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[...] era verdadeiramente meretriz; obedecia ao seu temperamento de mulher
ardente e cruel; vivia, mais refinada e mais selvagem, mais execrável e mais
extravagante; despertava mais energicamente os sentidos em letargo do
homem, enfeitiçava, domava-lhe com mais segurança as vontades, com seu
encanto de grande flor venérea brotada em canteiros sacrílegos, cultivada em
estufas ímpias.
(HUYSMANS, 1987, p. 89)
Salomé e/ou elementos a ela relacionados perturbaram a imaginação de muitos poetas
da segunda metade do século XIX, enfim. Se fizermos uma seleção, teremos: Banville; o já
citado Mallarmé; William Wilde; Gottfried Keller; Lorrain; Arsène Houssaye; Pierre Louÿs;
Albert Samain; Antoine Sabatier; Tristan Klingsor; Eugênio de Castro; Gérard d´Houville
(pseudônimo da Sra. Régnier).
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Mas quando tratamos do arquétipo feminino da femme fatale,
não podemos omitir Baudelaire que, para mim, foi mestre na arte de satanizar mulheres. O
soneto XXVII das Flores do mal (1857), abaixo transcrito, encerra uma figura salomaica:
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Essa perturbação persiste no século XX. Se fizermos uma seleção, incluir-se-iam nela Robert de Montesquiou,
com os poemas “Remorso” e “Paga” (ambos de 1901) e Sá-Carneiro, com o soneto intitulado precisamente
“Salomé” (1913). Podemos encontrar resquícios do arquétipo feminino da femme fatale ainda na
contemporaneidade, pois o homem ainda é homem e a mulher ainda é mulher. Isto é: o mistério do outro
persiste. Ana, personagem da narrativa poética Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar, parece-me um
magnífico exemplo desse resquício. Apegada à religiosidade e temente a Deus, não resiste à sensualidade e à
malícia sempre a ponto de explodir em dança. Na festa dedicada ao retorno do filho pródigo, “a dançarina
oriental” (NASSAR, 2005, p. 191), enfeitada com os adornos das prostitutas colecionados por André, não resiste
à música, enquanto André a contempla sentado sobre uma raiz exposta: “ [...] e quando menos se esperava, Ana
(que todos julgavam sempre na capela) surgiu impaciente numa só lufada, os cabelos soltos espalhando lavas,
ligeiramente apanhados num dos lados por um coalho de sangue (que assimetria mais provocadora!), toda ela
ostentando um deboche exuberante, uma borra gordurosa no lugar da boca, uma pinta de carvão acima do
queixo, a gargantilha de veludo roxo apertando-lhe o pescoço, um pano murcho caindo feito flor da fresta
escancarada dos seios, pulseiras nos braços, anéis nos dedos, outros aros nos tornozelos, foi assim que Ana,
coberta com as quinquilharias mundanas da minha caixa, tomou de assalto a minha festa, varando com a peste no
corpo o círculo que dançava, introduzindo com segurança, ali no centro, sua petulante decadência, assombrando
os olhares de espanto, suspendendo em cada boca o grito, paralisando os gestos por um instante, mas dominando
a todos com seu violento ímpeto de vida, e logo eu pude adivinhar, apesar da graxa que me escureceu
subitamente os olhos, seus passos precisos de cigana se deslocando no meio da roda, desenvolvendo com
destreza gestos curvos entre as frutas e as flores dos cestos, só tocando a terra na ponta dos pés descalços, os
braços erguidos acima da cabeça serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais lento, mais ondulante, as
mãos graciosas girando no alto, toda ela cheia de uma selvagem elegância, seus dedos canoros estalando como se
fossem, estava ali a origem das castanholas, e em torno dela a roda passou a girar cada vez mais veloz, mais
delirante, as palmas de fora mais quentes e mais fortes, e mais intempestiva, e magnetizando a todos, ela roubou
de repente o lenço branco do bolso de um dos moços, desfraldando-o com a mão erguida acima da cabeça
enquanto serpenteava o corpo, ela sabia fazer as coisas, essa minha irmã, esconder primeiro bem escondido sob a
língua sua peçonha e logo morder o cacho de uva que pendia em bagos túmidos de saliva enquanto dançava no
centro de todos, fazendo a vida mais turbulenta, tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação [...] e Ana,
sempre mais ousada, mais petulante, inventou um novo lance alongando o braço, e, com graça calculada (que
demônio mais versátil!), roubou de um circundante a sua taça, logo derramando sobre os ombros nus o vinho
lento, obrigando a flauta a um apressado retrocesso lânguido, provocando a ovação dos que a cercavam, era a
voz surda de um coro ao mesmo tempo sacro e profano que subia, era a comunhão confusa de alegria, anseios e
tormentos, ela sabia surpreender, essa minha irmã, sabia molhar a sua dança, embeber a sua carne, castigar a
minha língua no mel litúrgico daquele favo, me atirando sem piedade numa insólita embriaguez, me pondo
convulso e antecedente [...] eu que estava certo, mais certo do que nunca, de que era para mim, e só para mim,
que ela dançava (que reviravoltas o tempo dava! que osso, que espinho virulento, que glória para o meu corpo!)
[...]” (NASSAR, 2005, p. 186-9). Ana e André: agrestes Herodes e Salomé.