003) e pelo INAF Índice Nacional de
Alfabetismo Funcional.
21
1.2 O DISCURSO ACADÊMICO SOBRE O LETRAMENTO NA
ALFABETIZAÇÃO ESCOLAR
Não são poucos os discursos sobre letramento produzidos na e pela academia.
Eles objetivam-se em forma de estudos, pesquisas, congressos e publicações e tornam
o tema recorrente no meio educacional. É esse discurso acadêmico que será analisado
nesta seção. Para tanto, estamos elegendo, com todo o perigo que corremos, a década
de 1990 como a década em que a alfabetização entra, por meio de um discurso pelo
alto
5
, sumariamente num discurso de crise. Em meio a essa crise, estudiosos passam a
declarar o letramento como um caminho não percorrido pelo ensino em alfabetização,
justificando um discurso de falta, de ausência.
Iniciemos esta seção por esclarecer nosso entendimento sobre a denominação
letramento. Mais do que mera palavra, trata-se de um signo, e como tal, guarda
propósitos ideológicos para além de si, externos ao seu significado imediato. Toda
palavra, como signo ideológico, assume diferentes propósitos e nuances distintas;
repercute socialmente nas esferas em que circula, engendra relações e pode provocar
alterações nessas relações. É, portanto, no mesmo sentido que Bakhtin/Volochinov
(2004, p. 41) entendem a palavra, que entendemos letramento como palavra. Para os
autores, as palavras precisam ser entendidas como “tecidas a partir de uma multidão de
fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais, em todos os domínios.
É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as
transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não
tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos
estruturados e bem formados.” (grifos nossos em negrito; dos autores, em itálico
dentro do destacado em negrito).
Com esse entendimento do que o letramento comporta enquanto “palavra”,
passamos a desenvolver o tema a partir daquilo que se tem tornado comum vermos
5
Termo emprestado de Mortatti (2000), com o qual queremos dizer, aqui, dos discursos produzidos
pelas academias e dos discursos legais dos governos.
22
citado pelos vários autores que discutem alfabetização e letramento: a “inauguração”
do termo no cenário educacional brasileiro.
A esse respeito, Magda Soares contextualiza como o termo letramento foi
cunhado no nosso país: “parece que a palavra letramento apareceu pela primeira vez
no livro de Mary Kato: No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística, de
1986 (...). Na gina 7, a autora diz o seguinte ‘acredito ainda que a chamada norma-
padrão, ou língua falada culta, é conseqüência do letramento, motivo por que,
indiretamente é função da escola desenvolver no aluno o domínio da linguagem falada,
institucionalmente aceita.’” (SOARES, 2003, p. 32, grifo da autora).
Depois de Mary Kato, Leda Verdiani Tfouni, em 1988, volta a utilizar o termo
letramento, “lança a palavra no mundo da educação”. Além de dedicar páginas à sua
definição, “busca distinguir letramento de alfabetização” no livro Adultos não
alfabetizados: o avesso do avesso, em que registra um estudo sobre o modo de falar e
de pensar de adultos analfabetos (SOARES, 2003, p. 33).
Cremos ser possível destacar aqui uma distinção entre as duas autoras: Kato
parece referir-se ao letramento como a maneira de alguém portar-se em sociedade por
ter compreendido, apropriado e por utilizar determinado modo de falar e escrever
aceitos e padronizados socialmente. Diferentemente, Tfouni circunscreve o termo
letramento à relação com a alfabetização escolar, demonstrando o que esta não
oferece. É pelo lado da negação que esta autora posiciona o fazer da escola.
Entretanto, questionamos se a escola, ao oferecer o ensino em alfabetização,
não o faz com o objetivo de que o aluno aprenda o processo de leitura e de escrita para
a compreensão e atuação em práticas sociais, exercendo, já na sua apropriação, a
função social da escrita. Seria possível considerar que a escola alfabetizou sem dizer
para que alfabetizou? Se assim o fez, teríamos de admitir a escola como uma
instituição apartada da sociedade, que dela não participa nem sofre influência, o que é
inconcebível. O fato de Tfouni estar se referindo a adultos não altera o modo de
compreender o letramento, pois nos perguntamos se os adultos não trazem para a
escola muito mais experiências de vida, e mais diversificadas inclusive, do que as
crianças, com relação à escrita e à leitura, mesmo que analfabetos. Será possível
23
ensinar ao adulto uma forma de ler e escrever que não considere o seu uso em
sociedade? Como entender o ensino e o aprendizado da leitura e da escrita apenas para
a escola, para copiar, calcular, fazer “redação”, ler mecânica e
descontextualizadamente? Parece-nos que, minimamente, temos de rever com que
objetivos ensina a escola, quando se trata de ensino de língua materna.
Na expectativa de reunirmos alguns modos de considerar a alfabetização e o
letramento, trazemos, então, o que se produziu à época, especialmente na década de
1990, a fim de configurarmos o cenário brasileiro em que se produziu o discurso da
crise em alfabetização, colocado sob as bases de um “novo” entendimento sobre o que
lhe faltava. Ou seja, faltava-lhe o ensino das letras atingir a sua utilização nas práticas
sociais, ao que se chamou letramento; alfabetizar “numa perspectiva do letramento”.
O CEALE, Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Faculdade de
Educação da UFMG, criado no início da década de 1990, tem sido, ao lado de outros
centros universitários, um importante pólo de pesquisas sobre o letramento. Na
apresentação da coleção Linguagem e Educação, do CEALE, constante no livro de
Magda Soares sobre letramento (2003), pode-se ler:
O CEALE, Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Faculdade de Educação da UFMG,
criado em 1991, tem procurado produzir e socializar o conhecimento sobre a alfabetização, a
leitura, a escrita e o ensino da língua portuguesa e da literatura brasileira nas escolas. Para
isso tem realizado cursos, seminários, conferências, debates, assim como viabilizado
diferentes tipos de publicações que possibilitem essa socialização. (...) A decisão pela
escolha do tema letramento para inaugurar o primeiro número da coleção apóia-se na
necessidade de se responder a inquietações sobre os usos da leitura e da escrita, cada vez
mais colocadas pelas sociedades atuais. O número restrito de trabalhos sobre o tema, e a
excelência dos textos da professora Magda Soares, respeitada pesquisadora na área da
linguagem e educação, justifica plenamente a nossa escolha. (SOARES, 2003, p. 07-08, grifo
do CEALE).
Embora a publicação referida seja de 2003, a primeira edição é datada de
1998. Neste livro, o CEALE e a Editora Autêntica lançam em forma de ensaio o que é,
na verdade, uma “monografia elaborada por solicitação da Seção de Estatística da
UNESCO, em Paris”. Esta foi publicada em inglês, em março de 1992, com o título
Literacy assessment and its implications for statistical measurement. A monografia foi
então traduzida “para o francês e o espanhol; [e] aqui se apresenta pela primeira vez a
24
tradução para o português.” (Ibid., p. 62). Vemos, portanto, na direção do que os
estudos de Mortatti apontam, a disseminação de um discurso acadêmico, normatizado
pelas instituições de direito, a UNESCO, como um órgão internacional, encomendar e
distribuir a pesquisa para tradução e publicação em vários países. Com isso, permite-se
que o tema e o termo letramento sejam também distribuídos pelos diferentes países,
com certa homogeneidade, independente dos limites de tradução e da trajetória
histórica em alfabetização.
Soares (2003; 2004) reconhece a “importaçãodo termo letramento da língua
inglesa (Estados Unidos e Inglaterra). No seu contexto de origem, letramento definia
outro tipo de envolvimento com a leitura e a escrita, diferente do que aqui nós
tínhamos em 1980 e 1990, e temos atualmente. No país inglês, letramento significava,
mais do que aprender a ler e a escrever, ser versado em letras, erudito, ou seja, a
condição de ser letrado é que significava e significa o letramento. Ao ser traduzido
para o português, o termo teve-lhe atribuído um sentido diverso do de sua origem,
muito mais ligado ao aprender a ler e a escrever no processo inicial de alfabetização.
Esse fato traz alguns pontos a ponderar. Primeiramente, entendemos a
alfabetização como a apropriação da língua escrita pela criança, isto é, ela torna
própria a linguagem que existe na corrente da fala em nossa sociedade; promove o
“penetrar” na língua escrita que a antecede (a criança) na história humana. Segundo,
se a natureza da linguagem é social e o objeto da alfabetização é ensino e o
aprendizado da língua materna, logo, esse objeto não pode ser ensinado como um
elemento externo às relações sociais em que se situa. Caso contrário, teríamos de
admitir que não é pela linguagem e na linguagem que os homens constituem-se, o que
não é verdade.
Não se pode negar que anterior, ou subjacente ao ensino da língua em
alfabetização ou em qualquer outro nível de ensino da língua, deva estar uma
concepção de linguagem muito bem definida que engendre o processo de seu ensino e
seu aprendizado. É por isso que entendemos o se justificar a introdução de um novo
elemento o letramento para atender ao que se constitui objeto da alfabetização;
especialmente, porque a natureza e a função deste objeto é social. Ou então, temos de
25
considerar a existência de algum equívoco na forma como a linguagem está sendo
concebida, e, conseqüentemente, ensinada.
Goulart (2001) é uma pesquisadora da linguagem escrita em classes de
alfabetização e primeira série, e entende a alfabetização como um processo de
apropriação. A exemplo de Magda Soares (2003), considera complexos os estudos em
relação ao letramento e, especificamente, centra sua reflexão no desafio proposto por
Soares: “como alfabetizar letrando?”. Discute esse desafio pelos aportes teóricos de
alguns autores, mais especialmente os de Bakhtin. Por meio do conceito de polifonia
do autor russo em relação com o letramento –, explicita nos textos escritos
produzidos por crianças de seis anos as vozes constituintes dos seus discursos, os
“outros” que se apresentam dialogicamente, gerados a partir de atividades que
incluíam conversas, leituras e discussões propostas pela turma e pela professora.
Segundo Goulart (2001, p. 12), o “fenômeno do letramento está associado a
diferentes gêneros discursivos, caracterizando as classes sociais de modo diferente
também do ponto de vista discursivo”. Para a escola, a noção de letramento pode ser
encarada como um horizonte ético-político, no sentido de que formar pessoas letradas
é abrir a possibilidade da entrada de outras vozes em suas vidas: modos de conhecer,
viver e ver o mundo. Ao final do artigo, a autora defende um novo encaminhamento
para os conteúdos curriculares, tendo em vista que a diversidade de textos e autores
trabalhados com as crianças “são estruturantes das produções pelas crianças de textos
escritos, com valor social, fundando as suas identidades em linguagem escrita nas
identidades sociais.” (Ibid., p. 19).
Na mesma direção, compreendemos a importância do papel da linguagem
verbal no processo pedagógico, o de possibilitar à criança o acesso a diferentes
gêneros textuais como condição para uma produção escrita com função e com valor
social, pois isso faz parte de nossa concepção de linguagem como atividade
constitutiva, num constante devir, dialógico, na direção do Outro.
Entretanto, o que gostaríamos de destacar de Goulart (2001) diz respeito ao
modo como a autora discute algumas questões polêmicas apontadas por Soares, e as
entende como “problemáticas” o alfabetizar letrando, os letramentos e as
26
dificuldades de avaliar, medir e conceituar o termo. Goulart, depois de se referir a
outros autores, na sua proposta inicial de contribuir para o aprofundamento das
discussões sobre letramento para tirá-lo do “terreno movediço”, diz que, “para avançar
na direção do estudo sobre letramento, precisamos pensar de modo mais radical na
existência de várias racionalidades no espaço social, isto é, de vários modos de ver,
ouvir, falar e ler a realidade, de propor perguntas e soluções para aspectos dessa
realidade, enfim de sentir e viver (n)essa realidade.” (p. 09). E, ao se referir ao trabalho
de Terzi, (1997), aponta a defesa que essa autora faz frente à “necessidade de
conhecermos as orientações de letramento dos alunos para que possamos
compreender seus processos de aprendizagem” (grifo nosso). Goulart entende essas
orientações de letramento como “o espectro de conhecimentos desenvolvidos pelos
sujeitos nos seus grupos sociais, em relação com outros grupos e com instituições
sociais diversas.” (2001, p. 10).
Depreendemos, então, que se o letramento, no modo como as autoras estão
tratando, refere-se à língua escrita e que Terzi aponta a necessidade de conhecermos as
orientações de letramento do aluno, evidencia-se o que muito vem sendo
denunciado e que nós também compartilhamos: a necessidade de conhecer e
confrontar o que a criança conhece sobre a linguagem escrita, como a compreende,
e, a partir daí, rever, introduzir, consolidar, ampliar ou sistematizar cientificamente os
conhecimentos prévios dos alunos.
Goulart (2001), em dado momento do artigo, diz que suas investigações têm
mostrado que, ao se analisar um modo de aprender, ressalta-se um modo de ensinar.
Do mesmo modo, entendemos que, ao se analisar como a linguagem é concebida pelos
professores, ressalta-se um modo de compreender a alfabetização. Temos, assim,
elementos para analisar a alfabetização em sua funcionalidade social.
Sobre a afirmativa da necessidade de conhecimento do professor sobre o que o
aluno sabe sobre a língua escrita, Goulart, em outro trabalho (2006), referencia
autores de outros países para mostrar que as crianças das classes populares trazem para
a escola um conhecimento bastante amplo da cultura letrada e, inclusive, tais pesquisas
chegaram a indicar níveis de alta cultura letrada em crianças de famílias de baixa
27
renda. É o caso de Bernard Lahire (2004), que em seus estudos na França apresenta
possíveis razões para o sucesso escolar das crianças de classes populares naquele país.
Conforme dissemos, as pesquisas de Goulart (2001) e também as
pesquisas dos autores por ela citados – giram em torno do aprendizado das crianças em
classes de alfabetização e primeira série. Entendemos a relevância de serem aqui
enfocadas tanto pelo referencial teórico-metodológico utilizado para estudar a
alfabetização quanto pela forma como assume o letramento e a preocupação com o
próprio tema que investiga: o letramento. A autora tem ciência de estar “trabalhando
em terreno movediço, mas que, por isso mesmo necessita de estudos para ganhar
consistência” (2001, p. 09) e, especialmente, pela importância das questões que traz
à tona no seu trabalho posterior.
Para dialogar com os pressupostos de Goulart sobre letramento e alfabetização
e sua afirmação de que “três outras antigas perguntas circulam a temática em si e o
nosso estudo, particularmente, nem sempre de modo explícito: Por que alfabetizar?
Para que alfabetizar? E como alfabetizar?” (2006, s/p.), trazemos os estudos de Geraldi
(1985). Este autor assevera que é necessário um deslocamento da preocupação do
professor ao ensinar a língua portuguesa: sair do “o que”, “como”, “por que”, para o
“para que” ensinamos o que ensinamos, ou “para que” o aluno aprende o que
ensinamos. Responder a estas perguntas, no âmbito deste trabalho, significa abordar e
aprofundar outros aspectos, que, além de lingüísticos, são éticos, uma vez que revelam
o reconhecimento do Outro e o nível do comprometimento com esse Outro, ou seja, o
lugar que o aluno ocupa nas relações em sala de aula, por meio do ensino em
alfabetização
6
.
Embora nosso objeto de estudo não se situe em torno do conceito de
alfabetização e de letramento, entendemos que a forma como são conceituados, ou
como são definidos, também constitui sentidos e interfere no modo de concebê-los.
Assim, de acordo com as leituras que realizamos, uma reconhecida complexidade e
dificuldade em definir o termo letramento nos censos estatísticos e nas produções
6
No próximo capítulo, aprofundaremos o diálogo com Geraldi e outros autores sobre o processo de
alfabetização, as concepções de linguagem e o ensino.
28
acadêmicas (BRITTO, 2007; CARVALHO, 2007; MORTATTI, 2004; RIBEIRO,
2003; SOARES, 2003; FERRARO, 2002; BONAMINO, COSCARELLI & FRANCO,
2002; PERROTA, 1985), entretanto, em relação à definição de alfabetização nas séries
iniciais do ensino fundamental, essa dificuldade não existe.
Parece haver um consenso de que quando se fala alfabetização existe uma
compreensão cita de sua definição, do que ela significa. As constantes produções
postas no meio educacional situando a preocupação dos pesquisadores sobre o tema
“letramento” o tentativas de esclarecer e motivar mudanças no ensino da leitura e da
escrita, algo que o tema “alfabetização” não abarcaria.
Para os que entendem alfabetização e letramento como tendo especificidades
diferenciadas, acreditamos que a preocupação com o letramento tem deixado de
apontar aspectos demasiado importantes para o aprendizado do aluno no tocante,
então, à alfabetização. Percebemos certa ausência de discussões nas pesquisas sobre o
ensino e/ou aprendizado em alfabetização relacionadas à concepção de linguagem, à
concepção de alfabetização e à concepção de texto, assim como ausência de discussões
sobre as noções subjacentes a essas concepções: noções de fonologia, modo de
articulação de letras, coesão, coerência, tema de texto, contextualização, entre outros.
Podemos pensar que, na melhor das hipóteses, educadores e pesquisadores entendem
que os elementos referidos já estão apropriados pelos professores e não merecem
discussão, ou, ousamos dizer, educadores e pesquisadores não consideram necessária a
explicitação de certas categorias lingüísticas para o ensino da leitura e da escrita que
vise às práticas sociais.
Do nosso ponto de vista, pensamos residir nesses aspectos uma das discussões
necessárias de serem realizadas sobre o ensino da língua materna, inclusive com o
próprio professor. O desenvolvimento de pesquisas e produções que abordem as
concepções dos professores alfabetizadores, por exemplo, sobre linguagem,
discutindo-as cientificamente. Cremos que essas discussões podem permitir ao
professor uma reavaliação de seus pressupostos e um redirecionamento, se necessário,
de seu ensino em alfabetização, com vistas a privilegiar as práticas sociais da leitura e
da escrita, sem, no entanto, estabelecer novas terminologias para alterar um
29
“comportamento” que não é discutido na sua origem, e com os sujeitos diretamente
nele envolvidos.
Nessa direção, se buscarmos em sites de pesquisa científica o número de
projetos sobre letramento financiados por instituições de fomento governamentais, não
serão poucos os que encontraremos sobre o tema. Entre esses projetos, podemos
mencionar os de Kleiman (1995), que, em conjunto com vários pesquisadores, têm-se
ocupado do tema “letramento”
7
. Entretanto, encontramos, no último livro organizado
pela autora e por Maria de Lourdes Matencio Letramento e formação do professor:
práticas discursivas e representações e construção do saber (2005) –, apenas um
artigo da coletânea referindo-se a dificuldades das professoras alfabetizadoras. As
dificuldades dizem respeito à leitura e à compreensão de texto proposto pela autora do
artigo, Simone B. B. da Silva, a qual identificou, entre outros fatores, que aqueles
déficits deram-se em decorrência da falta de compreensão de determinados conceitos
lingüísticos utilizados no texto. Tratava-se de conceitos que as professoras não
dominavam, mas que o autor do texto considerava como de domínio de qualquer
professor alfabetizador. Esse fato impedia que a compreensão do texto ocorresse de
modo satisfatório. O artigo de Silva ilustra o nosso pressuposto de que falta ao
professor alfabetizador apropriar-se de alguns conhecimentos de base para que possa
ter melhores condições de contribuir para a apropriação da língua escrita ensinada na
escola, ou mesmo para questionar, discernir as orientações que comumente recebe
sobre modos de agir em sua prática docente.
Esse nosso pressuposto foi apontado em análise que realizamos de parte de
documento oficial do Ministério da Educação e Cultura, lançado em 2006, sobre as
práticas escolares de letramento, como orientação para a inclusão de crianças de seis
anos no ensino fundamental (BROTTO, 2007). Na nossa análise, questionamos se o
nível de formação dos professores alfabetizadores permite acompanhar e realizar as
propostas trazidas naquele documento orientador de modo a tornar as suas práticas
7
Uma consulta ao currículo da autora na CAPES pode referendar o que afirmamos. Entretanto, um
exemplo pode ser o Projeto Temático “Formação do professor: processos de retextualização e práticas
de letramento”, da FAPESP, mencionado em muitos dos artigos do livro Letramento e formação do
professor: práticas discursivas e representações e construção do saber (2005).
30
efetivas. Do ponto de vista da alfabetização da criança, questionamos se as concepções
de linguagem dos professores são discutidas. Quem são seus interlocutores? Que vozes
aparecem nos seus discursos e com que sentido? A sua concepção de linguagem
contempla um tratamento alteritário com seu Outro-aluno?
No artigo de Simone B. B. Silva (2005), um aspecto importante retratado é o
fato de que, apesar das estratégias de leitura utilizadas pelas alfabetizadoras, falta-lhes
conhecimento científico sobre o tema em questão, de modo que a compreensão limita-
se ao conhecimento de senso comum. Nas palavras da autora,
Para construir o sentido, as alfabetizadoras lançaram mão de estratégias válidas – procuraram
no dicionário, leram notas de rodapé, procuraram na bibliografia e também acionaram o
conhecimento enciclopédico e de mundo que possuíam. (...) vemos que as professoras
tentam compreender o texto recorrendo aos conhecimentos de mundo que possuem, ou seja,
valem-se de suas experiências e representações para tentar alcançar a compreensão.
Entretanto, como não partilham dos conhecimentos científicos sobre a linguagem necessários
para deslocar a compreensão para um campo do conhecimento específico, acabam
interpretando esses conceitos segundo representações do senso comum. Esse é um elemento
importante a ser levado em conta na interlocução com a professora. (SILVA, 2005, p. 162-
163).
É com essa preocupação que temos visto as muitas pesquisas sobre a temática
do letramento. No intuito de quererem explicar os processos e métodos para a
alfabetização e para o letramento, ainda não dão conta da lacuna existente entre o
realizado em pesquisas e o que é fundamental ao professor conhecer: a própria
linguagem numa perspectiva viva de língua, com as diversas nuances que colorem a
formação dos professores no Brasil, especialmente, o alfabetizador.
Como afirmamos anteriormente, letramento, assim como toda e qualquer
palavra, é um signo ideológico e, ao ser cunhado por teóricos e estudiosos de
alfabetização, pode motivar uma série de disputas. Desde disputas teóricas, de poder,
de “verdades”, até disputas mercadológicas, pois, conforme Batista (2003), o mercado
editorial, em especial o do livro didático, representa uma gorda fatia desse mercado
mais amplo, que já deve estar lucrando com o tema em “voga” – o letramento.
Outro aspecto a considerar, em relação à proliferação das pesquisas e
produção bibliográfica em torno do letramento, decorre da emergência do termo e da
necessidade já apontada de aprofundar o conhecimento sobre o tema. Desse modo,
31
julgamos importante ressaltar a vasta produção bibliográfica, documental e de eventos
que ocorreu especialmente ao longo da década de 1990, ampliando as noções de
letramento em vários segmentos.
Entre os autores que se ocuparam (e continuam a se ocupar) do tema em
publicações, Leda Verdiani Tfouni (1988), segundo Magda Soares (2003), parece ser a
autora que lança a palavra no mundo da educação e distingue, no livro Adultos não
alfabetizados: o avesso do avesso, alfabetização de letramento. É também de Tfouni a
obra Alfabetização e letramento, de 1995. Entretanto, Magda Soares aponta ainda, em
seu livro, a referência a Kleiman, que atribui a Mary Kato o lançamento da palavra no
Brasil, em 1986. Sobre isso, diz Kleiman (1995, p. 17), em nota de rodapé: “Pelo que
sabemos, o termo letramento foi cunhado por Mary Kato, em 1986. (...)”.
Kato (1986) fazia referência ao termo em razão de acreditar, ainda que
indiretamente, ser função da escola a realização de um ensino no qual a norma-padrão,
ou a língua “falada” culta, fosse conseqüência do letramento, segundo fatores de
ordem psicolingüística (ver também comentários em MORTATTI, 2004; SOARES,
2003; KLEIMAN, 1995).
Sobre as obras de Tfouni (1988; 1995), podemos dizer que a sua referência ao
termo diz respeito à condição de letramento de adultos analfabetos. Ou seja, apesar de
não saberem ler e escrever, esses adultos o capazes de atuar nas práticas sociais.
Assim, na atuação dessas práticas é que estaria localizado o letramento, o aspecto
social e ampliado da alfabetização. E a alfabetização, por seu turno, diria respeito aos
aspectos de caráter individual aquilo que o indivíduo lançasse mão para aprender o
código. Logo, apesar de associados, os termos referiam-se a situações distintas. ‘’ foi,
então, a palavra utilizada pela autora como justificativa pela ausência de outro termo
em nossa língua que designasse aquela condição de letrado do analfabeto.
Na concepção da autora,
A alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto aprendizagem de habilidades para
leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem. Isto é levado a efeito, em geral,
através do processo de escolarização, e, portanto, da instrução formal. A alfabetização
pertence, assim, ao âmbito do individual.
32
O letramento, por sua vez, focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita. (...)
tem por objetivo investigar não somente quem é alfabetizado, mas também quem não é
alfabetizado e, neste sentido, desliga-se de verificar o individual e centraliza-se no social
mais amplo. (TFOUNI, 1995, p. 09, grifos nossos).
Embora não fique claro o que a autora chama de “práticas de linguagem”, ao
definir alfabetização incluindo tais práticas, Tfouni mescla a definição de alfabetização
com o que designa a seguir como letramento. Alfabetização é conceituada como algo
pessoal, individual, e ao ser assim entendida, a autora não considera a linguagem
ensinada na escola como algo que se processe socialmente no indivíduo, o que torna
mais difícil ainda compreender a que se refere a expressão “práticas de linguagem”.
Ou seja, trata-se de uma concepção de alfabetização que não considera a linguagem
interior, a própria consciência, como produto de diálogos exteriores, dos encontros
sociais do convívio humano que passam a nos constituir.
Ângela Kleiman, também em 1995, organiza a coletânea intitulada Os
significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita, da
coleção Letramento, educação e sociedade”. O objetivo da coletânea é “informar
àqueles que se encarregam do ensino da escrita, bem como àqueles que participam de
situações de comunicação escolarizado/não escolarizado através de programas de
difusão de tecnologias (como técnicos agrícolas, de saúde pública, de habitação), sobre
os fatos e os mitos do letramento” (p. 08).
Nessa coletânea, encontramos a introdução de Ângela Kleiman e mais três
partes assim distribuídas: na primeira parte, artigos em torno da oralidade; a segunda
parte trata da condição do não-escolarizado na sociedade centrada na escrita; e a
terceira congrega artigos que abordam o analfabetismo no seu verso e reverso. Na
introdução, a organizadora apresenta duas concepções de letramento: modelo
autônomo e modelo ideológico, e discute as repercussões desses modelos para o
ensino, focando o processo de interação entre professor e jovens e adultos nas aulas de
alfabetização (p. 09).
Nessa obra de Kleiman, o exame de Roxane Rojo coloca-se na relação entre
oralidade e letramento, cuja análise parte de três níveis distintos de letramento em três
crianças; Sylvia Bueno Terzi trabalha com a construção de leitura por crianças de
33
meios iletrados e vincula a produção oral do adulto como outro meio de produção
textual dessas crianças e sua formação leitora; Stella M. Bortoni, ao considerar a
variedade lingüística do aluno no contexto da escola, aponta alguns caminhos para
práticas culturais no ensino das normas formais de linguagem. Essas autoras assinam
os artigos da primeira parte.
Na segunda parte, Marta Khol de Oliveira, Inês Signorini e Maria Isabel
Magalhães discutem a inserção de um modo específico dos não-alfabetizados na vida
urbana, alguns aspectos de exclusão cultural destes e a repercussão no funcionamento
cognitivo que a sociedade contemporânea exige; as concepções de linguagem
subjacentes às instituições e o processo de escolarização na comunicação entre grupos
socioculturalmente diferentes; e as práticas discursivas de letramento na construção de
identidade nos relatos de mulheres; relacionam analfabetismo, poder e violência contra
a mulher nas relações sociais, respectivamente. Dois textos fazem parte da última
seção do livro: o de Maria de Lourdes Matencio, em que a autora aborda a ideologia
sobre o letramento na mídia e a forma como é reproduzida, amparando-se em textos
jornalísticos do “Ano Internacional da Alfabetização” para construir seus argumentos,
e o de Ivani Ratto, que, fazendo jus ao tema da seção, “Analfabetismo: verso e
reverso”, apóia-se na análise das estratégias lingüísticas de um der sindical não-
escolarizado, o qual, pela postura política que adota, representa a possibilidade de
demarcação de seu espaço na sociedade, ainda que analfabeto, de modo que não se
pode atribuir apenas à escolarização, o desenvolvimento de práticas letradas e
cognitivas.
Ângela B. Kleiman e Maria de Lourdes Matencio organizaram, em 2005, o
livro Letramento e formação do professor: práticas discursivas, representações e
construção do saber. A coletânea é resultado de um projeto multidisciplinar do qual
participaram sociólogos, educadores e lingüistas. Nela, as autoras argumentam sobre o
modo como está dividida a obra, separando os estudos sobre “as práticas por meio das
quais os agentes de letramento mobilizam e atualizam seus conhecimentos sobre a
escrita, em diversas instituições e segundo diversos objetivos (...) e, por outro, as
34
relações entre os processos lingüístico-discursivos e cognitivos na construção de
conhecimento sobre a linguagem” (p. 07-08).
Nesta obra, dos vários artigos que discutem o letramento a partir de diferentes
enfoques, destacamos aqueles que convergem para o interesse de nossa investigação.
O artigo de Simone Bueno Borges da Silva (2005), já referenciado em momento
anterior, toma como objeto de discussão a natureza dos problemas de compreensão de
duas alfabetizadoras. Essas professoras, para “construir sentido” sobre o texto
destacado das orientações contidas nos Parâmetros Curriculares para o Ensino da
Língua Portuguesa, que lhes foi dado a ler –, não partilhavam “dos conhecimentos
científicos sobre a linguagem, necessários para deslocar a compreensão para um
campo do conhecimento específico, [e] acaba[ra]m interpretando esses conceitos
segundo representações do senso comum” (p. 163). O fato de a autora entender que o
ato de ler é uma prática social de letramento leva-nos a inferir que a não-compreensão
do texto pelas professoras implica em repercussões em suas salas de aula, uma vez que
o assunto é linguagem e elas não dominam cientificamente algumas colocações ali
presentes. Embora não tenha sido abordada a concepção de linguagem das professoras,
podemos afirmar que, de algum modo, fica comprometido o seu ensino e,
conseqüentemente, o aprendizado dos seus alunos.
Em momento anterior, Ângela Kleiman havia coordenado a coleção
Perspectivas Lingüísticas, em que Roxane Rojo lançou o livro intitulado Alfabetização
e letramento (1998). A coletânea de artigos discute o letramento pré e pós-período de
escolarização. Rojo organizou o livro com o objetivo de apresentar textos debatidos e
conferências realizadas durante o I Grupo de Trabalho sobre Letramento,
Alfabetização e Desenvolvimento de Escrita, que agregava os trabalhos desenvolvidos
sobre a temática no início da década de 1990. A obra objetivou também dar uma visão
geral da pesquisa lingüística sobre alfabetização e letramento. Ali, encontramos
diversos textos que têm no “letramento” seu foco de discussão, sob diferentes
perspectivas teóricas.
Rojo e Batista (2003) organizam o Livro didático de Língua Portuguesa,
letramento e cultura da escrita, em que os temas dos artigos estão centrados nas 3ª e 4ª
35
séries e a 8ª séries do ensino fundamental. Ao lado de outros autores, chamam a
atenção para as contradições e razões do insucesso das políticas governamentais “no
que se refere ao letramento das camadas populares” (p. 08). Como o próprio título
indica, questões sobre o livro didático e sobre o PNLD Programa Nacional do Livro
Didático e a predominância da cultura escrita sobre a cultura oral fazem parte do
livro. Outras discussões sobre gênero e gramática podem ser encontradas na obra,
demonstrando que a gramática é tema que continua emergente ainda no século novo.
No entanto, o fato de o estudo não abranger a série inicial do ensino fundamental não
nos possibilita compreender em que perspectiva o ensino da gramática tem sido
abordado nesta série e, conseqüentemente, conhecer a concepção de linguagem
perceptível por meio dessa perspectiva.
Cecília Goulart (2000a, 2000b, 2000c, 2000d estes trazidos como referência
no corpo do texto de 2001; 2006), amparada em base teórica bakhtiniana, tem
produzido artigos sobre o letramento na alfabetização. É pelos pressupostos de
polifonia e de enunciado de Bakhtin, por exemplo, que busca estabelecer relações com
o letramento, em crianças de quatro e cinco anos. A autora investiga, também, modos
de ser letrado no espaço familiar e no espaço educativo, e entende que a relação
oralidade-escrita constitui fator relevante para a investigação desses modos.
Maria do Rosário Longo Mortatti, em seu livro Os muitos sentidos da
alfabetização, explicita que sempre houve uma luta constante para se vencer o
“velho”, o anterior, analisando “as disputas pela hegemonia de projeto para o ensino
inicial de leitura e escrita com estreita relação com projetos políticos e sociais
emergentes” (2000, p. 22).
Também de Mortatti é o livro Educação e letramento (2004), em que a autora,
sempre numa perspectiva histórica, apresenta o letramento como parte da educação e
não da alfabetização. A autora busca esclarecer que, ao entrar para o contexto
escolar, o termo letramento, como vem ocorrendo, não deve substituir alfabetização,
pois, do seu ponto de vista, “o mais adequado (...) seria distinguir letramento escolar,
que ocorre na escola e não é sinônimo de alfabetização, e letramento não-escolar, que
36
ocorre fora da escola, mas é também social, pois o contexto escolar é parte do contexto
social.” (p. 112).
Gostaríamos de destacar, deste último trabalho da autora, uma afirmação que
também tivemos oportunidade de verificar nos livros e textos que estudamos: a
referência a autores americanos e ingleses que pesquisam a literacy no conjunto das
obras que discutem o letramento no Brasil, assim como a referência a um núcleo
comum de autores brasileiros que se referenciam entre si, citam-se uns aos outros.
Fazem-no com o intuito de apoiarem-se, argumentarem, referendarem, enfim,
reforçarem seus pressupostos a respeito do letramento no nosso país. Sobre isso,
afirma Mortatti,
(...) embora com diferentes objetivos, fundamentação das definições e considerações em
certos princípios e pressupostos teóricos e certos instrumentais para análise do letramento
contidos, predominantemente, em determinada bibliografia americana e inglesa datada das
últimas duas décadas, dentre esses autores os mais citados nos textos acadêmicos acima
apresentados (alguns deles também são citados no Dicionário de alfabetização e um deles
nos PCNs) são: David R. Olson, Jack Goody, Shirley Heath, Sylvia Scribner e Michel Cole,
Walter J. Ong.; e ao lado dessa bibliografia estrangeira predominante, vem-se acrescentando,
como apontei, a bibliografia brasileira apresentada anteriormente, em que os autores
8
citam-se entre si. (MORTATTI, 2004, p. 97, grifo da autora)
Também imprimindo relevância ao tema e às discussões de Magda Soares
acerca do assunto, a Revista Educação e Sociedade, no seu volume 23, de 2002, traz o
“Dossiê Letramento”, composto de seis artigos sobre letramento, com apresentação de
Magda Soares. Neste número, Alceu Ravanello Ferraro aborda os níveis de letramento
e de analfabetismo no Brasil determinados pelos censos estatísticos educacionais. Vera
Masagão Ribeiro, Cláudia Lemos Vóvio e Mayra Patrícia Moura sintetizam os
principais resultados de pesquisa realizada com uma amostra de jovens e adultos entre
15 e 64 anos, avaliados segundo o Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional.
Maria Izabel Infante mostra os resultados do domínio do código escrito em sete países
da América Latina Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, xico, Paraguai e
Venezuela e conclui, como principal resultado da investigação, que a escolaridade
8
Os autores brasileiros a que a autora refere-se são: Mary Kato, Leda V. Tfouni, Ângela Kleiman,
Magda Soares e Vera M. Ribeiro.
37
completa não garante um verdadeiro domínio das competências de leitura e
matemáticas. No artigo de Bonamino, Coscarelli e Franco, o foco é a concepção de
letramento que serve de base para a construção das provas do Sistema Nacional de
Avaliação da Educação Básica (SAEB) de 1999 e do PISA (Programa Internacional de
Avaliação de Estudantes) de 2000 e suas implicações para a escola básica. O texto de
Ana Maria de Oliveira Galvão versa sobre as especificidades da relação que sujeitos
vinculados a uma cultura oral estabelecem com a cultura escrita. A investigação se
a partir da reconstrução que a autora faz da literatura de cordel, entre 1930 e 1950, em
Pernambuco. Fechando o dossiê, Magda Soares, na defesa de “letramentos” e não de
“letramento” no singular, aborda as práticas de leitura e escrita na cultura do papel e na
cultura da tela. Afirma que são modos diferentes que cada uma dessas tecnologias tem,
causando, portanto, distintos efeitos sociais, cognitivos e discursivos.
A partir daqui, demoraremo-nos um pouco mais para tratar da produção de
Magda Soares em especial, dois de seus trabalhos. A autora é uma estudiosa do
tema, possui vários livros e artigos sobre alfabetização e, também, várias produções
explicitando o neologismo letramento. Destacamos, dentre suas publicações, os livros
mais citados
9
: Linguagem e escola: uma perspectiva social, de 1986, e outro mais
atual, Letramento: um tema em três gêneros, de 1998; artigos em várias revistas
especializadas; uma coleção de livros didáticos que leva estampado em seu título a
palavra “letramento”, além de textos específicos para a assessoria do governo federal.
Os textos que queremos destacar, especificamente, o os datados de 1985 e
de 2003, intitulados “As muitas facetas da alfabetização” e “Letramento e
alfabetização: as muitas facetas”, respectivamente. O primeiro texto é um estudo sobre
a natureza complexa e multifacetada da alfabetização. Nele, a autora denuncia a
necessidade de se desenvolver uma teoria coerente da alfabetização, unindo os
resultados a que chegam as diversas áreas que desenvolvem pesquisas em
alfabetização, preocupadas em vencer o fracasso na alfabetização.
9
As datas destacadas, 1986 e a 1998, referem-se à primeira edição de cada um dos livros. Nas
referências, ao final da tese, estão as datas das publicações consultadas, que são de edições posteriores
das mesmas obras.
38
No texto de 2003, apresentado na 26ª ANPED e publicado na Revista da
Educação, Soares retoma esse texto de 1985, na perspectiva de “entrelaçá-lo” com este
de 2003, mostrando que, entre as facetas da alfabetização, está o letramento. A autora
faz um excelente trabalho de recuperação das discussões americanas, francesas e
portuguesas acerca dos significados e designações do termo letramento nesses países.
O letramento, no Brasil, é o iletrismo (illetrisme) na França e a literacia em Portugal,
os quais nomeiam fenômenos distintos da alfabetização. Literacy é diferente nos
Estados Unidos em relação à Inglaterra (reading instruction/beginning). Convém
ressaltar, ainda, que na França e nos Estados Unidos, letramento/iletramento são
independentes da questão de alfabetização aprendizagem básica do sistema de
escrita.
A autora apresenta a forma como o fracasso em alfabetização era medido em
1985, e como era realizado à época (2003, mas também agora), e aborda os vários
programas que visam a essa medição (locais, nacionais e internacionais PISA,
SAEB, SARESP, Sistema de Avaliação da Rede Estadual de o Paulo). Entretanto,
chamam a atenção os subtítulos que identificam as seções do artigo: logo após a
introdução, temos a A invenção do letramento”, “A desinvenção da alfabetização” e
“A reinvenção da alfabetização”. Estes se referem, segundo a autora, tanto à ênfase da
introdução de práticas sociais de leitura e escrita em alfabetização, quanto à perda da
especificidade desta e à necessidade de retomar o ensino do sistema alfabético e
ortográfico. A autora explicita que tais necessidades são decorrentes de disputas
teóricas entre uma concepção holística da linguagem (whole language) e uma
concepção grafofônica (phonics) do ensino (e da aprendizagem) da língua escrita
10
.
No que tange a congressos, eventos e outros debates realizados sobre o tema,
ainda que sem a mínima pretensão de esgotá-lo ou às suas referências, podemos
10
Magda Soares, neste mesmo texto, esclarece que whole language diz respeito a uma “concepção
holística de linguagem, de que decorre o princípio de que aprender a ler e a escrever é aprender a
construir sentido para e por meio do texto escrito” e as relações grafofônicas seriam apreendidas
“naturalmente”, pela interação com esse material escrito e por leituras. O movimento para a “volta ao
fônico” - phonics - defende o ensino centrado nas correspondências grafofônicas do sistema alfabético
e ortográfico; no processo de codificação/decodificação desse sistema. A autora explicita que processo
semelhante ocorreu no Brasil com o Construtivismo contrapondo-se aos métodos sintéticos e
analíticos para o ensino da leitura e da escrita. (p. 13 e 14)
39
relacionar: o COLE Congresso de Leitura –, que, em 2007, realizou o IV Seminário
sobre Letramento e Alfabetização; as discussões promovidas pelo governo federal em
torno dos métodos de alfabetização, propondo a questão “alfabetizar ou letrar?” em
2005 e 2006, que movimentou a mídia e especialistas da alfabetização; os programas
de formação continuada do governo federal, como o Pró-letramento em 2006; a
orientação para o ensino fundamental de nove anos e sua recorrência aos pressupostos
do letramento nas práticas escolares de alfabetização; o Fórum Nacional
extraordinário da União dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), que teve
como tema da segunda conferência magna “”Alfabetização e letramento”, em 2006; a
editora Scipione, com site exclusivo para veicular artigos sobre Alfabetização e
Letramento; o Seminário Alfabetização e Letramento em Debate, realizado pela
Secretaria de Educação Básica (SEB/MEC), em Brasília, em abril de 2006, para
discutir com especialistas da alfabetização as razões que levam ao resultado
insatisfatório da leitura e escrita nas escolas públicas; as indicações do guia do livro
didático do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), de 2007, que traz na
avaliação dos livros para alfabetização aqueles “Livros que abordam de forma
equilibrada os diferentes componentes da alfabetização e do letramento” e “Livros que
abordam de forma desigual os diferentes componentes da alfabetização e do
letramento”, entre outros. Esse último dado sugere que não há, de fato, um único
direcionamento para o ensino da leitura e da escrita, seja como alfabetização ou como
letramento.
À guisa de conclusão deste capítulo, citamos a compreensão da professora
emérita da Universidade Federal de Minas Gerais, Magda Soares, ao falar de
letramento. A autora entende que há
(...) uma diferença entre saber ler e escrever, ser alfabetizado, e viver na condição ou estado
de quem sabe ler e escrever, ser letrado (...) a pessoa que aprende a ler e a escrever que se
torna alfabetizada e que passa a fazer uso da leitura e da escrita, a envolver-se em práticas
sociais de leitura e escrita – que se torna letrada – é diferente de uma pessoa que não sabe ler
e escrever é analfabeta ou, sabendo ler e escrever, não faz uso da leitura e da escrita é
alfabetizada, mas não letrada, não vive no estado ou condição de quem sabe ler e escrever e
pratica a leitura e a escrita. (SOARES, 2003, p. 36).
40
Concordamos com a autora de que essa diferença, pois nem todos os que
lêem e escrevem utilizam-se da leitura e da escrita com propriedade ou atuam nas
práticas sociais que exigem esse conhecimento. No entanto, se considerarmos que o
espaço escolar é o local do aprendizado oficial da leitura e da escrita, onde o sujeito
(criança, adolescente ou adulto) aprende de forma sistematizada os conhecimentos
práticos que domina e outros que sequer desconfia, onde aprende a organização e a
composição do nosso sistema gráfico nas formas convencionadas para o seu ensino,
pensamos que a constatação de Soares necessita ser investigada. Que determinantes
são possíveis de serem apontados para o fato de a escola não produzir o alfabetizado
com um nível de conhecimento sobre a língua que o insira em práticas sociais efetivas
de leitura e de escrita?
Uma investigação capaz de indicar elementos para compreender, no contexto
brasileiro – na escola, em particular –, os motivos pelos quais se produzem esse sujeito
limitado na sua condição de praticar a leitura e a escrita socialmente. Uma
investigação que possibilite conhecer como os professores compreendem a linguagem,
e nos leve a compreender por que orientam uma prática alfabetizadora parcialmente.
Pois, se o ensino em alfabetização não partir do princípio de que a linguagem é de
natureza social, que ocorre num processo de interlocução, que palavras se tornam
signos se seus sentidos são compartilhados socialmente, então, seu ensino e,
conseqüentemente, seu aprendizado serão parciais. Assim, não orientação social
para as práticas em leitura e escrita e, para nós, isso não é alfabetização, pois não
aprendemos o “alfa” e o “beta” se não forem na e para a ação social.
É nesse sentido que dizemos que o que não se conseguiu efetivamente fazer, a
partir da década de 1980 no Brasil, foi alfabetizar de fato. Um ensino em alfabetização
implica em o aluno compreender que o que falamos é possível de ser escrito, ainda que
com todas as diferenças que a escrita apresenta em relação ao ato de fala; que, diante
dos mais diferentes alfabetos, os diferentes formatos de uma mesma letra representarão
aquela letra, cujo som poderá ser o mesmo ou não, mas compondo um tema, um
enunciado. Para fazer parte do mundo em que vivemos como pessoas que entendem,
lêem, escrevem em sua língua materna, é preciso que a criança aprenda e reconheça as
41
convenções sociais, padronizadas, que definiram um modo particular de grafar esta ou
aquela palavra, ou seja, há uma dependência de categorização gráfica e sonora para
atribuir sentido às palavras, poder inferi-las segundo o contexto, ou o tema, a que se
referem. Mas, com uma intenção clara de relacionar-se.
Entendemos ‘alfabetizar’ numa perspectiva em que o aluno possa aprender,
pelo ensino do professor, que a linguagem escrita é constitutiva do ser humano; que
como atividade humana é interlocutiva, discursiva, e como tal, demanda a
consideração de uma série de aspectos no momento da sua produção: escreve-se para
alguém, por algum motivo, de uma determinada maneira, de um lugar, em um tempo.
Assim se ensina a ler e a produzir textos estabelecendo as relações simbólicas,
sígnicas, compartilhadas socialmente com os sentidos próprios da esfera de
escreventes que foram ensinados a interagir por escrito desde o período de
alfabetização. E isso acontece na medida em que o próprio professor percebe e
ensina a língua escrita e suas funções relacionadas com as práticas utilizadas em
sociedade. Essa percepção direciona o aprendizado para tais práticas da leitura e da
escrita, compreendendo-as como mais uma forma de interação social.
Entender alfabetização nesse sentido é compreender que se torna sem
propósito uma nova nomenclatura para designar quem está de fato alfabetizado; na
verdade, torna-se uma redundância. O letramento está contido e contém o objetivo e a
conseqüência do ato de alfabetizar e de estar alfabetizado, pois alfabetização encerra a
participação social em práticas de uso de escrita.
Caso não se entenda a alfabetização assim, como o ensino intencional,
deliberado das especificidades da língua escrita, em situações contextualizadas,
então um grave problema: estamos ensinando apenas a língua morta, abstraída dos
contextos de uso, da significação ideológica, própria da linguagem como signos.
Conforme já dissemos anteriormente, é pela compreensão da linguagem enquanto
signos que estaremos tratando do seu ensino como algo vivo, mutável, que se molda
aos contextos e à intenção dos falantes/escreventes. O entendimento de que a
linguagem escrita/falada é interacional, interlocutiva, é que permite a compreensão do
signo como a combinação de elementos significantes e significados, e que a amplitude
42
de sua enunciação/enunciado
11
comporão sentidos, ou sentidos novos. É um ensino da
leitura e da escrita baseado nessa compreensão de língua que acreditamos ser capaz de
permear as práticas em alfabetização e lhe conferir o sentido necessário para diminuir
as marcas do analfabetismo.
Pela concepção de alfabetização defendida, nosso pressuposto é o de que
aquele que não responde às demandas exigidas pela escrita, cotidianamente, seja na
escola ou na vida social, num grau que se desenvolve, ainda que não linearmente, e se
complexifica ao longo da vida escolar/acadêmica, não foi e não está alfabetizado.
Desse modo, embora transcorridas mais de duas décadas da necessidade
afirmada por Magda Soares (1985) de se desenvolver uma “teoria coerente para a
alfabetização”, pode-se inferir que não se desenvolveu essa “teoria coerente”, pois,
conforme apontamos, ainda que em nosso sistema educacional não tenhamos a
incômoda presença de altos índices de não-escolarizados na faixa dos sete aos catorze
anos, pesquisas mostram que o desempenho nos níveis de leitura e interpretação de
textos no primeiro segmento do ensino fundamental não é nada satisfatório. Segundo
pode ser verificado pelos medidores estatísticos SAEB Sistema de Avaliação da
Educação Básica –, os resultados têm demonstrado que a população pesquisada ainda
não atingiu um nível razoável de domínio da leitura e da escrita. Isso tem incentivado
o governo federal a promover novas medidas e orientações para o ensino fundamental,
tanto pela necessidade de consolidar a leitura e a escrita, quanto para investigar se está
havendo alterações
12
.
Entretanto, por mais confusa que possa estar a definição dos termos
‘alfabetizado’ e ‘analfabeto’ nos censos, o domínio social da leitura e da escrita é que
deve prevalecer, especialmente para educadores preocupados com a inserção das
classes populares na vida ativa e considerada valorizada da sociedade e com a não-
exclusão social por meio da linguagem.
11
Não estabeleceremos distinção entre enunciação/enunciado neste trabalho de tese. Utilizaremos os
dois termos na perspectiva bakhtiniana: para tratar do ato real da linguagem.
12
Duas medidas que podemos aqui apontar é o ensino fundamental de nove anos, inclusive com as
orientações pertinentes a ele, e a Provinha Brasil, aplicada a alunos de e séries, agora nono ano,
visando a conhecer o nível de aprendizado dos estudantes dessas faixas de ensino.
43
Nosso intuito, neste capítulo, foi o de apresentar obras e autores que, a partir
da década de 1980, dedicaram-se a tematizar sobre letramento. Vimos que a
recorrência desses estudos indica sempre que a alfabetização não tem dado conta de
preparar os sujeitos para responderem à demanda social de uso de leitura e escrita em
práticas sociais que o exigem. Justificando, desse modo, a inclusão do letramento
como algo necessário para o ensino das primeiras letras. No entanto, outras
publicações, nesse mesmo período, a respeito de concepções de linguagem focaram a
necessidade de a escola repensar o ensino de língua materna, sem necessariamente
abordarem-no pelo viés do “letramento”. São essas publicações o objeto de análise do
próximo capítulo.
44
2. LETRAMENTO OU DEBATE SOBRE O ENSINO DA LINGUAGEM
ESCRITA SOB OUTRA ROUPAGEM?
Verificamos, na seção anterior, a existência de um discurso educacional
veiculando que o ensino em alfabetização não tem favorecido a utilização da leitura e
da escrita no contexto das práticas sociais cotidianas. Como solução para o problema,
inseriu-se o letramento como nova perspectiva para que a aprendizagem da língua
materna alcançasse as práticas sociais. No entanto, alguns estudos revelam que a
necessidade e a preocupação de se pensar a alfabetização na relação com as práticas
sociais não é atual.
O livro de Mortatti (2004), por exemplo, ao recuperar a história da educação
no Brasil, evidencia os contextos em que se vai configurar a apropriação da leitura e da
escrita e a motivação que inaugura os termos ‘alfabetizado’, ‘analfabeto’,
‘analfabetismo’ e ‘letramento’ no meio educacional brasileiro. Ao fazê-lo, traz, entre
outros elementos, os discursos dos intelectuais escolanovistas brasileiros. Entre estes,
os de Francisco Campos e de Anísio Teixeira, que, conforme Mortatti, mostravam a
leitura e a escrita como necessárias para as práticas sociais.
O discurso de Francisco Campos asseverava que “‘saber ler e escrever não são
(...) títulos insuficientes à cidadania digna desse nome. Não basta, pois, difundir o
ensino primário (...). Se este ensino não forma os homens, não orienta a inteligência e
não destila o senso comum, que é o eixo em torno do qual se organiza a personalidade
humana, pode fazer eleitores, não terá feito cidadãos’.” (MORTATTI, 2004, p. 63).
Sobre Teixeira, Mortatti faz a seguinte consideração:
Para Anísio Teixeira, reformador da instrução pública baiana, em 1926, e diretor geral da
instrução pública do Distrito Federal em 1931-1935, por sua vez, a opção por um ‘ensino
primário incompleto’, como proposto na reforma paulista de 1920, era inaceitável para
outros estados brasileiros, como a Bahia, onde se deveria evitar a iniciação nas letras do
alfabeto e nos rudimentos da aritmética, história e geografia, pois sem perspectiva de
continuidade de seu uso, esses instrumentos seriam ‘um elemento de desequilíbrio social’.
Isso porque entendia educação como um (...) processo de contínua transformação,
reconstrução e reajustamento do homem ao seu ambiente social móvel e progressivo’.
(MORTATTI, 2004, p. 63).
45
Segundo a autora, esses discursos representavam um novo nexo orientador
para as discussões e as propostas que se colocavam: a modernização da sociedade e a
retomada das finalidades e da função da escola. Para s, embora se referissem ao
ensino primário e não especificamente à alfabetização, configuravam o gérmen que
estava latente já naquele período: o aprender a ler e a escrever movia-se para a atuação
social também, e não meramente para a aprendizagem do código, ainda que de acordo
com as necessidades do momento histórico e da centralidade dos estudos da escola
nova.
Ao abrirmos o capítulo referenciando estudos de Mortatti (2004), fazemo-lo
no sentido de suscitar a lembrança de que, embora o período em exame nesta tese
contemple a década de 1980 em diante, historicamente, outros momentos e
movimentos destacavam a necessidade de discussão das práticas alfabetizadoras do
mesmo modo como se coloca no discurso atual sobre letramento.
Neste capítulo, nosso interesse é o de mostrar, no mesmo período recortado
para esta pesquisa, o que se veiculava em termos de linguagem, ou melhor, de ensino
da língua materna. Que inovações estavam sendo propostas naquele momento,
especialmente pela profusão dos estudos lingüísticos e sua repercussão nos estudos de
áreas relacionadas à alfabetização escolar Sociologia, Psicologia e Pedagogia –, que
pudessem redirecionar as práticas pedagógicas? Iniciamos a discussão ressaltando o
viés lingüístico para o ensino da língua portuguesa e suas possibilidades de
apropriação pelos professores alfabetizadores.
A partir de 1980, a possibilidade de tradução para a língua portuguesa de obras
estrangeiras relacionadas à educação fomentou a produção acadêmica direcionada para
o ensino e o aprendizado da língua materna. Colocava-se em pauta, pelos estudiosos
da linguagem, da língua e da educação de modo geral, o debate sobre as concepções
do ensino da língua e tudo o mais que dissesse respeito à linguagem. Nesse debate,
emergiam questionamentos sobre os limites das concepções de linguagem, desde
aquelas que a entendiam como expressão do pensamento ou como comunicação até as
que defendiam um ensino de língua num viés interacionista. A prevalência do ensino
de conteúdos gramaticais e o modo como se dava esse ensino em detrimento do ensino
46
da linguagem como algo vivo, real, moldável, também era tema de discussão. Temas
como variedade lingüística e as relações de poder estabelecidas pela linguagem
mereceram atenção e crítica no debate, especialmente porque tais temas engendravam
(e engendram) uma visão de língua elitista e preconceituosa.
13
A maioria desses estudos, apesar de direcionados para a área da linguagem,
não discute especificamente o ensino da leitura e da escrita nos anos iniciais, mas,
ainda assim, dedicaremos este capítulo para a análise e a discussão de alguns aspectos
desses estudos por entendermos que, subjacente a qualquer concepção de
alfabetização, uma concepção de linguagem e de língua. Se essa concepção não se
encontra clara e transparente para o alfabetizador, ainda assim não significa que não
exista e não seja perceptível para quem se dedica a estudar as práticas ou alguns
aspectos do universo de ensino do alfabetizador.
Constitui, portanto, nosso objetivo neste capítulo buscar, na produção de
estudiosos, as concepções e pressupostos teóricos que incitaram ou poderiam incitar
um modo diferente de ensinar a leitura e a escrita em classes de alfabetização escolar.
Nossa hipótese é a de que tais concepções e teorias consubstanciavam os mesmos
pressupostos que se quer atingir atualmente sob a denominação de letramento para o
trabalho naquelas salas de aula.
2.1 CONCEPÇÕES SOBRE LINGUAGEM: OS MESMOS PRESSUPOSTOS DO
LETRAMENTO
A Lingüística é a ciência que estuda a linguagem humana, tanto no seu
funcionamento quanto na sua estrutura; tanto o texto oral quanto o escrito. Os estudos
atuais e as ramificações hoje existentes na área deram-se a partir do curso de
Lingüística Geral, de Ferdinand de Saussure, livro que foi organizado por seus alunos
em 1916. Portanto, trata-se de uma ciência relativamente recente, mas que se
13
Nesta tese não assumiremos em todos os momentos a distinção entre língua e linguagem, embora
não desconheçamos que para alguns teóricos os termos sejam distintos.
47
subdivide em áreas como a Psicolingüística, a Sociolingüística, a Análise do Discurso,
a Fonologia, a Pragmática, a Lingüística Aplicada, a Lingüística Textual, a Teoria dos
Atos da Fala (Teoria da Enunciação), a Semântica, entre outras, cujo objeto, de modo
geral, é o estudo e a compreensão da linguagem.
No Brasil, foi a partir do final da década de 1970 que os estudos lingüísticos
proliferaram e possibilitaram um novo modo de estudar e compreender a linguagem
humana. Também foi a partir desse período que a Lingüística começou a ser vista
como disciplina nos cursos de formação em Letras. O modo de conceber a linguagem
e o ensino da ngua portuguesa levava, então, a posicionamentos contrários frente ao
modo tradicional de se ensinar a língua escrita, centrado no aspecto gramatical.
Lingüistas como Carlos Franchi, Carlos Alberto Faraco, Sírio Possenti,
Ingedore Vilaça Koch, Mary Kato, José Luiz Fiorin, João Wanderley Geraldi, Percival
Leme de Brito entre outros, embora se possam distinguir suas especificidades teórico-
lingüísticas, são autores que podem ser citados como aqueles que buscaram, pelos
estudos lingüísticos, de modo geral, dar outro direcionamento para o entendimento da
linguagem e o ensino da língua no Brasil.
Concomitantemente, a perspectiva bakhtiniana de linguagem, sua teoria
dialógica da enunciação e a semiótica faziam-se presentes no Brasil também a partir de
1970, e passaram a compor o referencial teórico de muitos lingüistas e estudiosos da
educação. O pensamento bakhtiniano colocava em evidência a presença de
interlocutores ativos nos textos orais e escritos.
Podemos encontrar as concepções de alguns dos estudiosos mencionados,
reunidos no livro Conversas com lingüistas: virtudes e controvérsias da Lingüística
(2003), de Xavier e Cortez. Ali, eles manifestam seu entendimento sobre língua e
linguagem, as relações entre Lingüística, sociedade, pensamento, cultura e educação, e
seus desafios para o século XXI. Desse livro, apesar das importantes considerações e
posições sobre a Lingüística, sobretudo, para pensarmos a educação, registramos um
dos posicionamentos dos lingüistas, o de Faraco, justamente quando este trata do
último tópico: os desafios da Lingüística para o século XXI. A citação é longa, mas
seu conteúdo referenda o destaque. Afirma o lingüista:
48
(...) pelo menos dois itens deveriam estar na agenda dos desafios da lingüística para o século
XXI, o primeiro é cultivar acirradamente a pluralidade teórica. Deixar que essa imensa
diversidade frutifique; que essa imensa diversidade que os estudos lingüísticos agregam ou
congregam, que essa diversidade teórica, essa pluralidade de objetos, objetivos e interesses,
de concepções de ciência, de linguagem etc., realmente frutifique. E, em segundo lugar, acho
que nós deveríamos fazer um esforço no sentido de ganhar espaço público. Quer dizer, a
impressão que se tem é que os estudos lingüísticos não conseguiram ainda pular o muro
da academia. Ainda são discussões muito presas ao universo acadêmico, ao interior da
academia. Então, a população em geral desconhece os nossos temas e as nossas
maneiras de encará-los. E acho que esse seria um ponto interessante da agenda dos
desafios da lingüística no Brasil, para o século XXI, particularmente, que é fazer
ressoar a sua voz ou as suas vozes no espaço público, de forma que a gente possa pôr em
xeque e criticar, e estabelecer uma ação agonística com os outros discursos, que dizem o
soberanamente e com tanta certeza e com tanta arrogância a linguagem, as questões da
linguagem no Brasil. (XAVIER; CORTEZ, 2003, p. 70, grifos nossos).
O destaque que fazemos, na voz de Faraco, é extremamente elucidativo e nos
auxilia na argumentação que envidamos neste capítulo, pois toca na questão central de
que os estudos na área da Lingüística circulam nos limites da academia e não chegam
aos professores. Ao não chegar àqueles que “labutam na luta” de ensinar a língua
materna escrita para crianças, vemos reduzidas as possibilidades de chegarem também
os seus pressupostos para a elaboração de uma concepção de linguagem viva,
interlocutiva, cambiante, de responsividade ativa. E, ao não ser (re)elaborada essa
concepção, pensamos que as atividades escolares em sala de aula ficam prejudicadas,
na medida em que também se reduzem as possibilidades de diálogo entre os
conhecimentos trazidos do seu meio, a sistematização destes e a apropriação dos novos
conhecimentos acerca da vida humana.
Acreditamos que o conhecimento e o domínio dos estudos desenvolvidos
pelos lingüistas oferecem, especialmente para os professores de língua materna e
alfabetização, uma importante contribuição para o ensino na medida em que a
apropriação desses estudos possibilita um melhor entendimento das diversas situações
que ocorrem em sala de aula, quando lidam com seu objeto de ensino. Compreender
não o que o aluno deixa de fazer, mas exatamente o que ele faz em termos de
linguagem na escola, é um grande passo para que o professor domine melhor o seu
processo de ensinar e o de seu aluno de aprender.
49
Dada à complexidade da linguagem, qualquer trabalho com ela não é algo
fácil de realizar, especialmente seu ensino. No entanto, o conhecimento dos estudos
realizados em Lingüística, assim como os conhecimentos produzidos por outras áreas
como a Psicologia e a Sociologia e suas ramificações, a Psicolingüística e a
Sociolingüística, são auxiliares não para a compreensão dos fatos da linguagem o
ensino mesmo da língua – mas para a efetivação do fazer docente.
Geraldi, em 1985 portanto, no mesmo período em que o tema letramento
aparece no contexto educacional, conforme apontamos no capítulo anterior –, abre
um de seus artigos do livro O texto na sala de aula denominado “Concepções de
linguagem e o ensino de Português” com a seguinte epígrafe, de autoria de Bakhtin:
“‘Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de
que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui
justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de
expressão a um em relação ao outro” (p. 41).
Essa citação de Geraldi mostras da perspectiva teórica assumida pelo autor
sobre a concepção de linguagem que defende para o ensino de “português”: a interação
social na perspectiva bakhtiniana, ou seja, o aspecto dialógico da linguagem. O autor
discute as concepções de linguagem (p. 41-48) que estão circulando no meio
educacional e toma três delas para descrever seus pressupostos e suas filiações teórico-
lingüísticas: a linguagem como expressão do pensamento, a linguagem como
instrumento de comunicação e a linguagem como forma de “inter-ação”, interlocução.
Segundo o autor, a primeira concepção estaria vinculada à gramática
tradicional, a segunda ao estruturalismo e ao transformacionalismo e a terceira à
lingüística da enunciação. É no interior desta que o autor desenvolve sua defesa por
acreditar “que esta concepção implicanuma postura educacional diferenciada, uma
vez que situa a linguagem como o lugar de constituição de relações sociais, onde os
falantes se tornam sujeitos.” (1985, p. 43, grifo do autor). E mais: compara a língua a
um jogo que se joga em sociedade, cujas regras podem ser estabelecidas no decorrer
desse jogo. Assevera que a língua só existe nesse jogo social.
50
Percebemos, então, que, de certo modo, Geraldi propõe a compreensão da
linguagem sob determinada concepção e ensiná-la de modo que se garanta sua
natureza: de interlocução social, em que os sujeitos agem e reagem conforme a
situação concreta de interação em que se encontram; conforme a “solicitação” do
próprio contexto de enunciação. Se concordamos com o autor, é preciso reconhecer
que a alfabetização, área que legítima e institucionalmente insere a criança no mundo
escolarizado da leitura e da escrita, é o primeiro momento para a organização das
ações alfabetizadoras no ensino da língua materna naquela direção: a de interlocução.
Nesse sentido, as ações alfabetizadoras m de ser organizadas considerando-
se alguns aspectos. Um deles é que a entrada da criança no mundo da escrita
escolarizada, na série inicial de alfabetização obrigatória, não significa que ela o
tenha nenhum conhecimento sobre a escrita. É preciso lembrar que a sociedade em que
a nossa criança vive é a das relações com os Outros, e a escrita é um meio de se
relacionar. Outro aspecto diz respeito ao fato de que os números e as letras não
passarão a ter uma organização diferente daquela que a criança via, conhecia, antes de
entrar na escola. E ainda que a criança o tenha tido nenhum contato com a escrita,
algo extremamente difícil de acontecer para os que vivem numa sociedade
grafocêntrica, a escrita e a alfabetização estão presentes na sociedade, pois, assim
como explicitam Bakhtin/Volochinov, a escrita como uma das modalidades da língua
antecede-nos: que se penetrar no curso de sua existência. E esse penetrar é a prova
mais cabal de que o homem é a própria relação com outros homens, a palavra do Outro
feito nossa, uma vez que a língua é um fato puramente histórico. (2004, p. 108-109)
Com isso, afirmamos que a escrita pode (e deve) ser ensinada como algo que
se desenvolve em decorrência da organização humana de suas relações sócio-
culturais, de trabalho, de suas necessidades históricas. A escrita não é a cópia ou o
retrato fiel das manifestações dos falantes; ao contrário, ela representa a fala. E como
representação escrita, tem especificidades que o professor precisa conhecer para
melhor ensiná-las. Enfim, como diz Jo Luiz Fiorin (2003, p. 72), “a linguagem
humana é a condensação de todas as experiências históricas de uma dada comunidade.
É nesse sentido que nós temos que ver a língua. É claro que ela tem uma gramática, ela
51
tem um léxico, eu não estou negando isso, mas, para mim, o aspecto mais relevante a
verificar é que a língua é, de certa forma, a condensação de um homem historicamente
situado. Uma língua é isso.”
Se a língua é a condensação das experiências humanas datadas no curso da
história por uma comunidade, logo, diz respeito às relações sociais que se estabelecem
nesse mesmo “tempo”. Percebemos a chamada de Fiorin para o espaço que o aspecto
social ocupa em relação à linguagem, bem como a sua não-desconsideração das
especificidades do código. Há a sugestão, também – justamente pelos termos de que se
utiliza: “É claro que ela tem uma gramática, ela tem um léxico, eu não estou negando
isso (...)” (grifos nossos) –, de que, para ele, como lingüista, a importância dos
elementos constituintes das palavras, a organização frasal, enfim, as relações internas
das palavras já eram evidentes. Seria preciso, então, apontar para a realidade da função
social, viva e latente da linguagem entre os homens. No entanto, não atribuía uma
nova denominação para evidenciar esse “outro” lado que seria necessário valorizar.
Em síntese, o que defende Fiorin parece assemelhar-se aos princípios do letramento.
Mas, para não corrermos o risco de estarmos tratando de um discurso mais atual,
voltemos um pouco mais no tempo para abordarmos a questão.
Sírio Possenti, no seu artigo “Gramática e política” (1985, p. 31-39), tece
algumas reflexões sobre o tema e contribui para o debate na medida em que destaca a
distinção entre três conceitos correntes de gramática. Cada um desses conceitos, no seu
limite, faz referência a um “conjunto de regras lingüísticas”. A rigor, o que se pode
apreender é que as concepções de gramática também encerram um posicionamento
político, que se revela nas concepções de linguagem/língua. Essas concepções de
linguagem promovem um ensino de língua materna correspondente ao posicionamento
político assumido.
Assim, os três conceitos, “gramática como um conjunto de regras a serem
seguidas”; “conjunto de leis que regem a estruturação real de enunciados realmente
produzidos por falantes, regras que são utilizadas” e “conjunto de regras que um
falante de fato aprendeu e das quais lança mão ao falar” (p. 32), são condizentes com:
1) a visão de que o termo língua recobre apenas uma das variedades lingüísticas, a da
52
língua padrão; 2) a visão excludente em relação aos fenômenos, não tanto por
incluir partes, mas por incluí-las de certo modo apenas, em que língua equivale a um
construto teórico, necessariamente abstrato; que, embora não preconceituosa ou sem
negar as variações, é higienizada, na medida em que estabelece prioridades em suas
gramáticas; e 3) a visão de língua como o conjunto de variedades utilizadas por
determinada comunidade, as quais, embora tenham formas diferentes entre si,
pertencem a uma mesma língua (p. 32-33). De modo geral, pode-se dizer que cada
manifestação de compreensão ou de embasamento segundo alguma dessas concepções
remete a certos posicionamentos político-ideológicos frente à linguagem.
Esse modo de entender a linguagem e a gramática permite-nos alcançar a sala
de aula em alfabetização e, conseqüentemente, o seu ensino. A discussão da gramática
na perspectiva em que a aborda Possenti possibilita visualizar algumas práticas
tradicionais em alfabetização – as metalingüísticas (tais como as atividades sobre
número e gênero dos substantivos, partição silábica, ditados, cópias etc.) –, mas
também determinados exercícios de desenvolvimento motor, ou mesmo certos
métodos de ensino adotados nesse nível escolar, e refletir sobre o que, de fato,
representam. Que concepção de língua e linguagem um ensino metalingüístico suscita?
Os professores que adotam essa abordagem de ensino de língua em alfabetização estão
cientes e convencidos de que há reflexos das concepções que embasam o seu ensino no
aprendizado do aluno?
Poderíamos dizer que não havia, até então, reflexões a respeito dos modos de
conceber a linguagem, a gramática e o ensino da língua em alfabetização, mas elas
estavam sendo colocadas em pauta a partir da década de 1980 (se aceitarmos que os
escolanovistas não contribuíram para refletirmos sobre a questão). Se chegaram ou
não, ou como chegaram aos professores, é outro aspecto. Porém, o que não é possível
negar são os muitos questionamentos motivados a partir daí, especialmente a tentativa
de colocar o ensino da língua num patamar de responsabilidade política frente às
classes que sofriam e sofrem a ausência de conhecimentos escolares, inclusive em
alfabetização. Portanto, tratava-se de fomentar um ensino para além da própria escola
ou da situação imediata. Percebe-se claramente que Possenti valorizava o sentido
53
político na discussão e aceitação da fala, das variações lingüísticas, do poder de
inserção escolar de certas ideologias culturais e lingüísticas, logicamente, sem
descartar as condições econômicas e históricas que compunham o contexto. Enfim, o
autor defendia a atuação do sujeito no mundo social em práticas de leitura e de escrita.
Uma atuação que levasse o aluno a posicionar-se. Podemos dizer, então, que o que
Possenti defendia à época é a mesma causa que está presente nos discursos dos
defensores do letramento atualmente: a inserção dos sujeitos nessas práticas sociais
escritas.
Carlos Alberto Faraco (1985), na mesma coletânea supracitada, no artigo em
que relaciona “As sete pragas do ensino de Português”, discorre sobre sua preocupação
com o ensino da língua que, à época, ainda vigorava na sala de aula de língua
portuguesa. O autor toma por base a dificuldade de escrita, leitura, compreensão e
interpretação de textos de estudantes universitários, especialmente os de Letras, por
acreditar que esses estudantes constituem o “topo de uma pirâmide”: como num efeito
cascata, o ensino que recebem repercute no ensino de língua nas séries iniciais do
Ensino Fundamental (o antigo Primeiro Grau) e, em especial, aqui no nosso caso, no
processo de ensino em alfabetização. Faraco deixa explícita a sua oposição ao ensino
tradicional de língua e esclarece sua posição “em favor de um ensino que resulte
positivo, possível apenas se fundamentado na lingüística” (1985, p. 17). Portanto, um
discurso muito coerente com o que defende atualmente.
As “pragasa que se refere o autor abrangem: 1) a leitura não compreensiva,
conseqüência do indiscutível valor mecânico desta, porém, em detrimento de uma
leitura que consagre a compreensão e a criticidade do conteúdo; 2) os textos chatos
aqueles que não dizem nada aos alunos; 3) a tortura das redações, sob a mira de um
processo rotineiro e demarcado de escrever; 4) a confusão no ensino da gramática, em
que se ensina metalíngua pensando estar-se ensinando a língua; 5) a inutilidade de
determinados conteúdos programáticos, que não aprimoram efetivamente o domínio da
língua; 6) as estratégias inadequadas memorização de regras de ortografia, listas
enormes de plurais, femininos, diminutivos, afixos etc.; e 7) a Literatura como
sinônimo de reconhecer e decorar biografias, sem textos de autores (p. 19-23).
54
As pragas, “certas atividades rotineiras que constituem a essência de um
determinado tipo de ensino de português” (p. 17), nada mais são do que certa maneira
de conceber a linguagem e o ensino da ngua materna. Independente da série do
ensino em questão, a realidade é que esse saber, essa compreensão, mostra-se e se
caracteriza nos modos como os professores conduzem suas aulas e nos resultados
decorrentes desse tipo de ensino. Como também lembra Faraco, não estamos sendo
ingênuos de não considerarmos a globalidade dos problemas que afetam a educação e
o contexto em que ela se insere, mas, ainda assim, naquele momento, o que
denunciava o autor era “o fato de os professores desconhecerem totalmente os
resultados dos estudos lingüísticos e suas inevitáveis conseqüências para o magistério
da língua materna.” (p. 18). Essa denúncia é reiterada pelo autor, conforme vimos, em
pleno século XXI (FARACO, 2003), de modo que, além de apontar, na década de
1980, o que outras áreas preocupadas com o ensino da língua produziam e não se
conhecia, mostra que, no século novo, os estudos lingüísticos ainda permanecem
limitados ao locus onde são produzidos.
Do artigo de 1985, é possível depreender a importância que o autor atribui aos
conhecimentos produzidos pela Lingüística, pela Psicolingüística e pela
Sociolingüística no sentido de beneficiar o ensino da língua materna, em especial, o
modo diferenciado de considerar a linguagem, os fatos da língua, os seus contextos
enunciativos e a própria enunciação. Estes últimos são pontos que voltaremos a nos
reportar em capítulo posterior.
Na proposta de reflexão do autor sobre a linguagem e o ensino da língua
materna, continua este afirmando:
Imaginar, hoje, um ensino de língua materna sem adequá-lo ao que se conhece de linguagem,
é estar atrasado no tempo, além de ser prejudicial aos interesses individuais e nacionais.
Talvez, nenhum outro trabalho didático esteja potencialmente tão bem fundamentado como o
ensino de língua. Infelizmente, porém, os progressos da lingüística e das áreas
interdisciplinares (a psicolingüística e a sociolingüística) não chegaram ainda às salas de
aula. (FARACO, 1985, p. 18).
Esse reconhecimento de Faraco faz-nos levantar alguns questionamentos:
atualmente, mais de vinte anos após o atestado pelo autor, os conhecimentos sobre
55
linguagem trazidos pela Lingüística e por outras áreas constituem os saberes dos
professores alfabetizadores no seu ofício de ensinar a língua materna? Os professores
alfabetizadores m alguma consideração a fazer sobre esses estudos e sua relação na
efetivação do ensino da língua em sala de aula? Se houver, que considerações seriam
estas? Existiria alguma relação entre essas considerações e os pressupostos do
letramento na concepção dos professores?
Ao levantarmos tais questionamentos, não estamos nos posicionando a favor
indistintamente do conhecimento da Lingüística para a formação do professor, nem
tampouco assumindo que a Lingüística é a ciência soberana para o conhecimento sobre
a linguagem e está, portanto, isenta de críticas
14
. Nosso posicionamento é o de que a
Lingüística, assim como outras ciências, traz elementos para pensarmos outro contexto
para o ensino da língua materna em alfabetização, que o retire da artificialidade e da
distância do seu aprendizado dos sujeitos reais e em situações reais de ocorrência. O
importante, pensamos, é que o professor possa compreender o que embasa o seu saber
e o seu fazer em alfabetização e, assim, ter cada vez mais clareza dos caminhos que
quer seguir na sua atuação docente.
Por ora, é possível dizer que as afirmações de Faraco permitem-nos buscar
elementos de análise para compreender se as “vozes” não só dos lingüistas e da
Lingüística, mas outras vozes, de outras ciências que se ocupam dos estudos de
linguagem, de aprendizagem e de desenvolvimento, ecoam atualmente entre os
professores alfabetizadores. Caso consideremos que os discursos atuais em torno do
letramento escolar são procedentes, no sentido de que agora se discute a
necessidade da aprendizagem da leitura e da escrita para a atuação em práticas sociais,
é porque os conhecimentos produzidos pelas várias ciências, inclusive pela
Lingüística, ainda não frutificaram entre os professores alfabetizadores. Contrário
fosse, não se justificaria o discurso da necessidade de o ensino em alfabetização ter de
pautar-se também pelos pressupostos do letramento: o letrar seria o próprio processo
14
Ver, nesse sentido, a dissertação de mestrado de Fabiano P. Rodrigues, Os conceitos de norma na
lingüística e sua relação com o ensino de língua materna. Referências completas ao final desta tese.
56
de alfabetizar. Entretanto, se isso não acontece, entendemos ser necessário identificar e
analisar as causas para a “recusa” dos conhecimentos produzidos até então para o
processo de ensino e de aprendizado em alfabetização.
Mary Kato, autora referida em citações de outros autores (KLEIMAN, 1995;
SOARES, 2003) sobre a inauguração e a conceituação do termo ‘letramento’ no meio
educacional brasileiro, parece ter sido preterida quando apresenta possibilidades para
se pensar também a alfabetização como o aprendizado de um código não apenas nas
suas relações internas mais amplas, mas também nas suas relações externas, no
necessário aprendizado da norma padrão como importante para as manifestações em
práticas sociais.
Soares (2003), à página 15 do livro cujo tema foi analisado no capítulo
anterior, Letramento: um tema em três gêneros, refere-se a Kleiman (1995), em nota
de rodapé, para situar a referência desta à hipótese de que é Kato quem inaugura o
termo ‘letramento’. À página 32, Magda Soares, também em nota de rodapé, cita o
livro de Mary Kato intitulado No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística,
afirmando que o termo ‘letramento’ não é explicitamente definido pela autora, mas
permeia o conteúdo da obra, e “foi, provavelmente, essa a primeira vez que a palavra
letramento apareceu na língua portuguesa – 1986.” (SOARES, 2003, p. 33).
Do nosso ponto de vista, a não-definição do termo letramento’ e a
possibilidade de sua definição estar diluída no conteúdo do livro de Kato permite que
façamos uma outra leitura. Nesse sentido, destacamos o primeiro parágrafo
15
da
apresentação do livro da psicolingüista, onde se pode ler:
Meu pressuposto, neste livro, é o de que a função da escola, na área da linguagem, é
introduzir a criança no mundo da escrita, tornando-a um cidadão funcionalmente letrado,
isto é, um sujeito capaz de fazer uso da linguagem escrita para sua necessidade
individual de crescer cognitivamente e para atender às várias demandas de uma
sociedade que prestigia esse tipo de linguagem como um dos instrumentos de
comunicação. (KATO, 1986, p. 07, grifos nossos).
15
Soares (2003), na p. 32 de seu livro, menciona apenas o segundo parágrafo do livro de Kato, para
trazer a citação que esta faz do termo ‘letramento’.
57
Como se pode verificar, a própria expressão “isto é” tem um efeito explicativo
para o cidadão letrado: se a escola tem a função de introduzir a criança no mundo da
escrita, desenvolvendo-a cognitivamente, tem seu papel também no desenvolvimento
de atitudes frente à sociedade portanto, trata-se daquilo que Magda Soares e outros
vêm definindo como letramento. Entretanto, não bases para se estabelecer que o
entendimento de Kato, na citação, esteja na direção do letramento, desvinculado,
enquanto objeto, da especificidade da alfabetização. Ainda assim, pensamos que a
contribuição maior de Soares não esteja em dizer se Kato inaugura ou não o termo
letramento no contexto educacional, ou ainda, por mais que nos seja caro, dizer se ela
define ou não letramento com uma especificidade diferente da alfabetização, em
virtude dos desdobramentos que isso tem. Sua riqueza está em nos fazer buscar a
origem da discussão, isto é, fazer-nos retornar aos autores e não ficarmos nas citações
das citações, até para construirmos uma outra leitura, a nossa leitura. E com ela,
refletir sobre os discursos produzidos sobre o ensino da língua e a importância do
entendimento do que seja a linguagem.
Embora possa se questionar a concepção de linguagem de Kato, possível de
ser inferida também a partir da citação uma concepção de linguagem como
comunicação –, bem como a filiação teórica assumida, dado o modo como ela entende
a relação sujeito, linguagem e sociedade “cidadão funcionalmente letrado” –,
pensamos que a autora precisa ser “lida” de forma datada. Além disso, outras
contribuições possibilitadas pelos estudos da Psicolingüística que auxiliam a
compreensão da linguagem escrita no seu processo de ensino.
Ainda que possamos não concordar com essas concepções da autora, é
possível identificar, na base da teoria funcionalista e de uma teoria de aquisição de
linguagem, a intenção da comunicação pelo emissor dirigida a um receptor, e,
esparsamente, é possível perceber algum diálogo mantido com outros lingüistas e/ou
psicólogos. Por exemplo, ao referenciar os estudos de Luria, a autora diz que “na
história do homem, vimos ainda que foi a necessidade de transmissão de
conhecimentos coletivos que o levou a ‘inventar’ a forma escrita dissertativa (...).
Portanto, são as necessidades reais funcionais que levam o homem a escrever e a
58
procurar novas formas dentro dessa necessidade(1986, p. 106, grifos nossos). Ou
ainda, quando faz relação aos diferentes dialetos e menciona Bryant e Bradley diz da
necessidade de se levar em conta as pesquisas desses autores,
(...) cujos resultados mostram que a criança, na fase da alfabetização, não usa
necessariamente a mesma estratégia para escrever e para ler. Constatou-se que ela usa a
estratégia fonológica (escrever como se fala) apenas para escrever, mas não para ler. A
estratégia, nessa atividade, é muito mais pautada em estratégias visuais inferenciais. Os
autores mostram, por exemplo, que as crianças são capazes de ler palavras como bycicle e
picture, embora não sejam capazes de reconhecê-las, o que mostra que a leitura e a escritura
apóiam-se, nessa fase, em estratégias diferentes. (KATO, 1986, p. 122-123).
O posicionamento favorável da autora em relação ao atestado por Bryant e
Bradley remete-nos à teoria de Bakhtin/Volochinov (2004), uma vez que o caráter
semiótico da consciência, o reconhecimento de signos e não de meros sinais é
propiciado pelas relações sociais, pois a linguagem é de natureza social. A autora está,
de certo modo, chamando a atenção para esse aspecto da linguagem.
Em relação à diferença do dialeto da criança e do dialeto da escola, a autora
diz que “desautomatizar o uso do próprio dialeto para amoldar a produção à norma
prescritiva pela escola é, para a criança, um processo lento e gradual.” (p. 123).
Novamente ponderamos que, se cabe alguma crítica a Kato pela terminologia de que
se utiliza, consideremos o período em que ela escreve e atentemos para aquilo que
ainda hoje é perceptível em muitas escolas e no modo de ensinar de professores
alfabetizadores: o desconhecimento da discrepância e do prejuízo que para o
aprendizado quando apenas se ensina o dialeto escolar, buscando “substituir” o do
aluno.
Vejamos a proposta que a autora apresenta, então, para o trabalho com a
norma culta/padrão na escola:
O que proponho é que a iniciação à leitura se através de textos autênticos, escritos na
norma padrão, e a iniciação à produção escrita preveja um período inicial em que haja por
parte da escola, uma larga tolerância em relação aos desvios de ordem dialetal. A ênfase
seria dada à fluência na escrita, e não sobre a precisão gramatical ou ortográfica. Aos
poucos, através de exercícios bem elaborados e, sobretudo, através da leitura, a criança seria
levada a monitorar sua escrita para atender aos padrões dessa modalidade. (KATO, 1986, p.
123).
59
Ainda que por outras formações teóricas, não cremos ser possível descartar
essas contribuições de Kato para a alfabetização. Elas encerram um modo de conceber
a linguagem, que, para além da utilização da palavra ‘letramento’ ou da discordância
de sua concepção, propõe uma alfabetização que considere a oralidade e a língua
escrita distintamente da concepção tradicional de ensino de língua.
Quando a autora aborda a escola e o desejo da instituição em incutir, a
qualquer custo, a norma padrão lingüística para fazer cumprir seu papel social, “pois é
para isso que ela existe”, suas reflexões permitem estabelecermos conexões com os
estudos de Pécora (1992)
16
. Este autor, embora pesquisando em outro nível de ensino –
analisa redações (períodos frasais) de vestibular e de universitários de Letras e de
outros cursos, nas diversas séries do ensino superior, mas, sobretudo, de primeiro ano
–, traz dados reveladores para a época em que estuda tais redações 1978 a 1980. (p.
23). O resultado da análise realizada por Pécora é assim descrito pelo autor:
A maioria absoluta das redações (...) pautava sua reflexão por uma colagem mal ajambrada
de frases feitas e acabadas, retiradas de fontes não muito diversificadas. (...). Tratava-se,
portanto, de uma falsa produção, de uma falsificação do processo ativo de elaboração de um
discurso capaz de preservar a individualidade de seu sujeito e de renová-la, desdobrá-la, na
leitura de seus possíveis interlocutores. Tratava-se de uma redução auto-anuladora da
virtualidade de uma linguagem sempre permeável ao momento particular em que se
manifesta, às individualidades em jogo, ao jogo das intenções e finalidades, à história que
significa. Na verdade, tratava-se de uma reprodução, da entrega de cada um ao mesmo
passado – de ninguém: reproduziam alguns poucos modelos, oficialescos e consagrados, com
variações transparentes. Nesse caso, o erro mais grave, o problema maior, não estava na
dificuldade de assimilação de algumas normas e exceções do português padrão, mas,
justamente, na excessiva facilidade em se assimilar um padrão de linguagem, portanto, um
padrão de referências para pensar e interpretar o mundo, para constituir a própria
experiência. Pessoas vindas dos lugares mais distantes entre si, de situações econômicas não
tão distantes assim, chegavam para o vestibular na hora marcada, tomavam o lápis e a folha,
e escreviam o esboço de um testamento em favor de uma mesma cartilha. (PÉCORA, 1992,
p, 14-15).
Consideramos esse recorte, e muito mais do que na abordagem do tema
discutido por Pécora problemas de redação –, um primor em termos de clareza,
simplicidade e profundidade; uma contribuição ímpar para os estudos sobre a
linguagem, escrita ou não, nos diferentes níveis de ensino. Também percebemos, ao
16
A data aqui referida é a da quarta edição do livro. A primeira publicação é da década de 1980.
60
deslindar os diversos aspectos abordados pelo autor, a proximidade de seus
pressupostos lingüísticos com uma proposta de linguagem baseada no princípio da
interlocução. Sem vida, os estudos de Pécora remetem a reflexões sobre as
concepções de ensino da língua escrita veiculadas na escola, sobre a função do
aprendizado dessa língua para a atuação social e sobre os motivos que levam pessoas
em adiantado nível de escolaridade deixar entrever, sem constrangimentos, os limites
de sua formação desde a mais tenra idade escolar.
Entendemos que Pécora toca implicitamente num aspecto que ainda hoje está
muito presente na nossa cultura social e escolar: o de perceber as dificuldades dos
escreventes num outro nível, o da compreensão dos sentidos postos na escrita, para,
somente depois de fortalecido esse aspecto, trabalhar, concomitantemente, a
ortografia. Quando, pelos mais diversos motivos, pretende-se divulgar o nível de
conhecimento e de apropriação da língua escrita e os sentidos produzidos por ela nos
seus falantes/escreventes, toma-se como referência o que “se mostra” na superfície
textual: os problemas ortográficos e os gramaticais. Sem dúvida, são os “defeitos” que
mais saltam aos olhos daqueles que adotam uma concepção de aprendizado baseada na
“higienização” da produção escrita, muito aos moldes do ensino tradicional da
alfabetização, por exemplo, e que toma corpo nas relações na escola e em sociedade.
Assim, quando Pécora diz que “o problema maior, não estava na dificuldade
de assimilação de algumas normas e exceções do português padrão, mas, justamente,
na excessiva facilidade em se assimilar um padrão de linguagem, portanto, um padrão
de referências para pensar e interpretar o mundo, para constituir a própria experiência”
(1992, p. 15), leva-nos à percepção de que o conteúdo ensinado na escola sobre língua
não atinge a sua realidade de ocorrência. Pode-se dizer que o teor da tradição
gramatical de ensino da língua é que se mostra. A escrita, e tudo o mais que envolve a
sua produção, é inerte, parada, traduzindo-se em uma modalidade de linguagem
distante de sujeitos reais, logo, vazia de sentido. Ao menos dos sentidos que
entendemos serem os capazes de provocar a localização social dos homens, conforme
a ampliação de sua compreensão da organização da sociedade em muitos dos seus
aspectos.
61
Os interlocutores não aparecem na composição da sua individualidade. A
constituição da singularidade de suas experiências es expressa no vazio de um
discurso. Portanto, o ecoa porque não é dita. Um homem isolado de sua própria
história nega a natureza social da escrita.
A imagem de linguagem e de homem sugerida por esta fala de Pécora,
“pessoas vindas dos lugares mais distantes entre si, de situações econômicas não tão
distantes assim, chegavam para o vestibular na hora marcada, tomavam o lápis e a
folha, e escreviam o esboço de um testamento em favor de uma mesma cartilha”, é
passiva, robotizada, sem sentido, sem prazer e sem vida. Relembra a forte imagem do
“ninguém” a que Bakhtin (1988, p. 85) refere quando estuda e critica o discurso do
pensamento estilístico tradicional: “como um discurso neutro da língua, como um
discurso de ninguém, como simples possibilidade”; um discurso que se fecha em si.
Em outras palavras, aqueles sujeitos da pesquisa de Pécora usam a língua para
falar dela mesma, retiram-na de sua função em sociedade.
Se, por um lado, podemos perceber a importância que se vai atribuindo à
ciência lingüística
17
e à Psicolingüística, por outro, queremos trazer considerações de
estudiosos de outras áreas, como é o caso de Eglê Franchi, pedagoga que atesta a
necessidade dos professores o-especialistas em Lingüística conhecerem as
descobertas dessa ciência.
No livro E as crianças eram difíceis... A redação na escola, resultado da
dissertação de mestrado de Franchi elaborada na década de 1980, a autora afirma que,
ao desenvolver seu trabalho como professora de uma terceira série em um distrito
próximo a Campinas, com crianças de famílias de baixa renda, circulava na escola
um pré-julgamento daqueles alunos: eram “(...) ‘selecionados’, acomodados ao
insucesso escolar e marcados como alunos-problema” (1984, p. 03). Tratava-se de
“(...) uma autêntica ‘classe de rebotalhos’, tão relegada pelos professores (a maioria
dos alunos repetentes, que havia passado por uma média de seis professores
diferentes)” (p. 02). A professora via-se, assim, diante de um desafio e percebia que
17
Não existe a preocupação em trazer para esta pesquisa a discussão a respeito da cientificidade ou
não da Lingüística. Entretanto, no livro Conversas com lingüistas (XAVIER; CORTEZ, 2003) pode-se
encontrar a visão de vários lingüistas sobre o assunto.
62
“impunha-se um longo período em que, para a linguagem, eu e os alunos nos
tornássemos interlocutores reais uns dos outros. Sem espaço de interlocução, em
condições de efetiva interação pessoal (mais que formal ou ‘institucional’), como
pensar a linguagem?” (p. 02).
Entre muitos questionamentos e modos de encaminhamento de suas atividades
escolares para atender a seus objetivos de, muito mais que ensinar aquelas crianças a
ler, escrever e produzir redações, realmente oportunizar-lhes aprender e viver certos
valores e aprender a norma (padrão) culta, a professora buscava atividades que
emergissem da realidade das crianças, de seus afazeres, de suas famílias etc.
Entretanto, não ficava no conhecimento imediato, restrito ao que as crianças
pudessem trazer: ampliava-o como forma de ampliar suas possibilidades de
compreensão da própria existência, incitando-as a buscar outra localização social. A
valorização da oralidade, o reconhecimento dos diferentes dialetos, a referência às
relações de poder que existem em torno do modo de falar e escrever, as diferentes
linguagens, estavam presentes nas atividades que a professora preparava para os
alunos.
Do nosso ponto de vista, cremos que a professora supriu sua primeira
necessidade na busca de atingir seus objetivos, no sentido de que o modo como
concebia a linguagem oportunizaria àquelas crianças conhecer o mundo para que se
tornassem efetivamente parte dele, atuando, agindo, posicionando, vendo-se nele. E
mais: entendia a linguagem como “mediadora para a construção dos sistemas de
referência próprios às outras áreas do conhecimento humano. Limitar a capacidade do
exercício da linguagem é limitar a capacidade desse trabalho individual e social: o
regresso na linguagem é o regresso em todas as áreas do conhecimento, e sobretudo é
uma redução das possibilidades de uma interferência ativa, dinâmica e
transformadora” (FRANCHI, 1984, p. 47).
Embora a autora estivesse se referindo a crianças de terceira série, suas
afirmações são cabíveis para qualquer série de ensino, ou área de conhecimento.
Assim, questionamos: em que isso é diferente do letramento? Qual a novidade trazida
que comporte “outro” encaminhamento para a alfabetização? Segundo a autora,
63
linguagem é ação, movimento, atuação social. Será que o conhecimento sobre as
concepções dos professores não traria luz, ou novo direcionamento no modo de
encarar e buscar soluções para os problemas que ainda encontramos em alfabetização:
a precariedade do ensino nesse nível, que conduz a criança a “não atuar”, ou “atuar
limitadamente” nas práticas sociais que exigem a leitura e a escrita?
Mas, como a professora chegou à conclusão de que a interlocução era
necessária para acontecerem o ensino e o aprendizado com a repercussão que
pretendia? Que vozes estavam presentes na sua concepção de linguagem? Com o que
ou com quem se dava a dialogia evidenciada? Quem eram seus Outros?
18
Em meio à análise crítica que a própria professora/autora fez das atividades
que realizou com aquelas crianças, reconhecemos quem eram os interlocutores com
quem dialogava e a auxiliavam a construir as possibilidades de ensino e de
aprendizagem da criança:
(...) hoje percebo que a possibilidade de utilizar mesmo as técnicas simples de análise que
utilizei e o apoio de uma bibliografia mesmo tão limitada me teriam evitado alguns enganos
de decisão e a seleção mais adequada de algumas atividades e procedimentos. Posso avaliar
melhor agora as deficiências de minha avaliação, para um diagnóstico mais instrutivo da
situação da linguagem das crianças. Em termos gerais, ficam duas observações: a primeira,
relativa à necessidade de se colocarem os lingüistas ou os teóricos da linguagem também
a serviço da formulação de técnicas simples e de utilização rápida e fácil para o uso do
professor nas situações concretas, e não para as pesquisas acadêmicas, levando em
consideração sobretudo a necessidade de um diagnóstico quase imediato, em tempo de
utilizar-se na prática escolar do dia-a-dia e de todo o dia. A segunda observação, a de
que não se devem minimizar esses instrumentos de análise, porque a intuição não nos
diz tudo; particularmente, não nos permite encontrar as razões mais internas ao
próprio processo de redigir dos alunos, aspectos relativos à própria estruturação do
texto, certamente relevantes para instruir e informar a seleção dos objetivos e
estratégias no planejamento curricular. (FRANCHI, 1984, p. 42-43, grifos nossos).
Assim como Franchi, outros educadores estiveram debatendo e reivindicando
outro tipo de ensino para a língua, no período. Ana Luiza Bustamante Smolka, a seu
18
A concepção de “outro” utilizada nesta tese segue os preceitos da teoria bakhtiniana, a qual
compreende que toda constituição do sujeito, sua atividade mental, suas enunciações, provêm da
interação social. Para Volochinov esse outro está no “nós”, na medida em que o centro organizador de
toda enunciação é o contexto exterior, imediato ou mais amplo (2004, p. 117-121); “a personalidade
que se exprime, por assim dizer do interior revela-se um produto total da inter-relação social”. Esse
“nós” de Volochinov são as vozes sociais e históricas; as que dão significações concretas à linguagem,
autenticadas por Bakhtin na teoria do romance (1988, p. 106).
64
turno, produziu em 1988, o livro A criança na fase inicial da escrita: alfabetização
como processo discursivo, amparada em referenciais da Psicologia, da Lingüística e da
Pedagogia, trazendo resultados da investigação que desenvolveu desde 1980 sobre a
aquisição da escrita por crianças pré-escolares e de primeira série.
Muito apropriado e profundamente atual é o questionamento que a autora traz
logo no início do livro: “Enquanto as autoridades se desgastam e as comissões se
debatem em discussões sobre o ‘ensino da língua e da gramática’, sobre a
alfabetização, a volta ao tradicional, a disciplina e a informática, o que acontece nas
escolas com relação à alfabetização e quais as condições de trabalho e de vida das
crianças e dos professores?” (SMOLKA, 2001, p. 15). Mais do que uma pergunta, a
autora faz uma provocação que nos leva a refletir sobre a inocuidade de muitas ações
em educação, sejam elas político-governamentais ou não.
A questão colocada, e que direciona a análise que a autora faz no livro,
distingue-se do nosso tema e problema de pesquisa. Mas, se quiséssemos aproveitar a
inquietação de Smolka à época, trazendo-a para o contexto de nossa investigação, não
nos afastaríamos muito do aspecto central de sua indagação. Poderíamos dizer, em
relação às discussões atuais em alfabetização, que, enquanto políticas de governo e
comissões especiais de educação se preocupam com discussões do tipo “analfabetismo
e sua relação com o ensino da leitura e da escrita, na perspectiva da alfabetização ou
do letramento”, ou com “a aprendizagem da leitura e da escrita como domínio de
técnica distintamente de sua utilização em práticas sociais cotidianas”, ou com “a
utilização de letramento ou cultura escrita para designar um tipo de alfabetização”, ou,
ainda, com a “querela de métodos (fônico ou não) amparados por estudos, sobretudo,
censos estatísticos (e muito questionáveis do ponto de vista da interpretação de seus
questionários)”, estamos muitas vezes negligenciando o que de fato acontece nas
escolas. Como os professores entendem o processo de alfabetização? O que conhecem
sobre as novas teorias e a sua contribuição para o ensino da língua materna e,
conseqüentemente, para a facilitação do aprendizado do aluno? O que conhecem sobre
a linguagem e o Outro; sobre o que conhecem as crianças a respeito da língua escrita;
sobre como e para q pensam ser necessário aprender a língua materna que é
65
ensinada na escola; sobre como e a partir de que concepção de linguagem ensina o
professor a leitura e a escrita?
Pensamos que essas são questões que precisam ser formuladas para se discutir
a respeito do que as crianças conseguem, ou não, fazer em alfabetização, inclusive
analisando se o “letramento”, e sua consideração como algo novo no ensino, realmente
contribuiria para uma melhor perspectiva sobre o ensino em alfabetização, obviamente
sem desconsiderar os problemas econômicos e sociais brasileiros.
Smolka, pela via da Análise do Discurso francesa e da Teoria da Enunciação
bakhtiniana, mostra e analisa o que é dito, por que é dito, quem diz, no discurso em
sala de aula, sobre a “aquisição da leitura e da escrita”
19
naquele momento. Enfim, a
autora destaca e escande as situações que possibilitam, viabilizam e produzem tais
discursos em relação às práticas escolares efetivas de ensino do professor e de
aprendizagem das crianças.
Consideramos reveladores os esclarecimentos da autora relativos aos
encaminhamentos da pesquisa que desenvolvia. Ao buscar compreender as funções e
as configurações que crianças pré-escolares (a princípio eram estes os sujeitos, depois
a pesquisa incluiu também crianças de primeira série) conferiam à escrita, no trabalho
com diversos materiais e recursos, percebeu que existia outro elemento que ela não
havia considerado no processo de aquisição da escrita por essas crianças. Segundo
Smolka, “de repente, evidenciavam-se claramente situações de privilégio, de
dominação, de conveniências, de ignorância... e eu não havia considerado, no design
inicial da pesquisa, o aspecto fundamental da interação social, ou melhor, das
situações sociais, e mais ainda, dos movimentos de interlocução nestas situações.”
(2001, p. 21). É pertinente esclarecer que, em decorrência dessas percepções, a autora
precisou alterar o referencial teórico por ela adotado no início de sua pesquisa para
aqueles já citados anteriormente.
Considerando-se que a perspectiva de linguagem adotada por Smolka era a de
interação, podemos afirmar que as relações lingüísticas com o Outro, em um processo
19
A expressão “aquisição da leitura e da escrita” é mantida para indicar a fidelidade ao texto da autora,
ainda que esta não faça nenhuma referência a posicionamentos teóricos relativos ao termo “aquisição”
tal qual o faz Roxane Rojo (1998, p. 07-12).
66
de interlocução, alteravam os sentidos e a compreensão das crianças sobre a linguagem
muito mais do que qualquer recurso ou material que pudesse ser utilizado, ainda que
não tivessem consciência disso. Preponderava um tipo de relação que permitia à
criança até duvidar de algumas certezas sobre os saberes que os professores têm ou
que estes lhes dizem que têm e as crianças acreditam.
Em relação ao processo de ensino, essa constatação permitiu que, após o
período de observação em sala de aula, a autora chegasse a algumas conclusões sobre
a tarefa de ensinar da professora regente e algumas “ilusões”
20
em que vivem os
professores sobre o seu fazer, em decorrência do que lhes atribui a sociedade. Há
muitos implícitos na tarefa de ensinar que, muitas vezes, limitam a consciência do
professor sobre “sua falta de conhecimento e posicionamento crítico com relação ao
seu próprio papel e sua função, como professor, no contexto e funcionamento sociais.
A sua ilusão acaba sendo efeito de sua posição no sistema de representações sociais.
(2001, p. 32, grifos da autora).
Smolka faz distinção entre a tarefa de ensinar e a relação de ensino. Na sua
visão, a confusão entre esses elementos conduz a determinadas representações sociais
sobre o papel e a função do professor. Assim se pronuncia a autora:
(...) fui percebendo, cada vez mais, a necessidade de distinguir entre a tarefa de ensinar e a
relação de ensino. A relação de ensino parece se constituir nas interações pessoais. Mas a
tarefa de ensinar é instituída pela escola, vira profissão (ou missão). Será que vira mesmo
profissão? A tarefa de ensinar, organizada e imposta socialmente, baseia-se na relação de
ensino, mas, muitas vezes, oculta e distorce essa relação. Desse modo a ilusão e o disfarce
acabam sendo produzidos, não pela constituição da relação de ensino, mas pela instituição
da tarefa de ensinar. Em várias circunstâncias, a tarefa rompe a relação e produz a “ilusão”.
Ou seja, da forma como tem sido vista na escola, a tarefa de ensinar adquire algumas
20
As “ilusões” dizem respeito às representações das crianças sobre a escola e o saber da professora em
determinadas situações presenciadas em sala de aula, quais sejam: situação 1: A criança em diálogo
com um adulto, ao ser questionada por este sobre “como vai a escola”, responde-lhe que “médio”, e
não é o fato de não estar gostando da escola, mas sim porque “(...) já sei tudo o que a tia ensina. Então
eu finjo que eu não sei para ela pensar que foi ela que me ensinou, e ficar contente.”; situação 2: Numa
pré-escola a professora, em acordo com os alunos, resolve levar um geólogo para conversar com as
crianças sobre “pedras”. As crianças, por voto, querem a visita; escrevem uma carta a ele (a professora
é a escriba) e, no dia da visita, as perguntas formuladas por escrito são lidas e respondidas pelo
geólogo. À pergunta de uma criança de seis anos para a professora para saber se a tia” já sabia de
tudo o que ele estava dizendo, a professora respondeu que algumas sim, mas a maioria estava
aprendendo naquele momento. A consideração da criança é reveladora “Ah, era isso que eu queria
saber: se professor já sabe tudo!” (SMOLKA, 2001, p. 30-31).
67
características (é linear, unilateral, estática) porque, do lugar em que o professor se coloca (e
é colocado), ele se apodera (não se apropria) do conhecimento; pensa que o possui e pensa
que sua tarefa é precisamente dar o conhecimento à criança. Aparentemente, então, o
aprendizado da criança fica condicionado à transmissão do conhecimento do professor.
(SMOLKA, 2001, p. 31, grifos da autora).
Fazemos referência à distinção da autora por entendermos que se o professor
consegue reconhecer-se no seu papel e função, ele poderá também avaliar seu
conhecimento e sua prática em alfabetização. Isso significa dizer que o conhecimento
do professor sobre a área em que atua, especialmente em relação à linguagem, conduz
seu ensino para um patamar que ultrapassa a mera transmissão de conteúdos e que não
entende o aluno como mero receptáculo do que se tem para ensinar.
Os estudos de Smolka demonstram a necessidade de se voltar às teorias e aos
seus princípios norteadores de modo que se possa avaliar se correspondem ou não, se
auxiliam ou não, a melhor compreender e atuar no processo de ensino da língua
materna; a perceber se o que trazem de novo justifica, e em que medida o faz, a adesão
aos seus pressupostos. Pensamos que estudos dessa natureza, de modo especial,
orientam o professor na reflexão sobre o seu fazer e suas concepções, o que, sem
dúvida, representa parte fundamental de todo o trabalho educativo e pedagógico.
Smolka, ao descrever algumas situações de ensino em que ficam evidentes os
pressupostos de linguagem da professora e os implícitos que demonstra no seu fazer,
destaca que ela foi formada dentro de “uma concepção de aprendizagem e de
linguagem que é tida como pressuposta, faz parte do senso comum e por isso não é
questionada” (p. 48). E que, sob outro ponto de vista de análise, também pode indicar
“entre outras coisas, que o que está implícito nas práticas da professora são concepções
de aprendizagem e de linguagem que não levam em conta o processo de construção,
interação e interlocução das crianças, nem as necessidades e as atuais condições de
vida das crianças fora da escola e, por isso mesmo, podem ser consideradas
historicamente ultrapassadas.” (p. 49).
Em momento posterior, Smolka, ao retratar a escrita das crianças e a forma de
entender essa escrita inicial pelo professor, afirma:
68
O problema (...) é que a alfabetização o implica, obviamente apenas a aprendizagem da
escrita de letras, palavras e orações. Nem tampouco envolve apenas uma relação da criança
com escrita. A alfabetização implica, desde a sua gênese, a constituição do sentido. Desse
modo, implica, mais profundamente, uma forma de interação com o outro pelo trabalho de
escritura para quem eu escrevo o que escrevo e por quê? A criança pode escrever para si
mesma, palavras soltas, tipo lista, para não esquecer; tipo repertório, para organizar o que já
sabe. Pode escrever, ou tentar escrever um texto, mesmo fragmentado, para registrar, narrar,
dizer... Mas, essa escrita precisa sempre ser permeada por um sentido, por um desejo, e
implica ou pressupõe, sempre, um interlocutor. (SMOLKA, 2001, p. 69).
Fica evidente no estudo de Smolka que a dimensão social da escrita, a sua
função, a relação com seu uso na interlocução não são contempladas no ensino daquela
professora; logo, no que depende da escola, o aprendizado do aluno no momento de
sua alfabetização restringe-se a um determinado tipo de saber, escolarmente esperado e
que se distancia das práticas interlocutivas. No entanto, a pesquisa desenvolvida pela
autora demonstra que uma nova forma de entender a linguagem, o ensino e o
aprendizado da língua materna colocava a escrita e a leitura no contexto das práticas
sociais, uma vez que o Outro se fazia presente na consideração de seu aprendizado.
À época, esse estudo ainda estava por se disseminar. Mas a pergunta que fica
é: em que medida os professores apropriaram-se dos resultados das pesquisas de
Smolka, e em que medida puderam, a partir deles, transformar a sua prática docente?
Ou seja, que sentido fez o conhecimento deste trabalho ou o conhecimento produzido e
disseminado em outras obras, inclusive as estudadas durante os cursos de formação de
professores e/ou de formação continuada, visando a refletir sobre práticas em sala de
aula?
Se tomarmos o que Cagliari diz no seu livro Alfabetização e Lingüística no
ano de 1997, quando da décima edição da publicação, as questões que colocamos
ainda estão sem respostas. Na defesa dos pressupostos lingüísticos para compreender o
que ocorre no processo de alfabetização, especificamente, o autor dedica o pico
inicial do livro para esclarecer seu pensamento a respeito da “Lingüística e o ensino do
Português”, seguido de tópicos organizados sobre “A fala”, “A escrita” e a “A leitura”.
É possível afirmar que esta é uma demonstração de que o conhecimento sobre esses
temas é fundamental para alunos de magistério, acadêmicos de Letras e de Pedagogia,
professores, enfim, para todos aqueles que se preocupam com a Educação. Esses
69
estudantes e profissionais não podem prescindir do conhecimento mais aprofundado
sobre a atualidade dos estudos lingüísticos desenvolvidos para a área de ensino da
língua materna. Para o autor:
A Lingüística (...) teve um desenvolvimento extraordinário nas últimas décadas, que não foi
acompanhado pela grande maioria dos professores de Português de nossas escolas de
formação, vivendo à sombra dos grandes mestres do passado. Na verdade, a evolução rápida
e profunda por que passou a Lingüística moderna deixou muitos professores perplexos, não
só diante do trabalho que vinham desenvolvendo ao longo dos muitos anos no próprio
Magistério, como também pelo fato de verem seus grandes mestres criticados, ou mesmo
contestados em questões fundamentais. Alguns professores foram ao encontro das novas
idéias da Lingüística e, na medida do próprio bom-senso, tentaram melhorar
profissionalmente suas atividades docentes. Muitos se fecharam e simplesmente ignoraram a
Lingüística, rotulando-a de ‘fogo de palha’. (CAGLIARI, 1997, p. 40).
Assim como outros autores citados neste texto, Cagliari coloca a
incompreensão com que muitos professores trataram a Lingüística e parece revelar, na
postura que assume, a necessidade de explicitar alguns posicionamentos indevidos
sobre a recente ciência, que acabaram por mais prejudicar do que auxiliar no ensino da
língua materna. Por exemplo, menciona o fato de que a Teoria da Comunicação foi
“mal-entendida”, mal-assimilada”, nos cursos de formação (Letras), cujas idéias da
Teoria levaram a “conseqüências desastrosas” (p. 40).
O destaque desta obra de Cagliari mostra-nos que a linguagem, na Teoria da
Comunicação, parece abordar, em certa medida, o que Geraldi mencionara no início
da década de 1980 com base na teoria bakhtiniana: a questão da interlocução.
Denuncia Cagliari que, conforme a interpretação que se dê, independente de
quais sejam as teorias, alguns equívocos podem se apresentar. Segundo o autor, foi o
caso também da teoria desenvolvida por Chomsky, a Ge(ne)rativa Transformacional
21
,
que, apesar de reconhecida a importância dos seus estudos, na prática,
Muitos professores atribuíram os fracassos da escola mais recentes à intromissão da
Lingüística nas salas de aula. A Lingüística tem por objetivo o estudo da linguagem e por
21
A gramática ge(ne)rativa é uma teoria desenvolvida pelo lingüista americano Noam Chomsky, entre
1960 e 1965, em que a linguagem, específica da raça humana, está relacionada à existência de
estruturas universais inatas (tal como a relação sujeito/predicado) que tornam possível a aprendizagem
pela criança dos sistemas particulares que são as línguas. O contexto lingüístico ativa essas estruturas
inerentes à espécie, que subentendem o funcionamento da linguagem.
70
conseguinte não é por si um método de ensino. Por exemplo, a teoria chomskiana
representa, sem dúvida, um enorme avanço nos estudos da linguagem, mas não foi feita para
ensinar português nas escolas, assim como a Informática é uma teoria a respeito da função
comunicativa da linguagem e também não é um método de ensino do português. O
conhecimento dessas teorias deve fazer parte indispensável da bagagem intelectual de um
professor competente, conhecedor profundo do trabalho que realiza, mas não é uma
metodologia de ensino. As pessoas que foram aplicando as últimas novidades da
Lingüística, sem adequá-las ao ensino procederam de maneira irresponsável e leviana.
(CAGLIARI, 1997, p. 41, grifos nossos).
As palavras destacadas na citação a Cagliari, se, por um lado, dizem respeito
ao cuidado que deve ser tomado em relação à transposição mecânica para o ensino dos
conhecimentos produzidos pela Lingüística, por outro, deixam em aberto quem seriam
as “pessoas” que fazem isso levianamente. Uma resposta apressada poderia
comprometer apenas os professores, já que eles são os responsáveis diretos pelo ensino
em sala de aula, mas questionamos se não haveria outras pessoas ou mesmo outros
segmentos interessados apenas em divulgar um novo discurso, ou o mais recente
conhecimento produzido, inclusive mercadologicamente. Estes outros segmentos, sem
critérios, podem também cometer equívocos e direcionar como conteúdo de aula para
o aluno o que se destina à formação do professor, ou seja, aquilo que visa a provocar
reflexões e a melhor dirigir seu fazer e seu saber em sala de aula. De qualquer modo, é
preciso que haja lucidez, independente de quem sejam as “pessoas”, para tomarem os
avanços produzidos na área como contribuição para a reflexão sobre a linguagem
22
.
Reforça-se o fato de que a Lingüística não é a linguagem; é, antes, uma forma de tentar
entendê-la não só no seu funcionamento, mas também na sua realização.
Para entender a preocupação decorrente dos estudos lingüísticos em relação à
realização da linguagem, torna-se imprescindível que esta seja tomada como processo
interlocutivo, em que a enunciação e o contexto enunciativo expressam com mais
singularidade o momento irrepetível da comunicação, no sentido da situação
interacional.
22
Durante o curso que ministramos, as considerações de Cagliari em relação à Lingüística de ser
tomada como método de ensino em sala de aula também ocorreram em relação à compreensão que
os professores tiveram do método de investigação de Emília Ferreiro, tomando-o como um método
para a sala de aula.
71
Essa irrepetibilidade é a demonstração objetiva de que a linguagem, no seu
acontecimento, é única, viva, cambiável e se molda conforme o fim a que se destina ou
a quem pretende atingir. E esse é um processo de interlocução portanto, interacional.
Um ensino em alfabetização nessa direção privilegiará o ensino da língua materna
como acontecimento dialógico, que ocorre nas relações sociais; e provoca ações e
reações ativas entre pessoas. Entretanto, o basta apenas ensinar aos alunos que a
língua tem essa dimensão social, essa característica dialógica, mas ensiná-la neste
contexto de dialogia, mostrar como a linguagem “acontece” na própria interação
professor-aluno. De nada vale considerar-se ou dizer que a língua é viva, que a
linguagem se faz e refaz constantemente nos atos de fala, se, no momento de seu
ensino, privilegia-se o que de estático nela, o que nela de normativo, repetível,
separada de seus contextos enunciativos. Desse modo, privilegia-se sua descrição e
não a interação por meio dela.
A preocupação, por exemplo, com um ensino da leitura e da escrita baseado
no texto e não em palavras soltas e com sentidos artificiais, estes últimos exemplos
típicos da maciça maioria dos textos de cartilhas, mostra-nos que certos temas dos
estudos lingüísticos, como as discussões sobre texto, sobre textualidade, sobre as
relações entre linguagem escrita e oralidade e sobre interlocução penetraram a área da
alfabetização. Se resultaram em mudanças efetivas no ensino da ngua, esta é outra
questão, que não pode ser analisada apenas da perspectiva do ensino da língua. Isso
seria um reducionismo. Mas, não se pode negar que houve, sim, um movimento para o
ensino da linguagem em alfabetização ser diferente do tradicionalmente adotado, o do
“ba-bé-bi-bó-bu” presente nas cartilhas.
Um trabalho desenvolvido nessa direção é o de Gladis Massini-Cagliari, que,
em 2001, lança o livro O texto na alfabetização: coesão e coerência, como volume da
Coleção Idéias sobre Linguagem. O livro é resultado do trabalho desenvolvido pela
autora com professoras alfabetizadoras, cobrindo o período de 1991 a 1993, em que,
embasada na Lingüística Textual, analisa a coesão e a coerência tanto em textos da
cartilha utilizada na sala de aula como em textos espontâneos de crianças em fase de
alfabetização. Os dois primeiros capítulos são dedicados à revisão bibliográfica dos
72
pressupostos teóricos de linguagem, texto, Lingüística, Lingüística Textual, coerência
e coesão, assumidos pela autora. Nos dois capítulos seguintes, Massini-Cagliari
trabalha especificamente a produção e a análise de textos em alfabetização e, como se
pode verificar, discorre sobre os aspectos e características da progressão temática que
conferem textualidade – coesão e coerência – aos textos.
A definição de texto apontada no capítulo dois pela autora demarca sua
posição em relação à concepção de linguagem e ao que o texto escrito representa em
relação à fala. O fato de entender texto apoiando-se em Koch e Travaglia como
“(...) unidade lingüística concreta (perceptível pela visão ou audição), que é tomada
pelos usuários da língua (falante, escritor/ouvinte, leitor), em uma situação de
interação comunicativa, como uma unidade de sentido e como preenchendo uma
função comunicativa reconhecível e reconhecida, independentemente da sua extensão”
(MASSINI-CAGLIARI, 2001, p. 36) permite-nos concluir que a concepção de
linguagem que embasa a sua concepção de texto é a da interlocução. Segundo esse
modo de entendimento, os usuários interagem nas diferentes situações sociais e
adotam um repertório comum, no sentido de que isso é uma condição para que possa
ocorrer, de fato, a situação comunicativa.
Essa postura conduz a autora, em momentos posteriores, a afirmar que o papel
da escola não é o de ensinar o que é um texto coeso e coerente na língua oral, pois isso
a criança sabe. A função da instituição escolar é mostrar as diferenças existentes
entre o texto escrito e o falado, uma vez que algumas características intrínsecas dessas
diferenças afetam a escrita e a fala na construção da coerência e, acrescentamos, da
coesão (2001, p. 84).
Uma perspectiva interlocutiva de linguagem escrita supõe, além de outros
elementos, a presença do Outro (que não quer dizer presença física), o motivo do
conteúdo e da forma comunicativa adotada por qualquer falante/escrevente. Este,
segundo Massini-Cagliari, é o grande elemento dificultador na produção de textos
pelas crianças e no grau de coerência alcançado pelos textos infantis: saber que se
escreve para um Outro, ou mesmo compreender que a escrita escolar, como toda
linguagem, é dialógica (Ibid., p. 84).
73
No mesmo sentido que Massini-Cagliari, o texto de Luiz Percival Leme de
Brito
23
, “Em terra de surdos-mudos: um estudo sobre as condições de produção de
textos escolares”, que faz parte da coletânea organizada por Geraldi (1985), discute
essa última questão que incomoda a autora: a questão da interlocução. Como é
possível identificar na própria obra o texto de Brito foi publicado originalmente em
1983 –, em período anterior ao de Massini-Cagliari, o autor questionava: “para que
tem servido o ensino de português, se o estudante não ‘aprende’ o domínio real da
língua escrita?” (1985, p. 109). Embora abordando aspectos relativos à produção
escolar escrita – redações – de alunos de outros níveis de ensino e não especificamente
de alfabetização, o problema da interlocução é visível também nesse contexto. Isso
denota a preocupação com uma concepção de linguagem que buscava rechaçar a
mecanicidade presente nos modos de compreender e ensinar a língua escrita na escola.
Ainda que Brito conceba a escola como grande interlocutora do estudante,
pois entende que “é próprio da linguagem seu caráter interlocutivo”; que “a língua é o
meio privilegiado de interação entre os homens e, em todas as circunstâncias em que
se fala ou se escreve um interlocutor”, reconhece que esta relação não é mecânica
(1985, p. 110). E, como veremos a seguir, dependendo do tipo de interlocução que se
estabeleça, pode até ser prejudicial. Isto é, depende da concepção com que se trabalha
a língua na escola.
Brito aponta que “o interlocutor ativo da oralidade, fisicamente materializado
e que pode a qualquer momento intervir no discurso do locutor (invertendo papéis com
este, inclusive), está distante na escrita e, num primeiro nível de análise, interferindo e
interpelando indiretamente o locutor.” (1985, p. 111). Entretanto, a identificação desse
interlocutor na forma escrita também é possível, mesmo que se apresentando de outro
modo: “ele [o interlocutor] pode ser preciso, definido, como numa carta, numa petição;
pode ser genérico ou um determinado segmento social, como um jornal; pode ser
virtual, como na ficção literária.” (1985, p. 111).
23
algumas produções bibliográficas que assinalam o nome deste autor com apenas um “T” – Brito
(O texto na sala de aula) e outras com dois “Ts” Britto (Alfabetização no Brasil: questões e
provocações da atualidade). Por isso variações na escrita das referências às citações que fazermos
do autor.
74
O fato de assim conceber a interlocução escrita, faz com que o autor
surpreenda-se com o tratamento que a linguagem recebe na escola. Segundo ele, “é
curioso, neste sentido, que a maioria dos trabalhos sobre redação escolar ou não
toquem [sic] na questão da interlocução ou falem da ausência de interlocutor,
identificando uma das dificuldades maiores do estudante: falar para ninguém ou,
mais exatamente, não saber a quem se fala”. E, referenciando a dissertação de
mestrado de Pécora
24
, Brito continua: “É baseando-se nesta ausência de interlocutor
que Pécora procura explicar certos tipos de problemas das redações escolares, como a
incompletude de orações. De acordo com o autor, ‘em produtores com um leque mais
ou menos restrito a interlocutores orais, a ausência do interlocutor na situação de
produção de escrita pode apresentar uma nova dificuldade para a obtenção de coesão
do texto’.” (p. 111).
Se a ausência de um interlocutor, para cora, assim como para Massini-
Cagliari, configurava-se em uma das sérias dificuldades de escrita dos alunos, Brito
(1985) opõe-se a esse pressuposto, argumentando: “O que me parece é que não é a
ausência do interlocutor, mas exatamente, a forte presença de sua imagem que
representa a dificuldade.” (p. 111, grifos do autor).
A afirmação de Brito revela a interferência importante que a escola produz na
“imagem” criada pelo estudante do sentido de língua, determinando-a, inclusive. Ao
contrário do que se poderia pensar, as redações produzidas para o professor,
interlocutor privilegiado quando não se tem outro claramente definido, contém aquilo
que se imagina que o professor gostar de ler, segundo a imagem que se cria do
gosto e da visão de língua do professor. Na verdade, para Brito, o professor é a figura
estereotipada, que guarda por trás de si a escola e o que ela representa: relações de
poder, de autoridade, de superioridade que lhe são próprias como instituição (p. 112).
É essa condição da escola que nivela e estrutura a produção lingüística dos “alunos-
redatores”.
24
Refere-se à dissertação de mestrado de Antonio Alcir Pécora, Problemas de redação na
Universidade, que ao final desta tese encontra-se referida como livro.
75
A tese de Britto também se localiza muito próxima das questões que permeiam
o entendimento de linguagem reclamado pelos que atualmente defendem o letramento.
Seu trabalho é outra demonstração de que havia uma luta posta por educadores: a de
que o ensino da língua necessitava de um encaminhamento que abordasse a linguagem
como acontecimento nas e das relações sociais. O autor, ao falar sobre a produção
escrita de textos em sala de aula, concluía que “a produção de texto por estudantes em
condições escolares é marcada, em sua origem, por uma situação muito particular,
onde são negadas à língua algumas de suas características básicas de emprego, a saber,
a sua funcionalidade, a subjetividade de seus locutores e interlocutores e o seu papel
mediador da relação homem-mundo.” (1985, p. 118-119).
Esse texto e os demais presentes na coletânea O texto na sala de aula, na qual
se encontram reunidos vários artigos que não eram inéditos, pois já haviam sido
publicados ou foram veiculados em encontros e seminários sobre língua, dá mais
evidências do que vimos afirmando. A constante republicação de artigos que versam
sobre o entendimento da linguagem numa perspectiva interlocutiva constitui-se em
mais um elemento para justificarmos nossa afirmação de que o que hoje se coloca
como objeto do letramento era, na época de produção desses artigos, tema
recorrente das discussões sobre concepções de linguagem e sua influência no processo
de ensino e aprendizado da língua materna. Cabe explicitar, portanto, o que concorre
para que se produza hoje o discurso do letramento para abordar as mesmas questões.
Compreender por que a recorrência das discussões não foi suficiente para engendrar
uma outra prática alfabetizadora em relação ao ensino da língua.
Luiz Carlos Cagliari, em seu livro Alfabetizando sem o ba-bé-bi-bó-bu (1998),
continua a defender a mesma perspectiva de ensino de linguagem e as atividades em
alfabetização com textos. Na verdade, vemos essa obra como uma retomada mais
minuciosa de alguns tópicos do seu livro Alfabetização e Lingüística (1997), abordado
anteriormente. O próprio título de 1998 remete à questão dos métodos comumente
utilizados em alfabetização, e se pode antecipar que o desejo do autor é, mais do que
desmistificar a dificuldade de o professor alfabetizar ou de o aluno aprender por causa
de falhas dos métodos, questionar a utilização de determinado método. O que discute o
76
autor nessa obra, ao longo das diversas seções das partes 1 e 2, é justamente a
existência, para ele, de apenas dois métodos: um baseado no ensino e outro na
aprendizagem.
Cagliari (1998), no capítulo intitulado “O ensino e a aprendizagem: os dois
métodos”, em que se dedica a explicitar sua tese sobre os métodos, assevera que “(...)
na prática, esses métodos dependem muito mais da concepção de linguagem que as
pessoas têm: professor e aluno, quem ensina e quem aprende.” (p. 41). Para o autor, a
importância da linguagem na alfabetização é fundamental, ao ponto de tudo girar em
torno dela; “por isso, dependendo da maneira como uma pessoa interpreta o que a
linguagem é, como funciona, que usos tem, pode-se ter um determinado
comportamento pedagógico e métodos diferentes na prática escolar. Inversamente,
pode-se ver com clareza na prática em sala de aula, nos métodos que a escola usa, qual
é a concepção de linguagem subjacente.” (p. 41)
Cagliari esclarece que uma prática escolar baseada no método de ensino volta-
se para o processo de ensino: o professor toma a criança como “marco zero” em
aprendizado e faz sua programação de ensino de modo que todos possam perceber que
o professor “começou de modo igual com todos os alunos”, isto é, que deu chances
iguais para todos (1998, p. 42-43). O método da aprendizagem, por sua vez,
caracteriza-se por voltar-se para o processo de aprendizagem e trabalha na perspectiva
de que a criança é um ser racional e, desde que nasce, “vai juntando” conhecimentos
que a acompanham ao entrar na escola (p. 52).
Cagliari, ao explicitar que cada um dos métodos revela concepções distintas de
linguagem, define as seguintes concepções que se apresentam no método baseado no
ensino, e assume, sem dúvida, uma postura de crítica em relação a tais concepções.
Uma delas é a que está presente nas cartilhas: a concepção de que a linguagem é algo
que precisa ser corrigido, uma vez que “toda cartilha (...) baseia-se exclusivamente no
método de ensino. Mesmo atividades que devem ser feitas pelos alunos, devem seguir
um modelo prévio transmitido como ensino (...). O aluno procura sempre responder,
com o que faz, de acordo com as expectativas do autor da cartilha ou do professor ‘que
passa a lição’, e deixa o aluno numa situação de impasse, pois tem que decidir entre o
77
certo e o errado.” (p. 41). Outra concepção diz respeito aos métodos fônicos, cujo
entendimento é o de que uma pessoa pode “falar melhor” na medida em que consegue
monitorar os sons que pronuncia, uma vez que se “considera que uma criança,
aprendendo a reconhecer e analisar os sons da fala, passa a usar o sistema alfabético de
escrita de maneira melhor.” (p. 42). E uma terceira concepção defende que a função
mais importante da linguagem é a comunicação, contrariamente ao que atestam muitos
lingüistas. Segundo o autor, estes estão cada vez mais convencidos de que a
comunicação não é a função mais importante e nem a mais usada; serve, muitas vezes,
para a reversão e a manipulação de idéias, embora Cagliari não negue que a
comunicação exerça uma importante função na linguagem.
No tocante ao método da aprendizagem, o fonólogo afirma que a concepção
de linguagem presente em práticas de alfabetização baseadas nesse método é aquela
que a concebe como sendo expressão do pensamento; o falante a usa de maneira
intencional para interagir com os outros. Assim a comunicação é apenas um aspecto
desse processo.” (1998, p. 52, grifos nossos).
Apesar de essa concepção de linguagem estar entre aquelas criticadas por
Geraldi (1985), apresentadas neste capítulo, é possível dizer que a interpretação de
Cagliari sobre as concepções presentes nas práticas de sala de aula em alfabetização
representa uma visão distanciada de um modelo artificial e irreal de linguagem. É,
portanto, mais próxima da concepção de linguagem que assumimos neste trabalho, a
qual, embora dispense a denominação ‘letramento’, tem, na sua base, a mesma
concepção de linguagem presente neste.
Ao lado da crítica de Geraldi (1985), em que o autor demonstra o
reducionismo da linguagem quando esta é concebida como “expressão do
pensamento”, podemos acrescentar outra crítica em relação à mesma concepção:
quando se afirma que a linguagem é a expressão do pensamento, incorre-se num
equívoco, pois, muitas vezes, no momento de realização da linguagem, é justamente o
inverso do que se expressa o que se quer dizer – o caso da ironia, por exemplo.
Revela-se, desse modo, que a compreensão dos contextos envolvidos no momento da
enunciação, ou do que envolve o enunciado, é conhecimento preponderante para atuar
78
com o ensino da língua materna e rever as concepções de linguagem que, apesar de
não conscientes e/ou explicitadas, compõem o “pano de fundo” das aulas de
alfabetização.
O contexto a que nos referimos tem um sentido mais amplo do que o que
comumente é entendido pelo termo
25
. Para definir ‘contexto’, neste trabalho, estamos
assumindo a perspectiva de “tema” desenvolvida por Bakhtin/Volochinov (2004).
Segundo os autores,
Um sentido definido e único, uma significação unitária, é uma propriedade que pertence a
cada enunciação como um todo. Vamos chamar o sentido da enunciação completa o seu
tema. O tema deve ser único. Caso contrário, não teríamos nenhuma base para definir a
enunciação. (...) o tema da enunciação é determinado não pelas formas lingüísticas que
entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as
entoações), mas igualmente pelos elementos não verbais da situação. (...) O tema é um
sistema de signos dinâmico e complexo, que procura adaptar-se adequadamente às condições
de um dado momento da evolução. O tema é uma reação da consciência em devir ao ser em
devir. A significação é um aparato técnico para a realização do tema.
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 128-129, grifos do autor).
Se dirigirmos esses conhecimentos para o ensino da língua materna em
alfabetização, torna-se fundamental o papel do professor para direcionar a atenção da
criança também para os elementos constitutivos da linguagem que não lhe são
imediatamente perceptíveis, mas que vão lhe auxiliar no processo de compreensão do
funcionamento da linguagem e da apropriação da língua escrita, especialmente porque
compõem o contexto em que ocorrem.
Na mesma perspectiva em que destacamos os autores anteriormente
mencionados, referenciamos outro trabalho desenvolvido por rio Possenti, quando
este escreve Por que (não) ensinar gramática na escola (1996). A referência em
relação ao autor é aqui retomada na medida em que parte desse livro aborda alguns
princípios indispensáveis para que o ensino da língua materna seja bem-sucedido (p.
10). Portanto, trata-se de princípios imprescindíveis para o conhecimento dos
professores de língua portuguesa, e para os professores alfabetizadores também.
25
Especificamente sobre o tema, na perspectiva bakhtiniana, em alfabetização, pode-se ler o artigo
“Alfabetização e letramento: para além da análise dos elementos textuais”, de Castro e Brotto (2006).
As referências completas estão ao final desta tese.
79
Para melhor esclarecer a razão da retomada, essa obra de Possenti é a reunião,
em um único livro, de dois artigos publicados e desenvolvidos várias vezes pelo
autor em palestras e seminários. O autor, apesar da ciência de que se trata de “coisas
velhas, óbvias, elementares”, declara: “[sinto-me] à vontade para publicá-las apenas
porque percebo, quando falo sobre esses temas [linguagem, gramática, textos, ensino
de português], que, para muitas pessoas, o que aqui se poderá ler é, ao mesmo tempo,
de alguma forma, novo e, além disso, de interesse.” (1996, p. 11).
Assim, destacamos aqui apenas uma das partes, pois a outra foi abordada
quando da apresentação de seu texto sobre “Gramática e política” constante no livro de
Geraldi (1985). Esclarecemos que ao tratarmos da parte mencionada, não nos
deteremos nos princípios destacados pelo autor, mas nos reportaremos à contribuição
que esses princípios oferecem para a argumentação do que defendemos neste capítulo.
Possenti (1996) chama a atenção, na introdução à primeira parte (em que as
dez teses básicas são apresentadas), para a questão da necessidade de os “saberes
técnicos” serem preteridos em relação ao conhecimento e à reflexão sobre a
linguagem. Diz o autor sobre tais princípios:
Não se trata de aumentar o conhecimento técnico de ninguém a respeito do português. Trata-
se de um conjunto de princípios, um tanto díspares entre si (as tarefas de ensino exigem que
se compatibilizem conhecimentos díspares), destinado mais a provocar reflexão do que a
aumentar o estoque de saberes. Tenho a convicção de que, se o conhecimento técnico de um
campo é fundamental na maior parte das especialidades, talvez o mesmo não valha (pelo
menos da mesma forma) para o professor de língua materna. Mais que o saber técnico, um
conjunto de atitudes derivadas dos saberes acumulados talvez resulte em benefícios maiores
(...). Inclusive porque, a rigor, sem estas atitudes, sequer seria possível um conhecimento de
tipo científico, isto é, um aumento de saber técnico, quando se trata de linguagem. É que este
conhecimento também exige rupturas com princípios que fundamentam o tipo de saber
anteriormente aceito. (POSSENTI, 1996, p. 15).
Não como negar a relevância da consideração que faz Possenti. Sabemos,
no entanto, que é do ofício do professor alfabetizador, dominar alguns conhecimentos
específicos para o ensino da língua que m a ver com o domínio de saberes técnicos.
(os aspectos fonéticos e fonológicos, as relações intrínsecas das letras e palavras, o
domínio dos sinais diacríticos do sistema, os aspectos gramaticais do texto). Mas,
80
também entendemos que estes saberes técnicos o devem suplantar a função
interlocutiva da linguagem, a forma interacional da relação humana.
Acreditamos que é da relação estabelecida entre esses tipos de saberes,
técnicos e científicos da língua (teoria-prática; gramática-linguagem), que resulta a
reflexão necessária sobre a língua. São reflexões que conduzem, cremos, a uma
postura diferenciada frente ao ensino da língua materna.
Assim, não é que o professor não deva ter conhecimentos técnicos, mas
importa é saber como ele se utiliza desse domínio, como ele lida com esse domínio
técnico na sua relação de ensino: abstratamente ou não.
Como bem o diz Possenti, a despeito dos convites que pesquisadores recebem
para falar sobre um programa de ensino de língua que funcione, sobre a ânsia de
professores e/ou equipe pedagógica por propostas práticas dos especialistas que
produzam o efeito esperado, o que ocorre é que,
Em geral, um pesquisador não fornece tais programas. Nem adiantaria fazê-lo. É que, para
que o ensino mude, não basta remendar alguns aspectos. É necessária uma revolução. No
caso específico do ensino do português, nada será resolvido se não mudar a concepção
de língua e de ensino de língua (o que acontece em muitos lugares, embora às vezes
haja discursos novos e uma prática antiga) (POSSENTI, 1996, p. 16, grifos nossos).
Com relação ao que destacamos de Possenti, queremos tecer algumas
considerações. Se a mudança na concepção de língua e do ensino da língua é um
caminho a ser trilhado para que o ensino da língua portuguesa se processe com
qualidade tanto no seu ensino quanto no seu aprendizado, este é um primeiro aspecto.
No entanto, conforme aponta o próprio autor, é necessário que esse novo modo de
conceber a ngua e seu ensino não esteja apenas no discurso; é necessário que o
professor tenha convicção de que o novo caminho é eficaz. E como se faz isso? De
onde vem essa convicção? Mesmo que haja muitas possibilidades de resposta, do
nosso ponto de vista, destacamos apenas dois aspectos que se interpenetram numa
resposta: uma atitude de responsabilidade em relação ao ensino é um deles, que se
realiza tendo alguém no horizonte. Logo, esse Outro é o segundo “aspecto”. O modo
como considero esse Outro não apenas da aprendizagem, mas da relação humana.
81
Especialmente se associarmos a isso o fato de que o que somos vem muito mais
guiado pelo que só o Outro consegue ver em mim.
O professor, no caso, que tem o excedente de visão
26
do aluno, pode perceber
os conhecimentos e as capacidades que o aluno mesmo não pode. É nesse sentido que
pensamos que uma concepção de língua e de ensino da língua pode render um bom
aprendizado, e, do mesmo modo, uma clara concepção de linguagem. Isso porque
essas concepções, uma vez orientadas para o social, para o Outro, constituem uma
visão de homem e de sociedade; contribuem para manter ou buscar superar
determinada ordem social. Pensamos que é para isso que a alfabetização e a
escolarização, num sentido bem amplo, em última análise, têm de existir.
Não pode ser produtivo o desenvolvimento de um trabalho em que não se
acredita, e isso, talvez, seja um forte motivo para o professor estar sempre à procura de
“propostas que funcionem”. Acreditar, porém, exige um esforço contínuo, cada vez
mais profundo, de análise, de auto-avaliação e de avaliação de posturas políticas e de
posicionamentos teórico-metodológicos que pretendam apreender sentidos os mais
próximos possíveis da realidade que a linguagem encerra.
Do mesmo modo, não se pode esquecer o papel da escola frente ao ensino da
linguagem. E falar sobre isso, atualmente, é buscar, entre tantas outras funções que
foram sendo atribuídas à escola, o seu compromisso em ensinar o português padrão, a
variedade socialmente valorizada, ou talvez mais exatamente, como o diz Possenti,
“criar as condições para que ele seja aprendido”, ou seja, tratar “da aquisição de
determinado grau de domínio da escrita e da leitura” (1996, p. 17). Entretanto, assim
como o autor, acreditamos que, “para que um projeto de ensino de língua seja bem
sucedido, uma condição deve necessariamente ser preenchida, e com urgência: que
haja uma concepção clara do que seja uma língua e do que seja uma criança (na
26
Estamos adotando aqui o conceito de exotopia de Bakhtin: a distância que favorece uma melhor
apreensão dos sentidos. O autor, para falar da compreensão da cultura do Outro, diz que: “A grande
causa para a compreensão é a distância do indivíduo que compreende no tempo, no espaço, na
cultura em relação aquilo que ele pretende compreender de forma criadora. Isso porque o próprio
homem não consegue perceber de verdade e assimilar integralmente nem a sua própria imagem
externa, nenhum espelho ou foto o ajudarão; sua autêntica imagem externa pode ser vista e entendida
apenas por outras pessoas, graças à distância espacial e ao fato de serem outras.” (2003, p. 366
grifos do autor)
82
verdade, um ser humano de maneira geral).” (p. 21, grifos do autor). E, prosseguindo
nas suas reflexões, o autor manifesta-se mais adiante, especialmente quando fala sobre
o aprendizado oral da língua:
(...) o trabalho dos adultos e das crianças é contínuo e, às vezes, difícil, principalmente, é
constante. Ou mais fundamental ainda é uma atividade significativa. Esta parece ser a
questão principal e crucial. Qualquer que seja a teoria que adotemos sobre o que seja uma
criança (...) quer sejamos inatistas, interacionistas ou comportamentalistas, com todas as
variações que esses rótulos permitem, de qualquer forma temos que reconhecer que os
adultos não propõem exercícios de linguagem às crianças na vida cotidiana. (POSSENTI,
1996, p. 47).
O autor elenca uma série de exercícios comumente ensinado nas escolas e que
não se ensina a uma criança de dois anos ou mais para que esta aprenda a sua língua.
Ainda que pesem as diferenças entre aprender a falar e aprender a escrever e a ler,
Possenti diz que “tarefas como completar, procurar palavras de certo tipo num texto,
construir uma frase com palavras dispersas, separar sílabas, fazer frases interrogativas,
afirmativas, dar diminutivos, aumentativos, dizer alguma coisa vinte ou cem vezes,
copiar, repetir” (p. 47) etc., a exemplo do que afirmava em seu texto sobre
gramática e política, são tarefas ainda muito presentes nas escolas e não ajudam
ninguém na vida real a aprender uma língua. Propõe, então, uma espécie de lei, a
saber: não se aprende por exercícios, mas por práticas significativas. (...) O domínio
de uma língua, repito, é o resultado de práticas efetivas, significativas,
contextualizadas.” (p. 47, grifos do autor)
Por mais que as afirmativas do autor se pareçam com o “como ensinar”, o
elemento essencial de sua crítica a exercícios sobre a língua materna deixa entrever
claramente sua concepção de língua e a necessidade que sente em explicitá-la, por
vezes, repetidamente. É essa concepção de desenvolvimento de ensino de língua,
segundo práticas efetivas e contextualizadas, que entendemos serem importantes para
a alfabetização. A forma reiterada de o autor defender os princípios nos quais acredita
para que haja, mais que um ensino de língua, a sua aprendizagem, na forma escolar,
escrita, sistematizada, é um ecoar do que já dizia em períodos anteriores.
83
Antes de finalizarmos este capítulo, ressaltamos que poderíamos, aqui, citar
vários outros autores que, em períodos posteriores à década de 1980, estiveram, de
modo muito explícito, defendendo a alfabetização sob nova perspectiva: a perspectiva
social, de contextualização, de esclarecimentos para o professor quanto aos princípios
articuladores da linguagem, sobre a produção de textos, a leitura, enfim, sobre um
novo modo de conceber a linguagem para além de si própria, ou de conceber o ensino
pela metalinguagem. No entanto, não foi nossa pretensão esgotar o rol dos autores que
têm essa preocupação, muito menos esgotar o tema. Apenas elegemos aqueles que, do
nosso ponto de vista, contribuíam para a análise do objeto de pesquisa desta tese.
É necessário destacar que muitos dos questionamentos aqui expressos também
decorreram da forma tradicional de se ensinar a língua. Entretanto, pelo que se pode
verificar ainda hoje, parece ser muito mais importante para alguns autores, editores, e
até mesmo professores, manifestarem em discursos sua adesão a teorias de vanguarda,
ou falar sobre a mais moderna, do que propriamente conhecer e discutir mais
profundamente os elementos que interferem na adoção desta ou daquela teoria.
Conhecimento este, possível a partir do momento em que se tem domínio dos seus
pressupostos e princípios, mas que, entre outros motivos, os cursos de formação
(Pedagogia, por exemplo), que poderiam oferecer um conhecimento mais
aprofundado, deixam de fazê-lo. E isso ocorre não apenas em virtude da reduzida
carga horária para as metodologias de ensino, mas antes pelo próprio entendimento
que se tem de ensino. Poderíamos questionar a preparação ofertada ao futuro professor
alfabetizador, ou mesmo ao professor de português do ensino fundamental,
privilegiada nesses cursos. Esta, a despeito da importância dos conhecimentos
filosóficos, psicológicos, sociológicos, políticos, históricos, didáticos, praticamente
desconhece os pressupostos lingüísticos ou derivados (psicolingüística,
sociolingüística), ou mesmo da própria Língua portuguesa (aqui não como
metodologia de ensino, mas como um fundamento para a formação). Embora o mesmo
se possa dizer em relação aos professores de língua materna vindos do curso de Letras,
ou de Matemática, sobre sua não formação nas áreas dos fundamentos da educação:
Filosofia, Psicologia, História, Política Educacionais etc.
84
Ressaltamos, entretanto, o curso de Pedagogia por ser este o curso que forma e
titula o professor alfabetizador, cujo objeto de ensino é a base da discussão nesta tese
apresentada.
Assim, como dissemos anteriormente, não se trata de mero domínio de
técnicas (ainda que não as neguemos), mas de conhecimento teórico-metodológico
sobre o funcionamento da língua, absolutamente indispensável para a formação do
professor alfabetizador.
Neste capítulo, buscamos dialogar com diferentes autores a partir do tema
comum da linguagem. Elegemos a década de 1980 em diante para situar a discussão
trazida por estudiosos da linguagem, especialmente, a partir dos estudos lingüísticos.
Podemos afirmar que, no conjunto, os estudos dos autores aqui elencados
encaminhavam-se para a necessidade de uma nova abordagem para o ensino da língua
materna, observando-se a natureza social do seu objeto. A importância da oralidade
para o aprendizado da língua escrita, a noção de texto, o ensino da gramática a partir
do texto, a interação verbal, o contexto enunciativo, a enunciação, a variedade dialetal,
foram alguns dos aspectos relacionados ao tema que começavam a ser estudados, no
Brasil, sob novo prisma. Percebia-se que havia pelos ares uma “intuição”
sociointerativa no tratamento da linguagem que se aproximava, de algum modo, dos
estudos bakhtinianos. Especialmente, uma concepção de linguagem que previa a
interlocução como princípio de funcionamento da língua e de ensino da língua. Assim,
procuramos mostrar, por meio da produção acadêmica dos autores referidos, que o
ensino em língua materna poderia melhor atingir seus objetivos os de
conhecimento/domínio para a atuação social caso se analisasse e se revisse a
concepção de linguagem que embasava (e embasa) esse ensino.
Nossa opção pelo período destacado para situar as discussões presentes neste
capítulo não foi aleatória, antes, relacionou-se ao tema analisado no primeiro capítulo,
o letramento, cuja discussão em torno da necessidade de se alfabetizar para além da
decodificação-codificação das letras, para a atuação nas práticas sociais, fazia
proliferar o discurso do letramento, em forma de estudos e pesquisas. Esses estudos
85
ganharam força na década de 1990 e, ainda hoje, são tema recorrente no meio
educacional.
Conforme expusemos no primeiro capítulo, tínhamos o pressuposto de que o
objeto do letramento era também o objeto da alfabetização, pois não concebíamos (e
não concebemos) o ensino e o aprendizado da leitura e da escrita dissociados das
práticas sociais. Nesse sentido, a análise realizada neste capítulo concorreu em favor
do nosso pressuposto, reforçando a idéia de que o discurso do letramento e o
letramento em si pretendem assumir o mesmo compromisso que a alfabetização já tem
em termos da necessidade de domínio da leitura e da escrita para a atuação dos
sujeitos.
Se discrepâncias, contudo, para o que entendemos estar contemplado no
processo de alfabetização como tal, então temos de buscar outros caminhos para
compreender o que ocorre. É nessa direção que, no próximo capítulo, traremos as
discussões apresentadas, dialogando com as concepções dos professores
alfabetizadores seu saber e seu fazer no sentido de compreendermos sua
constituição profissional: os seus diálogos, as vozes que se fazem presentes nas suas
enunciações sobre linguagem, ensino da língua e alfabetização.
Vamos buscar esses diálogos pautados no fato de que a existência humana es
marcada por encontros com os Outros, sem significar necessariamente encontros
serenos, sem conflitos. Ao contrário, apesar de toda orientação dialógica ser um
fenômeno próprio a todo discurso vivo, em todos os seus caminhos até o objeto, em
todas as direções, o discurso encontra-se com o discurso de outrem e é interação viva e
tensa (BAKHTIN, 1988, p. 88). É esse entendimento de Bakhtin, de como se
relacionam os discursos que se encontram, ao analisar a teoria do romance, que nos
direciona para conhecer e compreender as concepções dos professores alfabetizadores
e que pode nos encaminhar para outra visão do problema posto em relação à
alfabetização escolar.
86
3. AS VOZES PERMITIDAS, NÃO PERMITIDAS, PRESENTES E AUSENTES
NAS CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM DOS PROFESSORES
ALFABETIZADORES – O OUTRO-ALUNO
“Não vemos qualquer necessidade de
dizer especialmente que o enfoque
polifônico nada tem em comum com o
relativismo (e igualmente com o
dogmatismo). Devemos dizer que o
relativismo e o dogmatismo excluem
igualmente qualquer discussão, todo
diálogo autêntico, tornando-o
desnecessário (o relativismo) ou
impossível (o dogmatismo).”
M. BAKHTIN (1981, p. 56)
O conhecimento e a compreensão das concepções que os professores têm
sobre linguagem, escola e ensino de língua podem conduzir a uma reflexão
sistematizada em torno do processo de alfabetização e dos pressupostos do letramento.
Esse conhecimento, de algum modo, registra-se nas enunciações dos professores, uma
vez que estas trazem as marcas imediatamente apreensíveis, ou não, das vozes que os
constituem, que os compõem como professores. Assim, com o propósito de
desenvolver uma reflexão sobre o encaminhamento dado ao ensino da língua escrita na
escola, segundo as concepções dos professores, realizamos uma análise minuciosa dos
registros compilados nos diferentes momentos em que estivemos com os sujeitos desta
pesquisa, professores alfabetizadores da rede pública municipal de Cascavel e de Santa
Helena (PR).
As enunciações registradas nos questionários e nos debates gravados durante o
curso que ministramos sobre “Alfabetização e letramento na série inicial do ensino
fundamental” permitiram a captação das vozes presentes nas falas dos professores
alfabetizadores, as quais foram aqui organizadas e analisadas segundo categorias de
análise bakhtinianas: o dialogismo, a alteridade, a plurivocalidade e o tema.
Entendemos que a análise das enunciações dos professores por essas
categorias direciona a compreensão do estado do conhecimento em alfabetização na
87
medida em que permite, em consonância com uma ética metodológica, desvendar as
vozes que aparecem no discurso do professor. Mais especificamente, tal análise
permite conhecer as vozes que são negadas e por que são negadas, e, especialmente,
contextualizar aquelas vozes que se destacam, implícitas ou não, como condutoras do
seu processo de ensino. Por nossa filiação teórico-metodológica, vemos a possibilidade
de compreender os posicionamentos dos professores acerca do ensino da língua, do
seu papel como alfabetizador e do sentido que os Outros (alunos, professores, temas,
instrumentos) assumem no seu fazer. Tais posicionamentos, ao lado das crenças e
incertezas, são capazes de inibir a adoção de certas práticas (no sentido de teoria
mesmo), estimular a adoção de outras e promover a recusa de outras ainda.
Ressaltamos que compreensão tem aqui o sentido atribuído por Bakhtin. Para
o autor, a compreensão se efetiva se considerarmos o Outro nas suas posições, na
sua cultura. Isso é possível porque, do nosso lugar (e não empaticamente), temos um
excedente de visão desse Outro. Essa exotopia, conforme visto, permite reconhecer
nele no Outro elementos repetíveis (o que existiu, o que vimos acontecer) e
não-repetíveis (o reconhecimento de algo em outra situação mostra o novo) presentes
nas práticas humanas. Em outras palavras, o que ainda está por se tornar conhecido no
Outro no nosso caso, o professor é a refração que este faz de algo dito ou
visto. “Esses dois momentos (o reconhecimento do repetível e a descoberta do novo)
devem estar fundidos indissoluvelmente no ato vivo da compreensão (....)” (2003, p.
378).
É exatamente nesse sentido que a compreensão, em certa medida, sempre é
dialógica, e, por esse motivo, entendemos que todas as linguagens – inclusive os
códigos descritos a seguir utilizados nas transcrições das enunciações dos professores
não podem ser explicadas, mas compreendidas, pois “na explicação existe apenas
uma consciência, um sujeito; na compreensão, duas consciências, dois sujeitos. Não
pode haver relação dialógica com o objeto [aqui o autor refere-se ao desejo de se
compreender o autor de uma obra], por isso a explicação é desprovida de elementos
dialógicos (além do retórico-formal)”. (p. 316).
88
Na intenção de ser fiel à nossa concepção teórica, ressaltamos que, além de
criarmos um código para a transcrição das falas em vídeo, procuramos compreender e
trazer à compreensão do leitor vários ‘sinais’ que se tornam ‘signos’ na nossa
investigação
27
. Estes são falas complementadas, cortadas ou sobrepostas;
incompreensão de falas; entonações variadas; pausas e silêncios mais longos durante
as enunciações. Tais elementos o representados na transcrição das falas com os
seguintes códigos, os quais também utilizamos nas transcrições do quarto capítulo:
[ abc ] – escrita entre colchetes: para complementar uma fala;
(-0-) – impossível compreender a fala;
sublinhado – voz acentuada ao proferir o termo;
palavra/palavra – interrupção ou idéia/palavra não concluída;
( ) – pausa mais longa entre as palavras/idéias;
(...) – fala suprimida.
Para compreender as posições do Outro-professor quando se trata de
concepções de linguagem, há, entre suas vozes constituintes, uma que se impõe,
inevitavelmente: a do Outro-aluno. Nesse sentido, o presente capítulo aborda as
enunciações dos professores alfabetizadores na relação mantida com esse Outro. Nessa
relação, temas como a oralidade na sala de aula, os métodos de ensino, a organização
da alfabetização em ciclos e do ensino fundamental em nove anos marcaram as vozes
dos professores, que aparecem cindidos neste capítulo apenas didaticamente.
Entretanto, de modo algum estão descolados do todo desta tese e, em especial, do
capítulo seguinte.
27
Segundo Bakhtin/Volochinov O signo é descodificado; o sinal é identificado. O sinal é uma
entidade de conteúdo imutável; ele não pode substituir, nem refletir, nem refratar nada; consitui apenas
um instrumento técnico para designar este ou aquele objeto (preciso e imutável) ou este ou aquele
acontecimento (igualmente preciso e imutável). O sinal não pertence ao mundo da ideologia (...)”
Signo é sempre variável e flexível. “O que importa não é o aspecto da forma lingüística que, em
qualquer caso em que esta é utilizada permanece sempre idêntica [sinal]. Não; para o locutor o que
importa é aquilo que permite que a forma lingüística figure num dado contexto, aquilo que a torna um
signo adequado às condições de uma situação concreta dada.” (2004, p. 92-93)
89
3.1 O OUTRO-ALUNO DO PROFESSOR: UMA ÉTICA ALTERITÁRIA
Dentre as várias possibilidades encontradas pelo professor para cumprir seu
papel na relação de ensino, alguns aspectos chamaram a atenção, seja pela recorrência
com que vimos o tema ser tratado como foi o caso da oralidade no processo de
ensino da língua materna –, seja pelos parâmetros que são buscados para ensiná-la, ou,
ainda, pelo fato de como se distribui na escola, segundo impositivos legais, o
movimento pela escolarização e pelo ensino na série inicial. Os temas estão analisados
a seguir e se evidenciaram quando direcionamos o foco de análise para aqueles que
recebem diretamente a ação e a reação do ato de ensino, o aluno, e para quem é o
responsável por ele na sala de aula, o professor.
3.1.1 As razões para a oralidade em sala de aula
Um dos aspectos que destacamos, a partir da coleta de dados, diz respeito à
oralidade. Esta apareceu nos discursos dos professores ora revestida de sentidos que
remetiam à conversa professor-aluno, ora como espaços para narrar histórias, ora
como certo método no processo de ensino. Devido a essa recorrência, priorizamos a
abordagem sobre o que é a oralidade na concepção dos professores por entendermos
ser este um caminho importante que se faz na direção da compreensão da alfabetização
e do letramento.
A alfabetização, entendida como o momento de apropriação da leitura e da
escrita de modo sistemático e organizado, orienta-se melhor nas salas de aula quando a
oralidade é o meio oportunizado para a troca de experiências, para falar das
expectativas e mostrar modos de ver o mundo. Na concepção de alguns professores, o
espaço cedido para o “contar”, o “‘perguntar”, o interagir oralmente, não obedece a
uma hora determinada. Permite-se que seja no momento em que a criança manifesta-se
em direção a isso, pois esses momentos são entendidos como necessários para a
criança poder desenvolver-se oralmente, relacionar-se, “libertar-se” e aprender melhor.
90
Seja no sentido de vencer a timidez ou como possibilidade de desenvolvimento da
capacidade de raciocínio ou posicionamento frente a algum fato e/ou situação, nesses
momentos, as crianças são encorajadas a buscarem outros modos de ver suas
possibilidades de atuação social.
AN
28
: “Eu privilegio bastante essa questão de expressar-se oralmente na
minha sala de aula, porque eu acredito que a partir do momento que a
criança se liberta, porque nem todas m facilidade pra se expressar
oralmente, e eu acredito muito nisso, que a partir do momento que ela
consegue se expressar oralmente, que ela não se sinta tímida pra falar com o
grupo, pra questionar e tal, pra levantar hipóteses, ela consegue aprender
melhor.”
MG: “(...) Então, engloba tudo, a escola, a família, entendeu, porque eles
vêm, eles contam os problemas, às vezes, estão nervosos, você vai, conversa/
“não, porque aconteceu isso na minha casa”; essa é a realidade dele
entendeu? Então, não é assim a realidade, e através da realidade dele você
tem que focando que não é aquilo, que a vida não é aquela realidade.
Que existem outras realidades, entendeu?”
MG: (...) [diz o aluno] ‘ah, eu não quero saber disso professora, porque o
que que adianta né, eu nunca vou chegar lá, conversar com o prefeito, ou
coisas nesse sentido.’ Eu paro gente, falo assim pra ele: peraí, não é assim,
você tem que se valorizar. Falta muito também você conscientizar ele, que não
é assim (...) É o professor que tem que dar esse esclarecimento pra eles.
Então, eu paro gente, eu paro mesmo. (...). Então é por isso que eu acho que
alfabetizar gente, não éportuguês, matemática, inglês, é, é um pouco o que
nós comentamos.
28
A identificação dos professores foi omitida por motivos éticos. Por isso estão nominados por letras
retiradas aleatoriamente de seus nomes. Quando a referência for a nossa fala como professora
ministrante do curso, as iniciais utilizadas são “EU”.
91
A fala seguinte de MG, além de mostrar a importância de ouvir o Outro para o
desenvolvimento da sua aprendizagem em alfabetização, da sua especificidade,
também mostra os benefícios de tal atitude para a formação humana. Esta mesma
atitude é a que marca a presença do professor de graduação de MG em sua
constituição e fazer docente.
MG: “Não é eu pegar o livro/eu entendo alfabetização assim: um conceito
global gente, claro que você tem que ensinar a ler, escrever, somar,
multiplicar, tudo isso, mas de pegar ‘os ganchos’, porque quando eu fiz
faculdade, tinha um professor que falava muito isso, ‘presta atenção porque o
aluno te passa uma mensagem, dependendo do que ele fala’. Então pára
tudo/agora não é hora, depois nós falamos, não! Agora é hora! Depois o
aluno perdeu o interesse. Eu penso dessa forma.”
A relação entre o poder narrar uma história, uma situação, algo do dia-a-dia
para poder depois ter o que escrever acaba constituindo-se num importante movimento
para a escrita. Está presente a concepção de que, ao se promover as discussões com o
aluno, municiá-lo com diferentes textos, ele terá mais e melhores condições de
produção.
MA: “Hoje eu contei uma fábula na sala, daí, primeiro era dia, era noite, era
floresta, era cidade, fui contextualizando e tal e tal e depois eles reescreveram
e eu não consegui terminar porque as apostilas ficaram cheias, eles
recontando pra mim. Como assim, quando vocaminhos, quando você
objetivos/” IN interrompe e diz: “eles têm bagagem pra ler e escrever”.
Nas respostas aos questionários, não foi diferente. Por elas, foi possível
identificar a predominância da concepção de que os professores são adeptos a essa
mesma estratégia: a oralidade como forma de ensinar a leitura e a escrita. À pergunta
92
sobre quais atividades realizadas os professores percebem haver melhor apreensão do
processo de alfabetização pelo aluno, responderam:
CR: Leituras e discussões nos quais os alunos participam na oralidade,
posterior produção de textos e interpretações.
AN: Ao propiciar o diálogo, a discussão, o saber ouvir as diversas opiniões,
a busca dos significados, cria-se um clima de aprendizado coletivo, onde os
alunos motivam-se e inspiram-se percebendo o desenvolvimento e as
descobertas do outro.”
LU: Oralidade/relaciona o som da sílaba inicial com outra sílaba igual em
lugar diferente mas com som igual, produção escrita espontânea.”
IN:Exploro bem na oralidade, as atividades são realizadas no quadro, para
[que] depois o aluno transcreva para o caderno, nas cantigas, músicas
cantadas dramatizadas.”
SI: Através de relatos de colegas, acredito que as tentativas de escrita dos
alunos são uma ótima atividade para explorar o que ele já sabe.
IE: “Poesia, textos e músicas expostas em cartazes. Revistas e jornais na hora
do recorte e no próprio diálogo com eles.”
Mesmo aquele professor que desenvolve seu trabalho em outras ries
29
dispensa um incentivo para que o professor alfabetizador promova os momentos de
29
É o caso de LI, professor que trabalha com as crianças quando os demais professores, de 2ª série em
diante, estão desenvolvendo sua hora-atividade. Nesse período de tempo que os professores regentes
destinam à preparação de aulas e/ou estudos e/ou atividades, outro professor assume suas salas de
aula, ministrando disciplinas de Artes, Educação Física e Espanhol.
93
interlocução com seus alunos, dada a riqueza da possibilidade de desenvolver na
oralidade os elementos para a escrita textual.
LI: “Ivete, aqui ó, tem uma/tem um momento, bom pelo menos eu não
aproveito, tem um momento rico que nós deveríamos aproveitar, eu não sei as
colegas. É aquela hora que você estimula, puxa um assunto e todos eles
querem falar. Eles levantam a mão pra contar uma história, isso aconteceu
comigo. Quando um conta, o outro/aconteceu alguma coisa semelhante, ele
quer contar também, né, então, se nós aproveitássemos esse momento e
pedíssemos pra que eles relatassem por escrito seria um ótimo exercício.
Bom, pelo menos eu fiz muito pouco. Podia explorar melhor, né? (...) Porque
é um momento rico na oralidade, porque eles querem contar e você quer, você
quer interromper é, pra continuar tua aula, aí, eles “não professor deixa eu
contar, deixa eu contar.”
O trecho final da transcrição da fala de LI porque eles querem contar e
você quer, você quer interromper é, pra continuar tua aularevela que a prática de
oralidade ocorrida em sala de aula, o “poder falar” da criança, não coincide, ou não é
comumente entendido pelo professor, como um momento fértil para promover a
produção escrita do aluno, ou promover aquilo a que AN se referiu anteriormente em
relação ao diálogo: um ambiente propiciador da aprendizagem coletiva e individual
também, não vidas. Talvez esteja a ilustração do que Massini-Cagliari,
referenciada em capítulo precedente, diz a respeito da função da escola no ensino da
língua: mostrar as diferenças entre o texto falado e a escrita. Podemos dizer que o
modo de conceber a escrita vai se configurando como algo à parte da manifestação
oral; a desconsideração de que a escrita é apenas uma forma diferente, distinta, da
linguagem oral.
Diríamos que essa concepção fica perceptível também como LI se expressa,
algo que vem sendo tema de pesquisas algum tempo: o ‘tempo’ escolar. Esse é
outro aspecto. Como o professor pode dar conta do que tem para ensinar se há um
94
programa escolar a cumprir, se um plano de aula a seguir, ou se ele mesmo, ao
preparar sua aula, distribuiu-o (esse plano) no tempo de aula de modo que não possa
haver atraso no desenvolvimento dos conteúdos? Como ensinar a criança a ler e a
escrever se não se consegue cumprir aquele programa pré-determinado? Essas são
questões que parecem estar na base do que LI afirma.
Sem dúvida, expressa-se, na fala de LI, uma condição que é a da maioria das
escolas: o tempo escolar. Um tempo que, como ‘tempo do ensinar’ e como ‘tempo do
aprender’, é organizado muito mais em favor de uma divisão temporal quantitativa do
que de desenvolvimento cognitivo. Embora, muitas vezes, haja o desejo de deixar a
criança manifestar-se livremente, para aproveitar o que ela diz para o ensino, refuta a
própria linguagem acontecendo. É um ensinar somente sobre a língua e não a língua
por meio da linguagem concreta, na materialidade de sua ocorrência. A necessidade de
cumprir o que a escola estabelece prepondera, e, se isso se revela, por um lado, como
uma imposição, por outro, pode significar o “respaldo” se porventura algo não der
certo na alfabetização da criança; o professor fez o que tinha de fazer, cumpriu o que
estava determinado.
De algum modo, é a certeza presente e cristalizada de que o “jeito” que a
escola determina que deva ser ensinado, ou o modo como se ensinou um dia, seja o
ainda utilizado por outros colegas e certo, é o que vai conseguir atingir o fim
esperado: o aprendizado do aluno. E, por não ser isso uma verdade absoluta, em
muitas situações, desenvolve nos próprios professores um sentimento de angústia ou
frustração em relação a si mesmo, ou em relação ao seu ensino (e isso teremos
oportunidade de discutir, dialogando com outras enunciações, ao longo do capítulo).
Ou então, a responsabilidade passa a ser do aluno, ou do método, ou da família do
aluno, enfim, de haver um culpado que justifique a não-alfabetização da criança na
escola.
Ressaltamos, no entanto, que a adesão ou não aos “ritos” escolares seus
horários, seus tempos –, ou o modo como se adere a eles, implica também na
consideração da concepção de linguagem que interfere na maneira como se ensina a
língua materna. E essa concepção não é discutida na própria escola, entre os
95
professores, o que, a nosso ver, poderia resultar em novos encaminhamentos para as
práticas de oralidade nas salas de aula.
Com relação ainda à fala de NA a criança se liberta” –, evidencia-se, em
seu processo dialógico, o conhecimento dos pressupostos teóricos da pedagogia de
Paulo Freire. Embora este educador tenha se dedicado à alfabetização do adulto, para
muito além do aprender a ler e escrever, a professora reelabora seus pressupostos para
o seu trabalho docente com as crianças. É o que se confirma posteriormente, quando
concorda com a colega de curso sobre a necessidade de ouvir o que o aluno tem a
dizer, no momento em que solicita à professora sua participação:
AN: “Eu concordo com você [com MG]. Eu, assim, eu penso como você, eu
acho que nós, professores, lembrando Paulo Freire também, [temos um papel
que] é o de libertação, e eu acho que a partir da oralidade, a partir do
diálogo, a partir do saber ouvir, do saber discutir, a gente tem grande chance
de estar propiciando a libertação desse indivíduo.”
Na enunciação de RO, a seguir, temos outro exemplo de distinção entre a
oralidade como diálogo, um dos elementos propulsores da aprendizagem da leitura e
escrita, e a oralidade como a narração de algo, vista como um momento à parte,
importante, mas descolado do processo de ensino da língua. É possível afirmar que a
“permissão para falar” configura-se em um elemento que contribui para o
desenvolvimento da aula:
RO: “Professora, uma vez eu fiz um curso de português e matemática e a
professora de matemática falou que se nós não/cinco minutos, se nós não
cap/pegar cinco minutos da primeira aula, os cinco primeiros minutos, o resto
da aula a gente não trabalha; se você não trabalhar a oralidade nos
primeiros cinco minutos, depois acabou. Se você trabalhar os primeiros cinco
minutos você trabalha a aula todinha; se você não trabalhar...
96
Trata-se, portanto, de situações diferentes envolvendo a oralidade. Apesar de
nenhuma delas negar ao Outro a possibilidade de poder falar, a consideração de RO
paira mais sobre sua tarefa de ensinar os conteúdos escolares do que propriamente
sobre o aproveitamento dos temas da oralidade para impulsionar o aprendizado do
aluno. Vemos estampada aqui a compreensão que tem Cagliari (1998) sobre métodos,
já exposta anteriormente: “oralidade” centrada no método de ensino.
Esse autor defende, como vimos, a existência de apenas dois métodos de
alfabetização: um método voltado para o ensino e um método voltado para a
aprendizagem. Cada qual revela a concepção de linguagem assumida. O fato de o dizer
de RO enunciar uma concepção elaborada a partir do método do ensino, a oralidade
fica no campo comportamento disciplinar: dar um tempo para o aluno falar para que
depois ele fique quieto para ouvir. Se, por um lado, essa estratégia pode ser rica, pois
indica que a “oralidade” é compreendida pela professora como aspecto fundamental
na/da aprendizagem da leitura e da escrita que, na nossa compreensão, traduz-se em
um grande avanço teórico-metodológico –, por outro, transparece a indefinição quanto
à importância da linguagem nessa modalidade (a oral) no processo de interação na
relação de ensino.
Entretanto, toda essa argumentação mostra-nos que a concepção de oralidade
explícita na fala da professora é permeada pelo Outro que lhe ministrou o curso. Para
RO, prevaleceu, fez mais sentido a orientação recebida naquela relação dialógica. É
uma posição assumida claramente, porém refratada do Outro.
Em uma interpretação do trabalho de Ponzio (1998), trazendo-o para dialogar
com o nosso objeto de pesquisa, podemos dizer que a oralidade desenvolvida num
processo dialógico tal como definido por Bakhtin tem mais chances de se efetivar
em aprendizado porque “el dialogo no es un compromisso entre el yo, que ya existe
como tal, y el outro; al contrario, el dialogo es el compromisso que da lugar ao yo: el
yo es un compromisso dialógico, en sentido substancial y no formal y, como tal, el yo
es desde sus origenes algo híbrido, un cruce, un bastardo.” (p. 26-27)
Assim, quando falamos em aproveitamento da oralidade, estamos nos
referindo tanto à oportunidade colocada com a própria situação de interlocução para
97
fundamentar o ensino da língua, como à oportunidade que o aluno nos de conhecer
e interagir com aquilo que o constitui como conhecedor de determinada língua, seus
conhecimentos prévios sobre língua.
Nesse sentido, por vezes, vamos encontrar na constituição do conhecimento
desta criança alguns Outros que vão, na ótica do aluno, ser considerados como os seus
‘mestres’ no ensino da língua escrita, sem, no entanto, ser o seu professor da escola.
3.1.2 A negação do Outro no processo de ensino em alfabetização
Paralelamente à percepção dos professores de que a oralidade, ou a oralidade
associada a outra atividade, é um elemento eficaz no processo de alfabetização,
reconhecemos, no diálogo estabelecido durante o curso, a presença de outro
personagem que concorre com o professor no seu processo de ensino e lhe causa um
certo incômodo. É a figura da mãe, ou do pai, que, à revelia de todo esforço do
professor em cumprir da melhor forma seu papel no ensino da língua materna,
apresenta-se ao seu lado e, para a criança, é este familiar o responsável pelo seu
aprendizado. O professor reconhece isso na fala da criança e se cala, embora não sem
uma ponta de “indignação”.
MA: “E aquele que vai sozinho [aquele que aprende sem precisar de muita
ajuda do professor] geralmente fala assim “foi minha mãe que me ensinou”.
Dá uma raiva!” (risos).
Outra professora concorda com MA e imediatamente diz:
NI: “Um aluno falou [para ela]: foi a minha mãe que me ensinou ontem.”
Esses discursos eclodiram em meio a comentários que tínhamos ouvido durante
a aplicação do piloto de nosso questionário, parte da pesquisa empírica que realizamos,
em que uma das professoras entrevistadas assim se referiu ao aprendizado, de modo
geral, dos alunos em alfabetização: aquela criança que vai, vai. Agora aquela que
98
não vai, não tem jeito”. A forma de se referir às crianças que aprendiam com
facilidade e àquelas que apresentavam certa dificuldade na apropriação da língua
escrita gerou muita discussão entre os professores no curso, pois havia que se
concordar que outro alguém era percebido pelo aluno como ‘aquele que lhe ensinou’.
O professor percebia que, para o aluno, ele não era o principal responsável por aquilo
que aprendia, ou, se era, o aprendiz não o reconhecia ali, na escola, e nem manifestava
ao professor na sala de aula.
O modo de as professoras relatarem o ocorrido chamava a atenção porque
pareciam querer manifestar que aquilo que existia de bom, de positivo no aprendizado
da língua ficava por conta dos pais. Entretanto, quando não conseguiam aprender e
isso se tornava público (haja vista os programas de medição qualitativa), a parte ruim,
portanto, ficava para a escola (esses comentários eram realizados em momentos
informais, nos intervalos).
De fato, acreditamos que, se fizermos um levantamento das pesquisas que
mostram histórias de sucesso escolar, certamente seu mero será bem menor em
relação às que mostram o fracasso escolar. E, se abordarmos o sucesso na
alfabetização das classes populares, vamos ver, como nos mostram as pesquisas de
Lahire (2004), que outros familiares e outros elementos que se fazem presentes
nessas histórias de sucesso, para além, ou apesar da escola.
Nessa mesma direção, pensamos que uma rápida pesquisa nos programas
governamentais de avaliação escolar mostra sempre o ensino, a educação, pelo que lhe
falta, pelas ausências. Embora nossas pressuposições careçam de pesquisa para serem
confirmadas ou refutadas, não podemos deixar de mencionar, e de certa maneira
compreender, o que sentem os professores de nossa pesquisa em relação à
responsabilidade que querem ver reconhecida pelo aprendizado da criança.
Entretanto, o discurso de outro professor dava conta de que, se por um lado os
pais realmente ensinavam a seus filhos as primeiras letras, nem sempre o método
utilizado condizia com o da escola. E, para alguns, isso era motivo de preocupação.
99
LI: “A minha vizinha, a minha vizinha ensinava o menino assim. Antes de
entrar na escola. Ela pegava ele, colocava ele, ficava lá a tarde inteira
ensinando pra ele: ‘bê’, ‘a’ , ba’, ‘ele’, ‘a’ ,’ la’, ‘bala’. o menino foi pra
escola, ali no Vianey [referindo-se a uma escola do município], e reproduzia.
ela falava assim, meu Deus, fui ensinar isso pro meu filho, não é assim, é
diferente.”
Segundo o que expôs LI, ocorre, no discurso familiar representado pela mãe, a
valorização do modo de ensinar legitimado pelo modelo institucional escolar em
detrimento do modelo familiar. Um modelo familiar que se pauta pela forte presença
do como se foi alfabetizado. Entretanto, professores que mostram, em suas falas, a
prevalência positiva do ensino recebido em casa em detrimento do escolar, inclusive
questionando-se sobre o que lhes faltaria.
CA: “(...) outra coisa que eu queria comentar é assim, eu tenho uma aluna
pequena lá, série, e ela e escreve divinamente (...) e eu falei assim Ka,
quem te ensinou?’ ela falou assim: ‘foi meu pai’, e o pai dela só estudou até a
ou 7ª rie e ensinou a ler, e daí eu fiquei com aquilo, pensando assim, mas
como que eu estudei tanto e tem horas que eu não consigo ensinar. Eu
ensino, ensino, ensino e não aprende, né? E ela [Ka] escreve letra cursiva, o
caderno maravilhoso. Então, o que que falta exatamente, que uma pessoa que
não estudou tanto quanto eu, não leu tanto quanto eu, consegue ensinar a
criança ler e escrever, e eu ( ).”
Paradoxalmente, essa mesma professora ao responder à pergunta formulada
em questionário, sobre o fato de encontrar ou não dificuldade na especificidade do seu
processo de ensinar em alfabetização, se houvesse qual seria e a que atribuiria, assim
se referiu:
100
CA: “Maior dificuldade é que os pais não participam da vida escolar dos seus
filhos. Penso que essa falta de interesse se pela correria do dia a dia e
também pela mudança de método, os pais ficaram perdidos e o sabem mais
como ensinar seus filhos.”
Assim, ainda que “perdidos”, pais que se utilizam de métodos que não
propriamente os da escola e alfabetizam seus filhos. Mas, como conseguem tal feito?
Uma resposta possível diz respeito ao sentido com que um e outro produzem o seu
ensino e o seu aprendizado. Não se pode compreender o que não faz sentido, o que não
tem uma razão palpável aqui, do ponto de vista do aprendiz para existir. Talvez os
pais, pela dedicação especial, única, com que ensinam os filhos e pela crença de que o
filho vai aprender porque eles aprenderam, motivem seus filhos para que vejam
sentido naquilo que ensinam. Os pais, assim como os professores, também são
referência para o aprendizado; são adultos que, em sua maioria, têm uma relação
estreita com a escrita aos olhos da criança. Com a diferença de que aqueles, pelo
convívio doméstico, podem estar muito mais próximos dos filhos e os compreender
melhor do que os professores embora o contrário também valha: há pais tão ausentes
na educação, escolar ou não, de seus filhos que a referência positiva do aprendizado
volta-se toda para o professor, para a escola.
Assim, podemos dizer que, apesar de (ou quem sabe, justamente pelo fato de)
os pais não conhecerem a teoria defendida pela escola ou não se utilizarem do mesmo
modo de ensinar utilizado pelo professor – por exemplo, ensinar seu filho pelo método
silábico, como fez aquela mãe referida por LI –, o sentido que isso assume para a
criança, na interação com os pais, é o que se põe como o diferencial na relação de
ensino. Primeiro, a relação de ensino do pai para com o filho é individual e o
coletiva, diferente do que ocorre na grande maioria das escolas brasileiras portanto,
pode melhor atendê-lo. Segundo, e talvez mais importante, o modo de o pai ensinar
não tem o peso de uma instituição: ele não tem o compromisso social de ensinar o
filho a ler e a escrever; está desobrigado de qualquer tipo de cobrança, do
cumprimento de conteúdos, de horários, de avaliações; não tem de adotar esta ou
101
aquela teoria ou determinado pacote educacional que vem, muitas vezes, imposto
pelos órgãos governamentais. Enfim, o tem de responder institucional e socialmente
por uma função que não é sua. E, ainda que ensine seu filho a ler e a escrever do
mesmo modo como aprendeu, seja qual for o método utilizado, está ensinando a língua
que ambos usam numa relação interacional, segundo o seu grupo de relações, com as
valorações lingüísticas dessa comunidade, o que pode resultar em um efeito diferente
do ensino institucional.
No entanto, temos de ressaltar um outro tipo de relação escolar também
possível: quando é apenas o modo de ensinar da escola, o do professor, que prevalece
para o aluno, aparece uma outra face da relação de ensino. Nessa situação, não importa
qual seja o método de que o professor se utilize para ensinar a língua escrita, é sempre
o que o professor disser, ensinar, que vai prevalecer. Isso pode justificar aquele outro
aspecto que, muitas vezes, os pais, ao terem seu conhecimento sobre determinado tema
confrontado com o conhecimento ensinado pelo professor (o que é comum acontecer
quando os pais auxiliam seus filhos nas tarefas escolares), ainda que o professor possa
ter se equivocado, é o saber do professor que a criança normalmente defende.
Em relação a esse fato a preponderância do saber do professor, da escola,
numa análise mais ampla , a valorização do trabalho do professor e do seu
conhecimento, este reconhecido pela criança e comparado, ainda que
inconscientemente, ao conhecimento de outros adultos nas suas relações extra-
escolares, também passa pelas manifestações sociais veiculadas em sociedade e
reelaboradas por estes e/ou sua família. Nesta subseção, importa-nos destacar o
primeiro aspecto, o da valorização do saber dos pais.
É nesse mesmo sentido, o da interação com os pais e sua forma de se
relacionarem com o ensino da língua, que vimos outros professores colocarem parte da
responsabilidade da sua dificuldade de ensinar na falta de colaboração dos pais:
AL: “Sim. O descaso dos pais e de alguns alunos; falta de vontade e de
atenção das crianças o tempo integral que os deixa muito cansadas e longe
102
da família. Atribuo em partes à família e em outra, ao próprio sistema de
ensino.”
NH: “Sim, descaso da família, desinteresse do aluno, problemas emocionais e
de saúde professor e aluno. Ausência de cursos bons e freqüentes para área
em questão.”
Se é importante pensar no papel desempenhado pelos pais no aprendizado
escolar de seus filhos, a consideração merece ser contemplada com a complexidade
que lhe é pertinente. Nas falas imediatamente anteriores, percebemos que existe a
preocupação dos professores em colocar, ao lado de suas queixas em relação aos pais,
outros elementos que contribuem para as dificuldades encontradas: de cunho pessoal
o desinteresse, a falta de atenção do aluno, seja devido a problemas emocionais ou de
saúde de professor e aluno e de cunho mais geral – a organização do próprio sistema
educacional, a ausência de bons cursos para o professor e as exigências da vida
cotidiana para os pais. Embora não examinemos cada um desses elementos, pois
fogem do foco de análise desta seção, os aspectos referidos pelos professores mostram
a complexidade do processo de ensino e de aprendizado do aluno para além da
alfabetização, e, em algumas das situações colocadas, mesmo uma concepção de
linguagem e de ensino da língua bem definidos não podem resolver os problemas
existentes na esfera escolar, nem na alfabetização. Cremos que não seja demais afirmar
que a escola e os professores, na necessidade de responderem ao seu papel social,
alteram seus modos de fazer o ensino para corresponder ao que se espera dela. Esse é
outro aspecto que pode ser inferido daquela afirmação de CA para o desinteresse dos
pais: (...) pela mudança de método, os pais ficaram perdidos e não sabem mais como
ensinar seus filhos.” Estamos querendo dizer, com isso, que os professores também
colocam o seu próprio papel em observação na medida em que seus modos de ensinar
têm de ser alterados conforme as concepções de ensino e, conseqüentemente, as
concepções de aprendizagem vão se alterando, vão se produzindo e tomando forma em
outras esferas.
103
De modo geral, podemos dizer que as apropriações que fizemos das
enunciações dos professores, decorrentes de suas palavras “pronunciadas ou
subentendidas”, foram possíveis porque estas expressaram a complexidade das
relações sociais vividas na escola ou fora dela. Complexidade esta comum a todos. As
interferências dos Outros familiares ou instituições e o modo como se dão essas
interferências, ao serem relatadas pelos professores, evidenciou suas certezas e
incertezas, produto do diálogo mantido com a própria experiência de ser professor na
escola, na sua atividade de ensinar a ler e a escrever, e seu grupo de relações mais
amplo.
Podemos dizer, conforme Ponzio, ao interpretar Volochinov e Rossi/Landi,
que nossas inferências a partir do que enunciaram os professores só foi possível
porque, nas palavras ditas, “lo que se sobreentiende son ‘vivencias’, valores,
programas de comportamiento, conocimientos, esteriotipos, etc., que no son nada de
abstracto individual o privado.” (1998, p. 83). Assim, as concepções inferidas dos
diálogos com os professores só puderam ser analisadas por serem materiais, por
estarem no plano das relações sociais. Isso concretude ao tema e o torna passível de
análise.
Essa certeza permeia todo o nosso trabalho de análise, assim como as
inferências sobre o tema “métodos” em alfabetização encaminham-nos para a
abordagem da subseção seguinte.
3.1.3 Os métodos: dos modelos, das incertezas e dos diagnósticos
O tema da discussão em que aparecem as concepções dos professores referentes
aos métodos em alfabetização se a partir do estudo coletivo do texto de Magda
Soares, “Letramento e alfabetização: as muitas facetas” (2004), no qual a autora
trabalha a desinvenção/reinvenção da alfabetização e a invenção do letramento, e foi o
terceiro aspecto que sobressaiu nos diálogos durante o curso.
Um professor, em especial, destacou um excerto do texto em que Soares
aponta para o fato de que “antes tínhamos um método e não tínhamos uma teoria,
104
agora se tem uma teoria e não se tem um método”. Essa foi a compreensão de LI,
concordando com Soares, mas, no dia anterior, quando discutíamos sobre as questões
da oralidade, esse mesmo professor dizia assim, ao observar os posicionamentos dos
colegas sobre as dificuldades do ensino da língua materna:
LI: “(...) eu observando aqui e percebo a angústia de cada um, a intenção
de cada um, essa impotência que a gente sente diante de tanta dificuldade
dentro da sala de aula, e nós, muitas vezes, ficamos de pés e mãos amarrados.
(...) Olha, eu percebo assim, Ivete, que existe muita teoria por aí, que é muito
fácil fazer teoria e direcionar curso: [afirmando] que o aluno é burro, que o
professor é desmotivado e o sabe ensinar e eu vejo isso/pode ser até que
tenha, mas eu não vejo ( ). Porque nós buscamos! Pode ser até que, muitas
vezes, nós não conseguimos assim, atingir o nosso objetivo, então/eu não
estou fugindo da culpa; nós temos nossa parcela? Temos! Mas, eu acho que
essa aqui, essa culpa, eu não consigo aceitar, nós não podemos nos dar. Por
nós, por outros cursos.”
A fala de LI, como discutimos anteriormente, é a explicitação da angústia
dos professores que não conseguem alfabetizar, ensinar o aluno a ler e a escrever do
modo como gostariam ou do modo como entendem que o aluno devesse aprender,
apesar dos esforços empreendidos para tanto. O seu enunciado diz respeito ao modo
como a angústia manifestada pelos seus colegas ali, naquele espaço. Ele não aceita
e argumenta que os demais professores ali presentes o podem também permitir que
lhes seja atribuída culpa pelos fracassos que ocorrem em alfabetização. Especialmente
porque aqueles participantes representam parte do grupo de professores que busca
compreender melhor os processos atuais de ensino, que estuda e está disposto a rever
suas posturas, questionando-as ou reafirmando-as.
Se pode ser visto como uma demonstração de que o professor alfabetizador
não passa ao largo daquilo que se tem constituído como orientador de suas práticas
105
pedagógicas, também pode ser entendido como um “não saber para que lado vai; que
teoria seguir”.
Assim, numa atitude responsiva, o discurso de LI foi uma réplica ao desabafo
de CA, decorrente da leitura do texto que estávamos estudando e do nosso
posicionamento o de que precisávamos, nós professores, ter critérios muito bem
explícitos, definidos, inclusive pela escola e por seus representantes pedagógicos para
nosso ensino.
E, também como demonstração de sua compreensão, CA complementa:
CA: “Professora, e também a pergunta, o que que eu quero alcançar com
essa atividade, com esse caminho que eu estou traçando. Eu ainda vejo assim;
hoje eu tava lendo esse aqui, esse letramento e alfabetização e eu vejo que a
angústia aqui, minha, de Cascavel, é a mesma que está nesse texto. E que teve
países que também perderam-se como nós nos perdemos. A gente não sabe
mais para que lado que vai, como é que vai alfabetizar, são os gêneros
textuais, não vamos mais falar em grafemas, em fonemas, nós vamos falar
em quê? E como é que a criança vai aprender? Nós vamos dando coisas e
elas vão aprendendo sozinhas? Eu quando li isso, eu me senti assim, que a
angústia minha não era só minha, que é muito maior, que outros países
também sentem essa angústia, sentem essa... esse turbilhão que a gente vai
passando e que a gente não sabe onde é que tá? Não se têm critérios, as
crianças, uns aprendem porque vão sozinhos, outros não aprendem e vão
ficando e vão indo e vão sendo empurrados. Então, eu acho assim que,
realmente, precisa critérios: da Secretaria de Educação, da escola, da
professora e perguntar o que que eu quero com isso? Isso vai levar a minha
criança aonde? Eu vou fazer para passar o tempo? Eu também, enquanto
alfabetizadora me angustio com isso tudo, porque cada vez que a gente lê, a
gente tem uma visão, cada vez que a gente trabalha com uma criança (...).”
106
Por um lado, o discurso de CA revela que as angústias dos professores
alfabetizadores são decorrentes das muitas teorias disseminadas por teóricos e
especialistas em educação e prescrevem o que cabe ao professor desenvolver,
evidencia-se a idéia de que seu modus operandi precisa ser alterado, instantaneamente,
porque um novo modo de conceber a alfabetização, a escrita, o ensino e o
aprendizado da ngua, circulando nas mais diversas esferas que impulsionam a
educação. É como se, a partir de um dado momento, fosse necessário parar tudo
porque algo novo foi descoberto. Como se o ser humano estivesse “condenado” a ser
conduzido por teorias, esquecendo-se de que estas decorrem ou, pelo menos, espera-
se que decorram de uma análise complexa, sistemática e rigorosa portanto,
científica dos dados formulados a partir da realidade posta, em que pese a
“caoticidade” dos acontecimentos cotidianos. Ou ainda, talvez ocorresse de os
professores, nesse movimento dialógico, perderem-se por ocasião do resultado da
síntese de sua ação em sala de aula.
No entanto, outra possibilidade é pensar que os professores não estão
perdidos. Eles acabam assumindo o ensino do modo como acreditam, e o ponto de
conflito é que nem sempre esse modo identifica-se com a prescrição.
A incerteza de que caminho seguir, constante na fala de CA, parece sugerir a
necessidade de estabelecer parâmetros para que se possa ensinar aquilo que se espera
que ensine, ou do modo como se quer que ensine. Não se trata de um simples siga o
modelo”, mas o fato de haver um ponto de referência pode representar, a princípio, um
auxílio para o professor que precisa fazer algo e ninguém consegue lhe explicitar
como. É nessa direção que apreendemos o discurso de MG, por exemplo, quando diz
que (naquele momento do curso), os professores da escola onde trabalha estavam
discutindo, na hora atividade, a parte teórica, chamada por ela de burocrática”, que
todo curso de graduação oferece aos acadêmicos. A grande queixa é a falta de
parâmetros para o ensino:
MG: “(...) mas é o que nós estamos discutindo na hora atividade; a faculdade
ela te toda
a parte burocrática, digamos assim,” Alguém diz: “A teórica.”
107
MG continua: “Te joga na sala e tu fala ‘e agora?’” Alguém: “como é que eu
faço?”
MG: “Não tem esse parâmetro de você dizer: Assim; [ou] Não! Vai [por aqui
– apreendido pelo gesto] (...)”
Ou, mesmo quando cursos, como foi o caso da preparação dos professores
para a efetivação da proposta construtivista, na década de 1980:
NI: “(...) eu fiz, um cur/bem no começo da minha caminhada, nós fizemos um
curso, com o (-0-) de de Toledo, uns três dias, com ela mesmo [Emília
Ferreiro], mas olhe, a gente ficou encantado porque a fund/é que a gente
tinha pouca leitura também, e, mas, nossa o embasamento dela é tudo. Foi, o
trabalho é sensacional (...) E daí foi deixado muito por conta. E daí, isso foi,
é/porque assustou a gente, nós tivemos duas semanas de curso, manhã, tarde
e noite (...). Nós não saímos de com uma proposta de atividade. Era teoria,
teoria, teoria sabe, convencimento, e tudo, mostrando, que tinha que partir da
criança, dá, o texto da criança, mas não tinha proposta, ‘vocês o criar
atividade’, ‘vocês vão’, mas imagina...”
O que poderia ser entendido como uma atitude metodológica coerente do
ponto de vista do processo construtivista de ensino, com o professor acompanhando as
hipóteses de construção da língua escrita levantadas pela criança e os conhecimentos
delas decorrentes, acabou por se concretizar em problemas: a resistência do professor e
a vigilância dos setores educacionais interpenetravam-se.
A vigilância em forma de controle acirrado sobre o fazer do professor,
denunciada e rechaçada no início da década de 1980 pelos movimentos produzidos
pelos intelectuais da educação que defendiam novos encaminhamentos para o país e
para a educação, caso tivesse sido minimizada, reapareceria num outro contexto, sob
novas orientações teóricas, no oeste do Paraná, como veremos na fala de NI a seguir.
Antes, porém, é preciso ressaltar o fato de que, embora não possamos analisar
108
separadamente implantação de métodos e políticas educacionais, é notório que alguns
professores, ao aludirem aos diferentes métodos, direcionam as discussões mais para
os aspectos administrativos e políticos dessas implantações do que necessariamente
para o conteúdo e as inseguranças vivenciadas pelos professores ao “conhecerem”
novos métodos. Essa mudança de foco foi recorrente no trabalho desenvolvido com os
professores de nossa pesquisa. Vamos perceber novamente esse aspecto quando
abordarmos as questões relativas ao Ciclo Básico. Por ora, isso parece justificar por
que, apesar de mencionarem os cursos realizados sobre os diferentes métodos, a
compreensão que os professores apresentam sobre eles foca o como foram
implantados e não a essência teórica do método.
NI: “Tudo era proibido, eles iam/vinham pro núcleo/eles não podiam ver um
cartaz na parede, não podia nada (-0-)! que a gente alfabetizou também.
que, como é que eu vou dizer assim, a gente se assustou também, se criou
uma resistência, você se/teve todo aquele problema de passar criança que não
sabia ler, uma lei que eles tinham aprovado. Então tudo juntou, você criou,
assim, uma, quase assim uma desmotivação.”
O fato de, mesmo em condições adversas, “o professor conseguir alfabetizar”
não nega que os professores estavam constituídos de alguma certeza que conduzia o
seu ensino, quem sabe, com o apoio de seus pares, numa espécie de resistência
conjunta, de oposição ao que lhes era indicado “para fazer”.
O “problema de passar criança que não sabia ler” é outra questão que
merecerá, mais adiante, estudo detalhado. No momento, cabe dizer que a professora
estava se referindo ao Ciclo sico
30
que, conforme discutiremos, configurou-se como
outro momento difícil para o exercício da profissão docente ocorrido
30
Entende-se por Ciclo Básico uma proposta curricular formulada de acordo com a Lei de Diretrizes e
Bases (LDB) da Educação (1997), a qual preconizava que caberia aos estados decidirem “pela forma
de promoção dos alunos, com ou sem reprovação” (CAGLIARI, 1998, p. 31). O Estado do Paraná foi
um dos estados que optou pelo sistema de ciclo, sem reprovação entre 1ª e 2ª série do Ensino
Fundamental.
109
concomitantemente à chegada do Construtivismo na alfabetização, segundo os
professores de nossa pesquisa.
Ao buscar compreender as dificuldades e a resistência mencionadas por NI
quanto à nova concepção de ensino e de aprendizado proposta, a experiência de 24
anos de magistério dessa professora revela a presença de outros motivos quando de sua
formação profissional. É o que possibilita uma análise mais demorada da fala de NI:
NI: “Sabe o quê? Porque eu tinha acabado de fazer o magistério, três anos de
magistério, nós aprendemos Erasmo Pilotto de fio a pavio”.
A rememoração de NI reaviva a experiência de outra professora que está
mais de vinte anos no magistério e havia se formado segundo a perspectiva
educacional de Erasmo Pilotto, na qual se ensinava segundo o método conhecido por
“método Erasmo Pilotto” de alfabetização. Assim, transcrevemos e comentamos a fala
da professora:
NO, neste momento diz: “Éééééé! Isso mesmo!” e mais que concordando com
NI, rememora algo de sua formação que sabia e/ou tinha vivido.
Para melhor apreendermos o sentido dessas enunciações, vamos nos deter um
pouco mais na explicitação do método mencionado pelas professoras,
contextualizando-o. Erasmo Pilotto foi um importante intelectual da educação
paranaense que, desde o início do século XX, notabilizou-se por defender um tipo de
educação/ensino, no contexto do Movimento pela Escola Nova
31
no Brasil. Encontrou,
nesse movimento,
31
Trata-se de um movimento cultural liderado por intelectuais brasileiros na década de 1930, cuja
atuação, segundo Vieira, “foi decisiva na configuração do campo educacional brasileiro, a partir de
suas iniciativas na definição de políticas públicas para educação, na organização do sistema nacional
de ensino, na reformulação dos métodos pedagógicos, bem como na orientação da formação de
professores.” (2001, p. 54).
110
(...) uma possibilidade de produzir uma profunda crítica das formas tradicionais de ensino
baseadas no formalismo do método, na capacidade mnemônica do aluno e na passividade do
professor em relação ao conhecimento – e, assim, afirmar a sua concepção educativa baseada
na liberdade, na autodeterminação e no poder da intuição e da vontade. A educação para a
vida, no pensamento de Pilotto, não se resume ao utilitarismo propiciado pela
instrumentalização técnica e científica, pois a vida, categoria-chave na sua filosofia, expressa
uma realidade profunda que nem a ciência e nem a teologia são capazes de apreender.
(VIEIRA, 2001, p. 69).
Entretanto, apesar da orientação teórico-filosófica que historicamente assumiu
o Movimento pela Escola Nova no Paraná, segundo a leitura do intelectual paranaense
Erasmo Pilotto, explicitada por Vieira, a formação dos professores no Oeste do Paraná
parece ter refratado seu pensamento de modo não muito positivo. Durante nossa
carreira docente, em outros momentos de cursos e encontros com professores
alfabetizadores, presenciamos posicionamentos discursivos que davam conta de certa
“aversão” pelo modo como estes foram orientados a desenvolver metodologicamente
sua prática alfabetizadora.
A região Oeste do Paraná, como parte integrante dos propósitos políticos e
econômicos do governo federal, em face do projeto de construção da Hidrelétrica de
Itaipu, na década de 1970, promove um levantamento diagnóstico sócio-econômico-
educacional nos municípios de Cascavel, Toledo e Foz do Iguaçu. O diagnóstico
visava à implantação do Projeto Especial Multinacional de Educação MEC/OEA, com
o objetivo de fortalecer a infra-estrutura educacional da região. Seria necessário
diminuir os impactos e os problemas sociais gerados com as transformações
econômicas e com as construções de grandes obras.
No âmbito estadual, Erasmo Pilotto foi o responsável pelos dados constantes
do documento A educação no Paraná: síntese sobre o ensino elementar e médio
32
,
enviado ao Ministério da Educação e Cultura, ainda em 1954. Em âmbito regional, o
material didático produzido para a alfabetização esteve conforme o método de
alfabetização desenvolvido pelo professor Erasmo Pilotto, que circulava nas escolas
normais. De acordo com aquele diagnóstico, no aspecto educacional, constatou-se que
havia causas internas e externas à escola para o fracasso escolar. Destacaremos apenas
32
As referências completas do documento encontram-se no final desta tese.
111
as internas que justificavam o baixo rendimento escolar: “professores não habilitados e
não treinados para o magistério (54% na área urbana e 80% na área rural) [que]
atuavam nas primeiras séries. A falta de domínio dos conteúdos e a metodologia de
ensino geravam dificuldade de aprendizagem e, conseqüentemente, abandono e
repetência dos alunos (...), o material didático-pedagógico usado nas escolas, além de
caro, era inadequado à realidade sócio-cultural regional.” (EMER, 1991, p. 290-300).
Em decorrência dessa situação, “a escolha do método de alfabetização Erasmo Pilotto
deveu-se especialmente por exigir poucos conhecimentos teóricos de domínio
específico de professores habilitados” (p. 297). E, utilizando-se de números
estatísticos, Emer dá noção do que representou o treinamento dos professores na
região: “A primeira experiência de treinamento (91 professores alfabetizadores)
ocorreu em Toledo, em 1976, com resultados considerados animadores, Em 1978, o
treinamento de professores neste método de alfabetização já tinha atingido 2.421
professores; em 1980, 7.128; em 1981, 5.554; em 1982, 6.778. Em 1980, o método de
alfabetização Erasmo Pilotto foi transformado em cartilha de alfabetização por uma
técnica da CETEPAR, Professora Isolda Peixoto Ruoso.” (p. 297).
Percebemos que, nesse período, as associações em especial, a Associação
dos Municípios do Oeste do Paraná (AMOP) e a central das cooperativas da região
COTRIGUAÇU e alguns cursos superiores de educação (da UNIOESTE, antiga
FECIVEL, autorizada a funcionar em 1972), ao lado da Coordenação de Área do
Projeto Especial, em convênio com a SEED Secretaria de Educação do Estado e o
CETEPAR Centro de Treinamento de Professores do Paraná (que, a partir de 1974,
passa a ofertar treinamento para os professores) –, estiveram envolvidos para
“demover” a educação do Oeste das dificuldades apontadas. Além disso, em 1980,
cria-se a ASSOESTE Associação Educacional do Oeste do Para para
desenvolver e articular ações básicas na promoção educacional em todos os graus e
níveis, produzir e experimentar novo material didático, produzir ou socializar novas
metodologias de ensino e desenvolver recursos humanos para a educação (EMER,
1991, p. 298-299).
112
Essa contextualização permite não apreender melhor as vozes presentes nas
enunciações dos professores, mas também compreender a interlocução mantida com
autores e métodos e procedimentos, que demarcam o limite entre a certeza atestada
pelos professores de que havia um método “infalível” para alfabetizar e a “aversão” ao
“Método Erasmo Pilotto”. Fica perceptível, na fala que segue, a necessidade de
encontrar algo que lhes direcionasse o ensino e promovesse o aprendizado do aluno:
NI: “Aí nós saímos empolgadas que todos iam aprender ler. no primeiro
ano que comecei a dar aula, eu vi que o era nada daquilo. Daí Emília
Ferreiro me convenceu do contrário. Então eu mergulhei de cabeça (...).”
No momento da enunciação de NI, havia uma discussão posta entre os
presentes em torno do preparo/despreparo dos professores que estão assumindo
atualmente as salas de alfabetização, sobretudo, neste momento em que o ensino
fundamental passa por uma nova orientação e reestruturação no seu tempo de duração,
agora de nove anos, além da obrigatoriedade da criança de seis anos estar matriculada
nesse nível de ensino
33
.
Enquanto os professores recém-formados viam-se “desesperados” ao terem de
enfrentar a sala de alfabetização e reclamavam de sua formação, os formados bem
mais tempo também reclamavam e queriam colocar as angústias por que passaram e
passam.
A professora NO, concomitante à fala de NI, diz:
NO: “A diferença professora, elas tão bem mais preparada que nós. Nós
saímos do Erasmo Pilotto, cinco perguntinhas que você não poderia/não
33
Trata-se da Lei Federal nº 11.274, do Ministério da Educação, de 6 de fevereiro de 2006, que institui
o ensino fundamental de nove anos de duração, com a inclusão das crianças de seis anos de idade. De
acordo com essa lei, os municípios de Cascavel e Santa Helena alteraram a oferta de seu ensino em
maio de 2007. Com isso, houve denominação diferenciada para as classes dos alunos de cinco anos de
idade (a completar seis anos em 2007) e seis anos (estes completos), e aqueles que já haviam
completado ou completariam sete anos, conforme idade de corte de cada Secretaria de Educação. Para
os primeiros, a denominação foi de “primeiro ano”, e para os segundos, de “primeira série”.
113
poderia mudar (NI, junto com Norma, dizia: “Nem a ordem!”): o que você
tem na mão? Eu não me lembro mais. As vozes de NO e NI confundem-se,
não dá para ouvir o que uma e outra dizem. Até que NO: “Então, tinha
preparação, era tudo, professora, era maravilhoso’. Você apagava o quadro
assim (gesto com a mão esquerda, de cima para baixo, como se tivesse com
um apagador na mão.). Assim não podia apagar (gesto com o braço da
esquerda para a direita); era totalmente diferente professora (com a caneta em
riste, fazendo-a num movimento, ir/vir para a frente e voltar, várias vezes,
como que chamando a minha atenção).
E eis que, agora no discurso de NO, encontra-se reiterada a reclamação da
falta de autoridade do professor para definir a promoção ou não de série para o aluno.
Se, em alguma medida, a fala de NO denuncia a falta de autonomia do professor em
relação à aprovação ou reprovação de alunos quando da implantação do Ciclo Básico,
em contrapartida, e o que a princípio pode parecer contraditório, a professora reclama
da falta de auxílio em relação às decisões que os professores tinham de tomar no seu
início de carreira, decisões estas que, atualmente, os recém-formados recebem da
equipe pedagógica com que trabalham. Chamamos de aparente a contradição pelo fato
de NO reclamar, em falas anteriores, de “ter que seguir à risca certas orientações
educacionais”, mas, por outro lado, aprazia-lhe a autonomia que lhe era reservada no
momento de promoção ou não do aluno, conforme expressa no mesmo discurso. Esse
dado nos autoriza a fazer uma análise do seguinte modo: o professor deseja, sim,
espera ter alguém para dialogar, discutir, refletir sobre seu fazer e profissão, mas não
ao ponto de que esse Outro lhe imponha, declaradamente, ou legalmente, o que fazer,
muito embora saibamos que o Outro movimenta o nosso fazer. Assim, apesar de
muitos Outros nos constituírem, parece que decidimos’ por quais Outros queremos ou
devemos nos orientar. Vejamos a seguir:
114
NO: “O aluno nosso era (-0-), o professor era autoridade, pra passar aluno,
nós tínhamos que seguir/hoje não, você tem auxílio de, de (NI: “De
orientadora”) NO: “É, de tudo. É diferente professora!”
Durante o diálogo, lembramos a NO que o momento histórico é outro, que as
dificuldades são outras, mas, na expectativa de nos convencer a entender sua posição e
sua fala, NO retoma, interrompendo NI, que ia mencionar algo:
NO interrompe NI, dizendo-lhe: “Só uma coisa” e voltando-se para mim diz:
“Professora, tem uma coisa, professora, eu não falando que não
problema [na educação, na formação de professores], pelo amor de Deus, eu
falo assim do tradicional na época, era tradicional aos extremos. Hoje,
uma liberdade/o que ela acabou de falar (NI)/ (...) ó, s não tinha, foi muito
difícil, pelo amor/não me interpreta mal/”(...) há, problemas, de vinte, de
trinta, de sempre, que o que eu quero explicar é, é esse sair de um Erasmo
Pilotto, que você tinha, você tinha que pegar/não sei se você participou do
Erasmo (para MY), cinco perguntinhas, era a’, ‘b’, ‘c’, d’, ‘e’, não sei, você
não podia pegar o ‘a’, entendeu, eu sou bem ( ), esquecia, o e’, ‘a’
ganhava. Não era assim que você tinha ( )/tinha que fazer certinho! Isso que
eu tava falando, pra nós foi um pouco mais difícil a compreensão (...).”
Durante essa conversa, IE e outros também se colocam junto à nossa posição e
à da própria professora NO:
IE, junto a outras pessoas: “É diferente! [no sentido de que o momento
histórico e diferente]
RO manifesta-se falando de sua experiência como professora alfabetizadora
formada pelos pressupostos metodológicos de Erasmo Pilotto:
115
RO: “(...) sai de uma sala de/oitava série eu tinha. Não tinha nem segundo
grau. Eu cheguei, eles me deram uma sala de primeira série, pra alfabetizar.
E ainda era: ‘o que é que eu tinha na mão? Uma bola. E o que que eu fazia
com isso? (risos de algumas colegas ao lado) E aí eu fazia. Tinha duas
coordenadoras atrás de mim, e daí. Ali eu era avaliada. Hoje, gente, nós
temos [sic] no céu.” muitas outras falas. Destaca-se a de MG, entrecortada
com outras. RO faz movimento de “tremedeira
E MG concorda com RO:
MG: “Nesse sentido sim, (-0-) [em relação à vigilância, à avaliação].
A fala de MG produzia-se no sentido de consentir e de ser solidária ao gesto
ameaçador que sofria RO no início de sua atuação docente. Era uma demonstração de
conhecimento dos momentos constrangedores por que passaram os professores durante
o período de acompanhamento acirrado de seu fazer, do controle vivido, sobretudo,
com a criação dos especialistas da educação: supervisores e orientadores pedagógicos.
Esses discursos, quando NO refere-se à “liberdade” hoje existente, refletidos
na manifestação de outros presentes de que “hoje é diferente”, e mais as falas de RO e
MG, retratam o movimento que parece constituir o fazer dos professores, segundo os
seus enunciados. Trata-se do cerceamento que as pessoas em geral mas, em especial,
os professores sofreram no período em que uma proposta de educação tecnicista se
estabeleceu no Brasil, ainda em um contexto de ditadura militar.
As enunciações dos professores fazem retomar a situação precária do ensino
nas escolas municipais rurais do Oeste do Paraná (o crescimento populacional da
região Oeste ocorreu em maior mero na zona rural, especialmente pela chegada de
nordestinos e mineiros): além de multisseriadas, o nível de escolaridade de seus
professores era o primário e, em muitos casos, incompleto, e havia carência e
inadequação do material didático (EMER, 1991, p. 282).
Visando a vencer esses problemas,
116
(...) a totalidade das prefeituras regionais, junto à Secretaria ou Departamento de Educação,
passaram a manter uma equipe de supervisão que visitava periodicamente as escolas. Essa
equipe, como ocorria a nível [sic] de estado, desempenhava função técnico-pedagógica.
Centralizava o planejamento curricular, o desenvolvimento dos conteúdos e a avaliação. As
provas eram elaboradas, impressas e distribuídas pela equipe de supervisão a todas as escolas
municipais. Como ocorriam reclamações dos pais quanto à qualidade do ensino, as
Inspetorias Regionais, com recursos e professores da Secretaria de Estado da Educação e das
prefeituras, periodicamente promoviam treinamentos, dentro de uma perspectiva tecnicista.
Nesses encontros os professores estudavam os “Currículos”, manuais editados pela Seed, um
volume para cada série do ensino primário, com sugestões e exercícios sobre conteúdos a
serem desenvolvidos na sala de aula. (...) A equipe de supervisão, em suas visitas às
escolas, verificava o desempenho do professor mediante aplicação de diferentes
exercícios aos alunos: leitura, tabuada, ditado, etc. (EMER, 1991, p. 282-283, grifos
nossos).
Percebemos que um dos interlocutores de RO na trama das relações escolares
que vivenciou era a escola tecnicista. Ainda que possamos estar incorrendo num
julgamento apressado (como denunciou Vieira em relação à Escola Nova a não-
consideração dos vários matizes da corrente de pensamento agrupados sob a
denominação de “ideário da Escola Nova”), de modo geral, podemos dizer que a
ideologia presente na escola tecnicista primava por um ensino que visasse à preparação
de brasileiros produtivos e eficientes. O auge da ideologia presente nas orientações
dessa escola deu-se na ambiência política de intervenção militar no Estado, num tempo
em que se exaltava a nacionalidade, o civismo e os ideais de progresso e de ordem.
Não como negar que essas são marcas muito explícitas presentes na
formação dos professores que não se formaram escolarmente, mas se educaram
socialmente a partir da década de 1960. Existia uma espécie de ‘formação militar’ que
constituiu esse professor. As experiências e o modo de agir em suas práticas
pedagógicas nada mais são do que a forma refratária, reelaborada dos momentos dessa
formação.
A esse respeito, um docente do sexo masculino, participante do nosso curso,
revelou em sua enunciação:
LI: “Ivete, nós homens, que servimos ao exército, às forças armadas, eles têm,
eles têm uma prática de ensino dentro, é, é, é, que eles transformam tudo
117
aquilo que você aprendeu até ali, até o momento de você entrar pra dentro.
Eles transformam tudo aquilo: você se torna uma pessoa submissa lá dentro,
a eles, né; você tem que respeitar a questão da hierarquia e da disciplina. E
muitas vezes eu trabalhando e me observando e eu vejo o quanto eu
quero, também, éééé, quanto que eu puxo pela rigidez, para essa hierarquia,
dessa disciplina em sala de aula (...).”
Percebemos em LI que, embora este não explicite “para quê” deseja manter
um clima de “hierarquia”, “disciplina” em sala de aula, fica explícita a sua
preocupação com as suas próprias “marcas” constituidoras como sujeito que não se
apagam quando o papel que assume é o de professor. Talvez, podemos até dizer,
confundindo a autoridade de professor com o autoritarismo. Para nós, a autoridade de
professor se estabelece numa relação de ensino em que convergem três elementos: o
domínio dos conteúdos escolares que ministra, a consideração do aluno como sujeito
ativo responsivo e a consideração dos conhecimentos prévios do aluno trazidos para a
escola. Portanto, difere substancialmente do autoritarismo.
Em contrapartida, se buscarmos os parâmetros teóricos orientadores da prática
docente atual, as enunciações dos professores dão conta de outra perspectiva, porém,
não menos preocupante por parte dos alfabetizadores. Vejamos o que dizem os
professores ao se referirem ao trabalho alfabetizador da atualidade, comparando-o com
o trabalho alfabetizador do século passado: o tradicional
34
:
CA: “(...). Essa é que é a diferença hoje. Nós temos que dar conhecimento ( ).
O texto, nós temos que apresentar o texto para a criança, e trabalhar com ele
as palavras menores e até tirar os fonemas e os grafemas pra que ele possa
aprender as palavras, mas com sentido, não solto.”
34
A referência que fazemos ao tradicional é no sentido do trabalho do professor segundo o método
sintético, analítico e misto, utilizado mais intensamente durante até mais da metade do século passado.
A cartilha de Branca Alves de Lima, Caminho suave, é exemplo da evidência do que dizemos, haja
vista o número de edições publicadas (mais de cem) e a permanência no mercado editorial desde 1948,
conforme estudos de Mortatti (2000).
118
LI: “Viu Ivete, Magda Soares, tem uma parte que ela fala do ensino
tradicional. E ela fala assim que nós temos que ter um cuidado muito grande
quando nós nos referimos ao tradicional com tom pejorativo. Por quê?
Porque aquilo que hoje é o tradicional, no passado ele teve em evidência, ele
teve valor. E que aquilo que hoje está em evidência, amanhã, pode ser o
tradicional do amanhã, né? E nós, dos anos 70 pra cá, por quantos modismos
nós já passamos? Por quantas teorias nós já passamos? Nós temos uma teoria
hoje que é a teoria textual, eu me pergunto, será que vai surgir uma outra
teoria que vai dizer que essa teoria é ultrapassada, né?”
As duas enunciações levam-nos a algumas considerações com relação ao que
implicitamente vemos nelas presente. A fala de CA guarda no seu implícito uma
concepção de ensino que se assemelha ao que nos referimos anteriormente, quando
nos apropriamos dos estudos de Smolka (2001) para falar da relação de ensino
estabelecida nas escolas: a importância de como o professor se vê nesta relação.
O enunciado da professora sobre o fato de que nós temos que dar
conhecimento” revela uma concepção de ensino em que o professor está imbuído
apenas de uma tarefa de ensino que lhe foi instituída, e não como parte – importante, é
claro no processo pedagógico. Como vimos em Smolka, a tarefa de ensino rompe
com a relação de ensino e cria a “ilusão de que o professor pode “dar” o
conhecimento. Nesse sentido, o conhecimento é dele, do professor; um
apoderamento do conhecimento que ele vai “dar”; logo, é unilateral, estático; não é
algo ensinado numa relação de ensino em que prepondera a intenção de que o Outro se
aproprie daquele conhecimento. Tanto mais grave isso se torna quando estamos
tratando de ensino da linguagem.
Ao analisarmos o que CA diz na seqüência, sobre o ensino da alfabetização
pelo texto – o texto, nós temos que apresentar o texto para a criança e trabalhar com
elepodemos dizer que apenas aparentemente a situação retratada difere da situação
de fala do professor anterior. Dizemos aparentemente porque, aqui, a professora parece
119
colocar-se dentro de uma nova perspectiva de ensino de língua, conforme a teoria
textual mencionada por LI.
Entretanto, se podemos dizer que a fala de Possenti não mais se aplica à
situação de ensino da língua atualmente, a de que novos discursos, mas as práticas
continuam as mesmas, uma vez que os professores implementam práticas de ensino da
linguagem por meio do texto, por outro lado, a inovação se limita ao emprego do novo
recurso, o texto. Talvez isso se por falta de uma conceituação mais segura do que
entendem por texto ou mesmo a falta de compreensão da relação existente entre os
elementos lingüísticos textuais e a linguagem em uso, real, interacional. Em outras
palavras, se quisermos adotar o que Faraco e Castro dizem, a lingüística de texto “é
mais uma análise das relações internas referentes a ele (...) do que uma preocupação
conceitual que busque uma generalização sobre a noção de texto, que consiga
transcender os elementos meramente formais e de ligação interna.” (1999, p. 183)
Podemos apontar, também, a partir dessa segunda parte da enunciação de CA,
que se revela ali um tipo de interlocução com uma concepção de ensino da leitura e da
escrita por meio do texto que vem sendo criticada. É a concepção de ensino que, pela
demasiada preocupação em se ensinar a ler e a escrever “pelo texto”, leva alguns
professores a “deduzirem” que o simples colocar o aluno em contato com variados
textos é o bastante para que aprendam as relações intrínsecas, os mecanismos internos
de funcionamento entre letras, sons, famílias silábicas. Inclusive, em relação a este
último termo, referir-se a ele é quase um sacrilégio para um ensino que se pretenda
textual. Sem dúvida, trata-se de um equívoco. A criança também precisa compreender
tais relações, e, para isso, é necessário que lhes sejam ensinadas, que isso pode e
deve se dar por meio de unidades significativas, em contextos significativos, que, no
limite de sua importância, mostram as relações sociais que engendram nos seus
contextos de uso. Novamente se evidencia a necessidade de conceituar mais
claramente o que é texto. E, essa base conceitual, concordamos com Faraco e Castro
(1999, p. 190), é definida e caracterizada pelo conceito de enunciado de Bakhtin. Para
ele,
120
Não se intercambiam orações como [não] se intercambiam palavras (em rigoroso sentido
lingüístico), ou grupos de palavras; intercambiam-se enunciados que são combinações de
palavras, orações; ademais o enunciado pode ser construído a partir de uma oração, de uma
palavra, por assim dizer, de uma unidade de discurso (predominantemente de uma réplica do
diálogo), mas isso não leva uma unidade da língua a transformar-se em unidade da
comunicação discursiva. (BAKHTIN, 2003, p. 278)
Tal qual Bakhtin (2003, 2004), é assim que entendemos texto, oral ou escrito,
uma comunicação discursiva um enunciado é uma ão interlocutiva que acontece
no contexto das relações sociais e, por isso, abrange interesses, intenções, respostas.
Organizado com palavras/signos compartilhados socialmente, caracterizados por tipos
composicionais mais ou menos estabilizados, visa a atingir objetivos para com um
interlocutor, esteja ele presente fisicamente ou não. Texto, ao ser um enunciado,
comporta essas relações vivas, esse “jogo” social.
É interessante notar, na fala de LI, que, ao mesmo tempo em que explicita
claramente um de seus interlocutores, revela, no diálogo que realiza nessa
interlocução, seu entendimento a respeito do muito que se produz academicamente
como teoria e que passa, sem muito questionamento ou nenhum, a fazer parte do
ensino e toma ares de absoluta necessidade. Mas, perguntamo-nos se isso não ocorre
mais pelo caráter de novidade do que propriamente como reflexão para alcançar
melhores resultados na apropriação da língua escrita pelo aluno.
Um exemplo que queremos aqui apenas mencionar e que merece ser
investigado é com relação à teoria dos gêneros textuais. Esta certamente trouxe
avanços, mas também parece ser alvo de alguns equívocos pela forma mecânica com
que passa a ser empregada nas escolas. Mais uma vez, parece que a simples reunião de
várias tipologias textuais, de variados gêneros, marca a especificidade do seu ensino,
isto é, fica apenas na forma, ou, ainda que o conteúdo seja abordado, as relações
sociais que os engendram, ou o tema, bakhtinianamente falando, a que essas formas
remetem ficam apagadas. E perguntamos: que concepções de linguagem direcionam
esse entendimento de gênero conforme se utiliza na escola? Será que a inserção da
teoria dos gêneros textuais na alfabetização, por exemplo, não seria um desdobramento
da necessidade posta pelo letramento: a de se atingir as práticas sociais de uso da
121
leitura e da escrita? Caso seja, percebemos que não falta elaboração de teorias, porém,
a questão conceitual da linguagem também se apaga.
Outra abordagem metodológica que os professores fizeram referência nos
nossos encontros foi quanto ao método fônico. Pelos seus enunciados, pudemos
entrever o discurso oficial que se colocou no início do ano de 2006, em que se discutia
a necessidade de revisão da teoria construtivista orientada nos Parâmetros Curriculares
Nacionais, pelos estudos em alfabetização realizados especialmente por Fernando
Capovilla, em direção ao método fônico. Essa discussão mobilizou a defesa dos
estudiosos das duas correntes psicológicas, que culminou com a decisão
governamental de que o Ministério da Educação não indicaria o método de
alfabetização a ser seguido.
A discussão do texto de Magda Soares sobre as facetas da alfabetização e do
letramento (2003) compôs o pano de fundo para o debate instalado em relação ao
ensino pelo método fônico ou não em salas de alfabetização. O tema situou-se a partir
do argumento colocado por Soares, que buscava na França e nos Estados Unidos a
origem do ensino em alfabetização a partir de textos. A autora situa os leitores quanto
à compreensão posta pelo movimento conhecido como “Whole language”, de trabalhar
numa perspectiva metodológica diferenciada do Phonics”, que a primeira perspectiva
mencionada tenta superar, justamente pelo fato de que esta última não confere um
tratamento à linguagem que se possa apreender o sentido do que se apresenta na fase
inicial da alfabetização escolar. Convém ressaltar, entretanto, que um ou outro modo
de considerar o ensino da língua escrita tem como expectativa alcançar níveis
melhores de letramento escolar, que, diga-se de passagem, tem diferente conotação
aqui no Brasil, quando se trata de educação inicial.
Em meio a essa conversa, esclarecemos aos professores do curso que, por
essas vias de análise o debate em torno da alfabetização e do letramento e as formas
de minimizar o fracasso escolar –, chega ao Brasil a discussão sobre a volta do método
fônico. Seguiu-se, então, nossa pergunta aos professores sobre que conhecimento
tinham a respeito desse método. Houve muitas considerações, mas quando
122
relembramos que algumas letras do nosso alfabeto não têm som, são surdas, como o
“p” e o “b”, por exemplo, RO faz a seguinte indagação e se trava este diálogo:
RO: “Mas a Balta
35
falou que nós temos que dar todas as letrinhas?”
EU: “Como assim?”. RO se indigna com minha pergunta e repete: “Como
assim!”
EU: “O que isso tem a ver com o fônico?” RO faz gestos de não saber.
Quer dizer, nem mesmo RO entende o que havia perguntado, ou então que
havia interpretado diferente, diante da nossa fala, aquilo que lhe fora dito por Balta. O
importante a ressaltar aqui, para os propósitos desta tese, é a presença da professora
interlocutora de RO.
Baltadar Vendrúsculo é uma professora muito conhecida na região pela sua
atuação como ministrante de cursos de alfabetização pela prefeitura municipal de
Cascavel e por outras prefeituras da região Oeste (por intermédio da AMOP e da
extinta ASSOESTE, referidas anteriormente), motivo pelo qual tanto professoras de
Cascavel quanto de Santa Helena, particularmente as que atuam na área desde a
década de 1980, reportam-se a ela e a seus cursos. Diante da situação de impasse
apontada no diálogo, NI esclarece:
NI: “Ela [Balta] falou que é pra, que é pra, como é que eu vou dizer, é pra
apelar pra tudo que vosabe, se você tem mais experiência que deu certo e
usar um pouquinho de cada um, porque cada turma é cada turma. A Balta
sempre fala, você pegar o melhor de tudo, se o som, você vê que funcionou,
algumas vezes, inclusive o ‘ele’, o ‘eme’, o ‘ene’, tu fala (-0-), tem algumas
palavras que não dá certo/”
EU: “Ah, ó, tem algumas palavras que não dão certo.”
35
Trata-se da professora Baltadar Vendrúsculo, que será apresentada posteriormente no texto.
123
Esses enunciados ocorreram no momento em que discutíamos os limites do
ensino em alfabetização quando este se exclusivamente pelo som, ou com
relevância no som, sobre o mascaramento, a irrealidade da linguagem em uso.
E continua NI: “Assim como existem o sons do ‘x’, ele [o aluno] vai ter que se
acostumar com isso. Eu vejo assim que daí eu pego um pouquinho de cada
um. Uma [criança] vai pelo nome da letra, ‘pai’, o nome da tua cidade, tua
escola, tatatá, beleza! Umas você tem que apelar bastante pro som: ‘v’ e ‘f’,
‘b’ e ‘p’, [apesar] de alguns professores dizerem assim que as crianças têm
problemas, os meu não têm, que eu trabalho tanto, eu ressalto o som, seguro
assim (coloca a mão no pescoço) pra ver o (-0-) tudo. Não sei, não sei.”
Alguns professores, como SI, não conseguiam entender o porquê da volta da
discussão do método fônico. Retomamos a elucidação sobre a natureza da língua, a sua
função social e como a entendemos, até o instante em que um professor assim se
manifesta para falar da artificialidade com que se trabalha a linguagem pelo método
fônico.
Alguém fala assim: “Imito um som mais a vogal para ensinar a sílaba.”
NI reage prontamente: “Mas não fazem isso!”.
Eu respondo: “Fazem, fazem.”
IE e outros dizem: “Fazem sim!” Muito burburinho.
Vejamos o prosseguimento da situação:
IE quer dizer algo. Eu peço que espere ‘só um pouquinho’ para eu poder
concluir a minha fala. Continuo: “Então, a questão é essa, o que é o uso
social [da linguagem]? NI me interrompe: “Mas, professora, eu vejo assim, a
gente parte do concreto ali, de uma situação real em sala, de uma necessidade
de escrita, digamos, um bilhete, alguma coisa. E passou pra especificidade,
124
trabalhar, digamos o lh, você vai trabalhar/a partir do momento que/você vai
dar aquela/vai fazer com ele aquela lista de palavras com lh, tatatá, você
ressalta os fonemas, eu não vejo assim o (...) Eu digo: “Aí é uma outra
situação.” NI: “Não... Ninguém diz isso, a gente vai trabalhar (...)” Eu
repito: “Aí é outra situação!” Alguém: “Eu concordo [com o fato de estarmos
falando de situações diferentes de trabalho com o som].
IE agora consegue falar e diz: “Não, mas e a criança que vai ler e faz assim:
bê, a, ba, ele, a, la.
36
Eu acho (-0-) pior. Eu acho pior.” Eu digo: “eu
concordo, eu concordoe IE, como que se defendendo do que eu possa vir a
falar, lança: “Eu não ensino meus alunos [a soletrar palavras], e tem uns que
fazem isso.” Recebendo a anuência de NI: “Tem criança que faz isso!”
As professoras reconheceram que seus alunos soletram letras para tentarem ler
ou escrever palavras. No entanto, elas alegam não se utilizarem dessaestratégia” para
ensinar a língua escrita. Demonstram que não concordam com essa perspectiva de
ensino e, inclusive, no caso de NI, ela não acredita que haja alguém que produza
ensino assim. Mas, será que a criança faz aquilo que o professor ensina o seu
professor, especificamente? O que pensar das outras relações que a criança mantém
dentro ou fora da escola? Será que em nenhum momento, em sua vivência, a criança
percebeu ou foi ensinada assim: soletrar para aprender a língua? Será que já não
existiu um modo de ensinar a língua materna que partia da soletração? Não é a
situação daquela mãe trazida na fala de LI, analisada no item 3.1.2 deste capítulo, que,
ao perceber que o método de alfabetização ensinado na escola era diferente do que ela
havia ensinado em casa, fica apavorada? De qualquer modo, ainda que investido de
toda a autoridade que lhe é conferida, devida, como a responsabilidade institucional e
36
A situação a que se refere a professora diz respeito ao emprego de outro método de alfabetização, a
soletração, que se diferencia do método fônico. No método da soletração o fim é o ensino do alfabeto
na sua ordem lexicográfica; as palavras são soletradas segundo o nome das letras que a compõem, na
formação de sílabas e, posteriormente, das palavras. No método fônico, de marcha sintética, o ensino
centra-se nas correspondências grafofonêmicas e no desenvolvimento da consciência fonológica.
(MORTATTI, 2000, 2007)
125
socialmente pelo ensino sistematizado do conhecimento humano produzido, que se
reconhecer a participação social da criança, a presença de outros interlocutores outros
que também lhe ensinam cotidianamente.
Sem negligenciar as certezas e as desconfianças apresentadas pelos
professores por meio das outras vozes que se manifestam constituindo-lhes como
alfabetizadores, seu saber e seu fazer, podemos afirmar que os últimos enunciados
transcritos mostram-se contraditórios. Se retomarmos o que já foi analisado quanto aos
Outros presentes no processo de aprendizado dos alunos, as últimas enunciações
reafirmam o que os próprios professores já manifestaram explicitamente em outra
ocasião, a respeito de quem também ensina, e o quê, às crianças. Apesar de os
professores exercerem um importante papel na relação de ensino, os pais foram
interlocutores marcantes, referenciados pelas crianças, para o aprendizado da escrita
em língua materna, conforme enunciaram os próprios professores.
Passemos agora ao último tópico deste capítulo que buscou demarcar a
presença do Outro-aluno nas enunciações dos professores alfabetizadores. Trata-se de
posicionamentos frente à organização do ensino em séries que a escola segue
atualmente.
3.1.4 Do Ciclo Básico ao Ensino Fundamental de nove anos
Dentre as enunciações apreendidas durante o desenvolvimento do curso que
ministramos, as que se relacionavam às formas adotadas pelas escolas para organizar o
seu ensino seriado seja no formato Ciclo Básico, seja como ensino fundamental de
nove anos chamaram especialmente a atenção. Como não poderia deixar de ser, as
organizações do ensino seriado, de uma ou outra forma, repercutem no ensino em
alfabetização na série inicial do ensino fundamental e provocam as mais diferentes
reações nos professores quando o tema entra em debate. Nesse sentido, analisar as
enunciações dos professores sobre o assunto nos elementos para melhor
compreendermos como se a presença do Outro-aluno no processo de ensino da
126
língua escrita, para, num sentido mais amplo, compreender a concepção dos
professores sobre letramento e sobre a própria alfabetização.
O Ciclo Básico
37
, para os professores alfabetizadores de nossa pesquisa,
representou um momento na sua vida profissional em que o seu fazer docente sofreu
abalos e maculou as “pretensas” certezas daqueles que estavam algum tempo no
exercício da profissão. Para os recém-formados significou a mais uma angústia ao não
se verem preparados para atuar nessa proposta. Foi o que percebemos quando o tema
veio à tona durante o estudo do texto no qual Magda Soares apontava o advento do
Ciclo Básico como um dos problemas que ocasionou a perda de especificidade da
alfabetização. Momento em que, a partir da década de 1980, iniciava-se sua
implantação em São Paulo e proliferava pelas demais capitais e cidades brasileiras. O
Ciclo Básico e outras medidas educacionais configuravam-se no período como
propostas promissoras e fecundas para a realidade educacional brasileira.
Vejamos o recorte de nosso caderno de transcrições, quando mencionamos o
fato:
EU: Volto para o texto que estamos trabalhando. Abordo a hipótese levantada
pela autora para que tenha havido a desinvenção da alfabetização: a perda de
especificidade da alfabetização. A autora aborda a causa de natureza
pedagógica apenas, não a social, política. Diante das causas colocadas pela
autora está o ciclo básico escolar e eu pergunto sobre isso para os
participantes. Digo que gostaria que eles falassem sobre a experiência dos
ciclos básicos. Pergunto se alguém trabalhou no sistema de ciclo básico. NO e
NI manifestam-se, inclusive com NI assim se referindo: “Pura bucha”.
A expressão utilizada pela professora revela muito mais do que uma opinião, é
uma forma de manifestar sua indignação frente àquele momento vivido pelos
37
Destacamos que o Ciclo Básico no Paraná obedeceu a uma marcha diferenciada no seu processo de
implantação, diferente, por exemplo, do que ocorreu no estado de São Paulo (sobre o Ciclo Básico
neste estado ver Mortatti, 2000). Podemos dizer que no Paraná o que mais marcou sua implantação
foram as mudanças na seriação do ensino, em especial nas duas séries iniciais do ensino fundamental.
Portanto, a alteração foi mais de cunho estrutural do que propriamente conceitual.
127
professores, supervisores e diretores que organizavam o trabalho pedagógico na
educação primária à época e que ainda guardam a memória daqueles tempos.
SI: “Falar em ciclo em Santa Helena é um ( ).” [Gestos e expressão facial de
desagrado, como se fosse algo extremamente mal-visto e que causa repulsa
aos professores].
NO: “Até nós professores, chegava no fim do ano ficava perdido. Foi uma
época assim, era no início assim da minha jornada como professora, tu não
podia fazer isso, tu não podia fazer isso, sabe, era/chegando o final do ano/e
esses alunos que nós alfabetizamos na época, são hoje os alunos do meu
colega professor HE, que trabalha com o segundo grau, que escreve muito
com eles, que/são esses alunos nossos daquela época. Se você notar, se você
analisar, são os nossos alunos. Sabe, então assim, foi, oh, é por gostar mesmo
[que continuou na profissão]. Acho que, porque foi horrível.”
O enunciado de NO chama a atenção porque, além de se referir à dificuldade
sentida pelos professores em alfabetizar na proposta do Ciclo Básico, mostra a
conseqüência do despreparo docente para o aprendizado do aluno. Os alunos de
alfabetização de NO daquele período são atualmente os mesmos alunos do ensino
médio de um colega seu de trabalho: um professor que tem de desenvolver muitas
atividades de escrita com os alunos para tentar vencer os problemas de escrita
decorrentes da precariedade da alfabetização que cursaram. É o reconhecimento de que
a falha no ensino, em virtude da falta de entendimento da proposta do Ciclo Básico,
deixou marcas negativas no aprendizado da língua materna pelo aluno, e as lacunas
existentes mostram-se nas séries posteriores.
Como tentativa de minimizar as dificuldades, o interlocutor de NO, que, pela
sua enunciação, parece conhecer a raiz do problema dos seus alunos, trabalha
intensamente a produção escrita. É a evidência de que, em algum momento da vida
escolar dos alunos, os problemas com o aprendizado da ngua escrita precisam ser
128
trabalhados. Assim, não basta que as dificuldades sejam detectadas, constatadas: é
preciso, de alguma maneira, tentar minimizá-las, independente da série escolar que o
aluno esteja cursando.
A fala de NO também representa um alerta tanto para professores, que
precisam, impreterivelmente, conhecer as propostas e as teorias de ensino para
poderem se posicionar, inclusive na sua prática docente, quanto para as secretarias e
outros órgãos responsáveis pela implantação de novos encaminhamentos. Parece-nos
que a preocupação e a consideração para com o Outro, seja professor, seja aluno, seja
o organizador do trabalho pedagógico, são razões suficientes para o cuidado nas
decisões educacionais em qualquer nível de ensino.
O discurso de AG, a seguir, mostra que escolas, no Oeste do Paraná, que
mantêm os procedimentos do Ciclo Básico para o ensino nas primeiras séries. No
entanto, suas palavras, além de corroborar as falas anteriores, demonstram não haver
resultados escolares satisfatórios nessas séries. Ao contrário,
AG: “Há três anos quando eu cheguei de P. B. pra trabalhar, (-0-) eles
tinham ensinado até esse ano que saiu, né? [ensinado no sistema de Ciclo
Básico] e assim também eu peguei uma turma de segunda série, tinha 14
alunos, nenhum estava alfabetizado, assim, o alfabeto praticamente eles não
conheciam, né? E a diretora disse pra mim que eles tinham que sair
alfabetizados e dominando os conteúdos de série, né? Então, assim pra
mim, foi terrível esse ano, né, porque, assim, claro que negociando,
conversando, e tem conteúdos que você pode trabalhar com eles, mas tem
outras coisas que eles não dominam nem de primeira série, como que eu vou
trabalhar de 2ª, né? Então, assim, chegou ao final do ano e também, assim, (-
0-) as lições do alunos, né, e assim eu, eu reprovei. Ela [a diretora] não queria
que tivesse retenção ainda, né, no final desse ciclo, né, porque da primeira
pra segunda passa; da segunda ret/pode reter. E ela não queria retenção, mas
eu fiz, né. Era muito difícil pra gente, chegando lá, pegando assim, eu nem
sabia como funcionava isso né? Então, assim, é uma situação bem difícil pra
129
gente como professor, vai contra aquilo que a gente aprendeu. Bem ao
contrário.”
NI utiliza-se de argumentos que mostram que a implantação do Ciclo Básico
não alcançava o aprendizado da leitura e da escrita por todos os alunos, mas, ainda
assim, não era permitido reprová-los.
O sistema de ciclos foi implantado concomitantemente aos estudos sobre a
psicogênese do aprendizado da língua escrita de Emília Ferreiro, o construtivismo.
Este ganhava espaço nas escolas. E, conforme abordado, mesmo o professor
buscando seguir o que lhe havia sido ensinado nos cursos de formação continuada, o
aluno o aprendia, mas, ainda assim, era necessário aprová-lo. Segundo NI, isso foi
“perigoso”. Analisemos:
NI: “Nós tivemos, por exemplo, aquele curso em Toledo, duas, três
semanas, três anos atrás, lá, [no] D. P. II, (...), daí nós fizemos um curso e
começaram assim, de uma hora pra outra, reestruturar texto, integralmente,
todos aqueles passos, você faz item por item, todos (-0-), (...) você fazia alguns
[alunos] escrever [sic], que a maior parte deles, quase que ganhava uma
aversão, porque era muito, eles se assustavam, e eu acho assim o ponto mais
perigoso, mais chato, mais/que mais prejudicou, que estragou com tudo, era
não poder reprovar.
Associada a essa preocupação, está o fato de os professores terem de se
explicar aos pais. Pois, se por um lado as famílias que não acompanhavam a vida
escolar dos filhos e essa ausência era reclamada pelos professores, também aqueles
pais que acompanhavam não a vida escolar dos filhos, mas o movimento
educacional da escola ou, minimamente, da sala de aula em que seus filhos estudavam.
Estes pais passam a ser motivo de consideração pelos professores, uma vez que
também desempenham o papel de avaliadores do trabalho docente, senão julgando, ao
menos questionando as atitudes dos professores. É o que permite entrever a fala de NI:
130
NI: “Chegar no final do ano, poxa ( ) Eu lembro da minha FA
[determinada aluna], da Coca-cola lá, não lembro mais do sobrenome dela lá.
(...) a mãe veio junto buscar o resultado pra ver/porque as mães sabem o que
que acontece na sala de aula, quem vai e quem não acompanha, e quando eu
tive que dar o resultado pra três que não acompanhavam em hipótese
alguma e tinham passado pra segunda série, ela chegou pra mim e falou, ‘mas
como professora’? Isso, dez anos atrás, em torno de dez anos atrás. ‘Mas
como professora que pode fazer isso?’ Daí você vai explicar todo/que é uma
lei que nós temos que incluir, que nós temos que tatatá. Sabe é (...)”
A enunciação de NI demonstra não haver discussões com os pais, com a
comunidade a que a escola atende sobre as propostas educacionais, o que se espera
delas ou a partir delas. Ou, se discussões acontecem, não são suficientes para
esclarecer e dar a conhecer aos pais as leis que regem o ensino naquela unidade
escolar. Em decorrência, o fato de não compreenderem o funcionamento escolar o
lhes permite conceber como uma criança pode ser aprovada se, na sua concepção, ela
não apresenta o domínio da leitura e da escrita de que necessita para ser aprovada.
Quer dizer, os próprios pais têm uma referência de escola que não se organizava
daquele modo, em ciclos. Como se pode notar, não estamos entrando, aqui, na questão
de a criança atingir ou não os critérios que a escola determinou para avançar segundo a
proposta dos ciclos, nem mesmo estamos discutindo se a mãe conhece a proposta do
Ciclo Básico em alfabetização daquela escola, pois nem temos elementos para isso. O
que estamos chamando a atenção é para o fato de que parece não existir uma total
transparência das decisões e dos encaminhamentos dados por aqueles que respondem
pedagogicamente pela escola, por força de lei ou não, e que envolve diretamente os
alunos.
Mas, voltando às concepções dos professores a respeito do sistema de ciclos,
podemos dizer que suas enunciações atestam que eles viveram uma espécie de trauma
em relação ao novo posicionamento a ser assumido frente ao ensino em alfabetização,
131
quando da implantação da proposta do Ciclo Básico. Entretanto, o fato de terem
vivenciado e/ou tomado conhecimento das seqüelas deixadas, recentes ou não, por
esse tipo de orientação legal para as séries iniciais, faz com que o temor seja reavivado
com a implantação do ensino fundamental de nove anos, na região Oeste do Paraná,
em 2007, ano do desenvolvimento de nossa pesquisa empírica.
As falas de alguns professores evidenciaram o quanto este momento está
sendo traumático para o professor que atua na série inicial de escolarização
obrigatória, a exemplo do que representou o Ciclo Básico.
Foi em um momento de muito burburinho na sala do curso que pudemos ouvir
o desabafo de AG. Vejamos os registros de sua fala:
muito barulho, muitas vozes falando ao mesmo tempo, até que sobressai a
voz de AG: “(-0-) Como a colega agora comentou comigo, (-0-) a questão de
saber (-0), se a gente vai reter, que é pra passar pro segundo ano, como vai
ficar isso. Ninguém tem clareza de nada. É pra alfabetizar, não é pra
alfabetizar. Como o aluno tem que chegar ao final desse primeiro ano? Então,
é uma dificuldade que a gente tendo esse ano. chegando/É pra lançar
nota? É pra fazer um monte de coisa e ninguém tem clareza de nada.” EU
registro: A voz de AG some em meio a muita conversa, muitos falam ao
mesmo tempo. Não é possível entendê-los.
Em meio aos diálogos, as vozes audíveis misturavam-se, mas, ainda assim
convém destacar as breves considerações que se seguiram à nossa:
EU: “Eu não consigo ouvir vocês todas.” Alguém diz assim: “Assim, me
parece que tá voltando esse ciclo.” Outros: “É, é”.
O “voltar” ao Ciclo Básico, entretanto, não é uma referência à reclamação
posta do Ciclo Básico em si, da promoção ou não do aluno para outras séries, mas em
relação à incompreensão e à falta de direção para o professor geradas a partir dele,
132
especialmente no tocante à definição de critérios para a aprovação do aluno para outra
série. As enunciações apontavam para a reclamação de que não havia sido dada uma
direção, uma orientação para o professor a fim de que ele soubesse que conhecimentos
sobre a ngua aquela criança, de seis ou de sete anos, teria de apropriar-se para que
seu processo de alfabetização, e escolar mesmo, não fosse prejudicado.
Na sala do curso, continua o mesmo ritmo frenético de muitas vozes falando
ao mesmo tempo, até que podemos distinguir a voz de NH, e, ao captá-la, temos:
NH: “E o mais complicado é que esses alunos, Ivete, o aluno com alguns dias
de pré-escola, alguns meses de pré-escola, até uma altura este ano, depois em
maio passou pro primeiro ano, mesmo não tendo a competência, assim em
nível de conteúdo, pra ir pra primeira série que é o segundo ano, é,é,é, vão,
mesmo sem a qualificação, eles vão ter que passar com a média. Porque pelo
que está se falando, passando pras escolas, o aluno de primeiro ano não vai
poder ficar no primeiro ano, e se ele não tiver a condição, vai ter que passar
com uma média seis (Alguém diz: “para o segundo ano”) e os que estão com
uma melhor qualificação, melhor desenvolvimento, vão ter uma nota acima,
seis e meio pra frente. Então é complicado. A gente vai ter que dar nota e
ainda fazer toda aquela questão de conceito, assim, sabe?”
À necessidade de atribuição de notas argumentada por NH, somou-se outro
aspecto levantado por HE, também permeado por muitas réplicas sobre o tema em
questão:
HE: “É o fim gente, é o fim. Como é que eu vou justificar, se uma das razões
pela qual ele não aprende é porque ele não comparece na aula. Como é que
eu vou dar presença, sendo que ele não vem? Isso é o fim gente, é o fim”.
E sem esperar HE terminar, NH emenda, com a sobreposição da fala de NI e, a
seguir, a posição de MG:
133
NH: “Ou, um dos motivos pelos quais ele está na sala, mas não faz nada, você
sabe de quem eu estou falando [reclamando a cumplicidade da colega
professora], uma criança que está na sala, não faz nada e você vai ter que
passar de ano/(NI ao fundo: “É isso que eu não concordo”) sem essa
competência. [competência no sentido de apropriação de conteúdos]
MG: “Não escreve nem o próprio nome. Tem um aluno meu que não escreve o
próprio nome. E não escreve e não adianta. Mas ele gosta ainda de brincar.”
Resumindo, o que fica evidenciado nas últimas enunciações é que as
professoras têm uma série de motivos para se preocupar com a organização do ensino
que a legislação determina para o nível fundamental. São muitas as questões
pedagógicas e administrativas que permeiam as práticas em sala de aula, como o
registro de freqüência, a atribuição de notas sem um critério definido, a criança que
não aprende porque não vai à aula ou porque quer brincar, ou ainda, porque a
criança não se apropriou dos conteúdos mínimos necessários para avançar a série.
Mas, as angústias dos professores também demonstram que o seu Outro-aluno está
sendo considerado.
Com a determinação legal, o compromisso com o aprendizado do aluno toma
nova forma, pois agora não é com relação a que conteúdos ensinar, mas como
ensinar os conteúdos de acordo com aquela idade (seis anos).
Essa situação traz à tona uma outra velha questão que circulou os meios
acadêmicos: alfabetizar ou não na pré-escola? Do nosso ponto de vista, todas essas
preocupações são importantes, sim, mas a discussão delas pode ser melhor direcionada
se iniciarmos pela concepção de linguagem que se tem ao ensinar a leitura e a escrita
na série inicial do ensino fundamental.
Como vimos dizendo, o entendimento da natureza social da linguagem, de
que ela acontece nas relações entre homens, mulheres e crianças de uma mesma
comunidade de falantes, nas práticas cotidianas e de organização dessa comunidade,
134
pode conduzir à apropriação sistematizada e oficial da língua escrita mais efetivamente
e, quem sabe, menos dolorosamente.
Para finalizar esta subseção, gostaríamos de acrescentar que o modo pelo qual
transcrevemos (a filmagem do DVD) e registramos as falas dos professores, não só,
mas especialmente aqui, foi uma tentativa de abordar o tema buscando retratar, dentro
das possibilidades, o contexto em que se apresentaram as falas. Foi uma tentativa
também de abarcar um número maior de elementos (sobreposição de vozes,
interrupções, manifestação de outros, burburinhos) como forma de direcionar o
sentido, sempre buscando compreender a “investigação da significação contextual de
uma dada palavra nas condições de sua enunciação completa”, seu tema.
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 130).
Assim, o intuito foi o de traduzir o grau de preocupação dos professores diante
da possibilidade colocada por eles, em seus enunciados, de reviver algo que outrora
não deixou boas recordações, o Ciclo Básico.
O aparente conflito de vozes que procuramos transcrever nada mais é do que a
presença de elementos que concorrem para o mesmo fim: retratar, nas enunciações dos
professores, quem são seus interlocutores e, nessas interlocuções, como a presença do
Outro-aluno vai se configurando.
Se a preocupação com o que pode ser avaliado do seu ensino, por eles
próprios e pelos outros, também a preocupação com o aprendizado do aluno, ainda
que marcada pela falta de entendimento sobre tantas teorias e encaminhamentos que se
colocam para eles.
Em síntese, um misto de sentimentos que se colocam na direção do que
Smolka (2001) já estudou e nós apontamos: mescla-se o entendimento do que a
sociedade instituiu para os professores, ou seja, o cumprimento de uma tarefa – ensinar
a ler e a escrever que descaracteriza sua importante posição na relação de ensino.
Isso se reflete ou se ampara na concepção de linguagem assumida pelo professor, que
orienta seu ensino e, por assim dizer, desenvolve uma “cultura” muito própria do ser
professor alfabetizador nesse contexto. É sobre essa cultura que desenvolvemos o
capítulo seguinte.
135
4. À GUISA DE UMA CULTURA PROFESSORAL
Conforme Forquin (1993, p. 167), existe uma cultura escolar que orienta as
instituições de ensino, assim como também há uma cultura de escola que compõe os
fazeres e os saberes escolares. A cultura escolar compreende as orientações gerais das
políticas educacionais que organizam as instituições de ensino no seu funcionamento;
a cultura da escola refere-se aos modos particulares com que cada escola gera o seu
dia-a-dia, o seu cotidiano.
Assim, as escolas organizam-se macro e microssocialmente segundo os
impositivos legais das esferas superiores e se produzem cotidianamente, segundo seus
ritos, mitos, crenças, valores. Os professores são, portanto, sujeitos constituídos por
essas culturas na mesma medida em que também as constituem. São sujeitos que
dialogam com um conjunto de idéias, orientações administrativas e pedagógicas,
prescritivas ou o, que, ao serem refratadas, imprimem nelas (as culturas) um modo
de conceber o que delas entendem, aceitam ou rejeitam.
A esse certo modo de conceber o que compõe a existência da escola, estamos
denominando “cultura professoral”, ou seja, é a forma que utilizamos para exprimir o
modo próprio pelo qual os professores alfabetizadores conhecem, agem e se
manifestam em relação à sua profissão, ao seu saber, àqueles que aparecem nas suas
vozes. Muitas das suas enunciações denotam a adesão, a filiação, ou não, a
determinadas concepções, teorias, conhecimentos científicos. É a compreensão desses
posicionamentos que explicitamos nesta seção.
Para detalhar os elementos que compõem a cultura professoral em relação ao
ensino da língua materna, agrupamos as discussões sob os seguintes temas: a) práticas
estratégicas para a promoção do aprendizado do aluno; b) concepções sobre
alfabetização; c) a função social da escola pública em alfabetização e alguns outros
discursos e d) livro didático e gramática: os Outros “mal-ditos” da alfabetização.
136
4.1 PRÁTICAS ESTRATÉGICAS PARA A PROMOÇÃO DO APRENDIZADO DO
ALUNO
Uma característica da cultura professoral são as estratégias que os professores
lançam mão para atingir o seu objetivo de conduzir o aluno à apropriação da leitura e
da escrita da língua materna em sala de aula. Essas estratégias configuram-se em
artifícios verbais, motivacionais, do elogio à chantagem, para o ensino de
especificidades consideradas importantes para o aprendizado do aluno como
escrevente/leitor.
Podemos mencionar, dentre essas estratégias, o aprendizado do traçado
“correto” das letras, o aprendizado das letras caixa alta e cursiva e sua relação com a
economia do tempo. Quanto ao traçado das letras, este é definido por uma
direcionalidade que as letras devem obedecer, com vistas ao melhor aproveitamento do
tempo escolar durante as atividades que as crianças realizam. Sabe-se que quando
recém-iniciadas na escrita pela escola, as crianças tendem a fazê-lo com morosidade,
dada à atenção que têm de dispensar para escreverem (as crianças também obedecem a
uma cultura de escola e de cada professor: o modo como se ensina a escrever na
página do caderno, a reprodução deste no quadro-de-giz pela professora, a
direcionalidade que a escrita deve receber naquele suporte). Vejamos as falas:
a) A aprendizagem para passar de ano:
NI: (...) tu não tinha argumentos pra fazer aquele aluno que precisa
[aprender a leitura e a escrita]! Tem uns que/com motivação, com amor, com
carinho você motiva pra ele ser o melhor, ser, ser 10 em tudo; mas tem uns
que tu tem que ir um pouco pela chantagem ‘ou você melhora ou você vai
ficar na primeira série.”
b) A aprendizagem do traçado correto das letras para economia de tempo:
137
Em dado momento do curso, falávamos de algumas práticas desenvolvidas
pelo ensino tradicional, quando alguém menciona o caderno de caligrafia e sobre o
traçado de letras. A partir daí, as seguintes enunciações acontecem:
IN: “E tem que ser no caderno de caligrafia para o traçado correto [para
ensinar o traçado correto das letras], senão você não consegue ensinar nada.”
NI: “Sabe o que que eu uso? [E simulando um diálogo com o aluno diz]
(...)‘existem várias formas de você escrever, cada pessoa normalmente tem a
sua, só que existe a forma que você pode treinar, que você pode se tornar ágil,
rápido, e que todo mundo vai ler e vai saber o que você escreveu. E existe
aquela forma assim, às vezes só/nem você vai conseguir ler o que escreveu, e
às vezes tu vai ter que olhar uma letrinha (olha para o que imita ser um
caderno nas mãos e para a frente como se fosse para o quadro de giz), uma
letrinha (repete o movimento anterior). Querem aprender qual?’. Eu levava
toda turma/por isso que eu amo série... você consegue, sabe... (faz gestos
com os braços e as mãos de baixo para cima, como se algo tivesse vertendo
daquele espaço). E daí eles querem o traçado, e o correto, é o rabo/porque
agora eu trabalho no contraturno com a e eles têm aquele traçado
corret/errado do “o”, por exemplo. Não é assim (gesticula, segurando a
caneta no ar, o traçado “correto” do o”); eles fazem isso aqui (segurando a
caneta no ar, imita a forma do ‘o’, começando da esquerda para a direita, em
círculo), olha o tempo que eles levam. O ‘d’, por exemplo (gestos iguais ao
último descrito, apenas movimentando a haste da letra de baixo para cima),
eles dão três voltas pra depois subir.”
IN interrompe: E quanto tempo (...), às vezes, a criança, no escrever uma
palavra ela ergue três, quatro vezes o lápis do caderno. Porque a letra
cursiva é você começar e chegar no final sem tirar a caneta do lugar (quis
138
dizer “do caderno”). [Enquanto isso outras professoras, as que posso ver,
depois, no vídeo, conversam e gesticulam sobre o assunto focado].
E NI arremata, para dizer da capacidade de convencimento do professor
naquilo que ensina em relação às letras:
NI: “Mas é só você conversar com eles, explicar... tu leva!”
A fala de NI vai no sentido de que se o professor explicar como deve ser feito
o traçado correto das letras e mostrar também a perda de tempo que acontece quando
não se faz do modo “correto”, a criança aceita o que o professor está ensinando e
procura fazer da forma como ele instruiu. Fica expressa na enunciação de NI a
necessidade específica de quem está começando a vida escolar, aprendendo a ler e a
escrever, de ter tudo bem explicado. Algo que para o escrevente mais experiente o
considera, pois já escreve faz sem pensar no ato em si, abstratamente.
c) A perfeição física e psíquica como sinônimos de aprendizagem:
EU: Ao mencionar que ouvi de uma das professoras com quem realizei o
‘piloto’ dos questionários o seguinte: “você tem as mãozinhas perfeitas, você
ouve bem, você fala bem, você é inteligente, por que vonão copia?” RO me
diz imediatamente: “Eu tenho um caso assim.
Aqui, o aluno se torna um “caso”, mais um mero no sintomático momento
da educação brasileira em que se entendia o processo de aprendizado da língua escrita
pela criança como algo mecânico. Bastava que a condição física e mental permitisse e
estariam todas as crianças aptas a aprender. Caso o aprendizado não ocorresse, as
causas deveriam ser outras e estas deveriam ser buscadas.
A literatura educacional colocou à época como os “vilões” do não-aprendizado
do aluno o tipo de ensino que era ministrado, o método utilizado, mas, antes colocou
139
em evidência a criança e sua família, nos seus “déficits”: as condições culturais e
socioeconômicas, o número de filhos, enfim, qualquer outro fator que dissesse respeito
ao aluno. Isso se dava especialmente porque a criança passava por testes de prontidão,
que atestavam as condições físico-psicológicas dessa criança em freqüentar a escola e
ser alfabetizada, e pelo período preparatório, em que o desenvolvimento cognitivo
estava associado ao desenvolvimento motor e vice-versa. Em síntese, o aluno passava
por uma espécie de “treinamento” para desenvolver habilidades para ler e escrever as
letras.
38
4.2 CONCEPÇÕES SOBRE ALFABETIZAÇÃO
O questionário respondido pelos professores alfabetizadores no início do
primeiro dia de curso apresentava uma pergunta pontual sobre o que significava para
eles “alfabetização” e “letramento”. Pelas respostas buscávamos conhecer a concepção
dos professores em torno desses temas. Pudemos perceber que os enunciados escritos,
em sua grande maioria, demonstravam uma compreensão diversa da que apreendemos
em suas enunciações orais. Percebemos também que as enunciações escritas sobre uma
e outro, quase na sua totalidade, ou demonstravam confusão entre ambos os termos e
seus temas, ou explicitavam não saber o que significava letramento. De qualquer
forma, suas respostas escritas apresentavam uma compreensão sobre a alfabetização e
o letramento de modo diferente dos trazidos pela literatura pertinente, a apontada nos
capítulos anteriores. Entretanto, as falas são reveladoras dos sentidos atribuídos à
alfabetização e ao letramento.
Embora nosso objetivo não seja o de confrontar o entendimento escrito e o
manifestado oralmente pelos professores, fica patente que o professor pode não saber
escrever uma definição sobre alfabetização e/ou letramento, mas, no discurso oral as
suas práticas alfabetizadoras prevêem o letramento, conforme este é concebido pelas
38
Para uma leitura histórica desses momentos na educação brasileira, consultar as referências
completas ao final desta tese, em Mortatti (2000).
140
esferas acadêmicas. Assim, o processo de alfabetizar é entendido mais amplamente do
que se tem propagado.
Duas situações provêm desse fato. Uma delas coloca em evidência a validade
ou não das pesquisas que se utilizam apenas dos dados coletados em questionários
para realizar suas análises e auferir resultados. A dificuldade do entrevistado em
pronunciar-se por escrito pode levar a resultados de pesquisas equivocados, uma vez
que a forma de enunciar sua opinião pode não expressar aquilo que compreende e que
quis dizer em torno da questão em estudo. A segunda situação, decorrente da primeira,
é que fica ressaltada a importância da oralidade (entrevistas, encontros, cursos) como
complemento ou elemento coadjuvante para se chegar a resultados o mais fidedignos
possíveis em pesquisas científicas, sobretudo, nas ciências humanas.
Isso posto, detenhamo-nos nos discursos proferidos.
MG, por exemplo, deixa entrever em sua fala a essência do pensamento
escolanovista, que, no embate com as teorias educacionais anteriores, passa a valorizar
a criança, o seu potencial, os saberes que traz de sua vida pré-escolar: a criança não
seria mais uma tabula rasa, pronta para receber a impressão absoluta do conhecimento
escolar. Também o Construtivismo pode ser visto como proposta teórico-metodológica
presente na fala de MG pelo fato de o conhecimento da criança estar sendo
evidenciado, valorizado, embora a professora não enuncie preocupação com o como a
criança constrói seu conhecimento. São encaminhamentos diferentes, mas que
apresentam a preocupação com a criança e seu conhecimento como aspecto comum.
MG: “É, isso que eu aprendi, que primeiro a gente tem que saber qual o
conhecimento que a criança tem, pra saber de onde que você vai partir/a
alfabetização dela. Não posso zerar ela e começar do zero.”
Mas, em sua resposta no questionário, alfabetização e letramento são definidos
da seguinte forma:
141
MG: “Alfabetização é passar conhecimentos de diferentes áreas e/ou
assuntos, visando proporcionar uma condição de vida melhor ao
alfabetizando. Letramento leva em conta levar a pessoa(as) o conhecimento
da grafia e as formas de trabalhar essa grafia de maneira a relacionar-se
melhor com outras pessoas e situações.”
Não discutindo os conceitos apontados por MG, mas as concepções neles
subjacentes, destacamos, em relação à alfabetização, a filiação a idéias que se chocam
com seu posicionamento anterior. Se alfabetizar é “passar conhecimentos”, logo, o
professor é o transmissor desses conhecimentos, o que parece contradizer a sua fala de
que “não zera a criança”, e abre espaço para as seguintes questões: como a professora
compreende o conhecimento apropriado pelo aluno antes de entrar para a escola?
Como não zerar o aluno se o importante é o conhecimento que o professor, pela
escola, transmite? E esse conhecimento é importante sim! Mas haveria anulação ou
existiriam conflitos entre o que já sabe o aluno e o que a professora considera
necessário que ele conheça? É possível uma relação de ensino interacional,
interlocutiva, quando a unilateralidade prevalece, isto é, quando o professor detém o
“poder” sobre determinado conhecimento? Pelo fato de que, nesta pesquisa, importa
mostrar as vozes que “falam” com os professores a fim de se compreender as suas
concepções sobre letramento e alfabetização, como afirmado anteriormente,
consideramos também importante não deixar de problematizar o tema a partir das
situações que são colocadas verbalmente pelos professores.
Vejamos, agora, suas concepções a partir da indicação de atividades realizadas
em sala de aula e as respostas dos alunos a elas. Segundo o relato de MA, uma aluna
sua assim se manifestou:
MA: “Uma aluna minha escreveu assim ‘minha mãe comprou um carro da
FIPAL’. Daí ela [a aluna] me disse assim: professora, você sabe por que eu
escrevi FIPAL certinho?’ ‘Por quê?’ ‘Porque eu moro perto da FIPAL.’
Então ela realizou a alfabetização como eu concebo.”
142
Mas, qual seria esse modo de conceber a alfabetização? Em seu discurso
escrito, no questionário, temos:
MA: “Alfabetização compreender o significado da intenção da palavra.
Quando meu aluno é capaz de absorver o sentido do que e escreve, e assim
constrói sua própria opinião. Letramento acredito que sejam semelhantes
(alfabetização e letramento) na sua intencionalidade.”
A distinção que o professor faz entre alfabetização e letramento parece
conduzir ao entendimento de que a alfabetização é a utilização da linguagem em uso;
como ocorre na corrente da fala. Inclusive, se verificarmos como LI exemplifica sua
definição de letramento, a alfabetização não se preocuparia com as marcas da
oralidade produzida na escrita. A escrita ortográfica é função do letramento, para esse
professor.
Podemos dizer que a concepção de MA gira em torno da intencionalidade. Se
desdobrarmos esse termo em relação à sua fala anterior, percebe-se que está subjacente
à escrita de sua aluna um processo de alfabetização orientado por uma concepção de
linguagem em sua natureza social, que estabelece as relações simbólicas entre letras,
sons e sentido, isto é, a criança utiliza a linguagem escrita em sua função social para
interagir. O aprendizado da leitura e da escrita da língua não é para a escola, ou para a
professora, ou para passar de ano, mas para penetrar na corrente da fala e da escrita,
ou, como gostariam alguns, no mundo letrado.
LI, um dos cinco professores graduados em Letras, interpreta de modo diverso o
exemplo mencionado por MA:
LI: “Pra mim/eu coloquei ali [no questionário], que a alfabetização seria você
ensinar a criança o ato de ler e escrever e o letramento seria você ensiná-la a
utilizar a língua corretamente, seria, digamos assim, utilizar/ensinar a usar a
norma culta. (...)” Menciona o exemplo da criança que escreveu FIPAL, e diz:
143
“ela poderia ter escrito FIPAL com ‘u’, assim o letramento seria ensiná-la a
escrever FIPAL com ‘l’”.
MY, outra participante formada pelo curso de Letras e com pós-graduação em
Lingüística Aplicada, é uma das poucas professoras que coloca na fala, e também na
escrita do questionário, o seu entendimento de alfabetização e letramento conforme
definem alguns teóricos da área. Reafirmamos que não se trata, em absoluto, de checar
se os professores conseguem ou não conceituar os dois termos de acordo com o que
prevêem os teóricos. O propósito é o de mostrar, por sua concepção, de quem são as
vozes presentes no modo como concebem alfabetização e letramento e entender o tipo
de diálogo estabelecido que se mostra nesta concepção. No caso de MY, é possível
perceber seus interlocutores naquele momento da fala, e, em outras circunstâncias,
quando a professora nomina-os explicitamente.
As produções de autores como Magda Soares, Marcos Bagno, Geraldi e
alguns títulos bakhtinianos são alguns dos que podem ser conferidos na constituição
das concepções de MY, registradas a seguir:
No questionário:
MY: “Alfabetização é o processo de aquisição da língua escrita. Letramento é
a alfabetização vivenciada nas práticas sociais do indivíduo. Ambas precisam
do conhecimento do código escrito.”
Na intervenção oral:
MY: “Pra mim o letramento é a criança colocar nas suas práticas sociais o
uso do código escrito, quer dizer, ela saber/na vivência dela ( ), se ela
precisar ler alguma coisa na igreja ou escrever um bilhete para alguém,
quer dizer, ela colocar na vida dela, o código escrito que ela aprendeu na
escola. Alfabetizar é o processo de adquirir esse código; de conseguir, de
adquirir letras, sons, fazer essa ligação; e a questão do letramento, é colocar
144
isso na sua vida, é vivenciar, é praticar. É conseguir colocar tanto na
oralidade quanto na escrita, isso na sua vida. Perceber isso.”
A forma de MY se referir ao nosso sistema alfabético como “código” traz
algumas evidências. Como dissemos, é possível identificar, nos seus enunciados, de
quem são as vozes que a constituem, porém, não é de qualquer modo que isso ocorre.
Como já vimos em Bakhtin/Volochinov (2004), a idéia de língua como código
é uma idéia de língua como sinal, sempre idêntico, uma abstração do que é a
linguagem, posto que a língua é real, viva, altera-se conforme os contextos de uso;
desempenha funções conforme a intenção e o interlocutor. Nesse sentido, se a escola
realmente ensina assim o processo de ler e escrever a língua em alfabetização, o
discurso do letramento procede, porque nas práticas cotidianas não é assim que se
produz a língua. Porque linguagem escrita o é isso, ou não pode ser reduzida a isso.
Dessa maneira, o ensino da leitura e da escrita da língua materna como “código” não
pode dar conta mesmo dos sentidos, da funcionalidade, da intencionalidade que se
manifesta no jogo social. Sobressai o ensino da língua morta, abstraída das relações
cotidianas e das suas práticas.
Na medida em que a professora acrescenta que alfabetizar é o processo de
“adquirir esse código”, percebe-se a adesão a um discurso produzido por algumas
correntes no interior dos próprios estudos lingüísticos. Correntes que buscaram
entender se o sujeito “adquire” ou se “apropria” da linguagem, o que levou a uma série
de desdobramentos que vamos aqui apenas problematizar. O “adquirir” a linguagem
escrita sugere que ela está em algum lugar, pronta, e que é necessário que de algum
modo ela seja trazida para o sujeito. Há quem diga que existe aí até a idéia de
“compra”, de alguma “coisa” estocada que se vai adquirir. Para nós, segundo os
preceitos teóricos bakhtinianos que adotamos, a “aquisição” pode ocorrer, por
exemplo, em relação a uma língua estrangeira, porque nos constituímos pela língua
materna, aprendemos a nos relacionar pela nossa língua mãe. Em relação à língua
materna, as pessoas “não recebem a língua pronta”; antes, constituem-se nela, por
meio dela, o que se somente a partir do momento em que “mergulham” na corrente
145
ininterrupta da comunicação verbal, só assim “é que sua consciência desperta e
começa a operar” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 108). A linguagem nos
precede: não a inventamos, não começamos do nada. Partimos de uma organização já
desenvolvida, em que a escrita é apenas uma face de todas as possibilidades
lingüísticas de interação social.
É essa concepção de linguagem e língua escrita que acreditamos o ter sido
considerada na discussão sobre o letramento escolar e pelos que o defendem. E, pelo
enunciado da professora, também é isso o que ela ainda não compreendeu sobre
linguagem, refletindo-se no ensino da língua escrita materna.
No entanto, se verificarmos o que a professora relata desenvolver em suas
práticas, temos:
MY: “Eu trabalho muito com os meus alunos os rótulos, as embalagens, as
mensagens publicitárias, capas de revistas, receitas. Então, tudo o que é do
mundo delas. Então, como é que eu faria isso? Eu trabalho muito com
bilhetes. Escreva um bilhete pro seu amigo. Você não vai mostrar o bilhete
pra mim, é pro seu amigo, né? Porque uma coisa é o bilhete do aluno para o
aluno e outra é o bilhete do aluno para o aluno que a professora vai corrigir.
Então, eu trabalho muito com estas questões assim, o uso social de fato da
escrita. Éééé/vamos deixar um bilhete aqui na sala para avisar que a gente
não vai ter aula amanhã? Então, assim, colocar nas situações/ Eu interrompo:
“E de fato não vai ter aula amanhã?”
“E de fato não vai ter aula amanhã (diz MY). E prossegue: “Quer dizer,
trabalhar a linguagem o mais próximo possível do real; mesmo quando a
gente inventa situações artificiais, que essa situação ela seja o mais próximo
possível de algo real na vida delas.”
Parece que, no seu “fazer”, a professora não aborda o ensino da escrita como
“código” apenas. As considerações de MY podem ser recuperadas nas teorias e nas
teses dos autores mencionados por ela, quando, na segunda parte do questionário, os
146
professores assinalavam os nomes dos autores que “conheciam”
39
, com quem
dialogavam.
MY disse conhecer trabalhos de Magda Soares, Ângela Kleiman, Luiz Carlos
Cagliari, Percival Leme de Brito, João Wanderley Geraldi, Sírio Possenti, Carlos
Alberto Faraco, Marcos Bagno e Mikhail Bakhtin. Estes dois últimos foram apontados
como destaque na questão aberta em que poderiam indicar algum livro, autor ou artigo
que julgassem importante mencionar devido a alguma contribuição no seu processo de
ensino. De Bakhtin, citou a obra A estética da criação verbal, e em relação a Bagno,
seu comentário referiu-se aos estudos do autor sobre o preconceito lingüístico,
justificando o tema como fundamental na abordagem da linguagem.
Podemos afirmar, portanto, que, por meio de suas concepções, é possível
mostrar os pressupostos teóricos com os quais a professora dialogava e que
constituíam seus conhecimentos e seus fazeres em alfabetização.
O diálogo travado por MA, MC e HE expressam suas concepções de
alfabetização e letramento, ao mesmo tempo em que suas atitudes responsivas
denotam pontos de conflito quando a questão dos “métodos das cartilhas” aparece
explicitamente em suas manifestações orais. Antes, porém, ressaltamos o contexto,
pano de fundo em que ocorre o posicionamento das três professoras e que permitiu
entrever a responsividade de interlocutores ativos. MA dizia a partir de quê
compreendia o letramento.
MA: “Eu trabalhei muito tempo no SESI, e lá a gente trabalhava muito com a
escola da Vila
40
, da Madalena Freire. E eu acho assim que ali é letramento
também. Porque a gente, é, não tinha ( ) assim aquela coisa certinha, eram
conteúdos aprofundados e que a coisa andava, ia e quando voltava, aquilo,
dava um feedback na criança, ele vinha muito cheio de conteúdo”/
39
O instrumento para coleta dos dados questionário pode ser consultado na íntegra ao final desta
tese, nos Anexos.
40
Trata-se do Centro de Estudos de Formação e Atualização Docente, localizado em São Paulo, criado
em 1980 que, ainda hoje, discute questões didático-pedagógicas; teoria e prática de sala de aula da
educação infantil e do ensino fundamental.
147
Perguntamos, então, a MA se a condição em que produzia seu trabalho já era a
de proporcionar um ensino em alfabetização, isto é, ensinar aos alunos a leitura e a
escrita da língua materna, já que a professora trabalhava com educação infantil. Ao seu
consentimento, perguntamos-lhe como era, então, o ensino em alfabetização.
MA: “Olha, ao final do ano quando as crianças partiam de para outras
escolas um bom percentual saía lendo, escrevendo, produzindo.
Sua resposta permite que lhe façamos outra indagação, a qual orienta o
seguinte diálogo:
EU: “Tá, você atribui a que/a isso que vocês trabalhavam/escola da Vila, né?
O letramento, foi isso que você falou pra mim.” MA consente com a cabeça.
Eu insisto: “Mas o quê, entre as atividades que vocês faziam visava à
alfabetização?”
MA: “Pelas pesquisas que a gente fazia junto com as crianças, pros
conteúdos, né? Então, eu me lembro assim que a gente fazia até/amostras/tipo
de casa: o que que tinha dentro de uma casa, o que era perigoso dentro de
uma casa, o que que não era. Nessa pesquisa a gente ia buscando, né,
construir os móveis, e tal.”
EU: “E a criança aprendia a escrever a partir disso?”
MA: “Sim. ( ) EU: “Ué”/ MA interrompe:Era um outro momento.”
EU: “Mas se era letramento, e a alfabetização? Como que a criança saia
lendo?”
MA: “Porque a coisa acontecia não de um ano pro ano. Era um caminho. Ela
vinha do maternal, do pré I, do pré II, e era todo um caminho; a coisa não
tinha que acontecer num ano só!
Pelo seu enunciado, a professora MA compreende que a criança tem que ter
“tempo” para aprender, sugerindo que o aprendizado é um processo e, como processo,
148
professor e aluno têm peso idêntico na relação de ensino. No entanto, nesse processo,
segundo sua concepção, o momento” do ensino da alfabetização e o “momento” do
ensino do letramento ocorrem em “tempos” diferentes, o que, do ponto de vista que
estamos defendendo nesta tese, é um equívoco: parece remeter àquela concepção de
que primeiro o aluno monitora, compreende o som e a letra, e depois que os aprendeu,
relaciona-os com as palavras ou situações da vida cotidiana. Entretanto, quando não
tem a preocupação de definir os termos, a descrição das atividades não remete a isso.
Fizemos questão de reproduzir o diálogo com MA na íntegra, porque, a partir
dele (especialmente quando insistimos em questionar como letramento e alfabetização
poderiam acontecer juntos), outra professora, MC, reagiu com um comentário que
chamou a atenção, e pedimos a ela que o repetisse, intencionalmente.
MC: (...) É, a partir do momento que você está letrando, você está
alfabetizando. Porque o alfabetizar é adquirir/” interrompida). Alguém fala
algo, ela olha e continua como que concordando com o que haviam dito: “Sim,
o processo de “aprender” a ler e a escrever, é alfabetizar, e letrar anda junto
com alfabetizar”/Interrompe HE: “Ela falou que letramento é mais amplo”.
Volta MC: “Só que é mais amplo, ele pega mais o cotidiano, a vida real do
aluno; você traz os conteúdos pra alfabetizar, letrando, o real da criança, o
que a criança vê, o concreto pra ela; o que, antigamente, na minha época era
cartilhas, textinhos, de bichinhos, e de coisas assim fora do real/”
MA interrompe MC, e, em meio a muito burburinho, replica:
MA: “Mas não se pode negar que também alfabetizava!” [Essa fala está
permeada de outras vozes incompreensíveis. Grande burburinho]
MC: “Alfabetizava, mas o ler e o escrever/” HE: “Mas, de uma maneira mais
mecânica, eu acho. MC: “Isso, de forma mais mecânica. De um jeito que (-0-
149
). Não era texto da realidade, né?” Essas e outras vozes não capturadas estão
sobrepostas.
Em meio a essa situação, lanço a pergunta: “Por que/por que a criança
aprende?”
E é AG quem responde: “Porque hoje ela atribui sentido, eu acho, ao que ela
tá ( ), ao que ela tá estudando, ao que ela tá vivenciando/”.
Diante dessas enunciações, em que prevalecia a sobreposição das vozes dos
participantes – todos queriam falar ao mesmo tempo –, concluímos que a compreensão
de MA sobre alfabetização e letramento aproximava-se do entendimento de MC e HE
sobre o tema.
Os pontos de divergência eram que, para MA, alfabetização e letramento
acontecem em momentos diferentes”, e HE e MC não os entendem como
acontecendo em momentos distintos. Para HE e MC, a alfabetização pelas cartilhas
dava-se de “forma mecânica”, com textos “fora da realidade”; porém, o argumento de
MA era irrefutável: mesmo assim mecânicos e irreais –, esses textos também
alfabetizavam.
Sobre o que dizem HE e MC, alguns autores (MASSINI-CAGLIARI, 2001;
CAGLIARI, 1997; 1998) pontuam que, nos textos de cartilhas, situações por vezes
absurdas são forjadas nos pseudo-textos, pois o intuito é muito mais o de ensinar
determinada letra, do que trabalhar com o ensino da língua materna em contextos mais
próximos do uso social que se faz dela. Vemos, então, que textos de cartilhas ensinam
sim, letras e palavras, inclusive com algum significado; porém, o mais importante, na
cartilha, não é a expressão de idéias pela interação humana, mas a reprodução de uma
forma lingüística textual muito pobre em mecanismos coesivos, em coerência, em
progressão temática e que não remete a situações reais de uso da língua, exteriores ao
texto. E esse parece ser um aspecto que os professores, de modo geral, parecem não
considerar.
150
Apesar dos aspectos divergentes apontados, as mesmas professoras MA, HE
e MC – concebem, segundo o que podemos atestar por outros de seus posicionamentos
orais e escritos, pela descrição de algumas de suas atividades, que, em um processo de
alfabetização, alfabetizar significa também letrar e letrar significa também alfabetizar.
Contudo, também entendemos que, da resposta de MA quanto aos momentos
“diferentes” reservados para alfabetizar e letrar, duas interpretações podem ser
levantadas. A primeira é que a resposta foi devida à pressão de ter de responder a uma
pergunta cuja entonação e forma sugeria certo posicionamento nosso, e isso pode ter
provocado nela a reação por uma resposta próxima à nossa (ressalta-se, porém, que
não defendíamos aquela posição, queríamos apenas problematizar os posicionamentos
expostos). E a segunda interpretação é que a professora considerou o fato de a
alfabetização ter suas especificidades, como o ensino-aprendizado das relações e
categorizações gráfico-sonoras (SOARES, 1985; 2003; CAGLIARI, 1998; FARACO,
2000; LEMLE, 2002, entre outros), e tais especificidades constituírem um momento
distinto do aprendizado, fora do contexto de uso da língua escrita.
Se procede essa nossa percepção sobre o entendimento de MA, podemos dizer
que o posicionamento da professora assemelha-se ao já afirmado na fala de MY:
alfabetização e letramento têm a necessidade do “conhecimento do código escrito”, ou
diríamos, o conhecimento do nosso sistema de escrita. Sem dúvida, o conhecimento
das especificidades do ensino em alfabetização é necessário para a apropriação da
linguagem na forma escrita, mas entendemos que a especificidade pode ser ensinada
no contexto das práticas sociais de uso, utilizando-se dos variados suportes e gêneros
textuais existentes nessas práticas.
Vejamos, em contrapartida, no questionário, quais foram as respostas das
professoras em relação à questão formulada sobre como entendiam/definiam o tema
‘alfabetização e letramento’:
MC: “Alfabetizar é ensinar o código da escrita codificação/decodificação,
enquanto o letramento vai além do codificar/decodificar [;] busca na
realidade do aluno argumentos para o ensino.
151
HE: “Sempre ouvi falar alfabetização, o termo letramento é novo para mim.
Porém, me parece que alfabetização é mais amplo significativo para o
indivíduo) e letramento restringe-se ao ler e escrever.”
O posicionamento escrito de HE não é diferente do de RO, referente à mesma
questão:
RO: Alfabetização é o ato de ensinar a ler e escrever, ou seja, codificação e
decodificação. Letramento já ouvi falar [,] mas, porém, não sei.
Em momento posterior, durante o curso, RO faz a seguinte fala, aludindo ao
texto de Ângela Kleiman, Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre
a prática social da escrita
41
, que seria trabalhado no dia seguinte:
RO: (...) quando a mãe diz lá, que, a história que ‘a fada madrinha trouxe
hoje’, ela [a criança] letrada. Ela [a mãe] ensinando a criança o
letramento [está se referindo a uma parte do texto em que a autora explicita o
fato de que a criança antes mesmo de ser alfabetizada, ao fazer relações com
contos de fada, já está letrada].”
RO, de certo modo, passa a compreender os sentidos que têm sido
atribuídos ao letramento. Da mesma maneira, não podemos mais dizer (neste momento
do curso, estamos no terceiro dia de trabalho) que a professora não se constituiu
dos/pelos nossos enunciados, dos enunciados dos demais professores e das leituras que
fez para o próprio curso.
E é RO também que, num outro momento, na oralidade, mostra com quem
dialoga quando define alfabetização por codificação/decodificação do sistema de
escrita, termos esses que são pertinentes a uma concepção de linguagem que não tem
41
As referências completas estão no final da tese.
152
na interação social seu móvel, nem tem o ensino da língua escrita voltado para o
estudo das palavras dentro de um contexto, o do texto:
RO: “Nós, nós fizemos um curso do EJA, à noite, com a Balta. Não sei se vo
conhece a Balta.” Digo que conheço. “Ela disse que é possível/nós teimamos
com ela,/é possível o quê? pergunto, em vista do silêncio de RO.
RO: “Alfabetizar por texto, só através do texto.”
A fala de RO demonstra discordância do modo de conceber o ensino em
alfabetização pelo texto, a partir do texto. Esta orientação teórico-metodólogica
entende texto como uma unidade de sentido, cuja textualidade, ou seja, cuja coesão e
coerência de conteúdo produz igualmente sentido para a criança: um efeito de
proximidade do real por meio do texto escrito as relações com o espaço social.
Assim, não se trata apenas de orientação lingüística, mas de uma postura
didático-pedagógica de ensino da língua materna: uma perspectiva de linguagem viva,
interacional, interlocutiva, possível de acontecer inclusive quando se ensina o que
de específico na alfabetização.
Embora não tenhamos conhecimentos mais detalhados sobre a formação
profissional de Balta, ministrante do curso que RO e suas colegas participaram,
podemos fazer algumas inferências sobre suas filiações teóricas, inter-relacionando
tanto estudos realizados para desenvolver esta tese, como os discursos dos próprios
professores, em que Balta é referenciada.
Emer, ao contar a história da formação da escola no Oeste do Paraná, escreve
em sua dissertação que
Um segundo momento significativo da trajetória da Assoeste ocorreu também no ano de
1981, quando passou a refletir a questão do ensino superior no Oeste do Paraná. Para atingir
seus objetivos estatutários, era percebida a necessidade de maior fundamentação teórica para
desencadear novos avanços na educação regional. No período ainda havia recursos do
Projeto Especial, mas estava próxima a data do encerramento. A questão era desenvolver
recursos humanos locais (...). Além do mais, nas áreas de Língua Portuguesa e Iniciação à
Ciência, não tinham sido desenvolvidas ações de aprofundamento metodológico e havia
sérios problemas nas escolas.
153
Na tentativa de construir esses recursos humanos, foram programados dois cursos de pós-
graduação lato sensuem Língua Portuguesa, com um grupo de professores da Unicamp e
outro em Planejamento e Administração da Educação, com professores do Instituto de
Estudos Avançados em Educação IESAE, Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro.
Estes cursos estimularam alguns professores das faculdades regionais a realizarem pós-
graduação a nível de [sic] mestrado, contribuindo na melhoria da formação de professores ou
a pensar na educação com perspectivas teóricas mais consistentes, superando a perspectiva
tecnicista.(1991, p. 302-303, grifo do autor).
A respeito especificamente do curso de Língua Portuguesa, Emer diz que
Alguns professores que realizaram o curso de especialização em Língua Portuguesa, e
atuavam nas escolas de grau, experimentaram a metodologia de ensino aprofundada no
curso. Aquela metodologia prevê a aceitação da forma de comunicação que o aluno leva para
a escola, isto é, sua linguagem dialetal e, a partir dela, introduzi-lo à linguagem padrão. A
metodologia prevê também a produção de textos; escrever e reescrever textos até atingirem
níveis da linguagem padrão. A gramática, entendida como normas da língua, nesta
perspectiva metodológica, passa a ser aplicada nos casos concretos apontados pelo professor
nos textos produzidos pelos alunos, fundamentando a reelaboração do texto. (...) Além da
produção de textos, a metodologia prevê a leitura de textos curtos e longos. O objetivo dessa
prática é superar as deficiências na leitura. Ela distingue níveis de leitura, isto é, a
decodificação de palavras e o sentido do texto. Ler, segundo esta metodologia, ultrapassa a
decodificação.
A partir desta experiência, tanto do curso de especialização como da aplicação do
embasamento teórico-metodológico nas escolas de 1º grau, resultou em diversas publicações.
A primeira delas foi a publicação dos textos de fundamentação teórica e diversos livros e
cadernos com coletâneas de textos produzidos por alunos.
42
(1991, p. 303-305).
O trabalho de Emer, datado de 1991, explicita o tipo de orientação teórico-
metodológica que se concretizava para o ensino da língua naquele momento, na região.
Inclusive referencia, em nota de rodapé, a coletânea O texto na sala de aula,
organizada por João Wanderlei Geraldi, em 1984, e publicada pela editora da
Assoeste. Pode-se ler, nessa nota, que a coletânea, à época da dissertação de Ivo Oss
Emer, estava na “7. ed. com 24.000 exemplares vendidos” (1991, p. 305).
Na mesma esteira, a professora Baltadar Vendrúsculo publica, no ano de 1994,
pela mesma editora, o livro intitulado Educação em crise, crise na sociedade: a
perspectiva da alfabetização, como parte do Programa de Integração da UNIOESTE
com a Educação Básica no Oeste do Paraná. Destacamos um excerto do seu livro que
remete diretamente à fala de RO sobre a professora:
42
Para “fundamentação teórica” e “diversos livros e cadernos com coletâneas de textos produzidos por
alunos”, o autor acrescenta nota de rodapé.
154
Para que haja a apropriação e consolidação da escrita por parte da criança, é fundamental
que se inicie o processo de alfabetização mostrando a escrita enquanto idéia de representação
em seu caráter simbólico.
Para que este entendimento ocorra, despertando simultaneamente a compreensão cognitiva e
a possibilidade de análise crítica, deve-se trabalhar diariamente dois grandes momentos do
processo de alfabetização: 1º) O TEXTO como um todo (produção, leitura e análise) nas
suas mais variadas funções de uso desta sociedade; que sendo tantas com certeza se terá um
texto diferente para cada dia do ano letivo. 2º) AS UNIDADES MENORES destes textos
(código = símbolo = letra, sílaba e frase).
Juntamente com as atividades do texto, é preciso possibilitar à criança a
apropriação/consolidação da idéia de representação, pois é isto que são as letras, sílabas e
palavras. Então estamos agora trabalhando com as UNIDADES MENORES da escrita que
deverão partir sempre do texto.
(VENDRÚSCULO, 1994, p. 66-67, grifos da autora).
Parte das considerações finais do trabalho da autora mostra a sua postura
política como professora alfabetizadora. A sua visão de homem e de sociedade
permeia sua compreensão em torno dos métodos de alfabetização, o que critica e o que
defende:
(...) A classe dominante precisa afastar os dominados da possibilidade de desenvolverem
consciência sobre a situação em que vivem, transformando-os em ‘objetos’, ‘massa’ (pessoas
que não conseguem entender porque são o que são explorados); por isto, os textos das
cartilhas são tão sem nexo, completamente fora da realidade das crianças.
E precisa tirar da educação o conhecimento científico para que os trabalhadores não venham
a dominar o saber total, global que daria ao dominado possibilidade de reverter sua situação
de subsistência e dependência econômica. Por isto o trabalho da alfabetização nos
métodos vigentes é fragmentado em letras, sílabas e palavras sem a visão do todo que é
o texto. (VENDRÚSCULO, 1994, p. 158-159, grifos nossos).
Pelo discurso de RO, pelo conteúdo expresso nas citações de Vendrúsculo e
pelas referências bibliográficas de seu livro
43
seus interlocutores podem ser apontados
e pode ser reconhecido o diálogo mantido com suas produções. Do entendimento
refratado pela autora em relação aos autores com quem dialoga, podemos apreender
sua adesão teórico-metodológica e seu engajamento político. Estes apontam para uma
concepção de linguagem e ensino em alfabetização baseada na interlocução, em que
uma linguagem definidora e constituidora do ser humano precisa ser ensinada como
43
As referências completas para consulta sobre a produção da autora estão registradas ao final desta
tese.
155
um todo conexo e com sentido na sua visão, capaz de permitir ao aluno ampliar suas
condições de compreensão do mundo de modo mais global, menos fragmentado.
Se a concepção de Vendrúsculo sobre linguagem tem o caráter que
destacamos e mostras de seu engajamento político frente à alfabetização e à
educação escolar, em relação à leitura que esta faz do contexto social e das relações de
poder nele estabelecidas, permite, também, fazermos algumas indagações.
Questionamo-nos se a “classe dominante” exerce mesmo o domínio total sobre a
“classe dominada”. Existe, de fato, esse poder irrestrito o outro? Este outro, mesmo
“acuado” por causa das relações repressoras, não reagiria a esse domínio, resistindo
das mais diversas maneiras, amesmo como forma de subsistir? Será a opressão algo
mecânico a que o oprimido se submeta passivamente?
Do ponto de vista bakhtiniano, entendemos que a leitura da professora sobre a
realidade social não condiz com a concepção de linguagem que ela explicita, pois a
linguagem, nas suas mais diferentes formas de expressão, não prescinde de um
interlocutor ativo, que se manifesta responsivamente. Mesmo que essa manifestação
seja aparentemente “silenciosa”, é uma reação. Mesmo com um ensino que não
permite uma visão de mundo mais ampliada como o ensino por meio dos textos de
cartilha –, ainda assim, ocorre aprendizado; ainda que de modo mais difícil, mais
“penoso” para o aluno, acontece algum aprendizado. Claro está que se o ensino da
língua escrita se der baseado numa concepção de linguagem interlocutiva, interacional,
mais próxima dos usos reais em que a língua escrita é utilizada cotidianamente, os
resultados em aprendizagem, certamente, serão outros e, possivelmente, melhores.
Não fossem todas essas considerações, também é possível compreender a
resistência de RO a respeito do encaminhamento teórico-metodológico sugerido pela
“professora Balta” pela sua própria constituição como professora. Faz-se necessário
considerar que RO é uma professora que tem 25 anos de magistério e, se buscarmos
sua formação, é ela aquela mesma professora que, “mal concluída a oitava série”, vê-
se diante de uma turma de alunos para alfabetizar por um método que, em essência, era
o oposto do atual modelo textual, defendido por “Balta” nos cursos que ministra: um
método que focava o ensino pautado na silabação.
156
Outro momento importante de registrar para a análise que estamos procedendo
ocorreu ao mencionarmos que nossa alfabetização havia se dado pela cartilha Caminho
suave, de Branca Alves de Lima, momento em que RO afirma, concomitante a essa
fala: “Eu tenho, eu uso!”. Por um lado, o modo de usá-la pode ser condizente com
uma atividade sugerida por ela para a sala de aula:
RO: “Vopode fazer uma bateria de palavras com o ba-bé-bi-bó-bu; (-0-),
se você partiu do ba-bé-bi-bó-bu.
Mas, também, pode evidenciar que, apesar de o livro de Vendrúsculo conter
toda uma “prescrição”, um modo de fazer orientando o professor a alfabetizar pelo
texto e ensinando como trabalhar as unidades menores das palavras a partir do texto, e,
entre as atividades, estar a bateria de palavras, pode ocorrer que, na prática
mencionada por RO, o entendimento da professora tivesse sido outro.
Na cartilha Caminho suave, o método utilizado é o misto, com apelo
ideovisual: a partir de uma figura e de uma palavra-chave correspondente,
desenvolvia-se um pequeno texto e, após este, três ou quatro colunas com palavras que
começavam ou que continham a letra da lição em questão.
A diferença, que não podemos afirmar se RO percebe ou não, é que, além das
características mais marcantes de um texto da cartilha o pseudotexto e o ensino de
letras que vai do que se julga letras fáceis (as letras ‘virtuosas’, como b, p, t, d, f, v, ou
‘monogâmicas’, que têm apenas um som correspondente (LEMLE, 2002)) para as
letras difíceis (em que há vários sons para uma letra e vice-versa) –, há outra razão que
não é comumente abordada. Atualmente, uma prática muito utilizada em salas de
alfabetização: a “bateria” de palavras, em que o professor registra uma lista de
palavras e procura mostrar as diferentes combinações na sua formação com o intuito
de ensinar a categorização gráfica e funcional das letras. Ressalta-se que a formação
desse rol de palavras se a partir do aluno, isto é, professor e aluno elencam, numa
relação dialógica, palavras que são do vocabulário e do uso comum do cotidiano do
aluno. Essas palavras vão se ampliando na medida em que o professor vai
157
diferenciando, explicitando certas relações intrínsecas à palavra, que, na oralidade, não
apresentam distinção. Naquela cartilha em específico, Caminho suave, a “bateria de
palavras” vem pronta; visa a atender as letras da lição, dosada naquilo que o aluno
“teria condições de aprender”.
Bem o sabemos, entretanto, que professores que exploram o ensino para
além do manual didático, mas que, também, 25 anos (ou mais, pois a primeira
edição de Caminho suave data da década de 50, do século passado), isso poderia não
acontece, pois outras concepções norteavam o ensino em alfabetização.
Assim, apesar de compreendermos que cada momento histórico guarda as suas
necessidades, e, no momento de lançamento da cartilha de Branca Alves de Lima
(1948), os estudos produzidos à época não permitiam outro entendimento de
linguagem, hoje, não se pode mais aceitar tal fato. todo um corpus de
conhecimento desenvolvido em torno da linguagem, das mais variadas tendências, que
nos obrigam a outros entendimentos sobre a língua e o seu ensino. Entretanto, o fato
de não mais aceitarmos um ensino mecânico e irreal da linguagem, não significa que
eles não mais aconteçam. E se acontecem, algum motivo deve existir para tanto.
Para nós, é justamente na constituição dos professores, na sua formação, que
encontraremos os elementos que compõem o seu fazer, auxiliando-nos a compreender
o que acontece em salas de alfabetização em relação ao ensino da língua que macula o
aprendizado do aluno e permite a instauração do discurso da necessidade do
letramento. Conhecer quem são os interlocutores dos professores e o tipo de diálogo
que com ele mantêm leva-nos a compreender melhor por que alguns métodos e/ou
teorias permanecem firmes nas práticas de ensino da língua, por longo tempo, apesar
de novas teorias e ou/métodos mostrarem os limites dos métodos antigos.
Na situação colocada com o enunciado de RO, pensamos que buscar na sua
formação os elementos que a constituíram como aprendeu o ensino da língua, como
leciona, quem foram seus pares, os seus Outros, com quem dialogava durante o seu
percurso, não só, mas, especialmente, como professora pode nos auxiliar a
compreender a permanência de alguns equívocos relacionados ao ensino da linguagem
escrita.
158
No que toca às concepções trazidas por MA, MC e HE colocadas
anteriormente (a exemplo de RO), é possível afirmar que a concepção de linguagem
subjacente aos seus conhecimentos sobre alfabetização mostra seus interlocutores, seus
Outros. Uma concepção relacionada e elaborada num contexto em que a Lingüística, a
Psicologia Genética, e, posteriormente, a Psicologia Histórico-Cultural, estiveram
presentes com Emília Ferreiro e o Construtivismo, e com o materialismo histórico
dialético, na filosofia marxista e nos estudos bakhtinianos, os quais movimentaram os
cursos de formação de professores a partir da década de 1980.
Quando AG responde à nossa pergunta, mencionada anteriormente: “por que a
criança aprende”, a resposta evidencia que sua concepção de alfabetização – de
aprendizado, mais propriamente – está constituída dos estudos que concebem a criança
como alguém que produz um modo de conhecer que não é mecânico, artificial. Ao
dizer que “hoje ela [a criança] atribui sentido ao que ela está estudando, ao que ela
ta vivenciando”, denota que a criança produz sentidos não apenas pelos
conhecimentos aprendidos na escola, mas especialmente porque o que ela aprende na
escola constitui-lhe como pessoa; é algo que percebe na vida, na sua cultura, no seu
meio, no seu cotidiano; faz parte da vida das pessoas com quem convive; a língua
escrita “vive” além da escola.
No entanto, é essa mesma professora que responde assim ao questionário,
quanto ao que seja alfabetização e letramento:
AG: “Alfabetização é a aquisição do digo, a decodificação da escrita e o
letramento é a atribuição de sentidos à escrita, a significação [e retoma o
letramento] e letramento são palavras que se complementam.”
Pelo enunciado, é possível dizer que a definição da professora foge à
concepção manifestada oralmente, antes transcrita de que os sujeitos produzem
sentidos. Quer dizer, ao definir alfabetização como “aquisição do código”, novamente
vemos traduzida a idéia de sinal, de língua morta de Bakhtin/Volochinov, quando se
159
trata do aprendizado da linguagem na escola. Separa, portanto, o uso social e o caráter
interlocutivo, dialógico, da língua.
Nessa direção, o sentido produzido pelo aluno está composto da compreensão
que a professora tem de linguagem. E acreditamos que, a partir dessa compreensão, o
professor tenha mais subsídios para elencar critérios para o seu ensino, com vistas à
formação de seu aluno. As respostas de SI e CA à nossa indagação “seque nós
alfabetizadores estamos sabendo ensinar?” evidenciam que essa preocupação é uma
tônica entre os professores:
SI: “O que se espera com isso [com a alfabetização], eu pergunto/dessa
criança, porque, às vezes, eu acho assim, ler e escrever, nossa, é um passo
enorme, né? Acho que às vezes eu acho assim que muitos outros conteúdos, de
repente, leva que o professor não dá conta. Talvez seja isso. “Definir o
que/que ele precisa nessa série?Responde CA, sobrepondo sua voz à de
SI: “Garantir, ? Ele precisa sair do 1º ano sabendo o quê? Mas, o quê?
Mas, posso saber? Né? Não tem critérios?”
E continua CA: “Professora, e também a pergunta, o que que eu quero
alcançar com essa atividade, com esse caminho que eu estou traçando?”
As últimas falas são um convite à reflexão, sobre o que pensam os professores
em relação à função atual atribuída à escola e como o aluno é visto nessa relação.
Como percebem a escola nas relações com a sociedade? Como seus representantes
redimensionam sua compreensão sobre o papel da escola ao penetrarem no espaço
escolar? Como pensam a formação escolar do aluno em relação a essa sociedade?
Relembramos, entretanto, que essa compreensão individual é o resultado das
reelaborações que os sujeitos realizam, numa síntese dialógica que não se efetiva no
vazio das relações, nem no vácuo da base material e cultural da sociedade.
Quando o professor se preocupa em definir critérios para acompanhar o
aprendizado do aluno, preocupa-se com os conhecimentos dos quais que este precisa
160
apropriar-se ao final de uma série escolar, sem dúvida, este professor está interessado
na formação desse aluno: interessado em proporcionar-lhe as condições para, nas
demais séries escolares, melhor acompanhar o processo de construção de um
conhecimento sólido, capaz de fazer a diferença na sua atuação social.
Entretanto, para pensar sobre a compreensão e efetivação da função social da
atual escola e do papel do professor, em particular quando se inicia o processo
escolarizado do ensino da leitura e da escrita, torna-se imprescindível abordar dois
outros elementos que se destacaram no posicionamento discursivo dos professores: os
recursos tecnológicos e a mídia, que se juntam ao que estamos chamando “cultura
professoral”.
4.3 A FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA PÚBLICA E ALGUNS “OUTROS”
DISCURSOS
Gilberto Alves (2006), ao estudar a função da escola pública contemporânea e
o modo como esta se produz, assevera que
Está colocada para os educadores, hoje, uma árdua tarefa: a produção de uma nova
instituição educacional pública. Ela, que já vem emergindo por força da pressão social, não
pode ser identificada com a velha escola, ainda dominante e redutível, em grande parte, à sua
função especificamente pedagógica. Tal função não esgota o cabedal de funções sociais que
a sociedade vem impondo ao estabelecimento escolar e que este, desprovido das condições
adequadas, tem começado a realizar precariamente. Mesmo a função pedagógica, que tem
sido a sua razão de ser, deve ser superada na perspectiva de uma forma histórica que atenda
necessidades contemporâneas pela incorporação de recursos tecnológicos de nossa época.
Essa é a alternativa que lhe propiciará a possibilidade de incorporar conteúdo culturalmente
significativo e, em decorrência, de ganhar relevância. (2006, p. 230).
A assertiva de Alves, entretanto, distancia-se do entendimento mencionado
pelos professores alfabetizadores em relação à difícil tarefa de situar o conhecimento
científico escolar, de qualidade, necessário, em meio a tantas outras necessidades
sociais urgentes que se colocam para a escola. É como se a escola se perdesse,
perdesse o seu papel ao ter de assumir outros.
161
É o que a fala de RO, a seguir, sugere. A professora reproduz um discurso
enfático, que é dos outros professores também, quase de responsabilidade familiar:
“Então, a gente não tem que ser pai e mãe?”. Trata-se de um desabafo da professora,
que se obrigada a desempenhar outro papel, o de mãe e pai, o de ser a família
daquelas crianças que estão na sua sala de aula, junto ao seu papel de professora. Ela
percebe um desencargo da responsabilidade dos pais pela educação e subsistência dos
filhos, transferindo esse compromisso para a escola e para os professores. A fala de
RO é um modo de manifestar sua indignação diante do que ela percebe que o professor
está tendo de fazer na escola, atualmente.
Para MY, a questão é de definir o que seja a função social da escola: ação
social ou ação educativa:
MY: “(...) se perde muito assim, a função social da escola. Eu acho que na
verdade é, deu uma mistura de verbetes aí, porque na verdade a gente
fazendo uma função, a escola exercendo uma função, ééé social, mas não
social no mesmo sentido do que a gente sempre estudou e leu. A gente
fazendo a parte de ação social, né, muito mais do que ação educativa, no
aspecto assistencial, porque muitas vezes você cuida da alimentação, da
roupa, você faz arrecadação de roupa, encaminha pra médico, olha o
dentista, a questão do piolho, e às vezes, tempo de ensinar. Né? A nossa
função social não seria trabalhar o saber científico? A função social da
escola não é essa? E a gente de repente, não está tendo tempo mais pra isso.”
Outras falas acontecem junto à de MY.
A fala de IN também revela um discurso que associa a freqüência da criança à
escola à necessidade de alimentação, o que, a princípio, seria preocupação da família:
IN: “(-0-) mas é o lanche! Na minha época não tinha lanche na escola e nem
por isso (...)”
162
O fato de IN expressar que a merenda escolar é o motivo pelo qual a criança
vai à escola denota a diferença de interesses com que a criança, a de ontem e a de hoje,
freqüenta a escola. A sua enunciação sugere que o motivo pelo qual a criança
freqüentava a escola há vinte ou trinta anos era seu interesse pelo conhecimento
sistematizado a ser ali aprendido, pelo que a escola podia ensinar, independentemente
do que a escola lhe oferecesse como atrativo (e entenda-se aqui a própria alimentação),
diferentemente dos interesses de hoje, atestados por IN.
Pela comparação sugerida, está presente a idéia de que o modo antigo, o
anterior, era melhor, desconsiderando-se os determinantes históricos que o
engendrava. O que implicitamente mostra um entendimento de que a escola parece ser
uma instituição desvinculada dos demais elementos constituidores da sociedade, como
se ela fosse capaz de produzir-se isoladamente das determinações sociais, culturais,
econômicas e políticas. Sabe-se, entretanto, que o é possível transpor um
entendimento mecânico do presente pelas situações do passado, e, sobretudo, transpor
uma concepção de escola no seio de uma sociedade capitalista que cada vez mais
produz as condições de miserabilidade social, ao incitar o consumo dos produtos de
toda ordem.
As idéias de IN, no entanto, ainda se repetem, uma vez que a pobreza motiva a
existência de outros segmentos e de outras representações que permitem o
compartilhamento dessas idéias dentro da instituição escolar. Entre os vários outros
programas governamentais
44
funcionando no Brasil atualmente, temos o Bolsa-Escola,
mencionado como um dos motivadores do “estar na escola”:
44
Apenas para mencionar um programa social na área educacional, trazemos o Programa Nacional de
Alimentação Escolar – PNAE, conhecido como Merenda Escolar, o qual “consiste na transferência de
recursos financeiros do Governo Federal, em caráter suplementar, aos estados, Distrito Federal e
municípios, para a aquisição de gêneros alimentícios destinados à merenda escolar. O PNAE teve sua
origem na década de 40. Mas foi em 1988, com a promulgação da nova Constituição Federal, que o
direito à alimentação escolar para todos os alunos do Ensino Fundamental foi assegurado. O Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia vinculada ao Ministério da Educação, é
o responsável pela normatização, assistência financeira, coordenação, acompanhamento,
monitoramento, cooperação técnica e fiscalização da execução do programa”. Conforme o site:
http://www.portaltransparencia.gov.br/curso_PNAE.pdf.
163
MG: “Ivete, e é isso que a família pois na cabeça: ‘meu filho, você não pode
faltar porque senão você perde o bolsa-escola’. E daí o menino ta cheio de
piolho, você fala ‘mãe tem que deixar em casa pra você tirar os piolhos’,
‘não, eu não posso faltar’. ‘Olha a criança doente, pode até transmitir sei
lá, uma doença, que tem aí, criança tem muito e a mãe’/daí eles puseram na
cabeça isso: a escola não é um lugar de saber, de aprender, é um lugar de
ganhar vantagens. Infelizmente, a população brasileira pensa somente no
assistencialismo, entendeu? E é que nem ele [LI] falou, nós deveríamos
dizer ‘não, vai pra casa tua mãe que um jeito’, mas você tem coragem de
dizer pra um menininho que ali, raquitiquinho, você não tem coragem.”
Alguém diz ao longe: “Você é humano.” Concomitante à fala de MG.
Continua a professora: “Então, a gente erra por pena, por coração mole. Eu
acho que o errado em cima, né? Porque o governo lava as mãos, ‘eu vou
mandar dar o bolsa-escola e se vire com o resto.”
Por essa enunciação, vemos que, antes da figura do aluno, do compromisso
social que o professor tem com a formação escolar dessa criança, o professor diz
considerar o ser humano, que, na fragilidade infantil para subsistir, depende do adulto
para poder se manter. E, como diz a professora, não há adulto que não se veja
sensibilizado por essa situação ali na escola.
Ao lado desse Outro-aluno-criança, não se pode negar a presença de mais um
Outro, o governo federal e seus programas educacionais, que acabam assumindo um
importante espaço na estrutura educacional e na constituição do professor também.
O professor tem de conviver e desenvolver sua prática pedagógica
“dialogando” com uma situação posta, presente, um “outro” que lhe cobra, de certo
modo, assistência, fraternidade, solidariedade, enfim, são apelos que tocam os
sentimentos humanos. Mas, paradoxalmente, o professor, ao tentar resolver ou
minimizar o sofrimento do seu Outro-aluno, alimenta cada vez mais a condição atual
da escola pública. Uma escola que, segundo os professores, tem o desenvolvimento
intelectual do aluno subtraído pela urgência de atendimento às necessidades básicas de
164
saúde e alimentação, que, sem dúvida, não competem à escola. Entretanto, é neste
cenário que escolas e professores produzem-se, tentando não negligenciar o seu
compromisso social, o que, sem vida, não se realiza sem angústias, pois não está ao
seu alcance dar conta dos problemas sociais, que são muito mais amplos.
Dito isso, retomemos o diálogo travado entre alguns outros professores
anteriormente ao desabafo de MG, e vamos perceber Outros que se fazem presentes
em suas enunciações, que auxiliam na constituição do que entendem ser o papel da
escola e do seu fazer docente:
NI: (-0-) ele falava sempre assim, [o] professor, da faculdade. morreu
já, era um português lá de Portugal. Ele falava assim: ‘enquanto a escola não
servir ao seu propósito que é ensinar conteúdos, formais, dar conteúdos,
isso, a educação vai de mal a pior e vai piorar, e ó o que constatando. Eu
terminei em 89 minha faculdade. E ó, a escola virou uma/”
MY interrompe: “(-0-) Qualquer ação, falou que é pra atingir a sociedade, é
na escola, tudo lá na escola (-0-).” Muitas conversas paralelas.
LI: “Mas, gente, olha isso é o que o Cagliari fala que (-0-) e muito, e
tá/enquanto nós tivermos dando conta disso, nos preocupando/gente quem que
não se preocupa de ver a criança chegar na escola quase desmaiando de
fome/eu não consigo ver, e não é, não é da minha sala, acontece em toda
rede, acontece isso. Nós vamos ter que toma/nós tomamos uma atitude. Só que
enquanto nós estamos fazendo isso, é muito fácil para aqueles que detêm o
poder, eles vão levando as glórias e as honras e nós estamos (...).
NI: “É, esse é o caso! Esse é o caso! Olha, e eles [os políticos] justificam e
continuam ganhando sabe por quê? Porque os resultados das provas que eles
fazem pra avaliar o ensino comprovam o baixo rendimento, a baixa produção
dos nossos alunos.” Diz enfaticamente.
165
Esses posicionamentos dão conta de que os programas e/ou discursos de uma
parcela da sociedade e nela se encontram os políticos, a mídia oficial e também a
mídia de modo geral fazem parte da consciência dos professores produzida
coletivamente na escola, junto a seus pares, no seu cotidiano axiologicamente
construído.
Constatamos, também, que não são apenas os valores educacionais forjados no
tempo que são evocados na concepção dos docentes sobre a função da escola, mas as
representações que m de si, para si, e que a sociedade tem do seu trabalho.
Especialmente quando os conhecimentos dos seus alunos são submetidos a testes.
Enfim, a avaliação do Outro sobre o seu fazer também é motivo de preocupação para o
professor quando o seu Outro-aluno, nas condições materiais postas, não consegue
avançar nos conhecimentos legitimados pela escola e pela sociedade.
Os professores evidenciam que no e por meio das atividades desenvolvidas
no espaço escolar, lugar de seu fazer e do aprender da criança, gestam-se os
discursos que disseminam o papel desempenhado pelo professor no jogo social,
político e cultural. Contraditoriamente, nesse mesmo espaço em que a miserabilidade
das condições humanas também se manifesta, encontra-se o ambiente propício para a
propaganda eleitoreira partidária, cujos interessados os representantes políticos
voltam-se contra o próprio trabalho docente, ainda que não seja o sujeito professor o
diretamente atingido, mas o seu fazer, de acordo com a função que lhe atribui a
sociedade. Como se fosse possível seccioná-los!
Em relação à questão da política partidária mencionada, fica explícita, na fala
de MG, a compreensão que a professora tem da abrangência desse tipo de discurso, no
momento em que o diálogo, em nosso curso, girava em torno da valorização do aluno,
tema este já analisado anteriormente:
MG: “Eu faço um curso nos finais de semana, e eu coloquei, se o meu
aluno, eu trabalhando a cidade de Cascavel e falo dos três poderes e
meu aluno [fala que não quer saber de aprender aquilo porque jamais poderá
166
chegar perto do prefeito, MG diz:] não é assim, você tem que se valorizar. E
até ouvi um dos participantes do curso, que não é professor, [olhou para
mim], é político, e falou assim ‘você perdeu tempo, porque vo não deve
fazer isso [esclarecer o aluno quanto às suas possibilidades e ao conhecimento
sobre o sistema político vigente], voé professora, você não é política’. Eu
falei assim, ‘meu amigo, é por isso que você tá lá hoje. (gesticula levantando o
braço e sinalizando com o indicador para o alto). Porque o professor continua
não ensinando o aluno que ele, sabe, ele ta na mão dele [o político] (...)”
Retornando à citação que fizemos de Alves, a respeito da incorporação dos
recursos tecnológicos na escola, podemos dizer que estes e a mídia são apreendidos
diferentemente entre os professores. Eles dividem posições e sentidos quando, na sua
relação de ensinar, percebem limitados os atrativos escolares frente à interlocução com
um mundo extremamente rápido nas transformações tecnológicas.
GR: “A criança hoje tem muita informação, gente! Olha, na nossa época
andar de bicicleta era aos 12 anos, hoje, eles tão com 3-4 anos andando de
bicicleta, jogando vídeo-game, prestando atenção no que a mãe falando,
vendo a programação da televisão e ali no vídeo-game. Eles são muito ágeis
(gestos com as mãos, como se estivesse com um controle de jogo e olhando
para os lados ao mesmo tempo)”
MA: “Claro, porque além de ter/hoje, quase todo mundo tem em casa
televisão, computador, DVD, CD, não sei o quê, dedededê, ela ainda viaja,
ela ainda vai a shopping, ela ainda vai a sítio, ela ainda vai à fazenda, então
ela tem todo o mundo.”
NI: “Teria que ter um computador pra cada criança dentro da sala de aula,
porque, assim, pra conseguir manter eles atentos ( ) Porque eu acho que,
167
porque não querem escrever, porque é difícil (enumerando nos dedos os
argumentos).”
IN: um celular pra uma criança e a gente manusear; pra uma criança
de cinco anos. Ela dá um show de bola na gente.”
Compreender o conhecimento processado pela escola na relação com a criança
que está vivendo um mundo em constante transformação é compreender que muitos
outros elementos postos no cotidiano desta criança, os quais não têm como serem
ignorados pela escola. Ignorar os diálogos das crianças, de diferentes classes sociais,
com os movimentos de um mundo que não está, ou não poderia estar, desvinculado do
mundo escolar, é negar a evidência de que há outras vozes constituindo esses sujeitos e
suas formas de agir e reagir. Tais vozes, se não consideradas, continuarão a interferir
no processo de ensino e de aprendizado da língua materna, muitas vezes, sem que o
professor se conta da necessidade de ampliação do diálogo com seus alunos para
abarcar o que dizem essas outras vozes e o que os alunos apreendem delas.
Notamos que os professores, embora com formação em nível superior de
ensino, com participação constante em cursos de formação continuada, participação
em cursos lato sensu
45
, dizendo-se conhecedores de teorias modernas de ensino a
teoria dos Gêneros Textuais, Construtivismo, a Lingüística Textual, a teoria Histórico-
cultural, a Sociolingüística não conseguem alterar certa concepção de ensino da
língua e manter outros diálogos ou outros encaminhamentos em relação à utilização
dos recursos tecnológicos. Eis uma fala:
NI: “Professora, como é que a gente fica então, tendo de um lado todos esses
gêneros que a gente sabe que existe, que a gente estudando, trazendo pra
sala de aula, e como que a gente fica trabalhando ali com esses gêneros, esse,
45
Conforme apresentamos anteriormente, dos 26 (vinte e seis) participantes do curso, apenas 01 (um)
deles está cursando a graduação; os demais são todos graduados, sendo que 11 (onze) deles
informaram ter concluído curso de especialização na área da Educação e 02 (dois), apesar de s-
graduados, não informaram o curso de especialização que fizeram.
168
esse, esse, daí de um lado você aprofundando, fazendo a criança ver vários
tipos de linguagem, tatatatá, e por outro nós estamos perdendo o controle
sobre normas básicas? [Por] Que eu vejo assim: nome de pessoa com letra
minúscula, é, é, abreviaturas erradas, nome de cidade com letra minúscula na
internet, até em out-doors por , nome de/assim nome de autores, aparece
com letras minúsculas, assim nome de pessoa, como é que a gente fica/de um
lado tu a importância de conhecer as várias linguagens, mas por outro se
vê um desrespeito a uma norma, à gramática.
EU: “Então, gente/LI me interrompe para dizer: Tem mais uma coisa na
pergunta dela, se eu posso usar tua pergunta [dirigindo-se a NI], mais uma
coisa que, é o fenômeno, o fenômeno da linguagem da internet das, das salas
de, eu vejo crianças com oito, nove anos eles estão participando dos chats,
elas já tem orkut, né, e a linguagem, é uma linguagem totalmente/” MG
interrompe: “Tem coisas que eu não entendo que eles tão falando, tudo
abreviado...”” Muitas conversas eclodem ao mesmo tempo. Deixo-os falarem,
pouco consigo entender.
Apesar de os professores atestarem a relevância do aluno na relação de ensino,
de retratarem o conhecimento das complexas relações do cotidiano escolar na
realidade social, de reconhecerem, alguns, as várias linguagens existentes na/para a
interação humana, prevalece um modo cristalizado de conceber e ensinar a língua
materna. Um modo que é anterior aos estudos que veicularam e veiculam a
necessidade de voltar-se o ensino da linguagem escrita para a natureza social da
língua, que, nesse caso, inclui o contexto de atuação em que ela é utilizada.
Na verdade, trata-se da forte presença de um ensino em que a prioridade e a
relevância incidem sobre a tradição da gramática. São as vozes da gramática normativa
que persistem e concorrem com a necessidade de um ensino de linguagem escrita viva,
de uso real.
As vozes de estudos e teorias que, embora recentes, circulam no Brasil desde
meados da década de 1970 e têm sido motivo de muitas produções sobre um ensino
169
menos mecânico, menos artificial, inclusive menos traumático, são suplantadas por
esta “grande” voz, a voz da tradição gramatical que ainda povoa a escola.
Se buscarmos a origem da tradição gramatical na escola, encontraremos
fundamento para nossa reflexão nos estudos de Bakhtin/Volochinov (2004). Os
autores explicitam que a base dos estudos lingüísticos, a qual promoveu o
entendimento de que a língua é um sistema de formas normativas, foi resultado de
análise abstrata da língua, isto é, de elementos retirados das unidades da cadeia verbal;
a língua morta conservada em documentos escritos. A investigação dessas línguas
desenvolveu-se amparada em métodos práticos e procedimentos teóricos que marcam
a cientificidade da filologia. E é esse filologismo que influenciou toda a história da
lingüística européia. (96-97)
Foi esse processo de “aquisição de uma língua estrangeira utilizado em
investigação para decifrar uma língua que serviu de propósito para o ensino na escola.
Segundo Bakhtin/Volochinov não se trata mais de decifrar uma língua, mas de, uma
vez decifrada, ensiná-la. E como se daria isso? Da mesma maneira como se dava nas
pesquisas. Por meio da língua morta, as inscrições extraídas de documentos
heurísticos transformam-se em exemplos escolares, em clássicos da língua.” (p. 99) Ou
seja, a língua isolada do processo de interação nas relações sociais.
Segundo a crítica dos autores, havia de ser criado não o instrumental para a
aquisição da língua estrangeira, mas haveria de ser codificada essa língua “no
propósito de adaptá-la às necessidades da transmissão escolar.” (2004, p. 99 grifos
nossos). Assim, o sistema da língua foi dividido em fonética, gramática e léxico; os
três centros organizadores das categorias lingüísticas para atender aos fins escolares;
os quais foram formados “em função das duas tarefas atribuídas à lingüística: uma
heurística e a outra pedagógica.” (Ibid).
Do modo como vimos, diante da relação que os professores estabelecem com
a linguagem e o vínculo estreito com que vemos a gramática sendo tratada na escola,
podemos dizer que a atuação dos professores assemelha-se ao trabalho dos filólogos-
lingüistas. Pois trabalham com o abstrato formal; um abstrato que exclui a interação, a
interlocução dos sujeitos. E um ensino da língua em que seu aspecto nuclear gira em
170
torno da gramática, mesmo que travestido de elementos das mais modernas teorias
modernas, é desprovido do entendimento de que a interação humana é o eixo
fundamental da linguagem. Trabalhar a língua na perspectiva de linguagem
interacional presume a participação de sujeitos, da história, de espaços, de ideologia,
enfim, de cultura. A língua morta não abarca esses elementos.
É nesse sentido que podemos entender a fala indignada da professora NI sobre
a “perda do controle de normas básicas” da língua. Em virtude da própria história dos
estudos e das análises lingüísticas é que podemos compreender por que as antigas
idéias” em relação ao ensino da língua escrita permanecem tão fortes. Mesmo tendo
se mostrado inócuas ou relativamente inoperantes para o aprendizado efetivo dessa
modalidade lingüística, da leitura e da escrita, para as funções sociais postas.
Por outro lado, é preciso reconhecer que é não a escola, aqui, na voz dos
professores, que tem esse entendimento de ensino de língua escrita. A escola reflete e
refrata o que está presente em outros espaços sociais que reclamam relações mais
estreitas com a gramática tradicional, como o discurso da mídia escrita, da mídia
televisiva, nos locais de trabalho, até nas conversas informais.
Em nos referindo aos professores do nosso curso, e conforme
testemunhamos em muitas situações de nossa prática docente, podemos dizer também
que esse tipo de cultura em relação ao ensino da língua perpetua-se quando
percebemos a tendência de os professores alfabetizarem conforme foram alfabetizados.
É o que deixam entrever as três enunciações, a seguir:
NI: “Sabe o que que eu uso, depois de um ano que, lembra, que começou o
ciclo básico e s fomos proibidas de trabalhar a manuscrita junto com a de
imprensa, o que que aconteceu? Tivemos no final do ano/eu inclusive tive uns
cinco/seis que o conseguiram pegar a manuscrita, a caixa alta. Então,
pra evitar esse problema [do aluno aprender somente um tipo de letra], eu
com os anos lá, a gente vai formulando lá, sobre como eu tinha/fui
alfabetizada com a Abelhinha, trabalhei bastante o som.”
171
CA: “Mas como que eu não posso desejar isso? [querer alfabetizar do modo
como foi alfabetizado em 60/70] Se eu aprendi desse jeito, eu tenho que
ensinar desse jeito!”
Eu: “Por quê? Por que vocês acham? Que resposta tem pra CA? Será que
teria alguma resposta?” Burburinho. LI quer falar, não consegue. AN se faz
ouvir: “Acho que sim, a partir da prática, da observação, a gente pode estar
modificando.”
CA: Modificando, mas a gente tende a ensinar do jeito que a gente
aprendeu.”
SI: “Só que às vezes eu me pergunto, não tem/cada escola tem suas
particularidades, cada professor/que nem Tardif mesmo fala, né, você é o
professor que/o aluno que você foi, você carrega esse professor [o do período
escolar do professor], pra ser um professor igual, né? (...)”
Ser um “professor igual”, pelo que foi possível compreender pelo contexto da
enunciação, tinha o sentido de agir como seu professor agia, inclusive quanto ao modo
de ensinar. E, para seguir a interlocução de SI com o pensamento de Tardif,
poderíamos dizer, de acordo com o autor, que a tendência em ser um professor que
ensina conforme foi ensinado ocorre porque os saberes dos docentes m, em sua
formação, algumas características específicas. São 1) temporais, porque boa parte do
que sabem sobre o ensino, como ensinar e os papéis do professor decorrem de sua
história de vida, e sobretudo, de sua vida escolar. Além disso, são 2) plurais e
heterogêneos, uma vez que decorrem: a) de diversas fontes servem-se de sua cultura
pessoal, sua história de vida e de sua cultura escolar anterior; b) não formam um
repertório de conhecimentos unificado, são antes conhecimentos ecléticos e
sincréticos, e c) procuram atingir, no seu trabalho, diferentes objetivos. Também são 3)
personalizados e situados: os professores não são apenas um sistema cognitivo em
funcionamento; são uma história de vida, um ator social, um corpo, emoções, poderes,
personalidade, culturas, além de que as situações contextualizadas que vive exigem
172
dele ações pertinentes àquele momento específico. E, finalmente, 4) como o objeto do
trabalho docente é o ser humano, não como seus saberes não carregarem as
marcas do ser humano (TARDIF, 2002, p. 261-269).
Tardif defende a via da “epistemologia ecológica integral” para abranger
“todos os saberes dos professores no trabalho” nas investigações (p. 254-260). Isto é,
coloca a possibilidade de alcançar outras entradas para conhecermos e analisarmos as
práticas profissionais dos professores que não seja pela Didática, nem pela Pedagogia
ou pela Psicopedagogia.
Se analisarmos o enunciado de Tardif na perspectiva de nossa investigação,
podemos dizer que o atestado pelo autor justifica o ensino gramatical da língua que se
produz na escola porque a formação lingüística do professor teve o peso do ensino
normativo da língua. Mas, atesta também, por outro lado, que essa cultura gramatical
suplanta a função da escola em ensinar a linguagem como acontecimento, em uso,
como algo vivo e de acordo com a cultura e os sujeitos de um dado momento histórico.
Esse entendimento é proveniente dos estudos sobre linguagem que adotamos
para conhecer as concepções dos professores alfabetizadores sobre linguagem, língua
escrita, alfabetização e o seu Outro-aluno e buscar compreender o que ocorre em
relação ao ensino da língua escrita nas salas de alfabetização. Buscamos no
pensamento de Bakhtin, na sua forma de compreender o homem e a linguagem, um
caminho para dialogicamente conhecermos e compreendermos quem são os
interlocutores dos professores alfabetizadores, seus Outros que lhe constituem como
professor, seus saberes e seu fazer docente.
Nesta subseção, reunimos alguns temas recorrentes nas enunciações dos
professores relacionados à efetivação da função social da escola pública atual. Foram
abordados temas como recursos tecnológicos, programas governamentais de inserção e
manutenção da criança na escola, apelos midiáticos. Percebemos que esses temas
foram vistos muito mais no sentido de mostrarem as insatisfações dos professores com
relação a eles, do que propriamente entendê-los como elementos auxiliares no
desenvolvimento do processo de ensino. Contrariamente, apesar de os professores
reconhecerem o significado que os recursos tecnológicos têm na vida dos seus alunos e
173
a facilidade com que as crianças dominam algumas tecnologias, parece haver uma
resistência quanto à sua utilização, pois o houve nenhuma referência a seus usos em
sala de aula.
Mas, constatamos, sim, a existência de um ensino cristalizado de língua escrita
que, à revelia de os professores dizerem conhecer modos de ensinar que possam
provocar uma melhor apropriação e mais ampliada forma de conhecimento da língua
materna nas relações humanas, configura-se como um grande interlocutor do
professor: a gramática tradicional. Referimo-nos aqui ao ensino que o professor faz de
alguns conteúdos gramaticais, cujas explicações de emprego, muitas das vezes, fazem
sentido se isoladas de seu contexto enunciativo. Uma forma de ensino que retira a
linguagem de sua efetiva forma de ocorrência, como algo vivo, presente nas relações
humanas, para privilegiar certos
46
aspectos formais, metalingüísticos ou mesmo as
relações internas das palavras de um texto. Assim, o professor reafirma a importância
da língua morta no momento em que a criança sequer aprendeu a língua escrita. O
sentido de seu fazer em alfabetização passa necessariamente pelo ensino tradicional de
língua: a relevância do ensino gramatical. Mesmo quando inova o seu ensino
utilizando-se de tipologias textuais, de diferentes gêneros discursivos, a discussão das
relações desses gêneros em sociedade fica obscurecida pelo que lhe é imediatamente
perceptível, a forma.
Entretanto, não se pode desconsiderar que esse modo tradicional de ensinar a
língua é parte de uma forte tradição gramatical valorizada socialmente e, como tal,
também pela escola. Assim sendo, é preciso reconhecer que como tradição, o ensino
tradicional de língua, pela gramática, foi a base lingüística ensinada ao professor
durante a sua formação escolar. Daí a importância da referência gramatical que,
embora querendo negá-la, por conta de estudos mais atuais, prevalece nos momentos
únicos e irrepetíveis de ensinar a língua escrita. Isso faz com que nem sempre o
conhecimento mais próximo, o recém-apropriado, suplante o anterior, mais distante,
46
Dizemos “certos conteúdos gramaticais” porque nossa experiência tem mostrado, assim como se
mostrou em conversa informal com alguns professores participantes desta pesquisa, que a maioria dos
professores alfabetizadores tem conhecimentos muito superficiais sobre os conteúdos explicativos das
gramáticas e que poucos as utilizam como fonte de consulta e material de apoio ao seu fazer docente.
174
incorporado, assimilado. Trata-se de compreender que o ensino ministrado pelo
professor é aquele que lhe fez/faz mais sentido, ou que tenha se produzido na síntese
dialógica que elabora constantemente, cotidianamente, axiologicamente.
É à discussão desse grande Outro da tradição, que neste pico apenas
mencionamos suas raízes, e ainda sobre o livro didático, outro interlocutor dos
professores, que vamos dedicar a parte final deste capítulo.
4.4 LIVRO DIDÁTICO E GRAMÁTICA: OS OUTROS “MAL-DITOS” DA
ALFABETIZAÇÃO
A abertura desta subseção tem por objetivo mostrar especialmente dois Outros
presentes nas enunciações dos professores que, cotidianamente, “freqüentam” as salas
de aula de alfabetização e dividem opiniões. Trata-se do livro didático e da gramática
normativa. Diríamos que o modo de concebê-los retrata uma cultura muito específica,
que se define por discursos contraditórios, não porque os professores se desdizem, mas
porque o que mais aparece, retumba, é o misto de um interlocutor rechaçado,
condenado por muitos discursos, mas necessário, presente, reclamado por outros ou
seja, constantemente lembrado, ainda que o desejo fosse de esquecê-lo. A nós, no
entanto, parece ser um tema que ainda exige reflexões que explicitem o caráter
especialmente metalingüístico do ensino da linguagem na escola. Reflexões que
faremos a partir das enunciações dos professores sobre o tema nesta subseção.
Abordaremos primeiro os discursos escritos e orais que abordam a interlocução com
o/sobre o livro didático e, a seguir, com a/sobre a gramática normativa.
Inicialmente, vejamos o argumento utilizado no momento em que a discussão
tem como tema “o interesse dos governantes” para com as classes populares:
LI: “Se você pegar o livro didático você vai perceber que realmente eles
fazem um livro didático que se você não correr atrás, que nem a MY faz/
“você não faz nada”, sobrepõe RO. E continua MG, [tem que buscar uma
175
série] de coisas fora do livro didático, o livro foi feito pra ficar bobinho,
burrinho mesmo, ser passado pra trás.
A réplica veio na direção de que tanto o material para a classe popular quanto
aquele para a escola particular (subentendendo-se que o material de escola particular
seja melhor em relação ao livro didático adotado pela escola pública) dependem do
encaminhamento, do conhecimento do professor, dos acréscimos que o professor pode
fazer nos seus conteúdos ou na metodologia utilizada.
MA: Se você pegar o livro didático ou a apostila da escola particular não
tem diferença. Depende de cada um (-0-).” Essa última fala de MA ocorre
em concomitância com o início da fala a seguir de MG.
A resposta de MG:
MG: “Mas é que se trabalha (...). Quando nós fizemos a revisão do PPP
(dirigindo-se a RO) na escola, falei, gente, que Geografia é essa que eles
ensinam? Gente, pega o livro de Geografia, é, é coisa que, é absurda. Cadê
os temas que interessa/pra eles [os alunos] verem a mudança que
ocorrendo no País, ninguém faz nada; em termos geográficos mesmo,
entendeu?
Apesar das considerações de MG e de MA sobre a precariedade dos conteúdos
do livro didático de primeira série, outros professores que requerem, mostram que
precisam de um norte para o seu ensino e sentem falta do livro didático ou de apostilas
para alfabetizar. ML assim registra seu enunciado no questionário quando a pergunta
referiu-se à possibilidade de sentir dificuldade ou não no processo de ensinar, e, no
caso afirmativo, a que atribuiria:
176
ML: “A lentidão em que nos são fornecidos materiais xerocados, o número
limitado de pias por alunos, falta de equipamento (computador, scanner)
para preparar atividade. São barreiras que tornam nosso trabalho lento e
cansativo se tratando do ano [primeira série obrigatória no ensino de nove
anos] no qual não disponibiliza de ‘nenhum’ material para apoio (livro,
apostila).”
As dificuldades descritas por ML além de revelarem algumas especificidades
do ensino na série de inicial de alfabetização: a necessidade de material diversificado e
o número maior de cópias xerocadas, mostram que nem sempre esses materiais vem ao
encontro das necessidades. Trata-se de um discurso comum de professores de escola
pública. Assim, não é de se estranhar que a professora reclame da falta de alguns
equipamentos na escola.
Porém, o que queremos destacar é que a reclamação de ML sobre a falta de
material de apoio é o que mais parece pesar na sua primeira experiência como
professora de alfabetização. E, neste caso, perguntamo-nos se não estaria aí localizada
uma outra questão. Faltam materiais ou faltam também critérios que permitam à
professora melhor organizar seu ensino? Pois, pensamos que se os critérios estiverem
bem definidos, a professora terá mais facilidade em traçar as metas do que pretende
com seu ensino da língua. E, mais do que critérios delineados claramente, acreditamos,
conforme vimos defendendo neste trabalho, uma clara concepção de linguagem e um
ensino coerente com ela podem auxiliar a professora em meio a suas dificuldades.
É nesse sentido que acreditamos que os professores, de modo geral, podem
aproveitar melhor o conhecimento prévio dos alunos (sobre o que sabem sobre a
escrita, por exemplo) e melhor aproveitar os estudos atuais em torno dos gêneros
textuais, por exemplo, a partir do aproveitamento dos diversos textos que vemos
circulando no nosso cotidiano para suas aulas de alfabetização (panfletos, cartazes,
propagandas, os próprios documentos dos alunos, o livro de chamada etc). Pensamos
que esse entendimento não é uma questão de criatividade do professor, antes uma
compreensão de linguagem e de funcionamento desta na sociedade.
177
Sobre essa questão de materiais de apoio, percebemos pelos enunciados dos
demais professores de nossa pesquisa que estes se valem de muitos “interlocutores”
para preparar suas atividades docentes cotidianamente. Mas, um privilegiado. Isso
está nas respostas dos questionários:
AN: “Planejamento (base) a partir do Currículo Básico. A partir dos temas
pesquisa(dos) em livros didáticos (textos, atividades e procedimentos
metodológicos).”
LU: Livros (do aluno), livros direcionados ao professor e vídeos, conforme
conteúdos do planejamento bimestral.”
CE: “Planejamento anual da série; pesquisa em diferentes livros pedagógicos
da rie (livros didáticos) e na “troca de experiências e informações com
outros professores e com a coordenadora”.
NL: “Planejamento, troca de idéias com professores que atuam na mesma
série, textos ou artigos na internet, revistas que a escola assina, consultando
outros livros didáticos.”
MC: “Leitura de artigos, textos em revistas (Nova Escola), textos sobre
assuntos ligados à educação na hora atividade e diário de aula baseado no
planejamento anual dos conteúdos referentes à série e livros didáticos.”
MA: “Pesquisas em livros pedagógicos, revistas dirigidas, para aprofundar
conteúdos do livro didático. Notícias, acontecimentos que merecem maior
atenção.”
RO: “Pela coordenadora, da proposta de ensino, textos da internet, jornais e
livros dos próprios alunos.
178
Ao destacar a referência ao livro didático, não queremos provocar o
apagamento dos outros movimentos dialógicos estabelecidos pelos professores. O
intuito é o de mostrar que, apesar das condenações recebidas, é ele que aparece como
fonte de consulta (seja ele o livro da série em questão ou outros), como orientação
metodológica, como forma de aprofundar os assuntos que serão tratados em sala, nele
ou a partir dele.
Entendemos que essas são demonstrações de que o livro didático – à revelia de
qualquer juízo de valor que se possa fazer sobre eles, criticando ou enaltecendo sua
existência, seus conteúdos promove e circunda o fazer do professor. Como vimos
nas falas anteriores, é um importante interlocutor do professor, direcionador do seu
ensino.
Esse fato, de certo modo, também aumenta a responsabilidade daqueles que
analisam os pressupostos teórico-metodológicos e classificam os manuais a serem
postos em circulação, pois, como mostram os professores, eles são coadjuvantes
importantes no processo de alfabetização.
Do mesmo modo, ao publicizarmos e confirmarmos a marcante dialogia dos
professores com os livros didáticos, as escolas também se tornam mais responsáveis
pelas adesões sócio-político-culturais assumidas nos livros didáticos, tanto na escolha
do manual para orientar o trabalho docente na série, quanto na atenção dispensada às
diferentes ideologias presentes nos livros didáticos que circulam na escola.
Pensamos, enfim, que uma análise rigorosa ou estudos coletivos dos materiais
que chegam na escola, seja livro didático ou outros materiais tais como as revistas
Nova Escola, Pátio, Professor, apresentadas como interlocutores em outros momentos
pelos professores podem auxiliá-los a tornar o seu processo de ensinar em
alfabetização mais coerente com o que acreditam.
Vejamos as indicações dos próprios professores em relação aos seus outros
interlocutores. A pergunta do questionário havia sido formulada na direção de que
apontassem se faziam leituras para auxiliar o seu ensino, quais eram e quem as
orientava:
179
CR: “Sim, Revista Nova Escola, orientações (sugestões da coordenação ou
colegas com mais experiência/formação na área).”
LU: “Sim. Lendo livros, revistas, assistindo vídeos diversos como exemplo:
Um Salto Para o Futuro e outros autores que relatam suas experiências e
conhecimentos que ‘vem de encontro’ [sic] com minha prática. Procuro
sempre conhecer algo mais, troco experiências com colegas.”
CA: “Sim, lendo a Revista Escola livros textos geralmente referentes ao
ensino em geral.”
MG: “Sim. Revista Nova Escola, artigos em jornais e outras revistas, filmes e
documentários. Professores colegas de escola, e fora dela, coordenadores.”
NI: “Sim. Revista Nova Escola, Ciências Hoje, Amigos da Natureza,
Professor, etc.”
ML: “Revista Nova Escola pelo tema que me atrai (alfabetização é um
deles).”
AM: “Sim. Através de livros e revistas como Nova Escola ou Professor, e
quem me orienta, às vezes, é a coordenadora pedagógica e eu mesma.”
AL: “Sim, Revistas (Nova Escola), artigos que falem sobre o tema, livros.
Recebo orientações das colegas de trabalho, da coordenadora.
Como se pode perceber, a Revista Nova Escola é repetidamente apontada
pelos professores como uma de suas leituras, portanto, um de seus interlocutores. Essa
constante referência permite que façamos algumas inferências sobre essa publicação. É
disponibilizada pela escola; está na escola porque tem baixo custo; tende a mostrar
“como se faz” em educação; contém depoimentos de práticas que dão certo, além de
180
ser de fácil acesso fora da escola bancas de jornal e também poder ser comprada
por um baixo custo, sem ser assinante.
No entanto, apesar da referência à Revista e a outros materiais didáticos
podemos dizer, pelos posicionamentos dos professores retratados a seguir, que eles
sentem falta, m necessidade de discutir os temas de seu interesse entre eles mesmos
ou com outros professores, com o propósito de tirar melhor proveito dos assuntos
tratados naqueles materiais didáticos. Vejamos o que disseram alguns professores
durante o curso que ministramos, quando:
a) discutíamos sobre a manutenção de uma unidade do ensino em
alfabetização;
AN: (...) eu também penso da mesma forma que você (para SI). É, eu acho
que falta pra gente momentos como esse, de nós estarmos sentando juntos,
conversando, discutindo, pra ter um embasamento teórico. Eu acho que pra se
conquistar essa unidade [no ensino], o primeiro passo é ter esses momentos
pra gente sentar e discutir.”
b) os participantes discutiam formas de vencer os possíveis fracassos em
alfabetização, tentando localizar onde estariam os problemas de seu ensino;
LI: “(...) por outros colegas que a gente conversa [para definir melhores
formas de ensinar], a gente sempre nessa troca de informações pra ver se a
gente consegue melhorar. (...) Então, essa discussão nós temos que fazer.”
Se, por um lado, o livro didático é um dos Outros muito presente na vida
profissional do professor, por outro, a gramática normativa, que, como
apontamos anteriormente, traduz-se em outra presença constante no seu fazer
pedagógico. Vejamos, logo abaixo, o que dizem os professores a seu respeito, sobre a
compreensão que têm da gramática, qual o espaço que a gramática ocupa no seu
ensino em alfabetização e na sua constituição como professor. Esclarecemos,
entretanto, apenas para “limpar o terreno”, que este tema, a exemplo de todos os
181
demais, não foi sugerido no curso, mas emergiu durante as discussões e foi aqui
trazido por se configurar um importante elemento de interlocução no saber e no fazer
dos professores. Interlocução essa que não se mostrou amena; ao contrário, foi
conflituosa, difícil, e permitiu entrever, nas manifestações dos professores, o quanto o
tema “gramática” e seu tratamento na escola ainda provoca inquietações em relação ao
ensino da língua. Percebemos, a partir das colocações sobre esse Outro do professor,
que outros temas, tais como variedade lingüística, diferenças regionais e dialetais, são
confundidos com “erros gramaticais” e denotam certos modos de conceber a
linguagem e ensinar a língua escrita.
A enunciação de NI é longa, mas vale reproduzi-la:
NI: Olha, eu tava discutindo aqui com as meninas, depois de tantos anos (-0-
) por exemplo, de corrigir, de corrigir os alunos, eu vejo assim essa
dificuldade de 1 erre, de dois erres, essas diferenças regionais que a gente
estuda, da pronúncia/eu não acho grave, e assim, questão de você perder
(gesto de entre aspas para o verbo), de você ter que perder tempo chamando a
atenção da criança, tendo que corrigir ela, porque dvocê vai entrar em
conflito escola e casa. Eu vejo outra coisa grave que acontecendo entre os
professores; começa a prestar atenção no jeito dos professores falar [sic]: ‘eu
gastei 5 real no mercado’, ‘eu... ontem nós fumo na casa da minha sogra e,
e não sei mais o quê’. Erros de concordância nominal, verbal, da fala
corriqueira; se a pessoa não tem essa sensibilidade, não tem esse cuidado no
que ela fala, [se] ela não presta atenção no aluno, ela vai exigir o quê, em
sala de aula? Ela [a professora] vai produzir como? Ela faz/qualquer fala dela
é... são frases assim, é, que exige uma, uma elaboração melhor. Fala [a
professora a quem se refere], ‘nossa, ele usa gi’/giz não é tanto, mas, às vezes,
palavras pesadas, ou coisas que nem todas as famílias usam, por exemplo,
“cala a boca”. Isso faz anos que eu percebi, até que um dia, uma menina
chegou pra mim, e, assim, ‘professora, a fulana de tal me chamou de “cala a
boca”’; a menina pensava que era um palavrão. Então pra tu ver assim,
182
que, coisas assim (gesto com as mãos, unindo as pontas dos dedos de cada
mão), tão pequeninhas, tão, às vezes que passam despercebidas pra algumas
pessoas, e que são, que eu acho importante nós trabalharmos em sala de
aula.”
Da fala de NI, alguns aspectos precisam ser desenvolvidos. Primeiramente, e
embora permeando outra temática, concepções de linguagem presentes no discurso
da professora que não podemos nos omitir de abordar. Sobre a afirmação de que a fala
é algo que precisa ser corrigido, a posição da professora, se, por um lado, choca-se
com as teorias sociológicas, lingüísticas e culturais que defendem o respeito e a
consideração pelo modo de falar das pessoas, por outro, denota a coerência da
professora em relação ao modo como diz agir em sala de alfabetização. Conforme
discutimos anteriormente, a fala de NI aponta para a tendência que tem em alfabetizar
como foi alfabetizada: eu com os anos lá, a gente vai formulando (...) sobre como eu
tinha/fui alfabetizada com a Abelhinha, trabalhei bastante o som”. A aproximação do
seu ensino com o método fônico (ainda que a professora, em outros momentos, diga
utilizar-se também de outros métodos para alfabetizar) condiz com a concepção de
linguagem na perspectiva fônica, analisada por Cagliari nestes termos:
(...) o método fônico considera que uma criança, aprendendo a reconhecer e a analisar os
sons da fala, passa a usar o sistema alfabético de escrita de maneira melhor. Essa idéia revela
uma concepção de linguagem, segundo a qual uma pessoa ‘fala melhor’ quando monitora os
sons que pronuncia, o que é falso. Quem fala ‘tchia’ em vez de ‘tia’, e aprende a escrever
‘tia’, continua falando ‘tchia’ e nem se dá conta da diferença, porque, quando falamos, nos
preocupamos mais com as idéias que queremos transmitir do que com os sons das palavras
que irão revelar nossos pensamentos. (1998, p. 42).
Assim, se os sons são monitorados, a fala também precisa sê-lo, daí a
coerência com a “correção necessária” expressa na fala da professora.
Outra evidência registrada na primeira parte da enunciação de NI é o fato de
que a “correção de pronúncia de um erre, dois erres” também pressupõe certa
concepção de linguagem, que, assim como a anterior, sustenta que a língua falada
precisa ser “corrigida”. Entretanto, a professora não o faz porque não acha importante
183
“perder tempo” com isso e, ao “deixar passar” e “não corrigir” a fala do aluno, evita
possíveis conflitos entre escola e família, ou seja, não atrita o modo de falar aprendido
na escola com o modo de a criança falar em sua casa. Assim, nessa concepção, não
vemos presentes os pressupostos dos estudos referentes à valorização das diferenças
dialetais e o respeito que se deve ao universo cultural do Outro. A fala de NI guarda a
adesão a uma concepção de ngua elitista, preconceituosa e discriminatória, que se
revela no seu ensino, na sua argumentação.
As diferenças dialetais são peculiaridades da língua falada que podem
denunciar, sim, a localização social, cultural, geográfica, econômica, de idade e até de
gênero dos sujeitos. No entanto, ao serem mostradas, analisadas, discutidas, tomadas
como tema de estudos escolares, ao saírem de um patamar de pessoalidade, de
“opiniões”, podem apontar caminhos para a consciência e a valorização da cultura de
outros grupos sociais, minoritários ou não, independente da sua pertença econômica.
Não desconsideramos que o papel da escola seja o de ensinar as formas
verbais valorizadas socialmente, e a norma padrão, a forma escrita convencionada.
Mas, mesmo aí, podem se reduzir muitos apelos gramaticais que não faz sentido serem
ensinados nem na escrita: um ensino desvinculado das formas enunciativas geradas a
partir de um contexto concreto.
Marcos Bagno é um estudioso da linguagem que tem se ocupado de estudos
sobre o preconceito lingüístico. Defende, em suas produções, o respeito a todo tipo de
diversidade lingüística, tanto a independência da fala em relação à escrita, quanto as
diferenças existentes dentro da própria língua falada (2001; 2003). É o caso, por
exemplo, das diferenças entre o português falado no Brasil e o português falado em
Portugal, sem, contudo, um ou outro ser melhor ou pior (BAGNO, 2003, p. 15-71),
apesar de alguns brasileiros famosos (normalmente gramáticos, filólogos e formalistas)
defenderem que nós, brasileiros, deveríamos falar com o português de Portugal.
Para Bagno, esses gramáticos, ao atribuírem ao nosso falar a idéia do “errado”,
do “pobre”, da “ignorância” ou como o linguajar próprio de um país “tupiniquim” (e o
somos mesmo), eles tão somente retiram o que é uma característica da nossa língua: a
ampla miscigenação da nossa cultura. Pensar assim é defender a idéia de “uma língua
184
única, imutável”. Apesar de a língua representar um sistema de normas lingüísticas,
não se pode descartar as enunciações dos sujeitos que por esse sistema também se
manifestam. Isso quer dizer que
Os processos de centralização e descentralização, de unificação e de desunificação cruzam-
se nesta enunciação, e ela basta não apenas à língua, como sua encarnação discursiva
individualizada, mas também ao plurilingüismo, tornando-se seu participante ativo. Esta
participação ativa de cada enunciação define para o plurilingüismo vivo o seu aspecto
lingüístico e o estilo da enunciação, não em menor grau do que sua pertença ao sistema
normativo-centralizante da língua única. (BAKHTIN, 1988, p. 82).
Assim, amparados nessas reflexões de Bakhtin e considerando o que diz
Bagno (mas sem desconhecer os limites de alguns estudos lingüísticos quanto ao
caráter excessivamente prático e restrito com que a linguagem, no seu aspecto
pedagógico, é tratada) é que analisamos, nas enunciações de NI: a confusão que a
professora faz entre as formas dialetais, regionais, dos alunos e dos professores; o
tratamento ético (pessoal e profissional) dispensado aos alunos; e os “erros
gramaticais” cometidos na oralidade.
Destacamos agora, da mesma fala da professora, os aspectos relativos à
necessidade de domínio sobre o seu (do professor) objeto de ensino.
No enunciado de NI, a queixa da professora em relação aos erros de
concordância nominal, verbal, da fala corriqueiraque os professores têm cometido
em sala de aula, refere-se ao domínio do objeto de ensino do professor alfabetizador.
Quando NI questiona, se a pessoa não tem essa sensibilidade, o tem esse cuidado
no que ela fala, ela não presta atenção no aluno, ela vai exigir o quê, em sala de
aula?”, ela está chamando a atenção justamente para o conhecimento a respeito da
língua e o cuidado que o professor deve ter ao utilizar a linguagem, quando está
trabalhando com ela, ensinando-a. Esse cuidado é necessário quando está em jogo a
intencionalidade do ensino da língua, pois, na interação verbal em sala de aula, o
professor precisa manter uma conduta ética e lingüística com seus alunos.
É preciso considerar que a sala de aula, por si só, constitui-se em um gênero
de interlocução – tem as suas particularidades, há toda uma conduta, um modo de estar
presente neste espaço, seja ensinando ou aprendendo - que propicia a entrada de outros
185
gêneros. E, como todo gênero, direciona-se a um determinado auditório, tem uma
função específica na sua forma de interlocução.
No gênero particular de interlocução em sala de aula, o ensino da língua
materna tem de transitar entre o sério, o rigoroso, e o mais leve, o divertido, o
pitoresco. Isso em decorrência da variedade dos gêneros que penetram nesse ambiente
por conta de ser tarefa escolar o trabalho (ainda que na medida do possível) com os
gêneros textuais orais e escritos que circulam socialmente, mostrando seu papel na
dinâmica das relações lingüísticas para além da escola. Esse é um fato que entendemos
ser importante o professor considerar quando NI manifesta o cuidado com a utilização
da língua e o juízo que faz dos falantes no contexto interlocutivo da escola. Não
para anular o fato de que a variedade lingüística existe em situações específicas de
contextos sociais.
Podemos dizer que a preocupação de NI em relação ao modo de falar daquela
professora é perfeitamente compreensível, pois, assemelha-se ao que dizem Faraco e
Castro (1999) sobre a relação que a Lingüística Textual estabeleceu entre a língua e a
gramática. Por conta de entender a gramática tradicional como um “aglomerado de
inadequações explicativas sobre os fatos da língua” (p. 189) a lingüística do texto
sugeriu um trabalho que se utilizasse de uma “percepção prático-intuitiva dos fatos
gramaticais” (p. 181) presentes no texto escrito. Não é difícil inferir que se essa
percepção deve ocorrer em relação à escrita, com a fala mais ainda.
Nesse sentido, percebemos que a preocupação de NI, com um falar adequado à
ocasião e ao seu público, mesclada com uma concepção de ensino de língua amparada
em uma gramática tradicional (conforme anunciamos no subtópico anterior, em
relação ao uso de letras maiúsculas e erros ao grafarem-se abreviaturas) encontra
respaldo em seus pares, durante o curso. Estes compartilham da sua posição e, assim,
vão compondo uma cultura professoral nesse nível de ensino.
LI: “Com relação ao que falou aquela professora (aponta para a direção de
NI), eu vi numa sala de alfabetização, uma professora ensinando a palavrinha
‘miau’ e no quadro tava lá, bem grande, a palavra ‘minhau’, com nh.” Ele
186
repete, dirigindo-se, no sentido de responder a alguém: “minhau, com nh”.
Volta LI a falar: “E outra coisa, não foi essa palavra, outras palavras, né,
realmente, a professora/(aponta lateralmente o polegar em direção à
professora NI) é preocupante.”
Embora o que diz LI seja parcialmente condizente com o que fala NI, sobre o
que é erro e o que é variedade lingüística, variedade dialetal, a gravidade em relação a
quem ensina a língua materna é a mesma. Na situação relatada por LI, percebe-se a
ignorância do professor que, ao ensinar a língua escrita do modo como o faz, mostra
seu desconhecimento sobre o que precisa ensinar – a língua escrita , e o faz de forma
totalmente equivocada, com sérios prejuízos para o aluno.
Ainda com relação à fala anterior da professora NI, em momento seguinte, foi
possível compreender, pelas suas próprias enunciações, a sua constituição pessoal e
profissional, permitindo identificar os parâmetros lingüísticos e interacionais que
formaram as concepções registradas:
NI: “Isso aconteceu no último semestre; de quando eu fiz faculdade, em
Marechal Cândido Rondon, tinha/eu fazia trabalho junto, com a (-0-), a B.,
acho que ela aqui (na UNIOESTE), queria tanto ver ela e a C. (-0-). Elas
se juntavam e gravavam as nossas falas e depois rodavam pra nós analisá
[sic] e prestá [sic] atenção (colocando as duas mãos na região dos lóbulos
temporais), comparava um com outro. No primeiro dia de aula, me lembro
como se fosse hoje, uma menina (-0-), ela falou assim: ‘ai, fui [uma expressão
falada em contextos em que vivem descendentes de alemães] que nojo!’ A M.
B.: fui? Pra onde tu foi?’ Todo dia ela fazia isso, pro professor criar o
hábito, sabe, de prestar atenção na fala da gente. Fui é ir, você pode falar
‘eca’ ou qualquer coisa lá..., mas o fui? Você tem que ensinar pra criança que
é um verbo, é uma ação (...).”
187
A professora demonstra, em sua fala, que age conforme foi ensinada. Não
fosse só esse o motivo, a seqüência dessa fala de NI mostra o ímpeto responsivo de IN,
ao se sentir, de algum modo, atingida na sua cultura, na “identidadede seu grupo de
origem, aspecto que trazemos aqui com o intuito de mostrar o quão é delicada e
complexa a valoração do “certo” e do “errado” em língua. Mesmo porque a realidade,
o cotidiano, não podemos vivê-los e conhecê-los em sua plenitude para termos a
compreensão de todas as situações, especialmente, as lingüísticas, que traduzem a
complexidade da diversidade cultural da sociedade. Vejamos:
IN: “Mas a palavra ‘fui’ em alemão é nojo!Diz, voltando-se para NI que,
imediatamente, responde: “Sim.” Risos da própria NI. Desconcertada, eu
pergunto: “O quê?” Muitos repetem para mim: “A palavra fui é nojo!” Eu:
“Nojo? “‘Ai fui’ é ‘ai que nojo’?E para tentar minimizar o constrangimento,
arremato: “É bem complicada essa questão da oralidade, né?”
Em outra fala, NI se manifesta em relação ao modo como determinadas
formas de escrita artísticas ou mesmo a linguagem utilizada para conversar na Internet
atrapalham o ensino da língua escrita e o uso correto” da linguagem. São
posicionamentos que mostram, mais uma vez, o tipo de diálogo mantido com os
aspectos gramaticais e ortográficos da língua.
NI: “Veja a discussão/que eu cheguei à conclusão conversando com a
minha aluna que levantou isso [sobre a escrita de nomes próprios com letra
minúscula] e eu também já tinha trazido em sala. Ela falou assim, ‘professora,
mas então nós o precisamos aprender essa coisa, porque nós não vamos
mais usar, porque vou usar o computador, vou ler os livros, tudo vai ser
minúsculo, nós não precisamos mais escrever com maiúsculo.’ Eu: “E aí, o
que você respondeu?” NI: “E daí, eu falei assim, eu, preservo ainda, e eu
ainda dando/eu falei assim, quero ensinar, que vocês saiba o que é ainda
considerado correto. Agora quando você for escrever no teu computador,
188
ou você vê [sic] alguém escrevendo minúsculo, com intenção ou sem intenção,
eu falei ó, ‘é problema deles’. Eu sei que gramaticalmente é incorreto, é
errado. Porque é uma pessoa e errado. Se for pra chamar atenção, se for
pra não sei o quê, que botou letra minúscula ( ). Eu falei assim porque eu não
tinha [mais argumentos].
Essa fala de NI remete à idéia de gramática discutida por Castro (2006), em
que o autor tece uma reflexão crítica em relação aos discursos sobre a língua e a
Lingüística que alguns brasileiros ilustres escritores, gramáticos, jornalistas
disseminam. O autor, quando analisa um conjunto de enunciados que tematiza sobre
norma gramatical, diz que o que observa “é que muitas vezes a língua mais
precisamente sua norma gramatical – é entendida como algo maior do que realmente é,
como se ela fosse uma metonímia da linguagem, a parte se passando pelo todo. Assim,
questões mais amplas da ordem da comunicação social, da interação, são
compreendidas e interpretadas sob a luz do holofote gramatical” (p. 115). E, ao tratar
dos discursos de dois jornalistas (Luiz Antonio Giron e Eduardo Martins – este,
escritor do manual de português do Estadão), menciona textualmente o discurso deste
último: “O português vem sendo prejudicado menos por nós, divulgadores, que pela
linguagem publicitária, que profana regras sagradas da gramática” (p. 116). Na
avaliação de Castro, estes, ao invés da reflexão e da compreensão das características
contemporâneas complexas de elaboração e construção dos textos de publicidade,
cortam caminho, buscando o “atalho fácil das motivações gramaticais” (p. 116).
Podemos dizer, sem exageros, que o entendimento da professora NI, a resposta
que à aluna sobre como a norma gramatical relacionada ao uso publicitário ou
literário, assemelha-se aos pressupostos sobre a língua apontados pelos jornalistas. E,
tal como se pode inferir de Castro, perde-se a oportunidade para compreender ou
mesmo apenas problematizar para a aluna (e os demais) a especificidade que textos
publicitários, por exemplo, guardam com relação aos aspectos normativos da língua,
mostrando a complexidade própria desse gênero textual na atualidade.
189
Interessante notar que o posicionamento da professora sobre o ensino da
gramática normativa na escola recebe também o apoio de alguns outros professores.
Estes, pelas interlocuções estabelecidas, parecem se referir ao tema como um único
modo, o correto, de ensinar a língua escrita; o modo especial de prezar o ensino
escolarizado da língua, que desconsidera os demais tipos de linguagem e a utilização
dos vários alfabetos que circulam socialmente. São posicionamentos que mostram a
adesão ao ensino e ao emprego da norma culta valorizada especialmente por
gramáticos, posicionamentos que colocam na orientação gramatical a importância
desse tipo de ensino da língua escrita, comprometendo ainda mais a aceitação dos
falares cotidianos que se afastam da norma culta de escrita. A conversa de MA com
outras professoras, a seguir, é um exemplo do que afirmamos:
MA: “A [sic]que tem na Cultura (canal de televisão) um programa, de
um professor de Português que é maravilhoso, só que é muito tarde.”
NI: “Eu gosto, eu amo aquele professor.”
Alguém fala em Pasquale
47
. Querem saber de quem MA está falando. Esta
responde:
MA: “Não é o Pasquale.”
E sobre ele, LI pondera:
LI: “É que Pasquale é um produto para vender, né? O Pasquale é um produto
feito pela televisão pra vender.
47
Pasquale Cipro Neto é professor de Língua Portuguesa, apresentador de televisão, colunista de
vários jornais de grande circulação e possui, entre os vários produtos que comercializa: CDs, DVDs e
coleções de livros. É autor da Coleção Nossa língua portuguesa. Marcos Bagno, no seu livro
Preconceito lingüístico: o que é, como se faz (2003, p. 147-183), tece uma crítica severa ao professor e
ao modo como costuma conceber a lingüística, os lingüistas e a língua falada.
190
Alguém replica:Mas ajuda!”
Essa réplica ao que afirma LI sobre Pasquale e a lembrança de outros
professores em relação ao seu nome é uma demonstração de que o professor é uma
figura conhecida entre os professores. Mais do que lembrado, seus conhecimentos são
considerados por alguns como “auxiliares” no processo de entendimento do
funcionamento da língua e, quem sabe, auxiliares para ensinar o tipo de linguagem
escrita que defendem. Assim, apesar de tratar-se de uma orientação de língua
puramente dicionarizada, estática, gramaticalizada, que não condiz com a realidade da
linguagem em funcionamento nas enunciações, é a esse ensino de língua, apoiado em
uma gramática normativa, que os professores se ligam. No entanto, menos grave se for
para seu conhecimento, apesar de não o utilizarem para refletir sobre o conteúdo das
gramáticas. Mas, daí a concordar com o esse tipo de ensino em sala de aula, é um
equívoco.
Na verdade, essa concepção de língua, apoiada no ensino da gramática,
legitimada por gramáticos, alguns escritores, filólogos, formalistas, enfim, por pessoas
com uma boa formação intelectual e que gozam de prestígio social, traz sérias
conseqüências para o ensino da língua materna na escola. Especialmente porque
desconsideram a linguagem falada e/ou escrita como interação social, pois, como
referimos, considerá-la assim obriga a pensar de outro modo o ensino da língua escrita
e da gramática; obriga a descartar um ensino de conceitos gramaticais em nome da
linguagem.
Faraco e Castro (1999), respaldados na teoria bakhtiniana, defendem a
necessidade de, pelos pressupostos do autor russo, teorizar sobre o ensino da língua na
escola, a leitura e a produção de textos. Especialmente, buscam elucidar alguns
aspectos obscuros deixados pelos lingüistas quando estes propuseram a substituição da
centralidade do ensino tradicional da gramática pelo ensino da língua por meio do
texto. A idéia de um ensino essencialmente prático-indutivo para lidar com o ensino da
língua, abandonando-se equivocadamente a gramática; uma concepção de texto
basicamente circunscrita às suas relações internas de coesão e de coerência; a
191
tendência de se analisar os fenômenos lingüísticos desvinculados do contexto mais
amplo, são alguns dos aspectos trabalhados pelos autores (p. 182-183).
Segundo Faraco e Castro encaminham a discussão, não se trata de abortar o
trabalho com a gramática formal na escola. Ao contrário, os autores entendem que
deva ser reinstaurado o trabalho formal com a gramática tradicional nas salas de aulas,
mas de uma maneira funcional, isto é, “fazendo com que o nosso aluno passe a
conhecê-la, o como um aglomerado de inadequações explicativas sobre os fatos
da língua (...), mas como um documento de consulta para muitas das vidas que
temos sobre como agir em relação aos padrões normativos exigidos pela escrita.” (p.
189). No entanto, os autores reconhecem que para desenvolver esse trabalho de
reflexão formal, torna-se necessário que o aluno passe a conhecer a finalidade, a
estrutura e os conceitos principais dessa gramática, além de um outro tratamento para
com o texto. Torna-se necessário pensar o texto como “enunciados”, escritos ou
falados, que comportam todo um contexto, além de uma concepção de linguagem
como interação. A consideração de todos esses elementos constituiria a teoria de que
os autores sentem falta para ensinar a língua materna nas escolas.
Atentemos, porém, para o fato de que os autores referem-se aqui ao aluno de
outro vel de ensino. No entanto, para o professor de qualquer rie, inclusive o da
série inicial de alfabetização, cremos ser um fator fundamental conhecer a gramática e
saber utilizá-la como um compêndio auxiliar, que lista e explica a língua abstrata,
retirada de suas manifestações interacionais vivas, concretas.
Percebemos, então, que o modo de pensar a “reinstauração da gramática
tradicional na escola” é diferente tanto do modo como os lingüistas propuseram o
ensino da língua pelo texto, quanto do entendimento que m os gramáticos e
formalistas sobre o ensino gramatical. Podemos dizer, acompanhando a reflexão de
Faraco e Castro (1999, p. 189), que a “gramática é, e sempre será, a descrição parcial e
circunstancial dos fatos da língua”, e se a interação é o centro da preocupação dos
estudos sobre a linguagem, a reflexão formal é função da interlocução, do uso da
linguagem efetivamente.
192
Retomando o diálogo dos professores sobre os gramáticos, Outro alguém (que
não foi possível identificar pelo vídeo) diz:
“É verdade!” Em relação ao comentário de que o programa do professor é
muito tarde.
SI: “De quem vocês tão falando? Não é o Pasquale? Alguém: “Não!”
MA: “Aquele que participou do ‘Soletrando’
48
!
A referência ao professor segue a mesma linha de raciocínio já discutida: é um
gramático e, como tal, tem a admiração dos professores, sem estes se darem conta da
incoerência que entre um ensino da língua pelo texto que encerra uma concepção
de linguagem como interação e o ensino da gramática normativa tradicional que
trata dos conceitos e das estruturas gramaticais monoliticamente, de forma cristalizada
–, como sugerem os gramáticos referidos pelos professores. (FARACO; CASTRO,
1999, p. 182).
E, na discussão, durante nosso comentário sobre a norma reguladora da
Língua Portuguesa, sobre norma Lingüística, sobre internet, vestibular e suas
exigências (a competição social), NI interrompe, para continuar mostrando sua
indignação quanto ao tratamento dado à gramática:
NI: “Eu penso assim; não em questão de internet; na internet é até
aceitável, porque é para agilizar, fazer mais rápido, mas agora editoras
publicarem livros, nome de autores de livros com minúscula? Parece que
48
Estão falando de um programa televisivo exibido pela Rede Globo de Televisão que vai ao ar aos
sábados e conta com um quadro denominado “Soletrando”, em que crianças das diversas regiões do
Brasil são selecionadas para participarem da soletração de palavras que são sorteadas dentre muitas
que as crianças estudam. Os resultados, certos ou errados, das soletrações são dados por um júri
composto por um cantor de rap, Gabriel - o pensador e pelo referido professor, Sergio Nogueira, o
qual analisa o porquê do erro ou do acerto dos participantes segundo regras gramaticais vigentes, ou
seja, aquele que de fato conhece a norma.
193
incentiva/ele tira o teu argumento [para ensinar o aluno a gramática] da
necessidade...”
Mas, LI, percebendo a angústia da professora, que, segundo o seu ponto de
vista, entende o compromisso em ensinar a língua padrão em contextos de linguagem
tão “adversos”, pondera:
LI: “Nós ainda somos regidos pela norma culta, só que nós não observamos o
seguinte, a língua, ela evolui e esses neologismos ou essas novas maneiras de
se escrever, mostram que isso vai acabar se incorporando à língua. É a
mesma coisa que o ‘ponhá’, o ‘ponhá’ está incorporando. Soa mal, mas
está. O ‘você’, antigamente era ‘vosmecê’”; Outro diz “a vossa mercê’”
concomitantemente, e LI continua: “e hoje cê: cê vai [em tal lugar]?” em
meio a burburinhos. LI prossegue: “A ngua é viva. Isso pra nós é estranho
hoje, mas... Para nós ela soa estranho porque nós aprendemos pela norma
culta, mas ela está evoluindo. Se nós falarmos com os nossos avós, antes da
Reforma que muda (-0-)/eu não lembro agora, mas algumas palavras tinham
algumas letras mudas, no meio da palavra, né? ‘PH’ para farmácia. Então,
pra eles isso causou muita estranheza, pra eles. Então, quando a gente
conversa com eles, eles dizem que nós não sabemos escrever. Por quê?
Porque houve uma mudança.”
O esclarecimento de LI para a professora mostra suas filiações teóricas, o
vínculo dialógico estabelecido com alguns teóricos da linguagem ao longo de sua
formação superior. Luiz Carlos Cagliari, João Wanderlei Geraldi, Sírio Possenti e
Carlos Alberto Faraco são alguns dos autores mencionados por LI na segunda parte
dos questionários.
Se, por um lado, podemos dizer que o dito do professor retrata uma
compreensão de linguagem como histórica, viva, mutável em vista das relações que se
estabelecem na interação social, por outro, o enunciado de LI, a seguir, denota que
194
ainda há muito que se discutir sobre o ensino da gramática na escola. Ou melhor, sobre
o ensino da linguagem, um tema que carece de muitas reflexões, teorizações e,
conseqüentemente, experimentação dessas teorizações na prática escolar.
Observemos a fala de LI sobre o ensino da gramática, no momento em que
discutíamos sobre “erros de português”:
LI: “Ivete eu vou falar uma coisa agora, talvez algumas colegas não vão
gostar. Mas eu acho extremamente complicado você ensinar a criança
escrever (...) você ensinar a língua portuguesa sem ensinar a gramática, pelo
menos o básico ( ). Eu acho extremamente complicado. Eu acho talvez, a
maioria ou algumas não vão gostar, mas eu vejo assim, eu acho complicado
você ensinar a criança sem a gramática.”
E outros se manifestam, concordando com LI:
Alguém: “Eu acho que realmente não dá!”
Ou demonstrando outro entendimento, diga-se de passagem, mais próximo do
pensamento dos autores que menciona nos diferentes contextos de seus discursos, o
oral (durante o curso) e o escrito (no questionário):
MY: “Eu acho que gramática é..., a gente ensina. O que eu acho ser um
problema é sob qual ponto de vista; de que forma, mecanicamente ou partindo
do texto. Porque Geraldi mesmo diz né, o texto deve ser ponto de partida e de
chegada para o ensino da língua. E texto, quando a gente diz texto, é, a gente,
é, na lingüística, né, normalmente quando você fala texto, né, as pessoas
entendem alguma coisa escrita e quando você fala discurso é oralidade e na
verdade discurso e texto é oral e é escrito, né? É, é, da forma como você vai
abordar essas questões gramaticais é que é o problema.
195
E exemplifica:
MY: Você bota uma criança lá pra, é, fazer uma conjugação verbal, lá, eu, tu,
ele, nós, vós, eles, descontextualizado de um uso é que é o complicador. Ele
vai saber isolado e na hora que ele vai usar, vira aquela piada, né, [para se
referir a um tipo de ensino inócuo] a criança escreveu o cabeu: ‘professora
eu fiz noutra folha porque não cabeu’ e o professor manda escrever coube,
coube, coube, ‘faça cinqüenta vezes a palavra coube’; a criança escreveu,
escreveu, escreveu, ‘professora: eu fiz do outro lado porque não cabeu’. Quer
dizer, escreveu coube, coube, coube, quer dizer, fazer mecanicamente sem
vincular ao uso real, à situação significativa, não vai resolver.
No questionário, dentre os autores mencionados com vistas a conhecer seus
interlocutores, a professora MY assinala ter leituras de Magda Soares, Ângela
Kleiman, Luiz Carlos Cagliari, Percival Leme de Brito, João Wanderlei Geraldi, Sírio
Possenti, Carlos Alberto Faraco, e ainda indica, numa questão de livre resposta sobre
outras leituras/autores que lhe auxiliam no processo de ensino em alfabetização,
Bakhtin, com A estética da criação verbal, e Marcos Bagno, com Preconceito
lingüístico, e acrescenta o seguinte comentário a este último livro: “fundamental na
abordagem da linguagem”.
O conhecimento desses autores, que, em sua maioria, são lingüistas, denuncia
as leituras de MY, que podem ter sido realizadas também devido à sua área de
formação, na graduação e na pós-graduação (Letras e Lingüística Aplicada,
respectivamente). Entretanto, isso não é o mais importante. O que realmente torna-se
relevante são os sentidos provenientes das leituras realizadas, das interlocuções
estabelecidas que se efetivam em sínteses direcionadoras do seu fazer. Sínteses que
formam sua subjetividade discursiva, característica que toda leitura conseqüente deve
ter.
Importante se faz destacar, ainda, que a preocupação de MY e seu
entendimento sobre a complexidade do tema justificam-se por motivos outros, por
196
outras relações vividas que permitem concluir que outros elementos constituíram a
posição explicitada. A professora torna a exemplificar:
MY: “Eu tenho um exemplo pra mostrar. Eu trabalhei na Secretaria da
Educação e quando a gente pedia sugestão de trabalhos para serem feitos
com professores, é, digamos assim, 60% dos pedidos eram: cursos sobre como
reestruturar texto. E fazendo esses trabalhos a gente, na verdade, nós, eu
particularmente, cheguei à seguinte conclusão, posso estar enganada: é tão
difícil o professor reestruturar texto porque falta conhecimento da língua. O
professor não consegue interferir no texto do aluno; interferir no sentido de
ajudá-lo a deixar o texto mais claro, mais objetivo, porque o professor não
domina os conhecimentos básicos da língua. Ele não domina a gramática no
texto. De repente, ele até vai lá para a gramática e faz aquela coisa lá,
cristalizada lá, mecânica. Mas quando ele vai olhar isso no texto do aluno, ele
não consegue; ‘como é que eu vou intervir se eu não tenho argumentos,
conhecimentos para isso’?”
A fala de MY é emblemática no sentido de que provoca a manifestação
silenciosa de vários colegas, mas também a seguinte reação verbal em LI:
LI: “Eu não defendo o ensino da gramática como era antigamente: fazer as
crianças decorarem aquele monte de regras; mas é que nem a colega falou
(para MY); os professores hoje não conhecem, não sabem... [a gramática]
Como síntese inacabada e momentânea do tema polêmico que tomamos para
discutir e tendo em vista o conteúdo das últimas transcrições, podemos afirmar,
conforme discutimos anteriormente, que prevalece uma preocupação em torno do
ensino da gramática. Para alguns professores, é um tema que se mostra confuso; para
outros, é de compreensão equivocada; para outros, ainda, é uma questão de definição:
definir para si, professor, o que é parte de seu ofício conhecer em relação aos estudos
197
gramaticais. Especialmente, realizar uma reflexão formal sobre o conteúdo das
gramáticas, mas a partir de um entendimento de linguagem como interação. Isso, no
entanto, implica em dominar aqueles conhecimentos que referimos de Faraco e
Castro (1999, p. 189), e aqui reafirmamos: “conhecer a finalidade da gramática
tradicional, a sua estrutura, a sua terminologia e os seus conceitos principais”, pois
assim cremos iniciar um caminho para um ensino de linguagem na escola mais
produtivo.
Pois, desse modo vemos o Outro em condições de se beneficiar de um
tratamento escolar humano, ético, a respeito da linguagem. Apropriar-se do
funcionamento da gramática, nesses termos, é, de algum modo prestar, atenção ao que
diz Ponzio quando destaca a maior preocupação da obra bakhtiniana, a saber:
(...) la palabra de Bajtín, desde el primero hasta el último de sus ensayos de 1974, contribuye
a recuperar el sentido y la importância no sólo de la literatura, sino también de las ciencias
humanas. Al plantearse la cuestión de la metodologia de lás ciencias humanas, Bajtín se
pregunta por el sentido del hombre. Y, de hecho, hay que recordar que ninguna de las
razones del progreso tecnológico ni del desarollo científico puede justificar el olvido de una
pregunta como ésa. Pero lo que nos interesa subrayar aqui es que Bajtín demuestra, la
cuestión del sentido del hombre hay que tratarla bajo la categoria del outro y no del yo.
Desde el punto de vista de la identidad (de un individuo, de un grupo, de una nación, de una
lengua, de un sistema cultural, de una vasta comunidad, como la europea, o de todo el
mundo occidental), el sentido del hombre no puede descubrirse, sino solo mistificarse. (...)
Para oponerse a dicha perspectiva es necesário el punto de vista de la alteridad. (PONZIO,
1998, p. 30).
Em outras palavras, queremos dizer que o modo como os professores de
língua materna concebem a linguagem e o ensino da língua na escola pode ou não
concorrer beneficamente para a formação do aluno, seu Outro. E, segundo a teoria que
elegemos para analisar os enunciados dos professores, em especial as categorias
dialogia e interlocução, podemos afirmar que é impossível, por meio de uma
compreensão de gramática descontextualizada, inerte, à margem dos amplos contextos
em que a linguagem acontece, abraçar uma concepção de linguagem interacional. E se
não é interacional, não supõe uma relação com o Outro, e, em decorrência, se o há o
Outro, há uma “mistificação” inclusive de quem somos nós mesmos.
198
Em verdade, podemos dizer que, no conjunto dos professores, entre tantas
vozes que constituem seus saberes e seus fazeres em ensino da língua materna, a
gramática tradicional é a grande voz que constitui o professor alfabetizador. Ela é a
grande voz que abafa qualquer outro direcionamento ou entendimento que circunde
esse fazer. Essa voz, destoante da linguagem como acontecimento, como interlocução,
por mais que possa ser criticada ou reconhecida como parcial, é a que prevalece,
poderosamente, quando se parte para o ensino escolarizado da linguagem escrita. O
que só confirma a presença e a fortaleza do grande gen da cultura gramatical.
De modo geral, o quadro de considerações dos professores em torno da
gramática, com uma ou outra exceção, forma ao lado de práticas estratégicas para
promover o aprendizado do aluno, das concepções sobre alfabetização, do modo como
vêem a função social da escola pública e a consideração que fazem do livro didático
delineia uma cultura que marca o ser professor alfabetizador.
Se esses elementos podem ser vistos como comuns a professores de qualquer
nível, queremos destacar que com relação ao professor alfabetizar pesa-lhes o fato de
serem eles os que oficialmente iniciam a criança (ou o adulto) na vida escolarizada da
leitura e da escrita. São eles, muitas vezes, os referidos como os únicos responsáveis
quando o aluno não vai bem” nas demais séries do ensino. São eles que enfrentam o
próprio “medo” de ensinar nessa série
49
, muitas vezes, no momento em que estão
iniciando sua carreira docente. São também eles os que enfrentam a exposição pública
e se sentem afetados quando as variadas esferas sociais querem lhes responsabilizar
pelos fracassos da educação no país. Em decorrência disso é que percebemos entre os
professores alfabetizadores um modo específico de ser professor desse nível de ensino,
uma “cultura professoral”.
Assim, ao elaborarmos essa cultura professoral demarcamos pelos Outros dos
professores alfabetizadores, por seus interlocutores, o sentido que o Outro-aluno tem
no seu fazer, na sua própria constituição. Numa ética alteritária, percebemos as
49
Apesar de ocorrida mais de dez anos, a publicação de Lígia Regina Klein: Alfabetização: quem
tem medo de ensinar é um título que mostra a atualidade do assunto, tendo em vista as muitas
enunciações nesse sentido que ouvimos em nossa prática docente. A obra encontra-se referida ao final
desta tese.
199
concepções dos professores em torno da linguagem, da alfabetização, da gramática, e
como isso se reflete no ensino da leitura e da escrita para a atuação em práticas sociais.
Assim, pudemos perceber que o letramento, no sentido que discutimos ao
longo desta tese, é um tema que não tem feito parte das discussões dos nossos
professores. Ao contrário, poucos se referiram a ele demonstrando compreensão a
respeito do que dizem os teóricos que o defendem; não relacionam o tema ao seu fazer
em sala de aula. No entanto, apesar de não mencionarem o letramento, enunciaram de
diferentes modos que seu ensino tem como finalidade a atuação e o posicionamento de
seus alunos em sociedade.
Os professores falaram em “libertação”, em autonomia, em situações de
ensino que abrangem as funções sociais da escrita, visando ao aprendizado da leitura e
da escrita de seu aluno para além da vida escolar, ou imediata; possibilita-lhe uma
formação humana para a vida. Ou seja, é por alfabetização que entendem tudo o que
fazem em sala de aula, para o seu aluno alcançar um melhor espaço social. A maioria
dos professores não faz distinção entre letramento e alfabetização. Mas, mesmo o que
distinguem não mostram que a não distinção vem de seu entendimento de linguagem.
Mas, se suas enunciações mostram que há sim muita preocupação com o
aprendizado de seu aluno, buscam melhorar sua formação docente para melhor atuar
em sala de aula, angustiam-se diante de situações que não conseguem reverter, um
outro fato emergiu de nossa interlocução. A questão que se mostrou é que, embora se
refiram a práticas que abordam a linguagem como acontecimento, no momento de
ensinar a versão escrita dessa linguagem, desse modo de interlocução presente nos
variados textos, a norma gramatical impera.
Nesse momento, o professor perde o trabalho com o ensino de uma língua
viva. O professor não consegue ensinar o papel da gramática nos textos escritos, ou
não consegue ensinar o papel que os diferentes gêneros textuais exercem na realidade
lingüística dos sujeitos em sociedade. Ele ensina, então, o que aprendeu quando foi
alfabetizado: a fazer uma descrição, por vezes, mal ajambrada, da língua escrita,
retirando-a de seu contexto de uso real.
200
Se podemos dizer que as discussões acerca do letramento o são do
conhecimento e preocupação dos professores, se a percepção que têm da língua escrita
é equivocada, se sua concepção de linguagem é insuficiente para um ensino da língua
escrita, mesmo assim, uma certeza há. A certeza que ficou demonstrada é que os
professores, mesmo que por caminhos tortuosos, mesmo cometendo alguns equívocos,
mesmo o acertando por conta de uma cultura gramatical de grande temporalidade,
preocupam-se com seu Outro-aluno.
201
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento desta tese se deu a partir da hipótese de que o letramento,
tema recorrente para se definir a atuação do sujeito nas práticas sociais que exigem
leitura e escrita, guarda em sua essência algo nada diferente do sentido da
alfabetização, conforme uma dada concepção de linguagem, a interação. Essa
concepção prevê a linguagem, e o seu ensino, como a interlocução que ocorre nas
relações humanas. Concebe, portanto, a língua como viva, plástica, moldável
axiologicamente às diferentes situações da interação verbal, social e objetiva, que
comporta um mínimo dialógico, na medida em que parte de alguém e se dirige sempre
a alguém. O letramento, então, não compreende o processo de alfabetização como o
ensino da linguagem nesses termos.
Colocava-se um impasse, na medida em que tínhamos a convicção de que a
alfabetização, tanto quanto o letramento, tem como objeto nuclear o ensino da língua
escrita materna nas suas funções sociais. Portanto, o que orientava a criação de outro
termo para designar uma mesma função, isto é, aprender a ler, escrever, contar para
inserir-se numa sociedade que é grafocêntrica? A alfabetização não atendia a essa sua
função? Existia, de fato, aquela necessidade não atendida de inserção dos sujeitos nas
práticas sociais com material escrito, como atestavam muitos trabalhos, inclusive com
dados estatísticos? Postava-se a necessidade, portanto, de compreender o que ocorria
em relação à alfabetização.
Chegamos à conclusão de que seria necessário, então, investigar a concepção
de letramento dos professores alfabetizadores, os responsáveis pelo ensino da língua
escrita nas salas de alfabetização. Pois, se os professores entendessem, assim como
nós, que alfabetização e letramento não se distinguiam, mas tratavam de um mesmo
objeto, o que o letramento traria de novidade para o ensino, para a alfabetização?
Empreendemos a investigação certos de que ela se daria no sentido de diálogo,
que sempre encerra uma atitude de aprendizado, sobretudo de compreensão. Não
falaríamos apenas sobre o que professores pensavam e diziam fazer em alfabetização,
letramento, linguagem, mas com os professores sobre o que pensavam e diziam.
202
Víamos na oferta de um curso de extensão a possibilidade de ampliar o diálogo/debate
com nossos interlocutores. Assim, falar com os professores sobre o tema, dos seus
enunciados, poderíamos compreender melhor os sentidos que os constituíam
alfabetizadores. A decisão de assim conduzir a investigação, para produzir esta tese,
foi fruto da leitura dos pressupostos teóricos de Bakhtin, das suas obras acabadas e
inacabadas – em especial, guiou-nos sua extrema consideração do Outro, mesmo
aqueles a quem ele criticou profundamente.
No decorrer da investigação, percebemos que a compreensão dos professores
sobre letramento e alfabetização poderia ser alcançada caso considerássemos suas
concepções de linguagem. Entendemos que essas concepções de linguagem englobam
as concepções que os professores formulam sobre alfabetização e letramento e é a
partir desta que as demais são desenvolvidas. A busca por essas concepções implicou
na identificação dos diálogos dos alfabetizadores com seus Outros: alunos, colegas de
profissão, professores de cursos de formação, pais, discursos científicos e do cotidiano
escolar, enfim, as vozes que pudessem ser ouvidas, reconhecidas, nominadas ou
inferidas de suas enunciações.
Entendemos que as concepções dos professores poderiam ser
compreendidas a partir do contexto de produção sobre letramento, alfabetização e
linguagem. Por isso, buscamos, a partir da década de 1980 período colocado por
alguns autores como de inauguração do termo ‘letramento’ no meio educacional –,
algumas produções na área da educação que o conceituavam e definiam seu “objeto”.
Do mesmo modo, buscamos em algumas outras áreas Lingüística, Psicolingüística,
Sociolingüística as concepções que estavam sendo postas àquela época, a fim de
verificarmos se havia algum choque entre os princípios pregados por uns e por outros.
Do conjunto de autores que estudamos, constatamos que as discussões de
ambos se voltavam para o mesmo objeto: o ensino da língua materna como prática e
fim social. Lingüistas, teóricos da Educação, da Psicologia e outros defendiam uma
concepção de linguagem na perspectiva que colocamos anteriormente a de interação,
de interlocução – e propunham um ensino de língua que visasse à sua natureza social e
dialógica. Decorre disso que a função social da escrita haveria de ser ensinada
203
conjuntamente ou no mesmo contexto das especificidades da alfabetização. Logo, o
ensino da leitura e da escrita engendraria a função social da linguagem e não estaria
apartado das práticas sociais de seu uso. Esse mesmo argumento, manifestavam
(manifestam) aqueles teóricos que se voltavam (voltam) para a defesa do letramento.
Esse fato referendava o caminho que havíamos tomado: o de buscar as
concepções dos professores sobre letramento. Entretanto, quando buscamos as
concepções de letramento, as concepções de linguagem dos professores sobressaíram.
Pudemos compreender ambas a partir dos outros elementos que permeiam,
confundem-se com essa concepção, em um relacionamento intrínseco, uma vez que
não tratamos a linguagem como um elemento reificado, um “objeto”. Assim, quando
tratamos da linguagem numa visão dialógica, tivemos de refletir sobre outros aspectos
que participam desse entendimento de linguagem, sem os quais aquela visão seria
deturpada. E esta é uma refração da nossa leitura de Bakhtin, pois, como afirma Castro
(2007, p. 84), a profusão temática do autor russo, estudando a polifonia, a alteridade, o
estudo dos gêneros textuais, definindo enunciado, tema, enfim, ela é conseqüência de
sua inquietação epistemológica, causada pela sua concepção de linguagem.
Foi assim que a apreensão dos enunciados falados e escritos dos professores
alfabetizadores, nas vozes e no diálogo com seus Outros, possibilitou-nos compreender
que o professor alfabetizador concebe a oralidade como um momento importante para
o aprendizado da ngua materna. No entanto, concebem-na sob diferentes
perspectivas, algumas das quais divergentes do entendimento didático-pedagógico que
a oralidade como um dos princípios articuladores do ensino da linguagem, ou seja,
a interlocução. Assim, as enunciações dividiram-se entre entendimentos da oralidade
“com tempo determinado” e da “oralidade com tempo livre” para os alunos se
manifestarem a qualquer momento. Na primeira situação, o “tempo para o aluno falar”
era condição para a aula prosseguir num ambiente mais calmo. a manifestação oral
do aluno permitida pelo professor a qualquer tempo tinha o sentido de desenvolver a
própria oralidade, vencer a timidez, promover a desenvoltura para sua formação
humana, estimular o raciocínio, enfim, a oralidade configurava-se em um elemento
para o aluno aprender melhor. Nesta concepção, a oralidade também era entendida
204
como a exploração verbal para desenvolver a produção escrita, estratégia dialógica
para propiciar a “libertação” da criança e como momento de aprendizado de regras de
comportamento social, pois possibilita à criança falar sobre o que pensa, mas também
ouvir o que outro tem a dizer. Logo, trata-se de uma concepção de linguagem
interacional, de “aprendizado individual e coletivo”. Houve, assim, situações que
definiram a oralidade como importante mais para o desenvolvimento do trabalho do
professor a respeito dos conteúdos a ensinar do que para o seu aproveitamento no
sentido de propiciar o aprendizado do aluno acerca de questões gerais, mais amplas, da
linguagem como manifestação corrente nas relações humanas.
O que pudemos depreender dessa situação é que, embora haja diferentes
concepções de oralidade que contribuem para compreender a concepção de letramento
do professor alfabetizador, todas elas são sínteses dialógicas tornadas próprias a partir
do Outro. Esses Outros são professores de cursos de formação, superior ou continuada,
ou, ainda, nascem da observação e reflexão sobre a atividade a sua própria atividade
e a do Outro professor na escola. No entanto, percebemos que há, também, um
grande Outro: a visão tradicional do ensino, que se personifica tanto no modo de
entender o processo de ensino como unilateral quanto no desenvolvimento de uma
perspectiva de linguagem monolítica, individual. Esse Outro tradicional, que prevalece
e é bastante presente, apesar do estabelecimento de outros diálogos e outras sínteses,
retira do professor a oportunidade de conhecer e interagir com o aluno naquilo que já o
constitui como conhecedor de determinada língua. Assim, o Outro da tradição que se
encontra arraigado aos saberes dos professores e orienta seus fazeres denuncia uma
concepção de ensino de língua que obscurece o saber do Outro-aluno na relação
pedagógica. Revela-se, então, uma concepção de criança como alguém que muito
pouco sabe sobre a língua, desconsiderando-se que ela é falante da ngua materna, ou,
mesmo que por diversos motivos não seja falante, interage em seu contexto
comunitário, que vive em uma sociedade onde a escrita circula amplamente e que, por
isso, pode fazer muitas inferências sobre a língua escrita. Em decorrência dessa forma
de perceber a criança, o professor é o único detentor do conhecimento sobre
linguagem; aquele que vai “imprimir”, “transmitir” esse conhecimento.
205
Alguns outros enunciados dos professores alfabetizadores mostraram que o
professor, no seu ofício de ensinar, está acompanhado de mais um personagem que
também ensina. E, muitas vezes, é o ensino deste personagem, o seu método, faz mais
sentido para a criança do que o trabalho do professor. Trata-se da presença dos
familiares, sobretudo dos pais, que, estando muito presentes no aprendizado da
criança, são reconhecidos por esta como “aquele que lhes ensina”.
As considerações das crianças causam indignação aos professores, pois estes,
apesar de seus esforços, de seu nível de formação superior ao dos pais, de seu
conhecimento e de seus constantes estudos, o reconhecimento do aprendizado vem por
aquilo que os pais fizeram, pelo que os pais ensinaram-lhes.
Podemos dizer que uma resposta para aquela professora que pergunta o que
falta exatamente, que uma pessoa que não estudou tanto quanto eu (o professor), não
leu tanto quanto eu, consegue ensinar a criança ler e escrever talvez seja começar a
ver a própria criança e o seu ensino de linguagem por um outro ponto de vista. Isto é,
conceber a criança como alguém que participa das relações sociais, mesmo que seja
apenas como falante, mas que interage socialmente, que sabe que no mundo existe
escrita e que ela é utilizada para determinados fins. Alguém que participa com Outros
de um conhecimento lingüístico que não é exclusivo da escola ou do professor. Um
conhecimento que, a bem da verdade, é reconduzido, aprofundado, sistematizado
quando se está na escola. A criança que vai à escola para aprender algo não é uma
criança que nada sabe sobre o mundo. E o professor, mesmo tendo de saber muito,
como é de seu ofício, não detém todo o saber. Acreditamos que é na dialogia que o
professor pode apreender o conhecimento prévio da criança sobre a língua e antecipar
propostas de práticas de ensino conseqüentes que valorizem esses saberes.
Em vista do que acabamos de referir sobre o aprendizado que os pais
proporcionam aos seus filhos em alfabetização, agora, ao final desta tese, fica o
questionamento sobre o que os professores realmente conseguem ensinar às crianças
em relação à língua viva, a utilizada nas relações sociais. Especialmente porque os
professores admitem que a criança que vai, vai, para se referirem às crianças que não
têm dificuldades para aprender.
206
Fato é que isto é uma realidade: a imposição institucional, na figura dos seus
professores, nem sempre desbanca o sentido e o valor daquilo que é promovido ou
valorizado no Outro. que este Outro é alguém próximo da criança, com quem a
criança mantém uma relação muito mais próxima, de liberdade menos institucional,
portanto com quem a cumplicidade social é maior. Importante também
considerarmos que aprendemos melhor aquilo que faz sentido para nós, e, tudo aquilo
que provoca ressonância de sentido é ideológico; é valorativo.
Paradoxalmente, os pais, personagens cuja presença, muitas vezes, é
reclamada na escola para contribuir no processo de ensino, são também o alvo da
reclamação dos professores quando estão muito presentes na escola. Assim, se em
alguns momentos os pais são importantes auxiliares para o processo de ensino, em
outros, eles precisam não interferir no ensino do professor. Ou seja, a participação dos
pais é solicitada, mas até certo ponto: quando os pais começam a representar uma
ameaça aos saberes dos professores, à sua autonomia e às decisões tomadas na escola
em relação ao ensino, sua presença passa a ser incômoda. A nosso ver, se o professor
não consegue estabelecer um diálogo com os pais, quando estes são questionadores do
fazer docente e/ou de algumas práticas escolares, pensamos que ele também não
conseguirá ensinar a ngua como interlocução, pois a linguagem como manifestação
que ocorre num jogo social pressupõe sujeitos que reagem e se posicionam. Assim, o
diálogo mantido com os pais sempre era tenso, sem com isso querermos dizer que todo
diálogo deva ser harmonioso. Não: a dialogia pressupõe também a tensão, o conflito,
na mesma medida em que, quando dirigimos a fala para alguém, esta fala contém o
gérmen da resposta. Mas, ao provocar a réplica, esta nem sempre corresponde ao que o
locutor primeiro esperava.
E sobre esse modo de concebermos a relação entre pais e professores,
colocamo-nos a seguinte indagação, a ser respondida em futuras investigações: quais
as concepções dos professores quanto às “tarefas” da família e às “tarefas” da escola
no processo de aprendizado da leitura e da escrita? Parece-nos, mais uma vez, que,
subjacente a essas questões: avaliar como a criança é entendida, que conhecimentos
ela consegue formular, como aprende e com quem aprende sejam questões a serem
207
consideradas neste fazer. Na mesma situação, a própria forma de se compreender a
linguagem, como algo que se dá nas relações, na interação social, seja familiar, escolar
ou outra ainda, também concorre para o aprendizado da criança e para a facilidade ou
dificuldade desse aprendizado. Do mesmo modo, pode-se também avaliar os objetivos
com que ‘tarefas’ ou ‘compromissos escolares’ são enviados para o aluno desenvolver
em casa.
Ainda sobre o tema ‘auxílio dos pais em tarefas escolares’, as falas dos
professores mesclam-se, principalmente, quando sugerem que a dificuldade dos pais
em auxiliar seus filhos está relacionada às mudanças de métodos. As enunciações dos
professores evidenciaram que os próprios pais se preocupavam com o prejuízo
causado à aprendizagem do filho quando percebiam que os métodos utilizados por eles
eram diferentes dos empregados pela escola. Outras enunciações juntavam-se a esta
para dizer que a não-participação dos pais na vida escolar de seus filhos justificava-se
também pela mudança de método, os pais ficaram perdidos e não sabem mais como
ensinar seus filhos. Vemos presente nessas enunciações o equívoco de se pensar que o
aprendizado ou não do aluno é apenas uma questão de método de ensino. Os métodos
de ensino não são percebidos como decorrentes de toda uma concepção de linguagem,
de ensino de língua, embasados também por princípios teóricos. A percepção de que a
língua escrita guarda algumas distinções com relação à fala, mas, ainda assim, está
relacionada a ela; a percepção de que as pessoas se fazem, isto é, tornam-se sujeitos
atuantes, conhecedores do mundo em que vivem, porque conseguem apreender com
mais propriedade as situações da vida cotidiana registradas pela escrita, são fatores que
fazem diferença na alfabetização da criança. Ainda que os pais não conheçam a teoria
defendida pela escola ou que orienta o ensino do professor, é, muitas das vezes, na
interação com os pais que o aprender passa a fazer sentido para a criança. Esse é o
diferencial que se põe na relação de ensino. É assim que analisamos a possibilidade de
pais, ainda que “perdidos” ou se utilizando de métodos que não propriamente os da
escola (ou apesar deles), alfabetizarem, e bem, seus filhos.
Outro contradito que emergiu nas enunciações dos professores foi com relação
ao tema “modelos para a prática”, que, na verdade, não se desvinculava do tema
208
“métodos de ensino”. Os professores esperavam um modelo de ensino para alfabetizar,
ao mesmo tempo em que rechaçavam a colocação de modelos para os professores. O
que parece ser contradito, somente é em aparência. O que os professores anunciavam
era um descontentamento em relação ao controle absoluto, ao modo de fazer criterioso
com que métodos, como o de Erasmo Pilotto, foram aplicados nas escolas
paranaenses, em salas de alfabetização, no início da década de 1980. As perguntas
básicas, a ordem com que essas perguntas deveriam ser feitas aos alunos, a repetição
excessiva de uma mesma pergunta e a sua resposta equivalente, o medo e o trauma
gerados a partir da presença em sala de aula e da avaliação de supervisores e
secretarias confrontavam-se com a proposta construtivista que se colocou mais ao final
da década de 1980. Esta retirava o foco do ensino, do controle absoluto do professor, e
o colocava no modo como o aluno construía seu aprendizado da escrita. E os
professores, não conhecendo ou não sabendo avaliar teoricamente os pressupostos de
tais metodologias, ficavam à mercê do que viesse como orientação metodológica para
as salas de aula de alfabetização.
Os discursos dos professores mostraram que o que estes pareciam não atinar era
para o desequilíbrio colocado entre o seu papel e o papel do aluno na relação de
ensino. A própria linguagem escrita, objeto específico da alfabetização, carecia de
espaço para ser discutida, pois, transitava-se de uma proposta de ensino em que a
linguagem era entendida como repetição, memorização portanto, um ensino artificial
e mecânico da língua em detrimento da sua natureza social –, para um ensino de língua
em que a linguagem escrita seria “construída” pelo aluno.
No entanto, como nossa investigação mostrou, os professores sentiram falta de
um modelo claro de condução do processo, como estavam acostumados a ter. Dessa
maneira, o Construtivismo não fez muito sentido para eles, o que pode ser medido pela
“resistência” por eles revelada. Afinal, eles estavam vivendo num período histórico
que permitia que resistissem de um modo mais aberto àquilo que não acreditavam ou
que não viam sentido.
E esse modo mais aberto acabou sendo, talvez, uma não-abertura para o
princípio dialógico da linguagem que começava a ecoar nos estudos sobre letramento e
209
alfabetização. Assim, de um modelo extremamente criticado e de algum modo
resistido, dada à violência da vigilância, chegamos a outro que não fornecia o modelo,
pois as crianças tinham de mostrar as hipóteses para o professor provocar o conflito.
Sem dúvida, era um avanço, mas ficou longe de ser compreendido como uma nova
concepção de linguagem que engendrasse um ensino correspondente.
Foi nesse mesmo momento de transição entre certezas e incertezas, sem saber
exatamente como fazer, que o Ciclo Básico se instalou, tirando dos professores
alfabetizadores outras poucas certezas, e sua autonomia: a de saber se um aluno estava
apto ou não para ser aprovado. E percebemos que, pelos mesmos (ou talvez
semelhantes) motivos, o processo volta a se repetir com a instauração do ensino
fundamental de nove anos. Embora não tenha perdido a autonomia para reprovar,
aprovar, o professor perdeu os critérios que acreditava estarem bem estruturados em
seu fazer, para cada aluno alcançar na primeira série escolar obrigatória.
Entretanto, acreditamos que o professor, para atender à nova legislação do
ensino fundamental, volta a perder-se no processo pelo fato de que não ter para si uma
concepção clara de linguagem e de ensino de língua, amparadas teoricamente, que
atenda às necessidades de aprendizado da criança.
que se pensar, também (e de novo), em quem é a criança que aprende.
Considerar que ela continua sendo criança ao entrar na escolarização obrigatória com
cinco, seis ou sete anos. Apenas, a entrada dessa criança obriga a traçar novos critérios
para alfabetizá-la com êxito, ou com menos problemas, uma vez que, como vimos, tem
prevalecido um ensino que se conforma à maneira como o professor foi alfabetizado,
ou formado, ou, melhor ainda, de acordo com o que faz sentido ao professor. Questões
fundamentais como essas não são discutidas, avaliadas, colocadas na pauta de estudos
dos professores e equipe pedagógica.
Sabemos que o diálogo entre teorias e o fazer pedagógico em linguagem é um
trabalho complexo, mas, mesmo assim, é necessário que se iniciem essas discussões
com os professores. Não se trata de traçar algo para o professor, nem de negar-lhes um
modelo: a referência de ser o pensar com eles as implicações de se conceber a
linguagem de uma maneira ou de outra.
210
No exercício constante de compreendermos as concepções de letramento
daqueles professores alfabetizadores – os que freqüentaram nosso curso e responderam
ao questionário –, percebemos um modo peculiar de esses profissionais articularem
seus saberes e seus fazeres no ensino da língua. Esta é a “cultura professoral”: o modo
próprio com que os professores, na sua especificidade de ensinar em salas de
alfabetização, diziam conhecer, agir e se manifestar em sua docência cotidiana. Um
modo próprio de verem-se na sua profissão.
Nessa cultura, ações que os professores praticam que lhes são
‘especialmente’ permitidas, justamente pela especificidade que têm de ensinar crianças
a ler e a escrever; iniciá-las no mundo escolarizado e sistematizado da escrita. ões e
comportamentos que se justificam como esforço e empenho para que essa criança
penetre naquele mundo escolarizado, para se apropriar daqueles saberes específicos.
Isso foi o que concluímos das enunciações dos professores, as que nos possibilitaram
compreender que, na condição de alfabetizadores, eles poderiam se utilizar de certas
estratégias, as quais outros podem entender apenas como chantagem; aplicação de
métodos tradicionais de ensino e reveladores de uma concepção mecânica de
linguagem. Mas, para eles, os alfabetizadores, são meios de favorecer e motivar o
aprendizado do aluno, ou talvez, mais que isso, cumprir com um compromisso tácito
assumido socialmente, que é o de manter aquela criança na escola.
Entre eles mesmos, os professores alfabetizadores, parece existir um código
específico de comportamento que conduz sua função específica de alfabetizar na série
inicial. eles permitem-se conhecer ou desconhecer terminologias que tratam do seu
objeto de ensino, sem, contudo, filiarem-se a elas ou não; que conforme seu
“auditório” social, e o tipo de diálogo mantido com esse auditório, permitem deixar à
mostra o que sabem ou mostrar que não sabem, ou talvez, simplesmente não querer
mostrar. E, aqui, estamos nos referindo ao letramento também.
É na especificidade de seu ensino a língua materna ou mais propriamente
no seu papel de “conservar” os princípios gramaticais que preponderam no seu ensinar
a língua escrita, que julgam, consentem ou condenam a forma de utilização da
linguagem por certas esferas sociais. Determinados gêneros textuais, o comercial e o
211
literário, ao circularem na mídia, disputam com ele, professor, na sua ‘tarefa de
ensinar’, certos tipos de manifestações escritas que fogem do padrão de ensino escolar
mais comum, ou melhor, de tradição. Uma disputa “desleal” entre seu saber fazer e os
artefatos tecnológicos que, muitas vezes, sequer eles, professores, sabem dominar ou
sabem operar.
Segundo essa cultura, percebemos que eles, pelo fato de serem professores
alfabetizadores, e de crianças, podem condenar certo tipo de escrita social que afronta
a “inapelável” força da gramática e da língua padrão. Esses professores, para cumprir
bem cumprida a sua tarefa de ensinar, mesmo contra todas as evidências da
diversidade cultural, social, econômica e, inclusive, lingüística, precisam ensinar,
defender, “conservar” a forma valorizada socialmente não na escrita, mas também
na fala.
Das vozes emergidas dos enunciados dos professores, os Outros interlocutores
que se destacaram foram o livro didático e a gramática. O livro didático foi abordado
pelos professores como um instrumento que reforça a condição de pobreza, inclusive
cultural, da população infantil, dada à precariedade de seus conteúdos. A
superficialidade com que os conteúdos são apresentados não contribui para instigar
nos alunos a reflexão, uma análise do mundo em que vivem; não é capaz de
desenvolver-lhes a consciência crítica a respeito da sua própria condição, de como se
produz a sua existência, como se produz a sua condição social. Esse tipo de abordagem
reforçou outras posições, que entendem o material didático como descartável e que o
professor é quem precisa dosar seu trabalho por ele, pois não dá para ficar só nele!
No entanto, o livro didático mostrou-se, ao lado da Revista Nova Escola,
como o principal coadjuvante do processo de ensino do professor. E não é o livro
didático da série que é utilizado, o que poderia ser compreendido como uma
obrigatoriedade, uma vez que a escola adota esses manuais para o ensino em cada
série; pelo contrário, a referência dos professores também foi em relação a livros de
outras séries, de anos anteriores ou de outras editoras.
Pelos enunciados, percebemos que o professor, conforme se desenvolve o
diálogo e dependendo de quem são seus interlocutores, assume uma posição de crítica,
212
de aversão ao livro didático. Mas, em situações outras, colocam-no inclusive como
‘livro de pesquisa’, utilizado para organizar suas aulas, sendo que poderiam se utilizar
de outros materiais (propagandas, outdoors, quadro de avisos da escola, bilhetes de
pais, documentos da própria criança etc.) para orientar seu trabalho docente. Assim, o
que se revelou foi que, ao mesmo tempo em que os livros didáticos são negados, são
muito presentes, não são esquecidos; antes, continuam sendo um grande interlocutor
do professor.
A relação que os professores mantêm com a gramática normativa assemelha-
se ao tratamento que dispensam aos livros didáticos. No entanto, algumas
particularidades sobre o tema que tornam essa relação mais tensa. Uma tensão no
sentido de que, mesmo diante das orientações recebidas em seus locais de trabalho,
nos cursos de formação continuada que freqüentam, em estudos e leituras que realizam
ou por outros meios ainda, os professores têm na tradição gramatical a grande força
direcionadora do seu ensino.
Eles acreditam na necessidade que as crianças têm de aprender a gramática, no
quanto ela é necessária para preservar uma boa tradição lingüística, seja na fala, seja
no ensino da língua. E, em especial, acreditam que é necessária à criança da série
inicial do ensino fundamental, pois são eles, professores alfabetizadores, que vão
iniciá-la no mundo do obrigatório do aprendizado escolar da linguagem. A gramática
normativa mostra-se, então, o grande interlocutor do fazer docente.
Entretanto, necessário se faz ressaltar que o ensino da gramática normativa
está apoiada em outras vozes, que, do mesmo modo, reverenciam a grande voz da
tradição lingüística. São as vozes de gramáticos, dos formalistas, que desejam
preservar um modo de falar e um modo de ensinar a escrever dentro do nível padrão
gramatical. No entanto, estas vozes que ligam-se às dos professores, falam com eles,
orientam-lhes, sobretudo, aquelas que encontram espaço na mídia; vozes que, de certo
modo, “avalizam” o seu fazer, tem longa idade.
Estão na grande temporalidade, os estudos da linguagem que deram origem ao
que ainda hoje os professores primam tanto em matéria de ensino da língua: a
gramática tradicional. Ela nasceu do filologismo com que se desenvolveu a lingüística
213
européia. Um modo de tratar, estudar e descrever a linguagem segundo documentos
escritos. Era, portanto, em cima de uma língua morta que se desenvolvia a tarefa
heurística da lingüística e foi a partir dessa língua morta que se desenvolveu a tarefa
pedagógica da lingüística. Os procedimentos para descrição da língua; a língua
estatizada, inerte, retirada da corrente da fala, das relações sociais, é que foi ensinada
na escola.
Ao longo do tempo, apesar das marcas históricas e dialéticas, do motivo
interlocutivo, social, que caracteriza a linguagem, o gen cultural dessa lingüística é tão
forte que atravessa séculos e perdura, não só entre os professores alfabetizadores ou na
escola. Como cultural que é, está presente nas diversas esferas sociais e se apresenta
nas conversas informais, no trabalho, na mídia. Como cultural que é ultrapassa os
limites da localização econômica. Queremos dizer com isso, que mesmo o professor da
periferia, que se formou numa universidade blica ou privada, ou professor da
renomada escola particular, ensina segundo essa tradição gramatical.
É essa tradição cultural que dialoga com o professor e lhe confere a certeza de
que ensinar regras, conceitos, muito mais a metalinguagem do que propriamente a
linguagem, é uma necessidade primordial da escola, no ensino da língua materna,
desde o ano inicial. Não estamos descartando a necessidade do conhecimento
gramatical, afinal, ela compõe também os enunciados. O problema está no modo como
se o seu ensino. Na relevância que a descrição da língua morta, de conceitos,
assume em detrimento da linguagem como acontecimento, como interação humana.
Dentre os elementos componentes do que denominamos de “cultura
professoral”, sem dúvida, o que mais chamou atenção é a relação que os professores
mantêm com a gramática tradicional quando se trata de ensino da língua.
Especialmente porque nos ajudou a pensar nosso problema de tese: a concepção dos
professores a respeito da alfabetização, ou mesmo o não pensar sobre o letramento está
intimamente ligado ao que modo como concebem a linguagem, perfeitamente
compreensível a partir da cultura gramatical que rege seu ensino.
Pudemos apreender, a partir do que se mostrou como concepção de linguagem
dos professores alfabetizadores, que o professor não se constitui pela formação
214
escolar ou acadêmica: ele tem toda uma constituição pessoal que é ‘herdada’ da
cultura de sua comunidade, do seu meio social. Este contexto, por sua vez, está
impregnado, composto também das formas mais amplas de cultura, orientado por essas
culturas, por seus valores. A cultura professoral é uma cultura apreendida, reelaborada,
dialeticamente compreendida e dialogicamente estabelecida a partir das relações com
os Outros que vão formando esse professor e o ser professor.
Podemos dizer que parte dos professores, nossos Outros da pesquisa, formou-
se profissional docente naquela concepção proposta por Pilotto, e outra parte formou-
se na proposta construtivista. Porém, estes, no diálogo com seus formadores que,
muitas vezes, guardavam uma concepção mais tradicional de educação, numa
pedagogia tecnicista, também receberam influência dessa formação. Aqueles, os
formados na perspectiva pilottiana, continuaram sua formação e também dialogaram
com as novas perspectivas construtivistas. E, na sua totalidade, ambos os grupos de
professores, dialogaram e dialogam com os mais recentes estudos desdobrados da
lingüística: a do texto, a da enunciação, a da análise do discurso, da Psicologia, como a
Psicologia da Educação e a Psicolingüística e os da Sociolingüística.
No entanto, essa complexa constituição sucumbe à tradição assumida pela
gramática normativa e, ao lado de uma série de interlocutores que os professores,
muitas vezes, sequer desconfiam, dão sentido ao seu fazer pedagógico. Assim, mesmo
não tendo plena consciência da concepção de língua que define esse fazer, os
professores, ainda que tenham saberes diferenciados, optam por aquilo que acreditam
dar certo em alfabetização.
Não podemos deixar de destacar que o letramento, ao ser amplamente
propagado nos vinte últimos anos, trouxe uma contribuição para se pensar o processo
de apropriação da língua escrita pela criança. Seus pressupostos remetem-nos a pensar
em algumas questões que nos parecem ser anteriores à inserção da denominação
‘letramento’ para compor o processo de alfabetização. E, como esta pesquisa mostrou,
conhecer a constituição dos professores alfabetizadores e o que lhes faz sentido como
linguagem é um caminho para revermos nossas concepções e nossas práticas
alfabetizadoras.
215
Pensamos que esse é um chamado à responsabilidade do professor
alfabetizador sob outro prisma (não aquele do compromisso social, como forma de
assumir o mea culpa pelo que fica distante do esperado em matéria de ensino e
aprendizado da língua materna). É o professor que ele estiver sendo hoje, é sua
concepção de linguagem, de alfabetização e de criança, que vai constituir o ensino e o
aprendizado de outras gerações. Em outras palavras, o professor tem o compromisso
de, no seu pensar alteritário, no que lhe competir no ensino da linguagem,
compreender e rever suas posturas a fim de contribuir para que seu aluno não participe
de um processo reificador de linguagem.
216
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Dossiê Letramento. Campinas, vol. 23, n. 81, dez. 2002 –
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Campinas: Papirus, São Paulo: Ação Educativa, 1999.
_____. Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003.
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_____. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
_____. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação.
Campinas: Autores Associados, n. 25, p. 5-17, jan/fev/mar/abr/2004.
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Vozes, 2002.
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XAVIER, Antonio C.; CORTEZ, Suzana. (orgs.) Conversas com lingüistas:
virtudes e controvérsias da Lingüística. São Paulo: Parábola, 2003.
ANEXOS
LISTA DE ANEXOS
ANEXO I – Folder de divulgação do curso
ANEXO II – Questionários
Organização:
Curso de Pedagogia
Apoio:
Centro de Educação, Comunicação e Artes
CECA
Certificação:
CECA
A
ALFABETIZAÇÃO E O
LETRAMENTO NA SÉRIE INICIAL
DO ENSINO FUNDAMENTAL:
concepções, limites e perspectivas
Curso gratuito exclusivamente para professores da série
inicial do Ensino Fundamental da rede pública municipal
de Cascavel e de Santa Helena
A Alfabetização e o Letramento na série
inicial do Ensino Fundamental: concepções,
limites e perspectivas
Curso gratuito para professores da série inicial do
Ensino Fundamental da rede municipal de ensino de
Cascavel e de Santa Helena.
Objetivo geral:
- Discutir acerca das concepções de alfabetização e
letramento nas classes de alfabetização das séries
iniciais do Ensino Fundamental.
Objetivos específicos:
- Abordar as concepções de linguagem e de
alfabetização a partir dos conhecimentos e das práticas
dos alfabetizadores em sala de aula;
- Definir e avaliar os pressupostos do letramento;
- Analisar os referenciais teóricos que embasam alguns
documentos oficiais que orientam o letramento nas
séries de alfabetização;
- Destacar e analisar modos de compreender e fazer em
alfabetização que contemplem as práticas sociais.
Inscrições:
Período de inscrição: aesgotarem as vagas ou até 20 de
setembro de 2007.
Documentos para inscrição: Declaração da escola de
atuação na série inicial do Ensino Fundamental do
sistema municipal de ensino; xérox de identidade.
Local das inscrições: Unioeste Campus de Cascavel
Colegiado do Curso de Pedagogia, sala 72.
Horário das inscrições: 8 h às 11:30h; 13:30h às 16 h;
19:30h às 21 h.
Informações: 3220-3171 (falar com Leandro e Luana).
Inscrição exclusivamente para professores da série inicial
do Ensino Fundamental da rede pública do município de
Cascavel e Santa Helena.
Os interessados devem fazer sua inscrição pessoalmente.
Não serão aceitas inscrições por telefone ou e-mail.
Serão aceitas as 30 primeiras inscrições.
Início do curso: dia 24 de setembro de 2007
Horário: 19:20h às 22:30h
Local: Unioeste, prédio das salas de aula, sala 01
Período: 24 a 27 de Setembro de 2007
Carga horária: 20 h/a
Freqüência mínima obrigatória: 75%
Docente responsável:
Professora Ms. Ivete Janice de Oliveira Brotto
ANEXO II
Nome:___________________________________________________________
Idade:___________________________________________________________
Formação:________________________________________________________
Ano de Formação:_________________________________________________
Estado Civil:______________________________________________________
Turno de aula:_____________________________________________________
Leciona em outra série além da primeira? Qual? Escola pública ou particular?
_________________________________________________________________________________________
Como você se prepara para desenvolver suas atividades docentes cotidianamente?
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
Faz leituras para auxiliar o seu ensino em alfabetização (livros/revistas/outros)? Pelo que/ou quem
orienta essas leituras?
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
Como você alfabetiza?
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
**Que atividades você realiza que percebe uma melhor apreensão do processo de alfabetização pelo
aluno?
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
**Há atividades extra-curriculares desenvolvidas em que você percebe a promoção de alfabetização?
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
Qual o significado de alfabetização e de letramento para você? alguma diferença/semelhança entre
ambos? Qual na sua opinião?
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
Você encontra dificuldade na especificidade do seu processo de ensinar em alfabetização? Qual seria?
Você atribui a quê?
_____________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
____
_________________________________________________________________________________________
Quais destes autores e/ou livros e/ou artigos você conhece/já ouviu falar/leu:
1) Magda Soares – Letramento: um tema em três gêneros
( ) Conheço a autora
( ) Já li este livro
( ) Conheço outros livros desta autora? Quais?________________________________
( ) Já ouvi falar da autora, mas nunca li nada que ela tenha escrito
( ) Já ouvi falar, mas não li o livro
( ) Não tenho conhecimento
2) Ângela Kleiman - Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita
( ) Conheço a autora
( ) Já li este livro
( )Conheço outros livros desta autora Quais? _______________________________
( ) Já ouvi falar da autora, mas nunca li nada que ela tenha escrito
( ) Já ouvi falar, mas não li o livro
( ) Não tenho conhecimento
3) Roxane Rojo – Alfabetização e Letramento: perspectivas lingüísticas
( ) Conheço a autora
( ) Já li este livro
( ) Conheço outros livros desta autora Quais? ________________________________
( ) Já ouvi falar da autora, mas nunca li nada que ela tenha escrito
( ) Já ouvi falar, mas não li o livro
( ) Não tenho conhecimento
4) Luiz Carlos Cagliari – Alfabetizando sem o Ba-bé-bi-bó-bu
( ) Conheço o autor
( ) Já li este livro
( ) Conheço outros livros deste autor. Quais? _________________________________
( ) Já ouvi falar da autor, mas nunca li nada que ele tenha escrito
( ) Já ouvi falar, mas não li o livro
( ) Não tenho conhecimento
5) Maria do Rosário Longo Mortatti – Os sentidos da alfabetização
( ) Conheço a autora
( ) Já li este livro
( ) Conheço outros livros desta autora Quais? ______________________________
( ) Já ouvi falar da autora, mas nunca li nada que ela tenha escrito
( ) Já ouvi falar, mas não li o livro
( ) Não tenho conhecimento
6) Leda Verdiani Tfouni – Letramento e alfabetização
( ) Conheço a autora
( ) Já li este livro
( ) Conheço outros livros desta autora Quais? ________________________________
( ) Já ouvi falar da autora, mas nunca li nada que ela tenha escrito
( ) Já ouvi falar, mas não li o livro
( ) Não tenho conhecimento
7) Percival Leme de Brito Em terra de surdos-mudos: um estudo sobre as condições de produção de textos
escolares.
( ) Conheço o autor
( ) Já li este livro
( ) Conheço outros livros deste autor. Quais? _______________________________
( ) Já ouvi falar da autor, mas nunca li nada que ele tenha escrito
( ) Já ouvi falar, mas não li o livro
( ) Não tenho conhecimento
8) João Wanderlei Geraldi – O texto na sala de aula
( ) Conheço o autor
( ) Já li este livro
( ) Conheço outros livros deste autor. Quais? _______________________________
( ) Já ouvi falar do autor, mas nunca li nada que ele tenha escrito
( ) Já ouvi falar, mas não li o livro
( ) Não tenho conhecimento
9) Claudia Thereza Guimarães de Lemos: Sobre a aquisição da escrita (Artigo In: Alfabetização e letramento)
( ) Conheço a autora
( ) Já li este artigo
( ) Conheço outros artigos desta autora. Quais? _______________________________
( ) Já ouvi falar da autora, mas nunca li nada que ela tenha escrito
( ) Já ouvi falar, mas não li o livro.
( ) Não tenho conhecimento
10) Sírio Possenti : Por que (não) ensinar gramática na escola?
( ) Conheço o autor
( ) Já li este livro
( ) Conheço outros livros deste autor. Quais? _______________________________
( ) Já ouvi falar do autor, mas nunca li nada que ele tenha escrito
( ) Já ouvi falar, mas não li o livro.
( ) Não tenho conhecimento
11) Ana Luiza Bustamante Smolka: A criança na fase inicial da escrita.
( ) Conheço a autora
( ) Já li este livro
( ) Conheço outros livros desta autora. Quais? _______________________________
( ) Já ouvi falar da autora, mas nunca li nada que ela tenha escrito
( ) Já ouvi falar, mas não li o livro.
( ) Não tenho conhecimento
12) Carlos Alberto Faraco: As sete pragas do ensino de Português
( ) Conheço o autor
( ) Já li este livro
( ) Conheço outros livros deste autor. Quais? _______________________________
( ) Já ouvi falar do autor, mas nunca li nada que ele tenha escrito
( ) Já ouvi falar, mas não li o livro.
( ) Não tenho conhecimento
algum outro livro/artigo/autor que discute sobre o tema e que você acha importante mencionar? Qual a
contribuição deste para o seu processo de ensino?
_________________________________________________________________________________________
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_________________________________________________________________________________________
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