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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
CARLOS EDUARDO MARCOS BONFÁ
A MODERNIDADE POÉTICA
EM CESÁRIO VERDE E GOMES LEAL
A
RARAQUARA S.P.
2009
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CARLOS EDUARDO MARCOS BONFÁ
A MODERNIDADE POÉTICA
EM CESÁRIO VERDE E GOMES LEAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários da Faculdade de
Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho”, campus de Araraquara, para
obtenção do tulo de Mestre em Letras na área de
Estudos Literários.
Linha de pesquisa: História Literária e Crítica
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Renata Soares Junqueira
Bolsa: Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq)
ARARAQUARA – S.P.
2009
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CARLOS
EDUARDO
MARCOS
BONFÁ
A MODERNIDADE POÉTICA
EM
CESÁRIO VERDE E GOMES LEAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários da Faculdade de
Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho”, campus de Araraquara, para
obtenção do tulo de Mestre em Letras na área de
Estudos Literários.
Linha de pesquisa: História Literária e Crítica
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Renata Soares Junqueira
Bolsa: Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq)
Data da qualificação: 05/03/2009
M
EMBROS COMPONENTES DA
B
ANCA
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XAMINADORA
:
Presidente e Orientador: Profa. Dra. Renata Soares Junqueira
UNESP
Membro Titular: Profa. Dra. Orna Messer Levin
UNICAMP
Membro Titular: Prof. Dr. Adalberto Luis Vicente
UNESP
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha orientadora Renata Soares Junqueira pela atenção, paciência,
dedicação e pelo valor que me deu enquanto aluno e pesquisador. Ela me foi um
estímulo desde a Graduação.
Agradeço também aos meus pais, Carlos Ivan Bonfá e Cleide Marcos Bonfá, por
sempre me terem incentivado e ajudado a trilhar esse caminho tão árduo do estudo.
Que venhas lá do céu ou do inferno, que importa,
Beleza! ó monstro ingênuo, gigantesco e horrendo!
Se teu olhar, teu riso, teus pés me abrem a porta
De um infinito que amo e que jamais desvendo?
Charles Baudelaire (1985, p. 155)
BONFÁ, C. E. M. A modernidade poética em Cesário Verde e Gomes Leal.
Araraquara, 2008. 128 p. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) Faculdade de
Ciências e Letras, Campus de Araraquara, Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho”.
RESUMO
Este trabalho pretende apontar e analisar elementos que confirmem o
pioneirismo dos poetas portugueses Cesário Verde (1855-86) e Gomes Leal (1848-
1921) em relação à modernidade poética em Portugal, contribuindo para a ampliação da
fortuna crítica dos dois autores e, sobretudo, da de Gomes Leal, poeta muito importante
e ainda insuficientemente conhecido nos meios universitários brasileiros. A análise
contemplaos principais temas da poesia moderna a relação dúbia com o universo
urbano-industrial, a femme fatale, a despersonalização e a identificação dos contrários –
e a sua expressão formal na poesia de Cesário e de Gomes Leal. Ficarão mais evidentes,
neste quadro, as relações que se estabelecem entre as duas poéticas.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia Moderna; Poesia Portuguesa; Cesário Verde; Gomes
Leal; Obra Poética Integral de Cesário Verde (1855-86); Claridades do Sul.
SUMÁRIO
1. O vôo rasante...............................................................................................................8
2. A “intencidade”..........................................................................................................31
3. As delicadezas do mal. As transfigurações da imagem feminina..........................68
4. Cai a máscara.............................................................................................................89
5. Quando os opostos se atraem..................................................................................103
6. Conclusões................................................................................................................114
Bibliografia...................................................................................................................119
Abstract..........................................................................................................................126
8
1. O Vôo Rasante
Modernidade. Certas palavras possuem, como a areia, a capacidade de escorrer pelos
vãos de nossos dedos. Se atualmente tentamos compreender melhor expressões como pós-
modernidade, modernidade radicalizada, alta modernidade, é porque a modernidade ainda não
foi suficientemente definida, ou melhor, é porque a modernidade, fundada no princípio da
consciência crítica, faz a crítica de si mesma e origina outras modernidades, irmãs rivais.
1
Isto
é, não nos definimos completamente, ou ainda estamos nos reinventando enquanto modernos.
Nós, os ainda modernos, na ausência de outra expressão. A modernidade é uma realidade
procriadora.
O que define a modernidade é, então, o princípio da consciência crítica fruto da Raison
e diapasão intelectual da maioria das mentalidades do século XVIII. A modernidade adquire
fôlego com as idéias da burguesia revolucionária, que abraçam todos os campos: filosofia,
política, economia, religião, direito, moral, História. A literatura era o instrumento de
divulgação dessas idéias, sempre orientadas pelos conceitos de Progresso, Liberdade e
Ciência. As tentativas de concretizar essas idéias Revolução de Independência dos Estados
Unidos (1770-74) e Revolução Francesa (1789) – fundam a História moderna, segundo a qual
as sociedades civilizadas devem ser regidas pelos princípios do Liberalismo, pelo poder
universal e democrático e pelo trabalho livre. A própria noção de História com a qual nos
acostumamos surge com essa modernidade. O pensar sobre si, a dobra” da consciência
crítica propicia a consciência histórica, sendo a História interpretada, a partir de agora, pelo
homem, em oposição à noção teocêntrica e teológica. O conceito de progresso “abre” o
horizonte da História, antes concebida como Gênese e Apocalipse. A eternidade, no
pensamento cristão, existe porque a História finda. Contrariamente, no pensamento guiado
pelo conceito de progresso, a eternidade existe porque a História é orientada ad infinitum. A
História guiada pelo progresso é a eternidade secularizada, objetiva. A modernidade se inicia
com a secularização do Cristianismo e com o processo da autonomia do homem no mundo.
A consciência crítica da modernidade possibilita a crítica de si mesma. Este é o papel
da modernidade romântica, o grande movimento de ruptura, tão grande e intenso que o
sabemos ao certo se realmente terminou. Apaixonada pela noção de indivíduo e pela
1
Sobre o princípio da consciência crítica como gerador de modernidades, é interessante conferir a seguinte
referência: PAZ, O. A outra voz. São Paulo: Ed. Siciliano, 2001.
9
consciência histórica, mas rebelde quanto à cosmovisão racionalista (prevendo que o
pensamento esclarecido, ao identificar, por antecipação, o mundo matematizado com a
verdade, reifica o próprio ato de pensar, embotando a plurivocidade do pensamento mítico e
atrofiando a fantasia e a imaginação), essa modernidade oscila entre o Céu, o Inferno, o
progresso e a cosmovisão analógica, entre o passado nostálgico e original e o futuro
promissor, inebriada e atormentada por todas as paixões do presente, fazendo da contradição
sua própria natureza. Sua psicologia de base é a idealização e o desejo do inatingível é o que a
“define” melhor (pois essa modernidade, apesar de ter valores comuns, é quase infensa a
definições). Atinge, como o grande movimento de ruptura com o passado, todos os campos,
assim como o fez a consciência crítica do pensamento esclarecido. Na literatura, o poder da
imaginação e o sentimento como ação que se no interior do indivíduo se opõem aos
preceitos estéticos clássicos. A modernidade romântica é inspiração, ímpeto, expressão da
vivência, mas é também o momento em que uma nova linguagem é elaborada com o intuito
de refletir o próprio fazer literário.
A consciência crítica da modernidade origina outras modernidades. A consciência
crítica da modernidade romântica originou outra modernidade romântica: a modernidade fin-
de-siècle, uma excêntrica resposta ao materialismo científico (misto do Racionalismo dos
séculos XVII e XVIII, orientado pelo grande desenvolvimento da física e da matemática e das
filosofias cientificistas fin-de-siècle, a saber: o Positivismo, o Determinismo e o Darwinismo,
orientadas pelas descobertas biológicas).
A resposta é a adoção de uma abordagem espiritual do mundo, transfigurado por uma
imaginação intelectualizada e a busca pela autonomização da arte, através da valorização
técnica, que possibilita o processo de despersonalização na linguagem – um processo que
[...] não é um desaparecimento do sujeito, análogo à despersonalização dos
indivíduos na sociedade massificada. É o sujeito imaginário (falso) da
expressividade egocêntrica que é posto em crise na literatura moderna, em
razão de uma subjetividade alargada que, ao contrário de anular, aumenta a
consciência e a responsabilidade do escritor. (PERRONE-MOISÉS, 2003, p.
167)
A técnica, enquanto conjunto dos processos de uma arte ou ciência, não pode ser
confundida com o tecnicismo moderno, abuso da tecnicidade que visa à eficiência do agir
racional-com-respeito-a-fins exigida pela sociedade industrial, orientada pelo caráter
quantitativo. A arte, ao valorizar seus recursos cnicos, está orientada pelo caráter
qualitativo. Os recursos técnicos da arte, mesmo que seja uma arte que se defina “autônoma”,
10
têm a função de aprimorar uma visão do mundo. A função do tecnicismo moderno, enquanto
prática orientada pela quantidade, é dinamizar a produção. A modernidade fin-de-siècle,
prevendo, sentindo esse processo de padronização técnica da ciência, responde ironicamente
(ou mesmo com laivos de desespero) com a valorização da sua própria cnica. A valorização
técnica da arte moderna é a crítica do tecnicismo moderno. Assim posta, a função da arte se
torna revelar e compensar o “desencantamento” das imagens do mundo que vão entrando em
processo de desalojamento pelo perfil padronizador do tecnicismo. Seguindo essa linha de
reflexão, Alfredo Bosi, ao discutir a questão da metalinguagem em “Poesia-Resistência”,
conclui:
A lucidez nunca matou a arte. Como boa negatividade, é discreta, não
obstrui ditatorialmente o espaço das imagens e dos afetos. Antes,
combatendo hábitos mecanizados de pensar e dizer, ela à palavra um
novo, intenso e puro modo de enfrentar-se com os objetos. (BOSI, 2004,
p.173)
A convivência dúbia que a modernidade fin-de-siècle tem com seu contexto se revela
em duas tensões. A primeira é que ela é sufocada pelo universo burguês, mas cultua o
artificial como resumo do Belo. A segunda, herança direta da modernidade romântica, é a
ironia, o dilaceramento ontológico do indivíduo moderno. A ironia da modernidade romântica
garante que o indivíduo cindido não atinja definitivamente a idealidade porque, não obstante
sua psicologia de base ser a idealização, essa modernidade é “definida” pelo desejo do
inatingível. Se o indivíduo romântico atingir a idealidade, deixa de ser romântico. Se o
Infinito se projeta no finito no momento da criação, logo se distanciam para reafirmar a
incompletude do indivíduo moderno.
2
A ironia da modernidade fin-de-siècle, por seu turno,
tende a fazer com que o indivíduo cindido insista em um espiritualismo vazio, pois ele é fruto
de um momento de transição histórica.
3
A modernidade fin-de-siècle, enquanto tendência
rebelde de princípios espirituais e comportamentos evasivos, é ferida por um sentimento, uma
impressão de esgotamento metafísico, como um sacerdote insistente que, em seus momentos
de suposta epifania, tem a revelação de que Deus está morto. Essa tensão insolúvel (sendo
mitigada em alguns simbolistas) é uma das manifestações do nouveau, semente e valor
fundamental da tradição moderna que se relaciona de modos diferentes com a modernidade
2
Sobre a questão da ironia romântica, aliás, sobre todo o universo romântico, é valioso conferir a seguinte
referência: GUINSBURG, J. (Org.). O Romantismo. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
3
Meu conceito de ironia da modernidade fin-de-siècle é inspirado no conceito de idealidade vazia, de Hugo
Friedrich, que se encontra na seguinte referência: FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas
Cidades, 1978 (Problemas Atuais e suas Fontes, 3).
11
fin-de-siècle e com a modernidade futurista.
4
O nouveau da modernidade fin-de-siècle é o
Mistério, o Inconnu, assim como a melancolia provinda das conseqüências do progresso, a
angústia intimamente ligada ao mal-estar provocado pelo universo burguês e o dilaceramento
ontológico insolúvel do espiritualismo vazio, manifestando-se como sintomas dessa
modernidade.
A modernidade futurista, das vanguardas históricas, transformará o imperativo do
nouveau em uma eterna consciência histórica do futuro, em um movimento perpétuo que
restringe o presente a uma mera contribuição para o futuro. Essa modernidade é aquela que se
depara com o início das sociedades industriais desenvolvidas, onde a dinâmica da existência
se altera drasticamente. Induzida por essa consciência histórica do futuro, a literatura se torna
o espaço da utopia, da destruição e recriação do homem e/ou do mundo, que se transfiguram
ou emergem do progresso das formas.
Atualmente, a modernidade, dissolvida pela fragmentação da experiência, cônscia do
total relativismo das reivindicações de verdade, vivendo em um mundo de tendências
globalizantes, de confiança em sistemas abstratos, com a relação tempo-espaço deslocada e
desiludida do engajamento político coordenado, critica a própria noção de crítica associada à
lógica de superação, desconfiando acima de tudo da modernidade futurista.
5
Vivenciando a
realidade fantasmagórica da sociedade de mercado e da mídia tecnológica, a modernidade
atual descrê em qualquer fundamento para a mudança, sendo o valor do nouveau
transfigurado no mudancismo frenético e acrítico da produção industrial em massa e do
tecnicismo. É uma modernidade sobressaltada pelos avanços tecnológicos acelerados e pela
globalização, desprezando o fato de que sua descrença na História o homem atual vive em
uma realidade presente que concentra todos os tempos e espaços pode ser mais um
momento histórico.
A descrença na mudança e a experiência do deslocamento da relação tempo-espaço
(que cria uma impressão ambígua, mas complementar, tanto de presente definitivo quanto de
intemporalidade e ubiqüidade) se expressam na literatura com o pastiche, a citação, com a
atitude de ironizar as utopias e com o ecletismo das formas, oposto ao ideal de pureza de
certas linhas de desenvolvimento de modernidades anteriores.
4
Compagnon reflete bastante sobre o conceito do nouveau como valor fundamental da tradição moderna na
seguinte referência: COMPAGNON, A. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2003.
5
Anthony Giddens explicita sistematicamente as tendências imperantes na pós-modernidade na seguinte
referência: GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Ed. UNESP, 1991.
12
Essa pós-modernidade – sendo o prefixo uma recusa da idéia de superação crítica
inserida na lógica de desenvolvimento da História moderna ocidental desconfia de todo o
percurso que elaborei até chegar a ela. Meu percurso condiria com uma narrativa tradicional:
progressão por autocrítica. Por isso chamei a pós-modernidade de modernidade atual e ainda
arrisco a hipótese de que a sua consciência crítica, que critica a própria noção de crítica,
incrustada na História moderna até a atualidade, faça a crítica de si mesma e origine outras
modernidades, que resistam às tendências mais diluidoras e “esvaziadas”.
A verdade é que não creio em uma direção teleológica da História. As mudanças
históricas o o regidas por uma necessidade, mas são, assim como sempre foram,
possíveis. Sempre ocorreram e podem ocorrer ainda. São possíveis e, muitas vezes, saudáveis.
A História não necessariamente se altera como melhoria geral de uma época ou período, mas,
fazendo sua autocrítica, pode melhorar ou piorar, em suas alterações, certas esferas do
momento. Por exemplo, o progresso tecnológico contemporâneo não garante o progresso
humano ou social. Alguns progressos em determinadas esferas, dentro de uma época ou
período, podem abafar ou impedir outros possíveis progressos em outras esferas. A História
sempre se alterou e, nessas alterações, progressos puderam conviver com retrocessos,
inovações puderam conviver com tendências tradicionais. Isso sempre ocorreu, sem que
estivéssemos vivendo em um presente definitivo intemporal e ubíquo. A pós-modernidade,
sobressaltada pelos avanços tecnológicos acelerados e pelo espírito de globalização
imperante, exagera as impressões causadas por essas convivências e descrê na História, que
ela associa à necessidade, à teleologia. O valor da novidade, associada à noção de superação,
está na base dos fundamentos teóricos da modernidade futurista. Por isso a pós-modernidade a
ataca mais radicalmente.
Em relação especificamente à arte e à literatura, que sempre mantiveram uma relação
dialética, não-pacífica, combativa com a História, muitas vezes de um modo extremamente
complexo, mas nunca simplesmente reprodutivista ou como mero aparelho ideológico do
Estado, podendo sempre apelar para a liberdade do público ou do leitor, nunca acreditei no
conceito de progresso como critério de avaliação de sua qualidade.
6
6
Segundo o conceito de progresso, a dinâmica da História se define como um acúmulo de aperfeiçoamentos. O
que está “à frente”, o que é contemporâneo, é sempre melhor do que o que está “atrás”, do que é antigo. As
tendências progressistas, típicas dos vanguardismos, transferem essa dinâmica também para o universo artístico,
tratando as manifestações passadas como material obsoleto. Quando digo que nunca acreditei no conceito de
progresso como critério de avaliação da qualidade artística ou literária, quero dizer que a arte e a literatura o
podem progredir como progridem as esferas social e tecnológica, por exemplo, por causa da sua relação singular
com a História.
13
E é enfatizando essa relação singular da literatura com a História que afirmo que, na
sociedade de mercado, a literatura deve, enquanto prostituta, trabalhar armada: gilete ou faca
(nem que seja só lâmina). Deve resistir de um modo ou de outro, discutindo com seus
cafetões. Mercado: o preço, na modernidade atual, é escolha difícil, pois quem cobra também
paga.
7
Essas são breves linhas gerais das modernidades tradicionalmente enumeradas, que
podem ser esboçadas mediante, mais uma vez, quer queiram quer não, a vitalidade da herança
da burguesia revolucionária: a consciência crítica. Se esta realmente perder seu fundamento e
valor, então a História deixará de existir e ocorrerá uma espécie de Apocalipse secularizado?
Morte do homem? Provavelmente não. Apesar do homem ter sido feito de História, ele não
necessitaria da História para continuar sendo homem.
Esse vôo rasante pelas modernidades é pertinente neste contexto para que percebamos
que, apesar de ainda estarmos experienciando a modernidade, vivemos em um momento
histórico-literário distinto. É esse fato que me possibilita observar de modo mais claro a
modernidade de José Joaquim Cesário Verde (1855-86) e de António Duarte Gomes Leal
(1848-1921), trazendo-a para meu olhar atual. A História se faz na intersecção entre marcas
de positividade do passado e marcas de contingência do olhar presente. Os desdobramentos
oriundos da consciência crítica da modernidade possibilitam vermos com maior clareza e com
outros olhos nossas origens (nenhum homem resiste a conhecer suas origens, mesmo que seja
a pior delas).
A modernidade dos dois autores referidos tende, no geral, para a modernidade fin-de-
siècle,
8
o a absorvendo completamente, pois são influenciados por diversas correntes do
século XIX, assim como chegam a pincelar certos elementos de modernidades posteriores.
Minha proposta é verificar como alguns elementos recorrentes da modernidade fin-de-siècle
a relação dúbia com o universo urbano-industrial, o arquétipo feminino da femme fatale,
processos de despersonalização e manifestações da identificação dos contrários são tratados
na poética de cada um desses autores, fixando-me nas obras Claridades do sul (1875), de
Gomes Leal (obra primeira, na qual todas suas tendências aparecem), e Obra poética
7
O leitor ávido por ironia deve ter percebido que estou atualizando metáforas modernas, mais especificamente
baudelairianas, tais como a que segue: “Que é a arte? Prostituição” (BAUDELAIRE, 2002, p. 503). Para uma
compreensão mais aguda da relação da literatura com o mercado no século XIX, é interessante conferir a
seguinte referência: OEHLER, D. Quadros parisienses (1830-1848): estética antiburguesa em Baudelaire,
Daumier e Heine. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
8
Para uma melhor compreensão da modernidade fin-de-siècle, destaco a seguinte referência: FRIEDRICH, H.
Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978 (Problemas Atuais e suas Fontes, 3). Para a
compreensão dessa modernidade em Portugal, destaco a seguinte referência: PEREIRA, J. C. S. Decadentismo e
simbolismo na poesia portuguesa. Coimbra: Centro de Estudos Românicos, 1975.
14
integral de Cesário Verde (1855-86), organizada por Ricardo Daunt. A proposta tem como
finalidade inserir ambos os autores na modernidade poética portuguesa através dos citados
elementos que se encontram nas obras referidas.
Muitos autores estudaram as modernidades literárias e poéticas. Destacarei alguns
deles, sintetizando algumas idéias que tecem e características que enumeram,
preferencialmente, da modernidade da segunda metade do século XIX, para que nos auxiliem
a ter uma imagem um pouco mais viva da modernidade dos autores portugueses referidos. O
vôo rasante pelas modernidades foi esboçado principalmente com o intuito de adentrarmos
esses autores com a memória revitalizada em relação a algumas idéias, características e
elementos históricos. É difícil entrarmos com muito ímpeto na morada da modernidade.
É conveniente iniciarmos com Irlemar Chiampi, autora da “Introdução” e coordenadora
da obra Fundadores da modernidade, porque ela também busca um motivo para a existência
de várias modernidades literárias, mas no âmbito da diversidade cultural.
Fazendo um breve levantamento histórico, e considerando a modernidade estética a
partir do Romantismo até o Modernismo hispano-americano (período compreendido entre o
final do século XVIII e o início do século XX), a autora identifica seu núcleo inicial na
Alemanha e na Inglaterra, ou seja, nos países onde se insinuava mais fortemente o capitalismo
industrial, o Liberalismo econômico e a ética protestante do trabalho, expandindo-se logo
depois aos Estados Unidos e à França, países que já haviam passado por revoluções
burguesas. Somente após 1870 a modernidade atinge a Rússia, a Itália, a América Hispânica e
a Espanha, retardamento oriundo de diversas carências, assim enumeradas pela autora:
[...] de progresso econômico e tecnológico devido às estruturas pré-
capitalistas de trabalho e produção; de reforma religiosa devido ao peso da
tradição católica; de Estado nacional forte devido ao neocolonialismo; de
liberdades políticas e de ética individualista devido ao pré-capitalismo, ao
catolicismo e ao neocolonialismo. (CHIAMPI, 1991, p. 14)
É neste momento que a autora sugere um motivo para a existência de várias
modernidades: esse retardamento pode ser fruto também de resistência cultural. Um
movimento dialético de atração e repulsão caracterizou o diálogo entre as culturas germânicas
e românicas, pois o Ocidente românico estava ainda muito apegado à tradição do Classicismo
greco-latino e do Barroco, acarretando motivações particulares e modos de apropriação que
permitiram o surgimento de modernidades várias e diferenciadas.
15
Não obstante, a autora permite identificar uma unidade de experiência da modernidade
estética, reconhecível no ponto em que se o surgimento de uma nova relação da arte com a
Natureza, a sociedade e a História:
- negação da autoridade da tradição artística e literária com o seu ideal de
beleza transcendente, universalmente inteligível e atemporal;
- busca do transitório e imanente, cujos valores são a novidade e a
mutabilidade, a invenção e a subversão do sentido;
- negação da modernidade burguesa, com os seus valores de progresso,
evolução e tecnificação da vida;
- busca do tempo original, como expressão de uma nostalgia da totalidade e
da unidade, diante da desagregação do tempo presente. (CHIAMPI, 1991, p.
14)
Sumamente, “a modernidade estética surge como conflito entre a razão liberadora do
imaginário e a razão instrumental do universo capitalista [...]” (CHIAMPI, 1991, p.15) e como
negação do passado.
O objetivo de outro autor, fundamental para o estudo da modernidade poética por seu
sistematismo e senso de síntese, é também identificar uma configuração comum que abraçasse
não a poesia moderna, como demonstrasse que a poesia contemporânea persiste em
desenvolver os elementos modernos (período compreendido entre a segunda metade do século
XIX e meados do século XX). Esse autor é Hugo Friedrich, e a obra em que enseja o objetivo
mencionado é Estrutura da lírica moderna.
Para ele, os fundadores da modernidade compõem uma tríade francesa Baudelaire,
Rimbaud e Mallarmé –, levando ainda em consideração Rousseau, Diderot e o Romantismo
como precursores.
Na poesia moderna, segundo Hugo Friedrich, o eu poético nega radicalmente o
compromisso com a realidade, transfigurando o tempo e o espaço, os objetos, os seres e a
própria linguagem. Conseqüentemente, a obscuridade, o hermetismo toma conta da poesia,
havendo intenção em pôr em xeque a compreensão e a comunicação.
A tônica passa a o ser mais transmitir conteúdo semântico, mas somente sugeri-lo,
com o intuito de atingir as zonas inconscientes do leitor, que de mero interlocutor se
transforma em um poeta potencial. A sugestionabilidade condiciona uma exploração maior da
natureza polissêmica da linguagem poética, instigando o leitor a tecer uma rede de
interpretações tão grande e complexa que lhe permite escolher múltiplas direções de leitura do
poema, sem chegar a nenhuma conclusão definitiva.
16
A busca do novo é considerada um dos principais fundamentos para a consolidação da
modernidade, porque ela é o instrumento que rompe com o passado.
O novo pode ser conquistado através da dissonância, “junção de incompreensibilidade e
de fascinação” (FRIEDRICH, 1978, p. 15), assim denominada por gerar uma tensão que
tende mais à inquietude que à serenidade” (FRIEDRICH, 1978, p. 15). A dissonância pode
ocorrer na relação contrastante entre conteúdo formal e conteúdo semântico, por exemplo.
Outra forma de tensão dissonante é o conteúdo semântico obscuro, complexo que uma
linguagem simples pode carregar. Em uma lúcida coesão discursiva, podem os termos possuir
uma potencialidade semântica levada ao paroxismo. Finalmente, a dissonância é o próprio
estranhamento causado pela transfiguração da realidade. Esse estranhamento é, muitas vezes,
desconfortável, distanciando o bem-estar da fruição estética.
O eu poético, na modernidade, desvencilha-se da experiência vivida do “eu” romântico,
sofrendo um processo de despersonalização que irá substituí-lo por uma inteligência poética
dominada pelo imperativo de uma espécie de fantasia autônoma. A despersonalização é uma
das grandes utopias da modernidade. Assim posto, a poesia moderna pretende fazer com que
uma nova realidade se edifique espontaneamente por meio do estranhamento, do artificial e
do inorgânico – realidade exemplarmente representada no poema “Sonho Parisiense”, de
Baudelaire, onde o vegetal irregular é banido em prol da pertinaz monotonia do metal, do
óleo e da aquarela. Colunas (árvores, jamais) os tanques quietos circundam. Os penhascos
são de diamante e a água engasta a sua glória em um raio em si cristalizado. Os prodígios
ardem à luz dos próprios fachos. Esses prodígios são as palavras da poesia moderna.
Não dúvida, pois, que a poesia moderna pode ser compreendida a partir de suas
características próprias, consideradas por Hugo Friedrich como categorias negativas. Ao
discorrer sobre a poética de Lautréamont, ele afirma:
Suas caracterizações soam como angústias, confusões, degradações,
trejeitos, domínio da exceção e do extraordinário, obscuridade, fantasia
ardente, o escuro e o sombrio, dilaceração em opostos extremos, inclinação
ao Nada. (FRIEDRICH, 1978, p. 21)
São estas as categorias negativas, diametralmente opostas às categorias positivas –
“aprazimento, alegria, plenitude harmônica e afetuosa” (FRIEDRICH, 1978, p. 20). Estas
preponderavam ainda na primeira metade do século XIX, momento em que a poesia ainda
mantinha laços com a sociedade. As categorias negativas, sintomas de uma poesia preocupada
consigo mesma, são o silencioso grito de revolta contra uma sociedade infensa à poesia.
17
Michael Hamburger, além de descrer na realização de uma poesia despersonalizada no
sentido de anulação do sujeito, já que o “homem nunca pode ser excluído da poesia escrita por
seres humanos, por mais impessoal ou abstrata” (HAMBURGER, 2007, p. 46), ainda critica a
parcialidade de Hugo Friedrich em tender a analisar a poesia moderna a partir de uma única
linha de desenvolvimento a da pureza e do hermetismo. Hamburger analisa, em A verdade
da poesia, também as linhas de desenvolvimento mais apegadas à realidade concreta e ao
homem comum. A poesia moderna é, por fim, as tensões advindas do confrontamento dessas
linhas, e perante essa constatação assim conclui Hamburger:
[...] a “poesia moderna” não é diferente da poesia de qualquer outro período,
embora os dois pólos tenham se separado desde os versos de Heinrich Heine
sobre a interminável batalha entre a “verdade” e a “beleza”, os “bárbaros” e
os “helenos”, uma batalha travada não entre escolas opostas de poetas e
críticos, mas também dentro de cada poeta importante, de poema a poema, e
de verso a verso.”. (HAMBURGER, 2007, p. 372)
Por meu turno, creio na “autonomia” da poesia e em seu hermetismo como uma postura
estética deliberada alimentada em nome de um ataque ironicamente velado ao tecnicismo
moderno e ao espírito secularizado da sociedade moderna. Vejo ainda o efeito dos processos
de despersonalização mais como um alargamento da subjetividade do que uma anulação do
“eu”. Via recursos estilísticos, os processos de despersonalização instrumentam um novo
modo de se haver com as imagens do mundo e com os afetos. Quanto, em geral, à “pureza”
absoluta teoricamente almejada pelo esteticismo mais radical da linha hermética da poesia
moderna, posso ressaltar que mesmo alguns poetas apólogos dessa tradição descriam na
possibilidade integral de sua realização. Antes de mais nada, a linguagem verbal, as palavras
foram criadas para nomear a realidade. o nomear a realidade é algo impossível ao homem.
A realidade é nosso único parâmetro. A poesia pode pôr em xeque a compreensão e a
comunicação através da maior polissemização da linguagem e da obscuridade; mas esse efeito
não anula a realidade nem a comunicação, podendo mesmo acentuar e apontar elementos da
realidade antes despercebidos à percepção “cotidiana”. A poesia sempre comunica, mas assim
o faz através de um pensamento que transcende, transborda a lógica, a dialética e a
discursividade tradicionais, dilatando a gama de experiências da consciência humana.
No ensaio “As Muitas Vozes da Poesia Moderna”, Alfonso Berardinelli também critica
disforicamente a parcialidade de Hugo Friedrich; e elenca uma série de poetas menosprezados
de origem não francesa, como Withman, Maiakóvski, Kavafis, Brecht, ou seja, as outras
linhas de desenvolvimento e tendências da poesia moderna. Hugo Friedrich ainda subestima
18
as vanguardas históricas, momento em que a inovação estética busca abrir o horizonte de uma
ação transformadora no mundo, assim como subestima as ambivalências no interior da obra
de autores por ele mesmo exemplificados como “puros”, ambivalências que relativizam essa
“pureza”. Essas ambivalências e as outras linhas de desenvolvimento provocam uma outra
leitura da poesia moderna, qual seja um retorno à realidade, ao invés de uma fuga dela. A
irrupção da realidade “no interior de uma forma poética que se esforça cada vez mais para
organizar e dominar esteticamente os seus materiais” (BERARDINELLI, 2007, p. 28).
Em outro ensaio, “Quatro Tipos de Obscuridade”, Berardinelli relativiza o próprio
conceito de obscuridade tão caro à leitura tradicional da poesia moderna, afirmando que a
clareza e a obscuridade não são qualidades estáveis enquanto características textuais e são as
competências e expectativas de um público-leitor determinado que afirmaram tais qualidades.
No caso, o blico-leitor burguês e a crítica acadêmica foram os responsáveis pela
generalização ou visão parcial da poesia moderna enquanto obscura. Mas como,
indubitavelmente, alguns poetas como Baudelaire e Benn, mais este que aquele –,
intencionavam a obscuridade em termos teóricos e práticos, Berardinelli arrisca quatro tipos
de obscuridade, que tanto percorrem caminhos distintos entre autores contemporâneos entre si
quanto sugerem uma progressão histórica da obscuridade, que se torna, por fim, jargão.
Solidão e singularidade são o primeiro tipo de obscuridade. Nesse tipo, a obscuridade
se dá em função da recusa da consciência cultural e moral da comunidade, singularizando as
experiências de um indivíduo que, teoricamente, fala por si mesmo e se aprofunda em sua
auto-suficiência.
O segundo tipo são profundidade e mistério, conseqüência do primeiro tipo, pois é na
solidão e na singularidade que o eu mais pode se aprofundar em um outro nível de percepção,
o vel simbólico da existência, que torna o mundo sensível mundo de aparências, onde
apenas se intuem os planos de uma idealidade. Planos ainda inexplorados, misteriosos,
inóspitos, que somente uma linguagem exploratória, misteriosa, inóspita pode dispor
vislumbrá-los.
A obscuridade do terceiro tipo provocação – se revela na estética do feio. No fascínio
da corrupção, na fruição do vício, nos estados anormais, alterados e psicóticos de consciência,
na blasfêmia. Atitudes, comportamentos, sensações e desejos em geral incompreensíveis, pois
inaceitáveis, causadores de confusão e repulsa por parte do público-leitor. As Flores do mal
são, para Berardinelli, o primeiro modelo fundamental de manifestações desse tipo de
obscuridade. E a expressão “épater les bourgeois” exprime bem o objetivo dessa provocação.
19
Finalmente, quando a obscuridade se torna uma especialização da linguagem enquanto
mais uma especialização no meio de tantas outras no seio cultural, perdendo sua função de
surpreender e escandalizar, deparamo-nos com o fim da progressão histórica da obscuridade,
ou seja, com seu quarto tipo: jargão. Essa especialização se fixou como um recurso de
linguagem próprio para criar um outro mundo, um mundo onde a burguesia e o pensamento
burguês o se apoderam de tudo. O sonho não pode ser reificado. que somente quem
sonhava como esses autores especialistas é que os compreendia, sendo sua linguagem uma
seita e seus autênticos leitores, iniciados. O saldo talvez positivo dessa especialização é que,
com o passar do tempo, criou-se um novo público, adestrado, familiarizado com a arte e
poesia modernas. Negando, desprezando o público, o jargão criou um novo público,
principalmente na segunda metade do século XX.
Arnold Hauser, em sua História social da arte e da literatura, mais especificamente no
capítulo VII Naturalismo e Impressionismo” –, relaciona o percurso da modernidade da
segunda metade do século XIX com a História da França, passando pelo Impressionismo,
pelo Decadentismo e pelo Simbolismo.
O Impressionismo monopoliza as tendências artísticas a partir de 1871, período em que
a Terceira República substitui o Segundo Império, com a burguesia industrial permanecendo
no poder, mas com o espírito perturbado pela ameaça vermelha (a Comuna de Paris acabara
de ser dissolvida). A tecnologia dinamiza drasticamente a vida. O Impressionismo surge como
a arte que representaria esse momento de crise e de aceleração da vida: arte baseada nas
impressões súbitas e intensas, porém efêmeras, do universo citadino; arte da transitoriedade
do universo industrial, onde todos os entes são passageiros como mercadorias (a realidade
pode ser apreendida por fragmentos autônomos); arte que representa a reificação. A realidade
moderna é patética, volúvel, paratática e reificada.
Hauser indicará essa representação de uma realidade transitória como conseqüência da
renúncia à vida prática:
A primazia do momento, da mudança e do acaso subentende, em termos de
estética, o domínio de um estado de ânimo passageiro sobre as qualidades
permanentes da vida, ou seja, o predomínio de uma relação com as coisas
cuja propriedade consiste em ser não neutra mas também mutável. Essa
redução da representação artística ao estado de espírito do momento é, ao
mesmo tempo, a expressão de uma concepção de vida fundamentalmente
passiva, um consentimento no papel do espectador, do sujeito receptivo e
contemplativo, um ponto de vista de indiferença, espera, não envolvimento –
em resumo, a atitude estética pura e simples. (HAUSER, 1994, p. 898)
20
Não sei se realmente existe um fundamento muito claro para a associação entre a
representação de uma realidade transitória e a atitude de indiferença e passividade, mas de
qualquer modo, deparamo-nos, neste ponto, com a questão do esteticismo fin-de-siècle.
Originando-se da atitude passiva impressionista, ele irá se alastrar no final do século XIX
trazendo para a arte o ideal de contemplação, transitoriedade e autonomia. A arte se torna um
lenitivo, um narcótico que mitiga o sofrimento de uma existência em si inacabada e
inarticulada, seguindo os preceitos de Wilde (1980), para quem o artista é o criador de coisas
belas e a arte é completamente inútil. Cultua-se o artificial e o desumanizado, havendo uma
transformação do natural através do labor intelectual da imaginação criadora (as
correspondances). Quando a idéia de decadência, de crise associa-se ao esteticismo na década
de 1880, o termo Decadentismo é assumido. O Decadentismo é a busca da beleza em um
mundo em crise.
Mas a sensualidade impressionista será suplantada pelo espiritualismo a partir de 1890,
com o Simbolismo. Este vê no mundo fenomênico o símbolo de uma idealidade.
João Alexandre Barbosa se dedicou bastante ao estudo da poesia moderna. Em A
metáfora crítica, ele explicita o que entende por modernidade poética, em termos
cronológicos e de atitude estética:
O poema moderno aquele que, por conveniência, costuma-se datar a partir
de Baudelaire, sem que se esqueçam os exemplos anteriores de preparação,
os românticos alemães e ingleses, para citar apenas dois casos – envolve [...]
a consideração de uma atitude de destruição ante a própria linguagem de
representação da realidade. (BARBOSA, 1974, p. 41)
Essa crise da linguagem se através da discussão do código no código, isto é, da
metalinguagem. Para o autor, a crise da linguagem, que supõe a crise da representação da
realidade, abre o horizonte de uma realidade mais complexa, que envolve a noção de
historicidade definida em outra sua obra As ilusões da modernidade:
Historicidade: o modo pelo qual as articulações internas do texto definem e
são definidas pela leitura da história circunstancial e da história literária.
Mais ainda: a maneira pela qual se estabelece uma dependência entre as duas
leituras. (BARBOSA, 2005, p. 10)
Essa noção de historicidade é o próprio princípio da consciência crítica da modernidade
que se transfigura no código como princípio da criação poética, que sempre repensa sua
21
viabilidade enquanto linguagem. A linguagem da poesia moderna está em estado de
saturação, fazendo da auto-reflexão seu ponto de partida para a reinvenção. O leitor é
obrigado a fazer um trajeto de leituras e se torna um poeta potencial ao tentar tecer uma rede
de interpretações para as indeterminações e mistérios que a linguagem saturada precisa criar
para se atualizar. A novidade moderna é o hermetismo resultante das atualizações da crise da
linguagem e, por conseguinte, da crise da representação. Hermetismo este que, em termos
sociológicos, é uma ironia: a perte d´auréole, que em outros termos é a morte do vate, põe em
xeque a comunicação direta com a sociedade. O poeta não é mais seu representante ou seu
condutor. O que comunicar, pois, a uma sociedade de espírito secularizado, descrente do
Gênio?
Chegamos, assim, ao paradoxo da modernidade poética: o hermetismo, fruto da crise da
linguagem e da representação resultantes da consciência crítica da modernidade, tanto se
distancia ironicamente da sociedade quanto necessita de um leitor com potencialidades de
poeta para decifrar seus mistérios insolúveis. A poesia moderna só é moderna quando tentam
solucioná-la, mesmo sendo insolúvel.
João Alexandre Barbosa chega, em vários momentos, a definir a poesia moderna, mas
sua melhor definição se encontra no seguinte trecho: A crítica da metáfora resultado da
metáfora crítica, que é o poema moderno desfez os limites entre criação e crítica”
(BARBOSA, 2005, p. 28). O poema moderno é a metáfora crítica, pois desconfia de sua
própria linguagem e da vinculação desta com a realidade.
Como foi dito, a crise da linguagem abre o horizonte de uma realidade mais complexa,
que envolve a historicidade. Através desta, a modernidade conviverá com duas ilusões
centrais: a ubiqüidade e a intemporalidade, expressões que em primeira instância parecem
negar a História, mas que, no fundo, estão fortemente vinculadas ao âmbito de uma escrita
historicizada, de uma escrita crítica da tradição da linguagem poética, inserida na História
como todo fenômeno.
A ilusão da ubiqüidade é a da criação de um espaço capaz de reduzir, após a crítica da
tradição, a multiplicidade da linguagem poética aos parâmetros homogêneos da linguagem do
poema. É a ilusão de que toda a tradição da linguagem da poesia pode ser criticamente
concentrada no poema moderno. É a busca do poema único, isto é, da convergência, através
da crítica da metáfora, de todos os espaços – e, conseqüentemente, de todos os tempos.
Tempo e espaço, essas categorias a priori, caminham juntos, assim como a ubiqüidade e a
intemporalidade. Dar ao presente histórico a ilusão da intemporalidade é ser moderno,
segundo Baudelaire (2002, p. 859): “A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente,
22
é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável.”. Vejamos o que significa essa
ilusão para João Alexandre Barbosa:
É [...] uma ilusão cultivada com todo o rigor da consciência: a busca do
intemporal afunda o artista moderno no “transitório”, no “fugitivo” e no
“contingente” porque este mais do que os artistas anteriores assume a
consciência nostálgica da eternidade.” (BARBOSA, 2005, p. 31)
A consciência nostálgica da eternidade advém da consciência da condição do artista
moderno em uma sociedade de espírito secularizado.
O que João Alexandre Barbosa faz com sua noção de historicidade é transferir a
concepção baudelairiana da modernidade para o plano da linguagem do poema moderno,
enquanto espaço de convergência temporal. Reiterando o que afirmei anteriormente, tempo e
espaço caminham juntos. Se no poema moderno a intemporalidade atinge o plano da
linguagem, a ubiqüidade também reivindica seus direitos. “Ser de todas as épocas [...] é
também ser de todos os lugares” (BARBOSA, 2005, p. 31).
Podemos inferir, agora, que essas ilusões sintetizam a grande ilusão da modernidade: a
universalidade.
9
O que é esta a não ser o abraço da ubiqüidade e da intemporalidade, as
gêmeas megalomaníacas? Universalidade que se no plano da linguagem fruto da crítica da
metáfora exercida pela metáfora crítica, que é o poema moderno.
João Cabral de Melo Neto afirma, em sua tese Da função moderna da poesia, que o
espírito de pesquisa formal é o denominador comum da modernidade poética, e justifica seu
argumento ao dizer que a realidade exterior moderna, que se torna mais complexa, exige, para
ser captada, instrumentos que não apreendam as ressonâncias de suas múltiplas aparências
como os matizes da expressão pessoal que filtrará essas ressonâncias. Por isso, falta lucidez e
clareza na comunicação da poesia moderna. Uma realidade exterior complexa complexifica a
realidade interior de quem irá filtrá-la e a linguagem que irá exprimi-la. Destarte, a poesia
moderna é a captação da realidade objetiva moderna e dos estados de espírito do homem
moderno [...]” (MELO NETO, 1994, p. 769).
O enriquecimento formal exigido pela modernidade manifestou-se principalmente nos
seguintes aspectos, segundo João Cabral:
9
Quando se afirma, pois, a universalidade como característica do poema moderno o se está caindo no óbvio
(desde que o perigo existe: todas as épocas assinalam a universalidade como meta possível): é a substância do
poema moderno, vale dizer, a discussão interna de sua viabilidade, que impede o isolamento e arrisca o
confronto não menos radical com a universalidade. A afirmação desta, portanto, é dependente de uma leitura
crítica empenhada em articular os elementos de composição do poema.”. (BARBOSA, 2005, p. 36)
23
a- na estrutura do verso (novas formas tmicas, ritmo sintático, novas
formas de corte e enjambement); b- na estrutura da imagem (choque de
palavras, aproximação de realidades estranhas, associação e imagística do
subconsciente); c- na estrutura da palavra (exploração dos valores musicais,
visuais e, em geral, sensoriais das palavras: fusão ou desintegração de
palavras; restauração ou invenção de palavras, de onomatopéias); d- na
notação da frase (realce material de palavras, inversões violentas, subversão
do sistema de pontuação), e e- na disposição tipográfica (caligramas, uso de
espaços brancos, variações de corpos e famílias de caracteres, disposição
sistemática dos apoios fonéticos ou semânticos). (MELO NETO, 1994, p.
767-8)
Para João Cabral, porém, o poeta moderno vive em função da exploração técnica e
sacrifica a intenção de se comunicar em nome de um individualismo egocêntrico levado ao
paroxismo. João Cabral na falta de lucidez e clareza da poesia moderna um fator muito
negativo. Para ele, o poeta moderno passa praticamente a escrever para si.
Baudelairiana é a perspectiva que Antoine Compagnon tem da modernidade. Francesa,
ambivalente nas suas relações com a modernização e com a História, desconfiada do conceito
de progresso e essencialmente estética, desembocando na pós-modernidade.
Nessa perspectiva, a noção de modernidade é inseparável da de decadência as
mazelas da sociedade industrial –, criando uma condição aflitiva e desesperadora. A estética
moderna é essencialmente antiburguesa, denunciando a condição periférica do artista
condenado às diretrizes da ética burguesa. Por isso a arte moderna reivindica autonomia,
autovalorizando-se e desprezando quem a despreza. Compagnon (2003, p. 24) afirma, nos
Cinco paradoxos da modernidade, que a “modernidade projeta seu dualismo no outro, o
burguês, no qual “o artista descobre e define o seu contrário [...]”. Afirmo, por minha vez, que
o que ocorre, na realidade, é o remorso derivado da consciência crítica burguesa. Em todo o
período moderno, sempre uma parcela da burguesia se revoltou contra sua própria classe.
Assim podemos explicar relativamente os desdobramentos da modernidade desde os seus
primórdios. A modernidade baudelairiana é a do burguês antiburguês, voltando-se contra si
mesma em termos filosóficos, éticos e estéticos. É a modernidade do burguês que, mascarado
contra a burguesia, apropria-se dos preceitos e sentimentos de outras classes, oscilando entre a
observação furibunda ou no mínimo dolorista do sofrimento das camadas
socioeconomicamente inferiores e uma afetação aristocrática provocadora e desconcertante,
heroicizada e sempre consciente de seu próprio espetáculo.
Para compreendermos o que é modernidade para Baudelaire, Compagnon faz atentar
para sua ligação com a concepção do belo, demonstrada no Pintor da vida moderna:
24
O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é
excessivamente difícil de determinar, e por um elemento relativo,
circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a
época, a moda, a moral, a paixão. (BAUDELAIRE, 2002, p. 852)
A dupla natureza dessa “teoria racional e histórica do belo, em oposição à teoria do belo
único e absoluto” (BAUDELAIRE, 2002, p. 852), identificada à modernidade – “o transitório,
o efêmero, o contingente, [...] a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável
[...]” (BAUDELAIRE, 2002, p. 859) implica uma resistência a si mesma. Todas as
relações ambivalentes que a modernidade engendrará consigo mesma estão inseridas
seminalmente nos conceitos estéticos baudelairianos.
Compagnon no nouveau o valor fundamental da modernidade. A intuição do
nouveau como valor é estimulada pela parte VII do poema “A Viagem”, de Baudelaire, mais
especificamente pelo último quarteto:
Verse-nous ton poison pour qu’il nous reconforte!
Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau
Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu’importe?
Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau!
(BAUDELAIRE, 1985, p. 453)
Verte-nos teu veneno, ele é quem nos conforta!
Queremos, tal o cérebro nos arde em fogo,
Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa?
Para encontrar no Ignoto o que ele tem de novo!
10
A partir da década de 1880, os movimentos artísticos adotam uma visão progressista
das formas, subvertendo o valor do nouveau, ou melhor: utilizando-o do modo mais
compatível com seus preceitos estéticos. As vanguardas, mudancistas, reduzem ao máximo o
lapso temporal que separa o moderno (o nouveau) do antigo, ou obsoleto. O nouveau futurista
abre o horizonte de um movimento perpétuo em direção ao futuro tão acelerado e vertiginoso
que desemboca na decadência da novidade. Esse nouveau no presente uma mera
contribuição para o futuro, enquanto a modernidade baudelairiana, associando progresso e
decadência, fixando-se nas agruras do presente e se identificando com a dupla natureza do
belo, concebe o nouveau somente como o momento presente em relação à eternidade,
impondo à História uma temporalidade intermitente ou serial vários momentos presentes
que se relacionam com a eternidade –, diametralmente oposta à temporalidade genética ou
dialética futurista.
10
Tradução de Ivan Junqueira, encontrada na seguinte referência: BAUDELAIRE, C. As flores do mal. Rio de
Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1985.
25
O novo exaltado pela modernidade futurista condiz um pouco mais com a função do
poeta preconizada por Rimbaud na Carta dita do vidente:
O poeta definiria a quantidade de desconhecido nascendo em seu tempo na
alma universal: ele daria mais que a fórmula de seu pensamento, que a
partitura de sua marcha ao Progresso! Enormidade que se torna norma,
absorvida por todos, ele seria mesmo um multiplicador de progresso!
(RIMBAUD, 2003, p. 82)
Mais à frente, Rimbaud (2003, p. 82) praticamente alia seu pensamento estético ao
conceito de vanguarda: “A arte eterna teria as suas funções, como os poetas são cidadãos. A
Poesia não ritmará mais a ação; ela estará na frente.”.
A adoção de uma visão progressista das formas originou o que Compagnon denominou
narrativa ortodoxa da tradição moderna, isto é, um discurso estereotipado que preconiza uma
temporalidade de orientação dialética capaz de acelerar vertiginosamente a presença da
novidade. O paradoxo dessa religião do futuro”, na expressão de Compagnon, é que essa
busca desenfreada pela novidade acarreta sua própria decadência, academizando-se. Esse
discurso estereotipado ignora o que para Compagnon é a verdadeira modernidade: a
modernidade baudelairiana, concebida como o presente em relação à eternidade.
Gostaria de não deixar de ressaltar que as vanguardas, a despeito desse discurso
paradoxal que desemboca em seu próprio esgotamento, buscavam, além ou através do
progresso das formas, cada uma a seu modo, um progresso social e/ou humano, nem que
tivessem de passar por fases destrutivas. As vanguardas resistiram em sua época através das
utopias sociais e/ou humanísticas que se transfiguram ou emergem de suas inovações técnicas.
Como foi dito no início, a perspectiva da modernidade de Compagnon é baudelairiana.
Por isso, afirma que a modernidade surge no meio do século XIX, como o sentido do
presente, destacando-se categorias estéticas como o não-acabado (traço que evoca a
velocidade do mundo moderno), o fragmentário (categoria que valoriza a imaginação em
detrimento da cópia do natural, fazendo, com a imaginação, com que os detalhes adquiram
autonomia), a insignificância ou a perda de sentido, ligada à recusa da unidade e da totalidade
orgânicas (a junção do não-acabado e do fragmentário) e a autonomia, a reflexividade ou a
circularidade que, em suma, é a consciência crítica, o entrelaçamento da função poética e da
função crítica. E refletindo sobre uma possível relação entre a sua perspectiva da modernidade
e a pós-modernidade, Compagnon infere:
26
Se a modernidade foi uma paixão do presente e a vanguarda uma aventura da
historicidade, a intencionalidade pós-moderna, que recusa ser pensada em
termos históricos, parece, pois, menos hostil à modernidade que à
vanguarda. A menos que se trate de sua variante cínica e comercial o
último avatar do kitsch –, o pós-modernismo não se opõe à modernidade
baudelairiana, ela própria sempre traída pelo vanguardismo, mas à idolatria
do progresso e dos excessos, típicas das vanguardas históricas.
(COMPAGNON, 2003, p. 116)
Não nos esqueçamos de que a pós-modernidade experiencia o ocaso da metafísica e a
modernidade baudelairiana, não obstante experienciar um espiritualismo esvaziado por um
momento de transição histórica, é definida pela dupla natureza do belo, isto é, por um
conceito com nesgas de metafísica.
A pós-modernidade que encontra a modernidade baudelairiana é crítica, segundo
Compagnon, enquanto recusa da noção de superação. Para ele, a pós-modernidade acrítica é o
eterno kitsch. Compagnon deseja que nos desapeguemos da visão positivista da História que,
por meio do tradicionalismo do conceito de progresso, não compreende devidamente autores
que não se adéquam ao caráter desta visão, como Baudelaire, que para ele é a verdadeira
modernidade. A visão positivista da História o compreende a verdadeira modernidade:
Baudelaire, o descrente no progresso, a inconsolável vítima do dualismo, o melancólico sem
esperança, condenado à decadência do presente.
O contexto histórico-literário português vivido por Cesário e pelo Gomes Leal das
Claridades do sul é, por sua vez, o mesmo vivido pela Geração de 70.
A revolução espanhola de 1868, que culminou na criação da República, e o
desmantelamento da Comuna de Paris em 1871, ano que data o fim do Segundo Império e
início da Terceira República na França, inspiram frontalmente a fundação dos partidos
republicano e socialista no Portugal monárquico. Mas, dentro do campo monárquico, o Pacto
da Granja (1876) une os partidos opostos - os reformistas” de D. António Alves Martins,
bispo de Viseu, que combateram e se associaram ao Partido Regenerador em 1868, e os
“históricos” de Anselmo Braamcamp -, criando um novo partido: o Partido Progressista.
Apesar de institucionalizado o Liberalismo, o sistema vigente não alcançou a
modernização social almejada. Segundo Amadeu Carvalho Homem, em
[...] 1851, com a revolução da Regeneração, iniciou-se em Portugal a
experiência do capitalismo possível. Mas este pouco se assemelhará aos
surtos de desenvolvimento econômico industrial levados a cabo pela Europa
transpirenaica. A dimensão predominantemente ruralista da economia
portuguesa, associada a toda sorte de atavismos e recorrências mentais,
27
tornaram inevitável o protagonismo estatal quando se tratou de imprimir
dinamismo ao mercado interno. É bom que se diga que este mercado mal se
esboçava por alturas de 1851. Por isso é que a revolução regeneradora de
Rodrigo da Fonseca Magalhães e de Saldanha esgotará a sua eficácia na
criação de infra-estruturas materiais, não se abalançando a outras ousadias.
(HOMEM, 2001, p. 346)
Na década de 1870 a situação “liberal” não se desenvolve muito além do que afirma
Amadeu Carvalho Homem no trecho transcrito, e uma nova intelligentsia, ligada à juventude
acadêmica coimbrã, tomará consciência dessa situação com a intensificação da comunicação
pela rede européia de caminho de ferro, que trazia a Europa até os portugueses por meio de
pacotes de livros. Essa é a juventude da Questão Coimbrã, do Cenáculo e das Conferências do
Casino Lisboense, que integram um plano de reforma da sociedade portuguesa e tinham como
principais representantes Antero de Quental, Eça de Queirós e Teófilo Braga.
A proposta republicana da Geração de 70 é um programa de unitarismo democrático
que conscientizaria a sociedade através da difusão das grandes preocupações intelectuais da
época; e estudando as condições da transformação política, econômica e religiosa da
sociedade portuguesa, ligaria a pátria ao movimento moderno, civilizando-a. Uma vez que
esse programa vingasse, a República surgiria inevitavelmente. O Realismo seria a estética
propagadora da proposta republicana.
A literatura francesa era a mais conhecida pelos poetas oitocentistas portugueses, sendo
influenciados pelo Realismo, pelo Parnasianismo, por Victor Hugo, por Baudelaire, mas raro
transcendendo o “progressismo” burguês. Sobre a influência de Baudelaire, lemos na famosa
História da literatura portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes:
Ora Baudelaire é compreendido às avessas pelos principais poetas
portugueses: o satanismo baudelairiano aflora, em geral, numa série de
poetas panfletários como símbolo da podridão das altas camadas burguesas
citadinas que é preciso varrer. (SARAIVA & LOPES, s.d., p. 948)
É claro que o satanismo baudelairiano não se resume a isso, mas não creio que os
poetas portugueses tenham interpretado tão equivocadamente Baudelaire. Vejamos o que
afirma Benjamin, em Paris do Segundo Império, sobre a figura do Demônio no século XIX:
Na classe alta o cinismo era de bom-tom; na baixa, a argumentação rebelde.
Em Eloa, seguindo os rastros de Byron, Vigny homenageara, em sentido
gnóstico, Lúcifer, o anjo caído. Barthélemy, por outro lado, em sua Nêmesis
associara o satanismo aos dirigentes; faz com que se diga uma missa do ágio
e que se cante um salmo da renda. Essa dupla face de Satã é, de ponta a
28
ponta, familiar a Baudelaire. Para ele, Satã não fala apenas pelos inferiores,
mas também pelos superiores. (BENJAMIN, 2000, p. 21)
O Demônio era Lúcifer, o anjo caído, o anjo rebelde simpatizante da raça de Caim, e
era o dirigente dos exploradores, que fundaram sua igreja no coração das cidades. Os poetas
portugueses compreenderam, ao menos, a associação do Demônio com os dirigentes.
Identificado o contexto histórico-literário português vivido por Cesário e por Gomes
Leal, exporei agora breves linhas gerais de suas poéticas, revelando os elementos recorrentes
que propus analisar a relação dúbia com o universo urbano-industrial, o arquétipo feminino
da femme fatale, processos de despersonalização e manifestações da identificação dos
contrários.
O reconhecimento da importância da poesia de Cesário e do seu estatuto de precursor da
modernidade poética portuguesa tem sido consensual entre os críticos e historiadores da
poesia portuguesa.
A temática cesárica é sustentada pela dicotomia “cidade/campo”, oscilando esta entre o
caráter empírico, real, derivado das relações sociais, e o caráter alegórico, representando o
vício, a impossibilidade afetiva (cidade) e a pureza, a fruição plena do amor (campo). A
relação do eu poético de Cesário com a cidade é dúbia: se por um lado o poeta sente o fascínio
provocado pelas mulheres, também sente, por outro lado, a opressão do universo burguês.
Através da flânerie (Cesário era alcunhado, talvez equivocadamente, “Baudelaire português”),
o eu poético descreve de modo preciso os sons e movimentos na passagem das figuras
citadinas que assim realizam uma espécie de desfile moderno –, pois o intuito da poética
cesárica é registrar as gradações da mutável realidade moderna, identificadas na justaposição
significativa de percepções aparentemente dissociadas e no correspondente uso do assíndeto.
A ironia também é aqui utilizada para explorar a mutabilidade do mundo moderno, ao fazer
residir a ambigüidade na própria atitude do eu poético, revelando a possibilidade de atitudes
diversas perante uma mesma percepção do real. Os elementos grotescos e surreais”, por sua
vez, são instrumentos de captação dos aspectos da realidade inacessíveis à consciência normal
em face da fantasmagoria do universo urbano.
Ao analisar a realidade como um complexo conjunto de fenômenos inter-relacionados
em um processo dinâmico, o eu poético detecta antinomias e contradições em sua estrutura,
atingindo, assim, o coração da modernidade. Inconformado, tentará reconciliar essas
29
antinomias, transportando-as do plano da especulação abstrata para o plano da positividade da
análise concreta.
Paralelamente, o campo símbolo da sublimação amorosa passará a ser observado
tão rigorosamente e descrito tão pormenorizadamente quanto a cidade prisão labiríntica
ligada à escuridão, à esterilidade, à miséria, à solidão e à morte , permitindo ao eu poético
opor-se à cidade e identificar-se com o estrato social popular na participação ativa na lida da
terra. Essa identificação é desdita posteriormente, com a inexorável consciência de que o
poeta, pertencente à geração exangue da classe exploradora, não tem a riqueza química do
povo em suas veias.
A poética de Cesário é teatral. O eu poético se distancia e se transforma também em
uma “personagem” dentro da estrutura ambulatória de seus poemas. O leitor observa-o como
parte-integrante da realidade dinâmica por ele mesmo comentada criticamente. Afasta-se,
assim, do Romantismo tradicional, onde o “eu” teoricamente não se distancia do leitor; em
tese, finge não ser mascarado (posto que, à luz da concepção moderna de poesia, o eu poético
já pressupõe uma máscara poética).
O monólogo, estrutura característica de Cesário, torna-se, então, um registro anotado de
um passeio reflexivo durante o qual o eu poético procura compreender a realidade compósita
da qual é, simultaneamente, parte e um observador isolado.
A necessidade que o eu poético cesárico em reconciliar as antinomias depreendidas
de sua análise minuciosa do real reflete outra grande constante da modernidade poética, a
saber: a identificação dos contrários, a progressão por antíteses, fenômeno assiduamente
verificado também na poética do autor das Claridades do sul.
Em suma, a poética de Cesário tenta conciliar a “construção”, como princípio poético, e
a fantasia, ou seja, o cuidado composicional do poema e a exploração da criatividade ao tratar
os temas, assim como, em Gomes Leal, os dilaceramentos afetivos e morais, repletos de
devaneios e delírios provindos de uma forte presença da imaginação, são contidos pelo triunfo
de uma inteligência ordenadora que domina o aspecto formal de seus poemas, representando a
harmonia, que se transfigura esteticamente para combater o tropel das paixões.
A figura feminina predomina na obra cesárica, transfigurada em diversas facetas.
Quando no universo citadino, o eu poético é comumente atormentado pela mulher de raiz
baudelairiana a passante femme fatale, gélida e fascinante, cruel, venal, envolta em uma
aura enigmática de intangibilidade e fugacidade; quando no campo, tende a idealizar uma
figura feminina doce e sublime, podendo também transferir essa idealização para uma mulher
que, na cidade, represente ou traga elementos campestres para o seu seio.
30
Podemos pensar em Cesário até como um precursor do Interseccionismo: em “O
Sentimento de um Ocidental” ocorre uma espacialização do tempo, vários momentos
irreversivelmente seriados apresentam-se como pertencentes ao mesmo painel simultâneo, em
um novo modo de articular os dados da percepção.
A peculiaridade do modernismo” de Cesário se encontraria no fato de que os sonhos e
aspirações do eu poético não se desvencilham do cotidiano e assumem posição lado a lado
com o mundo sensível sem, como em Gomes Leal e no Fernando Pessoa ortônimo, por
exemplo, espraiar-se na abstração e no plano irracional.
Gomes Leal foi um dos mais excêntricos poetas portugueses. Buscava na poesia os
efeitos de surpresa, humor e exotismo. O paradoxo, o estranhamento, o satanismo, as
perversões sexuais e o cromatismo se revelam copiosos em muitas páginas da sua poesia,
onde detectamos também um romantismo auto-irônico.
A construção da figura feminina geralmente se associa, em Gomes Leal, a uma visão
satânica tanto da Natureza quanto da cidade. Embora seja hierática e enregelada na sua
postura e no seu semblante, é animalesca e mais propensa ao crime e à libertinagem. Trata-se
da mesma figura que atormenta o eu poético cesárico, quando inserido no meio urbano.
Gomes Leal também adere ao teatro de máscaras da modernidade. Enlevado pelo
aristocracismo dos poetas fin-de-siècle, o dandysme lhe deixará uma marca profunda. O eu
poético cesárico faz uso dessa máscara também com intenção irônica.
Gomes Leal, poeta extraordinariamente multifacetado, deixou-nos uma obra poética
que cumpre estudar mais profundamente, pois é ele também um dos precursores da
modernidade poética portuguesa. Cesário, embora mais conhecido, também necessita de mais
estudos no que tange essa modernidade.
31
2. A “Intencidade”
Um sentimento estranho persegue a existência na modernidade oitocentista. Um
sentimento que coaduna exaltação e horror, sedução e repulsa. Um sentimento de excitação.
Excitação em todos os sentidos: ativação de ões, exaltação, irritação, estar em contato com
estímulos vários e diversos, até mesmo os eróticos, pois as multidões fantasmagorizam todos
os desejos, como se se pudesse entrever na realidade meio “esfumaçada” da locomoção quase
mecânica, mas caótica, dos transeuntes a latência dos instintos.
Esse sentimento, ou sensibilidade, ligada à vida moderna, origina-se de uma atmosfera,
segundo Marshall Berman,
[...] de agitação e turbulência, aturdimento psíquico e embriaguez, expansão
das possibilidades de experiência e de destruição das barreiras morais e dos
compromissos pessoais, auto-expansão e autodesordem, fantasmas na rua e
na alma [...]. (BERMAN, 2007, p. 27-8)
Essa atmosfera pode ser compreendida à luz das pressões do mecanismo econômico da
sociedade moderna.
11
Mecanismo que sofre, por volta de 1830, um processo de
autonomização bem característico da modernidade, assim descrito por Hauser:
As tendências básicas do capitalismo moderno, as quais se tornaram cada
vez mais evidentes a partir da Renascença, apresentam-se agora em toda sua
gritante e intransigente clareza, não atenuadas por qualquer tradição. A mais
notória dessas tendências é a tentativa de subtrair o mecanismo de um
empreendimento econômico, em seu conjunto, a toda e qualquer influência
humana direta, ou seja, a qualquer consideração por circunstâncias de
natureza pessoal. O empreendimento converte-se em um organismo
11
A crítica do capitalismo que se acentua na esfera econômica se justifica no século XIX por causa da grande
exploração do proletariado, que não possuía uma base material condizente com uma existência digna. Mas
devemos levar também em consideração os aspectos que transformam a ética e o caráter psicológico do homem
moderno. Creio que ao tentar compreender a atmosfera” da vida moderna através das pressões do mecanismo
econômico também considero essas transformações, tais como a alienação (o homem moderno não é mais o
centro de seu mundo, estranhando si próprio e seus próprios atos), que leva à idolatria da mercadoria e do
Estado, e a transformação das necessidades de trabalhar, de pontualidade e ordem em impulsos inerentes. As
necessidades irracionais do homem moderno o tornam hostil aos
outros homens. A sociedade atual ainda é uma
sociedade de classes, mas o capitalismo se “humanizou”, no sentido de que o homem não compra o homem
como uma mercadoria, mas o emprega. Seja como for, o homem atual permanece como um meio de interesses
econômicos, de outro homem, de si mesmo e do mecanismo econômico; e não podemos negar que falta
dignidade para a existência de muitos, principalmente nos países “subdesenvolvidos”. O fenômeno da alienação
também se alterou. A idolatria da mercadoria transformou-se na busca incessante pelo consumo, e a tecnificação
do mundo se orienta ideologicamente para a tecnificação da vida, provocando comportamentos condicionados
que contribuem para a mania de consumo e para o escamoteamento dos antagonismos de classe.
32
autônomo, esforçando-se por realizar seus próprios interesses e objetivos,
obedecendo às leis de sua própria lógica interna, um tirano que converte em
escravo todo aquele que entra em contato com ele. [...] O sistema torna-se
independente daqueles que o alimentam e transforma-se num mecanismo
cujo progresso nenhum poder humano é capaz de restringir. Essa
automobilidade do mecanismo é a coisa mais perigosa no capitalismo
moderno [...]. (HAUSER, 2000, p. 736)
“A condição essencial para a existência e para o poder da classe burguesa é a formação
e o crescimento de capital [...] (MARX & ENGELS, 2002, p. 28), e as conseqüências da
autonomização do mecanismo econômico, que em outros termos é sua racionalização, são a
dedicação absoluta e a abnegação do burguês na busca da prosperidade e da expansão
pessoais, subjugado pelo abstrato sistema competitivo do capital, que gera uma constante
sensação de insegurança, pois a insaciável demanda de crescimento e progresso é subtraída à
esfera de influência do indivíduo. A busca por prosperidade e expansão exigida pelo
mecanismo econômico torna todos os homens rivais, como se todos quisessem oferecer mais
sacrifícios a um deus que, furibundo e caprichoso, torna tudo provisório e instável para que
mais sacrifícios sejam ofertados em seu nome. E nesses sacrifícios as vítimas são aqueles que
não chegaram a sacerdote ou ficaram à margem dessa religião profana (o caráter competitivo
do moderno mecanismo econômico liberal se associa, assim, à seleção natural, no âmbito do
Darwinismo social, configurando uma das facetas da ideologia burguesa).
12
A despeito dessas metáforas, essa situação bélica da sociedade burguesa é somente
mitigada, ao menos simbolicamente, quando o burguês adentra a base dessa sociedade a
propriedade –, que abriga a instituição que resguarda a propriedade a família. A
propriedade, fruto da guerra, é o repos du guerrier.
13
12
Consideremos, a título de curiosidade, a descrição, feita por Erich Fromm, do mecanismo econômico da
sociedade moderna e a ressalva sobre as implicações desse mecanismo como conclui o seguinte trecho: “O
mercado moderno é um mecanismo de distribuição que se regula automaticamente, o que torna desnecessário
dividir a produção social segundo um plano novo ou tradicional e, assim, se elimina a necessidade de usar a
força no seio da sociedade. Naturalmente, a ausência de força é mais aparente do que real. O operário que tem de
aceitar o padrão de salário que se lhe oferece no mercado de trabalho se obrigado a aceitar as condições do
mercado, porque de outro modo o sobreviveria. Assim, a ‘liberdade’ do indivíduo é em grande parte ilusória.
Ele se apercebe da inexistência de uma força exterior que o obrigue a assinar certos contratos; mas se menos
conta das leis do mercado que operam por sobre seus ombros, por assim dizer; e, em conseqüência, considera-se
livre, quando na realidade não o é. Porém embora assim seja, o método capitalista de distribuição mediante o
mecanismo do mercado é melhor do que qualquer outro método aagora ideado em uma sociedade de classes,
porque é uma base para a relativa liberdade política do indivíduo, característica da democracia capitalista”
(FROMM, 1976, p. 95).
13
O fim da propriedade privada e a socialização dos meios de produção e distribuição seriam suficientes para
modificar a sociedade burguesa moderna nos termos do fim da alienação e da conseqüente emancipação das
qualidades humanas? Erich Fromm faz refletir. Nos moldes de um comunitarismo humanista, ele conclui que o
“[...] problema não é primordialmente o da propriedade, nem o da partilha dos lucros; é o da partilha do
trabalho, da experiência. A alteração do direito de propriedade deve ser feita até um grau necessário à criação de
uma comunidade de trabalho, e para evitar que a motivação do lucro oriente a produção para direções
33
O esteio da sociedade burguesa, isto é, o conceito de propriedade, contradiz, através da
estrutura da relação familiar, os próprios pressupostos da sociedade burguesa e de suas
relações sociais. A ansiosa epopéia da busca de excedentes, alicerçada pela livre iniciativa
competitiva e pela ética individualista, que pressupõem igualdade de direitos e de
oportunidades e liberdade (supõe-se que a ação competitiva de muitos resulte na maior
vantagem possível para todos), desvanece ao abrir da porta residencial, que revela uma
relação patriarcal passiva, pacífica, transformando a estrutura da relação familiar no
microcosmo da espécie de sociedade pré-burguesa que teoricamente havia sido superada: uma
hierarquia de dependência pessoal.
14
A contradição se encontra, pois, no cerne da modernidade. A contradição é a maneira
de encontrar o seu coração. Ela é o espaço dos antagonismos. A barbárie gesta no ventre do
progresso civilizador. O desenvolvimento das forças industriais e científicas não garantiu o
desenvolvimento humano. A luta de classes é agora, segundo Marx, simplificada, sendo a
sociedade dividida em burgueses e proletários.
A burguesia é, no nível econômico, a classe “capitalista”, isto é, possuidora do capital,
constituída de empresários, homens de negócios, profissionais liberais, os mais altos escalões
da administração e rentistas. No nível social, é uma classe bem abastada e estabelecida.
Considerando a definição mais detalhada de burguesia de Max Weber, lemos o seguinte na
História geral da economia:
Com a denominação de “burguesia”, no sentido da história social,
compreendemos três acepções fundamentais, diferentes uma da outra. A
burguesia pode abranger determinadas categorias sociais, caracterizadas por
socialmente prejudiciais. As rendas devem ser igualadas até um ponto que possibilite a todos uma base material
para uma vida digna, evitando, assim, que as diferenças econômicas produzam uma experiência
fundamentalmente diferente da vida para as várias classes sociais. [...] em vez da orientação exploratória e
usurária, dominante no culo XIX, todos os arranjos sociais deverão visar à orientação produtiva(FROMM,
1976, p. 345). Para Fromm, que sugere alternativas para uma sociedade sadia, o comunitarismo humanista
deveria provocar, resumidamente, uma mudança simultânea nas esferas econômica (co-gerência integral nos
empreendimentos, em nome da motivadora participação ativa e responsável dos trabalhadores), política (criação
de diversos grupos de discussão face a face socialmente diversificados, onde as decisões do cidadão devem ter
influência direta sobre o poder de decisão exercido por um executivo parlamentar centralmente eleito, sendo as
informações das pautas transmitidas por uma agência cultural apolítica) e cultural (a combinação da educação
para o trabalho, tanto de jovens quanto de adultos, e de um sistema de arte popular e ritual secular de âmbito
nacional). Juntamente com essas transformações, deveria ocorrer também uma reforma moral (ignorada pelo
Marxismo, segundo Fromm), pois o homem moderno é repleto de necessidades irracionais que o incitam à
rivalidade e à falta de solidariedade. Cf. a seguinte referência: FROMM, E. Psicanálise da sociedade
contemporânea. 8 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. (Biblioteca de Ciências Sociais).
14
Erich Fromm, nesse contexto, define o caráter da sociedade oitocentista como “[...] essencialmente
hierárquico, embora não mais como caráter hierárquico na sociedade feudal, baseado no direito divino e na
tradição, mas na posse do capital: quem o possuía podia comprar e, portanto, mandar no trabalho de quem o
possuía, e estes tinham de obedecer, sob pena de morrerem de fome. Havia certa mescla do novo e do velho tipo
hierárquico” (FROMM, 1976, p. 103).
34
certos interesses econômicos. Segundo esta delimitação, a classe burguesa
não é um todo homogêneo; grandes e pequenos burgueses, empresários e
artesãos contam-se em dita classe. No sentido político, a burguesia inclui
todos os cidadãos do Estado, como titulares de certos direitos políticos. Por
fim, compreendemos, sob a denominação de burguesia, no sentido
estamental (status, conditio), aquelas camadas sociais que a burocracia, o
proletariado e, enfim, os que estão fora dela, consideram como “gente de
posição e cultura”: empresários, rentistas e todas as pessoas possuidoras de
uma formação acadêmica, um nível de vida mais elevado e um prestígio
social. (WEBER, 1980, p. 146)
Apesar de a petite bourgeoisie ser o limite da classe burguesa, os pequeno-burgueses
como os artesãos eram, com as pressões do universo industrial, tragados pelo proletariado, a
classe trabalhadora assalariada que é, novamente segundo Marx, uma invenção dos tempos
modernos, isto é, uma classe constituída de homens legitimamente modernos. Ainda segundo
Weber, a classificação estamental de burguês também implica um conceito especificamente
moderno, além de especificamente ocidental.
15
A burguesia dominava através de sua ideologia. Esta é um mecanismo que, ao valorizar
a aparência de certos elementos fenomênicos, camufla a estrutura subjacente a estes
fenômenos, invertendo a realidade. Nas lacônicas palavras de Adorno (1980, p. 194),
“ideologia é inverdade, consciência falsa, mentira.”. Tem sempre a função de naturalizar uma
situação histórico-social. A ideologia dominante em uma formação social é sempre a da classe
dominante. A ideologia burguesa é a que domina no modo de produção capitalista.
Parece-me não ser uma tarefa pacífica delimitar os mecanismos ideológicos da
burguesia oitocentista. A ideologia burguesa é, de modo geral, a do progresso baseado na
ciência. Todavia, o “progressismo” também é central no pensamento socialista. O que a
burguesia pretende com as noções de progresso e de ciência é, como todo mecanismo
ideológico, naturalizar o contexto das desigualdades sociais e a exploração através da
legitimação histórico-científica da “superioridade” da classe dominante, quer no plano
biológico quer no sócio-cultural. Ela atualiza a teoria da seleção natural no contexto sócio-
econômico. Essa forma de naturalização pressupõe que o Liberalismo seja o estágio definitivo
da evolução social, tendendo a restringir ao plano material as próximas etapas do progresso. O
pensamento revolucionário, por seu turno, crê no progresso como um instrumento que
solucionará as contradições sociais.
Não obstante a ideologia burguesa ser secular, materialista, percebemos nela resquícios
de espiritualidade cristã, apregoando a moderação, o sacrifício (transferido para o âmbito do
15
Sabemos que hoje o status de burguês se alastrou por todos os continentes.
35
esforço no trabalho, dando sentido à associação do capitalismo e da ética protestante) e até a
abstinência sexual antes do matrimônio nupcial como virtudes e condenando os excessos e o
ócio como vícios. Estamos nos atendo a mecanismos ideológicos. Com certeza havia
indivíduos burgueses que não eram hipócritas em relação à ética cristã. Assim como havia
com certeza indivíduos burgueses que viviam um tormento pessoal causado pela tensão entre
a ética secular e a religiosa. Mas o fato é que muitos burgueses usavam o discurso religioso
como legitimação da existência das classes “inferiores” como tendo a função de fazer as
classes “superiores” exercitarem sua virtuosa tendência ao ato da caridade; assim como, em
um sentido diverso, o mesmo discurso era usado para convencer um indigente de que ele
adentraria o Reino dos Céus por ter vivido na adversidade.
Assim posto, detectamos várias e diversas maneiras de a ideologia burguesa legitimar a
dominação, aproveitando argumentos tanto das pesquisas “científicas” e de seu discurso de
“superioridade” racial quanto de matiz da ética cristã. As classes e os indivíduos
socioeconomicamente desfavorecidos assim o eram ou por causa da “inferioridade” biológica
e/ou sócio-cultural, “cientificamente” comprovada, ou pela falta de esforço e pelo exercício
do ócio, que levam a não aproveitar as oportunidades (afinal, oportunidades para todos em
uma sociedade liberal). Em última instância, essas classes e indivíduos poderiam manter-se
despreocupados (e também não revoltados), pois sobreviver na adversidade é, enfim, uma
grande virtude. A função da ideologia é garantir a legitimação e a naturalização de todas as
maneiras possíveis.
O desnível do desenvolvimento científico-industrial e do desenvolvimento humano é
assim verificado por Marx, à luz da luta de classes e do discurso inflamado do Manifesto
comunista:
A indústria moderna converteu a pequena oficina do mestre patriarcal na
grande fábrica do industrial capitalista. Massas de trabalhadores,
comprimidos nas fábricas, são organizados (sic) como tropas. Como
soldados do exército industrial, são colocados sob o comando de uma
hierarquia perfeita de oficiais e sargentos. Não são somente escravos da
classe burguesa e do Estado burguês, mas são, a todo dia e a toda a hora
escravizados pela máquina, pelo supervisor e, acima de todos, pelo próprio
indivíduo fabricante burguês. Quanto mais abertamente este despotismo
proclama que o ganho é o seu fim e a sua meta, tanto mais mesquinho, tanto
mais odioso e tanto mais amargo ele se torna. (MARX & ENGELS, 2002, p.
20)
A sociedade burguesa moderna faz com que os ideais da burguesia revolucionária,
elogiada por Marx no mesmo manifesto, caiam por terra ou se transformem em instrumentos
36
que colaborem com a legitimação da dominação. É claro que um ou outro proletário teria a
chance de se tornar burguês, pois o mecanismo social tinha de agir subliminarmente. Se ele
fosse totalmente exposto, o perigo de explodir a Revolução se tornaria mais iminente. Esse
método de escamoteamento e legitimação do mecanismo social é, na modernidade atual,
dirigido, com a reinvenção do capitalismo, pela padronização técnica da ciência e por um
programa de substitutivos que se reforçam mutuamente com o objetivo de, no plano da
existência cotidiana, acentuar os comportamentos condicionados do agir racional-com-
respeito-a-fins em detrimento do agir comunicativo (não que tenhamos, nessa perspectiva, que
crer que somos como meras extensões de material tecnológico ou que somos robôs).
Segundo Eric Hobsbawn, em sua Era do capital: 1848-1875, a ascensão do capitalismo
industrial e a consolidação da cultura burguesa ocorrem no período entre 1848 a 1875. Mas
Hauser afirma que por volta de 1830, isto é, por volta do início da Monarquia de Julho (1830-
1848), os alicerces e contornos desse período já se desenvolvem. A aristocracia é uma ilha; e
a burguesia, consciente de sua vitória e poder, já não se preocupa com concretizar algum ideal
revolucionário. Pelo contrário. Em contrapartida, o proletariado começa a perceber que
Voltaire o estava defendendo o direito de voz da “plebe” e os antagonismos começam a se
simplificar entre o capital e aquele que seria o produto mais autêntico da indústria moderna: o
mesmo proletariado.
Seja como for, a burguesia, no século XIX,
[...] subjugou o país às leis das cidades. Criou cidades enormes; aumentou
em grande escala a população urbana, se comparada à rural e, assim,
resgatou uma considerável parte da população da idiotia da vida rural. Do
mesmo modo como tornou o país dependente das cidades, tornou países
bárbaros e semibárbaros dependentes dos países civilizados, nações de
camponeses dependentes de nações burguesas, o Oriente dependente do
Ocidente. (MARX & ENGELS, 2002, p. 15-6)
A cidade enquanto instituição determinada pela cidadania do burguês em sua qualidade
estamental é uma criação da Europa Ocidental, que se iniciou no final da Idade Média. A
cidade, em termos gerais, é uma obra coletiva, originada do trabalho articulado de muitos
homens, que se associa ao desejo de dominar a Natureza. Com a existência permitida pelo
processo de sedentarização, delimita uma nova relação com a Natureza, garantindo o domínio
permanente de um território. Com esse domínio, advém a necessidade de organização da vida
social e conseqüentemente, de gestão da produção coletiva. A existência material da cidade
pressupõe sua existência política, tornando-a um centro de administração e poder.
37
Administração político-religiosa, pois a cidade é também um local cerimonial, sediando
templos.
Quando a produção gera excedentes, a cidade se torna local permanente de moradia e
trabalho, sendo seus moradores consumidores, e não produtores agrícolas. Ao mesmo tempo,
a cidade impulsiona a produção agrícola, pois nela se produzem as novas tecnologias do
trabalho, tanto urbano quanto rural; assim como as novas tecnologias da guerra:
A cidade ocidental, em sua origem, é uma agrupação defensiva, a união
daqueles que, economicamente, podem atuar como militares, procurando-se
o armamento e a instrução necessária. [...] Em todos os lugares, fora do
Ocidente, ficou impedido o desenvolvimento da cidade, pelo fato de que os
exércitos dos príncipes foram mais antigos do que a cidade. [...] não existe
um exército egípcio ou babilônico-assírio que oferece um quadro idêntico ao
das hostes homéricas, dos exércitos de cavaleiros do Ocidente, das mesnadas
municipais da antiga polis, ou dos exércitos corporativos da Idade Média. A
diferença consiste na circunstância de que, para o Egito, a Ásia Menor, a
Índia e a China, o essencial é o problema da irrigação. Com tal irrigação
instituíam-se a burocracia, as corvéias dos súditos e a dependência dos
vassalos relativa à burocracia do rei, em todos os setores da vida. Que o rei
pudesse fazer valer o seu poder no sentido de um monopólio militar, é no
que se baseia a diferença de organização defensiva entre a Ásia e o Ocidente.
Na Ásia o funcionário e o oficial do rei, desde o princípio, o elementos
típicos do desenvolvimento, enquanto que no Ocidente faltam em sua origem
tais elementos. A irmandade religiosa e o equipamento militar procurado
pelo próprio soldado permitiram a origem e existência das cidades.
(WEBER, 1980, p. 149-50)
O desenvolvimento da cidade capitalista oitocentista se dá na direção da privatização da
terra e da moradia, da segregação espacial (separação das classes sociais e funções no espaço
urbano), da intervenção reguladora do Estado e da luta pelo espaço, sendo a produção
industrial a força que movimenta estes elementos.
A cidade, depois da estrada de ferro, era o mais impressionante símbolo do universo
industrial. Ao mesmo tempo em que era o símbolo da burguesia, a maioria da população
urbana era socioeconomicamente inferior e, por isso, representava uma ameaça pública para
os planejadores de cidades, que ideavam avenidas e bulevares que dispersassem a
concentração dessa camada da população por causa do perigo dos bairros populosos. As
estradas de ferro faziam suas linhas passarem através dos bairros pobres, pois os custos eram
menores e os protestos, digamos, negligenciáveis. A segregação social faz parte da natureza
da cidade capitalista.
É o contato com a “atmosfera” do ambiente dessa cidade símbolo da burguesia que
produz aquele estranho sentimento, ou sensibilidade, ligada à vida moderna.
38
Ao experienciarem esse contato, os poetas da segunda metade do século XIX
transformarão o signo “cidade” em um instrumento de descoberta paulatina da vida moderna.
Essa experiência, transfigurada na poesia, faz a imagem urbana oscilar entre um locus
amoenus e um locus adversus, isto é, o eu poético, quanto mais condena, mais vividamente
evoca a cidade moderna; quanto mais se perturba, mais se identifica com ela, mais ela se
entranha em seu íntimo. É uma sedução que leva ao sofrimento e a uma visão sempre
hesitante, incerta e crítica da modernidade. A cidade é a musa moderna. A cidade é uma
femme fatale.
Sebastião Uchoa Leite analisa essa tensão em “A Poesia e a Cidade”:
Na verdade, foi como lugar adverso, como antiutopia, que o ícone cidade
primeiro apareceu sistematicamente na poesia pessimista de Baudelaire e
depois logrou alcançar, e muito menos na expressão poética do que noutras
manifestações artísticas (artes visuais: pintura, gravura, desenho de cartazes,
ou, ainda, fotografia, cinema), o estatuto da utopia. Mas, mesmo nessas
artes, e mais particularmente na literatura (ficção narrativa e poesia), esse
estatuto é permeado pela dúvida e pela incerteza [...]. (LEITE, 2003, p. 58)
Contemporâneo das grandes reformas parisienses empreendidas sob a direção do barão
de Haussmann, prefeito do Sena, é Baudelaire, com suas Flores do mal (1857), mormente
com a seção “Quadros Parisienses”, quem inaugura a cidade moderna como um dos principais
topos da poesia moderna da segunda metade do século XIX, como revela Sebastião Uchoa
Leite no trecho citado. Baudelaire colherá nos jardins do Mal, ou seja, nas ruas da cidade, as
flores doentias da miséria, da repressão, do vício, do remorso, da cobiça e da prostituição.
Com Baudelaire, o eu poético moderno se torna dilacerado entre a busca incessante e
atribulada de uma idealidade e a vida marcada pelo crescente esvaziamento simbólico da
existência perpetrado pela lógica do capitalismo, que afrouxa os laços sociais mais íntimos
entre os indivíduos (os homens modernos se reconhecem no seu afastamento, e não na
proximidade),
16
fomentando uma espécie de guerra civil velada por uma lustrosa demão de
racionalidade, e instaura uma religião da mercadoria.
16
Anthony Giddens, ao analisar a intimidade e impessoalidade (a intersecção de confiança pessoal e laços
impessoais), uma estrutura de vivência da modernidade atual, adota uma visão interessante: “Uma pessoa anda
pelas ruas de uma cidade e encontra talvez milhares de pessoas no decorrer do dia, pessoas que ela nunca
encontrou antes – ‘estranhos’ no sentido moderno do termo. Ou talvez esse indivíduo perambule por vias
públicas menos apinhadas, analisando ociosamente os passantes e a diversidade dos produtos à venda nas lojas
o flâneur de Baudelaire. Quem poderia negar que essas vivências são um elemento integral da modernidade?
Contudo o mundo ‘lá fora’ o mundo que se transforma gradativamente da familiaridade do lar e da vizinhança
local para um tempo-espaço indefinido não é de modo algum um mundo puramente impessoal. Pelo contrário,
relações íntimas podem ser mantidas à distância (contato regular e corroborado pode ser feito com outros
indivíduos em virtualmente qualquer lugar da superfície da Terra – bem como um pouco acima e abaixo), e laços
pessoais são continuamente atados com outros que nos eram anteriormente desconhecidos. Vivemos num mundo
39
O efeito do contato do poeta com a cidade é o fenômeno da perte d´auréole, intuído de
um pequeno poema em prosa baudelairiano intitulado exatamente “A Perda da Auréola”, do
qual transcrevo um trecho:
- Mon cher, vous connaissez ma terreur des chevaux et des voitures. Tout à
l´heure, comme je traversais le boulevard, en grande hâte, et que je
sautillais dans la boue, à travers ce chaos mouvant la mort arrive au
galop de tous les côtés à la fois, mon auréole, dans un mouvement brusque,
a glissé de ma tetê dans la fange du macadam. Je n´ais pas eu le courage de
la ramasser. J´ai jugé moins désagréable de perdre mes insignes que de ma
faire rompre les os. Et puis, me suis je dit, à quelque chose malheur est
bon. Je puis maintenant me promener incognito, faire de actions basses, et
me livrer à la crapule, comme les simples mortels. Et me voici, tout
semblable à vous, comme vous voyez!
(BAUDELAIRE, 2006, p. 252)
Meu caro, você conhece meu terror de cavalos e viaturas. Agora mesmo,
quando atravessava a avenida, muito apressado, saltando pelas poças de
lama, no meio desse caos móvel, onde a morte chega a galope de todos os
lados ao mesmo tempo, minha auréola, em um brusco movimento,
escorregou de minha cabeça e caiu na lama do macadame. Não tinha
coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder minhas insígnias
do que me arriscar a quebrar uns ossos. E depois, disse para mim mesmo, há
males que vêm para o bem. Posso, agora, passear incógnito, cometer ações
reprováveis e abandonar-me à crapulagem como um simples mortal. E eis-
me aqui, igual a você, como você vê.
17
Perder a auréola é aceitar as fragilidades do homem moderno, dotando de tragicidade a
vida urbana. De uma tragicidade bela. Tragicidade: trágica cidade. A cidade moderna é
trágica. A beleza moderna é ansiosa e periclitante. Perder a auréola é aceitar a modernidade
com toda a capacidade de abertura de um abraço, tendo em uma das mãos um punhal. É quase
se prostituir, isto é, quase se sentir parte-integrante da multidão de solitários, ou seja, ter um
sentimento generoso, uma empatia com ela. É ter um sentimento generoso que digladia com o
sentimento de posse, é viver a tensão entre a busca de uma associação espiritual com os
povoado, o meramente num mundo de rostos anônimos, vazios, e a interpolação de sistemas abstratos em
nossas atividades é intrínseca à sua realização. Nas relações de intimidade do tipo moderno, a confiança é
sempre ambivalente, e a possibilidade de rompimento está sempre mais ou menos presente. Os laços pessoais
podem ser rompidos, e os laços de intimidade podem voltar à esfera dos contatos impessoais no caso amoroso
rompido, o íntimo torna-se de súbito novamente um estranho. A exigência de ‘se abrir’ para o outro que as
relações pessoais de confiança pressupõem hoje; a injunção de nada ocultar do outro, misturam renovação da
confiança e ansiedade profunda. A confiança pessoal exige um nível de auto-entendimento e auto-expressão que
deve ser em si uma fonte de tensão psicológica. Pois a auto-revelação mútua é combinada com a necessidade de
reciprocidade e apoio; estas duas coisas, contudo, o freqüentemente incompatíveis. Tormento e frustração
entrelaçam-se com a necessidade de confiança no outro como o provedor de cuidados e apoio.” (GIDDENS,
1991, p. 143-4)
17
Tradução de Gilson Maurity, encontrada na seguinte referência: BAUDELAIRE, C. Pequenos poemas em
prosa. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2006.
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sofridos citadinos e o gosto da propriedade. Perder a auréola se resume, no fundo, na tentativa
de evitar esse gosto, aspirar o ar das ruas que começa a se envenenar e se sentir atraído
pela orfandade que se aventura no contato, ainda que meio distanciado, com desconhecidos
familiares:
Le poète jouit de cet incomparable privilège, qu´il peut à sa guise être lui-
même et autrui. Comme ces âmes errantes qui cherchent un corps, il entre,
quand il veut, dans le personnage de chacun. Pour lui seul, tout est vacant;
et si de certaines places paraissante lui être fermées, c´est qu´à ses yeux
elles ne valent pas la peine d´être visitées. [...] Il adopte comme siennes
toutes les professions, toutes les joies et toutes les misères que la
circonstance lui présente.
(BAUDELAIRE, 2006, p. 66)
O poeta goza desse incomparável privilégio de ser ele mesmo e um outro.
Como essas almas errantes que procuram um corpo, ele entra, quando quer,
no personagem de qualquer um. para ele tudo está vago; e se certos
lugares lhe parecem fechados é que, a seu ver, não valem a pena ser
visitados. [...] Ele adota como suas todas as profissões, todas as alegrias,
todas as misérias que as circunstâncias lhe apresentem.
18
A modernidade, que seduz pelo gosto da propriedade, também seduz pelo gosto da
máscara; e este joga com aquele. Esse teatro não tem platéia, porque os que seriam a platéia
são exatamente a fonte da peça de um solitário com olhos singulares. Seus olhos o mãos
que furtam habilmente do véu das multidões um desejo, um prazer, uma dor. Uma intensa dor.
A descoberta de Rimbaud de que Eu é um outro adquire novas matizes nesse contexto.
Esse solitário com olhos singulares, que passeia incógnito, essa alma errante, esse
homem das multidões, obcecado pela otredad, é tradicionalmente chamado de flâneur. Seu
ato, de flânerie.
Creio ser uma afirmação equívoca a de que o flâneur partilha a situação da mercadoria
por estar abandonado na multidão. Não deve ser visto como fetiche. A empatia do flâneur ao
desposar a multidão é consciente de sua função. Seu mudancismo camaleônico não é fútil ou
ligado a qualquer relação mercantil referente ao modo de produção moderno. O flâneur
instrumenta uma dialética da aproximação e do distanciamento para, na sua flânerie,
denunciar, por meio de “recortes” das cenas urbanas, as mazelas do progresso, as antinomias,
os antagonismos. A ebriedade do flâneur está em alimentar essa judicativa consciência. Seu
contínuo mascaramento é uma tentativa de onisciência perpetrada pelo rigor da consciência
que busca se situar e compreender seu habitat. Essa perquirição engloba os restos da produção
18
Tradução de Gilson Maurity, encontrada na seguinte referência: BAUDELAIRE, C. Pequenos poemas em
prosa. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2006.
41
industrial e os “restos” da organização social, a luta de classes e a “luta” do cotidiano. Para
acurar tal observação e análise, o flâneur precisa freqüentar também os meios burgueses, as
galerias e se defrontar com a mercadoria.
Esse é o heroísmo moderno: representar a modernidade. É um rculo vicioso. O herói
moderno é mascarado, uma representação, que camaleoniza sua existência para fazer a
modernidade surgir em toda sua complexidade. Complexidade: complexa cidade. A cidade
moderna é complexa. O heroísmo moderno é a tentativa de extrair um eco épico dos despojos,
um eco abafado pela impotência e melancolia advindas do esvaziamento simbólico da
modernidade.
A crise da representação é a representação da crise, e quem representa a crise é por ela
representado.
É “na elevação dessa imagística à mais elementar intensidade” (ELIOT, 2002, p. 1024)
imagística da labutosa vida comum e da complexa existência da cidade que consiste o
efeito do contato com a nova realidade exterior. A função do poeta moderno é captar essa
intensidade e torná-la visível aos seus contemporâneos através de conteúdos semânticos e
formais, geralmente concertados por uma subjetividade alargada (despersonalizada) que abre
o horizonte e se dirige a uma coletividade integrada. O efeito psicológico causado pelo
contato com a cidade, transfigurado no campo retórico-composicional e compartilhado com o
leitor em tom de surpresa e estranhamento, é por mim designado pela expressão
“intencidade”. É a intencidade de Cesário e a de Gomes Leal que compartilharemos neste
capítulo, pois cada poeta moderno tem a sua intencidade. Mas antes, visitemos rapidamente o
universo urbano português oitocentista, para verificarmos o nível de modernização que o país
tinha alcançado.
Não obstante toda sua pretensa onipresença e onisciência, Satã parece que desconhecia
e não residia em Lisboa, ou ainda não a tinha conquistado com hostes muito poderosas. Isto é:
Lisboa não era uma cidade muito modernizada ou plenamente burguesa. Mirian Halpern
Pereira informa que entre 1820 e 1890 a economia portuguesa se assentava na atividade
agrícola e no comércio externo a ela ligado (em uma proporção que somente perde para o
período medieval). As unidades industriais, de menor dimensão, articuladas com a atividade
agrícola, eram condicionadas pela configuração do mercado interno, que atendia as
necessidades das camadas com menor poder de compra. O setor básico da indústria, o têxtil,
tendia a ser de origem estrangeira, porque era dirigido pela elite, que privilegiava a produção
de qualidade. A estamparia, concentrada em Lisboa, foi o setor mais próspero do têxtil até
1881. Das treze unidades lisboetas, somente três o utilizavam a energia a vapor, sendo um
42
setor com um desenvolvimento técnico apurado. Os dois principais setores da economia
portuguesa eram os de tecidos de algodão e dos lanifícios, ao menos até 1890. Os fatores de
competitividade que lhes permitiram o preenchimento de segmentos consideráveis do
mercado interno, mormente com menor poder de compra, e atingir progressivamente estratos
mais elevados, tanto diretamente quanto, talvez, mediante a penetração no circuito de
abastecimento da estamparia lisboeta, foram a grande escala de mão-de-obra barata e parte da
energia hidráulica de custo quase nulo.
O crescimento industrial português se iniciou especificamente em 1840, mas Portugal
permaneceu predominantemente agrícola até meados do século XX.
Mesmo que a cidade portuguesa estivesse um tanto afastada do roçar da cauda de Satã,
todo progresso, por menor que seja, traz mazelas e desigualdades para o seio de uma
sociedade. As pressões da nova divisão internacional do trabalho provocam graves
conseqüências para a periferia do desenvolvimento. Os contrastes de condições de vida eram
enormes, assim como terríveis as condições de trabalho, com a longa jornada e com a falta de
segurança. O salário do proletariado era irrisório e o fantasma do desemprego assombrava. A
educação era precária, tornando o analfabetismo alarmante. A higiene, nos bairros antigos, era
deplorável. As condições sanitárias eram péssimas nos mercados, fazendo com que muitos
dos gêneros consumidos pelas camadas socioeconomicamente inferiores se estragassem.
Jorge Luiz Antonio (2002, p. 53) faz um breve panorama histórico referente à revolução
do vapor, dos transportes e das comunicações, compreendida entre 1815 e 1890, ao mencionar
“os indícios de uma pré-industrialização como elemento inovador na linguagem poética de
Cesário.”. Segundo suas informações, temos:
[...] a instalação da máquina a vapor para transportes fluviais e marítimos (a
partir de 1820), a construção de estradas, a instalação de uma rede
ferroviária nacional e internacional (1853), a presença do telégrafo elétrico
(1857), a criação de indústrias, a presença de operários de fábricas (cerca de
1881), o surgimento da profissão de engenheiro civil (de 1864 em diante), a
exploração do subsolo, as transformações e o crescimento urbanos (cerca de
1890), os transportes coletivos, a instalação de candeeiros a gás nas grandes
cidades portuguesas (por volta de 1848). (ANTONIO, 2002, p. 53)
Essas informações o úteis em termos de um breve panorama, mas sabemos que o
crescimento industrial português se inicia em 1840, assim como as transformações e o
crescimento urbanos.
43
Cesário é um poeta da cidade. Sua cidade é Lisboa. O espaço urbano lisboeta é tão
íntimo, está o entranhado na existência do seu eu poético que Lisboa chega a ser tratada na
segunda pessoa. Como esse eu poético associa a cidade à solidão e à escuridão, escolhi para
comentar o poema que creio melhor representar essa associação: “O Sentimento de um
Ocidental” (1880); além, claro, pelo fato de ser “a investigação final e definitiva de Cesário
sobre a cidade” (MACEDO, 1986, p. 169). A escuridão e a solidão são elementos mais
propícios para garantir o acesso ao universo simbólico da transfiguração da realidade. Permite
o segundo a introspecção, tendendo para a subjetividade; abre o primeiro o horizonte do
mistério, da incerteza, da insegurança, aguçando a curiosidade. O espírito do eu poético do
“Sentimento de um Ocidental” é assaz curioso, determinando essa curiosidade o modo de
expressar suas sensações e sentimentos. A realidade circundante é envolvida por uma
atmosfera de estranhamento e surpresa. O eu poético vai descobrindo paulatinamente o espaço
das ruas e os ambientes junto com o leitor. E este, que segue os mesmos passos do eu poético,
começa, simultaneamente, a observá-lo como mais uma personagem que perambula pela
cidade. Uma personagem com olhos singulares; que recebe o auxílio de uma estranha e
irônica luneta de uma lente para observar os quadros revoltados. Para se ler Cesário, tem
de querer andar e observar. E o prazer de sua obra é conseguido pelo exercício da curiosidade.
“O Sentimento de um Ocidental” é cindido em quatro partes “Ave-Maria”; “Noite
Fechada”; “Ao Gás”; “Horas Mortas” –, que correspondem à progressão da noite, desde o
crepúsculo até a madrugada. Essa progressão corresponde, por seu turno, ao percurso
temporal da deambulação do eu poético. Flanar é preciso. Na modernidade, a deambulação é
necessária para percorrer o labirinto das cidades. Em Cesário, flanar é preciso em ambos os
sentidos: no sentido da necessidade da deambulação para o acesso à dimensão poética que o
“eu” busca na nova e complexa realidade exterior, e na precisão que esse mesmo “eu” busca
ao descrever os objetos dessa realidade (coadunando a observação e a análise do real com a
transfiguração subjetiva).
As descrições empreendidas pelo eu poético são fragmentárias, selecionadas como
“retalhos” das cenas urbanas. Essa técnica foi uma inovação encetada por Cesário na poesia.
Helder Macedo a descreve em Cesário Verde: o romântico e o feroz da seguinte maneira:
A frase “justaposição significativa” usada por Harry Levin para caracterizar
a técnica narrativa de Flaubert pode igualmente aplicar-se ao método poético
de Cesário: os seus poemas progridem numa série de seqüências
aparentemente casuais de acontecimentos justapostos cuja articulação está
mais próxima da técnica cinematográfica de corte e montagem (por sua vez
44
derivada da justaposição significativa do romance realista) do que da sintaxe
poética de associação metafórica. [...]
Correspondentemente, ao nível da sintaxe, a figura dominante deste discurso
peripatético é o assíndeto, com uma justaposição vocabular muitas vezes
próxima do zeugma e do oximoron latentemente sugerindo a natureza
multifacetada das percepções do “eu” narrativo do poema. (MACEDO, s.d.,
p. 15-6)
Cesário transpõe essa técnica do romance realista para a poesia com o intuito de
representar as impressões elementares suscitadas pelos objetos ao decompor seus elementos.
O acúmulo de impressões elementares produziria a impressão do todo, como se todos os
aspectos de um objeto tivessem sido compreendidos ou analisados. Essa técnica cria a ilusão
da precisão, que tenta reter e analisar os elementos de uma realidade dinâmica e
fantasmagórica repleta de informações simultâneas. Essa ilusão cria uma tensão entre o
objetivo e o subjetivo, que termina por transformar essa busca da precisão em uma
habilidade verbal na recriação do mundo, e não uma adequação essencial ao real ou a um
sentido prévio” (PERRONE-MOISÉS, 2003, p. 157-8).
Pretendo, com o comentário do “Sentimento de um Ocidental”, revelar, através de uma
abordagem panorâmica, a visão que o eu poético tem da burguesia, o efeito aprisionador da
cidade (o fenômeno do emparedamento), a heroicização da vida moderna e o sentimento de
generosidade cultivado pelo eu poético. O comentário contemplará, assim, os principais
elementos abordados pelo estro citadino de Cesário, excetuando o arquétipo feminino da
femme fatale, que será aprofundado posteriormente.
A burguesia lisboeta é, antes de mais nada, devota. Logo o título da primeira parte do
poema (“Ave-Maria”) é uma “designação das seis da tarde ironicamente sugestiva da
organização da vida segundo os ritmos bem ordenados de comunidade unida pela devoção
religiosa (...)” (MACEDO, 1986, p. 170). O desejo absurdo de sofrer, expressão que, por ser
meio misteriosa, suscita uma variedade de interpretações, não poderia, nesse contexto, ser um
sentimento de angústia masoquista provocado pela sensação de sacrifício, atitude apregoada
como argumento de matiz religiosa da ideologia burguesa que se revela, como um impulso do
homem moderno, de modo mais ou menos consciente ao eu poético que experiencia o
universo urbano, onde a melancolia se acopla às próprias ruas?:
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
(1-4, I)
45
Essa melancolia estranhamente se intensifica perante a visão da igreja:
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
(7-8, II)
Ao se deparar, mais adiante, com mais duas igrejas, o eu poético coaduna sua angústia com
um sentimento de revolta anticlerical bem à maneira da Geração de 70:
Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História me aventuro e alargo.
(13-16, II)
Essa revolta faz com que as badaladas de sinos eclesiásticos lhe soem como uma afronta
direta, definindo sua posição perante o clero:
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
(19-20, II)
Burguesia, religião, castidade, sacrifício. O eu poético elabora uma flagrante
comparação:
As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
19
As freiras que o jejum matava de histerismo.
(9-12, III)
Em uma associação mental muito elaborada, que aglutina tempos e espaços diversos, as
lojas se transformam, aos olhos do eu poético, em capelas. A Idade Média se presentifica na
Lisboa oitocentista em um plano simultâneo –
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
19
Sobre o piano, afirma Hobsbawn (2005, p. 322) ao analisar a burguesia européia: Nenhum interior burguês
era completo sem ele; todas as filhas diletas da burguesia eram obrigadas a praticar escalas sem fim naquele
instrumento.”
46
Em uma catedral de um comprimento imenso.
(5-8, III) –
com intenção irônica. As capelas são as lojas; os fiéis, os clientes; os santos, os manequins; e
o resto da parafernália de culto, as mercadorias, idolatradas no altar. A burguesia se curva
perante a mercadoria:
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
(35-36, II)
A burguesia lisboeta é, pois, devota. A Deus e ao lucro. O eu poético faz ambos se
confundirem. A base da instituição religiosa está abalada. As burguesinhas do Catolicismo
(atentemos para a maiúscula alegorizante) resvalam, ironicamente, no chão minado pelos
canos dos esgotos.
As imagens do cotidiano da burguesia lisboeta, neste poema, oscilam entre a vivacidade
(viva a cidade!) e a abulia, entre o dinamismo e a monotonia.
“No princípio de Julho (...) ficar em Lisboa era o cúmulo. Os mais invejados eram os
que partiam para o estrangeiro” (MÓNICA, 2006, p. 86). O eu poético também não resiste à
inveja dos que partem para o estrangeiro em uma movimentação estival:
Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
(9-12, I)
A movimentação da vida burguesa também é gastronômica:
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.
(27-28, I)
Que vida ardente e brilhante! Os hotéis flamejam. “Inflama-se um palácio em face de um
casebre” (28, II). “Casas de confecções e modas resplandecem [...]” (19, III). Que vida
contente! Enlutam o eu poético, alvejando, as elegantes que, curvadas, sorriem às montras dos
ourives. Aqui, o eu poético define sua posição contrária perante a burguesia através da
oposição branco/negro. A ausência de cor se opõe completamente ao conjunto de todas as
cores. A burguesia, por ora, é cor. Ou estaríamos aqui perante uma presença discreta de
47
uma daquelas ladies que oprimem e rebaixam o espírito do eu poético cesárico, e de que
tratarei mais adiante? Então, ela surge:
Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.
(25-28, III)
Os vendedores se sentem vitoriosos. Os caixeiros requebram-se em nuvens de cetins,
como odaliscas tentando seduzir um sultão.
Porém, essas imagens vivas e dinâmicas são todas paralisadas e perdem intensidade
com a expressão carregada tudo cansa” (37, III), tonificada pelo ponto de exclamação que a
sucede:
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.
(37-40, III)
De repente o cotidiano burguês encerra um sentimento de tédio, na verdade antes
prenunciado:
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
(32, I)
Provavelmente esse tédio é expressão da subjetividade do eu poético, que não é
imparcial. A burguesia causa nele um sentimento de tédio possivelmente por achar que o
universo burguês representa uma visão estéril de mundo, que objetiva o lucro e desencanta as
outras dimensões da existência. Mas também devemos lembrar que o universo burguês
português oitocentista não era tão condicionado pelas diretrizes do dinamismo e
transformação constante como o eram o francês e o inglês. Paris era considerada por
Benjamim a capital do século XIX. A capital do capital. Londres também era uma das
maiores capitais mercantis. E mais adiante explicarei o sentido da cor monótona e londrina
que tolda os edifícios e a turba, quando for tratar do sentimento de generosidade do eu
poético.
48
A errância empreendida pelo eu poético causa-lhe, no percurso, uma sensação de
aprisionamento. Transformar-se-á Lisboa, através de uma simbólica associação com a solidão
e a morte, em um imenso túmulo, assim como antes tinha praticamente se transformado em
uma imensa catedral. A Lisboa-catedral se transformará na Lisboa-túmulo.
Os caminhos do percurso são estreitos:
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos [...].
(19, I)
Ao se defrontar com a cidade em plena transformação, o eu poético imagina:
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas [...]
(13-14, I)
Os próprios fatores naturais contribuem, de modo essencial, para a sensação de
aprisionamento sepulcral:
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, e perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
(5-8, I)
O teto fundo de oxigênio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras [...].
(1-2, IV)
As lojas cercam. A presença dos portões sobressalta. Rangem as fechaduras. A
sensação de aprisionamento vai se alargando até chegar a uma obsessão claustrofóbica. O
próprio título da segunda parte do poema (“Noite Fechada”) sugere, se formos (e sempre
devemos) levar em consideração as potencialidades da linguagem poética, o caráter
aprisionador da cidade. O som das grades das prisões mortifica. À vista das prisões, o coração
se abisma. O eu poético nota o aljube. Ligada ao som e à visão das prisões está a presença
ostensiva de um aparelho repressor do Estado: a polícia. Logo após o recolhimento dos
soldados, as patrulhas assumem a preservação da ordem social:
Sombrios e espectrais recolhem os soldados [...].
(27, II)
Partem patrulhas de cavalaria
49
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
(29-32, II)
O confinamento dos conventos, que se associa à sensação de sacrifício que as burguesinhas-
freiras causam no eu poético, associa-se também à função repressora das patrulhas (a
evocação da Inquisição (13-16, II) equivale indiretamente à presença, na cidade moderna, da
polícia como símbolo da repressão), intimidando com o som das patas dos cavalos sugerido
pela expressão “Partem patrulhas” (29, II) que, iniciando a quadra, permite que a consoante
plosiva que inicia ambas as palavras (“p”) coadune seu efeito sonoro onomatopaico com o
exato momento da partida das patrulhas de cavalaria. Essa presença ostensiva se finaliza com
a observação dos detentores literais das chaves simbólicas da prisão que, em sua ronda, usam
lanternas para distinguirem alguma rebelião na cidade-prisão:
E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros [...].
(37-38, IV)
A mais explícita associação da cidade com a morte se encontra na seguinte quadra:
Na parte que abateu no terramoto,
Muram-me as construções retas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
(17-20, II)
As badaladas dos sinos, ao invés de definir, aqui, a posição do eu poético perante o clero,
assumem a conotação de um anúncio de falecimento, como se desejassem que o eu poético
morresse. Essa é uma passagem quase sobrenatural.
A noite pesa, esmaga, como se fosse terra. As armações fulgentes se tornam mausoléus.
O título da quarta parte do poema (“Horas Mortas”) também sugere, à luz da polissemia, a
associação da cidade com a morte. Ironicamente, em um tom de caricatura gótica, os astros
têm olheiras.
Essa visão claustrofóbica faz o eu poético chamar os citadinos, incluindo ele, de os
emparedados:
Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
50
(25-26, IV)
Cumpre aqui discorrer um pouco sobre o bucolismo cesárico. A temática cesárica é,
como foi dito, sustentada pela dicotomia “cidade/campo”. Enquanto a cidade é ligada ao
aprisionamento sepulcral, o campo é ligado à liberdade, à brandura, à amplitude. No
bucolismo cesárico, o campo louvado somente existe enquanto antinomia da cidade
disforicamente criticada. Assim, poderíamos afirmar que a poesia bucólica cesárica ainda é
uma poesia de crítica urbana, que a norma vigente da cidade como ética e
psicologicamente anormal. É uma poesia de resistência: a exaltação de um comunitarismo que
busque a regeneração da ética e da organização social vigentes e a celebração do campo
contra a cidade como a equivalente celebração do Portugal agrário contra a Europa do Norte
industrial. Cesário transforma, assim, em poesia-resistência o otimismo rural típico do
minifundiário de um país agrário.
Em “O Sentimento de um Ocidental”, o eu poético evoca o universo rural para enfatizar
a crítica à norma urbana. Ao transpor o universo rural no espaço urbano, as árvores, como
podemos verificar no trecho acima transcrito, são desalojadas; assim como o vale escurece,
sendo envolvido por muralhas, em vez de montes. A evocação toma ares ainda mais irônicos:
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.
(27-28, IV)
As folhas urbanas são as das navalhas, representação da violência que se opõe à mansidão
rural. Os prédios têm dimensões de montes, mas são sepulcrais. Os amplos horizontes,
experienciáveis no universo rural, são somente em vão buscados no universo urbano:
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
(41-44, IV)
Essa evocação do universo rural é sugerida porque o eu poético julga ouvir, em um
momento de evasão, as notas pastoris de uma longínqua flauta. Longínqua porque fruto da
imaginação evasiva, que será usada, como acima verificado, como instrumento de crítica ao
confrontar, por meio da transposição, o universo rural e o urbano; e porque realmente distante
51
do universo urbano, em um lugar onde não marés de fel, mas mares que fluem na certa
direção dos amplos horizontes.
A relação dúbia do eu poético cesárico com o universo urbano já se funda, então, na
seguinte contradição: enquanto via de acesso à dimensão poética, à verve criativa –
E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem [...].
(17-18, III)
E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas [...]
(9-10, IV) –
a cidade será, simultaneamente, um espaço de opressão, aprisionamento. um verso no
próprio poema que exprime essa contradição:
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
(25, I)
A associação da cidade com a morte revela a consciência das condições de vida e de
trabalho das camadas socioeconomicamente inferiores, da miséria, da violência e da doença
que vivia na latência de se proliferar devido à precariedade da infra-estrutura. As varinas, por
exemplo, apinham-se num bairro aonde miam gatas, e o peixe podre gera os focos de
infecção! A atmosfera enfermiça torna o eu poético hipocondríaco:
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes [...].
(5-6, II)
Ele sonha o cólera, imagina a febre-amarela,
20
em uma acumulação de corpos enfezados. As
prostitutas se arrastam nos passeios de lajedo, talvez sugerindo a falta de disposição e o
sofrimento advindos de doenças venéreas (“impuras” (2, III) assume aqui seu sentido literal, e
não somente seu sentido moral), sugestão reforçada pela expressão “moles hospitais” (3, III)
20
Em 1856, o cólera-morbo atinge proporções de grande epidemia em Portugal. No dia 22 de Julho de 1857, um
carregador de alfândega lisboeta é a primeira vítima da febre-amarela, que vem se juntar à epidemia do cólera. A
família Verde, temerosa, deixa Lisboa e se transfere para Linda-a-Pastora, alguns quilômetros a oeste de Lisboa,
um pouco além e abaixo de Carnaxide. Em 1858, a família Verde retorna a Lisboa e após um ano, em Maio,
morre de cólera Adelaide Eugênia, ir de Cesário (ela nascera, ironicamente, em 3 de Setembro do ano da
grande epidemia do cólera). Cf. o poema “Nós”, de Cesário. Em 1878, dois anos antes da publicação do
“Sentimento de um Ocidental”, a barca Imógene traz novamente a febre-amarela para Lisboa.
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do verso seguinte, que também pode se ligar às doenças provocadas, nas prostitutas e nos
rotos, pela exposição ao frio:
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
(1-4, III)
Os cães são sujos, amarelados, ósseos e febris. A treva pare navalhas e fomenta homicídios.
Em uma observação muito sutil e de muito vigor poético, o eu poético percebe que um lençol
branco já oculta o cadáver de Lisboa:
A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos [...].
(9-11, II)
Assim posto, o eu poético representa a modernidade de modo exemplar. No anonimato
da turba que se tolda duma cor monótona e londrina, ele se esforçará para notar os mestres
carpinteiros, os calafates, os ébrios, as obreiras, as varinas, as costureiras, as floristas, os
emigrados, as prostitutas, os forjadores, os ladrões menores de idade, os cauteleiros, os
indigentes. Algumas dessas coletividades são representadas de modo animalizado ao serem
reveladas suas condições de vida e de trabalho. Os mestres carpinteiros são comparados a
morcegos:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
(13-16, I)
O trabalho embrutece, estupidifica o trabalhador, transformando-o no próprio trabalho, ou no
produto dele. Notemos como as varinas se transformam no próprio produto que vendem:
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
(34-36, I)
Quando não são peixes, são outros animais:
53
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
(37, I)
Na relação dos contrastes de condições de vida, o eu poético, além de notar que a
segregação às vezes faz com que as diferenças econômicas se encontrem face a face –
Inflama-se um palácio em face dum casebre [...]
(28, II) –
também observa as experiências fundamentalmente distintas que as condições opostas
acarretam. O frio da rua, sofrido pelas prostitutas ou por indivíduos de camadas
socioeconomicamente inferiores que usam vestimentas precárias ou rotas é logo contrastado
com a tepidez das lojas:
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
(1-4, III)
Cercam-me as lojas, tépidas.
(5, III)
Enquanto a alegria do burguês se encontra na visão da mercadoria, a alegria dos emigrados se
encontra no jogo com os amigos:
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
(35-36, II)
Entro na brasserie, às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.
(43-44, II)
Ao se confrontar com essa realidade que o circunda, o eu poético buscará um eco épico
em sua representação. A visão que tem dos botes atracados lhe aviva a memória do passado
heróico português:
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.
(19-20, I)
E evoco, então, as crônicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
54
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que não verei jamais!
(21-24, I)
Luís Vaz de Camões
21
é, como se sabe, um grande nome. Um nome, na verdade,
colossal. Faz parte da história monumental. É um dos, digamos, cumes da História vista de
uma maneira positivista. Seu nome e sua figura poderiam opor-se às coletividades, aos
“restos” da História. Mas, na verdade, sua figura é evocada com o intuito de se identificar
com elas. Camões foi o herói que morreu miserável. Ele também se identifica com o eu
poético em sua aventura solitária. O eu poético se deparará com sua estátua num recinto
público e vulgar, logo após a afronta das subidas íngremes e dos sinos eclesiásticos:
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
(19-20, II)
Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!
(21-24, II)
A identificação do passado heróico português tendo a figura de Camões como seu
representante com as coletividades socioeconomicamente inferiores é explícita, enquanto
busca de um eco épico para representar a realidade moderna, no uso dos adjetivos “hercúleas”
(35, I) e varonis” (39, I) que qualificam as varinas e na associação do naufrágio de Camões
com o naufrágio fatal dos filhos das varinas. O que caracteriza o heroísmo moderno é o
caráter trágico da vida das coletividades que estão à margem da História. As Tormentas. As
tormentas. Na modernidade, as coletividades são o mar (notemos que elas “vazam dos
arsenais e oficinas” (33, I)). É nelas que se encontram a aventura e um resquício de heroísmo.
O poeta moderno precisa ter olhos que naveguem na multidão.
A afinidade do eu poético com essas coletividades é, aqui, bastante calorosa. Ele é um
flâneur muito próximo das coletividades que observa. Não receia que ébrios o roubem. Um
indigente é seu velho professor nas aulas de Latim. Ele se confunde com essas coletividades
ao usar os pronomes possessivos nossas” (1, I) e “nossos” (17, IV) e a primeira pessoa do
plural “nós” (23, IV), também intuída nos versos 24 e 25 da mesma parte do poema.
21
O Sentimento de um Ocidental” foi originalmente publicado na folha “Portugal a Camões”, editada pelo
Jornal de viagens em 10 de julho de 1880 como contribuição para as comemorações do Tricentenário da morte
de Camões. Recebeu, na época, somente uma crítica de um espanhol. Disfórica, por sinal.
55
Cesário era chamado “Baudelaire português” por ser flâneur o seu eu poético. Mas o eu
poético cesárico o é aquele flâneur que, confundido com o sol, redime até a coisa mais
abjeta quando vai às cidades, adentrando como rei, sem bulha ou serviçais, tanto os palácios
quanto os tristes hospitais. O flâneur cesárico o adota uma postura aristocrática e
onipotente. Leyla-Perrone Moisés registra, em “Cesário Verde: um “Astro sem Atmosfera”?”,
esta e algumas outras diferenças entre as poéticas do autor português e do francês, com as
quais concordo:
A tendência habitual, em Baudelaire, é a da auto-exclusão da vida coletiva,
de isolamento desdenhoso, enquanto Cesário é alguém que busca a
felicidade na inclusão. [...] A propósito, é de observar-se que Cesário
raramente é irônico; a ironia supõe uma superioridade do enunciador, e
Cesário coloca-se quase sempre no mesmo nível que as pessoas por ele
descritas, ao rés de seu tema. (PERRONE-MOISÉS, 2000, p. 125, 127)
Em “O sentimento dum Ocidental”, a mineralidade da cidade, que encantava
Baudelaire, é experimentada como prisão e privação da natureza viva (“sem
árvores”), evocada pelas notas pastoris de uma longínqua flauta”.
(PERRONE-MOISÉS, 2000, p. 125)
As metáforas e alegorias de Baudelaire tendem sempre a uma elevação ao
plano metafísico, enquanto as imagens de Cesário nascem e permanecem no
plano da realidade concreta. [...] A linguagem poética de Cesário é,
finalmente, mais próxima da de outros poetas franceses, seus
contemporâneos, do que da de Baudelaire. (PERRONE-MOISÉS, 2000, p.
127-8)
A cidade de Cesário é a capital periférica, à margem de Madrid, Paris,
Berlim, S. Petersburgo, o mundo!”, para onde podem viajar os “felizes”.
Tudo é reconhecido como pequeno, provinciano e, como tal, partilhado
pelo poeta. Enquanto a Paris de Baudelaire é “atroz”, “terrível”, “horrível”
(“Horrible ville!”), a cidade de Cesário é apenas triste (“Triste cidade!”).
(PERRONE-MOISÉS, 2000, p. 124)
João Pinto de Figueiredo também perscrutou a diferença da Paris baudelairiana e da
Lisboa cesárica ao discorrer sobre “O Sentimento de um Ocidental” em Cesário Verde:
22
De facto, no seu poema, Cesário também evoca o jogo, os ébrios, as
prostitutas, as tables d´hôte. Tratados por ele, porém, estes temas nada têm
de comum com os de Baudelaire. É que Lisboa era uma capital burguesa
onde até mesmo o vício tinha o insípido sabor de uma festa de família. Por
isso os horrendos batoteiros de Tableaux Parisiens “... des visages sans
lèvres/Des lèvres sans couleur, des mâchoires sans dents...” se
transformam em O Sentimento dum Ocidental em inofensivos jogadores de
dominó, o tenebroso vinho do assassino” ou do solitário na carraspana de
22
A primeira edição, de 1981, intitulava-se Cesário Verde, a obra e o homem.
56
sábado à noite de uns “tristes bebedores”, as vieilles putains, pâles le
sourcil peint”, em entroncadas “imorais” cuja robustez de antigas moças de
lavoura lhes permite passar a noite à janela apenas cobertas pelos seus
“roupões ligeiros” e as tables d´hôte, cheias de catins et d´escrocs nos
burgueses hotéis da modaservindo a abastados proprietários uma cozinha
galega com nomenclatura francesa...
Visão demasiado idílica, dir-se-á. Não. Lisboa era, ainda é assim. Mas foi
preciso um poeta como Cesário para compreendê-la e no-la dar na sua exacta
dimensão. Bem vistas as coisas, a nossa capital é, pois, obra sua.
(FIGUEIREDO, 1986, p. 134)
Parece-me claro que a Lisboa de Cesário não é nenhum idílio; mas também o é uma
dimensão infernal ou um abismo de vícios, como a cidade era vista por muitos poetas
oitocentistas.
O eco épico, a heroicização da vida moderna é abafada e até aparentemente
impotencializada pela sensação de aprisionamento que perpassa todo o poema.
Propositadamente relacionada a metáforas marítimas, a angústia dos citadinos é um mar que
tenta em vão correr em direção aos amplos horizontes, ou seja, à liberdade.
Todavia, é exatamente neste momento que o sentimento de generosidade do eu poético
tomará uma posição ativa, apelando para a consciência daqueles com quem mantém uma
desolada comunhão espiritual. Com a expressão “Dor humana” (43, IV), o eu poético busca
alargar sua subjetividade, alargamento reforçado pelo uso dos citados pronomes
possessivos e pela primeira pessoa do plural, assim como o uso de uma linguagem que evita
os transbordamentos expressivos românticos que egocentrizam em demasia os sentimentos. A
linguagem de Cesário, paratática, é equilibrada, simétrica, calculada. O seu da miséria é
impessoal. A piedade apela para qualquer consciência que a aceite. Essa subjetividade
alargada exprime o desejo de atingir aquilo que Sartre (2004, p. 117) entendia por
universalidade concreta: “a totalidade dos homens que vivem em determinada sociedade”. A
universalidade compreendida como uma coletividade espácio-temporal revela uma situação
histórica. Assim posto, a angústia do eu poético frente ao sentimento de prostração causado
pelo contato com o universo urbano é um sentimento coletivo aparentemente assumido como
pessoal. Ele é um solitário que caminha com os passos da humanidade. A maiúscula
alegorizante da palavra “Dor” o sugere a elevação a dimensões abstratas, metafísicas, mas
se atém ao sofrimento dos homens da época. A quadra final sintetiza um apelo aos homens da
época para tomarem consciência de que vivem aprisionados e infelizes em uma sociedade
injusta, representada por um local opressor: a cidade. Esse apelo à consciência se transfigura
no estilo. A linguagem que evita transbordamentos expressivos chama mais a atenção para si.
A questão fundamental é que a linguagem cesárica, paratática, é equilibrada. Mas esse
57
equilíbrio, esse cálculo são instrumentos reveladores de contradições. O assíndeto, figura
dominante do discurso paratático, concerta uma justaposição vocabular que sugere a natureza
multifacetada e até paradoxal das percepções de elementos da realidade. Podemos afirmar que
o acúmulo de impressões elementares que produzem, na articulação final, um panorama, uma
impressão de um todo, progride e se insinua pela articulação de aspectos contraditórios da
realidade decomposta (aqui em ambos os sentidos). A unidade da composição é em si
contraditória. Auxilie-me, Adorno, em meu intento; conclua e a adorne, enquanto
argumento de autoridade, o meu argumento:
Da mais irrestrita individuação a formação lírica tem esperança de extrair o
universal. [...]
Essa universalidade do conteúdo lírico, todavia, é essencialmente social.
entende aquilo que o poema diz quem escuta em sua solidão a voz da
humanidade; mais ainda, a própria solidão da palavra lírica é pré-traçada
pela sociedade individualista e, em última análise, atomística, assim como,
universalmente, uma postulação de validade universal vive da densidade de
sua individuação. Por isso mesmo, o pensar da obra de arte está autorizado e
comprometido a perguntar concretamente pelo conteúdo social, a não se
satisfazer com o vago sentimento de algo universal e abrangente. Tal
pensamento determinador não é uma reflexão alheia e externa à arte: é
exigida por toda composição de linguagem. O material próprio desta, os
conceitos, não se esgota na mera intuição. Para poderem ser esteticamente
intuídos, eles querem sempre ser pensados também, e o pensar, uma vez
posto em jogo pelo poema, não pode mais, a seu comando, sustar-se.
Esse pensar, porém, a interpretação social da rica, como, de resto, de todas
as obras de arte, não pode por isso ter em mira, sem mediação, a assim
chamada situação social ou a inserção social de interesses das obras ou até
de seus autores. Tem de estabelecer, muito mais, como o Todo de uma
sociedade, tomada como uma unidade em si contraditória, aparece na obra
de arte; mostrar em que a obra de arte lhe obedece e em que a ultrapassa. O
procedimento tem de ser, conforme a linguagem da filosofia, imanente.
Conceitos sociais não devem ser trazidos de fora às formações ricas, mas
ser hauridos da rigorosa intuição delas mesmas. (ADORNO, 1980, p. 194)
Então, à luz dessa concepção, a dissonância entre conteúdo formal e conteúdo
semântico explicada por Hugo Friedrich na Estrutura da lírica moderna é reveladora do
caráter dialético da sociedade.
Cumpre demonstrar, agora, ainda com base no trecho acima transcrito, que o apelo do
eu poético à consciência pode apretender “exercer uma ão direta e universal no contexto
de uma coletividade integrada” (SARTRE, 2004, p. 97).
Dando asas à imaginação, o eu poético cede a um sonho com um estranho tom burguês,
não obstante sua transparência e nitidez, opostas à escuridão aprisionante da realidade
objetiva que o circunda:
58
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!
(13-16, IV)
Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.
(17-20, IV)
O ideal de pureza relacionado ao amor e à mulher, que ao aninhar em uma mansão se torna
uma ave (os filhos, ao pousarem de sonhos ágeis, também se confundem com aves e se
opõem diametralmente, com a mãe, à femme fatale, que é uma serpente), acaba demonstrando
aqui, ao ser transposto para o universo urbano após o eu poético ouvir as notas pastoris de
uma longínqua flauta, uma face meio burguesa, pois se desliga do comunitarismo humanista
próprio da visão rural do eu poético cesárico, transformando-se no ideal burguês de constituir
família com uma mulher de vida regrada, que de preferência tenha se casado virgem,
resultando em filhos perfeitos que viverão com os pais na tepidez de uma custosa propriedade
fruto de uma faustosa condição econômica. Mas esse sonho revela, depois, um tom visionário:
Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nômadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!
(21-24, IV)
É um apelo à liberdade pautado na utopia. O passado heróico, que serviu para heroicizar o
presente, também serve para, nesse apelo, heroicizar ainda mais o futuro, que somente poderá
se concretizar com a tomada universalmente concreta de consciência. As frotas dos avós serão
as frotas dos bisnetos.
Dito isso, inferimos que o sentimento de um ocidental é o sentimento de generosidade
que se dirige à universalidade dos homens, não somente de Lisboa ou Portugal, mas de seu
período histórico, ao menos ocidental. A intenção desse sentimento é de se tornar o
sentimento de todos os homens da época que vivem no Ocidente, transformando o sentimento
de um ocidental em um sentimento generalizado. Agora podemos compreender melhor o
desejo absurdo de sofrer e a cor monótona e londrina que tolda os edifícios e a turba. Londres
era uma das maiores capitais mercantis, símbolo da opressão que, ao ser sugerida uma ligação
com Lisboa, passa a simbolizar toda a Europa. E o sentimento do eu poético transforma a
59
Europa em todo o Ocidente. Assim, o sentimento de generosidade é, antes de mais nada, o
sentimento de opressão que quer se superar, apelando para a consciência e para a liberdade. O
desejo absurdo de sofrer, por seu turno, que é, segundo Helder Macedo (1986), o desejo
imposto irracionalmente por contágio da própria cidade, que anteriormente interpretei como o
sentimento causado pela sensação de sacrifício e que no plano da existência real pode ser um
típico remorso de classe (o burguês consciente das mazelas da sociedade burguesa que se
revolta contra a própria classe),
23
é agora entendido, por mim, como um sentimento dolorista
de generosidade que quer, ao alargar a individualidade de sua subjetividade, compartilhar a
angústia dos homens da época.
Gomes Leal é um poeta deveras apegado à dimensão simbólica da existência, à
idealidade e a um Cristianismo bastante instável que, ora assombrado por um arrepio
nietzscheano, adquire a síndrome do escorpião e se envenena com o próprio aguilhão. Esse
apego não poderia deixar de marcar profunda presença na exploração do topos cidade,
desprendendo-se esta da imanência aos dados da percepção sensível. Por isso, o sublime ainda
encontra espaço no estro de Gomes Leal, que anda com os mesmos passos da sordidez, da
repugnância, do grotesco se quisermos evocar a dicotomia hugoana. Gomes Leal é um
daqueles poetas que vêem na cidade um plano infernal, um abismo de vícios. A decadência e
a imoralidade são inextricavelmente ligadas ao universo urbano devido aos costumes
burgueses. A relação do eu poético de Gomes Leal com o universo urbano pode ser
relativamente compreendida a partir do que Marshall Berman diz de Baudelaire:
O que Baudelaire procura comunicar [...], antes de mais nada, é aquilo que
chamarei de cenas modernas primordiais: experiências que brotam da
concreta vida cotidiana da Paris de Bonaparte e Haussmann, mas estão
impregnadas de uma ressonância e uma profundidade míticas que as
impelem para além de seu tempo e lugar, transformando-as em arquétipos da
vida moderna. (BERMAN, 2007, p. 178)
Sumamente, a imaginação domina todos os locais que o eu poético de Gomes Leal observa ou
visita. Seus olhos singulares confundem a realidade com os delírios e devaneios provocados
pela perturbação de uma orientação visual atormentada e excêntrica. Seu contato com a
23
Cesário era filho de um comerciante, José Anastácio Verde, e trabalhava na mercearia do pai e na quinta de
Linda-a-Pastora.
60
realidade é mediado por uma transfiguração profundamente recriadora e por revoltos acessos
de hipersensibilidade.
O eu poético de Gomes Leal é um legítimo flâneur. Seu contato com as coletividades é
meio distanciado; ou então ingênuo, muito paternalista. Ele não perambula junto com o leitor.
As descrições dos objetos da realidade empreendidas por esse flâneur são menos detalhadas
que as empreendidas pelo flâneur cesárico, e sempre visam um significado maior, mais
abrangente, isto é, que se desvincula, muitas vezes em demasia, da concretude circundante,
transformando tudo o que observa em um surpreendente símbolo. Suas descrições são menos
detalhadas porque eleo permanece muito tempo na realidade da existência concreta,
querendo logo tentar ascender a uma dimensão espiritual, ainda que vaga. Sua linguagem,
mesmo atendendo as demandas de inovação requeridas pela poesia moderna, o é, pois, tão
inovadora quanto a de Cesário até por uma questão de disposição psíquica e de visão de
mundo. Mas o soneto Rosa Mística”, encontrado nas Claridades do sul (1875), surpreende-
nos ao já utilizar o método das justaposições significativas, ainda que de modo não tão
elaborado quanto o de Cesário, que transformou esse método no seu estilo singular.
um conjunto de sete sonetos nas Claridades do sul designado pelo título comum “O
Pecado”. O terceiro soneto se intitula A Cidade”. O tulo comum ao conjunto associa,
assim, a cidade ao pecado, prenunciando uma crítica disfórica de apelo cristão. Comentarei
esse poema, que segue transcrito abaixo:
III
A CIDADE
1- Em vão busco na velha e hostil Cidade,
2- Beata amante, de gangrenas cheia,
3- As dispersas raízes da Verdade,
4- - Como uma flor, num pátio de cadeia.
5- Quando, alta noite, D. Juan passeia,
6- Ela põe-lhe em leilão a mocidade...
7- Tratada com a mística ansiedade,
8- Com que um sábio cultiva a flor da Ideia.
9- Mas, contudo, ninguém receia tanto
10- O áspero Deus e o lenho sacrossanto
11- Da dorida tragédia do Calvário...
12- E, ó D. Juan, às luzes das estrelas,
13- Tu bem sabes se encontras, nas ruelas,
14- Mais de uma vez, perdido algum rosário!...
61
Alegorizada através da maiúscula, a Cidade” (verso 1) representa toda e qualquer
cidade, ou a experiência do contato com o universo urbano em um sentido generalizado.
Segundo o eu poético, nessa experiência uma dinâmica de disposições antitéticas que
acaba por fundir todas as situações, impressões e sentimentos em uma situação ou
impressão ambígua.
A cidade é um espaço decadente (“velha” (verso 1)), hostil, doentio (“de gangrenas
cheia” (verso 2)). Espaço que causa uma sensação de aprisionamento: é comparado a um pátio
de cadeia (“cadeia” é praticamente um anagrama de “cidade”); o eu poético anda pelos
caminhos estreitos das ruelas. Estranhamente, é neste mesmo espaço que ele busca as
dispersas raízes da Verdade. A verdade é alegorizada como a cidade (“Cidade” (verso 1) rima
com Verdade” (verso 3), enfatizando a ligação semântica de ambos os elementos). As raízes
da Verdade estão dispersas pelo labirinto da cidade como símbolos que, ao serem
encontrados, revelarão uma realidade superior, purificada. A palavra “Verdade” é muito
íntima da metafísica cristã, referindo-se à divindade. Essa busca é vã, como buscar uma flor
num pátio de cadeia.
A cidade leiloa a sua mocidade para D. Juan. A cidade noturna se associa, assim, à
sedução, à concupiscência e à mundanidade. Sumamente, ao vício. A metáfora da mocidade
posta em leilão transfere as relações mercantis da esfera econômica para a esfera das relações
humanas. A cidade, espaço dominado pela visão de mundo e pelos costumes e modo de
produção burgueses, transforma o indivíduo em mercadoria, reificando a existência e criando
comportamentos condicionados. D. Juan observa a mocidade como se observasse as montras
dos ourives. Essa reificação sugere, por fim, a mercantilização das relações afetivas que, em
uma visão radical, transforma todo casal moderno na associação de uma prostituta e de um
cafetão, ou mesmo vice-versa. Em outras palavras, a burguesia, além da liberdade e de seus
próprios ideais humanitários, enterrou também o amor, por cuja morte é responsável”
(OEHLER, 1997, p. 250-1). Seja como for, o eu poético se sente atraído pelas tentações desse
espaço. D. Juan seduz a mocidade e, assim, é seduzido pela cidade.
Todavia, o eu poético, por ter consciência dessa situação, torna-se ansioso. Observa
essa mocidade, essa coletividade com uma mística ansiedade. Tem ânsia de superar essa
situação por meio de uma purificação espiritual. Sofre, assim, a tensão de se render às
tentações mundanas e espiritualmente vazias que a modernidade citadina lhe oferece e,
tomado pelo mal-estar da consciência, empreender, teimoso, novamente a busca pelas raízes
da Verdade, por uma realidade purificada ou tentar, em uma comunhão espiritual, preencher o
vazio da reificação com alguma idealidade substituta, o amor verdadeiro e sublime, por
62
exemplo. Assim, D. Juan seria um libertino romântico que busca extrair algo de espiritual em
suas relações. É o vício consciente e com remorso. As noções de Verdade, idealidade e pureza
lançam raízes na imagem de um sábio cultivando a flor da Ideia. Mas na expressão “flor da
Ideia” (verso 8) se encontra a imagem-síntese da tensão sofrida pelo eu poético, o
entranhada essa tensão nele se encontra. O concreto (flor) se funde ao abstrato (Idéia), o plano
fenomênico se alia ao plano espiritual. Mas esse estado, repito, é experienciado como uma
tensão insolúvel, como um estado galimático, e não como correspondência.
O remorso e a conseqüente busca de purificação espiritual se expressam como a
confissão de temor a Deus nos versos de 9 a 11. Mas ainda aqui o caráter visceral da tensão
sofrida pelo eu poético o deixa de marcar uma presença sutil, como se essa tensão
acompanhasse todos os seus sentimentos e pensamentos, ainda que de modo inconsciente. Na
expressão “áspero Deus” (verso 10) se encontra outra imagem-síntese dessa tensão, pois que
um atributo relativo aos objetos fenomênicos qualifica uma entidade espiritual, novamente
fundindo o concreto e o abstrato, a matéria e o espírito. A sensação de aspereza conjugada à
divindade é dúbia: fruto da subjetividade do eu poético remoído pelo remorso e desejando, de
modo meio inconsciente, uma punição,
24
revela, simultaneamente, o pólo material, mundano,
profano da tensão por ele sofrida.
Os versos de 12 a 14 encerram a disposição antitética reveladora da situação
completamente ambígua resultante da relação do eu poético com o universo urbano. A tensão
da busca pela purificação espiritual e da iminente rendição às tentações mundanas permanece
insolúvel. O eu poético se encontra, na cidade, dilacerado, sem poder se abismar na perdição,
nem poder realizar uma transcendência. Se é vã a busca pelas raízes da Verdade, o eu poético,
em contrapartida, não se desapega da mística ansiedade que objetiva sublimar o vício e
preencher o vazio da reificação. Por isso a ambigüidade dos rosários perdidos nas ruelas. Não
como saber se os rosários estão perdidos porque as aspirações de pureza sucumbiram ao
abismo infernal ou se são as raízes da Verdade finalmente encontradas. As reticências
reforçam a idéia de persistência dessa situação dúbia.
Todas as disposições antitéticas e imagens-síntese, reveladoras da situação dúbia do eu
poético no universo urbano, concentram-se no aposto “Beata amante” (verso 2). A cidade
adquire um caráter contraditório, simultaneamente casto e mundano, sensual; podendo ambos
os vocábulos que constituem essa expressão assumir as funções de substantivo e adjetivo.
24
O adjetivo “áspero” (verso 10) parece, aqui, além de revelar a faceta vingadora abstrata da divindade,
transmitir uma sensação de dor física. O eco aliterativo presente na palavra “Deus” (verso 10) (“s”) incomoda,
provoca aflição. Seria possível intuir um ato de auto-flagelo transfigurado no aspecto material da linguagem?
63
Verificamos exemplarmente nesse soneto que a relação dúbia do eu poético de Gomes
Leal com o universo urbano é concentradamente intuída no uso de um recurso estilístico
característico da modernidade e de que tratarei mais adiante: a identificação dos contrários,
que aqui se manifesta em expressões que fundem o concreto e o abstrato e, por extensão
calcada no contexto, o sacro e o profano.
A cidade é vista pelo eu poético de Gomes Leal como um espaço vicioso. Por isso o
qualificativo velha” (verso 1) pode sugerir uma aproximação da cidade com a Babilônia.
Reforcemos essas impressões tendo em vista o poema “Lisboa”, feroz diatribe contra todo o
universo burguês.
A epígrafe é um excerto de um pequeno poema em prosa baudelairiano intitulado “Any
Where Out of the World (Em Qualquer Lugar Fora do Mundo)”. Transcrevo abaixo um
excerto maior para demonstrar que visão intrigante o eu poético baudelairiano tinha da capital
portuguesa:
Dis-moi, mon âme, pauvre âme refroidie, que penserais-tu d´habiter
Lisbonne? Il doit y faire chaud, et tu t´y regaillardirais comme un lézard.
Cette ville est au bord de l´eau; on dit qu´elle est bâtie en marbre, et que le
peuple y a une telle haine du végetal, qu´il arrache tous les arbres. Voilà un
paysage selon ton goût; un paysage fait avec la lumière et le minéral, et le
liquide pour les réfléchir!
(BAUDELAIRE, 2006, p. 266)
Diga-me, minha alma, pobre alma resfriada, que pensarias de morar em
Lisboa? Lá deve fazer calor e tu te regozijarias como um lagarto. Essa
cidade fica à beira-mar; diz-se que foi construída em mármore e que o povo
tem um tal ódio por vegetais que arranca todas as árvores. Eis uma paisagem
segundo teu gosto; uma paisagem com a luz e o mineral, e o líquido para
refleti-los!
25
A luz e o mineral.
O sol é associado, na poética baudelairiana, ao próprio Idéal; e o encanto
da mineralidade transforma Lisboa no próprio rêve parisien. O eu poético de Gomes Leal
responderá a essa visão idealizada, demonstrando (esse poema se insere na “Segunda Parte”
das Claridades do sul, intitulada “Realidades”) que Lisboa é, na realidade, contrária ao Ideal.
Todavia, o eu poético de Gomes Leal responderá a essa visão idealizada com outra visão
idealizada. Ele aproxima Lisboa da Paris satanicamente idealizada pelo próprio eu poético
baudelairiano. Lisboa, ao ser descortinada na sua “realidade”, sofre, digamos, um grande
déficit de realidade e se transforma em uma réplica satânica. O eu poético de Gomes Leal
25
Tradução de Gilson Maurity, encontrada na seguinte referência: BAUDELAIRE, C. Pequenos poemas em
prosa. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2006.
64
responde a Lisboa idealizada baudelairiana com a aproximação de Lisboa da Paris noturna
baudelairianamente idealizada. A Lisboa do eu poético de Gomes Leal, babilônica, é
parisiense. No sentido baudelairiano. Gomes Leal é muito influenciado por Baudelaire. Seu eu
poético assume explicitamente a influência em seus versos.
Lisboa tem, realmente, segundo o eu poético de Gomes Leal, o mais afável sol do
Ocidente, o céu mais clemente, rio águas mais mansas. Faz calor; é uma paisagem com a
luz e o líquido para refleti-la. Mas sua alegria, pureza, feição salutar e virginal são
desmentidas ao anoitecer. Surge então, nos versos de 13 a 18, a verdadeira face da beata
amante:
A Cidade é beata – e, às lúcidas estrelas,
O Vício, à noute, sai aos becos e às ruelas
Sorrindo, a perseguir burgueses e estrangeiros...
E à triste e dúbia luz dos baços candeeiros,
Em bairros imorais, onde se dão facadas
Corre às vezes o sangue e o vinho nas calçadas.
Instala-se novamente, aqui, a disposição antitética criadora da tensão do sacro e do
profano. O vício, alegorizado pela maiúscula, transforma-se em uma entidade espectral que
persegue, nos becos e ruelas, os burgueses e os estrangeiros, seduzidos pelas tentações
mundanas. A burguesia é logo associada ao vício. A sensação de aprisionamento é sentida ao
se passar, na escuridão, pela estreiteza dos becos e das ruelas. A pureza e a feição virginal dão
lugar ao vício, à concupiscência. A alegria e a luz o lugar à triste e dúbia luz dos baços
candeeiros. A limpidez lugar ao embaciado, ao turvo. A luz dúbia reflete a dubiedade da
experiência do contato com o universo urbano. A vida lugar à morte oriunda da violência.
Na falta de pão é, pois, o sangue que acompanha o vinho; e esse sangue o é de Cristo. A
saúde dá lugar ao álcool que se mistura ao sangue.
A tensão entre o sacro e o profano se revela nos versos de 19 a 24 no comportamento
das mulheres em um tom de sátira de costumes, transferindo a imagem da beata amante para o
plano dos hábitos cotidianos lisboetas:
As mulheres são gentis. Umas altas, morenas,
Graves, sentimentais, amigas de novenas,
Ébrias de devoções, relêem as suas Horas.
Outras fortes, viris, os olhos cor d´amoras,
Os lábios sensuais, cabelos bons, compridos,
Às vezes, por enfado, enganam os maridos!
65
Então, nos versos de 25 a 30, o ataque à burguesia é frontal e bastante agressivo:
Os burgueses banais são gordos, chãos, contentes,
Amantes de Cupido, egoístas, indolentes,
Graves nas procissões, nas festas, e nos lutos.
Bastante sensuais, bastante dissolutos,
Mas humildes cristãos!... e, em místicos momentos,
Tendo, ainda, cruéis saudades dos conventos!
Que artilharia pesada: banalidade, superficialidade, concupiscência, dissolução,
26
egoísmo
(referente à ética individualista e, em última análise, atomística), indolência!
27
O burguês é,
26
Ao discorrer sobre a dualidade de matéria e espírito na ideologia burguesa, Hobsbawn também analisa a
sexualidade burguesa. Vejamos, a título de curiosidade, alguns seus comentários: Essa dualidade de matéria e
espírito implicava uma hipocrisia que observadores não-simpáticos ao mundo burguês consideravam uma
característica não apenas difusa mas fundamental deste mundo. Em nenhum outro aspecto era isso óbvio, no
sentido literal de ser visível, do que em questões de sexo. o quer dizer que o burguês (homem) de meados do
século XIX (ou aqueles que aspiravam a ser como ele) fossem simplesmente desonestos, pregando uma
moralidade e deliberadamente praticando outra, embora o hipócrita consciente seja mais facilmente encontrável
onde a diferença entre a moralidade oficial e as demandas da natureza humana seja intransponível, e a sociedade
do período o era. [...]
Em primeiro lugar, essa hipocrisia não era simplesmente uma mentira, exceto talvez entre aqueles cujas
preferências sexuais fossem tão irresistíveis quanto publicamente inadmissíveis, como, por exemplo, políticos
proeminentes dependendo de votos puritanos ou respeitáveis negociantes homossexuais em cidades
provincianas. Não havia absolutamente hipocrisia nos países (sobretudo católicos) onde um comportamento
francamente duplo era aceito: castidade para mulheres solteiras e fidelidade para as casadas, a caça livre de todas
as mulheres (exceto talvez filhas casadoiras das classes dias e altas) por todos os jovens burgueses solteiros, e
uma infidelidade tolerada para os casados. Aqui as regras do jogo eram perfeitamente entendidas, incluindo a
necessidade de uma certa discrição nos casos onde a estabilidade da família ou da propriedade burguesa pudesse
ser ameaçada: paixão, como qualquer italiano da classe média ainda conhece, é uma coisa, a mãe dos meus
filhos” é outra bem diferente. A hipocrisia estava nesse tipo de comportamento apenas por esperar-se que as
mulheres burguesas permanecessem totalmente fora do jogo, quer dizer, na ignorância do que os homens (e
outras mulheres) faziam. Nos países protestantes, esperava-se que a moralidade das restrições sexuais e da
fidelidade atingisse os dois sexos, mas o próprio fato de que isso era percebido mesmo por aqueles que a
quebravam, levava-os não exatamente à hipocrisia, mas ao tormento pessoal. É bastante ilegítimo tratar uma
pessoa em tal situação como um mero trapaceiro.
Mais do que isso, a moral burguesa era consideravelmente aplicada; na verdade, talvez se tenha tornado muito
mais efetiva a partir do momento em que a massa das classes trabalhadoras respeitáveis” passou a adotar os
valores da cultura hegemônica, e que as classes médias baixas, que seguiam a burguesia por definição, cresceram
em número. [...] O mundo burguês era perseguido pelo sexo, mas não necessariamente pela promiscuidade
sexual [...].
A crença de que o burguês de meados do século XIX era incomumente fogoso, e, portanto, obrigado a construir
defesas impenetráveis contra a tentação da carne, o convence: o que fazia as tentações o tentadoras era
precisamente o extremismo dos padrões morais aceitos, que tornavam a queda igualmente dramática [...]”
(HOBSBAWN, 2005, p. 324-9).
27
Vejamos o que diz Erich Fromm sobre a “indolência” burguesa: “No sistema atual, a renda pode ser
totalmente independente do esforço ou do serviço pessoal. O dono de capital pode ganhar sem trabalhar. A
função humana essencial da troca de esforço por dinheiro pode converter-se na manipulação abstrata do dinheiro
para obter mais dinheiro. Tal fato está perfeitamente caracterizado no proprietário absentista de uma empresa.
Tanto faz que ele seja proprietário de toda a empresa ou seja apenas um seu acionista. Em ambos os casos ele
produz lucros com o seu capital e com o trabalho dos demais, sem ter que despender ele mesmo qualquer
esforço” (FROMM, 1976, p. 96). O que faz o eu poético de Gomes Leal é associar, por esse motivo, a burguesia
a uma existência ociosa. Ou talvez esteja se referindo aos rentiers.
66
ainda, farto, saturado, satisfeito, feliz, eufórico; e austero. O burguês é a alegria da fartura e a
gravidade da solidez moral. É, por fim, humilde, porque cristão; e aspira à castidade.
Essa definição contraditória da burguesia, que também gira em torno da tensão entre o
sacro e o profano, consiste em uma ironia. Enquanto no soneto “A Cidade” o eu poético
experiencia essa tensão como um tormento pessoal, aqui a moderação, o sacrifício, a
castidade, a humildade o tomadas como hipocrisia, como elementos que integram a
ideologia burguesa. Portugal, segundo o eu poético, é a capital ocidental que mais tem tristes
procissões e igrejas. Parece-me que a tensão explícita entre o sacro e o profano, mesmo que
em modos diferentes de se expressar, persiste, na poética de Gomes Leal, no contato imediato
com o universo urbano. Não sabemos até que ponto esses versos admitem a possibilidade de
crença de que indivíduos burgueses sofressem essa tensão como um tormento pessoal, mas
como Gomes Leal é herdeiro da estética antiburguesa, podemos admitir a hipótese de que a
ironia prepondera enquanto instrumento de revelação da ideologia. Seja como for, a imagem
da cidade permanece viciosa, em um estado de inércia que associa vício e ócio, oposta à
racionalidade e diluidora do senso de transcendência. Os qualificativos que definiram a
burguesia são incorporados, na estrofe seguinte, pela própria cidade. Mas é nesse contexto
que o eu poético admite que esse espaço decadente é o mesmo que permite uma via de acesso
à dimensão artística, ao plano da criação:
Viciosa ela se apraz num sono vegetal,
Adversa ao Pensamento e contrária ao Ideal.
Mas, mau grado assim ser viciosa, egoísta, à lua,
Com Nero também, dá concertos na rua.
E, em noites de verão, quando o luar consola,
Põe ao peito a guitarra e a lírica viola.
Notemos que a imagem de Nero tocando lira enquanto Roma arde em chamas é infernal. O
poeta moderno é associado a Nero: o artista que se alimenta de um espaço infernal. O eu
poético de Gomes Leal é um verdadeiro Nero. Incendiou Lisboa com sua enrubescida
imaginação.
A cidade enquanto via de acesso à dimensão artística e, simultaneamente, espaço
decadente e aprisionador pode encerrar um contradição. Todavia, a sensação de
aprisionamento não é tão forte e generalizada em Gomes Leal quanto o é em Cesário.
O passado heróico português é evocado também nesse poema, não enquanto busca de
um eco épico para representar a realidade moderna, mas como total oposição a ela. Por fim, a
cidade é explicitamente satanizada, associando o mal ao ócio e, como na Mensagem, do
67
Fernando Pessoa ortônimo, opondo o passado heróico português à inércia, à acomodação da
decadente sociedade burguesa de sua época:
No entanto a sua vida é quase intermitente.
Chafurda na inacção, feliz, gorda, contente.
E, eclipsando as acções dos seus navegadores,
Abrilhanta a batota e as casas de penhores.
Faz guerra à Vida, à Acção, ao Ideal!... e ao cabo
É talvez a melhor amiga do Diabo!
Os burgueses heureux e repus assemelham-se, aqui, a suínos, ao chafurdarem na inação
felizes, gordos e contentes.
A cidade na poética de Gomes Leal é, como foi dito, satanicamente idealizada,
associada ao vício, ao pecado de modo geral. Não é no mínimo curioso o fato de que o poema
“Lisboa” seja composto por sete estrofes (a quantidade dos pecados capitais) de seis versos (o
número da Besta)?
Nesse momento, podemos então sintetizar a intencidade de Cesário e a de Gomes Leal.
A intencidade cesárica se na tensão entre a fertilidade criativa e a sensação de opressão,
aprisionamento e de falta de vitalidade, e em uma visão orientada para a realidade concreta,
sutilmente transfigurada. A intencidade de Gomes Leal se dá, por seu turno, na tensão
imediata entre o sacro e o profano, pressentida ora intima ora ideologicamente e em uma
visão orientada para a transfiguração simbólica da realidade, rearticulada por uma imaginação
excessiva.
68
3. As Delicadezas do Mal. As Transfigurações da Imagem Feminina
O mais nímio adâmico tropo, a mais nefelibata aspiração, o sorvedouro do acídulo livor
vital. Acetinado, imbele e plácido vulcão em erupção; membranoso mistério, aceso em ardor
carnal. De uma costela nascido abismo incendiado; de cecídia acusado pruriginoso fruto
hiante. Nascente da catálise nitente e do veneno das veias alucinado; pétalas de violácea
catléia maceradas por caule delirante. Se afirmarem hircino, venal, viperino tal pomo, não é
que, escrutando a venérea spida plumagem, o homem encontra, apequenado, num báquico
assomo, de sua fragilidade a conotação, de sua força a voragem?
O arquétipo feminino da femme fatale, ou ao menos a transfiguração da imagem
feminina em uma figura dominadora, existe antes do período clássico no folclore e na
mitologia de pelo menos a maioria das culturas. Se olharmos para o lado, podemos nos
deparar com o espectro desse tipo de mulher. Principalmente se ficamos sugestionados como
fiquei nas primeiras linhas. Podemos conviver com esse espectro, sem necessariamente
sermos misóginos ou preconceituosos. Mas como o ficarmos sugestionados com a mulher?
A mulher é o outro. Assim como o homem é o outro da mulher. O outro é sempre mediado
pelo mistério.
A transfiguração da imagem feminina em uma figura dominadora adquire
sistematização a partir da segunda metade do século XIX, figura que é um desenvolvimento
da faceta diabólica da mulher romântica da primeira metade do mesmo século. Na primeira
metade do século XIX, a figura dominadora predominante é a do homme fatal, associada ao
herói byroniano, a Don Juan.
28
Mario Praz, em seu deliciosamente terrível A carne, a morte e
o Diabo na literatura romântica, traça uma linha tradicional entre figuras de femmes fatales
desde o início do Romantismo:
De forma esquemática, poder-se-ia dizer que à testa desta linha está a
Matilda de Lewis, que se desenvolve de um lado como Velléda
(Chateaubriand) e Sallambô (Flaubert), de outro como Carmen (Mérimée),
Cécily (Sue) e Conchita (Pierre Louys)... Esquematização arbitrária, é
28
Como classificar o poder fatal, no século XX, de uma personagem como Tadzio, da Morte em Veneza,
poder fatal andrógino que vitima outra personagem masculina?
69
verdade, mas que permite certos relevos de conjunto que não são sem
significado para a história do gosto e do costume. (PRAZ, 1996, p. 181)
Mas é no fin-de-siècle que a figura dominadora da femme fatale se tornará mais
sistemática. A imagem dominadora da mulher é envolta por uma aura enigmática de
intangibilidade e tédio; adquire uma beleza fascinante, magnética como guizos; é prepotente,
sensual e perversa, podendo levar o fascinado à confusão mental e sentimental, ao
depauperamento físico e moral. O fascinado mantém uma atitude passiva, sendo obscurecido
pela inferioridade perante a melhor condição e maior exuberância física da mulher, além de
sua, ao menos latente, maior desenvoltura sexual: “o canibalismo sexual é aqui monopólio da
mulher” (PRAZ, 1996, p. 192). A “síndrome do amor e medo” é levada ao termo de uma
idolatria masoquista por uma mulher com síndrome de esfinge. O fin-de-siècle é devorado
pelo mistério: mistério da vida, da morte, da existência, da mulher. No fin-de-siècle e no
início do século XX, a imagem dominadora da femme fatale dominará a cultura ocidental.
Desfilaentre moribundos o cortejo de Helena de Tróia, de nus, de Diana, de Herodíades
e de sua filha, Salomé. O horror fascina, a beleza é funesta. A mulher, assim como ocorre com
o universo urbano, começa a ser observada por outro viés da beleza. Contraditória, complexa,
essa beleza simpatiza com o sofrimento, com a opressão, com efeitos física e moralmente
anormais. São sempre espinhosas as sendas da modernidade. Tudo parece adquirir sentido
quando integrado ao seu oposto. A fascinação provocada pelo labirinto das cidades e pela
imagem feminina é perceptível somente ao revelar a repulsa ou o medo e as sensações e
sentimentos turbados ou prejudiciais. A beleza moderna, na expressão de Praz (1996, p. 63), é
meduséia, “banhada de sofrimento, de corrupção e de morte.”. Na modernidade nada existe
sem o seu contrário.
Dentre as figuras históricas e mitológicas, Salomé sobressai como inspiração fatal.
29
Salomé, que morou no coração de Moreau. Cumpre verificar como ela se transformou, no
universo literário, em um monstro de luxúria frio, perverso e sedento de uma vingança com
requintes de crueldade. Apraz, nesse contexto, atentarmos, de início, para a seguinte passagem
de Praz:
A época do passado com a qual muitos artistas do fim do século gostam de
se identificar foi o longo crepúsculo bizantino, tenebrosa abside carregada de
29
Poder-se-ia perguntar o motivo dessa preferência por Salomé. Renata Soares Junqueira (2003, p.73)
responderia: “[...] a abundância das cores e das pedras preciosas que constituem o luxo de que ela se reveste
parece predispô-la ao capricho dos esteticistas, que nela tendem a apreciar precisamente o que tem de postura
ornamental a evocar – também pela sua frieza perversa a arte da estatuária e a impor-se mesmo como alegoria
do artifício.”.
70
ouro e de sangüínea púrpura, de onde brotavam enigmáticas figuras,
bárbaras e ao mesmo tempo refinadas, com suas dilatadas pupilas
neurastênicas. [...] nos estertores do século, mesmo o elemento viril da
personalidade parece desaparecer: a época bizantina é uma época de
corrupção anônima, sem nada de heróico. (PRAZ, 1996, p. 347)
Do pouco que se sabe da Salomé histórica, que depois da pandórica Eva fora tida como
a figura feminina mais sedutora e pérfida do imaginário judaico-cristão, é que era filha de
Herodíades e sobrinha e enteada de Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia e filho de Herodes, o
Grande. Antipas prendeu injustamente seu irmão, Herodes Filipe, para, após exilar sua esposa,
casar-se com sua cunhada, Herodíades. João Batista acusava o casal pelo “sacrílego” crime de
incesto (que amaldiçoaria Israel) e Herodes, pressionado pela esposa, aprisiona-o. Mas ela,
rancorosa, queria sua morte, que Herodes temia pelo fato de João ter muitos seguidores,
principalmente camponeses, que poderiam sublevar-se. Na festa de aniversário de seu tio,
Salomé dança para ele e os convivas e ele, que por causa disso lhe havia prometido realizar
qualquer desejo, tem de acatar o pedido da sobrinha de, por influência da mãe que aproveitara
a oportunidade, oferecer-lhe a cabeça de João em uma bandeja, que Salomé entregaria a
Herodíades.
Salomé aparece no Novo Testamento, no Evangelho segundo o Mateus e no
Evangelho segundo São Marcos. Cumpre transcrevermos, respectivamente, as passagens, para
depois compararmos com a transformação literária de sua figura:
Por aquela mesma época, o tetrarca Herodes ouviu falar de Jesus. E disse aos
seus cortesãos: “É João Batista que ressuscitou. É por isso que ele faz tantos
milagres.”
Com efeito, Herodes havia mandado prender e acorrentar João, e o tinha
mandado meter na prisão, por causa de Herodíades, esposa de seu irmão
Felipe. João lhe tinha dito: “Não te é permitido tomá-la por mulher!” De boa
mente o mandaria matar, temia, porém, o povo que considerava João um
profeta. Mas, na festa de aniversário de nascimento de Herodes, a filha de
Herodíades dançou no meio dos convidados e agradou a Herodes. Por isso
ele lhe prometeu com juramento dar-lhe tudo o que lhe pedisse. Por
instigação de sua mãe ela respondeu: Dá-me aqui, neste prato, a cabeça de
João Batista.” O rei entristeceu-se, mas como havia jurado diante dos
convidados, ordenou que lha dessem; e mandou decapitar João na sua prisão.
A cabeça foi trazida num prato e dada à moça que a entregou à sua mãe.
Vieram, então, os discípulos de João transladar seu corpo, e o enterraram.
Depois foram dar a notícia a Jesus. (MATEUS (14, 1-12), 1988, p. 1301)
O rei Herodes ouviu falar de Jesus, cujo nome se tornara célebre. Dizia-se:
“João Batista ressurgiu dos mortos e por isso o poder de fazer milagres opera
nele.” Uns afirmavam: “É Elias!” Diziam outros: “É um profeta como
qualquer outro. Ouvindo isto, Herodes repetia: “É João, a quem mandei
decapitar; ele ressuscitou!”
71
Pois o próprio Herodes mandara prender a João e acorrentá-lo no cárcere,
por causa de Herodíades, mulher de seu irmão Filipe, com a qual ele se tinha
casado. João tinha dito a Herodes: “Não te é permitido ter a mulher de teu
irmão.” Por isso Herodíades o odiava e queria matá-lo, não o conseguindo,
porém. Pois Herodes respeitava João, sabendo que era um homem justo e
santo; protegia-o, e quando o ouvia, sentia-se embaraçado; mas, mesmo
assim, de boa mente o ouvia.
Chegou, porém, um dia favorável em que Herodes, por ocasião de seu
natalício, deu um banquete aos grandes de sua corte, aos seus oficiais e aos
principais da Galiléia. A filha de Herodíades apresentou-se e pôs-se a
dançar, com grande satisfação de Herodes e dos seus convivas. Disse o rei à
moça: “Pede-me o que quiseres, e eu to darei.” E jurou-lhe: “Tudo o que me
pedires te darei, ainda que seja a metade do meu reino.” Ela saiu e perguntou
à sua mãe: “Que hei de pedir?” E a mãe respondeu: “A cabeça de João
Batista.” Tornando logo a entrar apressadamente à presença do rei,
exprimiu-lhe seu desejo: “Quero que sem demora me des a cabeça de João
Batista.” O rei entristeceu-se; todavia, por causa da sua promessa e dos
convivas, não quis recusar. Sem tardar, enviou um carrasco com a ordem de
trazer a cabeça de João. Ele foi, decapitou João no cárcere, trouxe a sua
cabeça num prato e deu à moça, e esta entregou à sua mãe. Ouvindo isto, os
seus discípulos foram tomar o seu corpo e o depositaram num sepulcro.
(MARCOS (6, 14-29), 1988, p. 1328-9)
Mutilações, cortes, lacerações em geral ativam o complexo de castração infantil. Por
isso o temor da extração dentária (o dente é um minúsculo pênis) e o temor infantil de cortar o
cabelo e de filmes com zumbis e dilacerações corporais. Salomé, a grande decapitadora,
tornar-se-á a grande castradora.
Oscar Wilde, com a peça Salomé (1893), contribuiu deveras para a transfiguração
sofrida pela filha de Herodíades, dando-lhe maior centralidade, potencial erótico e autonomia.
Fora escrita a maior parte da peça em Paris em 1891 e publicada em Fevereiro de 1893,
simultaneamente em Paris e Londres. Mas foi a tradução inglesa de Alfred Douglas, de
Fevereiro de 1894, ilustrada por Aubrey Beardsley, que consagrou a peça.
Wilde pretendeu revelar o universo interior de Salomé, que se transforma em uma
princesa arrebatada pela paixão nutrida por João. Por isso, dá-lhe pleno senso de autonomia:
Não estou dando ouvidos a minha mãe. É para meu próprio prazer que peço
a cabeça de Iokanan numa bacia de prata. Jurastes, Herodes. Não vos
esqueçais de que jurastes.
(WILDE, 2002, p. 61)
Sua ousadia se reflete na sensualidade que torna sua beleza mais atraente. Herodes, que com
ela casaria de tanta paixão, desabafa:
Não, não desejais tal coisa. Dizeis-me isso só para me magoar, porque fiquei
olhando para vós a noite toda. Pois bem. Sim. Fiquei olhando para vós
72
durante a noite toda. A vossa beleza me perturbou terrivelmente, e eu vos
olhei demais.
(WILDE, 2002, p. 62)
Salomé é vingativa. Sua paixão se transforma em um rancor sádico com tom vampírico,
sucubático. A filha de Herodíades se torna filha de Lilith. A Salomé histórica se transfigura na
Salomé histérica:
Ah! Não quiseste deixar-me beijar a tua boca, Iokanan. Pois bem, eu a
beijarei agora. Eu a morderei com os dentes, como se morde uma fruta
madura. Sim, beijarei a tua boca, Iokanan. Eu te avisei, não? Eu te avisei.
Pois bem, eu a beijarei agora... Mas por que não me olhas, Iokanan? Os teus
olhos, que eram tão terríveis, que eram tão cheios de raiva e de desprezo,
estão fechados agora. Por que estão fechados? Abre os olhos! Levanta as
pálpebras, Iokanan. Por que não me olhas? Tens medo de mim, Iokanan, por
isso não me queres olhar?... E a tua língua, que era como uma serpente
vermelha a dardejar venenos, não se mexe mais, não diz nada agora,
Iokanan, essa víbora vermelha que vomitou a sua peçonha sobre mim. É
estranho, não? Como é possível que a víbora vermelha não se mexa?...
Não me quiseste, Iokanan. Rejeitaste-me. Disseste-me coisas infames.
Trataste-me como a uma cortesã, como a uma prostituta, a mim, Salomé,
filha de Herodíade, princesa da Judéia! Pois bem, Iokanan, eu continuo viva,
mas tu estás morto e a tua cabeça me pertence. Posso fazer o que quiser com
ela. Posso lançá-la aos cães e aos pássaros do ar. O que os cães deixarem, os
pássaros do ar comerão... Ah! Iokanan, foste tu o único homem a quem
amei. Todos os outros homens me dão nojo. Mas tu eras lindo. O teu corpo
era uma coluna de marfim num pedestal de prata. Era um jardim repleto de
pombas e lírios de prata. Era uma torre de prata enfeitada com escudos de
marfim. Não havia nada no mundo tão branco como o teu corpo. Não havia
nada no mundo tão negro como os teus cabelos. No mundo inteiro, não havia
nada tão vermelho como a tua boca. A tua voz era um turíbulo que exalava
estranhos perfumes e quando eu te olhava, ouvia uma estranha música! Ah!
Por que não me olhaste, Iokanan? Escondeste o rosto por trás das tuas mãos
e blasfêmias. Puseste nos olhos a venda daquele que quer ver ao seu Deus.
Pois bem, viste ao teu Deus, Iokanan, mas a mim, a mim... tu nunca viste. Se
me houvesses visto, haver-me-ias amado. Eu, eu te vi, Iokanan, e te amei.
Ah! Como te amei! Ainda te amo, Iokanan. amo a ti... Tenho sede da tua
beleza. Tenho fome do teu corpo. E nem o vinho, nem as frutas podem saciar
o meu desejo. Que farei agora, Iokanan? Nem o rio, nem as grandes águas
poderiam apagar a minha paio. Era princesa, tu me desdenhaste. Era
virgem, tu me defloraste. Era casta, tu me encheste as veias de fogo... Ah!
Ah! Por que não me olhaste, Iokanan? Se me houvesses olhado, haver-me-
ias amado. Sei muito bem que me haverias amado, e o mistério do amor é
maior que o mistério da morte. Só para o amor se deve olhar.
(WILDE, 2002, p. 67-8)
Renata Maria Parreira Cordeiro elenca artistas e obras francesas que, entre outras,
incentivaram Wilde a fazer Salomé dançar: Mallarmé (Herodíade (1871)), Huysmans (Às
avessas (1884)), Flaubert (Salambô (1862); Herodíade (1876)), Moreau (A dança de Salomé
(1876)), Massenet (Herodíade (1881)).
73
Praz lê Salomé em tom de paródia, mas sabendo que Wilde não intencionou tal efeito.
Afirma que, se lida enquanto paródia de toda a matéria decadentista, seria uma obra-prima. Se
não, é uma peça ridiculamente afetada, apesar de Praz reconhecer a qualidade do escritor
Wilde, que alcunha delicadamente “genial histrião”. Sinto que a tragicidade da peça é
realmente um pouco caricata; mas, a meu ver, a grande paródia, a grande caricatura de toda a
matéria decadentista é Às avessas de Huysmans, que se tornou, na verdade, uma espécie de
Bíblia do Decadentismo-Simbolismo (com elementos prenunciadores do espírito do
Futurismo e do Surrealismo, diria. Estamos diante de um Evangelho eclético). Jean des
Esseintes é uma personagem excêntrica, neurótica e neurastênica bem ao gosto decadente-
simbolista; mas seu caráter grotesco beira um ridículo suspeito. Às vezes o gosto decadente-
simbolista permite um ridículo premeditado, um dandysme meio caricato, nos moldes de um
palhaço da sociedade industrial. Camilo Pessanha, por exemplo, adotou uma postura meio
circense, e era o ridículo de sua pose que o tornava rio. Des Esseintes mesmo foi inspirado
no excêntrico dandy Robert de Montesquiou, que “artificializou” até uma tartaruga ao folhar a
ouro seu casco, segundo constou de uma visita de Mallarmé a sua performática residência.
Não obstante, o caráter ridículo da personagem de Huysmans abre o horizonte da paródia. É
um ridículo, como afirmei, suspeito.
Às avessas enumera, através da coleção particular de des Esseintes, obras artísticas
fundamentais para o Decadentismo-Simbolismo, ou com as quais os decadentistas e
simbolistas simpatizavam. Entre elas estão as duas obras-primas de Moreau que tematizam
Salomé: A dança de Salomé e A aparição (ambas de 1876). As descrições e impressões de des
Esseintes prefiguram a transfiguração máxima da dançarina. Quando se refere ao primeiro
quadro, assim pinta Salomé:
A face recolhida numa expressão solene, quase augusta, dá ela início à
lúbrica dança que deve acordar os sentidos entorpecidos do velho Herodes;
seus seios ondulam e, roçados pelos colares que turbilhonam, ficam de bicos
eretos; sobre a pele úmida, os diamantes presos cintilam; seus braceletes,
seus cintos, seus anéis lançam faúlhas; sobre a túnica triunfal, recamada de
pérolas, ornada com ramagens de prata, guarnecida de palhetas de ouro, a
couraça de ourivesaria em que cada malha é uma pedra entra em combustão,
faz serpentes de fogo se entrecruzarem, fervilha sobre a carne mate, sobre a
pele rosa-chá, à semelhança de esplêndidos insetos de élitros ofuscantes,
marmoreados de carmim, salpicados de amarelo-ouro, matizados de azul-
aço, mosqueados de verde-pavão.
(HUYSMANS, 1987, p. 84-5)
74
Toma fôlego então, em face de toda essa sensual marchetaria, toda a hipersensibilidade esteta
de des Esseintes:
O tipo de Salomé, que tanto fascina os artistas e os poetas, obsidiava des
Esseintes havia anos. [...]
Mas nem S. Mateus, nem S. Marco, nem S. Lucas, nem os outros
evangelistas, demoraram-se nos encantos delirantes, nas ativas depravações
da dançarina. Ela permanecia apagada, perdida, misteriosa e vaga, na névoa
longínqua dos séculos, inapreensível para os espíritos precisos e terra-a-terra,
acessível somente aos cérebros excitados, aguçados e como que tornados
visionários pela nevrose; rebelde aos pintores da carne, a Rubens que a
disfarçou numa açougueira de Flandres, incompreensível a todos os
escritores que nunca puderem exprimir a inquietante exaltação da dançarina,
a refinada grandeza da assassina.
Na obra de Gustave Moreau, concebida fora de todos os dados do
Testamento, des Esseintes via enfim realizada aquela Salomé sobre-humana
e estranha que havia sonhado. Ela não era mais apenas a bailarina que
arranca, com uma corrupta torsão de seus rins, o grito de desejo e de lascívia
de um velho; que estanca a energia, anula a vontade de um rei por meio de
ondulações de seios, sacudidelas de ventre, estremecimentos de coxas;
tornava-se, de alguma maneira, a deidade simbólica da indestrutível Luxúria,
a deusa da imortal Histeria, a Beleza maldita, entre todas eleita pela
catalepsia, que lhe inteiriça as carnes e lhe enrija os músculos; a Besta
monstruosa, indiferente, irresponsável, insensível, a envenenar, como a
Helena antiga, tudo quanto dela se aproxima, tudo quanto a vê, tudo quanto
ela toca.
Assim compreendida, pertencia às teogonias do Extremo Oriente; não
procedia mais das tradições bíblicas, não podia mais sequer ser assimilada à
imagem viva da Babilônia, à real Prostituta do Apocalipse, paramentada
como ela de jóias e de púrpura, como ela arrebicada, mas não atirada, por
uma potência fatídica, por uma força suprema, nas excitantes abjeções da
devassidão.
(HUYSMANS, 1987, p. 85-6)
Luxúria, Histeria, Beleza. A Beleza maldita. Salomé, após ser dotada de traços megafísicos e
metafísicos, terá seu caráter simbólico ainda mais acentuado pelo desalojamento total da
História:
O pintor parecia aliás ter querido afirmar sua vontade de manter-se fora dos
séculos, de não precisar origem, país ou época quando pôs a sua Salomé no
meio daquele extraordinário palácio, de estilo confuso e grandioso, vestindo-
a de roupas suntuosas e quiméricas, coroando-a com um incerto diadema em
forma de torre fenícia, tal como o de Salambô, e colocando-lhe na mão, por
fim, o cetro de Ísis, a flor sagrada do Egito e da Índia, o grande lótus. [...]
Outrossim, ao prover sua enigmática deusa do lótus venerado, o pintor talvez
tenha pensado na dançarina, na mulher mortal, no Vaso maculado, causa de
todos os pecados e de todos os crimes [...].
(HUYSMANS, 1987, p. 86-7)
Por seu turno, a Salomé da Aparição
75
[...] era verdadeiramente meretriz; obedecia ao seu temperamento de mulher
ardente e cruel; vivia, mais refinada e mais selvagem, mais execrável e mais
extravagante; despertava mais energicamente os sentidos em letargo do
homem, enfeitiçava, domava-lhe com mais segurança as vontades, com seu
encanto de grande flor venérea brotada em canteiros sacrílegos, cultivada em
estufas ímpias.
(HUYSMANS, 1987, p. 89)
Salomé e/ou elementos a ela relacionados perturbaram a imaginação de muitos poetas
da segunda metade do século XIX, enfim. Se fizermos uma seleção, teremos: Banville; o já
citado Mallarmé; William Wilde; Gottfried Keller; Lorrain; Arsène Houssaye; Pierre Louÿs;
Albert Samain; Antoine Sabatier; Tristan Klingsor; Eugênio de Castro; Gérard d´Houville
(pseudônimo da Sra. Régnier).
30
Mas quando tratamos do arquétipo feminino da femme fatale,
não podemos omitir Baudelaire que, para mim, foi mestre na arte de satanizar mulheres. O
soneto XXVII das Flores do mal (1857), abaixo transcrito, encerra uma figura salomaica:
30
Essa perturbação persiste no século XX. Se fizermos uma seleção, incluir-se-iam nela Robert de Montesquiou,
com os poemas “Remorso” e “Paga” (ambos de 1901) e Sá-Carneiro, com o soneto intitulado precisamente
“Salomé” (1913). Podemos encontrar resquícios do arquétipo feminino da femme fatale ainda na
contemporaneidade, pois o homem ainda é homem e a mulher ainda é mulher. Isto é: o mistério do outro
persiste. Ana, personagem da narrativa poética Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar, parece-me um
magnífico exemplo desse resquício. Apegada à religiosidade e temente a Deus, não resiste à sensualidade e à
malícia sempre a ponto de explodir em dança. Na festa dedicada ao retorno do filho pródigo, a dançarina
oriental” (NASSAR, 2005, p. 191), enfeitada com os adornos das prostitutas colecionados por André, não resiste
à música, enquanto André a contempla sentado sobre uma raiz exposta: [...] e quando menos se esperava, Ana
(que todos julgavam sempre na capela) surgiu impaciente numa só lufada, os cabelos soltos espalhando lavas,
ligeiramente apanhados num dos lados por um coalho de sangue (que assimetria mais provocadora!), toda ela
ostentando um deboche exuberante, uma borra gordurosa no lugar da boca, uma pinta de carvão acima do
queixo, a gargantilha de veludo roxo apertando-lhe o pescoço, um pano murcho caindo feito flor da fresta
escancarada dos seios, pulseiras nos braços, anéis nos dedos, outros aros nos tornozelos, foi assim que Ana,
coberta com as quinquilharias mundanas da minha caixa, tomou de assalto a minha festa, varando com a peste no
corpo o círculo que dançava, introduzindo com segurança, ali no centro, sua petulante decadência, assombrando
os olhares de espanto, suspendendo em cada boca o grito, paralisando os gestos por um instante, mas dominando
a todos com seu violento ímpeto de vida, e logo eu pude adivinhar, apesar da graxa que me escureceu
subitamente os olhos, seus passos precisos de cigana se deslocando no meio da roda, desenvolvendo com
destreza gestos curvos entre as frutas e as flores dos cestos, tocando a terra na ponta dos s descalços, os
braços erguidos acima da cabeça serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais lento, mais ondulante, as
mãos graciosas girando no alto, toda ela cheia de uma selvagem elegância, seus dedos canoros estalando como se
fossem, estava ali a origem das castanholas, e em torno dela a roda passou a girar cada vez mais veloz, mais
delirante, as palmas de fora mais quentes e mais fortes, e mais intempestiva, e magnetizando a todos, ela roubou
de repente o lenço branco do bolso de um dos moços, desfraldando-o com a mão erguida acima da cabeça
enquanto serpenteava o corpo, ela sabia fazer as coisas, essa minha irmã, esconder primeiro bem escondido sob a
língua sua peçonha e logo morder o cacho de uva que pendia em bagos túmidos de saliva enquanto dançava no
centro de todos, fazendo a vida mais turbulenta, tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação [...] e Ana,
sempre mais ousada, mais petulante, inventou um novo lance alongando o braço, e, com graça calculada (que
demônio mais versátil!), roubou de um circundante a sua taça, logo derramando sobre os ombros nus o vinho
lento, obrigando a flauta a um apressado retrocesso nguido, provocando a ovação dos que a cercavam, era a
voz surda de um coro ao mesmo tempo sacro e profano que subia, era a comunhão confusa de alegria, anseios e
tormentos, ela sabia surpreender, essa minha irmã, sabia molhar a sua dança, embeber a sua carne, castigar a
minha língua no mel litúrgico daquele favo, me atirando sem piedade numa insólita embriaguez, me pondo
convulso e antecedente [...] eu que estava certo, mais certo do que nunca, de que era para mim, e para mim,
que ela dançava (que reviravoltas o tempo dava! que osso, que espinho virulento, que glória para o meu corpo!)
[...]” (NASSAR, 2005, p. 186-9). Ana e André: agrestes Herodes e Salomé.
76
Avec ses vêtements ondoyants et nacrés,
Même quand elle marche on croirait qu’elle danse,
Comme ces longs serpents que les jongleurs sacrés
Au bout de leurs bâtons agitent en cadence.
Comme le sable morne et l’azur des déserts,
Insensibles tous deux à l’humaine souffrance,
Comme les longs réseaux de la houle des mers,
Elle se développe avec indifférence.
Ses yeux polis sont faits de minéraux charmants,
Et dans cette nature étrange et symbolique
Où l’ange inviolé se mêle au sphinx antique,
Où tout n’est qu’or, acier, lumière et diamants,
Resplendit à jamais, comme un astre inutile,
La froide majesté de la femme stérile.
(BAUDELAIRE, 1985, p. 166)
Envolta em ondulante traje nacarado
Até quando caminha dir-se-á que ela dança,
Como esses longos répteis que um jogral sagrado
Agita em espirais no vértice da lança.
Como a tépida areia ou o azul do deserto,
Insensíveis os dois à desventura humana,
Como a trama das ondas no ermo mar aberto,
Ela se move indiferente e soberana.
Em seu polido olhar há minerais radiantes.
E nessa têmpera de insólitas quimeras,
Entre anjo indecifrado e esfinge de outras eras,
Em que tudo é só luz, metal, ouro e diamantes,
Esplende para sempre, em seu frívolo império,
A fria majestade da mulher estéril.
31
Reconhecemos ser essa figura feminina inspirada em Salomé por ter a dança como
elemento visceral de sua natureza: ela parece dançar até quando caminha. Natureza ofídica.
Ela dança como as longas serpentes. É indiferente, insensível ao sofrimento humano. Como
altivas ondas, cadenciada, sobressai ao se enredar no mar das coletividades. As pedrarias são
seus próprios polidos olhos; e com elas também exercita seu poder encantatório. Sua natureza,
ofídica, é simbólica, e estranha, pois ambígua: a castidade se mescla com a malícia e
sensualidade das serpentes e com o perigo mortal da esfinge, envolvendo-a em uma densa
nuvem de mistério. Sua postura hierática, frívola e teatral a transforma em um astro inútil, em
31
Tradução de Ivan Junqueira, encontrada na seguinte referência: BAUDELAIRE, C. As flores do mal. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
77
uma figura estéril, como se não fosse viva, mas pintada com o brilho colorido e com os
clarões ofuscantes pelas mãos de um Moreau que, como Baudelaire, avista, “em plena Paris, o
resplendor de visões cruéis [...]” (HUYSMANS, 1987, p. 89). Se o eu poético estivesse
recostado ao assento de algum café devasso, seria um Herodes moderno. A Salomé moderna,
por seu turno, precisa aprender a dançar na multidão.
O arquétipo feminino da femme fatale aparece em Baudelaire como metáfora das
conseqüências do universo industrial. Observemos a mais famosa passante:
A UNE PASSANTE
La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d’une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l’ourlet;
Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispe comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.
Un éclair... puis la nuit! – Fugitive beauté
Dont le regard m’a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l’éternité?
Ailleurs, bien loin d’ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O toi que j’eusse aimée, o toi qui le savais!
(BAUDELAIRE, 1985, p. 344)
A UMA PASSANTE
A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.
Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.
Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
78
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!
32
A passante, que longa e fina, em grande luto, dor majestosa, assemelha-se a uma igreja
gótica, torna-se efêmera como os produtos industriais, desaparecendo na desvairada
turbamulta logo após surgir. Hierática e revelando no olhar a natureza tipicamente
ambivalente de um céu ameaçador e de uma doçura fascinante acompanhada de um prazer
homicida, seduz subitamente o voyeur, aflorando um redemoinho em sua memória após o
desaparecimento. A musa é inatingível, nesse soneto, por causa da dinâmica da sociedade
moderna, porque os vagalhões humanos a engolfam talvez para sempre. Toda individualidade,
mesmo que por um momento resgatada, imerge lepidamente nas reificadas massas
populacionais. Enquanto fugitiva beleza, essa figura feminina se transforma na própria beleza
moderna que, crispada como um extravagante, causa aquele frisson nouveau. Por fim,
enlutada, essa figura, “carregando até em seus ombros negros e magros o símbolo de um luto
perpétuo” (BAUDELAIRE, 2002, p. 729), é uma “coveira do amor”, denunciando o fato de
que este, na época moderna, é uma ilusão, não tem futuro, é efêmero como tudo o mais. Na
modernidade, todos celebramos algum enterro. Ela corresponde ao olhar do eu poético, mas
para confirmar que estão fadados à solidão. A linguagem do luto é silente.
A presença do arquétipo feminino da femme fatale é, como vimos, muito insistente na
vertente decadente-simbolista da modernidade fin-de-siècle, sendo uma herança da faceta
diabólica da mulher romântica, associada ora a um anjo ora a um demônio. Não se trata de
uma tarefa pacífica perscrutar o motivo do surgimento, na arte, dessas figuras despeitadas e
daninhas.
Em 1848, francesas fundam jornais e clubes com caráter de associações de produção.
Ainda na França, o divórcio é restabelecido, em 1884, no caso de infidelidade masculina e se
aprova a lei, em 1897, que permite às mulheres testemunharem em processos judiciais. Na
Inglaterra, por seu turno, Stuart Mill, em 1867, faz o primeiro pronunciamento a favor do voto
feminino. Apesar de tomarem fôlego a partir do início do século XX, as reivindicações
suffragettes têm início na segunda metade do século XIX, com a criação, em 1867, nos
Estados Unidos, da primeira associação feminista em prol do direito de voto da mulher,
chamada National Society for Woman´s Suffrage, liderada por Lydia Becker (o movimento
sufragista teve origem simultânea nos Estados Unidos e na Inglaterra, mas o direito do voto
feminino foi concedido somente em 1919 e em 1928, respectivamente). Além de tudo isso,
32
Tradução de Ivan Junqueira, encontrada na seguinte referência: BAUDELAIRE, C. As flores do mal. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
79
deparamos com algumas madames Bovarys, isto é, mulheres que m coragem de quebrar as
regras matrimoniais. Assim posto, estamos diante de um esforço em prol da mudança do
status feminino na sociedade.
A femme fatale talvez seja a transfiguração sobrecarregada e prenunciadora da mulher
que busca independência e que tenha “descoberto” o orgasmo, isto é, adquirido consciência de
seu potencial erótico, ao menos em seu universo íntimo. A reação dos poetas é dúbia,
entrelaçando matizes conservadoras e “avançadas”. Essa mulher de espírito emancipador e
consciente do prazer é associada ao vício, pois se desvencilha dos padrões burgueses da
mulher-mãe, esposa destinada à vida doméstica e à família (instituição que resguarda a
propriedade), dependente, abnegada, sempre amorosa e bondosa. A prostituta, figura assaz
representativa da femme fatale, é diametralmente oposta à figura da mulher-mãe,
simbolizando a esterilidade e o aborto.
33
Essa associação adquire tons medievalistas quando
evoca o Éden serpentiforme, a Eva-Lilith e a visão de uma Natureza cruel e corrupta, guiada
por um Sa vencedor dos cósmicos embates entre o Bem e o Mal. Em contrapartida, a
energia, a firmeza, a coragem e a ousadia, elementos “típicos” do ativo universo masculino,
são transpostos para o feminino, assim como a resignação, a fraqueza, a dedicação, a
vacilação e a modéstia, elementos “típicos” do passivo universo feminino, são transpostos
para o masculino, acentuando no homem a sensibilidade decadentista, vitimada por um
depauperamento físico e moral, tornando-o, às vezes, delicado até à “fragilidade” feminina.
Quando suponho que a femme fatale talvez seja a transfiguração da mulher que tenha
“descoberto” o orgasmo, ao menos em seu universo íntimo, é porque sua figura é muitas
vezes elaborada como a de uma mulher hierática, enregelada na postura e no semblante, mas,
intimamente, mais propensa ao vício, à libertinagem a até à volúpia do crime (os
decadentistas-simbolistas abrem novamente o horizonte de requintadas formas de sexualidade
distorcida, atualizando uma das heranças sadianas para a modernidade).
34
Essa dialética do
33
“Na prostituição se manifesta o aspecto revolucionário da técnica (seu lado criativo e, sem dúvida, também o
seu lado revelador simbólico). ‘Como se as leis da Natureza, às quais o amor se submete, não fossem mais
tirânicas e mais odiosas do que as da Sociedade! O sentido metafísico do sadismo é a esperança de que a revolta
do homem alcançará tal intensidade, que intimará a natureza a mudar suas leis – quando as mulheres não
quiserem mais tolerar as provações da gravidez, os riscos e as dores do parto, e o aborto, a natureza ver-se-á
constrangida a inventar outra coisa, para que o homem se perpetue sobre a terra.’ Emmanuel Berl, Primeiro
Panfleto (“Europa”, 75, pp. 405-406). De fato, a revolta sexual contra o amor não tem origem somente em
uma vontade fanática, obsessiva de prazer, mas pretende ainda submeter a natureza e conformá-la a esta vontade.
Ainda mais nítidos se tornam os traços em questão, quando se considera a prostituição não tanto como um
elemento antagônico ao amor, mas sim como a sua decadência (sobretudo na forma cínica praticada nas galerias
parisienses, no final do século). O aspecto revolucionário desta decadência se insere, então, espontaneamente, na
decadência das galerias” (BENJAMIN, 2000, p. 242).
34
“Foram os românticos, tirando proveito das teorias do Divino Marquês, especialmente Baudelaire, que
fecundaram com enxertos psicológicos ou refinamentos pervertidos; e tudo de imaginável que poderá ser
80
“quente” e do “frio” atormenta o eu poético masculino. Como derreter esse gelo? E se ele
derreter, como sobreviver ao incêndio?
35
O arquétipo feminino da femme fatale é explorado de modo bastante complexo na obra
cesárica. A poética cesárica estende suas pernas em direções opostas uma séria e outra
irônica, jocosa –, e assim se equilibra e atesta um temperamento peculiar. O arquétipo
feminino da femme fatale também passará, em suas figurações, pelo crivo das modulações
desse temperamento joco-sério. O erotismo de humilhação tipicamente ligado ao fascinado se
firmará também no universo psicológico do eu poético cesárico. Todavia, esse erotismo é
experienciado de modo crítico, sofrendo resistência ao se chocar simbolicamente com
questões socioeconômicas ou então ao ser ridicularizado através de descrições exageradas ou
caricaturais ou ao se chocar com o ambiente provinciano da Lisboa da segunda metade do
século XIX. Comentarei o poema “Humilhações” por seu título remeter a esse tipo de
erotismo e para revelar como a exploração do arquétipo feminino da femme fatale permite a
exploração de questões socioeconômicas na obra cesárica, onde entrarão em cena outros tipos
de humilhações.
Primeiramente, é mister enumerar as características da figura feminina que permitem
tê-la como uma femme fatale: é deslumbrante; hipnótica; intimidadora; exasperada; frívola;
artificial; elegante; soberba. Ou seja, é física e psicologicamente uma femme fatale. E
enquanto seu comportamento é típico, típico é também o comportamento e a condição
psicológica do deslumbrado: mantém uma atitude passiva e acanhada, obscurecido por um
complexo de inferioridade perante a exuberância e a melhor condição socioeconômica da
mulher. Consciente dessa desigualdade, o eu poético assume ser um quase Jó, aceitando os
desdéns e idolatrando os ódios daquela que despreza as camadas socioeconomicamente
concebido nesse sentido encontrará expressão num dos muitos tardo-decadentistas, Remy de Gourmont” (PRAZ,
1996, p. 111).
Creio que a perversidade sexual, elemento subversivo da modernidade, às vezes, a meu ver, reveste-se de um
caráter conservador. O eu poético decadentista, quando sente sua típica sensibilidade impotente se deparar com o
poder da mulher, que no fin-de-siècle acentua ao paroxismo sua faceta devoradora, tem, às vezes, em um acesso
neurastênico, um desejo de violência (ora permanecendo no plano da imaginação, ora originando um homicídio
real) que, psicanaliticamente, corresponde ao desejo de dominação. Esse desejo me parece semelhante ao de um
burguês oitocentista que usa os pretextos de ordem do lar para espancar sua esposa que apresentou indícios de
insubmissão. O eu poético de Gomes Leal, bastante masoquista, em vários momentos toma ares
assustadoramente sádicos quando imbuído desse desejo de dominação masculina. Cf., por exemplo, os poemas
“O Amor do Vermelho (Nevrose dum Lord)”, “A um Corpo Perfeito” e, principalmente,Nevrose Nocturna”. A
vítima do eu poético de Gomes Leal geralmente se encontra no leito, é de uma alvura marfínea, nevada, que
contrasta com o vermelho do sangue. O poema “Fantasia dum Aborrecido”, por seu turno, deliciosamente
grotesco, contém uma violência que reage ao erotismo de humilhação através da evasão humorística (esse poema
se insere na “Quinta Parte” das Claridades do sul, intitulada precisamente “Humorismo”).
35
O eu poético decadentista, perante a femme fatale, prefere permanecer um hedonista contemplativo, até mesmo
porque sua ansiedade deságua no sentimento de impotência.
81
inferiores. A soberbia dessa femme fatale se dirige contra a pobreza. Sua elegância é
instrumento de ofensa. Assim, sua perversidade é socioeconomicamente orientada. A
idolatria, a resignação e a modéstia do eu poético o tornam ignorado e só, na penumbra,
batendo os dentes de terror. Oculta sua condição socioeconômica ocultando o que veste. Seu
sofrimento é tamanho que prefere a morte:
Via-a subir, direita, a larga escadaria
E entra[r] no camarote. Antes estimaria
Que o chão se abrisse para me abater.
Todavia, assume ostensivamente seu desvio erótico, opondo a libido excêntrica ao instinto
burguês de auto-preservação:
Como ela marcha! Lembra um magnetizador.
Roçavam no veludo as guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguês, me não entendas,
Fiquei batendo os dentes de terror.
O eu poético sente o desejo de observar a mulher com um binóculo mordaz:
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a idéia
De vê-la aproximar, sentado na platéia;
De tê-la num binóculo mordaz!
Aqui podemos suspeitar o seguinte: o eu poético está usando uma máscara para analisar esse
tipo de mulher como representante do universo elegante, da high society lisboeta. O
distanciamento propiciado pela máscara permite ao eu poético usar seu próprio desvio para
caricaturizar esse tipo de mulher através da ironia (Lembra um magnetizador) e fazer crítica
social. Mas deve ficar claro que o erotismo desviante sempre persistirá no universo
psicológico do eu poético cesárico. Ele tenta resistir criticamente, lançando mão também da
auto-ironia, caricaturizando seu próprio comportamento (Fiquei batendo os dentes de terror;
Ó minha pobre bolsa; Antes estimaria/Que o chão se abrisse para me abater) e se
transformando também em uma personagem.
36
Em contrapartida, ostenta, como dito, seu
desvio como afronta ao burguês. Poderia afirmar então que o eu poético, ao mesmo tempo em
36
“Ao incorporar no poema uma personagem dramática um “eu” que é ao mesmo tempo um instrumento
fluido de impressões ou sensações, e, indiretamente, um comentador crítico do mundo que o rodeia –, Cesário
incorpora no seu método realista um mecanismo de autocorrecção que revela a dupla posição do poeta como,
simultaneamente, parte da realidade dinâmica que observa e observador dinâmico da realidade de que é parte”
(MACEDO, 1986, p. 22).
82
que sofre seu desvio, transforma-o em instrumento de várias utilidades? Luneta de uma lente
só, binóculo mordaz: dispositivos de observação e análise crítica. Porém o eu poético está
ignorado e só, junto à porta, na penumbra. Isto é: produz seu próprio drama, ao passo em que
se representa um drama de Feuillet. Veste uma máscara e teatraliza seu erotismo em meio ao
universo elegante assim observado e criticado. Observemos, aqui, uma nota de Helder
Macedo extraída de Nós: uma leitura de Cesário Verde:
O novelista e dramaturgo Gustave Feuillet (1821-1890) devia o seu enorme
sucesso, no dizer maldoso de Flaubert, ao facto de retratar as classes altas
como as classes baixas as imaginavam e como as classes altas gostariam de
ser. A referência de Cesário ao “drama de Feuillet” é irónica: o público que
descreve no poema, incluindo a “pérola do Tom” (estrofe 7) é composto de
“personagens” de Feuillet. (MACEDO, 1986, p. 102)
Se levarmos em consideração esta nota no contexto do meu comentário, podemos afirmar que
o drama solitário experimentado pelo eu poético é produzido na contramão e mesmo para se
opor ao drama de Feuillet, isto é, ao drama vivido pela própria sociedade elegante lisboeta em
seu universo frívolo:
Na representação dum drama de Feuillet,
Eu aguardava, junto à porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé.
O eu poético, usando a oportuna scara, buscapersonagens que estejam à margem
do drama oficial os socioeconomicamente humilhados –, sutilmente aproximando-os de seu
palco. O drama não mais é solitário, pois já elencou suas dramatis personae:
Saí: mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o militar.
De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
- Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...
Nestas duas quadras, que são justaposições, o eu poético se aproxima psicologicamente
dos socioeconomicamente humilhados. Na primeira quadra o eu poético se engloba na
“plebe” espancada pela guarda, e sua lera é também em nome da “plebe”, compartilhada
83
com a “plebe”. A polícia, aparelho repressor do Estado, representa a manutenção da ordem
social. Assim posto, a cólera do eu poético é dirigida também contra a ordem social vigente.
Ele ataca um elemento superestrutural para que, abstraindo o “mero” aspecto local,
contingente, a cólera se dirija contra a infra-estrutura, a base da sociedade. A justaposição
dessa quadra produz um efeito de aproximação do eu poético com a plebe”, mas aproxima
também, semanticamente, a guarda da femme fatale. Sobressalta-se o eu poético ao observar
como a mulher marcha ao andar. Esse comportamento que denota artificialidade se atualiza
no contexto comportamental do aparelho repressor do Estado. A mulher também espanca a
“plebe”, mas com sua soberbia, com seu desdém. Incapaz de resistir diretamente ao fascínio
da mulher, o eu poético a ataca, então, indiretamente, e a ataca também em nome da “plebe”.
Nesse momento, o eu poético é um quase porque, seduzido, tenta resistir ao Demônio, sem
o encarar. Isto é: o erotismo de humilhação, sem deixar de sofrer resistência, mantém-se fixo
no universo psicológico do eu poético. É uma tensão insolúvel.
Na segunda quadra uma idosa surge subitamente na frente do eu poético, assim como
são súbitos os “recortes” de cenas justapostos nas composições cesáricas. Ela é descrita
através de elementos grotescos, sofrendo zoomorfização (olhos de coruja). Essa descrição é
efeito das péssimas condições econômicas a que está sujeita, opondo-se diametralmente à
descrição da femme fatale. A justaposição dessa quadra produz um efeito de oposição entre a
miséria e a riqueza. A idosa é rota, fanhosa, tem olhos de coruja (alusão à noite, à escuridão, à
penumbra em que o próprio eu poético aguardava a mulher); a femme fatale é elegante, perto
dela têm menos melodia as harpas e as rabecas, ela luz com seus brilhos.
Assim como teve dez filhos, o eu poético transforma, em dez quadras, a humilhação
erótica pessoal em um instrumento de revelação das humilhações sofridas pelos
socioeconomicamente inferiores, fruto da soberbia dos socioeconomicamente superiores, da
violência do aparelho repressor do Estado (irrisória em comparação com os dias atuais) e das
atitudes e comportamentos a que são sujeitos em função da sobrevivência:
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
- Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
A construção da figura feminina dominadora está bastante relacionada, em Gomes Leal,
com a visão de uma Natureza corrupta. A Natureza não é vislumbrada, pelo eu poético de
Gomes Leal, somente no plano da physis, mas abrange a esfera do kosmos. Misticamente,
84
uma tentativa, nessa expansão, de, em um jogo simbólico de correspondências, associar o céu
à Terra. Essa tentativa revela uma aspiração. Na evocação da Queda, poder-se-ia crer que Satã
derrotara Deus, condicionando o ser humano ao pecado. O Mal, por conseguinte, perseguirá a
humanidade, aliciando-a em todos os seus percalços, isto é, o Mal se torna ontológico,
inerente à natureza humana, a tudo que passa pelo crivo do Homem; e se torna ôntico,
corrompendo o mundo das coisas, que nasce, na verdade, corrompido. O Homem, como
nós nos conhecemos, e o mundo em que vivemos é fruto do Mal. O Mal do mundo é algo
“inexperienciável”, isto é, é a priori. As correspondências revelam a aspiração humana de
reconstruir o Éden e de retornar ao acolhedor seio da divindade. Talvez seja esta a concepção
de mundo do eu poético de Gomes Leal.
37
O Mal se associará, assim, ora ao Homem e à
Natureza, ora à cidade, a todo o universo burguês e às figurações femininas, ou seja, essa
concepção de mundo também adquire orientações políticas, de classe e de gênero.
Observemos essa associação entre o Mal e a mulher no soneto “A Camélia Negra”, abaixo
transcrito:
A CAMÉLIA NEGRA
Por isso vos espera
O dia da vingança!
Sousa Caldas
1- Como as urnas das rosas mal fechadas,
2- Cujos aromas bóiam no poente,
3- Quando passas, nossa alma aspira e sente
4- As sensações das ilhas ignoradas.
5- E o teu cabelo, ó lúbrica serpente!
6- Rescende todo a ungüentos e a pomadas,
7- Como as múmias que habitam no Oriente,
8- Debaixo das pirâmides sagradas.
9- Mas que te serve e val’ tanta fadiga,
10- Ó pó doirado e vão?... e o mundo diga:
11- Meu leito, meu pomar de sensações!...
12- Se o vento que hoje o teu sorrir perfuma
13- Na tua cruz gargalhará: - Mais uma
14- Das lobas maternais das gerações!
Neste soneto, a mulher adquirirá um caráter universal, mas associando-se à imagem de
uma Eva corrupta e da prostituta.
37
Essa concepção de mundo tem, provavelmente, raízes baudelairianas. Apesar de persistente, poemas que
problematizam essa concepção, o eu poético sendo tomado, às vezes, por uma revolta nietzschiana.
85
A mulher deste soneto é, antes de mais nada, integrante do rol das passantes. Talvez
uma passante enlutada, ao modo parisiense, se considerarmos o polissêmico adjetivo “negra”
do título uma hipálage. Enlutada, vaidosa, frívola (Ó doirado e vão), fascinante,
deflagradora de sensações. A expressão ilhas ignoradas” (verso 4) denota, indiretamente, a
origem misteriosa dessa mulher, assim como a insólita comparação com as múmias
acrescenta-lhe um tom fúnebre, espectral.
38
Arrastada pela multidão, ela arrasta consigo a
História e o momento anterior à História, o momento anterior a qualquer momento. Vejamos
como, no curso do soneto, ela se torna um símbolo, adquirindo um caráter universal.
O contato dessa mulher com o mundo natural é a todo momento reiterado através de
metáforas e comparações. Ela pode ser aspirada como os aromas das rosas mal fechadas, e as
sensações que deflagra o das ilhas ignoradas. É um pomar de sensações. O vento perfuma
seu sorrir. Esse contato íntimo com o mundo natural a macula com o anátema da animalidade,
zoomorfizando-a, fazendo-a sofrer metamorfoses: ora lúbrica serpente ora loba.
A aproximação da mulher com a serpente nos remete à velha questão do pecado
original, em que é tradicional acusar Eva de transgredir os desígnios divinos, despertando a
sensualidade no homem.
39
Pensando silogisticamente, coincidiríamos com a visão de mundo
do eu poético de Gomes Leal: a serpente é aproximada da mulher. Satã é aproximado da
serpente. Portanto, a mulher também é aproximada de Satã.
A aproximação com a loba é singular: uma das lobas maternais das gerações. O
substantivo latino lupanar (“lupanar” na tradução) se desenvolve a partir do substantivo
lupa(“loba” na tradução) que, no sentido figurado, significa prostituta. As lupae (“lobas”
na tradução) eram as prostitutas. Se permanecermos na origem latina dos vocábulos,
poderíamos energizar o sentido do adjetivo “lúbrica” (verso 5) no contexto do soneto: o
adjetivo latino lubrico (“lúbrico” na tradução) tem, como um dos seus sentidos figurados, a
expressão “que causa a queda de”. O contexto de raízes bíblicas do soneto nos permitiria, em
função das novas orientações que a linguagem poética confere aos vocábulos, pensar nessa
mulher como precisamente a serpente que causou a Queda do Homem? A lúbrica serpente é
exatamente a serpente do Éden, uma das figurações de Satã. Essa mulher se torna, então, uma
das próprias figurações de Satã, isto é, do Mal. Uma encarnação do próprio Mal. O “pomar de
sensações” (verso 11) é o pomar do Éden, já decaído pelas sensações luxurientas provocadas
38
“[...] ideal exótico e ideal erótico caminham lado a lado e também este fato constitui uma outra prova de uma
veracidade bastante evidente, qual seja, o exotismo é normalmente uma projeção fantástica de uma necessidade
sexual” (PRAZ, 1996, p. 185-6).
39
“A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir
a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente” (GÊNESIS
(3,6), 1988, p. 51).
86
pela Mulher. É o Éden serpentiforme. Essa mulher é o leito em que o mundo se deita para
revigorar as sensações que herdou, para revigorar o Pecado. É a prostituta. A expressão “loba
maternal das gerações” abraça, nesse momento, todas essas associações: “loba” se refere à
prostituta, o adjetivo “maternal” evoca a Eva corrupta, mãe da humanidade e de todos os
pecados, e “gerações” abrange a História da humanidade. E essa encarnação se no seio da
cidade. O Mal, a Mulher e a Cidade.
40
O título: “A Camélia Negra”. Leio-o, nesse momento, como um epíteto que define a
mulher do soneto. Exprime o contato íntimo com o mundo natural e com o Mal. A camélia
tem origem asiática, principalmente das regiões japonesas e coreanas. É uma flor exuberante e
ornamental. O adjetivo negra” suscita agora várias leituras. Além de exprimir o Mal, a
Natureza corrupta, pode, como já dito, referir-se ao traje negro pico das passantes
parisienses. Porém arrisco mais uma hipótese. Uma hipótese que prenuncia a associação com
a prostituta. A camélia é de cor branca, rosa ou vermelha, mas se suas talas forem roçadas,
manchas escuras comprometem seu visual. A camélia negra é, assim, uma típica flor do mal
uma beleza maculada pelo insistente toque do vício.
A mulher desse soneto sofre um processo de universalização semelhante ao sofrido por
Salomé perante a sensibilidade místico-erótica de des Esseintes. A prostituição da figura
feminina evoca, aqui, o Éden decaído e a orientação satânica da Natureza. Todavia, não
uma presença forte do típico erotismo de humilhação. O magnetismo, a poderosa capacidade
de deflagrar sensações, a idolatria que o mundo consagra à Mulher não alcança o ponto em
que o Homem se resigna servilmente aos caprichos de seu objeto de desejo. O eu poético,
crítico e furibundo, é consciente do poder que a Mulher pode exercer sobre suas faculdades.
Ele, premeditando, constrói esse símbolo com o intuito de desconstruí-lo. Ao doar à mulher
um caráter universal, associando-a à mais antiga das mulheres, o eu poético lhe concede o
trunfo metafísico de exercer domínio sobre todos os homens, conservando, potencialmente, a
relação de Adão e Eva.
41
Após integralizar esse processo simbólico, o eu poético faz com que
40
Há uma passagem bíblica em que é exemplar a inter-relação da Mulher, da Cidade e do Mal: “A mulher estava
vestida de púrpura e escarlate, adornada de ouro, pedras preciosas e pérolas. Tinha na mão uma taça de ouro,
cheia de abominação e de imundície de sua prostituição. Na sua fronte estava escrito um nome simbólico:
“Babilônia, a grande, a mãe da prostituição e das abominações da terra. [...] A mulher que viste é a grande
cidade, aquela que reina sobre os reis da terra” (APOCALIPSE (17, 4-5, 18), 1988, p. 1571-2). Cumpre lembrar
que na linguagem dos profetas, a prostituição designa antes de tudo as corrupções morais da idolatria.
41
Apesar de Deus impor à mulher que seja submissa ao homem, é ela que, ludibriada pela serpente, leva este à
perdição através da satisfação de seu desejo, qual seja, comer o fruto proibido.
Os vocábulos que rimam nos versos de 1 a 8 são curiosos em relação ao contexto bíblico do soneto. A vogal
tônica de todos são “a” ou “e”, de “Adão” e “Eva”. As últimas letras de cada vocábulo que rima no curso de todo
o soneto também provocam interesse: todos terminam com “a”, “e” ou “s”, de “Adão”, “Eva” e “serpente”.
87
a mulher desça mais rente ao chão, onde a finitude possa, sardônica, preparar também o seu
leito, intentando o eu poético o crepúsculo de um ídolo. O eu poético nega, quer enterrar a
figura dominadora da mulher que persiste no imaginário masculino. Resta saber o motivo
dessa resistência. Purificar a imagem da mulher, desvalorizando sua versão corrompida,
prostituída, isto é, depreciativa? Mas ao se opor a essa imagem, que é também a de uma
mulher dominadora, não estaria buscando retomar a imagem conservadora da mulher-mãe?
Ou não necessariamente? Ao enterrar a mulher corrupta, estaria tentando resistir ao gosto pelo
pecado que, na sua visão de mundo de raízes cristãs, persiste no coração da humanidade? É
difícil escolher integralmente uma das suposições.
Não obstante, o erotismo de humilhação marca forte presença no universo psicológico
do eu poético de Gomes Leal. Transcrevo abaixo o soneto “A Lady” como exemplo:
A LADY
Aquela que me tem, agora, presa
Minha alma, meus sentidos, meus cuidados...
E me faz sonhar sonhos desmanchados,
É uma altiva e olímpica inglesa.
Nunca tipo ideal de mais pureza
Vi nos góticos quadros mais prezados.
Seus doces olhos castos e velados
Têm um ar, infinito, de tristeza.
Tem uns gestos de deusa que caminha,
Fronte grega, e um ar grande de Rainha,
E umas mãos, como as ladies de Van Dick...
Segue-a sempre um lacaio, e tristemente,
É por ela que eu morro, lentamente...
E ponho no bigode cosmétique.
O desfecho meio irônico, humorado (esse soneto se insere na “Quinta Parte” das
Claridades do sul, precisamente intitulada “Humorismo”), não invalida o erotismo de lacaio
sofrido pelo eu poético. A lady, a inglesa é típica na poética cesárica.
42
O poema “Fantasia dum Aborrecido” é, por seu turno, uma humorada reação ao
erotismo de humilhação. Humorada, porém violenta. O erotismo de humilhação é sublimado
através do humor negro (esse poema também se insere na Quinta Parte” das Claridades do
42
Cf. os poemas “Deslumbramentos” e “Frígida”, de Cesário. Em Cesário, a inglesa se funde com a femme
fatale, fusão que possibilita a equivalência simbólica do domínio inglês principalmente sobre o Portugal agrário,
representado pelo eu poético servil.
88
sul). Transcrevo abaixo os quartetos de reação mais sádica, dirigidos pelo eu poético
aborrecido à frívola e desdenhosa femme fatale:
Quando morreres, meu nenúfar dum dia,
Açucena que pus no peito a abrir,
Farei da tua tez fina e macia
- Um prosaico barrete de dormir.
Farei de tua trança azevichada
Um cachenez, por causa dos catarros.
E será no teu crânio, ó minha amada!
- Que eu deitarei as pontas dos cigarros.
Dessa carne farei abertas rosas,
Que enganarão as brancas borboletas...
E os teus olhos – em jarras preciosas
- Olharão, como duas violetas.
Farei da boca um cravo, que no fraque
Porei sempre que eu saia de passeio.
E mandarei fazer um almanaque
- Na pele encadernado do teu seio.
E então tu serás minha, ó traças negras!
Quebrados, sensuais, olhos celestes,
Quando fores, nas plantas verdes-negras,
- Morar debaixo, um dia, dos ciprestes!...
O universo psicológico do eu poético de Gomes Leal é fortemente marcado tanto pelo
masoquismo quanto pelo sadismo. Seu sadismo é digno dos grandes psicopatas. Neste caso,
bem-humorados.
89
04. Cai a Máscara
“Despersonalização” é uma expressão que designa diversas e variadas atitudes e estilos.
Leyla Perrone-Moisés (2003, p. 154) elabora em Altas literaturas um breve histórico de um
valor comum de “uma certa modernidade literária” a impessoalidade. Esse valor é uma
manifestação do processo que estou designando despersonalização. Seguindo os passos de
Leyla Perrone-Moisés, afirmo que a impessoalidade era um preceito da épica, e que na
lírica romântica, “a inspiração era uma forma de impessoalidade mágica a serviço da
expressão pessoal” (PERRONE-MOISÉS, 2003, p. 166). A impessoalidade desses poetas teve
fundamentação nas crenças sibilinas e mágicas da Antigüidade clássica. A partir do fin-de-
siècle, a impessoalidade do poeta se opõe a essa expressão pessoal romântica, entendida como
transbordamento sentimental.
43
A impessoalidade do poeta, a partir do fin-de-siècle, propõe,
então, um apagamento do sujeito em proveito da linguagem, que reassume seu caráter
encantatório e simbólico esvaziado pelos realismos oitocentistas. Mas a
[...] impessoalidade do poeta moderno não é um desaparecimento do sujeito,
análogo à despersonalização dos indivíduos na sociedade massificada. É o
sujeito imaginário (falso) da expressividade egocêntrica que é posto em crise
na literatura moderna, em razão de uma subjetividade alargada que, ao
contrário de anular, aumenta a consciência e a responsabilidade do escritor.
(PERRONE-MOISÉS, 2003, p. 167)
A valorização técnica empreendida pela modernidade fin-de-siècle é que possibilita a
impessoalidade. Por isso creio que o valor comum impessoalidade” deva ser pensado
juntamente com o valor comum “maestria técnica”, atentando para o fato de que a
[...] valorização da cnica, na escrita literária moderna, não é [...] a
mimetização a-crítica do tecnicismo e da eficiência exigidos pela sociedade
industrial, mas contrapõe-se a esse mesmo tecnicismo, na medida em que a
obra literária não é utilitária, visa a fins qualitativos e não quantitativos.
(PERRONE-MOISÉS, 2003, p. 156)
43
Não obstante na modernidade romântica abundarem manifestações de expressão da vivência, é também o
momento de uma crença, oriunda do Idealismo alemão, de que a linguagem possui uma misteriosa luz ou um
poder próprios.
90
A valorização técnica da arte moderna é a crítica do tecnicismo moderno, na medida em que a
função da arte se torna revelar e compensar o “desencantamento” das imagens do mundo que
vão entrando em processo de desalojamento pelo perfil padronizador do tecnicismo.
justificativas de cunho sociológico para a impessoalidade do poeta moderno.
Hamburger liga a despersonalização da linguagem a um procedimento de oposição ao
individualismo da sociedade burguesa moderna. Individualismo que, podemos inferir,
encontra-se presente na expressividade romântica. Hamburger, na verdade, descrê na
realização de uma poesia despersonalizada no sentido de anulação do sujeito, que o
“homem nunca pode ser excluído da poesia escrita por seres humanos, por mais impessoal ou
abstrata” (HAMBURGER, 2007, p. 46). A despersonalização, ou a impessoalidade, podem
ser buscadas em prol de distintos efeitos. Alguns poetas realmente tentaram, em certos
momentos, submergir em um abismo esquecido do tempo e do espaço onde somente a
linguagem existe para monologar consigo mesma, mas a despersonalização é mais proveitosa
quando se almeja um alargamento da subjetividade que instrumenta um modo especial de se
haver com as imagens do mundo e com os afetos.
A primeira obra que teoriza sistematicamente o procedimento da despersonalização da
arte moderna é A desumanização da arte (1925), de Ortega y Gasset. A expressão
“desumanização” designa o desprezo pelo enfoque humanista ou a fuga do ponto de vista
humano na arte. Os paradigmas da desumanização artística por ele analisados são Debussy,
Mallarmé e Picasso.
Gasset pretende, nessa obra, descrever uma arte que estava surgindo no primeiro quartel
do século XX,
que tem seus prenúncios localizados no fin-de-siècle. Uma arte que ele chamou
de arte artística, por ser somente compreensível por indivíduos dotados de uma sensibilidade
singular, uma sensibilidade que compreende os recursos artísticos que não são os
genericamente humanos. Estamos diante de uma concepção “aristocrática” da arte. E, a
propósito, uma concepção tão ou mais parcial que a que terá Hugo Friedrich em relação à
poesia moderna, isto é, uma fixação em somente uma linha de desenvolvimento da arte
moderna, qual seja a da pureza e do hermetismo, ainda que Gasset assuma, sem
aprofundamento, que seja impossível a realização de uma arte estritamente pura. O que ele
tenta demonstrar é uma indubitável tendência à purificação artística, que irá eliminar
progressivamente os elementos humanos de seu âmbito. Essa tendência da arte de que fala
Gasset se liga a outras, a saber: o caráter lúdico, uma ironia essencial, a valorização técnica e
a intranscendência. Mas é importante se ter em mente que a desumanização de que fala Gasset
91
não é somente o procedimento de tornar o elemento humano ausente, mas o de transfigurar a
realidade humana até o ponto em que esta se torne irreconhecível, triunfando” sobre ela. A
desumanização é, no fundo, uma tentativa de arruinar a realidade humana; “construir algo que
não seja cópia do “natural” e que, não obstante, possua alguma substantividade” (GASSET,
2005, p. 43). Essa transfiguração é mais intensa segundo a seguinte hierarquia: a ordem das
pessoas, a dos seres vivos e a das coisas inorgânicas, sendo a primeira ordem a mais
violentada por ser o elemento mais humano da realidade humana ou do mundo habitual.
Segundo Gasset, isso é bem evidente na música e na poesia. Desta é Mallarmé o primeiro
desumanizador, que buscou obstinadamente a “pura voz anônima” (GASSET, 2005, p. 55), a
despeito de persistentes “vibrações e estremecimentos românticos” (GASSET, 2005, p. 55).
Hugo Friedrich analisa, em Estrutura da lírica moderna (1956), a despersonalização ou
desumanização presentes na tríade fundadora da modernidade: Baudelaire, Rimbaud e
novamente Mallarmé.
É “despersonalização” a expressão que ele utiliza ao tratar da poética baudelairiana.
“Despersonalização” designa, na poética baudelairiana, segundo Hugo Friedrich, a quebra da
unidade de poesia e pessoa empírica, unidade como a que havia pretendido um certo
Romantismo. E Baudelaire seria o primeiro nesse sentido com As flores do mal (1857),
substituindo ao sentimentalismo pessoal uma inteligência poética dominada pelo imperativo
de uma espécie de fantasia autônoma. Algo já buscado por Poe. Mas essa despersonalização
baudelairiana não é ainda a desumanização de que fala Gasset. A despersonalização de
Baudelaire o nega o humano, mas sim tende a mitigar a presença da subjetividade pessoal,
que sofre um alargamento. É a impessoalidade que busca “qualquer possível estado de
consciência do homem” (FRIEDRICH, 1978, p. 37). Se fizermos uma diferenciação
conceitual entre as expressões “despersonalização” e “desumanização” diferenciação que
provavelmente não deva ser levada literalmente poderia dizer que a primeira se refere a um
alargamento da subjetividade, e a segunda, a uma (utópica) anulação dela. A primeira seria a
que permite uma forma singular de comunicação; a segunda seria aquela que me suscita
dúvidas em relação a pretender comunicar algo, a menos que esse déficit de comunicação seja
um ataque ironicamente velado ao espírito secularizado da sociedade moderna. A
comunicação da, talvez, impossibilidade de comunicação. o a negatividade da
comunicação, mas a comunicação da negatividade.
Ao tratar das poéticas rimbaudiana e mallarmaica, Hugo Friedrichutiliza a expressão
de Gasset: “desumanização”.
92
O eu” de Rimbaud é planetário, transforma-se em anjo e em mago” (FRIEDRICH,
1978, p. 69), estende-se a todas as formas de existência, é tudo e é nada, como o Diabo em
Grande sertão: veredas. A transfiguração é demasiadamente intensa. Até os sentimentos e
emoções, que são inevitáveis em qualquer poesia, são também “desumanizados”, pois que tão
indeterminados e indefinidos que dificilmente os reconhecemos. A realidade humana ou o
mundo habitual tendem a se tornar irreconhecíveis.
O eu” de Mallarmé é semelhante a um budista tibetano. Busca anular-se e submergir
no vazio. O Nada (o Nada ludicamente concertado na linguagem enquanto fruto da
preambular crise da metafísica) é o objetivo da poesia mallarmaica, uma poesia que
represente somente a ausência de poeta e de leitor, “pura voz anônima” (GASSET, 2005, p.
55) que monologa consigo mesma. A poesia pura, pura e simplesmente.
A despersonalização que até agora expus é, de uma forma ou de outra, um
mascaramento do “eu” na malha discursiva, uma camuflagem do “eu” nas sendas da
linguagem, que pressupõe a valorização dos recursos técnicos da composição poética; ou é a
transfiguração da realidade humana ou do mundo habitual. uma outra espécie de
despersonalização, que mascara o “eu” em função da fermentação de outros “eus”, ou que
reivindica como diretriz a afirmação de que “Eu é um outro” (RIMBAUD, 2003, p. 79).
44
Essa despersonalização pode também ser entendida como um alargamento da subjetividade,
mas seu efeito é mais dramático, pois o “eu” constrói personae, troca a vestimenta, muda de
pensamento e de sensibilidade a cada novo contexto, assume posturas diversas a cada novo
ambiente.
45
O poema é um palco, o eu” se desnuda nos bastidores. Mas os bastidores
interessam quase nada para essa faceta da modernidade. Mais ainda: os bastidores são
contaminados pela atmosfera do palco.
Benjamin (2000, p. 94) perscruta o motivo desse gosto moderno pelas personae em
Paris do Segundo Império: “[...] o herói moderno não é herói – somente representa o papel do
herói. A modernidade heróica se revela como uma tragédia onde o papel do herói está
disponível.”. A modernidade não tem um verdadeiro emprego para o tipo heróico. Sua
derradeira encarnação é o dandy, que flana como o flâneur.
46
Benjamin transcreve duas
44
Essa famosa e paradoxal afirmação categórica me suscita várias interpretações: a prematura descoberta e
valorização das camadas inconscientes, a consciência de que existe o inconsciente; a dramatização do “eu”; o
misterioso desejo de dilatar a própria subjetividade, aspirando uma nova consciência, uma nova sensibilidade.
45
o seria pertinente repensarmos, aqui, o conceito de despersonalização? A construção de personae para o
“eu” não condiria mais com um processo de, digamos, repersonalização, que o que o “eu” faz é se recriar
enquanto um novo “eu”, e não se mascarar ou se camuflar na trama discursiva?
46
Em casos mais extremos e até patológicos, o dandy se isola como des Esseintes.
93
quadras do poema baudelairiano “Os Sete Velhos”, que interconectam atuação e heroísmo no
cenário moderno da cidade:
Un matin, cependent que dans la triste rue
Les maisons, dont la brume allongeait la hauteur,
Simulaient les deux quais d’une rivière accrue,
Et que, décor semblable à l’âme de l’acteur,
Un brouillard sale et jeune inondait tout l’espace,
Je suivais, roidissant mes nerfs comme un héros
Et discutant avec mon âme déjà lasse,
Le faubourg secoué par les lourds tombereaux.
(BAUDELAIRE, 1985, p. 330)
Certa manhã, quando na rua triste e alheia,
As casas, a esgueirar-se no úmido vapor,
Simulavam dois cais de um rio em plena cheia,
E em que, cenário semelhante à alma do ator,
Uma névoa encardida enchia todo o espaço,
Eu ia, qual herói de nervos retesados,
A discutir com meu espírito ermo e lasso
Por vielas onde ecoavam carroções pesados.
47
O herói moderno é uma representação que representa a modernidade, isto é, o espaço
avulso do herói.
verificamos como, em “O Sentimento de um Ocidental”, o eu poético cesárico um
flâneur que não adota uma postura aristocrática e onipotente – busca alargar sua subjetividade
alargamento reforçado pelo uso de uma linguagem que evita os transbordamentos
expressivos românticos, que egocentrizam em demasia os sentimentos para apelar à
consciência de uma coletividade integrada. Comentarei nesse momento o poema Cinismos”,
no qual o “eu” constrói uma persona romântica para, na verdade, parodiar a exposição do
“eu” e o transbordamento expressivo. Essa paródia se reflete também no conteúdo formal,
onde haverá uma teatralização do “eu” na dinâmica lúdica da própria composição e disposição
espacial dos vocábulos. “Cinismos”, abaixo transcrito, é exemplo de um poema de teor
dramático muito elevado:
CINISMOS
47
Tradução de Ivan Junqueira, encontrada na seguinte referência: BAUDELAIRE, C. As flores do mal. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
94
1- Eu hei-de lhe falar lugubremente
2- Do meu amor enorme e massacrado,
3- Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.
4- Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado,
5- Chamar-lhe minha cruz e meu Calvário,
6- E ser menos que um Judas empalhado.
7- Hei-de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
8- E desvendar a vida, o mundo, o gozo,
9- Como um velho filósofo lendário.
10-Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso,
11- Os pegos abismais da minha vida,
12- E hei-de olhá-la dum modo tão nervoso,
13- Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,
14- Cheia de dor, tremente, alucinada,
15- E há-de chorar, chorar enternecida!
16- E eu hei-de, então, soltar uma risada...
A poesia moderna é cínica. Com o advento de certa modernidade poética, os autores
começam a valorizar a consciência de que a arte é fingimento, como nos revela explicitamente
o Fernando Pessoa ortônimo, em seu famoso poema “Autopsicografia”:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
O adjetivo substantivado “fingidor”, do verso 1, sintetiza todo o campo temático do
poema, pois podemos cindi-lo em um verbo “fingir” e em um substantivo “dor”. O
poeta finge a dor, é um fingidor e, mais especificamente neste caso, um “finge-dor”. Tal
hipótese torna-se mais perceptível se conferirmos que o verso 1 rima com o verso 3 através do
substantivo dor” que, de qualquer modo, revela-nos que ele se encontra insuflado no
vocábulo com o qual rima. Com este indício e, evidentemente, com a atenção voltada para o
contexto do poema, podemos praticar mentalmente a cisão.
O eu poético cesárico é igualmente, aqui, um confesso fingidor que finge dor. Procura
desmistificar o sentimentalismo romântico quando confessa tratar as paixões picas do
Romantismo – amor, fé, tristeza – de modo puramente lúdico, estético:
E eu hei-de, então, soltar uma risada...
95
Ele expõe o peito descarnado, abre o seu íntimo sacrário, mostra os pegos abismais de
sua vida para a musa, exatamente como os românticos, mas com o intuito de parodiar o
discurso e o temperamento deles. O “eu” se expõe para ironizar a musa romântica que é cheia
[...] de dor, tremente, alucinada,
E há-de chorar, chorar enternecida!
Ao se sentir constrangida com o sofrimento amoroso do eu poético, ela se opõe às metálicas
aristocratas, às áridas Messalinas, à femme fatale despeitada, cruel e egoísta de outros
poemas cesáricos. Isto é: opõe-se à musa moderna.
As paixões, expostas de modo exacerbado pelos românticos, vêm de um “eu”
teoricamente real. O pronome “eu” surge logo no início do verso 1 e se estende elipticamente
nos versos 4, 7, 10 e 12, sendo nos três primeiros intuitivamente localizado na mesma
situação do pronome do verso 1. Surge graficamente mais uma vez no verso 16. Isto é, o “eu”
reafirma sua presença por toda a composição, excetuando a quinta estrofe, na qual é mais
valorizado o “outro”, ou seja, “ela”, a musa. O “eu” dos versos 4, 7 e 10, por ser o sujeito
oculto das orações, possibilita a concretização da anáfora “Hei-de” entre eles. O “eu”
exposto literalmente apenas nos versos 1 e 16 dá início e fecha o poema.
Ora o seria uma ironia essa presença tão ostensiva e calculada do eu”, que repetidas
vezes se revela e se oculta nas formas do poema (através da anáfora, por exemplo)? Tal
sistematização não ofuscaria o caráter espontâneo do “eu” romântico, dando indícios do “eu”
mascarado da modernidade poética de que estou tratando?
Se quisermos nos aprofundar ainda mais um pouco na análise da disposição desse “eu”,
relacionemos os versos 1, 12 e 16. Este último é, antes da vírgula, a soma dos vocábulos mais
explicitamente relacionados ao “eu” dos versos 1 e 12. O “Eu hei-de” do verso 1 e o “E hei-
de” do verso 12 se fundem na síntese “E eu hei-de” do verso 16.matemática na disposição
desse “eu”. Ele passa pelo filtro da razão.
“Cinismos” representa uma paródia s-romântica. Mas as provocações não param por
aqui. Deparamo-nos com ainda mais duas: uma delas diz respeito ao tipo de estrofe utilizada.
O terceto é uma forma tradicional de origem românica. O terceto aqui utilizado é o italiano,
no qual a ligação da rima se de grupo para grupo (ABA, BCB, CDC...), deixando a estrofe
não fortemente acentuada. Dante utilizou este tipo de terceto para escrever a Divina comédia.
O Romantismo é comumente acusado de ser mais afrouxado no aspecto formal das suas
composições. O eu poético cesárico alude a esta acusação, e ratifica-a, ao compor um poema
96
com uma estrofe tradicional que, aqui, é muito bem elaborada, composta de modo
arquitetônico, primando pela organicidade” do tratamento, não deixando nada nas mãos do
acaso.
A outra provocação é oriunda do verso 16. Por que este se encontra solitário? Podemos
perceber que outro terceto italiano poderia ser composto, pois o substantivo “risada” rima
com o adjetivo “alucinada” (verso 14); e significativas reticências no final do verso, que
exprimem a expectativa de algo que poderia continuar. Todavia, é neste verso que o poema
não poderia mesmo continuar, pois a farsa se revela. Qual vocábulo ousaria rimar com a
“risada” iconoclasta, após esta fazer cair a máscara do “eu” supostamente sincero?
Na passagem para a modernidade pós-romântica, certos elementos românticos
exposição do “eu”, transbordamento expressivo podem ser utilizados com intenção
paródica. Enquanto precursor dessa modernidade poética em Portugal, Cesário, ao expor um
“eu”, falseia ironicamente o transbordamento expressivo para afirmar, por seu turno, o
cinismo moderno.
A despersonalização a que adere o eu poético de Gomes Leal é mais significativamente
aquela que designei repersonalização. perambulamos por Lisboa ao lado de um D. Juan
libertino e romântico quando comentei o soneto A Cidade”. Mas a persona mais cara do eu
poético de Gomes Leal é a do dandy, enlevado que era pelo aristocracismo dos poetas fin-de-
siècle. No poema “A sua Câmara” que comentarei – verifico uma das mais belas, poéticas e
originais manifestações do dandy, pois é uma das mais mascaradas: uma flor se torna uma
metáfora do dandy, isto é, uma máscara (metáfora) esconde outra máscara (dandy).
O dandysme, na existência do mundo habitual, não deixa de ser uma espécie de
compensação do déclassement sofrido pelo artista no século XIX (principalmente a partir de
1830) em virtude do início da consolidação da cultura burguesa. A aristocracia está
declinante, por isso se transforma em um tipo ideal de nobreza, guiado pelo imperativo da
distinção e do raffinement (moral, intelectual, artístico, etc.) em função de um tipo ideal de
comportamento manifestar rebeldia contra o universo burguês de modo depurado. O
dandysme é uma espécie de culto de si mesmo, sendo a toilette e a beleza material somente a
manifestação externa da superioridade do espírito aristocrático do dandy. A forma de reação
mais direta ao sistema econômico burguês passa a ser a tendência a cultuar o ócio, associando
o inútil ao Belo. Essa tendência supõe uma marca de independência interior, oposta às
97
necessidades irracionais do homem moderno, e esse ócio tem uma função: observar e delatar a
modernidade e suas tensões.
48
“A sua Câmara” inicia com a seguinte quadra:
No ar calado e bom da câmara fechada,
Como um ninho d’amor casto e silencioso,
Um grande cravo branco ergue o caule cheiroso,
Numa jarra de jaspe antiga e cinzelada.
O cravo branco é uma metáfora do dandy, como se verá no curso do poema. Sua cor
é flagrante, pois o branco é associado à pureza. Essa associação condiz com o ar casto e
silencioso do quarto. Do quarto fechado. A moralidade dandy é complexa. A tendência do
dandy à retidão e à castidade poderia correr o risco de se confundir com a ideologia burguesa.
Essa tendência realmente é fruto de uma cosmovisão muito carregada de imaginário cristão,
ao menos se pensarmos no dandysme parcialmente teorizado por Baudelaire. A natureza
ôntico-ontológica do Mal encontra no dandy um opositor e combatente, que através da razão,
da consciência crítica busca o aperfeiçoamento dos instintos, ao menos o refreamento dos
mais prejudiciais.
49
Se essa tendência à moderação vai ao encontro da ideologia burguesa,
devemos nos lembrar que a burguesia tomou de empréstimo preceitos da ética aristocrática.
Mas para o dandy a burguesia é hipócrita, e apregoa exatamente aquelas atitudes que ela não
pratica, ou pratica o seu oposto. Por outro lado, o dandy o consegue atingir a, digamos,
santidade, pois ora ou outra respira ares de uma atmosfera satânica para tentar mitigar o dio
48
Para a compreensão da figura do dandy, uma das leituras essenciais é O pintor da vida moderna, obra
baudelairiana de fundamental importância para o rol de definições de modernidade artística.
49
“A maior parte dos erros relativos ao belo nasce da falsa concepção do século XVIII relativa à moral. Naquele
tempo a natureza foi tomada como base, fonte e modelo de todo o bem e de todo o belo possíveis. A negação do
pecado original contribuiu em boa parte para a cegueira geral daquela época. Se todavia consentirmos em nos
referir simplesmente aos fatos visíveis, à experiência de todas as épocas e à Gazette des Tribunaux, veremos que
a natureza não ensina nada, ou quase nada, ou seja, que ela obriga o homem a dormir, a beber, a comer e a se
defender, bem ou mal, contra as hostilidades da atmosfera. É ela igualmente que leva o homem a matar seu
semelhante, a devorá-lo, a seqüestrá-lo e a torturá-lo; pois mal saímos da ordem das necessidades e das
obrigações para entrarmos na do luxo e dos prazeres, vemos que a natureza pode incentivar apenas o crime. É
a infalível natureza que criou o parricídio e a antropofagia, e mil outras abominações que o pudor e a delicadeza
nos impedem de nomear. É a filosofia (refiro-me à boa), é a religião que nos ordena alimentar nossos pais pobres
e enfermos. A natureza (que é apenas a voz de nosso interesse) manda abatê-los. Passemos em revista,
analisemos tudo o que é natural, todas as ões e desejos do puro homem natural, nada encontraremos senão
horror. Tudo quanto é belo e nobre é o resultado da razão e do cálculo. O crime, cujo gosto o animal humano
hauriu no ventre da mãe, é originalmente natural. A virtude, ao contrário, é artificial, sobrenatural, que foram
necessários, em todas as épocas e em todas as nações, deuses e profetas para ensiná-la à humanidade
animalizada, e que o homem, por si , teria sido incapaz de descobri-la. O mal é praticado sem esforço,
naturalmente, por fatalidade; o bem é sempre o produto de uma arte. Tudo quanto digo da natureza como
conselheira em matéria de moral, e da razão como verdadeira redentora e reformadora, se pode transpor para a
ordem do belo.” (BAUDELAIRE, 2002, p. 874-5)
98
de uma existência intimamente solitária através de sensações inóspitas, extravagantes.
Todavia essas sensações são esteticamente fruídas, são de preferência perseguidas no universo
do sonho e da arte, e não no universo da existência habitual.
50
Afinal, o dandy vive em um
mundo próprio, em uma tour d’ivoire mental erigida por uma imaginação que se pretende tão
intensa a ponto da existência sonhada ter uma substantividade próxima à
da existência
habitual tão impregnada pela cosmovisão burguesa. Essas sensações esteticamente fruídas
provocam um efeito colateral: o universo psicológico do dandy passa do estado de serenidade
e contenção para o neurastênico quando os sonhos adquirem autonomia e se transformam em
alucinações. Em “A sua Câmara” se manterá uma atmosfera casta e silente que denota a
persistência da faceta mais serena e contida do universo psicológico do dandy. O ambiente
fechado de onde emana essa atmosfera evoca a solidão interior do dandy, assim como a “jarra
de jaspe antiga e cinzelada” (verso 4) evoca uma possível descendência ou ligação histórica
com a nobreza passada (o adjetivo “antiga”) e uma preocupação com a beleza (o adjetivo
“cinzelada”). Tudo se torna metáfora do universo dandy. No curso do poema surgirão
imagens e atributos que irão acrescer e enfatizar elementos desse universo.
Nos versos de 5 a 8 –
Voam aromas bons no ar tranquilo e mole.
Algumas flores vão morrer nas jarras finas.
- Ele sereno vê, nas rendas das cortinas,
Silencioso, morrer, na sua glória do Sol.
o ambiente todo perfumado sugere um vago tom de fantasia. O adjetivo mole” (verso 5)
sugere, por seu turno, indolência. Grandeza e indolência convivem na existência do dandy. O
ócio, a recusa de objetivos práticos é sinal de grandeza. O ambiente perfumado auxilia a
sensação de indolência, acariciando os sentidos.
O sol, assim como para o eu poético baudelairiano, é, para o eu poético de Gomes Leal,
um símbolo de idealidade. O ocaso dos versos 7 e 8 pode representar o declínio da dimensão
simbólica da existência provocado pela modernidade, declínio que o dandy observa
serenamente, pois ele assume a satisfação orgulhosa de jamais ficar admirado”
(BAUDELAIRE, 2002, p. 871).
O tipo da beleza do dândi consiste sobretudo no ar frio que vem da
inabalável resolução de não se emocionar; é como um fogo latente que se
50
Quando as sensações esteticamente fruídas são originárias do universo sexual, podemos denominá-las de
hedonismo contemplativo.
99
deixa adivinhar, que poderia mas não quer se propagar.
51
(BAUDELAIRE, 2002, p. 873)
A singularidade da figura do dandy assume seu ar de casta nos versos de 9 a 12:
Todas morrem ao pé. Só ele altivo é belo,
No seu vaso de jaspe, entre as demais existe,
- Como um rei infeliz num último castelo,
Com seu ar virginal e com seu modo triste.
A singularidade e a solidão de uma aristocracia crepuscular, claudicante (“último castelo”)
que, orgulhosa, mantém-se altiva, de uma altivez melancólica. O “ar virginal” (verso 12) do
dandy é uma expressão que retoma sua tendência castiça.
Os versos de 13 a 20 aludem a possíveis causas dessa melancolia para além do
esmorecimento de uma classe:
Cheio de vida, ainda, idílico, ideal,
Talvez lamente o amor, na sua jarra d’água.
- Misteriosa flor – que caprichosa mágoa
O virá pender na haste virginal?
Talvez lamente o Sol – a luz vermelha viva.
O sol que vai morrer – o belo agonizante.
Talvez que chore a lua – a lua pensativa,
Que lhe venha lavar a alvura soluçante.
A lamentação do amor pode trilhar dois caminhos: ou provém da consciência
melancólica de que a burguesia vilipendiou o sentimento amoroso, capitalizando-o como tudo
o mais na existência, ou provém da tendência dandy de tornar fixa no imaginário do campo
afetivo uma imagem dominadora e perversa da mulher, afastando-o da consumação ou mesmo
da possibilidade de consumação do amor. A um indivíduo maudit cabe um amour maudit. Por
seu turno, a lamentação do ocaso é novamente a lamentação do declínio da dimensão
simbólica da existência, isto é, do Belo (o sol é o belo agonizante). Ao chorar a lua, o dandy
51
É intrigante o que Benjamin (2000, p. 93-4) relata a esse respeito: “Na verdade, é impossível desconhecer nos
traços reunidos no ndi uma assinatura histórica bem definida. O dândi é uma criação dos ingleses, que eram
líderes do comércio mundial. A rede de comércio que envolve o globo terrestre estava nas mãos dos
especuladores da Bolsa de Londres; suas malhas percebiam as mais variadas, as mais repetidas, as mais
insuspeitadas vibrações. O negociante tinha de reagir diante dessas vibrações, mas sem trair suas reações. O
conflito que assim se gerava foi utilizado pelos dândis na própria encenação. Elaboraram o engenhoso
treinamento necessário para dominar esse conflito. Aliaram a reação fulminante a atitudes e mímicas relaxadas e
mesmo indolentes. O tique, por algum tempo considerado distinto, é, até certo modo, a representação desajeitada
e subalterna do problema. Assim, a seguinte observação é muito significativa: O rosto de um homem elegante
deve sempre ter... alguma coisa de convulsivo e torcido. Pode-se, caso se queira, atribuir esses trejeitos a um
satanismo natural’.”.
100
está buscando um amparo na poesia, no sonho o último refúgio, a última chance de fazer o
sol não declinar por completo.
Os versos de 21 a 28 alimentam ainda mais a hipótese da lamentação do amor provir da
imagem feminina subjugadora:
Quem foi a branca mão – olímpica, divina –,
A mão macia, ideal – traidora – que o colheu?
Que o foi roubar à terra, um dia, e que o prendeu
Na fria solidão daquela jarra fina?
E foi roubar ao amor, aos cantos, às folhagens,
À bondade da luz e às noites meigas, belas,
Exilado do sol e órfão das paisagens,
O cravo virginal – viúvo das estrelas?
Esse amour maudit destruirá o eu poético, assim como destruiu as outras vítimas, o jasmim
em cima de um piano, os lírios igualmente em jarras finas. Destruição que indica,
indiretamente, o esmorecimento de uma classe: a aristocracia, que se mante altiva até o
último suspiro:
Misteriosa flor, a sua estranha mágoa
A ninguém o dirá seu calix pensativo,
E a morrer, morrerá, calado, firme, altivo,
E nobre como um rei, na sua jarra d’água.
A disposição e a presença ostensiva de algumas rimas constroem uma ligação
significativa em relação ao contexto do poema. Os únicos pares de vocábulos que rimam duas
vezes são “belo/castelo” e “existe/triste” (terceira e décima segunda quadras, de construção
sintática e conteúdo semântico semelhantes), e o único par que rima três vezes é
“água/mágoa” (quarta, oitava e cima terceira quadras).
52
Todos os outros pares rimam uma
52
A décima segunda e a décima terceira quadras são as que, respectivamente, seguem:
Tudo agoniza ao pé. – Só ele altivo e belo,
No seu vaso de jaspe entre as demais existe,
Como um rei infeliz, num último castelo,
Com um ar virginal e com um modo triste.
E no entanto, talvez a mística amorosa,
A noiva, a dona dele, oculta uma outra mágoa,
No morto coração, mais morto que uma rosa,
E do que ele amanhã, na sua jarra d’água!...
101
vez. Esses pares de rimas que se repetem (e por isso reivindicam uma atenção especial)
podem suscitar uma leitura de palavras-chave dentro da leitura corriqueira do poema,
evocando sinteticamente seu contexto. O par “belo/castelo” associa a beleza e a nobreza; o par
“existe/triste” associa a existência e a tristeza, e o par “água/mágoa” se associa ao par anterior
se pensarmos simbolicamente a água como vida (até mesmo porque o cravo branco está em
uma jarra de água), que se associa à goa. A existência do indivíduo que simpatiza com os
preceitos e sentimentos aristocráticos, almejando a beleza, é triste, pois a consolidação da
cultura e ética burguesas magoa seus ideais, relegando-o à melancolia e ao tédio de uma
existência intimamente solitária.
Relevante também é o fato de que as quadras que contêm os pares belo/castelo” e
“existe/triste” são compostas somente por rimas ricas, como a transcrição dos pares revela.
A tima quadra retoma o conceito de beleza em um vocábulo que rima belas” (verso 26)
–, e novamente a rima é rica, encerrando o par “belas/estrelas”, que associa a beleza à
idealidade expressa simbolicamente pelo segundo vocábulo. Essa qualidade de rima tem a
função, nesse contexto, de singularizar ainda mais aqueles pares principais da terceira e
décima segunda quadras e sua rede de ligações, assim como enfatizar o conceito de beleza
que os vocábulos “belo” (versos 9 e 45) e “belas” (verso 26) evocam.
Cesário ironiza a máscara do dandy em “De Verão”, onde o eu poético passeia no
campo ao lado da prima e se depara com uma sociedade de formigas que lhe recorda de seu
comportamento perante a própria sociedade de que é, mesmo que o não queira, parte-
integrante:
X
Exótica! E cheguei-me ao pé de ti. Que vejo!
No atalho enxuto, e branco das espigas
Caídas das carradas no salmejo,
Esguio e a negrejar em um cortejo,
Destaca-se um carreiro de formigas.
XI
Elas, em sociedade, espertas, diligentes,
Na natureza trêmula de sede,
Arrastam bichos, uvas e sementes;
E atulham, por instinto, previdentes,
Seus antros quase ocultos na parede.
XII
102
E eu desatei a rir como qualquer macaco!
“Tu não as esmagares contra o solo!”
E ria-me, eu ocioso, inútil, fraco,
Eu de jasmim na casa do casaco
E de óculo deitado a tiracolo!
Após importunar a prima por não ter querido matar as formigas, ela se lhe dirige:
XVII
“Não me incomodes, não, com ditos detestáveis!
Não seja (sic) simplesmente um zombador!
Estas mineiras negras, incansáveis,
São mais economistas, mais notáveis,
E mais trabalhadoras que o senhor.”
O eu poético de Gomes Leal, por seu turno, levou o dandysme bastante a sério enquanto
um recurso de provocação e crítica à cultura e ética de um tipo de sociedade que ela via
muitas vezes, como Marx e Baudelaire, como decadente. Em “Palavras a um Enforcado” o eu
poético define em uma quadra o que o dandy para ele representa:
“Tu és símbolo vão de uma época impura,
em que tudo é mentira e em que tudo é trejeito,
e revelam-me toda uma tragédia escura
a tua rota calça e essa camélia ao peito.
O dandy é um símbolo às avessas da época impura. É símbolo porque nele se concentra
o potencial de provocação e crítica dessa mesma época. O dandy adquire seu sentido mais
profundo na sociedade burguesa moderna, é um fruto legítimo dela. Mas também é símbolo
em um sentido mais pessimista: símbolo vão. É símbolo da sempre possível ineficácia desse
heroísmo, que o próprio dandy percebe em seus próprios gestos e em sua própria condição
psicológica, pois seu heroísmo é inseparável da melancolia de viver na época em que vive, de
ser o que é. A calça do dandy de Gomes Leal é rota porque é difícil sobreviver a essa luta
contra toda uma época, contra toda uma sociedade. A calça é rota, a camélia pende murcha. O
dandy sempre espera a morte. Altivo e belo, espera a morte. Ao menos a tragédia é algo
sublime.
103
5. Quando os Opostos se Atraem
Ralph Waldo Emerson elaborou, ainda em 1833, uma teoria na qual a linguagem
simbólica é o instrumento do poeta para libertar o homem, sendo essa linguagem capaz de
expressar a unidade de todos os fenômenos. Através de uma requintada percepção intelectual,
o poeta anima todas as coisas. Em “O Poeta” Emerson, romântico, elucida exemplarmente
o complexo cognitivo que dimensiona o nível estético-estilístico da modernidade da primeira
metade do século XIX:
A linguagem simbólica faz com que o mundo se transforme num templo
com as paredes cobertas de emblemas, quadros e mandamentos da
Divindade, enfim, prova de que não há um fato sequer na Natureza que não
envolva o sentido dela mesma; e que as distinções que fazemos entre os
grandes acontecimentos e pequenos eventos, entre o alto e o baixo, o honesto
e o vil, desaparecem quando a Natureza é utilizada como mbolo. O
pensamento faz com que tudo seja adaptado ao uso. [...] O que seria
ordinário, ou mesmo obsceno, se torna ilustre se expresso numa nova
conexão de pensamento. [...] Coisas pequenas e insignificantes também
podem servir como grandes símbolos.
[...] Palavras simples podem ser sugestivas a um espírito imaginativo e
excitado [...]. A mais pobre experiência é bastante rica para todos os fins de
expressão de pensamento. [...]
Assim como é a deslocação e a separação da vida de Deus que faz feias as
coisas, o poeta, que as torna a unir à Natureza e ao Todo reunindo até
coisas artificiais e violentações da Natureza, num mais profundo
discernimento dispõe facilmente dos fatos mais desagradáveis. Leitores de
poesia vêem a aldeia fabril e a estrada de ferro e imaginam que a poesia se
esgota nessas figuras, nelas suspendendo suas atividades; a verdade é que
tais obras de arte ainda não estão consagradas em sua leitura; mas o poeta as
discerne como parte integrante da grande Ordem não menos do que a
colmeia ou a geométrica teia da aranha. (EMERSON, 1968, p. 60-1)
A idéia é a de que a Natureza tudo incorpora em seu ciclo vital, pois o fato espiritual da
Vida permanece inalterável perante as mudanças e invenções de cada época. Mas a
capacidade de percepção que permite espaço a todo e qualquer fenômeno no seio da criação
poética, assim como a equivalência de valor estético dos grandes acontecimentos e dos
pequenos eventos, do alto e do baixo, do honesto e do vil e a transfiguração do ordinário e do
obsceno em condições ilustres abrem o horizonte daqueles procedimentos que Hugo
Friedrich distinguirá como uma estética do feio a partir da segunda metade do século XIX, e
que se configura, na verdade, como uma nova espécie de beleza, como uma beleza dissonante.
Hugo Friedrich afirma sobre a poesia moderna:
104
A realidade desprendeu-se da ordem espacial, temporal, objetiva e anímica e
subtrai as distinções repudiadas como prejudiciais –, que são necessárias a
uma orientação normal do universo: as distinções entre o belo e o feio, entre
a proximidade e a distância, entre a luz e a sombra, entre a dor e a alegria,
entre a terra e o céu.
53
(FRIEDRICH, 1978, p. 16-7)
É claro que esse tipo de poesia “anormal” é somente uma linha de desenvolvimento da poesia
moderna, e as manifestações de identificação dos contrários uma de suas características. Essas
manifestações sempre habitaram a poesia através dos recursos de sua linguagem. Mas é a
partir da segunda metade do século XIX que elas intensificam seus efeitos de estranhamento.
Hugo Friedrich associa a estética do feio diretamente a Baudelaire como mais um
elemento de anormalidade da poesia moderna. A beleza moderna adviria, então, da
deformação do banal, da transfiguração do familiar. Por isso, ela pode coincidir com o que é
convencionalmente feio. A beleza moderna se opõe, assim, à clássica por causar
estranhamento e ter a surpresa como intuito. É um culto do grotesco, mas não do grotesco de
comicidade despretensiosa. É um culto do grotesco que expressa o decomposto, o disforme, a
melancolia e o sofrimento.
54
É essa nova vibração da beleza que Victor Hugo chamade
frisson nouveau na obra baudelairiana.
55
53
A conciliação da terra e do céu é a intenção última das correspondances baudelairianas e de Gomes Leal.
Essas manifestações de identificação dos contrários presentes no processo das correspondances são permitidas
geralmente, em termos de procedimentos retóricos, pela figura denominada “sinestesia”.
54
Poe é precursor na associação da Beleza e da melancolia. Verifiquemos dois excertos, um extraído do
“Princípio Poético”, outro da “Filosofia da Composição”, respectivamente: “[...] permiti-me lembrar-vos que
(como ou porquê, não o sabemos) [...] certa tonalidade de tristeza liga-se inseparavelmente a todas as mais
elevadas manifestações da verdadeira Beleza.” (POE, 1999, p. 86). “Encarando, então, a Beleza como a minha
província, minha seguinte questão se referia ao tom de sua mais alta manifestação, e todas as experiências têm
demonstrado que esse tom é o da tristeza. A beleza de qualquer espécie, em seu desenvolvimento supremo,
invariavelmente provoca na alma sensitiva as grimas. A melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons
poéticos.” (POE, 1999, p. 105). Comparemos agora esses excertos com a definição baudelairiana do Belo no
projétil 16: “Encontrei uma definição de Belo – do que é Belo para mim. É algo simultaneamente ardente e triste,
um pouco vago, que deixa sempre lugar para a conjectura. Se o quiserem, procurarei aplicar o meu conceito a
um objeto sensível um rosto de mulher, por exemplo, o objeto mais capaz de nos interessar no dia-a-dia. Uma
cabeça bela e sedutora, isto é, uma cabeça de mulher, é algo que nos conduz ao mesmo tempo embora de
maneira confusa a sensações muitas de tristeza e de volúpia; que comporta em si tanto uma impressão de
melancolia, lassidão ou mesmo de saciedade, como a sua impressão contrária ou seja, um grande desejo de
viver, ou entusiasmo, a que de qualquer modo se associa um constante fluxo de amargura, feito de privação e de
desespero. O mistério e o sentimento de pena também são caracteres da Beleza.
Uma cabeça de homem para ser bela o digo aos olhos de uma mulher, mas aos olhos de um outro homem
não precisa de nos comunicar essa impressão de volúpia que, no caso de uma mulher, e de um modo geral, se
torna uma provocação tanto mais excitante quanto mais melancólico for o rosto. Ela possuirá, contudo, qualquer
coisa de mais ardente e triste carências espirituais, ambições obscuramente recalcadas –, a noção de um poder
grandiloqüente mas desbaratado, por vezes mesmo a sensação de uma frieza amarga (o tipo ideal do Dândi
não deve ser esquecido, ao tratarmos deste assunto) –, outras vezes ainda, o que aliás constitui um de seus traços
mais surpreendentes, algo de misterioso e de Aziago (para mostrar, enfim, aque ponto me sinto moderno em
questões de estética). – Não afirmo que a Alegria seja incompatível com a Beleza, digo é que ela só constitui um
dos seus enfeites mais vulgares a Melancolia, pelo seu lado, constitui uma das suas acompanhantes mais
ilustres, de tal forma que não sou capaz de conceber (será o meu cérebro um espelho maligno?) qualquer tipo de
Beleza que não contenha em si algo de Desdita. Apoiado em outros dirão: obcecado por estas idéias,
105
Em A carne, a morte e o Diabo na literatura romântica, Praz disserta sobre a
sensibilidade erótica romântica, concebendo o Romantismo como um todo distintivo que vai
até o fin-de-siècle. Dentre as principais tópicas sexuais desse período está, segundo Praz, uma
espécie de beleza que concilia a dor e o prazer, motivos que convencionalmente geram
atração e também os que deveriam causar aversão. É uma beleza que recebe realce daquilo
que tradicionalmente a contradiz. É tanto mais apreciada quanto mais triste. Praz busca
indícios dessa espécie de beleza em outros períodos e em outros autores e se depara com
Tasso, com os dramaturgos elisabetanos e da Restauração, com os líricos seiscentistas e com
os libertinos do século XVIII. Mas a diferença entre os precursores e os autores a partir dos
românticos é que estes atribuirão um fundo de experiência à excitação dos sentidos causada
pelo contato com essa beleza, enquanto aqueles trataram os motivos dessa beleza em um nível
mais intelectualizado, mais como um exercício da imaginação e filiação a um maneirismo.
Praz (1996, p. 63) utiliza muitas expressões para girar ao redor de uma beleza “banhada de
sofrimento, de corrupção e de morte”: estética do horrível e do terrível; beleza meduséia ou
belo meduseu; belo horrível; belo triste ou beleza dolente; beleza contaminada; beleza
turbada; beleza ofuscada; beleza maldita; beleza fatal ou beleza letal; novo calafrio (expressão
que evoca o frisson nouveau hugoano).
A título de provocação, transcrevo o que rio de Andrade pensa a respeito dessa
espécie de beleza:
raciocinou sobre o chamado “belo horrível”? É pena. O belo horrível é
uma escapatória criada pela dimensão da orelha de certos filósofos para
justificar a atração exercida, em todos os tempos, pelo feio sobre os artistas.
Não me venham dizer que o artista, reproduzindo o feio, o horrível, faz obra
bela. Chamar de belo o que é feio, horrível, porque está expressado com
grandeza, comoção, arte, é desvirtuar ou desconhecer o conceito de beleza.
Mas feio = pecado... Atrai. Anita Malfatti falava outro dia no encanto
sempre novo do feio. Ora Anita Malfatti ainda não leu Emílio Bayard: “O
fim lógico de um quadro é ser agradável de ver. Todavia comprazem-se os
artistas em exprimir o singular encanto da feiúra. O artista sublima tudo.”.
(ANDRADE, 1996, p. 66)
compreenderão que ser-me-ia muito difícil não considerar Satã, à maneira de Milton, o tipo mais perfeito de
Beleza viril.” (BAUDELAIRE, 2002, p. 509-10).
55
Que fazeis ao escrever estes versos surpreendentes: Os sete anciãos” e “As velhinhas” que me dedicais e
pelos quais vos agradeço? Que fazeis? Caminhais. Avançais. Dotais o céu da arte de não sei que raio macabro.
Criais um arrepio novo.” (HUGO, 2001, p. 133).
106
Lembremos que é por esse viés de beleza que a mulher, assim como ocorre com o
universo urbano, começará a ser observada a partir do período analisado por Praz. A beleza
feminina simpatizará com o sofrimento, com a opressão, com efeitos física e moralmente
anormais. Ficamos com a estranha impressão de que tudo, nessa modernidade, parece adquirir
sentido quando integrado ao seu oposto, de que nada existe sem o seu contrário. A fascinação
provocada pelo labirinto das cidades e pela imagem feminina será perceptível somente ao
revelar a repulsa ou o medo e as sensações e sentimentos turbados ou prejudiciais.
A beleza tanto da obra cesárica quanto da de Gomes Leal era estranha para a época,
pois explorava a mescla de elementos contrastantes. O contraste se revela na obra do primeiro
na condição de sua linguagem inovadora. O equilíbrio, o cálculo das construções
paratáticas são reveladores de contradições, pois o assíndeto, figura dominante desse discurso,
concerta uma justaposição vocabular que sugere a natureza multifacetada e até paradoxal da
percepção de elementos da realidade. A unidade da composição cesárica progride e se insinua
pela articulação de elementos contraditórios da realidade decomposta. É uma linguagem
propícia tanto para a transfiguração da realidade quanto para revelar os aspectos
contraditórios de uma sociedade, mantendo-se mais rente ao chão. O eu poético cesárico
consegue, com mestria, manter-se na fronteira entre essas duas opções, contribuindo
positivamente para ambas.
O eu poético cesárico identifica os contrários ao, por exemplo, aproximar um
substantivo e um adjetivo distantes;
56
assim como atribuir a um mesmo substantivo dois
adjetivos, um sendo abstrato e o outro concreto. A prosopopéia também é figura presente,
dotando de características humanas fenômenos inanimados.
57
O erotismo desviante, ligado ao arquétipo feminino da femme fatale, é expressão,
tanto em Cesário quanto em Gomes Leal, daquela beleza inóspita capaz de fundir prazer e
dor, fascínio e crueldade. Do primeiro, comentarei o poema “Deslumbramentos”, abaixo
transcrito, para buscar expressões que identifiquem elementos distantes e/ou assumam uma
beleza dissonante.
DESLUMBRAMENTOS
56
A expressão “moles hospitais(3, III), encontrada no Sentimento de um Ocidental”, é um bom exemplo. No
contexto do poema, essa expressão se liga às doenças provocadas, nas prostitutas e nos rotos, pela exposição ao
frio assim como reforça a sugestão da falta de disposição e sofrimento advindos de doenças venéreas contraídas
pelas prostitutas.
57
Cf. o apetitosamente grotesco “Num Bairro Moderno”, poema onde se alimenta a expressão de um panteísmo
saboroso.
107
1- Milady, é perigoso contemplá-la,
2- Quando passa aromática e normal,
3- Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
4- Com seus gestos de neve e de metal.
5- Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
6- Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
7- Eu vejo-a, com real solenidade,
8- Ir impondo toilettes complicadas!...
9- Em si tudo me atrai como um tesoiro:
10- O seu ar pensativo e senhoril,
11- A sua voz que tem um timbre de oiro
12- E o seu nevado e lúcido perfil!
13- Ah! Como me estonteia e me fascina...
14- E é, na graça distinta do seu porte,
15- Como a Moda supérflua e feminina,
16- E tão alta e serena como a Morte!...
17- Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
18- Britânica, e fazendo-me assombrar;
19- Grande dama fatal, sempre sozinha,
20- E com firmeza e música no andar!
21- O seu olhar possui, num jogo ardente,
22- Um arcanjo e um demônio a iluminá-lo;
23- Como um florete, fere agudamente,
24- E afaga como o pêlo dum regalo!
25- Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
26- E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
27- O modo diplomático e orgulhoso
28- Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
29- E enfim prossiga altiva como a Fama,
30- Sem sorrisos, dramática, cortante;
31- Que eu procuro fundir na minha chama
32- Seu ermo coração, como um brilhante.
33- Mas cuidado, milady, não se afoite,
34- Que hão-de acabar os bárbaros reais;
35- E os povos humilhados, pela noite,
36- Para a vingança aguçam os punhais.
37- E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
38- Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
39- Eu hei-de ver errar, alucinadas,
40- E arrastando farrapos – as rainhas!
A milady do poema passa aromática e normal. O primeiro adjetivo não causa
estranhamento, mas o segundo não é, digamos, de uso normal. Não conseguimos distinguir ao
108
certo o uso desse adjetivo nesse contexto. Pode querer se referir a certa naturalidade no
caminhar da passante, ou ainda regularidade, como se essa figura feminina representasse a
eterna passante do universo urbano. Esse adjetivo pode também designar um caminhar
regrado, compassado, seguidor de uma norma, isto é, um caminhar premeditado, mas também
sem sabermos até que ponto essa premeditação se contradiria com a hipotética designação de
naturalidade, se premeditação e certa naturalidade podem conviver no universo do artifício.
Por fim, se levarmos em consideração o sentido de “moda” do substantivo “norma”, podemos
associar o adjetivo “normal” a esse universo, acentuando o tom de artifício e tornando a figura
uma mulher elegante. “Aromática” e “normal” são dois adjetivos que estão aproximados, um
sendo concreto e outro abstrato, respectivamente; havendo, assim, nessa aproximação de
termos, igualmente uma aproximação, um contato entre os planos objetivo e subjetivo.
A milady tem gestos de neve e de metal. “Gestos de neve” é uma expressão que não
provoca estranhamento porque a neve muitas vezes fora utilizada para designar frieza,
indiferença. Por seu turno, a expressão “gestos de metal” é mais complexa e incomum.
Podem ser gestos que provoquem magnetismo, deslumbramentos, como diz o título do
poema. Gestos que brilham, que chamam a atenção tanto pela sua premeditação, pelo seu
cálculo quanto pela sua naturalidade. O que torna o uso dessa expressão ainda mais
inquietante é que ela pode se opor à outra “gestos de neve” se lembrarmos que metal
designa elementos químicos que têm como característica, além do brilho e da condutibilidade
elétrica, a condutibilidade calorífica. O deslumbrado estaria, então, submetido ao fascínio de
gestos que, não obstante indiferentes, comovem, aquecem a sensibilidade, inflamam os
sentidos. No caso do erotismo de humilhação, é precisamente a indiferença e frieza desses
gestos a causa do “aquecimento” dos sentidos e do fascínio. No contexto dessa espécie de
erotismo a identificação dessas expressões de sentido oposto pode ser melhor compreendida,
assumindo uma situação mais virulenta e comprometedora.
A milady tem também um nevado e lúcido perfil. O adjetivo “nevado”, que pode ser
associado aos gestos de neve, pode também ser entendido como palidez de pele, havendo na
aproximação dos dois adjetivos novamente uma aproximação dos campos objetivo e
subjetivo, se pensarmos em lúcido” o somente com o sentido de “brilhante”, mas também
com o de “penetrante”, evocando, assim, o poder magnético da figura feminina.
Por fim, a expressão “bárbaros reais” (verso 34) é complexa. A realeza, a nobreza
conotação, aqui, da classe dirigente –, logo associada, no imaginário coletivo, à civilidade, é
aqui associada, contrariamente, à barbárie. À barbárie, provavelmente, da exploração na
sociedade moderna. Exploração dos “povos humilhados” (verso 35). O adjetivo “reais”
109
também pode estar, aqui, designando “realidade”. Os verdadeiros rbaros são a classe
dirigente, representada pela “flor do Luxo” (verso 37), e não os “povos humilhados” (verso
35).
O eu poético de Gomes Leal identifica os contrários através de procedimentos
semelhantes aos do eu poético cesárico. Mas o que diferencia a obra de Gomes Leal, e assim
caracteriza sua poética, é a visão analógica de mundo, expressa retoricamente de modo mais
comum através da figura denominada “sinestesia”. De qualquer forma, a mescla de elementos
contrastantes se dá, em Gomes Leal, via essa visão analógica de mundo.
58
Dito isso, infere-se
que o eu poético de Gomes Leal, assim como Victor Hugo afirmava em relação ao sublime e
ao grotesco, assume a beleza insólita como algo identificável na existência. A revelação dessa
beleza no mundo é explícita em alguns poemas. Transcrevo abaixo o soneto “A Bela Flor
Azul”, exemplo de poema com essa função:
A BELA FLOR AZUL
Quem saberá “signora” onde terá nascido esse
belo lírio branco?
Velha comédia italiana
1- Eu não sou o fatal e triste Baudelaire,
2- Mas analiso o Sol e decomponho as rosas,
3- As rijas e imperiais dálias gloriosas,
4- - E o lírio que parece o seio da mulher.
5- Tudo o que existe ou foi, morre para nascer.
6- Na campa dão-se bem as plantas graciosas.
7- E um dia, na floresta harmônica das Cousas,
8- Quem sabe o que serei, quando deixar de ser!
9- A Morte sai da Vida – a Vida que é um sonho!
10- A flor da podridão, o belo do medonho,
11- E a todos cobrirá o místico cipreste!...
12- E, ó minha Esfinge, a flor pálida e azul no meio,
13- Que ontem tinhas no baile e que trouxeste ao seio,
14- - Levantei-a dum chão onde passara a Peste.
Neste soneto o eu poético de Gomes Leal assume, poeticamente, seu vínculo íntimo
com a poética baudelairiana.
58
O conjunto de quaro sonetos designado pelo título comum “O Visionário ou Som e Cor” é exemplar como
expressão da visão analógica de mundo do eu poético de Gomes Leal.
110
O título retoma a flor da tradição romântica: a azul. Flor que marca forte presença em
Novalis e que é regada até pelos resquícios românticos de Alphonsus de Guimaraens, por
exemplo. Porém, veremos que essa figura relacionada ao sonho e à pureza possui, aqui, uma
ingenuidade aparente, também servindo para ressaltar a aproximação com a poética do autor
francês: é a flor do mal.
Logo no verso 1, o eu poético afirma não ser o fatal e triste Baudelaire talvez por
já no
início querer abrir o horizonte de comparação que irá se estender até a última estrofe e/ou para
alertar o leitor de que, não obstante suas fortes influências baudelairianas, tem suas
particularidades e sua personalidade, sendo um autor legítimo. Nessa mesma estrofe faz
alusão ao poema “O Sol”, pertencente aos “Quadros Parisienses”, ao dizer que analisa o Sol
(atentemos para a maiúscula alegorizante).
59
Sugestionados pelo verso 4, lembramos que as
correspondances se concretizam de modo bastante eficaz, nas Flores do mal, quando o eu
poético evoca alguma parte do corpo feminino ( em “A Cabeleira”, as revoltas tranças da
musa o um porto em febre onde a alma do eu poético de beber a grandes goles o
perfume, o som e a cor). O lírio, por sua vez, ao se assemelhar ao seio da mulher, permite-nos
perceber um germe das correspondances, uma tentativa inicial de corresponder o humano à
Natureza. Somente na estrofe seguinte as correspondances serão aludidas de maneira mais
explícita:
E um dia, na floresta harmônica das Cousas,
Quem sabe o que serei, quando deixar de ser!
O vocábulo "Cousas", por estar alegorizado através da maiúscula, obviamente
representa as coisas do mundo em geral, mas talvez até todo o Universo; e muito facilmente o
famoso soneto baudelairiano “Correspondências”
60
pode estar no fundo da inspiração da
expressão "floresta
harmônica" (verso 7).
Ainda nessa estrofe ocorre uma forte aproximação da vida e da morte, uma
aproximação que, embasada em uma direção teleológica da matéria vaga e confusamente
associada à visão analógica de mundo, cria uma indissociabilidade entre ambas:
Tudo o que existe ou foi, morre para nascer.
59
O sol, tanto para o eu poético baudelairiano quanto para o de Gomes Leal, é um símbolo de idealidade.
60
Esse soneto animou a estética decadente-simbolista no tocante à visão analógica de mundo.
111
O que morre, morre para nascer. Pode-se até pensar que a morte o existe. Mas existe. Na
estrofe seguinte a Morte é extraída da própria Vida, e é esta que passa a ser uma ilusão
marca indelével do temperamento platônico do eu poético de Gomes Leal. podemos ter
certeza de que a Vida e a Morte o indissociáveis, assim como os aspectos terríveis e
sórdidos da existência convivem com os aspectos mais belos, sublimes. A flor que nasce da
podridão e o belo que nasce do medonho são elementos de um discurso típico da estética do
feio.
Na quarta estrofe é revelado que a flor do soneto é do mal. Essa estrofe carrega um teor
metapoético. A musa, a Esfinge figura que assiduamente representa a mulher na literatura
decadente por simbolizar o mistério é a poesia. A Peste é o estilo da modernidade,
consciente do Mal e cultor do feio, que se configura, na verdade, como uma nova espécie de
beleza.
A função do soneto O Ouro”, abaixo transcrito, é também identificar a beleza insólita
no seio do mundo através de uma fábula. Mas vai mais longe, alegorizando questões sociais.
Como em toda fábula, as personagens animais, vegetais ou minerais são uma alegoria do
comportamento humano.
O OURO
1- Dizia o ouro à pedra:- Ente mesquinho!
2- Que profundo cismar sempre te prega
3- À beira duma estrada, ou dum caminho,
4- Pasmada, mas sem ver, eterna cega?
5- Em vão o orvalho a ti te lava e rega!
6- Em ti não cresce nunca pão, nem vinho.
7- Dura e inútil – o lodo é teu vizinho,
8- E o homem só, por te pisar, te emprega!
9- Em ti só medra e cresce o cardo e os lixos.
10- Tu serves só d´abrigo ao lodo e aos bichos.
11- E ensanguentas os pés descalços, nus!
12- Ó pedra! quanto a mim, sou a Riqueza!
13- A cega disse, então, com singeleza:
14- - Eu trago no peito oculta a luz.
O mesquinho, o ordinário oculta uma luz, um brilho, uma beleza que os olhares
domesticados e/ou preconceituosos desdenham. Uma beleza sobre a qual o tradicional orvalho
não surte efeito. Persiste na imundície. É estéril, dura, abriga o lodo e os bichos, é leito do
cardo, dos lixos. É abrigo de tudo aquilo que foi desprezado pela tradição. Mas este soneto
112
sutilmente constrói uma alegoria da ordem social do fin-de-siècle, pois essa beleza oculta uma
luz que não é a luz do ouro, mas a ela oposta. Inútil, essa beleza irradia a luz da poesia, da
poesia que se esconde na existência, mas que a luz do ouro a beleza da burguesia ofusca.
É a beleza do cotidiano fantástico, beleza mítica: a mesma beleza da luz do fogo que os
homens primitivos acreditavam estar oculto dentro das pedras.
61
O contraste dessa beleza da
poesia com a beleza da burguesia, que revela um aspecto social do fin-de-siècle, isto é, a
espécie de recepção que a sociedade burguesa desse período exercia com relação à literatura,
é extensão dos contrastes de uma sociedade de classes. O eu poético de Gomes Leal idealiza o
poeta enquanto integrante da classe desprezada, sem pão nem vinho, mendigando suja à beira
das estradas, mas ocultando uma verdade e uma virtude dentro do peito, quando não a luz da
Revolução que ofuscará a luz do ouro, da Riqueza. O vocábulo luz” aparece somente no
último verso, onde a pedra fala com a “singeleza” do verso 11 oposta à Riqueza” do verso
12, com o qual rima. O esquema rímico do soneto é: (ABAB, BAAB, CCD, EED), sendo o
“D” do primeiro terceto o vocábulo nus” e o D” do segundo, exatamente o vocábulo “luz”,
ambos os vocábulos sendo oxítonos. A “luz” (verso 14), no único momento que irradia no
poema, pode rimar com “nus” (verso 11), sem se associar a qualquer expressão que remeta
ao ouro. A verdadeira luz é a da pedra, da poesia, do poeta, dos desprezados. A do ouro é
falsa.
Revelei, com esse soneto, a faceta solidária do eu poético de Gomes Leal, que se revela
em outros poemas como um culto à compaixão e até como um incentivo a destronar aqueles
bárbaros reais de que fala o eu poético cesárico. Este, flâneur o- ortodoxo, também
simpatiza, como vimos, com os desvalidos e as camadas socioeconomicamente inferiores de
uma maneira geral, apelando à consciência delas. Ele também cultuou a compaixão, mas em
outros momentos teve a visão aguda de que esse sentimento e a filantropia o muitas vezes
um paliativo que alivia o peso da consciência, ou de que são ainda um mero artifício burguês
parecido com aquele de quem quer ser virtuoso antes para garantir sua vaga ao lado do Senhor
do que para amenizar o sofrimento de outrem. É claro que o eu poético cesárico não chegou
ao ponto da atitude baudelairiana ironicamente “arrojada” de incentivar o espancamento dos
pobres. O que ele fez, em certos momentos, foi, como o eu poético de Gomes Leal, incentivar
uma rebelião. O eu poético cesárico era mais ameno nesse sentido, não tão chocante quanto o
eu poético baudelairiano. O eu poético de Gomes Leal permaneceu ou dandy misantropo, ou
lamuriento indivíduo que observa e tem compaixão do sofrimento das camadas
61
Os homens primitivos acreditavam que o fogo se encontrava dentro das pedras porque ao se chocar uma na
outra pululavam faíscas, que eles pensavam escapar das fissuras que os choques acarretavam.
113
socieconomicamente inferiores e que, em momentos mais furibundos, incentiva a rebelião. “O
Ouro” talvez seja o poema mais arrojado em relação à simpatia dolorista do eu poético de
Gomes Leal. Como exemplo de proximidade dos dois poetas no que toca à simpatia que
ambos tinham pelos desvalidos, poderíamos estabelecer uma analogia entre este soneto e o
poema Humilhações”, de Cesário. Em ambos os poemas, o eu poético se aproxima
psicologicamente dos socioeconomicamente humilhados, seja através da idealização do poeta
em Gomes Leal, seja através do ódio compartilhado com a plebe” em Cesário. Em Gomes
Leal, a aproximação ocorreu através de uma metáfora no contexto de uma fábula, enquanto
em Cesário foi o arquétipo feminino da femme fatale o instrumento deflagrador da atualização
de questões sócio-econômicas.
114
6. Conclusões
Percorri, até agora, a direção que tomaram alguns elementos da modernidade fin-de-
siècle a relação dúbia com o universo urbano-industrial, o arquétipo feminino da femme
fatale, processos de despersonalização e manifestações da identificação dos contrários na
obra cesárica e de Gomes Leal. Estes elementos, pela sua recorrência, pareceram-me os de
maior relevância no contexto da referida modernidade. E por elencá-los, minha proposta se
tornou inserir ambos os autores no contexto de uma condição pioneira em relação à
modernidade fin-de-siècle portuguesa. Isso tem sido feito com a obra cesárica, mas a obra
de Gomes Leal é ainda escassamente perscrutada, ainda que seja
citada por renomeados
críticos e historiadores da literatura portuguesa como uma obra relevante e precursora. Apesar
de minha intenção não ter sido esta, não podemos nos esquecer de que a obra dos referidos
autores chega a abrir horizontes que tomarão fôlego no século XX, não somente no âmbito da
literatura portuguesa mas também no âmbito universal.
É importante aqui, à guisa de fixação, retomar brevemente a direção que os citados
elementos tomaram na obra de ambos os autores.
Quando inserido no meio urbano, o eu poético cesárico sofre uma tensão entre a
fertilidade criativa e a sensação de opressão, aprisionamento e de falta de vitalidade. Sua
visão é orientada para a realidade concreta, sutilmente transfigurada. Ele vai descobrindo
paulatinamente o espaço das ruas e os ambientes junto com o leitor, pois este começa a
observá-lo como mais uma personagem que perambula pela cidade. Para representar as
impressões elementares suscitadas pelos objetos, Cesário transpõe a técnica do romance
realista (ao menos do romance realista à maneira de Flaubert) para a poesia: técnica esta que
cria a impressão da precisão, que tenta reter e analisar os elementos de uma realidade
dinâmica e fantasmagórica repleta de informações simultâneas. O eu poético de Gomes Leal,
por seu turno, sofre a tensão entre o sacro e o profano quando inserido no meio urbano,
pressentida ora intima ora ideologicamente, isto é, distanciada do “eu” e associada ao “outro”,
ou seja, à burguesia. Sua visão é orientada para a transfiguração simbólica da realidade,
rearticulada por uma imaginação excessiva. Como o eu poético de Gomes Leal é bastante
apegado à dimensão simbólica da existência, a cidade se desprende da imanência aos dados da
percepção sensível, transformando-se em um acúmulo de arquétipos da vida moderna que
115
mais parecem extraídos de um plano infernal. Por isso suas descrições são menos minuciosas.
Ele não permanece muito tempo na realidade da existência concreta, querendo logo tentar
ascender a uma dimensão espiritual, ainda que vaga.
Com o exemplo de Cesário e de Gomes Leal podemos afirmar que a relação com o
universo urbano toma, em seus primórdios, duas direções opostas na literatura portuguesa.
A cidade de Gomes Leal se encontra no âmbito cosmopolita, tornando Lisboa um meio de
encontrar as cenas modernas primordiais, como o fizera Baudelaire com Paris. Claridades do
sul é de 1875. Cinco anos depois, “O Sentimento de um Ocidental” i explorar o âmbito
provinciano desse topos, mais condizente com a realidade portuguesa de então. Seria difícil
defender uma dessas direções, como o fez Berardinelli (2007) em relação ao provincianismo.
Acho que ambas as direções têm uma importância equivalente, complementando-se. Se
quisermos saber o que foi Lisboa para os poetas, não devemos atentar somente para um poeta
mais “real” como Cesário, mas igualmente atentarmos para um poeta fantasista como Gomes
Leal. Afinal, se foi Lisboa que excitou a fantasia do eu poético de Gomes Leal, isso quer dizer
que de um modo ou de outro ele ainda está falando de Lisboa.
O erotismo de humilhação é experienciado de modo crítico pelo eu poético cesárico,
sofrendo resistência principalmente ao se chocar simbolicamente com questões
socioeconômicas. A femme fatale é ainda ridicularizada através de descrições exageradas e
caricaturais e fica às vezes propositadamente deslocada no ambiente provinciano da Lisboa da
segunda metade do século XIX. A femme fatale de Gomes Leal está bastante relacionada
com a visão de uma Natureza corrupta. O Mal inerente ao ser e também a todos os entes
adquire, em Gomes Leal, orientações políticas, de classe e de gênero, atingindo, assim, a
mulher, que assume um caráter universal associado à perversão, à crueldade e ao egoísmo.
Mas verificamos ao mesmo tempo, em Gomes Leal, um ressentimento contra essa figura
feminina, que desemboca em um desejo criminoso de dominação ou em uma atitude crítica
perante seus poderes de fascinação.
Nem o eu poético cesárico nem o de Gomes Leal pretendem anular o “eu”, mas sim
alargar a subjetividade. O eu poético cesárico, em O Sentimento de um Ocidental”, torna-se
um flâneur que não adota uma postura aristocrática e onipotente e alarga sua subjetividade
alargamento reforçado pelo uso de uma linguagem que evita os transbordamentos expressivos
românticos, que egocentrizam em demasia os sentimentos para apelar à consciência de uma
coletividade integrada. Em “Cinismos”, o eu poético cesárico adota uma persona romântica
116
para construir uma paródia pós-romântica da exposição do “eu” e do transbordamento
expressivo. Paródia que se reflete também no conteúdo formal, onde ocorre uma teatralização
do “eu” na dinâmica lúdica da própria composição e disposição espacial dos vocábulos. Essa
paródia assume o cinismo moderno. O eu poético de Gomes Leal adere com afinco à atitude
de construir personae, tornando o dandysme um recorrente recurso de provocação e crítica à
cultura e ética da sociedade burguesa moderna.
É pertinente, neste momento, pensarmos um pouco na referência a Cesário com relação
à heteronímia pessoana. Essa referência assenta na tradicional dicotomia “cidade/campo”:
Álvaro de Campos e Alberto Caeiro. Afirma Cabral Martins em Cesário Verde ou a
transformação do mundo:
Campos fala de um Cesário que é o do Sentimento de um Ocidental, ou, no
final da Ode Marítima, o Cesário da “cidade mercantil, contente” – ao passo
que Caeiro apenas sabe “ler” um Cesário camponês “que andava preso em
liberdade pela cidade”. (MARTINS, 1988, p. 26)
A influência de Cesário na poética pessoana é patente, mas Pessoa adotou funções
particulares diversas da repersonalização cesárica. Muito se discorreu sobre a heteronímia
pessoana, mas também discorrerei aqui para assumir minha postura perante esta polêmica.
As personalidades fundamentais da Geração Orpheu formam uma tríade: Pessoa, Sá-
Carneiro e Almada-Negreiros. Mas o primeiro, assim como Camões em relação à poesia
clássica, transformou-se em um mito modernista, capaz de simbolizar toda uma geração. Essa
mitificação acaba provocando um efeito perigoso: obscurece as tendências das outras
personalidades, que revelam o caráter compósito, multifacetado dos inícios do Modernismo
português.
A mitificação de Pessoa é justificável. A Geração Orpheu se manifestou
predominantemente pela poesia, e Pessoa escreveu muita poesia. Muita poesia boa. Mas é
nela que, heteronomizando-se, realiza-se da forma mais evidente e original, em Portugal, a
“Modernidade enquanto ruptura poética consciente de si mesma [...]” (LOURENÇO, 1993, p.
113). A aceitação de Pessoa como uma referência mestra da cultura moderna
62
se pauta no
fato do homem moderno ser poeticamente bem representado em sua obra enquanto vítima de
um sentimento de solidão e de falta de valores preestabelecidos, que tornam sua personalidade
cambiante. Os heterônimos de Pessoa são, segundo Eduardo Lourenço, sonhos fabricados
com o intento de ressignificar a existência. Intento, no entanto, já revelador, para mim, através
62
Aceitação póstuma, iniciada pela compreensão empreendida pela Presença.
117
de uma representação dramática, da plena consciência do caráter relativo das reivindicações
da verdade dos valores na modernidade, pois cada visão heteronímica vive por sua própria
consideração, não obstante Caeiro ser o mestre de todos e todos possuírem elementos
semelhantes. Intento que mais serve como argumento enfatizador do que solução.
Benedito Nunes tem uma interessante visão filosófica de matriz cartesiana da
heteronímia pessoana, exposta no ensaio “Os Outros de Fernando Pessoa”. O Fernando
Pessoa ortônimo, por primar pela consciência reflexiva, somente consegue pensar, e não
realmente sentir. Ao pensar que se sente, já não se sente.
63
Para poder espontaneamente sentir,
cinde sua individualidade em outros bem definidos, podendo, assim, ao mesmo tempo se
analisar, perscrutar-se, buscar sua verdadeira identidade. Seu pensamento o multiplica em
vários para pensá-lo. Para tentar sentir espontaneamente e pensar sobre si mesmo na pele de
outros. O conflito entre o eu pensante e o eu como consciência no mundo, como consciência
de existir tenta se resolver na heteronímia, que anula a substancialidade do eu e o torna uma
ilusão. A meu ver nada se resolve. Se o eu se torna uma ilusão, a busca da verdadeira
identidade faz com que esta entre no mesmo jogo de teatro de scaras ou, por outro lado, o
paradoxo do sentir que pensa o não-sentir ou o só-pensar corre o risco de desembocar na
reafirmação da irrevogável substancialidade do Cogito cartesiano, para o qual, é mister dizer,
a compreensão, o querer, a imaginação e mesmo os sentimentos são fatos da consciência, isto
é, aspectos do pensamento.
Mas nada invalida minha afirmação de que a heteronímia possibilita, em última análise,
uma maior exploração do homem e da realidade, seja através das ressignificações da
existência que na verdade reiteram o caráter de validez desta, plurissignificando-a, seja
através da insolúvel tensão do só-pensar ou não-sentir e do espontaneamente sentir ou do eu
pensante e do eu como consciência no mundo. E a maior exploração do homem é o que
reivindicava a Geração Orpheu.
É a complexidade e originalidade (aqui brevemente exemplificadas) dessa “ruptura
poética consciente de si mesma [...]” (LOURENÇO, 1993, p. 113) que transformaram Pessoa
em um mito literário, assim como a representação da condição do homem moderno
possibilitada por ela o transformou em um mito cultural.
É verdade que o eu poético cesárico cinde sua personalidade também para se analisar. A
consciência reflexiva é nele igualmente viva. Mas o que ele pretende com isso é, antes de
63
“Quando sentimos, manifesta-se, concomitantemente ao curso das vivências, o conhecimento que o Eu tem de
si mesmo, e pelo efeito do qual a consciência se divide em dois planos, que jamais coincidem: um, espontâneo,
da experiência imediata, em seu transcurso; outro, reflexivo, que sobre aquele se volta para focar as idéias, os
sentimentos e as recordações que aí aparecem”. (NUNES, 1969, p. 216)
118
tudo, compreender, através de um passeio reflexivo, a realidade compósita da cidade da qual
é, simultaneamente, parte e um observador isolado, assim como se opor à norma imperante da
cidade através da máscara do homem campestre.
A beleza tanto da obra cesárica quanto da de Gomes Leal explora a mescla de
elementos contrastantes. O contraste se revela na obra cesárica na condição de sua
linguagem. A unidade da composição de seus poemas progride e se insinua pela articulação
de elementos contraditórios da realidade decomposta. A fusão do concreto e do abstrato e o
uso da prosopopéia são procedimentos presentes em ambos os autores. Porém, em Gomes
Leal, é a visão analógica de mundo que direciona a mescla de elementos contrastantes,
fazendo da sinestesia a figura mais recorrente. Essa beleza insólita foi recebida com
estranhamento (afinal era esse seu objetivo), denotando um caráter inovador da poesia
portuguesa.
Retomadas e fixadas essas direções, finalizo concluindo que todos esses elementos
agem em conjunto nessa modernidade, assim como na obra dos referidos autores. O
relacionamento íntimo desses elementos acaba por reforçar seus efeitos. As manifestações de
identificação dos contrários ou a mescla de elementos contrastantes são o ponto de partida ou
o diapasão da presença dos outros elementos. A função do poeta moderno é tornar visível a
nova realidade exterior da cidade, comumente por meio de uma subjetividade alargada
(despersonalizada). A imagem da cidade e da mulher se associam e se confundem, tornando
seu acentuado poder de fascinação em um também acentuado e concomitante poder de repulsa
ou atemorização, pois a fascinação provocada pelo labirinto das cidades e pela imagem
feminina será perceptível somente quando em equivalência com os efeitos provocados pelas
sensações e sentimentos turbados e prejudiciais.
119
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ABSTRACT
This project will focus on and analyse those elements which confirm the pioneering
quality of the Portuguese poets Cesário Verde (1855-86) and Gomes Leal (1848-1921) in
relation to poetic modernism in Portugal, contributing, in this way, to the development of the
critical profile of these two authors and, above all, of Gomes Leal, a very important poet who
is yet insufficiently known in Brazilian university circles. The analysis will turn on the
principal themes of modern poetry the dubious relationship with the urban-industrial
complex, the personality of the femme fatale, the de-personalization of the poetic I”, and the
identity of opposites and its formal expression in the poetry of Cesário and Gomes Leal.
Within this framework, the relationships which can be established between the two poetical
oeuvres will become more evident.
KEYWORDS: Modern Poetry; Portuguese Poetry; Cesário Verde; Gomes Leal; Obra Poética
Integral de Cesário Verde (1855-86); Claridades do Sul.
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