Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ - UFC
Centro de Humanidades
Departamento de Filosofia
Marcos Onete Fontenele Moreira
A LINGUAGEM COMO GRANDEZA TRANSCENDENTAL EM
KARL-OTTO APEL
FORTALEZA - 2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
1
RESUMO: O autor apresenta a filosofia de Apel articulada a partir do confronto da
filosofia transcendental kantiana com a reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia
do século XX. Para Apel, a filosofia de Kant tem que ser confrontada com a linguistic
turn. Para ele, trata-se de compreender que a pergunta transcendental implica
necessariamente a pergunta pela linguagem humana como condição de
possibilidade e validade da compreensão intersubjetiva e estabelecer, a partir do
nível atingido hoje pela reflexão epistemológica, o jogo de linguagem próprio à
filosofia. Por isso, em virtude de uma articulação teórica mais adequada através da
compreensão da centralidade da linguagem na reflexão filosófica, a filosofia está
apta a enfrentar, sem ingenuidade, os desafios do mundo contemporâneo.
Palavras-chave: Filosofia Crítica, Pragmática Transcendental, Fundamentação
Reflexiva
ABSTRACT: The author presents the Apel’s philosophy from the confrontation of the
kant’s philosophy transcendental with the linguistic-pragmatic overturn in the
philosophy of the XX century. To Apel, the Kant’s philosophy has to be faced with
linguistic turn. To him, it means to understand that the transcendental question
necessarily implies for the language human being question as a condition to the
possibility and validity of the intersubjective understanding and to estabilish, from the
nowadays reached level for the epistemological reflection, the proper language
game, related to the philosophy. Therefore, according to a theorical articulation more
elaborated thought comprehension of the language in the philosophical reflection, the
philosophy is apt to face, without naivety, the challenges of the contemporary world.
Key words: Critical Philosophy, trancedental pragmatic, reflexive fundamentation
ads:
2
Marcos Onete Fontenele Moreira
A LINGUAGEM COMO GRANDEZA TRANSCENDENTAL EM
KARL-OTTO APEL
Dissertação apresentada à Universidade Federal
do Ceará como requisito parcial para a obtenção
do título de mestre em Filosofia.
Orientador : Prof Dr. Manfredo Araújo de Oliveira
Fortaleza - 2008
3
Marcos Onete Fontenele Moreira
A LINGUAGEM COMO GRANDEZA TRANSCENDENTAL EM
KARL-OTTO APEL
Dissertação apresentada à Universidade Federal do Ceará como requisito parcial para a
obtenção do título de mestre em Filosofia.
Dissertação aprovada em ____/____/______
Orientador (a):
________________________________________________________
Prof. Dr. Manfredo Araújo de Oliveira
Universidade Federal do Ceará– UFC
Examinador (a): ___________________________________________________
Prof. Dr. Kléber Amora
Universidade Federal do Ceará - UFC
Examinador (a): ___________________________________________________
Prof. Dr. José Maria Arruda
Universidade Federal do Ceará - UFC
Examinador (a): ___________________________________________________
Prof. Dr. Regenaldo da Costa
Universidade Estadual do Ceará - UECE
Coordenador (a) do Curso:
_____________________________________________________
Prof. Dr. Odílio Aguiar
4
SUMÁRIO
Introdução...................................................................................................................05
1. A transformação kantiana da filosofia..................................................................08
1.1 A especificidade da filosofia para Kant................................................................14
1.2 O conceito de transcendental em Kant................................................................17
1.3 O solipsismo kantiano, segundo Apel..................................................................26
1.4 O caráter irreflexivo da fundamentação transcendental em Kant, segundo
Apel......................................................................................................................30
2. Karl-Otto Apel e a linguagem como mediadora da reflexão transcendental........32
3. A linguagem na sua concepção transcendental-hermenêutica............................41
3.1 A posição do problema........................................................................................41
3.2 A concepção filosófica tradicional de linguagem.................................................45
3.3 A única forma de se fazer filosofia para Apel: a filosofia transformada a partir do
conceito transcendental-hermenêutico de linguagem..........................................62
4. O caráter reflexivo da linguagem..........................................................................70
4.1 A linguagem como esfera ineliminável de todo sentido.......................................72
4.2 A linguagem como meio para a fundamentação última.......................................76
4.3 A especificidade do saber filosófico: fundamentação última ou incondicional x
fundamentação condicional.................................................................................78
Conclusão...................................................................................................................89
Bibliografia..................................................................................................................92
5
INTRODUÇÃO
A filosofia, desde os seus primórdios, sempre se entendeu como um
saber responsável, capaz de justificar sua pretensão de dizer como o mundo é, de
explicitar as diversas conexões existentes entre as esferas da realidade. Era um
discurso racional, em primeiro lugar, sobre as indagações humanas a respeito do
cosmos, sobre o lugar que o homem ocupa nele e, posteriormente, sobre os grandes
problemas e inquietações que afligiam o ethos humano, na medida em que se
discutia sobre como o homem deveria agir para ser feliz, para ser um ser ético,
numa palavra, para atingir o bem. Essas discussões afloram, emergem em um
contexto de crise da sociedade grega de então. A essa crise grega, coube à filosofia
envidar esforços para elevar o saber humano a um patamar conceitual nunca antes
imaginado.
No entanto, esse patamar conceitual sofreu um duro golpe na
modernidade, levando a um total desconforto na contemporaneidade, uma vez que a
filosofia é hoje completamente impotente frente ao saber científico, haja vista ser a
ciência considerada o único saber possível e exeqüível. Quando muito, a filosofia
pode ser entendida enquanto epistemologia, uma vez que só lhe resta ser um
discurso sobre o saber científico, um discurso mediador entre o saber comum e o
verdadeiro saber. A ciência, essa sim, é o grande corifeu do mundo hodierno e todo
saber que ousa não seguir o seu método, seus procedimentos soa como, no mínimo,
ingênuo.
A filosofia como saber autônomo, como sistema racional de consideração
da totalidade do real, capaz de dar uma resposta racional aos problemas e conflitos
humanos, teve em Hegel o último grande pensador sistemático, que se esforçou em
tematizar a razão universal, absoluta, presente nas diversas dimensões dos mundos
humano e natural. Em Hegel, o saber filosófico teve como tema de reflexão a Razão,
que se faz presente nas várias dimensões da realidade. Nele, a filosofia era capaz
de tematizar os vínculos e as conexões entre os diversos níveis da realidade.
De lá para cá, a filosofia tem sido ou tem se comportado como um
apêndice ou, melhor dizendo, como um discurso que prepara o terreno para o único
saber tido como legítimo, porque capaz de controlar seu discurso sobre o real, pelo
recurso àquilo que Habermas chamou de racionalidade procedimental. Nesse
6
patamar teórico, que se vai caracterizando e ganhando corpo na modernidade até
atingir a maioridade no mundo hodierno, não espaço para grandes narrativas,
para metas-discursos, para uma Razão forte e todo esforço no sentido de tematizar
uma razão universal soa como tentativa de um retorno a uma forma religioso-
metafísica, característica da razão pré-moderna.
É diante desse desafio que Apel emerge no contexto filosófico
contemporâneo como aquele que ousou discordar das teses das filosofias do século
XX, notadamente as da analítica e da hermenêutica e, de novo, põe o discurso
filosófico como saber responsável, universal e capaz de ser novamente filosofia
primeira, uma vez que fundamentada em última instância.
Escolhemos um quadro teórico específico, a filosofia pragmático-
transcendental de Apel, para enfrentar o problema aludido. Para Apel, a única
filosofia capaz de enfrentar o ambiente cético e relativista vivenciado hoje é a
filosofia transcendental modificada a partir das duas reviravoltas que marcaram o
século XX, a saber: as reviravoltas lingüística e pragmática.
A filosofia transcendental kantiana é apresentada aqui a partir da leitura
que Apel faz dela, principalmente quando discorremos sobre o solipsismo
metodológico e sobre a o reflexividade da sua filosofia. Para Apel, a filosofia de
Kant tem que ser reformulada a partir do confronto com a linguistic turn. Por isso, em
virtude de uma articulação teórica mais adequada através da compreensão da
centralidade da linguagem na reflexão filosófica, a filosofia está apta a enfrentar sem
ingenuidade os desafios do mundo presente. E é isso que Apel faz. Para ele, trata-
se de compreender que a pergunta transcendental implica necessariamente a
pergunta pela linguagem humana como condição de possibilidade e validade da
compreensão intersubjetiva e estabelecer, a partir do nível atingido hoje pela
reflexão epistemológica, o jogo de linguagem próprio à filosofia.
A crítica de Apel às principais correntes da filosofia hoje, a saber, analítica
e hermenêutica, mostra que ambas as correntes filosóficas não foram capazes de
explicitar em toda a sua abrangência o caráter reflexivo da linguagem e, por isso,
não foram capazes de assumir o específico da reflexão filosófica, que é a questão
da auto-justificação das pretensões de validade.
Para Apel, essas posições filosóficas substituem a tarefa de auto-
justificação transcendental pela forma lógica indizível, pelo pluralismo dos sistemas
de referência, pelos múltiplos jogos de linguagem contingentes ou pela história como
7
acontecimento do ser mediado lingüisticamente na tradição. O problema é que, para
Apel, em filosofia não basta descrever o que acontece quando usamos a linguagem;
não basta explicitar o processo genético de constituição de sentido. É necessário
retomar a questão acerca da validade daquilo que enunciamos; é necessário
perguntar se o sentido constituído pode ser tomado como sentido válido. Isso implica
um outro nível de reflexão sobre nossa práxis lingüística. A práxis comunicativa se
torna reflexiva e se converte em práxis argumentativa.
Apel faz essa reflexão radicalizando a posição da filosofia transcendental
kantiana, assumindo os elementos positivos da virada lingüístico-pragmática, a
saber: o a priori da linguagem e o a priori da comunidade de comunicação. Por isso,
Apel fala de transformação da filosofia transcendental.
O propósito desse trabalho é discorrer sobre o grande debate que Apel
trava com as principais correntes do seu tempo, a fim de mostrar que o discurso
filosófico é um saber responsável e que, para fundamentar suas teses, necessita ter
um método de fundamentação próprio, diferente do usado pela ciência, que se
por um retorno reflexivo sobre o discurso, sobre a própria linguagem, a fim de chegar
a algo ineliminável na vida humana: as condições pressupostas que tornam todo
discurso racional válido.
Apel pretende, portanto, restabelecer a razão como algo intranscendível
na vida humana, mostrando aos relativistas e céticos, que eles sempre pressupõem
aquilo que querem negar. E isso só é possível, segundo Apel, através de uma
filosofia transcendental reflexiva da intersubjetividade.
8
1. A TRANSFORMAÇÃO KANTIANA DA FILOSOFIA
O pensamento de Kant
1
, cuja influência ainda hoje percebemos com
clareza, é um legítimo filho da modernidade. Sua filosofia significou uma verdadeira
revolução, para usar uma expressão cara a Kant, no pensamento ocidental, tendo-
se atingido, com ela, o ápice de um processo que se iniciara
2
no fim da idade média,
com o nominalismo medieval, passando por Descartes, tendo recebido neste uma
maior sistematização, cujo centro é o sujeito. O homem é considerado na
modernidade senhor e possuidor da natureza
3
e é a essa tradição que Kant vai filiar-
se. O homem, enquanto subjetividade constituidora de sentido, o o mundo, o
cosmos, enquanto coisas em si, enquanto
ειδος
que se pode captar, que é inteligível
à razão humana, é o grande tema da filosofia teórica.
Kant se sente atônito e ao mesmo tempo provocado com as conclusões a
que chegara David Hume. Ele diz
4
que embora Hume se tenha detido praticamente
em um único conceito da metafísica, a relação necessária entre o conceito de causa
e efeito, ele acertou o alvo, pois obrigando a razão a responder com que fundamento
plausível ela explica o fato de um fenômeno ter que ser sempre seguido por outro,
como se houvesse entre eles alguma necessidade lógica; Hume não obteve
nenhuma resposta racional, nenhuma justificativa para tal prática, senão o puro
hábito.
O que está em questão aqui, e que é criticado veementemente por Hume
e, a partir dele, por todos os empiristas, é algo que é debatido desde as origens da
filosofia ocidental e que pode ser resumido através da seguinte pergunta: qual a
relação existente, se é que há, entre pensamento, linguagem e realidade
5
? O que
1
Cabe lembrar, como dissemos na introdução, que as ponderações sobre o pensamento kantiano,
notadamente as que versam sobre o solipsismo metodológico e a não-reflexividade de sua filosofia,
são feitas a partir das considerações da filosofia apeliana.
2
Sobre as origens do pensamento moderno, veja-se: LIMA VAZ, H. C. Escritos de filosofia VII:
Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002. Cf, OLIVEIRA, M. A. de. A filosofia na crise da
modernidade. São Paulo: Loyola, 1989, p. 30.
3
Cf, DESCARTES. Discurso do método. Sexta parte, trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior, São
Paulo: Nova Cultural, 1991, col. Os pensadores, p. 63.
4
Cf, KANT. Prolegómenos a toda a metafísica futura. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1987, A
8.
5
Sobre a relação entre pensamento, linguagem e realidade, cf. OLIVEIRA, M. A. de. Filosofia: Lógica
e Metafísica. In: IMAGUIRE, G. & ALMEIDA. C. L. S. & OLIVEIRA, M. (org.). Metafísica
contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 161-190. A grande questão que se põe aqui é a de como
é possível o pensamento, a linguagem nos proporcionar um discurso verdadeiro sobre a realidade,
9
garante, de antemão, que o pensamento possa falar sobre a realidade e qual a
garantia que tenho da verdade do meu discurso? A filosofia, ao longo da sua
história, deu várias respostas a essa pergunta, e a modernidade não se furtou a
essa tarefa. Ela também refletiu tal relação a ponto de gestar uma nova metafísica
6
.
Essa nova metafísica da modernidade “(...) põe no seu cerne o pensamento como
‘princípio do mundo’, ou seja, retoma a tese platônica de que a apreensão
verdadeira da realidade se faz através de conceitos e idéias, que captam o ser
mesmo de tudo (...)”
7
. Essa nova metafísica “(...) faz refluir para o sujeito o princípio
último da fundamentação do ser”
8
, ela traz para primeiro plano o sujeito como
aquele ser cuja tarefa principal, pelo menos no plano gnosiológico, consiste em
gerar sentido, em estabelecer o pensamento do sujeito como fonte última do sentido
da realidade.
À metafísica pré-kantiana voltar-se-á Hume, embora ele, como dissemos
acima, aborde um único conceito do majestoso edifício da metafísica, a saber, a
noção de causa e efeito. Para Hume
9
, qualquer ser pode ter a sua existência
atestada mediante argumentos derivados de sua causa ou de seu efeito, e, por sua
vez, estes argumentos provêm inteiramente da experiência, na medida em que
somente a experiência nos permite tal associação. O ponto crucial é saber
(...) como emerge para nós a idéia de uma regularidade necessária e
universal no curso da natureza, pois a simples observação repetida
de uma regularidade entre dois eventos não garante sua vinculação
necessária, já que a esfera do sensível é o lugar do contingente e do
particular
10
.
dizer o que as coisas são. Sobre isso, cf.: SANTOS, L. H. L. dos. A harmonia essencial. In: NOVAES,
A. (org.). A crise da Razão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 437-455. Cf. também:
SANTOS, L. H. L. dos. A essência da proposição e a essência do mundo. In: WITTGENSTEIN, L.
Tractatus lógico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 1994, p. 11-112.
6
Para Lima Vaz, a nova metafísica da modernidade encontra suas raízes na obra do genial Duns
Scot, na medida em que, a partir dele, percebe-se a mudança na concepção metafísica de ser, uma
vez que na sua obra se privilegia a noção unívoca de ser em contraposição à noção polissêmica da
tradição. Para essa nova metafísica, a noção de ser, como possibilidade, prevalecerá sobre a
concepção de ser, entendida como existência. Cf., LIMA VAZ, H. C. de. A Metafísica na Modernidade.
In: Escritos de Filosofia III. Filosofia e Cultura, São Paulo:Loyola, 1997, p. 350-357.
7
Cf., OLIVEIRA, M. A. de. Filosofia: Lógica e Metafísica, Op.cit., p.161.
8
Cf. LIMA VAZ, H. C. de. A Metafísica na Modernidade. In: Escritos de Filosofia III.Filosofia e Cultura,
São Paulo:Loyola, 1997, pp. 344-345.
9
Cf. HUME, D. Investigação acerca do entendimento Humano. Trad. de Anoar Aiex, São Paulo: Nova
Cultural, 1992, Col. Os pensadores, p. 144. Sobre o ceticismo como uma questão central no
pensamento de Hume, Cf. SMITH, P. J. O ceticismo de Hume. São Paulo: Loyola, 1995. Cf., também,
do mesmo autor: Ceticismo filosófico, São Paulo: EPU, Curitiba: Editora da UFPR, 2000.
10
Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Para além da fragmentação. Pressupostos e objeções da racionalidade
dialética contemporânea. São Paulo: Loyola, 2002, p. 95. Veja-se, nesta obra, a bibliografia sobre o
ceticismo e a filosofia humeana, citada às pp. 112-119.
10
Tudo pode ser possível, qualquer derivação parece legítima, diz Hume, se
para isso usamos apenas raciocínios a priori. Por conseguinte, a aparente
necessidade existente no conhecimento entre causa e efeito não é senão, para
Hume,
11
fruto do costume que existe em nós de presenciarmos um fato e logo em
seguida vermos outro, não existindo nenhum tipo de raciocínio a priori que possa
justificar tal prática, sendo ela, portanto, inteiramente arbitrária.
A grande preocupação de Hume, de acordo com Kant
12
, era se o conceito
de causa e efeito poderia ser concebido pela razão a priori, independentemente de
toda experiência, de toda sensação. Numa palavra, qual a racionalidade imanente
ao conceito de causa e efeito? Como ele se legitima? Essa preocupação
fundamental de Hume interrompeu o sono dogmático de Kant
13
e deu, às suas
investidas no âmbito da filosofia especulativa, uma orientação completamente
diferenciada. No entanto, Kant não se satisfaz pura e simplesmente com o ceticismo,
não se rende aos argumentos de Hume e procura ele mesmo percorrer esse mesmo
caminho para se certificar de que seu predecessor não tenha acaso vacilado na sua
argumentação, acaso não tenha ele feito algumas pressuposições indevidas.
Em oposição à filosofia humeana, temos as certezas da metafísica
dogmática, que foram gestadas ao longo da filosofia ocidental e atingiram seu cume
com Wolff, cujo pensamento expressa a perfeição da tradição racionalista
14
. Tal
tradição tinha como base de sustentação a afirmação segundo a qual era acessível
ao pensamento humano o conhecimento das idéias de Deus, da alma e da liberdade
humana, sendo que a prova da existência de Deus, o conhecimento de um ser
supremo seria a garantia, o fundamento do meu conhecimento do mundo e da sua
verdade
15
. À metafísica, com efeito, espelhando-se no método matemático-
cartesiano de Wolff, era assegurado um conhecimento perfeito, que coroava a
episteme humana. E é justamente essa tradição de pensamento, gestada ao longo
do pensamento ocidental e tida como inabalável, que será abordada pela crítica
empirista de Hume. Se antes tínhamos as certezas da metafísica dogmática, que
11
Cf. HUME. Op. cit. pp. 79- 81
12
Cf. KANT. Op. cit. A 10. Cf. também: KANT. Crítica da Razão Pura, trad. Manuela Pinto dos Santos
e Alexandre Fradique Morujão, 3ª. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, B 19s.
13
Cf, Kant. Op. cit. A 13. Cf, também, SALGADO, J. C. A idéia de justiça em Kant. Seu fundamento
na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1986, p. 86.
14
Cf. M ORUJÃO, A. F. Crítica da Razão Pura. Prefácio da tradução portuguesa, Op. cit. p. IX.
15
Sobre esse ponto veja-se, DESCARTES. Discurso do método. Quarta e Quinta partes, p. 50s.
11
nos parecia deixar numa posição confortável e confiante a respeito do alcance da
razão humana, agora temos o ceticismo de Hume, que simplesmente proíbe
qualquer metafísica, dando-nos a nítida impressão de que um abismo se abriu à
nossa frente no terreno do conhecimento. São dois extremos. Kant não se satisfaz
nem com o ceticismo, uma filosofia que nada promete; nem com o dogmatismo, uma
filosofia que nada ensina
16
.
Kant procura, então, elaborar uma filosofia que escape a esses extremos.
Uma filosofia que tenha como eixo de articulação, como núcleo duro, uma
investigação minuciosa sobre o que a razão pode conhecer, sobre o que é legítimo à
razão teórica a fim de que ela possa articular-se como episteme, sobre a natureza e
os limites da razão. Passa-se, então, com Kant, de uma teoria do ser, uma ontologia,
para uma teoria do conhecimento, uma epistemologia. A filosofia primeira agora não
é mais uma teoria sobre o ser, mas uma teoria sobre a estrutura da subjetividade
enquanto mediadora do meu encontro com o mundo.
O filósofo de nigsberg sente-se atormentado, inquieto com o caminho
incerto seguido pela metafísica, a mais antiga das ciências. A Matemática, desde os
gregos, diz Kant
17
, encontrou o caminho da ciência quando um homem operou uma
revolução no modo de pensar: descobriu que o tinha que seguir rigorosamente o
que via na figura do triângulo para conhecer suas propriedades;
que antes deveria produzi-la, ou construí-la, mediante o que pensava
e o que representava a priori por conceitos e que para conhecer, com
certeza, uma coisa a priori nada devia atribuir-lhe senão o que fosse
conseqüência necessária do que nela tinha posto, de acordo com
conceito
18
.
A Física, diz Kant, demorou bem mais para trilhar o caminho seguro da
ciência. pouco mais de um século, lograram os físicos compreender “que a
razão entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos”
19
, que é a
natureza que tem que responder às perguntas formuladas pelos físicos. Dessa
forma, os físicos, ao compreenderem que são eles que devem instigar a natureza a
dar as respostas às questões anteriormente postas, desencadearam uma verdadeira
16
Cf. KANT. Op. cit, A 38.
17
Cf. KANT. Crítica da razão pura. Prefácio da segunda edição. Trad. Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre Fradique Morujão, 3ª. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, B Xs.
18
Cf. KANT. Op. cit, B XII.
19
Cf, KANT. Op. cit, B XIII.
12
revolução no seu modo de proceder e puseram, dessa forma, os pés no caminho da
ciência.
Bem diferente é, segundo Kant, a história da Metafísica, pois até hoje ela
anda em trilhas e caminhos incertos, não faz mais que tatear, perdendo-se em puros
conceitos, fazendo uso da razão para conhecer algo que está além das suas
possibilidades e, portanto, distante do caminho seguro que conduz à ciência. Dessa
forma, a razão humana encontra-se em constantes apuros por suscitar problemas
que, embora não consiga evitá-los, pois são da sua própria natureza, não tem
condições de “dar resposta por ultrapassarem completamente as suas
possibilidades”
20
. Diante deste embaraço, diz Kant, a razão tem a oportunidade de
realizar a mais importante e, ao mesmo tempo, a mais difícil das suas tarefas: saber
os seus limites, julgar qual das suas pretensões são legítimas.
É com esse diagnóstico sombrio, e ao mesmo tempo desafiador, que Kant
se confronta com a metafísica e, com ela, com a filosofia do seu tempo. Ele tem
plena consciência da grande tarefa que o espera: levar a metafísica a trilhar o
caminho seguro da ciência. E aqui uma pergunta é crucial para Kant: por que a
metafísica ainda não encontrou o caminho da ciência? Será ele impossível à mais
antiga de todas as ciências?, indaga Kant. Sua resposta a essa pergunta e a
maneira original como ele a articula inaugura uma nova fase na filosofia de Kant
chamada de crítica, que tem sua primeira articulação na Crítica da Razão Pura.
A maneira de proceder dos matemáticos e dos físicos deve nortear a
metafísica na sua busca do caminho seguro que leva à ciência. Para Kant, esses
cientistas, ao procederem uma revolução nos seus métodos e, graças a isso, terem
conseguido que suas ciências saíssem do caminho errôneo, devem servir de
exemplo àqueles que desejam trilhar a estrada da ciência. Kant irá, com efeito,
aplicar o método da matemática e da física à metafísica, para ver se esta consegue
ingressar no caminho certo da ciência, atingindo o prestígio que deve ser tributado a
todo saber que consegue legitimar-se.
Toda tentativa de ampliar nosso conhecimento, de dar-lhe necessidade e
universalidade, de descobrir conceitos sintéticos a priori, no-lo ensina Kant
21
, foi
frustrada porque tinha como pressuposto a idéia segundo a qual o nosso
conhecimento devia regular-se pelos objetos. Ora, diz Kant, se os conceitos se
20
Cf. KANT. Op, cit. Prefácio da primeira edição, A VII.
21
Cf, KANT. Op. cit, BXVI; Cf, também, SALGADO, J. C. A idéia de justiça em Kant. Op, cit. p. 86.
13
guiarem pelos objetos, nos será permitido ver casos particulares e contingentes,
não nos sendo possível extrair dnenhum tipo de conhecimento necessário, nem
tampouco encontrar o caminho que conduz à ciência. Kant busca, então, o a priori
que se encontra na estrutura do sujeito cognoscente, pois é ele que torna o
conhecimento possível.
Kant opera, assim, a sua revolução na filosofia, denominada por ele
mesmo de revolução copernicana:
tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor
as tarefas da metafísica, admitindo que os objectos se deveriam
regular pelo nosso conhecimento, o que assim concorda melhor
com o que desejamos, a saber, a possibilidade de um conhecimento
a priori desses objectos, que estabeleça algo sobre eles antes de nos
serem dados
22
.
A preocupação de Kant é, com efeito, não com os objetos em si mesmos,
mas com o que possibilita o acesso a esses objetos.
aqui uma verdadeira mudança na maneira de Kant entender filosofia.
Filosofia, para ele, antes de tudo, é uma reflexão crítica sobre os limites da razão.
Na tradição metafísica racionalista anterior a Kant, pensava-se que era possível à
razão conhecer tudo, que não havia obstáculo para as suas pretensões, ela julgava
não ter limites para a sua atividade, mesmo sem antes ter feito qualquer tipo de
pergunta se essas pretensões se justificavam. A razão se transforma num
verdadeiro tribunal onde serão julgadas as suas pretensões de conhecer o real, ou,
para falar como a filosofia antiga, conhecer os primeiros princípios da realidade.
Pergunta-se sobre a legitimidade da razão de conhecer o mundo na sua essência,
como queriam Platão e toda a tradição que se formou a partir dele. Como se o
processo do conhecimento humano? São possíveis juízos sintéticos a priori, como
legitimar a física newtoniana? Eis as questões nas quais Kant irá debruçar-se e sua
resposta a elas dará uma nova tônica na maneira de se entender filosofia.
22
Cf, KANT. Op, cit, B XVI.
14
1.1 A ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA PARA KANT
Kant tem, de um lado, as pretensões da filosofia clássica de conhecer o
real na sua essência, de outro, o ceticismo de Hume que proíbe até mesmo o mais
certo dos princípios, o princípio de causalidade, dizendo que essa aparente
necessidade, longe de ser um princípio a priori, não passa na verdade de um hábito,
de puro princípio psicológico, fruto do mero bito, não havendo nele nenhum tipo
de necessidade lógica. Kant pretende recuperar a confiança na razão, mas para isso
opera uma verdadeira revolução na maneira de se entender filosofia.
Filosofia para Kant tem de ser crítica, tem de se perguntar pelos seus
limites, tem de se perguntar como se valida o conhecimento humano. Para Kant
existe uma resposta: podemos conhecer algo a priori se os objetos de uma
experiência possível se guiarem pela nossa faculdade de conhecer. Kant diz que é
preciso uma “... mudança de método na maneira de pensar, a saber, que
conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos”
23
, daí porque
somente dessa forma pode-se explicar a possibilidade de se conhecer algo a priori.
O sujeito encontra nos objetos aquilo que ele extrai de si próprio. Vale salientar
que pensando dessa forma a metafísica conseguirá encontrar o caminho da
ciência, no entanto uma conseqüência insólita se faz necessária: a experiência
possível é o limite do meu conhecimento, o se podendo ir além dela. É a
experiência que dá a matéria para o meu conhecimento.
Kant pretende com essa sua reviravolta na maneira de se entender
filosofia fundamentar, na verdade, um modelo bem específico da ciência da
natureza, a Física de Newton. Tem-se com isso uma verdadeira mudança na
maneira de se entender filosofia. Se na tradição metafísica racionalista a filosofia se
entendia a si mesma como ontologia, na medida em que por pura reflexão
conseguia captar os primeiros princípios que regiam toda a realidade, de agora em
diante a filosofia não tem mais uma pretensão tão vasta, o é mais um
conhecimento direto sobre o mundo, filosofia é agora a pergunta, que Kant
24
23
Cf,.KANT. Op, cit. B XVIII.
24
Cf,.KANT. Op, cit, B 19. Cf, SALGADO, J. C. A idéia de justiça em Kant. Op. Cit, p. 87.
15
classifica como o legítimo problema da razão pura, pela possibilidade de juízos
sintéticos a priori.
Essa resposta dada por Kant o coloca como um filósofo que entendeu
bem o espírito da modernidade. No pensamento clássico conhecimento é sinônimo
de visão
25
, de reprodução. Ressalta-se tão-somente a receptividade no processo do
conhecimento
26
. Para Kant conhecimento é notadamente produção. Vislumbra-se
aqui o sujeito como condição sine qua non no processo do conhecimento. O sujeito
emerge como doador de sentido aos objetos da experiência possível. Ele deixa de
ser um mero espectador na relação com a natureza e passa a ser o condutor no
processo do conhecimento: a relação com a natureza não desaparece, mas é
invertida. Se antes o homem recebia passivamente as aulas da natureza, agora ele
a obriga a responder as perguntas que ele mesmo elabora, através da estrutura da
subjetividade.
Para Kant isso se faz claro quando o homem recebe os dados amorfos da
experiência e os torna objeto de conhecimento. Aqui se revela a atividade da
subjetividade humana no processo do conhecimento: o homem recebe o material
que vem da experiência e o transforma em objeto de conhecimento, primeiro,
aplicando a esse material disforme as formas aprióricas da sensibilidade humana,
que são o espaço e o tempo, formando com isso uma representação. Tal
representação irá, por sua vez, e aqui temos o segundo ponto, servir de matéria para
a síntese a priori do entendimento, que unifica, liga a priori e submete a diversidade
“das representações à unidade da apercepção. Este é o princípio supremo de todo
conhecimento humano”
27
. Somente quando o material recebido pela sensibilidade
humana chega à unidade que é realizada no entendimento temos o objeto de
conhecimento. Conhecer é, portanto, ordenar o que é dado na intuição sensível
através das categorias do entendimento.
Percebe-se, em todo esse processo, a atividade criadora do homem. “O
pensamento de Kant representa a explicitação plena da função da subjetividade no
conhecimento humano”
28
, coroando toda uma tradição de pensamento que se
iniciara com Descartes. Destarte, Kant transforma a filosofia. Filosofia o é mais
discurso sobre o mundo considerado em sua essência, sobre as coisas em si;
25
Cf, OLIVEIRA, M. A. de. A filosofia na crise da modernidade. São Paulo: Loyola, 1989, p. 30.
26
Cf, OLIVEIRA, M. A. de. Filosofia transcendental e religião. São Paulo: Loyola, 1984, p. 66.
27
Cf, KANT. Op, cit. B 135.
28
Cf, OLIVEIRA, M. A. de. A filosofia na crise da modernidade. Op, cit., p. 33.
16
algumas perguntas da Metafísica não têm mais resposta na razão pura; suas
pretensões de conhecer Deus, a alma e a liberdade humana não têm mais
legitimidade teórica, pois a razão conhece agora seus limites, ela não pode mais
extrapolar os limites de uma experiência possível. Numa palavra, se todo nosso
conhecimento não deriva da experiência, todo ele se inicia, para Kant, com a
experiência
29
. A experiência é que me fornece o material que será transformado,
mediante as formas e conceitos a priori da subjetividade humana, em objeto de
conhecimento.
Temos assim a filosofia transformada no estilo kantiano: se antes a
filosofia estava preocupada com aquilo que o homem encontra no mundo, com as
causas supremas do real, Kant está preocupado
com a própria possibilidade do encontro à medida que ele é mediado
pela subjetividade humana e é esta perspectiva que vai mudar a
configuração da “ciência primeira”, que agora se vai realizar não
como pergunta pelo ente enquanto ente, mas como tematização da
subjetividade humana, como instância que constitui o real como
objeto para o homem
30
.
Esta é, para Kant, a tarefa da filosofia: explicitar a estrutura da
subjetividade humana que transforma os dados sensíveis da experiência em objeto
do conhecimento. O que se procura é, numa palavra, o a priori que diz respeito à
estrutura da subjetividade, que possibilita a experiência. O homem é a grande fonte
de sentido para o mundo, é ele o centro do processo do conhecimento, e não um
mero espectador.
Temos aqui uma mudança radical e isso mostra o quanto Kant entendeu
bem o espírito da modernidade. Toda essa mudança operada por ele na filosofia
está conectada com o espírito científico da modernidade, notadamente da Física
newtoniana. Dito de outra forma: à Física newtoniana cabe falar sobre o mundo,
cabe descrever os ‘mistérios’ do universo, explicar suas leis e a lógica subjacente a
elas; à filosofia kantiana cabe dizer como é possível ao homem falar sobre o mundo,
de que modo o homem consegue conhecer o mundo, como se o processo do
conhecimento. Numa palavra, às ciências cabe falar do mundo, à filosofia compete
dizer de que modo o homem consegue falar sobre o mundo e legitimar esse
29
Cf, KANT. Op, cit.,B 1.
30
Cf, OLIVEIRA, M. A. de. Op, cit, p.33
17
conhecimento, ou seja, põe-se aqui, como preocupação central, o problema da
validade como sendo a questão própria à filosofia
31
.
1.2 O CONCEITO DE TRANSCENDENTAL EM KANT
O conceito de transcendental em Kant
32
tem um sentido técnico, embora
sua variação semântica seja considerável. Ele o põe na função de adjunto
adnominal da palavra filosofia, e em outros substantivos tais como lógica, estética,
analítica, para expressar bem a mudança que esse termo quer representar na sua
filosofia.
33
Kant, dando uma definição geral, chama de transcendental “a todo o
conhecimento que em geral se ocupa menos dos objectos, que do nosso modo de
os conhecer, na medida em que este deve ser possível a priori
34
. Interessa ao
filósofo de Königsberg, num primeiro momento, não um acúmulo do conhecimento,
um acréscimo, mas apenas uma justificação dos princípios da síntese a priori, uma
crítica do próprio uso da razão, na medida em que esta decidirá sobre o valor de
todos os conhecimentos a priori. E isso para Kant é perfeitamente exeqüível
pelo facto de o nosso objecto não ser aqui a natureza das coisas,
que é inesgotável, mas o entendimento que julga a natureza das
coisas, e ainda o entendimento considerado unicamente do ponto de
vista dos nossos conhecimentos a priori...”
35
.
De acordo com Oliveira
36
, Kant usa a palavra transcendental em pelo
menos três sentidos: o primeiro sentido é o que é expresso acima como definição
geral, ou seja, com ele quer Kant tematizar as condições de possibilidade e validade
a priori do conhecimento humano. O importante aqui não é o objeto, mas como é
31
Sobre a questão da validade como o problema filosófico por excelência, veja-se: KANT. Prefácio à
Crítica da razão pura. Op. cit. B XIV-B XXIII. Veja-se, também, SALGADO, J. C. A idéia de justiça em
Kant. Op. Cit, p. 89. Cf, também, BONACCINI, J. A. A dialética em Kant e Hegel.
Ensaio sobre o
problema da relação entre ser e pensar. Natal: Editora da UFRN, 2000, p.34.
32
Sobre a tarefa e os limites da filosofia transcendental kantiana, Cf, OLIVEIRA, M. A. de. Para além
da fragmentação. Pressupostos e objeções da racionalidade dialética contemporânea. o Paulo:
Loyola, 2002, pp. 93-134, e a rica e exaustiva bibliografia citada às páginas 111-134.
33
Cf. CAYGILL, H. Dicionário Kant. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2000, verbete: transcendental.
Ver também: HÖFFE, O. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp.58-64.
34
Cf, KANT. Op, cit. B 25.
35
Cf, KANT. Op, cit, A 13
36
Cf, OLIVEIRA, M. A. de. Filosofia transcendental e religião. São Paulo: Loyola, 1984, p.63. Veja-se
também: HÖFFE, O. Immanuel Kant. Op. cit., p.58.
18
possível o conhecimento desse objeto. O segundo sentido vai expressar as
conquistas que alcançamos com esse tipo de consideração transcendental,
podendo-se falar em estética ou gica transcendentais. E em último lugar temos as
conseqüências a que se chega a partir do momento em que temos clareza a respeito
do que seja filosofia transcendental, sabendo-se diferenciar um uso legítimo da
razão pura de um uso abusivo, não justificado. Assim, Kant fala em dialética
transcendental, cuja tarefa não é senão combater a aparência dialética, numa
palavra, evitar o uso hiperfísico do entendimento e da razão, ou seja, um uso
ilegítimo.
A filosofia transcendental é, com efeito, para o pai das três críticas, a idéia
de uma ciência cuja tarefa é explicitar os princípios da razão, que tem, na crítica da
razão pura, a possibilidade de esboçar um plano programático. Essa nova ciência
não pode conter em seu seio nenhum conceito que seja portador de algo empírico.
Importa aqui, à filosofia transcendental, a razão na sua dimensão puramente
especulativa e não prática, pois a essa segunda dimensão da razão, a filosofia
prática, dedicar-se-á a segunda crítica.
Kant, tendo clara a sua intenção na primeira crítica, qual seja a de
elaborar uma filosofia transcendental, passa, a partir da doutrina transcendental dos
elementos, que se divide em estética e lógica transcendentais, a mostrar como esse
edifício da razão pode e deve ser construído, na tônica de uma nova maneira de se
entender filosofia e dando à palavra transcendental, usada na função de adjunto, um
sentido bem específico.
Na primeira parte da doutrina transcendental dos elementos, chamada de
estética transcendental, Kant afirma que é graças à intuição que o conhecimento se
refere aos fenômenos e essa intuição é possível quando o espírito é afetado por
objetos. À capacidade humana de ser afetada pelos fenômenos, de receber
representações, Kant denomina de sensibilidade. “Por intermédio, pois, da
sensibilidade são-nos dados objectos e ela nos fornece intuições”
37
. É graças à
sensibilidade, portanto, que entramos em contato com os objetos, que eles afetam o
nosso espírito, no entanto eles precisam ser pensados pelo entendimento, cuja
tarefa consiste em organizar o diverso da intuição mediante conceitos, não se
esquecendo jamais de que esses conceitos têm necessariamente que se referir às
intuições puras da sensibilidade. Temos aqui uma reciprocidade necessária: se a
19
sensibilidade pode ser afetada por fenômenos, se existe intuição sensível, por
outro lado, o entendimento pode pensar esses fenômenos a partir de conceitos
puros a priori. Numa palavra, a sensibilidade nos a matéria do conhecimento e o
entendimento tem que se referir a ela necessariamente para não se tornar vazio.
Kant chama de intuição empírica à nossa capacidade de nos relacionar,
através da sensação, aos fenômenos, lembrando que esse tipo de intuição é
possível ao homem. Chama-se fenômeno, na Crítica da Razão Pura, ao objeto
indeterminado de uma intuição empírica.
A tudo aquilo que no fenômeno corresponde à sensação Kant denomina
de matéria. Forma do fenômeno é aquilo graças ao qual o diverso do fenômeno é
organizado mediante determinadas relações. Se, para o filósofo de Königsberg, a
matéria do fenômeno é dada a posteriori, provém da experiência, a forma do mesmo
fenômeno tem que ser dada sempre a priori pelo entendimento, longe de toda e
qualquer empiria, sensação. Por isso, Kant chama as representações, em que nada
se encontra que provenha da sensação, de puras, no sentido transcendental.
Destarte, diz ele, existe a priori na subjetividade a forma pura das intuições
sensíveis, em que a diversidade dos fenômenos “... se intui em determinadas
condições. Essa forma pura da sensibilidade chamar-se-á também intuição pura”
38
.
A estética transcendental é, para Kant
39
, uma ciência que se ocupa com
os princípios da sensibilidade a priori. Nela, ele, num primeiro momento, isolará a
sensibilidade, não se considerando o que o entendimento pensa com os seus
conceitos, para que se possa ficar apenas com a intuição empírica. Num segundo
passo, Kant retirará desse tipo de intuição tudo o que provém da sensação,
restando, com isso, a intuição pura, que é a forma dos fenômenos, única que a
sensibilidade a priori nos fornece. E as duas formas puras da intuição sensível são o
espaço e o tempo, cuja função é a de serem princípios do conhecimento a priori.
Na estética transcendental emerge, para Kant, portanto, a grande
possibilidade de se estudar as formas a priori da sensibilidade ou intuições puras,
que são, como dito acima, o espaço e o tempo
40
. Elas o, por conseguinte, “as
37
Cf, KANT. Op, cit, B 34. Ver igualmente: HÖFFE, O. Immanuel Kant. Op. cit., p.65.
38
Cf, KANT. Op. cit, B 35.
39
Cf, KANT. Op. cit, A 22. Ver também: HÖFFE, O. Immanuel Kant. Op. cit. p.64.
40
Cf, HÖFFE, O. Immanuel Kant. Op. cit., pp.70-73.
20
formas em cujo interior se ordena a multiplicidade fornecida pela sensação”
41
. O
espaço é a forma de todos os fenômenos do sentido externo, o tempo, a do sentido
interno.
Kant entende por exposição transcendental do conceito de espaço “a
explicação de um conceito considerado como um princípio, a partir do qual se pode
entender a possibilidade de outros conhecimentos sintéticos a priori
42
. Dessa forma,
o espaço tem que necessariamente ser uma intuição pura a priori, que reside em
nós antes mesmo de todo contato com fenômenos, pois de um simples pensamento
não se extraem proposições que ultrapassem o puro pensar. Não há, para Kant,
outra forma de se obter proposições apodíticas na geometria senão a que considera
que o espaço é a forma do sentido externo. Ele é uma intuição externa do espírito
que é anterior aos próprios objetos, haja vista ser um conceito a priori destes.
Portanto, o espaço é uma estrutura da subjetividade humana, a “(...) propriedade
formal do sujeito de ser afectado por objectos e, assim, obter uma representação
imediata dos objectos, ou seja, uma intuição”
43
. Vale ressaltar que essa é a única
forma, enfatiza Kant, de se obter juízos sintéticos a priori na geometria.
Do exposto acima se conclui que o espaço o é senão a forma que se
encontra a priori no sujeito, condição necessária para que os fenômenos do sentido
externo sejam dados à subjetividade como intuição externa. Essa forma da intuição
externa, receptividade peculiar ao homem, por ser anterior a toda experiência, pode
explicar como é possível que o homem possua os princípios de todas as relações
nas quais os fenômenos são intuídos como exteriores a nós. No entanto, não se
pode esquecer que a representação do espaço exige a condição subjetiva de
sermos afetados pelos fenômenos, pois do contrário tal representação nada
significaria, pois não teria conteúdo. Fique claro que aqui Kant fala, não
gratuitamente, de condição subjetiva, ou seja, para ele, essa forma da intuição
externa o espaço é a forma inerente ao homem, não falando absolutamente
nada sobre a coisa mesma, pois “(...) não podemos fazer das condições particulares
41
Cf, PASCAL, G. O pensamento de Kant. trad. Raimundo Vier, 3ª. Ed., Petrópolis: Vozes, 1990, p.
50.
42
Cf, KANT. Op, cit, B 40.
43
Cf, KANT. Op, cit, B 41. Veja-se, igualmente, SALGADO, J. C. A idéia de justiça em Kant. Op. cit, p.
92.
21
da sensibilidade as condições da possibilidade das coisas, mas somente dos seus
fenômenos ...”
44
.
O tempo é a outra forma pura da intuição sensível. Enquanto o espaço é
a forma da intuição externa, o tempo é a forma da intuição interna. Também ele tem
que ser possível a priori, portanto “o tempo é a condição formal a priori de todos os
fenômenos em geral”
45
. As mesmas observações que foram feitas em relação ao
espaço valem também para o tempo, com a diferença de que este é, como dito
acima, a forma pura da intuição interna dos fenômenos. Todos os objetos estão no
tempo e condicionados às suas relações. Dessa forma, o tempo é uma
representação necessária que constitui o fundamento de todas as intuições”
46
. É
uma forma pura da subjetividade que antecede todo objeto, porque sua condição de
possibilidade. Somente sendo o tempo a forma a priori da intuição interna, na qual
nos são dados objetos, somente assim ser-nos-á possível obter juízos sintéticos a
priori na física.
O espaço e o tempo são, dessa maneira, as formas puras de toda a
intuição sensível e enquanto tais têm que estar em nós antes mesmo de todo
contato com os objetos, portanto, a priori. E enquanto formas a priori da
subjetividade humana, das quais se podem extrair conhecimentos sintéticos a priori,
que nos fornecem universalidade e necessidade tão caros à ciência, elas mostram
apenas os objetos à medida que aparecem a nós, e não como eles são em si
mesmos. Por isso, diz Kant
estas fontes de conhecimento a priori determinam os seus limites
precisamente por isso (por serem simples condições da
sensibilidade); é que eles dirigem-se somente aos objectos enquanto
são considerados como fenómenos, mas não representam coisas em
si. Só os fenómenos constituem o campo da sua validade
47
.
Portanto, a constituição do nosso conhecimento sensível, a nossa intuição
pura, que tem o espaço e o tempo como formas puras da sensibilidade, tem como
limite a representação dos fenômenos
48
. É através da sensação que nos é dada a
44
Cf, KANT. Op. cit, B 43. Cf, também, SALGADO, J. C. A idéia de justiça em Kant. Op. cit, p. 94.
45
Cf, KANT. Op. cit, A 34.
46
Cf, KANT. Op. cit, A 31
47
Cf, KANT. Op. cit, B 56.
48
Cf, HÖFFE, O. Immanuel Kant. Op. cit., p.80.
22
matéria do conhecimento, que recebe nas formas puras da intuição sua primeira
organização.
O filósofo de Königsberg, com sua estética transcendental, intenta dar
uma primeira resposta à pergunta sobre a possibilidade e validade de juízos
sintéticos a priori, únicos que podem garantir universalidade, porque não derivam da
experiência, e necessidade, pois são absolutamente a priori, às proposições da
ciência
49
. Chegamos, enfim, à primeira conclusão kantiana: conseguiremos obter
êxito na solução do problema da filosofia transcendental, cuja preocupação reside
na possibilidade de se obter proposições absolutamente universais e apodíticas, se
admitirmos que existe no sujeito intuições puras a priori, o espaço e o tempo, que
recebem da sensibilidade o material a ser trabalhado segundo determinadas
relações, e que irá receber no entendimento, graças às categorias, como veremos a
seguir, a possibilidade de ser pensado mediante conceitos.
Na segunda parte da doutrina transcendental dos elementos, Kant irá
tratar da lógica transcendental que, por sua vez, dividir-se-á em analítica e dialética
transcendentais, contendo cada uma dois livros. Interessa-nos aqui os dois livros da
analítica transcendental, quais sejam: analítica dos conceitos e analítica dos
princípios. Cabe salientar que o interesse de tais livros para o presente estudo está
atrelado ao esclarecimento que Kant neles do conceito de transcendental e a
forma que esse novo saber assume.
Há para o autor da crítica da razão pura duas fontes sob as quais repousa
a possibilidade do nosso conhecimento, a saber, a sensibilidade e o entendimento.
Através da primeira recebemos representações, temos aqui a receptividade das
impressões; pelo segundo conhecemos um objeto segundo essas representações,
através da espontaneidade dos conceitos. Somente tendo como pressuposto essas
duas fontes do conhecimento, um objeto pode ser dado e pensado. Dessa forma,
“intuições e conceitos constituem, pois, os elementos de todo o nosso conhecimento,
de tal modo que nem conceitos sem intuição que de qualquer modo lhes
corresponda, nem uma intuição sem conceitos podem dar um conhecimento”
50
.
Esses elementos do nosso conhecimento, Kant os divide em puros e empíricos
51
. Os
últimos se dão quando temos presente a sensação no processo do conhecimento. E
49
Cf, KANT. Op, cit, B 3 ; B 4 e A 47.
50
Cf, KANT. Op. cit, B 74.
51
Cf, HÖFFE, O. Immanuel Kant. Op. cit., pp.82-86.
23
são puros quando não temos presente nenhuma sensação. É preciso haver a junção
da matéria, dada pela sensação, com a forma do conhecimento, que se inicia com
as formas puras da intuição e atinge sua plenificação com os conceitos puros do
entendimento, para que haja verdadeiramente conhecimento. Apenas as formas nos
são dadas a priori, a matéria é sempre a posteriori.
Como, para Kant, a única forma de intuição possível para o homem é a
sensível, pois ela nos mostra como entramos em contato com objetos, é reservado
ao entendimento a peculiaridade de ser capaz de pensar o objeto da intuição
sensível, lembrando que ambas as atividades são absolutamente necessárias e
recíprocas, pois “pensamentos sem conteúdos são vazios; intuições sem conceitos
são cegas”
52
. Daí ser tão importante que o conceito se aplique a algum objeto,
como, igualmente, referir os objetos a conceitos.
Não obstante o grande problema da filosofia transcendental ser a
possibilidade de juízos sintéticos a priori, Kant adverte que não é a todo
conhecimento a priori que se pode aplicar o adjetivo transcendental, como sendo
uma nova forma de se entender filosofia. se pode chamar de transcendental,
para ele, àquele conhecimento a priori “pelo qual conhecemos que e como certas
representações (intuições ou conceitos) são aplicadas ou possíveis simplesmente a
priori
53
. Com efeito, conhecimento de objetos se quando temos a
possibilidade de referir a sensação que temos do objeto a certas representações a
priori do sujeito, sejam elas intuições ou conceitos. Numa palavra, transcendental
não é senão a possibilidade a priori do conhecimento; a possibilidade que temos de
nos referir às intuições puras da sensibilidade ou categorias do entendimento, na
medida em que estas são condição necessária e suficiente de uma experiência
possível de objetos.
Esses esclarecimentos, Kant os faz na introdução à lógica transcendental
e irão preparar o estudo da analítica transcendental, que se divide em dois livros, a
saber, a analítica dos conceitos e dos princípios. Na analítica transcendental, Kant
preocupar-se-á em decompor o nosso conhecimento a priori nos elementos
constitutivos do conhecimento puro do entendimento. O primeiro livro acima
mencionado será “uma análise da faculdade de formar conceitos, isto é, do
52
Cf, KANT. Op. cit, B 75.
53
Cf, KANT. Op, cit, B 80. Cf, também, BONACCINI, J. A. A dialética em Kant e Hegel. Op. cit, p.52.
24
entendimento”
54
. Seinvestigada a própria possibilidade dos conceitos a priori do
entendimento, sem referência à experiência. O segundo livro mostrará como os
conceitos puros do entendimento se aplicam à experiência. Visamos, com essa
apresentação, mesmo que sucinta, mostrar a importância da nova filosofia
transcendental para Kant e como ela explica a atividade do sujeito no processo do
conhecimento.
O entendimento humano é uma faculdade que produz conhecimento pela
mediação de conceitos, pois Kant limita o conhecimento intuitivo à sensibilidade.
Conhecendo por meio de conceitos, cabe ao entendimento ordenar, dispor diversas
representações sob uma mesma unidade, e é a isso que Kant chama de função.
Vale ressaltar que, para Kant, função, diferentemente do que hoje se entende por
esse conceito
55
, é uma atividade organizadora do pensamento. Para ele
(...)o conhecimento de todo o entendimento, pelo menos do
entendimento humano, é um conhecimento por conceitos, que não é
intuitivo, mas discursivo. Todas as intuições, enquanto sensíveis,
assentam em afecções e os conceitos, por sua vez, em funções.
Entendo por função a unidade da acção que consiste em ordenar
diversas representações sob uma representação comum
56
.
O único uso legítimo que o entendimento pode fazer dos conceitos é o de,
por meio deles, formular juízos. que, para Kant, um conceito jamais se refere
imediatamente ao objeto, possibilidade reservada à intuição, mas somente a uma
outra representação, seja ela uma intuição ou um conceito, o juízo será o
conhecimento mediato dos objetos, portanto podemos reduzir a atividade do
entendimento a uma faculdade de julgar mediante conceitos. Destarte, é lícito
afirmar que “pensar é julgar, quer dizer, estabelecer relações entre representações,
reduzi-las à unidade”
57
. Deste modo, explicitando quais são as funções da unidade
dos juízos, teremos encontrado todas as funções do entendimento.
54
PASCAL, G. O pensamento de Kant, Op. cit. p. 63. Veja-se, igualmente, BONACCINI, J. A. A
dialética em Kant e Hegel. Op. cit, p.56.
55
Estamos ressaltando a diferença polissêmica do conceito de função porque Kant o emprega em um
sentido diverso do utilizado por Frege. O conceito Função tem, pelo menos desde Frege, um sentido
técnico que se impôs e que é hoje comumente utilizado pela filosofia da lógica e por toda a filosofia
analítica e análogo ao utilizado pela matemática. Sobre isso conferir o verbete Função in:
Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. Edição de Branquinho, João & Murcho, Desidério & Gomes,
Nélson G. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 365.
56
Grifo nosso. Cf. KANT. Op, cit, B 93.
57
Cf, PASCAL, G. Op, cit, p. 63.
25
Inspirando-se nas formas lógicas dos juízos, conhecidas pela tradição,
Kant obtém o famoso quadro dos juízos. Tal quadro nos mostra como as diferentes
funções dos juízos reduzem à unidade as representações que nos são dadas.
Por detrás dessas funções a lógica transcendental descobre as
formas a priori pelas quais se opera a síntese de uma multiplicidade
dada na intuição. Kant chama conceitos puros do entendimento, ou
categorias, a estas formas que impõem à intuição a unidade que se
reencontra nos juízos. A cada forma lógica do juízo corresponde,
pois, um conceito puro do entendimento
58
.
Após termos recebido, através da sensibilidade, o material que se a
matéria do conhecimento, temos a espontaneidade (as formas) do nosso
pensamento que obriga que o diverso da intuição seja recebido e ligado sob um
modo específico para, desta forma, tornar-se conhecimento. A este ato do sujeito de
ligar o diverso da intuição sob determinados conceitos, Kant o nome de síntese.
Ele entende, então, por síntese “o acto de juntar, umas às outras, diversas
representações e conceber a sua diversidade num conhecimento”
59
. Essa síntese
será pura quando nada de empírico se misturar a ela, portanto, quando for
totalmente a priori. Referida síntese, no entanto, tem que, em última análise, ser
capaz de se referir a conceitos. Tal a incumbência que é reservada ao entendimento,
e somente quando esse processo acontece podemos verdadeiramente falar, de
acordo com Kant, em conhecimento. Ele entende, portanto, a maneira pela qual o
diverso da intuição sensível é reportado às categorias a priori do entendimento da
seguinte forma:
a lógica transcendental ensina-nos a reduzir a conceitos, não as
representações, mas a síntese pura das representações. O que
primeiro nos tem de ser dado para efeito do conhecimento de todos
os objectos a priori é o diverso da intuição pura; a síntese desse
diverso pela imaginação é o segundo passo, que não proporciona
ainda conhecimento. Os conceitos, que conferem unidade a esta
síntese pura e consistem unicamente na representação desta
unidade sintética necessária, são o terceiro passo para o
conhecimento de um dado objecto e assentam no entendimento
60
.
58
Cf, PASCAL, G. Op, cit, p. 65.
59
Cf, KANT. Op. cit, B 103.
60
Cf, KANT. Op. cit., B 104.
26
Cabe, portanto, ao entendimento realizar a mesma função que é operada
num juízo, pois assim como tal função confere unidade às diversas representações
num juízo, dará também unidade às diversas representações numa intuição. É a isso
que Kant chama de conceito puro do entendimento.
Dessa forma podemos dizer, de acordo com Kant, que o entendimento é o
grande responsável pela unidade sintética que está presente nas intuições, e tal
unidade é a base da mesma unidade que é encontrada nos juízos ao operarmos
uma análise. Portanto, é o entendimento que reduz a multiplicidade que é dada no
espaço e no tempo, formas da intuição pura, a uma unidade pensável, ao inserir
certas ligações no caos dessa multiplicidade e, com isso, fazer com que possamos
encontrar verdadeiramente um objeto. Destarte, pensar é, para o filósofo de
Königsberg, “estabelecer, na multiplicidade dada pela intuição, certas relações que
façam dessa multiplicidade uma unidade”
61
, ou seja, reduzi-las a categorias.
Podemos dizer, segundo o espírito inspirador da filosofia kantiana, que nós
encontramos
(...) os pressupostos constitutivos da experiência pura na capacidade
da razão de sintetizar, numa ‘unidade objetiva’, um conjunto de
dados do fenômeno com os elementos sintéticos a priori (formas da
intuição e categorias do entendimento), na ão implícita de uma
apercepção transcendental
62
.
É este o novo espírito da filosofia transcendental kantiana: “o sujeito
cognoscente cria para si mesmo, com plena espontaneidade, uma ordem de acordo
com idéias no seio das quais ele situa as condições empíricas”
63
.
1.3 O SOLIPSISMO KANTIANO, SEGUNDO APEL
A reflexão kantiana tem um propósito bem definido: mostrar, através de
um confronto com o ceticismo
64
, como são possíveis juízos sintéticos a priori, ou
61
Cf, PASCAL, G. Op, cit., p. 65.
62
Cf, HERRERO, X. A razão kantiana entre o logos socrático e a pragmática transcendental, síntese
nova fase, nº 52, Belo Horizonte, 1991, p. 42.
63
Cf, OLIVEIRA, M. A. de. Para além da fragmentação, Op, cit. p. 101.
27
seja, dar uma justificativa racional a respeito da validade objetiva de nossos
conhecimentos empíricos, em geral. Podemos dizer, então, que a preocupação
fundamental de Kant
65
é o problema da legitimidade da pretensão de conhecer, algo
que diz respeito à validade do conhecimento.
A maneira como Kant realiza a sua tarefa é considerada por Apel como
sendo uma resposta solipsista: um sujeito isolado reflete sobre as suas condições
subjetivas (embora não individuais) de possibilidade da experiência, isto é, alguém,
refletindo solitário e isoladamente sobre as possibilidades da razão teórica, descobre
que a estrutura(conceitos) da sua subjetividade é a possibilitadora do seu
conhecimento sobre os objetos do mundo.
Na verdade, embora Kant mude a maneira de se entender filosofia, ele
o faz preso a uma tradição de pensamento que vem de Platão, na medida em que
ele, ao articular a sua nova maneira de entender filosofia, põe o sujeito isolado como
centro da sua reflexão, como capaz de isoladamente gerar sentido, permanecendo
na esfera sujeito-objeto. Desta forma, Kant pressupõe que “(...) o pensar discursivo
e, com ele, o conhecimento teórico e a fundamentação prática são assuntos de uma
consciência isolada e plenamente autárquica”
66
, e assim filia-se a uma tradição
filosófica que vem de Platão, em cujo seio cristalizou-se a idéia de que
conhecimento é sinônimo de reflexão isolada, de conversa da alma consigo mesma,
para lembrar o Crátilo de Platão.
No entanto, Kant, embora tenha como missão e pressuposto de sua
filosofia transcendental a universalização do conceito de objeto da Física de Newton
e, por extensão, das ciências naturais, não pode ser considerado o predecessor da
ontologia cientificista dos fatos. Tal encargo cabe muito mais a Descartes, Locke,
porque nestes o esquema sujeito-objeto é posto como epistemologia suprema e tudo
obedece a esse esquema, inclusive a natureza, incluída como mais um objeto a ser
explorado. Kant, com sua maneira de entender filosofia, põe em xeque o conceito de
objetivismo ontológico e o substitui pelo de objetivismo transcendental, conceito com
o qual ele repensará a filosofia da consciência, anterior a ele. Mesmo assim, Kant
64
Essa é a tese defendida por Almeida. Cf. ALMEIDA, G. A. de. Kant e o Escândalo da Filosofia”.
Revista Kriterion, v. XXXVIII, 95 (1997), p.51. Cf. também, OLIVEIRA, M. A. de. Para além da
fragmentação. Op, cit., pp. 102 e 121, notas 53 e 54.
65
Cf. ALMEIDA, G. A. de. Kant e o “Escândalo da Filosofia”. Revista Kriterion. V. XXXVIII, 95
(1997), p.52. Cf. também, OLIVEIRA, M. A. de. Sobre a fundamentação, Porto Alegre: EDIPUCRS,
1993, P. 27.
28
fica preso ao solipsismo transcendental, pois ele “... a unidade da consciência,
entendida como pura subjetividade, como a condição necessária e suficiente do
sentido e da validade da experiência”
67
.
Nesta sua maneira engenhosa de entender filosofia, Kant leva a conceito
máximo basilar de sua filosofia a objetologia ou objetivismo transcendental, em
substituição ao objetivismo ontológico da tradição. Para ele,
o objetivismo transcendental, baseado na filosofia da consciência,
tem como correlato o conceito de sujeito da experiência que,
enquanto unidade reflexiva de uma consciência pura, independente
da linguagem e da comunidade, pode dar sentido ao mundo
68
.
Assim sendo, esse sujeito que produz conhecimento é capaz de,
enquanto consciência isolada, a-histórica e sem referência ao sentido compartilhado
por uma comunidade a que pertença, gerar sentido e conhecer o mundo
fenomênico. Com efeito, podemos dizer que, em Kant, resguardada as
peculiaridades de sua filosofia, dá-se o ápice de um movimento espiritual gestado na
modernidade, qual seja, o solipsismo, em que “... a unidade da consciência,
enquanto subjetividade espontânea e afetada sensivelmente, pode levar
‘representações’ a uma síntese, pela qual elas adquirem ‘significado objetivo’”
69
, ou
seja, o conhecer é ato de uma subjetividade individual e uma atividade monológica.
Essa concepção é posta em xeque na filosofia contemporânea. A
subjetividade, enquanto constituidora de sentido, é substituída pela
intersubjetividade, pelo menos a partir da segunda fase da linguistic turn, nas
diversas correntes filosóficas contemporâneas. Podemos dizer que, se no mundo
moderno (Kant), a preocupação fundamental é a relação da consciência (categorias
do entendimento) com o mundo (objetos), no mundo contemporâneo, a preocupação
passa a ser a da relação entre mundo e linguagem ou, dito de outra forma, como eu,
enquanto membro de uma comunidade de comunicação, posso dar conta do mundo
através da linguagem.
66
Cf. HERRERO, X. A razão kantiana entre o logos socrático e a pragmática transcendental. ntese
nova fase, nº 52, Belo Horizonte, 1991, p. 39.
67
Cf. HERRERO, X. Op. cit., p. 45. Sobre os filósofos responsáveis pelo objetivismo ou cientificismo,
Veja: APEL, K.-O. Transformação da filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação, Vol. II,
Trad. Paulo Astor Soethe, São Paulo:Loyola, 2000, p.264.
68
Cf. HERRERO, X. Op. cit., p. 45
69
Cf, HERRERO, X. A razão kantiana entre o logos socrático e a pragmática transcendental, Op. cit,.
p. 45.
29
aqui um deslocamento na esfera de constituição do sentido:
conhecimento, na modernidade, vai significar um processo de constituição, de
produção da subjetividade, com todas as suas particularidades, como bem expressa
Kant na Crítica da Razão Pura; enquanto que, hodiernamente, a esfera de
constituição do sentido desloca-se para a linguagem, para a intersubjetividade
enquanto aquela categoria sob a qual repousa a possibilidade do conhecimento,
pois não acesso humano ao mundo senão por meio de estruturas lingüísticas,
compartilhadas por uma determinada comunidade pensante que gesta sentido.
Kant, então, na Crítica da Razão Pura, irá expor a sua teoria
transcendental, que consiste em justificar a possibilidade do conhecimento através
da ação de um sujeito isolado, que descobre, na subjetividade humana, as
categorias do entendimento que organizam o material amorfo recebido pela
sensibilidade. Esse procedimento kantiano de como se o processo do
conhecimento é tido por Apel, como já dissemos, como solipsismo metódico ou
solipsismo transcendental, que a unidade da consciência,
entendida como pura subjetividade, como a condição necessária e
suficiente do sentido e da validade da experiência.
A experiência é
pois, em princípio, uma relação de um sujeito, essencialmente ativo,
a um objeto passivo, ao qual confere significado
70
.
Tal postura parte do “... pressuposto de que em princípio ‘um só indivíduo’
possa conhecer algo como algo...
71
. Esse modo de explicitação soa por demais
pretensioso, dado os avanços a que chegou, no século passado, a filosofia da
linguagem. Mais à frente veremos em que consiste o processo do conhecimento
tendo como pressuposto a filosofia da linguagem. para antecipar, podemos dizer
que não conhecimento solitário, não possibilidade de reflexão solipsista, pois
até mesmo o ato do pensamento se mediante categorias elaboradas
lingüisticamente, que todo acesso ao real pressupõe um jogo de linguagem
próprio a cada comunidade lingüística, na qual estamos inseridos, de forma que “... o
conhecimento com base na observação, ocorrida no plano da relação sujeito-objeto,
pressupõe desde o início o conhecimento como acordo tuo sobre o sentido, no
plano da relação sujeito-sujeito...”
72
. Pois a linguagem, enquanto constituidora de
70
Cf, HERRERO, X. Op. cit,. p. 45.
71
Cf. APEL, K.-O. Transformação da filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação, Vol. II,
Trad. Paulo Astor Soethe, São Paulo:Loyola, 2000, p.264.
72
Cf. APEL, K.-O. Transformação da filosofia II, Op. cit, p. 264.
30
sentido, é uma esfera irrecusável. O sentido é algo público, dialógico, gestado numa
comunidade e não numa consciência isolada, capaz de conhecer o mundo com suas
estruturas categoriais, sem referência a outro sujeito. O importante aqui é a relação
sujeito-sujeito e não sujeito-objeto, como em Kant. Desta forma, pensamento e
linguagem são o mesmo, uma vez que todo ato de pensamento pressupõe as
estruturas de uma determinada linguagem. Numa palavra, o homem se insere no
mundo com categorias lingüísticas e não outra forma, pois agora a linguagem
participa da constituição do sentido.
1.4 O CARÁTER IRREFLEXIVO DA FUNDAMENTAÇÃO TRANSCENDENTAL EM
KANT, SEGUNDO APEL
Contra os ataques céticos de Hume, Kant tem como objetivo, na Crítica
da Razão Pura, fundamentar que juízos sintéticos a priori não só são possíveis, mas
necessários, pois o eles justamente que explicitam a racionalidade das sentenças
da ciência da natureza. A filosofia tem como tarefa, diz o filósofo de Königsberg,
demonstrar, fundamentar as condições transcendentais de possibilidade e validade
da ciência, notadamente, a física de Newton, pois é esse saber específico que Kant
pressupõe.
O procedimento adotado por Kant para justificar, fundamentar o
conhecimento humano se acometido de um círculo vicioso e põe abaixo todo o
seu intento majestoso de pôr a filosofia no caminho seguro da ciência. Pois Kant
pressupõe como verdade a existência da ciência e, para Apel, a experiência pode
ser eliminada, pode ser posta em questão, e isso constitui, para ele, o grande
paradoxo da Crítica da Razão Pura. Kant intenta provar a existência de juízos
sintéticos a priori, enquanto condição de possibilidade do conhecimento dos objetos
empíricos, mas esses juízos pressupõem a existência da experiência possível.
então aqui um círculo
73
entre fundante e fundado: quer-se provar a existência de
juízos sintéticos a priori, enquanto pressuposto da possibilidade e validade da
experiência, mas é justamente o fato da experiência que torna a afirmação desses
31
juízos necessária. Diante disso, o argumento kantiano se autodestrói, uma vez que é
marcado por um problema lógico insuperável, porque circular. Kant comete aqui um
erro em lógica, pois a validade da experiência é previamente pressuposta, quando,
na verdade, deveria ser provada a partir dos juízos sintéticos a priori, ou seja, a
experiência, que é fundada pelos juízos sintéticos a priori, é, ao mesmo tempo,
fundante. Desta forma, o núcleo duro da demonstração transcendental kantiana é,
segundo W. Kuhlmann,
(...) um raciocínio no modus ponens: se não x (a validade objetiva
das categorias), então também não y (a dificilmente questionável
possibilidade da experiência) ou: se y, então x. Ora y, então x. Este
argumento pretende demonstrar a base confiável do conhecimento,
no entanto ele se radica em pressupostos não-demonstrados
74
.
Para eximir-se desse tipo de contradição, é preciso fazer uso de
argumentos reflexivos como veremos mais adiante cuja demonstração reside
numa prova indireta ou, como os antigos a chamaram, de prova apagógica, que
Kant
75
fala claramente, mas a rejeita ao dizer que a razão pura, em relação às
demonstrações transcendentais, dela não deve fazer uso, sugerindo, com isso, que
considera como legítima a prova direta ou fundamentação dedutiva
76
, que, por
sua própria estrutura, como veremos mais adiante, jamais poderá chegar a um
primeiro princípio, como foi pretensão dos gregos
77
.
73
Cf. KANT. Op. cit. B 765/ A 737.
74
Apud: OLIVEIRA, M. A. de. Sobre a fundamentação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993, P. 29.
75
Kant não admite a prova apagógica ou indireta como sendo uma prova na qual se possam apoiar
as suas demonstrações transcendentais. Para ele, uma das regras fundamentais da razão pura,
quando se trata das demonstrações transcendentais, é que ela o deve fazer uso da demonstração
apagógica ou indireta, mas sempre da prova direta ou, como Kant diz, ostensiva. E ele diz ainda que
a prova apagógica é mais um recurso de que se utiliza a capacidade humana, do que propriamente
um modo legítimo de prova, de cujo procedimento a razão humana possa servir-se para justificar os
seus desígnios. Cf. KANT. Crítica da Razão Pura. Op. cit., A 789ss / B 817ss.
76
Para Apel, segundo Oliveira, Kant, não obstante suas tentativas, não teve clareza teórica para
distinguir entre uma fundamentação dedutiva e uma demonstração propriamente reflexiva. Cf.
OLIVEIRA, M. A. de. Sobre a fundamentação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993, P. 29.
77
Platão diz claramente, na República, que as chamadas ciências (empíricas) chegam a
hipóteses, nunca a princípios. A estes chega a ciência da dialética ou filosofia. Cf. PLATÃO. A
República, Livro VI, 511 b-e Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 7ª edição, 1993. Para Reale que se filia à tese da escola de Tübingen, segundo a qual
é necessário, se se quer alcançar uma verdadeira e completa interpretação de Platão, pôr as
doutrinas não-escritas como ponto chave para interpretar o seu legado (doutrina escrita) filosófico –, a
teoria das idéias, em Platão, consiste na primeira etapa da segunda navegação. A segunda etapa ou
ponto supremo se alcança com a teoria dos princípios primeiros e supremos. Cf. REALE, G. Para
uma nova interpretação de Platão. Releitura da metafísica dos grandes diálogos à luz das “doutrinas
não-escritas”. São Paulo: Ed. Loyola, 1997, p. 108 ss e para um estudo mais aprofundado, que
apresenta o ser como síntese dos dois princípios supremos, a saber, Uno e Díade, veja pp. 117-166.
32
2. KARL-OTTO APEL E A LINGUAGEM COMO MEDIADORA DA
REFLEXÃO TRANSCENDENTAL
Em Kant, a reflexão transcendental se através da pergunta pela
estrutura da subjetividade humana que torna o meu conhecimento do mundo
possível. Filosofia, para Kant, portanto, é possível enquanto filosofia
transcendental, na medida em que com ela se atinge clareza sobre o método mesmo
da filosofia e sua tarefa na vida humana. Filosofia deixa de ser consideração sobre o
mundo, como na filosofia antiga, e passa a ser tematização da estrutura da
subjetividade no seu encontro com os objetos da experiência.
Na filosofia contemporânea, uma nova mudança. Se na antiguidade e
na modernidade tínhamos, respectivamente, os paradigmas do ser e da consciência,
agora temos um terceiro paradigma, que é o da intersubjetividade, que tem na
linguagem o seu eixo de articulação. E dentre os filósofos contemporâneos, Apel
seja talvez o que melhor represente essa escola.
Karl-Otto Apel
78
, tendo consciência a respeito dos avanços atingidos com
a filosofia de Kant, pergunta-se se a filosofia da linguagem pode e deve assumir hoje
a mesma função que na modernidade foi reservada à filosofia transcendental
kantiana. Se na filosofia da modernidade, abordada enquanto epistemologia, a
preocupação era com a consciência, na filosofia contemporânea o filósofo passa a
se preocupar com a linguagem, pois esta assume o lugar antes reservado à
consciência na epistemologia tradicional. Deve-se esclarecer que, para Apel, não se
trata de tematizar a linguagem como um objeto a mais para ser considerado dentre
muitos possíveis. Trata-se, isso sim, de uma “transformação da própria filosofia”
79
, o
que significa, em última análise, uma “... reflexão sobre as condições de
possibilidade lingüísticas da cognição”
80
. A pragmática transcendental de Apel é,
com efeito, uma filha legítima da filosofia transcendental kantiana, rearticulada a
78
Cf. APEL, K.-O. Transformação da filosofia: O a priori da comunidade de comunicação, Vol. II,
Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000, p.353.
79
Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, São Paulo:
Loyola, 1996, p. 249. Emblemático dessa nova posição filosófica é o título homônimo dado à principal
obra de Apel, intitulado “Transformação da Filosofia”, conforme nota anterior.
80
Cf. APEL, K.-O. Transformação da filosofia, Op. cit., p. 354.
33
partir do confronto com duas outras tradições da filosofia contemporânea, a saber, a
filosofia hermenêutica e a filosofia analítica.
Apel é extremamente consciente do contexto relativista e tico que o
cerca e no qual ele vai edificar o seu pensamento filosófico. Destarte, ele vai ter que,
assim como Kant tentara fazer, justificar a sua filosofia. Aliás, para Apel, e essa é
uma questão de importância fundamental, toda filosofia que queira minimamente ser
levada a sério tem que necessariamente justificar o que faz, esclarecer, de antemão,
o seu procedimento para se isentar de qualquer crítica que o acuse de ingenuidade,
por não mostrar, pelo menos, com que tipo de filosofia se trabalha e como ela se
legitima.
Para Apel, portanto, a filosofia perdeu a credibilidade de que gozava no
mundo clássico e, por isso, é convidada a se explicar. O último grande sistema que
tem a pretensão de considerar a totalidade do real em sua filosofia é o sistema
hegeliano. Depois dele essa tentativa é considerada não anacrônica, mas
sobretudo absurda e incapaz de se concretizar, pois o mundo filosófico
contemporâneo é marcado por uma razão que o tem pretensões universalistas;
uma razão que se satisfaz com o particular
81
, uma razão fragmentada e consciente
da sua incapacidade de se fundamentar em última instância, portanto absorvida pela
idéia segundo a qual a fundamentação é impossível, e aquilo a que podemos aspirar
são afirmações provisórias e contingentes. Essa maneira de pensar é brilhantemente
representada pelo método axiomático-dedutivo, coroado pelas ciências empírico-
analíticas, cujo procedimento consiste em insistir na provisioriedade de suas teses e
na incapacidade de se chegar a princípios últimos
82
.
É precisamente nesse contexto de crise que Apel vai estruturar sua
filosofia, dialogando com as duas correntes de pensamento hegemônicas no mundo
contemporâneo. A preocupação primeira de Apel será, portanto, em pôr a razão
como algo fundamental na vida humana. A pragmática transcendental de Apel, por
conseguinte,
(...) emerge do contexto de crise da razão, e sua pretensão
fundamental é responder aos desafios que se levantam a partir
81
Cf. CIRNE-LIMA, C. Dialética para principiantes. EDIPUCRS, Porto Alegre, 1996.
82
Sobre essa problemática, Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Op. cit., pp. 249-253 e a bibliografia aí citada.
34
dessa crise. Por isso, seu cerne vai consistir em mostrar que os
relativistas e céticos sempre pressupõem a verdade que negam
83
.
Para efetivar sua tarefa, Apel terá que rearticular a filosofia transcendental
kantiana, incorporando no seu cerne a problemática da linguagem tematizada pela
reviravolta lingúístico-pragmática, ou seja,
trata-se de compreender que a pergunta transcendental implica
necessariamente a pergunta pela linguagem humana enquanto
condição de possibilidade da compreensão intersubjetiva e
estabelecer, a partir do nível atingido hoje pela reflexão
epistemológica, o ‘jogo de linguagem’ próprio da filosofia
84
.
Para responder à pergunta acima mencionada, ou seja, se a filosofia
transcendental kantiana pode ser reformulada a partir da problemática da linguagem,
no sentido de ser transformada em uma filosofia transcendental lingüisticamente
mediada, Apel fauma abordagem crítica ao binômio linguagem-filosofia e diz que
uma resposta positiva a essa pergunta dependerá da maneira como esse binômio
será entendido, esclarecendo que a linguagem não poderá ser de maneira alguma
um objeto a mais, dentre inúmeros outros possíveis, de consideração. Portanto, para
Apel, trata-se de tomar consciência de que a verdade não constitui mais problema
de uma consciência isolada que através de uma reflexão metódica (seja em
Descartes ou Kant) sobre a sua subjetividade descobre as formas a priori dessa
mesma subjetividade que garantem a objetividade do meu conhecimento do mundo,
“(...) mas sim, em primeiro lugar, como um problema da formação intersubjetiva de
consensos com base em um acordo mútuo lingüístico (argumentativo)”
85
.
Ocupando a linguagem hoje o lugar antes reservado à consciência, há,
para Apel, uma preocupação comum à epistemologia moderna e à filosofia
contemporânea, na maneira como ambas entendem a tarefa da filosofia: se antes se
perguntava pela consciência como possibilitadora do meu encontro com o mundo,
hoje a pergunta é pela linguagem, cuja função será a de mostrar as condições de
possibilidade e validade do meu conhecimento sobre o mundo, numa palavra, todo
meu conhecimento é mediado pela linguagem. A pergunta permanece
83
Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Op. cit., p. 253. Sobre os pressupostos presentes em toda e qualquer
argumentação, Cf. HERRERO, F. J. Ética do Discurso. In: OLIVEIRA, M. A. de. (org.). Correntes
Fundamentais da Ética Contemporânea. Petrópolis, Vozes, 2000, aqui principalmente, pp.170-180.
84
Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Op. cit., p. 250
85
Cf. APEL, K.-O. Transformação da filosofia, Op, cit., p. 354.
35
transcendental no sentido de Kant, não obstante haver uma mudança na esfera
fundante de sentido. Se assim é, diz Apel, “a linguagem hoje, como antes a
consciência, seria o tema e o instrumento da reflexão transcendental”
86
. A
preocupação de Apel agora é saber se na filosofia da linguagem do culo XX, a
linguagem é entendida como Kant entendia a estrutura da consciência, ou seja,
como aquela instância que é condição de possibilidade e validade “subjetiva da
cognição”
87
, ou ela não é mais do que objeto de consideração empírica.
Apel reconhece que não é simples dar uma única resposta a essa
pergunta. Ele diz que as várias fases pela qual passou a assim chamada filosofia
lingüístico-analítica, seja no I ou II Wittgenstein, passando pela semântica
construtiva de Tarski e Carnap, tenha dado a ela condições de assumir “(...) a função
reflexiva da crítica cognitiva”
88
. Não obstante, e até por ironia, se essa substituição
da filosofia da consciência pela filosofia da linguagem nos permitiu justamente
alcançar um patamar de clareza sobre a função da linguagem no processo do
conhecimento nunca antes experimentado, precisamente esse progresso e essa
clareza nos tenham permitido, embora muito a contragosto, concluir que a
substituição da análise da consciência pela análise da linguagem não não deixou
mais lugar para a reflexão, mas a tornou, por razões estritamente lógicas,
impossível, porque a linguagem não pode falar dela mesma, sem gerar antinomias.
Constitui uma prova desse paradoxo, diz Apel, as conclusões a que
chegara o I Wittgenstein no Tractatus. Ora, no Tractatus Wittgenstein quer pensar a
relação entre linguagem e pensamento
89
. A preocupação aqui não é mais, como na
epistemologia moderna, com a análise da consciência, mas com a crítica da
linguagem, cuja função será a de elaborar uma lógica que será denominada de
lógica transcendental, por sua semelhança com a função que o conceito
transcendental exerce na filosofia kantiana. Destarte, Wittgenstein afirma que, para
que a linguagem possa falar dos fatos do mundo, figurá-los é condição sine qua non
que haja entre ambos algo em comum que torne essa mediação realizável. E isso é
possível porque existe a forma da afiguração, que é a forma lógica ou forma da
86
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 355.
87
Expressão de Apel. Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 355.
88
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 355.
89
Sobre o Tractatus de Wittgenstein, Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Op. cit., pp. 93-114 e a bibliografia
citada. Cf. também, PINTO, P. R. M. Iniciação ao silêncio. Análise do Tractatus de Wittgenstein, São
Paulo: Loyola, 1998.
36
realidade
90
. Portanto, é a forma lógica, presente tanto na linguagem quanto no
mundo, que possibilita que o meu discurso sobre os fatos do mundo seja exeqüível.
Ora, e aqui é o inusitado da posição de Wittgenstein, a linguagem fala dos fatos do
mundo, porém ela não não pode falar sobre o próprio mundo como também não
pode falar sobre a própria linguagem, pois no Tractatus se defende “... a
impossibilidade de metalinguagem. Uma metalinguagem para ele não figuraria o
mundo, mas o arcabouço da afiguração a estrutura lógica”
91
. E é isso justamente
o que é proibido, pois se isso acontecesse se estaria falando de algo que torna a
afiguração possível, e não de algum fato do mundo, que é aquilo exclusivamente
sobre o que a linguagem pode falar.
É mister salientar que, não por acaso, também no Tractatus
Wittgenstein
92
proíbe qualquer tipo de reflexão, pois ele declara que nem o sujeito da
linguagem nem a forma lógica da linguagem são passíveis de ser tematizados no
discurso, que o o que figurar, portanto a linguagem não pode falar dela
mesma, mas somente dos fatos do mundo, pois a estrutura da linguagem não é
passível de consideração. Dessa forma, para Wittgenstein, “sujeito e linguagem são
os ‘limites do mundo’, e sobre eles, portanto, não se pode dizer nada”
93
.
Desde essa obra tractatiana, a filosofia analítica proíbe qualquer reflexão
ou pelo menos não tece qualquer tipo de consideração que tenha por pretensão
refletir sobre o sujeito transcendental da linguagem, enquanto sujeito de cognição.
Para Apel, essa proibição da reflexão não é uma tendência acidental na filosofia
analítica da linguagem, mas representa, sem sombra de dúvida, um paradigma que
foi seguido por inúmeros outros filósofos que se ocuparam desse tema. Assim, por
exemplo,
as funções semi-transcendentais, que Wittgenstein atribui no
Tractatus a uma ‘lógica da linguagem’, são, em Carnap, assumidas
pelas regras dos frameworks onto-semânticos das linguagens
científicas possíveis, regras estas fixadas de maneira convencional
no sentido do princípio de tolerância
94
.
90
Cf. WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus. Trad. apres. e ensaio introdutório de Luiz
Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp, 1994, 2.161-2.2.
91
Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Op, cit., p. 113.
92
Cf. WITTGENSTEIN, L. Op. cit., 4.12, 4.121.
93
Cf. APEL, K.-O. Transformação da filosofia, Op. cit., p. 356.
94
Cf. APEL, K.-O. Transformação da filosofia, Op. cit., p. 356.
37
Importa considerar aqui, diz Apel, que mesmo com todas as
considerações a respeito da linguagem e do sujeito humano da argumentação nas
diversas filosofias da linguagem, essas considerações são feitas apenas do ponto de
vista das ciências empíricas, não se chegando propriamente a um tratamento
filosófico dessas questões, pois justamente nelas não ainda uma abordagem
propriamente filosófica da dimensão pragmático-transcendental “(...) dos atos de fala
e dos atos de intelecção enquanto condições de possibilidade da comunicação, nem
tampouco enquanto condições de possibilidade da própria linguagem
95
. Dessa
forma, seja o II Wittgenstein, seja o estruturalismo, como filosofia da linguagem ou
da cultura, em ambos os casos tem-se consciência da importância da linguagem
como algo imprescindível para se conhecer algo como algo, que a possibilidade
do pensamento está condicionada pela própria linguagem, pensa-se por meio de
representações estruturadas lingüisticamente. Mas nessas filosofias não se atinge
propriamente uma reflexão filosófica sobre a linguagem, visto que tal tarefa é tida
como descabida. Portanto,
em lugar da auto-reflexão da filosofia tradicional da consciência
parecem surgir infinitas hierarquias de metalinguagens e metateorias,
com cuja ajuda se podem analisar objetivamente linguagens e teorias
condicionadas pela linguagem
96
Bertrand Russell, segundo Apel
97
, afirma que uma linguagem não pode
falar dela mesma, não pode ser auto-referencial, sob pena de se enredar em
contradições. A única forma, para ele, de se evitar contradições em sistemas
semânticos é acatar a sugestão proposta por Tarski
98
de distinguir níveis de
linguagem, ou seja, diferenciar entre linguagens-objeto e metalinguagem, dito de
modo menos técnico, uma linguagem nunca poderá falar de si mesma, sob pena de
se enredar em dificuldades, pois temos aqui uma hierarquia de linguagens, em que
uma linguagem fala sobre outra linguagem, jamais teoriza sobre si mesma. Tendo
essa proibição como pressuposto, Apel reconhece que dessa forma fica de fora do
mundo filosófico todo enunciado científico-filosófico sobre as condições
95
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 357
96
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 358.
97
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 361.
98
Sobre a solução apresentada por Tarski para evitar contradições, Cf. TARSKI, A. A concepção
semântica da verdade. Trad. Celso Braida. MORTARI, C. A. & DUTRA, L. H. A. (orgs.). São Paulo:
38
transcendentais de possibilidade e de validade de todo discurso, como mostrara o
Wittgenstein do Tractatus. Porém, se a única alternativa é essa, se não outra
possibilidade, Apel indaga então, “como se pode, no espaço da linguagem pública,
levar a cabo a reflexão sobre o anseio universal de validação do pensar e conhecer
subjetivos”
99
?
Conforme Apel, temos uma situação paradoxal, pois se na filosofia
moderna temos uma busca incessante de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo,
que justamente por prescindir da linguagem não pode mais dar hoje uma resposta
satisfatória em virtude do patamar teórico alcançado, no entanto, na filosofia
lingüístico-analítica do nosso século, não não uma solução exeqüível para
essa questão, mas sua conclusão é de que justamente essa pergunta não é
sensata, que não leva em consideração que qualquer reflexão incorre em
antinomias, como bem mostrara Russell, com sua famosa teoria dos tipos,
elaborada justamente para escapar das indesejadas contradições, causadoras da
derrocada de muitos pretensos sistemas.
Entretanto, para Apel, é questão de vida ou de morte para a filosofia
responder à pergunta de como é possível uma reflexão transcendental sobre a
linguagem, pois ela significa, em última instância, a pergunta pela possibilidade da
própria filosofia. Por isso é tão urgente para ele refutar a proibição da reflexão como
está posto no Tractatus, pois assim conseguiremos estabelecer o jogo de
linguagem próprio à filosofia, além de explicitar as insuficiências “(...) da abordagem
lingüístico-hermenêutica”
100
.
Para Apel, portanto, importa saber como pode a filosofia realizar sua
tarefa de uma reflexão transcendental da linguagem sobre si mesma, e isso significa
uma consideração propriamente filosófica sobre a linguagem, superando, dessa
forma, tanto a parcialidade de uma consideração empírica sobre a linguagem,
quanto as contradições vislumbradas pela filosofia analítica, anteriormente
mencionadas.
A primeira coisa a fazer, segundo Apel, é estabelecer a diferença entre
uma reflexão transcendental, método especificamente filofico, segundo ele, e uma
Editora Unesp, 2007. Cf. também: HAACK, S. Filosofia das lógicas, São Paulo:Editora Unesp, 2002,
pp. 195-197.
99
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 361.
100
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 369.
39
fundamentação dedutiva, na maneira como a explicitaram Karl Popper e Hans
Albert.
Por enquanto, é suficiente dizer, segundo Apel, que uma fundamentação
por dedução conduz necessariamente a um regressus ad infinitum, e por
conseqüência lógica dessa posição, o próprio Popper “tem razão ao partir da idéia
de que uma autofundamentação dedutiva de sua própria posição, qual seja o
‘racionalismo crítico’, não é possível”
101
. No entanto, Apel não concorda com a
conclusão a que chega Popper ao reconhecer a impossibilidade lógica de
fundamentar sua própria posição. Popper diz que sua decisão de escolher ser um
racionalista crítico se deve a um ato de fé, a uma decisão irracional, não havendo
argumentos racionais que o obriguem a preferir ser um racionalista crítico a ser um
obscurantista. O único argumento que se poderia ponderar seria em relação às
conseqüências práticas de tal escolha. Mas isso não muda em nada, diz Popper,
segundo Apel, a consideração de que em última análise mesmo uma escolha
irracional pode justificar minha preferência por ser um racionalista crítico e não um
obscurantista.
Ora, para Apel, essa posição de Popper ainda é refém de um resíduo do
solipsismo metódico, que facilmente “... se pode refutar através da reflexão radical
sobre as condições de possibilidade lingüísticas de todo pensar e decidir”
102
. Isso
significa que uma “decisão ética face a uma alternativa, a fim de que seja inteligível
como tal, pressupõe as regras do jogo de uma comunidade de comunicação,
conceitualizada no racionalismo crítico”
103
. Se assim não fosse, diz Apel, se essa
decisão se situasse num ato pré-lingüístico, que por se situar fora da linguagem não
pode pressupor as regras inerentes à argumentação, não teria sentido Popper
colocá-la como sendo passível de uma reflexão sobre a sua decisão. O que, em
última instância, está em questão e que Apel considera “a questão” da filosofia são a
necessidade e a validade da reflexão, pois assim chegamos ao propriamente
filosófico, na medida em que com ela explicitamos algo ineliminável na vida humana,
a saber, o discurso como médium intranscendível.
Enquanto Popper considera tal possibilidade impossível porque sem
sentido, Apel o acusa de permanecer numa posição objetivista, pois negadora da
101
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p, 371.
102
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p, 372.
103
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 372.
40
possibilidade de se alcançar a reflexão, no sentido filosófico do termo. Vale lembrar
aqui, diz Apel, a exortação do último Wittgenstein segundo a qual toda decisão,
enquanto ato de sentido, sempre pressupõe o cumprimento de uma regra que,
enquanto um jogo de linguagem, é colocada no contexto maior de ter que se
justificar publicamente no seio de um jogo de linguagem, donde se conclui que não
se trata de alguém isolado que decide arbitrariamente sobre fazer ou não algo.
41
3. A LINGUAGEM NA SUA CONCEPÇÃO TRANSCENDENTAL-
HERMENÊUTICA
3.1 A POSIÇÃO DO PROBLEMA: UM CONCEITO FILOSÓFICO DE LINGUAGEM
Para Apel, a linguagem está hoje, sem dúvida, no centro das atenções.
Ela não é apenas mais um objeto de investigação empírica, como muitos outros,
mas indica algo mais importante, pois ela “(...) aponta para um problema de
fundamentos da ciência e da filosofia (...)
104
, portanto, para um problema que
interessa às mais diversas tendências e escolas da filosofia contemporânea.
Aspectos relevantes da linguagem, tais como, sintaxe, semântica ou pragmática, são
trabalhados de maneira elaborada pela lingüística empírica, chegando-se até
mesmo a se ter clareza sobre “(...) seus aspectos lingüísticos objetuais e até mesmo
seus pressupostos metodológicos”
105
de modo que a linguagem, hoje, ocupa o lugar
antes reservado à consciência, em suas diferentes interpretações.
Esse interesse extremamente fecundo pela linguagem, nas diversas
tematizações filosóficas e científicas, nem por isso facilita a especificação mesma do
conceito filosófico de linguagem, do que propriamente consiste uma tematização
filosófica desse fenômeno, até para diferenciá-la de outras abordagens. O que está
em jogo, em última instância, para Apel, é a identificação do conceito propriamente
filosófico de linguagem, e, em que consiste tal abordagem, na sua diferenciação com
um outro tipo de abordagem, como, por exemplo, a de um teórico da linguagem, um
semiótico, ou mesmo a das ciências. De resto, importa ter clareza que, para Apel, o
filósofo que se envolve com a tematização da linguagem, e não alternativa, se
diante do seguinte problema: de um lado, temos estudos sobre o fenômeno e o
problema da linguagem realizados de maneira bastante precisa de modo que esses
estudos são transformados em temas de estudos científicos, como, por exemplo, na
semiótica de Peirce; no estruturalismo de Sausurre; na lógica da linguagem
matemática de Carnap; ou ainda, na gramática gerativo-transformacional de
104
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 375. Cf, também, COSTA, R. da. Ética do discurso e verdade em Apel.
Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 69
105
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 375.
42
Chomsky, de forma que tais estudos têm muito a oferecer como subsídio a uma
análise filosófica da linguagem. No entanto, e aqui está o outro lado, tal abordagem
filosófica, enquanto se detém numa reflexão epistemológica, ela é rigorosa na
identificação da unilateralidade das tematizações nas diversas ciências particulares,
apesar de não ter ainda logrado precisar um conceito propriamente filosófico de
linguagem.
Diante dessa situação não muito promissora, a filosofia, seja na direção
oposta a uma redução abstrativa do conceito de linguagem, seja de modo especial
contra uma redução da linguagem à sua função, enfatizada pela tradição,
designativa e comunicativa de algo conhecido independente dela, enredou-se em
um estudo sobre a origem de palavras, tanto em sentido mítico-metafísico, quanto
em metáforas poéticas, tais como esses estudos se encontram, seja nos resumos
das doutrinas de Heráclito, na poesia de Hölderlin ou nos estudos de Heidegger, em
que ele
(...) procura transcender as determinações ‘ônticas’ da linguagem na
filosofia e na ciência modernas, em especial as determinações
concebidas a partir das conquistas intencionais do sujeito, e o faz
através do discurso da linguagem como ‘morada do ser’ e ‘habitação
da essência do ser humano’
106
.
Ora, o resultado de tais tentativas, em que se buscou uma integração
profícua do sentido filosófico da linguagem, segundo Apel, resultou em um campo de
batalha no qual uma clara disputa entre a filosofia e as ciências que trabalham
com a linguagem, como que estivesse havendo uma confusão metodológica, e isso
resultou na constatação segundo a qual não se obteve ainda, devido a esse
distanciamento, um conceito filosófico de linguagem que pudesse inspirar a se obter
uma reflexão epistemológica crítica.
A dificuldade é que aqui emerge justamente a pergunta se a filosofia não
se deveria restringir a ser uma teoria da ciência, pela própria concepção de saber
vigente no nosso mundo. Com essa consciência a respeito do que cada saber pode
fazer, a filosofia desistiria de ser um saber dos fundamentos, um saber de princípios,
cuja tarefa consiste em ser uma auto-justificação transcendental das suas
pretensões de validade. Dessa forma, substituiria o paradigma da consciência pelo
106
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 377. Veja-se também: MÍLOVIC, M. Filosofia da comunicação. Para
uma crítica da modernidade. Brasília: Editora Plano, 2002, pp. 173-183.
43
paradigma da linguagem e assim se chegaria a uma reflexão da linguagem sobre ela
mesma e passaria a se restringir e a se entender a si mesma como epistemologia,
sem maiores pretensões, deixando o estudo da linguagem a cargo das ciências,
aliás únicas capazes de efetivar essa tarefa.
O problema, para Apel, é justamente este. A filosofia, ao se deparar com
a problemática da linguagem no século XX, percebeu que ela(a linguagem) não é
apenas um objeto a mais que enriqueceria a lista dos objetos a serem tematizados,
não obstante poder ela também ser considerada sob essa perspectiva, mas se faz a
questão própria da filosofia, mesmo no trabalho prévio de esclarecimento lingüístico
dos conceitos fundamentais, em questão própria à filosofia. Dessa forma a
linguagem não pode ser tematizada apenas pelas ditas ciências particulares, que
elas mesmas, no aclaramento dos seus próprios conceitos, como dito acima,
remetem essa consideração de volta à filosofia, pois se trata de um trabalho que
escapa à competência das ciências particulares, pela própria concepção que elas
têm do seu método, cuja especificidade é ser axiomático, nunca podendo chegar,
portanto, à questão da problemática dos fundamentos dos seus próprios
enunciados. Com efeito, a filosofia entende hoje “(...) a problemática da linguagem
como problemática dos fundamentos da formação teórica e conceitual e de seus
próprios enunciados, isto é, formulações sensatas e intersubjetivamente válidas da
cognição em geral”
107
.
Entendida dessa forma, por conseguinte, a filosofia primeira hoje o
pode ser entendida como investigação a cerca da natureza ou essência do ente
enquanto ente, como na filosofia clássica, nem muito menos como investigação ou
reflexão sobre os conceitos a priori, seja da sensibilidade ou do entendimento, ou
das idéias da razão, como em Kant, mas ela deve ser entendida, e não lhe é
permitido outro modo de consideração caso ela queira exercer a função de filosofia
primeira no mundo contemporâneo, acima de tudo como “(...) reflexão sobre o
‘significado’ ou o ‘sentido’ de manifestações lingüísticas (‘análise da linguagem’)”
108
,
e essa consideração não é circunscrita à filosofia primeira no sentido restrito de
filosofia teórica. Desse modo, a filosofia prática ou ética deve também subordinar-se
107
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 378. Cf, também, COSTA, R. da. Ética do discurso e verdade em
Apel.Op. cit, p. 70.
108
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 378. Cf, COSTA, R. da. Ética do discurso e verdade em Apel. Op. cit,
p.70.
44
metodicamente a esse novo paradigma reflexivo, que centra na linguagem as novas
preocupações da análise filosófica.
Assim sendo, do ponto de vista filosófico, não é suficiente descrever o que
sempre acontece quando usamos a linguagem, não basta explicitar o processo
genético de constituição de sentido nas diversas culturas e épocas. É necessário
retomar a questão acerca da validade daquilo que enunciamos, faz-se necessário
perguntar se o sentido gestado pode ser tomado como sentido válido. nesse
nível de consideração atingimos um outro patamar de reflexão sobre nossa práxis
lingüística, que se converte em práxis argumentativa.
Cabe esclarecer, segundo Apel, que essa especificidade da filosofia em
assumir esse novo patamar de reflexão, cujo centro é a linguagem, não pode
significar, de forma alguma, um desprezo ou um descaso pelas conquistas das
ciências no tocante às suas considerações sobre a linguagem. Quer significar, isso
sim é o que importa, que a filosofia tem que ter um conceito próprio de linguagem,
independentemente do conceito de linguagem que tenha as mais diversas ciências,
pois aqui o que está em jogo é o próprio futuro da filosofia como filosofia primeira e
se essa tarefa é exeqüível e, se sim, de que forma.
Para Apel, a filosofia da linguagem poderá executar a contento sua
tarefa se entender a si mesma como uma filosofia que considera a linguagem uma
grandeza transcendental no sentido kantiano. Entendida dessa forma, a linguagem
passa a ser condição de possibilidade e validade da “compreensão e da
autocompreensão”
109
, portanto “(...) do pensamento conceitual, da cognição objetual
e do agir com sentido”
110
. Por isso, diz Apel, devemos articular um conceito
transcendental-hermenêutico de linguagem, único possível a fazer da filosofia um
saber responsável à altura dos nossos tempos e, ao mesmo tempo, pode precisar
com acuidade em que consiste propriamente o método filosófico de argumentar em
sua diferença com o modo próprio às ciências.
algumas condições a cumprir, segundo Apel, para que o conceito
transcendental-hermenêutico de linguagem possa tornar efetivo o seu dever, como
filosofia que entende a si mesma a partir do paradigma da linguagem, incorporando
no seu cerne tanto a filosofia da ciência como a filosofia prática, ambas no horizonte,
109
Expressão de Oliveira. Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia
contemporânea, Op. cit., p. 266.
110
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 379.
45
nunca é de mais insistir, aberto pela linguagem. Tais condições são: 1 mediante
uma desconstrução e reconstrução críticas da história da filosofia da linguagem,
poder precisar como e em que medida o tratamento dispensado pela tradição à
questão da linguagem no sentido de enfatizar a sua função de designação e
comunicação do conhecido não é falso, mas é insuficiente, do ponto de vista
filosófico, pois esse tratamento não é de todo completo já que negligencia um
aspecto da linguagem indispensável para uma consideração filosófica completa
desse mesmo fenômeno. 2 precisa-se insistir que a filosofia transcendental, após
uma consideração crítica dessa mesma filosofia, pode e deve necessariamente ser
“(...) corrigida por meio de uma concretização do conceito de razão, no sentido de
um conceito de linguagem”
111
. Para que esse segundo ponto possa ser efetivado é
preciso, segundo Apel, que as diferenças existentes entre as estruturas teóricas,
seja entre ontologia clássica e filosofia moderna da consciência, de um lado, e ,de
outro, a filosofia lingüístico-analítica moderna possam ser superadas, no sentido
técnico de que essa palavra desfruta na filosofia hegeliana, e outrossim que se
supere a diferença intelectualmente nefasta entre filosofia teórica e prática. Apel
mostrará em que consiste, se é que um tal projeto é exeqüível, uma consideração
filosófica do conceito transcendental-hermenêutico de linguagem, seguindo a
disposição das questões acima sugeridas.
3.2 A CONCEPÇÃO FILOSÓFICA TRADICIONAL DE LINGUAGEM: ORIGEM E
DESTRUIÇÃO
Na palavra grega logos (
λογος
), pela primeira vez aparecem juntas razão
e linguagem. No entanto, e aqui se evidencia o ponto relevante dessa descoberta,
enquanto a razão se apresenta como unidade teórica e temática, a linguagem ou
discurso revela-se na sua variedade, como característica comum e própria às
diversas línguas que, por sua vez, têm na variação semântica sua razão de ser.
Esse fenômeno é estudado de maneira sistemática por Platão,
especificamente no Crátilo, em cuja obra se percebe uma consideração da
111
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 379. Veja-se também: MÍLOVIC, M. Filosofia da comunicação. Op. Cit,
p. 182.
46
linguagem no seu aspecto apenas designativo, cuja função consiste em comunicar
um conhecimento, no caso as idéias, que é obtido sem e independentemente da
linguagem. As idéias (
ειδη
), em Platão, diz Apel, são como que “(...) entidades extra
e supralingüísticas (...)”
112
, que respondem satisfatoriamente às perguntas
socráticas sobre a justiça, a verdade, sem que para isso seja necessário apelar para
um “(...) consenso dialogal quanto ao significado ou à regra do uso das palavras”
113
,
que tais definições podem e devem ser dadas descobrindo-se a essência (
ειδος
)
que está por trás e significado a cada palavra, portanto anterior à linguagem.
Platão considera o pensamento como um diálogo da alma consigo mesma (Sofista
263 d), sem mediação da linguagem, visto que esta se mostra necessária para
transmitir aquilo que é obtido através de uma consideração pura do pensamento
sobre si mesmo, sem nenhuma mediação lingüística.
Como conseqüência dessa maneira de Platão considerar a relação que
se estabelece entre o conhecimento humano e o mundo das idéias,
(...) a concepção dialógica do pensamento em Platão deixa
justamente de conduzir à interpretação do pensamento como função
da comunicação intersubjetiva, (...) para conduzir muito mais na
direção de uma diferenciação radical entre pensamento e linguagem,
como expressão meramente secundária dos pensamentos, ou como
seu instrumento (
οργανον
)
114
.
Essa concepção reduzida de linguagem, presente no pensamento de
Platão, que se tornou hegemônica, cuja influência perpassa toda a tradição filosófica
do ocidente, será propriamente superada na filosofia lingüístico-analítica do
século XX, em cujo pensamento será evidenciado que até o pensador solitário se
utiliza da linguagem para efetivar o seu ato, uma vez que o existe conhecimento
sem linguagem.
Além dessa descoberta da concepção instrumental da linguagem legada
à tradição pelo pensamento de Platão, uma outra consideração platônica que é
relevante para a filosofia da linguagem e que, segundo Apel, conduz a linguagem na
mesma ótica de uma consideração instrumental. Tal é a questão da substituição,
112
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 380.
113
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 380.
114
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 381. Veja-se, também, COSTA, R. da. Ética do discurso e verdade em
Apel. Op. cit, p.74.
47
feita por Platão no Sofista ( 261 c 262 e ), de uma consideração sobre a correção
dos nomes por uma questão sobre a verdade das proposições sobre algo, na
medida em que modernamente se fala da relação entre sujeito e predicado.
O grande sistematizador do pensamento grego, Aristóteles, tira as
conseqüências dessa concepção platônica, na medida em que, para ele, ao se
considerar a relação entre sujeito e predicado, “(...) realmente se descobriu a
intencionalidade objetiva do juízo, mas de modo que os significados lingüísticos que
a mediatizavam acabaram sendo ignorados”
115
. Disso se conclui que também
Aristóteles ( De interpretatione I, 16 a 1 ) considerou a linguagem de forma não
adequada, pois sua função no processo do conhecimento é tido como algo
secundário, que para ele as palavras faladas são símbolos das representações
psíquicas, que por sua vez representam as coisas, e as palavras escritas são
símbolos das palavras faladas. Dito de maneira direta: primeiro temos o mundo, que
o nosso pensamento reproduz, daí a razão da definição de verdade como sendo
uma adequação entre o pensamento e a coisa (objeto); em segundo lugar, essas
nossas representações psíquicas são transmitidas à medida que emitimos os sons
com significado; e em terceiro lugar a escrita representa a reprodução dos sons. É
digno de nota que aqui, outrossim, temos a linguagem na sua concepção de
repassar, transmitir um conhecimento que é adquirido previamente sem sua
mediação.
Mais uma vez, entra aqui algo não-lingüístico no lugar da linguagem:
algo psíquico que, como as coisas que representa, é universal,
portanto, intersubjetivamente, idêntico e com isso fornece o substrato
do princípio lógico de identidade
116
.
Para Apel, esse é, e ele insiste nisso, um outro modelo para se apreender
os significados, que reside nas representações que temos dos entes ou na maneira
como eles nos afetam.
E mais uma vez, em lugar de ‘significados’ lingüísticos e de sua
função cognitivamente relevante de abertura de mundo, apresenta-se
algo independente da linguagem: algo psíquico idêntico às coisas
115
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 381. Cf, COSTA, R. da. Ética do discurso e verdade em Apel. Op. cit,
p.75.
116
Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, Op. cit., p.
268.
48
que espelha, e que – tal como as idéias – deve conferir um substrato
para o princípio lógico de identidade
117
.
Assim sendo, essa concepção de linguagem gestada na Grécia
influenciou profundamente toda a tradição filosófica do ocidente na sua
consideração sobre a linguagem, de modo que a superação de tal concepção na
direção de uma abordagem mais profunda sobre o problema da cognição, que em
tese poderia descobrir outro aspecto da linguagem antes negligenciado, tenha tido
justamente o Crátilo de Platão como obstáculo na medida em que para ele uma
abordagem mais profunda no sentido de se obter uma cognição mais transparente, e
por isso mais próxima à verdade, dependeria tão-somente de uma retificação
etimológica dos nomes.
Nessa mesma linha temos o obstáculo imposto por Aristóteles a respeito
de um aprofundamento do estudo da linguagem em que se realçaria outro aspecto
que não o designativo, pois ele considera a linguagem apenas na sua função
designativa convencional, de modo que ficou impossível aos filósofos, nos dois
milênios seguintes, exceção feita ao século XX, tematizar as funções, que Apel
chama de transcendental-hermenêuticas, da linguagem. Ora, tal concepção a
linguagem não apenas como aquela que mediatiza os
(...) ‘significados’ lingüísticos entre sujeito e objeto da cognição, mas
também, (...) à respectiva função da comunicação intersubjetiva e
não à medida que ela possa ser reduzida à transmissão lingüística
de informações sobre estados de coisas, mas à medida que também
seja, enquanto ‘acordo mútuo de sentido’, um acordo mútuo sobre o
sentido das palavras e sobre o sentido do ser das coisas
mediatizadas pelo significado das palavras
118
.
E a descoberta, apenas no culo XX, dessa concepção transcendental-
hermenêutica, encontra sua explicação na tradição de pensamento influenciado por
Aristóteles, dada a sua envergadura intelectual, pois embora houvesse, mesmo que
isoladamente, antes do século XX, uma concepção de linguagem que não se
reduzia apenas ao seu aspecto designativo, ela foi sufocada pelo peso de filósofos
como Platão e Aristóteles.
Sintomático dessa influência é que mesmo a moderna filosofia da
linguagem, segundo Apel, distingue radicalmente entre uma dimensão semântica e
117
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 381.
49
outra pragmática da linguagem. Ora, tal divisão encontra uma explicação na grande
tradição da filosofia ocidental: com a problemática de uma consideração semântica,
em que se prima pelo significado correto da designação objetiva e também pela
verdade objetiva do discurso, deve ocupar-se a filosofia; enquanto que com a
problemática da dimensão pragmática, cuja função sea de abordar “a dimensão
do acordo mútuo e intersubjetivo de sentido, a dimensão da formação de consensos
(...)”
119
, deve ocupar-se a retórica e a poética, porque tal problemática é
epistemologicamente desprezível. Para Apel, essa divisão de trabalhos é
inconcebível e filosoficamente desastrosa, pois à filosofia interessa sobremaneira a
dimensão pragmática da linguagem, apesar de que na semântica construtiva
moderna essa consideração pragmática (transcendental-hermenêutica) tenha sido
completamente descartada de uma consideração plausível, que interessasse à
filosofia. Ora, diz Apel, tal tratamento dispensado à pragmática da linguagem, como
epistemologicamente sem sentido, esconde uma aporia que “(...) aponta para além
de si mesma, pois exige uma interpretação pragmática do ‘framework’ (Carnap)
onto-semântico construído pelo filósofo”
120
. Temos aqui algo digno de nota: a
construção dos frameworks onto-semânticos, que diga respeito seja aos filósofos,
seja à comunidade dos cientistas, pressupõe sempre uma convenção, um acordo
prévio estabelecido mutuamente quanto ao sentido que tais sentenças básicas
(framework) terão, seja na comunidade dos cientistas, seja na comunidade dos
filósofos, ou em outra comunidade que tenha a pretensão de articular um saber
responsável. Portanto, em nenhuma hipótese, diz Apel, poder-se-á prescindir da
dimensão pragmática da linguagem, que se refere à dimensão do acordo prévio de
sentido.
Destarte, adquirimos clareza sobre a dimensão pragmática da linguagem
como sendo uma dimensão filosófica importante justamente porque com ela temos
condições de conquistar ou atingir o cerne de uma consideração propriamente
filosófica da linguagem à medida que atingimos, com a pragmática, a
(...) dimensão transcendental-hermenêutica do acordo mútuo e
intersubjetivo quanto ao sentido, e compõe, com a dimensão do pré-
entendimento semântico-mediatizador das coisas (ou melhor, do
118
Cf. APEL, K.-O. Op. cit. p. 382
119
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 383. Cf, COSTA, R. da. Ética do discurso e verdade em Apel. Op. cit,
p.76.
120
Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Op. cit. p. 269.
50
mundo) que se encontra acobertado pelo conceito designativo da
linguagem – , uma unidade dialética
121
.
E em que consiste tal unidade dialética? Para Apel, tal relação dialética
radica-se na contraposição de uma consideração ideal e outra real a respeito do pré-
entendimento lingüístico. No sentido ideal, o pré-entendimento lingüístico do mundo
deveria emergir do acordo mútuo, presente numa comunidade real de comunicação,
entre os participantes quanto ao sentido desse mesmo mundo; no sentido real, no
entanto, esse pré-entendimento lingüístico terá, desde sempre, de objetivar-se, de
instituir-se nos sistemas sintático-semânticos das línguas naturais no sentido do
espírito objetivo. Portanto,
esses sistemas lingüísticos objetivos, para sua atualização...são
dependentes de um meta-sistema pragmático da “fala” humana ou
da “comunicação”. Da pragmática universal da “competência
comunicativa”...a fala humana retira a capacidade de refletir sobre a
linguagem com a linguagem, e conquista assim a capacidade de
“traduzir”, de “reconstruir a linguagem”, de fazer “ciência da
linguagem” e filosofia da linguagem”
122
.
De qualquer forma, diz Apel, é da consciência clara que temos hoje da
pragmática universal da competência comunicativa, que se pode, através da fala
humana, porque mediada pela competência lingüística, refletir sobre a linguagem,
servindo-se da própria linguagem, e com isso se conseguir efetivamente fazer
filosofia da linguagem, e é o que propriamente interessa para o nosso estudo, ou
também fazer ciência da linguagem.
Através da conquista e da antecipação de um conceito transcendental-
hermenêutico de linguagem, temos condições, segundo Apel, se assim o quisermos,
de pôr em cheque o conceito tradicional de linguagem da filosofia ocidental, de
questioná-lo na sua parcialidade. Tal concepção, que em seus aspectos
fundamentais encontramos na filosofia clássica dos gregos, Apel a resume da
seguinte maneira: na forma humana de se relacionar cognitivamente com o mundo,
temos primeiro a estrutura do conhecimento; em seguida, o aparato da lógica e, por
fim, a linguagem enquanto designação e comunicação aos outros do que se
conhece. No primeiro momento, o homem, isoladamente, conhece aquilo que afeta
121
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 384. Cf, COSTA, R. da. Ética do discurso e verdade em Apel. Op. cit,
p.77.
122
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 384
51
os seus sentidos; no segundo momento, ele, através de um processo de abstração e
com o auxílio do aparato lógico comum a todos os homens, capta a estrutura
ontológica do mundo e, em seguida, designa, através de convenção, os objetos do
mundo que foram apreendidos e os representa através de ligações sígnicas; em
último momento, ele comunica aos outros seres humanos aquilo que foi conhecido.
Diz Apel que essa maneira de nós nos relacionarmos
epistemologicamente com o mundo sofreu ataques, que sempre se referiam a algum
aspecto particular, ao longo de vinte e seis séculos de filosofia. No entanto, tais
ataques, de qualquer forma, não lograram êxito, e o relevante é que essa concepção
de linguagem, cujo cerne reside no fato de que no processo de aquisição do
conhecimento a linguagem exerce um papel apenas secundário em relação à
cognição, na medida em que sua função se limita a designar e a comunicar aquilo
que se conhece sem linguagem, um papel, portanto, absolutamente secundário,
tenha sido preponderante na história da consideração filosófica sobre esse tema. O
problema é que essa concepção limitada de linguagem esconde uma aporia, cuja
tematização se restringiu, infelizmente, à questão sobre a origem da própria
linguagem. Na dissolução de tal problema, e tendo como pressuposto a noção de
linguagem explicitada acima, fez-se condição sine qua non para que um conceito
transcendental-hermenêutico de linguagem se impusesse e mostrasse seu caráter
ineliminável, a consideração segundo a qual é necessário e forçoso admitir que a
linguagem se encontra presente e pressuposta desde o início de uma
problematização sobre sua própria origem. Noutras palavras, toda e qualquer
consideração humana sobre a origem da linguagem ou sobre o nosso acesso ao
mundo é sempre uma consideração mediatizada pela própria linguagem, visto que
não existe, pelo menos para o homem, conhecimento sem linguagem.
Conforme Apel, a moderna filosofia da linguagem, influenciada pelo
nominalismo, enfatizou, principalmente, duas características básicas da
consideração tradicional de linguagem: 1) a concepção da evidência ou certeza do
conhecimento pré-lingüístico e 2) a idéia daquilo que se convencionou chamar de
solipsismo metódico, ou seja, de que o homem solitariamente conhece algo, gesta
sentido, segue uma regra. Ambas as características emergem da
(...) redução definitiva, elaborada por Ockham, da significação,
platonicamente concebida, do sinal lingüístico a impressões internas,
52
originadas casualmente, como sinais naturais do mundo externo para
o conhecimento intuitivo
123
.
Como também na redução dos conceitos à função designativa e empírica
dos signos lingüísticos, na medida em que enquanto instrumentos do conhecimento
intuitivo são arbitrariamente direcionados aos signos naturais.
Para Apel, essa maneira reducionista de encarar o problema da
linguagem acarretou algumas conseqüências filosóficas que podem ser ilustradas a
partir da consideração de duas correntes fundamentais do pensamento moderno, a
saber, o racionalismo e o empirismo.
Temos em Descartes, pai do racionalismo moderno, a pressuposição, tida
como certa, de que o pensamento pode prescindir da linguagem e da tradição. Note-
se que para Descartes, segundo Apel, o pensamento é considerado, o que não
deixa de lembrar Platão, como um “(...) acordo argumentativo mútuo que o
questionador radical e caçador de evidências mantém consigo mesmo”
124
. O
problema dessa concepção de Descartes é que ele mesmo não percebe que, ao
argumentar no sentido de articular a sua ‘dúvida metódica’, a qual consiste em
considerar que tudo poderia ser ‘apenas um sonho, ele
pressupõe um uso lingüístico público para a expressão ‘apenas um
sonho’, e pressupõe que ele destrói o sentido possível da expressão,
ancorado no uso lingüístico pressuposto, através da expressão
idiomática universalizadora ‘talvez tudo seja apenas um sonho’
125
.
Além disso, Descartes também não se conta de que a sua dúvida
metódica pressupõe uma série de implicações de sentido, todas condicionadas
lingüisticamente, nem tampouco ele reflete e nem tira as conclusões de que
(...) o pensar sensato, de acordo com suas próprias possibilidades,
está mediatizado desde o início por uma comunidade real de
comunicação, com uma referência real ao mundo, e cuja própria
existência teria que ser pressuposta de maneira lógica, mesmo que o
pensador fosse seu último representante ainda vivo
126
.
123
Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Op. cit., p. 270. Veja-se também: MÍLOVIC, M. Filosofia da comunicação.
Op. Cit, pp. 173-176.
124
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 386.
125
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 386.
126
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 386.
53
Dessa forma, temos na tradição racionalista um tratamento secundário
dispensado à linguagem e à comunidade real de comunicação, como se fosse
possível ao pensamento ter um conhecimento pré-lingüístico do mundo ou colocar-
se fora da linguagem.
Na tradição empirista, cujo representante é John Locke, encontramos de
forma flagrante “a formulação lingüístico-filosófica explícita da posição do solipsismo
metódico (...)”
127
, quando John Locke, no seu célebre ‘Ensaio Acerca do
Entendimento Humano’, ao tratar do problema do significado das palavras diz que
palavras, em seu significado primário e imediato, nada significam
senão as idéias na mente de quem as usa, por mais imperfeita e
descuidadosamente que estas idéias sejam apreendidas das coisas
que elas supostamente representam
128
.
Mas, segundo Apel, em John Locke também a concepção segundo a
qual as regras do uso adequado das palavras, no-las recebemos do próprio uso que
se faz delas na prática lingüística do quotidiano. Diz Locke:
na verdade, o uso comum, por um tácito acordo, atribui certos sons a
certas idéias em todas as linguagens, limitando assim o significado
deste som que, a menos que uma pessoa o aplique à mesma idéia,
ele não fala corretamente
129
.
Cabe agora a pergunta, diz Apel, sobre como se conciliam essas duas
determinações de linguagem em Locke, ou melhor, se tal conciliação é mesmo
possível. De um lado temos a esperança de resolver os mal-entendidos da
linguagem através de uma redução, que é conduzida por um método solipsista, dos
significados das palavras a noções simples. De outro temos o impasse teórico criado
com essa introspeção metódica: como se pode chegar ao ‘consenso intersubjetivo’,
que Locke atribui ao senso comum, se o problema semântico é confiado a um
pensador solitário? Como se certificar de que os outros também atribuirão o mesmo
sentido dado às palavras pelo pensador solitário?
Apel vê, no começo do culo XX, uma tentativa de resposta a essa
pergunta, através da idéia de linguagem nominalista-empirista combinada com a
127
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 386.
128
Cf. LOCKE, J. Ensaio acerca do Entendimento Humano, trad. de Anoar Aiex, São Paulo: Nova
Cultural, 1991, col. Os Pensadores, livro III, cap. II, 2., p. 91.
129
Cf. LOCKE, J. Op. cit., livro III, cap. II, 8, p. 93.
54
idéia de linguagem como ‘mathesis universalis’, que vem de Leibniz. Ora, essa
tentativa, de acordo com Apel,
(...) não parte das palavras como designações solipsistas de ‘noções
privadas’, mas de palavras como ‘papeletes de cálculo’(Leibniz) de
uma linguagem de cálculo intersubjetiva a priori. Seus
representantes, portanto, não esperavam chegar, como Locke, à
eliminação de todas as incertezas e mal-entendidos na ciência e na
filosofia a partir da certificação subjetiva e intuitivo-introspectiva da
evidência designativa, mas sim a partir da consistência sintático-
semântica do sistema lingüístico intersubjetivo, que (...) não precisa
certificar-se intuitivamente de seus conteúdos semânticos
130
.
É verdade que essa abordagem, diz Apel, esconde também uma aporia,
ressaltada sobretudo pelo I Wittgenstein, mas numa direção oposta à do ‘empirismo-
solipsismo’. Ora, no jovem Wittgenstein, por trás da linguagem do cotidiano, está
pressuposta a ‘forma lógica’ da linguagem universal, que garante um chão comum
através das proposições elementares que falam do mundo, e isso significa, para
Apel, que o problema da comunicação a respeito do significado de algo ou a “(...)
validação objetiva de enunciados experienciais”
131
, tão caros a Locke, simplesmente
desaparece, justamente porque a ‘forma lógica’ garante esse chão prévio de
entendimento. A conseqüência de tal postura é que
(...) a experiência pessoal e a comunicação da experiência nada
mais têm a ver com a constituição dos significados das palavras;
esses significados estão pressupostos no sistema lingüístico como
uma ‘substância’ semântica imutável, que corresponde à ‘substância’
objetual do mundo
132
.
Se lembrarmos o que dissemos pouco, ou seja, de que, para
Wittgenstein, a forma lógica, que permite o encontro entre a linguagem e os fatos do
mundo, é algo comum e a priori a todos os sistemas e usuários da linguagem, então
fica resolvido o problema do solipsismo por meio desse chão a priori e comum que
garante o mesmo mundo lingüístico aos usuários da linguagem ou, nas palavras de
Apel, “(...) o problema do solipsismo acaba sendo resolvido pelo fato de todo usuário
130
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 387-88.
131
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 388.
132
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 388.
55
da linguagem está confrontado com o mesmo mundo lingüisticamente descritível
(...)”
133
.
O problema dessa abordagem, diz Apel, é que a problemática da
subjetividade, enquanto constituidora de sentido, e da comunicação intersubjetiva
desse mesmo sentido recebe, no Tractatus de Wittgenstein, um tratamento, cuja
solução reflete um paradoxo e que, por isso, não nos obriga a aceitá-la, de tal sorte
que só nos resta
(...) interpretar a comunicação como processo de codificação
particular, de transmissão técnica e de decodificação particular de
mensagens sobre estados de coisas, da forma em que eles podem
ser apresentados pelas sentenças, graças à estrutura da linguagem,
que é a priori idêntica para todos
134
.
Isso sugere, diz Apel, tal como esclarecido por M. Schlick, que aquilo que
é passivo de ser comunicado, ou seja, o sentido intersubjetivo, só se refere à ‘forma’
ou ‘estrutura’ dos ‘estados de coisas’, que é a priori e que tem sua garantia de
efetividade sustentada pela estrutura interna do sistema lingüístico. Quanto ao
conteúdo das mensagens, sua interpretação é tida como algo reservado a uma
consciência particular, sem pretensões intersubjetivas, e que, portanto, é refratária a
qualquer consideração ou importância que a linguagem possa desempenhar na sua
constituição.
Temos aqui modelos de linguagem criados a partir da influência da lógica
matemática e da teoria da informação que, segundo Apel, encobrem uma
dificuldade, que se revela não quando pensamos na relação entre experiência,
comunicação e linguagem, que obviamente se modifica historicamente, mas tal
dificuldade se faz presente na consideração de uma estrutura universal comum a
todas as línguas, - a forma lógica no sentido técnico que essa recebera no Tractatus
do jovem Wittgenstein na medida em que tal estrutura universal dificilmente seria
compatível com a fala e a comunicação humanas. Ora, diz Apel, o primeiro a
perceber essa dificuldade foi Wittgenstein quando, no desfecho aporético do seu
Tractatus, concluiu pela impossibilidade da linguagem falar dela mesma:
133
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 388.
134
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 389.
56
não é necessário nem possível haver um diálogo sobre a linguagem
filosófico e científico que venha a garantir a priori, e por meio de
sua estrutura imutável, a formulação intersubjetivamente unívoca de
mensagens sobre estados de coisas. que todo integrante do
processo de comunicação (...) tem que pressupor desde o início, e a
priori, a estrutura da linguagem, então a estrutura da linguagem (...)
não é exprimível, nem carente de discussão pública: ela
simplesmente ‘se mostra’
135
.
A estratégia da semântica formal, cujo precursor foi Bertrand Russell, de
introduzir a hierarquia de metalinguagens, diz Apel, não resolve em absoluto o
problema e isso por duas razões: em primeiro lugar, a metalinguagem pode
considerar, na sua tematização, construções lingüísticas que são estabelecidas a
partir de decisões; e em segundo lugar, tanto essas construções lingüísticas quanto
a própria hierarquia de linguagens são consideradas, na ótica estabelecida pela
metalinguagem, como sistemas semânticos, na medida em que a linguagem
corrente também for considerada dentro do contexto último de metalinguagem. De
qualquer forma, diz Apel,
para a linguagem corrente o paradoxo de Wittgenstein iria reaparecer
se ele pudesse ser visto como um instrumento intersubjetivo a priori
da retratação (representação) de estados de coisas, isenta de
reflexões
136
.
Essa constatação de que ‘a linguagem corrente natural’ não exclui ‘auto-
reflexividade’, mas seria, num certo aspecto, sua ‘própria metalinguagem’. Isso
indica, para Apel, que no ser humano há qualquer coisa de específico e diferente na
relação entre sistema lingüístico, uso da linguagem, experiência lingüisticamente
condicionada e práxis vital. Ora, no ser humano, diz Apel que
o uso comunicativo da linguagem (...) não pode, de maneira
suficiente, ser concebido nem como pura transmissão de
informações factuais, que mantém intocada a intelecção de sentido
do mundo concernente ao parceiro na comunicação, nem como
atualização particular do sistema lingüístico, que deixa intocada a
estrutura semântica desse último
137
.
135
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 389-390.
136
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 390. Veja-se também: MÍLOVIC, M. Filosofia da comunicação. Op. Cit,
p. 175.
137
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 390.
57
Dessa forma, o uso comunicativo da linguagem revela, para Apel, em
última instância, a ‘reflexividade da razão humana’, que se faz perceber a partir de
duas constatações: primeira, que o acordo mútuo sempre renovado da comunidade
humana é que fornece sentido aos ‘objetos’ do mundo experiencial e, segunda, “(...)
a possibilidade e necessidade de um acordo mútuo quanto ao sentido isto é, a
‘significação’ dos sinais lingüísticos no nível das palavras”
138
. Dessa forma, a
razão humana constrói, com o auxílio da linguagem, uma dada interpretação de
mundo que, por sua vez, permitirá a criação de um sistema semântico da linguagem.
O importante é notar que o uso comunicativo da linguagem seria
ininteligível, caso não fosse pressuposto algum tipo de estabilidade – garantia seja
da interpretação sensata do mundo ou de uma estrutura semântica de um sistema
lingüístico. Sob essa perspectiva, e o obstante ela, o modelo ‘metódico-solipsista,
que concebe as representações mentais como sendo algo arbitrário, subjetivo, não é
capaz de explicar com satisfação
(...) o sistema lingüístico do qual é portadora a comunidade, que é,
também, ao mesmo tempo, sua criadora; do mesmo modo, também
não é capaz de explicá-lo um modelo de sistema que com total
independência do uso comunicativo da linguagem se supunha a
priori como intersubjetivamente válido
139
.
O problema dessa concepção, para Apel, é que o ‘modelo lingüístico
universal’ e orientado pela ‘linguagem artificial’ encerra um paradoxo que consiste
em se pensar que um modelo de linguagem, ao mesmo tempo, universal e artificial
possibilite um uso ‘comunicativo’ da linguagem somente como ‘atualização particular’
que se exime de uma reflexão sobre um sistema lingüístico dado previamente. Disso
resulta que ambos os modelos tratados, ou seja, o empirista-solipsista e o lógico-
matemático, depois do esclarecimento de suas posições, cujos resultados
mostraram claramente o paradoxo no qual se envolvem, mesmo depois de uma
combinação simples que se fez presente no positivismo lógico, não obtiveram êxito
em resolver ou fazer jus à problemática da linguagem natural. Mesmo depois dos
esforços de Schlick no sentido de tentar unir a concepção lógico-matemática da
‘forma da linguagem’ com a concepção positivista de uma ‘interpretação particular’
do ‘conteúdo’ lingüístico, tendo como pressuposto a idéia de Leibniz de uma ‘forma
138
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 390.
139
Cf. COSTA, R. da. Ética do discurso e verdade em Apel. Op. cit, p.82.
58
lingüística sintático-semântica universal’, mesmo assim, não obstante todos os
esforços efetuados no sentido de se resolver o problema do consenso intersubjetivo
do acordo mútuo, a insistência em tal modelo em nada ajudou a resolver o problema,
mas fez aprofundar aquilo que Apel chama de o ‘solipsismo metódico do
empirismo-nominalismo, embora se tenha conseguido superar a idéia de se
considerar a linguagem como mero instrumento designativo dos atos isolados de
cada indivíduo. Assim, conclui Apel,
a comunicação é entendida não como condição de possibilidade e de
validade do pensamento reflexionante enquanto um diálogo
internalizado, mas como codificação, transmissão e decodificação
particulares de pensamento
140
.
E a tentativa behaviorista, no entender de Apel, de encarar o problema da
atualização da linguagem através de uma concepção segundo a qual a linguagem é
considerada como tendo a função de observar e descrever o seu próprio uso, e não
mais como uma tentativa de uma interpretação particular, também o resolve em
nada o nosso problema do parceiro da comunicação. Todas essas tentativas de se
resolver o problema de uma concepção de linguagem que deveria se fundar no
acordo mútuo em que se ressalta a importância do parceiro da comunicação como
gestor de sentido não malograram, mas aprofundaram cada vez mais suas
contradições inerentes, pois sempre se movimentaram num conceito reduzido de
linguagem. Com efeito, conclui Apel:
é justamente a combinação da idéia lógico-matemática de linguagem
com a concepção behaviorista do uso da linguagem que leva a cabo
o solipsismo metódico da filosofia moderna da linguagem
141
.
E considera como absurda a concepção do ‘common sense’ de
linguagem, como se esta referência à linguagem do cotidiano significasse
necessariamente entendê-la na sua concepção meramente instrumental, cuja função
não seria outra senão a de comunicar o que o pensamento conquista nas suas
teorizações pré-lingüísticas, no seu acesso ao real e ao sentido independentes da
linguagem.
140
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 392.
141
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 393.
59
Wittgenstein, segundo Apel, teve consciência plena dessas
conseqüências quando, de forma sintomática, contrapôs os seus ‘jogos de
linguagem’ das Investigações Filosóficas ao modelo ‘nomem-nominatum’ do
atomismo lógico do Tractatus, em que fica clara a impossibilidade de uma linguagem
privada, particular, questionando, dessa forma, definitivamente, a possibilidade de
um sujeito isolado gestar sentido, dando-se um golpe decisivo, com isso, naquilo que
se convencionou chamar a grande tradição solipsista do ocidente. Com essas
intuições herdadas do Wittgenstein das Investigações Filosóficas, em que a
linguagem é algo público e o sentido é dado pelo uso, Apel pretende reconstruir uma
concepção de linguagem que nos interessa para o presente estudo, em que se
evidencia a verdadeira concepção filosófica de linguagem e em que essa
abordagem se diferencia da abordagem dada pelas diversas ciências ao problema
da linguagem. E para que essa tarefa possa ser efetivada, Apel acha necessário
“(...) pensar com Wittgenstein, contra Wittgenstein e para além de Wittgenstein”
142
, a
fim de que o nos percamos nos múltiplos jogos de linguagem, em que não se tem
critério para se preferir um e não outro.
Dessa forma, não é necessário apenas substituir o primeiro pelo segundo
Wittgenstein, ou seja, substituir o modelo designativo de linguagem por uma “(...)
‘descrição’ das múltiplas funções e regras do jogo do uso da linguagem, e, com esse
modelo, também a noção de uma ‘significação’ objetual aplicável apenas aos nomes
próprios”
143
. Ora, segundo Apel, a situação ficaria mais delicada se se entendesse
que se deveria fazer a descrição do uso ‘factual’ da linguagem de maneira
estritamente empirista, de acordo com o behaviorismo, “tal como Wittgenstein
parece ao menos sugerir em muitos momentos”
144
, justamente porque com essa
descrição puramente empirista perder-se-ia aquilo que Apel considera o ponto mais
importante da descoberta do modelo dos jogos de linguagem: a tese da
‘impossibilidade de uma linguagem particular’”
145
. De qualquer forma, para Apel, a
concepção de Wittgenstein segundo a qual todo ‘cumprimento de regras
sensatamente concebível’ é sempre um cumprimento essencialmente público, pois
ninguém sozinho segue uma regra, ou seja, àquilo que Apel chama de ‘caráter de
dependência dos jogos de linguagem’, pressupõe a idéia de que aquele que
142
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 393.
143
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 393.
144
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 393.
145
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 393.
60
descreve o jogo de linguagem “(...) participe dele de uma maneira a ser ainda
descrita”
146
, a fim de saber se as regras com que ele descreve o jogo de linguagem
específico estão realmente de acordo com as regras que são seguidas de fato.
O que realmente interessa a Apel nessas considerações todas é que,
para ele, o filósofo participa dos jogos de linguagem de uma maneira toda especial,
pois somente a ele cabe, e isso por uma questão de competência, “(...) refletir sobre
eles sob pontos de vista crítico-normativos (...)” e não somente, como alguns
parecem supor
147
“(...) descrever e observar de maneira empirista os ‘jogos de
linguagem’ humanos (e as ‘formas de vida’ com que estão ‘entretecidos’) (...)”
148
.
Disso resulta que, para Apel, “o filósofo como crítico da linguagem precisa ter claro
para si que ele mesmo, ao ocupar-se com a descrição de jogos de linguagem,
recorre a um jogo de linguagem específico, que está relacionado a todos os jogos de
linguagem possíveis de maneira reflexiva e crítica”
149
. Isso pressupõe, no entanto,
que o filósofo tenha competência para participar de vários jogos de linguagem, o que
contradiz, em princípio, a advertência do Wittgenstein das Investigações Filosóficas
de que entre os vários jogos de linguagem não precisa haver nada de semelhante,
exceto uma ‘similitude de família’. Destarte, para Apel, essa similitude entre os
diversos jogos de linguagem, preconizados por Wittgenstein, significa que, quando
aprendemos uma língua, não aprendemos simplesmente uma certa técnica
semântica para tornar possível a comunicação, mas aprendemos, outrossim e acima
de tudo,
146
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 394.
147
Estamos tentando aclarar, e para isso nos inspiramos em Apel, em que consiste propriamente
uma consideração filosófica sobre a linguagem e em que tal empreendimento poderá ajudar-nos a ter
um modelo de fundamentação filosófica alternativo ao modelo das ciências. No entanto, tal idéia é
tida hoje como anacrônica, ‘dinossáurica’, precisamente pelo contexto cético e relativista em que
vivemos, no qual a simples menção à idéia filosófica de fundamentação soa por demais pretensiosa
e, acima de tudo, ilegítima. Dentro deste ambiente espiritual se insere Habermas, para quem é
justamente a realidade teórica na qual estamos inseridos, realidade esta tributária direta da assim
chamada Reviravolta Lingüístico-Pragmática, que torna impossível a idéia de fundamentação
(entenda-se aqui fundamentação dedutiva) e proíbe, ao filósofo, um acesso privilegiado ao saber, ou
o ‘papel de um juiz supremo perante a cultura e seu todo’. Sobre isso, Cf. HABERMAS, J. A filosofia
como guardador de lugar e intérprete. In: Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de
Almeida, Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1989, pp. 17-35. Sobre a posição de Habermas e a crítica
de Apel a ela, Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Op. cit., p. 251, nota 6, e pp. 278 e ss. Poder-se-ia perguntar,
no entanto, se é teoricamente legítimo, do ponto de vista filosófico, render-se ao fático, já que é
precisamente a idéia clara da divisão entre o que é e o que deve ser, idéia essa, aliás, oriunda dos
gregos, em que se insiste na diferença entre mundo inteligível e mundo fenomênico, herdada de
Platão, que caracteriza a filosofia desde suas origens gregas e a diferencia dos outros saberes
possíveis.
148
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 394.
149
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 394.
61
(...) algo como o jogo de linguagem ou ainda, a forma de vida
humana: pois em princípio adquire-se com isso também a
competência para a reflexão sobre a própria linguagem ou forma de
vida e para a comunicação com todos os outros jogos de
linguagem
150
.
Nesta perspectiva, é preciso considerar, diz Apel, um argumento que não
foi trabalhado suficientemente por Wittgenstein quando ele abordou o problema da
impossibilidade de uma linguagem privada, qual seja o da possibilidade,
desconsiderando-se a forma pública de todo cumprimento de regra e a tese segundo
a qual toda regra é específica a um jogo de linguagem específico, de alguém “(...)
introduzir novas regras que talvez acabem não podendo ser testadas de fato em
uma comunidade de comunicação subsistente, em razão dos ‘paradigmas’ do jogo
de linguagem subsistente (...)”
151
. Isso acontece toda vez que alguém revoluciona a
ciência com novos paradigmas, para falar com Kuhn, ou outro campo do saber
humano, em que se tem, graças a essa descoberta, de alterar determinadas formas
de vida ou jogos de linguagem, para falar com Wittgenstein. Entretanto, de acordo
com Apel, mesmo nesses casos não nos é possível falar de um cumprimento
particular de regras ou de uma linguagem particular, o que nos resta considerar
que há “o jogo de linguagem ideal (em sentido normativo) de uma comunidade ideal
de comunicação”
152
. Isso significa, em última instância, que todo aquele que
participa de um jogo de linguagem e, por isso, segue uma regra, que se encontra
vinculado a um efetivo jogo de linguagem, antecipa, de certa forma, esse jogo de
linguagem ideal. Essa antecipação é feita, segundo Apel, de duas maneiras: a
primeira maneira acontece implicitamente, quando todo aquele que age de maneira
sensata pressupõe este jogo ideal; e explicitamente por todo aquele que
argumenta. Donde podemos concluir que referido jogo de linguagem ideal é
‘condição de possibilidade e de validade necessária e suficiente de uma
argumentação e ação sensatas.
Nesta perspectiva, podemos concluir com Apel dizendo:
portanto, gostaria de denominar ‘jogo de linguagem transcendental’ –
tal como já se antecipa, a propósito, em um jogo de linguagem
150
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 394-95.
151
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 395.
152
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 395.
62
factual o jogo de linguagem que pode ser postulado a partir da
referência à tese wittgensteiniana da impossibilidade de uma
‘linguagem particular’
153
.
Isso representa um primeiro passo na conquista de um conceito explícito
sobre o jogo de linguagem próprio ao discurso filosófico, em que a descoberta de tal
dimensão pressuposta pelos diversos jogos de linguagens é condição sine qua non
para a efetivação da tarefa, que Apel considera crucial para a filosofia, da
descoberta de uma dimensão normativa (ideal), que permita um consenso mínimo a
respeito da tarefa do filósofo no mundo contemporâneo e em que medida é ela
exeqüível.
3.3 A ÚNICA FORMA DE SE FAZER FILOSOFIA PARA APEL: A FILOSOFIA
TRANSFORMADA A PARTIR DO CONCEITO TRANSCENDENTAL-
HERMENÊUTICO DE LINGUAGEM
O percurso que percorremos ao analisar a concepção tradicional de
linguagem nos ajudou a descobrir um jogo de linguagem transcendental próprio à
filosofia. Para descobri-lo, passamos por Wittgenstein, mas fomos além dele. Esse
jogo de linguagem transcendental próprio à filosofia é, segundo Apel, uma
concepção fundamental à qual está ligada, como pressuposto último, seja a filosofia
lingüístico-analítica, seja uma crítica à metafísica, ou também está presente no
sentido de proceder uma transformação da filosofia transcendental, como ela se
articulou em Kant, pelo viés da linguagem. Se em Kant, a estrutura da subjetividade
era uma grandeza transcendental, essa função caberá agora, diz Apel, à linguagem.
Nesta perspectiva, a concepção de linguagem a que chegamos, ou seja,
como um jogo de linguagem transcendental normativo, cuja realidade aponta para
uma comunidade ilimitada de comunicação, está presente como pressuposto a uma
crítica à metafísica e, segundo Apel, “(...) logra conduzir a bom termo a crítica da
hipostasiação ontológica platônica da unidade ideal dos significados das palavras
(...)”
154
, em que referida unidade semântica ideal é garantida pelo mundo das
153
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 395.
154
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 396.
63
essências, e é apresentada por Wittgenstein como reproduzindo um dado uso da
linguagem. É preciso ter clareza teórica de que as coisas não melhoram, segundo
Apel, se substituirmos a pergunta clássica ‘o que é isso ou aquilo’ pela pergunta,
denominada por Apel, de ‘metódico-heurística’, que espera encontrar a resposta
satisfatória sobre a ambigüidade do significado de algumas palavras, tais como
‘verdade’ e ‘justiça’, recorrendo ao modo como elas são utilizadas no cotidiano de
um determinado jogo de linguagem, pois dessa forma o problema só seria deslocado
de posição e não se chegaria propriamente a resolvê-lo. Com efeito, tal solução
será possível, diz Apel, se para resolvermos os problemas verdadeiramente
filosóficos não apelarmos para a descrição do uso fático das palavras, mas sim se
formos capazes de conduzir a bom termo o recurso a uma comunidade ideal de
participantes da linguagem em que se postula o uso das palavras no seu sentido
ideal; criando, portanto, uma normatividade semântica, senão de fato pelo menos
como idéia regulativa para usar uma expressão kantiana como maneira para
solucionar a ambigüidade no uso de alguns termos filosóficos. Dito de outro modo, o
problema seria resolvido,
(...) caso se esperasse a resposta para questões essenciais
filosoficamente relevantes não diretamente da descrição do uso da
palavra, mas sim do postulado de um consenso intersubjetivo de
todos os virtuais participantes do jogo de linguagem quanto à regra
ideal do uso da palavra postulado normativo, presente a propósito
em todo e qualquer uso de palavras
155
.
Essa maneira de entender a tese normativa que prescreve uma regra
ideal do uso da palavra, presente em qualquer jogo de linguagem fático, como
solução filosófica para dirimir as controvérsias quanto ao pluralismo de jogos de
linguagem, em que o sentido é dado pelo uso e que, por isso, em última instância,
conduz-nos ao relativismo é, segundo Apel, a única formulação filosófica possível,
dentro do nosso contexto, que nos permite pôr em evidência os pressupostos dos
diversos jogos de linguagens e nos permite “(...) antecipar, no âmbito de um
determinado jogo de linguagem, a estrutura do jogo de linguagem ideal que todos os
seres racionais pudessem e devessem jogar”
156
.
155
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 396.
156
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 397.
64
Conforme Apel, uma concepção que entende que a definição ou essência
das coisas é dada pela maneira como tal coisa é usada na linguagem, ou seja, em
última instância, é o uso lingüístico que determina, que define o que uma coisa é,
esquece-se de que tal maneira de pensar pressupõe a existência de apenas um jogo
de linguagem e que tal jogo remeteria, em princípio, a um jogo ideal de uma
comunidade virtual de linguagem. Ora, o problema é que tal concepção se depara e
se contrapõe à tese do segundo Wittgenstein, que Apel chama de “transcendental-
filosófica”, segundo a qual temos múltiplos jogos de linguagem e que nenhum tem
prioridade sobre o outro, não havendo possibilidade de se estabelecer uma definição
unívoca para uma determinada coisa, pois tal sentido semântico irá variar de acordo
com as diferentes regras dos múltiplos jogos lingüísticos. E mais ainda, para
Wittgenstein, o que determina a essência de algo, segundo Apel, não é tanto o uso
da palavra, mas aquilo que o segundo Wittgenstein chama de ‘gramática profunda’
dos jogos de linguagem, que determina, em última instância, o modo com tal palavra
será utilizada. o se deve esquecer também, diz Apel, que desde W. von
Humboldt, sabemos que “(...) o possível entendimento essencial do mundo é
prejulgado desde o início pelas diferentes ‘cosmovisões’, que correspondem aos
tipos das estruturas lingüísticas”
157
. Diante dessas ponderações, ou melhor, dessa
contestação da possibilidade de um jogo de linguagem privilegiado, nos resta,
juntamente com Apel, perguntar:
Como é possível, face às regras do uso das palavras, que esse
pluralismo dos sistemas possíveis da ‘forma interna’ do significado
lingüístico seja compatibilizado com o postulado normativo de
consenso referido ao jogo de linguagem transcendental? E não
terão sido abertos, desde o início, através dos sistemas sintático-
semânticos, caminhos diversos para a formação definidora de
consensos com base na experiência sensória, de modo que não seja
sensato (a priori) postular uma formação universal de consensos
quanto a questões de significado e, dessa forma, quanto a questões
de essência, nem tampouco esperar por uma tal formação
158
?
A essa tendência relativista vem somar-se a experiência malograda da
tentativa de uma ‘reconstrução sintático-semântica’, que pretendia postular uma
linguagem universal voltada a fins científicos, que desde Leibniz constituía a grande
pretensão da ciência. Destarte, tal experiência não fez senão confirmar o que antes
157
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 397.
158
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 397.
65
era apenas uma possibilidade, a existência “(...) de uma pluralidade de ‘semantical
frameworks, possível a priori”
159
, o que mais uma vez vem reforçar a tese do
segundo Wittgenstein da impossibilidade de se ter um jogo de linguagem filosófico
privilegiado. O que temos, isso sim, são jogos lingüísticos múltiplos, cuja existência é
a garantia da sua validade não estaríamos aqui diante de uma má circularidade?
não havendo possibilidade de um ter primazia em relação ao outro.
Estamos diante de um desafio teórico cuja solução significa, para Apel, o
restabelecimento da filosofia como saber responsável, que pretende legitimar-se e
que pode e deve dizer algo sensato sobre a grande crise teórica que vivenciamos.
Temos, portanto, que nos posicionar diante dele, tarefa essa que Apel considera
‘dificílima’. A questão toda, inclusive sua dificuldade, consiste na necessidade de
uma transformação lingüístico-filosófica da filosofia transcendental e, por que não e
acima de tudo, de uma transcendentalização da reviravolta lingüístico-pragmática,
para que se possa chegar a uma consideração propriamente filosófica, insistimos
nisso, da linguistic turn.
A resposta a esse desafio teórico no-la encontramos, segundo Apel, a
partir de uma abordagem da ‘competência comunicativa’ em que fica patente o “(...)
acordo mútuo de sentido obtido através da linguagem pelos participantes de
diferentes comunidades lingüísticas”
160
. A abordagem apeliana consiste em
diferenciar, e ele não é o primeiro a fazer isso, uma análise dos ‘sistemas lingüísticos
sintático-semânticos, por um lado, e uma consideração dos jogos de linguagem
semântico-pragmáticos, por outro. na segunda abordagem, é possível e legítimo
alcançar um acordo mútuo sobre o sentido, pois como que uma imbricação, ou
melhor, uma moldagem do particular pelo universal, na medida em que o que está
em jogo aqui é todo um sentido de vida e de mundo que foi gestado e que é
transmitido juntamente com o aprendizado da língua. Isso pode ser vislumbrado
muito bem através do papel importante desempenhado pela interpretação no todo
de um sistema lingüístico, que põe por terra a concepção lógico-matemática dos
sistemas lingüísticos, segundo a qual a interpretação é tida como nociva, pois eivada
de subjetivismo. Para Apel, portanto,
159
Cf. APEL, K.-O. Op. cit., p. 397.
160
Cf. APEL, K-O. Op., cit., p. 399.
66
(...) a possibilidade de uma cunhagem prévia da intelecção de
sentido subjetiva implica, (...), a possibilidade de uma reestruturação
dos componentes semânticos das línguas ‘vivas’ através do acordo
mútuo quanto ao sentido, pragmaticamente bem-sucedido, ocorrido
no plano da aplicação da linguagem
161
.
Karl-Otto Apel rebate que essas suas considerações signifiquem ou
sugiram qualquer desprezo por uma abordagem ‘cognitivo-sociológica’ dos diversos
sistemas lingüísticos na medida em que eles possibilitem ao espírito várias maneiras
de se relacionar com o mundo. Embora essa maneira seja possível e legítima, no
entanto, diz Apel, ao filósofo não cabe ou a ele não compete preocupar-se com ela
como papel principal, que o que importa, para uma consideração filosoficamente
relevante, cujo esforço denota a maneira correta de a filosofia levar a sério a
problemática da linguagem, é a tematização reflexiva das diferenças das línguas,
pois com isso ficará evidenciado, segundo ele, que através dessa abordagem poder-
se-á superar o seu aspecto pragmático. Dessa forma, diz Apel: “(...) a comparação
da ‘forma interna’ (da estrutura sintático-semântica) de diferentes línguas ou tipos de
línguas pode ser posta a serviço do acordo semântico-pragmático que está acima de
uma língua em particular”
162
.
Apel nos lembra ainda que esta estrutura presente nas mais variadas
línguas, seja através de “certos universais” da “capacidade lingüística”, ou também,
do que ele chama de ‘inventário universal de traços fonológicos’ outrossim presente
nas diversas línguas, é denominada de ‘condições empíricas’ da assim chamada
competência comunicativa. aqui, mesmo na pluralidade das línguas, algo em
comum que por si ultrapassa as particularidades na direção de um ‘consenso
semântico’ ou ‘acordo semântico-pragmático’ em que se atingem estruturas
universais. Dessa forma, segundo ele, essas descobertas de estruturas que
ultrapassam o simples particularismo, feitas por Humboldt e continuadas por
Chomsky e Lenneberg, foram aprofundadas, num outro patamar, que não o
empírico, pelos gregos na medida em que eles, através do pensar conceitual,
desvelam o anseio pela cognição eidética, intersubjetivamente válida. Diz Apel:
a capacidade humana (concernente à competência comunicativa) de
realização lingüística de combinações de traços semânticos (às quais
se atribui, ao menos enquanto combinações, uma validade que
161
Cf. APEL, K-O. Op., cit., p. 400.
162
Cf., APEL K-O. Op. cit, p. 400.
67
ultrapassa as línguas em particular) foi atualizada pelo passo que
deram os filósofos gregos em direção ao pensar conceitual, pelo qual
fundou-se o anseio por uma cognição eidética pura e simples,
intersubjetivamente válida
163
.
a partir de então, diz Apel, foi possível falar-se em algo
intersubjetivamente válido, seja esse algo, o pensar conceitual, seja um acordo
mútuo, que aponta na direção de uma comunidade ilimitada de comunicação, que
exerce o papel, segundo Apel, de um princípio regulador, em sentido kantiano.
Após essas considerações, espera-se ter chegado a expor os principais
pontos ou pressupostos de um conceito transcendental-hermenêutico de linguagem
ou de uma filosofia transcendental lingüisticamente mediada.
Cabe a tarefa agora, segundo Apel, de se explicitar a função ou o papel
que a linguagem exerce na transformação de uma filosofia transcendental clássica.
Nessa nova maneira de se fazer filosofia, a linguagem não pode ser jamais um tema
a mais de discussão que, sem dúvida, devido ao panorama intelectual
contemporâneo, seria talvez o mais importante dos temas a ser abordado. Sem
dúvida, esse alargamento no trato das questões, com uma elasticidade
proporcionada pela introdução de um tema como o da linguagem, é gerador de um
enriquecimento por si suficiente para justificar a incorporação desse tema, a
linguagem, como objeto de consideração heuristicamente relevante. Mas, para Apel,
essa maneira de proceder não atinge a medula da filosofia transcendental e não é
suficiente para transformá-la e fazer dela uma filosofia lingüisticamente mediada, em
cujo centro está não mais o sujeito, como doador de sentido, mas a linguagem ou a
comunidade ilimitada de comunicação, na qual se espera encontrar a resolução dos
conflitos, a partir da antecipação contrafática na comunidade real de comunicação,
antes confiada a sujeitos. Segundo Oliveira
não se trata simplesmente do acréscimo de uma nova temática, mas
de uma mudança no próprio paradigma do pensamento(...). No fundo
se trata de uma mudança no próprio conceito de razão: se a razão é
subjetivamente ou comunicativamente centrada
164
.
163
Cf., APEL K-O. Op. cit, p. 400-401.
164
Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, São
Paulo:Loyola. 1996, p. 277, nota 47. Sobre essa problemática, ver também, HABERMAS, J. Uma
outra saída da filosofia do sujeito: razão comunicacional versus razão centrada no sujeito. In: O
discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote. 1990, pp. 275-307.
68
Para Apel, portanto, considerar a linguagem como um tema a mais da
abordagem filosófica seria, sem dúvida, um engrandecimento no trato das questões,
mas não resolveria em nada o problema de uma mudança de paradigma na filosofia.
Várias tentativas foram feitas em que a linguagem ocupa um lugar de destaque, seja
entendida, como diz Apel, como ‘cosmovisão’, seja como ‘formas simbólicas’, mas
em todas elas a linguagem é integrada na relação sujeito-objeto da epistemologia
tradicional, permanecendo estática a consideração feita da filosofia da
consciência moderna, na sua versão cartesiano-kantiana. Com efeito, diz Apel:
essas abordagens disponíveis até hoje, voltadas a uma
transformação lingüístico-filosófica da prima philosofia, ainda não me
parecem chegar de fato às conseqüências decorrentes de que o
pensamento, como argumentação internalizada e de que a validação
racional do conhecimento tenham que ser pensados não como
funções de uma consciência concebida de maneira solipsista, mas
sim como funções dependentes da linguagem, e dependentes,
portanto, da comunicação
165
.
Dessa forma, numa consideração de uma filosofia transcendental
lingüisticamente mediada, ou de uma transformação da filosofia transcendental a
partir de um conceito transcendental-hermenêutico de linguagem, o que realmente
importa, segundo Apel, é a substituição, na epistemologia kantiana, da ‘síntese
transcendental da apercepção’, enquanto aquela que garante a unidade do meu
conhecimento sobre o mundo, por aquilo que Apel denomina de “(...) síntese
transcendental da interpretação mediatizada pela linguagem constituinte da
validação pública da cognição enquanto unidade do acordo mútuo quanto a
alguma coisa em uma comunidade de comunicação”
166
. Somente procedendo
dessa maneira pode a filosofia transcendental transformada lingüisticamente, diz
Apel, ocupar o lugar antes reservado à ‘consciência em geral’, na suposição
metafísica feita por Kant, para garantir a unidade e validade do conhecimento.
Nessa nova maneira de fazer filosofia, em que a linguagem ocupa lugar central,
surge, de acordo com Apel, em lugar da ‘consciência em geral’ kantiana, “o princípio
regulador da formação crítica de consensos em uma comunidade ideal de
comunicação, que pode ser construída na comunidade comunicacional real”
167
,
para garantir a unidade e validade do conhecimento. Aqui, não é mais uma
165
Cf. APEL, K-O. Op. cit. p. 401-402.
166
Cf. APEL, K-O. Op. cit. p. 402.
69
consciência solitária que garante a validade do meu conhecimento, mas um
consenso intersubjetivo sobre algo, garantido por uma comunidade ideal de
comunicação, devendo ainda ser antecipado contrafaticamente numa comunidade
real de comunicação.
167
Cf. APEL, K-O. Op. cit. p. 402.
70
4. O CARÁTER REFLEXIVO DA LINGUAGEM
Na presente parte de nosso estudo, queremos destacar os avanços a que
chega a pragmática transcendental de Apel na tentativa de acentuar o papel
desempenhado pela linguagem na vida humana, de um ponto de vista filosófico.
Na tradição, a linguagem é indispensável para comunicar algo conhecido,
mas ela não participa da gênese desse conhecimento. Paradigmático, para ilustrar
esse modo de pensar, é a famosa frase de Platão, para quem conhecimento é um
diálogo que a alma mantém consigo mesma
168
. Essa maneira de pensar dos gregos
influenciou toda a filosofia ocidental e, praticamente, somente no século passado a
filosofia pôs em xeque essa concepção de conhecimento, na qual a linguagem
assume o papel apenas de transmitir algo a que se chega sem ela, por puro ato do
pensamento ou intuição intelectual.
Com a reviravolta lingüística, percebe-se que todo conhecimento
acontece dentro de certas estruturas lingüísticas, sem as quais o acesso ao dado é
impensável. Nesta fase da reviravolta lingüística, denominada de primeira fase, são
explicitadas as dimensões sintático-semânticas da linguagem, e ainda não se atinge,
segundo Apel, nesse nível, a dimensão reflexiva, o que será possível através da
reviravolta pragmática da linguagem, denominada de segunda fase, em cujo
movimento se evidencia a relação triádica de interpretação dos signos e que,
segundo Apel, foi muito bem desenvolvida por Peirce
169
. De qualquer sorte, o que
interessa é a dimensão comunicativa da linguagem, em cujo seio Apel vai chegar a
uma reflexão sobre os próprios pressupostos da comunicação e com isso mostrar
como filosofia se entende novamente como um processo de reflexão, o sobre o
real, filosofia clássica, nem sobre a estrutura da subjetividade, filosofia moderna,
mas sobre os pressupostos inelimináveis presentes em todo ato de fala. Será
importante para o nosso estudo seguir esse desenvolvimento mais de perto.
Na assim chamada primeira fase da reviravolta lingüística, são
acentuadas as dimensões sintático-semânticas da língua. A linguagem é tida como
168
Cf. PLATÃO. Sofista. Col. Os Pensadores, Trad. e notas de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São
Paulo: Nova Cultural, 1991, p.189-190
169
Sobre a importância de Peirce para esse ponto, Cf, APEL, K.-O. De Kant a Peirce: A
transformação semiótica da lógica transcendental. In: Transformação da Filosofia, II, Ibidem, pp. 179-
202.
71
constituidora do sentido. Não existe mundo sem linguagem. Paradigmático dessa
fase é o Tractatus Lógico-Filosófico de Wittgenstein, para quem cabe à linguagem
afigurar o mundo. O acesso ao real se dá via linguagem; não existe contato humano
com o mundo sem linguagem. O importante nessa fase é a análise das estruturas
lógicas da linguagem, não mais a estrutura da subjetividade, como em Kant, cujo
objetivo é averiguar a possibilidade e validade de juízos sintéticos a priori. Portanto,
na filosofia analítica da linguagem somente o de interesse as proposições que
falam do mundo, ciências empíricas, e as proposições analíticas, da lógica e da
matemática, e isso porque no Tractatus a forma lógica, que é aquilo que torna
possível a linguagem afigurar o mundo, visto que comum a ambos, é inexprimível
170
.
Assim, o que mais interessa a Kant em filosofia, a pergunta pelo transcendental, é,
nesse modo de filosofar, tido como sem sentido, porque fora da lógica. Com isso, a
reviravolta lingüística “não preserva a dimensão da perspectiva kantiana, porque
além das asserções empíricas e analíticas, o terceiro tipo delas a saber, os juízos
sintéticos a priori – não é investigado, indo de encontro ao interesse central de Kant”
171
. Essa proibição da reflexão marcará toda a filosofia do século XX, constituindo-se
em um empecilho a mais para Apel se fazer entender quando fala em reflexividade
da linguagem, haja vista a proibição sobre qualquer reflexividade, porque redunda
em antinomias, a que se submete a filosofia do século XX e doravante
172
.
Num segundo momento dessa reviravolta lingüística, temos a pragmática.
Nessa fase, e somente a partir dela, diz Apel, pode a filosofia tratar novamente do
problema da reflexividade, pois ela consiste justamente em considerar a linguagem
enquanto auto-reflexão. A fase anterior silencia essa perspectiva pelo interdito
wittgenstaniano, segundo o qual a linguagem podia tratar sobre as coisas do
mundo. Numa palavra, refletir sobre a própria linguagem significa cair em antinomias
ou paradoxos, já que não há aqui um conteúdo presente no mundo dos fenômenos a
ser tratado, pois na semântica transcendental se leva em consideração apenas as
dimensões sintático-semânticas da língua.
170
Sobre esse ponto, Cf. WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus. Trad. apres. e ensaio
introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp, 1994, 2.161-2.2. 4.12- 4.121.
171
Cf. MÍLOVIC, M. Filosofia da comunicação. Para uma crítica da modernidade. Brasília: Ed. Plano,
2002, p. 174.
172
Sobre uma apresentação do avanço a que a filosofia do século XX atinge no campo da lógica e o
tratamento ou soluções apresentadas para se fugir das antinomias, Cf. HAACK, S. Filosofia das
lógicas, São Paulo: Editora Unesp, 2002.
72
O início da segunda fase da reviravolta lingüística ou pragmática da
linguagem coincide com o lançamento da obra, denominada Investigações
Filosóficas, de Wittgenstein. Essa fase pode ser resumida na afirmação de
Wittgenstein segundo a qual o sentido da linguagem é determinado pelo uso que se
faz dela nas variadas comunidades lingüísticas. Dessa forma, uma dimensão da
linguagem negligenciada na primeira fase da reviravolta lingüística passa aqui a ser
o centro das atenções: importa agora a linguagem como práxis humana, o que se vai
analisar agora não é nem a semântica, nem a sintaxe, mas a pragmática, os usos da
linguagem. Falar aqui é agir.
É importante ressaltar que Apel vai aproveitar-se dessa fase da filosofia
para articular o seu próprio pensamento. A fundamentação da filosofia passa
obrigatoriamente pela esfera da linguagem como sendo o lugar próprio para se tratar
de tal tema. Se antes o sentido da proposição é circunscrito a certos parâmetros
formais, na pragmática da linguagem o sentido dela é dado pelo seu uso. A
referência ao uso que as palavras têm nas variadas comunidades é pressuposto
necessário para se decidir sobre o seu sentido. Portanto, o uso das palavras é seu
critério de sentido.
A partir das conquistas advindas através da filosofia da linguagem, em
que fica claro que todo sentido é lingüisticamente mediado, Apel vai fazer um
esforço teórico para legitimar, no nosso mundo cético e dominado pelo todo
axiomático-dedutivo, a reflexividade como sendo o diferencial da filosofia em relação
aos outros saberes. Numa palavra, o núcleo duro da filosofia consiste em fazer um
retorno reflexivo sobre os pressupostos presentes em toda linguagem. A grande
tarefa de Apel consiste, com efeito, em demonstrar que a filosofia pode e deve falar
de reflexão, sem cair em antinomias, sob pena de não cumprir sua tarefa intelectual.
E mais: mostrar em que sentido referido procedimento reflexivo escapa das críticas
da escola popperiana.
4.1 A LINGUAGEM COMO ESFERA INELIMINÁVEL DE TODO SENTIDO
A partir da reviravolta lingüística, sabemos da centralidade da linguagem
no conhecimento humano. Todo nosso acesso ao real se pelo viés da linguagem
73
ou, dito de outro modo, pressupõe uma comunidade de comunicação, na qual se
partilha sentido. Nesse patamar de consciência histórico-filosófica, afastamo-nos da
filosofia moderna, enquanto sinônimo de solipsismo metódico. Passamos da
subjetividade, como categoria basilar da filosofia, para a intersubjetividade, como
uma conquista central da filosofia contemporânea, para trás da qual não nos é
permitido caminhar, sob pena de nos vermos envolvidos com as mesmas aporias
que marcam a filosofia da consciência desde Fichte
173
. Desta sorte, com a
pragmática transcendental de Apel, a linguagem passa a figurar como médium
intransponível de todo sentido, passa a ser uma grandeza transcendental.
É mister salientar que a virada para a linguagem pela qual passou a
filosofia contemporânea teve, claramente, duas fases, das quais se faz necessário
falar agora, e somente com a conquista da última fase ou dimensão pragmática pôde
Apel fazer com que a filosofia cumprisse sua tarefa, herdada pela tradição, no
mundo hodierno: qual seja a de ser conhecimento de princípios. No entanto, nunca é
demais salientar que na filosofia apeliana, que por se filiar à filosofia transcendental
era de se esperar isso, não se pode chegar a considerações ontológicas em
filosofia, como queria a tradição, justamente porque filosofia não é conhecimento de
conteúdos, pois para isso há as ciências.
No seio de uma corrente da primeira fase da reviravolta lingüística,
denominada ou dominada pelo positivismo lógico, no qual temos a linguagem
considerada sob o aspecto sintático-semântico, como vimos, preocupa-se com a
análise das sentenças para saber se o discurso está coerente, ou seja, se
conferimos sentido sensato às palavras. Tal fase é um avanço, mas ainda é
insuficiente para que com ela Apel possa reformular a filosofia transcendental
kantiana através do viés da linguagem.
Toda expressão lingüística levanta pretensão à validade, do contrário
seria melhor ficar fora do discurso ou, como diz Aristóteles, seria melhor comportar-
se como uma planta
174
. O fato de dizermos algo sensato é o suficiente para
pressupormos algo, para nos inserirmos no discurso. E é a partir daqui que a
pragmática transcendental vai explicitar o ínsito na linguagem humana; vai poder
173
Sobre as vantagens objetivas da passagem da filosofia da consciência para a filosofia da
linguagem e como evitar as objeções formuladas à primeira, Cf.: HABERMAS, J. Pensamento pós-
metafísico, Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1990, p. 53.
74
aclarar quais as etapas que precisam ser galgadas para se ter comunicação e
demonstrar as condições de possibilidade para se ter um discurso sensato.
Não obstante seja verdade que a filosofia da linguagem, enquanto teoria
que consiste em resolver os problemas filosóficos mediante uma análise lógica das
sentenças, só passou a ganhar corpo e a ter influência decisiva no século XX,
notadamente a partir do círculo de Viena e das reações advindas a partir do contato
com as teorias daí resultantes, podemos dizer que Apel, na elaboração da sua
Pragmática-Transcendental, sofreu influência marcante a partir do contato com a
obra de Charles Peirce
175
, cujos escritos remotam ao século XIX.
Com a filosofia da linguagem, percebeu-se que todo acesso humano ao
dado (objeto) é mediado lingüisticamente e, dessa forma, a linguagem constitui-se
como esfera ineliminável de todo sentido e de toda validade. Explicitando, podemos
dizer que a linguagem, enquanto possibilitadora do nosso acesso ao real, abriu três
grandes campos de investigação porque constituída por uma tríplice dimensão:
sintática, semântica e pragmática, embora cada dimensão receba maior ou menor
ênfase de acordo com a escola filosófica que a esteja utilizando, correspondendo,
cada dimensão, a uma tendência de uma certa escola filosófica.
Falar de linguagem significa falar de sua tríplice dimensão, como
mencionamos acima, ou seja, significa falar de sintaxe, semântica e pragmática. Na
sintaxe, estuda-se a relação dos signos lingüísticos entre si; na semântica,
vislumbra-se a imbricação dos signos lingüísticos com o significado, ou como as
palavras referem-se aos objetos e, finalmente, na pragmática, está em jogo a
relação dos signos com os sujeitos e do uso que estes fazem, seja das palavras,
seja das proposições.
Tal âmbito de investigação nos reporta para algo fundamental: na filosofia
do século XX tomou-se consciência de que
a linguagem mediatiza toda relação significativa entre sujeito e objeto
e que ela, mais fundamentalmente ainda, está inevitavelmente
presente em toda comunicação humana, a qual implica um
174
Cf., a esse respeito, ARISTÓTELES. Metafísica, Γ 4, 1006 a 1 30, Ensaio introdutório, texto
grego com tradução e comentários de Giovanni Reale. São Paulo: Loyola, 2002, Vol. II, p. 145s. e vol.
III, p. 167s,
175
Sobre a tese de Apel de que a abordagem de Peirce é uma transformação semiótica da filosofia
transcendental de Kant, Cf., APEL, K.-O. De Kant a Peirce: A transformação semiótica da gica
transcendental. In: APEL, K-O. Transformação da Filosofia, II, Op. cit. pp. 179-202, especialmente
p.187 ss.
75
‘entendimento mútuo’ sobre o sentido de todas as palavras usadas e
sobre o sentido do ser das coisas mediadas pelos significados das
palavras
176
.
Numa palavra, todo sentido e toda validade só têm razão de ser enquanto
gestados num todo lingüístico, numa comunidade de comunicação. E esse sentido
expresso lingüisticamente é, por sua vez, mediado pelos sinais da linguagem.
Como dissemos, é da autoria de Peirce a descoberta da função dos
signos. Ele percebeu que o signo tem uma tríplice função: ele “(...) é algo que
representa, para um interpretante, algo diferente em um certo aspecto ou
qualidade”
177
. Vê-se claramente aqui, diferentemente da filosofia moderna, segundo
a qual conhecimento implica relação sujeito-objeto, a mudança de perspectiva no
tocante à epistemologia, uma vez que conhecimento implica relação-entendimento
de sujeitos sobre algo. O que passa a primeiro plano na constituição de sentido do
mundo é que sujeitos se entendem sobre algo. Desta forma, conhecer algo implica
sempre entendimento entre sujeitos. Se antes um sujeito conhecia algo, agora o
conhecimento implica entendimento mútuo, haja vista pressupor sempre sujeitos que
dialogam entre si e se entendem com outros sobre algo. Assim sendo, Apel vai
conjugar essas conquistas da filosofia de Peirce com as mudanças na concepção de
filosofia oriundas da reviravolta lingüística.
Apel faz um esforço teórico para repensar as conquistas da filosofia da
linguagem à luz da filosofia transcendental, superando as limitações de ambas as
posições, e fazer da filosofia um saber responsável que se fundamenta a si mesmo.
Para ele, filosofia tem que ser transcendental, não repetindo simplesmente Kant,
mas repensando-o a partir das conquistas da ‘linguistic turn’, na medida em que o
que é condição de possibilidade não é mais a consciência com suas estruturas
categoriais, mas a linguagem na sua dimensão performativa-proposicional.
O importante para Apel é mostrar que a linguagem é algo ineliminável na
vida humana, enquanto instância constituidora de sentido. E ele mostra isso ao dizer
que todo discurso humano, todo ato de fala tem sempre uma dupla estrutura, qual
seja, proposicional e pragmática, cujo único objetivo não é outro senão explicitar que
176
Cf., HERRERO, J. Ética do Discurso, in: OLIVEIRA, M. A. de (org.) Correntes Fundamentais da
Ética Contemporânea, Petrópolis: Vozes, 2000, p.166.
177
Cf., APEL, K.-O. De Kant a Peirce : A transformação semiótica da lógica transcendental. In: APEL,
K-O. Transformação da Filosofia, II, Op. cit. p.194.
76
todo ato de fala é sempre um discurso sobre algo parte proposicional para
alguém parte performativa. Dito de outro modo, ao falar, ao proferir algo tenho o
objetivo de comunicar a alguém algo. Esse ato me insere numa relação
comunicativa com o outro sobre um determinado assunto e com isso levanto
pretensão de validade sobre o que está sendo dito. A novidade aqui é insistência de
Apel na dimensão pragmática da língua, daí o nome da sua proposta de filosofia:
pragmática transcendental, isso porque ela é a condição de possibilidade da
dimensão proposicional e desta forma a filosofia vai poder falar novamente de
reflexão como sendo característico de seu procedimento, sem cair em antinomia.
4.2 A LINGUAGEM COMO MEIO PARA A FUNDAMENTAÇÃO ÚLTIMA
Depois da reviravolta lingüístico-pragmática, falar de fundamentação
última pressupõe fazer-se uma análise da linguagem para se verificar se tal
empreendimento é viável. Numa palavra, significa explicitar o que se quer dizer
quando se fala em fundamentação. Seria, por assim dizer, como manda todo bom
trabalho acadêmico, aclarar os conceitos utilizados.
Apel, ciente de todas as dificuldades que o esperam, tenta mostrar que o
único caminho viável, porque se exime de contradições, para se falar em
fundamentação em filosofia é o de mostrar que tal intento se torna exeqüível
através de uma análise da linguagem, de uma análise do discurso humano. Para
tanto, Apel recorre às conquistas da escola de Oxford, notadamente de Austin e
Searle
178
, que aprofundaram as conquistas do segundo Wittgenstein no tocante à
explicitação da dimensão performativo/pragmática da linguagem humana ou à
divisão feita por eles entre as dimensões proposicional e performativa da
comunicação humana e na ênfase dada ao segundo aspecto. Com o discurso eu
falo algo (parte proposicional) e levanto pretensão de validade sobre o meu discurso
(parte performativa). É com a tematização da parte performativa que Apel diz ser
possível à filosofia falar novamente em fundamentação, em ser ela novamente um
saber de princípios. Naturalmente Apel faz aqui, contra seus antecessores, que
178
Sobre esses autores, veja-se: AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer, palavras e ão. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1990.
77
diziam competir à filosofia entregar-se à linguagem natural, como um exercício do
uso da língua em seu contexto variável, uma retranscendentalização da filosofia e
diz que se pode falar em fundamentação em filosofia através do resgate da
dimensão pragmática da língua, que torna possível o discurso proposicional e toda
proposição que tenta negar essa dimensão originária da linguagem entra em
contradição, não semântica, de conteúdo, mas entre o ato e seu conteúdo, ou seja,
entre o conteúdo da proposição e o ato de proferir tal sentença, cuja pretensão de
verdade é pretendida pelo ato mesmo de proferi-la. Dessa forma, segundo Apel, a
linguagem, através da explicitação da sua dimensão pragmática, torna-se o caminho
através do qual, no mundo contemporâneo, pode falar-se de fundamentação em
filosofia sem nos tornarmos vítimas das contradições apontadas pela filosofia
analítica, porque aqui a fundamentação se dá através da reflexão da linguagem
sobre ela mesma, em que se chega a sua dimensão transcendental, presente em
todo discurso e toda tentativa de negá-la se faz refém de uma contradição
performativa, porque essas condições transcendentais estão presentes na própria
proposição que tenta negá-la, portanto a fundamentação não se por meio da
cadeia dedutiva de prova, mas a prova é indireta, através da refutação da
proposição que tenta negá-la. E a tentativa de provar tal princípio dedutivamente
esbarra com o que os gregos chamaram de dialelo ou petição de princípio ou ainda
círculo vicioso, que consiste num tipo errôneo de demonstração, em que para
explicar algo que se quer demonstrar, o pressupõe na mesma razão aduzida para
explicá-lo. Numa palavra, aqui a prova se dá por meio da reflexão e não da dedução;
é uma prova indireta, cuja demonstração se através da refutação da proposição
que tenta negá-la.
Apel descobre aqui o ponto arquimédico, o núcleo duro da filosofia
enquanto saber de princípios, enquanto saber cuja tarefa é explicitar a sua própria
estrutura e, outrossim, dos outros saberes. Filosofia é então um saber responsável,
que justifica suas pretensões, e universal, pois essas condições transcendentais
pressupostas em todo discurso, porque sua condição de possibilidade, são
irrecusáveis e universais.
78
4.3 A ESPECIFICIDADE DO SABER FILOSÓFICO: FUNDAMENTAÇÃO ÚLTIMA
OU INCONDICIONAL X FUNDAMENTAÇÃO CONDICIONAL
O ambiente espiritual no qual nos situamos adota como postura
acadêmica básica a tese segundo a qual a ciência é o modelo exclusivo de saber
racional, responsável. Saber é sinônimo de ciência, cujo método procedurístico, para
usar uma expressão habermasiana, é o modelo que inspira todo e qualquer outro
discurso humano que se queira racional. Não galgar este caminho significa refugiar-
se no mundo do poético, da subjetividade, do particular, essa é a tese difundida e
hegemônica hoje.
É nesse ambiente hostil a outro tipo de saber, no qual muitos dizem que o
método científico é absoluto e único, que a filosofia apeliana se insere e brota como
que de um oásis. Seria, dizem alguns, muita pretensão de algum filósofo querer
insistir num saber a filosofia cujo procedimento legitimador não se reduza à
dimensão lógico-formal do conhecimento, paradigma de todo saber.
Apel é conhecedor de tal atmosfera intelectual e, por isso, tem clareza da
tarefa que o espera. Ele procura mostrar aos seus ‘rivais’ que a ciência é sim um
saber racional, universal, portador de um método específico, mas não se constitui no
único. São inegáveis os avanços a que chegou a humanidade no último culo,
propiciado pelo avanço científico e respectivo aparato tecnológico. Isso é inegável,
mas não obstante todos os avanços, o podemos tornar-nos míopes e sectários e
excluir, a priori, a possibilidade de outro saber. Isto porque, como sabemos e
isso aprendemos a duras penas a humanidade é maior do que a ciência, com
efeito, não se confunde com ela, e mesmo que a ciência tenha atingido seu ápice,
tenha desenvolvido todas as suas potencialidades, mesmo assim os problemas
humanos não terão sido tocados, para lembrar Wittgenstein
179
. Portanto, Apel
pretende, de dentro do ceticismo e de todos os tipos de relativismo que nos marcam,
retornar ao “(...) conceito clássico da filosofia como ciência dos princípios, que
pela mediação de uma reflexão estrita da linguagem sobre si mesma na busca dos
princípios intranscendíveis de todo discurso humano”
180
e, com isso, com esse tipo
179
Cf. WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. Op. cit, 6.52.
180
Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Sobre a fundamentação, Op. cit, p. 14.
79
específico de reflexão, mostrar aos céticos e relativistas que eles sempre
pressupõem aquilo que ingenuamente pretendem negar.
Remonta aos gregos a postura intelectual, cujo conteúdo consiste na tese
segundo a qual a filosofia tem um método próprio para legitimar seu saber e isso a
diferencia de outros tipos de conhecimento. Filosofia é sinônimo de saber de
princípios, em que se chega a um conhecimento não condicionado, porque princípio
de todo conhecer. Tal postura, nós a encontramos em Platão, em que na
República
181
diz que dois tipos de conhecimento: o científico cujo método de
trabalho consiste em conhecimento hipotético, particular e provisório e o
conhecimento filosófico, este é tido como o mais abrangente dos saberes, pois
consiste no conhecimento do todo, no conhecimento propriamente filosófico, cujo
método dialético consiste em chegar àquele conhecimento que o admite mais
hipótese, visto ser princípio de tudo e a partir do qual as próprias hipóteses são
inteligíveis.
Essa idéia de um saber seguro, irrecusável, que é tido como princípio
inteligível de tudo, é o ideal grego de saber perfeito, que encontra na filosofia sua
expressão máxima. Isso se deve à necessidade da sociedade grega de então de
justificar seu modo de ser, diante de uma grande crise de valores da qual foi vítima,
e a filosofia emerge como aquele saber capaz de dar uma resposta satisfatória,
porque racional, centrada na razão, para a crise vivenciada. O ideal do
conhecimento que repousa no saber do princípio incondicional parece ser o único
capaz de evitar a capitulação da Grécia como sociedade constituída, portadora de
valores, que agora precisam ser justificados. Emerge nessa época a distinção grega,
vital para a filosofia, pois do contrário sua tarefa seria apenas descrever fatos, entre
gênese e validade, entre o que existe e o que deve existir, entre fato e norma.
A sistematização platônica de um conhecimento filosófico que chega a
princípios últimos e irrecusáveis encontra eco na história da filosofia. Aristóteles,
que não passou pela reviravolta transcendental, lingüística, aborda a questão de
uma maneira mais elaborada e, ousamos dizer, antecipa, em muitos pontos, senão
em todos, a maneira como a pragmática transcendental de Apel abordará a questão,
guardada, é claro, as espeficas motivações históricas, e sem esquecer que Apel,
justamente por se filiar à tradição kantiana, jamais chega a questões de conteúdo,
pois elas, para Apel, são da competência das ciências.
80
Aristóteles explora com maestria, na Metafísica, a consideração da
filosofia como saber que chega a princípios últimos, ciência primeira, e, ao se
confrontar com os ticos, descobre uma alternativa à prova direta, axiomática ou
dedutiva: o conhecimento por refutação ou prova indireta
182
. Através desse tipo de
prova por refutação, Aristóteles tem clareza a respeito dos limites em que está
envolvido o método axiomático que, pela sua própria estrutura, adquire
conhecimento provisório, limitado. E qualquer tentativa de se chegar, através do
conhecimento hipotético, a certezas últimas, desemboca-se num regresso infinito na
cadeia de prova, haja vista ser sempre possível perguntar pela prova das premissas,
e o que era conclusão passa a ser hipótese, e assim sucessivamente e sem fim.
Por conseguinte, através da prova indireta pôde Aristóteles provar o mais
universal dos seus princípios, o princípio de não-contradição. E tendo ele plena
consciência dos limites da demonstração dedutiva, disse ser falta de formação exigir
prova para tudo, que tal anseio se plenifica por meio do argumento de retorsão
– indireto.
Desta sorte, Aristóteles sabia que o se pode exigir demonstração
dedutiva para tudo, não se pode querer demonstrar aquele princípio, cujo sentido
consiste em ser fundamento de todos os outros conhecimentos. A única forma de tal
empreendimento efetivar-se é o caminho da prova indireta, pois com ela chegamos
àquele princípio que não pode ser negado porque razão de ser da própria dúvida. É
graças a esse outro tipo de prova que a filosofia tem hoje a pretensão, com Apel, de
se entender novamente como aquele saber cuja especificidade consiste em ser
saber de princípios, sob pena de não se diferenciar dos saberes particulares e se
tornar, como querem muitos hodiernamente, mera intérprete da atualidade, pura
descrição das variedades culturais. Ir além disso significa pretensão injustificada,
dizem muitos.
181
Cf. PLATÃO. A República, Op. cit, 511
a-d.
182
Cf. ARISTÓTELES. Metafísica, Op. Cit. 982 a 4 b10 e 1005 b35 a 1006 a ss, em cuja parte da
obra Aristóteles acredita poder demonstrar o princípio de não-contradição por via de refutação. Para
isso, diz o estagirita, basta que o cético diga algo e não se comporte como uma planta. Significar algo
é o mesmo que inserir-se no discurso, o que equivale a fazer uso do referido princípio básico,
contradição a ser evitada, do discurso. Sobre o uso que Aristóteles faz do έλεγχτιχως άποδειξαι, veja-
se: ARISTÓTELES. Metafísica, Op. cit., Γ, 1006 a 1 30, Vol. II, p. 145s. e vol. III, p. 167s, em que
Reale comenta sete provas por refutação utilizadas por Aristóteles, no livro quarto da metafísica,
contra os que negavam os princípios básicos da razão. Veja tb. BERTI, E. A Demonstração Elenktica.
In: As Razões de Aristóteles, Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 1998, p. 93ss. No livro
quarto da Metafísica de Aristóteles, podemos encontrar o núcleo duro, para usar uma palavra cara a
Cirne Lima, guardada as devidas cautelas, da Pragmática Transcendental de Apel.
81
É nessa geografia intelectual que Apel vai insistir que filosofia é
conhecimento de princípios, conquistados a partir de uma reflexão da linguagem
sobre si mesma para se chegar a uma fundamentação última de tais princípios. E
isso ele vai fazer confrontando-se com a escola popperiana e com os relativistas de
nosso tempo.
Karl Popper concentra todas as suas forças intelectuais na criação de
uma escola filosófica denominada Racionalismo Crítico, cuja tese central é a de que
a ciência é sempre um projeto inacabado, aberto, em princípio, a novos
experimentos capazes de falsear suas teorias. Ciência é, para Popper, um saber
conjetural, nunca se atingindo o o sonhado sonho ocidental de um saber científico
seguro e definitivo. Em ciência, não chegamos a certezas últimas. A tão sonhada
fundamentação última do saber científico permanece sempre um sonho, porque
sempre axiomático-dedutiva
183
. Para ele, o que demarca o saber científico de outros
saberes é a falseabilidade como critério de demarcação, ou seja, as teorias
científicas devem, em princípio, ser suscetíveis de validação através da experiência
e, embora seja um critério negativo, é o único de que dispomos, segundo Popper.
Assim sendo, nunca chegaremos a um saber definitivo, acabado, a uma
fundamentação última das teorias científicas, pois todo procedimento empírico para
falseá-las, mesmo que não se consigam falseá-las no momento, não podemos
assegurar que não iremos conseguir no futuro. Por isso, tal ‘certeza’ é sempre
provisória. Tal postura de Popper levou-o a um distanciamento do círculo de Viena e
do positivismo lógico
184
.
Pois bem, Apel trava uma verdadeira batalha intelectual com Popper e
com os discípulos da escola popperiana, particularmente com Hans Albert, a fim de
mostrar que tal projeto intelectual é não só viável e legítimo, mas necessário.
Hans Albert, em um livro intitulado Tratado da Razão Crítica
185
, aborda o
problema da fundamentação do saber científico. Segundo ele, o tão sonhado sonho
da civilização ocidental de se chegar a um terreno seguro no campo do saber
científico é impossível porque o único método de que nós seres humanos dispomos
183
Sobre isso conferir a introdução de Luiz MOREIRA à edição brasileira do livro: GÜNTER, K. Teoria
da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. São Paulo: Landy, 2004, pp. 14-16.
184
Sobre os trabalhos de Popper sobre essas questões, veja-se: POPPER, K. R. A Lógica da
Pesquisa Científica, Trad. de Leônidas Hegenberg e Octanny S. da Mota. São Paulo: Ed. Cultrix,
1993, e também, Conjecturas e Refutações, Trad. de Sérgio Bath, Brasília: Ed. UNB, 3ª edição, 1994.
82
para justificar, fundamentar nossas convicções e teorias é o método dedutivo, único
logicamente sustentável, que passa de afirmações universais para casos
particulares, e com o referido método de dedução para se provar tais teorias nunca
se chega a uma conclusão definitiva, a um ponto arquimédico, por se tratar do
método axiomático.
Para Hans Albert, a busca de uma fundamentação para o saber conduz a
um caminho inusitado: com a fundamentação buscamos a verdade para os nossos
enunciados, a fim de nos certificarmos de que não estamos enganados. E a única
forma de se fazer tal procedimento é estruturar nossas afirmações em enunciados
dentro de uma cadeia lógica e, a partir de regras lógicas, chegamos a conclusões. O
problema, segundo Albert, é que tal concluo nunca pode ser definitiva, pois nos
deparamos com a seguinte questão:
quando se exige uma fundamentação para tudo, então terá que se
exigir, também, uma fundamentação para os conhecimentos aos
quais foi remetida a concepção ou seja, o referido conjunto de
enunciados a fundamentar. Isto conduz a uma situação com três
alternativas que parecem, ou são, inaceitáveis, portanto a um trilema
que eu, em vista da analogia existente entre a nossa problemática e
o problema que o famoso barão da mentira teve que solucionar uma
vez, denomino de trilema de Münchhausen
186
.
Hans Albert quer dizer que, quando se quer dar uma fundamentação
última para nossas teorias, desemboca-se em três alternativas possíveis: primeiro,
se cai num regresso infinito, no qual uma conclusão nunca é definitiva, pois é
perfeitamente legítimo perguntar sempre de novo pelo novo fundamento da
conclusão apresentada, e uma nova cadeia de prova é criada, e de novo,
indefinidamente e sempre mais, porque nunca chegamos ao fim; em segundo,
ficamos diante de um círculo lógico na cadeia de dedução dos enunciados, porque
fazemos uso de enunciados utilizados anteriormente e, por o serem
demonstrados, porque axiomáticos, perguntamos pelo seu fundamento, num
processo circular e vicioso; e, em terceiro lugar, chegamos a interromper
dogmaticamente a cadeia de prova, ou a busca de fundamentos para nosso saber. É
185
Cf. ALBERT, H. Tratado da Razão Crítica, trad. de Idalina A. da Silva, Érika Gudde e Maria José
P. Monteiro. Rio de janeiro: Ed. Tempo brasileiro, 1976, consulte-se principalmente o capítulo
primeiro, onde Albert vai tratar diretamente do problema da fundamentação, às pp. 22-46.
186
Cf. ALBERT, H. Tratado da Razão Crítica, Op. cit. p. 26. Veja-se também: MÍLOVIC, M. Filosofia
da comunicação. Op. cit, p. 186-187.
83
a essas três alternativas possíveis, dentro de uma execução na busca de
fundamento para as nossas teorias, que Hans Albert denominou, como ele mesmo
diz, de trilema de Münchhausen. Alternativas igualmente insatisfatórias porque
logicamente insustentáveis.
Com esses fortes argumentos e como os popperianos dominam muito
bem o aparato lógico da filosofia moderna, seria insensato porque racionalmente
insustentável buscar amparo, na execução do argumento de fundamentação última,
numa das três alternativas apresentadas. O próprio Albert reconhece que muitos
tendem a optar pela terceira alternativa, justificando o caráter auto-evidente da
verdade. Ora, tal solução escamoteia o problema apresentado, mas não o
elimina, de tal sorte que não nos resta outra alternativa senão nos entregarmos ao
caráter provisório do saber e abandonar definitivamente o grande ideal da filosofia
ocidental, gestado primeiramente no mundo helênico: o ideal de atingirmos a
verdade, de termos um conhecimento seguro, fundamentado em bases sólidas.
É diante desta atmosfera que Karl-Otto Apel tenta recuperar a filosofia
como saber de fundamentos. E é claro que ele sabe mais do que ninguém que tem
que enfrentar tais críticas e mostrar como sua proposta de uma filosofia
transcendental pragmática escapa a elas.
Apel vai dizer que Hans Albert tem toda razão na solução apresentada
para o problema da fundamentação da ciência. De fato, para Apel, não há, diante do
ponto de vista do método axiomático-dedutivo, alternativa às críticas apresentadas
por Albert no trilema de Münchhausen. Ele tem toda razão. O problema é que Apel,
quando fala em fundamentação, não entende o mesmo que Albert e os outros
popperianos, incluindo o próprio Popper. Ele tem clareza de que tal questão fora
tratada, em Aristóteles, por exemplo, e de que recentemente fora articulada de
forma mais sistemática pela escola popperiana como forma de “discernimento
fundamental do ‘racionalismo crítico’ quanto à impossibilidade de uma
‘fundamentação última’ (Letztbegründung) da filosofia (e na filosofia)”
187
, acabando,
inclusive, com as pretensões do Círculo de Viena, cuja tarefa consistia em mostrar a
falta de sentido das afirmações da metafísica clássica e, em contrapartida, fazer eco
à corrente filosófica, por eles iniciada, segundo a qual na ciência alcançamos o
tão sonhado saber seguro e definitivo, uma vez que suas teorias são comprovadas
pela experiência e representam um discurso coerente do ponto de vista lógico-
84
lingüístico, pois suas afirmações são constituídas de sentenças, cujos elementos
constituidores significam algo real no mundo empírico. Portanto, elas são possíveis
de serem testadas empiricamente.
Apel reconhece que o mal estar causado pelas constantes críticas à
fundamentação filosófica foi tamanho, que em conseqüência tivemos o irrefletido
abandono puro e simples de toda tentativa de fundamentação, porque inconsistente
e, por isso, redundaria em inconsistências lógicas insolúveis. A crise foi e é tão
grande que praticamente abandonou-se, em filosofia, a tentativa de fundamentação,
de justificação do saber filosófico. Apenas filosofa-se, sem maiores pretensões,
como se à filosofia não coubesse a tarefa de ir à busca de um sentido último, de um
fundamento último, que legitime o pensar e o agir. Tal postura significa, para
alguns
188
, o abandono daquilo que os gregos consideravam a tarefa precípua da
filosofia e que, de certa forma e timidamente, hoje é assumida pela física e pela
biologia contemporâneas, por exemplo, como sendo suas principais tarefas, qual
seja a de chegar a uma compreensão unitária do universo, muito embora a questão
mesma da filosofia não seja simplesmente com teorias unificadas sobre universo,
mas com a problemática da viabilidade e da possibilidade de fundamentar princípios
últimos, esse é o “X” da ‘questão’ para filosofia.
Apel emerge em um contexto filosófico apático e refratário às
considerações filosóficas mais sistemáticas. Com isso, ele vai sentir a necessidade,
187
Cf. APEL, K.-O. Transformação da filosofia, II, Op. cit, p. 458.
188
Para Cirne-Lima, uma grande preocupação das ciências contemporâneas com teorias
unificadas. Veja-se, a esse respeito, CIRNE-LIMA, C. Liberdade e Razão. In: Saber filosófico, história
e transcendência, homenagem ao Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz, Org. João A. M. Dowell, SJ,
São Paulo: Edições Loyola, 2002, pp.175-195. Exemplo disso é o sucesso das teorias dos sistemas
ou da auto-organização, que para ele é uma legítima herdeira do modo de pensar da tradição
neoplatônica. “Auto-organização é a forma contemporânea de pensar e dizer o que a tradição
chamava de causa sui e, em época posterior, de autodeterminação. A teoria dos Sistemas e de auto-
Organização é a roupagem sob a qual se esconde, em nossos dias, a ontologia do neoplatonismo”.
Cf, CIRNE-LIMA, C., Causalidade e auto-organização. In: Dialética e auto-organização. Org.: Carlos
Cirne-Lima e Luiz Rohden, São Leopoldol: Editora Unisinos, 2003. A Filosofia tem abandonado uma
tarefa que por direito e tradição é sua e a tem deixado nas mãos das ciências, como a física, cujo
empreendimento maior consiste em chegar a uma teoria unificada de campo, ou seja, conseguir
clareza a respeito de uma teoria que seja capaz de conter em si as quatro grandes forças do
universo: forças nucleares fraca e forte, o eletromagnetismo e a gravitação universal. Podemos dizer,
portanto, que a busca de um princípio único, a partir do qual todas as outras realidades encontrem
sentido, porque são explicadas a partir dele, e que antes era a tarefa da filosofia, hoje é assumida
principalmente pela física. Sobre esse anseio dos físicos em elaborar uma teoria maior, abrangente,
que seja capaz de conter em si as principais forças do universo, Cf. WEINBERG, E. Sonhos de uma
teoria final. A busca das leis fundamentais da natureza. Trad. Carlos I. da Costa, Rev. Técnica de
Ildeu de C. Moreira, Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1996. Veja também: HAWKING, S. Buracos negros,
universos-bebês e outros ensaios. Trad. de Maria Luiza X. de A. Borges, Rio de Janeiro: Ed. Rocco,
1995.
85
e isso é, do ponto de vista acadêmico, altamente imprescindível, de esclarecer o seu
ponto de vista filosófico, justificando-o. Ele vai dizer que fundamentação é, em
filosofia, absolutamente necessário e indispensável, do contrário, ela, a filosofia, não
estaria desempenhando o papel que lhe cabe no campo do saber. E isto ele vai
fazer, como foi mostrado, através de uma reformulação do pensamento
transcendental de Kant, através do diálogo com a corrente de pensamento
denominada pragmática lingüística. Sua filosofia, por isso, chamar-se-á pragmática
transcendental.
Para Apel, os popperianos têm razão ao dizer que toda fundamentação
caminha para um caminho ermo, sem soluções porque quando eles falam de
fundamentação, eles entendem a derivação por dedução a partir de sentenças, e
eles têm razão. Apel concorda dizendo que se fundamentação é sinônimo de
derivação de sentenças a partir de sentenças, realmente não alternativa, vemo-
nos frente a uma das alternativas apresentadas por Albert no trilema. E assim, na
trilha de um caminho no qual não solução razoável possível para o problema da
legitimidade do saber filosófico, Apel se sente interpelado a dizer, ou a explicar, o
que é que ele entende quando diz que a fundamentação filosófica última é
absolutamente indispensável.
Ora, para Apel, a filosofia, por ser saber de princípios, tem, por ser sua
tarefa específica, a obrigação de explicar o que ela entende por saber de princípios,
de fundamentação. Desta forma, quando Apel fala em necessidade de
fundamentação última, ele não entende fundamentação da mesma maneira como os
popperianos a entendem. De fato, Apel diz que se trata de reflexão e não de
dedução. Trata-se de refletir sobre os pressupostos intranscendíveis e inelimináveis
de todo discurso. Aqui, a partir da reflexão sobre tais pressupostos, chega-se, em
filosofia, a um conhecimento seguro, ao contrário das ciências que, pela própria
limitação inerente ao método de prova utilizado entenda-se dedução de algo a
partir de algo diferente – só chega a um saber hipotético, provisório, limitado.
Apel pretende recuperar a filosofia como saber responsável, saber de
princípios. Como aquele saber, cuja especificidade consiste em refletir sobre seus
próprios pressupostos, a partir de um procedimento específico, alternativo ao
utilizado pelos outros saberes.
Para Apel, abandonar o problema da fundamentação em filosofia, movido
pelo ceticismo advindo com as críticas severas e pertinentes de Popper e Hans
86
Albert, seria o mesmo que desistir da atividade filosófica, entendendo-se filosofia
como um saber responsável, racional e universal, que traria conseqüências nefastas,
principalmente no campo do saber ético, em um mundo globalizado, cujas ações
humanas tomaram dimensões planetárias, graças ao desenvolvimento tecnológico
alcançado nas últimas décadas.
189
Assim sendo, a problemática da fundamentação filosófica é, para Apel,
não uma questão a mais a ser tematizada, mas a questão por excelência de uma
filosofia responsável, cuja competência lhe permita dialogar com o mundo
contemporâneo e concluir que
quando constatamos, no contexto de uma discussão filosófica de
fundamentos, que alguma coisa não pode ser fundamentada porque
ela mesma é condição de possibilidade de toda fundamentação,
então não teremos simplesmente constatado uma aporia no
procedimento dedutivo, mas teremos chegado, sim, a um
discernimento no sentido da reflexão transcendental
190
.
Numa palavra, podemos dizer, antecipando, que aqui está o âmago, o
cerne do problema: reflexão e o dedução é o ponto chave para falarmos em
fundamentação filosófica. Essa é a proposta apeliana e veremos agora em que ela
consiste.
Conforme Apel, todo discurso humano sensato, e aqui Apel se refere
explicitamente à teoria popperiana do falibilismo, com a qual dialoga
constantemente, pressupõe, como sua condição de inteligibilidade, o princípio do
discurso. E tal princípio é, para usar uma expressão da hermenêutica filosófica, não
tematizado, a priori, evidente. Portanto, diz Apel, o próprio princípio do falibilismo,
tão ovacionado pelos popperianos, precisa ele mesmo ser fundamentado, sob pena
de ficar permanentemente com um déficit de racionalidade. Somente após a
necessária fundamentação filosófica do princípio do falibilismo poderá a ciência
moderna postular o falibilismo como uma de suas características constitutivas.
189
Sobre a problemática atual da ética e uma consideração filosófica a respeito da especificidade do
saber ético, veja-se: APEL, K.-O. O a priori da comunidade de comunicação e os fundamentos da
ética. Sobre o problema de uma fundamentação racional da ética na era da ciência. In:
Transformação da filosofia, vol. II, pp 407-491. HABERMAS, J. Notas programáticas para a
fundamentação de uma ética do discurso. In: Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido A.
de Almeida. Rio de janeiro: Ed. Tempo brasileiro, 1989, pp. 61-141. Sobre as diferenças entre as
posturas de Apel e Habermas a respeito da fundamentação da ética, Cf. OLIVEIRA, M. A. de. A ética
do discurso. In: Ética e racionalidade moderna. São Paulo: Ed. Loyola, 3ª ed., 2002.
190
Cf. APEL, K.-O., Op. cit. p. 459.
87
Com a explicitação dos pressupostos do discurso argumentativo, diz Apel,
chegamos, de forma sensata, ao caminho que nos permitirá abordar de forma
satisfatória a problemática da fundamentação. Aqui reside o segredo, aqui está, diz
Apel, a única forma de nos livrarmos do trilema de Münchhausen, pois não vamos
derivar algo de algo diferente. Vamos apenas explicitar aquilo que desde sempre
está presente; iremos apenas tematizar, refletir sobre os pressupostos presentes em
todo discurso humano.
Nessa análise, uma importante conquista foi a conclusão a que chegou a
escola de Oxford nos seus estudos sobre a linguagem humana, quando descobriu
que ela é portadora de uma dupla dimensão: as dimensões proposicional e
performativa. Na dimensão proposicional temos as considerações sintático-
semânticas da língua, relativas ao conteúdo do discurso; na performativa, ressaltam-
se as relações comunicativas que se estabelecem entre os participantes do discurso.
Esta dimensão performativa foi atingida na última fase da filosofia da
linguagem e Apel se apropria dela, transformando-a a partir do contato com a
filosofia transcendental. A proposta de Apel é reformular a filosofia transcendental
kantiana a partir das conquistas recentes da filosofia da linguagem, principalmente
da última fase, cujo interesse se radica no encontro entre os participantes do
discurso, que têm no consenso racional sua razão de ser.
Portanto, para Apel, fundamentação filosófica última consiste em um
retorno reflexivo aos pressupostos presentes em todo discurso, em todo ato de fala.
A partir desse retorno reflexivo, chegamos a certos pressupostos que são condição
de possibilidade de todo discurso, inclusive do próprio falibilismo, do próprio trilema.
Com esta clareza conquistada, Apel pôde livrar-se do entrave imposto pelo trilema a
toda tentativa de fundamentação, que aqui não se trata de derivação de um
conhecimento a partir de outro e, por isso, presa fácil do trilema, mas trata-se de
reflexão, de um retorno reflexivo aos pressupostos da própria fala. Com isso, chega-
se àquilo que está presente em todo discurso, portanto chega-se a algo ineliminável,
algo fundamentado em última instância, porque condição da própria dúvida. Até os
céticos têm que se submeter a este princípio fundamental para serem levados a
sério, pois do contrário, como viu muito bem Aristóteles, teriam que se comportar
como planta. Assim, querer negar tal princípio fundamental é o mesmo que incorrer
em contradição, não semântica, que é a que existe entre sentenças, mas
pragmática, cujo sentido básico consiste na negação do inegável, porque sua
88
condição de possibilidade. É o mesmo que dizer: não existe verdade. Ora, para tal
frase ser verdadeira, pelo menos uma verdade deve existir: a de que não existe
verdade e, desta forma, ela implode, porque seu conteúdo conflita com sua
pretensão pragmática: o ato de falar quer a verdade, pressupõe-na, ao passo que a
parte semântica do discurso, o conteúdo, nega tal verdade. aqui um desencontro
entre o que se pretende ao falar e o conteúdo do ato de fala. Este tipo de
contradição pragmática é que vai ser o motor ao qual Apel terá que recorrer para
fundamentar a sua posição filosófica denominada de pragmática transcendental.
Apel encontra, na contradição pragmática
191
a ser evitada, o núcleo duro
da prova de fundamentação última filosófica e afirma que ela é não só possível, mas
extremamente necessária, como ponto de demarcação entre o saber filosófico e o
saber científico, pois do contrário, a filosofia seria um ‘saber’, uma palavra
desautorizada para falar com responsabilidade no e com um mundo, cujas
características sicas são as extremas desigualdades e conflitos que atingem os
povos de maneira brutal.
Precisamente neste contexto específico de muitos problemas e poucas
alternativas, diz Apel, a filosofia, mais do que em qualquer outra época, precisa
firmar-se como um saber, cuja especificidade consiste em fazer da fundamentação
filosófica o ponto de diferenciação em relação aos outros saberes e assim, sentir-se
autorizada a falar, de maneira sensata e sem dogmatismos, sobre os grandes
problemas que afligem a humanidade. Significa dizer que precisamos pautar-nos,
sempre, no nosso convívio diário e inevitável por um consenso racional
fundamentado, a fim de dirimirmos nossos problemas e conflitos em todas as
esferas que eles se façam presentes. Discussão racional e fundamentada dos
problemas e pretensões apresentadas, esse é o lema da filosofia apeliana.
191
Cirne-Lima propõe construir um sistema filosófico, com pretensões materiais, de conteúdo,
portanto, uma ontologia, que tenha na contradição pragmática o fundamento de tal sistema. Cf,
CIRNE-LIMA, C. R. V. Sobre a contradição pragmática como fundamentação do sistema, in: Síntese
nova fase, v. 18, nº 55, out-dez 1991.
89
CONCLUSÃO
A filosofia apeliana faz jus à afirmação segundo a qual a filosofia é um
confronto com o clima teórico do seu tempo ou, para falar com Kant, um tribunal que
julga suas pretensões teóricas. De fato, Apel parte da própria atividade filosófica
reinante no nosso tempo e diante dela faz ressurgir um filosofar da prima filosofia, no
sentido de se chegar a um saber dos fundamentos do conhecimento humano, pelo
viés da linguagem. Emerge aqui a filosofia da linguagem como um novo paradigma
para a filosofia enquanto tal e não um tema a mais da reflexão filosófica. A
pragmática transcendental passa a ser a filosofia primeira à altura dos nossos
tempos porque é capaz de dialogar com as demais correntes filosóficas e mostrar-
lhes o motivo pelo qual elas são parciais, na medida em que são incapazes de se
justificarem a si mesmas, e isso por acolherem as teses da pós-modernidade
filosófica: historicidade do saber, razão fragmentada, particular, culturalmente
determinada.
Apel mostra que a transformação da filosofia enquanto tal, mediante a
tese da centralidade da linguagem na atividade filosófica, põe-nos diante de um
novo quadro teórico, diante de um novo paradigma na filosofia, para lembrar Kuhn.
O fato de a reviravolta lingüística pôr a linguagem no centro da reflexão filosófica não
pode consistir em pôr a linguagem, entendida como instância mediadora da
racionalidade, no paradigma sujeito-objeto coroado pela clássica teoria
transcendental do conhecimento (Descartes, Kant), como se o modelo kantiano de
‘consciência em geral’ funcionasse como sujeito transcendental da linguagem. Por
outro lado, a transformação da filosofia, postulada por Apel, também não pode
consistir em uma mera identificação do sujeito transcendental do conhecimento com
o limite lingüístico do mundo.
Todos os intentos, a fim de transformar a prima filosofia, a partir do ponto
de vista estrito de uma filosofia da linguagem, quer analítica (seja ela sintática,
semântica ou pragmática), quer hermenêutica, quer mesmo semiótica, tendem
estruturalmente ao fracasso, sempre que se insiste em entender o pensamento
inscrito em uma lingüisticidade (e por via disso, a própria validação justificacional do
conhecimento) como função de uma consciência solipsisticamente concebida. A
90
alternativa, segundo Apel, para se furtar às parcialidades das posições filosóficas
precedentes, é a de tematizar a ‘prima filosofia’ como um paradigma teórico que
emerge a partir da tematização da linguagem, que resulta de uma reflexão filosófica
transcendental sobre e mediante a linguagem, reflexão essa, para Apel,
transcendentalmente dependente de um a priori comunicacional.
O retorno a Kant, ensaiado por Apel no interior de uma perspectiva
transformacional da filosofia, tem, por conseguinte, de ser objeto de uma leitura
crítica. É precisamente na esteira desse sentido crítico que a tarefa apeliana de
fundamentar a filosofia, em plena era da linguagem, sem cair fatalmente nas
armadilhas conceituais não da suspeita da filosofia analítica, pelo menos em sua
primeira fase, contra a metafísica, como também da conjura pós-moderna contra a
razão, pressupõe um regresso – não uma regressão – à doutrina transcendental.
A filosofia de Apel não pretende, pois, repensar sequer a inserção da
teoria tradicional do conhecimento no binômio clássico sujeito-objeto. Pretendê-lo
seria não partilhar, ainda que de forma implícita, o pesado fardo da herança
solipsística da filosofia moderna (cartesiana-kantiana-husserliana) da consciência,
como admitir também a imunidade canônico-transcendental do subjetivismo que a
epistemologia contemporânea contempla, ao reduzir fático-naturalístico-
instrumentalmente o sujeito da teoria e da práxis a um objeto de saber manipulável,
uma vez que tudo é objeto de uma observação empírica, inclusive o próprio sujeito.
Para ser blindada contra essas malversações das filosofias pós-
modernas, a filosofia apeliana terá de assumir radicalmente a tarefa de empreender
uma desconstrução conseqüente da filosofia do sujeito, à luz de uma
transcendentalização da linguagem e, interremissivamente, de proceder a uma
fundamentação reflexiva da linguagem transcendentalizada à luz de uma justificação
a priorística da comunicacionalidade.
Em que consiste para Apel a pedra de toque filosófica desse projeto?
Consiste, pois, em transformar o ponto supremo e unitário da teoria kantiana do
conhecimento, substituindo reflexivamente a síntese transcendental da apercepção,
entendida como unidade da consciência do objeto, pela síntese transcendental da
mediação lingüística, entendida como unidade do consenso sobre algo em uma
comunidade de comunicação, síntese essa que, segundo Apel, fundamentaria, em
última instância, o caráter público do conhecimento. Numa palavra, substituir uma
metafísica do ‘eu penso’ por uma filosofia crítica da formação do consenso em uma
91
comunidade real de comunicação. Nessa transformação crítica da ‘metafísica’
consistiria propriamente a “transformação da filosofia”.
Dessa forma, a filosofia voltaria a ser saber dos saberes, ou seja, o tipo
de saber que tem como tarefa a legitimação dos pressupostos últimos de todo saber
e, com isso, de si mesmo. E isso pode acontecer mediante uma demonstração
reflexiva enquanto explicitação das condições de possibilidade da práxis
comunicativa pela mediação da contradição performativa. Somente entendida dessa
forma, diz Apel, a Filosofia volta a ser “Prima Philosophia”.
92
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERT, Hans. Tratado da Razão Crítica. Tradução de Idalina A. da Silva, Érika
Gudde e Maria José P. Monteiro. Rio de Janeiro: Ed. Tempo brasileiro, 1976.
ALMEIDA, Guido Antônio de. Kant e o “Escândalo da Filosofia”. Revista Kriterion, v.
XXXVIII, nº 95 (1997).
APEL, Karl.-Otto. Transformação da filosofia I: Filosofia analítica, semiótica,
hermenêutica. Vol. I, Trad. Paulo Astor Soethe, São Paulo:Loyola, 2000.
______________ Transformação da filosofia II: O a priori da comunidade de
comunicação, Vol. II, Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000.
ARISTÓTELES. Metasica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e
comentários de Giovanni Reale. Tradução de Marcelo Perine. Vol. I: ensaio
introdutório; Vol. II: texto grego com tradução ao lado; Vol. III: sumários e comentário
São Paulo: Loyola, 2002.
AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer, palavras e ação. Tradução e
apresentação à edição brasileira de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1990.
BERTI, Enrico. As Razões de Aristóteles. Tradução de Dion Davi Macedo. São
Paulo: Loyola, 1998.
BONACCINI, Juan Adolfo. A dialética em Kant e Hegel. Ensaio sobre o problema da
relação entre ser e pensar. Natal: Editora da UFRN, 2000.
CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Tradução de Álvaro Cabral. Revisão cnica de
Valério Rohden. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
CIRNE-LIMA, Carlos Roberto Velho. Dialética para principiantes. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1996.
_____________ Liberdade e Razão. In: Saber filosófico, história e transcendência,
homenagem ao Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz, Org. João A. M. Dowell, SJ,o
Paulo: Edições Loyola, 2002.
_____________ Sobre a contradição pragmática como fundamentação do sistema.
Síntese nova fase, v. 18, nº 55, out-dez, São Paulo: Loyola 1991.
_____________ Causalidade e auto-organização. In: Dialética e auto-organização.
Org.: Carlos Cirne-Lima e Luiz Rohden, São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.
COSTA, Regenaldo da. Ética do discurso e verdade em Apel. Belo Horizonte: Del
Rey, 2002.
93
DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado
Júnior, col. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
GÜNTER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e
aplicação. Tradução de Cláudio Molz. Coordenação, revisão técnica e introdução à
edição brasileira de Luiz Moreira. São Paulo: Landy, 2004.
HAACK, Susan. Filosofia das lógicas. Tradução de sar Augusto Mortari e Luiz
Henrique de Araújo Dutra. São Paulo: Editora Unesp, 2002.
HABERMAS, Jurgen. A filosofia como guardador de lugar e intérprete. In:
Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradução de Guido A. de Almeida, Rio de
Janeiro: Tempo brasileiro, 1989.
_____________ Pensamento s-metafísico. Estudos filosóficos. Tradução de
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
_____________ Uma outra saída da filosofia do sujeito: razão comunicacional
versus razão centrada no sujeito. In: O discurso filosófico da modernidade. Tradução
de Ana Maria Bernardo, José Rui M. Pereira, Manuel J. S. Loureiro, Maria A. E.
Soares, Maria H. R. de Carvalho, Maria L. de Almeida e Sara C. Seruya. Revisão
científica de António Marques. Lisboa: Publicações Dom Quixote. 1990.
HAWKING, Stephen. Buracos negros, universos-bebês e outros ensaios. Tradução
de Maria Luiza X. de A. Borges, Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1995.
HERRERO, Francisco Javier. Ética do Discurso, in: OLIVEIRA, M. A. de (org.)
Correntes Fundamentais da Ética Contemporânea, Petrópolis: Vozes, 2000.
_____________ A razão kantiana entre o logos socrático e a pragmática
transcendental. Síntese nova fase, nº 52, São Paulo: Edições Loyola, 1991.
HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Tradução de Christian Viktor Hamm e Valério
Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
HUME, David. Investigação acerca do entendimento Humano. Trad. de Anoar Aiex,
Col. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1992.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre Fradique Morujão. Introdução e notas de Alexandre Fradique Morujão. 3ª.
ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
____________ Prolegómenos a toda a metafísica futura. Tradução de Artur Morão.
Lisboa: Edições 70, 1987.
LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. A Metafísica na Modernidade. In: Escritos de
Filosofia III .Filosofia e Cultura, São Paulo:Loyola, 1997.
____________ Escritos de filosofia VII: Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola,
2002.
94
LOCKE, John. Ensaio acerca do Entendimento Humano, trad. de Anoar Aiex, col. Os
Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1991.
MÍLOVIC, Míroslav. Filosofia da comunicação. Para uma crítica da modernidade.
Brasília: Ed. Plano, 2002.
MOREIRA, Luiz. Introdução à edição brasileira. In: GÜNTER, Klaus. Teoria da
argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Tradução de Cláudio
Molz. Coordenação, revisão técnica e introdução à edição brasileira de Luiz Moreira.
São Paulo: Landy, 2004.
MORUJÃO, Alexandre Fradique. Prefácio da tradução portuguesa, in: KANT,
Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre Fradique Morujão. Introdução e notas de Alexandre Fradique Morujão. 3ª.
ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A ética do discurso. In: Ética e racionalidade
moderna. 3ª ed. São Paulo: Ed. Loyola, 2002.
____________ A filosofia na crise da modernidade. São Paulo: Loyola, 1989.
____________ Filosofia transcendental e religião. São Paulo: Loyola, 1984.
____________ Filosofia: Lógica e Metafísica. In: IMAGUIRE, G. & ALMEIDA. C. L.
S. & OLIVEIRA, M. (org.). Metafísica contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007.
____________ Para além da fragmentação. Pressupostos e objeções da
racionalidade dialética contemporânea. São Paulo: Loyola, 2002.
____________ Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. São
Paulo: Loyola, 1996.
____________ Sobre a fundamentação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993.
PASCAL, George. O pensamento de Kant. Tradução de Raimundo Vier, 3ª. Ed.,
Petrópolis: Vozes, 1990.
PINTO, Paulo Roberto Margutti. Iniciação ao silêncio. Uma análise do Tractatus de
Wittgenstein como forma de argumentação. São Paulo: Loyola, 1998.
PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 7ª edição, 1993.
_________ Sofista. Col. Os Pensadores, Trad. e notas de Jorge Paleikat e João
Cruz Costa. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
POPPER, Karl Raimund. A Lógica da Pesquisa Científica. Tradução de Leônidas
Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Ed. Cultrix, 1993.
95
__________ Conjecturas e Refutações. Tradução de Sérgio Bath. edição,
Brasília: Ed. UNB, 1994.
REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão. Releitura da metafísica
dos grandes diálogos à luz das “doutrinas não-escritas”. Tradução de Marcelo
Perine. São Paulo: Ed. Loyola, 1997.
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant. Seu fundamento na
liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1986.
SANTOS, Luiz Henrique Lopes dos. A essência da proposição e a essência do
mundo. In: WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução,
apresentação e ensaio introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos.
edição
revista e ampliada. São
Paulo: Edusp, 1994.
___________ A harmonia essencial. In: NOVAES, A. (org.). A crise da Razão. São
Paulo: Companhia das Letras; Brasília, DF: Ministério da Cultura; Rio de Janeiro:
Fundação Nacional de Arte, 2006.
SMITH, Plínio Junqueira. Ceticismo filosófico. São Paulo: EPU, Curitiba: Editora da
UFPR, 2000.
___________ O ceticismo de Hume. São Paulo: Loyola, 1995.
TARSKI, Alfred. A concepção semântica da verdade. Textos clássicos de Tarski.
Tradução de Celso R. Braida, Cézar A. Mortari, Jesus de P. Assis e Luiz H. de A.
Dutra. MORTARI, C. A. & DUTRA, L. H. A. (orgs.). São Paulo: Editora Unesp, 2007.
WEINBERG, Steven. Sonhos de uma teoria final. A busca das leis fundamentais da
natureza. Tradução de Carlos Irineu. da Costa. Revisão técnica de Ildeu de C.
Moreira e Sandra Amato. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1996.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução, apresentação e
ensaio introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos.
edição revista e ampliada.
São
Paulo: Edusp, 1994.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo