Download PDF
ads:
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARA
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
JOSÉ APARECIDO DOS SANTOS
FUNDAMENTOS DA SUBORDINAÇÃO JURÍDICA DO TRABALHA-
DOR: SUJEIÇÃO E CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA
CURITIBA
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
JOSÉ APARECIDO DOS SANTOS
FUNDAMENTOS DA SUBORDINAÇÃO JURÍDICA DO TRABALHA-
DOR: SUJEIÇÃO E CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação, Pesquisa e Extensão em Di-
reito, da Pontifícia Universidade Católica do
Paraná, como requisito parcial para obten-
ção do título de Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Marco Antônio César
Villatore
CURITIBA
2009
ads:
Dados da Catalogação na Publicação
Pontifícia Universidade Católica do Para
Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR
Biblioteca Central
Santos, José Aparecido dos
S237f Fundamentos da subordinação jurídica do trabalhador : sujeição e
2009 Construção da cidadania / José Aparecido dos Santos ; orientador, Marco
Antônio César Villatore. -- 2009.
212 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná,
Curitiba, 2009
Inclui bibliografia
1. Trabalhadores. 2. Relações trabalhistas. 3. Patrão e empregado. 4.
Direito
do trabalho. I. Villatore, Marco Antônio César. II. Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.
Dóris 4. ed. – 341.6
JOSÉ APARECIDO DOS SANTOS
FUNDAMENTOS DA SUBORDINAÇÃO JURÍDICA DO TRABALHA-
DOR: SUJEIÇÃO E CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação, Pesquisa e Extensão em Direito, da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Direito.
COMISSÃO EXAMINADORA
Prof. Dr. Marco Antônio César Villatore
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Prof. Dr. Roland Hasson
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Prof. Dr. Gilberto Stürmer
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Curitiba, 27 de fevereiro de 2009
À Helen May Sholl, por tudo, e por nada.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho seria impossível sem a cumplicidade e a paciência de meus familiares.
À Helen, ao Chrysantho e ao Gregory, portanto, os meus primeiros agradecimentos.
Agradeço também aos professores da pós-graduação em Direito da Pontifícia Uni-
versidade Católica do Paraná pelo incentivo e pelos debates. Especial agradecimen-
to reservo ao meu orientador, Prof. Marco Antônio César Villatore, por toda a aten-
ção dispensada, pelas contribuições e sugestões. Agradeço também ao Prof. Ro-
land Hasson pelo rico intercâmbio propiciado em suas aulas. Agradeço profunda-
mente os ensinamentos recebidos do Prof. Carlos Frederico Marés de Souza Filho.
Creio ser possível perceber neste trabalho ecos de sua rica e dialética forma de en-
sinar, pálida vela em face daquele grande candeeiro.
Agradeço à Prof. Aldacy Rachid Coutinho, cujas generosas lições ofertadas na dis-
ciplina isolada da qual participei na Universidade Federal do Paraná, decisivas para
a configuração deste trabalho.
Por fim, agradeço à Escola de Administração Judiciária do Tribunal Regional do
Trabalho da 9ª. Região pelo incentivo e financiamento desta pesquisa, sem os quais
certamente as minhas limitações seriam ainda mais visíveis.
RESUMO
A subordinação jurídica é considerada o elemento fundamental e distintivo da rela-
ção de emprego, mas a dogmática a analisa por um prisma essencialista e subjeti-
vista. Das atuais transformações econômicas emergiu um mundo do trabalho de
crescente complexidade, com categorias jurídicas que transitam entre a autonomia e
a subordinação. A subordinação é algo (a ser) construído histórica e socialmente,
um processo em que se constrói o trabalhador como sujeito. Pensar a sujeição é
pensar a resistência e a liberdade, é discutir a construção da cidadania e reafirmar a
necessidade de proteção do trabalhador concreto. A construção simbólica e material
da liberdade da classe trabalhadora exige a crença no Direito, como estratégia de
mudança social, pois o Direito transformou-se no campo de luta moderno entre a
liberdade e o poder. O sujeito contemporâneo não pode se transformar no indivíduo
da sobrevivência ou do mínimo existencial. As alterações históricas interferem no
conceito de subordinação e em em evidência as contradições de nossa socieda-
de e seu passado escravagista. A escravidão é compatível com os modos capitalis-
tas de produção e se verifica algum tipo de sua continuidade mesmo depois da sua
abolição, por meio de um habitus precário. Os paradoxos de uma subordinação li-
vremente consentida são superados pela invenção do coletivo, com a internalização
de práticas simbólicas pré-reflexivas por meio do Estado e dos grupos intermediá-
rios, como os sindicatos. Há uma profunda desigualdade social que impede os avan-
ços democráticos e dificulta a construção da cidadania e sua ideia de participação e
de convívio. A maior dificuldade reside na ausência de reconhecimento do outro
como produtor de conhecimento, pois o trabalhador é considerado um elemento
descartável do sistema de produção. nos resta avançar contra as tentativas
sempre recorrentes de retorno à barbárie e para vencer esse desafio é indispensá-
vel assegurar a cidadania a toda a população e, dessa forma, alcançar um desen-
volvimento econômico sustentável. Dar equilíbrio nas relações entre capital e traba-
lho é condição de sobrevivência da humanidade e do próprio capitalismo.
Palavras-chaves: SUBORDINAÇÃO JURÍDICA. SUJEIÇÃO. ESCRAVIDÃO. CI-
DADANIA. SOCIEDADE. SUJEITO. CONTRATO. EMPREGADOR. ECONOMIA.
IGUALDADE. LIBERDADE. DIREITO DO TRABALHO. COLETIVO.
ABSTRACT
Juridical subordination is considered a fundamental element and distinctive from the
employment relationship, but juridical dogmatic analyses it by an essentialist and
subjectivist point of view. From today's economic mutations, emerged a labor world
in increasingly complexity, with juridical categories which dwell between autonomy
and subordination. Subordination is something (to be) constructed historically and
socially, a process in which the worker is built as a subject. To think subjugation is to
think resistance and freedom, it is to discuss the construction of citizenship and to
reaffirm the need of protection of the concrete worker. The symbolic and material
construction of working class' freedom demand a belief in Law, as strategy for social
change, as Law has turned into the modern battlefield between freedom and power.
The contemporary subject cannot become the individual of survivor and existential
minimum. The historic relationships interfere in the concept of subordination and
gives evidence of our society's contradictions and its slavery past. Slavery is com-
patible with the capitalist means of production and it is possible to witness some kind
of its continuity even after its abolition by means of a precarious habit. The para-
doxes of a freely consented subordination are overtaken by the invention of the col-
lective, by the internalization of pre-reflexive, symbolic practices by means of a State
and intermediary groups, such as the syndicates. There is a deep social inequality
which holds back the democratic advances, making it hard to construct citizenship
and its idea of participation and social conviviality. The biggest difficulty relies on the
absence of recognition of the worker as a knowledge producer, because the worker
is considered a dismissible element in the production system. All is left us is to ad-
vance against the always recurrent trials to return to barbarism, and to win this chal-
lenge it is indispensible to reassure citizenship to all population and then to reach a
sustainable economical development. To equilibrate the relationships between Capi-
tal and Work is a survival condition of humanity and of capitalism itself.
Keywords: JURIDICAL SUBORDINATION. SUBJUGATION. SLAVERY. CITZEN-
SHIP. SOCIETY. SUBJECT. CONTRACT. EMPLOYER. ECONOMY. EQUALITY.
FREEDOM. RIGHT TO WORK. COLLECTIVE.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 11
2 CRÍTICA AOS CONCEITOS DOGMÁTICOS DE SUBORDINAÇÃO JURÍDICA 16
2.1 SUBORDINAÇÃO COMO OBJETO DA CIÊNCIA CRÍTICA AO
ESSENCIALISMO 19
2.2 DEPENDÊNCIA PESSOAL E SUBORDINAÇÃO: O CRITÉRIO SUBJETIVO 26
2.3 O EMPREGO COMO RELAÇÃO JURÍDICA 37
2.4 SUBORDINAÇÃO PESSOAL E SUJEIÇÃO JURÍDICA 42
2.5 CRISE DO CONTRATO E SEU IMPACTO NO TRABALHO 49
2.6 CRÍTICA RADICAL: RECUSA DA SUBORDINAÇÃO COMO ELEMENTO
INTEGRANTE DA RELAÇÃO DE EMPREGO 56
2.7 SUBORDINAÇÃO OBJETIVA 61
2.8 TRABALHO E CORPO: DA CISÃO AO RECONHECIMENTO DA
AMBIVALÊNCIA 64
3 BREVE PERCURSO HISTÓRICO DA SUBORDINAÇÃO 75
3.1 ESCRAVIDÃO E TRABALHO NA ANTIGUIDADE E NA IDADE MÉDIA 75
3.2 ESCRAVIDÃO E TRABALHO LIVRE NO BRASIL 88
3.3 INDUSTRIALIZAÇÃO E ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL – A CONSTRUÇÃO
DO TRABALHISMO NO BRASIL 124
3.4 TOYOTISMO, CONSUMO E CENTRALIDADE DO TRABALHO 143
3.5 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS 153
4 SUBJETIVIDADE E CLASSE TRABALHADORA 158
4.1 O PASSADO PRESENTE DA ESCRAVIDÃO: OUTRO SUJEITO OU OUTRO
ESCRAVO? 158
4.2 INDETERMINAÇÃO DO OBJETO DO CONTRATO DO TRABALHO: UM
OBSTÁCULO A SER SUPERADO 172
4.3 A PERDA DO TEMPO E DO LUGAR DO TRABALHO: AS NOVAS FORMAS DE
SUBORDINAÇÃO 176
4.4 UM NOVO CONTRATO: RESISTÊNCIA E EMANCIPAÇÃO 180
4.5 A CONSTRUÇÃO COLETIVA DOS DIREITOS 189
4.6 A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA: DO SILÊNCIO (OU CONSENSO) DA
OBEDIÊNCIA PARA O DIÁLOGO (OU DISSENSO) DA MAIORIDADE 193
5 CONCLUSÕES 199
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 202
11
1 INTRODUÇÃO
Este estudo teve seu primeiro olhar dirigido a uma multidão indefinida e inde-
finível de trabalhadores, denominados “precarizados”, sobre os quais o Direito recu-
sa-se lançar sua alva manta. Biscateiros, motoboys, diaristas, chapas, informais,
cooperados, panfleteiros, carrinheiros e tantos outros considerados autônomos. Mui-
tos desses possuem a marca da subcidadania, ao mesmo tempo em que, curiosa-
mente, são considerados autônomos e, por isso mesmo, indignos de proteção da
legislação trabalhista. A eles, o Direito não protegeria porque o seriam subordina-
dos, mas um olhar mais atento faz ver que a ordem jurídica simplesmente não os
vê: são invisíveis, embora constituam significativa parte de nossa população.
Se a ausência de subordinação é a principal justificativa para o afastamento
da CLT, o primeiro objeto de análise deve ser o fundamento disso que se tem de-
nominado subordinação jurídica. Essa investigação é imprescindível para distinguir
quantos desses invisíveis sociais trabalham sob relação de emprego, mas ficam à
margem da proteção estatal, em decorrência da criação de uma zona de “informali-
dade”. Está se construindo uma faixa de ocupações a rigor enquadráveis na relação
de emprego, mas que se naturalizam como informais por meio do exercício de um
poder simbólico exercido sobre essas pessoas, as quais passam a acreditar sim-
plesmente estarem nessa condição por força do destino ou por sua própria opção.
Esse é um poderoso fator de internalização da exclusão social nos próprios excluí-
dos, ao mesmo tempo em que o Estado abdica de qualquer tipo de interferência ou
de fiscalização.
Por fundamento, devem-se entender as bases teóricas em que se assentam
alguns lugares comuns da dogmática jurídica, ou seja, o objetivo é (re)analisar os
principais aspectos desse conceito: o dito e o não-dito da subordinação. Deve-se
delimitar a subordinação pelas marcas de seu passado, pelas agruras de seu pre-
sente e pelas possibilidades emancipatórias do futuro.
Ente cuja pré-compreensão costuma ser presumida (suposta) nos meios tra-
balhistas, a subordinação das relações de trabalho, em que pesem as críticas a ela
dirigidas, ainda é considerado o elemento fundamental e distintivo da relação de
emprego. Por meio de uma curiosa adjetivação, esse peculiar estado de dependên-
12
cia foi entificado (imobilizado) no termo “subordinação jurídica”, procedimento retóri-
co por meio do qual mais se oculta um sentido do que desvela uma realidade con-
creta. A pretensão, portanto, é analisar com novos aportes teóricos a juridicidade
dessa subordinação.
A importância de se reverem os fundamentos da subordinação jurídica, con-
tudo, não é de ordem puramente teórica, mas revolve relevantes questões estrutu-
rais e práticas do atual mundo do trabalho. É sabido que este passa por modifica-
ções significativas, e grande parte delas decorre de modificações estruturais no sis-
tema produtivo e daquilo que se tem denominado globalização. O conceito e a forma
de trabalho se modificam sem que os respectivos marcos regulatórios consigam a-
companhar e se adequar a essa transformação. Por isso, há verdadeira ânsia na
busca de novos caminhos que possam objetivar esse conceito central, sem o qual a
ideia de relação de emprego e de autonomia perde sentido. O dilema que ainda se
oferece é saber se o Direito do Trabalho possui um marco específico (a subordina-
ção jurídica do trabalhador) ou se a realidade evoluiu de tal modo que a dependên-
cia econômica e o trabalho pessoal passem a ser suficientes para fazer incidir a pro-
teção trabalhista.
A primeira e mais visível dessas grandes alterações em curso é a redução
progressiva e irreversível do trabalho formal e o crescimento daquilo que se tem de-
nominado trabalho informal. Trata-se da referida precarização do trabalho, expressi-
va e marcante em nosso País. Cresce o número de ex-trabalhadores e de quase
trabalhadores à margem do típico trabalho protegido/subordinado previsto no art. 3º.
da CLT, forjado principalmente com vistas em um sistema específico de produção
(industrial e fordista). O vínculo de emprego se tornou poroso a várias formas de
trabalhos terceirizados, autônomos ou “informais”, e muito do que dele restou está
sob impacto da forte tendência de transformação dos mecanismos de apropriação
da produtividade (toyotismo), ao mesmo tempo em que se verificam inquietantes
indicativos de retorno de formas arcaicas de sujeição do trabalho, inclusive a escra-
vidão contemporânea.
Dessas alterações econômicas e sociais emergiu um mundo do trabalho de
crescente complexidade com categorias jurídicas que transitam impune e cegamen-
te entre a autonomia e a subordinação. A nossa tradição dogmática e positivista
13
passou a não dar conta de distinguir essas categorias e instalou-se uma crise de
objetivação. Os moldes tradicionais mostraram-se inadequados para diferenciar es-
sas categorias.
Não há vida de que é importante traçar critérios mais adequados para o
conceito de subordinação e para as verdadeiras formas de autonomia. O que é du-
vidoso é se esse anseio de objetivação pode ser atendido por meio de trabalho le-
gislativo ou se o que está no cerne desse problema é como a sociedade brasileira
encara, social e juridicamente, o trabalho e os seus trabalhadores. A subordinação,
nesta última perspectiva, seria uma construção simbólica e ética que, a par das con-
tribuições legislativas sempre necessárias em um país do sistema civil law, exige
outro caminho para sua afirmação e seu equilíbrio, caminho esse diretamente rela-
cionado com a construção de um novo sujeito, de um novo cidadão. O que deve ser
perguntado é se sob o véu difuso da subordinação/autonomia não se esconde um
habitus classificatório de reconhecimento e distinção social que imputa aos integran-
tes das classes mais baixas uma qualidade de “subgente”.
Pretende-se, neste trabalho, analisar em que medida as alterações históricas
no processo produtivo capitalista interferem no conceito de subordinação no Brasil,
bem como debater a hipótese de essas alterações terem apenas posto em evidên-
cia as próprias contradições desse conceito em nossa sociedade, na qual várias
modalidades de trabalho transitam entre a escravidão e a liberdade, antípodas que
em caráter absoluto o são historicamente atingíveis. A partir daí, pretende-se veri-
ficar o quanto essa visão de mundo afeta o projeto de construção da cidadania no
Brasil.
As marchas e contramarchas que o sistema capitalista enfrenta parecem pro-
duzir efeitos sociais mais devastadores no Brasil e em outros países do denominado
Terceiro Mundo, visto que nesses países o projeto de cidadania salarial resta in-
completo, em decorrência das peculiaridades simbólicas que cercam o capitalismo
periférico. Por isso, o curso histórico da apropriação do trabalho em nosso País tem
forjado o aparecimento de diversas gradações de subcidadania para considerável
parte de nossa população, com um aumento significativo e inquietante de uma “ralé
estrutural”, deixada à margem do Estado e da sociedade e condenada ao “se virar”,
à “própria sorte”.
14
Assim, (re)pensar ou (des)pensar os fundamentos da subordinação jurídica é,
ao mesmo tempo, (re)tocar ou (re)inventar a proteção dos trabalhadores em época
em que os preceitos tuitivos são taxados, em perspectiva liberal, de prejudiciais aos
próprios trabalhadores. Acima de tudo, isso importa perguntar sobre a construção da
cidadania em nosso País.
Perguntar sobre a subordinação jurídica é, em certa medida, perguntar sobre
o poder do empregador, mas, neste trabalho, adrede se desloca o centro da investi-
gação para a subordinação para retirá-la da perspectiva mais comum de análise a
partir do poder diretivo ou disciplinar. Pretende-se com isso indicar uma ordem de
discurso e deixar claro que a preocupação principal é analisar as possibilidades e-
mancipatórias do trabalhador por meio do contrato de emprego e não os limites e
alcance do poder do empregador. de se ter em conta que as condições de sub-
cidadania não são internalizadas apenas na classe dominante, mas nos próprios
trabalhadores precarizados. Assim, as práticas emancipatórias o o unidirecio-
nais (de cima para baixo), mas ambivalentes.
Não serão analisados, neste trabalho, os demais elementos dogmáticos da
relação de emprego (não-eventualidade, onerosidade ou pessoalidade), mas essa
opção é apenas metodológica
1
e não constitui uma delimitação do objeto de análise,
visto que esses elementos se confundem com a própria subordinação jurídica, mas
de opção. Pretende-se centralizar os esforços de compreensão nos elementos histó-
ricos e simbólicos que cercam o conceito de subordinação jurídica, como forma de
confrontar os seus aspectos de dominação e de resistência, de conservação e de
emancipação, com base na premissa de que a subordinação do trabalhador pelo
contrato está relacionada diretamente com outras construções da Modernidade.
Parte-se de uma premissa admitida como autoevidente: a subordinação é
uma relação social que varia em condições de espaço e de tempo. Essa afirmação
1
Os denominados “requisitos” dogmáticos da relação de emprego (não-eventualidade, onerosidade
ou pessoalidade) possuem irresistível traço positivista, pois pretendem oferecer ao observador crité-
rios “objetivos” para afirmar ou negar a presença de uma essência (relação de emprego). Como é
impossível dar conta do fenômeno social apenas com base em tais critérios, o elemento decisivo nes-
sa análise é sempre a “subordinação jurídica”, pois o trabalho pode ser pessoal, não-eventual e one-
roso e, ainda assim, não se tratar de uma relação de emprego. Isso conduz à suspeita de que esses
requisitos, em realidade, são apenas argumentos discursivos utilizados para afastar de antemão a
subordinação jurídica, um meio de “aliviar” o trabalho do intérprete na busca da verdadeira essência,
que é a subordinação jurídica.
15
não é isenta de críticas nem pacífica, mas ao longo da exposição pretende-se seja
confirmada. Admitir o condicionamento histórico e geográfico da subordinação jurí-
dica não é algo simples, e talvez esse asserto, por si só, merecesse outra e longa
dissertação.
2
Sucede que essa análise exigiria o seu confronto com dados empíri-
cos, impossíveis de serem apresentados neste trabalho. A abordagem histórica,
contudo, contribuirá para confirmar a premissa da qual o trabalho parte.
De fato, tudo indica que o que é sujeição, no Brasil, é, em vários aspectos, di-
verso do que seja sujeição na Europa e nos Estados Unidos. A construção histórica
de qualquer sociedade incorpora matizes próprios no conceito de subordinação, os
quais, embora não guardem incompatibilidade absoluta com os de outros países,
exigem sejam considerados elementos culturais próprios e relevantes. Por isso, na
segunda parte deste trabalho serão discutidos os aspectos mais relevantes da cons-
trução, no Brasil, da centralidade no trabalho.
2
Essa afirmação é tanto mais controvertida em decorrência da hegemonia universalizante do capita-
lismo, principalmente em razão do capitalismo financeiro e do fenômeno que se tem denominado
“globalização”. Essa tendência gera uma falsa percepção de homogeneidade das relações entre capi-
tal e trabalho, como se o capitalismo fosse uma entidade metafísica absorvedora da realidade social.
Os próprios elementos históricos que serão expostos, contudo, indicam que os condicionamentos de
tempo e espaço modificam a percepção do “sujeitar-se” e, conseguintemente, as relações entre sujei-
ção e poder.
16
2 CRÍTICA AOS CONCEITOS DOGMÁTICOS DE SUBORDINAÇÃO
JURÍDICA
Nossas mentes rechaçam a ideia do nascimento de uma coisa que pode
nascer de uma contrária, por exemplo: a verdade do erro; a vontade do
verdadeiro da vontade do erro; o ato desinteressado do egoísmo ou a
contemplação pura do sábio da cobiça. Tal origem parece impossível:
pensar nisso parece próprio de loucos. As realidades mais sublimes devem
ter outra origem, que lhes seja peculiar. Não pode ser sua mãe esse mundo
efêmero, falaz, ilusório e miserável, esta emaranhada cadeia de ilusões,
desejos e frustrações. No seio do ser, no qual não morrerá nunca, num deus
oculto, na “coisa em si” é onde deve se lobrigar seu princípio, ali e em
nenhuma outra parte.
Esse é o preconceito característico dos metafísicos de todos os tempos,
este gênero de apreciação se encontra na base de todos seus
procedimentos lógicos. A partir desta “crença” esforçam-se em alcançar um
“saber”, criam a coisa que, afinal, será pomposamente batizada com o nome
de “verdade”.
Friedrich Wilhelm NIETZSCHE – “Além do bem e do mal ou prelúdio de uma
filosofia do futuro”.
O conceito de subordinação sempre foi alvo de muito debate entre os juristas.
A importância desse conceito e da polêmica que o cerca, entretanto, é inegável, até
porque a história do Direito do Trabalho se confunde não com a história da su-
bordinação, mas com a própria história das impugnações a esse critério distintivo da
relação de emprego.
3
É verdade que a respeito da subordinação jurídica e dos demais elementos
integrantes da relação de emprego se encontram sedimentados alguns lugares-
comuns na doutrina trabalhista, mas isso é mais o resultado de uma repetição acríti-
ca de dogmas do que de uma análise aguda e profunda desse fenômeno jurídico.
As contradições e as crises da sociedade pós-industrial, por sua vez, abalaram os
cânones em que se assentavam aquelas antigas crenças jurídicas, e novas refle-
xões indicam a necessidade de serem revistas várias das afirmações correntes a-
cerca das características ou requisitos da relação de emprego, em retorno às ques-
tões suscitadas no início dos debates, principalmente aquelas lançadas no início do
século XX.
3
RIVAS, Daniel. La subordinación: criterio distintivo del contrato de trabajo. Montevideo: Fundación de
Cultura Universitaria, 1995, p. 34.
17
De qualquer modo, a subordinação é o elemento ao qual se maior impor-
tância na confirmação da existência de vínculo de emprego, ainda que pouco se
saiba acerca de sua “natureza”. De outra parte, é curioso observar que o art. . da
CLT não se refere à subordinação, mas à dependência. Por isso se afirma que o
existe “rigor científico numa suposta diferença conceitual entre dependência e su-
bordinação”
4
, o que não resulta claro em termos linguísticos, aspecto que mais adi-
ante será analisado. O fato é que a doutrina construiu gradativamente a ideia de que
a dependência ali referida, em realidade, corresponde a uma subordinação, a qual
deve ser encarada exclusivamente por seus aspectos jurídicos, como se isso fosse
uma afirmação plena de significado.
Esse aspecto é altamente problemático, pois os juristas partem da ideia de
que a subordinação seja um dado objetivo da realidade. Em uma primeira análise,
podem ser apontadas três críticas centrais ao modo como a maior parte dos juristas
tem analisado o conceito de subordinação:
a) visão essencialista do fenômeno jurídico, de modo a se tentar as-
sociar subordinação a um ente que vincula uma relação jurídica ao
emprego. Essa tendência segue os moldes da ontologia aristotélica,
ou seja, em bases metafísicas procura nela (e em vão) uma subs-
tância, uma essência que a diferencie das demais modalidades de
trabalho. Além disso, na respectiva análise ainda permeia muito
uma visão subjetivista do fenômeno jurídico, quando essa perspec-
tiva há muito está em crise. O Direito do Trabalho, contrariamente a
vários outros ramos de nossa ciência, tem resistido às mais impor-
tantes reflexões filosóficas do século XX, inclusive o denominado
“giro linguístico”. Essa visão simplificadora da realidade acaba por
atribuir relevância a determinadas particularidades presentes no
trabalho humano para fins de classificá-lo como relação de empre-
go ou relação autônoma, como se a realidade pudesse ser confina-
da apenas a jogos de positivo e negativo. Imagina-se a relação de
emprego como um ente pleno e constituído de uma totalidade de
4
ROMITA, Arion Sayão. Contrato de trabalho: formação e nota característica. In: GONÇALVES, Nair
Lemos e outros (coord.). Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1983, p. 240.
18
significados e, por premissa, afasta-se a possibilidade de tratar-se
de algo (a ser) construído histórica e socialmente;
b) desvinculação dos aspectos jurídicos dos seus condicionantes eco-
nômicos e sociais, como se subordinação fosse um conceito pura-
mente jurídico e como se o jurídico fosse um existencial puro e que
não dependesse de condicionantes sociais, políticos e econômicos.
A recusa da análise dos fundamentos econômicos e sociais que es-
tejam a repercutir na relação de emprego (positivismo) segue ao la-
do de verdades evidentes (dogmatismo), mas ambas não resistem
a um teste empírico;
c) a dissociação da subordinação dos demais elementos da relação
de emprego (onerosidade, não-eventualidade e pessoalidade), co-
mo se partes destacáveis do fenômeno. A visão positivista imagina
que seja possível cortar a realidade da relação de emprego para
analisar a presença desses requisitos um a um, de forma que a au-
sência de um deles pudesse significar a inexistência de relação de
emprego. Procura-se, por esse meio, obter uma moldura abstrata
da relação de emprego à qual possam ser subsumidos os casos
concretos.
5
O que se pretende demonstrar aqui é que a relação de emprego não pode ser
detectada ou ter sua existência refutada com base em critérios de lógica formal ou
com base em dogmas (se estiver presente este elemento vínculo, e caso contrá-
rio não há). A realidade é multifacetária, e para verificar se ou não vínculo de
emprego é necessário analisar o nosso “objeto(o trabalho humano) como um con-
junto de seus elementos simbólicos, mas acima de tudo com vista aos objetivos da
proteção jurídica e não com base em axiomas desvinculados dos fins visados pela
Constituição da República.
5
A desvantagem do método de subsunção está justamente na dificuldade de amoldar a subordinação
às transformações sociais e da organização do trabalho, o que tende a conduzi-lo ao formalismo (RI-
VAS, Daniel. La subordinación: criterio distintivo del contrato de trabajo. Montevideo: Fundación de
Cultura Universitaria, 1995, p. 181).
19
2.1 SUBORDINAÇÃO COMO OBJETO DA CIÊNCIA CRÍTICA AO
ESSENCIALISMO
A concepção positivista e essencialista do fenômeno jurídico conduz os intér-
pretes a buscar o conceito de subordinação jurídica por um viés puramente objetivo,
o que esconde em realidade a busca por um ente inatingível. Busca-se a sujeição
na natureza como se fosse uma substância distinta e separável dos demais elemen-
tos da realidade social. O trabalho subordinado, por isso, seria algo cientificamente
palpável e que por mecanismos abstratos permitiria o enquadramento de todas as
modalidades de trabalho em relação de emprego ou em relação autônoma.
O que a nossa realidade social e o nosso passado escravocrata indicam é
que esse sonho dogmático é impossível de ser alcançado se quisermos superar os
critérios puramente formalistas, os quais mantiveram o nosso sistema jurídico infen-
so à nossa brutal desigualdade. que se evoluir da objetivação da subordinação
para a tutela dos sujeitos tuteláveis ou, pelo menos, mesclar critérios objetivos e
subjetivos.
Como foi explicado, uma tendência de se desvincularem da relação de
emprego os seus condicionamentos culturais, por se insistir em analisar a subordi-
nação como uma essência. Nesse caso, subordinação (substantivo) seria o elemen-
to primordial, qualificado e limitado por um adjetivo (jurídica). Essa perspectiva acar-
reta perplexidades que seriam evidentes, não fosse o seu manifesto propósito de
impedir a continuidade desestabilizadora da dúvida.
Se uma subordinação jurídica, admite-se implicitamente a existência de
uma subordinação não-jurídica ou injurídica. Quais seriam as hipóteses de uma su-
bordinação que não fosse jurídica? Mesmo o pátrio-poder e o poder do senhor de
escravos são e eram regulados pelo mundo jurídico em alguma medida
6
, ainda que
a partir do discurso linguístico do direito de propriedade, pois o que se regula na re-
lação entre sujeição e poder não é a sujeição, mas o poder. Ao se (de)limitar o po-
6
Mesmo legislações totalmente despreocupadas com a sorte dos escravos continham disposições
jurídicas que afetavam as respectivas relações com o senhor. Um exemplo é a brecha na legislação
romana” relacionada “com o processo de emancipação de um escravo” (HOORNAERT, Eduardo. As
comunidades cristãs dos primeiros séculos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.).
História da cidadania. 4ª. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 87).
20
der surge a contrapartida da subordinação e qualquer regulação jurídica que incida
sobre o poder induz à juridicidade da respectiva sujeição.
O pensamento jurídico dominante, entretanto, parece ver esse fenômeno por
outra perspectiva, objetivamente. Para se ter uma ideia de como até hoje a subordi-
nação jurídica é vista, convém reproduzir os logicamente rigorosos ensinamentos de
CATHARINO:
Comecemos pelo substantivo escolhido: subordinação, preferível a sujeição
e a submissão. Subordinado é quem está sob ordem, em ordem, de um
ordenador.
Havendo trabalho livre, mais ou menos, ninguém se faz trabalhador
subordinado contra a sua vontade, mesmo na hipótese de relação de
emprego sem contrato. Assim, o ato de colocar-se sob ordens é voluntário,
sempre. Mas para que assim possa proceder, salvo exceções, também é
imprescindível que outrem se disponha a ordenar, seja ou não pessoa
natural. E, ocorrendo exceção, é porque, se a liberdade econômica conflitar
com a humana de trabalhar para viver, não pode haver hesitação possível:
prevalece esta.
Jurídica, porque a pessoa natural, por ato de sua livre vontade, assume a
obrigação de trabalhar para outro sujeito de direito, que a remunera.
7
Quem lesse apenas esse excerto dogmático, com a finalidade exclusiva de
compreender em termos gicos o objeto da investigação deste trabalho, poderia
resumir o conceito de subordinação jurídica a “receber ordens voluntariamente”. A
vontade, por esse ponto de vista, seria alçada a único fundamento jurídico da su-
bordinação. CATHARINO, entretanto, não deixaria de expor mais cruamente a sua
verdade, pois, ao apontar a “causa exterior condicionante” dessa relação, afirma
taxativamente: “no regime capitalista, o domínio dos meios de produção explica a
posição subordinante do empregador”.
8
Assim, os fundamentos jurídicos estariam
não apenas na vontade, mas também, ou principalmente, na propriedade. O pro-
blemático disso é que, como o trabalho é um dos meios de produção, o mais impor-
tante deles, diga-se de passagem, o que se põe em vida é se com essa subordi-
nação o trabalhador não passa a também ser propriedade do empresário, ainda que
temporariamente, durante a prestação dos serviços.
7
CATHARINO, José Martins. Compêndio de direito do trabalho. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1982, v. 1,
p. 205. É curioso que CATHARINO indique como exceção eventual conflito entre a liberdade econô-
mica com a “necessidade humana de trabalhar para viver”. Parece ser uma negação da existência de
classes ou, pelo menos, do conflito de classes, pois o proletariado é justamente a classe dos que
precisam trabalhar para viver. Assim, esse tipo de conflito é a regra nas relações entre o capital e o
trabalho e não a exceção.
8
IDEM, ibidem, v. 1, p. 206.
21
A articulação entre vontade e propriedade dos meios de produção na tentati-
va de objetivar o cleo da relação de emprego acaba por se revelar contraditória
com a própria natureza contratual da relação de emprego. Por isso, o contratualismo
declarado parece se compatibilizar com um enrustido institucionalismo, e com seu
consequente autoritarismo, como se observa na seguinte afirmação de SANSEVE-
RINO:
[...] em geral, a posição subordinada do trabalhador resulta coerente com a
ideia de que havendo um grupo social organizado (Estado, família, empresa)
não se pode prescindir da sujeição a uma vontade organizadora, justo para
que os fins institucionais possam ser alcançados; daí decorre o caráter de
aspecto instrumental da subordinação a que está obrigado o trabalhador.
9
Essa objetivação extrema o poderia se fazer sem que nela se escondesse
o real “sujeito”, pois uma tentativa explícita de circunscrever o objeto de análise
ao mundo jurídico, de modo a evitar sua conspurcação por elementos estranhos à
pureza jurídica. É por isso que os juristas que, no início do culo XX, criticaram a
dependência econômica, técnica e social como critérios distintivos da relação de
emprego, apontam-lhes um vício de origem, qual seja, o de seus defensores utiliza-
rem “elementos metajurídicos”
10
. Os defensores desses critérios foram acusados de
delimitar os contornos dessa dependência com base na condição social do traba-
lhador (condicionamento socioeconômico) e não com base na relação jurídica da
qual ele participa (condicionamento jurídico). A solução que resultou dessa crítica,
entretanto, é uma sutil tautologia: a subordinação é jurídica porque prevista no con-
trato, e o contrato é de emprego, porque nele subordinação jurídica. A causalida-
de nesse caso é circular e sua origem não é definida.
Não haveria nenhum problema de ordem teórica e prática em admitir essa
circularidade causal da subordinação jurídica não fosse sua construção ter por fina-
lidade justamente esconder os demais elementos que participam dessa relação. O
ponto de vista predominante parte da premissa de que a subordinação é jurídica
porque prevista no ordenamento jurídico (base da relação jurídica), e de que as
9
SANSEVERINO, Luisa Riva. Curso de direito do trabalho. Trad. Élson Guimarães Gottschalk. São
Paulo: LTr/Editora USP, 1976, p. 48.
10
GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do trabalho. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Fo-
rense, 1991, p. 151. “O equívoco dos que adotam critérios extrajurídicos reside exatamente no fato de
se não preocuparem com a fixação do elemento característico do contrato de trabalho, mas, sim, com
a qualidade da pessoa que deve ser juridicamente protegida” (IDEM, ibidem, p. 152).
22
“medidas de tutela do Direito do Trabalho são tomadas no pressuposto de que o
trabalhador é subordinado a alguém
11
, mas ao mesmo tempo se afirma que a su-
bordinação é jurídica porque decorre de uma relação jurídica e essa relação jurídica
é protegida porque subordinação. Esse ponto de vista é unidimensional, pois exi-
ge um ponto de partida, e como esse ponto de partida é ao mesmo tempo injurídico
e impiedoso, pois estaria apenas no poder pessoal do indivíduo proprietário, precisa
ser encoberto.
Sucede, entretanto, que a se admitir ser a subordinação a pura e simples su-
jeição pessoal do trabalhador, elemento metajurídico não afirmado expressamente,
mas pressuposto no sistema, o único elemento que tornaria jurídica essa relação
seria justamente a necessidade de proteção legal em razão de um estado fático da
classe trabalhadora. O contrato, que justificou de início a exploração sem fim da
mão-de-obra, passa a ser também a justificativa da proteção jurídica. A juridicidade,
portanto, estaria na necessidade de contrapor sujeição e liberdade, em típica dispu-
ta por poder simbólico, ou seja, por aquele “... poder quase mágico que permite ob-
ter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao
efeito específico de mobilização, se exerce se for reconhecido, quer dizer, igno-
rado como arbitrário”.
12
Ao decidir, em um caso concreto, se ou o subordinação jurídica, o juiz
não age puramente como um hermeneuta preocupado em produzir uma regra ade-
quada nem é um gico que, por meio da subssunção, aplica ao fato uma regra an-
terior já produzida. Como bem destaca Pierre BOURDIEU:
[...] o conteúdo prático da lei que se revela no veredicto é o resultado de
uma luta simbólica entre profissionais dotados de competências técnicas e
sociais desiguais, portanto, capazes de mobilizar, embora de modo desigual,
os meios ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração, das “regras
possíveis”, e de os utilizar eficazmente, quer dizer, como armas simbólicas,
para fazerem triunfar a sua causa; o efeito jurídico da regra, quer dizer, a
sua significação real, determina-se na relação de força específica entre os
profissionais, podendo-se pensar que essa relação tende a corresponder
(tudo o mais sendo igual do ponto de vista do valor na equidade pura das
causas em questão) à relação de força entre os que estão sujeitos à
jurisdição respectiva.
11
GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do trabalho. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Fo-
rense, 1991, nota 24, p. 152.
12
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2006, p. 14.
23
O trabalho de racionalização, ao fazer aceder ao estatuto de veredicto uma
decisão judicial que deve, sem dúvida, mais às atitudes éticas dos agentes
do que às normas puras do direito, confere-lhe a eficácia simbólica exercida
por toda a ação quando, ignorada no que têm de arbitrário, é reconhecida
como legítima. [...] E o ritual destinado a enaltecer a autoridade do acto de
interpretação [...] não faz mais do que acompanhar todo o trabalho colectivo
de sublimação destinado a atestar que a decisão exprime não a vontade e a
visão do mundo do juiz mas sim a voluntas legis ou legislatoris.
13
A tarefa de determinar a essência, a substância primordial da relação de em-
prego, portanto, poderia resultar em fracasso, pois esse é um fenômeno de con-
trafluxo, uma limitação ao capital simbólico, um paradoxal brado de liberdade, um
marco de resistência. O conceito de subordinação jurídica é o reconhecimento da
sujeição, mas também é o anseio da liberdade, da liberdade por meio da proteção
jurídica. Sem essa ambivalência o próprio capitalismo não subsistiria, pois as condi-
ções psicológicas ou morais para exploração da mão-de-obra o estariam presen-
tes.
A ideia de subordinação jurídica, portanto, merece ser analisada mais como
elemento retórico de um fenômeno sociojurídico do que propriamente como uma
verdade objetiva. Tudo indica que no conceito de subordinação jurídica se operam
as mesmas objeções que Charles TAYLOR aponta sobre os demais objetos de es-
tudo:
1. O objeto de estudo deve ser tomado de modo “absoluto”, quer dizer, não
no sentido que tem para nós ou para qualquer outro sujeito, mas tal como é
por si mesmo (“objetivamente”);
2. O objeto é o que é, independentemente de quaisquer descrições ou
interpretações dele oferecidas por qualquer sujeito;
3. O objeto pode, em princípio, ser apreendido numa descrição explícita;
4. O objeto pode, em princípio, ser descrito sem referência ao ambiente que
o cerca.
14
Da mesma forma e pelos mesmos motivos pelos quais Charles TAYLOR a-
pontou a inaplicabilidade dessas premissas metodológicas ao seu conceito de self,
também parece impossível aplicá-las ao conceito de subordinação. Isso se por-
que a subordinação é também um modo de ser, uma identificação, um espaço de
indagações sobre o que é certo e o que é errado, entre proteger e não proteger, o
13
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2006, p. 224-225.
14
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Trad.: Adail Ubirajara
Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2005, p. 51.
24
que é possível de fazer sem perder a identidade e o que torna o trabalhador livre ou
escravo. Por isso, assim como “perguntar o que uma pessoa é, abstraindo-se suas
auto-interpretações, é fazer uma pergunta fundamentalmente errônea, para a qual
não pode haver, em princípio, uma resposta”
15
, também perguntar a um trabalhador
como ele se subordina, é uma pergunta sem sentido.
A subordinação não é um ente antecipadamente objetivável, pois depende de
uma autointerpretação e, ao mesmo tempo, do autorreferencial da coletividade. Isso
se dá por se tratar de uma construção linguística e cultural, compreensível por
estar imersa em, e ao mesmo tempo ser emersa de, outras relações de poder. A
sua juridicidade também se compreende por estar em constante articulação com
outros institutos jurídicos. Por se tratar de um elemento que molda uma identidade
(de onde falo e com quem falo), também a subordinação não pode ser descrita “sem
referência aos que o cercam”
16
. Assim, é possível descrever a subordinação jurí-
dica pelo referencial de sujeição e de poder de determinada sociedade em determi-
nado momento histórico e na perspectiva da respectiva luta de classes. A subordi-
nação jurídica, portanto, é uma construção, e para delimitá-la é necessário, como
aponta BOURDIEU,
[...] reconhecer as exigências específicas da construção jurídica do objecto:
dado que os factos jurídicos são produto da construção jurídica (e não o
inverso), uma verdadeira retradução de todos os aspectos do “caso” é
necessária para ponere causam, como diziam os Romanos, para constituir o
objeto da controvérsia enquanto causa, quer dizer, enquanto problema
jurídico próprio para ser objecto de debates juridicamente regulados [...].
17
A construção jurídica é bidimensional porque exige a construção dos fatos ju-
rídicos, os quais o o apriorísticos, e, ao mesmo tempo, a criação da regra. Isso
indica que a criação da regra da subordinação jurídica é uma construção simbólica
que não antecede a aplicação da proteção jurídica, mas nela se realiza.
De outra parte, a autonomia é um referencial da subordinação justamente
porque também é uma expressão do (de) poder. Essa observação não é de nenhu-
ma novidade. GAIO, nas “Institutas”, já havia registrado o seguinte:
15
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Trad.: Adail Ubirajara
Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2005, p. 52.
16
IDEM, ibidem, p. 53.
17
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2006, p. 229-230.
25
48. Segue-se outra divisão a respeito do direito das pessoas, pois umas são
sui iuris e outras são alieno iuris. 49. Das sujeitas a direito alheio (alieni
iuris), umas estão sob o poder alheio, outras em poder do marido, e outras
são como que compradas (in mancipio). 50. Vejamos agora as pessoas
sujeitas ao poder alheio, pois, conhecidas quais são essas pessoas,
entenderemos logo quais são os independentes (sui iuris). 51. Primeiro,
consideremos as pessoas que estão sob o poder de outrem. 52. Sob o
poder dos senhores estão os escravos. Esse poder vem do direito das
gentes, por que podemos observar, entre quase todos os povos, o senhor
tem sobre seus escravos poder de vida e morte, e tudo o que o escravo
adquire, para o senhor o adquire.
18
Essa citação mostra que a preocupação jurídica de delimitar limites objetivos
de tutela (direitos) é antiga, bem como a tendência de se fixarem tais limites por
meio da contraposição com um ente jurídico que possa ser o seu oposto. Além dis-
so, a justificação moral da escravidão pelo pretor romano (direito dos povos) é muito
semelhante à justificativa moral do poder diretivo (inclusive, o disciplinar) do empre-
gador (direito de propriedade, que é o direito moderno dos povos). Há uma diferença
significativa de direção, entretanto: o jurista romano primeiro analisa quais são os
subordinados com a finalidade de delimitar os independentes; o jurista moderno a-
nalisa quais são os autônomos para delimitar quais são os subordinados.
Os conceitos de autonomia e subordinação, portanto, encontram-se imbrica-
dos, mas não são conceitos puramente contrapostos, mas complementares e autor-
referentes de um mesmo fenômeno.
19
Ainda que dialeticamente a autonomia não
18
INSTITUTAS DO JURISCONSULTO GAIO. Trad.: CRETELLA JÚNIOR, José; CRETELLA, Agnes.
São Paulo: RT, 2004, I, 48-52, p. 45.
19
Por isso, ainda que em perspectiva essencialista, CATHARINO faz referência à rarefação ou insufi-
ciência do elemento caracterizante da relação de emprego. O mestre enuncia um princípio básico
quanto ao grau de subordinação: rarefaz-se na razão direta da maior coexistência dos mesmos fato-
res, ou da maior intensidade de cada um, esfumaçando-se e volatizando-se quando coexistência
intensa de todos eles, sejam quantitativos, ambientais, ou qualitativos” (CATHARINO, José Martins.
Compêndio de direito do trabalho. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1982, v. 1, p. 213). Verificar a existência
de uma relação de emprego, nessa perspectiva, seria uma técnica de conta-gotas: sobre o azul da
autonomia pingam-se as tintas avermelhadas dos vários elementos constitutivos da relação de em-
prego presentes no caso concreto. Se o resultado for algo mais próximo do roxo do que do azul origi-
nal, estará configurada uma relação de emprego. Como sói suceder, em muitos casos haverá diver-
gência sobre qual foi a cor resultante ou dúvida a respeito do enquadramento do lilás e outras cores
que não possam ser inseridas nesse rigoroso dualismo.
26
seja a antítese da subordinação
20
, o referencial normativo tem por base essas duas
categorias, de modo que por uma se explica a outra. É por isso que a doutrina lança
esforço para delimitar e caracterizar a autonomia: esta excluída, em termos jurídi-
cos, o que resta é subordinação.
21
A crise de objetivação do conceito de relação de emprego, por conseguinte,
não é uma verdadeira crise, mas reflexo da crise do próprio positivismo. O que é
uma dificuldade de moldar os horizontes cognitivos a uma compreensão jurídica que
se possa afastar do essencialismo jurídico. Essa dificuldade decorre da dificuldade
de se admitir e de se aplicar a historicidade do ser e, ao mesmo tempo, a impossibi-
lidade de manter a tradição objetiva. É facilmente desfeita qualquer tentativa de tor-
nar objetivos os contornos da subordinação jurídica, por mais elaborada que seja.
2.2 DEPENDÊNCIA PESSOAL E SUBORDINAÇÃO: O CRITÉRIO
SUBJETIVO
Um dos aspectos mais intrigantes no conceito dogmático de relação de em-
prego está na assimilação “natural”
22
que linguisticamente se fez entre dependência
e subordinação jurídica, primeiro entre os juristas e depois, progressivamente, na
legislação.
20
Ao contrário do que alhures se afirma, a antítese da subordinação é a não-subordinação, e não a
autonomia. Mesmo em relações autônomas pode haver traços de dependência. Assim, um profissio-
nal liberal autônomo pode ter elementos de subordinação a outrem, sem com isso perder sua auto-
nomia. Em qualquer modalidade de contrato de prestação de serviços elementos de subordinação
de uma parte à outra, aspecto que, inclusive, foi o fundamento para uma das principais impugnações
à subordinação como critério distintivo da relação de emprego (RIVAS, Daniel. La subordinación: crite-
rio distintivo del contrato de trabajo. Montevideo: Fundación de Cultura Universitaria, 1995, p. 40).
Veja-se, por exemplo, o trabalho do representante comercial, o qual, mesmo com plena autonomia,
sujeita-se a várias imposições do tomador dos serviços, como as previstas na Lei 4886, de
09.12.1965 (arts. 28 e 29), dispositivos com certo grau de subordinação. O que diferencia o contrato
de trabalho dos demais, portanto, é a diversidade e o grau de subordinação, pois não se concebe que
em um contrato de representação comercial o representante esteja de tal modo sujeito às determina-
ções do tomador de serviços que se veja, em realidade, na condição de completa hipossuficiência.
21
Tal afirmação não é imune a críticas. Giuliano MAZZONI, por exemplo, afirma (Manuale di diritto del
lavoro. 6ª. ed. Milano: Giufrè Editore, 1988, v. I, p. 250) que em realidade é trabalho autônomo aquele
em que esteja ausente a subordinação. Tal afirmação seria tão correta quanto a de que é subordinado
o trabalho realizado sem autonomia, de modo que nenhuma delas apresentaria significado completo.
22
Como bem ensina BOURDIEU, “natural é o que não põe a questão de sua legitimidade” (BOURDI-
EU, Pierre. O poder simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006,
p. 239).
27
Ao apontar os elementos da relação de emprego ou ao definir o conceito de
empregado, na primeira metade do século XX, a maior parte das legislações fazia
referência apenas à dependência, como é o caso da brasileira, cujo art. da Con-
solidação da Legislação do Trabalho (CLT) dispõe que: “Considera-se empregado
toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob
a dependência deste e mediante salário”. Em sentido semelhante dispõe a legisla-
ção argentina, cujo art. 21 da Lei do Contrato de Trabalho assim prescreve:
Artigo 21. Haverá contrato de trabalho, qualquer que seja sua forma ou
denominação, sempre que uma pessoa física se obrigue a realizar atos,
executar obras ou prestar serviços em favor de outra sob a dependência
desta, durante um período determinado ou indeterminado de tempo,
mediante o pagamento de uma remuneração.
23
Leis mais recentes de alguns países passaram a fazer referência a “subordi-
nação ou dependência”, como a reconhecer um traço distintivo entre os dois entes.
O art. 3º, “b”, do Código do Trabalho do Chile, por exemplo, define trabalhador como
“toda pessoa natural que preste serviços pessoais intelectuais ou materiais, sob de-
pendência ou subordinação, e em virtude de um contrato de trabalho”
24
. Semelhante
é a legislação colombiana, cujo art. 23, “b”, do Código Substantivo do Trabalho indi-
ca como requisito essencial do contrato de trabalho “a contínua subordinação ou
dependência do trabalhador ao empregador
25
e a legislação panamenha, cujo art.
62 do Código de Trabalho do Panamá conceitua relação de trabalho como “a pres-
tação pessoal de um trabalho em condições de subordinação jurídica ou dependên-
23
ARGENTINA. Ley de Contrato de Trabajo, de 13 de maio de 1976. Disponível em: <
http://www.trabajo.gov.ar/legislacion/ley/index.html>. Acesso em: 29 de janeiro de 2009. Tradução do
Autor. Texto original: “ARTICULO 21.- Habrá contrato de trabajo, cualquiera sea su forma o denomi-
nación, siempre que una persona física se obligue a realizar actos, ejecutar obras o prestar servicios
en favor de la otra y bajo la dependencia de ésta, durante un período determinado o indeterminado de
tiempo, mediante el pago de una remuneración”.
24
CHILE. Decreto Federal Legislativo n. 1, de 31 de julho de 2002. Disponível em: <
http://www.dt.gob.cl/legislacion/1611/article-59096.html>. Acesso em: 29 de janeiro de 2009. Tradução
do Autor. Texto original: “trabajador: toda persona natural que preste servicios personales intelectua-
les o materiales, bajo dependencia o subordinación, y en virtud de un contrato de trabajo”.
25
COLÔMBIA. Decretos 2.663 e 3.743, de 1961, adotados pela Ley 141, de 1961. Disponível em: <
http://www.scribd.com/doc/3964523/CODIGO-SUSTANTIVO-DEL-TRABAJO >. Acesso em: 29 de
janeiro de 2009. Tradução do autor. Texto original: “La continuada subordinación o dependencia del
trabajador respecto del empleador…”.
28
cia econômica”
26
. O art. 17 do Código de Trabalho do Paraguai define contrato de
trabalho como “convênio em virtude do qual um trabalhador se obriga a executar
uma obra ou a prestar um serviço ao empregador, sob a direção ou dependência
deste e por sua conta”. Também o art. do Código de Trabalho da República Do-
minicana define o contrato de trabalho como “aquele por qual uma pessoa se obri-
ga, mediante uma retribuição, a prestar um serviço pessoal a outra, sob a depen-
dência e direção imediata ou delegada desta”
27
.
Algumas legislações passaram a fazer referência apenas à direção, como no
art. 1º, 1, do Estatuto dos Trabalhadores da Espanha, que determina sua aplicação
aos “trabalhadores que voluntariamente prestem seus serviços retribuídos por conta
alheia e no âmbito de organização e direção de outra pessoa, física ou jurídica”
28
.
Semelhante é a legislação portuguesa, cujo artigo 1152 do Código Civil define con-
trato de trabalho como “aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribui-
ção, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autorida-
de e direção desta
29
.
Raramente se faz referência apenas à subordinação, sem mencionar a de-
pendência, e mesmo assim somente em legislações mais recentes, como a france-
sa, cujo art. 8221-6, II, do Código de Trabalho, ao dispor contra a simulação contra-
tual, prescreve que contrato de trabalho sempre que as pessoas “forneçam dire-
tamente ou por uma pessoa interposta prestações a um tomador de serviços em
condições que os coloquem em um vínculo de subordinação jurídica permanente
26
PANAMÁ. Decreto de Gabinete 252, de 30 de dezembro de 1971 : modificado pela Ley 44 de 1995,
pelo Decreto ley 8, de 2 de julho de 1997, e pela la Ley 45, de 2 de juhio de 1998. Disponível em: <
http://www.legalinfo-panama.com/legislacion/laboral/codtrabA1.pdf>. Acesso em: 29 de janeiro de
2009. Tradução do autor. Texto original: “Se entiende por relación, de trabajo, cualquiera sea el acto
que le origen, la prestación de un trabajo personal en condiciones de subordinación jurídica o de
dependencia económica”.
27
REPÚBLICA DOMINICANA. Ley 16, de 29 de maio de 1992. Disponível em: <
http://www.set.gov.do/descargas/download/cod001.pdf>. Acesso em: 29 de janeiro de 2009. Texto
original: “Art. 1. El contrato de trabajo es aquel por el cual una persona se obliga, mediante una retri-
bución, a prestar un servicio personal a otra, bajo la dependencia y dirección inmediata o delegada de
ésta”.
28
ESPANHA. Real Decreto Legislativo 1/1995, de 24 de março de 1995. Disponível em:<
http://www.mtas.es/es/Guia/leyes/RDLG195.htm>. Acesso em: 29 de janeiro de 2009. Tradução do
autor de parte do dispositivo legal. Texto original: “La presente Ley será de aplicación a los trabajado-
res que voluntariamente presten sus servicios retribuidos por cuenta ajena y dentro del ámbito de
organización y dirección de otra persona, física o jurídica, denominada empleador o empresario”.
29
PORTUGAL. Decreto-lei 47.344, de 25 de novembro de 1966. Disponível em:
<http://www.stj.pt/nsrepo/geral/cptlp/Portugal/CodigoCivil.pdf>. Acesso em: 29 de janeiro de 2009.
29
pelo ponto de vista dos contratantes”
30
. Também a legislação mexicana faz menção
apenas à subordinação, pois o art. 20 da Lei Federal do Trabalho conceitua relação
de trabalho como “a prestação de um trabalho pessoal subordinado a uma pessoa,
mediante pagamento de um salário”
31
.
Dentre as legislações mais antigas, a italiana se refere à dependência “e” à
direção como componentes do trabalho subordinado. Com efeito, o art. 2094 do Có-
digo Civil Italiano define empregado como “quem se obriga mediante retribuição a
colaborar na empresa, prestando o próprio trabalho intelectual ou manual nas de-
pendências e sob a direção do empreendedor”
32
.
Ainda que a legislação brasileira se refira apenas à dependência, entre os
nossos juristas a sinonímia com subordinação é pacífica. LAMARCA, por exemplo,
afirma que “o elemento realmente característico da relação laboral é a dependência
ou subordinação
33
e não lhe pareceu necessário justificar os motivos de dependên-
cia e subordinação serem consideradas sinônimas.
34
Em seguida, como é comum
entre os juristas brasileiros, por influxo da discussão havida na doutrina francesa,
aponta LAMARCA os quatro tipos de dependência (econômica, técnica, social e ju-
rídica), esclarece que “modernamente, os escritores se apegam ao critério da de-
pendência ou subordinação jurídica”
35
, e termina por fazer uma assimilação entre
subordinação jurídica e controle pessoal das atividades do trabalhador pelo empre-
30
FRANÇA. Ordennance du 12 mars 2007, Loi du 21 janvier 2008. Disponível em:
<http://www.lexinter.net/Legislation5/JURISOC2/texte_global.htm>. Acesso em: 29 de janeiro de 2009.
Tradução livre do autor. Texto original: Article L. 8221-6, II. L'existence d'un contrat de travail peut
toutefois être établie lorsque les personnes mentionnées au I fournissent directement ou par une
personne interposée des prestations à un donneur d'ordre dans des conditions qui les placent dans un
lien de subordination juridique permanente à l'égard de celui-ci.
31
MÉXICO. Ley Federal del Trabajo, de de abril de 1970. Disponível em: <
http://www.cddhcu.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/125.pdf>. Acesso em: 29 de janeiro de 2009. Tradução do
autor. Texto original: “Se entiende por relación de trabajo, cualquiera que sea el acto que le dé origen,
la prestación de un trabajo personal subordinado a una persona, mediante el pago de un salario”.
32
ITÁLIA. Régio Decreto, 16 marzo 1942, n. 262. Disponível em: <http://www.jus.unitn.it/cardozo/ Obi-
ter_Dictum/codciv/Codciv.htm>. Acesso em: 29 de janeiro de 2009. Tradução do autor. Texto original:
“2094. Prestatore di lavoro subordinato. É prestatore di lavoro subordinato chi si obbliga mediante
retribuzione a collaborare nell'impresa, prestando il proprio lavoro intellettuale o manuale alle
dipendenze e sotto la direzione dell'imprenditore”.
33
LAMARCA, Antônio. Contrato individual de trabalho. São Paulo: RT, 1969, p. 103.
34
De forma semelhante: GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do trabalho. 12ª.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 145; CESARINO JÚNIOR, Antônio Ferreira. Direito social. São
Paulo: LTr, 1980, p. 105. Esses autores afirmam uma exata coincidência entre “subordinação jurídica”
e “subordinação hierárquica”. Talvez houvesse em todos esses autores influência da legislação e da
doutrina italianas.
35
LAMARCA, Antônio. Op. cit., p. 104.
30
gador, daí porque afirma que essa “dependência é no geral técnica e disciplinar. Por
isso que se diz também subordinação hierárquica”.
36
Parece inevitável a esse jurista
o caminho (ideo)lógico que percorreu da dependência prevista no art. 3º. da CLT a
chegar à dependência hierárquica.
Esse percurso está sedimentado na ideia de que a dependência “é uma ex-
pressão muita vaga: pode ser jurídica, como pode ser econômica, pode ter efeitos
de conteúdo puramente moral ou consequências de ordem pessoal, patrimonial
etc.”.
37
A afirmação é curiosa por pressupor que o jurídico não é o expressado na lei
(dependência), mas também o é algo que esteja no campo econômico ou no mo-
ral. Ainda assim é jurídico. O que faz supor que subordinação seja um termo menos
vago do que dependência?
O uso vulgar da palavra dependência e sua transmutação jurídica para su-
bordinação refletem a aquisição de um capital simbólico útil para uma visão especí-
fica de poder, pois seria de perguntar o motivo de se utilizarem duas palavras distin-
tas para representar a mesma coisa. Cabe aqui a observação de BOURDIEU sobre
o caráter constitutivo e o incidental da linguagem jurídica, a refletir uma visão de
mundo:
[...] Austin admirava-se de que nunca se tenha seriamente perguntado por
que razão nós “nomeamos coisas diferentes com o mesmo nome”; e por
que razão, poderíamos nós acrescentar, não grande inconveniente em
fazê-lo. Se a linguagem jurídica pode consentir a si mesma o emprego de
uma palavra para nomear coisas completamente diferentes daquilo por si
designado no uso vulgar, é que os dois usos estão associados a posturas
linguísticas que são tão radicalmente exclusivas uma da outra como a
consciência perceptiva e a consciência imaginária segundo a
fenomenologia, de tal modo que a “colisão homonímica” (ou o mal-
entendido) resultante do encontro no mesmo espaço dos dois significados é
perfeitamente improvável [...].
38
Esse itinerário semântico, portanto, não é inocente, embora possa ser in-
consciente. Reflete uma visão de mundo e uma estrutura de poder, cuja origem re-
monta à criação da legislação trabalhista. Sempre que surge um novo fenômeno
jurídico, o homem procura reconhecê-lo em experiências semelhantes do passado,
36
LAMARCA, Antônio. Contrato individual de trabalho. São Paulo: RT, 1969, p. 109.
37
SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; LIMA TEIXEIRA, João de. Institui-
ções de direito do trabalho. 18ª. ed. São Paulo: LTr, 1999, v. 1, p. 249.
38
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2006, p. 226-227.
31
e não é incomum que conceitos do passado acabem por dar vestimenta excessiva-
mente rígida aos novos fenômenos, assentando-se sobre eles de forma inadequa-
da, posto que inevitável.
Assim é que, com o surgimento da relação de emprego, e sob a influência de
um renascido direito romano, buscou-se na locatio conductio operarum (locação de
serviços) e na locatio conductio operis (empreitada) a identificação da natureza jurí-
dica da nova forma de trabalho. Essas modalidades, contudo, logo se revelaram
inadequadas
39
para a originalidade trazida pela relação de emprego, mormente por-
que vários condicionantes legais (regulamentação por lei do trabalho) ou coletivos
(sindicalização, greve etc.) mostraram-se incompatíveis com os institutos jurídicos
pré-existentes.
Embora tais formulações tenham sido abandonadas e se tenha percebido
que o emprego conformava uma forma original de situação ou relação jurídica, elas
deixaram resquícios no modo de ver o novo fenômeno. Além disso, a criação foi
gradual e permeada por fluxos e contrações, concessões e retrocessos. Para esca-
par da armadilha de equiparar o homem a uma coisa, várias foram as tentativas de
apontar uma essência peculiar do novo ente que pudesse se impor juridicamente.
Essas tentativas foram realizadas em solo europeu e, aparentemente, tiveram sua
origem no debate realizado na doutrina e jurisprudência francesas
40
, na cada de
30 do século XX, e apenas foram reproduzidas nos países periféricos.
Uma das primeiras teorias acerca da característica primordial da relação de
emprego foi o da dependência econômica, segundo a qual essa relação se distingue
pelo fato de o prestador dos serviços depender exclusiva ou preponderantemente da
remuneração que lhe paga o tomador dos serviços. Duas fortes críticas fizeram essa
teoria perder prestígio: primeiro, alega-se que essa distinção baseia-se em análise
39
“Os romanos, realmente, regularam a locatio operarum como um negócio que implicava uma ver-
dadeira sujeição pessoal, de modo a permitir aos modernos romanistas tratarem o mercennarius ana-
logamente ao nexum, vendo no primeiro um verdadeiro servo (GOMES, Orlando; GOTTSCHALK.
Curso de direito do trabalho. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 123). Por isso, passou-se a
entender que a locação de serviços “corresponde a uma etapa histórica ultrapassada e faz lembrar
lutas políticas que pressupõem a condição do trabalhador como objeto do locatio, portanto equiparado
a coisa” (ROMITA, Arion Sayão. Contrato de trabalho: formação e nota característica. In: GONÇAL-
VES, Nair Lemos e outros (coord.). Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1983, p. 238).
40
Nesse sentido: MAZZONI, Giuliano. Manuale di diritto del lavoro. 6ª. ed. Milano: GiufEditore,
1988, v. I, p. 358-359.
32
socioeconômica vaga e imprecisa, de natureza pré-jurídica, de modo que não possui
condições de explicar um fenômeno jurídico; segundo, porque pode haver depen-
dência econômica sem estar presente a relação de emprego, mesmo em trabalho
autônomo ou na empreitada, e vice-versa.
41
Outra teoria foi a da dependência técnica, segundo a qual a relação de em-
prego caracteriza-se pelo poder que o empregador tem de determinar o modo pelo
qual o trabalho deve ser executado, de efetuar a orientação técnica do serviço em
vista do sistema de divisão de trabalho que adota. A crítica
42
que se faz a essa teo-
ria é que, no sentido amplo do termo, a dependência técnica nada mais é do que
uma dependência hierárquica, enquanto que, em seu sentido estrito, o termo é irre-
levante, pois os trabalhadores intelectuais e os de nível mais elevado não se subme-
tem à orientação técnica do empregador. Além disso, o requisito técnico seria insufi-
ciente, visto que, caso justificasse a autoridade do empregador no ambiente de tra-
balho, “a relação entre os sujeitos do processo produtivo seria de coordenação e
não de mando e sujeição”.
43
A teoria que acabou por ser adotada pela maioria dos juristas
44
é a da depen-
dência pessoal ou hierárquica, à qual se convencionou denominar subordinação
jurídica. É essa a teoria que até hoje granjeia o maior prestígio e aplicação e pode
ser bem entendida pelas palavras de Paul COLIN, citadas por Evaristo de MORAES
FILHO:
Por subordinação jurídica entende-se um estado de dependência real criado
por um direito, o direito de o empregador de comandar, dar ordens, donde
nasce a obrigação correspondente para o empregado de se submeter a
essas ordens. Eis a razão pela qual se chamou a esta subordinação de
jurídica, para opô-la, principalmente, à subordinação econômica e à
subordinação técnica que comporta também uma direção a dar aos
trabalhos do empregado, mas direção que emanaria apenas de um
especialista. Trata-se, aqui, ao contrário do direito completamente geral de
41
A esse respeito, GOMES, Orlando; GOTTSCHALK. Elson. Curso de direito do trabalho. 12ª. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1991, p. 146-147; RUSSOMANO, Mozart Victor. O empregado e o empregador
no direito brasileiro. 6ª. ed. São Paulo: LTr, 1978, p. 93; CATHARINO, José Martins. Compêndio de
direito do trabalho. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1982, v. 1, p. 201-204.
42
GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Op. cit., p. 148-149.
43
MELHADO, Reginaldo. Poder e sujeição. São Paulo: LTr, 2003, p. 216.
44
GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Op. cit., p. 151-152; DALLEGRAVE NETO, José Affonso.
Contrato individual de trabalho: uma visão estrutural. São Paulo: LTr, 1998, p. 63; CATHARINO, José
Martins. Compêndio de direito do trabalho. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1982, v. 1, p. 204; KROTOS-
CHIN, Ernesto. Tratado práctico de derecho del trabajo. Buenos Aires: Depalma Editor, 1955, v. I, p.
111.
33
superintender a atividade de outrem, de interrompê-la à vontade, de lhes
fixar limites, sem que para isso seja necessário controlar continuamente o
valor técnico dos trabalhos efetuados. Direção e fiscalização, tais são então
os dois polos da subordinação jurídica.
45
A crítica da maioria dos adeptos da subordinação jurídica às teorias prece-
dentes está centrada na afirmação de que aquelas teorias pretendiam explicar o
fenômeno por aspectos socioeconômicos ou meramente factuais
46
, ou, em outros
termos, em aspectos pré-jurídicos ou metajurídicos. Curiosamente, não como
negar que essa mesma crítica pode ser lançada contra a teoria que defendem, pois
também a teoria da dependência pessoal parte de elementos ticos, como coman-
do, poder, direção e obediência. Essas denominações nada mais são do que cate-
gorias pré-jurídicas que, por mera relevância social, são reguladas pelo Direito.
MARANHÃO menciona que a subordinação é uma situação jurídica da qual
“resulta para o empregador o poder de: a) dirigir e comandar a execução da obriga-
ção contratual pelo empregado; b) controlar o cumprimento dessa obrigação; c) apli-
car penas disciplinares...”, enquanto GOMES e GOTTSCHALK afirmam que “... o
critério da subordinação jurídica, extraído de rigorosa análise da relação de empre-
go, pode fornecer uma orientação segura para a identificação da relação de empre-
go...”. O que é situação jurídica senão um conjunto de elementos que afetam a or-
dem jurídica? O que é poder senão um fato que decorre da organização técnica e
econômica? Como explicar a existência de relação de emprego nos vários casos em
que inexiste dependência hierárquica, como sucede em grande parte do trabalho em
domicílio e no caso de trabalhadores intelectuais e de direção das empresas?
A afirmação de que “... a subordinação do empregado é jurídica, porque re-
sulta de um contrato: nele encontra seu fundamento e seus limites”
47
,
é no mínimo
exagerada, visto que em realidade a subordinação e seu fundamento de fato (a re-
lação capitalista de trabalho) precedem e/ou se sobrepõem ao conteúdo de um
45
COLIN, Paul. De la determinación du mandat salarié. Paris, 1931, p. 97, apud MORAES FILHO,
Evaristo de; MORAES, Antônio Carlos Flores de. Introdução ao direito do trabalho. 8ª. ed. São Paulo:
LTr, 2000, p. 242.
46
MARANHÃO, Délio. Direito do trabalho. 14ª. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1987, p.
53.
47
MARANHÃO, Délio. Instituições de direito do trabalho. 18ª. ed. São Paulo: LTr, 1999, p. 251.
34
contrato. Tem razão VILHENA ao afirmar que o “conceito jurídico da subordinação
possui um objetivo limitador. Via de regra, porém, ele vem sendo apresentado em
termos vagos e fica no jurídico pelo jurídico, sem que se aprofunde em seu conteú-
do de natureza obrigacional”.
48
Observa-se, portanto, que por um caminho que esconde o capital simbólico
que a constitui, associa-se em primeiro lugar dependência a subordinação. Depois,
por se perceber que esse elemento é cruelmente social, associa-se o adjetivo jurídi-
co e, por fim, assimila-se subordinação jurídica a subordinação hierárquica, como se
todos esses signos linguísticos fossem unívocos e coincidentes. Esse modo de con-
ceber a subordinação decorre da tentativa de explicar por que e como o trabalhador
se sujeita ao poder do empregador
49
, ou seja, de explicar por que e como o trabalho
se sujeita ao capital. É evidente, todavia, que “as teorias sobre a subordinação jurí-
dica apenas tentam explicar porque ela existe, e não exatamente o que ela é”
50
.
Sucede, entretanto, que o critério pessoal ou hierárquico tem se mostrado in-
suficiente para explicar a subordinação, justamente porque suas conexões linguísti-
cas estão mais próximas de um modo específico de produção do que propriamente
dos elementos intrínsecos da relação de emprego. A dependência pessoal é visível
em sistemas fordistas de divisão de trabalho, ou assemelhados, mas se dilui con-
forme novos e mais sofisticados sistemas produtivos são implantados (toyotismo,
teletrabalho e outros), sem que isso signifique uma diminuição do poder do empre-
gador e da submissão do trabalhador. Ao contrário, em um mundo globalizado e
tecnicamente em evolução, tende a diminuir o ambiente de trabalho centralizado na
mesma proporção em que aumenta o poder do capital sobre o trabalho.
51
48
VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro. Relação de emprego: estrutura legal e supostos. São Paulo: Sarai-
va, 1975, p. 224.
49
Nessa perspectiva a subordinação nada mais seria do que o modo de ser da atividade que o traba-
lhador deve realizar (RIVAS, Daniel. La subordinación: criterio distintivo del contrato de trabajo. Mon-
tevideo: Fundación de Cultura Universitaria, 1995, p. 38).
50
NASSIF, Eliane Noronha. Fundamentos da flexibilização: uma análise de paradigmas e paradoxos
do Direito e do Processo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001, p. 64, nota de rodapé 76.
51
Isso se dá, principalmente, porque o tempo e o lugar do trabalho são limitativos do poder do empre-
gador. A tecnologia e os novos meios de exploração da produtividade, entre os quais as cada vez
mais sofisticadas formas de remuneração vinculadas à unidade de obra produzida, tendem a diluir os
limites do tempo e do lugar de trabalho, criando um tempo e um lugar homogêneo do capital.
35
Por essa razão, os novos contornos do capitalismo tentam reconstruir a lin-
guagem do início do capitalismo industrial
52
, visto que, por meio de novas práticas
tecnológicas, antigas práticas de exploração aprofundam-se, o que aumenta a ten-
dência monológica dessa relação de forças. Isso não deixa de ser um paradoxo: o
avanço tecnológico do capitalismo se transforma o em avanço social, mas em
retrocesso. O paradoxo é, nada obstante, apenas aparente, pois em termos pura-
mente econômicos o capitalismo é unidirecional, ou seja, pretende apenas a sua
expansão.
Fincados em uma concepção positivista-normativista da relação de emprego,
os defensores da dependência pessoal (hierárquica) preocupam-se com aspectos
operativos ou procedimentais, atribuindo-lhes substância jurídica, sem perceberem
que também o recebimento de ordens traduz um aspecto metajurídico, qual seja a
relação de poder que decorre da tensão dialética entre o capital e o trabalho. A afir-
mação de que o empregador possui o poder de direção, em decorrência dos riscos
que assume no negócio, e que a subordinação do trabalhador é consequência da-
quele poder, embute uma premissa lógica não expressamente manifestada: a de
que o poder diretivo é decorrente apenas do direito de propriedade e não do sistema
jurídico; este apenas o limita, mas não o constitui.
Afirma-se, também, que a dependência pessoal seria jurídica porque decorre-
ria de um direito do empregador. Colocada a questão nesses termos, há que se infe-
rir ser a subordinação jurídica decorrência direta do direito de propriedade do em-
pregador, o que seria equiparar o trabalhador (ou o trabalho humano) a coisa, racio-
cínio seguidamente repudiado pelos juristas, por ofensivo à dignidade da pessoa
humana. Isso não deixa de ser um paradoxo.
O último esforço para construir uma teoria subjetivista consistente realizou-se
na teoria da dependência social, “uma síntese do critério da dependência econômi-
ca e da dependência hierárquica. Segundo ela, existe a relação de emprego sempre
que se criar, para o trabalhador, uma situação de dependência econômica, hierár-
quica, a um tempo, ou excepcionalmente e de longo em longo, econômica ou
52
MELHADO, Reginaldo. Mundialização, neoliberalismo e novos marcos conceituais da subordinação.
In: COUTINHO, Aldacy Rachid; DALLEGRAVE NETO, José Affonso (Coords.). Transformações do
direito do trabalho. Curitiba: Juruá. 2000, p. 93.
36
hierárquica”.
53
A crítica de RUSSOMANO a essa teoria bem ideia da visão
essencialista da maioria dos juristas brasileiros acerca desse fenômeno, pois asse-
vera que a teoria da dependência social “... não nos a substância dessa relação,
que é onde reside seu distintivo, isto é, sua natureza”.
54
A crítica de CATHARINO
55
parece mais consistente, pois de fato a expressão dependência social engloba situ-
ações de fato mais amplas do que as concernentes à relação de emprego, pois os
desempregados e os que recebem benefícios de assistência social, também e com
mais razão, são dependentes sociais. Talvez seja nesse aspecto, todavia, que resi-
da a virtude dessa teoria: uma pretensão de ir adiante em matéria de proteção jurí-
dica.
É visível que o momento em que se pacifica a ideia da subordinação jurídica
como elemento essencial da relação de emprego coincide com a consolidação do
sistema fordista de produção.
56
A legislação social foi criada com vistas a uma
53
RUSSOMANO, Mozart Victor. O empregado e o empregador no direito brasileiro. 6ª. ed. São Paulo:
LTr, 1978, p. 94.
54
IDEM, ibidem, p. 94.
55
CATHARINO, José Martins. Compêndio de direito do trabalho. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1982, v.
1, p. 207.
56
A criação do conceito de “subordinação jurídica” sempre esteve relacionada com a necessidade de
delimitar os que “gozariam” de maior proteção do ordenamento jurídico. Por isso seu aparecimento
decorre diretamente da revolução industrial, a qual “modificou radicalmente as estruturais sociais e
econômicas pré-existentes. Estas modificações, de fato, fizeram emergir a insanável contraposição
existente entre aqueles que detêm os meios de produção e aqueles que, para prover ao seu sustento
e ao da própria família, são constrangidos a colocar as suas energias laborativas ao serviço de outros
e, portanto, se encontram em uma posição de debilidade no plano sócio-econômico” (PERSIANI, Mat-
tia; PROIA, Giampiero. Contratto e rapporto di lavoro. 3ª. ed. Padova: Cedam, 2004, p. 4, tradução do
autor.). Texto original: “... modificò radicalmente le strutture sociali ed economiche preesistente.
Queste modificazione, infatti, fecero emergere l’insanabile contrapposizione esistente tra quanti
detengono i mezzi di produzione e quanti, per provvedere al loro sostentamento e a quello della
propria famiglia, sono costretti a mettere le loro energie lavorative all”altrui servizio e, pertanto, si
trovano in una posizione di debolezza sul piano socio-economico”. Se esses são os fundamentos do
sistema protetivo legal, o que deve ser pensado é se as alterações posteriores no sistema produtivo
eliminaram as premissas que o instituíram (debilidade econômica e social de uma classe) ou se ape-
nas instituíram novas formas de apropriação do trabalho (modos diferentes de subordinar-se).
37
ideologia específica, a da industrialização, daí porque era facilmente pensável a pro-
teção dos trabalhadores industriais como forma de propiciar o desenvolvimento na-
cional, mas ao mesmo tempo eram excluídas parcelas significativas da classe traba-
lhadora, como os rurais e os domésticos.
2.3 O EMPREGO COMO RELAÇÃO JURÍDICA
Os juristas, à unanimidade, admitem sem maiores indagações que o trabalho
prestado sob a forma de emprego configura uma relação jurídica. Por relação jurídi-
ca há que se entender uma relação social inserida em uma estrutura normativa.
57
Associa-se o conceito de relação jurídica a dois requisitos distintivos:
a) um vínculo intersubjetivo, a pressupor um sujeito ativo (titular ou
beneficiário principal) e um sujeito passivo (devedor da prestação
principal), bem como um vínculo de atributividade entre os sujeitos
e um objeto;
b) correspondência desse vínculo com uma hipótese normativa, de
modo a resultarem consequências no plano da experiência. A una-
nimidade dos juristas acerca do conceito de relação jurídica cessa
aí.
Inúmeras divergências existem acerca dos elementos, objeto e características
da relação jurídica, bem como de sua própria natureza. O que interesse a este tra-
balho, entretanto, é que a própria noção de relação jurídica é posta em dúvida, bem
como é duvidosa a pertinência dessa categoria em matéria de emprego e trabalho.
A principal crítica ao conceito de relação jurídica é sua natureza individualista.
A relação jurídica supõe o indivíduo onipotente e capaz de adquirir direitos e se
mostra irreal em várias situações coletivas de fato, como as de trabalho e as de
consumo. É difícil explicar fenômenos como greve, sindicato e negociação coletiva
em termos de relações jurídicas, e os respectivos enquadramentos mostram-se arti-
ficiais. uma tendência irresistível de enquadrar o mundo do trabalho em um ne-
57
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 214-216.
38
gócio jurídico, efeito de elementos ideologizantes do capitalismo
58
, mas mesmo ou-
tras modalidades de relação jurídica possuem dificuldade de se amoldarem aos me-
canismos coletivos de composição, pois a relação jurídica supõe o sujeito/indivíduo
como o elemento propulsor do fenômeno, e as relações puramente factuais consti-
tuem exceção à regra. O problema é que a suposta aporia do sistema (exceção),
cada vez mais se transforma em sua normalidade e exige um reposicionamento.
A relação jurídica como categoria o é, contudo, totalmente desprovida de
utilidade para se entender o mundo do trabalho, pois embora o respectivo conceito
tenha perdido importância em virtude do reconhecimento de outras categorias jurídi-
cas, constitui ainda uma base importante das ideias jurídicas prevalecentes. PER-
LINGERI entende que a relação jurídica “deve ser colocada ao centro do direito civil,
apesar da manualística moderna, contrariamente àquela menos recente, o lhe
atribuir a devida importância”.
59
Evidentemente, essa afirmação tem em conta a rea-
lidade europeia, pois no Brasil os manuais sempre deram muita e até excessiva im-
portância à relação jurídica, em infeliz e pura conformação individualista. Deve-se
ter em conta, entretanto, a visão peculiar que PERLINGERI tem de relação jurídica:
Na maioria das vezes, a atenção detém-se nas situações individualmente
consideradas, independentemente das suas relações, enquanto que seria
necessário não se limitar à análise de cada direito e obrigação, mas, sim,
examinar as suas correlações. Não é suficiente aprofundar o poder atribuído
a um sujeito se não se compreendem ao mesmo tempo os deveres, as
obrigações, os interesses dos outros. Em uma visão conforme aos princípios
de solidariedade social, o conceito de relação representa a superação da
tendência que exaure a construção dos institutos civilísticos em termos
exclusivos de atribuição de direitos. O ordenamento não é somente um
conjunto de normas, mas também um sistema de relações: o ordenamento,
no seu aspecto dinâmico, não é nada mais que nascimento, atuação,
modificação e extinção de relações jurídicas, isto é, o conjunto de suas
vicissitudes.
60
O principal problema da categoria relação jurídica é que, conforme foi dito, ela
está calcada em dois requisitos:
58
O contrato é o principal instrumento do individualismo e ambos constituem o suporte básico do capi-
talismo. Por isso, a tendência expansionista do capital exige cada vez mais contrato como meio de
assegurar sua sobrevivência, o que faz com que relações afetivas, sociais, comunitárias ou simples-
mente factuais sejam absorvidas progressivamente por essa categoria, processo social de constitui-
ção de um capital simbólico, não propriamente jurídico, mas diretamente a ele vinculado.
59
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad.: Maria
Cristina de Cicco. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 113.
60
IDEM, ibidem, p. 113-114.
39
a) intersubjetividade – vínculo entre duas ou mais pessoas;
b) correspondência entre esse vínculo e uma hipótese normativa.
Definir ou delimitar a intersubjetividade é difícil, pois o elemento psicológico
(vontade) acarreta sempre dúvida sobre seu alcance e limite, mesmo quando ape-
nas presumida ou inserida em um sistema normativo. Uma coincidência exata de
vontades é sempre impossível, pois duas visões de mundo só podem se cruzar por
meio da linguagem. Por isso, uma intersubjetividade puramente psicológica é im-
possível e em termos linguísticos é extremamente desigual, principalmente em rela-
ções continuativas, como a de trabalho.
Quando se fala em relação jurídica, entretanto, o que se imagina o é a si-
tuação concreta de alguns indivíduos, mas um ente abstrato e regulado por um sis-
tema normativo fechado, uma norma derivada (subentendida em alguns aspectos e
regulada expressamente em outros) do ordenamento jurídico. A relação jurídica
constitui, na perspectiva tradicional, um plano abstrato e intermediário entre as re-
gras legais e as pessoas.
A pertinência e a atualidade da categoria relação jurídica se justificam
quando ela possa ser entendida como mais um elemento do dinamismo do sistema
jurídico e não como um elemento estanque, “posto” e abstrato do ordenamento. A
relação jurídica caminha em direção às situações jurídicas concretas dos indivíduos
(tendência à concretização) e de outro busca uma correlação com o ordenamento
jurídico com tendência generalizante (aplicação de seu conteúdo indistintamente e
erga omnes) e absorvente.
Assim, a concretização de direitos vai do ordenamento jurídico para as situa-
ções individuais de modo dinâmico e dialético em contínua autorreferência e com
acomodação (normalização) de conteúdos: as situações individuais aos poucos
moldam o conteúdo abstrato das relações jurídicas; o conteúdo abstrato das rela-
ções jurídicas molda as situações individuais; o ordenamento jurídico molda o con-
teúdo das relações e as relações jurídicas moldam também, pelo reflexo das situa-
ções individuais, o conteúdo interpretativo das regras que compõem esse ordena-
mento.
40
A ideia de situação jurídica, em que pese ser vaga em vários aspectos, tem a
vantagem de dizer respeito ao ponto de vista concreto das pessoas envolvidas, co-
mo bem comenta ASCENSÃO:
Antes nos parece que a valia da noção de situação jurídica está no seu
caráter individual, por oposição à generalidade da regra. A situação jurídica
é uma situação das pessoas, portanto necessariamente de natureza diversa
da regra, que é geral. A natureza da situação jurídica deve pois procurar-se
fora do quadro, demasiado estreito, da subjetividade da regra jurídica.
61
A situação concreta dos indivíduos, contudo, não pode prescindir de suas cor-
relações com a coletividade. Por isso, ao explicar a estrutura da relação jurídica,
PERLINGERI a retira do fosso individualista em que sempre foi mantida ao visuali-
zá-la da seguinte forma:
A ligação essencial de um ponto de vista estrutural é aquela entre centros de
interesses. O sujeito é somente um elemento externo à relação porque
externo à situação; é somente o titular, às vezes ocasional, de uma ou de
ambas as situações que compõem a relação jurídica.
Portanto, não é indispensável fazer referimento à noção de sujeito para
individuar o núcleo da relação. Nele, o que é sempre presente é a ligação
entre um interesse e um outro, entre uma situação, determinada ou
determinável, e uma outra. É preferível, portanto, a doutrina que define a
relação jurídica como relação entre situações subjetivas. [...]
62
As fontes jurídicas (leis, convenções coletivas, acordos coletivos, contratos)
são constituídas apenas pelos textos. O sentido que se pode extrair da fonte é a
norma jurídica. A norma jurídica é o ponto de chegada e não o ponto de partida do
jurista. Esse caminho não é realizado, entretanto, diretamente do texto para o caso
concreto (situação jurídica) por criação de intérprete, mas posto de modo dinâmico
por meio de construções simbólicas da sociedade, que cria padrões jurídicos inter-
mediários, entre os quais se encontram as relações jurídicas. Não se pode perder
de vista, entretanto, que esses padrões (standarts) não são estáticos, imobilizados e
imobilizadores, mas constituem um referencial do próprio dinamismo da sociedade,
de sorte que são afetados por ela e também a afetam.
Por isso, o conceito de subordinação jurídica (e o de emprego) não pode ser
extraído aprioristicamente, pois sem comparação com o fato (ainda que em termos
61
ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: introdução e teoria geral. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2001, p. 654.
62
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad.: Maria
Cristina de Cicco. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 115.
41
hipotéticos) esse conceito nem sequer é compreensível. A inserção desse fato em
uma moldura intermediária, como a de relação jurídica de emprego, também é uma
construção interpretativa, e ao se fazer essa construção molda-se não apenas o fa-
to, mas a própria moldura. O próprio fato jurídico é uma construção linguística que,
ao mesmo tempo em que orienta a relação jurídica, é por ela orientado.
A dificuldade de aceitar essa concepção da relação de emprego e de seus
elementos integrantes reside no caráter circular dos seus nexos causais. Acostuma-
dos a uma relação causal tradicional, em que “A” implica “B”, é difícil habituar-se a
uma relação em que a causa originária não possa ser identificada. Além disso, a
retirada do sujeito como elemento central da relação jurídica e a referência apenas à
respectiva situação concreta, causa uma sensação de impossibilidade, de vazio, tão
acostumados estamos com a perspectiva absorvedora do sujeito cognoscente.
O intérprete cria um critério de decisão (norma jurídica) para tornar possível a
decisão e para fazer isso passa argumentativamente por molduras pré-existentes,
como a de relação jurídica. Assim, tanto a regra jurídica (texto) como as molduras
jurídicas pré-existentes (categorias construídas simbólica e coletivamente por meio
de repetição criativa, entre as quais as relações jurídicas) permitem qualificar os ca-
sos concretos e, por esse meio, tornam possível a decisão.
63
Por meio desse pro-
cesso de decisão, a própria moldura se refaz e se reposiciona, o que demonstra o
dinamismo de todo esse processo.
Admitir acriticamente o conceito tradicional de fonte do Direito em sua con-
cepção histórica e formal conduziria a uma estrutura inadequada à realidade con-
temporânea, pois estaria limitada na declaração de uma vontade estatal ou de uma
63
Por decisão não se deve entender apenas a “decisão judicial”. Trata-se do conjunto de escolhas
fáticas com repercussões jurídicas que cada membro da sociedade toma, como a decisão do tomador
dos serviços de registrar ou não quem lhe presta serviços ou do trabalhador de exigir ou não determi-
nado direito.
42
vontade individual.
64
Embora não se possa afirmar ser incorreta, essa concepção
deve ser bem compreendida, pois a vontade não é dirigida ao caso concreto. Mes-
mo nos contratos, o que são textos acerca de posições e interesses das partes,
susceptíveis de interpretação, e a vontade torna-se um elemento acidental e quase
sempre imperscrutável nesse caminho hermenêutico.
A norma não é um dado da ordem jurídica (uma multidão de normas objeti-
vamente dadas), mas apenas exprime a ordem jurídica. Também a relação jurídica
não é um elemento objetivo pré-existente, mas um construído pelos intérpretes. Por
isso, a norma é um modo individual de expressão da ordem jurídica e varia de um
para outro enquanto que a relação jurídica acaba por ser a moldura que resulta di-
namicamente da produção normativa.
Uma visão dinâmica de relação jurídica, portanto, é útil para entender o fe-
nômeno do emprego em termos jurídicos, pois a relação de emprego é o resultado
dinâmico de uma construção do trabalho em nossa sociedade, que molda as deci-
sões de todos os indivíduos e também é por essas decisões moldada.
2.4 SUBORDINAÇÃO PESSOAL E SUJEIÇÃO JURÍDICA
É importante destacar um pouco mais o processo histórico por meio do qual a
sujeição pessoal de alguém a outrem é tornada jurídica, aceitável pela ordem vigen-
te. Essa construção foi realizada por meio do contrato, o instrumento jurídico pri-
mordial da Modernidade. SANSEVERINO, por exemplo, afirmava que a subordina-
ção o representa apenas uma posição de fato, mas também jurídica e que isso
“está confirmado pela típica contratualidade, seja da relação de trabalho em geral,
seja da subordinação do trabalhador em particular”.
65
64
Caio Mário Pereira da Silva, nessa perspectiva, afirma que “Com esta significação, a fonte de direito
é um ato jurídico em sentido amplo. Fonte formal de direito vai, em última análise, repousar em uma
declaração de vontade. Pode ser a declaração de vontade do Estado, através de seus órgãos compe-
tentes. Pode ser também a declaração da vontade individual. No primeiro plano situam-se a lei, o re-
gulamento administrativo, o provimento judicial. No segundo, encontra-se o contrato, ou a declaração
unilateral de vontade” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 9ª. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1998, p. 245).
65
SANSEVERINO, Luisa Riva. Curso de direito do trabalho. Trad. Élson Guimarães Gottschalk. São
Paulo: LTr/Editora USP, 1976, p. 48-49.
43
A circunstância de a subordinação ser jurídica por estar vinculada a um con-
trato não pode deixar de causar perplexidade. Primeiro, porque, como a própria
SANSEVERINO reconhece, mesmo as relações de trabalho autônomas também
estão subordinadas a um contrato.
66
Assim, o traço distintivo em realidade é um tra-
ço de identidade. Segundo, porque o “jurídico” é um adjetivo que o qualifica o
substantivo, mas apenas o justifica moralmente. Isso parece ser necessário porque,
de alguma forma, algum resquício de preocupação moral subsiste em decorrência
da similitude de nosso enquadramento espiritual das relações de poder entre em-
pregador e empregado com as relações entre o senhor e o escravo. Referências
inconscientes dessa assimilação moral podem ser percebidas em trechos de juris-
tas, como se verifica neste texto de LAMARCA:
De outra sorte, de nada adiantaria exercer o poder de comando sem
sanções. O que se insere na empresa e não produz, prejudica a produção
(máxime se outros dependem de seu trabalho). Daí a necessidade de
castigá-lo com as penalidades que o contrato ou o regulamento prevê e que
a lei tolera ou sacramenta, e que vão desde a simples admoestação até a
dispensa sumária.
67
São expressivos os aspectos inconscientes da fala desse jurista, principal-
mente ao apontar a necessidade de castigo para o trabalhador que o produz. É a
voz do feitor, do mulato a serviço do patrão, ou seja, do “Outro”. A pena é prevista
no contrato (individual ou regulamentar) e a lei tolera (como as leis da Colônia e do
Império toleravam o castigo dos escravos, ao mesmo tempo em que impunham limi-
tes) ou sacramenta (referência implícita ao papel da Igreja Católica na manutenção
da escravidão negra e dos excessos na exploração do trabalho livre).
Assim, a se admitir que a “relação de trabalho subordinado encontra a sua
causa determinante no acordo inicial das partes, isto é, no encontro de duas vonta-
des”
68
, a subordinação seria jurídica apenas porque o trabalhador se sujeitaria por
66
“Com efeito, o contrato de locação de serviços regulado pelo Código Civil pressupõe subordinação
jurídica, assim como o do pequeno empreiteiro, do doméstico, dos servidores, enfim, de todos os que
são excepcionalizados do contrato regido pela CLT” (NASSIF, Eliane Noronha. Fundamentos da flexi-
bilização: uma análise de paradigmas e paradoxos do Direito e do Processo do Trabalho. São Paulo:
LTr, 2001, p. 68).
67
LAMARCA, Antônio. Contrato individual de trabalho. São Paulo: RT, 1969, p. 109.
68
GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do trabalho. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Fo-
rense, 1991, p. 144.
44
sua exclusiva vontade à disciplina do empregador. Seria uma servidão voluntária
69
e
temporária, mas ainda assim uma servidão. Essa conclusão, entretanto, é problemá-
tica no aspecto fático e no aspecto jurídico, pois salta aos olhos sua incompatibilida-
de com a ordem constitucional e democrática.
É curioso que os juristas, ao explicarem o conceito de subordinação, colo-
quem seus fundamentos jurídicos no contrato, mas ao mesmo tempo vinculem seus
fundamentos fáticos na hierarquia, como se o contrato não supusesse uma equiva-
lência das vontades. CATHARINO, por exemplo, afirma que “nenhum grupo social
prescinde de hierarquia, a qual pressupõe autoridade, e esta, por sua vez, subordi-
nação”.
70
A hierarquia é transformada no fundamento jurídico da relação de empre-
go, mas o fundamento também é de ordem contratual; a hierarquia, que era um
pressuposto constitutivo da sociedade (“nenhum grupo social prescinde de hierar-
quia”) passa a ser uma submissão voluntária à disciplina do empregador.
Todas essas teorias estão condicionadas pela visão naturalista da subordina-
ção como um elemento pré-existente da realidade social, como se não fosse uma
construção, um processo relacionado com a própria criação do sujeito da Moderni-
dade
71
. É esse condicionamento estrutural da Modernidade que explica a afirmação
de um jurista como LA CUEVA de que “a subordinação do trabalho ao empresário
não é um dado que estamos em condições de aceitar ou rechaçar, senão que é um
69
Supõe-se a existência de servidão voluntária por meio do contrato entre os gregos antigos. Uma
das hipóteses mais recorrentes para o início do hilotismo é de que uma fração dos antigos beócios...
decidiu permanecer onde estava e concluiu com os tessalianos um pacto (homologia) pelo qual se
comprometiam a ser seus escravos, sob a reserva de que não seriam expulsos da região, nem mor-
tos” (VERNANT, Jean-Pierre; NAQUET, Pierre-Vidal. Trabalho e escravidão na Grécia antiga. Trad.
Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1989, p. 108-109). Ainda que não comprovada essa hipótese,
o seu próprio imaginário indica que o contrato pode ser fonte tanto de liberdade como de sua perda.
No Brasil pelo menos um registro de servidão voluntária, em que uma filha de índia com escravo
negro se ofereceu em 17/8/1780 à escravidão por meio de contrato (CUNHA, Manuela Carneiro da.
Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1986, p. 145-146),
lavrado em escritura pública. Curioso caso em que o vendedor é ao mesmo tempo sujeito e objeto de
venda.
70
CATHARINO, José Martins. Compêndio de direito do trabalho. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1982, v.
1, p. 205.
71
“Se é verdade que o real é relacional, pode acontecer que eu nada saiba de uma instituição acerca
da qual eu julgo saber tudo, porque ela nada é fora das suas relações com o todo” (BOURDIEU, Pier-
re. O poder simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 31).
45
fato real que se impõe ao investigador do regime capitalista, do qual constitui sua
essência”
72
. Por consequência:
[...] o poder jurídico do empresário é um poder de disposição da energia de
trabalho, o que quer dizer que a essência da relação de trabalho se funda
em que o patrão se encontra, a todo momento, na possibilidade de dispor da
força de trabalho de seus empregados, segundo convenha aos fins de sua
empresa.
73
FONSECA sintetiza bem a perplexidade gerada pela afirmação de que o em-
pregado não se transforma em servo por se limitar a execução do trabalho ao con-
tratado:
[...] O fato da subordinação ser “jurídica”, e nada mais do que isso, assim,
salvaria, na argumentação doutrinária citada, a autonomia do trabalhador e a
sua dignidade enquanto pessoa. Ele estaria vinculado ao empregador
apenas e tão-somente para o trabalho e nos limites do contrato de trabalho.
As respostas parecem ainda insuficientes. Para entender efetivamente o
sentido da subordinação sem esse argumento formalista, seria o caso de ir
mais longe nessa linha e perguntar: afinal, qual é o conteúdo efetivo do
contrato de trabalho e quais são os seus limites? Qual é a parcela de
subordinação que é jurídica (e portanto lícita) e qual a parcela de
subordinação que não é jurídica (e portanto ilícita)?
74
O conceito de subordinação jurídica possui uma dupla dimensão epistêmica.
A primeira dimensão é extrínseca porque, ao definir subordinação jurídica, procura-
se traçar os limites da proteção, ou seja, pretende-se distinguir o trabalho subordi-
nado do trabalho autônomo. Com efeito, trabalhos em que o subordinação
e em relação aos quais o sistema protetivo não se aplica ou se aplica apenas em
parte, de sorte que a finalidade principal desse conceito passa a ser fixar a linha di-
visória entre os protegidos e os não-protegidos. O óleo santo da subordinação cum-
priria nesse ritual a função de marcar os ungidos. Essa delimitação tornou-se fun-
damental no atual estádio do capitalismo, no qual incide uma suposta crise do em
72
LA CUEVA, Mario de. Derecho mexicano del trabajo. 3ª. ed. México: Porrua, 1949, p. 512 (tradução
do autor). Texto original: “la subordinación del trabajo al empresario no es un dato que estemos en
aptitud de aceptar o rechazar, sino que es un hecho real que se impone al investigador del régimen
capitalista, del que constituye su esencia”.
73
IDEM, ibidem, p. 513 (tradução do autor). Texto original: “... El poder jurídico del empresario es un
poder de disposición de la energía de trabajo, lo que quiere decir que la esencia de la relación de tra-
bajo estriba en que el patrono se encuentra, en todo momento, en posibilidad de disponer de la fuerza
de trabajo de sus obreros, según convenga a los fines de su empresa”.
74
FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição
jurídica. São Paulo: LTr, 2001, p. 136-137.
46
prego, desencadeada pelo que se denominou neoliberalismo, mas que em realidade
representa o retorno de alguns aspectos centrais do liberalismo lockeano.
A segunda dimensão é intrínseca, pois, ao se definir o que seja subordinação
jurídica, o que está em questão é o próprio conteúdo do contrato. Se uma subor-
dinação jurídica sobre o trabalhador também uma subordinação não-jurídica, no
sentido de uma subordinação que ultrapassa os limites do contrato, para além do
contratado (objeto). Essa dimensão pressupõe a existência do vínculo de emprego,
e o que está em questão são os limites do poder diretivo, em especial, do poder dis-
ciplinar nele contido.
Ambas as dimensões costumam ser definidas de forma negativa. Na dimen-
são extrínseca, é subordinado o trabalho que não é autônomo. Na dimensão intrín-
seca, “define-se o que se pode fazer através da enunciação daquilo que o se po-
de fazer”.
75
O que se pretende, neste trabalho, é tratar preferencialmente da dimen-
são extrínseca da subordinação jurídica
76
, mas, de qualquer modo, em ambas as
75
FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição
jurídica. São Paulo: LTr, 2001, p. 137.
76
A dimensão intrínseca da subordinação jurídica, principalmente sua relação com o poder disciplinar,
foi muito bem analisada na obra citada de Ricardo Marcelo Fonseca. Há que se fazer uma observa-
ção pontual, entretanto, à utilização de Foucault como marco teórico para categorizar a disciplina do
trabalhador. Além de ser pertinente a crítica de Boaventura de Sousa Santos de que “Foucault mostra
que não há qualquer saída emancipatória dentro desse ‘regime da verdade’, já que a própria resistên-
cia se transforma ela própria num poder disciplinar e, portanto, numa opressão consentida porque
interiorizada” (SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da
experiência. . ed. São Paulo: Cortez, 2001, p. 26), que se ter em conta que a perspectiva fou-
caultiana (reconhecidamente neonietzschiana) parte de uma premissa problemática, qual seja, a de
que “nenhuma posição deve ser vista como mais ou menos justificada do que qualquer outra. Todas
são, em última análise, baseadas em imposições” (TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção
da identidade moderna. Trad.: Adail Ubirajara Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed. São Paulo:
Loyola, 2005, p. 135). Por essa perspectiva, as concepções morais não estão disponíveis para os
seres humanos, daí porque a suspeita de nominalismo radical nas análises de Michel Foucault
(BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Bra-
sil, 2006, p. 237). Contudo, é uma forma “de autoengano pensar que não falamos a partir de uma
orientação moral que consideramos certa. Essa é uma condição para se ser um self operante, e não
uma visão metafísica que podemos ligar e desligar” (TAYLOR, Charles. IDEM, ibidem). Por isso, apli-
car as teorias de Foucault ao poder disciplinar existente nas relações de emprego naturaliza a domi-
nação nela existente e contribui para a imobilização da resistência. Como se verá, nem sequer no
regime da escravidão a sujeição do trabalhador exclui mecanismos de resistência e de emancipação.
O problema, portanto, ao contrário do afirmado por Ricardo Marcelo FONSECA (op. cit., p. 125-127)
não está apenas em uma visão restritiva de Foucault a respeito do Direito, mas sim de uma questão
precedente: a especificidade do que é normativo.
47
referidas dimensões parece evidente não ser a subordinação um elemento puro ex-
traído da realidade, mas uma construção histórica e cultural típica da Modernidade.
Por isso, não é exata a seguinte afirmação de FONSECA:
O que se deve compreender é que não foi o direito que inventou a relação
de trabalho subordinado e o requisito da subordinação jurídica, traçando
depois a linha divisória do que seria o limite de uma subordinação jurídica e
uma subordinação não jurídica. O que de fato ocorreu é que a subordinação
do trabalhador pré-existia à regulamentação do contrato de trabalho, e o
direito positivo, confrontando-se com uma situação de subordinação já
existente, traçou os limites formais para definir até onde essa subordinação
poderia ser exercida licitamente (e denominou-se a subordinação jurídica).
A subordinação, portanto, não foi inventada, mas foi apenas regulamentada.
Melhor dizendo, ela foi “domesticada” precisamente pela introdução de um
conceito jurídico-formal, o de “subordinação jurídica”, para que pudesse
circular sem constrangimentos numa relação jurídica calcada num modelo
contratual, onde as premissas da autonomia da vontade são constituintes.
Mas ela não deixou por isso de ser subordinação.
77
A subordinação, tal como hoje a concebemos, é diferente daquela que existia
quando iniciou a regulamentação do trabalho livre, na Europa, e essa subordinação
europeia é e sempre foi diferente daquela verificada no Brasil, embora também exis-
tam grandes semelhanças em razão do padrão ético instituído pela Modernidade
(liberdade com o trabalho e pelo trabalho).
Tanto as coincidências como as divergências decorrem de aspectos históri-
cos e culturais pelos quais o trabalho livre foi criado em um e outro local. Acreditar
que as dimensões extrínsecas e intrínsecas possuem a mesma essência (o poder
disciplinar do empregador, a hierarquia no trabalho) importaria em naturalizar um
sistema de dominação com a ideia de que o trabalho pressupõe sempre a sujeição
pessoal do trabalhador, sem considerar que essa sujeição varia de grau e de pers-
pectiva segundo o tempo e o lugar. Essa sujeição é histórica e pode ser confirmada
mesmo sem nenhum grau de sujeição pessoal, como se verifica entre os trabalha-
dores intelectuais ou no teletrabalho.
Compreender a subordinação como um dado pré-existente da realidade con-
tribui para sua naturalização e, consequentemente, para que sejam neutralizados os
seus aspectos morais. O trabalho subordinado, tal como percebido pela Modernida-
de, é uma invenção social, e muito recente, a qual se compreende nos quadros
77
FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição
jurídica. São Paulo: LTr, 2001, p. 138.
48
de uma identidade própria construída a muito custo e em um sistema econômico
novo, que se construiu ao mesmo tempo em que era erigido um novo sujeito. Assim,
uma relação causal circular entre o trabalho livre, a autoafirmação dos trabalha-
dores, a dependência econômica, a dependência técnica e a subordinação jurídica.
Esses nexos causais não possuem uma origem certa e delimitável nem uma ordem
natural. Não é possível saber o que vem antes e o que vem depois, pois todos os
seus aspectos decorrem de um longo processo de internalização da subjetividade,
de criação do indivíduo autônomo e da introjeção da ideia de predomínio do homem
sobre a natureza, característicos dos sentimentos morais da Modernidade. Todos
esses aspectos formaram também outras relações causais circulares a partir das
transformações profundas nos sistemas de troca, da instituição de novos sistemas
de disciplina nos exércitos, do aparecimento de uma sensibilidade própria, da inven-
ção da moeda
78
e da vida cotidiana e do nascimento do indivíduo. Embora o traba-
lho subordinado tenha guardado resquícios de formas anteriores de sujeição, tam-
bém é proveniente de novos padrões produtivos e, principalmente, de novos pa-
drões éticos, os quais também ajudou a moldar.
79
Assim, um acoplamento irrestrito
da subordinação moderna com a sujeição antiga é tarefa passível de ser realiza-
da mediante idealização redutora. Tudo indica serem vãs as tentativas de delimitar o
objeto da relação de emprego por meio apenas de reforma legislativa, como a pre-
78
A introdução da moeda moderna parece implantar um novo padrão mental. Além de sua calculabili-
dade, o dinheiro possui representa ao mesmo tempo uma idealização metafísica e um totem concreto
e portátil, capaz de realizar desejos. Essa idealização cresce de tal modo que atualmente o dinheiro
começa a perder sua portabilidade concreta, para assumir uma portabilidade eletrônica, altamente
idealizada, o que só foi possível depois de séculos de “educação religiosa”, para que todos acreditas-
sem na sua “natural” e inquestionável existência.
79
Por isso, que se lançar uma divergência com Jessé SOUZA, o qual sustenta que “as ideias são
anteriores às práticas institucionais e sociais” (SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania:
para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 98).
Não é correta essa afirmação, até porque desde Galileu “a ordem das ideias deixa de ser algo que
descobrimos e passa a ser algo que construímos(TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção
da identidade moderna. Trad.: Adail Ubirajara Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed. São Paulo:
Loyola, 2005, p. 191). Também não é correta a afirmação de que Charles TAYLOR defende a prece-
dência (temporal ou substancial) das ideias sobre as práticas sociais, pois esse autor sustenta que a
“questão realmente ambiciosa diz respeito à relação de toda essa cultura com sua ‘base’ econômica e
social... Parece claro que o surgimento dessa cultura relacionou-se de maneira complexa com as
mudanças das práticas econômicas, das estruturas e métodos administrativos e das disciplinas...”
(IDEM, ibidem, p. 396). Charles TAYLOR em sua fundamental obra enfatiza a construção moral da
Modernidade justamente porque esse elemento até então era desprezado nas análises científicas,
mas, ao mesmo tempo em que recusa “uma relação causal unilinear de ‘base’ e ‘superestrutura’ entre
esses processos econômicos e sociais e a cultura moral” (IDEM, ibidem, p. 397), sustenta que
entre todos esses elementos uma relação circular.
49
tensão de GEDIEL de “aprimorar o conceito de trabalho autônomo, coletivamente
organizado em cooperativas, distinguindo-o do trabalho subordinado e do trabalho
autônomo individual”.
80
A subordinação do trabalhador não é unidimensional, pois não é resultado
apenas de um meio de dominação, mas também é um meio de luta, de resistência,
de emancipação e de confirmação da liberdade. Sua vinculação ao contrato, em que
pesem todas as deficiências e todos os limites da autonomia da vontade, não deixa
de representar em vários aspectos um importante instrumento de autoafirmação da
classe trabalhadora. Sem essa vinculação, a resistência estaria jungida a elementos
fáticos e a um sistema pré-moderno (escravidão). Mais uma vez, o que está em
questão é a diferença entre o trabalho livre e o trabalho servil, e essa diferença é
sociocultural e não um elemento “natural”, objetivável no mundo dos fatos.
Nesse aspecto, afirmar o contrato é negar a sujeição, mas não se trata de
qualquer contrato. Não é mais possível sustentar apenas contrato baseado na auto-
nomia da vontade, assim como não é possível sustentar o emprego nos moldes tra-
dicionais da relação jurídica. Como é possível, então, sustentar as possibilidades
emancipatórias por meio do contrato se a crise do contrato decorreu justamente da
sua incapacidade de dar conta das demandas do “sujeito débil”? É necessário rever
a visão de mundo do contrato e do sujeito.
2.5 CRISE DO CONTRATO E SEU IMPACTO NO TRABALHO
Com o surgimento do emprego como novidade social, de início os juristas
procuraram enquadrá-lo nas modalidades contratuais típicas do Direito Civil, como a
locação de serviços (arrendamento), a compra e venda, a associação, a sociedade
80
GEDIEL, José Antônio Peres. Trabalho, cooperativismo e direito. Revista Ciência e Cultura. São
Paulo: SBPC, dez. de 2006, v. 58, n. 4, p. 37.
50
e o mandato.
81
Logo se percebeu que o emprego era singular fenômeno ao qual os
modelos tradicionais de contrato eram inadequados em vários aspectos.
82
Seguiu-se, principalmente na primeira metade do século XX, acirrada contro-
vérsia acerca da natureza jurídica da relação de emprego. Sucederam-se as mais
variadas teorias, muitas das quais procuraram explicar a relação de emprego à mar-
gem dos contornos contratuais, tais como a teoria da relação de trabalho, do ato-
condição e do institucionalismo (puro ou mitigado). A discussão acerca dessas teo-
rias perdeu relevância, pois é praticamente unânime a afirmação de que a relação
de emprego é de natureza contratual
83
, um negócio jurídico. A nota característica do
negócio jurídico é a autonomia da vontade dos sujeitos da respectiva relação e essa
autonomia está vinculada diretamente à ideologia do liberalismo, ainda que essa
ideologia nunca se tenha amoldado à “nossa índole”.
84
A autonomia da vontade a-
justa-se às ideias de igualdade (formal) dos contratantes e de liberdade individual,
as quais, por sua vez, se correlacionam com o direito de propriedade.
81
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Relação de emprego: natureza jurídica. In: DUARTE, Bento Her-
culano (coord.). Manual de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1998, p. 142-147.
82
Assim como o contrato da Modernidade é muito diferente do contrato da Antiguidade e da Idade
Média, também o contrato de emprego se distingue funcionalmente dos demais contratos e em tal
proporção que poderia ser utilizada outra denominação para esse fenômeno, sem que nada de sua
estrutura se modificasse.
83
que se ter em conta que o sentido de contrato entre os romanos e o utilizado na Modernidade é
totalmente distinto. Entre os romanos nunca se pensou que a mera troca de consentimentos chama-
da pacto ou convenção, se identificasse ao contrato: para passar da convenção ao contrato, eram
necessárias em princípio formas (as da promessa, stipulatio, ou do juramento) ou atos materiais (en-
trega da coisa) que variavam conforme os contratos (SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a
função antropológica do direito. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2007, p. 112). “Se um princípio em Direito romano, é, portanto, bem mais o da ineficácia
jurídica da palavra dada” (IDEM, ibidem, p. 113). Foram os canonistas medievais os “inventores da
regra Pacta Sunt Servanda” (IDEM, ibidem, p. 114). A Modernidade introduz o Estado como garantidor
da “palavra”, por ser o garantidor da moeda de troca.
84
“Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós.
assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e simples de
uma autoridade incômoda, confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com
familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma
aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la onde fosse possível, aos seus direi-
tos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia
contra os aristrocratas” (HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 18ª. ed. Rio de Janeiro:
José Olímpio, 1984, p. 119).
51
Essa concepção individualista e subjetivista do negócio jurídico nunca se a-
moldou perfeitamente à relação de emprego
85
, pois cedo se impôs a necessidade
de inserção dos contratos de emprego sob regras de direito blico. Ao se inserir o
emprego na relação contratual, surgiu um dos primeiros sinais de crise do contrato,
que se acentuou e ganhou maior visibilidade quando o contrato por adesão passou
a ser aplicado a um conjunto maior de trocas, em especial nas relações de consu-
mo. Se, “no princípio era o Verbo”, as novas formas contratuais pretendem inverter a
lógica para, como diz IRTI, estabelecer que “no princípio era a imagem”.
86
Talvez
seja possível ir mais longe nessa investigação para dizer que as atuais técnicas ca-
pitalistas impõem a ideia de que “no princípio era o desejo”, pois ainda que a ima-
gem seja um puro ato de recepção, nela algum tipo de mediação com o incons-
ciente.
87
A imagem nesses casos funciona como linguagem dirigida ao inconsciente
e tenta exercer nas pessoas a função que a poesia desempenhava na Antiguidade.
Essa aplicação um tanto forçada do contrato à relação de emprego, como foi
dito, decorre de uma tendência absorvente do capitalismo, pois este procura enqua-
drar todas as relações sociais no seu instrumento jurídico, que é o contrato. Por is-
so, o contrato absorve fenômenos com ele pouco congruentes (como propriedade e
85
A rigor, não apenas a relação de emprego, mas grande parte das relações humanas ditas contratu-
ais possui semelhante dificuldade. Isso se principalmente porque o contrato é resultado discursivo
e cognitivo (IRTI, Natalino. Dialogo e accordo. Analisi di una crisi. In: IRTI, Natalino e outros. Contratto
e lavoro subordinato: il diritto privato alle soglie del 2000. Padova: Cedam, 2000, p. 13) e “o diálogo
linguístico, ainda que satisfaça a legalidade do sistema e respeite os significados das singulares pala-
vras, não é nem calculável nem mensurável” (IDEM, ibidem, p. 15). De outra parte, a adesão aos ter-
mos da outra parte, sejam os verbais sejam os formulários escritos dos contratos, é a negativa do
diálogo e, consequentemente, uma contradição com o próprio conceito de contrato (IDEM, ibidem, p.
16). O contrato de adesão é uma tecnologia que atende a desejos de velocidade e de mensurabilida-
de, mas que anula ou reduz a individualidade do outro (univocidade). Ainda que a palavra permaneça,
ocorre uma renúncia àquilo que a massa não pode nem deseja desenvolver: o pessoal e fatigante
diálogo” (IDEM, ibidem, p. 17). Assim, o contrato de adesão é também renúncia de liberdade, uma
nova forma de servidão voluntária. Por esse processo a tecnologia domina, pois o homem deixa de
falar sobre coisas para apenas escolher coisas, daí porque se torna dispensável o vendedor. O con-
trato deixa de ser consensual para ser “real”.
86
IDEM, ibidem, p. 31.
87
uma trama significante entre constituição de uma sociedade, produção e outros elementos soci-
ais em que “o inconsciente trabalha da mesma maneira e que faz tudo isso para sustentar uma reali-
dade fantasmática, uma realidade de acordo com o princípio do prazer...” (MASSOLO, Miguel. Do
inconsciente ao discurso. Trad.: Francisco Settineri. In: APPOA Associação Psicanalítica de Porto
Alegre. O valor simbólico do trabalho e o sujeito contemporâneo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2000,
p. 239). um entrecruzamento entre a trama significante e suas leis de repetição e “no caminho de
volta, temos o discurso. A estrutura de que trata o discurso ultrapassa a palavra” (IDEM, ibidem, p.
240). Por isso, a imagem está na ordem do discurso, de acordo com uma lei de repetição, mas para
além da palavra.
52
trabalho) e constrói categorias que se tornam ambíguas no ambiente em que são
interpretadas, como a função social do contrato
88
ou função social da terra
89
. A i-
nadequação do trabalho humano a um contrato pode ser aferida pelo ácido resumo
que ROUSSEAU faz do pacto social entre o rico e o pobre:
Vós precisais de mim pois sou rico e vós sois pobre; façamos portanto um
acordo entre nós; eu permitirei que tenhais a honra de me servir, com a
condição de que deis o pouco que vos resta pelo trabalho que terei de vos
comandar.
90
Esse apregoado consenso entre empregado e empregador é apenas uma
produção simbólico-discursiva para justificar e normalizar o estado de dominação.
De qualquer modo, o contrato permite trazer o dissenso para dentro do consenso,
visto que o trabalhador é alçado à condição de sujeito. Dir-se-á que um sujeito fragi-
lizado, submisso, vitimizado, mas, ainda assim, em patamar como nunca antes o
trabalhador estivera na história. O que está em construção, na história, portanto, é
justamente esse sujeito.
Nos termos da tradição jurídica, constituía um paradoxo admitir a natureza
contratual da relação de emprego e ao mesmo tempo aplicar-lhe um amplo sistema
normativo que limita a autonomia das partes, pois essa autonomia estava na base
ideológica construída em torno do conceito de contrato. Para aperceber-se do as-
pecto verdadeiramente original da relação de emprego, entretanto, é necessário re-
conhecer, como destaca COUTINHO, que:
O direito do trabalho é a revelação em si de uma nova concepção do
contrato, sustentada na autonomia privada, mediante a qual a condição
88
A função social do contrato, tal como tem sido percebida por viés conservador e em perspectiva
causal, é contraditória, pois não é possível por meio do interesse puramente individual construir o
interesse coletivo. Ao contrário, a ideia de interesse coletivo supõe em alguma medida seja restringido
o interesse pessoal. De outra parte, essa concepção parece ser oriunda de uma tradição idealista,
segundo a qual “a objetividade do sentido do mundo define-se pela concordância das subjectividades
estruturantes (sensus = consensus)” (BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad.: Fernando Tomaz.
9ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 8), pois parece supor que é da estruturação de vonta-
des individuais que surge a “vontade coletiva”.
89
“A função social, nesta interpretação, seria um privilégio do proprietário que ao não cumpri-la pode
ser admoestado pelo Poder Público, mas não perde a propriedade” (MARÉS, Carlos Frederico. A
função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003, p. 113). Esse roteiro ideológico é
sempre seguido no Brasil como uma obediência inconsciente ao Outro, ao ausente. O coletivo nem
sequer desaparece, simplesmente não existe, e a única reverência cabe à propriedade, intocável. A
mera posse é oferecida para um gozo impossível de ser alcançado.
90
CHABERT, Alexandre. Rousseau économiste. Revue d’histoire économique et sociale, nº. 3, 1964,
p. 349, apud BEAUD, Michel. História do capitalismo: de 1500 até nossos dias. Trad. Maria Ermantina
Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 84.
53
social e econômica das pessoas envolvidas o dimensiona para uma postura
jurídica promotora de uma igualdade, recusando a vontade como elemento
nuclear e substituindo-a pela supremacia do interesse público. Jamais teve
uma perspectiva individualista, ao contrário, nasce o direito do trabalho
como um direito “de classe”, restringindo inclusive a manifestação de
vontade das partes individuais contratantes ante a existência de disposições
coletivas (...).
91
A conformação da relação de emprego em bases contratuais o possui raí-
zes ontológicas, como muitas vezes se pensa, mas é apenas consequência da ideo-
logia do capitalismo, cujas bases estão assentadas no individualismo e no contrato.
O Direito do Trabalho, entretanto, foi o pioneiro ao dar contornos coletivos a essa
modalidade de contrato (greve, sindicato, convenções e acordos coletivos, regula-
mentos de empresa etc.) ao admitir/impor a possibilidade de restrição à autonomia
da vontade, mesmo sob bases consideradas contratuais, como forma de preservar o
interesse social. É esse entrelaçamento entre interesses privados e blicos que
torna difícil o enquadramento do Direito do Trabalho no âmbito do direito privado ou
do direito público, e até coloca em dúvida essa clássica distinção. Essa publicização
dos interesses privados tem se expandido para outras áreas do conhecimento jurídi-
co em razão do aumento da complexidade dos meios de troca e dos demais aspec-
tos da vida social.
O individualismo jurídico, por conseguinte, tem perdido parte de sua força, e o
poder da autonomia da vontade tem sido continuamente mitigado, pois novas for-
mas contratuais do Direito Civil mostraram-se igualmente carentes de regulamenta-
ção e passaram a ser protegidas pelo ordenamento jurídico, como se verifica, por
exemplo, nas relações de consumo.
O que se percebe é que o conceito clássico de contrato é que sofreu (ou está
a sofrer) gradativa reformulação, não para afastar seu elemento essencial, que é a
liberdade de contratar (elemento indispensável mesmo nos contratos de atividade,
como forma de preservar a dignidade humana), mas para admitir que existe um
campo normativo para além da vontade e autonomia das partes, o qual se aplica
forçosamente às bases contratuais em vista do interesse público. As partes possu-
91
COUTINHO, Aldacy Rachid. Função social do contrato individual trabalho. In: COUTINHO, Aldacy
Rachid; DALLEGRAVE NETO, José Affonso (Coords.). Transformações do direito do trabalho: estu-
dos em homenagem ao Professor João Régis Fassbender Teixeira. Curitiba, Juruá, 2000, p. 33.
54
em liberdade de contratar, mas tal contrato coordena-se com dinâmicas estruturas
linguísticas (legais e coletivas) independente de sua vontade, ora em grau de coor-
denação, ora em grau de submissão. Trata-se de um contrato de adesão ou de um
contrato dirigido como, com razão, prefere COUTINHO
92
, coordenado por interesses
que transitam do indivíduo para o coletivo e vice-versa.
Por conta dessa realidade, é abandonado o dogma liberal da autonomia da
vontade como essência do negócio jurídico e, por consequência, deixa-se “de definir
o negócio jurídico como declaração de vontade destinada a produzir efeitos jurídi-
cos, para conceituá-lo como o ato de autonomia que empenha o sujeito, ou os sujei-
tos que o praticam, a ter conduta conforme ao regulamento dos seus interesses fi-
xado com a prática do ato”.
93
Infere-se que a relação de emprego não prescinde do animus contrahendi,
embora na maior parte das vezes a intenção de contratar revele-se tácita ou de me-
ra adesão. Como é uma estrutura normativa exterior ao contrato que molda a exe-
cução dessa liberdade contratual, será esse campo normativo que delimitará os
componentes existenciais do vínculo de emprego e apontará seus efeitos no mundo
jurídico. Assim, mesmo quando o trabalhador afirme o contrário, serão sempre as
normas jurídicas que darão seus contornos. Nesse sentido é possível afirmar que a
subordinação, vista em sua totalidade, é jurídica, pois constitui mera decorrência de
um vínculo ao qual o ordenamento atribui efeitos jurídicos. Ainda assim, ela não
constitui o ser da relação de emprego, mas indica a sua presença. Isso não substitui
a autonomia da vontade, mas a liberta.
A superação da autonomia da vontade não representa, conseguintemente, a
eliminação da vontade como elemento significante e constitutivo da liberdade
94
, em-
bora esta nunca decorra apenas daquela. O direito coletivo é que deve(ria) fazer a
transição da liberdade individual para a igualdade do grupo, pois é a fala do terceiro
92
COUTINHO, Aldacy Rachid. Função social do contrato individual trabalho. In: COUTINHO, Aldacy
Rachid; DALLEGRAVE NETO, José Affonso (Coord.). Transformações do direito do trabalho: estudos
em homenagem ao Professor João Régis Fassbender Teixeira. Curitiba, Juruá, 2000, p. 37.
93
GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. São Paulo: RT, 1967, p. 71.
94
Aqui a liberdade assume outro conteúdo, pois acima de tudo a “liberdade é a consciência da neces-
sidade” (CAUDWELL, Christopher. O conceito de liberdade. Trad. Edmond Jorge. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1968, p. 58). A liberdade é resultado de um processo consciente e não um antecedente
dele.
55
que, sem se confundir com o “eu” e sem anulá-lo, permite a fala com “ele”. A atrofia
do direito coletivo no Brasil é significativa e preocupante, pois impele o contrato para
um campo individual e para ambientes muitas vezes impermeáveis à normatividade
estatal.
Não dúvida de que o elemento vontade, como aspecto indispensável da
relação de emprego, é criticável, por pressupor um indivíduo onipotente e capaz
com sua vontade de adquirir direitos. A necessidade constitui um limitador importan-
te dessa autonomia. De qualquer sorte, é inimaginável a existência de alguém to-
talmente autônomo, pois na sociedade sempre haverá a dependência de alguém a
outrem, pois o trabalho é a base das relações sociais
95
. É também impensável a
existência de alguém totalmente sujeito às suas necessidades primárias, pois seria
mais animal do que homem e, até de um escravo, o pretendido na relação de traba-
lho é o elemento humano que nele subsiste. Por isso, o que se apresenta em qual-
quer relação de trabalho é uma tensão dialética entre a liberdade total (autonomia) e
a sujeição absoluta (servidão), ambas inatingíveis. Assim, o trabalho no sistema ca-
pitalista tende para o (formula-se com pretensão de) contrato, por meio do qual se
supõe o trabalhador e o empregador como agentes propulsores do fenômeno, mas
de outra parte se inclina sobre os aspectos puramente factuais, os quais, em dire-
ção contrária, podem impulsionar um “contrato sem (total, parcial ou concomitante)
vontade das partes”, o que o aproxima da servidão. Como o capitalismo tende para
a acumulação e o tem compromisso com nenhum tipo de “coerência”, não im-
pedimento de, mesmo sob os auspícios do liberalismo, a servidão ser utilizada como
mecanismo de produção de mais-valia, de sorte que transita sem constrangimentos
entre o puro fato e a vontade do homem.
É a partir desse quadro que precisa ser revisitado o conceito de subordina-
ção, pois esse elemento é utilizado como o principal traço a separar os “protegidos”
e os “desprotegidos”. A subordinação é, ainda, um conceito utilizado retoricamente
nos meios jurídicos para expressar o indizível. Ao se agregar a esse conceito o adje-
95
O trabalho, em suma, é a única categoria do mundo dos homens que faz a mediação entre nature-
za e sociedade. Essa é a razão de, nele, encontrarmos in nuce todas as determinações decisivas do
ser social” (LESSA, Sérgio. Mundos dos homens: trabalho e ser social. São Paulo: Boitempo, 2002, p.
252).
56
tivo “jurídica”, esse ente adquire tal conteúdo metafísico que passa a tudo significar,
sem que se precise explicar e justificar o seu conteúdo.
2.6 CRÍTICA RADICAL: RECUSA DA SUBORDINAÇÃO COMO ELE-
MENTO INTEGRANTE DA RELAÇÃO DE EMPREGO
A visão meramente subjetiva da subordinação não consegue explicar a sua
presença no trabalho intelectual ou prestado por empregados dos cargos mais ele-
vados, como gerentes e diretores de sociedades anônimas. Não dúvida de que,
principalmente nos dias de hoje, em que a apropriação da ciência pelo capital elimi-
na trabalho manual e incorpora trabalho intelectual nos meios de produção, deve ser
considerado todo e qualquer trabalhador que direta ou indiretamente contribui para a
produção de mais-valia como participante da classe trabalhadora
96
.
Por outro lado, somente mediante excessiva abstração é possível admitir a
existência de dependência pessoal no teletrabalho e em inúmeras outras formas de
trabalho “descentralizado”, nos quais se intui uma dependência até mais forte que
nos sistemas “centralizados” de produção. Acima de tudo, a concepção subjetiva da
subordinação jurídica remete necessariamente a vínculos com a sujeição pessoal e,
consequentemente, com a escravidão. Ainda causa repúdio, ou pelo menos estra-
nheza, vincular-se um contrato a uma sujeição pessoal.
A inconsistência e a insuficiência dos critérios subjetivos de subordinação
mostraram-se evidentes, a ponto de alguns juristas preferiram abandonar ou mitigar
a subordinação como elemento distintivo da relação de emprego. ALONSO OLEA
97
,
por exemplo, há muito prefere o conceito multívoco de ajenidad (usualmente tradu-
zido por alteridade, termo sujeito a críticas), por meio do qual afirma que a relação
de emprego se caracteriza pelo trabalho por conta alheia para uma organização ou
empresa, com sentido próximo ao de “alienação” (tomada na acepção jurídica estrita
96
“... o trabalho produtivo... não se restringe ao trabalho manual direto (ainda que nele encontre seu
núcleo central), incorporando também novas formas de trabalho que são produtivas, que produzem
mais-valia, mas que não são diretamente manuais” (ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho:
ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999, p. 102).
97
ALONSO OLEA. Manuel. Introdução ao direito do trabalho. 4ª. ed. São Paulo: LTr, 1984, p. 22-24.
57
de transferência da titularidade). Não que o grande mestre espanhol não admita a
relevância da “dependência”, mas afirma
98
que esse conceito impreciso não caracte-
riza a relação de emprego, mas apenas constitui uma de suas consequências.
MELHADO, ao percorrer caminho trilhado por CARNELUTTI
99
e, mais re-
centemente e com novos e sólidos argumentos, também por CORREAS
100
, procura
associar o contrato de emprego com o contrato de compra e venda. Isso resulta de
uma tendência de objetivar radicalmente a subordinação. MELHADO sustenta que:
O contrato de emprego, na sua gênese arquetípica, é um contrato de
compra e venda - através do qual o trabalhador aliena sua capacidade de
trabalho como mercadoria - caracterizado um elemento subjetivo específico:
a intencionalidade da conduta do capitalista, que adquire a mercadoria força
de trabalho para destiná-la à ampliação do capital, que por seu turno não é
outra coisa senão trabalho objetivado.
101
Por esse caminho, chega-se à conclusão de que “a subordinação o é um
elemento integrante do contrato de emprego”
102
, mas uma consequência dele. O
conceito de subordinação seria meramente utilitário, pois ainda que se ponha como
mera consequência, serve para distinguir nos casos concretos o contrato de empre-
go dos contratos autônomos.
É certo que o poder do empregador decorre em realidade do domínio técnico
(controle do conhecimento técnico e instrumental da produção) e do sistema de divi-
são do trabalho
103
. A subordinação do empregado é mero desdobramento desse
poder, ao qual se vincula dialeticamente. Assim, pretender que a subordinação de-
corra apenas do sistema jurídico, sem levar em consideração os condicionantes
“pré-jurídicos”, é ilusão retórica.
98
ALONSO OLEA. Manuel. Introdução ao direito do trabalho. 4ª. ed. São Paulo: LTr, 1984, p. 30-31.
99
CARNELUTTI, Francesco. Studi sulle energie como oggetto di rapporti giuridici. Rivista di diritto
commerciale, I, 1913, p. 382 e seguintes, apud LA CUEVA, Mario de. Derecho mexicano del trabajo.
3ª. ed. México: Porrua, 1949, p. 462 e NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho.
9ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 263.
100
“No caso da circulação de mão-de-obra, temos uma particularidade dentro da compra e venda. Se
trata de uma mercadoria especialíssima, ou seja, uma coisa distinta de todas as demais” (CORREAS,
Óscar. Sociologia del derecho e crítica jurídica: escritos. México: Fontamara, 1998, p. 179). Texto
original: “En el caso de la circulación de mano de obra, tenemos una particularidad dentro de la com-
praventa. Se trata de una mercancía especialísima, o sea una cosa distinta a todas las demás”.
101
MELHADO, Reginaldo. Poder e sujeição. São Paulo: LTr, 2003, p. 215.
102
IDEM, ibidem, p. 164.
103
MELHADO, Reginaldo. Mundialização, neoliberalismo e novos marcos conceituais da subordina-
ção. In: COUTINHO, Aldacy Rachid; DALLEGRAVE NETO, José Affonso (Coords.). Transformações
do direito do trabalho. Curitiba: Juruá. 2000, p. 90-93.
58
Com efeito, tem razão ALONSO OLEA ao afirmar ser a subordinação uma
necessária consequência da relação de emprego, e é certo que por essa razão se
amolda ao sistema organizacional do tomador dos serviços, daí porque se manifesta
de tão variadas formas. Ainda que seja útil identificar a relação de emprego por meio
da subordinação, não se pode perder de vista, como observa COUTINHO, que “o
direito do trabalho mascara a exploração da força de trabalho pelo capital e a rela-
ção de apropriação real dos meios de produção, disfarçando-a sob o fenômeno da
subordinação...”
104
. Assim, a exploração de mão-de-obra é a verdadeira e básica
característica da relação de emprego. Por esse prisma, os elementos caracterizado-
res da relação de emprego constituem apenas “luzes”, “caminhos”, “fios condutores”
para o conhecimento de uma estrutura que nem sempre se revela facilmente, pois é
de sua natureza o disfarçar-se.
Somente ao admitir no poder do empregador um fenômeno dinâmico e dialé-
tico
105
é possível bem compreender o seu funcionamento e explicar a sujeição do
trabalhador. Essa compreensão deve realizar-se por sua totalidade, por meio de
análise dos vários aspectos em que o trabalho se insere, pois é comum que um de
seus elementos esteja mitigado por sobrepujar um aspecto do domínio do emprega-
dor. Por tal motivo, no caso concreto, a análise da existência de subordinação deve
realizar-se mediante acoplamento dos seus vários elementos.
É possível apontar, entretanto, algumas objeções a essa teoria. A primeira
delas é que justamente o dinamismo da estrutura simbólica de poder que envolve a
relação de emprego impede a relação causal unidirecional que essa teoria reputa
verdadeira (se relação de emprego, a consequência é que subordinação).
Transparece nessa teoria uma tentativa de tornar objetiva a verdade da subordina-
ção jurídica, perspectiva ainda essencialista e que apenas opera uma inversão do
problema: a subordinação de causa da relação de emprego passa a ser a conse-
quência. Ainda existe uma relação unidirecional de causa e consequência, fazendo
supor que a divergência com o critério subjetivo de subordinação esteja apenas na
mera posição de um elemento. No fundo, acaba por confirmar a subordinação como
104
COUTINHO, Aldacy Rachid. Função social do contrato individual trabalho. In: COUTINHO, Aldacy
Rachid; DALLEGRAVE NETO, José Affonso (Coords.). Transformações do direito do trabalho: estu-
dos em homenagem ao Professor João Régis Fassbender Teixeira. Curitiba, Juruá, 2000, p. 46.
105
MELHADO, Reginaldo. Poder e sujeição. São Paulo: LTr, 2003, p. 213.
59
elemento central, pois se reafirma que, sem ela, o é possível distinguir emprego
de trabalho autônomo. Tudo indica, não obstante, que uma relação causal circu-
lar entre os vários elementos que integram a relação de emprego.
De qualquer modo, a pergunta a ser respondida é: o que caracteriza a rela-
ção de emprego? Para isso, segundo todos esses autores, é necessário saber se há
subordinação, e pouco importa nesse fenômeno o que apareceu primeiro. Para me-
lhor compreender, tome-se a metáfora da chuva proposta por MELHADO:
[...] é quase sempre possível estar correta a asserção de que choveu, se o
enunciado se baseia na premissa de que podem ver árvores e telhados
molhados, a terra úmida, as poças d’água nas ruas, o céu ainda plúmbeo.
Isto não quer dizer que as árvores molhadas e as poças sejam a chuva. São
apenas o resultado visível da precipitação atmosférica e um indício bastante
forte da sua anterior ocorrência. Por isso, a subordinação é um conceito útil
para distinguir o contrato laboral do contrato de trabalho autônomo do direito
civil. O autônomo vende uma mercadoria que, à diferença do trabalhador
empregado, passa inteiramente à esfera de domínio do adquirente; o
empregado vende uma mercadoria especial, sua própria atividade, sua
capacidade de trabalho, e é esta mercadoria que passa à esfera de
propriedade do comprador. [...]
106
A metáfora é inspirada e inspiradora, mas a conclusão é contestável. Para o
observador não importava saber o que era chuva: esse era um dado existencial do
qual já se tinha prévio conhecimento, pois sabia antecipadamente o que era chuva e
do que ela é composta, entre outras coisas, por água. O que é chuva era um saber
apropriado pelo observador. O que se pretendia era uma verdade
107
sobre um
evento, ou seja, o material a ser conhecido era fenomenológico e histórico: choveu?
Por isso, o relevante na metáfora é a pergunta sobre o evento
108
e não sobre a
substância da chuva. Para saber se choveu, o observador se serve de vários indí-
cios e o apenas de um, razão pela qual essa verdade é um processo. Apenas a
terra úmida seria insuficiente para obter uma resposta afirmativa. Ninguém ousaria
106
MELHADO, Reginaldo. Poder e sujeição. São Paulo: LTr, 2003, p. 165.
107
“Distinguir verdade e saber é essencial. É, aliás, uma distinção que existe na obra de Kant: a
distinção entre razão e entendimento. É uma distinção capital em Heidegger: a distinção entre verda-
de, aletheia, e conhecimento ou ciência, techné. Se toda verdade é uma novidade, qual é o problema
filosófico essencial da verdade? É o problema de sua aparição e de seu devir. É preciso pensar uma
verdade não como um juízo, mas como um processo real” (BADIOU, Alain. Para uma nova teoria do
sujeito: conferências brasileiras. Trad. Emerson Xavier da Silva e Gilda Sodré. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1994, p. 44).
108
Como explica BADIOU, “o evento tem como ser o desaparecer” (BADIOU, Alain. Para uma nova
teoria do sujeito: conferências brasileiras. Trad. Emerson Xavier da Silva e Gilda Sodré. Rio de Janei-
ro: Relume Dumará, 1994, p. 61). Por isso, o destino de todo evento é o vazio. A verdade é o proces-
so aberto por esse evento, processo esse que para Heidegger se traduz em “desvelamento”.
60
pensar que terra úmida e chuva sejam a mesma coisa, assim como ninguém afirma
que subordinação e relação de emprego compartilham idêntico significado, pois o
que se afirma é que a subordinação é a parte visível da relação de emprego. De
qualquer forma, a mesma água que agora cobre a terra úmida não é mera represen-
tação da chuva, mas fez parte desse fenômeno, desceu das nuvens. O observador
que viu a chuva caindo, e o observador que chegou depois de cessada a precipi-
tação, não viram a mesma coisa, mas ambos podem chegar à mesma conclusão
109
:
choveu. Parte da água que caiu, entretanto, ainda persiste sobre o solo e, se ela
não é chuva, fez parte dela. A pergunta, entretanto, não é “essa água é chuva?”,
mas, “choveu?”. Importa para essa pergunta saber se aquela água fez necessaria-
mente parte da chuva ou basta apenas ter conhecimento de que sem aquela água o
fenômeno “chuva” não teria ocorrido? O que realmente importa é a intencionalidade
da pergunta, pois o sujeito pensante, ao se perguntar se choveu, em realidade, tem
presente uma questão anterior: choverá novamente? Ou: preciso de um guarda-
chuva? Ou: ainda, poderei me molhar?
Assim também a subordinação indica a relação de emprego, e o emprego in-
dica a subordinação jurídica, e esse fenômeno o se torna compreensível por se
saber qual aparece primeiro, mas mediante análise de quais elementos (ou fenôme-
nos) são necessários para que se admita a presença dessa peculiar construção e-
conômica, social e simbólica. Quando se pergunta sobre a subordinação jurídica,
uma indagação precedente: essa relação é de emprego? Quando se pergunta
sobre a relação de emprego outra demanda precedente, carregada de intencio-
nalidade: essa relação deve ser protegida? Não uma origem causal para esse
encadeamento de perguntas.
Outro aspecto duvidoso dessa teoria é a ideia de que no trabalho autônomo
se vende uma mercadoria que passa integralmente ao domínio do adquirente, en-
quanto o empregado vende a capacidade de trabalho, e esta é que passa para a
propriedade do comprador. A ideia parece se fundar na velha distinção entre obra e
109
Embora a conclusão seja a mesma, os processos são distintos. Quem viu a chuva cair teve conta-
to com o real, ou seja, com “o encontro de um termo, de um ponto, um só, em que a potência da ver-
dade se interrompe. Um termo do qual nenhuma suposição antecipante permite forçar o julgamento”
(IDEM, ibidem, p. 71). Quem chegou depois do evento teve que forçar o julgamento (utilizar o proces-
so da verdade) por meio de suposições antecipantes.
61
serviço, conceitos que nos testes empíricos se mostram fluídos. Segundo essa teo-
ria, o autônomo venderia uma obra totalmente destacável de sua pessoa e o em-
pregado uma atividade ou serviço em caráter potencial. Vários casos concretos co-
locam em dúvida essa afirmação. Um médico autônomo, por exemplo, vende ao seu
paciente a cura ou seus esforços para obtê-la? O trabalho que esse médico realiza,
de alguma forma se transfere para o “domínio do adquirente”?
Por esses motivos, ainda que sejam instigantes, as teorias que afirmam que a
subordinação não é elemento integrante da relação de emprego acabam por não ter
nenhuma vantagem em relação à teoria da dependência pessoal, pois de alguma
forma a imobilizam ou pelo menos não oferecem uma resposta que aponte a histori-
cidade desse ente.
2.7 SUBORDINAÇÃO OBJETIVA
Para superar as dificuldades e contradições de admitir que a mera sujeição
pessoal de alguém a outrem possa ser o fundamento de uma relação jurídica, cons-
truiu-se a ideia de que existe controle e poder pelo empregador, mas esse controle é
exercido sobre o trabalho em si, e o sobre a pessoa do trabalhador. Assim, a “su-
bordinação não passa de poder jurídico que se exerce sobre a atividade”
110
. Na ten-
tativa de colaborar na construção de tal teoria, NASCIMENTO afirma que subordi-
nação é “uma situação em que se encontra o trabalhador, decorrente da limitação
contratual da autonomia da sua vontade, para o fim de transferir ao empregador o
poder de direção sobre a atividade que desempenhará”
111
.
Segundo o ponto de vista cartesiano, “temos de objetificar o mundo, o que in-
clui o nosso próprio corpo, e isso significa passar a vê-lo mecânica e funcionalmen-
te, da mesma forma que faria um observador externo não envolvido nele
112
. Assim,
110
ROMITA, Arion Sayão. Contrato de trabalho: formação e nota característica. In: GONÇALVES, Nair
Lemos e outros (coord.). Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1983, p. 240.
111
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 9ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p.
304.
112
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Trad.: Adail Ubirajara
Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2005, p. 192.
62
a ideia de que a subordinação é objetiva encontra respaldo na ética mais básica da
Modernidade e, de certa forma, é o ápice da visão mecanicista da natureza.
A crítica passível de ser feita à teoria objetiva é que é impossível separar a
pessoa (trabalhador) de sua atividade, de modo que ao se afirmar que o tomador
dos serviços controla a atividade do trabalhador, indica-se apenas que esse tomador
controla a própria pessoa do trabalhador enquanto tal. De certo modo o controle da
atividade do empregado vai além do próprio local e momento de trabalho (e da figu-
ra do “trabalhador”), pois o poder do empregador projeta-se para outros ambientes,
atingindo o próprio modo de ser do prestador nas atividades de lazer, de educação,
e na sua própria autorreferência social. Trata-se do poder simbólico referido por
BOURDIEU
113
, mecanismo estruturado e estruturante de dominação e que se carac-
teriza por sua dissimulação e transfiguração. O trabalhador passa a ser visto o
como alguém que, em parte de sua vida, presta serviços a outrem (v.g. um compo-
nente de um grupo que também presta serviços a uma instituição financeira), mas
como o prestador de serviços a outrem que mantém outras atividades fora do “seu
ambiente” (v.g. um “funcionário”
114
de uma instituição financeira que desempenha
atividades de lazer com outras pessoas de seu bairro). O poder do empregador a-
caba por moldar a própria vida do trabalhador e de sua classe.
O que se percebe, portanto, é que a teoria objetiva nada mais é do que um
olhar diferenciado, por outra perspectiva, da teoria subjetiva
115
. O ponto de vista
com que se olha o objeto, contudo, pode alterar totalmente sua compreensão. Por
esse aspecto, é possível afirmar que a teoria objetiva da subordinação representa
um sensível avanço para o entendimento (“desvelamento”) da relação de emprego.
113
“O poder simbólico, poder subordinado, é uma forma transformada, quer dizer, irreconhecível,
transfigurada e legitimada, das outras formas de poder...” (BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico.
Trad.: Fernando Tomaz. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 15).
114
A palavra “funcionário”, utilizada comumente para designar empregados de atividade administrati-
va, bem indica como a forma de trabalhar projeta-se fora do ambiente de trabalho. A distinção semân-
tica traduz uma posição social, um status que se preserva à custa de estabelecimento de níveis de
poder entre os próprios trabalhadores. Essa propulsão dialética do trabalhador por poder dentro do
sistema é em realidade uma tentativa de superar a própria sujeição a que se encontra submetido.
115
Talvez por isso alguns autores, como ROMITA, defendem o uso do “critério dúplice: conjugação de
circunstâncias de ordem subjetiva e de natureza objetiva” (ROMITA, Arion Sayão. Contrato de traba-
lho: formação e nota característica. In: GONÇALVES, Nair Lemos e outros (coord.). Curso de direito
do trabalho. São Paulo: LTr, 1983, p. 240).
63
Quando o sistema de produção industrial era hegemonicamente fordista, a
subordinação como dependência pessoal era a regra a ser aplicada, pois aparecia
escancarada em quase todos os casos. Alterado o sistema de trabalho, a correlação
de forças também se altera e os problemas conceituais da subordinação, esmae-
cidos pelas práticas sociais, afloram novamente. Apropriadas, por conseguinte, as
palavras de VILHENA, para quem “... não se tem a menor dúvida que a subordina-
ção, tal como o o jurista em seu tempo, é um desprendimento de fundo histórico
e corresponde ao pensamento jurídico dominante no modo de equacionar as forças
jurídicas conflituais de uma época”
116
.
O grande problema que parece incidir sobre a teoria objetiva é, de alguma
forma, também incorrer em certo naturalismo. O trabalho, como elemento da natu-
reza, seria passível de separação do homem, e essa “postura instrumental em rela-
ção à natureza constitui um obstáculo à sua obtenção
117
. Com efeito, o trabalho
adquire uma postura pura ou predominantemente instrumental e “envolve a objetifi-
cação da natureza, o que significa... que a vemos como uma ordem neutra das coi-
sas... Ao objetificar ou neutralizar alguma coisa, declaramos nossa separação dela,
nossa independência moral. O naturalismo neutraliza a natureza, tanto fora como
dentro de nós”
118
.
A separação naturalista é duplamente oclusiva: aparta o trabalho (natureza
exterior) da relação puramente pessoal (natureza interior), mas também desvincula
a obrigação moral (natureza interior) dos seus elementos econômicos (natureza ex-
terna). É certo que ambas as perspectivas (subordinação pessoal ou subordinação
objetiva) são internalizações típicas da Modernidade, pois ambas ainda se referem a
um sujeito cognoscente e dominador da natureza, mas os exageros da perspectiva
puramente pessoal não podem ser extirpados apenas pela visão do trabalho como
obra da natureza, destacável do homem. É necessário uma abertura para o reco-
nhecimento de uma relação causal circular entre trabalho, corpo e sujeito, na qual
116
VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro. Relação de emprego: estrutura legal e supostos. São Paulo: Sa-
raiva, 1975, p. 221.
117
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Trad.: Adail Ubirajara
Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2005, p. 491.
118
IDEM, ibidem, p. 492.
64
nenhum desses elementos pode ser destacado ou ter proeminência sem a perda do
seu mais profundo referencial simbólico.
2.8 TRABALHO E CORPO: DA CISÃO AO RECONHECIMENTO DA
AMBIVALÊNCIA
É comum que ocorram controvérsias sobre o “poder diretivo do empregador”
e os seus limites em relação ao corpo do empregado
119
, tema diretamente relacio-
nado com a referida dimensão intrínseca do conceito de subordinação jurídica. Es-
ses limites, que estão no interior da relação de emprego, refletem os conflitos da
apropriação do trabalho, dos quais se extrai a pedra fundamental de todo o Direito
do Trabalho: como se estabelece a relação entre o poder do empregador e a sujei-
ção do trabalhador e como isso é possível sem o retorno ao escravagismo.
O dilema que se põe aos estudiosos do Direito do Trabalho pode ser bem re-
sumido nas duas perguntas propostas por SUPIOT
120
, como verdadeiros enigmas
que a esfinge lançaria ao Édipo moderno:
a) o trabalho, que põe em relação a pessoa com as coisas, é coisa ou
pessoa?
b) um homem livre pode submeter-se ao poder de outro homem?
Se o trabalho é “coisa”, distinta e plenamente separável do corpo humano, is-
so significa que o trabalhador, ao aliená-lo, conserva em razão do próprio contrato
119
A respeito das controvérsias decorrentes dessa dimensão no dano moral contra o trabalhador,
inclusive suas variáveis continuativas, como assédio sexual e assédio moral: VILLATORE, Marco
Antônio; SANTOS, José Aparecido dos. Trabalho e corpo: sujeição do trabalhador e privacidade. In:
XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI, 2008, Salvador. Anais do XVII
Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI. Fundação Boiteux: Florianópolis,
2008. v. 1. p. 5.209-5.229. Considerável para da análise aqui empreendida é reprodução ou continui-
dade das reflexões ali iniciadas.
120
SUPIOT, Alain. Crítica del derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales,
1996, p. 24-25.
65
uma zona privativa, sobre a qual não é lícito o empregador investir.
121
Essa ideia,
contudo, prevalecente entre os juristas do Direito do Trabalho, acarreta outras per-
plexidades, pois indica que tudo quanto seja destacável do corpo pode ser alienado,
o que poderia significar que, por meio do contrato, seja possível alienar quaisquer
elementos vitais do ser humano. De outra parte, essa ideia exige delimitar o que
pode ser separado do corpo, ou seja, retorna ao dilema de saber qual é o conteúdo
do próprio trabalho.
O cerne de todo esse paradoxo está na ideia de que “a relação jurídica entre
o trabalhador e o capitalista, para os marxistas, é um contrato de compra e venda
cuja peculiaridade é o intercâmbio da mercadoria força de trabalho pela mercadoria
dinheiro, este sob as roupagens de salário... Na relação de troca referida o inter-
câmbio de mercadorias o operário o vende o resultado de seu trabalho; vende,
isto sim, sua capacidade de trabalho
122
. A diferença do trabalhador em relação aos
demais vendedores estaria no valor de uso de sua mercadoria. O fundamental, en-
tretanto, é que a “mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa
que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a nature-
za, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia”
123
.
Embora o valor de troca de uma mercadoria seja aferido pela “quantidade de
trabalho socialmente necessária ou o tempo de trabalho necessário para a produção
de um valor-de-uso”
124
, a inserção do trabalho como outra mercadoria não deixa de
causar perplexidade, pois o “trabalhador não se pode separar da capacidade que
aliena através do contrato”
125
. Não resolve esse paradoxo afirmar que a “mercadoria
que aliena é um corpo sem alma”
126
, pois o capitalista almeja no trabalho justamente
a alma do trabalhador, sua força de trabalho viva, ao mesmo tempo mecânica e
121
Nessa perspectiva, o contrato é ao mesmo tempo a fonte da liberdade e da sujeição do trabalha-
dor, pois ... a subordinação do empregado é jurídica, porque resulta de um contrato: nele encontra
seu fundamento e seus limites” (SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; LIMA
TEIXEIRA, João de. Instituições de direito do trabalho. 18ª. ed. São Paulo: LTr, 1999, p. 251). Esse
ponto de vista é central no pensamento prevalecente, pois indica que a fonte da própria sujeição é o
contrato e os limites estariam no próprio contrato e que sua juridicidade reside apenas nele mesmo.
122
MELHADO, Reginaldo. Poder e sujeição. São Paulo: LTr, 2003, p. 156.
123
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Trad. Reginaldo Sant’Anna. 23ª. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, v. I, p. 57.
124
IDEM, ibidem, v. I, p. 61.
125
MELHADO, Reginaldo. Poder e sujeição. São Paulo: LTr, 2003, p. 167.
126
IDEM, ibidem, p. 167.
66
criativa, só possível de ser adquirida pela ambivalência do corpo. Assim, a mercado-
ria produzida não possui alma, mas a mercadoria alienada (o trabalho) não tem ne-
nhum valor (em termos de uso) sem a criatividade, sem os valores, sem a intencio-
nalidade humana.
127
Trabalho sem alma é o realizado pelas máquinas, mas as pró-
prias quinas precisam da alma para entrarem em funcionamento, ainda que essa
“alma” possa ser traduzida em programação de linguagem computacional.
A constituição do trabalho como mercadoria foi a ficção
128
crucial e impres-
cindível para o desenvolvimento do sistema capitalista e para a construção de todos
os elementos simbólicos que caracterizam a Modernidade. A “invenção” da ideia de
mercado autorregulável, até então inexistente, coincide com a invenção do “merca-
do de trabalho”. É justamente a lógica da mercadoria, hegemônica principalmente a
partir do capitalismo industrial do culo XIX, que nos induz a pensar o trabalho co-
mo algo destacável do ser humano e que pode ser colocado em um “mercado de
trabalho”. Paulatinamente, e como típica característica do liberalismo econômico,
verificou-se uma assimilação de trabalho a “coisa”, e a prestação de serviços passa
a ser mero intercâmbio de salário e trabalho.
É simplificador, mas coerente com aquele roteiro ideológico, o entendimento
de que é possível separar a força de trabalho da pessoa do trabalhador, e que a
pessoa humana é tanto o objeto do contrato como também o seu sujeito. Por esse
mecanismo não se justifica o trabalho como mercadoria, mas ao mesmo tempo
se destaca a importância do trabalhador como pessoa, ideia muito cara ao pensa-
mento liberal. “Porém, esse reconhecimento da importância da pessoa do trabalha-
127
“Maior ou menor coordenação motora, capacidade de observação, raciocínio, criatividade etc. são
elementos da individualidade que não raro se apresentam como fundamentais para o sucesso de um
dado processo de trabalho” (LESSA, Sérgio. Mundos dos homens: trabalho e ser social. São Paulo:
Boitempo, 2002, p. 144).
128
“Todavia, o trabalho, a terra e o dinheiro obviamente não são mercadorias. O postulado de que
tudo o que é comprado e vendido tem que ser produzido para venda é enfaticamente irreal no que diz
respeito a eles. Em outras palavras, de acordo com a definição empírica de uma mercadoria, eles não
são mercadorias. Trabalho é apenas um outro nome para atividade humana que acompanha a própria
vida que, por sua vez, não é produzida para venda mas por razões inteiramente diversas, e essa ativi-
dade não pode ser destacada do resto da vida, não pode ser armazenada ou mobilizada” (POLANYI,
Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Trad.: Fanny Wrobel. 2ª. ed. Rio de Janei-
ro: Elsevier, 2000, p. 94).
67
dor conduz, frequentemente, em meio de ocultar ou negar o posto específico do
corpo humano na relação de trabalho”
129
.
A grande questão é que o trabalhador, ao fornecer o trabalho, não se despoja
de si mesmo, do seu corpo e de sua intimidade. Acompanha o trabalho, inclusive no
objeto criado pelo trabalho (mercadoria), parte da própria subjetividade do trabalha-
dor. Esse elemento próprio do trabalhador, ao mesmo tempo sujeito e sujeitado, não
imprime no trabalho nem na mercadoria produzida uma marca individual, uma vez
que a construção da mercadoria raramente, ou nunca, é produto de um só indivíduo,
mas um produto social. Por isso, a subjetividade do trabalhador se interliga durante
o trabalho com outras, de modo que a empresa é um ambiente o apenas de pro-
dução material, mas também de complexas relações sociais em que se combinam
posições pessoais divergentes, e, muitas vezes conflitantes, mas com uma finalida-
de comum: a produção de uma mercadoria.
Ao Direito e a diversos ramos das ciências sociais repugna considerar o cor-
po, ou seja, a dimensão biológica do sujeito de direito.
130
Foi justamente por isso
que, no Brasil e no restante do mundo, a legislação procurou de início denominar
essa nova forma de trabalho humano de “locação de serviços” ou “arrendamento de
serviços”, aspecto ainda mais relevante entre nós do que na Europa, em virtude da
nossa estrutura escravocrata.
Por outro prisma, se o objeto do trabalho não é uma “coisa”, mas a própria
pessoa do trabalhador, essa pessoa poderia ser considerada um servo, ou um qua-
se-escravo, ideia que também nos causa repulsa. Nessa perspectiva, como é possí-
vel admitir e resguardar espaços de liberdade e de igualdade, se aquilo que o traba-
lhador aliena na relação de trabalho é sua própria pessoa e seu próprio corpo? Por
isso, em nosso ambiente cultural, a ideia de separação do trabalho da própria pes-
soa do trabalhador não deixa de ser um projeto de liberdade e de desenvolvimento
social, visto significar de algum modo a ruptura com a visão escravagista. Por isso é
que se criou o denominado critério objetivo para aferir a existência de subordinação.
129
SUPIOT, Alain. Crítica del derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales,
1996, p. 78.
130
IDEM, ibidem, p. 72.
68
Assim, a atividade prestada o se confundiria com a pessoa do prestador do traba-
lho.
A experiência social de trabalho, entretanto, não pode ser separada da vida
de quem o presta, e por esse processo se molda a personalidade do trabalhador.
Por esse caminho e em certa medida, o poder do empregador acaba por modelar a
própria vida do trabalhador e também por incutir os seus valores. Essa moldagem
psicossocial decorre tanto do modo de produção capitalista como dos demais as-
pectos da vida social, pois os aspectos sociais, econômicos e morais estão sempre
profundamente interligados (circularidade causal) e em regra não é possível saber
qual é o condicionante original.
Por isso, “não ver que o domínio que se exerce sobre os trabalhadores é, an-
tes de tudo, um domínio físico, é desconhecer o evidente”
131
. Esse “domínio físico”,
por certo, o corresponde apenas ao sentido de “energia física”, mas quer signifi-
car que o empregador dirige a pessoa do trabalhador de tal modo que interfere em
sua personalidade e para isso utiliza o seu corpo e seu “espírito”. Esse é o aspecto
singular do Direito de Trabalho em relação às demais áreas jurídicas.
132
Ainda as-
sim, é-nos muito difícil admitir que o objeto da prestação de trabalho seja o próprio
corpo, como destaca SUPIOT:
A reticência em admiti-lo vem da ideia, hoje profundamente ancorada nas
consciências, de que o corpo não é uma coisa que possa ser objeto de
comércio e de que o direito do homem sobre seu próprio corpo é
necessariamente de natureza extrapatrimonial. Essa qualificação nem
sempre tem sido pacífica, e a relação do homem com seu próprio corpo foi
analisada como um direito real, direito de propriedade ou usufruto. Se hoje
se rechaça, em princípio, essa concepção patrimonial da relação do homem
com seu corpo, se deve a que conduz a assimilar o corpo a uma coisa, e a
uma coisa distinta da pessoa, “quando é a pessoa mesma”. O homem não é
o proprietário de seu corpo, pois “que poderia dizer-se desse sujeito de
direito que seria, ao mesmo tempo, o objeto de um direito?”.
133
Por isso, sedimentou-se a ideia de que o corpo humano está fora do comér-
cio e seria nula qualquer estipulação nesse sentido. O que é, todavia, o corpo hu-
131
SUPIOT, Alain. Crítica del derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales,
1996, p. 76.
132
“Que coisa constitui o objeto da prestação do trabalhador? Forçoso é reconhecer que se trata de
seu corpo, e que se a teoria jurídica não o diz, apenas o reconhece, o direito positivo do trabalho tem
aqui a sua pedra angular” (IDEM, ibidem, p. 74).
133
IDEM, ibidem, p. 76-77.
69
mano em si mesmo? Apenas os aspectos puramente físicos, ou incluem também os
elementos psicológicos? Como seria possível, então, um contrato de emprego, ten-
do em vista que o trabalho “sai” do corpo humano?
A separação radical entre corpo e alma é um projeto mítico da Modernida-
de
134
, mas impossível de ser inteiramente alcançado. O que é o “cogito” cartesiano
senão a cisão absoluta da alma do corpo, uma radicalidade de inspiração agostinia-
na?
135
Esse projeto é, de certo modo, uma desumanização, uma tendência idealiza-
dora de unificar os opostos, como destaca GALIMBERTI:
A história do pensamento ocidental é percorrida por inteiro pela tentativa de
atar o particular ao universal, o contingente ao necessário, o múltiplo ao
unitário, o terrestre ao celeste, o profano ao divino, o real ao ideal, o relativo
ao absoluto, resolvendo todo conflito interno da ambi-valência na equi-
valência, que depois se torna pre-valência sobre todas as trocas e ela
subordinada e por ela reguladas. Prevalência teológica com respeito aos
sujeitos particulares, monarquia com respeito às pessoas sociais, falocracia
com respeito aos objetos sexuais, logocentrismo com respeito às trocas de
signos, capitalismo com respeito aos produtos do trabalho.
136
134
Poder-se-ia objetar que essa cisão é anterior. Um exemplo é que, “para Aristóteles, a oposição
entre senhor e escravo, por um lado, e macho e fêmea por outro são da mesma espécie que a oposi-
ção entre corpo e alma, entre o que comanda e o que é comandado” (VERNANT, Jean-Pierre; NA-
QUET, Pierre-Vidal. Trabalho e escravidão na Grécia antiga. Trad. Marina Appenzeller. Campinas:
Papirus, 1989, p. 128). Sucede que essa visão dos antigos a respeito da diferença entre corpo e alma
é totalmente distinta da que se verifica na Modernidade. Para os antigos a “alma” é uma racionalidade
externa, ligada à própria natureza. Assim, tanto a dicotomia corpo/alma como a macho/fêmea estava
na ordem do ser, das coisas como são, pois não havia a ideia de “interioridade” nem a dicotomia
consciência/realidade objetiva. Na Idade Média “corpo e alma são indissociáveis” (GOLF, Jacques Le.
Il corpo nel Medioevo. Trad. Fausta Cataldi Villari. Bari: Laterza, 2007, 22). Ao mesmo tempo em que
é veículo de vícios e pecados, o corpo é instrumento de salvação. Por isso, a renúncia aos prazeres
do corpo não representava uma cisão com a alma, mas, ao contrário, o uso do corpo para a sua sal-
vação. É Descartes quem “situa as fontes morais dentro de nós” (TAYLOR, Charles. As fontes do self:
a construção da identidade moderna. Trad.: Adail Ubirajara Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed.
São Paulo: Loyola, 2005, p. 189) e por esse caminho a alma cartesiana “descobre e afirma sua natu-
reza imaterial objetificando o corpo” (IDEM, ibidem, p. 193). Ainda que à primeira vista pareça parado-
xal, é a internalização da alma (fontes morais) que a torna passível de ser objetivada, pois ela se cor-
porifica e, assim, pode ser destacada do restante da materialidade. Isso foi experimentado na Mo-
dernidade.
135
“Descartes introduz na interioridade agostiniana uma mudança radical, dando-lhe uma direção
inteiramente nova, que também marcou época. Poderíamos descrever essa mudança dizendo que
Descartes situa as fontes morais dentro de nós” (IDEM, ibidem, p. 189).
136
GALIMBERTI, Umberto. Il corpo. 17ª. ed. Milano: Feltrinelli, 2007, p. 20 (tradução livre do autor).
Texto original: “La storia del pensiero occidentale è percorsa per intero dal tentativo di annodare il
particolare all’universale, il contingente al necessario, il molteplice all’universale, il contingente al
necessario, il molteplice all’unitario, il terrestre al celeste, il profano al divino, il reale all’ideale, il relativo
all’assoluto, risolvendo ogni conflitto interno all’ambi-valenza nell’equi-valenza, che poi diviene pre-
valenza su tutti gli scambi a essa subordinati e da essa regolati. Prevalenza teologica rispetto ai
soggetti particolari, monarchia rispetto alle persone sociali, fallocrazia rispetto agli oggetti sessuali,
logocentrismo rispetto agli scambi dei segni, capitalismo rispetto ai prodotti del lavoro”.
70
Sucede, entretanto, que “natureza e cultura não são extremos de um itinerário
que a humanidade jamais percorreu, mas simplesmente dois nomes aqui emprega-
dos para designar a ambivalência com a qual o corpo se exprimia nas sociedades
arcaicas e a equivalência à qual foi reduzida nas nossas sociedades pelos digos
que as governam e pelo glossário das suas inscrições”
137
. O corpo natural e a pro-
dução do homem, portanto, são elementos de um mesmo itinerário, inseparáveis.
Os códigos (regras) de cada ciência tendem a impor uma estrutura bivalente
(princípio da o-contradição), de modo a conformar o corpo com a lógica e a estru-
tura dos vários saberes: “como organismo a ser curado, como força de trabalho para
empregar, como carne a redimir, como inconsciente a libertar, como suporte de sig-
nos a transmitir”
138
. Por ser um “significativo flutuante”, entretanto, o “corpo con-
-funde os códigos com aquela operação simbólica que consiste no com-por (sym-
bállein) aquelas disjunções nas quais cada código se articula quando divide o ver-
dadeiro e o falso, o bem e o mal, o belo e o feio, Deus e o mundo, o espírito e a ma-
téria, obtendo aquela bivalência onde o positivo e o negativo se refletem, produzindo
aquela realidade imaginária da qual trazem a sua origem todas as ‘especula-
ções’”
139
. Por isso, o corpo recusa-se a oferecer-se “’exclusivamente’, como força de
trabalho”
140
. O trabalho é corpo, mas este é mais que apenas a força física ou inte-
lectual alienada para o empregador.
Isso pode ser confirmado pelo aspecto de o controle da atividade do empre-
gado ir além do local e do momento de trabalho, uma vez que o poder do emprega-
dor projeta-se para outros ambientes, atingindo o próprio modo de ser do prestador,
137
GALIMBERTI, Umberto. Il corpo. 17ª. ed. Milano: Feltrinelli, 2007, p. 11, p. 11 (tradução do autor).
Texto original: “Natura e cultura non sono gli estremi di un itinerário Che l’uminitá non ha mai percorso,
ma semplicemente due nomi che impieghiamo per designare l’ambivalenza con cui il corpo si
esprimeva nelle nostre società arcaiche e l’equivalenza a cui oggi è stato ridotto nelle nostre società
dai codici che le governano e dal corredo delle loro iscrizioni”.
138
IDEM, ibidem, p. 11 (tradução do autor de parte do texto). Texto original: “... Il corpo é stato vissuto,
in conformità alla logica e alla struttura dei vari saperi, como organismo da sanare, como forza-lavoro
da impiegare, como carne da redimere, como inconscio da liberare, comoe supporto di segni da
trasmettere”.
139
IDEM, ibidem, p. 11 (tradução e destaques do autor). Texto original: “Come ‘significato fluttuante’ Il
corpo con-fonde i codici con quella operazione simbolica che consiste nel com-porre (sym-bállein)
quelle disgiunzioni in cui ogni codice si articola quando divide il vero e il falso, il bene e il male, il bello e
il brutto, Dio e il mondo, lo spirito e la materia, ottenendo quella bivalenza dove il positivo e il negativo
si rispecchiano, producendo quella realtà immaginaria da cui traggono la loro origine tutte le
‘speculazioni’”.
140
IDEM, ibidem, p. 21.
71
inclusive nas atividades familiares, de lazer, de educação, ou seja, na sua própria
autorreferência social. Esse é um efeito direto da “disciplina” do trabalho, visto que
para a estruturação do regime capitalista não basta cada um colocar sua força de
trabalho “à disposição” de outrem (mercado), mas é necessário um modo específico
de prestar esse trabalho e para isso é necessário que a subjetividade se adapte às
necessidades do “mercado”.
Como foi referido, a contraposição entre sujeito e objeto é típica da Moderni-
dade. O “sentido moderno é aquele em que sujeito e objeto são entidades separá-
veis”
141
. Essa é a base da disciplina, componente indispensável da Modernidade,
pois é a partir dessa contraposição que se alcança o controle sobre a natureza e, ao
mesmo tempo, o controle sobre si mesmo. Como bem destaca Charles TAYLOR:
O desprendimento moderno pede... que nos separemos de nós mesmos por
meio da auto-objetivação. Essa é uma operação que só pode se realizar na
perspectiva da primeira pessoa. [...] toda a visão (estranha e questionável,
em última instância) de mim mesmo como natureza objetificada que essa
perspectiva moderna tornou familiar para nós se torna possível por meio
do tipo especial de postura reflexiva que estou chamando de
desprendimento. Temos de ser ensinados (e intimidados) a fazer isso, não
apenas, claro está, absorvendo doutrinas, mas muito mais por meio de
todas as disciplinas que têm sido inseparáveis de nosso estilo de vida
moderno, as disciplinas do autocontrole nos campos econômico, moral e
sexual.
142
O problema é que essa construção moral da interioridade e da disciplina entra
em choque com outras concepções morais do próprio homem, entre as quais a idea-
lização da liberdade individual, difícil de conciliar com a subordinação pelo trabalho.
Com efeito, “o trabalho é o homem mesmo, em seu corpo e em seu espírito”
143
, e
não resolve o problema afirmar que o objeto do contrato de emprego é sua energia,
porquanto isso “suporia que esta pode separar-se do próprio corpo, separação ine-
rente à noção de arrendamento de serviços...”
144
. Foi justamente essa impossibili-
dade de separar a energia do trabalho da pessoa do trabalhador que tornou anacrô-
nicas as designações “locação de serviços” e “arrendamento de serviços” e fez sur-
gir o conceito de “contrato de trabalho” (ou de emprego, termo mais preciso) como
141
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Trad.: Adail Ubirajara
Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2005, p. 245.
142
IDEM, ibidem, p. 228.
143
RIPERT, Georges. Les forces créatrices du droit. Paris: LGDJ, 1995, p. 276, apud SUPIOT, Alain.
Crítica del derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales, 1996, p. 80.
144
SUPIOT, Alain. Op. cit., 1996, p. 79.
72
nova modalidade jurídica, com a finalidade de deixar mais evidente a peculiaridade
e a originalidade dessa relação e afirmar a liberdade do trabalhador.
O defeito das análises que procuram separar o corpo do trabalho resulta de
não enfrentarem a antinomia entre o postulado da natureza contratual da relação de
emprego e o postulado do caráter não patrimonial do corpo humano, ambos previs-
tos no ordenamento jurídico, os quais devem igualmente ser respeitados.
145
na
relação de trabalho uma tensão dialética muito profunda e que se relaciona com
aspectos inconscientes do ser humano: a luta entre a liberdade e a necessidade,
ambas em relação direta entre espírito e corpo. A dificuldade reside, justamente,
em, de um lado, preservar o contrato, expressão de liberdade, mas também meio de
aprisionamento, e, de outro, garantir as necessidades e, ao mesmo tempo, os direi-
tos extrapatrimoniais do corpo humano.
A relação dialética entre trabalho e corpo assume, no Brasil, marcantes pecu-
liaridades em razão de nossa origem colonial e da forma como entre s nasceu e
se desenvolveu o trabalho livre, aspecto a ser analisado mais adiante. A nossa soci-
edade colonial foi construída no isolamento da população, a qual ficava submetida
ao poder dos proprietários rurais, sem instituições sociais intermediárias (estatais ou
sociais) que servissem de freio. Esse isolamento conduzia a que o poder os proprie-
tários fosse puramente pessoal e, como descreve SOUZA, gerou um:
[...] conceito limite de sociedade, onde a ausência de instituições
intermediárias faz com que o elemento familístico seja seu componente
principal. Dporque o drama específico dessa forma societária passa a ser
descrito a partir de categorias social-psicológicas cuja gênese aponta para
as relações sociais ditas primárias. É precisamente como uma sociedade
constitutiva e estruturalmente sadomasoquista, no sentido de uma patologia
social específica, onde a dor alheia, o não-reconhecimento da alteridade a
perversão do prazer transformam-se em objetivo máximo das relações
interpessoais [...].
146
Em uma sociedade de tendência social sadomasoquista, em razão do modo
como foi instituída, a criação de uma alteridade no trabalho e para o trabalho o é
tarefa das mais fáceis e exige a construção de símbolos que possam ser apreendi-
145
SUPIOT, Alain. Crítica del derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales,
1996, p. 80.
146
SOUZA, Jessé. Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira. In: SOUZA, Jessé (org.). De-
mocracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora UnB, 2001,
p. 301.
73
dos e assumidos como ruptura com uma ordem, tendente à desconsideração da
pessoa e do corpo do outro.
Assim, a separação do trabalho do corpo do trabalhador é apenas uma com-
preensível ficção, por meio da qual se busca preservar a essência do pensamento
liberal, nunca entre nós experimentado em sua radicalidade, pois seria inaceitável
paradoxo que, por meio do contrato, o trabalhador livre se tornasse (livremente) es-
cravo. Há que se superar essa visão, entretanto, pela criação de um novo “sujeito”.
Com efeito, a afirmação de que o trabalho se separa do corpo se torna para-
doxal por assumir também a ideia de uma prestação de serviços “pessoal”, ou seja,
de ser o trabalho realizado pela “pessoa”, o que anula todas as vantagens da ficção
do critério objetivo da subordinação. Por isso, SUPIOT destaca:
A pessoa física constitui o objeto da prestação do trabalho. O corpo é o
lugar, a passagem obrigatória da realização das obrigações do trabalhador;
é a própria coisa que forma a matéria do contrato. Falar da relação pessoal
da relação de trabalho é, por sua vez, ambíguo, perigoso e insuficiente.
Ambíguo, porque o caráter pessoal do compromisso designa em regra, no
direito das obrigações, o caráter intuitu personae da relação contratual, e
não é esse caráter que aqui se quer designar. Perigoso, porque deixa
entender que o objeto da prestação é a inteira pessoa, submetida a uma
complexa reificação, que a análise contratual tem justamente o mérito de
limitar. A ideia do trabalhador livre” que animava os textos revolucionários
cobria-se de ilusões, mas não se pode desconhecer seu único e verdadeiro
mérito: eliminar a escravidão e a servidão, ao reconhecer ao trabalhador a
capacidade jurídica de dispor de suas próprias forças. Insuficiente, enfim,
porque todo contrato compromete a pessoa dos contratantes, ao ser a lei
que se dão a si mesmos. E, em particular, todos os contratos que têm por
objeto uma força humana, implicam um forte compromisso da pessoa que
presta a atividade. [...]
147
Esse paradoxo não se resolve pela distinção entre trabalho físico e intelectu-
al, por meio da qual se imagina ficar o espaço de liberdade na parte intelectual.
Mesmo o trabalho intelectual envolve dispêndio de energia física, inclusive sujeito a
fatiga, deterioração e patologias. Assim, por corpo humano como objeto da relação
de emprego que se considerarem não as energias físicas como também as
psíquicas, a unidade material e psicológica do trabalhador. De outra parte, é eviden-
te que ao contratar o trabalho o empregador não obtém apenas um objeto físico
destacável de quem presta o serviço. O sorriso solícito dos vendedores dos estabe-
147
SUPIOT, Alain. Crítica del derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales,
1996, p. 80-81.
74
lecimentos comerciais e o ar solidariamente triste dos empregados de empresas
funerárias são aspectos da relação de emprego indicativos de que a empresa cria
regras de “normalização do comportamento físico” dos trabalhadores
148
e isso tam-
bém é objeto da relação de trabalho.
148
SUPIOT, Alain. Crítica del derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales,
1996, p. 75.
75
3 BREVE PERCURSO HISTÓRICO DA SUBORDINAÇÃO
Não me iludo, tudo permanecerá do jeito que tem sido,
“trans-correndo, trans-formando”
Tempo e espaço navegando todos os sentidos
Pães de Açúcar, Corcovados, fustigados pela chuva e pelo eterno vento
Água mole, pedra dura, tanto bate que
não restará nem pensamento
Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei, transformai as velhas formas do viver
Ensinai, ó Pai, o que eu ainda não sei,
mãe senhora do Perpétuo “so-correi”
Pensamento, mesmo fundamento singular
Do ser humano, de um momento para o outro
Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos
Mães zelosas, pais corujas
Vejam como as águas de repente ficam sujas
Não se iludam, não me iludo
Tudo agora mesmo pode estar por um segundo
(Tempo rei, música de Gilberto Gil).
3.1 ESCRAVIDÃO E TRABALHO NA ANTIGUIDADE E NA IDADE
MÉDIA
Terra e trabalho sempre estiveram na base da estruturação social dos povos.
É possível afirmar que os povos se diferenciaram pelo modo como distribuíam inter-
namente a terra e os “ofícios”. A Modernidade apenas radicaliza o problema da es-
trutura do trabalho por meio de uma modificação inigualável dos meios de produção.
Assim, falar de trabalho na Antiguidade e na Idade Média seria tarefa desco-
munal, pois importaria em traçar uma história dos povos. O objetivo, aqui, entretan-
to, é apenas o de apontar algumas noções sobre o trabalho, principalmente para
distinguir o trabalho escravo moderno dos sistemas que o precederam. Isso se torna
necessário pela insistente comparação que se faz com o passado e pela incorreta
afirmação de que sempre houve a subordinação do homem pelo homem, ou seja,
existir uma justificação histórica para a dominação e para a permanência de domi-
nados (precarizados).
De outra parte, a história das cidades-estado gregas é apenas uma parte di-
minuta da história universal. Estudar o trabalho entre chineses ou entre as popula-
ções indígenas talvez refletisse algo mais significativo em termos de curso histórico,
76
pois são comunidades de maior durabilidade e mais representativas das possibilida-
des humanas. Sucede, entretanto, que o mundo greco-romano foi a moldura simbó-
lica para a qual o europeu vitorioso, nas guerras de ocupação, voltou-se a partir do
século XV. Foi a partir dos restos imaginários do mundo greco-romano que se cons-
truíram a estética e a moral do ponto de vista vitorioso da Modernidade, nas quais
estamos irremediavelmente inseridos. É necessário essa advertência como forma
de evitar a ilusão imposta pelo Iluminismo sobre o mundo greco-romano, como se
este fosse fundador e limitador de todas as hipóteses de trabalho humano.
Ao analisar a estrutura social na Antiguidade e na Idade Média observa-se
claramente que, em regra, os incluídos são os que m acesso à terra, e os excluí-
dos o os que têm acesso ao próprio trabalho. A própria ideia de “cidade grega”
é inadequada para se referir a essas comunidades, pois eram muito mais “um terri-
tório agrícola composto por uma ou mais planícies de variada extensão, ocupado e
explorado por populações essencialmente camponesas”
149
. Esse tipo de sociedade
se estabeleceu a partir do desenvolvimento da ideia de propriedade privada da terra
e com o rápido desaparecimento das propriedades comuns adotadas pelo clã ou
pelas famílias patriarcais, elemento constitutivo de todo o respectivo sistema social,
mas essa noção de propriedade privada da terra era totalmente distinta daquela que
passou a existir na Modernidade, visto que somente nessa última fase surgiu a ideia
de “mercado de terras”
150
.
A inclusão dos cidadãos exigia o fechamento da cidade-estado para os não-
cidadãos. Esse fechamento não era apenas econômico, mas, acima de tudo, simbó-
lico, pois “pertencer à comunidade era participar de todo um ciclo próprio da vida
cotidiana, com seus ritos, costumes, regras, festividades, crenças e relações pesso-
ais”
151
. A noção de indivíduo nelas existente, portanto, era peculiar, pois o indivíduo
se tornava uma possibilidade por estar inserido na comunidade. “Indivíduo e co-
149
GUARINELLO, Norberto Luiz. Cidades-Estado na Antiguidade Clássica. In: PINSKY, Jaime;
PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. 4ª. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 32.
150
“Os homens, frequentes vezes, fizeram de seu semelhante, na figura do escravo, a primitiva forma
dinheiro, mas nunca utilizaram terras para esse fim. Essa ideia podia aparecer numa sociedade
burguesa já desenvolvida. Data do último terço do século XVII, e só se tentou concretizá-la, em escala
nacional, um século mais tarde, na revolução burguesa da França” (MARX, Karl. O capital: crítica da
economia política. Trad. Reginaldo Sant’Anna. 23ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, v.
I, p. 113).
151
GUARINELLO, Norberto Luiz. Op. cit., p. 35.
77
munidade, portanto, não se negavam reciprocamente na cidade-estado antiga, mas
se integravam numa relação dialética”
152
.
O sistema de exclusão dos não-cidadãos, de outra parte, não era tão unifor-
me como em geral se supõe. O trabalho na Antiguidade não era destinado apenas
aos escravos, e mesmo a escravidão comportou gradações e diferenças substanci-
ais de uma época para outra, de uma sociedade para outra.
153
Tudo está a indicar
que aquilo que hoje nós analisamos como algo relativamente homogêneo (trabalho)
na Grécia Antiga é um conjunto de “aspectos múltiplos e ade oposições entre ati-
vidades”
154
. O trabalho em si o era ordenador da realidade social nem diferencia-
va os seus membros, mas sim os ofícios ocupados, tanto é verdade que não havia
em grego uma palavra específica para designar “trabalho
155
.
O que era uniforme em todas as sociedades antigas era a “naturalização”
156
do trabalho servil, pois nem senhores nem escravos contestavam sua legitimidade:
a escravidão estava na ordem natural das coisas, determinada pelos deuses, o que
significa dizer que havia fortíssima normalização do capital simbólico nela envolvido.
A divisão social do trabalho o era, entretanto, tão clara e imutável como hoje a
muitos parece, e a escravidão era um elemento constitutivo da sociedade antiga,
pois era um contraponto necessário da visão simbólica da liberdade.
157
152
GUARINELLO, Norberto Luiz. Cidades-Estado na Antiguidade Clássica. In: PINSKY, Jaime;
PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. 4ª. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 33.
153
Além disso, “nem todas as sociedades antigas clássicas podem ser chamadas indistintamente de
escravagistas” (VERNANT, Jean-Pierre; NAQUET, Pierre-Vidal. Trabalho e escravidão na Grécia an-
tiga. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1989, p. 67).
154
IDEM, ibidem, p. 11.
155
IDEM, ibidem, p. 10.
156
Cabe destacar novamente que por naturalização pretende-se indicar o processo que não permite
seja questionada sua legitimidade. Para os gregos, “longe de estar associada ao conceito de merca-
doria e ao estatuto de bárbaro, aparecia como uma espécie de catástrofe individual que podia amea-
çar a todos, gregos ou bárbaros” (IDEM, ibidem, p. 104-105). outro significado igualmente válido
para a “naturalização” do trabalho. Mesmo a atividade do artesão, menos natural que a atividade guer-
reira e religiosa da agricultura, não era da “ordem dessa ‘fabricação humana’, onde o homem, ao to-
mar consciência de sua oposição com a natureza, propõe-se a humanizá-la por artifícios indefinida-
mente aperfeiçoados. Em sua produção, ao contrário, o artesão sua própria atividade ‘naturalizar-
se’” (IDEM, ibidem, p. 29). Não havia, portanto, em termos psicológicos, a ideia de oposição entre
homem e natureza, mas apenas a integração do homem nela.
157
“Homem livre era quem não vivia sob o domínio nem trabalhava para outrem; era quem vivia, de
preferência, em seu lote de terra herdado, com seus altares e templos herdados. A criação desse tipo
de homem livre, num mundo pré-industrial, de baixa tecnologia, levou ao estabelecimento de uma
sociedade escravista. Não havia uma alternativa realista disponível“ (FINLEY, Moses I. Escravidão
antiga e ideologia moderna. Trad. Norberto Luiz Guarinello. Rio de Janeiro: Graal, 1991, p. 93).
78
Em realidade, embora o grosso do trabalho pertencesse aos escravos, havia
pequenos proprietários de terra, os quais viviam no limiar da subsistência, bem co-
mo camponeses sem terra que alugavam sua força de trabalho, artesãos e comerci-
antes de posição ambígua na comunidade. A instabilidade do status social era um
elemento característico do mundo antigo, pois a ruína do proprietário poderia trans-
formá-lo em escravo, e o escravo eventualmente poderia se libertar, embora fosse
muito mais comum a mobilidade social “para baixo”, ou seja, o empobrecimento de
parte daqueles que anteriormente possuíam. Isso, evidentemente, foi causa de inú-
meros conflitos, a colocarem essas sociedades em permanente risco de extinção.
Havia considerável contingente de escravos, os quais chegaram a represen-
tar um terço da população de algumas cidades gregas ou até mais, e desempenha-
vam atividades das mais variadas, agrícolas ou artesanais, e monopolizavam o tra-
balho doméstico, mas também havia uma quantidade incerta, embora não muito
grande, de trabalhadores que, hoje, poderíamos enquadrar como “livres”. Esse gru-
po de trabalhadores não escravizados, mas de alguma forma sujeitados, era com-
posto em geral por estrangeiros ou grupos étnicos submetidos, os quais se integra-
vam em alguma parte da vida econômica, mas o faziam parte da população cida-
dã. O certo é que, “tanto na sociedade homérica quanto na micênica, existe toda
uma gama de estatutos entre o homem livre e o escravo”
158
. Assim, a escravidão
não é um termo unívoco e, em determinadas circunstâncias, o trabalhador agrícola
livre, mas sem terra, poderia em termos econômicos ser mais miserável que o es-
cravo.
158
VERNANT, Jean-Pierre; NAQUET, Pierre-Vidal. Trabalho e escravidão na Grécia antiga. Trad.
Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1989, p. 88. Essa conclusão não se aplica apenas a Atenas,
mas também a outras cidades gregas e antigas. Assim, por exemplo, “a sociedade espartana caracte-
riza-se por uma gama de estatutos sem que se possa definir muito claramente onde começa a liber-
dade e onde acaba a escravidão, pois, mesmo os ‘iguais’, no fundo, não são homens livres no sentido
ateniense do termo. Com muitas nuances isso se aplica a outras sociedades rurais, principalmente a
sociedade cretense” (IDEM, ibidem, p. 91).
79
A fonte principal de poder entre os cidadãos estava na atividade guerreira.
159
As “cidades-estado eram comunidades guerreiras, organizadas para a guerra, em
luta permanente com seus vizinhos próximos e distantes”
160
. O domínio do espaço
público competia aos “senhores da guerra”, aos melhores entre os cidadãos, os
quais detinham o controle dos ritos religiosos e da lei. Isso é compreensível em um
mundo competitivo, fragmentado e guerreiro, em que grande parte dos vínculos foi
estabelecida para fins de sobrevivência e no qual os conflitos com outros povos era
parte constituinte do imaginário e da realidade. Por isso, os vínculos com os demais
membros da comunidade eram de dependência pessoal: a mulher submetida ao
homem, os jovens submetidos aos velhos e os proletários, aqueles cuja propriedade
se resumia à prole, submetidos aos proprietários de terra. Evidentemente, isso acar-
retava não somente conflitos de natureza econômica, mas principalmente de busca
de reconhecimento da dignidade, de preservação da honra da pessoa ou de deter-
minado grupo.
A arte de guerra, em muitos aspectos, foi estruturante das sociedades primiti-
vas e tudo indica que até as sociedades modernas são profundamente influenciadas
pela tecnologia da guerra, inclusive na criação dos todos de trabalho nas bri-
cas. Não havia, entretanto, estabilidade nesse poder proveniente da glória militar. A
aristocracia do mundo grego antigo prevaleceu sobre os demais grupos justamente
em função do domínio de partes significativas da técnica militar. No período em que
os combates eram quase que um confronto direto e individual entre os guerreiros de
dois grupos, os que se destacavam puderam impor no exército regras que lhes eram
mais favoráveis, como as de que os armamentos fossem adquiridos de acordo com
o poder aquisitivo de cada membro do Exército e de que o butim fosse dividido de
acordo com a eficiência de cada um nos campos de batalha. Nessa fase, a guerra
não era uma arte coletiva, mas uma atividade grupal. Obviamente, os que dispu-
159
Virilidade guerreira, defesa da terra e atividade agrícola estão entrelaçadas no mundo antigo. “Em
antítese com o trabalho do artesão, a agricultura vem agora associar-se à atividade guerreira para
definir o campo de ocupações viris, de trabalhos εργα, onde não se teme o cansaço ou o esforço, o
πονος (VERNANT, Jean-Pierre; NAQUET, Pierre-Vidal. Trabalho e escravidão na Grécia antiga. Trad.
Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1989, p. 15). Tanto a atividade guerreira como a agrícola
permanecem integradas a uma representação religiosa. Daí ser impróprio falar em “trabalho agrícola”
nessa época, com o sentido de transformação da natureza (IDEM, ibidem, p. 18).
160
GUARINELLO, Norberto Luiz. Cidades-Estado na Antiguidade Clássica. In: PINSKY, Jaime;
PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. 4ª. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 38.
80
nham dos melhores armamentos e tinham acesso a equipamentos mais eficientes,
como os cavalos, tinham maior eficiência e ficavam com a maior parte do espólio de
guerra. Isso indica que a ética do guerreiro e a estrutura econômica eram mutua-
mente referentes, e a estrutura social era moldada por essa dupla face. A aristocra-
cia monopolizava as estruturas religiosas, sociais, políticas, econômicas e militares,
e é difícil apontar uma origem exata desse domínio, mas certamente o monopólio da
guerra era um elemento importante.
Os demais grupos sociais ficavam com os piores armamentos e, por conse-
guinte, tinham menor eficiência e ficavam com a menor parte do butim. A evolução
da arte de guerra contribuía em vários momentos para alterar o conjunto de forças
da sociedade. Um exemplo disso foi a “revolução hoplítica” ocorrida em Atenas por
volta de 700 a.C. Essa revolução também foi de dupla face, pois Atenas passa por
forte tensão social e por modificação significativa na estrutura econômica. Uma valo-
rização dos bens veis (gado, sementes etc.) e um aumento da circulação de ri-
quezas atribuíram inusitada importância aos comerciantes, enquanto os aristocratas
perdiam força econômica devido à desvalorização da terra. Ao mesmo tempo, o de-
senvolvimento do uso do ferro propiciou acesso a armas de guerra para uma parce-
la muito mais ampla da população. Com isso, e também porque houve redução sig-
nificativa do preço de vários instrumentos, os integrantes do exército
161
que haviam
enriquecido pelo comércio, puderam adquirir melhores armamentos como a panó-
plia, indumentária composta por um elmo, um escudo, uma espada, uma lança, gre-
vas (proteção do joelho ao pé) e couraça.
162
O uso da panóplia fez surgir a infantaria hoplita, que começou a se destacar
nos campos de batalha até garantir, graças à sua crescente eficiência, a maior parte
161
O exército ateniense era dividido basicamente em três classes (apud DURANT, Will. A história da
civilização: nossa herança clássica. Trad.: Mamede de Souza Freitas. Rio de Janeiro: Record, 1966,
p. 88): os hippes (os que possuíam cavalos), os zeugitai (que possuíam uma junta de bois e eram
aptos a lutar como hoplitas, ou infantaria pesada) e os thetes (mercenários que combatiam na infanta-
ria ligeira). Estes últimos não gozavam de cidadania.
162
“O que se passou foi o equivalente a um clássico movimento de progresso. O aumento do metal
disponível e da habilidade para o trabalhar possibilitaram que os não aristocratas adquirissem as ar-
mas tradicionais da aristocracia. Mas não precisavam delas para desafiar os seus antigos senhores,
nem esse equipamento lhes seria de grande ajuda se permanecessem sozinhos. a coesão, a von-
tade de lutarem juntos sabendo que tudo dependia da arte e da bravura do vizinho os impediu de se-
rem corridos como lebres fugitivas (O’CONNELL, Robert L. História da guerra: armas e homens, uma
história da guerra, do armamento e da agressão. Trad. Telma Costa. Lisboa: Teorema, 1995, p. 64).
81
do butim e, por esse meio, reverteu a situação inicial de monopólio aristocrático. A
maior eficiência da infantaria hoplita obrigou a aristocracia a rever o monopólio que
esta detinha nas demais estruturas sociais, inclusive religiosas. Isso, associado aos
crescentes conflitos entre proprietários de terras e comerciantes, foi o que acarretou
a reforma de Drácon na estrutura jurídica da pólis.
163
O que é interessante nesse exemplo é observar as conexões estreitas que
marcaram mudanças econômicas, técnicas (de guerra) e sociais. A técnica de luta
da infantaria hoplita, formada em colunas dispostas em falanges, foi hegemônica
durante vários séculos e configurava uma peculiar luta corpo-a-corpo. As lanças e-
ram sustentadas acima dos ombros e suas pontas se projetavam para fora da for-
mação e procuravam golpear o adversário na altura do peito. A infantaria avançava
sobre o inimigo como um bloco monolítico com pontas. Os homens posicionados na
parte de trás empurravam os que estavam na frente e golpeavam sobre eles. As
batalhas eram curtas e aterrorizantes, mas exigiam trabalho coletivo, treinamento e
uma inusitada disciplina.
164
Assim, a participação em uma infantaria hoplita não era
atividade acidental do guerreiro, mas um estilo de vida. Mais que isso: essa forma
de treinamento passava a ser constitutiva de um modo de estar no mundo e foi fun-
damental para a consolidação da cidade-estado. O próprio conceito de vitória se
altera, pois se antes vitorioso era o que exterminava as chefias dos inimigos, com o
sistema coletivo das falanges passa a ser o grupo militar que consegue quebrar a
linha do inimigo, tudo engendrado como um ritual religioso.
165
163
WIKIPÉDIA. Desenvolvido pela Wikimedia Foundation. Apresenta conteúdo enciclopédico. Dispo-
nível em: <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Revolu%C3%A7%C3%A3o_Hopl%C3% ADti-
ca&oldid=5572567>. Acesso em: 29 de janeiro de 2009.
164
“No caso dos Gregos, a tática da falange e o equipamento hoplita, bem como a política de partici-
pação direta, reforçaram o sistema de cidade-Estado e a localização do poder, pois, na prática, o peso
dos fardamentos hoplitas, a par da tendência para desviar para a direita, para o lado não escudado,
obrigava a que as falanges tivessem que se defrontar no solo em circunstâncias assaz previsíveis,
minimizando a manobra e transformando a contenda num gigantesco jogo do empurrão. Tudo se
reduzia a um esforço supremo. A equipe cuja linha acabasse por romper era derrotada e a batalhava
terminava, pois, para fugir, o lado vencido tinha apenas que largar parte ou a totalidade da sua prote-
ção e os seus perseguidores, a não ser que se dispusessem a fazer o mesmo, não conseguiriam
apanhá-los” (O’CONNELL, Robert L. História da guerra: armas e homens, uma história da guerra, do
armamento e da agressão. Trad. Telma Costa. Lisboa: Teorema, 1995, p. 65)
165
“Mas, uma vez rompida a linha, forçada a ordem de batalha, o vencido foge e o vencedor não pro-
cura persegui-lo. Senhor do campo de luta, tem deveres mais urgentes do que a imediata exploração
militar do seu sucesso: agradecer aos deuses que lhe deram a vitória e prestar aos seus mortos as
últimas honras” (GIORDANI, Mário Curtis. História da Grécia. 3
a
. ed. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 209).
82
A introdução da infantaria também foi de extrema importância em outras so-
ciedades, como a romana. Antes da infantaria “os patrícios desempenhavam papel
militar único e detinham o grosso das presas de guerra”
166
. Assim como ocorria na
Grécia, a sociedade romana era composta por uma complexa e mutável gama soci-
al. Além dos patrícios, que formavam a oligarquia de proprietários de terras, havia os
plebeus, termo que englobava tanto camponeses livres de poucas posses, como
artesãos urbanos e comerciantes. Havia ainda os “clientes”, ou seja, os que obede-
ciam a um patrono (patrício), de quem recebiam terra e proteção e a quem estavam
vinculados por laços de fidelidade. Como explica FUNARI:
os escravos, até o século III a.C., eram basicamente domésticos.
Integravam o conjunto de propriedade do patriarca e faziam parte da família.
A pobreza de camponeses e trabalhadores urbanos levava-os à escravidão.
Assim, embora houvesse rigidez na sociedade romana, os pobres podiam
mudar de posição. É verdade que quase sempre para situação pior de
livre para escravo ou de plebeu para cliente. É nesse contexto que se pode
entender a grande luta entre patrícios e plebeus durante a República
romana.
167
Essa luta acabou por trazer importantes avanços para a cidadania, como a
Lei Poetélia Papíria, de 326 a.C., que acabou com a servidão por dívida.
168
O século
III a.C. consolidou vários avanços para a plebe romana, mas os conflitos sociais
continuaram, transferidos agora para as relações entre romanos e o-romanos ali-
ados, entre senhores e escravos.
Um aspecto importante na relação entre senhor e escravo, na Antiguidade, é
que a respectiva mão-de-obra não era utilizada como um sistema de produção, tal
como se deu sob o capitalismo.
169
Seu principal uso era doméstico, mas também
sucedia de ser utilizada em pequenas manufaturas urbanas ou em trabalhos agríco-
las, mas sem que tais atividades constituíssem um mercado. Acima de tudo, essa
escravidão, na maior parte das vezes, era de concidadãos, principalmente em razão
de dívidas não pagas. Com a expansão territorial do Império Romano e como con-
166
FUNARI, Pedro Paulo. A cidadania entre os romanos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla
Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. 4ª. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 51.
167
IDEM, ibidem, p. 51-52.
168
IDEM, ibidem, p. 54.
169
Embora o trabalho servil na Antiguidade fosse necessário para a preservação do respectivo siste-
ma social, não “há porém como admitir que essa necessidade seja de natureza ‘econômica’, ou, mais
precisamente, que ela derive das próprias condições de produção” (CASTRO, Antônio Barros de. A
economia política, o capitalismo e a escravidão. In: LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Modos de
produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 76-77).
83
sequência da Lei Poetélia Papíria, contudo, houve uma modificação importante no
regime de escravidão: passou a prevalecer a escravidão do inimigo estrangeiro (ser-
vare = preservar; servus = preservado) e se estabeleceu um mercado de escra-
vos.
170
Com isso:
A escravidão doméstica dos primeiros séculos foi substituída por um
verdadeiro regime escravista, que utilizava a mão-de-obra tanto em grandes
propriedades rurais como em empreendimentos manufatureiros de massa
um prenúncio, em certos aspectos, do moderno sistema capitalista de
montagem industrial. Esse novo escravo é tratado como mercadoria,
equiparado a objetos e animais. Em termos jurídicos, houve a passagem da
escravidão de concidadãos para a de estrangeiros.
171
Essa escravidão de massa acarretou significativa mudança na produção a-
grária, pois os pequenos proprietários e os camponeses livres acabaram substituí-
dos por hordas de escravos a serviço de ricos latifundiários, os quais utilizavam ilici-
tamente terras públicas.
172
Seguiu-se período de grandes turbulências em razão da
miséria a que foram submetidos os pequenos proprietários, bem como em razão das
tentativas de limitar o tamanho das propriedades e de distribuir adequadamente as
terras públicas. O trabalho escravo, a partir dessa época, assume aspecto mais vio-
lento, embora os registros históricos sejam pobres a respeito da vida cotidiana de
escravos e soldados. O trabalho passa a ser meio de educação dos pobres, como
indica HOORNAERT:
O escravo produz para seu patrão com a naturalidade das plantas, dos
campos e animais. Nada mais normal do que ver o escravo labutar a terra.
Seu gesto é um gesto da própria natureza. O cidadão, no ócio da
propriedade; os escravos, no negócio do trabalho. [...] Para ser o que é, um
romano tem que possuir um patrimônio e de certa forma ser um benfeitor. A
indigência é a grande culpada pelas mal-aventuranças sociais; é
considerada filha da preguiça e mãe do crime. [...] Dar trabalho ao indigente
significa educá-lo. Louvável o dono de escravos que faz com que seus
escravos trabalhem o tempo todo. É bom educador. Pois os pobres
trabalhavam, não para chegar a uma vida mais elevada, mas para que a
170
Esse fenômeno parece não ser exclusivo do mundo romano. É por volta do século IV a.C. “que
triunfa na Grécia a forma clássica de escravidão, a escravidão mercadoria” (VERNANT, Jean-Pierre;
NAQUET, Pierre-Vidal. Trabalho e escravidão na Grécia antiga. Trad. Marina Appenzeller. Campinas:
Papirus, 1989, p. 96).
171
FUNARI, Pedro Paulo. A cidadania entre os romanos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla
Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. 4ª. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 57.
172
A esse respeito: MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Trad. Reginaldo Sant’Anna.
23ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, v. II, p. 841, nota 211. É interessante observar
que a convocação militar em várias épocas foi utilizada para subjugar camponeses livres, os quais
muitas vezes eram reduzidos a escravos ou ficavam severamente empobrecidos, pois deixavam de
arar em tempos de guerra e em tempos de paz eram suplantados pelo uso massivo de escravos es-
trangeiros.
84
miséria não os incite ao vício e ao crime. Os ricos são diferentes. Eles
sabem empregar o ócio em sua filosofia, arte ou beneficência pública [...].
173
Para parte significativa da população do Império romano, portanto, “a vida é
trabalho, sofrimento, violência”
174
, o que pode ser confirmado em parte pela expec-
tativa de vida dos escravos, sempre abaixo de 25 anos. Para a classe superior res-
tava a moral da distância e do autocontrole, pois, como explica HOORNAERT, havi-
a:
[... ] a convicção de que existia uma distância social intransponível entre os
notáveis ‘bem nascidos’ e seus inferiores. Essa insuperável e imperturbável
distância é solidificada, de forma discreta mas firme, pela educação moral
das pessoas de classe A que, além de manter distância dos escravos,
tinham que demonstrar um controle emocional capaz de impressionar as
pessoas das classes inferiores. A espontaneidade é atributo dos escravos;
ela não é bem vista socialmente. Ao jovem rico a sociedade lembra a cada
momento: “Saiba manter distância. Não se misture com gentinha”. Como se
vê, o estatuto da escravidão é inexorável.
175
O “cristianismo nem por um momento pensou em abolir a escravidão”
176
. Ha-
via uma naturalização inabalável da escravidão, na Antiguidade, e o cristianismo
contribuiu para sua humanização. Assim, ao se expandir pelo Império Romano, o
cristianismo não assume posição revolucionária, contrária à escravidão, mas atuou
de forma despreconceituosa para amenizar alguns de seus aspectos ou para obter
a liberdade de alguns escravos.
173
HOORNAERT, Eduardo. As comunidades cristãs dos primeiros séculos. In: PINSKY, Jaime;
PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. 4ª. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 85-86.
174
IDEM, ibidem, p. 86.
175
IDEM, ibidem, p. 84-85. Essa citação, bem como a notável disciplina dos exércitos do mundo anti-
go, transposta para vários aspectos da vida social, parece desmentir a afirmação de que “As ‘Luzes’
que descobriram as liberdades inventaram a disciplina” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimen-
to da prisão. Trad.: Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 183). A modernidade nem desco-
briu a liberdade, tão cara já era para os romanos (a esse respeito: FUNARI, Pedro Paulo. A cidadania
entre os romanos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. 4ª. ed.
São Paulo: Contexto, 2008, p. 72-75) como também não inventou a disciplina. O que fez foi tão-
somente criar um novo sujeito para o qual foram generalizados, ainda que com desigualdade subs-
tancial, elementos de liberdade e de disciplina que antes eram privilégio de algumas castas. É eviden-
te que a inversão de eixo produzida pela criação de um novo indivíduo transmudou a noção de liber-
dade e de disciplina, mas é no mínimo um exagero afirmar que tais categorias foram descobertas ou
criadas apenas com o Iluminismo.
176
VEYNE, Paul. A sociedade romana. Lisboa: Edições 70, 1993, p. 70, apud HOORNAERT, Eduar-
do. Op. cit., p. 88. Isso se mostra tanto mais verdadeiro quando se observa a continuidade dessa i-
deologia mesmo depois da queda do Império Romano, pois “a Igreja medieval estava firmemente a
favor da escravidão, e isto nunca foi posto em dúvida de forma convincente” (TAYLOR, Claire. Da
escravidão à falta de liberdade na Europa Ocidental durante a Alta Idade Média. In: LIBBY, Douglas;
FURTADO, Júnia Ferreira (Orgs.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVII e
XIX. São Paulo: Annablume, 2006, p. 33).
85
De qualquer modo, a libertação do escravo o representava nenhuma forma
de emancipação social, pois lhe era impossível obter o capital simbólico suficiente
para a obtenção de um status idêntico ao dos demais trabalhadores livres.
177
Como
ensina HOORNAERT, a emancipação econômica era possível, pois:
[...] o Direito romano tem caráter liberal, pois prevê algum benefício para
que o liberto possa sobreviver, seja a cessão de um terreno (fundus), de
uma renda (alimenta), ou ainda de uma taberna ou ponto comercial. Mas,
além dessa não desprezível vantagem financeira, não se deve ter ilusão
sobre o status do liberto. A emancipação na sociedade romana é antes um
gesto simbólico do que uma mudança efetiva de situação social. O liberto,
afinal de contas, permanece escravo, não sai da casta dos escravos. A
aristocracia não tolera ascensão social. Socialmente a emancipação não é
nada. [...] A sociedade romana é definitivamente uma sociedade de castas.
Os escravos, libertos ou não, não podem aspirar a ascender efetivamente à
posição de cidadãos, senadores ou patrícios romanos.
178
Cabe destacar que, “nesse sistema social e mental, o homem ‘age’ quando
utiliza as coisas e não quando as fabrica. O ideal do homem livre, do homem ativo, é
ser universalmente usuário, nunca produtor. E o verdadeiro problema da ação, pelo
menos para as relações do homem com a natureza, é o do ‘bom emprego’ das coi-
177
A importância do escravo se limita ao fato de que torna possível o estatuto claro e definido do
cidadão... O escravo torna possível o jogo social, não porque garanta a totalidade do trabalho material
(isso jamais será verdade), mas porque seu estatuto de anticidadão, de estrangeiro absoluto, permite
que o estatuto do cidadão se desenvolva; porque o comércio de escravos e o comércio simplesmente,
a economia monetária, permitem que um número bem excepcional de atenienses sejam cidadãos”
(VERNANT, Jean-Pierre; NAQUET, Pierre-Vidal. Trabalho e escravidão na Grécia antiga. Trad. Mari-
na Appenzeller. Campinas: Papirus, 1989, p. 93).
178
HOORNAERT, Eduardo. As comunidades cristãs dos primeiros séculos. In: PINSKY, Jaime;
PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. 4ª. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 88. Por
isso, tudo indica que na Antiguidade não havia luta de classes baseada na divisão social do trabalho,
pois esta supõe uma possibilidade de transformação radical nas relações sociais. “Para se convencer
de que a situação no mundo antigo é diferente e de que esse esquema teórico, em sua simplicidade,
não se aplica tal como é às sociedades antigas, basta observar que a classe dos escravos não traz
nela qualquer nova sociedade. A vitória política dos escravos, se tal hipótese tiver algum sentido, não
teria colocado em questão as relações de produção, nem modificado as formas de propriedade”
(VERNANT, Jean-Pierre; NAQUET, Pierre-Vidal. Op. cit., p. 69). Assim, uma luta de classe na Grécia
Antiga só possui algum sentido no que diz respeito a uma luta contínua pela posse da terra. Isso se dá
porque os símbolos de distinção social nessa sociedade estavam relacionados com a propriedade
fundiária, tanto no aspecto econômico, como no religioso e guerreiro. Possuir terras era o que permitia
desde o ingresso no exército até a participação em certos atos religiosos. A luta de classes, portanto,
estava confinada em um terreno simbólico mais amplo e complexo.
86
sas e não o de sua transformação pelo trabalho
179
. Esse é um aspecto central para
estabelecer a diferença entre o trabalho da Antiguidade e o trabalho na Modernida-
de. Nesta, o homem passa a encarar psicologicamente a natureza como algo a ser
transformado. Somente a partir daí uma nova relação entre trabalho e corpo se insti-
tui, pois pela “laceração cartesiana da sua unidade à sua anatomia por obra da ci-
ência, o corpo concluir-se a sua história com a sua redução a ‘força de trabalho
na economia...”
180
.
Na Idade Média a mesma ambiguidade entre trabalho livre e trabalho não-
livre se apresenta, bem como as gradações entre um estado e outro. A transição do
trabalho escravo antigo para o regime de servidão feudal não foi um processo ho-
mogêneo nem linear. “A natureza e a cronologia da escravidão e da servidão, em
particular o papel do poder público, de fato varia de região em região”
181
. Houve lo-
cais em que, no início da Idade Média, a escravidão quase terminou para depois
retornar por meio da servidão; em muitos outros lugares coexistiam “uma ‘nova ser-
vidão’ por sujeição aos senhorios e, em escala menor, uma ‘velha servidão’ por
sangue”
182
.
O que é interessante observar é que a instituição da liberdade nunca foi em-
pecilho para que as classes dominantes impusessem um retorno aos antigos pro-
179
VERNANT, Jean-Pierre; NAQUET, Pierre-Vidal. Trabalho e escravidão na Grécia antiga. Trad.
Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1989, p. 41. Embora os gregos antigos tenham desenvolvido
máquinas sofisticadas, “em nenhum momento aparece a ideia de que, por intermédio dessa espécie
de máquinas, o homem pode comandar as forças da natureza, transformá-las, tornar-se seu senhor e
possuidor” (IDEM, ibidem, p. 49). As razões de o pensamento técnico ter ficado assim encerrado esta-
riam em grande parte nos entraves que as estruturas econômico-sociais traziam à Grécia, em parti-
cular, na existência de uma mão-de-obra servil abundante e na ausência de um mercado interno para
a produção comercial” (IDEM, ibidem). Essa última afirmação é criticável, visto que no capitalismo
industrial a abundante mão-de-obra servil não impediu o progresso tecnológico e a ideologia do domí-
nio da natureza pelo homem. Tudo indica que um novo padrão moral foi o ponto de mudança psicoló-
gica, o novo paradigma. De outra parte, a ideia de mercado comercial não é precedente da tecnologia,
mas um aspecto que lhe é autorreferente.
180
GALIMBERTI, Umberto. Il corpo. 17ª. ed. Milano: Feltrinelli, 2007, p. 12 (tradução do autor). Texto
original: ... dalla ‘lacerazione’ cartesiana della sua unità alla sua ‘anatomia’ a opera della scienza, il
corpo vede concludersi la sua storia com la sua riduzione a ‘forza-lavoro’ nell’economia...”.
181
TAYLOR, Claire. Da escravidão à falta de liberdade na Europa Ocidental durante a Alta Idade Mé-
dia. In: LIBBY, Douglas; FURTADO, Júnia Ferreira (Orgs.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e
Europa, séculos XVII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006, p. 35.
182
IDEM, ibidem, p. 34.
87
cessos de dominação, ora de forma direta e violenta, ora sutil e cínica
183
. Na Alta
Idade Média, principalmente a partir do século IX, esse processo foi realizado por
meio da instituição de uma nova ordem social, como destaca Claire TAYLOR:
Deixou-se aos poucos de classificar a população pobre, junto com as
camadas mais altas na escala social, ou como “livres”, conferindo desse
modo dignidade, ou como “servis”, conferindo degradação, para ordenar os
grupos de acordo com sua função social. O rusticus e o agrícola estava na
base de uma nova ordem social concebida pelo clero secular e consistindo,
no plano ideal, de três ordens: aqueles que rezavam (clérigos e monges),
aqueles que lutavam (os guerreiros em suas várias modalidades, desde o
cavalheiro até o duque) e aqueles que trabalhavam, estes últimos
considerados todos “vis” e passíveis de se tornarem não-livres. O esquema
de três ordens implicitamente justifica a ação predatória dos dois primeiros
grupos sobre o último.
184
Isso foi facilitado porque os “senhores locais... não tinham que prestar contas
a respeito de suas ações”
185
, o que conduziu a uma gradativa “transformação de
uma população relativamente livre em uma sujeita à escravidão”
186
. A mudança da
antiga escravidão para essa nova forma de servidão foi bem sintetizada por Claire
TAYLOR:
[...] Os fatores que mais teriam contribuído para pôr fim à escravidão antiga
podem ser assim resumidos: a assimilação do escravo à comunidade
religiosa e ética predominante, a diminuição da necessidade de trabalho
forçado na terra nunca, em todo caso, um fator de relevo na escravidão
medieval – em decorrência de avanços tecnológicos, uma tendência em
direção a locações mais livres em terras assarted, e o colapso das
estruturas governamentais que sustentavam o sistema. Este último, em
especial, fez com que fosse tanto necessário quanto possível para os
senhores amarrarem o trabalho à terra, usando mais do que a ameaça de
que os fugitivos seriam, ou mesmo poderiam ser, seguidos, pegos e
punidos; dessa forma, estimulava-se uma nova servidão que impunha às
pessoas um cativeiro à terra [...].
187
A aquisição da liberdade em qualquer época, portanto, constitui um processo
árduo, multifacetado e sujeito a retrocessos. sempre o perigo de novas e sutis
183
Havia variados mecanismos de aumento da dominação, como aquele em que os “posseiros de
alódios bem-sucedidos poderiam entregar suas propriedades em troca de ‘proteção’, para recebê-las
de volta condicionalmente em troca de aluguel” (IDEM, ibidem, p. 46), bem como “a restrição do aces-
so a recursos compartilhados ou tidos ‘em comum’, ou... o pagamento exigido para esse acesso por
senhores que consideravam tais recursos sua propriedade” (IDEM, ibidem, p. 50).
184
TAYLOR, Claire. Da escravidão à falta de liberdade na Europa Ocidental durante a Alta Idade Mé-
dia. In: LIBBY, Douglas; FURTADO, Júnia Ferreira (Orgs.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e
Europa, séculos XVII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006, p. 38.
185
IDEM, ibidem, p. 59.
186
IDEM, ibidem, p. 59.
187
IDEM, ibidem, p. 52.
88
formas de dominação, sem desconsiderar a possibilidade de se impor a pura e sim-
ples sujeição pessoal. A igualdade puramente formal, de outra parte, nunca foi sufi-
ciente para manter livres os homens e seus filhos, pois o retorno de novas formas
de escravidão é algo recorrente na humanidade.
3.2 ESCRAVIDÃO E TRABALHO LIVRE NO BRASIL
O que distingue o escravo do trabalhador livre? A rigor, a busca da liberdade
é a busca humana pelo livre arbítrio, o modo moderno de igualar-se a Deus.
188
O
trabalho livre, portanto, o deixa de ser uma religião, uma crença social, cujo tem-
plo das trocas anímicas é o “mercado”. Não é de estranhar que em alguns pontos os
primeiros teóricos do trabalho livre, como LOCKE, pareçam hoje mais teólogos que
cientistas meticulosos.
A difusão da técnica e do domínio da natureza como ideologia
189
são funda-
mentais para a constituição daquilo que se denomina Modernidade. Esse roteiro
transforma de forma radical o uso da escravidão sob o regime capitalista, pois, aqui,
de forma acentuada, ela é utilizada como modo de produção com finalidade predo-
minantemente econômica, baseado no sistema colonial de exportação de produtos
primários. Agora, o homem age quando produz e o uso passa a ser um aspecto se-
cundário no quadro mental do homem moderno. Esse modo de agir é ainda mais
acentuado no sistema colonial brasileiro, cujo mercado interno era praticamente ine-
xistente, e que foi instituído com a exclusiva finalidade de remeter riquezas primárias
188
Descartes, em carta à Rainha Cristina da Suécia coloca essa questão de forma bem clara: “O livre-
arbítrio é em si a coisa mais nobre que podemos ter porque, de certa maneira, torna-nos semelhantes
a Deus e isenta-nos de lhe sermos subordinados; assim, seu uso correto é o maior de todos os bens
que possuímos e, além disso, não nada que seja mais nosso ou que nos importe mais. De tudo
isso, conclui-se que nada nos pode dar mais contentamento que o livre-arbítrio” (DESCARTES, René.
Correspondance. In: ADAM, Charles; TANNERY, Paul. Oeuvres de Descartes. Paris: Vrin, 1964, v. V,
p. 85, apud TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Trad.: Adail
Ubirajara Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2005, p. 195).
189
Opera “nessas realidades moventes do mundo terrestre que constituem, aos olhos dos gregos, o
domínio do mais ou menos, ao qual não se aplica nem medida exata, nem cálculo preciso. Ele tem
portanto um outro objeto e situa-se num plano diferente do da ciência... Na ausência de uma medida
rigorosa do tempo, ela não quantificou a evolução, não estabeleceu uma conexão entre matemática e
física. Como a técnica poderia aplicar leis físicas que não existem?” (VERNANT, Jean-Pierre; NA-
QUET, Pierre-Vidal. Trabalho e escravidão na Grécia antiga. Trad. Marina Appenzeller. Campinas:
Papirus, 1989, p. 51).
89
para a metrópole, asua exaustão. A modelagem econômica do Brasil, destinada
exclusivamente para a exportação, foi e continua a ser de tal brutalidade que até o
nome do País foi calcado no primeiro produto exportado e esgotado, como se, ao
selar seu nome, estabelecesse ao mesmo tempo um comando e um vaticínio: con-
dena-se ao esgotamento.
190
Isso introduziu um padrão mental inconsciente de refe-
rência a um “mercado” que está “fora” da nossa capacidade de ação.
O que é bom está no “Outro” e para dar conta da nossa necessidade de servi-
lo podemos contar com a aquisição de mais trabalhadores escravos, meio indis-
pensável para a sobrevivência do regime. Como ponderou BANDEIRA DE MELLO:
[...] todo o lucro da produção agrícola era geralmente empregado em
aumentar o numero de trabalhadores, na preocupação constante de
desenvolver seus estabelecimentos ruraes. Acontecia que a grande
quantidade de escravos aglomerados num vasto latifundio, fazia com que
parte consideravel da producção fosse consumida pelos proprios
produtores.
Ora, esses valores não sahindo da fazenda, não poderiam favorecer o
intercambio brasileiro, dificultando a prosperidade economica do paiz, pois
não basta produzir para o proprio consumo, é preciso super-produzir para a
exportação.
191
(no original)
fundada suspeita entre os brasileiros de que algo desse modo de produ-
ção ainda ronda nossa estrutura social e jurídica, pois se trata de um processo cuja
repetição indica a existência de um arcabouço pré-reflexivo a ser vencido. As suces-
sivas escravizações ou tentativas de escravização do indígena, do negro, do imi-
grante, dos trabalhadores nas fábricas, dos domésticos e dos rurais, indicam algo de
inconsciente, que se oferece pela repetição.
192
Por isso, de se analisarem as
aproximações e os distanciamentos da escravidão imposta no Brasil com a escravi-
190
“Impressiona-me mais ainda o próprio significante ‘Brasil’. Que extraordinária herança do coloniza-
dor para o colono este significante nacional, que eu saiba o único que não designa nem uma longín-
qua origem étnica, nem um lugar, mas um produto de exploração, o primeiro e completamente esgo-
tado. É como se o colonizador entregasse para o colono o manequim deslocado por um gozo sem
freio, e ironicamente o convidasse a fazer com isso o UM da nação da qual ele quer ser sujeito” (CAL-
LIGARIS, Contardo. Hello Brasil!: notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. São Paulo:
Escuta, 1991, p. 23).
191
BANDEIRA DE MELLO, Affonso de Toledo. O trabalho servil no Brasil. Rio de Janeiro: Departa-
mento de Estatística e Publicidade do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, 1936, p. 68.
192
“... a importância do fantasma do corpo escravo no discurso brasileiro não pode ser um simples
efeito do passado escravagista. Precisou uma repetição: ou seja, que o colono encontrasse, na sua
chegada, a ameaça, às vezes realizada, da sua escravatura. Precisou disso para que por um lado a
escravização permanecesse como horizonte das relações discursivas e sociais, e que por outro lado o
pedido de cidadania do escravo se encontrasse com o discurso do colono, expressão do mesmo pe-
dido” (CALLIGARIS, Contardo. Op. cit., p. 33).
90
dão antiga e, ao mesmo tempo, com a escravidão realizada de forma capitalista em
outras regiões.
Como a Modernidade se erige sob o forte apelo moral do trabalho livre, a lar-
ga utilização do trabalho escravo, em um regime capitalista, o deixa de ser um
paradoxo. É, entretanto, um paradoxo apenas aparente. O que é de estranhar é
que, se entre os antigos a escravidão foi o referencial negativo (o escravo era o pro-
tótipo do anticidadão), o que permitiu o desenvolvimento da cidadania no restante
da população, seria plausível que o trabalho escravo na Modernidade enriquecesse
as possibilidades do trabalho livre pelo restante da população. Isso não só deixou de
ocorrer, no Brasil, mas foram justamente as articulações decorrentes do trabalho
escravo que impediram, e provavelmente ainda impedem, um desenvolvimento ple-
no do trabalho como elemento simbólico central da nossa sociedade.
Talvez a grande dificuldade de delimitar a identidade brasileira seja a impos-
sibilidade real de saber o que somos. é possível saber o que nos tornamos. A
pretensão de situar historicamente nossa evolução moral e as nossas instituições
jurídicas, mais do que ser útil, parece ser imprescindível. A esse respeito, um parale-
lo pode ser apontado com a herança que a consciência histórica partilha ahoje
com o período vitoriano. Ao se referir aos vitorianos, Charles TAYLOR observa que:
[...] A questão do seu (e do nosso) lugar na história é muito importante para
eles (nós), e não porque eles/nós podem/podemos sentir alguns padrões
morais mais elevados no nosso, mas também por causa da sensação
incômoda de que alguma coisa muito valiosa foi sacrificada no processo.
Olhar para trás pode registrar o progresso ou articular uma perda
irrecuperável; e, com frequência, faz as duas coisas. Por uma ou outra
razão, a história torna-se uma obsessão permanente.
193
A forma como se deu a colonização do Brasil, bem como a sua independên-
cia, moldou de forma marcante sua estrutura social e jurídica. O registro desse pro-
cesso pode articular algumas possibilidades de explicação, mas o mais provável é
que dele seja possível detectar as perdas irrecuperáveis para a construção de nossa
cidadania. Ainda assim, é por meio da averiguação das perdas que se torna possí-
vel articular algumas possibilidades de melhoria.
193
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Trad.: Adail Ubirajara
Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2005, nota de rodapé 6, p. 508.
91
As dificuldades do nosso sistema jurídico em lidar com a escravidão podem
ser sentidos na Constituição Imperial de 1824, na qual praticamente não ne-
nhuma referência, senão muito indireta, aos escravos e à escravidão: nada é dito
acerca de trabalho e menos ainda sobre livre iniciativa ou intervenção. A imagem
que sobrevém desse texto é de um forte liberalismo econômico. Provavelmente,
contudo, seja um exagero falar em liberalismo na sociedade rural, oligárquica e au-
toritária do Brasil do início do século XIX.
194
É certo que “a Carta do Império funda-
va-se em certo compromisso liberal, a despeito de jamais haver sido encarada pelo
Imperador como fonte de legitimidade do poder que exercia. O mundo pessoal, se-
miabsoluto, ora guardava mera relação formal com a estrutura normativa da Consti-
tuição, ora simplesmente a ignorava”.
195
Assim, embora se adotassem formalmente
mecanismos constitucionais de matriz inglesa, a realidade política, social e econô-
mica ficava ao vento dos sabores pessoais, o que em parte explica as turbulências
políticas e sociais que se sucederam durante grande parte do período imperial.
196
As razões dessa deturpação são históricas e estão ligadas tanto à nossa for-
ma de colonização como também à forma como se deu nossa independência. A
discrepância com o que ocorreu na Inglaterra, Estados Unidos e França é evidente,
pois nesses países, como explica WOLKMER:
[...] o Liberalismo foi a doutrina política libertadora que representa a
ascensão da burguesia contra o absolutismo, “tornando-se conservadora à
medida em que a burguesia se instala no poder e sente-se ameaçada pelo
proletariado”. no Brasil, o Liberalismo expressa a “necessidade de
reordenação do poder nacional e a dominação das elites agrárias”, processo
194
O liberalismo se caracteriza no aspecto moral pelos princípios da liberdade pessoal, do individua-
lismo, da tolerância, da dignidade e da crença na vida; no aspecto econômico pela propriedade priva-
da, pelo sistema da livre empresa e pela economia de mercado livre do controle estatal, liberdade de
produzir e de acumular riquezas; no aspecto político pelo direito ao voto, pelo consentimento individual
e pela representação, pela supremacia da Constituição, pela separação dos poderes e pela soberania
popular (A esse respeito: WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e direito. . ed. São Paulo:
RT, 1995, p. 115-116). O desprezo à Constituição, a ausência de soberania popular, a ausência de
separação real dos poderes em várias fases e a precariedade do sistema de representação colocam
em dúvida o alegado liberalismo do período monárquico e do subsequente. A precariedade do “mer-
cado” põe em dúvida o liberalismo econômico, até porque a liberdade de produzir em muitas ocasiões
ficou superada pelo clientelismo e pelo favorecimento pessoal.
195
BARROSO, Luís Roberto. O Direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possi-
bilidades da Constituição Brasileira. 8ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 9.
196
É curioso observar a tensão que havia entre a nossa matriz constitucional inglesa, que tendia para
o parlamentarismo, e aquilo que estava “no subconsciente dos homens de governo e dos doutrinado-
res político a sobrenadar a influência dominadora do regime político norte-americano. A federação. O
presidencialismo” (FERREIRA, Waldemar Martins. História do direito constitucional brasileiro. Ed. Fac-
similar. Brasília: Senado Federal, 2003, p. 51). Assim, em vários momentos do período imperial se
pretendeu defender uma espécie de “monarquia presidencialista”.
92
este marcado pela ambiguidade da junção de “formas liberais sobre
estruturas de conteúdo oligárquico”, ou seja, a discrepante dicotomia que irá
perdurar ao longo de toda a tradição republicana: a retórica liberal sob a
dominação oligárquica, o conteúdo conservador sob a aparência de formas
democráticas. O Estado liberal brasileiro, como bem retrata Trindade,
nasceu “em virtude da vontade do próprio governo (da elite dominante) e
não em virtude de um processo revolucionário”. O Liberalismo conforma-se,
assim, desde o início, como “a forma cabocla do liberalismo anglo-saxão”
que em vez de identificar-se com a “liberação de uma ordem absolutista”,
preocupa-se com a “necessidade de ordenação do poder nacional”.
197
A insinceridade constitucional que a Carta de 1824 inaugura parece guardar
íntima correlação com aquilo que até hoje nos persegue e parece ser uma herança
do nosso sistema colonial, como bem realçou BARROSO:
Por trás das idas e vindas, do avanço e do recuo, diafanamente encoberta, a
herança maldita do patrimonialismo: o cargo público. O poder de nomear, de
creditar-se favores, de cobrar do agente público antes o reconhecimento e a
gratidão do que o dever funcional. A lealdade ao chefe, não ao Estado,
muito menos ao povo. A autoridade, em vez de institucionalizar-se,
personaliza-se. Em seguida, corrompe-se, nem sempre pelo dinheiro, mas
pelo favor, devido ou buscado. Com a Lei de Interpretação, “a política e o
emprego voltam à corte”.
198
Assim, o absenteísmo da Carta de 1824, inspirado formalmente em um regi-
me liberal, em realidade escondia o autoritarismo e o clientelismo típicos de uma
sociedade oligárquica, quase feudal, que, por meio do voto censitário e de exclu-
sões de classe (art. 91 a 95), convivia sem grandes traumas com os paradoxos dos
privilégios de nobreza (em que pese o princípio de igualdade expressamente adota-
do no art. 179, XIII) e com o trabalho escravo (embora expressamente consagrada a
liberdade individual no art. 179, caput).
Compreende-se, portanto, que não houvesse referência ao trabalho em soci-
edade escravocrata e oligárquica, mas também não é de estranhar a ausência de
referência à escravidão
199
em sociedade formalmente liberal e que, embora aparen-
tasse um constitucionalismo de matriz inglesa, em realidade estava subordinada ao
clientelismo, ao autoritarismo e ao favorecimento. Tudo isso se beneficiava dos am-
197
WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e direito. 2ª. ed. São Paulo: RT, 1995, p. 119.
198
BARROSO, Luís Roberto. O Direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possi-
bilidades da Constituição Brasileira. 8ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 11.
199
Na Carta de 1824 indiretamente referência à escravidão, por meio da referência aos “liber-
tos”, pois no art. 6, I, os inclui entre os cidadãos e o art. 94, II, restringe os seus direitos políticos. Ao
dizer que os libertos são cidadãos o texto constitucional pressupunha “o óbvio”, ou seja, que os escra-
vos não o eram.
93
plos poderes do Imperador, o qual desfrutava do poder moderador e governava de
modo personalíssimo.
200
Assim, a escravidão era um pressuposto intrínseco e cons-
tituinte da formação cultural econômica da sociedade brasileira, o que lhe dispensa-
va qualquer referência no texto constitucional.
Não pode passar despercebido, entretanto, que o modo de produção escra-
vagista estava inserido no sistema de produção capitalista da época, do qual se be-
neficiava não a elite oligárquica rural brasileira, mas todo o sistema mundial de
comércio e de produção de bens. A escravidão, portanto, não representava um re-
torno ao feudalismo
201
, mas era uma atividade “normal” e compatível com o capita-
lismo industrial que vigorava na Europa. Assim, tanto a liberdade formal e contratual,
na “ponta”, como a escravidão, na “periferia”, do regime capitalista, eram partes in-
trínsecas de um sistema, assim como hoje a precarização e a desregulamentação
constituem uma atividade básica e indispensável do regime de exploração da o-
de-obra, e base para a sobrevivência do sistema capitalista de produção, principal-
mente nos países periféricos.
Há, entretanto, um aspecto peculiar na escravidão da periferia sob regime
capitalista, como descreve GORENDER:
Esse novo modo de produção escravista só podia ser colonial,
estruturalmente colonial, dado que a insuficiência insanável do seu mercado
interno tornava-o necessariamente vinculado a um mercado externo em
termos monopolistas... Enquanto o escravismo antigo foi metropolitano, o
escravismo moderno poderia ser colonial. Neste caso, o colonial não é
contingente, mas consubstancial à natureza do modo de produção.
202
É verdade que o absenteísmo regulador em matéria de trabalho, na Constitu-
ição de 1824, seguia a tendência mundial da época, mas o caso brasileiro comporta
peculiaridades, pois essa abstenção sempre esteve acoplada ao específico sistema
social da época. Como explica SANTOS:
[...] a sociedade brasileira engendrou desde a sua função como colônia
estruturas firmes de autoridade caracterizadas, na ordem privada e na
ordem pública, por estrito controle do grupo dominado. Coincidindo com
essas estruturas, a concentração exacerbada da propriedade e das rédeas
200
FERREIRA, Waldemar Martins. História do direito constitucional brasileiro. Ed. Fac-similar. Brasília:
Senado Federal, 2003, p. 59.
201
Nesse sentido: GORENDER, Jacob. O conceito de modo de produção e a pesquisa histórica. In:
LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes,
1980, p. 61.
202
GORENDER, Jacob. Op. cit., p. 55.
94
de manejo da economia instalou uma estratificação extremamente desigual
na apropriação de recursos e benefícios materiais, criando laços de
dependência vital dos “mais dominados”, em relação aos “menos
dominados” e aos “dominantes”. A montagem dessa dupla cadeia
hierárquica de poder e de disposição de recursos materiais foi possível a
partir das condições especiais em que o colonizador e suas instituições
lograram submeter os povos indígenas e africanos, implantando a
escravidão durante quatro séculos. Tendo sido o paradigma das relações de
trabalho numa sociedade escravocrata, a escravidão cumpriu o papel de
“piso comparativo”, perante o qual todos os outros regimes de trabalho,
embora repressivos, eram considerados um mal menor. Assim, ser filho livre
de um escravo e obter do senhor de engenho o “favor” de usar a terra para a
pequena produção familiar parecia menos duro que o trabalho escravo. Ao
mesmo tempo, o “favor” reforçava o poder do dono de engenho, na medida
em que reduzia a atração dos quilombos sobre os grupos escravizados e
insinuava a ideia de benevolência do regime.
203
Os meios repressivos da escravidão, entre os quais o feitor representava um
papel central, nunca foram suficientes para manter, por si só, o regime de domina-
ção da oligarquia rural. Por isso, outros mecanismos mais sutis de domínio, como a
promessa de liberdade futura, a concessão de alforria a termo, a miscigenação e
vários outros mecanismos de dependência foram aos poucos criados e em torno
deles se formaram grupos de baixa coesão social.
A escravidão como “piso comparativo” no processo de dominação criou um
habitus
204
que, com maior ou menor intensidade, sobrevive em muitos aspectos de
nossa vida social e funciona como obstáculo para a nossa autoafirmação moderna.
Não é difícil encontrar pessoas que digam ser “melhor trabalhar por um prato de
comida do que morrer de fome”, coisa impensável em países que não passaram
pela escravidão indígena e africana e que estão “educadas” pela ideia de relação
de trabalho como contrato de pessoas livres e com pretensão de igualdade.
203
SANTOS, Roberto Araújo de Oliveira. Trabalho e sociedade na lei brasileira. São Paulo: LTr, 1993,
p. 162-163.
204
O conceito de habitus é extraído da obra de BOURDIEU, com o sentido de “conhecimento adquiri-
do e também um haver, um capital” (BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad.: Fernando Tomaz.
9ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 61), um ambiente em que os agentes não precisam se
situar de maneira racional. É um conceito que procura “sair da filosofia da consciência sem anular o
agente na sua verdade de operador prático de construção de objecto” (IDEM, ibidem, p. 62). “São
esquemas avaliativos compartilhados objetivamente, ainda que opacos, e quase sempre irrefletidos e
inconscientes que guiam nossa ão e nosso comportamento efetivo no mundo. É apenas este tipo
de consenso, como que corporal, pré-reflexivo e naturalizado, que pode permitir, para além da eficácia
jurídica, uma espécie de acordo implícito...” (SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania:
para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 174).
95
A ideia de que existem “mais dominados” e “menos dominados” com várias
modalidades intermediárias é que explica a existência em nosso País, desde antes
da abolição da escravatura, de vários tipos de “trabalhadores livres” e “semi-livres”
que, para padrões europeus, mais pareceriam “semiescravos”. A própria escravidão
brasileira comportava diversas gradações conforme fosse o ambiente em que o tra-
balho fosse prestado ou a atividade exercida.
205
Isso também explica por que até
hoje decisões judiciais reconhecem a existência de “domésticos” (mais dominados e
que trabalham em todos os dias da semana, quem sabe até sem folga semanal) e
“semidomésticos” (“diaristas” “autônomos” que trabalham dois ou três dias da sema-
na “apenas” para mais de uma pessoa ou família, ainda que recebam salário men-
sal). A admissão de “mais protegidos” e “menos protegidos” sempre esteve presente
em nosso inconsciente jurídico, e quanto “menos protegido” maior a relação pessoal
(hierárquica) de poder. nesses aspectos várias aproximações com a escravidão
verificada na Grécia antiga, onde, como foi demonstrado, havia tantos matizes entre
a escravidão e a liberdade que era difícil afirmar em que ponto começava uma e
terminava a outra.
Essa mistura de liberdade e escravidão, com vários e cambiantes aspectos,
sempre dominou as relações de trabalho no campo e ainda se verifica em várias
partes do País. que se lembrar que o Brasil, durante pelo menos até a primeira
metade do século XX, foi um País basicamente agrário, com a maior parte da popu-
lação no campo. Nesse ambiente, sempre foi comum mesclar o trabalho “produtivo”
das fazendas com um entorno de subsistência por meio de pequenas parcerias, pe-
lo colonato, por pequenos arrendamentos, por “favores” concedidos sob compromis-
so de assalariamento temporário e por outras formas. Por meio desse sistema ba-
seado no personalismo e no paternalismo autoritário, mantiveram-se vários resquí-
cios do sistema escravocrata, o que talvez explique o “retorno” no final do século XX
de novas formas de escravidão justamente no campo, onde sempre estiveram de
forma “natural” e até inconsciente.
205
“A obediência não é praticada de maneira idêntica no campo, na cidade, na mina. As servidões de
um escravo tropeiro não são as mesmas de um doméstico, um artesão, um lavrador” (MATTOSO,
Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 107).
96
O capitalismo pode assumir múltiplas e ambíguas faces ao estabelecer rela-
ções que conduzem à subordinação do trabalho ao capital. A maioria dessas formas
se faz presente no Brasil, País em que as desigualdades sociais o permitiram a
plena instituição da “cidadania salarial” nem conduziram por completo à vitória do
“animal laborans” (Hanna Arendt). Por isso, é necessário identificar o que são práti-
cas escravagistas travestidas de contratualidade para que os nossos erros históricos
não impeçam a nossa transformação social. Essa perspectiva de delimitação da
“subordinação jurídica” é tanto mais relevante quando se observa “que estão sendo
criadas as condições para uma servidão que antes de ser conceituada como nova
deve ser avaliada como uma possível reedição da antiga”
206
, contribuindo para isso
não a reestruturação do sistema produtivo como também o desemprego e o tra-
balho precário.
Costuma-se descrever o trabalho escravo como a total transformação do ho-
mem em coisa, o qual passa a um “ser” totalmente desprovido de direitos. Essa é,
entretanto, uma visão excessivamente simplificadora da realidade.
207
A afirmação de
que o escravo é coisa, sem nenhum direito e sem vontade
208
, deve ser contextuali-
zada, pois vários estudos que demonstram que os escravos usavam os mais di-
206
CATTANI, Antonio David. Desemprego e trabalho precário: bases para a servidão moderna? Re-
vista de Ciências Humanas. Curitiba: Ed. UFPR, n. 10, 2001, p. 199.
207
Essa visão anula a possibilidade de entender que os escravos eram seres que agenciavam suas
vidas enquanto escravos, resistindo e se acomodando, e que a relação senhor-escravo era fruto des-
sa dinâmica, entre esses dois polos, e não uma construção imposta de cima para baixo, unicamente
pela vontade senhorial” (LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988, p. 353).
208
O escravo não era um ser humano desprovido de vontade, mas um ser que não podia fazer preva-
lecer a sua vontade como vontade. Por isso, lhe restava táticas dissimuladas de resistência para
que um mínimo de satisfação de sua vontade pudesse gerar a consciência de si próprio e mantê-lo
humano. “Relações dissimuladas, de desconfiança recíproca, são, em regra geral, as que prevalecem
entre senhor e escravo. Combate desigual? Nem sempre. Se o senhor tem por si a lei, a força e o
poder, se pode até matar um escravo recalcitrante, este possui algumas armas eficazes: pode minar
lentamente a autoridade do senhor e, sobretudo, comprometer e desorganizar a produção, sabotar o
trabalho, fugir, revoltar-se, suicidar-se” (MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. .
ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 131).
97
versos meios de resistência
209
e o sujeição que seja o absoluta que o
permita, mesmo em termos simbólicos, mecanismos de reação.
É verdade que a escravidão impedia os cativos de terem condição de classe,
pois para isso seriam necessárias uma consciência e uma organização coletivas, e
tal ordem constituiria a negação da própria natureza da condição escrava
210
. Isso,
contudo, não quer significar que a resistência inexistisse e não tivesse sua lógica e
consistência. O que sucede é que essa resistência estará inserida no próprio siste-
ma capitalista de exploração da mão-de-obra escrava, pois resistir, libertar-se e re-
tornar à condição de escravo fazia parte dos mecanismos de obtenção da obediên-
cia.
A ideia de um escravo absolutamente “coisificado” e desprovido de direitos é
tão ficcional quanto a existência de um homem absolutamente livre e incondiciona-
do.
211
O anseio de liberdade faz com que escravos ou trabalhadores lutem e obte-
nham direitos, ainda que muitas vezes os que dominam a ordem econômica procu-
rem retoricamente atribuir a uma “concessão de favores” a aquisição de direitos ob-
tida por difíceis e prolongadas lutas.
Seria impossível a um senhor de escravos manter a dolorosa dominação da
escravidão sobre uma imensa massa de sujeitados sem estratégias que reconhe-
cessem, e até mesmo valorizassem, os aspectos humanos do escravo, inclusive
porque o que nele se buscava não era o trabalho puramente animal, passível de ser
encontrado mais facilmente e com menos custos em outras formas de vida. O que
209
Uma das técnicas de resistência era a utilização imprópria ou inadequada dos instrumentos de
trabalho, de modo a gerar desperdício. “Esta é uma das circunstâncias que encarecem a produção
baseada na escravatura. O trabalhador aí, segundo a expressão acertada dos antigos, se distingue do
animal, instrumento capaz de articular sono, e do instrumento inanimado de trabalho, instrumento
mudo, por ser instrumento dotado de linguagem. Mas o trabalhador faz o animal e os instrumentos
sentirem que ele não é seu semelhante, mas um ser humano. Cria para si mesmo a consciência des-
sa diferença, maltratando-os e destruindo-os passionalmente. Constitui, por isso, princípio econômico
empregar, na produção escravista, os instrumentos de trabalho mais rudes, mais grosseiros, difí-
ceis de serem estragados em virtude de sua rusticidade primária...” (MARX, Karl. O capital: crítica da
economia política. Trad. Reginaldo Sant’Anna. 23ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, v.
I, p. 229, nota de rodapé 17).
210
GUIMARÃES, Carlos Magno. A negação da ordem escravista: quilombos em Minas Gerais no sé-
culo XVIII. São Paulo: Ícone, 1988, p. 21-22.
211
Mesmo na brutal escravidão negra, erigida sob um inusitado sistema capitalista, “a ideia da inexis-
tência de direitos para os escravos é também uma espécie de ficção” (LARA, Sílvia Hunold. Os escra-
vos e seus direitos, p. 131), principalmente porque “as lutas e movimentos empreendidos pelos escra-
vos resultaram na consolidação de direitos a maior parte permaneceu sem ser escrita, mas alguns
chegaram a ser mencionados em documentos oficiais e até mesmo em leis” (IDEM, ibidem, p. 131).
98
se pretendia no escravo era a capacidade humana de interagir, de aprender e de se
adaptar às mais diversas condições e necessidades. Como destaca MATTOSO:
[...] a própria sobrevivência do homem preto depende absolutamente de sua
‘repersonalização’, de uma certa aceitação de sua posição no corpo social;...
a nova personalidade do escravo é criada por essa inserção, numa
sociedade dominada por um modelo branco, de homens pretos ainda sob
inspiração e padrões africanos. São as tensões continuadas dessa
integração difícil que obrigam a própria vida do escravo a adaptar-se às
relações de tipo escravista e o levam a todos os esforços, todas as
humildades, todas as obediências e fidelidades para com os senhores
infalíveis. Humildade, obediência, fidelidade: sobre este tripé vai ser
encenada a vida desses homens, mercadorias muito particulares pois,
apesar de tudo, os compradores-proprietários terminam sempre por se
aperceberem de que os escravos também são homens e uma certa espécie
de intimidade se pode estabelecer com eles, se são fiéis, obedientes,
humildes.
212
De outra parte, na sociedade colonial brasileira, a liberdade podia ser trans-
formada em meio de obter novas formas de exploração servil do trabalho, indicador
de que liberdade e escravidão não eram elementos totalmente heterogêneos e in-
confundíveis, pois a própria alforria podia ser utilizada como mais um elemento de
dominação.
213
“Na lógica do escravismo, o ideal das relações senhor-escravo é a aceitação
plena de todas as determinações do senhor, por parte do escravo. Mas o que ocor-
re, na realidade, é a reação do escravo à sua condição, nos mais diversos níveis e
formas”
214
. Por isso, todo sistema de dominação cria as condições para a contrapos-
ta resistência, pois o princípio da liberdade e do prazer não pode ser subjugado no
homem sem seu extermínio. O problema parece estar na inadequação e na insufici-
ência desses mecanismos de resistência para se alcançarem os padrões emancipa-
tórios mínimos, o almejados pela sociedade brasileira, principalmente para propi-
ciar cidadania plena a todos os seus indivíduos.
Deve ser relativizada, por conseguinte, a ideia de que na escravidão há uma
dominação absoluta sobre o escravo, o qual passa a ser apenas a propriedade do
212
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.
102.
213
Por isso, “a alforria se constitui não numa dádiva dos senhores, mas em um mecanismo de preser-
vação do sistema” (GUIMARÃES, Carlos Magno. A negação da ordem escravista: quilombos em Mi-
nas Gerais no século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988, p. 78).
214
IDEM, ibidem, p. 78.
99
outro, e em quem se insere uma “vontade desesperada de liberdade
215
. Não
dúvida de que, antes de tudo, “como mercadoria, o escravo é uma propriedade
216
,
mas a dominação mesmo na escravidão nunca pode ser absoluta, pois os sistemas
coercitivos nunca dão conta de subjugar totalmente o indivíduo.
Assim, o “objeto” da escravidão o era substancialmente diferente do “obje-
to” de um contrato de trabalho, visto que em ambos o que se almeja vai além de
algo puramente material, não é uma simples “mercadoria” destacável do ser huma-
no. O que é uma diferença significativa dos meios de exercício da coerção: na
escravidão o poder é pessoal; no trabalho livre, o poder é simbólico e contratual.
Além disso, a exploração do trabalho livre possui fundamento moral diferente do
trabalho escravo.
Deve-se lembrar que a maioria do trabalho no Brasil antes de 1888 competia
aos escravos, razão pela qual havia escravos muitos escravos especializados, como
“escravos sapateiros, tecelões, carpinteiros, seleiros, alfaiates, pedreiros, costurei-
ras, barbeiro, paneiro e amesmo um cirurgião”
217
, o que significa que seria impos-
sível um controle apenas físico. É possível afirmar que, depois da abolição, os ex-
escravos tenham simplesmente deixado de prestar os serviços que antes faziam por
preferirem o ócio (o oposto da escravidão) ao trabalho que gere acumulação? Ou
será mais provável que o mesmo sistema de exploração de trabalho tenha continu-
ado e o ócio, do qual os negros tanto o acusados, fosse mais um reflexo dos ex-
cedentes de mão-de-obra gerados pelo regime de produção, tal qual se verifica atu-
almente com as altas taxas de desemprego? Embora não seja desprezível o aban-
dono pelos libertos das atividades nas fazendas em que foram escravizados, bem
como sua opção pela cultura de subsistência, deve-se ponderar que para eles as
215
CATTANI, Antonio David. Desemprego e trabalho precário: bases para a servidão moderna? Re-
vista de Ciências Humanas. Curitiba: Ed. UFPR, n. 10, 2001, p. 200.
216
FINLEY, Moses I. Escravidão antiga e ideologia moderna. Trad. Norberto Luiz Guarinello. Rio de
Janeiro: Graal, 1991, p. 75. Paradoxalmente, foi precisamente a qualidade do escravo como proprie-
dade que ofereceu à classe proprietária uma flexibilidade... não disponível nas outras formas de traba-
lho compulsório... O modo como os proprietários individuais escolhiam tratar essa propriedade peculi-
ar não dependia de mero capricho ou de diferenças de personalidade. Os proprietários frequentemen-
te ofereciam aos escravos o incentivo de uma eventual manumissão, através de algumas providên-
cias que desencadeavam uma série de comportamentos e expectativas que afetavam o próprio se-
nhor. Embora na prática, e legalmente, sempre se pudesse revogar o concedido, os ganhos materiais
com a escravidão seriam fortemente reduzidos se tais acordos não fossem regulamente respeitados”
(IDEM, ibidem, p. 76-77).
100
possibilidades econômicas eram mínimas e a permanência nas fazendas represen-
tava, não apenas em termos psicológicos, a continuidade do regime anterior. E não
foram poucos os que continuaram no “entorno” do regime rural até então existente.
Desde cedo houve preocupação entre os senhores de escravos com a produ-
tividade e com a necessidade de se adotarem medidas “para debelar o problema de
os cativos o tomarem ‘interesse pela fortuna de seu senhor’, acarretado pelos
maus-tratos infligidos aos escravos”.
218
Certamente, por “ausência de bases morais
mais sólidas”, os escravos não tinham nenhuma preocupação em aumentar o patri-
mônio de seus proprietários, o que era objeto de constantes reclamações dos fa-
zendeiros. A necessidade de moderação e de uma postura ativa e adequada para
aumentar a produtividade, evitar as fugas e obter a adesão dos escravos acabou por
se impor na pauta da elite econômica, tanto nos discursos dos parlamentares como
nos tratados dos estudiosos da administração da agricultura.
Não que o castigo físico tenha deixado de ser o centro de todo o controle de
dominação. Ao contrário, o pelourinho e o chicote sempre assumiram um papel sim-
bólico e real de destaque nas técnicas de administração e de disciplina. O que se
recomendava, contudo, para bem administrar a produção, era a adequada distribui-
ção dos castigos, tanto na quantidade como na forma, pois era necessário premiar
os bons e punir os maus, sempre em equilíbrio. Uma das recomendações mais ex-
pressivas a esse respeito é a do jesuíta ANTONIL:
[...] O certo é que, se o senhor se houver com os escravos como pai, dando-
lhes o necessário para o sustento e vestido, e algum descanso no trabalho,
se poderá também depois haver como senhor, e não estranharão, sendo
convencidos das culpas que cometeram, de receberem com misericórdia o
justo e merecido castigo. E se, depois de errarem como fracos, vierem por si
mesmos a pedir perdão ao senhor ou buscarem padrinhos que os
acompanhem, em tal caso é costume, no Brasil, perdoar-lhes. E bem é que
saibam que isso lhes de valer, porque, de outra sorte, fugirão por uma
vez para algum mocambo no mato, e se forem apanhados, poderá ser que
se matem a si mesmos, antes que o senhor chegue a açoutá-los ou que
algum seu parente tome à sua conta a vingança, ou com feitiço, ou com
veneno.
219
217
CATTANI, Antonio David. Op. cit., p. 187.
218
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o
controle dos escravos nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 179.
219
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil: texto confrontado com o da edição de 1711.
3ª. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, p. 192.
101
nesse conselho dirigido aos proprietários rurais do período colonial várias
referências aos sistemas de resistência adotados pelos escravos, inclusive um inusi-
tado reconhecimento dos poderes da feitiçaria. Um aspecto importante, entretanto,
merece ser destacado: a perversidade de incutir nos trabalhadores (escravos) a cul-
pa pelo castigo sofrido, pois, enquanto bem agiram, receberam o necessário. Esse
mecanismo não é muito diferente daquele que ainda hoje se verifica nas relações de
trabalho do Brasil, em que a causa da despedida e de tantas outras adversidades,
como a perda da lucratividade e o fechamento da empresa, são atribuídas aos tra-
balhadores (pouco eficientes, pouco produtivos, pouco competitivos ou muito custo-
sos), os quais, em sua maioria, assimilam “naturalmente” a sua culpa.
As origens patriarcais da sociedade brasileira podem ser explicadas por vá-
rios elementos que se conjugam com maior ou menor intensidade. Um desses
aspectos, muito lembrado entre os historiadores, é o isolamento experimentado
pelos proprietários rurais em relação à Coroa Portuguesa, de modo a exigir que
atuassem como soberanos do seu reino doméstico, no qual eram ao mesmo tempo
o pai, o senhor, o juiz e o delegado, sem conhecerem poder intermediário entre a
sua vontade e a vontade do Rei. Sucede que, além do exagero que cerca a tese do
isolamento, ele por si não é suficiente para explicar porque, mesmo depois da
Independência, o patriarcalismo e o personalismo persistiram e até se
intensificaram.
Com efeito, a instalação do paternalismo e sua continuidade na República pa-
recem muito dever às exigências do modo de produção capitalista sob regime es-
cravagista. A necessidade de se obter de forma voluntária parte da extrema domi-
nação que o regime precisava, exigia que a sujeição se estendesse para campos
imateriais, verdadeiros resquícios das técnicas de dominação da Antiguidade e da
Idade Média. A fonte desse paternalismo utilitário pode ser bem aferida na reco-
mendação de RIBEIRO ROCHA, um dos estudiosos que procuraram explicar os
principais métodos para uma adequada administração de uma propriedade rural es-
cravagista no século XVIII:
Quando repreenderem e castigarem estes cativos, seja sim o suplício
condigno e proporcionado, porém as palavras sejam sempre amorosas; e,
pelo contrário, quando lhes fizerem algum bem ou benefício, usem então
palavras mais dominantes, para que deste modo sempre o amor, o poder e
o respeito reciprocamente se temperem, de sorte que nem os senhores, por
102
rigorosos, deixam de ser amados, nem também, por benévolos, deixem de
ser temidos e respeitados.
220
Castigar amorosamente e receber afeto com rispidez: eis os elementos bási-
cos para construir a ideia do bom e severo pai, imagem da qual ficaram reféns tanto
senhores como escravos e, em certa medida, a própria sociedade brasileira.
As técnicas de administração da o-de-obra, todavia, o ficavam adstritas
às perversas formas de castigo/prêmio. Havia inúmeras técnicas, quase todas inspi-
radas pelo modo de administrar dos jesuítas, cujo pensamento era utilitarista e, apa-
rentemente, não se preocupavam em estabelecer critérios de uma moral homogê-
nea. Isso é que provavelmente explique a natureza desses ensinamentos e o fato de
nos registros não se observar nenhuma condenação explícita à promiscuidade se-
xual dos senhores de escravos. Isso talvez também explique a defesa que faziam da
possibilidade de alguém alienar livremente sua liberdade por meio de um contrato
221
, pois nesse ponto os jesuítas estavam em contraposição aos teólogos dominica-
nos que sustentavam a impossibilidade da servidão voluntária. Entre essas técnicas
destacam-se:
a) o estabelecimento de relações conjugais entre os cativos, como meio de
obter “resignação sujeitos ao domínio em razão da mulher e filhos, seus caros pe-
nhores, que os retêm e consolam
222
. Tudo indica, entretanto, que essa cnica não
foi muito utilizada, pois os senhores ainda assim podiam vender separadamente pai,
mãe e filhos, de sorte ser compreensível “que os escravos não vissem qualquer van-
220
ROCHA, Pe Manoel Ribeiro. Ethiope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e
libertado. Discurso theológico-jurídico em que se propõe o modo de comerciar, haver e possuir vali-
damente quanto a um e outro Foro os pretos cativos africanos e as principais obrigações que concor-
rem a quem deles se servir. Lisboa: Oficina Patricarcal de Francisco Luiz Ameno, 1758, p. 222, apud
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 117.
221
CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasili-
ense/Edusp, 1986, p. 150-152.
222
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o
controle dos escravos nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 179. É em parte
procedente a crítica de que essa compreensão pode conduzir ao exagero de fixar “na vontade senho-
rial o devir da história da escravidão” (FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senza-
las: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1997, p. 172). De fato, os escravos também se utilizavam das relações conjugais para es-
tabelecer parentescos (criar o “nósem contraposição ao “eles”), o que era utilizado tanto como tática
de resistência ao senhor como para enfrentamento dos “estrangeiros”, ou seja, de escravos recém-
chegados ou de outros grupos étnicos. Esses aspectos, contudo, não podem ser superdimensiona-
dos, pois a dominação dava ao senhor uma posição privilegiada no estabelecimento das regras.
103
tagem casar-se, e que os senhores não tivessem querido forjar laços que poderiam,
talvez, lhes criar problemas de consciência se tivessem de vender um dos membros
da família”
223
;
b) o uso da religião católica como mecanismo de construção de resignação
224
com a ordem estabelecida e por formação de um vínculo de familiaridade com a
cultura do senhor
225
. Ao mesmo tempo, o catolicismo funcionava “dialeticamente
como elemento ideológico de manutenção da escravidão ao nível do próprio escra-
vo”
226
;
c) a adoção sincrética de rituais de magia africana, cuja repercussão no Brasil
parece ter se amoldado perfeitamente a um tipo de moralidade vigente, de base uti-
litarista. A religião católica foi e era incapaz de, em sociedade escravocrata e bases
territoriais muito amplas, instituir uma moralidade baseada no valor do trabalho, ra-
zão pela qual os procedimentos sincréticos e as práticas rituais, inclusive de origem
indígena, supriam grande parte das necessidades espirituais, ao mesmo tempo em
que incutiam algum tipo de medo e de poder;
d) cuidados mínimos com a saúde, alimentação e vestuário dos cativos, não
por razões morais, mas por necessidade de aprimoramento da atividade produtiva.
Ensinava-se, na época, com o objetivo de melhorar o sistema produtivo, que “os
males da escravidão para a saúde do cativo eram agravados não pelo trabalho
223
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.
127.
224
A sociedade escravista conta com o apoio da Igreja para ensinar a seus trabalhadores as virtudes
da paciência e da humildade, a resignação e a submissão à ordem estabelecida. O catolicismo brasi-
leiro é uma religião de obrigações formalistas, autoritária, na qual o patriarca da família cumpre a fun-
ção de um chefe religioso. Na fazenda, o padre capelão, se é residente, lhe é totalmente subordinado
e perde contato por completo com seu bispo” (IDEM, ibidem, p. 114).
225
Também a adoção da religião católica parece ter sido da conveniência não apenas dos senhores
(os casais tinham menos motivos de queixa e eram considerados mais disciplinados), mas também
dos escravos, os quais a utilizaram em seu benefício como forma de resistir ou de suportar a escravi-
dão. “O casamento religioso era conveniente aos escravos. O deus dos católicos não aprovava a se-
paração de casais e, de fato, eram minoritárias as famílias cindidas quando da partilha de uma heran-
ça. A respeitabilidade conferida pelo sacramento católico ajuda a compreender a disposição com que
os falantes bantos puseram-se a frequentar e ressignificar o culto católico” (FLORENTINO, Manolo;
GÓES, José Roberto. Op. cit., p. 177). Assim, boa parte do sincretismo religioso se justifica pela ne-
cessidade de resistir e sobreviver, satisfeita por qualquer mecanismo colocado à disposição dos es-
cravos. Por isso, as técnicas dos senhores escravocratas não eram unilaterais, mas envolviam uma
complexa rede de respostas, de testes e de aperfeiçoamentos, a qual exigia uma participação direta
dos próprios escravos e acarretava algum mecanismo de resistência.
226
PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. 13ª. ed. São Paulo: Contexto, 1994, p. 42.
104
constante, que não cabia recriminar, mas sim pela fome e pelas privações físicas
desmedidas”
227
;
e) o pagamento de prêmios para os escravos que atingissem a meta de co-
lheita
228
ou outros mecanismos de remuneração de eventuais excedentes propicia-
dos ao senhor. “Essas práticas beneficiam o escravo urbano, o doméstico, o minei-
ro
229
”, e com os valores os escravos algumas vezes obtinham alforria, mas tinham
pouca aplicação no campo. Esses resquícios administrativos, entretanto, podem ser
percebidos até hoje, por exemplo, nos canaviais em que os trabalhadores laboram
até a exaustão para receber como “prêmio” (produção) algo próximo do piso míni-
mo;
f) a manutenção de agregados, feitores e outros homens livres
230
, intensa e
pessoalmente dependentes
231
, no entorno das relações entre senhores e escravos.
Os “feitores, agregados e lavradores situados à volta das grandes fazendas e enge-
nhos configuravam-se como uma camada distinta, cujos membros mantinham rela-
ções bastante próximas entre si e cujas atividades produtivas estavam ligadas às
grandes propriedades”
232
. A intermediação física do feitor servia de anteparo do se-
nhor com relação à violência cometida e, dessa forma, era um elemento estrutural
do paternalismo, mas todo esse entorno significava a existência de uma complexa
relação de “autonomia”, na qual trabalhadores livres, se comparados com os escra-
vos, permaneciam sob extrema dependência em relação aos senhores proprietários;
227
MENDES, Luiz Antônio de Oliveira. Memória a respeito dos escravos e tráfico da escravatura entre
a costa d’África e o Brasil (1793). Lisboa: Escorpião, 1977, p. 89 apud MARQUESE, Rafael de Bivar.
Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 183.
228
Exemplo disso: MARQUESE, Rafael de Bivar. Administração e escravidão: ideias sobre a gestão
da agricultura escravista brasileira. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 146.
229
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.
189.
230
Há que se ter em conta a multiplicidade de formas e de gradações que o “trabalho livre” apresenta-
va. “Ser pobre e livre nesse período era fazer parte de uma camada bastante fluida e em contínua
diversificação ao longo das diferentes conjunturas do declínio do escravismo, incluindo indivíduos com
os mais diversos níveis de posses” (MOURA, Denise Aparecida de. Saindo das sombras: homens
livres no declínio do escravismo. Campinas: Unicamp, 1998, p. 25).
231
Essa dependência não era simplesmente econômica, mas pessoal, e para afirmá-la eram utiliza-
das as mais diversas técnicas autoritárias, inclusive a convocação ou a ameaça de convocação para a
Guarda Nacional, sob alegação de vadiagem. A esse respeito: IDEM, ibidem, p. 183-214. É impres-
sionante a semelhança com os mecanismos de dominação utilizados pelos patrícios romanos sobre
os agricultores pobres, cuja convocação para o exército romano importava ao mesmo tempo em hon-
ra pessoal e em desgraça econômica.
232
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 178.
105
g) a concessão de alforrias como forma de obter maior rendimento e, acima
de tudo, manter o liberto sob sua dominação. Com efeito, a “doação de liberdade
sem contrapartida alguma era raríssima”
233
e, na maior parte das vezes, a compai-
xão do senhor consistia em permitir ao liberto que, com o trabalho prestado a si pró-
prio e a terceiros, pagasse o seu custo. Os senhores utilizavam a “alforria como mo-
tivação para trabalhar bem e bastante”
234
, e, ainda assim, era comum a praxe de
retardar o registro da carta de liberdade como tática para que a prestação dos servi-
ços continuasse durante toda a vida do senhor, mesmo depois de pago todo o pre-
ço. O liberto, quase sempre, mantinha um vínculo pessoal e de dependência em
relação ao seu antigo senhor, mesmo depois de formalizada a liberdade. “Liberto, o
escravo ainda estava preso a seu ex-senhor e, igualmente, o patrono a seu ex-
escravo. Às obrigações recíprocas somavam-se direitos: um novo contrato mantinha
a dependência e a submissão do liberto a seu ex-senhor”
235
, e a quebra desse con-
trato, em especial no que diz respeito ao dever de submissão, traduzia “ingratidão” e
poderia significar a perda da liberdade
236
generosamente concedida
237
;
h) o desenvolvimento de uma complexa rede de trabalho ligada à fuga e re-
captura dos escravos, pois estas faziam parte do sistema. Nessa rede assumia rele-
vo a figura singular dos “capitães-do-mato”, responsáveis pela busca e captura. Es-
tes, “ao mesmo tempo em que exerciam uma atividade necessária à continuidade
da dominação escravista, faziam-no de forma violenta, empregando meios que, por
233
IDEM, ibidem, p. 252. As cartas de alforria “impunham tantas restrições, tantas condições à liberta-
ção, que mais pareciam atos de chantagem à liberdade do que verdadeiros instrumentos de emanci-
pação” (MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990,
p. 239).
234
LARA, Silvia Hunold. Op. cit., p. 253
235
IDEM, ibidem, p. 267.
236
“Mas a alforria, gratuita ou onerosa, é revogável e nisso reside uma das ambiguidades tanto da
legislação, quanto da prática. Os motivos que o proprietário tem o direito de invocar podem ser intei-
ramente subjetivos. O senhor descobre de repente a ingratidão do seu antigo escravo? Anula o do-
cumento de alforria com a mesma facilidade com que o assinou. Somente após 1865 é que os tribu-
nais declaram inadmissível tal procedimento. Apesar desse embargo, a revogação da alforria por mo-
tivo de ingratidão, prevista no título 13 do livro 4 das Ordenações filipinas do século XVII, se mantém
oficialmente legal” (MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª. ed. São Paulo: Brasili-
ense, 1990, p. 180).
237
Esses aspectos demonstram a frágil separação entre liberdade e escravidão para os subalternos.
“Ser liberto não era ser livre... A visão de si mesmo como ser livre, casado com mulher branca que
podia herdar e dispor livremente de seus bens era-lhe negada pela lei e pelo costume senhorial” (LA-
RA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 267). Essa concepção
era suficientemente forte para permanecer no imaginário e nas relações sociais por muito tempo e
durou pelo menos durante toda a Primeira República (1889-1930), mas dele há resquícios até hoje.
106
não estarem diretamente nas mãos (ou sob controle) dos senhores, ameaçavam-
lhes a dominação”
238
. Por isso, a posição dos capitães-do-mato era ambígua, pois
ao mesmo tempo em que prestavam um serviço livre, viviam sob suspeição, e sobre
eles, além da dominação econômica, era frequente a sobreposição de um forte con-
trole policial;
i) a miscigenação dos senhores com as escravas. Esse era apenas um dos
estratagemas morais utilizados racional ou irracionalmente para a domesticação dos
escravos negros, prática também utilizada na tentativa de escravizar os índios, por
influência em Portugal das técnicas adotadas pelos mulçumanos na escravização
africana
239
. O mulato e o mameluco
240
, portanto, nessas circunstâncias, são resulta-
do de uma mesma moralidade utilitarista que permeou a colonização portuguesa. É
interessante que essa técnica de dominação também gerou uma tática de resistên-
cia. As vantagens para o escravo da miscigenação pode ser aferida no seguinte tex-
to de ANTONIL
Melhores ainda são, para qualquer ofício, os mulatos; porém, muitos deles,
usando mal do favor dos senhores, são soberbos e viciosos, e prezam-se de
valentes, aparelhados para qualquer desaforo. E, contudo, eles e elas da
mesma cor, ordinariamente levam no Brasil a melhor sorte; porque, com
aquela parte de sangue de brancos que têm nas veias e, talvez, dos seus
mesmos senhores, os enfeitiçam de tal maneira, que alguns tudo lhes
sofrem, tudo lhes perdoam; e parece que se não atrevem a repreendê-los:
antes, todos os mimos são seus. E não é fácil cousa decidir se nesta parte
são mais remissos os senhores ou as senhoras, pois não falta entre eles e
elas quem se deixe governar de mulatos, que não são os melhores, para
que se verifique o provérbio que diz: que o Brasil é o inferno dos negros,
purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos e das mulatas; salvo quando,
238
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 316.
239
“Já Omar, aconselhando a seus soldados que consolidassem os novos domínios do Islam pelo
estupro das mulheres dos paízes conquistados, proferia a phrase profunda que os filhos dessas uni-
ões allegariam sempre pertencer á raça do pae vitorioso. A esse phenomeno de ordem psychologica
outro factor ethnico se ligava: _ a crença arraigada dos selvicolas de que os filhos procediam exclusi-
vamente dos lombos do pae e os produtos deste connubio eram duplamente ligados aos colonizado-
res pela ascendencia paterna, reivindicada com orgulho pelos ensinamentos maternos, accordes com
as normas do direito da familia indigena. É fácil comprehender o papel importante por elles desempe-
nhado na dominação de selvicolas em sua chamada para o litoral, em sua progressiva destruição,
portanto, ao contacto de raças mais fortes e pelo desenvolvimento de vícios possuídos em embryão”
(BANDEIRA DE MELLO, Affonso de Toledo. O trabalho servil no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento
de Estatística e Publicidade do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, 1936, p. 24 texto man-
tido conforme o original).
240
O Pai é o grande ausente nesse tipo de acomodação social, modelo no qual uma introjecção de
culpa é inevitável: o filho busca pelo pai, mas dele não possui nem sequer o “nome”. A “bênção” do
pai é o desejo impossível de ser alcançado e por esse estratagema o pai não pode ser morto, mas
pode ser negado. Assim, resta ao filho seguir adiante independente de sua filiação, (re)fundando-
se a cada dia. Provavelmente esse era uma dos principais mecanismos utilizados para obter a “paz”
das senzalas, mas não era o único e talvez nem sequer tenha sido o principal.
107
por alguma desconfiança ou ciúme o amor se muda em ódio e sai armado
de todo gênero de crueldade e rigor.
241
j) a cessão de pequeno terreno de terra para cultivo de subsistência
242
, com-
binado com a concessão de folga em domingo e dias santos para o respectivo culti-
vo, de modo a criar um vínculo pessoal por meio desse “favor”.
As táticas de dominação, contudo, não ficavam livres de interferências e de
resistências. A primeira e mais importante dessas tensões estava no interesse da
própria Coroa Portuguesa de controlar a produção colonial e, ao mesmo tempo, ob-
ter a “submissão dos colonos como ditos fiéis”
243
. Por isso, o governo central pro-
curava extirpar eventuais excessos do poder senhorial, os quais poderiam colocar
em risco a própria dominação metropolitana.
Outra tensão significativa estava na relação conflituosa entre os próprios se-
nhores, pois não eram incomuns conflitos de interesses e de poder, muitos dos
quais resultavam em ataques diretos e armados. Assim, se o poder do rei muitas
vezes estava distante, o do vizinho servia de contrapeso ou exigia algum tipo de in-
termediação e composição.
Outro aspecto importante pode ser verificado na resistência dos próprios es-
cravos, que adotavam medidas como a recusa de ser vendido ou de realizar deter-
minados serviços. Os escravos procuravam por meio de todos os mecanismos de
que dispunham minorar o sofrimento da escravidão ou obter modos de alcançar a
liberdade. Esses mecanismos iam desde a utilização de contraestratégias às técni-
cas de administração dos senhores, como a constituição de famílias, os vínculos de
parentesco e a invocação da religião católica, à prática da prostituição
244
para adqui-
241
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil: texto confrontado com o da edição de 1711.
3ª. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, p. 89-90.
242
“Costumam alguns senhores dar aos escravos um dia em cada semana, para plantarem para si,
mandando algumas vezes com eles o feitor, para que se não descuidem; e isto serve para que não
padeçam de fome nem cerquem cada dia a casa de seu senhor, pedindo-lhe a ração de farinha” (I-
DEM, ibidem, 1982, p. 91).
243
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 324.
244
“Forrar mulatas desinquietas é perdição manifesta, porque o dinheiro que dão para se livrarem,
raras vezes sai de outras minas que dos seus mesmos corpos, com repetidos pecados; e, depois de
forras, continuam a ser ruína de muitos” (ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil: texto
confrontado com o da edição de 1711. 3ª. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, p. 90).
108
rir a alforria, bem como o uso de medidas judiciais ou a própria fuga e constituição
de quilombos. É verdade que, como explica LARA:
[...] tais situações evidenciam também o quanto esse poder se efetivava e
reafirmava na própria prática, seja a do castigo físico (no confronto com os
escravos), a da utilização de milícias particulares de escravos e agregados
(no confronto com outros senhores), seja a da apropriação privada de
postos e administrativos e judiciais (no confronto entre grupos senhoriais
diversos). Essa luta empreendida pelos senhores para a manutenção do seu
poderio, a utilização dessas diversas estratégias e, especialmente, o
sucesso obtido por alguns deles é que forneceram condições para aquela
imagem cristalizada da fragilidade do poder público no interior da Colônia.
Esta imagem, entretanto, torna-se incapaz de dar conta da própria
existência desses múltiplos embates.
245
O fato é que, entre as várias táticas de sobrevivência, o escravo, que “era ao
mesmo tempo um inimigo doméstico e público... podia aproveitar-se dos conflitos
existentes entre os senhores, mediados ou não pela instância pública, selecionando
forças, estratégias e alianças possíveis ou favoráveis à consecução de seus pró-
prios objetivos”
246
.
Tudo indica que “paternalismo” e “violência” no sistema de produção escrava-
gista brasileiro eram elementos que, além de não serem antagônicos, constituíam
uma “união química”
247
, determinada pelas estruturas sociais e produtivas do regime
colonial. Por isso, não tem sentido distinguir “crueldade” ou “benignidade” da escra-
vidão, assim como a violência não pode ser considerada a essência do regime es-
cravocrata, por se tratar de um elemento homogêneo de todo o sistema, aspecto
que a torna insuficiente ou até irrelevante para explicar o processo de constituição
da sociedade colonial brasileira.
“Mais que no título da propriedade, a relação senhor-escravo assentava-se
efetivamente no exercício da dominação na prática cotidiana do poder senhorial”
248
.
Tanto é verdade que, quando o negro era apanhado sem documento comprobatório
de sua condição de liberto, ainda que seu dono não fosse encontrado, ele era re-
conduzido à condição de escravo e prestava serviços a terceiro. Negros e mulatos
245
LARA, Silvia Hunold. Op. cit., p. 325.
246
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 340.
247
IDEM, ibidem, p. 107.
248
IDEM, ibidem, p. 244.
109
estavam sempre sob a suspeição de serem escravos fugidos, e se presumia
249
que
não fossem libertos. Ao mesmo tempo em que era “coisa” (objeto de propriedade), o
escravo também era, provavelmente com maior intensidade, um “dominado” (pes-
soa unida a vínculos pessoais com o senhor, a quem devia obediência e reconheci-
mento
250
).
Para internalizar a obediência, o castigo “continha uma dimensão pedagógica
que unia amor e medo, mercê e rigor, e se fazia no interior de uma relação pessoal
de dominação que, através de suas mediações, possibilitava um afastamento se-
nhorial do exercício direto dos ‘excessos’ e ‘abusos’”
251
. Esse aspecto (o afastamen-
to do pai) era fundamental para que o senhor conseguisse introduzir o sentimento
de culpa no escravo, daí a importância real e simbólica do feitor, elemento interme-
diário e imprescindível para o adequado momento da “dor”, ao mesmo tempo em
que esta passava a ser (real ou simbolicamente) a condição para o “prazer” da pre-
servação da vida, a ser obtido pela “generosidadedo pai. É evidente que esse não
era um mecanismo facilmente aplicável, nem de resultado certo, mas foi muito prati-
cado, o que, por si, demonstra a sua eficácia.
Somente uma visão superficial, que despreze sofrimentos e recalques mais
profundos, poderia acarretar um comentário, como o de PERRY ALVIN MARTIN,
professor da Universidade de Stanford:
Essa ausência de odio de raça é talvez o phenomeno mais singular em toda
a historia do movimento abolicionista. Graças às circumstancias peculiares,
sob a quaes se praticou a abolição, o desapparecimento da escravidão não
deixou ás demais gerações uma herança de odio eterno ou problemas não
resolvidos.
252
(texto como o original)
249
“O ordinário se presume: eis a presunção mãe, a árvore genealógica das presunções. [...] Se o
ordinário se presume, o extraordinário se prova: eis o princípio supremo para o ônus da prova; princí-
pio supremo que chamamos de ontológico, enquanto encontra seu fundamento imediato no modo
natural de ser das coisas” (MALATESTA, Nicola Framarino del. A lógica das provas em matéria crimi-
nal. Trad. Waleska Girotto Silverberg. Campinas: Conan, 1995, p. 136).
250
Daí a prática comum de exigir que os escravos pedissem a bênção antes de se recolherem, como
forma de estabelecer um vínculo ainda mais pessoal com os senhores pelo uso da religião, do apadri-
nhamento e das rezas. Buscava-se a constituição de um vínculo comum pela figura do “pai” (patrão,
senhor), em típica personalização do superego, que deixa de ser um elemento moral e inconsciente
para se introjectar no ego de cada dominado.
251
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 342.
252
MARTIN, Percy Alvin. La esclavitud y su abolición en el Brasil. Revista Americana de Buenos Aires,
1936, apud BANDEIRA DE MELLO, Affonso de Toledo. O trabalho servil no Brasil. Rio de Janeiro:
Departamento de Estatística e Publicidade do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, 1936, p.
62.
110
Essa poderia ser uma visão simplificada de um estrangeiro, o fosse ser i-
gualmente disseminada entre os “brasileiros”, os da elite branca que havia governa-
do o País, ou seja, dos próprios senhores de escravos. Esse ponto de vista não leva
em conta as tensões mais profundas da sociedade escravagista
253
porque tem por
finalidade justificar a (continuidade da) exploração sem fim da mão-de-obra. Assim,
não se trata de uma concepção totalmente ingênua e desinteressada, mas calcada
na instituição daquilo que seria o mito da docilidade (ou da servilidade?) brasileira.
Nessa perspectiva, a benignidade dos senhores de escravos era a moral geral, bem
de acordo com a moral de Locke, e as atribulações dos negros e a injustiças “inevi-
táveis” contra eles cometidas eram atribuídas aos feitores (negros ou mulatos) ou às
intrigas das mucamas.
254
Ainda que com esses “inconvenientes”, o resultado da es-
cravidão é amplamente favorável aos negros, pois, como afirmava BANDEIRA DE
MELLO, “A vida partiarchal das fazendas mantinha necessariamente o sentimento
de solidariedade entre o senhor e os escravos, que ante a brandura dos costumes,
se mostravam pacíficos sob o regimen servil”
255
(no original).
Segundo esse ponto de vista, toda a benignidade dos brancos para com os
escravos negros, a tolerância e a liberalidade da classe dirigente não pode esconder
um elemento “essencial” da desigualdade brasileira, conforme afirmou BANDEIRA
DE MELLO:
A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus serviços, por
mais justificadas que sejam as symphathias de que a cercou o revoltante
abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exaggeros
dos seus thuriferarios, de constituir sempre um dos factores da nossa
inferioridade como povo.
Abstrahindo, da condição de escravos em que os negros foram introduzidos
no Brasil, e apreciando as suas qualidades de colonos, consideramos a
supremacia immediata ou mediata da raça negra nociva á nossa
nacionalidade
256
(no original).
253
“A aparente amenidade das relações que se estabelecem entre senhores e escravos, a semelhan-
ça de uma adaptação da mão-de-obra obediente e humilde é, na verdade, uma forma eficaz e sutil da
resistência do negro face a uma sociedade que pretende despojá-lo de toda uma herança moral e
cultural” (MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990,
p. 103).
254
Isso é afirmado expressamente por: BANDEIRA DE MELLO, Affonso de Toledo. O trabalho servil
no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento de Estatística e Publicidade do Ministério do Trabalho, Indús-
tria e Comércio, 1936, p. 62.
255
IDEM, ibidem, p. 63.
256
IDEM, ibidem, p. 87.
111
Não se pode deixar enganar pela associação explícita entre “negros” e “inferi-
oridade do povo brasileiro”. nesse perverso quadro mental algo mais profundo,
que tende a associar “inferioridade do povo brasileiro” a “povo brasileiro”. As elites
econômicas ansiavam por um “branqueamento” europeu, e isso foi até um dos moti-
vos que tornou possível a Abolição, pois, em relação a muitos abolicionistas, “o que
parece, à primeira vista antiescravismo, é, a rigor, imigrantismo
257
. O quadro simbó-
lico que se contrapunha era o “trabalho do brasileiro” com o “trabalho do europeu”,
visto este como mais eficaz e civilizado. O branqueamento almejado não era sim-
plesmente étnico, mas também ético e econômico. É o senhor a libertar-se do es-
cravo. O padrão simbólico do Outro, o que ficou na Europa, continuou a influir deci-
sivamente no sistema de produção e nas relações morais da elite brasileira. A supe-
ração da escravidão e do seu atraso era também a superação do brasileiro, daquilo
que era nocivo à “nossa” (deles) nacionalidade. A apologia do assalariamento reali-
zada pelo Partido Liberal, a partir da crise política de 1868, era em larga medida a
apologia do europeu. O arquétipo social continuou a ser o que estava fora, mas ago-
ra se pensou em trazer o Pai. O Édipo poderia finalmente terminar (ou começar) o
seu projeto de civilização moderna.
Não se deve conceber a ordem escravagista nem os seus reflexos, portanto,
de forma simplista, como se fossem um caminho natural para o trabalho livre ou
que, por guardar em alguns aspectos semelhanças com o trabalho livre, não possu-
íssem uma peculiar marca de violência e de perversidade. Havia grande complexi-
dade em todas as relações de poder que envolvessem esse sistema de exploração
257
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 224.
112
de trabalho.
258
A dialética social, nessas circunstâncias, estava permeada por diver-
sos campos de discurso simbólico, vários deles muito marcantes no inconsciente
coletivo.
É nesse contexto que se estabelece o habitus precário”, ou seja, um “tipo de
personalidade e de disposições de comportamento que o atendem às demandas
objetivas para que, seja um indivíduo, seja um grupo social, possa ser considerado
produtivo e útil em uma sociedade de tipo moderno e competitivo, podendo gozar de
reconhecimento social com todas as suas dramáticas consequências existenciais e
políticas”
259
. São múltiplos os elementos condicionantes dessa condição social, mas
certamente a origem não é exclusivamente econômica, como com razão insiste Jes-
sé Souza.
O estabelecimento de um sistema de produção em que se busca o estabele-
cimento de vínculos quase familiares com os dominados por meio de sentimentos
ambíguos como dor, prazer, culpa
260
, medo e admiração constitui uma poderosa
258
Parece no mínimo exagerado atribuir a pouca adesão dos escravos libertos aos contratos de par-
ceria à falta de cultura e à baixa experiência familiar dos negros. Ao contrário, o estabelecimento de
vínculos familiares foi justamente uma das estratégias de resistência mais importantes dos escravos.
O que sucede é que os negros muito mais facilmente associaram o sistema de parceria ao regime de
dominação que conheciam, o qual era ignorado pelos imigrantes europeus. A afirmação de que “o ex-
escravo passa a viver para suprir apenas as suas necessidades, renunciando ao modelo de parceria”
(MACHADO, Sidnei. Trabalho escravo e trabalho livre no Brasil alguns paradoxos históricos do Di-
reito do Trabalho. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, v. 38,
2003, p. 154) parece associar a parceria com acumulação de riqueza ou em ganhos superiores aos
das necessidades dos trabalhadores, o que é equivocado. De qualquer forma, a associação de “traba-
lho livre” a “homem branco” parece ter fundamentos muito mais profundos, relacionados principalmen-
te com o desejo de “branqueamento” (ocidentalização) das elites políticas, as quais empreenderam
uma tentativa quase desesperada de “assimilação dos valores da modernidade individualista ociden-
tal” (SOUZA, Jessé. Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira. In: SOUZA, Jessé (org.). De-
mocracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora UnB, 2001,
p. 327). A incompletude dessa assimilação, em grande parte reflexo da concomitante necessidade de
se manter pelo menos em parte o “princípio personalista hierarquizador”, é uma das responsáveis
pelo fato de a desigualdade social abismal entre nós ser, em tão grande medida, ‘justificada’ e natu-
ralizada. Teríamos assim uma cultura marcada por uma singularidade perversa: uma ocidentalização
com desigualdade” (IDEM, ibidem, p. 326).
259
SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade
periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 167.
260
Conforme ensina Freud (FREUD, Sigmund. El malestar en la cultura. In: Obras completas de Sig-
mund Freud. . ed. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981, tomo III, p. 3056), as origens do senti-
mento de culpa são o medo da autoridade e o temor ao superego. O medo da autoridade (no caso
brasileiro entranhado não apenas no senhor, mas em toda a estrutura de dominação) obriga a que se
renuncie à satisfação dos instintos. O temor ao superego impulsiona ao castigo, pois não é possível
ocultar perante o superego a persistência de desejos proibidos. Há uma complexa, importante e direta
relação entre renúncia a instintos e sentimento de culpa.
113
forma de criação de condições para uma sociedade sadomasoquista. Com efeito, o
poder puramente pessoal dos proprietários conduziu, como explica SOUZA, a um:
[...] conceito limite de sociedade, onde a ausência de instituições
intermediárias faz com que o elemento familístico seja seu componente
principal. Dporque o drama específico dessa forma societária passa a ser
descrito a partir de categorias social-psicológicas cuja gênese aponta para
as relações sociais ditas primárias. É precisamente como uma sociedade
constitutiva e estruturalmente sadomasoquista, no sentido de uma patologia
social específica, onde a dor alheia, o não-reconhecimento da alteridade a
perversão do prazer transformam-se em objetivo máximo das relações
interpessoais [...].
261
É verdade que certo exagero, como bem demonstra LARA, na ênfase que
se na alegação de que estavam ausentes no regime colonial brasileiro as “institu-
ições intermediárias”. Em realidade, elas eram insuficientes e, acima de tudo, esta-
vam a serviço da própria estrutura colonial, sem que, de qualquer modo, deixassem
de interferir em alguma esfera de poder dos senhores. O que de peculiar é a
promiscuidade e a complexidade dessas múltiplas interferências. De qualquer modo,
tudo indica que a nossa experiência histórica conduziu a uma patologia
262
social es-
pecífica que, se o pode ser elevada ao patamar de única responsável por nossas
mazelas, deve ser considerada nas tentativas de superar a nossa profunda tendên-
cia à desigualdade.
Em uma sociedade com ltiplas faces, em parte das quais se verifica uma
tendência social sadomasoquista em razão do modo como foi instituída a alteridade
do trabalho, o é tarefa das mais ceis superar as condições que inclinam para a
261
SOUZA, Jessé. Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira. In: SOUZA, Jessé (org.). De-
mocracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora UnB, 2001,
p. 301.
262
O masoquismo pode ser definido como uma representação ou fantasia cujo conteúdo manifesto
consiste em que o sujeito é amordaçado, manietado, golpeado, fustigado, maltratado em uma forma
qualquer, obrigado a uma obediência incondicional, emporcalhado e humilhado” (FREUD, Sigmund. El
problema econômico del masoquismo, p. 2753-2754). Como o masoquista quer ser tratado como um
menino pequeno, inerme e sem independência, resulta daí uma tendência à inércia, à falta de iniciati-
va direta para o prazer, de modo que seu agir prefere a transgressão da qual possa resultar um casti-
go.
114
morte e para a dor grande parte da população
263
. Para superar esses limites estrutu-
rais é necessário construir novos símbolos que possam ser apreendidos e assumi-
dos como ruptura com uma ordem que tende à desconsideração da pessoa e do
corpo do outro. Essa ruptura é tanto mais difícil porque o masoquismo moral parece
decorrer de um inconsciente sentimento de culpa, por meio do qual o indivíduo sen-
te que cometeu algum fato punível, em razão do qual deve ser castigado
264
. Trata-
se de um sentimento que transita entre o desejo de morrer e o princípio do prazer,
que é o “guardião da vida”
265
, aspecto bem compreensível em estruturas societárias
em que o trabalho é exigido com tal intensidade e desprazer que torna razoável o
desejo de morte.
266
O masoquismo parece ser uma forma de resistência do ser hu-
mano ao desejo ou à proximidade da morte ou um resquício do amálgama entre o
instituto de morte e a preservação da vida (Eros).
267
Enquanto o controle puramente moral possui uma relação direta apenas com
o superego (a fonte sádica), ao qual se submete o ego, no caso do masoquismo
moral a demanda por castigo, a fonte do sadismo é o próprio ego. O masoquismo
263
As condições atuais de hiperconsumo parecem constituir uma dificuldade adicional para esse en-
frentamento, pois se acentua no mundo do trabalho o culto ao desempenho individual. Se os hinos à
competitividade e ao envolvimento subjetivo fazem sucesso, eles são tudo, menos apreendidos como
disciplinas de salvação pessoal, visto que acompanhados de insegurança profissional e identitária, de
debilidade da autoestima, de ‘sofrimento no trabalho’” (LIPOVETSKY, GILLES. A felicidade paradoxal:
ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Trad.: Machado, Maria Lucia. São Paulo: Cia. das Letras,
2007, p. 268). Essa dor é paradoxal visto que, quanto “mais se propaga a cultura de eficácia, mais se
assiste à psicologização das expectativas de bem-estar no trabalho” (IDEM, ibidem, p. 270). Assim, o
trabalho se converte em ambiente de sentimentos contraditórios e ambivalentes, a misturar dor e pra-
zer, isso tudo sem considerar o fato de constituir uma condição não imprescindível, mas relevante,
para o prazer hedonístico do consumo das classes médias e pobres.
264
FREUD, Sigmund. El problema económico del masoquismo. In: Obras completas de Sigmund
Freud. 4ª. ed. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981, tomo III, p. 2754.
265
IDEM, ibidem, p. 2753.
266
No liberalismo político clássico aceitava-se e justificava-se a escravidão pela possibilidade de o
escravo optar pelo suicídio, o que fundava a ideia de que até o escravo é, em alguma medida, livre.
Por isso, Locke depois de justificar a escravidão na culpa do próprio escravo e no pacto de preserva-
ção entre senhor e servo, afirma que o escravo “sempre que achar ultrapasse o sofrimento da escra-
vidão ao valor da própria vida, esnas suas mãos, pela resistência à vontade do senhor, atrair sobre
si a morte que deseja” (LOCKE, John. Segundo tratado sobre o Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São
Paulo: Ibrasa, 1963, p. 18). Nessa perspectiva, ao escravo resta duas possibilidades apenas: a própria
morte (Tanatos) ou a preservação da vida (Eros) por meio da dor. Não são diferentes as opções que
essa ideologia oferece aos trabalhadores “livres”, os quais dispõem apenas do trabalho para a sobre-
vivência. Essa perspectiva liberal, contudo, justifica a resistência dos escravos (e por igual raciocínio a
dos trabalhadores livres), pois o suicídio do escravo seria o ápice da busca da liberdade e ao mesmo
tempo a aniquilação da propriedade alheia.
267
FREUD, Sigmund. El problema económico del masoquismo. In: Obras completas de Sigmund
Freud. 4ª. ed. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981, tomo III, p. 2755.
115
moral requer castigo tanto do superego como de “poderes parentais externos”
268
,
mas por decorrer do próprio ego “a tendência masoquista do ego permanece quase
sempre oculta à pessoa e deve ser deduzida de sua conduta”
269
.
O sadomasoquismo social constitui um problema relevante, pois, ao contrário
do que se imagina, o elemento sádico e o elemento masoquista estão interligados.
No mesmo indivíduo os dois elementos estão presentes como necessários à reali-
zação de um mecanismo psíquico, de sorte que não se restringe o sadismo a
uma classe ou grupo e o masoquismo a outro. Além disso, como no masoquismo há
o desejo de ser maltratado pelo “pai” (senhor), isso cria a permanente tentação de
cometer atos pecaminosos, pois para “provocar o castigo por esta última represen-
tação parental tem o masoquismo que obrar inadequadamente, trabalhar contra seu
próprio bem, destruir horizontes que se abrem no mundo real e, inclusive, por fim à
sua própria existência real”
270
.
Uma sociedade, como a brasileira, que tenha procurado introjetar no indiví-
duo dominado a ideia de renúncia a prazeres maiores e proibidos em troca de pra-
zeres morais ou imaginários (o amor do pai), poderia produzir contradições entre
o princípio de severidade/autoridade e renúncia/agressividade/passividade. Isso foi
engendrado como se uma pré-existente consciência moral (superioridade do bran-
co/inferioridade
271
cultural do negro, compaixão/severidade) governasse “natural-
menteas relações de mundo, e tudo isso foi utilizado em complexos mecanismos
de prazer e dor.
268
FREUD, Sigmund. El problema económico del masoquismo. In: Obras completas de Sigmund
Freud. 4ª. ed. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981, tomo III, p. 2758.
269
IDEM, ibidem, p. 2758.
270
IDEM, ibidem, p. 2758.
271
A lógica escravista exige para a subsistência do sistema “apregoar o princípio da inferioridade do
escravo face ao branco livre” (GUIMARÃES, Carlos Magno. A negação da ordem escravista: quilom-
bos em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988, p. 21), justamente para inserir no do-
minado o sentimento infantil de culpa.
116
O término do regime escravista não eliminou, por si só, esses mecanismos,
porque eles, em grande parte, também se estendiam ao trabalho tido como livre
272
,
bem como houve tentativa de continuidade dos mesmos mecanismos com os imi-
grantes. Tanto na escravidão como nas formas de trabalho livre é necessário algum
tipo de adesão subjetiva do trabalhador à ordem do tomador dos serviços e em am-
bos estão presentes mecanismos de coerção para o trabalho. O modo como se
constrói essa adesão é que difere do regime de liberdade para o sistema de escra-
vidão, mas nuances de tal monta entre um sistema e outro, e uma (con)vivência
tão entrelaçada
273
, que por vezes é difícil distinguir liberdade, escravidão e servidão
voluntária. Era inevitável na estrutura do sistema colonial essa promiscuidade.
274
Por isso, “sob a capa do trabalho livre, os traços mais vivos da servidão e
vestígios evidentes do escravismo”
275
foram instituídos em novas formas de traba-
lho, só superficialmente contratuais, como se deu com a parceria. Os imigrantes (co-
lonos), provenientes a partir dos meados do século XIX, principalmente da Europa,
mas também da Ásia, ao se inserirem nessa sociedade tiveram que amoldar suas
culturas e estabelecer um novo tipo de diálogo, mas foi difícil essa comunicação em
decorrência dos diferentes modos (diferentes culturas) de conceber a liberdade. Os
contratos que foram lavrados na época, como os do Senador Vergueiro, bem de-
monstram que a nossa concepção contratualista sempre foi frágil.
272
“No campo, os agregados trabalham a terra do chefe da família, que lhes alimento e proteção.
São como uma força policial a serviço do senhor naqueles lugares em que a administração pública é
ausente; são os jagunços do chefe da casa. Na cidade, são trabalhadores, cujo labor acrescenta à
renda da família. Alforriados ou livres, vivem à sombra da família da qual dependem, mas que neces-
sita de seus serviços. Contudo, para os senhores poderosos, donos de engenho, concessionários de
minas de ouro ou plantadores de café, com seus grandes lucros, é uma questão de prestígio manter
sob seu teto e gratuitamente a multidão de parentes e agregados. Recusar a proteção a quem a solici-
ta seria um rebaixamento... O chefe da casa é o pai de todos, e o escravo, como os outros membros
da família, deve persuadir-se de que é ‘cria’ da casa, filho menos privilegiado que os filhos, mas nem
por isso menos filho” (MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª. ed. São Paulo: Bra-
siliense, 1990, p. 124).
273
“Difícil não notar este viver tão junto, uma vez que, entre a pobreza livre e remediada, era comum
ser proprietário de um ou outro cativo e, nesta condição, a própria escravidão se redefinia, assumindo
outras faces(MOURA, Denise Aparecida de. Saindo das sombras: homens livres no declínio do es-
cravismo. Campinas: Unicamp, 1998, p. 215).
274
“A própria estrutura e natureza da sociedade latifundiária e escravocrata deu origem, portanto, a
uma formação sui generis de homens livres e sem propriedade, que não foram integrados na produ-
ção mercantil propriamente dita, mas mantinham ligações com o sistema e contribuíam em parte para
a sua sustentação,...” (SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira, trabalho livre e cotidiano. São
Paulo: Edusp, 2005, p. 58).
275
GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968, p.
97.
117
De qualquer modo, a inserção de uma forma de trabalho quase totalmente
desconhecida da sociedade brasileira, o trabalho efetivamente livre, não poderia se
realizar sem choques e sem dificuldades. Não é difícil imaginar por que o trabalho
livre tenha sido imaginado pela elite econômica do século XIX muito mais como um
mecanismo de obtenção de “braços” servis. No aspecto cultural, a importação do
trabalhador europeu residia tanto na finalidade de “branquear” a nossa estrutura so-
cial, um sentido racista expressamente veiculado no Parlamento
276
, como nos fins
econômicos, pois o principal desejo sempre foi o de suprir o trabalho escravo, daí
porque houve tantos conflitos entre patrões e contratados. O contrato era o instru-
mento por meio do qual os proprietários rurais brasileiros pretendiam quase escravi-
zar os colonos europeus.
A imigração de europeus para suprimento de mão-de-obra, conseguintemen-
te, acabou por ser inserida em práxis social bem distante do liberalismo, embora
dele se aproximasse em termos de discurso. A dissensão entre discurso formal e
prática social, todavia, foi uma característica marcante da elite econômica brasileira.
Por meio de dissensos e consensos, o trabalho do imigrante (colono) acabou por
moldar uma nova estrutura, mas de certa forma também foi moldado pela estrutura
anterior
277
, visto que essa precedente estrutura é que lhe serviu de modelo compa-
rativo.
As modalidades de trabalho impostas aos imigrantes, formalmente contratu-
ais, mas intrinsecamente pessoais, foram instituídas por meio de um engodo
278
e
persistiram durante muito tempo, e até hoje ainda são arquétipo de relações de po-
der coloniais, principalmente no campo. Em vez da almejada propriedade da terra,
276
A esse respeito: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imagi-
nário das elites – século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 140-146.
277
“Foi o colono certamente quem escreveu a divisa comtiana sobre a bandeira do Brasil: Ordem e
Progresso. Sobretudo ‘ordem’. Pois se ele pedia algo ao país, era o contrário do pedido do coloniza-
dor: não um corpo de gozo além do interdito paterno, mas um interdito paterno que, impondo limites
ao gozo, fizesse dele um sujeito, o assujeitasse” (CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil!: notas de um
psicanalista europeu viajando ao Brasil. São Paulo: Escuta, 1991, p. 20).
278
“O que importa aliás não me parece ser a privação de bens prometidos que não foram oferecidos.
É a mentira em si que se revela trágica, sobretudo se confirmando quando a resposta ao apelo do
colono a uma autoridade terceira, que intervenha no laço de escravidão que lhe é imposto, revela que
não autoridade terceira, que a partida se joga a dois, na confrontação de forças ímpares. A tragé-
dia é a descoberta que a autoridade que assinou, por intermediário, o contrato é a marionete inconsis-
tente do colonizador que pede corpos para explorar. Tanto mais que o contrato, por ser contrato e
engajar o colono, antecipava o seu sonho de reconhecimento e de cidadania” (IDEM, ibidem, p. 28-
29).
118
aos colonos se permitia a posse
279
, esta utilizada como mecanismo de explora-
ção e não de plena fruição, como bem observa GUIMARÃES,
Salvo um ou outro caso legítimo de parceria, como, por exemplo, o dos
fornecedores de cana, estes, ainda assim, subordinados ao monopólio de
compra e a outras relações de dependência dos usineiros, a “parceria”
desde Vergueiro, bem como a meação, a terça, a quarta, o colonato, etc.
são sistemas de arrendamento primitivo, ora aproximando-se da renda-
trabalho, ora da renda-produto, todas estas aparentadas com as formas
feudais ou semifeudais da renda pré-capitalista, e cuja principal
característica é a limitação da liberdade do cultivador ou sua dependência
servil ao senhor da terra.
280
Esses resquícios coloniais nos contratos de parceria eram mais evidentes no
século XIX, principalmente nas cláusulas que permitiam a um fazendeiro transferir o
trabalhador imigrante para outro, desde que o transferido não tivesse motivo justo
ou fundado para recusar essa transferência, de modo que “o colono se transformava
numa ‘peça’, como o eram os escravos, que podia ser ‘transferida’, isto é, vendida, a
outro fazendeiro, desde que não tivesse motivos ‘justos’ para a recusa”.
281
Nesse ambiente, o fundamento do trabalho só podia ser o contrato, mas o ob-
jeto parecia aos proprietários ser o próprio corpo do trabalhador. Aliás, não o seu
próprio, mas o de toda a sua família, porquanto grande parte das contratações era
grupal (familiar), o que revela o caráter pessoal como o trabalho era visto e o modo
autoritário e unilateral como a prestação de serviços era concebida. Nessa perspec-
tiva, o fundamento da subordinação pode ser a sujeição pessoal e hierárquica ao
“patrão”. As arbitrariedades dos preços de compra e venda de produtos, as taxas de
juros, o valor dos alugueres dos casebres, tudo era engendrado para que o imigran-
te ficasse “ligado à fazenda por uma dívida insolvível perfeitamente comparável ao
preço da liberdade para o escravo”
282
, somado ao fato de que dos apelos dirigidos à
279
O engano se confirma na separação de propriedade e posse na colonização brasileira. Separação
específica, ignorada pelo bandeirante norte-americano. No pedido de terra, parece assim não ser
escutada a demanda de um nome e de cidadania que seria reconhecida pela atribuição da proprieda-
de. Propor a quem quer terra a simples posse já é interpretar o seu pedido como uma se demandasse
o acesso a um gozo, e à filiação nenhuma” (CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil!: notas de um psica-
nalista europeu viajando ao Brasil. São Paulo: Escuta, 1991, p. 103-104).
280
GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968, p.
99.
281
IDEM, ibidem, p. 98.
282
CALLIGARIS, Contardo. Op. cit, p. 27.
119
autoridade para que “reconheça sua condição de explorado, [sobrevinha] a desco-
berta de que a autoridade é a sombra do fazendeiro que o explora”.
283
Tendo em conta que o Brasil até hoje é ainda um país baseado em meios de
produção rurais, cuja maior parte da população até pouco tempo vivia no campo,
não é difícil vislumbrar o impacto que esses modos de produção e de dominação
causaram em significativa parcela da população.
284
O problema da escravidão, por-
tanto, foi a instituição de um padrão moral, um modo de ver e reconhecer as classes
baixas, que tornou mais difícil e lenta a introjeção do trabalho e da moral modernos,
baseados no contrato e não em relações pessoais, e é por isso que, mesmo na inci-
piente indústria da Primeira República, práticas repressivas próximas da escravidão
continuaram a ser adotadas
285
.
Era por esse viés que o próprio trabalho livre, realizado na época do regime
escravocrata, sofria influxos do sistema de trabalho prevalecente, razão pela qual a
“dominação entre homens livres configurou-se num forte sistema autoritário, basi-
camente constituído por associações morais”
286
. A moralidade dos trabalhadores
283
CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil!: notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. São
Paulo: Escuta, 1991, p. 27-28.
284
Essa estrutura não se modifica pela introdução da “racionalidade” no sistema de produção agrope-
cuária. “Dentro desses padrões de existência, as fazendas prosperam e os que nelas trabalhavam
seguem, o mais das vezes, o seu destino aquém da humanidade” (FRANCO, Maria Sylvia de Carva-
lho. Homens livres na ordem escravocrata. 3ª. ed. São Paulo: Kairós, 1983, p. 225). Nas indústrias
brasileiras do final do século XIX e início do século XX, “explorar os trabalhadores até seu esgotamen-
to, não mostrando qualquer preocupação particular com a reprodução da força de trabalho dessa
mão-de-obra facilmente substituível, era, do ponto de vista dos empregadores, uma prática bastante
racional, por mais imoral que ela possa nos parecer” (BATALHA, Claudio. Limites da liberdade: traba-
lhadores, relações de trabalho e cidadania durante a Primeira República. In: LIBBY, Douglas; FUR-
TADO, Júnia Ferreira (Orgs.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVII e XIX.
São Paulo: Annablume, 2006, p. 109).
285
A liberdade podia significar, e em muitos casos significava, piores condições de vida e de trabalho
que aquelas existentes sob a escravidão. O senhor tinha capital investido nos seus escravos, assim
em algum grau tinha interesse em proteger seu investimento para dele obter maior ganho. Nenhuma
preocupação desse tipo afetava os industriais, pois trabalhadores desqualificados eram facilmente
substituíveis e mesmo trabalhadores qualificados a depender da situação econômica não eram tão
difíceis de substituir” (IDEM, ibidem, p. 108-109). Todavia, a liberdade tornou possível a organização
legal dos trabalhadores, proibida aos escravos, que se mostrou, ao fim de contas, um dos principais
instrumentos na luta por melhores condições de trabalho e por direitos” (IDEM, ibidem, p. 109).
286
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Op. cit., p. 217.
120
livres ficou premida pela ética da honra, do guerreiro (virtude e virilidade
287
). Na ética
do guerreiro, a centralidade está na relação de comando, sem a qual o controle do
escravo, do soldado, da mulher e do filho não seria possível. Isso gerou uma dupla
oclusão, pois assim “como o poder pessoal fechou o homem pobre na violência sem
expressão social, também impediu os grupos dominantes de identificarem seus ob-
jetivos econômicos comuns e de agirem com unidade”
288
.
A violência real e a simbólica das nossas bases sociais constituem um impe-
dimento significativo a ser superado, ainda que à herança escravagista não se pos-
sa atribuir toda a motivação para a atual precarização do trabalho
289
. Reconhecer
essa violência e suas características é o primeiro passo para a correção de nossas
desigualdades. De qualquer modo, é importante destacar, como o faz com ênfase
LARA:
[...] a “violência” não constitui uma característica distintiva da sociedade
escravista. Atribuir violência” ao escravismo não explica coisa alguma, ou
melhor, exprime o óbvio, com desvantagem de sermos induzidos a pensar
que, nas sociedades contemporâneas, as estratégias de reprodução das
relações desiguais não são “violentas”. Mais que um procedimento analítico,
explicativo ou meramente descritivo das estratégias de controle social, a
utilização do termo violência” é questão de percepção política. Nesse
sentido, deve ser denunciada em e por princípio como essência das
sociedades desiguais e não apenas como elemento constitutivo de uma
dominação de classe específica [...].
290
287
Virtude e virilidade possuem a mesma raiz etimológica (provenientes de “vir” = homem) e, basica-
mente, são utilizadas por Cícero (a esse respeito TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção
da identidade moderna. Trad.: Adail Ubirajara Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed. São Paulo:
Loyola, 2005, p. 202) para realçar o autocontrole masculino e suas peculiaridades (força, coragem,
dignidade, determinação, resolução e tolerância com a dor) em contraposição com as características
femininas (desespero, covardia, preguiça ou servilismo). Assim, a ética do guerreiro não esconde o
seu sentido de dominação, ocultada de forma sutil em outros padrões morais.
288
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 3ª. ed. São Paulo:
Kairós, 1983, p. 219.
289
De fato, a ideia de que a violência contra os trabalhadores no passado e na atualidade seja resul-
tado da escravidão é uma perspectiva que “ao ser usada para explicar tudo, acaba não explicando
nada, perdendo todo o valor heurístico” (BATALHA, Claudio. Limites da liberdade: trabalhadores, rela-
ções de trabalho e cidadania durante a Primeira República. In: LIBBY, Douglas; FURTADO, Júnia
Ferreira (Orgs.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVII e XIX. São Paulo: An-
nablume, 2006, p. 108-109). Por essa perspectiva se tende a admitir o padrão escravagista como um
comportamento intrínseco da sociedade brasileira, o que evidentemente é falso. Por isso, a escravi-
dão não deve ser analisada como elemento monocausal, mas como um dos elementos multicausais,
em especial na construção de um padrão moral por meio da resistência e da busca de liberdade pelos
trabalhadores.
290
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 354.
121
Não se trata de negar a violência da escravidão, mas de reconhecer nela um
caráter estrutural de toda a sociedade brasileira e não apenas sua incidência ocasi-
onal e superada sobre os escravos. Também não se trata de reabilitar a escravidão
brasileira nem de reconhecer nela uma “bondade” quando comparada com a de ou-
tros lugares. Ao contrário, trata-se de reafirmar o seu caráter autoritário e excluden-
te, mas com gradações e com extensão a outras formas de trabalho. Assim, não
procede a crítica de que esse enfoque tem o defeito de “salientar na subjetividade
do escravo a fonte do potencial de acomodação do regime opressor, de aceitação
da escravidão como sistema contratual, o que o aproximaria singularmente do capi-
talismo”
291
. O escravo não se transforma em um contratado e o regime de domina-
ção nele é intenso e perverso, pois os escravos e os senhores não se encontravam
em iguais condições materiais de uso de suas estratégias. Reconhecer a dominação
pessoal é reconhecer todos os aspectos éticos, afetivos e psicológicos que cercam
esse tipo de poder.
Acima de tudo, os escravos e os trabalhadores livres ou semilivres do período
colonial nunca estiveram em condições que fizessem frente ao capital simbólico dos
senhores. Esse capital simbólico foi construído basicamente pela ideia de que a es-
cravidão e o próprio trabalho livre são “favores” instituídos em benefício dos escravi-
zados e dos trabalhadores. O que é perturbador é subsistência desses elementos
simbólicos até os dias de hoje.
Como foi dito, “servo” e “servidão” são palavras originadas do latim “servare”
(preservar). Resultam, portanto, da instituição da prática “piedosa” de preservar o
inimigo, convertendo-o em um fornecer compulsório de serviços. Essa perspectiva
começou a se alterar ainda na Antiguidade, a partir do momento em que a escravi-
dão passou a ter valor econômico. A radicalização dessa mudança só foi experimen-
tada na Modernidade, mas algum tipo de justificativa moral sempre se impôs. A es-
cravidão dos mouros e sarracenos, na Península Ibérica, por exemplo, foi tolerada e
legitimada a partir do século XIV “não por ódio aos mesmos, e sim por pretendido
benefício de ‘resgatá-los’ de morte certa ou do cativeiro dos seus inimigos”
292
.
291
GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. 2ª. ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 25.
292
PERDIGÃO MALHEIRO, Agostinho Marques. A escravidão africana no Brasil. São Paulo: Obelisco,
1964, p. 13
122
A riqueza dos senhores de escravos quase que se resumia ao fato de possuí-
rem escravos, pois a terra não era a riqueza central nesse sistema e podia ser apro-
priada quase que livremente pela oligarquia, e em poucas épocas deixou de se ofe-
recer facilmente ao estuprador. A terra para o colonizador era o corpo aberto à ex-
ploração, pois “talvez o pai interdite o corpo da e pátria, e aqui, longe dele, a
sua potência herdade e explorada abra-me o acesso a um corpo que ele não proi-
biu”
293
. A “fazenda não consiste nas terras, que são comuns, senão nos frutos da
indústria com que cada um as fabrica, e de que são os únicos instrumentos os bra-
ços dos índios”
294
. Assim, a riqueza estava no trabalho escravo, primeiro dos indíge-
nas e depois dos africanos, e a terra se oferecia ao colonizador apenas para ser
possuída.
295
Assim, o reconhecimento da enorme contribuição do trabalho escravo
na sociedade brasileira deveria ser evidente, porquanto sem esse trabalho não teri-
am se consolidado suas bases sociais e econômicas.
É um relevante indicativo, entretanto, que sobreviva a ideia da servidão como
um atributo favorável ao servo, aspecto que permeia a ideologia da escravidão mo-
derna (capitalista), o que, de modo semelhante, se transfere para algumas justifica-
ções morais para a miséria do trabalhador livre. O trabalho prestado pelos escravos,
por essa deturpação ideológica, deixa de ser trabalho roubado para se transformar
em favor prestado pelos proprietários: duplo favor, o de se apropriarem das terras
dos indígenas e o de se apropriarem do trabalho, inicialmente dos indígenas e de-
pois dos africanos. Um texto de RIBEIRO, de chocante sinceridade, parece refletir
esse padrão moral ainda presente entre nós:
Força é confessar que toda essa jornada de horrores a escravidão no Brasil
é o epílogo desejado para os escravos. Daqui em deante, a vida dos negros
293
CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil!: notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. São
Paulo: Escuta, 1991, p. 17. Por isso, o colonizador “maneja a nova terra como se pode sacudir o cor-
po de uma mulher possuída, gritando: Goza Brasil”, e esperando o seu próprio gozo do momento no
qual a mulher esgotada se apagará em suas mãos prova definitiva da potência do estuprador” (I-
DEM, ibidem, p. 17-18).
294
VIEIRA, Antônio Pe. Timon, v. III, p. 457, apud PERDIGÃO MALHEIRO, Agostinho Marques. A
escravidão africana no Brasil. São Paulo: Obelisco, 1964, p. 21. Antônio Vieira aponta justamente a
escravidão e exploração severa dos índios como causa da pobreza aguda do Maranhão e recomen-
dava a introdução dos negros africanos.
295
“O colonizador veio então gozar a América, por isso deve esgotá-la, mas sabe que não era Améri-
ca que queria fazer gozar. Ele tem com o país enquanto corpo uma cobrança que lhe permite dizer
‘este país não presta’, quer seja porque deveria ser o outro (aquele que ele deixou), quer seja porque
não goza como deveria” (CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil!: notas de um psicanalista europeu
viajando ao Brasil. São Paulo: Escuta, 1991, p. 19).
123
regulariza-se, a saúde refaz-se e com ella a alegria da vida e a gratidão
pelos novos senhores, aqui melhores que os da África e do mar. Sem dúvida
alguma, ainda muitos dos horrores e crimes resurgem no captiveiro novo e,
aqui e ali não falham, entre senhores crueis, rigores monstruosos. A
escravidão, porém, sempre era corrigida entre nós pela humanidade e pela
philantropia. Se os negros não tiveram, como os índios, em favor delles, a
voz omnipotente da Egreja, tiveram ao menos o espírito christão e a
caridade propria da nossa raça. Desde os primeiros tempos da colonia o
sentimento da philantropia trabalhava em favor dos negros. Costumes
bellissimos instituem-se entre os senhores; como o de apadrinhar os
remissos ou fugitivos, o que impede o castigo, e nenhum senhor viola. O
costume de ceder um dia ou dois (sabbado e domingo) ao trabalho do negro
é confirmado mais tarde por lei (1700) e também o reconhecimento da
propriedade privada do escravo. Outro costume é o da “alforria na pia”, o
que se fazia com uma esportula insignificante (de 5$000 a 50$000) que
nunca era recusada; esse habito era frequente sobretudo quando as
creanças traziam a pelle clara. A religião concedia-lhes uma parte no culto, e
santos negros (S. Benedicto e N. S. do rosario) protegiam irmandades
numerosas de pretos. A propria affinidade de raça, entre negros, fazia-os
reunir em sociedade, onde, revivendo os costumes africanos, tinham reis e
vassallos e exerciam autoridade uns sobre os outros, até o limite que a
civilização dos brancos permitia. [...] Todos esses costumes testemunham
em favor da nossa índole e liberalidade. Não é nosso intento fazer a
apologia da escravidão, cujos horrores principalmente macularam o homem
branco e sobre elle recahiram. Mas a escravidão no Brasil foi para os negros
a rehabilitação delles proprios, e trouse para a descendencia delles uma
patria, a paz e a liberdade e outros bens que os paes e filhos jamais
lograriam gozar ou sequer entrever no seio barbaro da África.
296
[texto como
o original e com destaques nossos]
Esse texto, escrito em 1900, bem demonstra que a escravidão continuou a
ser o padrão simbólico por meio do qual raciocinava a elite brasileira, mesmo depois
da Lei Áurea, mas o mais curioso é que sua citação tenha sido adotada, com foros
de verdade, em obra histórica de 1936, patrocinada pelo Ministério do Trabalho, In-
dústria e Comércio. O governo de então, arauto da modernização do País, patroci-
nou obra de um dos seus mais elevados funcionários, na qual se procurava não a-
penas justificar moralmente a escravio, mas principalmente firmar um padrão
simbólico e mental que enquadrasse a brutal exploração do trabalho ainda realizada
no País como uma liberalidade de sua elite proprietária.
A liberdade não foi algo que os escravos puderam alcançar em 1888, por-
quanto a “liberdade de continuar pobre, indigente mesmo, não é verdadeira”
297
. A
296
RIBEIRO, João. Historia do Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1900, apud BANDEIRA DE
MELLO, Affonso de Toledo. O trabalho servil no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento de Estatística e
Publicidade do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, 1936, p. 57-59.
297
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.
239.
124
liberdade, contudo, é um processo e o uma essência. A abolição da escravatura,
portanto, foi a liberdade possível de ser obtida, ainda que em vários aspectos tenha
representado a continuidade de uma profunda distinção simbólica e econômica. As
tentativas mais estruturadas de reversão desse quadro começaram a ser monta-
das mais de cinquenta anos depois.
3.3 INDUSTRIALIZAÇÃO E ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL A
CONSTRUÇÃO DO TRABALHISMO NO BRASIL
A formação do capitalismo e do regime político, social e econômico a que se
tem denominado “Modernidade” foi longa e complexa. A construção de uma socie-
dade capitalista baseada na acumulação de riquezas, entretanto, o seria possível
sem que terra, força de trabalho e dinheiro fossem convertidos em mercadoria. A
grande novidade do sistema capitalista estava na transformação da terra como mer-
cadoria que se vende e, ao mesmo tempo, da força de trabalho que se aliena, as-
pectos cruciais para o desenvolvimento do capitalismo industrial do culo XIX. A
criação dessa nova mercadoria com a sujeição/inclusão nela de realidades até en-
tão consideradas incompatíveis foi a pedra de toque das mudanças econômicas que
se estenderam do século XIV até o século XIX. Essa ficção foi a base necessária
para a criação da grande utopia do liberalismo econômico, qual seja a ideia de um
mercado autorregulável.
Em um País, como o Brasil, em que a terra não constituía um mercado, mas
um corpo disponível à posse da oligarquia proprietária, e no qual não havia um mer-
cado de trabalho, em virtude do sistema de produção escravagista, somado à fragi-
lidade de nossa moeda, é possível afirmar que a Modernidade sempre foi um proje-
to parcial e tardio. Embora houvesse, a partir dos meados do século XIX, a cons-
ciência política do atraso e a ânsia por progresso, as estruturas sociais e econômi-
cas impuseram um predomínio da posse e do domínio pessoal como meio de domi-
nação. É contra os restos carcomidos dessa ordem que se levanta o movimento ini-
ciado em 1930, conhecido por Revolução Liberal.
O capitalismo industrial era uma realidade na Europa e nos Estados Uni-
dos. A fase inicial do capitalismo industrial havia sido marcada por um contínuo de-
125
senvolvimento das capacidades de produção, mas o acirramento da concorrência e
a baixa de lucros conduziram a sucessivas crises, como a “grande depressão”
(1873-1895). O capitalismo industrial baseava-se primordialmente no elemento pro-
dução, o que importava em sucessivos e curtos períodos de progresso e de reces-
são. Foi nessa sucessão de crises que surgiu outro produto da modernidade que é o
desemprego, bem como a reação socialista e a afirmação das classes operárias.
Também surgiram os cartéis e os trustes como meio de controlar crises de produção
e de concorrência, o que deu origem aos monopólios, frutos da concentração da
produção e do sistema financeiro.
Todos esses aspectos do capitalismo do século XIX e início do século XX se
associaram a várias crises de demanda e conduziram progressivamente a políticas
intervencionistas estatais por meio da proteção social e por meio de interferência na
moeda (introdução do padrão-ouro), o que não se realizou sem muitas resistências
dos liberais. O elemento central das contradições e das crises a que o capitalismo
se submeteu, e ainda o assombram, o era esse, entretanto. O intervencionismo
constituiu uma forma de minimizar contradições, mas o ponto central estava e ainda
permanece no próprio conceito de mercadoria. A esse respeito bem destacou PO-
LANYI:
O ponto crucial é o seguinte: trabalho, terra e dinheiro são elementos
essenciais da indústria. Eles também têm que ser organizados em
mercados e, de fato, esses mercados formam uma parte absolutamente vital
do sistema econômico. Todavia, o trabalho, a terra e o dinheiro obviamente
não são mercadorias. O postulado de que tudo o que é comprado e vendido
tem que ser produzido para venda é enfaticamente irreal no que diz respeito
a eles. Em outras palavras, de acordo com a definição empírica de uma
mercadoria, eles não são mercadorias. Trabalho é apenas um outro nome
para atividade humana que acompanha a própria vida que, por sua vez, não
é produzida para venda mas por razões inteiramente diversas, e essa
atividade não pode ser destacada do resto da vida, não pode ser
armazenada ou mobilizada. Terra é apenas outro nome para a natureza, que
não é produzida pelo homem. Finalmente, o dinheiro é apenas um símbolo
do poder de compra e, como regra, ele não é produzido mas adquire vida
através do mercado dos bancos e das finanças estatais. Nenhum deles é
produzido para a venda. A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro
como mercadorias é inteiramente fictícia.
298
298
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Trad.: Fanny Wrobel. 2ª. ed.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 94.
126
Mercados autorreguláveis dependem de liberdade nos mercados de trabalho,
de terras e de dinheiro. “Quando o funcionamento desses mercados ameaça destru-
ir a sociedade, a ação autopreservativa da comunidade visa impedir o seu estabele-
cimento ou interferir com o seu livre funcionamento, quando estabelecido”.
299
Foi
isso o que conduziu ao protecionismo e ao intervencionismo estatal em todos esses
mercados e é isso o que ainda hoje exige esse tipo de “anomalia”. Protecionismo é
refluxo da autopreservação social e nem sempre é puramente econômico ou oposto
à visão liberal.
300
De outra parte, a ideia de mercadoria e de mercados como ele-
mentos “naturais” e imanentes do homem não é verdadeira. Também POLANYI a
respeito esclarece:
A história econômica mostra que a emergência de mercados nacionais não
foi, de forma alguma, o resultado da emancipação gradual e espontânea da
esfera econômica do controle governamental. Pelo contrário, o mercado foi
a consequência de uma intervenção consciente, e às vezes violenta, por
parte do governo que impôs à sociedade a organização do mercado, por
finalidades não-econômicas.
301
Por isso, o Estado precisou intervir progressivamente, primeiro no mercado
de trabalho e da terra, por meio de proteção social. Depois por meio de intervenção
na moeda. A última grande modificação foi a supressão do denominado “padrão-
ouro” da moeda no campo internacional. “O colapso do padrão-ouro internacional foi
o elo invisível entre a desintegração da economia mundial na virada do culo e a
transformação de toda uma civilização na década de1930”.
302
Foi esse um dos moti-
vos principais para a fragmentação política e econômica que conduziu à Segunda
Grande Guerra.
De outra parte, o desenvolvimento de produção em massa conduziu a uma
nova e sensível crise de demanda, da qual a crise de 1929 foi apenas um dos refle-
xos. O New Deal americano e a instituição de políticas de desenvolvimento do regi-
me de demanda, principalmente com base nas ideias de Keynes, foram os funda-
299
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Trad.: Fanny Wrobel. 2ª. ed.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 237.
300
“Liberalismo e interferência do estado não se opõem mutuamente. Ao contrário, qualquer espécie
de liberdade será claramente impossível se não for assegurada pelo estado” (POPPER, Karl Rai-
mund. A sociedade aberta e seus inimigos. Trad. Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987, tomo I,
p. 126).
301
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Trad.: Fanny Wrobel. 2ª. ed.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 290.
302
IDEM, ibidem, p. 36.
127
mentos econômicos que progressivamente conduziram ao denominado Estado de
Bem-Estar Social, regime dos países desenvolvidos no s-guerra, mas que tar-
diamente e de modo incompleto se apresentou ao Brasil.
Mesmo a titubeante industrialização brasileira do primeiro quartel do século
XX não foi suficiente para acabar totalmente com a estrutura social forjada no perío-
do escravagista
303
, pois a maior parte da população se encontrava e prestava servi-
ços no campo sob a “proteção” das elites econômicas locais. À urbanização das ci-
dades, por sua vez, não se seguiu uma suficiente e eficiente inserção dos trabalha-
dores em sistemas industriais que produzissem uma “educação” para o trabalho li-
vre (contratual), de modo que o personalismo e o autoritarismo continuaram a mar-
car essas relações de poder, principalmente no trabalho doméstico, substitutivo das
relações pessoais e escravagistas do meio rural.
Durante a República Velha (1889-1930) as relações pessoais continuaram a
ser a base das relações de trabalho e foi lento o desenvolvimento da estrutura con-
tratual. Além de não existirem estruturas simbólicas suficientes para generalizar a
“crença na missão civilizadora do contrato”
304
, as estruturas jurídicas o estavam
adaptadas a essa realidade. Por isso, a “imagem da relação patrão-empregado ge-
ralmente veiculada pelas classes dominantes brasileiras da República Velha era de
que esta relação se assemelhava em muitos aspectos à relação entre pais e filhos.
O patrão era uma espécie de ‘juiz doméstico’ que procurava guiar e aconselhar o
trabalhador, que, em troca, devia realizar suas tarefas com dedicação e respeitar
303
O uso de condições escravagistas sob o capitalismo não é um traço exclusivamente brasileiro ou
latino-americano. A própria industrialização europeia foi realizada com resquícios do sistema escrava-
gista e basta para comprovar isso a farta literatura que existe sobre exploração do trabalho de ho-
mens, mulheres e, principalmente, crianças. MARX, com razão, depois de apontar as crueldades con-
tra as crianças nas fábricas inglesas e a apologia ao tráfico negreiro na Inglaterra, concluiu que “a
escravidão dissimulada dos assalariados na Europa precisava fundamentar-se na escravatura, sem
rebuços, no Novo Mundo” (MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Trad. Reginaldo
Sant’Anna. 23ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, v. II, p. 873). Isso torna evidente que
por meio do contrato também é possível algum tipo de escravidão. De outra parte, o perspicaz comen-
tário comprova que os aspectos morais nunca deixam de acompanhar a dominação econômica, pois
a normalização das expectativas é imprescindível para a formação do capital simbólico.
304
SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do direito. Trad. Maria Erman-
tina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 99. que se ter em conta que
esse “é um dos mais potentes motores do Direito contemporâneo. Mas é também de feitura estrita-
mente ocidental” (IDEM, ibidem, p. 99).
128
seu patrão”.
305
O próprio uso da palavra patrão (do latim patronus
306
) para designar
o empregador, denunciava uma posição discursiva paternalista. Essa linha dis-
cursiva parece ter funcionado “eficazmente como elemento mitigador das tensões
entre patrões e empregados, pelo menos até o final da primeira cada do século
XX”
307
, ainda que houvesse diferenças de conteúdo desse paternalismo a depender
da atividade econômica em que a relação de trabalho era mantida. O contrato ainda
engatinhava e, mesmo assim, apenas no diminuto ambiente urbano e quase que
restrito à incipiente indústria.
O ambiente de trabalho no início do século XX era de absoluta precarização,
resultado da ausência de regulação legal e dos resquícios autoritários e paternalis-
tas do regime de trabalho escravagista. “Analisando a estrutura do mercado de tra-
balho da metrópole paulistana nos fins do culo XIX e nas primeiras décadas do
século XX, observa-se a predominância acentuada e a proliferação das pequenas
ocupações autônomas e do trabalho informal, setores incluídos na chamada eco-
nomia invisível, oculta, subterrânea, submersa, informal, paralela, não oficial; são
tantos os nomes quanto as dificuldades para dimensioná-la”
308
.
Outro componente político e social importante da República Velha foi o ama-
durecimento do pensamento positivista e sua influência no texto constitucional de
1891. O desejo ardente das elites por paz e ordem e o autoritarismo patriarcal ainda
prevalecente puderam se amoldar declarada ou subrepticiamente à política republi-
cana e ao ponto de vista dos positivistas. Como afirmou CARPEAUX: “Se o positi-
vismo é ainda, como as outras doutrinas, produto de importação, nele há, no entan-
to, traços que revelam a sua mais perfeita adequação ao condicionalismo da nossa
305
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
belle époque. 2ª. ed. Campinas: Unicamp, 2001, p. 115.
306
Patronus: “antigo senhor de um liberto”; defensor, protetor, arrimo, apoio”; “patrono” (SARAIVA,
Francisco Rodrigues dos Santos. Dicionário latino-português. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1993,
p. 854).
307
CHALHOUB, Sidney. Op. cit., p. 115.
308
PINTO, Maria Inês Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência: a vida do trabalhador pobre na
cidade de São Paulo, 1890-1914. São Paulo: Edusp, 1994, p. 110.
129
formação, às realidades profundas do nosso espírito”
309
. Esse condicionamento cul-
tural não era apenas o autoritarismo. Com efeito, um dos aspectos centrais do posi-
tivismo brasileiro é que sua “confiança no poder milagroso das ideias” o deixava
esconder “um secreto horror à nossa realidade”
310
. Com isso, por serem ao mesmo
tempo colonos e colonizadores, os positivistas se portavam diante da terra arredia
que lhe recusava os favores com “duas exortações: ‘Goza Brasil’ e ‘Muda Brasil”
311
.
A ausência de resposta amorosa explica a (inocente?) espera de reconhecimento
que esses “aristocratas do espírito” esperavam da História, mas provavelmente se
entranhava com algo mais profundo de nosso modo de pensar: “Este país não pres-
ta”.
Os influxos autoritários e aristocráticos eram de tal modo hegemônicos na
República Velha, que os debates políticos se centravam apenas em que tipo de di-
tadura seria a ideal: coronéis, monarquistas, positivistas, fascistas, jacobinos, socia-
listas e republicanos discordavam sobre tudo, menos sobre a necessidade de or-
dem. O progresso viria depois. A exceção a essa mentalidade coletiva parece ser a
dos anarquistas e a de um ou outro liberal ortodoxo, obviamente isolado.
É inegável a influência que o positivismo exerceu na República Velha e na
gestão ideológica do movimento golpista de 1930. “A doutrina do partido Republica-
309
CARPEAUX, Otto Maria. Notas sobre o destino do positivismo. Rumo, ano I, v. I, n.3, 1943, p. 285,
apud BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 277. Observe-se
que o desprezo pela “ralé” estrutural brasileira não era exclusiva do positivismo. O outro movimento
intelectual que se lhe contrapunha na República Velha, o spencerismo, compartilhava igual visão.
Tanto isso é verdade que, ao prefaciar a obra de Spencer que traduzira, Júlio de Mattos defendeu o
seu evolucionismo social contra os socialistas, aos quais se referiu como “Apóstolos de uma confusa
religião egualitaria que na escoria social recruta a grande massa dos seus fieis, esses meneurs sym-
bolisam na sua mesma mediocridade, no seu ódio e nas suas invectivas contra toda a elite, a multidão
de que procedem...” (SPENCER, Herbert. Da liberdade à escravidão. Trad.: Julio de Mattos. Lisboa:
Livraria Clássica Editora, 1904, p. XII-XIII, no original). É muito curiosa a visão de Júlio de Mattos so-
bre a sociedade brasileira de 1904, pois depois de criticar Tolstoi “cuja propaganda religiosa e moral
de christão primitivo apenas se comprehende no atrazado e barbaro meio moscovita” (IDEM, ibidem,
p. XIV), acaba por concluir: “É possível que n’um meio autocrata em que o chicote é um simbolo de
comando, a idealização de Tolstoi, como a de Dostoievsky e a quantos procuram alluir a muralha de
preconceitos que divide a sociedade em senhores e escravos, em opprimidos e oppressores, venha a
produzir, com auxilio do tempo e de outros factores, que não é difficil antever, um effeito redemptor.
Transplantada, porém, para as democracias latinas, Ella apenas conseguirá radicar nos espíritos irre-
flectidos o equivoco grosseiro que faz do proletário uma victima de condições economicas inventadas
pelo burguez...” (IDEM, ibidem, p. XV-XVI, no original). Que esplendor as democracias latinas alcan-
çaram, ainda no início do século XX! Nessa perspectiva, o Brasil é a Europa meridional!
310
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 18ª. ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1984, p.
118.
311
CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil!: notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. São
Paulo: Escuta, 1991, p. 32.
130
no Rio-Grandense compunha-se de algumas ideias diretamente inspiradas no credo
político de Augusto Comte”
312
. Getúlio Vargas tinha sua origem política diretamente
vinculada ao castilhismo gaúcho, e este estava vinculado ao “ideal comtiano da pas-
sagem da fase militar-feudal para a fase industrial da Humanidade”
313
. Por isso, em-
bora por meio de uma simplificação excessiva, talvez seja possível afirmar que a
principal ideologia do regime instalado a partir de 1930 tenha sido a da industrializa-
ção. O Brasil era ainda um País rural: “Em 1920 na agropecuária eram cerca de
6.300.000 os ocupados, enquanto na indústria eram menos de 300.000. O número
de estabelecimentos em cada setor mostra a mesma situação: enquanto na agrope-
cuária havia cerca de 650 mil estabelecimentos, na indústria, menos de 13 mil e
400. Esse cenário vai sofrer significativa transformação”
314
.
A Revolução de 1930, entretanto, é em si mesmo uma representação de mui-
tos paradoxos da sociedade brasileira, pois:
a) é uma “revolução passiva”
315
, ou seja, não é propriamente uma re-
volução, mas um movimento típico das amarras e contradições da
sociedade territorialista brasileira;
b) possui elementos de uma revolução burguesa e liberal (o movimen-
to surgiu a partir do fracasso eleitoral da “Aliança Liberal”), tardia,
portanto, mas foi realizada em época de antiliberalismo;
c) costuma-se afirmar o caráter burguês do movimento, mas a bur-
guesia (boa parte também componente da oligarquia rural) não es-
tava à sua frente, embora não tenha o incipiente empresariado bra-
sileiro se mantido apenas em posição passiva. O fato é que o em-
presariado não participou de forma destacada do movimento e em
boa parte até se opôs a ele;
312
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 281.
313
IDEM, ibidem, p. 284.
314
BIAVASCHI, Magda Barros. O direito do trabalho no Brasil – 1930-1942: a construção do sujeito de
direitos trabalhistas. São Paulo: LTr, 2007, p. 103.
315
VIANNA, Luiz Werneck. Caminhos e descaminhos da revolução passiva à brasileira. Revista Da-
dos. Rio de Janeiro, v. 39, nº. 3, 1996. disponível em < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0011-
52581996000300004&script=sci_arttext& tlng=en>. Acesso em: 25 de janeiro de 2009.
131
d) congregou elementos diversos da sociedade brasileira com elemen-
tos ideológicos variados, principalmente porque sua base estava no
tenentismo dos anos 20, o qual nunca teve programa definido e
concreto
316
;
e) realizada por elites locais (dissidência oligárquica) tinha tendência à
centralização administrativa, ou seja, pregava o fim da divisão do
poder entre os proprietários locais;
f) embora de inspiração liberal (laica) realizou uma aproximação com
a Igreja (ensino religioso obrigatório nas escolas, inauguração do
Cristo Redentor etc.).
“Quando, em 1930, os líderes republicanos do Sul conquistaram o poder fe-
deral na esteira de um movimento nacional liderado por Getúlio Vargas, os mesmos
ideais de industrialização e controle central encontraram maior espaço para se con-
cretizarem”
317
. A visão positivista, motora desses ideais, foi também decisiva para o
arcabouço jurídico montado, como bem demonstrou BOSI. “Muito do que se afirma
sobre a influência dos modelos corporativos na legislação trabalhista do Estado No-
vo se esclarece melhor pelo estudo das medidas tuteladoras que figuravam no
ideário do Apostolado Positivista, na versão que lhes deu Júlio de Castilhos e nas
intervenções pontuais de Borges de Medeiros”
318
.
A propulsão política do movimento, contudo, estava na denominada “questão
social”. Como destaca VIANNA: “Em sua nova configuração, a revolução passiva
terá como ‘fermento revolucionário’ a questão social, a incorporação das massas
urbanas ao mundo dos direitos e a modernização econômica como estratégia de
criar novas oportunidades de vida para a grande maioria ainda retida, e sob relações
de dependência pessoal, nos latifúndios”.
319
316
SANTOS, Roberto Araújo de Oliveira. Trabalho e sociedade na lei brasileira. São Paulo: LTr, 1993,
p. 169.
317
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 388.
318
IDEM, ibidem, p. 294.
319
VIANNA, Luiz Werneck. Caminhos e descaminhos da revolução passiva à brasileira. Revista Da-
dos. Rio de Janeiro, v. 39, nº. 3, 1996. disponível em < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0011-
52581996000300004&script=sci_arttext& tlng=en>. Acesso em: 25 de janeiro de 2009.
132
Esse “fermento”, contudo, tinha que lutar contra os demais elementos da re-
ceita, ou seja, contra a dura massa social e cultural do País, bem como contra a re-
sistência de significativa parte da oligarquia rural, insatisfeita com a perda de seu
poder. Acima de tudo, era necessário criar o Estado, esse abstrato e desconhecido
para a maioria da população, submetido que estava à posse (fruição) de uma dimi-
nuta elite.
320
É a partir dessa configuração que a legislação trabalhista brasileira co-
meça a ser elaborada a partir de 1931. É nessa perspectiva que merece análise o
conteúdo da Constituição de 1934, fortemente influenciada pela Constituição de
Weimar (Alemanha), de 1919.
A Constituição de 1934 recebeu alguma influência do corporativismo, cuja i-
deologia se fazia sentir. Para bem identificar isso basta lembrar ter sido a Consti-
tuinte de 1934 a única de nossa história que teve representantes das associações
de classe. Por isso, essa Carta Constitucional inaugura uma nova relação entre
Constituição, trabalho e economia. O seu art. 113 contém a seguinte regra:
Art 113 [...]
34) A todos cabe o direito de prover à própria subsistência e à de sua
família, mediante trabalho honesto. O Poder Público deve amparar, na forma
da lei, os que estejam em indigência.
Esse dispositivo ensaia um primeiro esboço de um direito ao trabalho, embo-
ra deixe na penumbra um viés autoritário, visto que parece insinuar que a subsistên-
cia é o verdadeiro direito do homem e para isso se deve prestar um trabalho hones-
to (dever). De outra parte, a Constituição de 1934 é a primeira a inserir um título in-
teiro acerca da ordem econômica e social.
O art. 121, § 1º, da Constituição da República de 1934, em conjunto com ou-
tros dispositivos, condensa e enumera várias das melhorias das condições de traba-
lho obtidas pela classe trabalhadora por árdua luta nas décadas de 10 e 20 do sécu-
lo XX, assegurando o salário mínimo, a proibição de diferença salarial, a jornada
máxima de oito horas, a proibição do trabalho ao menor de 14 anos, o repouso se-
manal, as férias anuais remuneradas, a indenização do trabalhador dispensado sem
320
Tem razão Adalberto Paranhos ao afirmar que “a ideologia do trabalhismo constitui uma ‘região
ideológica’ da ideologia do Estado” (PARANHOS, Adalberto. O roubo da fala: origens da ideologia do
trabalhismo no Brasil. São Paulo: Boitempo, 1999, p. 37). Para isso “o Estado se transfigura em obra
de arte” (IDEM, ibidem, p. 67), cujo padrão estético é orientado pelo artista da política para a criação
de uma obra bem específica: o Estado-Ordem.
133
justa causa, a assistência médica e o reconhecimento das convenções coletivas de
trabalho.
321
Além disso, ficou instituída a Justiça do Trabalho (art. 122), embora com
função administrativa. na Constituição de 1934 dois dispositivos que merecem
análise mais acurada. O primeiro é o art. 121, § 4º., que afasta da proteção constitu-
cional os trabalhadores rurais ao prescrever que:
Art 121 [...]
[...]
§ 4º. - O trabalho agrícola será objeto de regulamentação especial, em que
se atenderá, quanto possível, ao disposto neste artigo. Procurar-se-á fixar o
homem no campo, cuidar da sua educação rural, e assegurar ao trabalhador
nacional a preferência na colonização e aproveitamento das terras públicas.
Em que pesem os auspícios democráticos da Constituição de 1934, o caráter
excludente dessa regra é inquestionável. que se lembrar que, nessa época, o
Brasil contava com aproximadamente 80% da população
322
nas áreas rurais e que a
grande maior parte dessa população era analfabeta e não votava.
Essa Constituição ficou marcada por alguns paradoxos que lhe selaram o
destino. No campo político, o seu paradoxo estava em consagrar os ideais preten-
samente liberais e burgueses da Revolução de 1930 em um mundo em que havia
um crescente antiliberalismo.
323
No campo social, o paradoxo estava em não abran-
ger a maior parte da classe trabalhadora do País; ou seja, a proteção social à classe
trabalhadora nasceu com a pretensão de atingir pequena parcela da população,
apenas a urbana (e votante). Isso revela um aspecto importante do sistema normati-
vo da época: pretendia-se regular não o que existia (realidade rural e arcaica), mas
o que se pretendia construir (realidade burguesa e industrial).
321
“Muito do que no texto constitucional se incorporou era já regulado pela lei ordinária; e mais não fez
ele, em verdade, do que emprestar-lhe a preeminência dos dispositivos constitucionais” (FERREIRA,
Waldemar Martins. História do direito constitucional brasileiro. Ed. Fac-similar. Brasília: Senado Fede-
ral, 2003, p. 173).
322
Em 1920, o Brasil tinha população de 27.500.000 de pessoas, das quais 4.552.069, ou seja, 17,0%
do total residiam nas 74 cidades com mais de 20 mil habitantes. O censo demográfico de 1940 revela
que apenas 31,2% da população brasileira na época, que era de 41.236.315 habitantes, residiam em
áreas urbanas (BRITO, Fausto; HORA, Cláudia Júlia Guimarães; AMARAL, Ernesto Friedrich de Lima.
A urbanização recente no Brasil e as aglomerações metropolitanas. Disponível em: <
http://www.abep.nepo.unicamp.br/iussp2001/cd/ GT_Migr_Brito_ Hor-ta_Amaral_Text.pdf>. Acesso
em: 03 de julho de 2007, p. 2).
323
BARROSO, Luís Roberto. O Direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possi-
bilidades da Constituição Brasileira. 8ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 20.
134
Assim, o rol de direitos trabalhistas estabelecido no art. 121, § . tinha muito
de efeito retórico (ou “programático”). que se ter em conta que ao proteger o tra-
balhador urbano e deixar o trabalhador rural à mercê de uma regulamentação espe-
cial, a Constituição buscou inquestionavelmente atender aos objetivos da elite rural,
a qual em certa medida ainda dominava a política nacional. Por outro aspecto, como
a maior parte da população rural era analfabeta e não votava, os avanços sociais
tinham forte e retórico impacto eleitoral, mas efeito social reduzido, embora não fos-
se insignificante. Outro aspecto negativo é o fato de o art. 23, § ., vedar o direito
de voto aos estrangeiros nas eleições dos deputados representantes das associa-
ções profissionais, com evidente intenção de enfraquecer a participação e liderança
dos anarquistas e comunistas, cuja maioria era composta por estrangeiros.
A Constituição de 1934, assim como acontecera com o seu modelo (a Consti-
tuição de Weimar), teve vida efêmera. a partir de novembro de 1935, com a de-
nominada “Intentona Comunista”, as garantias e liberdades individuais foram supri-
midas. Isso conduziu ao puro e simples golpe de Estado com a finalidade de dar
continuidade à ditadura que, na prática, se verificava desde 1930. Mesmo em seu
curtíssimo período de vigência, a Constituição de 1934 pouco mais representou que
o papel de uma carta de intenções para um futuro, ou seja, foi um estatuto pura-
mente formal, anunciador de um Estado de Bem-Estar Social que demorou por che-
gar.
A Constituição de 1937, outorgada por um ditador, tinha caráter autoritário e
intervencionista, e é evidente que sua pretensão regulatória se estenderia à econo-
mia e ao mundo do trabalho. Por isso, ambos (trabalho e atividade econômica) fo-
ram tratados rigidamente em um mesmo título (Ordem Econômica), curiosamente
iniciado com o seguinte dispositivo:
Art. 135 - Na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de
invenção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a
riqueza e a prosperidade nacional. A intervenção do Estado no domínio
econômico se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e
coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus
conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos
interesses da Nação, representados pelo Estado. A intervenção no domínio
econômico poderá ser mediata e imediata, revestindo a forma do controle,
do estimulo ou da gestão direta.
135
Em típica insinceridade política, tão comum na nossa história, o texto consti-
tucional enuncia como exceção (intervenção estatal) aquilo que passou a ser a re-
gra. Tanto se pretendia uma forte intervenção do Estado na economia, que no mo-
delo adotado foi criado (art. 57), o Conselho da Economia Nacional, composto por
“representantes dos vários ramos da produção nacional” e com poderes, entre ou-
tras matérias, para “promover a organização corporativa da economia nacional”, “e-
ditar normas reguladoras dos contratos coletivos de trabalho entre os sindicatos da
mesma categoria da produção ou entre associações representativas de duas ou
mais categorias”, “emitir parecer sobre todos os projetos, de iniciativa do Governo ou
de qualquer das Câmaras, que interessem diretamente à produção nacional” e “or-
ganizar, por iniciativa própria ou proposta do Governo, inquérito sobre as condições
do trabalho, da agricultura, da indústria, do comércio, dos transportes e do crédito,
com o fim de incrementar, coordenar e aperfeiçoar a produção nacional”. Ao mesmo
tempo a carta ditatorial cuidou de criar uma curiosa liberdade de trabalho:
Art 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes
no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos
termos seguintes:
[...]
8º.) a liberdade de escolha de profissão ou do gênero de trabalho, indústria
ou comércio, observadas as condições de capacidade e as restrições
impostas pelo bem público nos termos da lei;
Essas restrições à liberdade de trabalho se estendiam a vários outros disposi-
tivos, de clara influência fascista. Entre esses dispositivos, merecem destaque os
artigos 132 e 136 da Carta de 1937:
Art. 132 - O Estado fundará instituições ou dará o seu auxílio e proteção às
fundadas por associações civis, tendo umas; e outras por fim organizar para
a juventude períodos de trabalho anual nos campos e oficinas, assim como
promover-lhe a disciplina moral e o adestramento físico, de maneira a
prepará-la ao cumprimento, dos seus deveres para com a economia e a
defesa da Nação.
Art. 136 - O trabalho é um dever social. O trabalho intelectual, técnico e
manual tem direito a proteção e solicitude especiais do Estado. A todos é
garantido o direito de subsistir mediante o seu trabalho honesto e este,
como meio de subsistência do indivíduo, constitui um bem que é dever do
Estado proteger, assegurando-lhe condições favoráveis e meios de defesa.
Além de uma restrita liberdade de trabalho, também uma liberdade sindical
mitigada foi instituída no art. 138, pois se admitia liberdade para os sindicatos
reconhecidos pelo Estado, e o art. 139, parágrafo único, proibia e considerava anti-
sociais a greve e o lockout. O trabalho deixa de ser um direito para se constituir um
136
dever social. A semente autoritária do acima citado art. 113, item 34, da Constituição
de 1934, revela-se pelo fato de o respectivo texto ter sido mantido no art. 136 da
Constituição de 1937, antecedido pelo acréscimo da afirmação do trabalho como
dever social.
A Carta de 1937 manteve a tradição iniciada na Constituição anterior de e-
numerar um rol de direitos trabalhistas básicos a serem estabelecidos na legislação
trabalhista. Ao fazer isso, entretanto, não deixou claro qual seria o conceito de “tra-
balhadores” a que faz referência. De qualquer modo, não se pode esquecer que a
Carta de 1937 era excludente em relação à maioria da classe trabalhadora, pois a
maior parte da população se encontrava e prestava serviços no campo sob a “prote-
ção” das elites econômicas locais, em regime precário de trabalho, mantidos resquí-
cios do sistema escravocrata por meio de parcerias, arrendamentos e colonato. A
carta ditatorial, entretanto, teve o mérito de formalmente evidenciar a pluralidade da
classe trabalhadora. Curiosamente, a Carta de 1937 não desempenhou na prática
nenhum papel, conforme bem observou BARROSO:
É inegável, todavia, que em todo este complexo painel, a Constituição não
desempenhou papel algum, substituída pelo mando personalista, intuitivo,
autoritário. Governo de fato, de suporte policial e militar, sem submissão
sequer formal à Lei Maior, que não teve vigência efetiva, salvo quanto aos
dispositivos que outorgavam ao chefe do Executivo poderes excepcionais.
324
Foi nesse complexo sistema de ausência de liberdades políticas, mas de pro-
fundas alterações das estruturas socioeconômicas, que a legislação trabalhista foi
elaborada. Essa elaboração em sua maior parte consistiu em copiar, com ligeiras
adaptações, dispositivos da legislação estrangeira, em especial da italiana e da
francesa. A CLT, ponto culminante desse processo, não poderia deixar de refletir
em grande parte os paradoxos dessa sociedade.
A crítica central a essa legislação é sua criação autoritária, a ideia de que foi
algo outorgado, uma concessão e um favor ditatorial. Curiosamente, essa crítica é
bem formulada por um dos autores mais proeminentes da CLT. SÜSSEKIND afirma:
Quem mais legislou foi realmente Getúlio. Não foi uma legislação
conquistada de baixo para cima. Ela veio de cima para baixo, foi o que se
chamou de outorga da legislação. E isso foi feito com uma dupla intenção. A
324
BARROSO, Luís Roberto. O Direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possi-
bilidades da Constituição Brasileira. 8ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 24.
137
primeira era mesmo evitar que lutas sangrentas viessem a ser travadas para
conquistar leis. Nós tínhamos o exemplo de algumas greves importantes de
anarquistas, sobretudo em São Paulo, mas também no Rio, Bahia,
Pernambuco, Rio Grande do Sul, decorrentes de uniões fabris criadas por
influência de imigrantes italianos e espanhóis. Getúlio temia os movimentos
violentos, como os que ocorreram na Europa e em alguns países como o
México e a Argentina. A segunda preocupação dele era criar um clima
favorável à industrialização do país. Esses foram dois pontos que ele
sempre pretendeu atingir.
325
Outra crítica contundente é de que a legislação trabalhista foi moldada pelo
paternalismo, com formalismo e artificialidade. Essa crítica foi bem resumida por
FRENCH:
[...] Escrevendo sobre toda a América latina em 1972, Louis Goodman
argumentava que o meio mais sutil de solapar a força dos sindicatos” na
América latina era mediante a promulgação “de um corpo de legislação de
bem-estar que, se fosse inteiramente cumprida, estaria além do que a
economia da região poderia suportar”. [...] Em vez de luta por benefícios, “o
tradicional paternalismo latino foi meramente transformado em paternalismo
do Estado de bem-estar social, com o governo agindo como ’benfeitor’” que
concede benefícios de maneira arbitrária.
326
Por esse motivo, a partir de 1930, em razão da artificialidade do sistema, o
movimento sindical teria perdido sua espontaneidade e autenticidade. Outras críti-
cas que se agregam o a de corporativismo do sistema legal, do descumprimento
sistemático das regras (insinceridade legal) e a ausência de mecanismos para reso-
lução de queixas no local de trabalho, como delegados sindicais ou sistemas de ar-
bitragem.
Esse é um discurso que ainda permeia os debates sobre a legislação traba-
lhista. A força dos seus argumentos reside principalmente na imagem quase auto-
mática que o ciclo histórico traz à mente: autoritarismo e oligarquia. Assim, toda a
legislação trabalhista seria apenas um mecanismo que a classe dominante instituiu
para continuar a sujeitar a classe trabalhadora.
O problema de raciocinar apenas pelas semelhanças é que se esquece de
observar as diferenças e, nesse caso, as diferenças são muito mais expressivas e
provavelmente o será exagero afirmar que, depois da Independência, o movimen-
325
SÜSSEKIND, Arnaldo. Entrevista com Arnaldo Süssekind. Revista Estudos Históricos. Rio de Ja-
neiro, v. 6, n. 11, 1993, p. 113-127, p. 117.
326
FRENCH, John D. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 28.
138
to de 1930 foi o ponto mais importante de nossa história e uma paradigmática mu-
dança política e social. uma diferença substancial entre sujeitar-se à pessoa e
sujeitar-se à lei, pois nesse caso o objeto da sujeição torna-se apropriável. Há vários
aspectos morais, simbólicos e econômicos que demonstram que a legislação traba-
lhista foi justamente um dos guindastes que rompeu com a ordem precedente.
No aspecto político, devem ser lembradas as estratégias que a classe domi-
nante estabeleceu para se manter no poder a partir de 1930. A mudança de estraté-
gia pode ser bem percebida na seguinte distinção exposta por SANTOS:
Michel Debrun alude a três estratégias de autorreforço do poder utilizadas
recorrentemente pela classe dominante no Brasil em distintos momentos da
história nacional os arquétipos a que chama “conciliação”, “autoritarismo
desmobilizador” e “autoritarismo mobilizador”. A conciliação não é, como o
nome sugere, um compromisso entre iguais, uma convergência de
propostas ou soluções de grupos mutuamente adversos, mas um
expediente pelo qual a classe dominante coopta frações das classes
dominadas. [...]
Mas, quando a estratégia da “conciliação” fracassa, o grupo dirigente tem
lançado mão do “autoritarismo desmobilizador”, tal como em 1937, no golpe
do Estado Novo, ou em 1964, no da implantação do regime militar. O
pretexto ideológico do “autoritarismo desmobilizador” é sempre o que de que
a sociedade civil não tem capacidade de se autogovernar, carecendo de um
Estado forte e empreendedor. [...]
A terceira estratégia, a do “autoritarismo mobilizador”, foi usada algumas
vezes por elites dissidentes da classe dominante. Por serem elites, suas
propostas não foram geradas ao nível das classes populares, ainda quando
seu conteúdo tivesse em vista superar o caráter rígido da estrutura de
autoridade. “Ao invés de pretender outorgar ao povo uma armadura estatal,
como os autoritários, visam mobilizá-lo em torno de projetos supraclassistas
de ‘Ordem Social Cristã’ (dom Vital Jackson de Figueiredo), de
‘desenvolvimento endógeno’ (ISEB), de ‘Pátria Grande’ (Oliveiros S.
Ferreira)”.
327
A maior parte da legislação trabalhista incorporada na CLT foi editada entre
1931 e 1934, pouca coisa é posterior a 1937, em período em que a estratégia políti-
ca era de conciliação: conciliação entre capital e trabalho, principalmente. Assim, o
grosso da legislação trabalhista, inclusive na parte dos direitos coletivos, foi elabora-
do sob os auspícios da conciliação, ainda que houvesse muito de insincero nisso e
boa parte da legislação tenha sido promulgada sem a ouvida dos trabalhadores. De
outra parte, mesmo a partir de 1937, observa-se no Brasil uma curiosa distinção: na
327
SANTOS, Roberto Araújo de Oliveira. Trabalho e sociedade na lei brasileira. São Paulo: LTr, 1993,
p. 164-165.
139
parte política adotava-se um autoritarismo desmobilizador, mas, na parte trabalhista,
um autoritarismo mobilizador.
Há, entretanto, outros e mais consistentes argumentos contrários à tese de
que a legislação trabalhista foi puramente autoritária e artificial. O primeiro e mais
importante é que a CLT foi responsável pela criação de uma subjetividade trabalhis-
ta, uma consciência legal dos trabalhadores. Com efeito, “... a legislação social e
trabalhista outorgada pelo governo aos operários de maneira tão benevolente trans-
formou-se, a seguir, num direito legal; e quando um operário exige que ela seja
cumprida, a relação original de ‘outorga’ (ou seja, de dependência) desaparece. O
que passa a contar é que o cidadão está exigindo o cumprimento da lei, que ele exi-
ge ‘seus direitos’ como homem livre”
328
. Com efeito, como bem destacou GOMES,
“Quando se cria um mercado de trabalho livre no país é necessário também criar um
modelo de trabalhador, e o referencial da escravidão se impõe para a construção de
qualquer tipo de discurso que envolva uma ética do trabalho”.
329
Por isso, a nova
subjetividade acabou por ser a primeira tentativa real de superação do referencial da
escravidão. Sincera ou não, ela conseguiu gerar esse efeito, ainda que muito mais
no campo simbólico.
O segundo aspecto, é que de alguma forma a adesão da classe trabalhadora
à legislação reflete o cálculo pragmático dos mais fracos e a instituição de uma filo-
sofia dos direitos. “Para qualquer grupo social, é sempre melhor se você pode ter a
lei e o poder a seu lado. Se você só puder ter um dos dois, o poder é evidentemente
preferível à lei. Se você o tem o poder, entretanto, não se discute que a lei é ain-
da inquestionavelmente melhor do que nada”.
330
A lei trabalhista introduz no univer-
so dos trabalhadores, provavelmente pela primeira vez, a ideia da igualdade homo-
geneizadora, a cultura de direitos universais, que pode ser introjetada como prá-
tica pré-reflexiva por estruturas normativas.
O terceiro aspecto é que, em qualquer hipótese, a construção simbólica da
classe trabalhadora exige a crença no Direito e na Justiça como estratégia de mu-
328
FRENCH, John D. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 64.
329
GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1994, p. 9.
330
FRENCH, John D. Op. cit., p. 67.
140
dança social. FRENCH aponta com precisão esse aspecto ao reproduzir o ponto de
vista de um dirigente sindical da época, ao ser perguntado sobre a insinceridade da
legislação: “Se ele falasse a verdade, que a lei e o processo legal eram uma fraude
e que os resultados favoráveis eram improváveis, estaria reforçando a passivida-
de”
331
. A perspectiva de vida das pessoas é definida por intuições morais, tanto ou
mais que por necessidades materiais, e a modificação das estruturais pré-modernas
exigia o argumento moral. “Só é possível me convencer mudando minha leitura de
minha experiência moral e, em particular, minha leitura histórica de vida, das transi-
ções por que passei – ou talvez recusei-me a passar”
332
.
A lei passa a assumir um claro papel de moral universalizante, ao mesmo
tempo em que, finalmente, o trabalho passa a ser erigido a valor fundamental da
sociedade. A luta social apenas muda de lugar, pois a adesão à lei é sempre uma
estratégia de luta dos mais fracos, como destaca FRENCH:
Para sobreviver e lutar no Brasil industrial, os trabalhadores necessitavam
de um posicionamento que tanto rejeitasse a lei como a idealizasse. A lei
como ideal, porém, não é imaginária”, mas sim, nas palavras da
historiadora norte-americana Deborah Levenson-Estada, “um ícone que
deriva seu poder do fato de não ser pessoal, mas antes objetiva, impessoal,
limpa e justa. É claro que todos sabem que a lei de fato é pessoal, não é
limpa, nem justa. Assim, a lei é uma piada, mas ao mesmo tempo não é. É
uma farsa séria”.
333
O quarto aspecto é que “as lutas das classes trabalhadoras constituíram um
fator indispensável para a aquisição de certos direitos reconhecidos em lei, que e-
ram tão renovadamente reivindicados quanto tão seguidamente burlados”
334
. Assim,
a transformação dos direitos em lei não dispensou a organização e a luta dos traba-
lhadores, mas apenas alterou o centro de luta e de resistência. Uma luta desigual de
modificação de estruturas morais e econômicas não poderia prescindir de todos os
mecanismos que pudessem ser utilizados. Mudanças culturais não ocorrem por uma
cisão imediata com a ordem precedente, e a normalização das expectativas exige
reposicionamento discursivo e “como viu tão bem Nietzsche, uma transvaloração
331
FRENCH, John D. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 67.
332
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Trad.: Adail Ubirajara
Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2005, p. 102.
333
FRENCH, John D. Op. cit., p. 73.
334
PARANHOS, Adalberto. O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil. São Paulo:
Boitempo, 1999, p. 33.
141
não é necessariamente um evento que acontece de uma vez por todas. Os bens
mais antigos condenados permanecem, resistem; alguns parecem inerradicáveis do
coração humano. Assim, a luta e a tensão continuam
335
.
O quinto aspecto é que a legislação trabalhista, em realidade, é uma apropri-
ação da “fala” da classe trabalhadora com propósitos políticos e econômicos, e essa
apropriação é de ordem moral, o que significa dizer que altera a perspectiva discur-
siva tanto da classe dominante quanto da dominada. Com efeito, como bem desta-
cou GOMES
336
, no período de 1891 a 1934, a palavra estava com lideranças vincu-
ladas à classe trabalhadora, de 1942 a 1945, a palavra passa a estar com o Estado,
em uma proposta de construção de uma identidade nacional com fins claramente
políticos e um viés autoritário. Há, de fato, uma intenção de “apagar” a memória da
palavra do trabalhador. Sucede que esse apagamento só pode realizar-se pela relei-
tura e integração em outro contexto do próprio discurso operário. Ao fazer isso, ain-
da que todos os elaboradores da CLT tivessem um perfil conservador e elitista, a
orientação moral ingerida acaba por ser transformadora. “É uma forma de autoen-
gano pensar que não falamos a partir de uma orientação moral que consideramos
certa. Essa é uma condição para ser um self operante, e o uma visão metafísica
que podemos ligar e desligar”
337
. Essa orientação moral, ditada pelo discurso operá-
rio incorporado pelo discurso ditatorial, não podia mais ser apagada, dporque na
“ideologia do trabalhismo vamos encontrar os ecos da voz dos ‘sem-voz’”
338
.
A tese da outorga foi uma estratégia política fundamental para a instituição do
mito
339
getulista e teve sucesso por se amoldar com a anterior tendência elitista do
“favor” prestado aos trabalhadores. A outorga, entretanto, foi muito mais uma tenta-
tiva de apropriação política do que a realidade da construção social e econômica
decorrente do discurso getulista, pois:
335
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Trad.: Adail Ubirajara
Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2005, p. 93.
336
GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1994, p. 9-10.
337
TAYLOR, Charles. Op. cit., p. 135.
338
PARANHOS, Adalberto. O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil. São Paulo:
Boitempo, 1999, p. 35.
339
Para firmar-se como tal, “o mito desloca o plano da história para o da natureza, decreta a abolição
da ‘complexidade dos atos humanos’, reveste-os da ‘simplicidade das essências’ e, como num toque
de mágica, reorganiza um mundo isento de contradições. Instala-se a ‘clareza eufórica’...” (PARA-
NHOS, Adalberto. Op. cit., p. 30).
142
a) as ações do regime visavam mais (e efetivamente ajudaram) ao
desenvolvimento do capitalismo industrial por meio de um interven-
cionismo, que foi a marca do Governo Vargas;
b) Vargas, com grande perspicácia política, procurou antecipar-se às
demandas sociais com a finalidade de manter controle político ao
mesmo tempo sobre os operários e sobre eventuais grupos de elite
que pudessem se opor;
c) os benefícios trabalhistas serviram ao capitalismo pela expansão do
mercado interno.
A mitologia da outorga interpretava equivocadamente os acontecimentos an-
teriores a 1937 como se tivessem sido ações de um Estado forte. Em realidade, a
estrutura estatal encontrada em 1930 era fraca e, conscientemente, procurou-se
estruturar a classe trabalhadora, na tentativa de constituí-la em aliada que pudesse
ajudar a vencer inimigos poderosos e ainda não resignados (a oligarquia rural).
Como bem concluiu Ângela de Castro GOMES, o sucesso do projeto político-
estatal do trabalhismo pode ser explicado pelo fato de ter tomado do discurso articu-
lado pelas lideranças da classe trabalhadora, durante a Primeira República, elemen-
tos-chave de sua autoimagem e de os ter investido de novo significado em outro
contexto discursivo. Por isso, segundo as palavras dessa historiadora:
A ruptura que teria ocorrido entre a “palavra operária” e a proposta do
Estado é portanto relativa, uma vez que se observa que, não os
interesses materiais dos trabalhadores, como também muitos de seus
valores e tradições foram incorporados em outro contexto discursivo.
Considerar tal processo histórico espúrio, menos natural ou legítimo por ter
sofrido intervenção estatal é postura teórica pouco profícua. A questão é
entender que ele teve sucesso porque conseguiu estabelecer laços sólidos o
bastante porque simbólicos (político-culturais) e não apenas materiais
(econômicos). A identidade coletiva da classe trabalhadora construída no
Brasil - sua consciência de classe - é tão “verdadeira” quanto qualquer outra
que tenha sido produzida por um processo histórico distinto.
340
As ideias de proteção ao trabalho floresceram, principalmente, em época em
que a ideologia a industrialização era crescente. O vínculo protetivo foi estabelecido
com fins principalmente à “produção” e, entre nós, produção foi tida principalmente
340
GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1994, p. 11.
143
como “industrialização”
341
. Foi por esse caminho que a ideia de sujeição pessoal e
hierárquica acabou por se amoldar ao sistema industrial que se procurou incentivar
a partir de 1930. É que a organização adotada no processo de industrialização de
todo o mundo (fordismo) adaptava-se muito bem à ideia de hierarquia, e a prestação
de serviços em um ambiente concentrado favorecia o estabelecimento de relações
pessoais, marca de nossa experiência social. Essa aculturação, entretanto, o foi
realizada sem resistências e sem que os dominados de alguma forma procurassem
estratégias emancipatórias e obtivessem vitórias no campo do reconhecimento sim-
bólico. Tudo isso foi um avanço significativo na demorada construção da cidadania
no Brasil.
3.4 TOYOTISMO, CONSUMO E CENTRALIDADE DO TRABALHO
Com avanços e retrocessos, o Brasil continuou o seu projeto de industrializa-
ção e, para isso, contou com a legislação trabalhista estabelecida na Era Vargas, a
qual mantinha com algum equilíbrio as relações entre capital e trabalho. No último
quartel do século XX, entretanto, a antiga divisão do trabalho (produtos básicos para
os países do Sul e produtos industriais para os países do Norte) foi substituída por
uma nova divisão, por meio da qual os países dominantes ficam com os produtos
industriais, serviços de alto conteúdo tecnológico e serviços financeiros e bancários,
enquanto que produtos industriais do período anterior e os que exigem grande pro-
porção de trabalho são transferidos para países intermediários e em fase de indus-
trialização. Essa alteração não parece ser uma forma de declínio industrial dos paí-
ses dominantes, mas sim uma nova forma de especialização dominante
342
, e foi a-
341
Orlando GOMES e Elson GOTTSCHALK (Curso de direito do trabalho. 12ª. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1991, nota 3, p. 142) ao se referirem à centralidade que Mário de LA CUEVA apontava no
conceito de subordinação jurídica, afirmam que “isso explica porque, inicialmente, o Direito do Traba-
lho teve por fim a proteção daqueles trabalhadores empregados em atividades produtivas, se es-
tendendo, depois, a outras categorias cujas relações não têm finalidade de produção. O desamparo
em que ainda se encontram, por exemplo, os domésticos, na maioria das legislações, explica-se pela
finalidade do serviço, que é ligado ao consumo da riqueza”. A observação não deixa de ser correta,
mas deve ser destacado que a proteção não estava vinculada exatamente à produção, mas a alguns
tipos de produção. Para confirmar isso basta observar que a maioria da produção brasileira era rural
na época em que a CLT foi promulgada, mas esta não se aplicava aos trabalhadores rurais.
342
BEAUD, Michel. História do capitalismo: de 1500 até nossos dias. Trad. Maria Ermantina Galvão
Gomes Pereira. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 384-386.
144
companhada de algumas alterações sistêmicas de nítido caráter expansionista do
capitalismo: globalização, toyotismo e financeirização. A contínua expansão, por sua
vez, pôde se sustentar por meio de um aumento considerável do consumismo,
em termos historicamente inigualáveis.
Com efeito, as políticas de demanda realizadas a partir de 1930 e a estrutu-
ração do Estado de Bem-Estar Social se consolidaram principalmente depois da
Segunda Guerra Mundial, mas não eliminaram a inclusão do trabalho, da terra e do
dinheiro como mercadoria. O fato de se proteger o trabalho, a terra e o dinheiro de
investidas dos interesses puramente individuais não os retirou da lógica do merca-
do, mas em certa medida radicalizou a noção de “mercadoria”. Isso se explica, em
grande parte, porque a rigor o “Estado-providência do século XX é um aprofunda-
mento e uma extensão do Estado-protetor ‘clássico’”
343
, visto que indivíduo e propri-
edade continuaram a ser os seus fundamentos. “Os direitos econômicos e sociais
aparecem como um prolongamento natural dos direitos cívicos. Se o ‘verdadeiro
cidadão’ tem de ser proprietário, é preciso tornar ‘quase-proprietários’ todos os cida-
dãos que não o sejam...”.
344
O meio atual de tornar todos quase-proprietários é o consumo. Depois de ab-
sorver categorias imateriais e que, a rigor, com ela seriam incompatíveis (como o
trabalho), a mercadoria procura progressivamente dominar os valores imateriais
mais inóspitos do próprio homem, aquilo que nem o próprio indivíduo poderia domi-
nar: seu inconsciente, seus impulsos e seus desejos. o basta que o trabalho seja
transformado em mercadoria; é necessário que qualquer trabalho seja destinado à
mercadoria e esta se transforme no fetiche supremo da sociedade. O mínimo exis-
tencial deixa de ser a obtenção dos meios básicos de subsistência própria e da fa-
mília para se converter no mínimo direito de consumo. A própria subsistência passa
a ser consumo.
A propaganda e o marketing são os principais instrumentos dessa transfor-
mação da mercadoria e do consumo em uma religião profana, que transmuda até
343
ROSANVALLON, Pierre. A crise do Estado-providência. Trad. Joel Pimentel de Ulhôa. Goiânia:
Editora da UFG; Brasília: Editora da UnB, 1997, p. 18.
344
IDEM, ibidem, p. 20.
145
crenças religiosas em produtos de um “mercado”. Foram as políticas de expansão
de demanda, contudo, que tornaram possível uma “sociedade de massas” ávida por
objetos de desejo e pela sensação fugidia, mas indispensável para esse novo está-
dio do capitalismo, da propriedade exclusiva de bens de consumo.
O valor máximo do sistema contemporâneo, segundo uma nova visão, teria
deixado de ser o trabalho, tal como estabelecido pela utopia liberal, e passado a ser
o consumo. O consumo em si mesmo o é produtor de riquezas e não pode pres-
cindir do trabalho. Por isso, deseja-se o aumento da força de trabalho como condi-
ção de progresso e de riqueza (aumento de consumo), mas contraditoriamente se
afirma que o aumento da produção e da riqueza depende da diminuição do custo da
mão-de-obra. A justificar essa operação apenas a utopia de um mercado autorregu-
lável, condição nunca verificada historicamente, exceto talvez em condições muito
específicas, nos Estados Unidos, na primeira parte do culo XIX, ocasião em que
havia efetiva liberdade dos mercados de trabalho, de terras e de dinheiro.
É com essa ânsia de aumento de demanda que se introduziram as novas prá-
ticas empresariais que conduziram ao atual grau de consumismo e ao sistema in-
dustrial descentralizado. O toyotismo é formado por uma “nova lógica de produção
de mercadorias, novos princípios de administração da produção capitalista, de ges-
tão da força de trabalho, cujo valor universal é constituir uma nova hegemonia do
capital na produção, por meio da captura da subjetividade operária pela lógica do
capital”
345
. Embora originados no Japão, esses métodos de administração se esten-
deram para todas as partes do mundo e sua principal preocupação é aumentar a
produtividade, como resposta sistemática aos problemas de perda de lucratividade
verificados a partir de 1970 nas grandes empresas. O predomínio dessa radical ex-
periência produtiva coincide com a mundialização do capital financeiro, com a qual
está entrelaçado.
Essas transformações, evidentemente, geraram aumento do desemprego es-
trutural, porquanto o acréscimo de produtividade tinha como finalidade principal a
diminuição do custo do trabalho e, conseguintemente, dos postos de trabalho. Tudo
345
ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sin-
dicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000, p. 31.
146
isso gerou uma severa crítica teórica à própria centralidade do trabalho no mundo
contemporâneo. Com base em concepções de Habermas, André Gorz e Claus Offe,
tem sido construída a ideia de que as reais possibilidades emancipatórias do ho-
mem não encontram mais sentido na esfera do mundo do trabalho (razão instru-
mental), mas no mundo da vida cotidiana, na esfera intersubjetiva da razão comuni-
cacional
346
ou nas relações de produção doméstica. A essa concepção se juntam
outras tendentes a minimizar a importância do mundo do trabalho, entre elas a de
que a ciência substitui a centralidade social do trabalho humano e que é possível
antever um futuro do homem sem trabalho, no qual o ócio/trabalho criativo constitua
o ingrediente mais importante para a emancipação social, política e econômica.
Na sociedade brasileira, essa é uma questão das mais relevantes, pois “o de-
bate sobre ‘o fim do trabalho(ou variações mais brandas como o ‘trabalho pós-
industrial’) tem considerável efeito simbólico sobre a classe média, ávida por uma
visão que explique seu próprio desemprego ou subemprego, a despeito da discutível
disseminação real de relações de trabalho substantivamente novas e diferentes”.
347
Essa atração é ainda mais significativa quando se verifica haver entre seus arautos
quem afirme que a “sociedade industrial permitiu que milhões de pessoas agissem
somente com o corpo, mas não lhes deixou a liberdade para expressar-se com a
mente. Na linha de montagem, os operários movimentavam mãos e pés, mas não
usavam a cabeça. A sociedade s-industrial oferece uma nova liberdade: depois
do corpo, liberta a alma”
348
. O mundo contemporâneo acena para o predomínio
quase absoluto do trabalho intelectual, livre e criativo como forma de alcançar a ver-
dadeira liberdade.
A afirmação de que o trabalho perdeu sua centralidade no mundo contempo-
râneo, entretanto, parece decorrer de uma visão eurocêntrica do mundo. Com efei-
to, em países periféricos, como o Brasil, nunca o trabalho teve tanta importância e
nunca se trabalhou tanto. O que houve a partir da década de 1980 foi uma profunda
346
ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São
Paulo: Boitempo, 2005, p. 23-24.
347
NORONHA, Eduardo G. “Informal”, ilegal, injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil.
Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 18, n. 53, outubro de 2003, p. 120.
348
DE MASI, Domenico. O ócio criativo: entrevista a Maria Serena Palieri. Trad. Léa Manzi. Rio de
Janeiro: Sextante, 2000, p. 15.
147
alteração dos meios de produção de mais-valia decorrente da apropriação pelo capi-
talismo do salto tecnológico, o que gerou novos processos de trabalho (neofordismo,
neotaylorismo e toyotismo) a conviverem com os processos produtivos tradicionais
(fordismo e taylorismo) e até com processos antiquados e que se imaginavam supe-
rados (escravidão). Em decorrência, verificou-se, de um lado, a redução do proleta-
riado industrial e manual nos países de capitalismo avançado e, paralelamente, uma
subproletarização do trabalho (trabalho precário ou parcial), principalmente na peri-
feria
349
. O Brasil constitui uma evidência exemplar dessa convivência “pacífica” de
processos dos mais distintos de trabalho, pois incorpora modos de produção avan-
çados (v.g. toyotismo) com uma industrialização pré-taylorista e modos de explora-
ção do trabalho que parecem mais próximos da fase pré-industrial, como o trabalho
escravo, inseridos direta ou indiretamente em um sistema produtivo. A respeito
dessas alterações, assim se expressou ANTUNES:
O que de fato parece ocorrer é uma mudança quantitativa (redução do
número de operários tradicionais), uma alteração qualitativa que é bipolar:
num extremo em alguns ramos maior qualificação do trabalhador, que se
torna “supervisor e vigia do processo de produção”; no outro extremo houve
intensa desqualificação em outros ramos e diminuição em ainda outros,
como o mineiro e o metalúrgico. Há, portanto, uma metamorfose no universo
do trabalho, que varia de ramo para ramo, de setor para setor, etc.,
configurando um processo contraditório que qualifica em alguns ramos e
desqualifica em outros (Lojkine, 1995). Portanto, complexificou-se,
heterogeneizou-se e fragmentou-se ainda mais o mundo do trabalho.
350
Em que pese o hiperdimensionamento da ciência como fator da produção no
mundo contemporâneo, ela o possui condições de superar a base material das
relações entre capital e trabalho e, dessa maneira, transformar-se na principal força
produtiva, pois o possui independência frente ao capital e seu ciclo reprodutivo.
351
As transformações do mundo do trabalho, portanto, decorrem de “um processo de
reorganização do capital e de seu sistema ideológico e político de dominação, cujos
contornos mais evidentes foram o advento do neoliberalismo, com a privatização do
Estado, a desregulamentação dos direitos do trabalho e a desmontagem do setor
produtivo estatal”
352
, como resposta a uma crise estrutural do próprio capitalismo.
349
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho.
São Paulo: Boitempo, 1999, p. 211-212.
350
IDEM, ibidem, p. 213-214.
351
IDEM, ibidem, p. 122.
352
IDEM, ibidem, p. 31.
148
Essa crise decorre do esgotamento dos meios tayloristas de produção e das dificul-
dades do Estado de Bem-Estar Social.
As crises em regra decorrem de rupturas, de maior ou menor intensidade, de
um sistema de dominação. A crise do capital no final dos anos 1960 e início dos a-
nos 1970 decorreu de um rearranjo estrutural do sistema produtivo, cujos exceden-
tes forçaram a perda de lucratividade, ou seja, a diminuição das margens de lucro.
Essas alterações estruturais do capitalismo produziram, entre outras inúmeras e
complexas modificações nas sociedades contemporâneas, uma mudança na com-
posição da denominada “classe trabalhadora” ou da “classe-que-vive-do-
trabalho”
353
. o preponderam mais, em termos quantitativos, os trabalhadores pro-
dutivos (em atividades diretas e manuais na indústria) e que geram diretamente
mais-valia no sistema, pois “o capital emprega a força de trabalho sob as formas
mais variadas em cada momento histórico. Não rigidez na forma. A única exigên-
cia é que seja funcional à lei do valor”
354
. Cresce de modo acentuado o trabalho de-
nominado improdutivo (comércio e serviços), o qual cria valor de uso e o valor de
troca.
355
Esse crescimento tem sido acompanhado de um aumento impressionante
daquilo que se tem denominado trabalho informal, efeito colateral (mas inevitável)
do sistema de acumulação flexível.
Isso tudo, entretanto, não retira a centralidade do trabalho no mundo contem-
porâneo, pois não é possível “conceber a eliminação, no universo da sociabilidade
humana, do trabalho concreto, que cria coisas socialmente úteis, e ao fazê-lo (auto)
transforma o seu próprio criador”.
356
A criação de classes de trabalhadores subprole-
tarizados, portanto, não constitui um acidente inesperado e uma anomalia do siste-
ma capitalista contemporâneo, mas em realidade aponta um elemento que lhe é
normal e imprescindível para sua própria sobrevivência. A empresa que adota o to-
yotismo se fortalece em ambiente caracterizado pela escassez de oportunidades de
353
Como prefere ANTUNES para “conferir validade contemporânea ao conceito marxiano de classe
trabalhadora(ANTUNES, Ricardo. Op. cit., p. 101), para se referir a todos que vivem diretamente do
trabalho próprio em benefício de outrem.
354
ALVES, Maria Aparecida; TAVARES, Maria Augusta. A dupla face da informalidade: “autonomia”
ou precarização. In: Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. ANTUNES, Ricardo (org.). São Paulo:
Boitempo, 2006, p. 435.
355
ANTUNES, Ricardo. Op. cit., p. 102.
356
IDEM, ibidem, p. 215.
149
trabalho, de desmobilização sindical e de crescimento lento, pois o “consenso inter-
no” e a “polivalência” não são obtidos “naturalmente”, mas impostos aos trabalhado-
res.
357
Mesmo entre os trabalhadores formais (com carteira assinada) cresce o tra-
balho precarizado ou o subproletariado (subcontratados, trabalhadores part-time e
terceirizados) e entre os “autônomos legalizados” categorias das mais heterogê-
neas, desde representantes comerciais com um grande nível de dependência até
pessoas jurídicas prestadoras de serviços por meio de uma única pessoa física. Es-
sa tendência de precarização tem sido associada ao setor de prestação de serviços,
como se esse setor não tivesse ligação com o sistema produtivo e como se fosse
algo à parte do sistema de produção de bens. Fazem parte dessas alterações, en-
tretanto, uma “imbricação crescente entre mundo produtivo e setor de serviços, bem
como a crescente subordinação desse último ao primeiro, o assalariamento dos tra-
balhadores do setor de serviços aproxima-se cada vez mais da lógica e da racionali-
dade do mundo produtivo, gerando uma interpenetração recíproca entre eles”.
358
Admitida a permanência do trabalho como elemento principal do processo
produtivo, o que se põe em dúvida, em seguida, é se essa centralidade ainda per-
manece no emprego ou se outras formas de trabalho, que não podem ser enqua-
dradas como de emprego, passam a assumir maior importância. Como o trabalho
tende a desenvolver-se por meio de “equipes autônomas” (despersonalização), em
“locais autônomos” (desterritorialização) e em “horários autônomos(destemporali-
zação), tende-se a supor o desaparecimento da própria estrutura de dominação em
que se insere a subordinação. FORRESTER, por exemplo, afirma que:
A organização autoritária baseada em relações de superior a subordinado
deve desaparecer... Segundo o novo modelo, nenhum indivíduo deve
depender de um superior. Deve poder negociar, com ampla liberdade, sua
adesão a uma estrutura continuamente móvel de ligações recíporocas em
relação àqueles com que ele trocaria bens e serviços... Uma estrutura não
autoritária implica o exercício de uma concorrência interna... Cada indivíduo
357
LIMA, Eurenice. Toyota: a inspiração japonesa e os caminhos do consentimento. In ANTUNES,
Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 120.
358
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho.
São Paulo: Boitempo, 1999, p. 111.
150
ou pequena equipe teria assim uma situação idêntica à do proprietário que é
o próprio gerente de sua empresa.
359
O que parece em realidade ocorrer nesta fase hegemônica do capitalismo é
uma introjeção no próprio trabalhador de mecanismos de controle, principalmente
por meio da apropriação da ideia do valor subjetivo do trabalho.
360
O que se é
uma pulverização de comandos, parte deles internalizada no trabalhador que execu-
ta e ao mesmo tempo supervisiona a tarefa; outra parte é transferida para o próprio
cliente, que faz o “controle de qualidade”, ou é atribuída a terceiros. Isso não au-
menta a produtividade, mas, acima de tudo, modifica os mecanismos de coerção. A
subordinação jurídica, portanto, apenas ganha novas e muitas vezes menos dignas
roupagens.
dois aspectos do toyotismo que interessam mais diretamente a este traba-
lho. Primeiro, deve-se observar que, embora o taylorismo-fordismo tenha procurado
integrar o operariado à gica do capital, isso foi realizado por procedimentos pura-
mente formais e estruturais, pois “não conseguiu incorporar à racionalidade capita-
lista na produção as variáveis psicológicas do comportamento operário, que o toyo-
tismo desenvolve por meio dos mecanismos de comprometimento operários, que
aprimoram o controle do capital na dimensão subjetiva”
361
. O que temos nesse caso
359
FORRESTER, Jay Wright. Documento apresentado na conferência da OCDE, Bélgica, em 1969,
apud PIGNON, Dominique; QUERZOLA, Jean. Ditadura e democracia na produção. In: GORZ, André
(Org.). Crítica da divisão do trabalho. Trad. Estela dos Santos Abreu. ed. Brasileira. São Paulo:
Martins Fontes, 1989, p. 137.
360
“A exaltação do trabalho, no seu ápice, enaltece todo e qualquer trabalho como único modo de
dignificação do sujeito, que se constitui desde a função que desempenha e na imagem de quem o
explora” (COUTINHO, Aldacy Rachid. Direito do Trabalho: a passagem de um regime despótico para
um regime hegemônico. In: COUTINHO, Aldacy Rachid; WALDRAFF, Célio Horst. Direito do Trabalho
& Direito Processual do Trabalho: temas atuais. Curitiba: Juruá, 1999, p. 16). Esse revigoramento do
princípio mais elementar do liberalismo lockeano acarreta o aprisionamento do sujeito, pois passa a
prevalecer a ideia de que “O sujeito é o que faz, o que trabalha e para quem trabalha; em reverso, o
sujeito não é, é um não-sujeito, se nada faz, se não trabalhava, se não é tomado pelo capital. O ani-
quilamento do sujeito se projeta no sonho de ser explorado, para não ser tomado na pequenez e na
inutilidade de quem nem para ser explorado conta” (IDEM, ibidem, p. 17).
361
ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sin-
dicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000, p. 40.
151
é uma modificação na forma de sujeição do trabalhador, pois o “despotismo tayloris-
ta” teria sido substituído pela “democracia toyotista”
362
.
O segundo aspecto é que a reestruturação produtiva, posterior às modifica-
ções estruturais do capitalismo no campo financeiro e produtivo, acarretou uma pre-
carização no mundo do trabalho, o que em alguns pontos retorna ao mundo do “tra-
balho livre” da República Velha. Embora a reestruturação produtiva tenha afetado
todo o mundo capitalista, o certo é que no Brasil sua incidência foi ainda mais noci-
va. O aumento da produtividade e da lucratividade nas áreas centrais do sistema
poderia se realizar com precarização das “franjas”, pois os trabalhos menos produti-
vos ou com menos condições de gerar lucros são terceirizados, transferidos para a
periferia.
363
Se é verdadeiro que “a sociedade do capital e sua lei do valor necessitam ca-
da vez menos do trabalho estável e cada vez mais das diversificadas formas de tra-
balho parcial ou part-time, terceirizado, que são, em escala crescente, parte consti-
tutiva do processo de produção capitalista”
364
, o que se deve indagar é sobre o tipo
de resposta oferecido pelo mundo jurídico a essa transformação. Se o trabalho pre-
cário passa a fazer parte da “normalidade” do sistema e não se trata de um elemen-
to transitório da realidade social, respostas jurídicas apropriadas devem ser busca-
das, sob pena de se dividirem os trabalhadores em protegidos e desprotegidos, de
modo a minar ainda mais os mecanismos de solidariedade social e a erodir impor-
tantes bases de convivência humana.
362
“Empregado e empregadores, antes com interesses antagônicos, atualmente se identificam em
suposta comunhão de interesses voltados ao mercado e ao cliente, para agir diante da concorrência.
A cooptação do trabalhador mascara a conflituosidade inerente em processo de apropriação da mais-
valia no processo produtivo e desestrutura com a noção de classe, pela não identificação de si mesmo
na diferença com o outro. Empregado o é, espelhando-se no seu oposto, no que não é, o emprega-
dor. Empregador e empregado são conceitos que se interrelacionam na completude semântica e rea-
gem na diversidade” (COUTINHO, Aldacy Rachid. Direito do Trabalho: a passagem de um regime
despótico para um regime hegemônico. In: COUTINHO, Aldacy Rachid; WALDRAFF, Célio Horst.
Direito do Trabalho & Direito Processual do Trabalho: temas atuais. Curitiba: Juruá, 1999, p. 20).
363
“A terceirização é um componente central do espírito do toyotismo, capaz de instaurar uma ‘frag-
mentação sistêmica’ do circuito de valorização, o suporte material do ‘trabalhador coletivo’. Articula-se
com o just-in-time/kanban, utilizando-se das vantagens comparativas postas pelas novas tecnologias
microeletrônicas na produção” (ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestrutura-
ção produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000, p. 203).
364
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho.
São Paulo: Boitempo, 1999, p. 119.
152
O primeiro passo nessa investigação parece ser o de pensar quem é esse
trabalhador “informal” e se esse trabalhador é apenas uma modalidade de empre-
gado ou se constitui uma nova categoria jurídica. No conceito de trabalho informal
têm sido incluídos trabalhadores dos mais diversos tipos, como o assalariado sem
contrato de trabalho registrado (atividade em enorme expansão no capitalismo con-
temporâneo, em empresas
365
), os trabalhadores individuais por conta própria (pe-
quenos serviços de manutenção, de limpeza, de beleza etc.), os cooperados, os
estagiários, os que trabalham em domicílio, os pequenos vendedores de porta em
porta, que dependam totalmente do fornecedor (como os que vendem produtos de
beleza) e todos aqueles a quem a legislação trabalhista o asseguraria nenhum
tipo de direito. Com razão se apontou pela excessiva generalidade com que o
“trabalho informal” é denominado no Brasil e sobre a dubiedade do binômio “for-
mal/informal”.
366
A análise histórica acima empreendida parece indicar que esse não é um
problema novo. É um problema recém-descoberto ou, talvez seja mais correto afir-
mar, reconstruído. A precarização é um produto de um autoritarismo estrutural, que
vai da economia à política, passando pela estrutura burocrática estatal. Sempre es-
teve na base das relações sociais brasileiras, como urubus em torno de um cemité-
rio aberto: aumenta a quantidade conforme a quantidade de corpos disponíveis,
mas a afirmação de que se trata do mesmo problema verificado na Colônia, no Im-
pério e na Primeira República seria uma grosseira simplificação. A estrutura social e
econômica se alterou tanto depois de 1930 que a precarização também é outra, e
permanecem alguns aspectos simbólicos a impor uma distinção social “naturali-
zada”, a impedir a real extensão da cidadania para grande parte da população. Por
365
Esse tipo de precarização em regra se aplica em empresas de pequeno porte (até cinco emprega-
dos) e que se utilizam de trabalhadores de baixo nível de instrução e salários baixos, e que prestam
serviços às grandes empresas por meio de subcontratação (ALVES, Maria Aparecida; TAVARES,
Maria Augusta. A dupla face da informalidade: “autonomia” ou precarização. In: Riqueza e miséria do
trabalho no Brasil. ANTUNES, Ricardo (org.). São Paulo: Boitempo, 2006, p. 432).
366
NORONHA, Eduardo G. “Informal”, ilegal, injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil.
Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 18, n. 53, outubro de 2003, p. 111.
153
essa reconstrução são reorientados os mecanismos que mantêm e sempre mantive-
ram no País significativa parcela de sua população invisível para o Direito.
367
3.5 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS
Quando a Constituição de 1988 foi promulgada, estavam consolidadas as
alterações produtivas do capitalismo, denominadas em termos genéricos de “globa-
lização”, bem como suas bases ideológicas, denominadas “neoliberalismo”. Qual foi
a resposta jurídica e política que a sociedade brasileira adotou para enfrentar os
seus problemas? Constitucionalismo. Aquilo que se denomina constitucionalismo
sempre foi em certa medida uma forma de protecionismo. A história revela que o
só as Constituições como também o produto da sua interpretação e aplicação (cons-
titucionalismo) raramente são instrumentos de criação de um pacto originário, mas
quase sempre são frutos de uma redistribuição dos poderes entre as classes sociais
relevantes, de modo a estabelecer regras de proteção aos respectivos grupos e inte-
resses.
A Constituição de 1988 é de fundamento capitalista, não há dúvida, mas tam-
bém o Estado de Bem-Estar Social o é socialista, como demonstra ROSANVAL-
LON:
O Estado-providência deve ser compreendido, em primeiro lugar, como uma
radicalização, isto é, uma extensão e um aprofundamento do Estado-
protetor “clássico”. [...] Os direitos econômicos e sociais aparecem como um
prolongamento natural dos direitos cívicos. Se o “verdadeiro cidadão” tem de
ser proprietário, é preciso tornar “quase-proprietários” todos os cidadãos que
não o sejam, isto é, instituir mecanismos sociais que lhes dêem o
equivalente de tranquilidade e de segurança que a sociedade garante.
368
Ao adotar o Estado de Bem-Estar Social a Constituição de 1988 não incorpo-
rou um viés socialista, mas radicalizou sua opção capitalista. Sucede que o modelo
foi adotado quando o Estado de Bem Social entrava em crise e esse foi um argu-
367
A invisibilidade desses seres não é apenas para o Direito. “O que existe aqui são acordos e con-
sensos sociais mudos e subliminares, mas, por isso mesmo tanto mais eficazes que articulam, como
que por meio de fios invisíveis, solidariedades e preconceitos profundos e invisíveis” (SOUZA, Jessé.
A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 175).
368
ROSANVALLON, Pierre. A crise do Estado-providência. Trad. Joel Pimentel de Ulhôa. Goiânia:
Editora da UFG; Brasília: Editora da UnB, 1997, p. 20.
154
mento ideológico utilizado para tentar desconstituí-la como projeto nacional emanci-
patório, sob alegação de que os modelos adotados eram inadequados à realidade
social e econômica. Nessa perspectiva, a realidade sobrepuja as ideias e a respecti-
va base legal.
A Constituição de 1988 representa, entretanto, uma tentativa de modificar o
processo histórico de dominação social por uma pequena elite econômica, de impe-
dir a desvalorização e a precarização do trabalho. Constitui um programa de univer-
salização da cidadania substancial, pois incorporou os vários anseios da nação, al-
guns aantagônicos. A sua realização prática é uma experiência única na vida so-
cial brasileira, pois a rigor é sua primeira real vivência constitucional, e isso tem alte-
rado de forma importante, embora ainda tímida, a dinâmica jurídica do País.
Com um ambiente favorável à constitucionalização, surgiu aquilo que se de-
nomina “publicização dos direitos privados”, ou seja, uma abertura de todo o sistema
para os princípios e regras constitucionais. Essa foi uma resposta jurídica aos an-
seios evidentes de transformação da realidade social e, ao mesmo tempo, às ne-
cessidades de dar conta das transformações econômicas que se consolidavam
em 1988. Houve uma mudança paradigmática em todo o sistema jurídico. o se
trata, portanto, de uma alteração ontológica dos institutos, que conservam seus e-
lementos existenciais, mas de uma releitura constitucional dos institutos civis, sobre
os quais se lança um novo e mais atualizado olhar, ação ainda em movimento. Por
meio dessa releitura, “o princípio da prevalência ou da preferência da lei é hoje ‘rela-
tivizado’ pelo princípio da prevalência da constituição”
369
, sem que o texto legal dei-
xe de ter conteúdo útil.
Deve-se lembrar, todavia, que “as ordens jurídicas configuram-se como sis-
temas complexos. São sistemas complexos precisamente porque os seus elemen-
tos e as suas partes constitutivas as normas, as instituições, os direitos intera-
gem de uma forma imbricada e intrincada, o podendo os resultados da interação
ser previstos em termos totalmente rigorosos”.
370
No caso da legislação trabalhista
369
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª. ed. Coim-
bra: Almedina, 2003, p. 721.
370
IDEM, ibidem, p. p. 1143.
155
essa relação é ainda mais complexa, pois esse entrelaçamento normativo é realiza-
do com uma pluralidade ainda maior de fontes (convenções e acordos coletivos,
regulamento de empresa, contrato individual, sentenças normativas etc.), tudo coor-
denado por um princípio reitor paralelo, qual seja, o da prevalência da norma mais
favorável ao trabalhador.
A concepção clássica de ordenamento jurídico como ente provido de unidade
e coerência intrínseca está superada nos dias atuais.
371
regras desprovidas de
conexão e articulação com outras, bem como uma tensão entre ordem e caos que
remete ao problema de como “navegar no cosmos normativo”. Segundo CANOTI-
LHO, isso de resolve tendo por ponto de partida que “a ordem e a hierarquia das
normas e os conflitos de normas não encontram fundamento e fundamentalmen-
te nas próprias normas mas sim na ordem das instituições politicamente legitima-
das”.
372
A Constituição mantém o seu papel de elemento unificador da ordem jurídi-
ca por meio do princípio da conformidade (consonância de todos os atos públicos
com as regras e princípios da Constituição) e de outra parte a Constituição mantém
a unidade como um quadro moral e racional do discurso político conformador da
ordem normativo-constitucional, mediante aplicação de princípios e regras incorpo-
radores de valores básicos do ordenamento jurídico. Isso se dá porque “a força vital
e a eficácia da Constituição assentam-se na sua vinculação às forças espontâneas
e às tendências dominantes do seu tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento
e a sua ordenação objetiva. A Constituição converte-se, assim, na ordem geral obje-
tiva do complexo de relações da vida”.
373
Essa nova visão do ordenamento jurídico acarreta também uma alteração da
metodologia legislativa. A regra jurídica deixa de ser concebida em seu sentido tra-
dicional e formal kelseniano (preceito e sanção), em sistema fechado, para adquirir
plasticidade e se adequar às tendências sociais. Essa plasticidade se manifesta por
371
“Não existe, em abstrato, o ordenamento jurídico, mas existem os ordenamentos jurídicos, cada
um dos quais caracterizado por uma filosofia de vida, isto é, por valores e por princípios fundamentais
que constituem a sua estrutura qualificadora” (PERLINGERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução
ao direito civil constitucional. Trad.: Maria Cristina de Cicco. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.
5).
372
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 1147.
373
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,
1991, p. 18.
156
meio de regras constituídas por cláusulas gerais, abrangentes e abertas
374
, de modo
a se adaptar à velocidade com que a sociedade de massa produz, circula, transmite
e extingue riquezas. Na grande e veloz roda da produção, é necessário inserir todo
o sistema jurídico: tempo (velocidade) é a “alma” do negócio.
Se de um lado uma sociedade caracterizada pelo hipermercado, pelo hiper-
consumo e pelo hiperindividualismo exige instrumentos jurídicos ágeis (entre os
quais o tradicional contrato o se inclui), de outro as alterações sociais produzem
um novo tipo de indivíduo, um novo modelo de família e novos direitos coletivos,
como o dos povos indígenas, dos quilombolas, dos bens culturais e paisagísticos,
entre outros. Tudo isso importa em demandas sociais às quais o contrato e o direito
tradicional não oferecem resposta. Isso parece interferir sensivelmente na própria
estrutura do contrato de trabalho, ainda que um véu positivista insista em cobri-lo.
Em decorrência dessas alterações estruturais, a Constituição passa a influir
no direito privado por meio de sua ideologia (princípio da conformidade) e de outro a
influir na técnica de produção legislativa das regras infraconstitucionais, pois seu
modo peculiar de impor seu programa se mostra mais adequado à nova realidade
sociopolítica. A consequência prática imediata dos influxos da ordem constitucional
sobre o direito privado é o de “se condicionar a efetividade dos efeitos patrimoniais
dos atos jurídicos (lato sensu) atrelados à realização de valores superiores do orde-
namento jurídico, tal como a dignidade da pessoa humana (CR, art. 3
º.
, III), apor-
que este valor jurídico, dentre outros, encontra-se no vértice da estrutural legal”.
375
A
interpretação dos contratos, portanto, deixa de ter o cunho puramente patrimonialis-
ta (pacta sunt servanda) e passa a depender da verificação, no caso concreto, dos
existenciais resguardados como valores básicos no texto constitucional e em conso-
nância com os demais elementos do sistema, sempre plasmados ao programa da
Constituição, pois esta “procura imprimir ordem e conformação à realidade política e
social”.
376
374
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2ª. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 34.
375
IDEM, ibidem, p. 34.
376
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,
1991, p. 15.
157
Essa tendência não representa somente despatrimonialização do Direito Civil,
mas constitui também uma nova concepção estrutural e conceitual dos direitos e
deveres existentes nas relações contratuais. O que se tem em mente no programa
constitucional é, acima de tudo, a proteção do ser humano, como uma forma de pro-
teção da vida concreta.
Embora o trabalho esteja inserido no sistema capitalista de produção de bens
e, ainda que o Direito do Trabalho o justifique e se justifique nesse sistema, é fato
também que o objetivo do sistema de proteção é a preservação social. Os meca-
nismos foram criados para salvar ao mesmo tempo a sociedade e o próprio capita-
lismo, mas em vários aspectos constituem limitação aos próprios interesses dos ca-
pitalistas. “O que se pretende ao dizer ‘publicização do Direito Privado’, sobretudo, é
a proteção assegurada à pessoa humana, relegada a segundo plano em razão das
modificações jurídicas oriundas e decorrentes da transformação capitalista vivida
pela sociedade”.
377
377
SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil: aspectos da publicização do Di-
reito Privado. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 375, set/out de 2004, p. 108.
158
4 SUBJETIVIDADE E CLASSE TRABALHADORA
__ Ó tu, bem-aventurado mais do que todos os que vivem na face da terra,
pois, sem teres inveja, nem seres invejado, dormes com tranquilo espírito,
sem te perseguirem nigromantes, nem sobressaltarem nigromancias.
Dorme, repito, e repetirei cem vezes, sem te inspirarem continuada vigília
zelos da tua dama, nem te desvelarem pensamentos de pagar dívidas, nem
do que há de fazer para comer no dia seguinte, tu e a tua pequena e
angustiada família, nem a ambição te inquieta, nem a pompa do mundo
te fatiga, pois os limites dos teus desejos não se estendem além de pensar
no teu jumento, que o da tua pessoa carregas nos meus ombros,
contrapeso e carga que impuseram a natureza e o costume dos anos.
Dorme o criado, está o amo de vela, pensando como o de sustentar e
melhorar, e fazer-lhe mercês. A angústia de ver que o céu se faz de bronze,
sem acudir à terra com o conveniente orvalho, não aflige o criado, aflige o
amo, que há de sustentar na esterilidade e na fome o que o serviu na
fertilidade e na fatura.
378
4.1 O PASSADO PRESENTE DA ESCRAVIDÃO: OUTRO SUJEITO
OU OUTRO ESCRAVO?
A fina ironia de Cervantes comprova que são antigos os argumentos pelos
quais os senhores justificam o exercício da dominação pela necessidade de prote-
ger os sujeitados. De outra parte, fica evidente que qualquer tipo de dominação re-
quer uma justificação moral e exige uma “comunicação” com o dominado. A domi-
nação nunca é um monólogo “ordeno/obedeces”, mas uma complexa relação de
falas das quais o dominado, mesmo quando dorme, participa.
De todo modo, o Dom Quixote que fala é o ainda medieval ou se transfor-
mava em moderno? Não é o fato de o argumento de Dom Quixote estar centrado na
honra do senhor que o remete para a moral medieval. Também na Modernidade a
honra é elemento essencial e “diferenciador”, mas o que nela é peculiar é a interna-
lização da honra, processo típico dessa fase da história. O autocontrole não é mais
dirigido aos grandes feitos militares, mas ao “domínio interior da paixão, pelo pen-
378
Palavras de Dom Quixote a Sancho Pança, enquanto este ainda dormia e a tentar acordá-lo
(CERVANTES de Saavedra, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha, p. 389-390).
159
samento”,
379
de modo a ter condições de por meio do controle emocional estabele-
cer mecanismos de recíprocas concessões.
Tudo indica, entretanto, que o Dom Quixote “tomador de serviços” está mais
próximo do sujeito do feudalismo, preocupado com questões de honra (o costume
que pesa sobre os ombros dos nobres) e com relações patriarcais, mas sem preo-
cupar-se com a fundamentação do seu pensamento: ainda é a estrutura social que
molda o seu agir, tanto é verdade que demonstra uma preocupação inexistente na
Modernidade: cuidar na fome de quem lhe serviu na fartura. Não deixa de ser curio-
so, todavia, não existir antagonismo radical entre essas relações e a sujeição pro-
posta pela Modernidade, da qual o contrato de emprego é o principal instrumento,
pois mesmo em bases contratuais sobrevive até hoje a ideia de que o trabalho é um
favor da classe dominante, prestado em benefício dos despreocupados pobres.
Esse estratagema, tão recorrente na Modernidade, indica a necessidade de
fundamentação das relações de trabalho para além da autonomia de vontade e do
contrato. A base está no contrato, mas sempre lhe cercam perigos de manutenção
de bases patriarcais, com todas as perversidades e ocultamentos que delas decor-
rem.
380
Não é por outro motivo que os senhores do Brasil, nos séculos XV a XIX,
justificavam a escravidão pela “inferioridade física e intelectual da raça negra, classi-
ficada por todos os fisiologistas como a última das raças humanas, a reduz natural-
mente, uma vez que tenha contatos e relações com outras raças, e especialmente a
branca, ao lugar ínfimo, e condições elementares da sociedade”
381
. Na opinião de
TAUNAY, o ódio ao trabalho e os seus cios morais exigem que os negros sejam
conservados sob tutela e que “a escravidão não é um mal para eles e sim para os
senhores”
382
. Não é por outro motivo que a transição do trabalho escravo para o tra-
379
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Trad.: Adail Ubirajara
Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2005, p. 203.
380
“Parafraseando Fustel de Coulanges (1830-1889) pode-se dizer que ‘é a necessidade recíproca
que os vulneráveis têm dos ricos e que o rico tem dos vulneráveis que gerou os servos’” (CATTANI,
Antonio David. Desemprego e trabalho precário: bases para a servidão moderna? Revista de Ciências
Humanas. Curitiba: Ed. UFPR, n. 10, 2001, p. 207). Não é sem perplexidade que se observam no
início do século XXI indícios de renascimento dessas relações patriarcais de dependência.
381
TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 52-
53.
382
IDEM, ibidem, p. 53.
160
balho livre no Brasil não é um processo de pura ruptura, mas também de continui-
dade
383
, um alternar entre a “regurgitação” e a “ruminação”.
384
A dura preocupação no Brasil de dar trabalho aos escravos, e agora aos po-
bres, tem gerado, ao contrário de todas as previsões, cada vez mais riqueza para os
ricos.
385
Trata-se de preocupação tão antiga, no País, que quanto mais dela se ocu-
pam os governantes, mais se concentra a riqueza. A tendência ideológica e econô-
mica a que se tem denominado de neoliberalismo, portanto, não inova na receita; o
que sucede em tempos de hipermodernidade é uma exagerada dose do remédio:
hoje é cada vez maior a quantidade daqueles que precisam da generosidade alheia
para que possam conceder a única coisa que possuem: o trabalho. A isso temos
denominado “precarização” da mão-de-obra.
Esse ponto de coincidência entre a relação de Dom Quixote com Sancho
Pança e a do empregado com o empregador, ao mesmo tempo revela um ponto de
ruptura: o favorecido dorme; um inusitado anseio de liberdade acordará o emprega-
do na Modernidade. O instrumento de sujeição também cria o sujeito, mas, se havia
contradição entre a servidão medieval e o homem moderno (livre), o que justifica a
permanência da escravidão no regime capitalista? Não haveria uma contradição
irremediável?
383
FRENCH “argumenta em favor de uma forte e multifacetada continuidade em termos da escravi-
dão e seus legados no Brasil rural e urbano” (FRENCH, John D. As falsas dicotomias entre escravidão
e liberdade: continuidades e rupturas na formação política e social do Brasil moderno. In: LIBBY, Dou-
glas; FURTADO, Júnia Ferreira (Orgs.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVII
e XIX. São Paulo: Annablume, 2006, p. 77). Essa continuidade decorreu da instalação de um habitus
nas relações de comando e obediência. “Assim, os legados da escravidão africana incluem noções
bem estabelecidas sobre o exercício legitimado da autoridade, hierarquias de status profundamente
arraigadas e modelos de governança que mantiveram sua influência mesmo após o seu fim” (IDEM,
ibidem, p. 78).
384
Com essa expressão quer-se enfatizar que o trabalho livre no Brasil é um processo descontínuo,
mas recorrente, de aprendizado social, por meio de pequenas rupturas (algumas mais significativas,
como a da Abolição) e de assimilações antropofágicas seguidas de experiências sociais e políticas
nas quais se eliminam eventuais excessos de poder (regurgitação) ou em que se remoem experiên-
cias do passado (ruminação). O “alimento” desse processo, contudo, é sempre externo, pois esse
aprendizado sempre esteve voltado a uma pretensão de “ocidentalidade”.
385
Como percebeu Lacan, é extraordinário que nas análises econômicas ninguém tenha feito a ob-
servação de que a riqueza é a propriedade do rico” (LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso
da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques Alain Miller, versão brasileira de Ary Roitman. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 77). Em simetria, o trabalho seria a “propriedade” do trabalhador na
concepção liberal. O contraponto entre as duas propriedades, entretanto, é que o rico é o redimido
pela compra (IDEM, ibidem, p. 78), cuja repetição é o ato de comprar sem pagar, pois tudo que se
apresenta é por ele “resgatado”. O trabalhador busca participar da riqueza pela venda, pois somente
assim participa de uma “troca”, por meio da qual acredita que comunga da essência do rico.
161
Com efeito, na Modernidade, a autonomia da vontade passa a ser “ao mesmo
tempo, o fundamento e a justificação da força obrigatória do contrato”
386
, porquanto
tem a pretensão de equiparar-se ao princípio de liberdade.
387
Como, contudo, seria
possível conceber essa liberdade para além das estruturas sociais em que ela foi
“criada” ou “inventada”? Como é possível conceber um fundamento que nasce sem
nenhum outro fundamento? O argumento da “natureza” da escravidão é o válido
quanto o argumento da “natureza” do mercado livre.
no aspecto moral, por conseguinte, haveria contradição entre capitalismo
e escravidão. Os fundamentos econômicos nem sempre são exercidos em bases
morais coerentes, embora mais tarde essas bases acabem por cobrar-lhes seu pre-
ço. É por isso que o liberalismo, corrente que mais bem ilustra o anseio de liberdade
e de expansão econômica do capitalismo, em várias partes do mundo conseguiu
unir a crença na mão invisível do mercado com a escravidão por meio da lógica de
que “o trabalho escravo se constituía em condição primeira para a existência social
do branco livre e proprietário”
388
. Por isso o próprio LOCKE justificava moralmente a
escravidão, conforme referido na nota de rodapé 266 (p. 114). Daí que a humanida-
de sempre corre o risco de criar novas e mais sofisticavas formas de servidão. Não
se pode esquecer, contudo, que o homem se guia por necessidades e por funda-
mentos econômicos, mas não por eles. Um exemplo formidável foi o movimento
de abolição da escravatura, na Inglaterra, que teve base exclusivamente moral: a
economia só se apoderou daquela fala depois que a vitória moralista já se impusera,
daí porque o “equilíbrio” das relações econômicas se juntou à moral antiescravagista
para impor o abolicionismo aos demais países.
O exercício da liberdade por meio do contrato, entretanto, acaba por assumir
um valor moral e simbólico, utilizado também para ocultar a exploração. Como bem
expôs COUTINHO:
386
SUPIOT, Alain. Crítica del derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales,
1996, p. 140.
387
O conceito aqui vislumbrado é o do liberalismo, que acredita que “a liberdade consiste na ausência
de organização social; que a liberdade é uma qualidade negativa, uma privação dos obstáculos que
existem contra ela; e não uma qualidade positiva, a recompensa do esforço e da sabedoria” (CAUD-
WELL, Christopher. O conceito de liberdade. Trad. Edmond Jorge. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1968,
p. 65).
388
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 211-213.
162
O contrato permite, ainda, que a apropriação do trabalho se dê sempre num
espectro de liberdade, ultrapassados historicamente os períodos de
escravidão e servidão, mediante o qual a exploração do trabalho pelo capital
vem na sua função de mascaramento, ocultamento ou disfarce da realidade,
pela possibilidade de não contratar, de não contratar com um sujeito
determinado ou de pactuar o conteúdo do objeto do contrato, assim como
em relação ao montante remuneratório, ...
O mascaramento permite ainda dissimular o fato de não ser a relação de
emprego tão-só uma relação puramente obrigacional, senão que se trata
precipuamente de uma relação de poder, na qual o empregado somente
pode ocupar o lugar do não-ser, do ausente de poder, do que deve se
submeter ao domínio em nome e pelo bem da empresa [...].
389
Construir relações de trabalho mais adequadas à atual fase do capitalismo e
que leve em consideração a necessidade de preservação da sociedade, com o con-
sequente afastamento de tendências regressivas para a barbárie
390
, exige seja afas-
tada a mítica moral da liberdade absoluta como elemento propulsor do sujeito, sem,
ao mesmo tempo, desmerecer o papel que essa máscara desempenha na constru-
ção do sujeito trabalhador.
Mesmo sob a égide do contrato, para além do princípio de liberdade com o
qual se justificam a obrigação/submissão de quem se sujeita e a livre iniciativa das
empresas, são muito comuns outras justificativas de base moral próximas do pater-
nalismo, como a compaixão, a necessidade de criar empregos
391
e a falta de educa-
ção e de preparo dos trabalhadores, a ausência de cultura do trabalho, entre outras.
Isso é feito com tal ênfase ideológica que o se percebe a intrínseca contradição
dessas justificativas com a principal ideia a que se associam a liberdade e o contra-
to, qual seja, a autonomia da vontade.
389
COUTINHO, Aldacy Rachid. Direito do Trabalho: a passagem de um regime despótico para um
regime hegemônico. In: COUTINHO, Aldacy Rachid; WALDRAFF, Célio Horst. Direito do Trabalho &
Direito Processual do Trabalho: temas atuais. Curitiba: Juruá, 1999, p. 14-15.
390
Cumpre destacar que ao apontar uma tendência não se pretende admitir um determinismo históri-
co nem fazer uma profecia. Ao contrário, cabe apenas “alertar para consequências sociais não dese-
jadas, abrindo possibilidades para direcionar a ação no sentido de sustar formar perversas de integra-
ção social e de exclusões, manifestadas na marginalização crescente de parcelas da população e nos
modos brutais de exploração da mão-de-obra que proliferam no presente moderno” (TONI, Míriam de.
Visões sobre o trabalho em transformação. Revista Sociologias. Porto Alegre, ano 5, n. 9, jan./jun.
2003, p. 280).
391
A função social da empresa é transmudada em necessidade de criar empresas e fazer sobreviver
as existentes, como condição para a (posterior) criação de empregos. O princípio da proteção do tra-
balhador é por esse mecanismo ideológico invertido, de modo que proteger o trabalhador é, antes de
tudo, proteger a empresa. Isso demonstra que o denominado princípio da proteção, tão caro ao Direito
do Trabalho, é em si vazio de significados, pois seu preenchimento na ordem capitalista é realizado
por elementos estranhos ao próprio Direito do Trabalho. O preenchimento é de ordem moral, mas
segundo os critérios da própria moral mais ampla, capitalista.
163
O capitalismo tem sido considerado superior aos sistemas de produção ante-
riores justamente por ter rompido com vínculos patriarcais que escondiam os siste-
mas de dominação. Curiosamente, observa-se que o capitalismo nunca foi de fato
absolutamente incompatível com sistemas patriarcais de dominação, e o escrava-
gismo brasileiro bem demonstra isso, pois foi realizado segundo todos os cânones
do mais clássico capitalismo. De outra parte, uma obrigação moral ou um padrão
econômico na metrópole do capitalismo (proteção aos trabalhadores e vedação de
qualquer tipo de servidão pessoal) não são incompatíveis com resquícios na perife-
ria dos padrões morais e econômicos ultrapassados (precarização do trabalho e prá-
ticas de semiescravidão).
A nossa visão jurídica de mundo é reflexo de uma peculiar visão de mundo,
resquícios de uma construção simbólica iniciada no período colonial e que se con-
forma com um habitus precário, em que considerável parte da população fica exclu-
ída dos benefícios da cidadania. Não se trata de um determinismo histórico e social,
mas de um enfrentamento social e político do qual o espaço jurídico não pode se
abster. “As razões do passado normalmente não são as mesmas do presente, o que
não significa que razões antigas ainda não existam em alguns lugares”.
392
O arqué-
tipo da escravidão nos assombra não como algo de nossa índole e de nosso cará-
ter, mas como uma visão de mundo a ser constantemente enfrentada e superada
nos meios de produção e nas relações de trabalho.
A superação desses vínculos pessoais deveria ser realizada pelo contrato e
pela vontade, mas a necessidade do homem o impede de exercer livremente a sua
vontade. Esse paradoxo pode ser superado pela constituição de instâncias dialó-
gicas intermediárias que possam afastar os indivíduos da submissão direta aos se-
nhores. O que está em jogo é o conceito de sujeito como processo e os mecanis-
mos que podem ser utilizados para que o trabalhador seja alçado a sujeito.
A intermediação de outro senhor (o Estado) é importante para colocar o “ter-
ceiro” nessa relação dialética, mas isso não é suficiente no Brasil. Isso se dá porque
os mecanismos inconscientes de dominação tendem a permanecer quando a auto
392
FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Por que trabalho escravo? Estudos avançados, Universidade de São
Paulo, v. 14, n. 38, São Paulo, jan./abr. 2000, p. 35.
164
ridade é transferida para outrem, pois ocorre apenas uma modificação na estrutura
do superego. Assim, entre o “eu” e o “ele” é necessário a mediação do “nós” e o
apenas de outro “ele”.
393
Por isso, os reclamos patronais por flexibilidade no objeto dos contratos, justi-
ficáveis em termos argumentativos, principalmente em razão das alterações estrutu-
rais do capitalismo verificadas a partir de 1980, devem ser sopesados no diálogo
com os trabalhadores coletivamente organizados. O campo legal é importante como
limitador da vontade, mas deve ser ainda mais importante como elemento que indu-
za ao diálogo. A construção da liberdade na sociedade brasileira poderealizar-
se coletivamente, como mecanismo de superar sua estrutura patriarcal e, para isso,
é necessário diálogo e negociação acerca das alterações do objeto da prestação de
serviços, alterações essas que em nosso sistema ainda são efetuadas autoritaria-
mente e sem suficiente controle social.
É verdade que a “sujeição ao capitalista, em sua expressão mais elementar
da alienação, é um desdobramento ‘físico’ uma consequência necessária do in-
tercâmbio mercantil. A subordinação, neste sentido, é a coisificação do sujeito da
relação. Nasce na alienação materializada no princípio da relação simples de tro-
ca”
394
. Essa sujeição, todavia, nunca é puramente física, pois também se espraia
sobre o campo das ideias e sobre os aspectos simbólicos que conduzem a constru-
ção das condições materiais. Por isso, a construção do sujeito de direito contempo-
râneo é tarefa complexa e que não se resolve apenas nos aspectos materiais do
intercâmbio mercantil, conquanto sem a resolução dos problemas econômicos nada
seja possível. O cerne da questão é que o sujeito individual de alguma forma se re-
porta ao sujeito coletivo, e quanto menos aparente é esse “ser social”, tanto mais
perigosa é a obediência irrefletida e a concentração do poder. É nessa perspectiva
que a globalização preocupa, porquanto, bem de acordo com as práticas toyotistas,
393
Daí o equívoco dos tribunais trabalhistas ao chancelarem os “acordos individuais” entre patrões e
empregados, como os de compensação de jornadas. Ainda que o resultado prático possa ser o mes-
mo, a submissão individual difere em termos anímicos da submissão coletiva, pois além de bloquear
os componentes masoquistas da relação, por meio da eliminação do contato direto com o “pai”, cons-
trói um sentido diferente e verdadeiro para a palavra “liberdade”.
394
MELHADO, Reginaldo. Poder e sujeição. São Paulo: LTr, 2003, p. 167.
165
os indivíduos passam a obedecer diretamente ao senhor sem as instâncias interme-
diárias dos grupos e nacionalidades. Como destaca GUARINELLO:
A chamada globalização, bem como a crise da autonomia dos Estados-
nacionais, coloca-nos diante de problemas análogos aos enfrentados pelas
cidades-estado quando incorporadas ao poder de um único e grande
império. Como manter e essa é a questão essencial de nossos dias a
possibilidade de ação coletiva num mundo em que as comunidades políticas
perdem, progressivamente, sua capacidade de ão e não conseguem
atender às demandas mínimas de seus concidadãos? Como manter
comunidades políticas exclusivas num mundo em que o capital se
internacionalizou, mas não o trabalho? Como construir, sem perder a
capacidade de ação coletiva, uma cidadania global? Será esta possível ou
mesmo desejável?
395
Essa perda, ao contrário do que se imagina, não fortalece o indivíduo, mas o
enfraquece, e nem sequer o discurso vazio dos direitos humanos, pretensamente
universal, consegue dar conta de tornar os indivíduos substanciais por si sós. A Mo-
dernidade, a partir do modelo cartesiano e da hoje onipresente teoria dos direitos
fundamentais do homem, impôs um modelo de subjetividade que é uma autêntica
filosofia do sujeito. “Esse sujeito é ao mesmo tempo um sujeito passivo, ou patético,
ou reflexivo: aquele que sofre; e um sujeito de julgamento, ou ativo, ou determinan-
te: aquele que identifica o sofrimento e sabe que é preciso, com todos os meios dis-
poníveis, fazê-lo cessar”
396
. Como esse sujeito sofredor poderia fazer frente ao po-
der econômico que lhe quisesse sujeitar? Os direitos do homemo podem ser limi-
tados a uma sobrevivência razoavelmente digna em troca de uma obediência ilimi-
tada.
O sujeito contemporâneo não pode se transformar no sujeito da sobrevivência
(ou do mínimo existencial), pois como bem ensina BADIOU:
Se “direitos do homem”, não são seguramente direitos da vida contra a
morte. Não são direitos da sobrevivência contra a miséria. São os direitos do
imortal, que se afirmam por si próprios. São os direitos do imortal diante da
contingência, do sofrimento e da morte. O direito do Homem é
primeiramente o direito da resistência humana. Ao fim, morremos todos nós
e resta o pó. Há, entretanto, uma identidade do Homem como imortal, no
instante em que ele afirma o que é, contra o querer-ser-um-animal ao qual a
circunstância o expõe. Cada homem isto é por demais sabido é capaz
de ser esse imortal, em grandes ou pequenas circunstâncias, por uma
verdade importante ou secundária, pouco importa. Em todos os casos, a
395
GUARINELLO, Norberto Luiz. Cidades-Estado na Antiguidade Clássica. In: PINSKY, Jaime;
PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. 4ª. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 46.
396
BADIOU, Alain. Para uma nova teoria do sujeito: conferências brasileiras. Trad. Emerson Xavier da
Silva e Gilda Sodré. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p.108.
166
subjetivação é imortal e faz o Homem. Fora do qual, existe apenas uma
espécie biológica que não tem singularidade.
397
Se o escravo resistiu à escravidão com as poucas armas de que dispunha, o
trabalhador livre é aquele que construiu a “lei” como a principal arma contra o pen-
dor para a servidão voluntária. Não a lei, mas as instâncias intermediárias que
aumentem a força de sua palavra: sindicatos, comissões de fábrica etc.
Se a liberdade é aquilo que a sociedade em determinado momento histórico
torna possível aos seus membros contra a dominação de alguns, a proteção jurídica
aos “menos livres” de refletir a condição social de desigualdade das respectivas
estruturas sociais. Em razão disso, tão ou mais importante que definir o que seja
subordinação jurídica é detectar qual é o ser concreto objeto da proteção legal, pois,
como afirma FERNÁNDEZ BRIGNONI:
Definitivamente, do que se trata é detectar o “sujeito tutelável”, ou seja, a
pessoa que vive de seu trabalho, sem contar com recursos de capital signifi-
cativos, que não tem suficiente capacidade de autotutela nem, portanto, de
negociação. À medida que essa tarefa seja realizada com êxito, o equilíbrio
de poderes no âmbito das relações de trabalho será restabelecido, desapa-
recendo, ou pelo menos reduzindo-se a sua mínima expressão, os efeitos
das mudanças derivadas das novas realidades de trabalho.
398
No mundo atual, o indivíduo deixa de ser tutelado pelo senhor ou patrão e
passa a ser tutelado pela lei e pela vontade coletiva. O indivíduo tutelável, contudo,
não pode ser pensado pelo padrão ximo de subordinação verificado no regime
escravocrata nem algo próximo dele. A escravidão não pode ser concebida como
máximo padrão de sujeição, a partir do qual se orientaria um padrão médio “aceitá-
vel” de subordinação do trabalhador, pois isso representaria a morte de qualquer
projeto de emancipação social. Em realidade, é a máxima liberdade possível o crité-
rio de construção de uma sociedade efetivamente livre.
397
BADIOU, Alain. Para uma nova teoria do sujeito: conferências brasileiras. Trad. Emerson Xavier da
Silva e Gilda Sodré. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p. 108-109.
398
FERNÁNDEZ BRIGNONI, Hugo. Los límites a la protección del trabajo: el concepto de subordina-
ción frente a las nuevas realidades. Gaceta Laboral, abr. 2001, v. 7, nº. 1, p. 5-18 (tradução do autor).
Texto original: “En definitiva, de lo que se trata es de detectar al ‘sujeto tutelable’, es decir la persona
que vive de su trabajo, sin contar con recursos de capital significativos, que no tiene suficiente capaci-
dad de autotutela, ni por tanto de negociación. En la medida que esta tarea sea realizada con éxito, el
equilibrio de poderes en el ámbito de las relaciones de trabajo será restablecido, desapareciendo o
por lo menos reduciéndose a su mínima expresión los efectos de los cambios derivados de las nuevas
realidades de trabajo”.
167
É possível apontar alguns elementos que constituam pontos de diferença en-
tre subordinação e autonomia, mas esses elementos não podem ser obtidos aprio-
risticamente senão por análise histórica da construção do conceito de contrato de
trabalho e sua relação intrínseca com os meios de produção da modernidade. Por
paradoxal que possa parecer, para objetivar o conceito de subordinação que se
ter em conta o sujeito concreto, o trabalhador.
Tomado em si mesmo, o conceito de subordinação é vazio de significado,
pois não relação humana que esteja totalmente dela despojada nem que esteja
totalmente nela imersa. É um conceito que preenche o vazio entre o tudo e o nada.
Por isso é possível aferi-la concretamente e em dada experiência histórica e se-
gundo critérios variados que levem em consideração no caso concreto o grau de
dependência.
399
É oportuna, a esse respeito, a exortação de BADIOU:
Partamos da ideia de que não sujeito humano abstrato. De início,
apenas um animal, chamado em certas circunstâncias, a tornar-se sujeito. O
que significa que tudo o que ele é, seu corpo, suas capacidades são, em
dado momento, requisitados para que uma verdade faça seu caminho. É
então que o animal humano é chamado a tornar-se o imortal que não era.
400
Esse convite à imortalidade/verdade de si mesmo não é dirigido a um sujeito
isolado, pois lhe é possível ser sujeito por também ser (ao mesmo tempo), um
participante. Participa-se, ao contrário dos antigos, não apenas da divisão da presa
ou do butim, mas da própria aquisição dos elementos simbólicos que nos faz ser o
399
A jurisprudência tem utilizado uma pluralidade de critérios de qualificação, quais sejam: a continui-
dade da prestação, por meio da qual se dessome que objeto da obrigação é uma atividade e não um
resultado; a obirgação de respeitar um horário de trabalho; o caráter fixo e habitual da retribuição e a
conseqüente inexistência de risco para o trabalhador. Se trata, porém, de critérios que a própria juris-
prudência define “indicativos”, pois nenhum deles pode dizer-se definitivo aos fins do acertamento da
existência ou não de uma relação de trabalho subordinada, podendo esses indícios retornarem mes-
mo em uma relação de trabalho autônoma. O critério fundamental é, e continua, aquele da sujeição
ou não a um poder diretivo intenso, ..., como poder de impor contínuas e detalhadas instruções para a
execução da atividade laborativa” (PERSIANI, Mattia; PROIA, Giampiero. Contratto e rapporto di lavo-
ro. 3ª. ed. Padova: Cedam, 2004, p. 9 tradução livre do autor). Texto original: “La giurisprudenza ha
utilizzato una pluralità di criteri di qualificazione, quali: la continuità della prestazione, dalla qualle si
desume che oggetto dell”obligazione è un’attività e non un risultato; l’obbligo di rispettare un orario di
lavoro; il carattere fisso e continuativo della retribuzione e la conseguente inesistenza di un rischio per
il lavoratore. Si tratta, però, di criteri che la stessa giurisprudenza definisce “indiziari”, posto che
nessuno di essi può dirsi decisivo ai fini dell’accertamento dell’esistenza o no di un rapporto di lavoro
subordinado, potendo essi ricorrere anche in un rapporto di lavoro autonomo. Il criterio fondamentale
è, e resta, quello dell’assoggettamento o no ad un potere direttivo inteso, ..., come potere di imparire
continue e dettagliate istruzioni per l’esecuzione dell’attività lavorativa”.
400
BADIOU, Alain. Para uma nova teoria do sujeito: conferências brasileiras. Trad. Emerson Xavier da
Silva e Gilda Sodré. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p. 109.
168
que somos. Ser sujeito é participar e compartilhar não dos esforços de prepara-
ção, mas também dos prazeres do banquete social, motivo pelo qual é possível
ser sujeito na moldura comparativa de uma sociedade na qual o indivíduo singular
está inserido. O trabalhador só compartilha desse banquete se tiver “consciência” de
que forneceu um dos ingredientes (talvez o mais importante) da festa. A consciência
aí não é ordenadora do mundo, mas o contato do eu consigo mesmo.
Em um quadro social de exclusão pelo trabalho ou sem o trabalho, como o
que se verifica no Brasil, o grau de subordinação se amplia para níveis cada vez
maiores e, conseguintemente, aumenta a necessidade de proteção social estabele-
cida na Constituição e nas leis trabalhistas. uma profunda desigualdade social
que impede os avanços democráticos e dificulta a construção da cidadania. Há mais
desejo de subordinação (jurídica) do que autonomia (econômica), pois uma conside-
rável parte da população almeja apenas “ser gente”, ou, nos resquícios inconscien-
tes de nossa frágil identidade social, “ser europeu”. Como registrou CARVALHO, ao
concluir sua lancinante obra, a cultura do consumo agora instalada dificulta
[...] o desatamento do que torna tão lenta a marcha da cidadania entre
nós, qual seja, a incapacidade do sistema representativo de produzir
resultados que impliquem a redução da desigualdade e o fim da divisão dos
brasileiros em castas separadas pela educação, pela renda, pela cor. José
Bonifácio afirmou, em representação enviada à Assembléia Constituinte de
1823, que a escravidão era um câncer que corroía nossa vida cívica e
impedia a construção da nação. A desigualdade é a escravidão de hoje, o
novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática. A
escravidão foi abolida 65 anos após a advertência de José Bonifácio. A
precária democracia de hoje não sobreviveria a espera tão longa para
extirpar o câncer da desigualdade.
401
Parece ser esse o papel que o Direito do Trabalho desempenha no mundo
contemporâneo: ser um mecanismo capitalista que impeça o poder econômico de
impor à maioria da população uma escravidão consentida e de remetê-la à mera
subsistência consumidora. Esse é o projeto emancipatório possível em um regime
capitalista e isso é realizado em prol da sobrevivência desse próprio regime, e não
para sua eliminação.
401
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 2007, p. 228-229.
169
Premido pela força avassaladora do neoliberalismo, o Direito do Trabalho tem
conseguido apenas colocar-se defensivamente pelo discurso reafirmador da valida-
de de suas bases históricas e sociais. A necessidade de reagir à crítica liberal tem
impedido a autocrítica, condição indispensável para o seu crescimento científico e,
ao mesmo tempo, sua adequação a novas realidades do sistema produtivo. A difi-
culdade do Direito do Trabalho de dar respostas adequadas a fenômenos como o
da informalidade do trabalho, no Brasil, por exemplo, decorre principalmente da ra-
dicalidade da crítica neoliberal, que deseja apenas o fim de todo o arcabouço prote-
tivo das relações de trabalho. O que merece ser indagado, contudo, é de que modo
a construção de qualquer novo sistema protetivo poderia transformar a realidade e
terminar a longa construção da cidadania social neste País. Seainda possível i-
maginar a construção da cidadania salarial em uma realidade em que o trabalho
subordinado e, por consequência, o salário, estão sob forte crítica?
A interdição da lei, instituidora de limites ao acesso sobre o corpo do outro, é
uma necessidade da cidadania. O cidadão é o interditado pela lei, submetido às su-
as restrições, mas que também se utiliza dessas interdições em seu favor para evi-
tar que o poder dos outros invada seu corpo. O problema está na seguinte pergunta
formulada por CALLIGARIS: “Como articular a necessidade de um limite, como sus-
tentar uma lei, um sistema mínimo de valores se por um lado deixamos o Pai da
nossa filiação e pelo outro podemos acreditar que qualquer Pai que possa substituí-
lo só quer de nós um tributo de sangue?”
402
A construção de uma nova realidade social parece exigir seja superada a di-
cotomia tima/favor para se instalar a dicotomia sujeito/direitos. A mesma ideia de
dominação que preside o trabalho, como um favor das elites aos trabalhadores,
transmuda estes em vítimas do sistema. É por isso que, “no discurso de cada brasi-
leiro, seja qual for a sua história ou a sua posição social, parecem falar o coloniza-
dor e o colono”
403
. A mesma pessoa que percebe como “normal” a subtração de di-
reitos ao seu trabalhador doméstico pode se sentir vítima das condições de seu tra-
balho. A moral do trabalho decente, portanto, não é um discurso dirigido à classe
402
CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil!: notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. São
Paulo: Escuta, 1991, p. 155.
403
IDEM, ibidem, p. 16.
170
dominante, aos proprietários que tratam mal os pobres dos trabalhadores, mas uma
internalização necessária para todos os ambientes da sociedade, e para isso são
necessárias práticas simbólicas pré-reflexivas por meio do Estado e dos grupos in-
termediários, como os sindicatos.
A sujeição total do outro nunca deixa de influir na personalidade de quem a
impõe. Por isso, PERDIGÃO MALHEIRO afirmava que “a moral se perverte com o
contato dos escravos pela fácil submissão destes, que corrompe por outra forma os
senhores...; adquirindo eles também por seu turno bitos quase iguais de submis-
são e servilismo”
404
. A colonização escravista submete à sua gica todo o sistema
social e não apenas uma sua parte, razão pela qual em nosso sistema colonial nem
os senhores eram cidadãos, pois lhes faltava “o próprio sentido da cidadania, a no-
ção da igualdade de todos perante a lei”
405
.
Pode-se argumentar que, ao se admitir o corpo como objeto do contrato de
emprego, estar-se-ia associando o trabalho moderno à escravidão. De fato, o traba-
lho “depois do desaparecimento da escravidão e da servidão, é um ponto de encon-
tro da servidão e da liberdade, pois mesmo entre homens livres e iguais, o trabalho
implica a organização de uma hierarquia, a submissão de uns ao poder de outros.
Porém, como conceber uma hierarquia entre iguais?”
406
A distinção entre liberdade e escravidão nunca foi fácil, e por isso, em ambi-
ente totalmente diverso do nosso, Aristóteles afirmava que “o trabalhador que exer-
ce um emprego mecânico sofre uma espécie de escravidão limitada”
407
. A Moderni-
dade posiciona o trabalho em cultura totalmente distinta da verificada na Antiguida-
de, mas ainda assim o tema da liberdade, em contraposição à sujeição pessoal (es-
cravidão), é algo que se coloca com frequência. O mecanismo de início adotado pa-
ra lidar com essa questão foi o de circunscrever a liberdade a uma questão pura-
mente pessoal e formal (liberdade política e liberdade de contratar), ao mesmo tem-
404
PERDIGÃO MALHEIRO, Agostinho Marques. A escravidão africana no Brasil. São Paulo: Obelisco,
1964, p. 26.
405
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 2007, p. 21.
406
SUPIOT, Alain. Crítica del derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales,
1996, p. 25.
407
Aristóteles. La politique, libro I, p. 79-80, apud SUPIOT, Alain. Crítica del derecho del trabajo. Ma-
drid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales, 1996, p. 26.
171
po em que o escravo passou a ser associado a coisa, totalmente desprovida de di-
reitos. A esse respeito, não obstante, devem ser feitas algumas observações.
Em primeiro lugar, não é a inteira pessoa do trabalhador o objeto da presta-
ção de serviços. Tanto é verdade que o trabalhador é livre para preservar suas idei-
as e opiniões, bem como para não revelar sua vida privada, seus compromissos
políticos ou religiosos. A separação da vida profissional da vida privada é uma liber-
dade inerente ao contrato, por meio do qual se rompe com a ideia de um vínculo
pessoal entre o empregado e o empregador
408
. Por isso, o reconhecimento do corpo
do trabalhador é um passo inicial para o reconhecimento da dimensão humana do
trabalho, segundo o qual, “em lugar de tratá-lo como uma coisa, uma mercadoria, o
trabalho se analisa como uma expressão da pessoa do trabalhador, ou seja, como
uma obra”
409
. É por esse modelo conceptual que se obtém o reconhecimento da
identidade individual e da identidade coletiva do trabalhador, e a partir dos limites
para o poder diretivo.
Em segundo lugar, graus diferentes de sujeição e de liberdade, bem como
de direitos, o que indica a existência de diferentes escravos e diferentes homens
livres, como mais adiante será analisado. Cumpre aqui destacar que, mesmo na
escravidão, estratégias de resistência ao poder, ainda que limitadas pelas condi-
ções de dominação pessoal.
Controlar os gestos, as pausas, os movimentos e a realização de necessida-
des naturais do trabalhador parecem ser o objetivo último do poder do empregador.
Esses controles e vigilâncias podem também ser realizados por meios eletrônicos,
408
Como bem destaca SUPIOT, as liberdades do trabalhador “em especial a separação da vida pro-
fissional e da vida privada e pública do trabalhador, são inerentes à análise contratual, e ficam justa-
mente ameaçadas desde o momento em que se abandona este para seguir a ideia de um vínculo
pessoal, de natureza institucional, entre o empresário e o trabalhador” (SUPIOT, Alain. Crítica del
derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales, 1996, p. 85). É em razão disso
que as principais e mais acerbas críticas contra o contrato ocorreram no intervalo entre as duas Guer-
ras Mundiais e partiram dos “adeptos de concepções totalitárias triunfantes em importantes nações da
Europa” (GOMES, Orlando. Ensaios de direito civil e de direito do trabalho. Rio de Janeiro: Aide, 1986,
p. 60). Como destaca o referido Orlando GOMES, o contrato “sai dessa crise com a sua noção e o
seu significado profundamente abalados” (IDEM, ibidem) e se observa uma paulatina e constante
publicização dos contratos.
409
SUPIOT, Alain. Crítica del derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales,
1996, p. 121.
172
seja por câmeras ou softwares, mas nunca deixou de ser o mesmo típico de contro-
le, do qual o fordismo em essência é uma representação modelar. Essa constante
pretensão de exercício do poder sobre áreas mais amplas do corpo, além daquelas
que um contrato normalmente permite, nunca foi exercida, entretanto, sem resistên-
cia dos trabalhadores e sem contraestratégias.
4.2 INDETERMINAÇÃO DO OBJETO DO CONTRATO DO TRABA-
LHO: UM OBSTÁCULO A SER SUPERADO
A relação de trabalho caracteriza-se por possuir como objeto toda obrigação
de fazer composta pelo trabalho humano, colocar o trabalho próprio à disposição de
outrem. Essa, contudo, não é uma noção que possa ser extraída da Antiguidade ou
da Idade Média, mas que aparece apenas a partir do momento em que o pensa-
mento econômico passa a tratar o trabalho como uma mercadoria, experiência re-
cente da civilização. O trabalho como mercadoria, entretanto, não é estanque, mas
sofre condicionamentos culturais, inclusive econômicos.
Uma das diferenças mais apontadas entre a relação de trabalho subordinado
e a relação de trabalho autônomo seria que esta possui conteúdo (objeto) previa-
mente estipulado e bem definido. É corrente entre os juristas a afirmação de que “o
contrato de trabalho não tem conteúdo específico. Nele se compreende qualquer
obrigação de fazer, desde que realizada em estado de subordinação”
410
. Essa inde-
terminação, contudo, não seria uma contradição com a própria ideia de contrato,
que supõe um objeto determinado? Apontar como objeto do contrato de emprego a
“atividade” não o aproximaria da escravidão temporária?
De outra parte, contribui para que se amplie o poder do empregador a inde-
terminação do objeto do contrato. “O poder patronal é tanto maior quanto maior é a
margem de indeterminação das obrigações do trabalhador”
411
. De fato, a subordina-
ção da pessoa do trabalhador é incompatível com uma determinação precisa das
410
SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; LIMA TEIXEIRA, João de. Institui-
ções de direito do trabalho. 18ª. ed. São Paulo: LTr, 1999, v. I, p. 247.
411
SUPIOT, Alain. Crítica del derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales,
1996, p. 145.
173
obrigações do trabalhador, pois em praticamente todos os ordenamentos jurídicos
presume-se que “o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com
a sua condição pessoal” (CLT, art. 456, parágrafo único). Foi justamente essa carac-
terística da relação de emprego e a ideia de contrato de trabalho como disponibili-
dade do trabalhador que favoreceu de modo significativo a implantação do toyotis-
mo, a flexibilização e a globalização, o que se explica pelo entendimento de que são
vedadas alterações substanciais do contrato, mas o as meramente circunstanci-
ais, mas também as de caráter qualitativo (forma, lugar e conteúdo do trabalho pres-
tado).
O perigo da indeterminação do objeto do contrato é transferi-lo para a pessoa
(o corpo) do trabalhador, o que em sociedade estruturalmente constituída em bases
escravocratas é perigoso e pode impor um retrocesso social. Há que se lembrar que
um dos aspectos centrais do Direito do Trabalho é a construção de categorias in-
termediárias (estatais e coletivas) que se prestem ao progressivo aumento da liber-
dade não apenas pessoal, mas à liberdade social. No Brasil, a construção daquilo
que se denomina “cidadania salarial” é, acima de tudo, a superação de nosso es-
pectro colonial e escravagista e, por consequência, da visão do trabalho como n-
culo pessoal.
Essa visão personalista da relação de emprego ainda contamina grande parte
de nossa estrutura (interpretação) jurídica. Por isso, ao comentar o modo como o
contrato de emprego foi concebido na CLT, ORLANDO GOMES observa o seguinte:
A relação de trabalho é tida como um vínculo de natureza eminentemente
pessoal, que cria entre o empregado e o empregador uma comunhão de
interesses, gerando para o trabalhador os deveres de fidelidade e de
obediência, e para o patrão, o dever de proteção. [...] A filosofia da relação
comunitária na C.L.T. não chegou ao ponto extremo de conceber o
trabalhador como um súdito do chefe da empresa, conforme radicalizava a
teoria anticontratual da incorporação, mas se aproxima da concepção
segundo a qual se o empregado perde em autonomia, por exagerada
subordinação, ganha em segurança, uma vez execute de boa fé, como lhe
cumpre, o contrato de trabalho.
412
A concepção autoritária e personalista da sociedade brasileira constitui uma
dificuldade relevante para a vocação libertária do Direito do Trabalho, mas a cons-
412
GOMES, Orlando. Ensaios de direito civil e de direito do trabalho. Rio de Janeiro: Aide, 1986, p.
161.
174
trução de uma cidadania salarial tem avançado para além das projeções mais con-
servadoras e pessimistas. Assim, embora os autores da CLT não tenham escondido
nem disfarçado uma inclinação pelo pensamento institucional ou estatutário, a con-
cepção contratualista acabou por preponderar no texto
413
e, principalmente, na in-
terpretação que se fez do texto. O Direito se constrói com base na lei, mas também
além dela, e a interpretação que aos poucos se impôs foi da natureza contratual da
relação de emprego, como afirmação dos nossos anseios de liberdade e igualdade
social.
414
É verdade que o “moderno contrato de trabalho faz que decorra de uma mu-
dança de estado profissional (acesso ao emprego com o que ele implica de subordi-
nação e de segurança) uma obrigação cujo conteúdo preciso se revela à medida
da execução do contrato”
415
, mas esse desvelar-se na ação o pode ser ilimitado.
O objeto deve sujeitar-se a um mínimo do discurso linguístico criador da relação de
emprego, sob pena de o trabalho se submeter ao total poder do empregador.
A relativização da autonomia da vontade como condição do contrato de em-
prego e a admissão de que essa autonomia se submete a um regime normativo que
busca preservar interesses coletivos, não pode acarretar igual flexibilidade de outros
elementos constitutivos do contrato, em especial o objeto da prestação de serviços.
Com ou sem o elemento “vontade”, e como condição inerente ao próprio princípio de
liberdade, o objeto dessa relação deve ser bem definido, ainda que algum grau de
adaptação nas atividades se admita durante a execução do contrato. Se admitísse-
mos que o contrato de emprego possua como objeto apenas a atividade do traba-
lhador, haveria uma importante modificação do próprio conteúdo da sujeição. É
principalmente nesse ponto que “uma política de laissez-faire pode por em perigo as
413
GOMES, Orlando. Ensaios de direito civil e de direito do trabalho. Rio de Janeiro: Aide, 1986, p.
160.
414
Muito mais difícil tem sido superar dialeticamente o “temor à ação coletiva dos trabalhadores”
(IDEM, idibem, p.160) e a decorrente tendência “política de protegê-los individualmente”. A “invenção
do coletivo” no Brasil era ainda uma tarefa inacabada quando os fortes ventos do neoliberalismo re-
conduziram os debates para o campo do puro individualismo.
415
SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do direito. Trad. Maria Erman-
tina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 109-110.
175
mais elementares condições de existência dos trabalhadores e contribuir para debili-
tar ainda mais o vínculo social”
416
.
Esse é um aspecto relevante quando se trata de terceirização e de modifica-
ções substanciais do contrato, mormente as alterações de função e o acréscimo de
novas tarefas para funções antigas. Nas terceirizações realizadas no Brasil, cada
vez mais abrangentes e mais vinculadas às necessidades movediças do tomador
dos serviços, observa-se uma tendência de o trabalhador ser tido como “coisa”
transferida de um empregador para outro e de uma função para outra, embora con-
tinue a prestar serviços no mesmo local e em condições semelhantes. O curioso é
que os vínculos pessoais e afetivos é que justificam a generosidade dos tomadores
de serviços ao recomendar a continuidade da prestação de serviços para as terceiri-
zadas.
Além disso, o objeto do serviço desse trabalhador tem sido moldado confor-
me as necessidades do tomador dos serviços, de sorte que pode o terceirizado co-
meçar como porteiro, passar a vigia, depois fazer serviços de limpeza e em seguida
voltar a ser porteiro, sem que exista nenhum limite a tais alterações. As semelhan-
ças com a escravidão não são acidentais, lembrando-se que no sistema escravocra-
ta brasileiro havia cessão de mão-de-obra escrava para terceiros e razoável parte
dos escravos urbanos tinha liberdade de locomoção de um para outro local, princi-
palmente para oferecer trabalho a outrem mediante pagamento de diária, a qual era
posteriormente entregue ao seu senhor. A atual terceirização de serviços, portanto,
não inova na arte, mas apenas na tecnologia.
O contrato só pode refletir um grau razoável de liberdade, principalmente para
o contratante débil, se houver um adequado grau de determinação de seu objeto. É
justamente a total indeterminação do objeto da prestação de serviços uma das prin-
cipais características do trabalho escravo. Por isso, atualmente a autonomia da von-
tade deixou de ser o principal elemento retórico com o qual se busca obter a domi-
nação, pois todo sistema de dominação é construído linguística e socialmente e
416
SUPIOT, Alain (Coord.). Trabajo y empleo: trasformaciones del trabajo y futuro del derecho del
trabajo en Europa. Valencia: Tirant lo blanch, 1999, p. 135.
176
busca no argumento contrário os meios para superar os obstáculos que encontra.
417
Assim, buscou-se no critério protetivo de “tempo à disposição do empregador” um
elemento com vagueza suficiente para tornar maleável o objeto da prestação de
serviços em favor de novos modos de produção, para permitir flexibilidade e favore-
cer a precarização. Por esse mecanismo, o trabalhador está “à disposição do em-
pregador” para todo e qualquer serviço compatível com a sua condição, física e mo-
ral, e não importa qual tenha sido a vontade da contratação, pois as condições acer-
ca do objeto da prestação de serviços podem ser unilateralmente modificadas pelo
empregador.
A eficiência da denominada flexibilização do trabalho no campo jurídico de-
corre, entre outros motivos estruturais, do fato de a teoria da disposição ter induzido
um aumento progressivo da indeterminação do objeto do contrato de emprego. Essa
indeterminação se retroalimenta com o desemprego, a informalidade e a precariza-
ção do trabalho e tende a crescer.
4.3 A PERDA DO TEMPO E DO LUGAR DO TRABALHO: AS NOVAS
FORMAS DE SUBORDINAÇÃO
Tem se revelado imprecisa a linha divisória entre o poder do empregador e a
liberdade do sujeito trabalhador. É que as linhas divisórias do “tempo do trabalho” e
do “local do trabalho” também se perderam e não mais se distinguem facilmente. O
tempo e o local do trabalho se fragmentaram e invadiram o “tempo sem trabalho” e
o “local sem trabalho”. O poder diretivo do empregador invade o tempo integral da
vida do trabalhador, sua residência e seu círculo social. A autorreferência social e
psíquica do trabalhador passa a ser primordialmente o trabalho, de modo que o tra-
balho produtivo invade (ou pretende invadir) até a psique do trabalhador por meio da
denominada internalização dos controles, ou seja, o estabelecimento de meios de
417
Não a dominação se serve dessa dialética, mas também a resistência a ela. O problema está
na prevalência de uma das falas quando se trata de uma sociedade com tendências sadomasoquistas
sem adequadas intermediações entre os falantes, pois a tendência é prevalecer a mútua transgressão
e a fala do “pai” (superego).
177
coerção introjetados por mecanismos psicossociais, por meio dos quais se obtém a
fidelidade do trabalhador ao projeto de apropriação do seu trabalho.
O “colaborador” substitui o trabalhador na inexorável vocação ideológica do
sistema toyotista de “harmonizar as relações entre capital e trabalho”
418
de modo a
obter “consensos”, artifício decorrente da divisão do trabalho com o qual se busca,
acima de tudo, a apropriação da subjetividade de quem presta o serviço. O ponto
forte e ao mesmo tempo a fragilidade desse sistema de gestão de recursos huma-
nos é o engajamento ativo do trabalhador nos mecanismos de apropriação do traba-
lho.
419
O lugar e o tempo do trabalho bem delimitados são importantes para fincar
barreiras contra o retorno às condições de servidão. Deve-se ter em conta que “a
distribuição do trabalho e do tempo livre não decorre espontaneamente do estágio
da tecnologia; é uma construção histórica, objeto de luta para os trabalhadores, com
vistas a uma apropriação democrática dos ganhos de produtividade e das possibili-
dades de gerir seus próprios destinos”
420
.
Na visão dos senhores, para o escravo não o tempo do trabalho nem o
tempo sem-trabalho
421
. O que o senhor almeja é apenas o tempo homogêneo da
submissão. Mesmo ao conceder tempo para descanso ou para lazer, o senhor exer-
citava o seu poder, pois isso é realizado para favorecer o sistema de produção e
418
PAULA, Ana Paula Paes de. Tragtenberg revisitado: as inexoráveis harmonias administrativas.
Disponível em <http://www.anpad.org.br/enanpad/2000/dwn/ enanpad2000-org-663.pdf>. Acesso em:
28 de setembro de 2007, p. 1.
419
SILVA, Felipe Luiz Gomes e. Apropriação da subjetividade da classe trabalhadora: burocracia e
autogestão. Disponível em <http://www.psicologia. com.pt/artigos/textos/A0271.pdf>. Acesso em: 28
de setembro de 2007, p. 10.
420
TONI, Míriam de. Visões sobre o trabalho em transformação. Revista Sociologias. Porto Alegre,
ano 5, n. 9, jan./jun. 2003, p. 276.
421
A questão do tempo do trabalho é central para distinguir liberdade de escravidão. “Ele (o trabalha-
dor livre) e o possuidor do dinheiro encontram-se no mercado e entram em relação um com o outro
como possuidores de mercadoria, dotados de igual condição, diferenciando-se apenas por um ser o
vendedor e outro o comprador, sendo ambos, juridicamente, pessoas iguais. A continuidade dessa
relação exige que o possuidor da força de trabalho venda-a sempre por tempo determinado, pois, se a
vender de uma vez por todas, vender-se-á a si mesmo, transformar-se-á de homem livre em escravo,
de um vendedor de mercadoria em mercadoria. Tem sempre de manter sua força de trabalho como
sua propriedade, sua própria mercadoria, o que consegue se a ceder ao comprador apenas provi-
soriamente, por determinado prazo, alienando-a sem renunciar à sua propriedade sobre ela” (MARX,
Karl. O capital: crítica da economia política. Trad. Reginaldo Sant’Anna. 23ª. ed. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 2006, v. I, p. 198). Por isso, ainda que em termos simbólicos, o rompimento das bar-
reiras temporais entre o tempo do trabalho e o tempo sem-trabalho constitui perigoso risco de institui-
ção de novas modalidades de escravagismo.
178
não por reconhecimento das necessidades emocionais do outro. Por isso, embora
não impedidos de andar nas imediações das fazendas, de ir para as cidades e de
realizar várias atividades fora do território do cativeiro, para os escravos havia o
lugar da escravidão, a casa do “pai” para a qual estavam condenados a retornar.
A construção de lugares e de tempos próprios dos escravos, livres da interfe-
rência direta do senhor, era, portanto, uma estratégia de resistência e de sobrevi-
vência, razão por que a terra em que plantavam para si próprios, a taberna da es-
trada em que podiam adquirir aguardente, as igrejas dos pretos, o quilombo e outros
locais reais ou imaginados constituíam elementos de resistência, ainda que os se-
nhores procurassem também utilizá-los como novos mecanismos de dominação. Na
resistência se faz a dominação e para a dominação é necessário algum tipo de re-
sistência.
A liberdade articula lugares e tempos distintos para o trabalho e para o ho-
mem, como se fossem elementos separáveis. Essa pretensão parece ser muito
mais simbólica do que real, mas é esse simbolismo que cria condições de existência
de campos de liberdade para além dos campos da submissão. A construção social
dos lugares e dos tempos de trabalho, de lazer, de solidariedade e de crenças (polí-
ticas, religiosas etc.) é que cria condições para o aparecimento de intermediações
sociais. O tempo homogêneo do trabalho tende a impedir que outras instâncias da
cidadania possam aflorar.
Na escravidão, o trabalho pode ser exigido a qualquer momento. A ausência
de trabalho se coloca em um campo diverso da liberdade, pois o domínio do senhor
pode ser estendido até a esse momento. Por isso, o tempo sem trabalho é uma
concessão e não uma liberdade. Não o “tempo livre”, mas o “tempo sem traba-
lho”. O tempo no trabalho livre possui outra estrutura, pois é por meio dele que se
delimita o domínio da empresa sobre a vida do trabalhador.
422
Esse é um aspecto
central na delimitação entre subordinação livre e sujeição pessoal.
O tempo de trabalho é ao mesmo tempo medida da execução do trabalho e
do limite da sujeição, o que torna necessária a contraposição de “tempo livre” e de
422
SUPIOT, Alain (Coord.). Trabajo y empleo: trasformaciones del trabajo y futuro del derecho del
trabajo en Europa. Valencia: Tirant lo blanch, 1999, p. 104.
179
“tempo de trabalho” (ou se sujeição). Trata-se de entidades de tal forma heterogê-
neas que a ausência de trabalho dentro do tempo de trabalho significa o tempo à
disposição, igualmente remunerado.
No que diz respeito ao espaço, observa-se que, na escravidão, uma ten-
dência para o espaço homogêneo, vinculado ao espaço do senhor-proprietário. o
se distingue o lugar do trabalho dos demais lugares. Os espaços próprios “criados”
pelos escravos ou “concedidos” pelos senhores são locais de resistência, que ape-
nas confirmam a autoridade dos senhores, de tal intensidade que se insinuam até
sobre os locais públicos. o reconhecimento do espaço do indivíduo, pois o se-
nhor procura identificar todo espaço como sua propriedade, a qual se projeta, inclu-
sive, sobre o corpo das pessoas.
O trabalho livre pressupõe espaços heterogêneos. O espaço do indivíduo, da
sua família e da coletividade são distintos do espaço do empregador. O poder em-
presarial também é limitado territorialmente, por isso ele está impedido o apenas
de alterar unilateralmente o local da prestação de serviços, como também de esten-
der seu domínio sobre a vida particular do trabalhador.
O que o Direito do Trabalho faz, por conseguinte, nada mais é do que criar
condições de liberdade, além de ser um importante mecanismo para superar víncu-
los pessoais e uma tendência de o domínio proprietário transformar todo trabalho
em servidão. Em momentos de crise do trabalho, como os vividos atualmente, esses
mecanismos de equilíbrio perdem parte de sua eficiência, e o capitalismo procura
substituir a ideia de tempo livre por tempo de consumo, ao mesmo tempo em que
transforma o espaço da vida em puro espaço de trabalho.
Por isso, um fenômeno preocupante é o tempo livre instalar-se no tempo de
trabalho assalariado e o tempo de trabalho assalariado se instalar no tempo livre
423
,
o que na sociedade brasileira é tanto mais grave, porquanto essa tendência à ho-
mogeneidade recupera ou intensifica padrões inconscientes da autoridade privada
(paternalismo). Tudo indica o fim da utilização de critérios uniformes para o tempo
do trabalho
424
, em razão da variabilidade de horários, banco de horas, trabalho em
423
SUPIOT, Alain (coord.). Trabajo y empleo: trasformaciones del trabajo y futuro del derecho del
trabajo en Europa. Valencia: Tirant lo blanch, 1999, p. 129-132.
424
IDEM, ibidem, p. 134.
180
domicílio, teletrabalho e inúmeras outras formas de cisão do tempo, o que contribui
para a homogeneização do tempo do trabalho com o tempo da vida.
Assim, é necessário estabelecer a ideia de que no contrato de trabalho o tra-
balhador abdica de parte de sua liberdade ao se subordinar a outro, mas “somente
uma parte, porque esta subordinação se circunscreve ao tempo e ao lugar de exe-
cução da prestação de serviços”
425
. De outra parte, para romper com o tempo do
trabalho e passar ao tempo do trabalhador, sem desconsiderar as mudanças tecno-
lógicas, parece ser indispensável a negociação coletiva, não por meio dos sindi-
catos, mas de quaisquer grupos que possam construir vínculos de participação e de
solidariedade. No Brasil, onde os vínculos de solidariedade são mais difíceis de
consolidar, em razão do passado escravagista, uma perspectiva de transformação
por meio do Direito parece ser indispensável.
4.4 UM NOVO CONTRATO: RESISTÊNCIA E EMANCIPAÇÃO
A manutenção do estado regulatório não é imune a críticas. De uma parte, há
críticas de natureza conservadora que identificam um prejuízo à livre iniciativa, à
segurança jurídica e ao desenvolvimento do capitalismo. De outra parte as críti-
cas que podem ser classificadas como progressistas, as quais identificam na hiper-
trofia dos marcos regulatórios um dos problemas para a insuficiência do conheci-
mento-emancipatório.
426
O fato é que a sociedade contemporânea ainda se mantém no conhecimento
regulatório e no sistema estatal de produção do Direito, tão criticados por BOAVEN-
TURA DE SOUSA SANTOS. A constitucionalização do direito privado é apenas um
viés regulatório, ainda que mais humano e mais adequado à atual sociedade de
425
SUPIOT, Alain. Crítica del derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales,
1996, p. 185.
426
“No projecto da modernidade podemos distinguir duas formas de conhecimento: o conhecimento-
regulação cujo ponto de ignorância se designa por caos e cujo ponto de vista de saber se designa por
ordem e o conhecimento-emancipação cujo ponto de ignorância se designa por colonialismo e cujo
ponto de saber se designa por solidariedade. Apesar de estas duas formas de conhecimento estarem
ambas inscritas na matriz da modernidade eurocêntrica, a verdade é que o conhecimento-regulação
veio a dominar totalmente o conhecimento-emancipação” (SANTOS, Boaventura. A crítica da razão
indolente: contra o desperdício da experiência. 3ª. ed. São Paulo: Cortez, 2001, p. 29).
181
consumo. Se a regulação é insuficiente, e disso o dúvida, luta o trabalhador
livre com as armas de que dispõe, assim como o escravo pôde resistir com os par-
cos elementos de que dispunha. Ainda assim, resistência, e o que importa é ad-
quirir novos mecanismos de valorização coletiva do trabalho sem a perda dos ele-
mentos emancipatórios já adquiridos, independente de sua origem.
Um dos reflexos mais eloquentes da constitucionalização do direito privado é
o reconhecimento da dignidade da pessoa humana (Constituição da República, art.
1º., III), mas tal reconhecimento é, infelizmente, concebido em termos idealizados e
pouco aplicado às pessoas concretas. A proteção à dignidade humana é frequente-
mente associada à solidariedade contratual (CR, art. 3
º.
, III), como meio de promo-
ção social, e, esse amálgama, a uma nova realidade nas relações interprivadas. Se-
gundo esse ponto de vista, o núcleo do contrato deixa de ser a autonomia da vonta-
de para passar a ser a solidariedade constitucional. Por isso, para NALIN, o contrato
passa a ser uma relação complexa solidária.
427
De fato, na perspectiva constitucional-civil se impõe atribuir dignidade ao ho-
mem contratante sem desprezar o comportamento contratual solidário, de sorte que
a tutela não fique reduzida aos interesses do credor, mas também aos do deve-
dor. O valor jurídico maior a ser tutelado no novo sistema é o equilíbrio, conforme a
atual noção de justiça contratual. A função social do contrato, segundo essa pers-
pectiva, encontra fundamento na Constituição, ora associada à cláusula geral de
solidariedade, ora ligada à quebra do individualismo e em vista da igualdade subs-
tancial. A igualdade material não permite tratamento jurídico muito desigual entre os
contratantes.
Não se pode esquecer, contudo, que “a solidariedade é uma forma de conhe-
cimento que se obtém por via do reconhecimento do outro o outro pode ser co-
nhecido enquanto produtor de conhecimento. Daí que todo o conhecimento-
emancipação tenha uma vocação multicultural”.
428
A solidariedade exige ambiência
diversa da dominação, pois o outro não é reconhecido no discurso, mas, por ser
427
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2ª. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 253.
428
SANTOS, Boaventura. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 3ª. ed.
São Paulo: Cortez, 2001, p. 30.
182
produtor de conhecimento, é dialeticamente reconhecido nesse discurso como um
igual.
A maior dificuldade que se encontra no atual estádio do capitalismo está jus-
tamente no reconhecimento do outro como produtor de conhecimento. O trabalha-
dor é considerado apenas um elemento descartável do sistema de produção; os pa-
íses do Terceiro Mundo são considerados apenas como engrenagens de um conhe-
cimento produzido na metrópole; direitos intelectuais (marcas, patentes, direitos au-
torais etc.) passam a ser utilizados como mecanismo de monopólio e de dominação.
A fragmentação do sujeito é também a fragmentação dos Estados, cada um com
diversos papéis concorrentes, a maior parte deles de grande fragilidade. Essa frag-
mentação traz à tona um “sujeito débil”, como explicam FACHIN e RUZCYY, com
base nas lições de BARCELLONA:
Em uma sociedade complexa e massificada, nada obstante, o rompimento
com as racionalidades sistêmicas se torna cada vez mais difícil, em virtude
daquilo que Pietro Barcellona denomina de fragmentação do sujeito em
diversos papéis, com a constituição de um “sujeito débil”.
O “sujeito débil” é aquele que, na economia capitalista contemporânea – que
também pode ser reputada uma estrutura sistêmica -, se aliena no consumo,
e só tem relevância quando veste uma das diversas “máscaras” que a
contemporaneidade impõe. O sujeito débil, definitivamente, não tem
relevância pelo seu “ser”, mas, sim conforme o papel que ele ocupa em
dado momento no interior do sistema. Os modelos, na contemporaneidade,
se multiplicam, operando uma cisão sujeito. Trata-se do ápice da abstração:
a pessoa nada mais é que um sujeito massificado, que só adquire relevância
quando se insere em um dos diversos modelos, de relevância pontual, em
dada situação jurídica.
429
O trabalhador e o consumidor como indivíduos não têm importância sistêmi-
ca, mas apenas pelo conjunto das relações de massa que seu comportamento pos-
sa indicar. Esse aspecto é que aproxima a moldura da proteção jurídica do trabalho
e do consumo, visto que em ambos o indivíduo está fragilizado. Também o traba-
lhador é o “sujeito débil” nas suas estruturas contratuais, pois mesmo quando con-
tribui intelectualmente não se e nessa relação como produtor (de conhecimento),
pois toda produção é do empregador. O trabalhador é apenas alguém que aliena
sua força de trabalho, fornecedor de uma mercadoria, o que o deixa sempre em po-
sição subalterna na dialógica social e jurídica.
429
FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais, dignidade da pes-
soa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfgand (org.). Constitui-
ção, direitos fundamentais e direito privado. 2ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 98.
183
A proteção de direitos da parte mais fraca, nas relações contratuais, tanto de
trabalho como de consumo, nada mais é do que uma estratégia capitalista de mer-
cado. Isso induz a uma fragmentação da pessoa e da própria proteção, como desta-
ca RUZCYY:
[...] Barcelona já traçava, mais de uma década, uma análise crítica da
passagem de um indivíduo proprietário para um indivíduo consumidor,
deixando claro que tal mudança nada mais é que o atendimento de uma
necessidade do mercado, além de transformar os indivíduos em “sujeitos
débeis”, que, na fragmentação em diversos papéis sendo o mais relevante
o de consumidor deixa de ter força para produzir qualquer mudança na
sociedade, alimentando com sua inércia e com o consumido desenfreado
– a economia de mercado.
430
Por isso, o novo contrato talvez não seja tão novo assim, mas represente a-
penas um dos conhecidos modos capitalistas de adequação do sistema produção-
consumo. É que o consumidor o está em posição de um igual, mesmo quando
protegido, pois o regime regulatório o reconhece como cidadão consumidor
431
, ou
seja, não como alguém que produz (conhecimento), mas como alguém que conso-
me (produtos), o que o deixa sempre em posição subalterna na dialógica social e
jurídica. O consumo não emancipa, mas submete.
É curioso que, no Direito Civil, geralmente se esqueça que a fragmentação do
sujeito em papéis de debilidade o começou com o consumidor, mas com o traba-
lhador, e que esse é o papel mais relevante do sujeito bil. A separação protetiva
em campos teóricos distintos induz os juristas a imaginar o sujeito conforme o cam-
po normativo em que esteja inserida a sua específica ação. Isso é tanto mais rele-
vante quando se percebe que na vida concreta a maioria das pessoas desempenha
os dois papéis de maior debilidade social, pois a grande massa de consumidores é
composta também por trabalhadores e, muitas vezes, os dois papéis estão co-
relacionados. Tudo é pensado como se o consumidor bil também não fosse um
430
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Os princípios contratuais: da formação liberal à noção contem-
porânea. In: RAMOS, Cármen Lúcia Silveira Ramos (Coord.). Direito civil constitucional: situações
patrimoniais. Curitiba: Juruá, 2002, p. 35-36.
431
Assim, ao inserir a defesa do consumidor dentre aqueles que expressam os direitos fundamentais
do homem, o legislador fez do direito do consumidor um espaço amplo de respeito à pessoa humana.
Desse modo expressa, na verdade, a busca de humanização do direito, pois, frise-se, o objetivo do
dispositivo em questão é tutelar o homem enquanto consumidor e tendo e vista o modelo social atual”
(EFING, Antônio Carlos; INOMATA, Adriana; ROCHA, Ana Cláudia Loyola da; BORGES, Fernanda
Schuhli; DICHI, Liliana Orth; SEATTOLIN, Rossana. O Conceito de Consumidor. In: EFING, Antônio
Carlos. (coord.), Direito do consumo 3. Curitiba: Juruá, 2005, p. 28).
184
trabalhador débil e, principalmente, como se os dois papéis sociais não tornassem
ainda mais intensa a sua debilidade social.
A lógica do indivíduo consumidor está muito próxima da que envolve o indiví-
duo proprietário, pois o consumo é um mecanismo inconsciente de tornar a todos
quase-proprietários, daí sua ampla e quase irresistível aceitação. Como a lógica é
de individualidade e não de solidariedade, será difícil por meio de relações de con-
sumo construir simbolicamente vínculos coletivos. A visão liberal prevalecente faz
crer que “o cidadão se torna cada vez mais um consumidor, afastado de preocupa-
ções com a política e com os problemas coletivos”
432
. Ser consumidor é o modelo de
cidadania do neoliberalismo. O trabalho parece ser, portanto, se não o único, o prin-
cipal elemento que ainda aponta para os indivíduos a sensação de pertencimento a
uma coletividade distinta da identidade nacional, mas com ela conectada.
Ainda que a constitucionalização do direito privado, inclusive do Direito do
Trabalho, bem como o reconhecimento da dignidade do cidadão concreto constitu-
am importante forma de abertura sistêmica, deve-se reconhecer que no campo so-
ciológico essa solução se mantém no campo meramente regulatório, e o é sufici-
ente para promover a “maioridadepor meio de um novo papel que o traga no dis-
curso como um igual produtor de conhecimento.
O desafio está em dotar os regimes regulatórios da dignidade do trabalhador
e do consumidor de mecanismos que conduzam a um progressivo estatuto emanci-
patório, o qual parece estar na produção jurídica do próprio Estado, mas também à
margem dele. É frustrante perceber que o novo contrato, a s-modernidade e
quaisquer outras construções efetuadas no mundo jurídico para reenfeitar o antigo
pareça fadado, em nosso País, a ter por destinatários poucos indivíduos. “O acesso
à justiça é limitado a pequena parcela da população. A maioria ou desconhece seus
direitos, ou, se os conhece, não tem condições de os fazer valer. Os poucos que
dão queixa têm que enfrentar depois os custos e a demora do processo judicial”
433
.
É necessário dotar o País de estruturas objetivas que criem condições simbólicas de
432
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 2007, p. 226.
433
IDEM, ibidem, p. 214.
185
cidadania. A internalização da moral do sujeito de direitos depende de uma progres-
siva abertura a todos do contrato e da proteção legal.
O fenômeno da precarização do trabalho suscita preocupação generalizada
na América Latina com a necessidade de criar novos marcos para a subordinação
jurídica ou de “transcender do conceito de emprego para o conceito de trabalho”
434
.
Para isso, no campo legislativo, basicamente duas possibilidades antagônicas têm
sido propostas, as quais podem ser resumidas pela opinião de HEROS PÉREZ AL-
BELA:
[...] a solução poderia consistir em fragmentar o mercado de trabalho e
buscar níveis de proteção diferentes para cada grupo de trabalhadores, ou
melhor, propiciar uma proteção mínima uniforme indiscriminada pra todo tipo
de trabalho, seja dependente ou autônomo no sentido tradicional do termo.
Aqui a resposta não é fácil e me inclino pelo critério da equidade que
significa um sistema indiferenciado. Porém, ao mesmo tempo, a pluralidade
de situações que se pode apresentar nos deve fazer refletir sobre a
possibilidade de estabelecer alguma diferença não em razão das pessoas,
senão em razão das distintas circunstâncias normatizadas.
435
A primeira opção de reforma seria estender as regras protetivas a todos os
dependentes economicamente; a segunda, a de redistribuir os mecanismos proteti-
vos segundo o grau de dependência. Ambas as propostas enfrentam dificuldades
fáticas para serem adotadas por sociedades com alto nível de desemprego e nas
quais a fraude e a “flexibilidade” nas relações de trabalho são crescentes. Embora,
de fato, seja necessária “uma proposta legislativa para ampliar o campo de abran-
gência desse ramo do Direito, de modo a incluir (e não excluir) demais formas de
relações obrigacionais”
436
, a dificuldade está em elaborar um projeto que, em vez de
servir aos seus propósitos, apenas aprofunde as desigualdades.
Ambas as opções estão relacionadas com o problema da homogeneidade ou
heterogeneidade do mundo do trabalho. A ideia de que o mundo do trabalho no re-
gime fordista era homogêneo é simplista, fruto de adoção dos fundamentos econô-
434
HEROS PÉREZ ALBELA, Alfonso de los. La frontera entre el trabajo subordinado y el trabajo inde-
pendiente. Boletín Mexicano de Derecho Comparado, n. 105, México, set./dez. 2002, p. 997.
435
IDEM, ibidem, p. 996.
436
GOULART, Rodrigo Fortunato; VILLATORE, Marco Antônio César. Proteção ao trabalhador eco-
nomicamente dependente: propostas para um novo contrato de trabalho. Anais do XVII Congresso
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI. Brasília-DF, nov. 2008. No prelo.
186
micos dos países centrais do capitalismo. O breve histórico acima apresentado de-
monstra que, em realidade, esse mundo sempre foi muito heterogêneo e, para com-
provar isso, basta observar que o sistema fordista é industrial e o Brasil produziu
um sistema industrial mais consistente a partir de 1950. Assim, a maior parte da po-
pulação brasileira viveu fora dessa “homogeneidade”, em condições quase tão pre-
cárias como as atuais. O que havia de homogêneo no período fordista era o projeto
de cidadania instalado a partir de 1930.
Por isso, a ideia de estender a todos os dependentes a proteção legal da CLT
esbarra na dificuldade de delimitar quais o os dependentes suscetíveis dessa pro-
teção. De outra parte, estabelecer graus de subordinação conforme a situação fática
de cada um esbarra no mesmo problema. Assim, por exemplo, depois de proporem
uma regulação legal para o trabalhador parassubordinado dependente economica-
mente, GOULART e VILLATORE afirmam:
A intensidade da tutela ao autônomo economicamente dependente será
mais branda, em virtude da dependência parcial com relação ao tomador do
serviço. Não vislumbramos nenhum prejuízo à existência de normas mais
protetivas ao trabalho subordinado e menos protetivas ao trabalho autônomo
dependente. É preciso refletir que se o Direito do Trabalho continuar a
querer regular apenas as relações de emprego baseadas no critério
subordinação, é cediço que o campo de atuação deste ramo específico será
reduzido, pois, a cada dia, surgem novas relações de trabalho, com uma
morfologia completamente diversa daquela realidade vivida na Revolução
Industrial.
437
Por “mais branda” certamente se quer dizer “menos protetiva”. É evidente que
a proposta é vantajosa para inúmeros trabalhadores que atualmente não contam
com nenhuma proteção. O problema está em que não garantias de que grande
parte dos atualmente subordinados (mais protegidos) não passem a ser parassu-
bordinados (menos protegidos). Ao contrário, as nossas peculiaridades históricas
indicam que haveria uma tendência significativa de a maior parte se transformar em
“parassubordinado”, e as atividades de subordinação passar a ser de coordenação,
ou seja, de tudo traduzir modificações semânticas que apenas confirmem ou até
aprofundem as desigualdades existentes. O que diferencia uma “dependência
parcial” de uma “dependência total”? Os representantes comerciais, que constituiri-
437
GOULART, Rodrigo Fortunato; VILLATORE, Marco Antônio César. Proteção ao trabalhador eco-
nomicamente dependente: propostas para um novo contrato de trabalho. Anais do XVII Congresso
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI. Brasília-DF, nov. 2008. No prelo.
187
am a típica relação parassubordinada possuem um sistema de proteção legal:
quais outras categorias poderiam ser a eles equiparadas? Uma demonstração de
que o habitus precário pode ser o indutor de algumas dessas propostas está nos
exemplos de autonomia oferecidos por NAHAS:
Citemos os exemplos dos chamados vendedores autônomos que vendem
produtos de uma só empresa; dos ‘chapas’, que esperam os carregamento
de uma determinada empresa; dos montadores, que prestam serviços de
montagem para uma única empresa, entre outros tantos exemplos que
estamos acostumados a nos deparar no dia a dia forense. Tais
trabalhadores não são empregados, não podem ser equiparados a
empresários e tampouco a trabalhador autônomo no sentido que a lei civil
lhe dá, simplesmente porque não gozam de condição jurídica e econômica
que lhes permita usufruir de um ou outro ordenamento. Tais trabalhadores
são obrigados a reconhecer que estão desprotegidos e, porque não, são
ignorados pelo legislador, e muitas vezes, batem as partes do Judiciário
Trabalhista pretendendo o reconhecimento de uma relação de emprego que,
no modelo celetista não se lhes pode enquadrar.
438
Como essa articulista chegou à conclusão de que em todos esses exemplos
o trabalhador não possui vínculo de emprego? Que ser especial é esse que não
possui “condição jurídica e econômica” para ser autônomo, mas ao mesmo tempo
não possui dependência (escravidão?) suficiente para ser empregado? Aparente-
mente, o que se quer criar é uma espécie de subempregado, um pouco menos ser-
vo do que os demais. Em que medida isso contribui para um projeto de cidadania?
A dependência do trabalho a uma única só pessoa deveria, em regra, sempre
configurar vínculo de emprego. A legislação trabalhista já considera condições pecu-
liares de alguns trabalhadores para lhes retirar direitos estendidos a outros trabalha-
dores, como os trabalhadores externos e gerentes, que não têm direito às regras
legais de duração do trabalho (CLT, art. 62). Assim, não tem sentido a afirmação de
que o modelo da CLT o se aplica a esses trabalhadores, pelo menos nos termos
apriorísticos em que a proposta foi colocada. A prática forense indica que a maior
parte dos exemplos acima indicados configura vínculo de emprego fraudado por su-
postas relações comerciais ou autônomas, de sorte que no caso esses trabalhado-
res não “são ignorados pelo legislador”, mas pelo julgador.
438
NAHAS, Thereza C. Considerações a respeito da relação de trabalho a questão do trabalho se-
midependente. Revista LTr. São Paulo, v. 71, n.º 9, setembro de 2007, p. 1092.
188
Nada impede a criação de proteções legais mais eficazes para alguns grupos
específicos, como o dos taxistas colaboradores
439
, pois muitos estão desprovidos de
qualquer sistema protetivo, embora configurem uma categoria razoavelmente ho-
mogênea. O que se mostra perniciosa é a criação de uma estrutura genérica para
os parassubordinados, como se essa denominação refletisse uma estrutura social
definida e um grupo social facilmente delimitável. A tendência seria esse mecanismo
transformar-se em fraude prejudicial aos trabalhadores subordinados, os quais ainda
constituem a expressiva maioria dos trabalhadores, ainda que significativa parte de-
les esteja na “informalidade”, ou seja, com seus direitos fraudados.
De outra parte, de pouco adianta limitar a proteção legal aos campos da Pre-
vidência ou da Assistência Social. Não vida de que é válido e importante criar
mecanismos tributários para desonerar a folha de pagamento e diminuir os encargos
sociais, pois isso pode propiciar um aumento da quantidade de empregos. Esse foi
o caminho adotado pela Lei Complementar 128, de 19.12.2008, que alterou subs-
tancialmente a Lei Complementar 123, de 14.12.2006, e trouxe importantes avanços
ao criar mecanismos para que as micro e pequenas empresas desvinculem parte
significativa de seus encargos tributários da folha de pagamento. Também é válido
ampliar o acesso da população excluída aos benefícios da Previdência ou da Assis-
tência Social. A solução do problema, todavia, não está apenas na quantidade de
empregos, mas na aquisição de capital simbólico que constitua essas pessoas em
sujeito de direitos perante os demais membros da sociedade. A solução não é pu-
ramente econômica, pois exige o aporte de novas estruturas simbólicas: é necessá-
rio dotar os trabalhadores do senso comum do cidadão portador de direitos. De
pouco serviria um sistema de mera subsistência pelo trabalho, o qual apenas manti-
vesse os socialmente excluídos no estado atual de assistencialismo ou de patriarca-
lismo, no limite da sobrevivência e condenados à invisibilidade social.
439
BRASIL. Lei 6.094, de 30/8/1974, art. 1º., § 2º.: “Não haverá qualquer vínculo empregatício nesse
regime de trabalho devendo ser previamente acordada, entre os interessados, a recompensa por essa
forma de colaboração”. Em realidade o que se observa é que a maior parte desses “colaboradores”
vive sob a mais terrível dependência dos proprietários dos veículos, sem a proteção de um vínculo de
emprego.
189
4.5 A CONSTRUÇÃO COLETIVA DOS DIREITOS
Como bem destaca ORLANDO GOMES
440
, com base nas lições de CESSA-
RI, a doutrina do contrato de trabalho tem sido reelaborada a partir das modifica-
ções produzidas na função da própria empresa. De início, ainda no século XIX e
início do século X, a empresa é tida como um modo de exercício da propriedade,
enquanto o trabalho é o bem que o trabalhador vende. Em um segundo momento, a
empresa é considerada expressão da atividade individual do empresário
441
, e o tra-
balho deixa de ser simples mercadoria para ter a finalidade de cooperar com a pro-
jeção do empresário na produção para o mercado e para a nação. Em um terceiro
momento, a empresa passa a ser tratada como uma importante peça da vida eco-
nômica, e o trabalho é visto como “a substância de uma atividade que constitui ex-
pressão da obra coordenada de muitos indivíduos”
442
.
Foi essa última modificação na função da empresa, ocorrida a partir de 1950,
que acarretou a reelaboração da doutrina do contrato do trabalho para paulatina-
mente reconhecer que o trabalhador não é um fornecedor de serviços, mas um ser
integral ao qual devem ser reconhecidos outros direitos relativos ao seu corpo. A
contraprestação do trabalho deixa de ser apenas o salário e se passa a reconhecer
existirem outros direitos a que o empregador se obriga por força não do contrato,
440
GOMES, Orlando. Ensaios de direito civil e de direito do trabalho. Rio de Janeiro: Aide, 1986, p.
161-162.
441
Esse momento coincide com um realismo biológico e institucional, em que a abstração da pessoa
jurídica cede espaço à pura inserção de empresários e empregados em um processo produtivo nacio-
nal, pois o que importa acima de tudo são os interesses consensuais da nação. “Uma das lições que
Hannah Arendt extraiu da experiência do totalitarismo é que ‘o primeiro passo essencial na estrada
que leva à dominação total consiste em matar no Homem a pessoa jurídica’. Negar a função antropo-
lógica do Direito em nome de um pretenso realismo biológico, político ou econômico, é um ponto co-
mum de todos os empreendimentos totalitários. Essa lição hoje parece esquecida pelos juristas que
sustentam que a pessoa jurídica é um puro artefato sem relação com o ser humano concreto. Artefa-
to, a pessoa jurídica o é, sem dúvida alguma. Mas, no universo simbólico que é a peculiaridade do
homem, tudo é artefato. A personalidade jurídica não é decerto um fato de natureza; é certa represen-
tação do homem, que postula a unidade de sua carne e de seu espírito e que proíbe reduzi-lo a um
ser biológico ou um ser mental” (SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica
do direito. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. X-
XI).
442
CESSARI. Aspetti della crisi nel diritto del lavoro. In: SIMONETTO. Sulla crisi del diritto. Pádua:
CEDAM, 1973, p. 19, apud GOMES, Orlando. Ensaios de direito civil e de direito do trabalho. Rio de
Janeiro: Aide, 1986, p. 162.
190
mas também em razão da própria condição humana. Daí segue, como revela SU-
PIOT, a progressiva
[...] atenção, em caráter prioritário, aos bens pessoais do trabalhador, como
a saúde, a intimidade, a liberdade individual e a dignidade pessoal. O
contrato de trabalho deixa de ser mero intercâmbio patrimonial traduzido no
binômio trabalho-salário, como no primeiro momento jurídico, e deixa de ser
uma relação jurídica com tímidas implicações na pessoa do trabalhador
consubstanciadas no dever de proteção imposto ao empresário, como no
segundo momento. Converte-se em instrumento que define a posição das
partes como fundamento no efetivo exercício dos direitos individuais e
sociais do trabalhador e na obrigação do empresário de respeitá-los no
funcionamento da empresa.
443
É certo também que, em alguma medida, a experiência dos trabalhadores
acaba por alterar e moldar a estrutura do seu trabalho, pois o conflito de poderes faz
parte da lógica da vida e do capital. Ao poder do empregador se contrapõe a resis-
tência do trabalhador, um fenômeno dinâmico e dialético
444
, e tanto no campo indi-
vidual como no coletivo um amplo complexo de correlações de vontades e de
poderes. O que não se pode negar, contudo, é que por conter estruturas de poder
em que uma das partes, o trabalhador, encontra-se fragilizada econômica e social-
mente, o empregador possui maiores condições de impor sua moldura e assim inter-
ferir com mais eficiência na pessoa do trabalhador. É nesse quadro fático que se
impõe verificar os limites da interferência do trabalho na personalidade.
No estabelecimento de limites ao poder dos empregadores de interferir na
personalidade dos trabalhadores, convém em primeiro lugar reconhecer, no plano
simbólico e jurídico, o que é evidente no plano tico, ou seja, que o trabalho não se
separa do corpo, de modo que a tutela do trabalho deve ser realizada também pela
perspectiva do corpo humano. Não o corpo humano por si mesmo, mas o corpo co-
443
SUPIOT, Alain. Crítica del derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales,
1996, p. 129.
444
MELHADO, Reginaldo. Poder e sujeição. São Paulo: LTr, 2003, p. 213.
191
mo uma totalidade ao mesmo tempo corpórea e incorpórea
445
e tendo por projeto a
afirmação do sujeito corporal vivo
446
, a vida concreta de cada pessoa. Isso traz uma
dificuldade de fundamentação para a natureza contratual do trabalho, mas ao mes-
mo tempo propicia a vantagem de reconhecer no trabalho os direitos inerentes à
própria condição humana e assegurar os seus direitos subjetivos de personalidade.
É esse aparente paradoxo que permite a publicização, por meio dos direitos
de personalidade, do contrato de trabalho. o vai nisso, aliás, nenhuma novidade,
pois o Direito do Trabalho nasceu justamente para instituir várias normas públicas
com o fim de regular relações contratuais, o que constituiu um rompimento com a
tradição individualista e liberal. A novidade não é de conteúdo, mas de perspectiva,
visto se ampliarem para o campo principiólogico os meios de proteção, admitindo a
aplicação dos direitos fundamentais.
Por outro lado, é inegável que para a maior parte da população mundial o tra-
balho é condição de sobrevivência pessoal e familiar. Não é isso, contudo. O tra-
balho é condição para a subsistência, mas também para o próprio desenvolvimento
do homem, visto que sem o trabalho é difícil ou impossível assegurar outros direitos
fundamentais materiais (saúde, educação, segurança, lazer etc.), como também
adequar e manter direitos de personalidade (imagem).
O trabalho, nessas circunstâncias, por estar ligado ao corpo do trabalhador,
vincula-se positiva ou negativamente
447
à sua personalidade, porquanto “além da
transformação do existente, o trabalho realiza também a potencial transformação do
445
“O meio mais adequado para superar seja o reducionismo dualistico seja as outras concessões,
não menos redutoras, de perfil monístico e resquício de orientação idealista e também cristã mas
encontrável também em Spinoza -, tendente a conceber o corpóreo e o incorpóreo como duas ex-
pressões distintas de uma mesma substância: aquela unitária do sujeito” (TRONCARELLI, Barbara. Il
corpo nella prospettiva antiriduzionistica della complessità. Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto,
Giuffrè, v. V, out-dez de 2002, p. 550 tradução livre do autor). Texto original: “La via più atta a
superare sia il riduzionismo dualistico sia le altre concezioni, non meno riduttive, di impianto monistico
resta l’orientamento idealistico e, insieme, cristiano ma rinvenibile anche in Spinoza -, tendente a
concepire il corporeo e l’incorporeo come due espressioni distinte di una medesima sostanza: quella
unitaria del soggetto”.
446
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. 2ª. ed. Petrópolis:
Vozes, 2002, p. 528.
447
Aqui, com o sentido de exclusão dos trabalhadores a condições de aquisição de direitos de perso-
nalidade mínimos, ou seja, a negação do “critério material positivo” (DUSSEL, Enrique. Ética da liber-
tação: na idade da globalização e da exclusão. 2ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 322). Essa negação
ocorre porque O trabalhador ‘põe’ sua vida no produto e não o recupera. Ao contrário, o objeto se
transforma num monstro que o ataca e domina” (IDEM, ibidem, p. 323).
192
sujeito que trabalha
448
. Por outro lado, a ausência de trabalho também adere (em
regra, negativamente) à personalidade do homem, pois tendo o trabalho se constitu-
ído em inegável valor cultural, sua falta torna a pessoa um “não-ser” na perspectiva
econômica e social e, acima de tudo, segundo o seu próprio ponto de vista existen-
cial (psicológico), em vista da perda de sua “centralidade”, do seu ponto heterogê-
neo no caos homogeneizador do seu universo.
É fundamental superar a noção de trabalho como mercadoria, sem negar que
em algum aspecto o seja. A noção de mercadoria é misteriosa porque encobre as
características do trabalho social dos homens, apresentando-as como característi-
cas inerentes ao produto em si, efeito do processo de exteriorização/objetivação.
Com efeito, “desde que os homens, o importa o modo, trabalhem uns para os ou-
tros, adquire o trabalho uma forma social”
449
, mas na mercadoria essa relação entre
homens se transforma em relação entre coisas (fetichismo). Por isso, é preciso en-
fatizar que o trabalho é acima de tudo uma construção social e coletiva e não um
dado puramente individual da personalidade.
O modo encontrado pela maior parte das sociedades para superar os para-
doxos de uma subordinação livremente consentida foi a invenção do coletivo, em
especial os direitos coletivos, a negociação, os acordos e as convenções coleti-
vas.
450
A dimensão e a autonomia coletiva se sobrepõem ou se juntam aos espaços
da autonomia privada individual. A liberdade coletiva se firma como um acréscimo à
liberdade individual ou como um corretivo desta. A tensão entre liberdade e igualda-
de (elementos da individualidade) se resolve por meio da fraternidade (liberdade
coletiva), pois todos são igualmente elementos da mesma realidade social.
451
A li-
448
LESSA, Sérgio. Mundos dos homens: trabalho e ser social. São Paulo: Boitempo, 2002, p. 145.
449
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Trad. Reginaldo Sant’Anna. 23ª. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, v. I, p. 93.
450
SUPIOT, Alain. Crítica del derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales,
1996, p. 148.
451
Não se deve perder de vista que não há uma contraposição radical entre o universal e o individual,
pois todos esses elementos se entrecruzam e fazem parte da construção social. Os estudos de LUC-
KÁCS, tão bem defendidos por LESSA, indicam que “a generalidade humana e a individualidade são
esferas distintas e igualmente reais do ser social. Todavia, diferente do que ocorre na relação essên-
cia/fenômeno, tanto o gênero como as individualidades são portadoras da continuidade social” (LES-
SA, Sérgio. Op. cit., p. 278).
193
berdade coletiva é o necessário contraponto aos elementos sociais que preparam
na população trabalhadora o desejo de servir
452
e subtraem a igualdade.
no Brasil, entretanto, uma dificuldade quase patológica de lidar com as
dimensões coletivas do trabalho. Tais dificuldades parecem decorrer, mais uma vez,
da construção histórica da nossa sociedade, que tem dificuldade de lidar com institu-
ições intermediárias que sirvam de freio ao poder absoluto dos detentores da propri-
edade. Essa propriedade ainda guarda os traços fundamentais de uma estrutura
societária patriarcal e personalista, e quem a detém procura se isolar dos demais
vínculos sociais e prefere tratar diretamente com seus “afilhados”. O caminho de
libertação social, contudo, é o da construção de bases coletivas permitidoras da cri-
ação de uma verdadeira liberdade que ultrapasse os limites do corpo sem que isso
signifique esquecê-lo.
453
4.6 A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA: DO SILÊNCIO (OU CONSEN-
SO) DA OBEDIÊNCIA PARA O DIÁLOGO (OU DISSENSO) DA MAI-
ORIDADE
Cidadania envolve, há muito, a ideia de participação e de convívio. Por isso, a
respeito de como a cidadania era percebida na Grécia Antiga, bem destacou GUA-
RINELLO:
Pertencer à comunidade da cidade-estado não era, portanto, algo de pouca
monta, mas um privilégio guardado com zelo, cuidadosamente vigiado por
meio de registros escritos e conferido com rigor. Como já ressaltava o
filósofo grego Aristóteles, fora da cidade-estado não havia indivíduos plenos
e livres, com direitos e garantias sobre sua pessoa e seus bens. Pertencer à
452
[...] o senhor não se torna senhor pelo seu desejo, mas vem ocupar um lugar já preparado naque-
les que domina, o que leva à importante constatação de que a tirania se engendra primordialmente do
desejo de servir e se articula estruturalmente ao próprio surgimento do sujeito em um tempo domina-
do pelo discurso do mestre. O desejo do homem é o desejo do Outro, e quem cuida do desejo do
senhor é o escravo” (RINALDI, Doris. A subjetividade hoje: os paradoxos da servidão voluntária. Re-
vista Ágora: estudos em teoria psicanalítica. Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, jan./jun. 2001, p. 16).
453
Ainda são atuais as observações de Marx, para quem têm os trabalhadores de se unir e, como
classe, compelir a que se promulgue uma lei que seja uma barreira intransponível, capaz de impedi-
los definitivamente de venderem a si mesmos e à sua descendência ao capital, mediante livre acordo
que os condena à morte e à escravatura” (MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Trad.
Reginaldo Sant’Anna. 23ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, v. I, p. 346). Se o sentido
de classe hoje é diferente daquele que se imaginava no século XIX, não deixa de ser verdadeira a
afirmação de que apenas como coletivo o trabalhador tem condições de fugir da escravatura, espectro
que sempre o assombra no nível individual.
194
comunidade era participar de todo um ciclo próprio da vida cotidiana, com
seus ritos, costumes, regras, festividades, crenças e relações pessoais.
454
O que havia de fundamental nessas sociedades é o seu processo de forma-
ção o ser apenas inclusivo, pois muitos dos habitantes do território “participavam
da sociedade com seu trabalho e recursos, mas o se integravam ao conjunto dos
cidadãos”
455
. Além dos estrangeiros e dos escravos, também não eram cidadãos
muitos dos subalternos responsáveis por trabalhos agrícolas. Os princípios de inclu-
são e exclusão eram regidos pelos anseios de dominação. A ética do guerreiro
combinada com a tradição de respeito aos antepassados, fazia com que as mulhe-
res estivessem subordinadas aos homens e os jovens aos velhos.
Esse potencial conflitivo, associado com a disputa pela terra, sempre foi cau-
sa de instabilidades sociais entre os antigos. De outra parte, os privilégios de cida-
dania não ficavam restritos ao voto, mas os cidadãos dominavam os ritos religiosos,
as leis, o exercício da guerra e todos os meios de participação coletiva. Evidente-
mente, apenas a “participação no poder não bastava para fazer frente às demandas
dos mais pobres a suas comunidades”
456
, e os pactos comunitários foram rompidos
em razão, principalmente, das dificuldades de contornar seus conflitos internos. A
decadência das cidades-estado gregas decorreu principalmente do caráter exclusi-
vista de sua cidadania, que não foi capaz de dar conta de seus conflitos internos
nem de criar fusões mais amplas em um mundo em crescente integração
Não é por outro motivo que as cidades gregas foram unificadas por meio
da conquista de “uma cidade-estado cuja cidadania era mais aberta do que a regra
geral”
457
. Os romanos também passaram por cruentos conflitos internos em razão
de disputas por esse tripé participativo (político, jurídico e econômico), mas soube-
ram criar bases para aprimoramento de suas instituições, utilizando a cidadania,
inclusive, como elemento de cooptação da lealdade de outros povos. “Em grande
parte, a história de Roma pode ser vista como uma luta pelos direitos sociais e pela
454
GUARINELLO, Norberto Luiz. Cidades-Estado na Antiguidade Clássica. In: PINSKY, Jaime;
PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. 4ª. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 35.
455
IDEM, ibidem, p. 35.
456
IDEM, ibidem, p. 41.
457
IDEM, ibidem, p. 42.
195
cidadania entre aqueles que tinham direitos civis plenos e os demais grupos”
458
. O
aspecto mais relevante na experiência romana é que, “subjacente ao direito de ci-
dadania encontra-se a própria noção de liberdade, definida como a não submissão
ou sujeição a outra pessoa, conceito esse que será fundamental para as formula-
ções dos fundadores da cidadania no mundo moderno”
459
.
As experiências gregas e romanas, base de uma progressiva construção da
ideia de cidadania, puderam indicar desde o início serem cidadania e homogeneida-
de social elementos intrinsecamente ligados e que, para se aperfeiçoarem e se es-
tabilizarem, precisam combinar vários aspectos, entre os quais uma tendência de
universalização, a participação pública (igualdade política), a participação econômi-
ca (igualdade econômica), a ampliação do espaço público (a igualdade comunica-
cional) e o acesso ao Direito, inclusive de invocar a tutela jurisdicional do Estado
(igualdade jurídica). O que a Revolução Francesa tentou foi alcançar esses valores
por meio da ferramenta que racionalmente mais se acreditava eficaz: a liberdade
individual.
Se esse processo de aquisição da cidadania por meio da liberdade acarretou
muita perda, também houve muitos ganhos. O Brasil, em menos de 200 anos de
independência política, evoluiu significativamente em vários aspectos da cidadania,
especialmente na política, mas ainda deixa considerável parte da população sem
cidadania plena, tanto no aspecto da igualdade econômica como, principalmente, na
igualdade comunicacional. A ausência desta impede que o projeto do sujeito consci-
ente de seus direitos não avance, e quando a evolução em alguns aspectos parece
inexorável, retrocessos econômicos ou políticos impedem a generalização dos direi-
tos.
As mais recentes modificações estruturais do capitalismo apontam para uma
dupla perda: caminha-se da palavra para a imagem, e do diálogo para o silêncio.
460
A língua evoca uma comunidade de falantes em determinado território, mas a tecno-
logia não tem um território, mas um espaço, não uma comunidade, mas uma massa
458
FUNARI, Pedro Paulo. A cidadania entre os romanos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla
Bassanezi (orgs.). História da cidadania. 4ª. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 50.
459
IDEM, ibidem, p. 72.
460
IRTI, Natalino. Dialogo e accordo. Analisi di una crisi. In: IRTI, Natalino e outros. Contratto e lavoro
subordinato: il diritto privato alle soglie del 2000. Padova: Cedam, 2000, p. 25.
196
de usuários.
461
Isso parece demonstrar que a ânsia de calculabilidade e de mensu-
rabilidade, uma das bases centrais da Modernidade, parece superar outra de suas
bases, ou seja, o orgulho individualista da vontade.
O resultado disso é o fracionamento do homem: uma parte “dominada pela
palavra e pelo diálogo, outra pela imagem e pelo silêncio”
462
. Se na Europa isso é
uma transformação da realidade, em terras brasileiras assume contornos de conti-
nuidade ou de retrocesso: o silêncio não é mera concordância tácita da vontade,
mas reflexo de sua debilidade ou inexistência. A cidadania não se forma pelo con-
senso autoritário imposto pelo poder, mas pela capacidade de articulação das múlti-
plas palavras de dissenso.
O que a cidadania exige é um equilíbrio entre o poder e a sujeição, pois a li-
berdade é condicionada pela subordinação. As diferenças entre o sentido de liber-
dade, de subordinação, de vontade e de contrato na Antiguidade e na Modernidade
são enormes, pois os paradigmas morais e espirituais que regiam esses institutos
são diversos daqueles que atualmente os regem, mas não deixa de ser interessante
observar que a mesma contraposição de valores e a mesma necessidade de equilí-
brio se fazem presentes. Destaque-se, ainda, que civilizações inteiras pereceram
por conta do desequilíbrio entre liberdade e subordinação.
O Direito transformou-se no campo de luta moderno entre a liberdade e o po-
der. Evidentemente, o Direito é apenas um campo de luta no qual concorrem vários
outros elementos, como o político e o econômico, cada um com o interesse de pre-
valecer a sua palavra. O Direito, todavia, não pode ser apenas instrumento da domi-
nação existente, pois acima de tudo há uma estrutura simbólica pré-existente na
Constituição, que deve ser preservada. A esse respeito BOURDIEU ponderou que:
[...] O direito é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de
nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos; ele
confere a estas realidades surgidas das suas operações de classificação
toda a permanência, a das coisas, que uma instituição histórica é capaz de
conferir a instituições históricas.
O direito é a forma por excelência do discurso atuante, capaz, por sua
própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo
social, mas com a condição de não esquecer que ele é feito por este. [...] os
461
IRTI, Natalino. Dialogo e accordo. Analisi di una crisi. In: IRTI, Natalino e outros. Contratto e lavoro
subordinato: il diritto privato alle soglie del 2000. Padova: Cedam, 2000, p. 25.
462
IDEM, ibidem, p. 30. Esse fracionamento parece ter correlação com outra antiga dualidade, a do
homem que fala e o homem que vê (IDEM, ibidem, p. 31).
197
esquemas de percepção e de apreciação que estão na origem de nossa
construção do mundo social são produzidos por um trabalho histórico
colectivo, mas a partir das próprias estruturas deste mundo: estruturas
estruturadas, historicamente construídas, as nossas categorias de
pensamento contribuem para produzir o mundo, mas dentro dos limites de
sua correspondência com estruturas pré-existentes. [...]
463
A instituição de práticas pré-reflexivas, por meio do Direito do Trabalho, é um
dos mecanismos mais eficientes de generalização de práticas inclusivas, pois são
as mais imediatas nas práticas sociais. O Direito do Trabalho, portanto, faz o mundo
social, mas também é formado por esse mundo. Por isso, o Direito do Trabalho de-
ve ter em conta o sujeito que se pretende construir, um sujeito que se enuncia no
mundo social como protagonista de novas liberdades, um novo imortal. O Direito,
nessas circunstâncias, evoca apenas o que já se anuncia, como bem observa
BOURDIEU,
[...] a vontade de transformar o mundo transformando as palavras para o
nomear... tem probabilidades de êxito se as profecias, evocações
criadoras, forem também, pelo menos em parte, previsões bem
fundamentadas, descrições antecipadas: elas só fazem advir aquilo que
enunciam, novas práticas, novos costumes e, sobretudo, novos grupos,
porque elas anunciam aquilo que está em vias de advir, o que se anuncia;
elas são mais oficiais do registro civil do que parteiras da história.
464
A construção da cidadania, por meio do trabalho decente, deve fazer-se o
pelo (pre)ocupar
465
, mas pelo (o)correr
466
normativo. Apropriar-se dos avanços al-
cançados, aproximar-se de práticas ainda mais livres praticadas neste e em outros
locais, permitir-se o avanço em busca da liberdade. Não uma “liberdade à brasilei-
ra”, argumento apenas retórico de permanência dos atuais sistemas de dominação,
mas “liberdade para brasileiros”, indivíduos concretos com problemas concretos e
cuja proteção legal o pode realizar-se com base em moldes de outras realidades.
463
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. . ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2006, p. 237.
464
IDEM, ibidem, p. 238-239.
465
“Ocupar” é proveniente do latim “occupare”, cujo sentido principal é apoderar-se, assenhorear-se,
meter-se de posse de, ter, possuir, dominar, cobrir (SARAIVA, Francisco Rodrigues dos Santos. Di-
cionário latino-português. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1993, p. 809).
466
“Ocorrer” é proveniente do latim “occurrere”, cujo principal sentido é “ir ou vir adiante, sair ao en-
contro, aproximar-se, acorrer, vir, acudir, vir à pressa, apresentar-se, vir ao pensamento” (SARAIVA,
Francisco Rodrigues dos Santos. Dicionário latino-português. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1993,
p. 809). nele um forte aspecto temporal, do que se deixa oferecer pelo devir. Ocorrer, entretanto,
não é unidimensional nem está isento de perigos ou de dissensos, pois também pode significar “mar-
char contra, avançar, atacar, opor-se, resistir, por obstáculo”, mas o que mais importa em seu sentido
original é “ir adiante”.
198
Isso, entretanto, deve ser pensado para proteger os trabalhadores e não para des-
protegê-los.
Munidos dos precários instrumentos democráticos que conseguimos arrancar
com as mãos e a duras penas, nos resta avançar contra as tentativas sempre
recorrentes de retorno à barbárie. Esse é o imperativo destes tempos e do sujeito
que se constrói na Modernidade. Como assinala BADIOU:
Finalmente, o sujeito humano tem um imperativo: continuar. Continuar a
ser esse sujeito que ele se tornou. E, através disso mesmo, continuar a
fazer advir uma verdade. É algo muito duro, o animal humano exige que
sirvamos aos seus interesses.
467
Os interesses do animal humano brasileiro estão na redução das desigualda-
des econômicas e simbólicas que o cercam. A igualdade jurídica é um baluarte in-
dispensável nessa luta e sua construção, com muita dificuldade, é perseguida pelo
Direito do Trabalho.
467
BADIOU, Alain. Para uma nova teoria do sujeito: conferências brasileiras. Trad. Emerson Xavier da
Silva e Gilda Sodré. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p. 114.
199
5 CONCLUSÕES
É difícil mensurar o peso simbólico que o nosso passado escravagista ainda
nos impõe. Contudo, o é difícil perceber, mediante comparação com outros paí-
ses, que algo de peculiar na nossa formação social a distinguir a forma como
construímos o conceito de subordinação. Um elemento condicionante de nossa es-
trutura parece ser, de fato, a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, uma
tarefa ainda inacabada
468
. Ao afirmar que o projeto do trabalho livre está inacabado,
sustenta-se que a própria cidadania e a democracia ainda não se consolidaram e,
acima de tudo, que se impõe como prioridade o seu término.
Não se pode dar a esse enfoque, todavia, uma visão determinista nem atribuir
à escravidão a causa de todas as nossas mazelas sociais. O que há é a necessida-
de de enfrentar o passado na avaliação do presente e na construção do futuro.
de se ter em conta, principalmente, o quanto uma instituição superada moralmente
tende a retornar por meio de novos e mais sutis discursos.
Por isso, para saber o que seja “subordinação jurídica” é necessário imaginar
o que sejam “escravidão” e “liberdade” e, para isso, torna-se imprescindível analisar
quem domina e quem é submetido. Cumpre também verificar que tipo de cidadão se
pretende “construir” e qual o papel que o Direito do Trabalho cumpre nessa missão.
Trata-se de se construírem as bases para um Direito do Trabalho pós-colonial, fun-
dadas na perspectiva das relações humanas subjacentes, e não como se o trabalho,
por si só, pudesse ser objetivamente aferível como “subordinado” ou “autônomo”.
Trata-se de superar o condicionamento econômico, de ultrapassar a ideologia
pueril e desmentida de que o desenvolvimento econômico geral do País, por si só, é
suficiente para eliminar a desigualdade social. que se admitir que,
por mais que este País tenha se desenvolvido, subsiste uma “ralé” estrutural de
468
O trabalho doméstico parece ser uma das demonstrações mais evidentes no País de que existem
zonas cinzentas entre o servilismo e a liberdade. Não é a única modalidade, contudo, em que isso se
verifica. O trabalho escravo, as parcerias, o coronelismo, o trabalho “de favor”, o comodato utilitário e
tantas formas intermediárias parecem indicar que existe uma maneira peculiar e muito pessoal de se
conceber neste País os limites entre a liberdade e a servidão.
200
pessoas a quem atribuímos a marca indelével de “subgente” e a quem o ordena
mento jurídico parece ignorar. Cabe superar essa nódoa para que a pessoa concre-
ta e histórica do trabalhador passe a importar, inclusive quando se almeja verificar
se há autonomia ou subordinação.
Para ultrapassar as tendências que estabelecem entre nós o habitus precário,
parece ser relevante o papel do Direito, em especial o Direito do Trabalho, pois, pa-
ra além de estruturas econômicas, esse condicionamento social é ditado também
por aspectos simbólicos. O Direito é um dos mecanismos mais eficazes para disse-
minar uma moral homogênea, mas a própria aplicação do Direito em nosso País
ainda é ditada por construções simbólicas que discriminam as pessoas por sua con-
dição social ou econômica, nas quais o direito de grupos e coletividades é despre-
zado pela prevalência do direito individual proprietário e em que o acesso ao Poder
Judiciário ainda é dirigido a uma parcela pouco extensa da população. O valor ex-
cessivo das custas e de outras despesas, a exigência de vestes específicas para o
“culto” processual, a violência ou inadequação das estruturais estatais, como a polí-
cia e a defensoria blica, a precariedade e o abandono dos Juizados Especiais, o
formalismo e a ineficiência da fiscalização preventiva, tudo é engendrado para que o
pobre e os grupos subalternos sejam excluídos da proteção legal. Mais que isso:
tudo é engendrado para que os próprios excluídos construam em si mesmos a ideia
de irrelevância e de invisibilidade social.
Superar a precarização não é criar apenas condições materiais de subsistên-
cia, mas, ao mesmo tempo, estabelecer o indivíduo como um cidadão, um sujeito de
direitos. O subordinado não é um ente abstrato, mas um ente concreto, histórico e
“em construção”. A subordinação é um processo: histórico, social, moral e econômi-
co, enfronhado na construção da cidadania. É nessa perspectiva que o conceito de
subordinação deve ser repensado, pois pensar subordinação no Brasil é basicamen-
te pensar mecanismos de superação da escravidão/desigualdade e das novas e
paradoxais formas de servidão voluntária que possam advir da precariedade e do
desemprego. Uma sociedade que pretenda evoluir o deve se preocupar apenas
em limitar a ânsia por dominação, mas também e principalmente o desejo de servir.
A subordinação é jurídica porque não é subordinação, porque incorpora
um conjunto de símbolos e lugares comuns que remetem a outro sujeito, ao coletivo,
201
seja por meio de regras estatais, seja por meio de regras de entes intermediários,
como os sindicatos. A legislação, as Convenções e os Acordos Coletivos, constitu-
em um “outro” que interdita a fruição total sobre o trabalho alheio, a construção sim-
bólica que torna real a vontade livre e individual do trabalhador.
Com todas as dificuldades sociais e econômicas o País tem avançado na
construção da cidadania, em especial a partir de 1930, sem desmerecer o relevante
papel simbólico que foi a abolição da escravatura em 1888. O traço positivo mais
marcante do fordismo e do Estado de Bem-Estar Social, ao qual aquele modelo
produtivo está atrelado, foi o de romper o sistema de proteção personalista (se-
nhor/agregado) para o sistema de proteção legal (contratante/contratado). Por esse
sistema, iniciou-se no Brasil a construção do trabalhador sujeito de direitos. De outra
parte, a associação tradicional de cidadania à propriedade imobiliária foi substituída
pela ideia de cidadania salarial. Esse é o projeto da Modernidade para rompimento
com os vínculos personalistas da escravidão, e quem pretenda terminar com esse
projeto deverá apontar para quais esferas deverá ir a cidadania social depois que for
retirada do contrato.
A manutenção desse projeto depende de se refutar um conceito personalista
de subordinação, de modo a afastá-lo de critérios que associem o vínculo de em-
prego a um poder hierárquico absoluto. É necessário evitar que a proteção legal fi-
que restrita aos níveis mais extremados de sujeição, ao trabalho semiescravo, pois
isso constituiria uma forma de revitalizar e radicalizar a nossa experiência escrava-
gista, transformando o seu critério lógico (grande submissão pessoal) ao “padrão de
normalidade”.
Na construção desse novo sujeito nos resta avançar e resistir: resistir con-
tra a barbárie e contra as estratégias conscientes ou inconscientes de submissão
total de um homem ao poder de outro. Vencer esse desafio é uma condição indis-
pensável para assegurar a cidadania a toda a população e, dessa forma, alcançar
um desenvolvimento econômico sustentável e duradouro, pois dar equilíbrio nas re-
lações entre capital e trabalho é condição de sobrevivência da humanidade e do
próprio capitalismo.
202
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALONSO OLEA, Manuel. Introdução ao direito do trabalho. 4ª. ed. São Paulo:
LTr, 1984.
ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produti-
va e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000.
ALVES, Maria Aparecida; TAVARES, Maria Augusta. A dupla face da informalidade:
“autonomia” ou precarização. In: Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. ANTU-
NES, Ricardo (org.). São Paulo: Boitempo, 2006, p. 425-444.
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil: texto confrontado com o da
edição de 1711. 3ª. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982.
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a nega-
ção do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.
______. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho.
São Paulo: Boitempo, 2005.
ARGENTINA. Ley de Contrato de Trabajo, de 13 de maio de 1976. Disponível em: <
http://www.trabajo.gov.ar/legislacion/ley/index.html>. Acesso em: 29 de janeiro de
2009.
ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: introdução e teoria geral. 2ª. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001.
AZEVEDO, lia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imagi-
nário das elites – século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
BADIOU, Alain. Para uma nova teoria do sujeito: conferências brasileiras. Trad.
Emerson Xavier da Silva e Gilda Sodré. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
BANDEIRA DE MELLO, Affonso de Toledo. O trabalho servil no Brasil. Rio de Ja-
neiro: Departamento de Estatística e Publicidade do Ministério do Trabalho, Indústria
e Comércio, 1936.
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas nor-
mas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 8ª. ed. Rio de Janeiro: Re-
novar, 2006.
203
BATALHA, Claudio. Limites da liberdade: trabalhadores, relações de trabalho e ci-
dadania durante a Primeira República. In: LIBBY, Douglas; FURTADO, Júnia Ferrei-
ra (Orgs.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVII e XIX.
São Paulo: Annablume, 2006, p. 97-110.
BEAUD, Michel. História do capitalismo: de 1500 até nossos dias. Trad. Maria Er-
mantina Galvão Gomes Pereira. o Paulo: Brasiliense, 2004. Título original: Histoi-
re du capitalisme.
BIAVASCHI, Magda Barros. O direito do trabalho no Brasil 1930-1942: a cons-
trução do sujeito de direitos trabalhistas. São Paulo: LTr, 2007.
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. 9ª. ed. Rio de Ja-
neiro: Bertrand Brasil, 2006.
BRASIL. Decreto-lei 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del5452.htm>. Acesso em: 29 de
janeiro de 2009.
BRITO, Fausto; HORA, Cláudia Júlia Guimarães; AMARAL, Ernesto Friedrich de
Lima. A urbanização recente no Brasil e as aglomerações metropolitanas. Dis-
ponível em: < http://www.abep.nepo.unicamp.br/iussp2001/cd/ GT_Migr_Brito_ Hor-
ta_Amaral_ Text.pdf>. Acesso em: 03 de julho de 2007.
CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil!: notas de um psicanalista europeu viajando
ao Brasil. São Paulo: Escuta, 1991.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constitui-
ção. 7ª. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 9ª. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
CASTRO, Antônio Barros de. A economia política, o capitalismo e a escravidão. In:
LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Modos de produção e realidade brasileira.
Petrópolis: Vozes, 1980, p. 67-107.
CATHARINO, José Martins. Compêndio de direito do trabalho. 3ª. ed. São Paulo:
Saraiva, 1982.
204
CATTANI, Antonio David. Desemprego e trabalho precário: bases para a servidão
moderna? Revista de Ciências Humanas. Curitiba: Ed. UFPR, n. 10, 2001, p. 195-
209.
CAUDWELL, Christopher. O conceito de liberdade. Trad. Edmond Jorge. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1968. Original: “The concept of freedom”.
CERVANTES de Saavedra, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. São Paulo:
Abril Cultura, 1981.
CESARINO JÚNIOR, Antônio Ferreira. Direito social. São Paulo: LTr, 1980.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no
Rio de Janeiro da belle époque. 2ª. ed. Campinas: Unicamp, 2001.
CHILE. Decreto Federal Legislativo n. 1, de 31 de julho de 2002. Disponível em: <
http://www.dt.gob.cl/legislacion/1611/article-59096.html>. Acesso em: 29 de janeiro
de 2009.
COLÔMBIA. Decretos 2.663 e 3.743, de 1961, adotados pela Ley 141, de 1961.
Disponível em: < http://www.scribd.com/doc/3964523/CODIGO-SUSTANTIVO-DEL-
TRABAJO >. Acesso em: 29 de janeiro de 2009.
CORREAS, Óscar. Sociologia del derecho e crítica jurídica: escritos. México:
Fontamara, 1998.
COUTINHO, Aldacy Rachid. Função social do contrato individual trabalho. In: COU-
TINHO, Aldacy Rachid; DALLEGRAVE NETO, JoAffonso (coord). Transforma-
ções do direito do trabalho: estudos em homenagem ao Professor João gis
Fassbender Teixeira. Curitiba, Juruá, 2000, p. 25-50.
______. Direito do Trabalho: a passagem de um regime despótico para um regime
hegemônico. In: COUTINHO, Aldacy Rachid; WALDRAFF, Célio Horst. Di-
reito do Trabalho & Direito Processual do Trabalho: temas atuais. Curiti-
ba: Juruá, 1999, p. 11-20.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade.
São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1986.
DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Contrato individual de trabalho: uma visão
estrutural. São Paulo: LTr, 1998.
205
DE MASI, Domenico. O ócio criativo: entrevista a Maria Serena Palieri. Trad. Léa
Manzi. Rio de Janeiro: Sextante, 2000. Original: “Ozio creativo”.
DURANT, Will. A história da civilização: nossa herança clássica. Trad.: Mamede
de Souza Freitas. Rio de Janeiro: Record, 1966. Original: “The life of greece”.
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. 2ª.
ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
EFING, Antônio Carlos; INOMATA, Adriana; ROCHA, Ana Cláudia Loyola da; BOR-
GES, Fernanda Schuhli; DICHI, Liliana Orth; SEATTOLIN, Rossana. O Conceito de
Consumidor. In: EFING, Antônio Carlos. (coord.), Direito do consumo 3. Curitiba:
Juruá, 2005, p. 13-69.
ESPANHA. Real Decreto Legislativo 1/1995, de 24 de março de 1995. Disponível
em:< http://www.mtas.es/es/Guia/leyes/RDLG195.htm>. Acesso em: 29 de janeiro
de 2009.
FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais,
dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica. In: SAR-
LET, Ingo Wolfgand (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado.
2ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 89-106.
FERNÁNDEZ BRIGNONI, Hugo. Los límites a la protección del trabajo: el concepto
de subordinación frente a las nuevas realidades. Gaceta Laboral, abr. 2001, v. 7,
nº. 1, p. 5-18.
FERREIRA, Waldemar Martins. História do direito constitucional brasileiro. Ed.
Fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2003.
FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Por que trabalho escravo? Estudos avançados, Uni-
versidade de São Paulo, v. 14, n. 38, São Paulo, jan./abr. 2000, p. 31-50.
FINLEY, Moses I. Escravidão antiga e ideologia moderna. Trad. Norberto Luiz
Guarinello. Rio de Janeiro: Graal, 1991. Original: “Ancient Slavery and Modern Ide-
ology”.
FLORENTINO, Manolo; ES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escra-
vas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1997.
206
FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de
direito à sujeição jurídica. São Paulo: LTr, 2001.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad.: Raquel Ramalhe-
te. Petrópolis: Vozes, 1987. Original: “Surveiller et punir”.
FRANÇA. Ordennance du 12 mars 2007, Loi du 21 janvier 2008. Disponível em:<
http://www.lexinter.net/Legislation5/JURISOC2/texte_global.htm >. Acesso em: 29 de
janeiro de 2009.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 3ª.
ed. São Paulo: Kairós, 1983.
FRENCH, John D. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores
brasileiros. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. Tradução: Paulo Fontes.
______. As falsas dicotomias entre escravidão e liberdade: continuidades e rupturas
na formação política e social do Brasil moderno. In: LIBBY, Douglas; FUR-
TADO, Júnia Ferreira (orgs.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e
Europa, séculos XVII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006, p. 75-96.
FREUD, Sigmund. El problema económico del masoquismo. In: Obras completas
de Sigmund Freud. 4ª. ed. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981, tomo III, p.
2752-2759.
______. El malestar en la cultura. In: Obras completas de Sigmund Freud. 4ª. ed.
Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981, tomo III, p. 3017-3067.
FUNARI, Pedro Paulo. A cidadania entre os romanos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY,
Carla Bassanezi (orgs.). História da cidadania. 4ª. ed. São Paulo: Contexto, 2008,
p. 49-79.
GALIMBERTI, Umberto. Il corpo. 17ª. ed. Milano: Feltrinelli, 2007.
GEDIEL, José Antônio Peres. Trabalho, cooperativismo e direito. Revista Ciência e
Cultura. São Paulo: SBPC, dez. de 2006, v. 58, n. 4, p. 36-38.
GIORDANI, Mário Curtis. História da Grécia. 3
a.
ed. Petrópolis: Vozes, 1984.
GOLF, Jacques Le. Il corpo nel Medioevo. Trad. Fausta Cataldi Villari. Bari:
Laterza, 2007. Original: “Une histoire Du corps au Moyen Âge”.
207
GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 2ª. ed. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1994.
GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. São Paulo:
RT, 1967.
______. Ensaios de direito civil e de direito do trabalho. Rio de Janeiro: Aide,
1986.
______; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do trabalho. 12ª. ed. Rio de Ja-
neiro: Forense, 1991.
GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. 2ª. ed. São Paulo: Ática, 1991.
______. O conceito de modo de produção e a pesquisa histórica. In: LAPA, Jo
Roberto do Amaral (org.). Modos de produção e realidade brasileira. Pe-
trópolis: Vozes, 1980, p. 43-65.
GOULART, Rodrigo Fortunato; VILLATORE, Marco Antônio César. Proteção ao tra-
balhador economicamente dependente: propostas para um novo contrato de traba-
lho. Anais do XVII Congresso Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direi-
to – CONPEDI. Brasília-DF, nov. 2008. No prelo.
GUARINELLO, Norberto Luiz. Cidades-Estado na Antiguidade Clássica. In: PINSKY,
Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). História da cidadania. 4ª. ed. São Paulo:
Contexto, 2008, p. 29-47.
GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro culos de latifúndio. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1968.
GUIMARÃES, Carlos Magno. A negação da ordem escravista: quilombos em Mi-
nas Gerais no século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988.
HEROS PÉREZ ALBELA, Alfonso de los. La frontera entre el trabajo subordinado y
el trabajo independiente. Boletín Mexicano de Derecho Comparado, n. 105, Méxi-
co, set./dez. 2002, p. 979-1000.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 1991.
HOLANDA, rgio Buarque de. Raízes do Brasil. 18ª. ed. Rio de Janeiro: José O-
límpio, 1984.
208
HOORNAERT, Eduardo. As comunidades cristãs dos primeiros culos. In:
PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). História da cidadania. 4ª. ed.
São Paulo: Contexto, 2008, p. 81-95.
INSTITUTAS DO JURISCONSULTO GAIO. Trad.: CRETELLA JÚNIOR, José;
CRETELLA, Agnes. São Paulo: RT, 2004.
IRTI, Natalino. Dialogo e accordo. Analisi di una crisi. In: IRTI, Natalino e outros.
Contratto e lavoro subordinato: il diritto privato alle soglie del 2000. Padova: Ce-
dam, 2000.
ITÁLIA. Régio Decreto, 16 marzo 1942, n. 262. Disponível em: <
http://www.jus.unitn.it/cardozo/Obiter_Dictum/codciv/Codciv.htm >. Acesso em: 29
de janeiro de 2009.
KROTOSCHIN, Ernesto. Tratado práctico de derecho del trabajo. Buenos Aires:
Depalma Editor, 1955.
LA CUEVA, Mario de. Derecho mexicano del trabajo. 3ª. ed. México: Porrua, 1949.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Texto estabeleci-
do por Jacques Alain Miller, versão brasileira de Ary Roitman. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1992. Original: “Le séminaire de Jacques Lacan, livre XVII: L’envers de
La psychanalyse”.
LAMARCA, Antônio. Contrato individual de trabalho. São Paulo: RT, 1969.
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
______. Os Escravos e seus Direitos. In: NEDER, Gizlene. História & direito: jo-
gos de encontros e transdisciplinariedade. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
LESSA, Sérgio. Mundos dos homens: trabalho e ser social. o Paulo: Boitempo,
2002.
LIMA, Eurenice. Toyota: a inspiração japonesa e os caminhos do consentimento. In
ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo:
Boitempo, 2006, p. 115-145.
LIPOVETSKY, GILLES. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hi-
perconsumo. Trad.: Machado, Maria Lucia. São Paulo: Cia. das Letras, 2007. Origi-
nal: “Le bonheur paradoxal – Essai sur la société d’hyperconsommation”.
209
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São
Paulo: Ibrasa, 1963.
MACHADO, Sidnei. Trabalho escravo e trabalho livre no Brasil alguns paradoxos
históricos do Direito do Trabalho. Revista da Faculdade de Direito da Universida-
de Federal do Paraná. Curitiba, v. 38, 2003, p. 151-158.
MALATESTA, Nicola Framarino del. A lógica das provas em matéria criminal.
Trad. Waleska Girotto Silverberg. Campinas: Conan, 1995.
MARANHÃO, Délio. Direito do trabalho. 14ª. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1987.
MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris, 2003.
MARQUESE, Rafael de Bivar. Administração e escravidão: ideias sobre a gestão
da agricultura escravista brasileira. São Paulo: Hucitec, 1999.
______. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o contro-
le dos escravos nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Trad. Reginaldo Sant’Anna. 23ª.
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. Original: “Das Kapital: Kritik der poli-
tischen Ökonomie Buch”.
MASSOLO, Miguel. Do inconsciente ao discurso. Trad.: Francisco Settineri. In: AP-
POA Associação Psicanalítica de Porto Alegre. O valor simbólico do trabalho e o
sujeito contemporâneo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2000, p. 235-240.
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1990.
MAZZONI, Giuliano. Manuale di diritto del lavoro. 6ª. ed. Milano: GiufEditore,
1988.
MELHADO, Reginaldo. Poder e sujeição. São Paulo: LTr, 2003.
______. Mundialização, neoliberalismo e novos marcos conceituais da subordina-
ção. In: COUTINHO, Aldacy Rachid; DALLEGRAVE NETO, José Affonso
(Coord.). Transformações do direito do trabalho. Curitiba: Juruá. 2000, p.
77-94.
210
MÉXICO. Ley Federal del Trabajo, de 1º de abril de 1970. Disponível em: <
http://www.cddhcu.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/125.pdf>. Acesso em: 29 de janeiro de
2009.
MORAES FILHO, Evaristo de; MORAES, Antônio Carlos Flores de. Introdução ao
direito do trabalho. 8ª. ed. São Paulo: LTr, 2000.
MOURA, Denise A. Soares. Saindo das sombras: homens livres no declínio do es-
cravismo. Campinas: Unicamp, 1998.
NAHAS, Thereza C. Considerações a respeito da relação de trabalho a questão
do trabalho semidependente. Revista LTr. São Paulo, v. 71, n.º 9, setembro de
2007, p. 1090-1093.
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na
perspectiva civil-constitucional. 2
ª.
ed. Curitiba: Juruá, 2006.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 9ª. ed. São Paulo:
Saraiva, 1991.
______. Relação de emprego: natureza jurídica. In: DUARTE, Bento Herculano (co-
ord.). Manual de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1998.
NASSIF, Eliane Noronha. Fundamentos da flexibilização: uma análise de para-
digmas e paradoxos do Direito e do Processo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001.
NORONHA, Eduardo G. “Informal”, ilegal, injusto: percepções do mercado de traba-
lho no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais. o Paulo, v. 18, n. 53, ou-
tubro de 2003, p. 111-129.
O’CONNELL, Robert L. História da guerra: armas e homens, uma história da guer-
ra, do armamento e da agressão. Trad. Telma Costa. Lisboa: Teorema, 1995. Origi-
nal: “Of Arms and Men, A History of War, Weapon and Aggression”.
PANAMÁ. Decreto de Gabinete 252, de 30 de dezembro de 1971 : modificado pela
Ley 44 de 1995, pelo Decreto ley 8, de 2 de julho de 1997, e pela la Ley 45, de 2 de
junho de 1998. Disponível em: < http://www.legalinfo-
panama.com/legislacion/laboral/codtrabA1.pdf>. Acesso em: 29 de janeiro de 2009.
PARAGUAY. Ley 213, publicada em 29 de outubro de 1993. Disponível em: <
http://www.ilo.org/dyn/natlex/docs/WEBTEXT/35443/64905/S93PRY01.htm>. Aces-
so em: 29 de janeiro de 2009.
211
PARANHOS, Adalberto. O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no
Brasil. São Paulo: Boitempo, 1999.
PAULA, Ana Paula Paes de. Tragtenberg revisitado: as inexoráveis harmonias
administrativas. Disponível em <http://www.anpad.org.br/enanpad/2000/dwn/ enan-
pad2000-org-663.pdf>. Acesso em: 28 de setembro de 2007.
PERDIGÃO MALHEIRO, Agostinho Marques. A escravidão africana no Brasil. São
Paulo: Obelisco, 1964.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Fo-
rense, 1998.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucio-
nal. Trad.: Maria Cristina de Cicco. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
PERSIANI, Mattia; PROIA, Giampiero. Contratto e rapporto di lavoro. 3ª. ed. Pa-
dova: Cedam, 2004.
PIGNON, Dominique; QUERZOLA, Jean. Ditadura e democracia na produção. In:
GORZ, André (Org.). Crítica da divisão do trabalho. Trad. Estela dos Santos A-
breu. 2ª ed. Brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 91-138.
PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. 13ª. ed. São Paulo: Contexto, 1994.
PINTO, Maria Inês Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência: a vida do traba-
lhador pobre na cidade de São Paulo, 1890-1914. São Paulo: Edusp, 1994.
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Trad.: Fanny
Wrobel. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000. Original: “The great transformation”.
POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Trad. Milton Ama-
do. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. Tradução de: “The Open Society and Its Enemis”,
de 1957, atualizada e revista em 1973.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
REPÚBLICA DOMINICANA. Ley 16, de 29 de maio de 1992. Disponível em: <
http://www.set.gov.do/descargas/download/cod001.pdf>. Acesso em: 29 de janeiro
de 2009.
212
RINALDI, Doris. A subjetividade hoje: os paradoxos da servidão voluntária. Revista
Ágora: estudos em teoria psicanalítica. Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, jan./jun. 2001, p.
9-22.
RIVAS, Daniel. La subordinación: criterio distintivo del contrato de trabajo. Monte-
video: Fundación de Cultura Universitaria, 1995.
ROMITA, Arion Sayão. Contrato de trabalho: formação e nota característica. In:
GONÇALVES, Nair Lemos e outros (coord.). Curso de direito do trabalho. São
Paulo: LTr, 1983, p. 231-240.
ROSANVALLON, Pierre. A crise do Estado-providência. Trad. Joel Pimentel de
Ulhôa. Goiânia: Editora da UFG; Brasília: Editora da UnB, 1997. Original: “La crise
de l’Etat-providence”.
RUSSOMANO, Mozart Victor. O empregado e o empregador no direito brasileiro.
6ª. ed. São Paulo: LTr, 1978.
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Os princípios contratuais: da formação liberal à
noção contemporânea. In: RAMOS, Cármen Lúcia Silveira Ramos (Coord.). Direito
civil constitucional: situações patrimoniais. Curitiba: Juruá, 2002.
SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira, trabalho livre e cotidiano. São
Paulo: Edusp, 2005. São Paulo: Edusp, 2005.
SANSEVERINO, Luisa Riva. Curso de direito do trabalho. Trad. Élson Guimarães
Gottschalk. São Paulo: LTr/Editora USP, 1976.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício
da experiência. 3ª. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
SANTOS, Roberto Araújo de Oliveira. Trabalho e sociedade na lei brasileira. São
Paulo: LTr, 1993.
SARAIVA, Francisco Rodrigues dos Santos. Dicionário latino-português. 10ª. ed.
Rio de Janeiro: Garnier, 1993.
SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil: aspectos da publi-
cização do Direito Privado. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 375, set/out de
2004, p. 103-139.
213
SILVA, Felipe Luiz Gomes e. Apropriação da subjetividade da classe trabalhado-
ra: burocracia e autogestão. Disponível em <http://www.psicologia.
com.pt/artigos/textos/A0271.pdf>. Acesso em: 28 de setembro de 2007.
SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia políti-
ca da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
______. Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira. In: SOUZA, Jessé
(org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática con-
temporânea. Brasília: Editora UnB, 2001, p. 283-327.
SPENCER, Herbert. Da liberdade à escravidão. Trad.: Julio de Mattos. Lisboa: Li-
vraria Clássica Editora, 1904.
SUPIOT, Alain. Crítica del derecho del trabajo. Madrid: Ministerio de Trabajo y
Asuntos Sociales, 1996. Trad. José Luis Gil y Gil. Título original: Critique du droit du
travail.
______. Trabajo y empleo: trasformaciones del trabajo y futuro del derecho del tra-
bajo en Europa. Valencia: Tirant lo blanch, 1999.
______. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do direito. Trad. Ma-
ria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
Original: “Homo juridicus – Essai sur le function anthropologique du droit”.
SÜSSEKIND, Arnaldo. Entrevista com Arnaldo Süssekind. Revista Estudos Histó-
ricos. Rio de Janeiro, v. 6, n. 11, 1993, p. 113-127. disponível em <
http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/117.pdf>. Acesso em: 25 de janeiro de 2009.
SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; LIMA TEIXEIRA,
João de. Instituições de direito do trabalho. 18ª. ed. São Paulo: LTr, 1999.
TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brasileiro. o Paulo: Cia das
Letras, 2001.
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Trad.:
Adail Ubirajara Sobral; Dinah de Abreu Azevedo. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2005.
Título original: “Sources of the Self – The Making of the Modern Identity”.
TAYLOR, Claire. Da escravidão à falta de liberdade na Europa Ocidental durante a
Alta Idade Média. In: LIBBY, Douglas; FURTADO, nia Ferreira (Orgs.). Trabalho
livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVII e XIX. o Paulo: Annablu-
me, 2006, p. 21-55.
214
TONI, Míriam de. Visões sobre o trabalho em transformação. Revista Sociologias.
Porto Alegre, ano 5, n. 9, jan./jun. 2003, p. 246-286.
TRONCARELLI, Barbara. Il corpo nella prospettiva antiriduzionistica della
complessità. Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, Giuffrè, v. V, out-dez
de 2002, p. 535-564.
VERNANT, Jean-Pierre; NAQUET, Pierre-Vidal. Trabalho e escravidão na Grécia
antiga. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1989. Original: “Travail & Es-
clavage em Grece Ancienne”.
VIANNA, Luiz Werneck. Caminhos e descaminhos da revolução passiva à brasi-
leira. Revista Dados. Rio de Janeiro, v. 39, nº. 3, 1996. disponível em <
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0011-52581996000300004&script=sci_arttext&
tlng=en>. Acesso em: 25 de janeiro de 2009.
VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Relação de emprego: estrutura legal e supos-
tos. São Paulo: Saraiva, 1975.
VILLATORE, Marco Antônio; SANTOS, José Aparecido dos. Trabalho e corpo: su-
jeição do trabalhador e privacidade. In: XVII Encontro Preparatório para o Congres-
so Nacional do CONPEDI, 2008, Salvador. Anais do XVII Encontro Preparatório
para o Congresso Nacional do CONPEDI. Fundação Boiteux: Florianópolis, 2008.
v. 1. p. 5.209-5.229.
WIKIPÉDIA. Desenvolvido pela Wikimedia Foundation. Apresenta conteúdo enciclo-
pédico. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Revolu
%C3%A7%C3%A3o_Hopl%C3% ADtica&oldid=5572567>. Acesso em: 29 de janei-
ro de 2009.
WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e direito. 2ª. ed. São Paulo: RT,
1995.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo