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mano em si mesmo? Apenas os aspectos puramente físicos, ou incluem também os
elementos psicológicos? Como seria possível, então, um contrato de emprego, ten-
do em vista que o trabalho “sai” do corpo humano?
A separação radical entre corpo e alma é um projeto mítico da Modernida-
de
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, mas impossível de ser inteiramente alcançado. O que é o “cogito” cartesiano
senão a cisão absoluta da alma do corpo, uma radicalidade de inspiração agostinia-
na?
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Esse projeto é, de certo modo, uma desumanização, uma tendência idealiza-
dora de unificar os opostos, como destaca GALIMBERTI:
A história do pensamento ocidental é percorrida por inteiro pela tentativa de
atar o particular ao universal, o contingente ao necessário, o múltiplo ao
unitário, o terrestre ao celeste, o profano ao divino, o real ao ideal, o relativo
ao absoluto, resolvendo todo conflito interno da ambi-valência na equi-
valência, que depois se torna pre-valência sobre todas as trocas e ela
subordinada e por ela reguladas. Prevalência teológica com respeito aos
sujeitos particulares, monarquia com respeito às pessoas sociais, falocracia
com respeito aos objetos sexuais, logocentrismo com respeito às trocas de
signos, capitalismo com respeito aos produtos do trabalho.
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Poder-se-ia objetar que essa cisão é anterior. Um exemplo é que, “para Aristóteles, a oposição
entre senhor e escravo, por um lado, e macho e fêmea por outro são da mesma espécie que a oposi-
ção entre corpo e alma, entre o que comanda e o que é comandado” (VERNANT, Jean-Pierre; NA-
QUET, Pierre-Vidal. Trabalho e escravidão na Grécia antiga. Trad. Marina Appenzeller. Campinas:
Papirus, 1989, p. 128). Sucede que essa visão dos antigos a respeito da diferença entre corpo e alma
é totalmente distinta da que se verifica na Modernidade. Para os antigos a “alma” é uma racionalidade
externa, ligada à própria natureza. Assim, tanto a dicotomia corpo/alma como a macho/fêmea estava
na ordem do ser, das coisas como são, pois não havia a ideia de “interioridade” nem a dicotomia
consciência/realidade objetiva. Na Idade Média “corpo e alma são indissociáveis” (GOLF, Jacques Le.
Il corpo nel Medioevo. Trad. Fausta Cataldi Villari. Bari: Laterza, 2007, 22). Ao mesmo tempo em que
é veículo de vícios e pecados, o corpo é instrumento de salvação. Por isso, a renúncia aos prazeres
do corpo não representava uma cisão com a alma, mas, ao contrário, o uso do corpo para a sua sal-
vação. É Descartes quem “situa as fontes morais dentro de nós” (TAYLOR, Charles. As fontes do self:
a construção da identidade moderna. Trad.: Adail Ubirajara Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed.
São Paulo: Loyola, 2005, p. 189) e por esse caminho a alma cartesiana “descobre e afirma sua natu-
reza imaterial objetificando o corpo” (IDEM, ibidem, p. 193). Ainda que à primeira vista pareça parado-
xal, é a internalização da alma (fontes morais) que a torna passível de ser objetivada, pois ela se cor-
porifica e, assim, pode ser destacada do restante da materialidade. Isso só foi experimentado na Mo-
dernidade.
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“Descartes introduz na interioridade agostiniana uma mudança radical, dando-lhe uma direção
inteiramente nova, que também marcou época. Poderíamos descrever essa mudança dizendo que
Descartes situa as fontes morais dentro de nós” (IDEM, ibidem, p. 189).
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GALIMBERTI, Umberto. Il corpo. 17ª. ed. Milano: Feltrinelli, 2007, p. 20 (tradução livre do autor).
Texto original: “La storia del pensiero occidentale è percorsa per intero dal tentativo di annodare il
particolare all’universale, il contingente al necessario, il molteplice all’universale, il contingente al
necessario, il molteplice all’unitario, il terrestre al celeste, il profano al divino, il reale all’ideale, il relativo
all’assoluto, risolvendo ogni conflitto interno all’ambi-valenza nell’equi-valenza, che poi diviene pre-
valenza su tutti gli scambi a essa subordinati e da essa regolati. Prevalenza teologica rispetto ai
soggetti particolari, monarchia rispetto alle persone sociali, fallocrazia rispetto agli oggetti sessuali,
logocentrismo rispetto agli scambi dei segni, capitalismo rispetto ai prodotti del lavoro”.