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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Ciências Sociais
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Claudio Luis de Alvarenga Barbosa
O problema da felicidade no pensamento de Karl Marx
Rio de Janeiro
2008
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Claudio Luis de Alvarenga Barbosa
O problema da felicidade no pensamento de Karl Marx
Dissertação apresentada, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre, ao Programa
de Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Filosofia Moderna e
Contemporânea.
Orientadora: Profª. Drª. Elena Moraes Garcia
Rio de Janeiro
2008
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/A
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação.
______________________________________ _____________________________
Assinatura Data
M392 Barbosa, Claudio Luis de Alvarenga.
O problema da felicidade no pensamento de Karl Marx / Claudio Luis de
Alvarenga Barbosa . - 2008.
86 f.
Orientadora: Elena Moraes Garcia.
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas.
Bibliografia: f. 82 - 86.
1. Marx, Karl, 1818-1883. 2. Felicidade - Filosofia – História – Teses. 3.
Capitalismo – Teses. 4. Filosofia moderna – Teses. I. Garcia, Elena Moraes. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.
CDU- 1”15/20
Claudio Luis de Alvarenga Barbosa
O problema da felicidade no pensamento de Karl Marx
Dissertação apresentada, como requisito parcial
para obtenção do Título de Mestre, ao Programa
de Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Filosofia Moderna e
Contemporânea.
Aprovada em ________________________________________________________
Banca Examinadora:
__________________________________________________________
Profª. Drª. Elena Moraes Garcia (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
__________________________________________________________
Prof. Dr. Olinto Antonio Pegoraro
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
__________________________________________________________
Prof. Dr. Hilton Ferreira Japiassu
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ
Rio de Janeiro
2008
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Antonio e Lenira, à minha esposa Deleide e aos meus irmãos André e
Fernando — amigos de todas as horas — pela compreensão, incentivo e solidariedade
demonstradas durante a elaboração deste trabalho, e pela convivência amiga, pelo
aprendizado da humildade e pelo exemplo de amor e fé.
À professora Elena Garcia, minha orientadora amiga, a presença segura, competente e
estimulante, pelo incentivo constante para a elaboração e conclusão desta pesquisa.
Aos professores Hilton Japiassu e Olinto Pegoraro, pela amizade, incentivo e
dedicação que demonstraram para o sucesso deste trabalho.
Aos funcionários da secretaria de Pós-Graduação em Filosofia pela presença amiga e a
presteza demonstrada durante toda a nossa convivência.
Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo
depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para
alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não
chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a
hora de ser feliz. Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem
está envelhecendo sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se
foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é
necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente,
tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la.
Epicuro
RESUMO
BARBOSA, Claudio Luis de Alvarenga. O problema da felicidade no pensamento de Karl
Marx. 2008. 86 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Desde os primórdios da filosofia, os gregos buscaram entender o significado da
felicidade. De um modo geral, partiram da constatação de que todos os homens almejam a
felicidade e conduzem suas vidas em função dessa noção. Mas isso, não significa que todos
entenderam a felicidade da mesma maneira. Ao longo da história da filosofia surgiram várias
concepções de felicidade que tentaram dar conta da complexidade dessa noção. E entre essas
concepções, a engendrada pelo capitalismo parece direcionar de forma dominante a vida do
homem contemporâneo. Desenvolvendo-se a partir da crítica à sociedade capitalista, a obra de
Karl Marx acaba representando também, uma oposição à noção de felicidade desenvolvida
nesse cenário. Assim, o objetivo inicial deste trabalho foi discutir o conceito de felicidade
dominante na sociedade capitalista, à luz da obra de Marx. Tomando por base o pensamento
desse autor, constituímos uma noção de felicidade a partir de sua perspectiva. Com os
resultados desta pesquisa, acreditamos trazer contribuições que levem o homem a superar esse
modo de produção depredatório, representado pelo capitalismo. A filosofia de Marx pode
ajudar o ser humano a libertar-se de saberes preconcebidos — que o impossibilitam de se
relacionar de uma forma diferente com o mundo — levando-o à constituição de uma vida feliz
totalmente diferente da que lhe é permitida pelos limites de uma sociedade dividida em
classes.
Palavras-chaves: Felicidade. Capitalismo. Karl Marx. Ética.
ABSTRACT
From the origins of the philosophy, the Greeks looked for to understand the meaning
of the happiness. In general, they broke of the verification that all of the men long for the
happiness and they drive their lives in function of that notion. But that doesn't mean that all
understood the happiness in the same way. Along the history of the philosophy several
conceptions of happiness that tried to give bill of the complexity of that notion appeared. And
among those conceptions, engendered it by the capitalism seems to address in a dominant way
the contemporary man's life. Growing starting from the critic to the capitalist society, Karl
Marx's work ends up also acting, an opposition to the notion of happiness developed in that
scenery. Like that, the initial objective of this work was to discuss the concept of dominant
happiness in the capitalist society, to the light of Marx's work. Taking for base that author's
thought, we constituted a notion of happiness starting from his perspective. With the results of
this research, we believed to bring contributions that light the man to overcome that way of
production depredatory, acted by the capitalism. Marx's philosophy can help the human being
to free of you know preconceived — that disable him of relating in a way different with the
world — totally taking him to the constitution of a happy life different from the one that is
allowed him by the limits of a society divided in classes.
Keywords: Happiness. Capitalism. Karl Marx. Ethics.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................
07
1 O PROBLEMA FUNDAMENTAL DA FILOSOFIA E O
MATERIALISMO DE MARX...........................................................................
21
2 A FELICIDADE NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA: PASSAGENS DA
ANTIGÜIDADE AO TEMPO DE MARX........................................................
37
3 MARX E A CRÍTICA AO CAPITALISMO: EM BUSCA DA
FELICIDADE.......................................................................................................
52
4
CONCLUSÃO......................................................................................................
69
REFERÊNCIAS...................................................................................................
82
7
INTRODUÇÃO
Qual homem nunca se perguntou sobre o sentido de sua vida? O que buscamos durante
nossa breve passagem pelo mundo? Por que, de um modo geral, os seres humanos lutam para
se manterem vivos ao invés de simplesmente se deixarem “levar” pela morte? Vivemos dia
após dia, ora trabalhando, ora festejando; alguns sofrem, outros se divertem... Mas qual a
força que nos move? Em nosso cotidiano tomamos as atitudes que estão ao nosso alcance para
favorecer relações pessoais, preservar ou melhorar uma certa imagem que temos de nós
mesmos, buscamos alcançar benefícios para que tenhamos uma boa existência, uma boa vida:
buscamos a felicidade.
Alguns filósofos acreditam que para tudo o que fazemos existe um fim que desejamos,
e em última instância, esse fim é a felicidade. Dessa forma, ao homem não bastaria a
sobrevivência, mas seria necessária, sobretudo, a felicidade. No entanto, enquanto para uns a
felicidade está na busca do prazer, para outros, os prazeres provocam instabilidade, dor e
sofrimento, e a felicidade consistiria na total ausência de perturbação. Há também, quem
pense que a verdadeira felicidade só se encontra no destino após a morte. Em Santo
Agostinho (354-430 d.C.), por exemplo, a vida feliz é algo que não alcançaremos neste
mundo, mas apenas após a salvação. Dessa forma, para esse filósofo, a felicidade dependeria
de uma vida terrena dedicada à contemplação de Deus: “estamos convencidos de que, se
alguém quiser ser feliz, deverá procurar um bem permanente, que não lhe possa ser retirado
em algum revés da sorte. [...] Logo, quem possui a Deus é feliz!” (AGOSTINHO, 1998, p.
130-131).
Mas se para alguns filósofos a felicidade é um fim em si, existem intelectuais – de
outras áreas do conhecimento humano — que defendem que ela é uma conseqüência do jeito
que o indivíduo conduz sua vida. Para o psicólogo norte-americano Robert Wright (apud
AXT, 2005, p. 45), por exemplo, “as leis que governam a felicidade não foram desenhadas
para nosso bem-estar psicológico, mas para aumentar as chances de sobrevivência dos nossos
genes a longo prazo”. Ou seja, a felicidade seria um truque da natureza, desenvolvido ao
longo de milhões de anos de evolução humana com a finalidade de preservação da espécie.
8
Pois ao querer repetir experiências prazerosas — geralmente associadas àquelas que
aumentam as chances de sobrevivência e procriação — o homem persegue incessantemente as
coisas que o deixam feliz, acabando por aumentar suas chances de transmitir seus genes
(AXT, 2005).
Mas então, o que é a felicidade? Qual o significado dessa palavra que gera tantas
polêmicas entre pensadores de diversas áreas? Qual a noção de vida feliz que governa nosso
cotidiano? Essa noção é idêntica para todos?
Perguntas dessa natureza acompanham o homem há muitos séculos. Basta olharmos a
história do homem sobre a Terra e a evolução de seu pensamento, para percebermos com
certa facilidade que nenhum conceito ou noção se fez tão presente às preocupações humanas
quanto a noção de felicidade. De forma explícita e consciente ou de uma forma mais
“instintiva” ou indireta, em suas ações, o homem sempre almejou a felicidade. Parece-nos, até
mesmo, que essa ânsia de ser feliz é um ponto comum que une os homens de diferentes
épocas.
Mas essa constatação, já nos coloca diante de duas dificuldades. Em primeiro lugar,
por conta do próprio caráter pluridimensional do homem, a felicidade foi alvo de inúmeras
definições, pautadas nos mais diversos critérios. Diante disso, torna-se impossível, nos limites
desta pesquisa, uma discussão exaustiva sobre a felicidade, que pudesse contemplar tantas
orientações, muitas vezes conflitantes.
Um segundo ponto que devemos destacar e, que complementa o primeiro, é o fato
dessas concepções não terem afirmado que a felicidade foi alcançada plenamente: não apenas
no discurso, mas na prática. Por essas duas razões, não podemos dispensar uma discussão
sobre a felicidade, que leve em consideração o caráter histórico de suas definições. Pois em
geral, essas definições históricas da felicidade vêm acompanhadas de perspectivas éticas que
servem de referenciais para entender a conduta humana.
Desde o surgimento da filosofia, na Antigüidade Clássica, os gregos já falavam em
felicidade. No século IV a.C., Aristóteles (1979, p. 49) afirmava que “para as coisas que
fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais é desejado no interesse
desse fim, [...] evidentemente tal fim será o bem, ou antes, o sumo bem”. Nesse sentido,
9
acreditava que “quase todos estão de acordo [...] ser esse fim a felicidade e identificam o bem
viver e o bem agir com o ser feliz. Diferem, porém, quanto ao que seja a felicidade, e o vulgo
não o concebe do mesmo modo que os sábios” (ARISTÓTELES, 1979, p. 51).
Tomando como verdadeiro o que foi dito por esse filósofo grego, se por um lado
podemos inferir que, em última instância, o que todo homem quer — e isso vale para todas as
épocas — é ser feliz, o mesmo não podemos dizer sobre o que se considera como felicidade,
para homens de épocas distintas. Afirmar que os homens sempre conduziram suas vidas
tentando atingir a felicidade, não quer dizer que todos trilharam o mesmo caminho para
atingir esse objetivo, já que o conceito de felicidade teve diversos significados ao longo da
história da humanidade.
Esses diversos significados engendraram condutas específicas para atingi-los. Ser
feliz, não importando em qual significado, sempre pressupôs determinados padrões de
comportamento. Ou seja, a felicidade, enquanto um valor a ser almejado a qualquer custo
implica a adoção de certos padrões de comportamentos e atitudes diante da vida, que
garantam ao ser humano o alcance desse valor. E dentre os padrões adotados pelo homem na
busca da felicidade destaca-se, por sua influência no mundo contemporâneo, o engendrado
pelo capitalismo.
A estreita relação que se estabeleceu entre a doutrina ética conhecida como
utilitarismo e as doutrinas da nascente ciência econômica liberal, no final do século XVIII,
permitiu ao cânon capitalista chegar ao século XXI com grande poder de persuasão. Dessa
forma, a noção de felicidade engendrada pela aliança entre utilitarismo e capitalismo
1
parece
ter se colocado acima de todas as outras concepções de felicidade surgidas até então, se
mostrando como uma das mais sedutoras no mundo globalizado contemporâneo.
Se desde Platão (427-348 ou 347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), as discussões
giravam em torno da responsabilidade individual pela busca da felicidade, foi com a escola
utilitarista que a idéia de felicidade ganhou um cunho mais social. Na definição de John Stuart
Mill (1806-1873) — a quem cabe o mérito de haver elaborado uma forma sofisticada de
1
Utilizamos o termo conforme a seguinte definição: “qualquer que seja a sua forma, é a propriedade privada do capital nas
mãos de uma classe, a classe dos capitalistas, com a exclusão do restante da população, que constitui a característica básica
do capitalismo como modo de produção” (BOTTOMORE, 1988, p. 51). A discussão desse conceito será realizada no
capítulo três deste trabalho.
10
utilitarismo — as ações são boas quando tendem a promover a felicidade, e são más quando
tendem a promover o oposto da felicidade. Essas ações são boas ou más conforme suas
conseqüências, sendo que o objetivo de uma boa ação, de acordo com os princípios do
utilitarismo, é promover em maior grau o bem geral.
Mas o que é bem geral? A partir desse questionamento, surgiu uma série de objeções
ao utilitarismo, geralmente apontando para a dificuldade de se estabelecer um critério
definidor de “bem geral”. Por não priorizar as condições histórico-sociais nas quais deve ser
aplicado seu princípio (a maior felicidade para o maior número de homens), critica-se o
utilitarismo por não levar em consideração que, “nas sociedades baseadas na exploração do
homem pelo homem, a felicidade do maior número de homens não pode ser separada da
infelicidade que a torna possível” (VÁZQUEZ, 1995, p. 148). Dessa forma, essa doutrina
aceita o sacrifício de uma minoria em nome desse bem geral. Critica-se também o
utilitarismo, por não levar em consideração as intenções e motivos nos quais a ação se baseia,
levando em conta apenas seus efeitos e conseqüências (JAPIASSU; MARCONDES, 1996).
Desenvolvendo-se a partir da crítica à sociedade capitalista, a obra de Karl Marx
(1818-1883) acaba representando também uma oposição a esse utilitarismo clássico.
Diferentemente dos utilitaristas, Marx explica a moral como uma das expressões da
consciência humana. Para ele, essas expressões refletem as relações sociais estabelecidas no
mundo do trabalho, e a cada variação do modo de produção (maneira como se organiza a
produção), modificam-se as normas morais, assim como os valores políticos, estéticos etc.
Ao aceitarmos a felicidade como um valor moral, tomamos como pressuposto que o
conceito de felicidade é histórico. Nesse contexto, apesar de ter sofrido várias interpretações
ao longo do tempo, o conceito de felicidade assumiu uma perspectiva única a partir do
advento do capitalismo, que se tornou hegemônica nas sociedades que vivem sob a égide
desse modelo econômico. Esse novo sentido dado à noção de felicidade ignora todas as
outras, impregnando o modo de vida do homem contemporâneo.
Não podemos esquecer, que o processo histórico nos legou uma preocupação de
sempre olhar para algo tendo em vista, prioritariamente, a busca pela sua utilidade. Essa
constante busca pela utilidade de algo, esse permanente questionar “para que serve isso?”, foi
produzido sob certa noção de racionalidade enquanto “modo como traçamos a relação entre
11
nossa inteligência e o mundo” (ANDRADE, 2005, p. 11). Julgava-se que quanto mais o
homem fosse capaz de dominar as forças da natureza — e aí se inclui o próprio homem
maior seria a sua inteligência.
Nesse contexto, pensar era “tomar providências para tirar o máximo de proveito dos
recursos naturais, sem a menor preocupação em sarar as feridas que essa extração provocava
no meio ambiente” (ANDRADE, 2005, p. 11). E nessa perspectiva depredatória, “a busca da
dominação do meio externo exacerba-se na dominação da natureza interna do homem — sua
alma” (ibid., p. 11). Como seria possível uma vida passível de ser chamada de feliz em um
ambiente depredatório como esse?
Se aceitarmos que a felicidade é um bem em si mesmo, ela deve ser superior a
qualquer noção de utilidade, e neste caso, não encontramos alguém querendo ser feliz para
outra coisa, já que “ser feliz” não servirá para alcançar algo mais além. Entretanto, nossa
cultura utilitária engendrada no seio da civilização capitalista deturpa essa idéia de felicidade,
que se arrasta desde Aristóteles, nos fazendo acreditar “que seremos tanto mais felizes quanto
mais soubermos utilizar as pessoas, como o primeiro homem utilizou a mulher, e os filhos e
os mais fracos, para destruir a natureza e a nós mesmos depois” (ibid., p. 11).
É justamente porque vivemos nesse tipo de civilização — que prioriza o “levar
vantagens”, principalmente sobre a infelicidade alheia — que muitas pessoas são levadas a
perguntarem sobre a utilidade das coisas e, até mesmo sobre a utilidade da filosofia. Mas se
partirmos do princípio de que a filosofia tem a ver com certo exercício de liberdade, ao
tentarmos apreender uma noção de felicidade na expressão ética do pensamento de Karl
Marx, temos que levar em consideração que um dos motores do pensamento desse autor, é a
transformação da liberdade formal — existente no capitalismo — em liberdade de fato, ao
menos no nível máximo possível. Com isso, o que pretendemos com este trabalho, a
princípio, foi discutir o conceito de felicidade dominante na sociedade capitalista, à luz da
obra desse autor.
A partir dessa discussão, acreditamos poder contribuir para a constituição de uma
noção de felicidade a partir do pensamento de Marx que leve o homem a superar esse modelo
de civilização depredatório, imposto pelo capitalismo. A filosofia de Marx pode ajudar o ser
humano a libertar-se de saberes preconcebidos que o impossibilitam de se relacionar de uma
12
forma diferente com o mundo, levando-o à constituição de uma vida feliz, totalmente
diferente da que lhe é permitida pelos limites da sociedade capitalista.
Na medida em que Marx não se deteve diretamente sobre o conceito de felicidade, a
apreensão do mesmo foi realizada a partir do estudo e da interpretação de sua obra. Em sua
vasta produção literária, além de apresentar seu método filosófico, Marx “descreve o
capitalismo através de suas três relações fundamentais: relação de troca mercantil, relação
salarial e relação de produção, que são as formas específicas de organização do trabalho no
capitalismo” (HUISMAN, 2000, p. 37). E é através do estudo dessas relações que poderemos
estabelecer as bases do conceito de felicidade em Marx.
Na tentativa de sintetizar o que apresentamos até o momento, ou ainda, se quiséssemos
justificar com um único motivo nosso esforço para a elaboração desta pesquisa, podemos
afirmar que a escolha por trabalhar com Marx deve-se à magnitude de sua trajetória
intelectual. A qualidade do vasto conjunto de seus escritos, excepcionalmente admirado ou
vivamente criticado, fez de Marx um marco da Filosofia Contemporânea, pois nenhum outro
pensador parece ter conseguido influenciar tantas áreas de conhecimento, tais como: história,
sociologia, economia e filosofia. Por isso, sua obra impõe-se como leitura indispensável para
todos os que procuram compreender as razões profundas do que se convencionou chamar “a
crise do nosso tempo”.
Entretanto, o fato de definirmos a obra de Marx como foco central de nosso trabalho,
não excluiu a leitura de outros trabalhos que Marx escreveu juntamente com Engels (1820-
1895) e, também, trabalhos escritos apenas por este. Tal opção metodológica justifica-se pelo
fato de ter sido Engels o principal colaborador de Marx. Por essa razão, em muitos momentos
é difícil a separação entre as idéias que são de Marx e as que são de Engels, em pontos
centrais do sistema de pensamento de Marx. Assim, por exemplo, “considera-se, geralmente,
que o materialismo dialético, especialmente a dialética da natureza, é uma criação típica de
Engels, sendo, no entanto, de grande importância e influência no desenvolvimento da filosofia
marxista” (JAPIASSU; MARCONDES, 1996, p. 82). Além disso, também utilizaremos
alguns intérpretes do pensamento de Karl Marx relacionando-os às questões estudadas, dentre
os quais destacamos Comte-Sponville, Erich Fromm e István Mészáros.
13
Pelo exposto até este ponto, temos razão para acreditar que mesmo sem trabalhar
explicitamente com uma noção de felicidade, ou ainda, mesmo sem lançar mão do conceito de
felicidade em seus principais escritos, podemos apreender essa noção na obra de Karl Marx.
Apesar de não escrever um trabalho específico sobre a felicidade, como fizeram muitos outros
filósofos, parece-nos que a preocupação com esse “estado [a felicidade] de satisfação plena e
global de todas as tendências humanas” (JAPIASSU; MARCONDES, 1996, p. 100) conduziu
as reflexões de Marx acerca da condição do homem. Desde os seus primeiros escritos, em que
expressa seu ódio ao servilismo quando discute a alienação nos Manuscritos econômico-
filosóficos e em A ideologia alemã, até os violentos ataques às condições nas fábricas e à
desigualdade em O Capital, é evidente que Marx era movido pela indignação e por um
intenso desejo de um mundo melhor, onde os homens pudessem ter acesso à felicidade.
Nessa perspectiva, se aceitássemos como verdadeiro o princípio utilitarista da “maior
felicidade para o maior número”, esbarramos em grandes dificuldades se considerarmos a
visão de Marx ao defender que, em uma sociedade dividida em classes antagônicas, o “maior
número” tropeça nos limites insuperáveis impostos pela própria estrutura social. Ou seja, “se
o conteúdo do útil se identifica com a felicidade, o poder ou a riqueza, veremos que a
distribuição destes bens que se julgam valiosos não pode estender-se além dos limites
impostos pela própria estrutura econômico-social da sociedade — tipo de relações de
propriedade, correlação de classes, organização estatal etc” (VÁZQUEZ, 1995, p. 148).
Em contrapartida, acreditamos que a obra de Marx abre a possibilidade de se pensar
uma noção de felicidade emancipadora das potencialidades do homem, ao contrário da forma
de felicidade engendrada pelo capitalismo (e sua perspectiva utilitarista), cujo objetivo é
recobrir a dominação de classe burguesa. Se a noção de felicidade dominante em uma
sociedade, como pode ser inferida da obra de Marx, é produto das relações econômicas de
uma época, só pode ser adequadamente apreendida a partir do conceito de trabalho e das
relações de intercâmbio que o homem estabelece com a natureza, como já assinalamos
anteriormente. Portanto, a constituição da noção de felicidade no pensamento de Karl Marx,
tem seus fundamentos pautados na preocupação com o homem e com a realização de suas
potencialidades.
Acreditamos que a felicidade em Marx se define a partir do momento em que ocorre a
verdadeira apropriação da natureza humana por meio “do” e “para” o homem. Sendo que essa
14
apropriação pode ocorrer como conseqüência do comunismo, enquanto abolição positiva da
propriedade privada
2
e da auto-alienação humana. O comunismo, dessa forma, entendido
como “o retorno do próprio homem definido como ser social, isto é, realmente humano, um
retorno completo e consciente que assimile toda a riqueza da evolução anterior” (FROMM,
1975, p. 41), parece ser o caminho e a condição para que o homem alcance a autêntica vida
feliz. Tudo o mais, todo o processo revolucionário, passando ou não pelo socialismo (ou por
outras etapas), seria desejado no interesse desse fim: o fim que desejamos por ele mesmo, ou
seja, a felicidade.
Essa suposição parece ratificar a idéia de felicidade como um estado de satisfação
plena (JAPIASSU; MARCONDES, 1996), opondo-se à tentativa de identificar a felicidade
apenas como uma “ventura [...], boa fortuna, dita sorte” (FERREIRA, 1999, p. 891).
Depreende-se daí, que a felicidade em Marx aparece como um ato consciente de auto-
realização, em que o homem engendra a si próprio no decurso da história. Em outras palavras,
a pavimentação do caminho para essa felicidade pressupõe a autocriação através do trabalho
como fator principal da história: o trabalho aparece como um elemento que exerce papel
central na teoria de Marx. Ou seja, para se entender o homem é essencial começar pelo estudo
das condições materiais de sua produção.
Segundo Fromm (1975, p. 49), “o tema central de Marx é a transformação do trabalho
alienado e desprovido de significado em trabalho produtivo e livre, e não a melhor paga para
o trabalho alienado para um capitalismo privado ou por um capitalismo de Estado abstrato”.
Em outras palavras, Marx parece buscar o que considera ser a felicidade — apesar de não usar
esse termo — ao mesmo tempo em que procura desvelar a noção ideológica de felicidade
engendrada pelo capitalismo.
Apesar de acreditarmos que os principais pontos que foram desenvolvidos nesta
pesquisa já tenham sido expostos, gostaríamos de tangenciar melhor o tema através de sua
problematização. Em outras palavras, se tomarmos a acepção mais simples de pesquisa e
aceitarmos que pesquisar é responder perguntas, poderíamos dizer que as preocupações que
2
Fala-se em abolição positiva pois, “por propriedade privada [...] Marx nunca se refere à propriedade privada de bens de uso
(como uma casa, uma mesa etc). Ele tem em vista a propriedade [...] dos capitalistas que, por possuírem os meios de
produção, podem contratar o indivíduo desprovido de propriedade para trabalhar para eles, em condições que este último se
vê obrigado a aceitar” (FROMM, 1975, p. 41).
15
balizaram esta pesquisa encontram-se sintetizadas nos seguintes questionamentos iniciais,
relativos à felicidade no pensamento de Karl Marx:
¾ A felicidade é um estado de satisfação plena ou compõe-se de breves períodos
de satisfação, intercalados por períodos de sofrimento?
¾ A felicidade é determinada mais pelo estado mental da pessoa do que por
acontecimentos externos? Ou pelo contrário, existe alguma relação entre a
felicidade e as condições materiais de existência, conforme podemos
depreender do pensamento de Karl Marx?
¾ Se aceitarmos a felicidade como a única meta humana que possui valor em si
mesma, podemos subordiná-la a qualquer noção de utilidade? Em caso
negativo, as outras metas que um homem pode almejar — tais como amor,
dinheiro, beleza, saúde, poder — fazem algum sentido se não forem entendidas
apenas como meios para atingir a felicidade?
¾ Se a felicidade for entendida como um fim que desejamos por ele mesmo, a
infelicidade seria, pelo contrário, tomá-la por meio para alcançar outra coisa? E
neste caso, ao denunciar os mecanismos que ocultam a exploração capitalista
(alienação, reificação e fetichismo)
3
, não estaria Marx indiretamente
colaborando para devolver à felicidade seu status de valor em si mesmo, já que
nas sociedades organizadas segundo esse modo de produção há uma inversão
e, com isso, o acúmulo crescente de capital é que aparece como fim tendo a
felicidade como conseqüência?
¾ Seguindo o princípio “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo
suas necessidades”, seria o comunismo, conforme proposto por Marx, a
solução para os problemas práticos da existência humana e, conseqüentemente,
sinônimo de “vida feliz”?
Esse conjunto de indagações, na verdade, representa um desdobramento do objetivo
geral deste estudo que foi, como já vimos anteriormente, discutir a noção hegemônica de
felicidade na sociedade capitalista, tendo por base a obra de Karl Marx e, com isso, contribuir
para a plena realização do homem total e inalienado. Visando portanto, responder a esses
3
Essas categorias serão discutidas no capítulo 3.
16
questionamentos, realizamos uma pesquisa bibliográfica, onde investigamos nosso problema a
partir do referencial teórico existente nas publicações pertinentes ao tema proposto.
Segundo Henning (2006, p. 176), “como processo de investigar, a pesquisa filosófica
apresenta uma atitude diferenciada diante do conhecimento, formulando perguntas cuja
importância possa se mostrar incompreensível para alguns, não podendo ser abordada ou,
talvez, esgotada, por outras áreas do saber”. Dessa forma, partindo da bibliografia levantada,
buscamos entrar em contato direto com tudo aquilo que foi escrito sobre os assuntos pontuais
que nos interessavam para esta pesquisa (materialismo de Marx, felicidade, crítica ao
capitalismo), como forma de subsidiar nossa análise e manipulação dessas informações, na
perspectiva filosófica de buscar a compreensão geral e inter-relacionada dos valores e da
realidade.
Se por um lado, a resolução do problema proposto neste estudo foi obtida de maneira
satisfatória pela predominância da pesquisa bibliográfica, por outro, acreditamos que os
resultados encontrados poderão dar respaldo a futuras pesquisas, de caráter aplicado. Mas esta
compreensão só é possível pelo perfil filosófico desta pesquisa, pois, ao instigar a
investigação, a filosofia
propõe formas ativas, dialogais e intersubjetivas para incitar a busca; estimula o
questionamento; não se convence com os dogmatismos e as formas impositivas de pensar e de
agir, se mostrando, ao contrário, avessa às fórmulas prontas, desejando a interrogação direta,
corajosa e intermitente (HENNING, 2006, p. 173).
Com isso, é a partir da adoção de um procedimento sistemático, controlado e crítico
(típico da pesquisa filosófica) que nos foi permitido descobrir novos fatos, dados ou relações
no campo de conhecimento que nos propomos a investigar. Esse procedimento nos conduziu à
elaboração de uma dissertação composta por três capítulos, a saber:
1 – O problema fundamental da filosofia e o materialismo de Marx — onde
discutimos a questão fundamental da filosofia, representada pela relação entre pensamento e
ser. Levando-se em consideração o caráter revolucionário e o papel ativo da “nova filosofia”
proposta por Marx — que não apenas deve interpretar o mundo, mas sim transformá-lo —
toma-se como primeiro pressuposto que a oposição entre ser e pensamento ou, de uma forma
mais geral, entre matéria e consciência é uma abstração. Pois, essas categorias — matéria e
17
consciência — nada mais são do que as formações conceituais da filosofia que, de uma
maneira ou de outra, se complementam. Essa oposição “conduz diretamente a uma das duas
possíveis orientações fundamentais da filosofia: ou ao materialismo ou ao idealismo”
(HAHN; KOSING, 1983, p. 30).
A partir desse ponto, discutem-se as bases do materialismo histórico, enquanto método
de interpretação histórica e dialética, proposto por Marx. Esse materialismo defende a tese de
que as sociedades humanas e as formas por elas assumidas no transcurso da história são
dependentes das relações econômicas que os homens estabelecem em cada fase. Assim, como
o próprio nome indica, o materialismo histórico intenta explicar os acontecimentos históricos
a partir de fatores materiais, mais especificamente, pelos fatores econômico-sociais (técnicas
de trabalho e de produção / relações de trabalho e de produção).
Entretanto, antes de pensarmos o materialismo histórico como um fator limitador da
ação do homem no cenário de dados impostos, não podemos esquecer que no interior desse
cenário de condições dadas, o homem não apenas pode agir, mas deve agir. Pois, segundo
Marx, no aparente conflito entre um determinismo histórico e um apelo à luta temos antes de
tudo a práxis, que aparece como um elemento de equilíbrio e síntese.
Em uma palavra, a filosofia de Marx, nascida da ação, é também uma doutrina feita
para a ação, ou seja, é uma filosofia da práxis, que une a compreensão teórica à ação real, com
vistas à transformação radical da sociedade (VÁZQUEZ, 1977). Enquanto uma reação contra
o pensamento espiritualista e idealista, essa filosofia situa a ação no princípio do pensamento.
2 – A felicidade na história da filosofia: passagens da Antigüidade ao tempo de
Marx — neste capítulo desenvolvemos uma discussão sobre a felicidade no transcurso da
história da filosofia. No entanto, essa história é estudada não apenas como uma seqüência de
fatos que se sucedem no tempo, mas principalmente como uma luta constante entre
concepções filosóficas diferentes. A partir do confronto entre filosofia idealista e filosofia
materialista — ou ainda, a partir da oposição entre idealismo e materialismo — verificamos
que a noção de felicidade foi se construindo ao sabor desses embates. E se estamos
trabalhando na perspectiva de Marx, não podia ser diferente, pois para esse filósofo
18
a história de toda sociedade até hoje é a história de lutas de classes. Homem livre e escravo,
patrício e plebeu, barão e servo, mestres e companheiros, numa palavra, opressores e oprimidos,
sempre estiveram em constante oposição uns aos outros, envolvidos numa luta ininterrupta, ora
disfarçada, ora aberta, que terminou sempre ou com uma transformação revolucionária de toda a
sociedade, ou com o declínio comum das classes em luta (MARX; ENGELS, 1993, p. 66).
Isso significa que a disputa entre os sistemas filosóficos no decorrer da história — essa
luta ininterrupta no interior da filosofia — tem causas profundas, enraizadas na própria
estruturação da sociedade. A filosofia acaba sendo a expressão da forma mais geral de
interesses, anseios e idéias das classes sociais. Nessa perspectiva, inspirada no pensamento de
Marx, a luta entre posições filosóficas é, de certo modo, reflexo da luta econômica e política
entre as classes.
Seguindo essa linha de raciocínio, a partir do único ponto que parece ser consensual
entre materialistas e idealistas — a constatação de que todos os homens almejam a felicidade
— discutimos na primeira metade deste capítulo, os argumentos utilizados pelos filósofos
idealistas em sua defesa do que entendem por “vida feliz”. De um modo geral, esses filósofos
defendem que a felicidade não depende unicamente do homem. O homem, sozinho, é
impotente para alcançar a felicidade.
Durante sua passagem no mundo, o homem pode apenas ter uma vaga noção da vida
feliz que o aguarda após sua morte, desde que, esse homem conduza sua vida mundana em
consonância com a vontade de Deus. Mesmo se não fizermos menção à palavra “Deus”,
podemos também entender que a partir dessa concepção idealista, admite-se que o “espírito”
(ou as formas ideais / idealistas) é designado como sendo o princípio organizador da realidade
social e, conseqüentemente, responsável pela felicidade do homem, ou de sua alma. Assim, o
idealismo é o termo genérico utilizado para identificar todas as doutrinas filosóficas que
atribuem causalidade apenas à idéia, à consciência. E nesse caso, é a vida “espiritual” que
condiciona a produção da vida feliz.
Em contrapartida, após essa jornada na história da felicidade à luz do idealismo,
fazemos o mesmo a partir da perspectiva materialista, de um modo geral, até chegar ao
materialismo de Marx, especificamente. Ou seja, tentamos recriar o pensamento de alguns
filósofos identificados como materialistas, em relação à noção de felicidade.
19
Partindo-se do princípio geral de que por materialismo designam-se as concepções
filosóficas cuja causalidade encontra-se na matéria, temos, por conseguinte, que a noção de
felicidade engendrada pelos filósofos que compõem este grupo é oposta à felicidade como
entendida pelos idealistas. Essa felicidade (materialista) encontra-se, de certa maneira, sob
controle do próprio homem. Dessa forma, não cabe ao ser humano preocupar-se com seu
destino após a morte, mas sim, buscar a felicidade enquanto habitante deste mundo.
Quando o termo “materialismo” é aplicado ao método proposto por Marx, isso
significa que esse pensador não deixa de estar vinculado a essa tradição filosófica. Entretanto,
no sentido do materialismo dialético e histórico encontrado no pensamento de Marx, não se
identifica como matéria apenas os corpos materiais que possuem propriedades mecânicas.
Nessa perspectiva, todo o mundo material, em todas as suas formas qualitativamente
diferentes enquadram-se na categoria matéria, pois se entende que a propriedade essencial
dessa categoria — em todas as suas formas fenomênicas — “é a propriedade de existir
independentemente e fora da consciência humana” (HAHN; KOSING, 1983, p. 50).
Ao contrário do idealismo, e diferentemente do materialismo “anterior” a Marx, na
interpretação do materialismo histórico a organização social funda-se nas relações de trabalho
concretas. Segundo Barbosa (1998, p. 145), “a dimensão histórica desse materialismo decorre
exatamente do fato de ele assumir que a produção historicamente diversa da vida material
condiciona, em geral, a produção da vida social, política e espiritual” e, portanto, condiciona
também a noção de felicidade.
3 – Marx e a crítica ao capitalismo: em busca da felicidade — Neste último
capítulo, tomando por base os pressupostos estabelecidos no capítulo primeiro, fazemos a
aplicação da filosofia de Marx e, com isso, o capitalismo é pensado a partir dessa perspectiva.
Se a filosofia idealista tinha por base a colocação do pensamento, ou do “espírito”, como
ponto central para dele inferir as conseqüências práticas, a práxis — pautada no materialismo
histórico — situa a ação no princípio do pensamento.
Nessa perspectiva, os problemas práticos referentes à existência humana são vistos
como os problemas centrais para o homem. E se tomarmos o princípio, já visto neste trabalho,
de que todos os homens têm por fim último atingir a felicidade, podemos inferir que a “vida
20
feliz” em Marx se daria na medida em que o homem resolvesse seus problemas existenciais
práticos.
Por essa razão, considerado como um elo entre o homem e a natureza, o trabalho
aparece para Marx como elemento que exerce papel central em sua teoria, na medida em que,
aparece como o mais representativo dos problemas práticos da existência concreta do ser
humano. Para esse filósofo, o trabalho surge como um esforço realizado pelo homem para
regular seu metabolismo com a natureza, ou seja, o trabalho mostra-se como um “processo em
que o ser humano com sua própria ação impulsiona, regula e controla seu intercâmbio
material com a natureza [...]. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao
mesmo tempo modifica sua própria natureza” (MARX, 1975a, p. 202).
Ou seja, enquanto expressão da vida humana, o trabalho modifica a relação do homem
com a natureza e, com isso, o homem transforma-se a si mesmo. Mas esse processo de
trabalho descrito por Marx “em seus elementos simples e abstratos, é atividade dirigida com o
fim de criar valores de uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas”
(ibid., p. 208). Sendo assim, os elementos atribuídos a esse processo de trabalho em geral, não
se aplicam ao trabalho controlado pelo capitalista.
Quando o processo de trabalho ocorre como um processo onde o capitalista é o
responsável pelo consumo da força de trabalho, dois fenômenos caracterizam esse processo:
“O trabalhador trabalha sob o controle do capitalista, a quem pertence seu trabalho [...]. Além
disso, o produto é propriedade do capitalista, não do produtor imediato, o trabalhador” (ibid.,
p. 209). Portanto, o trabalho subjugado pelo capitalismo impede que o homem tenha uma vida
feliz. Em contrapartida, a felicidade verdadeira se daria quando o trabalho — já livre do efeito
pernicioso da sociedade de classes — permitisse ao homem romper as cadeias da ilusão
criadas pelo capitalismo e vivesse numa sociedade totalmente humana.
21
1 – O PROBLEMA FUNDAMENTAL DA FILOSOFIA E O MATERIALISMO DE
MARX
Durante muito tempo, os economistas viram o marxismo apenas como mais um
sistema econômico, uma forma particular de socialismo. Tal lacuna — que deixa passar
despercebido o pensamento filosófico de Marx — teve como principal justificativa o fato de
que suas principais obras filosóficas ficaram por muito tempo inéditas. Segundo Piettre (1969,
p. 25), essas obras, “publicadas em alemão, em 1932 e 1933, não foram traduzidas totalmente
em francês senão depois da Segunda Guerra Mundial”. Mas ao se estabelecer contato com
essas obras, percebe-se que, “antes de ser um sistema econômico, o marxismo — ao contrário
dos outros sistemas econômicos — é antes de tudo uma Filosofia, não sendo a sua Economia
mais do que uma aplicação dessa última” (ibid, p. 25).
No entanto, o pensamento filosófico de Marx tem sido vítima de algumas
ambigüidades que mais facilmente o atingem do que à economia marxista. Apesar do
marxismo ser uma fascinante construção cultural que conjuga o pensar e o fazer, parece não
existir algo como “o marxismo”, mas segundo Netto (1994, p. 9), “há marxismos, vertentes
diferenciadas e alternativas de uma já larga tradição teórico-política”. Para esse autor, “a
hipótese de um marxismo único, puro e imaculado remete mais à mitologia política e
ideológica do que à crítica racional” (ibid., p. 9).
A partir da afirmação anterior, podemos inferir que a primeira dificuldade que
encontramos ao abordar o pensamento de Karl Marx está na exigência de uma depuração do
pensamento a ele atribuído. Ou seja, pelo fato de seu nome ser muito conhecido e citado em
discussões de várias áreas do conhecimento, freqüentemente “o que as pessoas pensam que
sabem a respeito das idéias de Marx é um acúmulo de equívocos e mal-entendidos”
(KONDER, 1995, p. 43).
Diante deste contexto, entendemos que revisitar o pensamento de Karl Marx seja
tarefa tão complexa quanto necessária. Situação que se complica, tornando-se mais delicada,
quando nosso interesse volta-se para a dimensão filosófica do seu pensamento. Muitas vezes,
22
os seguidores desse pensador alemão, diluíram o pensamento de seu mestre, a ponto de não
atentarem para o estudo da filosofia dele. Entretanto, Marx foi essencialmente um filósofo,
tendo em vista que “sua formação teórica foi a de um estudante alemão de filosofia e ele se
doutorou na matéria” (KONDER, 1995, p. 44).
A princípio, a tese de doutorado de Marx — Diferença entre as filosofias da natureza
em Demócrito e Epicuro — defendida em 1841, tinha um objetivo bem pragmático: habilitá-
lo à carreira universitária. Mas, apesar da necessidade de satisfazer uma exigência acadêmica,
sua tese representa um marco decisivo em relação ao posicionamento de Marx quanto à
filosofia hegeliana.
Na verdade, ao comparar dois filósofos materialistas da Antigüidade grega clássica —
Demócrito e Epicuro — em sua tese de doutorado, Marx descortinava mais um capítulo na
história do antagonismo entre materialismo e idealismo. Segundo Hahn e Kosing (1983, p.
42),
em todas as suas formas históricas o materialismo esteve sempre em oposição ao idealismo e
desenvolveu-se em permanente confrontação com este. A luta entre materialismo e idealismo é
uma importante lei da história da filosofia e, simultaneamente, uma força motriz específica do
pensamento filosófico.
Na perspectiva filosófica que interessa a esta pesquisa, o idealismo é entendido como
uma postura de pensamento que se caracteriza por considerar que o real reduz-se à idéia, ao
pensamento. Ou seja, o idealismo considera o pensamento a essência da realidade.
Essa orientação fundamental da filosofia defende que na relação entre consciência e
matéria, esta é determinada por aquela, tanto no processo do conhecimento humano, como na
vida social. Em suas diferentes vertentes, o idealismo “têm em comum a interpretação da
realidade do mundo exterior ou material em termos do mundo interior, subjetivo ou
espiritual” (JAPIASSU; MARCONDES, 1996, p. 134).
Se quiséssemos descrever de modo resumido a história do idealismo filosófico,
poderíamos identificar três etapas em seu desenvolvimento: o idealismo objetivo (ou
ontológico), o idealismo subjetivo (ou gnosiológico) e o idealismo absoluto (ou especulativo).
Como um importante representante do idealismo objetivo, não podemos deixar de citar Platão,
23
para quem o objeto próprio do conhecimento intelectual é a “idéia”. Essa idéia é a realidade
metafísica, necessária e universal, que transcende ao mundo das realidades sensíveis.
Dessa forma, essa essência ou idéia incorpórea e intemporal não tem condições de ser
apreendida pelos nossos sentidos, pois os mesmos só conseguem captar aquilo que é dotado
de alguma concretude espaço-temporal. Entretanto, podemos alcançar a idéia pelo intelecto,
conforme podemos perceber no diálogo Fédon:
— Quero dizer o seguinte — volveu Sócrates — [...]. Tentarei mostrar-te a espécie de causa que
descobri. Volto a uma teoria que já muitas vezes discuti e por ela começo: suponho que há um
belo, um bom, e um grande em si, e do mesmo modo as demais coisas. Se concordas comigo,
também admites que isso existe; tenho muita esperança de, por esse modo, explicar-te a causa
mencionada e chegar a provar que a alma é imortal.
— Naturalmente admito que isso existe — confirmou Cebes; — e, agora, faze depressa o que
dizes.
— Examina, pois, com cuidado, se estás de acordo, com eu, com o que se deduz dessa teoria!
Para mim é evidente: quando, além do belo em si, existe um outro belo, este é belo porque
participa daquele; apenas por isso e por nenhuma outra causa. O mesmo afirmo a propósito de
tudo mais (PLATÃO, 1979, p. 106-107).
Neste diálogo entre Sócrates e Cebes, fica claro que para Platão as idéias são
inteligíveis. Em contrapartida, o mundo sensível, que tem por base a aparência das coisas, é o
mundo da doxa. As coisas são cópias das idéias, e estas, estão fora das coisas, mas dentro de
nós, adormecidas em nossas almas. Assim, conhecer é relembrar; travar contato com as idéias
contempladas em existência anterior e que repousam na alma.
Já na Idade Moderna, uma importante contribuição para o idealismo objetivo veio do
filosófo Friedrich Schelling (1775-1854), considerado um dos principais representantes do
idealismo alemão pós-kantiano. Contemporâneo do filósofo Fichte (de quem falaremos mais
à frente), defende uma identidade entre a consciência e o absoluto, realizada plenamente no
absoluto. Com isso, supera a oposição entre o sujeito cognoscente e o objeto do
conhecimento.
Segundo Schelling (1979, p. 47), “o primeiro passo para a filosofia e a condição sem a
qual nem sequer é possível entrar nela — é a compreensão de que o absolutamente ideal é
também o absolutamente real, e de que, fora disso, só há, em geral, realidade sensível e
condicionada, mas nenhuma realidade absoluta e incondicionada”. Portanto, como um
legítimo representante da filosofia idealista, encontramos no pensamento desse filósofo a
24
identificação da realidade universal com o eu absoluto. Com o idealismo objetivo de
Schelling, o sujeito cognoscente (o espírito) e o mundo objetivo (a natureza) são a mesma
coisa, pois se constituem em uma unidade que é a realidade absoluta. Ou seja,
um saber absoluto é apenas um saber tal que nele o subjetivo e o objetivo não são unificados
como opostos, mas no qual o subjetivo inteiro é o objetivo inteiro e inversamente. Entendem-se
a identidade absoluta do subjetivo e objetivo como princípio da filosofia, em parte, apenas
negativamente (como mera não-diferença), em parte como mera vinculação de dois opostos em
si em um terceiro que, aqui, deveria ser o Absoluto, e, em parte, ela ainda é entendida assim
[...]. De modo geral, dever-se-ia, nessa designação da idéia suprema, não pressupor o subjetivo
e o objetivo, mas antes indicar que ambos, como opostos ou vinculados, devem ser concebidos,
justamente, apenas naquela identidade (SCHELLING, 1979, p. 49).
O segundo momento da história do idealismo se dá com o idealismo subjetivo, que
encontra sua formulação mais representativa em Immanuel Kant (1724-1804) e Johann G.
Fichte (1762-1814). Partindo do pressuposto de que o conhecimento deve ser unitário, Kant
especula que deve haver um elemento capaz de unificar a grande quantidade de percepções a
que os homens estão sujeitos. Se o mundo sensível é justamente o reino da multiplicidade,
esse elemento unificador não pode vir de fora, mas pelo contrário, só pode estar no interior do
próprio sujeito. Desse modo, Kant entendeu que esse elemento unificador se dá a partir de
certas condições subjetivas que são as faculdades e suas respectivas formas.
Para esse filósofo, o conhecimento se dá na medida em que os dados sensíveis são
ajustados em formas de categorias pré-analíticas (a priori), ou seja, anteriores a qualquer
experiência. Segundo Kant (1980, p. 23),
não há dúvida de que o nosso conhecimento começa com a experiência; do contrário, por meio
do que a faculdade de conhecimento deveria ser despertada para o exercício senão através de
objetos que toquem nossos sentidos e em parte produzem por si próprios representações, em
parte põem em movimento a atividade do nosso entendimento para compará-las, conectá-las ou
separá-las e, desse modo, assimilar a matéria bruta das impressões sensíveis a um conhecimento
dos objetos que se chama experiência? Segundo o tempo, portanto, nenhum conhecimento em
nós precede a experiência, e todo o conhecimento começa com ela.
Mas embora todo o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso todo ele se
origina justamente da experiência. Pois poderia acontecer que mesmo o nosso conhecimento de
experiência seja um composto daquilo que recebemos por impressões e daquilo que a nossa
própria faculdade de conhecimento (apenas provocada por impressões sensíveis) fornece de si
mesma, cujo aditamento não distinguimos daquela matéria-prima antes que um longo exercício
nos tenha chamado a atenção para ele e nos tenha tornado aptos a abstraí-lo [...]. Tais
conhecimentos denominam-se a priori e distinguem-se dos empíricos, que possuem suas fontes
a posteriori, ou seja, na experiência.
Nessa passagem, Kant já reconhece que efetivamente existe a realidade objetiva fora
do sujeito cognoscente, entretanto, uma parcela considerável dos objetos conhecidos é gerada
25
pelas nossas estruturas internas responsáveis pela percepção e pela compreensão. Ou seja,
conhecer é na verdade, engendrar o real na imanência do próprio pensamento.
Conduzindo o idealismo subjetivo as suas últimas conseqüências, Fichte — outro
importante nome desse momento — investe na superação de algumas dificuldades que ele
identifica no sistema proposto por Kant. Para Fichte, se a afirmação de Kant que o
conhecimento se dá pela transformação das percepções estiver correta, como o sujeito
cognoscente poderia transcender-se a si próprio e fazer do mundo um produto do eu?
Por conta disso, partindo de uma elaboração teórica do “eu puro”, Fichte chega a um
idealismo subjetivo, que compreende o mundo, a natureza e os seres como invenção
inconsciente do eu puro. Ao confundir o eu — que é pura atividade — com o absoluto, Fichte
faz com que o sujeito cognoscente, para afirmar-se, tenha que engendrar sua própria negação,
pois além de seus limites nada existe. Assim,
ao te pensares, não és para ti apenas o pensante: és também, ao mesmo tempo, o pensado; nesse
caso, pensante e pensado devem ser um só; teu agir no pensar deve retornar a ti mesmo, ao
pensante [...]. Ao teres consciência de um objeto qualquer – seja, por exemplo, a parede que
tens diante de ti – tens propriamente consciência, como acabas de admitir, de teu pensar dessa
parede, e só na medida em que tens consciência dele tens consciência da parede. Mas, para teres
consciência de teu pensar, tens de ter consciência de ti mesmo. — Tu tens consciência de ti
mesmo, dizes; logo, distingues necessariamente teu eu pensante do eu pensado no pensamento
do eu. Mas, para que possas fazê-lo, o pensante nesse pensar tem de ser por sua vez objeto de
um pensar superior, para poder ser objeto da consciência; com isso, obténs, ao mesmo tempo,
um novo sujeito, que deve novamente ter consciência daquilo que antes era o estar-consciente-
de-si. E aqui argumento mais uma vez como antes; e depois de termos principiado a inferir
segundo essa lei, não podes mais me indicar nenhum lugar onde devêssemos deter-nos; logo,
para cada consciência, precisaremos de uma nova consciência, cujo objeto é a primeira, e assim
ao infinito (FICHTE, 1980, p. 179-181).
A partir dessas colocações, percebe-se no pensamento de Fichte um afastamento do
idealismo de Kant. Tal afastamento se dá pelo abandono da distinção entre objeto e coisa-em-
si; distinção essa, defendida por Kant. Entretanto, apesar de admitir que o sujeito, após um
processo dialético, possa reconhecer o objeto como seu próprio produto, Fichte parece
permanecer “enclausurado no sujeito-objeto-subjetivo, não logrando realizar a síntese do eu e
do não-eu, do espírito e da natureza; do pensamento e o do ser” (CORBISIER, 1987, p. 141).
Enquanto no idealismo objetivo a objetividade transcende ao sujeito, na medida em
que se confere existência às idéias, no idealismo subjetivo a objetividade é reduzida ao
pensamento que não se realiza como uma síntese superior. Entretanto, foi com Georg W.
26
Friedrich Hegel (1770-1831) que se realizou uma síntese entre o idealismo objetivo e o
idealismo subjetivo, tendo em Schelling e Fichte, respectivamente, os principais
representantes dessas vertentes do idealismo. A originalidade do idealismo absoluto de Hegel
— que se configura como o terceiro momento crucial na história do idealismo filosófico —
está no fato desse filósofo compreender que o absoluto é a totalidade. Ou seja, nem o sujeito
destituído do objeto, e nem o objeto destituído do sujeito configura-se como o absoluto, mas
este aparece como a síntese dialética entre sujeito e o objeto, entre o pensamento e o ser.
Em Hegel, temos uma filosofia dinâmica, apresentando-se como uma filosofia da
evolução, que obedece à lei da vida: uma “filosofia do vir a ser”. Essa filosofia, por não ser
estática, se alimenta do tempo e leva-nos diretamente à história, seduzindo os “espíritos mais
próximos da Natureza, mais sensíveis ao fluir das coisas e da vida” (PIETTRE, 1969, p. 28).
A afirmação de que essa filosofia do vir a ser obedece à lei da vida, tem por pressuposto que
todo ser evolui segundo um mesmo processo de eclosão, de maturidade e de morte.
Conseqüentemente, poderíamos admitir que todo ser carrega dentro de si um germe de sua
própria destruição.
Cabe observar, que essa noção da existência de um germe de contradição interna, será
muito bem trabalhada por Hegel que, configurando-se como um ícone do idealismo alemão
pós-kantiano, foi um dos filósofos que mais influenciou o desenvolvimento posterior da
filosofia. Para esse filósofo “o ser duma coisa finita é de ter em seu ser interno, como tal, o
germe do desaparecimento, a hora de seu nascimento e também a hora de sua morte”
(HEGEL apud PIETTRE, 1969, p. 29). A essa categoria de mutação, Hegel acrescenta a
necessidade do renascimento de uma vida nova a cada morte ocorrida. Temos então como
cerne do progresso a própria morte, que gera a vida. A partir desse ponto, a palavra dialética
deixa de ser utilizada apenas com o sentido de discussão ou disputa de idéias, como aparece
na filosofia clássica. Mas servirá para designar um conflito de potência evoluindo no decurso
do tempo, tomando o sentido de uma discussão de forças.
A filosofia idealista de Hegel, portanto, é dialética, mas daí não se deve concluir que a
dialética presente em sua filosofia seja apenas um método. Ela deve ser entendida, antes de
tudo, como uma concepção da própria realidade, onde a contradição constitui a essência de
todas as coisas. Essa concepção dialética do real — que tem na contradição a sua marca —
27
fica evidente na explicação dada pelo próprio Hegel (1980, p. 336), sobre o desenvolvimento
das coisas naturais:
A planta, por exemplo, não se perde numa transformação indefinida. Do seu germe, em que,
todavia se não distingue nada, sai uma multiplicidade, que, no entanto já lá estava inteiramente
contida, se não de modo desenvolvido, pelo menos implícito e idealmente. O princípio desta
projeção na existência é que o germe não pode suportar o ser só em si, mas tem o impulso para
se desenvolver, e a contradição está em ele ser só em si e em não o dever ser. Este extrinsecar-
se se põe um escopo, cujo fruto é a mais elevada perfeição e o fim predeterminado, ou seja, a
produção do germe, o retorno ao estado primitivo. O germe quer apenas produzir-se a si próprio
e extrinsecar o que contém, para depois voltar a si mesmo e recolher-se de novo na unidade
donde saíra. É certo que nas coisas naturais acontece que o sujeito que começou e o existente
que termina (semente e fruto) são duas unidades separadas: o desdobramento tem o resultado
aparente de se dividir em duas unidades que, no entanto são a mesma coisa quanto ao conteúdo.
Do mesmo modo, na vida animal, os pais e os filhos são indivíduos separados, embora seja uma
só a natureza deles.
À semelhança do que acontece com as coisas naturais, também a história da
humanidade, na visão hegeliana, não é outra coisa senão o desenrolar da vida, onde a dialética
aparecerá como o estudo do encadeamento das contradições que engendram a história.
Entretanto, não podemos esquecer que Hegel era um partidário do idealismo, posição que
ficava evidente quando defendia que o desenvolvimento da história da filosofia não era mais
do que o florescimento da idéia. Para Hegel (1980, p. 341),
só uma história da filosofia considerada como sistema de desenvolvimento da idéia merece o
nome de ciência: uma coletânea de fatos não constitui ciência. Só assim entendida, como
sucessão de fenômenos que se organizaram por meio da razão, e que têm como conteúdo
precisamente aquilo que é a razão e que a revela, esta história mostra ser racional: mostra que os
acontecimentos, de que faz menção, estão na razão.
A partir dessa compreensão da história da filosofia, defendida por Hegel, não é gerado
nenhum impulso para a ação, pois sua filosofia da história visa apenas cultuar o divino e
garantir que o ser humano atinja a necessária liberdade do espírito. Em contrapartida, ao
voltar-se para a práxis humana, Marx defende que é muito mais importante a compreensão da
história da humanidade, do que “o processo de compreensão do espírito que retorna-para-si
dentro da história” (SCHMIED-KOWARZIK, 2004, p. 143).
Apesar de reconhecer o importante papel desempenhado por Hegel ao produzir um
sistema coerente de categorias dialéticas, nem por isso, Marx deixou de criticar a dialética
hegeliana por sua forma altamente abstrata e especulativa. Mostrando a oposição entre o seu
28
método dialético e o método hegeliano, assim se expressou Marx (1975a, p. 16), no posfácio
da segunda edição alemã de O Capital:
para Hegel, o processo do pensamento — que ele transforma em sujeito autônomo sob o nome
de idéia — é o criador do real, e o real é apenas sua manifestação externa. Para mim, ao
contrário, o ideal não é mais do que o material transposto para a cabeça do ser humano e por ela
interpretado.
Dessa forma, o ponto de partida da reflexão filosófica de Marx foi o idealismo clássico
alemão, no qual a partir da combinação da dialética de Hegel com o materialismo científico
tivemos a primeira expressão de uma filosofia de Marx: um materialismo histórico e dialético.
Ratificando essa constatação, Engels (1990, p. 10) — do qual Marx é também devedor quanto
a seu método de reflexão — se posicionou nos seguintes termos, no prefácio da segunda
edição de seu livro Anti Dühring: “Marx e eu fomos, sem dúvida alguma, os únicos que
salvaram da filosofia idealista alemã a dialética consciente, incluindo-a na nossa concepção
materialista da natureza e da história”.
Esse materialismo afirma que a realidade concreta é “uma unidade contraditória,
impulsionada por suas contradições, em um processo, evolucionário e revolucionário, de
incessante transformação histórica” (BOTTOMORE, 1988, p. 152). Poderíamos então dizer,
que o pensamento filosófico de Marx desenvolve-se a partir da crítica, por ele realizada, à
filosofia hegeliana, em particular, mas estendendo-se ao idealismo filosófico, como um todo,
que mantém suas análises no plano do espírito, das idéias.
Apesar de os parágrafos anteriores terem sido organizados de modo a caracterizarem o
idealismo filosófico, a partir, principalmente, de alguns pressupostos históricos, não podemos
inferir dessa organização que Marx foi o primeiro, ou o único filósofo a se opor a essa
concepção filosófica. Na verdade, Marx foi, de certa forma, tributário de uma tradição que lhe
serviu de base para essa oposição. Ou seja, em oposição à concepção idealista — que vê as
nossas idéias como a única fonte segura de conhecimento — temos o materialismo, que em
seu sentido filosófico identifica-se muito mais com uma maneira de pensar, do que uma forma
de viver. Assim como aconteceu com o idealismo filosófico, o materialismo constituiu-se
como uma das correntes de pensamento que balizaram a história da filosofia desde a sua
origem (mesmo que o termo ainda não existisse) até a atualidade. Segundo Comte-Sponville
(2003, p. 143),
29
ser materialista, no sentido filosófico, é, com efeito, pensar que tudo é matéria ou produto da
matéria e que os fenômenos intelectuais, morais ou espirituais não têm, em conseqüência, uma
realidade que auxilie ou determine [...]. Para o materialista, o pensamento é apenas um efeito ou
uma propriedade da matéria organizada.
Já nos primórdios da filosofia, no século VI a.C., o materialismo se fazia presente na
escola jônica, que se caracterizava prioritariamente pelo estudo da physis, pelo interesse das
teorias sobre a natureza. Para esses gregos os fenômenos deveriam ser explicados a partir da
observação da própria realidade material. Foi assim, por exemplo, que Tales de Mileto (640-
548 a.C.), considerado o primeiro filósofo, formulou a doutrina que via na água o elemento
primordial para explicar todo o processo da natureza. Aristóteles (1969, p. 42), referindo-se à
doutrina desse que é considerado o primeiro “investigador das coisas da natureza como um
todo”, se expressou da seguinte forma:
Dos primeiros filósofos, a maioria considerou os princípios de natureza material como sendo os
únicos princípios de tudo que existe. Aquilo de que são constituídas todas as coisas, o primeiro
elemento de que nascem e o último em que se resolvem, a isso chamam eles o elemento e
princípio das coisas, julgando, por conseguinte, que nada é gerado ou destruído [...]. Tales, o
fundador deste tipo de filosofia, diz que o princípio é a água.
Ainda na esteira do materialismo da antiguidade, não podemos deixar de lembrar de
Heráclito (cerca de 540-470 a.C.), considerado o precursor da dialética. Partindo das mesmas
intuições dos primeiros filósofos, que acreditavam que os fenômenos naturais estabeleciam-se
a partir de transformações de um mesmo princípio material, livre da inteligência dos seres
divinos, Heráclito desenvolve essa concepção ao afirmar, no fragmento 30 (citado por
Clemente de Alexandria), que “este mundo, o mesmo de todos (os seres), nenhum deus,
nenhum homem fez, mas era, é e será um fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas e
apagando-se em medidas” (PRÉ-SOCRÁTICOS, 1978, p. 82).
Mais tarde, ao criar a escola realista, no século IV a.C., Aristóteles parece almejar a
conciliação entre materialismo e idealismo. Contrapondo-se ao idealismo platônico,
Aristóteles afirma que o mundo inteligível só existe dentro de nós, a partir de imagens
elaboradas pelo intelecto no contato com os elementos do mundo exterior captados por nossos
sentidos. Ao elaborar a crítica da teoria platônica das idéias, Aristóteles afirma que essa teoria
não consegue explicar o mundo real. Para esse filósofo, a “teoria das idéias” além de não
explicar o movimento dos entes materiais, cria mais dificuldades do que soluções, pois “os
30
que postulam as Idéias como causas: em primeiro lugar, ao procurarem apreender as causas
das coisas que nos cercam, introduziram outras em número igual” (ARISTÓTELES, 1969, p.
56). Em função disso, ele acredita que “labora em erro quem procura ou julga haver
encontrado os elementos de todas as coisas” (ibid., p. 62).
Conclui sua refutação à teoria platônica das idéias, admitindo que não se consegue
conhecer as coisas sensíveis apenas através da inteligência, já que dessa forma a percepção
sensível não teria qualquer utilidade. Afinal, “como poderíamos conhecer os objetos das
percepções sensoriais sem possuir o sentido apropriado?” (ibid., p. 62).
Sem grandes novidades durante a Idade Média, foi a partir do século XVI, que
assistimos o desenrolar de um importante capítulo na história do materialismo, que teve no
filósofo Francis Bacon (1561-1626) seu principal personagem. Ao identificar o método
experimental como base para a produção de conhecimento seguro, Bacon estabeleceu os
fundamentos do empirismo inglês, que recebe o nome de materialismo clássico.
Para os seguidores dessa concepção materialista, conhecer pressupõe, direta ou
indiretamente, uma experiência sensível, ou seja, apenas a sensação e a experiência
constituem-se em fonte de conhecimento. Referindo-se ao método experimental, Bacon
(1979, p. 229) defende que esse método
procura ensinar e guiar o intelecto e não agarrar e segurar abstrações da realidade com as frágeis
escoras da mente [...], esquadrinhar a natureza, voltando-se para a descoberta das virtudes e dos
atos dos corpos, bem como de suas leis determinadas na matéria, dependendo, em resumo, esta
ciência, não apenas da natureza do intelecto, mas também da natureza das coisas, não é para
espantar que tenha sido ilustrada, continuamente, com observações sobre a natureza.
Na luta contra o idealismo, outros filósofos ingleses também se destacam, ratificando a
identificação da experiência material como base para o conhecimento. Para David Hume
(1711-1776), por exemplo, apesar de o pensamento humano parecer ilimitado, não há como
negar que esse poder é dependente da experiência material:
Embora nosso pensamento pareça possuir essa liberdade ilimitada, examinando o assunto mais
de perto vemos que na realidade ele se acha encerrado dentro de limites muito estreitos e que
todo o poder criador da mente se reduz à simples faculdade de combinar, transpor, aumentar ou
diminuir os materiais fornecidos pelos sentidos e pela experiência. [...] Em resumo, todos os
materiais do pensamento derivam da sensação interna ou externa; só a mistura e composição
destas dependem da mente e da vontade (HUME, 1980, p 140-141).
31
Nessa concepção, o entendimento dá origem às idéias através de um processo de
abstração, desencadeado a partir dos dados captados por nossos sentidos. Dessa forma, para
John Locke (1632-1704) — outro expoente do empirismo inglês — é na sensação que se
origina todo conhecimento humano. Tomando como princípio o fato de todas as idéias serem
derivadas da sensação ou reflexão, Locke (1978, p. 159) desenvolve a defesa de seus
princípios da seguinte forma:
Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel branco, desprovida de todos os
caracteres, sem quaisquer idéias; como ela será suprida? De onde lhe provém este vasto estoque,
que a ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou nela com uma variedade quase infinita?
De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa
palavra, da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva
fundamentalmente o próprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos sensíveis externos
como nas operações internas de nossas mentes, que são por nós mesmos percebidas e refletidas,
nossa observação supre nossos entendimentos com todos os materiais do pensamento. Dessas
duas fontes de conhecimento jorram todas as nossas idéias, ou as que possivelmente teremos.
Mas será somente com Marx — de acordo com sua própria avaliação — que o
materialismo atingirá sua maturidade. Dessa forma, apesar de reconhecer-se como um
materialista, Marx (juntamente com Engels) procura deixar claro — durante todo o processo
de elaboração do seu pensamento — que o materialismo por ele defendido era diferente de
todos os materialismos até então existentes. Para esse filósofo, “a falha capital de todo
materialismo até agora (incluso o de Feuerbach) é captar o objeto, a efetividade, a
sensibilidade apenas sob a forma de objeto ou de intuição, e não como atividade humana
sensível, práxis; só de um ponto de vista subjetivo” (MARX, 1978a, p. 51).
Defendendo essa posição, Engels (1990, p. 118) acreditava que “a filosofia antiga era
uma filosofia materialista, porém primitiva e rudimentar. Esse materialismo não seria capaz
de explicar claramente as relações entre o pensamento e a matéria”. Será, portanto, na
tentativa de diferenciar-se dos “outros” materialismos, que o termo materialismo histórico
(utilizado inicialmente por Engels) servirá para identificar exclusivamente esse método de
interpretação proposto por Marx, que toma os fatos históricos em sua relação com os fatores
econômicos e sociais.
32
Ao rejeitar toda filosofia idealista da história, o materialismo histórico defende que o
primeiro fato histórico é a produção da vida pelo próprio homem, sendo a consciência,
produto das condições históricas e sócio-econômicas. Nessa perspectiva,
a concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos
produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela
história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em
classes ou camadas, é determinada pelo modo de trocar seus produtos. De conformidade com
isso, as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas
não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na idéia que eles façam da verdade
eterna ou da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca;
devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata (ENGELS, s.
d., p. 54).
Ao colocar o idealismo de Hegel de “cabeça para baixo”, o materialismo histórico e
dialético de Marx e Engels não era ingênuo (como outros materialismos) a ponto de
considerar o idealismo filosófico um disparate, ou rejeitá-lo completamente. Tanto é assim,
que Marx não abandonou a conquista do pensamento de Hegel. Reconhecendo a importância
desse filósofo idealista, Engels (1990, p. 121) admite que
muito antes de saber o que era dialética, o homem já pensava dialeticamente, da mesma forma
porque, muito antes da existência da palavra escrita, ele já falava. Hegel, nada mais fez que
formular nitidamente, pela primeira vez, esta lei da negação da negação, lei que atua na natureza
e na História, como atuava, inconscientemente, em nossos cérebros, muito antes de ter sido
descoberta.
Quando observada apenas por um ângulo, como freqüentemente acontece, a afirmação
de Marx (1978a, p. 53) sobre a filosofia, de que “os filósofos se limitaram a interpretar o
mundo diferentemente, cabe transformá-lo”, pode parecer como uma proposta de refugar a
filosofia e superá-la, colocando em seu lugar o “socialismo científico”. Entretanto, tal
interpretação, unilateral e equivocada, não leva em consideração que a idéia que Marx tem
dessa “superação” não se refere a um simples deslocamento teórico da filosofia para a ciência.
Para ele, esse “movimento” corresponde a um programa prático complexo que só se efetiva a
partir de uma unidade dialética no interior da própria filosofia. Mas isso só pode ser
conseguido “pela negação da filosofia anterior, isto é, da filosofia como filosofia” (MARX,
2005, p. 150), não deixando de levar em consideração que “é impossível abolir a filosofia sem
a realizar” (ibid., p. 150).
33
As considerações anteriores representam uma síntese, realizada por Marx em sua
defesa do materialismo contra o idealismo. Elaborado como uma reação contra o pensamento
espiritualista e idealista, o pensamento de Marx, gerado e direcionado pela ação, aparece
como práxis. Para ele, a questão de saber “se cabe ao pensamento humano uma verdade
objetiva, não é teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, a
saber, a efetividade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento” (MARX, 1978a, p. 51).
Assim, essa perspectiva de Marx do materialismo como filosofia da ação é, em parte,
responsável pela crença na existência de uma filosofia marxista.
Enquanto a filosofia idealista, conforme visto no início deste capítulo, habitualmente
tem na idéia, o princípio a partir do qual se deduz as conseqüências práticas, na práxis temos a
ação como princípio do pensamento. Mas ao defender esse princípio da práxis, Marx, em
vários momentos, apresentou seu pensamento não como uma filosofia, mas na verdade, como
uma antifilosofia, uma alternativa à filosofia. Em relação à prática filosófica existente em sua
época, sua “antifilosofia” não conseguiu por fim à filosofia. Mas desencadeou no seio da
própria filosofia uma questão permanentemente aberta, da qual a filosofia pode se nutrir para
sua própria renovação. Portanto, devemos ter claro que Marx era contrário não a toda
filosofia, mas à filosofia como ele aprendera na escola da tradição.
De um modo geral, a palavra práxis costuma aparecer na obra de Marx identificando-
se com a ação transformadora que a revolução comunista desencadeará no conjunto das
relações de produção e trabalho, que formam a estrutura social. Pode, também, ser entendida
como a ação livre e criadora pela qual o homem relaciona-se com a natureza e com os outros
homens, transformando-os, ao mesmo tempo em que transforma a si mesmo.
Assim, o conceito de práxis acaba tornando-se um conceito fundamental da “nova
filosofia” proposta por Marx. Filosofia essa, que não se contenta em ser mais uma, entre as
filosofias especulativas, mas pretende transcendê-las pela crítica, e ao mesmo tempo,
transformar o mundo. Marx (2005, p. 151) expressa esse posicionamento ao afirmar que, “a
crítica da filosofia especulativa do direito não se orienta em si mesma, mas em tarefas que só
podem ser resolvidas por um único meio: a atividade prática”.
Portanto, Marx tinha consciência de que a filosofia que ele criticava, pela impotência
das meras interpretações — e, portanto, uma universalidade alienada — teve um
34
desenvolvimento problemático enquanto manifestação de uma contradição objetiva. Pois o
problema não se originava no interior da própria filosofia, mas era fruto das relações entre ela
e o mundo real. Apesar disso, não defendeu um abandono da busca filosófica da
universalidade, mas pelo contrário, defendeu que seria pela força da práxis social que a
filosofia reconquistaria sua dimensão universal. A essa tarefa Marx adequadamente chamou
de “realização da filosofia”.
Nessa perspectiva, o cerne de todos os problemas da filosofia criticada por Marx,
estava no desligamento desta com a vida real. A filosofia, assim como a religião,
simplesmente ignorava que “o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O
homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade” (MARX, 2005, p. 145). Dessa forma,
Marx entende que “a tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da história é desmascarar
a auto-alienação humana” (ibid., p. 145).
Um dos grandes méritos de Marx foi o fato de revelar um deslocamento do lugar, das
questões e dos objetivos da filosofia que ele criticava. As questões filosóficas normalmente
tratadas no campo homogêneo de um universo conceitual especulativo, não foram exploradas
por Marx a partir da lógica intrincada dos conceitos enquanto tais. Mas, ao contrário, seu
método para tratar a matéria devia constantemente fazer referência à realidade empírica. Ou
seja, sua filosofia tinha por base uma concepção dialética solidamente ancorada na realidade.
Ao questionar a própria essência da atividade filosófica, Marx nos concedeu uma obra ao
mesmo tempo impregnada de trabalho filosófico e em posição de um constante confronto com
a maneira pela qual a tradição isolou e circunscreveu a filosofia.
Entretanto, ao chegarmos ao final deste capítulo, somos levados a reconhecer que a
opção por apresentar a história da filosofia em dois blocos antagônicos, estereotipada no
confronto materialismo versus idealismo, pode nos aproximar de uma visão reducionista da
filosofia. Não podemos nos esquecer que ao discutir a concepção idealista a partir da ótica
materialista (não apenas de Marx, como também de seus comentadores), negamos a essa
“corrente de pensamento” o direito de defesa. Sob a influência do pensamento de Marx, o
termo idealismo acaba sendo associado pejorativamente a uma concepção irreal, que em nada
ajuda o ser humano na realização de sua natureza.
35
Ao tentar definir a espécie caracterizada pelo homem, Marx acaba sendo seduzido pelo
desejo de buscar um modelo de ser humano como sendo a sua essência. Com essa postura, ele
não foi tão diferente de vários outros filósofos, como ele mesmo acreditava. No intuito de
responder “o que significa ser humano?”, Marx define o homem a partir da sociedade com a
qual se identifica. Entretanto,
qualquer tentativa para dar uma resposta enfrentará, de imediato, a objeção de que, na melhor
das hipóteses, essa resposta não é mais do que uma especulação metafísica, talvez poética, mas
de qualquer modo, é mais a expressão de preferência subjetiva do que propriamente uma
declaração de qualquer realidade definitivamente verificável (FROMM, 1969, p. 73).
Esse posicionamento — de matiz cético — relativo ao estabelecimento de definições
sobre a natureza humana, não exclui a possibilidade de se “fazer inúmeras declarações que
tenham caráter científico, isto é, que tirem conclusões da observação dos fatos, conclusões
que são corretas a despeito do fato de que a motivação para se encontrar a resposta era o
desejo de uma vida mais feliz” (ibid., p. 74). Acreditando que esse desejo também motivou a
busca teórica e prática de Marx, assumimos o risco conceitual de olhar a história da filosofia a
partir dessa dicotomia entre materialismo e idealismo.
A razão para a escolha desse caminho estabelece-se, prioritariamente, na medida em
que permite uma abordagem mais direta do pensamento de Marx, o que facilitaria a
identificação do problema da felicidade no pensamento desse filósofo. Se o pensar de Marx é
o pensar dialético — que reconhece a contradição e trabalha sobre ela — não podemos
prescindir da própria dialética para discutir o movimento que passa pelos seres
transformando-os qualitativamente.
Portanto, diante das possíveis limitações advindas dessa forma dicotômica de se
perceber os principais momentos da filosofia desde sua origem, devemos lembrar que neste
trabalho tomamos como base, não o materialismo “em geral”, mas o materialismo como
entendido por Marx e explicitado em sua nona tese contra Feurbach. Nessa perspectiva, Marx
(1978a, p. 52), “o extremo a que chega o materialismo intuitivo, a saber, o materialismo que
não compreende a sensibilidade como atividade prática, é a intuição dos indivíduos únicos e a
sociedade civil”.
36
Ou seja, com a afirmação anterior, Marx procura mostrar que para a constituição de
uma vida feliz, não basta juntar vários indivíduos em um território e se formar uma sociedade:
não é suficiente um conjunto de individualidades unidas pela força da lei. Mas ao contrário,
na busca pela felicidade é necessário primeiramente entender “o que é o homem”, para só
então, trilhar os caminhos para a construção de relações sociais otimizadas. Ou seja, é
necessário pensar a ética em sua relação com a política.
Segundo Pegoraro (2005, p. 29), “não existe a ética meramente individual. [...] A ética
meramente individual ou subjetiva é uma contradição. Nesta contradição caem aqueles que
defendem que cada pessoa tem sua ética, como assunto meramente subjetivo. Defendemos
que a ética é relacional”. E no caso da sociedade comunista, podemos enfatizar que a ética é
relacional e balizada pelos interesses da coletividade humana.
Por conseguinte, é o trabalho coletivo que possibilita a produção de bens materiais, a
sobrevivência e a reprodução da vida. Ao não adotar o individualismo fomentado pela
filosofia iluminista, Marx se opõe à idéia de um ser humano auto-suficiente e defende que o
homem é resultado da maneira como se estrutura o processo produtivo a partir de uma
coletividade. Por essa razão, Freitag (1992, p. 91) afirma que, “não há sujeito moral fora de
um modo de produção. E não é o sujeito ou o indivíduo que age moralmente; é a organização
coletiva do trabalho que permite (ou não) que uma ação isolada seja vista como moral”.
37
2 – A FELICIDADE NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA: PASSAGENS DA
ANTIGÜIDADE AO TEMPO DE MARX
Não é preciso ser filósofo para reconhecer a força existente no termo felicidade.
Pessoas componentes de todas as esferas sociais, das mais desfavorecidas até as mais
abastadas, identificam o papel decisivo que a noção de felicidade desempenha em suas vidas.
Desde a origem da humanidade até a contemporaneidade a felicidade foi, sobretudo, o que
todos os homens sempre desejaram. E é justamente o fato de termos na felicidade uma
questão não resolvida de maneira satisfatória — não entendida em sua complexidade, mas que
temos a necessidade de entender — que faz dela um dos mais originais problemas filosóficos.
Não é nosso intuito fazer uma tipologia da felicidade enquadrando-a em diferentes
correntes filosóficas, como acontece em alguns manuais de ética. Até porque, de certa forma,
isso iria no sentido contrário do que Marx defende. Sua indignação inicial foi, justamente,
contra a filosofia especulativa produzida até sua época que, distante da realidade, não
conseguia influenciá-la. Por essa razão, nossa opção é a de trabalhar diretamente com os
filósofos, idealistas e materialistas, que pensaram a questão da felicidade. Sem, no entanto,
nos preocuparmos prioritariamente em “filiá-los” às diferentes divisões da ética que pensam a
felicidade (egoísmo ético, utilitarismo, ética do dever, intuicionismo moral etc), mas sim em
destrinchar suas idéias, discuti-las e relacioná-las ao contexto que permitiu o surgimento das
idéias de Marx.
Reconhecendo a influência judaico-cristã na raiz do pensamento ocidental, não
podemos deixar de começar essa incursão filosófica à história da felicidade por um dos
expoentes da filosofia, ligado à tradição cristã. Nos primeiros anos de existência da filosofia
patrística — período que abrange do século I ao século VII da nossa era — encontramos
Santo Agostinho como um dos introdutores da idéia de “homem interior”, referindo-se a uma
consciência moral e ao livre-arbítrio, que faz do homem um ser livre para optar entre o bem e
o mal. Com essa noção, esse “filósofo cristão” explica a existência do mal no mundo como
conseqüência dos atos humanos. Pois, se Deus é pura perfeição e bondade, e tudo por Ele foi
criado, o Mesmo não poderia ter dado existência ao mal.
38
Defendendo o princípio de que o homem é livre para escolher entre alternativas
opostas, entre o bem e o mal, Santo Agostinho (1980, p. 187-188) afirma que
todos querem uma vida feliz. Mas como a “carne combate contra o espírito e o espírito contra a
carne, muitos não fazem o que querem”, mas entregam-se àquilo que podem fazer. Com isso se
contentam, porque aquilo que não podem realizar, não o querem com a vontade quanta é
necessária para o poderem fazer. Pergunto a todos se preferem encontrar a alegria na verdade ou
na falsidade. Todos são categóricos em afirmar que a preferem na verdade, como em dizer que
desejam ser felizes. A vida feliz é a alegria que provém da verdade. Tal é a que brota de Vós, ó
Deus, que sois “a minha luz, a felicidade do meu rosto” e o meu Deus. Todos desejam esta vida
feliz.
Ao proclamar que o cristianismo possuía a verdade revelada pelo próprio Deus —
perspectiva que se chocava com a atitude moderada dos filósofos gregos — Santo Agostinho
não se preocupou em estabelecer uma fronteira entre fé e razão, pois ambas colaboram para o
esclarecimento da verdade. E a verdade para aquele que crê em Deus só poderia ser a verdade
cristã. Essa “verdade” levou-o à constatação de que, “a felicidade real não é grega nem latina,
mas os gregos, os latinos e os homens de todas as línguas têm um desejo ardente de a
alcançar. E assim, se fosse possível perguntar-lhes a uma só voz se ‘queriam ser felizes’,
todos, sem hesitação, responderiam que sim” (AGOSTINHO, 1980, p. 186).
A partir dessa conciliação, entre os conteúdos da revelação cristã e as verdades
acessíveis ao conhecimento puramente racional, Santo Agostinho concluiu que a vida feliz
provém da verdade e a verdade é Deus. Ou seja, “vida feliz consiste em nos alegrarmos em
Vós e por Vós. Eis a vida feliz, e não há outra” (ibid., p. 187). A transformação realizada pela
patrística, das idéias cristãs em verdades reveladas por Deus e, portanto, em verdades
dogmáticas, permitiu que Santo Agostinho fosse incisivo ao afirmar que “todos querem esta
vida, que é a única feliz; sim, todos querem a alegria que provém da verdade” (ibid., p. 188).
Se em Santo Agostinho a relação entre fé e razão era paritária, onde ambas,
conjuntamente buscavam explicar e esclarecer a verdade cristã, será em Santo Anselmo
(1033-1109) — considerado um dos iniciadores da tradição escolástica — que a razão se
subordinará à fé, tendo por lema a famosa frase credo ut intelligam (creio para entender).
Partindo da crença na existência necessária de Deus, utiliza-se da razão apenas como
instrumento para dar inteligibilidade ao caráter necessário dessa existência divina. A partir
39
desse ponto, engendra sua concepção de felicidade, ao afirmar que todos os homens têm uma
idéia de Deus. Sendo assim,
não há dúvida que a alma humana é uma criatura racional e, portanto, foi feita para amar a
essência suprema. [...] É evidente, portanto, que a alma humana é de tal natureza que, se
perseverar nos objetivos para os quais foi feita, um dia ela haverá de viver felizmente, de
verdade: livre da própria morte e de toda outra moléstia (ANSELMO, 1979, p. 84-85).
Tendo na liberdade em relação à morte a conseqüência da vida feliz, Santo Anselmo
defende que a felicidade não é para a mortalidade, mas para a alma humana que é imortal. O
que o homem deve fazer em sua vida mortal ao buscar a felicidade — amar a essência
suprema — não é para a vida atual, mas para a eternidade. Para esse filósofo, “nenhuma alma
que ama seria necessariamente feliz e nenhuma alma que despreza este amor seria
eternamente infeliz, se a alma fosse mortal. Quer ela ame, quer despreze a finalidade para a
qual foi criada, que é a de amar a essência suprema, é necessário que ela seja imortal” (ibid.,
p. 87). Assim, ser feliz ou infeliz na eternidade, depende do uso que o homem fizer de seu
livre-arbítrio em sua jornada terrena.
Dando continuidade à tentativa de pensar a relação entre fé e razão, São Tomás de
Aquino (1227-1274) admite que não somente a razão auxilia a fé, mas também esta pode
prestar auxílio àquela. Para ele, fé e razão são duas fontes distintas de conhecimento que tanto
podem esclarecer verdades sobre conteúdos coincidentes, assim como, podem informar sobre
aspectos diferentes da verdade. Mas é na fé, e pela fé, que o homem deve pautar sua busca
pela felicidade, pois
a fé constitui um certo antegozo daquele conhecimento que nos fará felizes no futuro. [...] O
Senhor ensinou que este conhecimento que nos torna felizes tem por objeto duas coisas: a
divindade da Santíssima Trindade e a humanidade de Jesus Cristo [...], visto que a humanidade
de Cristo constitui o caminho pelo qual se chega à Divindade. Por isso é necessário, para os que
peregrinam no mundo, conhecer a via pela qual se possa atingir a meta (AQUINO, 1979, p. 73).
Nessa perspectiva tomista, para antegozar a felicidade, deve-se deixar de lado as
preocupações e a demasiada ansiedade e, pela fé, mudar de atitude diante das situações,
enquanto “peregrinos” nesse mundo. Se parte da felicidade está em aceitar a vida como ela é,
não podemos nos esquecer que, enquanto peregrinos, somos apenas passageiros nessa vida
terrena, afastados temporariamente da pátria celeste.
40
Para Tomás de Aquino não deve haver conflitos na relação entre fé e razão, mas se ele
surge, sua origem está nos erros da razão. Portanto, para evitar esses conflitos, a razão deveria
ater-se a sua tarefa fundamental de demonstrar a existência de Deus. Nessa perspectiva
“idealista”, a felicidade é algo almejado por todos os homens. Toda a humanidade deseja uma
vida feliz. Entretanto, para essa filosofia idealista a felicidade não pode ser colocada no
próprio corpo. Ou seja, o homem, ao procurar a felicidade não pode por a esperança em si
mesmo. O ser humano deve autotranscender-se, pois somente Deus pode dar-lhe a felicidade.
Entretanto, a constatação de que cada ser humano no mundo deseja ser feliz nos
remete a uma esfera de trivialidade, de não-novidade, de cotidianidade. Essa “familiaridade”
das pessoas com a noção de felicidade tem uma versão na Filosofia Moderna, através do
pensamento de Blaise Pascal (1623-1662), quando afirma que “todos os homens procuram ser
felizes; não há exceção. Por diferentes que sejam os meios que empregam, tendem todos a
esse fim. [...] Esse é o motivo de todas as ações de todos os homens, até mesmo dos que vão
enforcar-se” (PASCAL, 1979, p. 137).
Em oposição a essa postura que, de certa forma, dá à noção de felicidade uma aura de
“popularidade”, a felicidade também carrega em seu bojo a complexidade própria de uma
noção que merece ser tratada como um verdadeiro problema filosófico. Mas apesar de referir-
se à felicidade como um ponto almejado por toda a humanidade, o próprio Pascal rende-se às
dificuldades de uma abordagem filosófica ao admitir, nesse mesmo fragmento 425, que
“depois de tão grande número de anos, nunca ninguém, sem a fé, chegou a esse ponto a que
todos visam continuamente” (ibid., p. 137).
Ou seja, Pascal abriu mão de uma abordagem eminentemente filosófica da noção de
felicidade, em favor de uma abordagem religiosa. Apesar de ambas as abordagens possuírem
uma atitude em relação à totalidade dos objetos, apenas a filosofia tem a razão como aspecto
cognoscitivo, já que a religião transita no campo da fé.
Segundo o apóstolo Paulo (século I d.C.) — o genial ideólogo do cristianismo — em
sua Epístola aos hebreus (11.1), “a fé é o fundamento do que se espera e a prova das
realidades que não se vêem” (BÍBLIA, 2005, p. 1416). Nesse caso, poderíamos aceitar que a
noção de felicidade, tão importante para guiar a vida humana, possa ser “refém”, como sugere
Pascal e os filósofos cristãos, de uma realidade que não se vê, mas apenas se espera? Sendo
41
assim, a filosofia não teria qualquer ingerência sobre a noção de felicidade na vida sensorial
da qual ainda fazemos parte? Teria a religião, através da fé, melhores condições do que a
filosofia, através da razão, para definir a felicidade? Não é o que pensava, na Antigüidade
Clássica, o filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.).
Ao repelir o determinismo e o fatalismo típico da teoria do atomista Demócrito —
considerado o primeiro pensador materialista — Epicuro (também atomista) deixa claro em
sua Carta sobre a felicidade: (a Meneceu) que a filosofia é uma disciplina que tem como
única meta tornar feliz o homem que a pratica, tomando-a como um exercício a ser cultivado
durante todo o transcurso de sua existência. Nessa perspectiva, é a filosofia — e não a religião
— que dá as condições necessárias para a busca permanente da felicidade:
que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de
velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do
espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já
passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz. Desse
modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se
rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se foram, e para o jovem poder
envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar das
coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo
fazemos para alcançá-la (EPICURO, 2002, p. 21-23).
Após essa exortação inicial ao exercício da filosofia, Epicuro apresenta os pontos
fundamentais, cuja prática fiel dos mesmos, conduz o homem não apenas a mais absoluta
felicidade, como também a sentir-se o mais afortunado entre os homens mortais.
Diferentemente do vimos anteriormente, em relação ao que sugerem os filósofos idealistas,
segundo Epicuro, a felicidade é para “essa vida”, a felicidade é para o homem mortal, e o
caminho para ela não é a religião e a fé, mas sim a filosofia e a razão. Assim, conclui a carta a
seu discípulo Meneceu, reforçando sua certeza nos princípios filosóficos sugeridos como
exercício:
medita, pois, todas estas coisas e muitas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e
com teus semelhantes, e nunca mais te sentirás perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas
viverás como um deus entre os homens. Porque não se assemelha absolutamente a um ser
mortal o homem que vive entre bens imortais (ibid., p. 51).
Nessa perspectiva de Epicuro, tentar compreender o que significa “ser feliz” é partir
do princípio de que a felicidade é um bem propriamente humano, que só tem sentido e só é
concebível na perspectiva da vida do homem e em função dos recursos dessa vida. Com esse
42
posicionamento, Epicuro não estava querendo negar a existência dos deuses, mas defendia
que eles nada poderiam fazer para interferir na vida dos homens. Entretanto, os homens
poderiam tomar como modelo, a auto-suficiência e independência gozada pelos deuses, tendo
na filosofia o caminho humano para aproximar-se dessas qualidades. Para esse filósofo, “os
deuses de fato existem e é evidente o conhecimento que temos deles; já a imagem que deles
faz a maioria das pessoas, essa não existe” (EPICURO, 2002, p. 25).
É nessa vida terrestre que se encontram os desafios que podem impedir ao homem
atingir a felicidade. Vencer esses medos utilizando-se da filosofia é a receita para a felicidade.
Ou seja, a tarefa da filosofia é dissipar os medos que bloqueiam nossa felicidade.
Verificando ser a morte um dos medos mais aterradores que afligem a humanidade,
Epicuro adverte que não há vantagem alguma para o homem, viver eternamente, pois mais
importante que o tempo vivido é a qualidade desse tempo. Assim, “acostuma-te à idéia de que
a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte
é justamente a privação das sensações” (ibid., p. 27). Tendo, portanto, as sensações como
origem do mal que nos prejudica, ou do bem que nos edifica, cabe um controle especial dos
nossos desejos e, conseqüentemente, dos nossos prazeres.
Admitindo que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz, Epicuro defendia que a
obtenção da felicidade só seria possível pela moderação dos desejos. Caberia então, distinguir
entre os desejos, aqueles que podem nos trazer a vida feliz. Distinguir assim, entre os desejos,
os que são naturais e os que são inúteis; dentre os naturais, há uns que são necessários e outros,
apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que são fundamentais para a felicidade, outros,
para o bem-estar corporal, outros, ainda para a própria vida. E o conhecimento seguro dos
desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade
do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz (ibid., p. 35).
Associada equivocadamente a uma tradição que prega o gozo imoderado dos prazeres
mundanos, a doutrina epicurista acabou sendo vista pelos cristãos como um pensamento
maldito. Entretanto, Epicuro prega justamente o contrário, pois para ele,
quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos
intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, [...] mas ao prazer que é a ausência
de sofrimentos físicos e de perturbações da alma. Não são pois, bebidas nem banquetes
contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes ou das outras iguarias de
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uma mesa farta que tornam doce uma vida, mas um exame cuidadoso que investigue as causas
de toda escolha e de toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma
imensa perturbação toma conta dos espíritos (EPICURO, 2002, p. 44-45).
Dessa forma, a concepção de prazer apresentada e defendida por Epicuro afasta-se
muito da definição vulgar que vê o prazer como um violento impulso momentâneo. A vida de
prazer — que se identifica com o conjunto das experiências satisfatórias no decorrer da vida
— se torna a única forma de vida feliz, pois, segundo esse filósofo, é essa vida de prazer que
pode ser controlada e direcionada para um estado de harmonia interior e, ao mesmo tempo, de
independência no que diz respeito às realidades externas ao homem. Com isso, a reflexão
sobre as condições mínimas para a satisfação do corpo aparece como fonte última do prazer,
permitindo ao sábio atingir a felicidade mesmo em condições adversas.
Essa correspondência entre a felicidade e o prazer fica bem evidente na teoria
utilitarista clássica de Jeremy Bentham (1748-1832) e de John Stuart Mill (1806-1873).
Segundo Bentham (1979, p. 3), “a natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois
senhores soberanos: a dor e o prazer. [...] Os dois senhores de que falamos nos governam em
tudo o que fazemos”. Admitindo, portanto, que o homem não consegue livrar-se desse
domínio, configura-se o que Bentham chamou de princípio de utilidade, que “reconhece esta
sujeição e a coloca como fundamento desse sistema, cujo objetivo consiste em construir o
edifício da felicidade através da razão e da lei” (ibid., p. 3). Nessa perspectiva, no que diz
respeito ao campo da moral (individual e coletiva) e da política, o padrão supremo é dado pela
felicidade e também, conseqüentemente, pela utilidade. Segundo Bentham (1979, p. 4),
por princípio de utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer ação,
segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está
em jogo ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a promover ou a
comprometer a referida felicidade.
A partir dessa definição é inconcebível que se alcance a felicidade sem se ter a posse
dos elementos que lhe são constitutivos, ou seja, sem a posse dos bens materiais e imateriais
que parecem dignificar a vida do ser humano. Ao ser identificada a uma relação necessária,
essa ligação entre a felicidade e a utilidade aparece como indissolúvel. Se por um lado
acredita-se que para alcançar a felicidade é preciso a posse de um conjunto de coisas úteis, por
outro lado, existe a tendência de identificar unicamente como úteis os bens e serviços que
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contribuem para a felicidade humana. Ou seja, nessa perspectiva utilitarista de Bentham, a
felicidade e a utilidade definem-se mutuamente.
Ao ambicionar estabelecer um preceito exclusivo (externo e científico) para a
definição da finalidade das ações humanas, Bentham vê na utilidade esse preceito. Para ele,
esse critério definidor seria a tendência que uma ação pode ter na produção da felicidade,
sendo esta felicidade vista como prazer ou ausência de dor ou sofrimento. Complementando
essa fórmula, Stuart Mill destaca que a proposta do utilitarismo é ser uma teoria do valor ou
uma “teoria da vida”. Pois, conforme essa teoria, apenas o prazer e a libertação do sofrimento
são desejáveis como fins, ao mesmo tempo em que conduzem o homem à felicidade. Segundo
Mill (2000, p. 187),
o credo que aceita a utilidade ou o princípio da maior felicidade como a fundação da moral
sustenta que as ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade e erradas
conforme tendam a produzir o contrário da felicidade. Por felicidade se entende prazer e a
ausência de dor; por infelicidade, dor e a privação do prazer.
A crença de que a felicidade autêntica supõe a apropriação de coisas verdadeiramente
úteis e, por conseguinte, acreditar que os bens verdadeiramente úteis só podem ser
identificados com os bens que concorrem para a autenticidade da felicidade, parece ter sido
uma forma de raciocinar filosoficamente que acompanha a humanidade há algum tempo e
que, ainda hoje, parece influenciar o raciocínio espontâneo (CAILLÉ; LAZZERI;
SENELLART, 2004). Entretanto, tão difundido quanto o ideal utilitarista, o perfeccionismo
também exerceu (e exerce) considerável poder de persuasão entre os filósofos.
Empregada para “indicar a capacidade de agir em conformidade com o dever, que
implica também a cultura das faculdades físicas e mentais do homem” (ABBAGNANO,
1998, p. 757), a palavra perfeccionismo implica uma “crença no progresso, acompanhada pelo
compromisso de contribuir para ele” (ibid., p. 757). Na perspectiva do perfeccionismo, se
intentarmos designar uma concepção moral alicerçada sobre uma teoria objetiva do bem
humano, devemos levar em consideração que esse bem — ao recomendar as ações para sua
realização — não pode ser definido de forma subjetiva, como faz o utilitarismo clássico ao
apontar o prazer como fundamento último. Mas pelo contrário, esse bem deve ser
representado por uma realidade objetiva: a felicidade estabelecida a partir de estados ou
atividades. Ou seja,
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esse bem objetivo pode ser descrito de maneira detalhada, segundo um grande número de
perfeições e excelências (como o saber, a amizade, o êxito, a riqueza das relações
intersubjetivas) que podem ser práticas ou teóricas, mas se referem a bens reais
(independentemente do prazer que proporcionam) e tornam a vida humana objetivamente feliz.
Pois esse bem humano objetivo é concebido como fundamento da felicidade (CANTO-
SPERBER, 2003, p. 618).
Dessa forma, a felicidade proposta pelas concepções perfeccionistas basea-se na
objetividade de um bem supremo, que pouca relação guarda com a felicidade em sua acepção
comum e, particularmente, subjetiva. Esse ideal moral, freqüentemente levou os pensadores
perfeccionistas a estabelecerem a relação entre o bem humano e a consecução de uma
natureza humana. É assim, que em Marx, por exemplo, a primazia do bem humano identifica-
se com o trabalho produtivo, juntamente com a cooperação social, tendo em vista que sem
esse bem humano, não haveria a realização da vida humana.
Enquanto uma concepção perfeccionista, o eudemonismo — onde a busca da
felicidade pela prática da virtude é o fim das ações humanas — fica impossibilitado de
definir-se de maneira puramente individual. Pois a auto-suficiência da felicidade não se
identifica necessariamente a uma situação exclusivamente individual. Quando “chamamos de
absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de
outra coisa [...], esse é o conceito que preeminentemente fazemos de felicidade”
(ARISTÓTELES, 1979, p. 55). E tendo em vista que
o bem absoluto é considerado como auto-suficiente [...], por auto-suficiente não entendemos
aquilo que é suficiente para um homem só, para aquele que leva a vida solitária, mas também
para os pais, os filhos, a esposa, e em geral para os amigos e concidadãos, visto que o homem
nasceu para a cidadania (ARISTÓTELES, 1979, p. 55).
Essa concepção que entende a felicidade humana como algo que só tem realidade
quando acompanhada da felicidade dos outros homens que lhe são mais próximos guarda
certa semelhança com a idéia de felicidade coletiva que aparece na obra de Stuart Mill, que
vimos anteriormente. Segundo Mill (2000, p. 194), o modelo utilitarista “não é a maior
felicidade do próprio agente, mas a maior soma de felicidade conjunta”. A partir desse
posicionamento, esse filósofo parece acreditar que o fato de todos os homens desejarem a
felicidade de todos é uma conseqüência da busca individual, de cada homem, pela sua própria
felicidade. Ou seja,
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não se pode fornecer nenhuma razão porque a felicidade geral é desejável, exceto a de que cada
pessoa deseja sua própria felicidade, na medida em que crê poder alcançá-la. [...] A felicidade
de cada pessoa é um bem para essa pessoa, e a felicidade geral é, portanto um bem para o
conjunto de todas as pessoas (ibid., p. 232).
Mas ao inferir que a totalidade dos homens deseja a felicidade de todos, Mill torna-se
alvo de algumas objeções suscitadas pela sua estreita relação com a teoria utilitarista da
felicidade e do soberano bem. Uma dessas objeções refere-se à crença desse filósofo na
possibilidade de calcular a contribuição de felicidade conferida por cada ato humano, antes de
executá-lo. Além disso, como explicar corretamente, na perspectiva psicológica, esse cuidado
espontâneo dispensado pelos seres humanos para com a felicidade de todos? Por fim, ao
admitir a necessidade de promover a maior felicidade possível para o maior número de
pessoas, se aceita também que o alcance desse “bem geral” terá como conseqüência
sacrifícios para a minoria.
Assim, podemos sintetizar as críticas sofridas pelo utilitarismo nos seguintes pontos:
a) a dificuldade para o estabelecimento do critério de bem geral; b) a aceitação da privação de
uma minoria em favor do bem geral e, c) a preocupação apenas com os efeitos e
conseqüências das ações, não se levando em conta intenções ou motivos. Entretanto, “nada
suscitou maior desaprovação em relação ao utilitarismo do que essa obrigação de sacrificar a
felicidade da minoria para fazer aumentar a felicidade de todos” (CANTO-SPERBER, 2003,
p. 619).
Neste ponto, podemos ter uma boa visibilidade do confronto entre Marx e o
utilitarismo clássico de Bentham e Mill. Por um lado, Marx acredita que se deve buscar a
maximização da riqueza material, tendo em vista que ela identifica-se, ao mesmo tempo, com
a via e o indício da maior felicidade da maioria. No entanto, em outro sentido, Marx defende
insistentemente a necessidade de se desvelar a quimera econômica do capitalismo e o
fetichismo da mercadoria. Opondo-se a um dos princípios do utilitarismo — de que a busca
individual pela felicidade acaba gerando a felicidade de todos — conclama que “o trabalhador
não ganha necessariamente quando o capitalista ganha, mas perde forçosamente com ele”
(MARX, 1993, p. 102). E se porventura o trabalhador e o capitalista sofrerem danos, deve-se
ter em conta que enquanto “o trabalhador sofre na sua existência [...], o capitalista sofre no
lucro sobre a sua manona inerte” (ibid., p. 103).
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Em certo sentido, a postura teórica de Marx nos remete a uma teoria moral estruturada
de maneira conseqüencialista, à qual associa-se uma teoria objetiva do bem humano: um
perfeccionismo em seu sentido filosófico (HURKA, 2003). Se utilizarmos o termo
perfeccionismo em seu sentido não pejorativo, significando uma busca pela excelência,
podemos dizer então, que — conforme já apontamos anteriormente — essa teoria acaba sendo
defendida por Marx, principalmente em seus primeiros escritos.
Por essa razão, Marx (1993, p. 103) acredita que “o trabalhador não tem apenas de
lutar pelos meios físicos de subsistência; deve ainda lutar por alcançar trabalho, isto é, pela
possibilidade e pelos meios de realizar a sua atividade”. Ademais, existe uma identificação do
bem humano com o trabalho produtivo e com a cooperação social e, neste sentido, a melhor
sociedade será aquela em que essas duas capacidades realizam-se no mais alto nível. Se “a
revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações tradicionais de propriedade, não
é de espantar que no curso de seu desenvolvimento ela rompa da maneira mais radical com as
idéias tradicionais” (MARX; ENGELS, 1993, p. 86). Sendo assim, a melhor sociedade, ou a
genuína sociedade, imaginada por Marx só pode ser a comunista, pois com o advento do
comunismo, “em lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e seus antagonismos de
classes, surge uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o
livre desenvolvimento de todos” (ibid., p. 87)
Marx sempre evidenciou no capitalismo, o fato dele configurar-se como um sistema
fundado na constante mudança nos métodos produtivos, e ainda, na criação de novos objetos
de consumo e na descoberta de novos mercados. Estabelecendo estreita relação com essa
caracterização, o que está na base de todo discurso que Marx empreende sobre o comunismo é
a abundância material. Não há como existir uma sociedade comunista como a proposta por
esse filósofo, dentro de um quadro de escassez. Entretanto, de maneira totalmente diferente do
que ocorre no capitalismo, essa abundância será fruto de uma produção planejada
coletivamente, visando o bem da própria coletividade.
Além do mais, se no capitalismo a preocupação com a abundância de bens materiais
leva o homem ao consumismo, ao mesmo tempo em que o “esvazia espiritualmente”, tal
situação não aconteceria no comunismo. Havendo no comunismo um redirecionamento dos
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desejos de “natureza social”, a busca pelos bens materiais não estaria mais subjugada à paixão
pelo dinheiro ou à ganância pela propriedade.
Assim, parafraseando Japiassu (2005) — ao referir-se à necessidade de superação do
“medo”, para que o homem contemporâneo alcance a felicidade — não podemos perder as
esperanças no potencial que o comunismo tem para a construção da vida feliz. Se o
comunismo nutre e direciona a busca pela felicidade,
precisamos ainda sonhar com uma sociedade onde:
os valores econômicos e financeiros não se imponham como centrais e únicos;
a acumulação de bens e a notoriedade midiática não sejam consideradas valores em si; [...]
o crescimento máximo seja considerado um meio, não o fim das ações humanas;
não nos deixemos dominar pela obsessão do consumismo desenfreado (JAPIASSU, 2005, p.
294).
Para alguns estudiosos do pensamento de Marx, o comunismo serve como uma
espécie de “guia da felicidade”, na medida em que propõe que os homens afastem-se das
buscas triviais — incentivadas pelo capitalismo — e busquem seu destino comum: a
realização livre e criadora de suas potencialidades humanas. Nessa perspectiva, a felicidade
seria percebida como uma satisfação profunda, após a realização dos ideais do comunismo e a
conseqüente melhoria alcançada para toda a humanidade.
Entretanto, para o sucesso dessa “luta contra o capital”, torna-se necessária a adoção
de uma série de medidas que ataquem diretamente a propriedade privada e,
conseqüentemente, garantam ao proletariado sua continuidade na gestão da sociedade. Ao
centralizar os instrumentos de produção no Estado revolucionário, o proletariado — já
organizado, portanto, como classe dominante — adotaria algumas medidas iniciais:
1. Expropriação da propriedade fundiária e emprego da renda da terra nas despesas do Estado.
2. Imposto fortemente progressivo.
3. Abolição do direito de herança.
4. Confisco da propriedade de todos os emigrados e rebeldes.
5. Centralização do crédito nas mãos do Estado, por meio de um banco nacional com capital do
Estado e monopólio exclusivo.
6. Centralização dos meios de transporte nas mãos do Estado.
7. Multiplicação das fábricas nacionais e dos instrumentos de produção; cultivo e melhoramento
das terras segundo um plano comum.
8. Trabalho obrigatório igual para todos; constituição de exércitos industriais, especialmente
para a agricultura.
9. Unificação dos serviços agrícola e industrial; medidas tendentes a eliminar gradualmente as
diferenças entre cidade e campo.
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10. Educação pública e gratuita de todas as crianças. Eliminação do trabalho das crianças nas
fábricas em sua forma atual. Combinação da educação com a produção material etc (MARX;
ENGELS, 1993, p. 87).
Se olharmos atentamente essas medidas para a implantação do comunismo,
analisando-as a partir da perspectiva filosófica de Marx, não teremos dúvidas de que se trata
de uma tentativa prática para se chegar a uma sociedade onde o homem possa ser feliz. Fiéis a
filosofia da ação, Marx e Engels estabelecem preceitos aplicáveis à qualquer sociedade que
pretenda dar espaço para que o homem realize suas potencialidades através do trabalho.
Essas medidas devem perdurar enquanto houver antagonismo entre classes. No
momento em que essas diferenças se extinguirem, e toda a produção converter-se em posse
dos indivíduos associados, não haverá mais sentido para o caráter político do poder público.
Pois o poder político, nada mais é do que a capacidade que uma classe organizada tem para
oprimir uma outra.
Representando uma garantia mínima de que na nova sociedade o trabalho constituir-
se-á realmente na essência do homem, essas medidas presentes no Manifesto do partido
comunista, aparecem de forma mais detalhada ainda, em um esboço escrito por Engels, em
1847, intitulado Princípios do comunismo. Na proposição de número doze desse “esboço”,
percebemos a preocupação de Engels (e também de Marx) com “a demolição de todas as
casas e de todos os bairros insalubres” (ENGELS, 1993, p. 115), sinalizando que a nova
sociedade deveria exercer um controle sobre as construções irregulares. Parecia que Engels
estava prevendo um dos problemas sociais mais sérios dos grandes centros urbanos de nossos
dias: a “favelização” da população.
Enormes contingentes de pessoas chegam todos os dias às grandes cidades do mundo,
impelidos por uma ilusão consumista gerada pelo capitalismo. Em busca de empregos ou
melhores colocações no mercado, homens e mulheres se tornam reféns de um mercado
imobiliário que muitas vezes os empurram para as construções irregulares. Diante desse
quadro, muitos dirigentes políticos do Estado capitalista, inspirados no princípio da “liberdade
de ir e vir” omitem-se ou, muitas vezes, aceitam e indiretamente incentivam a favelização.
Constroem sua plataforma política a partir de projetos que visam a melhoria (urbanização) das
favelas. Convenientemente, aceitam o problema — conseqüência de uma economia capitalista
— como algo inevitável e “natural”, e tentam remediá-lo.
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Em uma sociedade sem classes, de economia planificada — onde as decisões seriam
tomadas em função das necessidades da coletividade — nenhum homem poderia viver em
condições incompatíveis à dignidade merecida pelo ser humano. Se as causas da favelização
são o desemprego (ou o subemprego) e os “baixos salários, essas causas não existiriam na
sociedade proposta por Marx, pois nela, o trabalho alienado (e alienante) seria substituído
pelo trabalho enquanto essência do homem. Trabalho que transforma o mundo, ao mesmo
tempo em que transforma o próprio homem no sentido da realização de todas as suas
potencialidades mais dignas e compatíveis com a sua verdadeira natureza.
A instauração dessa situação problemática, identificada com as construções
irregulares, também seria combatida pela decisão da sociedade comunista — em sua fase de
implantação — de diminuir as diferenças entre o campo e a cidade. Na medida de número
nove, proposta pelo Manifesto do partido comunista para a superação da sociedade de classes,
Marx prevê a necessidade de unificação entre os serviços agrícola e industrial. Tal percepção
é expressa de maneira mais direta em uma variante do texto original, datada de 1888: “9. [...]
abolição gradual da distinção entre cidade e campo por meio de uma distribuição mais
igualitária da população do país” (MARX; ENGELS, 1993, p. 87).
Se as ilusões geradas pela sociedade capitalista (liberdade, igualdade, consumo sem
medidas etc) são os principais fatores que atraem as pessoas para as grandes cidades, com a
dissipação dessas ilusões, acabam-se os “atrativos”. Na sociedade sem classes, onde o
consumismo seria extinto, tanto a cidade, quanto o campo teriam condições de proporcionar
ao homem uma vida digna.
No capitalismo, a “alocação geográfica” das pessoas é realizada sem planejamento,
como se as cidades tivessem vida autônoma, ou como se o campo impedisse ao homem a
realização de sua natureza. Ignora-se um princípio básico: os centros urbanos são totalmente
dependentes da zona rural. Produtos ligados ao setor de energia e de alimentos, por exemplo,
têm sua origem no campo, mas chegam à cidade totalmente alienados de seus produtores.
Na tentativa de reverter essa situação, concordamos com Japiassu (2005, p. 304) que,
ao apontar uma possível saída para o “fim das utopias”, acredita que “precisamos fazer um
esforço gigantesco para dar à nossa juventude a verdadeira educação que merece, fazendo
51
dela uma geração de homens e mulheres livres, capazes de compreender por si mesmos o
Universo que os cerca e sua real significação”. Assim, podemos vislumbrar no comunismo a
possibilidade dessa “verdadeira educação” que garantiria tanto ao homem do campo, quanto
ao homem dos centros urbanos, que ele não seria mais submetido à alienação do trabalho. Até
porque, nesse modo de produção, o ser humano não está definitivamente comprometido a um
único tipo de empreendimento para provimento de suas necessidades (MARX; ENGELS,
1986).
No modo de produção comunista o provimento das necessidades do homem se dá
prioritariamente na ordem social que permeia a existência humana, onde o trabalho coletivo
tem um papel fundamental. Como ser social e produtivo será através do trabalho coletivo que
o homem encontrará sua verdadeira natureza. Expressando essa certeza de maneira clara,
Marx (1978a, p. 52) afirma em sua sexta tese contra Feuerbach que, “a essência humana não é
abstrato residindo no indivíduo único. Em sua efetividade é o conjunto das relações sociais”.
Esse encontro do homem com sua natureza só poderá acontecer à medida que o
potencial criativo do trabalho se torne possível a todos os homens, não sendo mais apropriado
para atender aos interesses de uma única classe. Assim, podemos inferir que a felicidade não
está apenas na acumulação de bens materiais ou na dominação dos recursos naturais e
humanos (só no nível individual), como acontece na sociedade capitalista, mas na liberdade
de todos os indivíduos, a partir da implantação da sociedade comunista.
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3 – MARX E A CRÍTICA AO CAPITALISMO: EM BUSCA DA FELICIDADE
Ao intentarmos analisar os princípios da crítica feita por Marx à sociedade capitalista,
não podemos iniciá-la sem antes termos clareza do próprio significado do termo capitalismo.
Assim, podemos iniciar essa discussão afirmando ser o capitalismo, uma configuração
histórica caracterizada pelo fato de ter no mercado o centro organizador do conjunto da vida
social. Entretanto, esse mercado capitalista não é apenas mais um elemento social diluído no
interior da sociedade — como acontece nas formas históricas precedentes — mas configura-
se como o ponto de convergência do conjunto das atividades de produção e reprodução da
sociedade.
A compreensão da organização da sociedade capitalista a partir dessa estruturação do
mercado nos permite compreender a distribuição do poder, da riqueza, os papéis da família e
da religião e, por fim, nos leva a vislumbrar a própria forma do Estado capitalista. Nesse
sentido, o primeiro aspecto a destacar para essa compreensão é a constatação de que o
capitalismo tem a potencialidade de transformar todas as coisas em “produto para ser
trocado”, ou seja, em mercadoria.
Contrastando com as formas históricas anteriores, o capitalismo tem na “lógica da
troca” o principal fator determinante da conduta dos agentes no mercado. E é na mercadoria
que essa lógica da troca mercantil tem sua unidade elementar. Mas se o mercado é o núcleo
que estrutura a sociedade capitalista, potencialmente, todas as coisas devem possuir um valor
qualquer, que pode assumir a forma de uma mercadoria. Referindo-se a esses valores das
mercadorias, Marx (1978c, p. 74-75) faz a seguinte colocação:
Como os valores de troca das mercadorias não passam de funções sociais delas, e nada têm a
ver com suas propriedades naturais, devemos antes de mais nada perguntar: Qual é a substância
social comum a todas as mercadorias? É o trabalho. Para produzir uma mercadoria tem-se que
inverter nela, ou a ela incorporar uma determinada quantidade de trabalho. E não simplesmente
trabalho, mas trabalho social. Aquele que produz um objeto para seu uso pessoal e direto, para
consumi-lo, cria um produto, mas não uma mercadoria. Como produtor que se mantém a si
mesmo, nada tem com a sociedade. Mas, para produzir uma mercadoria, não só tem de criar um
artigo que satisfaça a uma necessidade social qualquer, como também o trabalho nele
incorporado deverá representar uma parte integrante da soma global de trabalho invertido pela
sociedade. Tem que estar subordinado à divisão de trabalho dentro da sociedade. Não é nada
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sem os demais setores do trabalho, e, por sua vez, é chamado a integrá-los. Quando
consideramos as mercadorias como valores, vemo-las somente sob o aspecto de trabalho social
realizado, plasmado ou, se assim quiserdes, cristalizado. [...] Chegamos, portanto, a esta
conclusão. Uma mercadoria tem um valor por ser uma cristalização de um trabalho social. A
grandeza de seu valor, ou seu valor relativo, depende da maior ou menor quantidade dessa
substância social que ela encerra, quer dizer, da quantidade relativa de trabalho necessário à sua
produção.
É interessante observar nessa passagem, que ao distinguir produto de mercadoria, de
certa forma, Marx ratifica a distinção — já realizada em outros momentos de sua vasta obra
— entre o trabalho que se realiza no interior do capitalismo e o que se realiza fora de seus
princípios. Ou seja, no capitalismo — pela primeira vez na história — o trabalho tornou-se
uma mercadoria, a partir da qual, em troca de um salário vende-se a força de trabalho,
constituída pela potencialidade do homem para a utilização de instrumentos e máquinas na
produção de mercadorias. Em outras palavras, o capitalismo não se configura apenas como
um sistema que produz para o mercado, mas é um sistema em que a própria capacidade de
trabalho converte-se em uma mercadoria a ser negociada no mercado à semelhança de
qualquer outro objeto de troca.
Essa situação do trabalho no capitalismo representa para Marx uma verdadeira
deturpação, pois para esse filósofo, se podemos identificar no homem uma essência, esta deve
ser o trabalho. Mas o que Marx chama de trabalho humano não se identifica a uma atividade
genérica, como a realizada por uma abelha, por exemplo, que age instintivamente ao construir
as células da colméia. O trabalho humano é diferente.
No homem, o fim almejado que demanda o trabalho, já existe em sua cabeça antes de
existir no mundo real. Diferentemente dos animais, o homem antecipa o resultado a ser
alcançado, o que muda completamente o caráter de sua atividade. Assim, o trabalho humano é
essa atividade livre para antecipar os resultados, improvisar, fazer escolhas, assumir riscos
etc. Ou seja, o trabalho é parte integrante da natureza do homem. Neste ponto, Marx (2006, p.
36) é incisivo ao afirmar que
a força de trabalho em ação, o trabalho, é a própria atividade vital do operário, a própria
manifestação da sua vida. E é essa atividade vital que ele vende a um terceiro para se assegurar
dos meios de vida necessários. A sua atividade vital é para ele, portanto, apenas um meio para
poder existir.
54
O trabalho deixa de identificar-se com a natureza humana, quando se converte em
simples atividade privada do que antes era um momento de antecipação de resultados, ou
quando destituída do exercício de sua liberdade. Isso acontece quando o trabalho torna-se uma
mercadoria no capitalismo: o trabalho deixa de ser atividade vital do homem e passa a ser
apenas um meio para que o trabalhador consiga continuar vivendo. Sob a batuta do
capitalismo, o trabalho converte-se em um verdadeiro instrumento de degradação da condição
humana. E o trabalhador deixa de ser homem para tornar-se uma coisa. Dessa forma,
o trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior número de bens produz.
Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do
mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo
e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção com que produz bens
(MARX, 1993, p. 159).
Nessa perspectiva, a “realização do trabalho” no capitalismo, converte-se em
“desrealização do trabalhador”. Na medida em que o produto do trabalho aparece como um
objeto estranho ao próprio trabalhador que o produziu, configura-se a alienação desse
trabalhador. Entretanto, essa alienação do trabalhador não se dá apenas em relação aos
produtos de seu trabalho, mas também no processo de produção. E em seu conjunto, a
situação do homem submetido ao trabalho alienado, assemelha-se à situação dos animais.
Situação que Marx (1993, p. 164-165) descreve da seguinte forma:
O animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É a sua
própria atividade. Mas o homem faz da atividade vital o objeto da vontade e da consciência.
Possui uma atividade vital consciente. Ela não é uma determinação com a qual ele
imediatamente coincide. A atividade vital consciente distingue o homem da atividade vital dos
animais. Só por esta razão é que ele é um ser genérico. Ou melhor, só é um ser consciente, quer
dizer, a sua vida constitui para ele um objeto, porque é um ser genérico. Unicamente por isso é
que a sua atividade surge como atividade livre. O trabalho alienado inverte a relação, uma vez
que o homem, enquanto ser consciente, transforma a sua atividade vital, o seu ser, em simples
meio da sua existência.
Pelo que vimos até agora, Marx condena a sociedade burguesa ao afirmar que essa
sociedade se funda na exploração e na opressão da maioria pela minoria. Mas diferentemente
de sociedades anteriores — onde também havia esse tipo de exploração — a dinâmica da
sociedade burguesa procura legitimar-se minimamente ao produzir mecanismos que ocultam
essa exploração. Mecanismos como a alienação e a reificação, conectadas ao fetichismo da
mercadoria são essenciais à existência da sociedade burguesa.
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Conforme discutimos nos parágrafos anteriores, para Marx a alienação é o estado no
qual os homens se tornam (ou permanecem) alheios, desligados, enfim, alienados a um ou
mais desses aspectos: 1) aos resultados ou produtos de sua própria atividade (e à atividade ela
mesma); 2) à natureza na qual vivem; 3) a outros seres humanos; 4) a si mesmos (às suas
possibilidades humanas constituídas historicamente). E a reificação seria o último estágio de
alienação do trabalhador, no sentido de que sua força de trabalho se transforma em valor de
troca, escapando a seu próprio controle e tornando-se uma “coisa autônoma”.
Para esse pensador, quando na sociedade capitalista os objetos materiais possuem
características que lhe são conferidas pelas relações sociais dominantes, mas que aparecem
como se lhes pertencessem naturalmente, temos então, o fetichismo, que impregna toda a
produção capitalista. Esse fetichismo da mercadoria seria o padrão mais simples e universal
do modo pelo qual se ocultam as relações sociais subjacentes às formas econômicas do
capitalismo, como por exemplo, quando o capital — como quer que seja entendido, e não a
mais-valia — é tido como a fonte do lucro (BOTTOMORE, 1988).
Apesar de sua aparente trivialidade, a mercadoria — ao revelar-se como tal — possui
um caráter misterioso, por configurar-se como algo ao mesmo tempo perceptível, mas
também impalpável. E esse caráter misterioso, segundo Marx, provém da forma social
adquirida pelo trabalho. Ao procurar explicar o caráter social inerente ao trabalho produtor de
mercadorias, Marx (1975a, p. 81) demonstra que é esse caráter social que engendra o
fetichismo das mercadorias:
A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio
trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais
inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos
individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à
margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. Através dessa dissimulação, os
produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais com propriedades perceptíveis e
imperceptíveis aos sentidos. [...] Uma relação social definida, estabelecida entre os homens,
assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. [...] É o que ocorre com os
produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isto de fetichismo, que será
sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável
da produção de mercadorias.
Numa sociedade desse tipo — organizada segundo os mecanismos citados — apesar
do trabalhador colocar sua vida no objeto produzido, é este objeto que se apodera de sua vida.
56
O produto do trabalho aparece ao trabalhador como um ser estranho. Assim, no processo de
trabalho capitalista, a produção do trabalhador implica na sua alienação, ou seja,
a alienação do trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho se transforma em
objeto, assume uma existência externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele
estranho, e se torna um poder autônomo em oposição com ele; que a vida que deu ao objeto se
torna uma força hostil e antagônica (MARX, 1993, p. 160).
Essa força hostil ao trabalhador, gerada pelo trabalho capitalista, torna homem um
prisioneiro de sua própria produção. Dessa forma, “o capital é [...] o poder de domínio sobre o
trabalho e sobre os seus produtos” (ibid., p. 120) e, conseqüentemente, “o capitalismo possui
este poder, não em virtude das suas qualidades pessoais ou humanas, mas como proprietário
do capital” (ibid., p. 120).
Entretanto, apesar de todas as mazelas sociais engendradas pelo mercado capitalista,
sua força de continuidade encontra-se, justamente, no fato dele “aparecer” como uma
instituição neutra. A lógica da troca apresenta-se como sendo realizada entre mercadorias de
valores equivalentes para que ninguém seja favorecido de modo particular. E para que
funcione dessa forma, essa lógica pressupõe regras que independem da posição ocupada pelo
indivíduo na estrutura social e, portanto, regras que valem para todos.
A conseqüência visível desse processo se dá quando o mercado capitalista aparece
como um momento crucial da vida em sociedade: o momento em que todos são tratados com
justiça, em função do estabelecimento de regras válidas para todos que trocam suas
mercadorias de valores equivalentes. E por conta disso, liberdade e igualdade para todos são
os ideais prometidos por essa instituição — o mercado — promovida pela sociedade
capitalista.
Concordando com alguns princípios da economia burguesa — representada
essencialmente pelos economistas ingleses Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-
1823) — Marx admite que, realmente, as mercadorias são negociadas pelo valor que
possuem. Entretanto, vai mais além e mostra que ao transformar a capacidade de trabalho em
mercadoria negociável como qualquer outra, o mercado acaba reproduzindo e aumentando as
desigualdades que já existem na base do próprio capitalismo. Ao invés de propiciar a
instauração do reino da liberdade e da igualdade, conforme promete, o mercado capitalista, na
57
verdade, gera e aprofunda as diferenças econômicas, políticas e sociais entre capitalistas e
proletários.
Se no discurso, a lógica da troca — pautada na igualdade de valores — é algo
perfeitamente viável à mercadoria “trabalho”, Marx mostra que na prática engendra-se uma
grande ilusão. Há uma diferença essencial entre o salário recebido pelo trabalhador ao vender
sua força de trabalho ao capitalista e o valor que essa força de trabalho consegue produzir. Ou
seja, há uma disparidade entre o valor de mercado da força de trabalho e o valor agregado à
mercadoria produzida. A partir dessa constatação, Marx (1978c, p. 82-85) explica que,
ao comprar a força de trabalho do operário e ao pagá-la pelo seu valor, o capitalista adquire,
como qualquer outro comprador, o direito de consumir ou usar a mercadoria comprada. A força
de trabalho de um homem é consumida, ou usada, fazendo-o trabalhar, assim como se consome
ou se usa uma máquina fazendo-a funcionar. Portanto, o capitalista, ao comprar o valor diário,
ou semanal, da força de trabalho do operário, adquire o direito de servir-se dela ou de fazê-la
funcionar durante todo o dia ou toda a semana. [...] Mas o capitalista, ao pagar o valor diário ou
semanal da força de trabalho do fiandeiro [por exemplo], adquire o direito de usá-la durante
todo o dia ou toda a semana. Fa-lo-á trabalhar, portanto, digamos, 12 horas diárias, quer dizer,
além das 6 horas necessárias para recompor o seu salário, ou o valor de sua força de trabalho,
terá de trabalhar outras 6 horas, a que chamarei horas de sobretrabalho, e este sobretrabalho irá
traduzir-se em mais-valia e em um sobreproduto. [...] À mais-valia, ou seja, àquela parte do
valor total da mercadoria em que se incorpora o sobretrabalho, ou trabalho não remunerado, eu
chamo de lucro.
Explica-se dessa forma, a grande ilusão engendrada pelo mercado capitalista, onde a
disparidade entre o valor de mercado da força de trabalho e o maior valor que ela consegue
produzir (a mais-valia) converte-se em lucro, do qual o capitalista, privadamente, toma posse.
E nessa perspectiva, é impossível a realização da promessa capitalista de liberdade e
igualdade para todos, enquanto o lucro continuar a existir.
Portanto, a liberdade e a igualdade enaltecidas pela sociedade burguesa são apenas
formais e não passam de formas ideológicas que recobrem a dominação de classe exercida
pela burguesia. Essa promessa capitalista — de uma sociedade livre e igualitária — de fato,
acaba dando forma à consciência tanto dos capitalistas, quanto dos proletários. Para Marx e
Engels (1986, p. 72), isso se torna possível na medida em que “a classe que tem a sua
disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção
espiritual”. E dessa forma, “as idéias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das
relações materiais dominantes” (ibid., p. 72). Ou seja, as idéias dominantes de cada época são
58
as idéias da classe dominante, pois a classe que tem o domínio da força material da
sociedade, representa ao mesmo tempo a força espiritual dominante.
Para nos apropriarmos adequadamente do pensamento de Marx, é muito importante
entendermos que a idéia fundamental de sua obra é a sua certeza de que o homem faz sua
própria história. Não os homens individualmente, mas em sua produção conjunta; ele é seu
próprio criador: a história humana difere da história natural por nós termos feito a primeira,
mas não a última (MARX, 1975a). Ao contrário de Hegel, Marx estuda o homem e a história
partindo do homem real e das condições econômicas e sociais em que ele tem de viver, e não
primordialmente das idéias desse homem. Assim, “o primeiro pressuposto de toda história
humana é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos” (MARX; ENGELS, 1986,
p. 27).
E como a condição de continuidade da existência de uma sociedade é, em primeiro
lugar, a sua reprodução e a produção das condições materiais de vida, as relações sociais
possuem um caráter predominantemente econômico. Dessa maneira — como já vimos
anteriormente — formula-se uma concepção materialista da história na medida em que não é
a consciência dos homens que faz a história, mas ao contrário ela é produto da realidade
objetiva histórica. Ou seja,
na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e
independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa
determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas
relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se
levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais
determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em
geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu
ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de
seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com
as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que sua expressão jurídica, com as
relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de
desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se transformam em grilhões. Sobrevém
então uma época de revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme
superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez (MARX, 1978b, p. 129-130).
Dessa afirmação depreende-se que a noção de felicidade é uma forma de consciência
social, que por sua vez reflete as condições de vida material da sociedade, sendo, portanto,
uma noção histórica. Em uma sociedade de classes antagônicas, que surge de determinações
econômicas entre os homens e os meios de produção, a moral reflete esse antagonismo. Neste
59
sentido, a moral em uma sociedade como essa acaba sendo ideológica por expressar interesses
de classes. Segundo Engels (1990, p. 79),
até hoje, todas as teorias morais foram, em última instância, produtos da situação econômica das
sociedades em que foram formuladas. E, como até o dia de hoje a sociedade se desenvolveu
sempre por antagonismos de classe, a moral foi também, sempre e forçosamente, uma moral de
classe; nalguns casos, construída para justificar a hegemonia e os interesses da classe
dominante, noutros, quando a classe oprimida se torna bastante poderosa para rebelar-se contra
a classe opressora, a moral é construída para defender e legitimar a rebelião e os interesses do
futuro em geral, e da classe oprimida, em particular.
As diferenças morais em uma sociedade de classes, em dado momento histórico,
expressam a luta de classes. Já que a classe que domina a produção material, domina também
a produção intelectual, cultural e artística, ela possui também um domínio no campo da
produção de normas morais. Tal fato pode influir diretamente na constituição de uma noção
de felicidade pautada na paixão pelo dinheiro e propriedade, por exemplo, servindo aos
interesses dessa classe que domina a produção social.
Mostrando que não existe moral independente dos interesses fundamentalmente
econômicos dos homens, Marx admite que em uma sociedade de classes antagônicas não
existe uma moral acima das classes. Não há, por exemplo, uma noção de felicidade que sirva
igualmente para todas as classes. O que existe é um conceito de felicidade em forma de
ideologia que expressa interesses da classe dominante. Assim, essa forma ideológica
configura-se na contradição existente entre o interesse particular e o interesse coletivo, onde
o interesse coletivo toma, na qualidade de Estado, uma forma autônoma, separada dos reais
interesses particulares e gerais e, ao mesmo tempo, na qualidade de uma coletividade ilusória,
mas sempre sobre a base real dos laços existentes em cada conglomerado familiar e tribal [...], e
sobretudo [...], baseadas nas classes, já condicionadas pela divisão do trabalho, que se isolam
em cada um destes conglomerados humanos e entre os quais há uma que domina todas as
outras” (MARX; ENGELS, 1986, p. 48).
Contrário a uma concepção idealista de homem, adotada pelos “filósofos burgueses”,
os fundamentos do pensamento de Marx se encontram nas tentativas de recuperar o “homem
concreto”, que se tinha transformado numa série de abstrações em diversas doutrinas morais.
Para Marx e Engels, não existe o “homem abstrato” como conceito absoluto, mas sim o
homem real, que estabelece com outros homens e com a natureza uma relação real que se
altera e se transforma. Por isso, a história da sociedade nada mais é do que a história das
relações entre os homens, e dos homens com a natureza. E as várias relações que o homem
60
contrai numa determinada época constituem uma formação econômico-social que muda
historicamente sob o impulso, principalmente, da contradição entre o desenvolvimento das
forças produtivas e das relações de produção. Mudando-se a base econômica, muda também a
superestrutura ideológica e, evidentemente, a consciência social.
Sendo reflexo das condições de vida material, essa consciência social tem uma base
real e atua através da ação dos homens nessa mesma base real. Enquanto uma das formas
dessa consciência social, a moral é histórica e se transforma toda vez que a base real da
sociedade se transforma. Ela se altera segundo necessidades objetivas e reais, e neste sentido,
o bem e o mal, o certo e o errado, e especificamente a felicidade, possuem conteúdo social
mutável. Conforme esse pensamento,
não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, e tampouco dos homens
pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso;
parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também
o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. E mesmo as
formações nebulosas no cérebro dos homens são sublimações necessárias do seu processo de
vida material, empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais. A moral, a religião,
a metafísica e qualquer outra ideologia, assim como as formas de consciência que a elas
correspondem, perdem toda a aparência de autonomia. Não têm história, nem desenvolvimento;
mas os homens, ao desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material,
transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a
consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência (MARX; ENGELS,
1986, p. 37).
Nessa perspectiva, podemos inferir que qualquer conceito de felicidade “surge sempre
de um estágio particular do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção
e é sempre relativa a um modo particular de produção e a interesses particulares de classe”
(BOTTOMORE, 1988, p. 270). Na maneira como o homem produz encontra-se a explicação
para a origem de suas idéias, assim como seus interesses, e conseqüentemente para sua noção
de felicidade. E como o homem produz no capitalismo?
Como já vimos no início deste capítulo, nos Manuscritos econômico-filosóficos, de
1844, Marx desenvolve sua reflexão sobre a produção, a partir do exame da alienação,
enquanto fenômeno do trabalho humano assalariado, desembocando na caracterização do
comunismo a partir de uma concepção humanista e naturalista. Mostra que o trabalho, fora da
sociedade capitalista, pode configurar-se na essência genérica do homem, mas condena a
alienação do trabalhador no capitalismo, pois nela
61
o trabalho é exterior ao trabalhador, quer dizer, não pertence a sua natureza; portanto, ele não se
afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve
livremente as energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e arruína o espírito (MARX,
1993, p. 162).
Dando continuidade a essa reflexão, Marx determina um segundo sentido que pode ser
dado à alienação, que diz respeito ao produto do trabalho humano. Nessa perspectiva, o
homem, em sua grande maioria, encontra-se alienado, pois perdeu o controle dos produtos de
sua própria atividade laboral.
Dessas colocações, podemos inferir que a felicidade em Marx configura-se na
concretização da essência humana, que tem a autonomia como fator determinante. Em outras
palavras, a realização dessa essência só é possível a partir do momento em que o homem entra
em harmonia com seu próprio trabalho e com a natureza. A partir dessa concepção comunista,
o homem se reconcilia com sua “essência comunitária”, que havia sido destruída pela
propriedade privada. Por isso, para Marx (1993, p. 197), “a alienação da propriedade privada
constitui, portanto, a emancipação total de todos os sentidos e qualidades humanas”.
É interessante notar, que a idéia de uma essência comunitária própria ao ser humano,
já estava presente em Marx desde sua juventude. Ainda como estudante no Liceu de Trèves
(1830-1835), ao dissertar sobre o tema “escolha da profissão”, em um exame final de língua
alemã, Marx (apud OLIVEIRA, 1997, p. 20) afirma que
o guia principal que nos deve direcionar na escolha de uma profissão é a felicidade da
humanidade, a nossa própria perfeição. Não se deve pensar que esses dois interesses possam
lutar um contra o outro, que um teria que destruir o outro; ao contrário, a natureza do homem é
constituída de tal forma que ele pode alcançar sua própria perfeição apenas trabalhando pela
perfeição, pela felicidade dos homens seus semelhantes.
Ainda que escrito em uma linguagem própria a um jovem, temos nessa dissertação de
Marx o desenvolvimento de algumas idéias que o acompanhariam no decorrer das reflexões
de sua maturidade. Se por um lado, admite, por exemplo, que o homem atinge sua perfeição
ao fazer os outros felizes, e que, portanto, a melhor profissão é sempre a que permite que se
trabalhe pela maioria, por outro lado, reconhece que apenas a opção pela melhor profissão não
basta. Já nesse texto juvenil, Marx abordou o que posteriormente, em sua fase adulta,
examinaria como trabalho alienado, defendendo que “só pode ser assegurada dignidade
62
através de uma profissão na qual não apareçamos como ferramenta servil, mas em que
produzamos autonomamente” (MARX apud OLIVEIRA, 1997, p. 21).
Se a realização da essência humana e, conseqüentemente a realização da liberdade e da
igualdade, está condicionada a uma revolução que acabe com o reino do capital, isso só se
dará como obra do proletariado organizado como classe. E foi com a publicação do Manifesto
do partido comunista, em 1848, que Marx apontou o proletariado como candidato natural à
administração geral da nova sociedade, posterior à abolição do capital. Tendo em vista que,
“de todas as classes que hoje se opõem à burguesia, apenas o proletariado é uma classe
verdadeiramente revolucionária” (MARX; ENGELS, 1993, p. 75). Enquanto classe produtora
da riqueza, mas destituída de sua posse, o proletariado torna-se o pivô da luta pelo término da
exploração do homem pelo homem. Pois, “os proletários nada têm de seu para salvaguardar;
têm para destruir toda a segurança privada e todas as garantias privadas até aqui existentes”
(ibid., p. 76).
Em conseqüência dessa situação o proletariado não encontrará sua felicidade na
acumulação, na dominação e na expropriação; mas, ao contrário, a felicidade só sobrevirá na
liberdade de todos. Para a consecução dessa felicidade é necessária a adesão consciente à luta
em favor da emancipação social. Tendo por princípio a dissolução da existência de classes
antagônicas por conta de seus interesses particulares, “o comunismo não priva ninguém do
poder de se apropriar dos produtos sociais; o que faz é eliminar o poder de subjugar o trabalho
alheio por meio dessa apropriação” (ibid., p. 82).
Por fim, podemos sintetizar a discussão travada neste capítulo, afirmando que o modo
de produção, dependente de condições dadas objetivamente, de certa forma acaba
determinando o pensamento e o desejo do homem. Com isso, certas condições econômicas,
como as do capitalismo, produzem como principal incentivo o desejo de dinheiro e
propriedade. Já outras condições econômicas podem produzir exatamente os desejos opostos,
tais como são encontrados em muitas culturas orientais e nas etapas iniciais do capitalismo.
Portanto, a paixão pelo dinheiro e pela propriedade, segundo o pensamento de Marx, é tão
economicamente condicionada quanto as paixões diametralmente opostas: são desejos
relativos, de natureza social.
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Fazendo uma crítica à sociedade consumista moderna, fruto do capitalismo, Marx
mostra que a maior parte dos nossos desejos é de natureza social e, portanto, são produzidos a
partir de nossa vida em sociedade. Assim, noções como “riqueza” ou “pobreza”, por exemplo,
variam conforme a posição social dos indivíduos que são confrontados para a identificação de
semelhanças e diferenças. Essa situação — dos nossos desejos variarem conforme o nível dos
vizinhos comparados — é ilustrada por Marx (2006, p. 52) com o seguinte exemplo:
Uma casa pode ser grande ou pequena; enquanto as casa que a rodeiam são igualmente
pequenas, ela satisfaz todas as exigências sociais de uma habitação. Erga-se, porém, um palácio
ao lado da casa pequena, e eis a casa pequena reduzida a uma choupana. A casa pequena prova,
agora, que o seu dono não tem, ou tem apenas as mais modestas exigências a alimentar. E por
mais alto que suba no curso da civilização, se o palácio vizinho crescer no mesmo ou em maior
ritmo, o habitante da casa relativamente pequena sentir-se-á cada vez mais desconfortável, mais
insatisfeito, mais oprimido entre as suas quatro paredes.
Nessa perspectiva, um aumento dos salários não aumenta necessariamente a satisfação
do trabalhador, se vier acompanhado de um aumento do nível de vida do capitalista. Na
verdade, um aumento no capital, significa que os lucros aumentaram e, mesmo que os salários
realmente subam, a distância entre capitalistas e trabalhadores tende a aumentar. Pois,
“enquanto o operário assalariado for operário assalariado, a sua sorte dependerá do capital”
(MARX, 2006, p. 51). Partindo desse pressuposto, Marx (2006, p. 52) analisa a natureza dos
desejos humanos em relação à vida no interior da sociedade capitalista, chegando à conclusão
que,
um aumento sensível do salário pressupõe um rápido crescimento do capital produtivo. O
rápido crescimento do capital produtivo provoca crescimento igualmente rápido da riqueza, do
luxo, das necessidades sociais e dos prazeres sociais. Embora, portanto, os prazeres do operário
tenham subido, a satisfação social que estes lhe dão baixou em comparação com os prazeres
multiplicados do capitalista, que são inacessíveis ao operário, em comparação com o nível de
desenvolvimento da sociedade em geral. As nossas necessidades e prazeres derivam da
sociedade; eles são medidos, assim, pela sociedade; não os medimos pelos objetos da sua
satisfação. Por serem de natureza social, são de natureza relativa.
Ao refletir sobre esses desejos relativos, que devem sua origem apenas a um certo tipo
de organização social, percebe-se que na sociedade capitalista eles engendram uma noção de
felicidade comprometida com os princípios morais da burguesia. Entretanto, enquanto
aumenta o seu poder sobre a matéria, o homem contemporâneo sente-se menos potente na sua
vida individual e em sociedade. Segundo Fromm (1983a, p. 120), o homem moderno
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julga estar agindo em prol de seu interesse quando na realidade sua preocupação predominante é
dinheiro e sucesso; ele se ilude deixando que suas mais importantes potencialidades humanas
permaneçam atrofiadas e perdendo a si próprio enquanto busca o que é imaginado ser o melhor
para si.
Na verdade, em relação à afirmação anterior, não se trata de uma defesa à manutenção
da pobreza — como se aceitássemos como verdadeiro o adágio popular “dinheiro não traz
felicidade” — mas de uma tentativa de fazer com que se reflita sobre os conceitos de prazer e
felicidade, pois felicidade ou infelicidade depende de nossos “sentimentos conscientes de
estarmos felizes ou infelizes e que estar satisfeito ou mortificado sem o saber equivale a não
estar uma coisa nem outra” (ibid., p. 157).
Nessa perspectiva, a crítica feita por Marx ao capitalismo não tem como foco central a
injustiça na distribuição de riqueza, mas sim a perversão do trabalho. Essa perversão se dá
pelo trabalho forçado, alienado e sem sentido que transforma o homem em uma
“monstruosidade aleijada”. Segundo Marx (1993, p. 159),
o trabalhador torna-se mais pobre quanto mais riqueza produz [...]. A realização do trabalho
aparece na esfera da economia política como desrealização do trabalhador [...]. A realização do
trabalho surge de tal modo como desrealização que o trabalhador se invalida até à morte pela
fome [...]. Todas estas conseqüências derivam do fato de que o trabalhador se relaciona ao
produto do seu trabalho como um objeto estranho.
Essa crítica tem como um de seus argumentos o fato desse modelo econômico ter feito
do interesse pelo dinheiro e pelos ganhos materiais o principal motivo do homem. Por isso,
Marx é categórico ao acusar o dinheiro de ser um poder de disrupção em relação aos homens
e às relações sociais. Para ele, “o poder de perversão e de inversão de todas as qualidades
humanas e naturais, a capacidade de entre coisas incompatíveis estabelecer a fraternidade, a
força divina do dinheiro, reside no seu caráter como ser genérico alienado e auto-alienante do
homem. Ele é o poder alienado da humanidade” (MARX, 1993, p. 233).
Em contrapartida, seu conceito de comunismo é precisamente o de uma sociedade em
que esse interesse material deixe de ser o dominante. Com a implantação do modelo de
produção comunista não existiria qualquer tipo de exploração e expropriação a ser ocultada,
pois tudo passaria a ser o que na realidade parece ser. Ou seja, as ilusões morais, as ideologias
religiosas e os desejos relativos que levam ao consumismo, seriam dissolvidos a partir da
emancipação do proletariado e da instauração de uma moral que estariam em total sintonia
65
com os interesses dos seres humanos em sua totalidade: a “nova moral” não privilegiaria
interesses classistas sob a aparência de universalidade.
Essa conscientização — que levará os proletários a se verem como classe —
configura-se como um processo, tanto de superação das “ilusões reais” geradas pelo
capitalismo, como de repressão dos movimentos engendrados pelo capital e contrários à
revolução comunista. Assim, a revolução do proletariado não se dará sem o confronto com
obstáculos concretos, de maneira que, “o primeiro passo na revolução operária é a elevação
do proletariado a classe dominante, a conquista da democracia” (MARX; ENGELS, 1993, p.
86).
Não podemos esquecer que a fartura material, concomitante à mudança da natureza
humana são os pressupostos nos quais Marx baseia-se para afirmar que no comunismo o
Estado — da maneira como o conhecemos — deixaria de existir. Desse modo, o comunismo
seria a instauração real do reino da liberdade e da igualdade entre os homens. E na defesa
desse modo de produção, Marx (1993, p. 192) mostra toda sua confiança na nova sociedade,
afirmando que
o comunismo é a abolição positiva da propriedade privada enquanto auto-alienação humana e,
deste modo, a real apropriação da essência humana pelo e para o homem. É, portanto, o retorno
do homem a si mesmo como ser social, quer dizer, verdadeiramente humano, retorno esse
pleno, consciente, que assimila toda a riqueza do desenvolvimento anterior. [...] É a verdadeira
solução do conflito entre a existência e a essência, entre a objetivação e a auto-alienação, entre a
liberdade e a necessidade, entre o indivíduo e a espécie.
Quando o proletariado organiza-se como classe e, a partir da destituição da burguesia
do poder, torna-se a nova classe dominante, suprime as relações de produção capitalista. E
com a supressão dessas relações, extinguem-se também, “as condições de existência dos
antagonismos de classe, as classes em geral e, com isso, sua própria dominação de classe”
(MARX; ENGELS, 1993, p. 87). Ao invés da velha sociedade capitalista, onde a burguesia
era símbolo da exploração de uma classe por outra, configura-se — a partir da revolução
proletária — uma nova sociedade, onde todos têm a liberdade para se desenvolver, garantida
na liberdade que cada indivíduo tem para seu próprio desenvolvimento.
Como o modo de produção comunista tem uma base econômica diferente da infra-
estrutura da sociedade capitalista, temos necessariamente uma mudança na superestrutura da
66
nova sociedade. Isso significa que a “consciência social” se altera e, sentimentos como
ganância, egoísmo ou cobiça (típicos da sociedade capitalista), por exemplo, não fazem parte
da natureza humana, mas são socialmente construídos e por isso, podem ser modificados. Ao
substituir a propriedade privada dos meios de produção social, pela propriedade comum dos
meios de produção socialmente organizados, preocupações com os interesses privados seriam
abolidas. Conseqüentemente, os homens da sociedade comunista poderiam encontrar sua
própria felicidade ao trabalharem para o bem de todos.
Portanto, se Marx quisesse explicitar com clareza a sua certeza de que a felicidade se
realiza no comunismo, certamente a essência dessa afirmação se encontraria na seguinte
passagem:
De fato, o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade
e por utilidade exteriormente imposta; por natureza, situa-se além da esfera da produção
material propriamente dita. O selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer as
necessidades, para manter e reproduzir a vida, e o mesmo tem de fazer o civilizado, sejam quais
forem a forma de sociedade e o modo de produção. Acresce, desenvolvendo-se, o reino do
imprescindível. É que aumentam as necessidades, mas, ao mesmo tempo, ampliam-se as forças
produtivas para satisfazê-las. A liberdade nesse domínio só pode consistir nisto: o homem
social, os produtores associados regulam racionalmente o intercâmbio material com a natureza,
controlam-no coletivamente, sem deixar que ele seja a força cega que os domina; efetuam-no
com menor dispêndio de energias e nas condições mais adequadas e mais condignas com a
natureza humana. Mas, esse esforço situar-se-á sempre no reino da necessidade. Além dele
começa o desenvolvimento das forças humanas como um fim em si mesmo, o reino genuíno da
liberdade, o qual só pode florescer tendo por base o reino da necessidade. E a condição
fundamental desse desenvolvimento humano é a redução da jornada de trabalho (MARX,
1975c, p. 942).
Neste parágrafo, com toda certeza, encontramos um dos aspectos mais significativos
do pensamento de Marx: o reconhecimento de que o ser humano encontra seu limite no reino
da necessidade. Ou seja, o homem não pode transcender o domínio da produção material.
Entretanto, pode atingir um significativo grau de liberdade no próprio reino dessa produção, à
medida que os produtores trabalhem coletivamente no controle e regulação racional do
intercâmbio com a natureza. Por outro lado, a liberdade também aparece como a condição que
possibilita a produção capitalista, permeando suas relações. Entretanto, essa liberdade é
apenas aparente, pois o que se efetiva de fato nas relações capitalistas é a não-liberdade. Nas
sociedades onde o modo de produção capitalista é o dominante, a liberdade só se efetiva,
portanto, no não-trabalho.
67
Assim, o comunismo não seria o reino onde o trabalho, deixando de ser uma
imposição, apareceria como uma manifestação quase idílica da individualidade humana. Esse
modo de produção não representa a simples passagem de um reino da necessidade para um
reino da liberdade, mas a combinação entre esses dois reinos, reduzindo ao mínimo o
primeiro. Dessa forma, o comunismo não tem o poder de “suprimir a necessidade do trabalho,
ele reduz tanto quanto possível a sua potência de constrangimento, liberando o trabalho da
relação de exploração capitalista” (CAILLÉ; LAZZERI; SENELLART, 2004, p. 541).
Na perspectiva comunista, o trabalho apropria-se da tecnologia desenvolvida pelo
capitalismo, não se deixando, no entanto, contaminar pelos valores caros a esse modo de
produção, tais como, submissão dos trabalhadores a essa tecnologia. Assim, avesso à lei do
mercado capitalista, o trabalho na sociedade comunista configura-se como uma atividade útil
para a realização das necessidades materiais do homem. Da irracionalidade capitalista, o
trabalho no comunismo aproveita apenas a inovação tecnológica, que possa ser racionalmente
utilizada conforme a natureza humana.
Homogeneizados em relações paritárias, os trabalhadores estabelecem coletivamente
não apenas os objetivos da produção, como também os meios necessários para a mesma.
Nesse modelo comunista, o trabalho é reduzido ao mínimo necessário, mas sempre garantindo
ao máximo sua compatibilidade com a dignidade devida ao ser humano. Somente “sobre essa
base do autogoverno racional dos produtores pode se elevar o reino da liberdade, aquele do
tempo livre, do livre desenvolvimento das faculdades morais, estéticas, intelectuais, tornadas
fins em si mesmas” (ibid., p. 541).
Ao pensarmos o comunismo por esse prisma, fiel ao pensamento de Marx,
experiências como as que aconteceram na URSS e na China, por exemplo, não podem ser
utilizadas como propaganda negativa do modo de produção comunista, por seus opositores.
Pois o que aconteceu nesses países afasta-se completamente do que foi proposto por Marx
como a nova sociedade que deveria substituir o capitalismo.
Apesar de em alguns momentos da história do movimento da classe trabalhadora os
termos “socialismo” e “comunismo” terem sido usados como sinônimos, ao publicar o livro
Crítica ao Programa de Gotha, em 1875, Marx fez uma distinção entre duas etapas da
sociedade comunista. A partir dessa distinção, Lênin (1870-1924), líder da Revolução de
68
Outubro de 1917 que originou o Estado soviético, “popularizou a descrição dessas duas etapas
como ‘socialismo’ e ‘comunismo’, [...] e a terminologia tornou-se então parte da ortodoxia
leninista” (BOTTOMORE, 1998, p. 72).
Assim, a fase inicial da sociedade comunista — onde a autoridade política do Estado
encontra-se nas mãos do proletariado — ficou amplamente conhecida como socialismo. E a
fase mais elevada, após a extinção do Estado como foco do poder político, passou a
identificar-se com o comunismo, propriamente dito. Entretanto, nas discussões mais recentes
sobre a possibilidade de implantação de uma sociedade sem classes, “a distinção entre
socialismo e comunismo como etapas ‘inferior’ e ‘superior’ perdeu muito de sua importância
e parece na verdade simplista. O movimento no sentido dessa sociedade pode passar por
muitas etapas, no momento inteiramente imprevisíveis” (BOTTOMORE, 1998, p. 73).
Entendida essa distinção — de certa forma arbitrária — entre socialismo e
comunismo, fica mais evidente, que não faz sentido algum associar as experiências do Leste
Europeu ao que Marx entendeu por comunismo. Segundo Fromm (1975, p. 9),
embora na verdade a União Soviética seja um sistema de capitalismo de Estado conservador, e
não a concretização do socialismo marxista, e embora a China negue, pelos meios empregados,
a emancipação do indivíduo que é a própria meta do socialismo, ambas utilizam o engodo das
idéias marxistas para recomendarem-se aos povos da Ásia e da África. E como reagem a
opinião pública e a política oficial dos Estados Unidos? Fazemos tudo para sustentar a alegação
sino-russa ao proclamar que o sistema deles é “marxista” e ao identificar marxismo e socialismo
com o capitalismo de Estado soviético e o totalitarismo chinês.
Autoproclamando-se como alternativa ao capitalismo, mas de fato tendo o comunismo
apenas no nome, essas experiências têm em comum o poder exacerbado do Estado, a
distinção entre as classes sociais, o desprezo pelo homem e suas qualidades etc. Na verdade,
segundo Leopoldo e Silva (2007, p. 81), “o homem novo e a nova sociedade permanecem
ainda por construir, já que a experiência histórica do socialismo [sic] não logrou essa
realização”. Em contrapartida, o que Marx definiu como a genuína sociedade tinha como
premissas fundamentais a liberdade, a dignidade e a atividade do homem. Uma sociedade em
que o objetivo principal constitua-se no desenvolvimento pleno do homem, ou seja, na
garantia de uma vida feliz.
69
CONCLUSÃO
Quando iniciamos esta pesquisa tínhamos por objetivo problematizar uma noção de
felicidade no pensamento de Karl Marx e, a partir da perspectiva desse filósofo, realizar a
discussão sobre o conceito dominante de felicidade engendrado pelo capitalismo. Para essa
empreitada partimos do pressuposto de que a noção de felicidade dominante em cada época
— por situar-se no nível da superestrutura — é produto da forma como se estabelecem as
relações econômicas. Ou seja, se a superestrutura jurídica e política — à qual correspondem
formas sociais determinadas de consciência — se estabelece a partir da estrutura econômica
da sociedade, é esta base real que também determinará a consciência do que é felicidade.
A partir desse ponto, foi preciso primeiramente, situar o pensamento filosófico de
Marx no próprio contexto da história da filosofia. Isso se fez necessário para que, ao
estudarmos o próprio desenvolvimento filosófico da noção de felicidade, tivéssemos
condições de inferir essa noção do pensamento de Marx, apesar dele não explicitá-la com
clareza. Na verdade, Marx não teve a preocupação de elaborar um conceito de felicidade,
como fizeram outros filósofos. Mas, fiel a sua proposta de uma filosofia da ação — contrária
a todo idealismo — esse filósofo não deixou de “buscar” a felicidade, na medida em que
desenvolvia sua crítica ao capitalismo.
Estabelecido esse roteiro, constatamos inicialmente, que a filosofia de Marx
desenvolveu-se como um importante capítulo na longa história do embate entre idealismo e
materialismo. Confronto este, que toma como questão fundamental da filosofia, a relação
entre pensamento e ser.
Contrário a toda posição filosófica que defende a supremacia da consciência sobre a
matéria, nas questões relativas tanto ao conhecimento humano, quanto à vida social, Marx
desenvolveu sua filosofia que, nascida da ação, estabeleceu-se como doutrina engendrada para
a ação. Em outras palavras, em oposição ao idealismo filosófico, Marx desenvolveu uma
filosofia da práxis, que combinou a compreensão teórica à ação real, não perdendo de vista, o
objetivo de transformar radicalmente a sociedade.
70
Após passarmos pela revisão dos pontos centrais da evolução histórica do idealismo
filosófico — com seus ilustres representantes em todos os períodos da história da filosofia —
chegamos ao ponto em que o idealismo de Hegel cruza-se com o materialismo de Marx. A
partir daí, voltamos às origens da filosofia para mostrar que o materialismo que lá já se fazia
presente não era o mesmo que encontramos em Marx — apesar da influência que exerceu no
pensamento desse filósofo. E foi por essa razão, que Marx sempre fez questão de mostrar que
o seu materialismo buscava captar os objetos em geral como atividade humana sensível, como
práxis. Em contrapartida, afirmava que os “outros” materialismos falhavam, justamente, por
captarem os objetos apenas de um ponto de vista subjetivo e, com isso, não podiam explicar
adequadamente a questão fundamental da filosofia: as relações entre pensamento e ser.
Estabelecida por Marx a superioridade do seu materialismo filosófico em relação ao
idealismo e aos outros materialismos, e se essa superioridade for verdadeira, é certo que uma
noção de felicidade engendrada a partir dessa concepção filosófica, também terá a pretensão
de se colocar acima das outras. Entretanto, a noção de felicidade — relegada por Marx a um
segundo plano — não ficou isenta da histórica oposição entre materialismo e idealismo. Mas
pelo contrário, a evolução da noção de felicidade oscilou entre essas duas concepções.
Em alguns momentos, a vida feliz foi entendida como um efeito da forma como se
conduz a vida espiritual. Nessa perspectiva idealista, de um modo geral, o homem não tem
autonomia para “alcançar” a felicidade, tendo em vista que são as formas ideais que se
configuram como princípios organizadores da sociedade. Já nas concepções materialistas, o
homem pode exercer controle sobre a felicidade. E de certa forma, deve buscá-la enquanto
vive neste mundo sensível.
Entretanto, ao realizarmos essa jornada pela história da felicidade — relacionando-a
tanto ao idealismo, quanto ao materialismo em geral — tivemos condições de constatar que é
na ótica do materialismo de Marx que a noção de felicidade pode ser mais bem entendida e
aplicada ao mundo real. Enquanto o materialismo, de um modo geral, vê apenas nos corpos
— e suas propriedades mecânicas — a concretização do conceito de matéria, Marx assumiu
essa definição e a expandiu. Para ele, além dessa definição, o que também identifica a matéria
é a sua propriedade de existir externamente à consciência do homem. Assim, por exemplo,
apesar de nem sempre o homem ter consciência da maneira como se estabelecem as relações
71
de trabalho — principalmente no capitalismo — Marx afirma que são essas relações concretas
que condicionam a produção da vida “espiritual” da sociedade, de onde podemos inferir que
essas relações condicionam também a noção de felicidade.
Portanto, foi a partir da crítica ao capitalismo que Marx abriu espaço para que
pudéssemos repensar a noção de felicidade engendrada por esse modo de produção. Ao gerar
uma “falsa consciência” da condição humana, o capitalismo gera uma noção de felicidade
pautada em um materialismo vulgar, que desemboca no consumismo.
Em contrapartida, a “vida feliz” — se pensada à luz da filosofia de Marx — se
concretizaria na medida em que o ser humano solucionasse seus problemas existenciais
práticos. Ou seja, ao posicionar a ação como princípio do pensamento, a práxis tem por
pressuposto que na existência do homem, a solução dos problemas práticos é uma prioridade.
Por isso, o trabalho tem um papel central na obra de Marx. Ao mesmo tempo em que o
trabalho pode realizar no homem a sua essência — e levá-lo à felicidade — pode também, ao
alienar esse homem (e igualá-lo a um animal), levá-lo à falsa felicidade e/ou à infelicidade.
Essa afirmação nos remete a um questionamento inicial — levantado na introdução
desta pesquisa — que apresenta duas opções para se entender a vida feliz: a possibilidade de
ser a felicidade um estado de satisfação plena ou, em contrapartida, uma composição de
períodos intercalados entre satisfação e sofrimento. Se partirmos do princípio de que o
capitalismo transforma tudo em mercadoria, poderíamos levantar a seguinte pergunta: Não
seria a felicidade apenas um produto a ser trocado no mercado?
Na perspectiva do capitalista, a resposta seria afirmativa, pois para ele a felicidade
constitui-se em uma mercadoria como outra qualquer. E como qualquer mercadoria deve ter
uma curta duração, para que o mercado esteja sempre em circulação. Nesse caso, o
consumidor do “produto felicidade” (ou do produto que leve a ela) deve vivenciar um período
de não-satisfação para que sinta vontade de vivenciar um período de satisfação, que por sua
vez, deve ser curto e levá-lo novamente a vivenciar a não-satisfação e assim por diante.
A felicidade prometida pelo capitalismo é a felicidade pautada nos desejos relativos;
aqueles que, segundo Marx, são de natureza social própria à vida organizada segundo os
interesses do capital. Em contrapartida, com a abolição do capitalismo e a implantação do
72
comunismo — portanto, abolição da propriedade privada enquanto auto-alienação — teríamos
o retorno do homem a si mesmo, como ser social, a partir do momento em que houvesse a real
apropriação de sua essência.
Para Marx (1993, p. 197), “a eliminação da propriedade privada constitui, portanto, a
emancipação total de todos os sentidos e qualidades humanas”. Resolvido assim, o conflito
entre trabalho alienado e trabalho como essência humana, com a dissolução definitiva da
primeira forma de trabalho e a instauração definitiva da segunda, estariam postas as condições
para que o homem vivenciasse a felicidade como um estado de satisfação plena.
Essas colocações nos remeteram a um segundo questionamento que tangenciava a
questão “materialismo versus idealismo”. Pois nessa questão, buscava-se entender se a
felicidade é determinada prioritariamente pelo “estado mental” do indivíduo ou, pelo
contrário, se as condições materiais de existência relacionam-se à vida feliz.
Para a resolução desse dilema, tomemos como ponto de partida o único princípio que
parece comum tanto ao materialismo, quanto ao idealismo: o fato de todos os homens
buscarem a felicidade. Se quiséssemos ainda maior precisão, poderíamos afirmar como
Aristóteles (1979), que todas as ações humanas visam um bem e, entre todos os bens, o mais
almejado é a felicidade.
Por outro lado, ao entender a sociedade como modo de produção, Marx defende que,
de um modo geral, em toda sociedade, a infra-estrutura determina a organização da
superestrutura. Assim, em cada período histórico onde houve mudança da infra-estrutura,
transformou-se também a superestrutura — a visão de mundo, a moral, a consciência social
etc.
Se aceitarmos que tanto Aristóteles, quanto Marx estão corretos em suas posições,
podemos inferir que a cada nova infra-estrutura corresponde uma superestrutura diferente, por
aquela determinada. Portanto, apesar de todos os homens buscarem a felicidade, não significa
que a idéia dominante dessa noção foi a mesma ao longo da história: cada modificação da
infra-estrutura, determinou uma modificação na noção dominante de felicidade.
73
Por isso, pensadores como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, por exemplo, só
tinham condições de justificar o poder temporal (e material) da Igreja — instituição que,
avessa à matéria, ironicamente tem por objetivo a “prestação de serviços” espirituais —
através de um idealismo filosófico. E por conta dessa concepção idealista, defendiam que a
felicidade, de certa forma, depende de um estado mental do homem que deve decidir-se pela
obediência ou pela desobediência à palavra de Deus.
Ao obedecer, o homem alegra-se em Deus, e isso é a vida feliz (AGOSTINHO, 1980).
Mas ao decidir pela desobediência às escrituras sagradas, o indivíduo demonstra não ter fé e,
portanto, não terá acesso ao antegozo do conhecimento que o faria feliz (AQUINO, 1979).
Em outra perspectiva, um importante passo para contestar a exclusividade do espírito
na determinação da felicidade foi dado, ainda na Antigüidade, por Epicuro ao determinar que
é a filosofia que pode dotar o homem da capacidade de buscar a felicidade, e não a religião.
Apesar da filosofia também partir da mente, Epicuro a utiliza para pensar a felicidade do
homem na vida temporal, e não para a “outra vida” (espiritual), como sugerem os filósofos
idealistas. Com isso, Epicuro lançou uma pedra fundamental para pensar a felicidade a partir
das condições materiais de existência.
Referindo-se a Marx e ao materialismo por ele adotado, Ullmann (2006, p. 140) afirma
que, “também Epicuro terá exercido influência para que [Marx] proclamasse ser a matéria a
única realidade, em contínuo movimento”. E vai mais longe, ao indagar se “a visão de Marx,
atinente a uma sociedade sem classes sem Estado, não seria, também, uma retomada da crítica
feita pelo mestre do Jardim às injustiças sociais, oriundas das cidades faustosas, da póleis?”
(ibid., p. 140). Portanto, estabelecendo uma certa relação com o aporte teórico advindo da
teoria de Epicuro, Marx mostrou que, se a felicidade é possível, essa só tem condições de ser
pensada de maneira autêntica, partindo-se primeiramente da análise da vida material. Ou seja,
a produção de idéias, de representações da consciência, está, de início, diretamente entrelaçada
com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida
real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como
emanação direta de seu comportamento material. O mesmo ocorre na linguagem da política, das
leis, da moral, da religião, da metafísica etc de um povo (MARX; ENGELS, 1986, p. 36).
74
Um terceiro ponto problemático, sinalizado em nossa introdução, aponta para o
antagonismo entre diferentes noções de felicidade surgidas ao longo da história da filosofia.
Se para alguns filósofos a felicidade deve ser considerada um bem em si mesmo, para outros,
ela acaba sendo entendida como um meio, podendo, portanto, ser subordinada a alguma noção
de utilidade. Dessa forma, se no capitalismo o acúmulo crescente e irrestrito de capital é a
meta do capitalista, a felicidade acaba sendo apenas uma conseqüência desse acúmulo.
Acreditando que seu papel era o de conscientizar os trabalhadores, preparando-os para
a eliminação da sociedade capitalista, Marx posicionou-se contrário à perspectiva de vida feliz
oferecida pelo capitalismo. Para ele, na sociedade organizada nessa perspectiva o sentido da
vida em sua busca pela felicidade encontra-se invertido. Diante disso, o que Marx faz é
denunciar os processos da vida na sociedade capitalista, como fator de dominação e
exploração dos homens por suas próprias relações sociais.
Mostrando que os seres humanos vivem subordinados aos processos de alienação,
reificação e fetichismo — que encobrem a exploração capitalista — Marx baseia-se na idéia
de que os homens no interior do capitalismo não controlam suas próprias criações. Mas pelo
contrário, estas lhes aparecem como forças hostis e controladoras de suas vidas.
Nas relações de produção, os trabalhadores aparecem como homens que livremente
estabelecem contratos voluntários com os capitalistas. Entretanto, essa liberdade é apenas
formal, pois só consegue emprego aquele trabalhador que aceita produzir a mais-valia para o
capitalista, submetendo-se aos seus termos. Em virtude das leis econômicas próprias ao
capitalismo, os capitalistas, de certa forma, também são coagidos por essas leis, pautadas
principalmente na competição. Contudo, essa coação afeta muito mais aos trabalhadores.
Colaborando indiretamente para a constituição de uma noção de felicidade como valor
em si mesmo, Marx reconhece que o maior desenvolvimento das forças produtivas,
proporciona oportunidades para o homem reduzir sua subordinação à natureza a níveis
insignificantes, ao mesmo tempo em que aumenta a liberdade. Isso, porém, não é possível
dentro do capitalismo, pois diferentemente do que acontece em outros modos de produção, no
modo de produção capitalista a natureza e a extensão da coerção — do trabalho forçado —
são travestidas, aparecendo como relações de trabalho livre. Marx (1975a, p. 306-307)
75
sintetiza esse desenvolvimento do capitalismo, hostil ao trabalhador, afirmando que o capital
não tem
a menor consideração com a saúde e com a vida do trabalhador [...]. À queixa sobre a
degradação física e mental, morte prematura, suplício do trabalho levado até à completa
exaustão responde: por que nos atormentaremos com esses sofrimentos, se aumentam nosso
lucro?
Nessa perspectiva, ao invés de ser uma atividade humana que tem significado em si
mesma, o trabalho aparece apenas como um meio para ganhar dinheiro. No entanto, ao
estabelecer os pressupostos fundamentais para a superação das classes e, conseqüentemente,
para a substituição do capitalismo pelo comunismo, Marx afirma que, primeiramente, o
trabalho humano precisa atingir um alto nível de produtividade. Acredita que, “chegado a
certo grau de desenvolvimento, esse modo de produção gera os meios materiais de seu próprio
aniquilamento. A partir desse momento agitam-se no seio da sociedade forças e paixões que
se sentem acorrentadas por ele. Tem de ser destruído e é destruído!” (MARX, 1975b, p. 880).
Seguindo o princípio “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as
suas necessidade”, o tempo de trabalho deve ser substancialmente encurtado. Para a
constituição do comunismo, o trabalho deve deixar de ser apenas um meio de sobrevivência
do trabalhador, para tornar-se a sua necessidade vital, permitindo que aplique as suas
potencialidades para o benefício máximo da coletividade. Com a produtividade elevada, deve
ser possível aos homens a realização da troca material com a natureza de forma a despender o
mínimo de energia possível, sobre condições dignas e adequadas à natureza humana.
Entretanto, a situação de alienação imposta pelo capitalismo, só será superada no momento
em que se torne insuportável. Para isso, é necessário que a alienação
tenha produzido a massa da humanidade como massa totalmente “destituída de propriedade”; e
que se encontre, ao mesmo tempo, em contradição com um mundo de riquezas e de cultura
existente de fato – coisas que pressupõem em ambos os casos, um grande incremento da força
produtiva, ou seja, um alto grau de seu desenvolvimento; por outro lado, este desenvolvimento
das forças produtivas [...] é um pressuposto prático, absolutamente necessário, porque, sem ele,
apenas generalizar-se-ia a escassez e, portanto, com a carência, recomeçaria novamente a luta
pelo necessário e toda a imundície anterior seria restabelecida; além disso, porque apenas com
este desenvolvimento universal das forças produtivas dá-se um intercâmbio universal dos
homens, em virtude do qual, de um lado, o femeno da massa “destituída de propriedade” se
produz simultaneamente em todos os povos [...], fazendo com que cada um deles dependa das
revoluções dos outros (MARX; ENGELS, 1986, p. 50).
76
Isso significa que todo homem terá de trabalhar, a não ser que passe a explorar outros
homens. No sentido defendido por Marx, o trabalho constitui-se em uma fonte de dignificação
do ser humano e configura-se como uma relação necessária com a natureza. Pois, “o trabalho
não é para o homem apenas uma necessidade inevitável; é também seu libertador da natureza,
seu criador como um ser social e independente” (FROMM, 1983b, p. 176).
No capitalismo, entretanto, o trabalho perde esse sentido originário, de permitir que o
homem ao mesmo tempo em que altera a natureza, altere também a si mesmo. Na sociedade
capitalista, a produção pelo trabalho transforma-se em um ato social; entretanto, a troca desses
produtos e sua apropriação são identificadas como atos individuais. Há uma desfiguração do
processo de trabalho: “o produto social é apropriado pelo capitalista individual. Contradição
fundamental, da qual derivam todas as contradições em que se move a sociedade atual”
(ENGELS, s.d., p. 77).
É interessante observar, que ainda hoje, esse pressuposto fundamental de Marx — de
que o trabalho humano pode configurar-se como o agente de libertação do homem, como
meio e como o espaço próprio para essa transformação — continua direcionando as
discussões relativas aos problemas gerados pelo capitalismo. A afirmação de que o homem se
torna feliz em seu trabalho — conforme pode ser depreendida do pensamento de Marx —
tornar-se-ia verdadeira no momento em que a sociedade capitalista fosse superada em favor
do comunismo.
Mesmo diante dessa complexa trama capitalista, Marx buscou e facilitou o acesso dos
seres humanos à felicidade, na medida em que denunciou e lutou contra a servidão do
trabalhador, contra a exploração dos homens por outros homens. Na verdade, foi um grande
humanista que sempre fez tudo pela unidade dos seres humanos e acreditou no potencial do
homem para a criação de uma relação harmônica com a natureza. Mas para esse livre
desabrochar das potencialidades humanas, torna-se necessário a abolição do modo de
produção capitalista. E nesse contexto, “a socialização e a planificação são meios para esse
fim, e não fins em si mesmas. O socialismo, se se limita apenas à esfera da economia, não é
humanismo; também não será socialismo” (FROMM, 1993, p. 14).
Na sociedade capitalista contemporânea a vida do homem organiza-se de maneira que
a dependência direta (e visível) dos outros se reduza ao menor nível possível. De modo que, a
77
noção de felicidade coaduna-se perfeitamente com a idéia de “individualismo”. Nesse
contexto, a ambição comum à quase totalidade dos homens da sociedade capitalista, parece
ser o de cada um ter seus próprios objetos de consumo: sua própria casa, seu próprio telefone
celular (cada vez menor e mais leve), seu próprio computador etc, permitindo um alto grau de
“independência” (ou pelo menos, permitindo a crença de que se tem essa independência).
Contrário a essa tendência individualista, Marx não nega a individualidade, mas
mostra que os homens constroem coletivamente sua história. Para esse filósofo, as relações
sociais, através da consciência social predominante, forjam o indivíduo, nascido e criado em
uma dada sociedade. Conseqüentemente, a capacidade de julgamento sobre o que é bom ou
sobre o que é digno, é engendrada socialmente.
Assim, conforme o pensamento de Marx, a felicidade não é algo fácil de se atingir.
Pressupõe grandes esforços para a superação da luta entre classes, para a socialização dos
meios de produção, para a planificação da economia, enfim, para a construção da nova
sociedade: a comunista.
O enorme poder de destruição do processo de globalização capitalista, principalmente
na atualidade, tem sua maior concentração de força no consumismo, que se configura como o
cerne “de nosso sistema econômico, e também o modo de vida para o qual somos todos os
dias sem cessar treinados por toda nossa cultura de massas e indústria de entretenimento, com
uma intensidade de imagens e de mídias sem precedentes na história” (JAMESON, 2001, p.
56). Essa globalização é essencial à perpetuação do capitalismo, pois, o mesmo só consegue
se manter na medida em que transcende todas as fronteiras da Terra e impõe-se como relação
de produção dominante, através da produção de cultura, ou seja, pela criação da própria vida
cotidiana.
Entretanto, essa situação não é irreversível. Os seres humanos — enquanto indivíduos
— não se encontram totalmente imobilizados, como se fossem reféns dos movimentos de
classe. Mas como reverter esse quadro de destruição causado pelo consumismo? Como e
quando encontraremos a felicidade, como realização da essência humana? Esse processo só se
iniciará com a ascensão da sociedade comunista?
78
Por tudo que foi discutido neste trabalho, temos razões para acreditar que um fator
essencial para o progresso individual e, conseqüentemente, para o progresso social, encontra-
se no conhecimento de si mesmo. Antes mesmo que ocorra a substituição da sociedade
capitalista pela comunista e, numa espécie de preparação para essa passagem, cada homem
deveria realizar um exame profundo dos valores que traz em si mesmo.
Somente através da busca desses valores é possível conhecer a essência dos nossos
desejos e necessidades, para então conseguirmos entender o mundo que estamos construindo
(ou destruindo). Analisar a natureza dos desejos do homem no interior da sociedade
capitalista — distinguindo os que são de natureza social (e conseqüentemente, de natureza
relativa) — é um momento crucial para o início da superação desse modo de produção.
Segundo Lipovetsky (2007, p. 368), “quando a felicidade for menos identificada à satisfação
do maior número de necessidades e à renovação sem limite dos objetos e dos lazeres, o ciclo
do hiperconsumo estará encerrado”.
Na medida em que o ser humano — através do exercício da reflexão — vai se
libertando da ideologia capitalista, entenderá que para uma existência feliz, não é necessário
que se enriqueça cada vez mais o capitalista, dono dos meios de produção social (e
conseqüentemente, dono da “fábrica de felicidade”). Nesse estado de consciência, terá
condições de perceber que a vida feliz está muito distante do simples ato de consumir coisas
supérfluas. Assim, a felicidade deve ser buscada de forma racional e reflexiva, para que não
haja confusão entre os desejos reais e verdadeiros — advindo da satisfação das necessidades
naturais — e os desejos aparentes, que em um primeiro momento podem proporcionar prazer
ao homem, mas que têm conseqüências destrutivas para sua natureza a longo prazo.
Na sociedade capitalista os indivíduos são diluídos em uma coletividade alienada,
onde cada homem — impedido de realizar sua natureza pelo trabalho — pensa e age como
um “bloco único de homens”. Agem em função das diretrizes estabelecidas pelos modismos,
pelo consumismo. Ou seja, o homem é reduzido a uma simples peça na dinâmica capitalista
da produção e do consumo. Não é sem razão que Reale (2002, p. 154) afirma que, “um dos
maiores males contemporâneos consiste na redução maciça do homem a uma única
dimensão”.
79
Diante desse quadro, o conhecimento produzido por Marx, relativo à natureza da
exploração capitalista e, por conseguinte, das formas ideológicas que recobrem a dominação
de classe, nos fornece subsídios essenciais para a crítica dessa sociedade, enquanto modo de
produção. Sociedade essa, que leva os homens a trilharem caminhos, muitas vezes
incompatíveis entre si, na busca pela felicidade; onde racionalidade e irracionalidade
caminham lado a lado.
Portanto, muito mais evidente agora do que em épocas passadas, a questão da
felicidade ainda direciona a vida do homem. O homem de nossa época vive às voltas com
diversos problemas de ordem psicológica, tais como, “depressão”, “frustração”, “ansiedade”
etc, que o conduz ao sofrimento, não apenas próprio, como também das pessoas que o cercam.
Entretanto, essa situação, e outras análogas, indicam a ausência de uma reflexão séria sobre a
condição de satisfação: indica a necessidade de se resgatar o olhar filosófico sobre a
felicidade.
Esse quadro negativo — representado por estados mentais mais ou menos patológicos
— que certamente tem como uma de suas origens as “pressões” próprias ao modo de
produção capitalista, é uma forte evidência da importância que a noção de felicidade, na
perspectiva filosófica de Marx, tem para uma vida humana digna. Por isso, nossa
determinação para investigar a felicidade a partir do pensamento de Karl Marx, tem sua razão
de ser, por acreditarmos que essa noção é extremamente relevante para os homens de nossos
dias. A noção de felicidade implícita na obra de Marx é essencial não apenas para descrever
as situações humanas, mas principalmente, para orientá-las de maneira digna e compatível
com a natureza do ser humano.
Se na Pré-História o homem era refém das forças naturais, na atualidade ele encontra-
se como um prisioneiro das forças sociais e econômicas por ele mesmo engendradas.
Rendendo-se ao consumismo, o homem da sociedade capitalista faz do produto do trabalho
alienado — por ele mesmo realizado — objeto de adoração. Cria tantas necessidades para sua
vida, envolta em um mundo de ilusões, que não consegue mais identificar onde começa e
onde termina suas reais necessidades. Os desejos que são naturais e os que são relativos
confundem-se em uma mente humana ofuscada, que busca no consumo sem medida o
caminho para a felicidade. Segundo Fromm (1983b, p. 346),
80
o homem só poderá proteger-se das conseqüências de sua própria loucura criando uma
sociedade sadia de conformidade com as necessidades humanas, as quais estão arraigadas nas
próprias condições de sua existência. Uma sociedade na qual o homem se relaciona com os
demais amorosamente, na qual está preso por laços de fraternidade e solidariedade, e não por
laços de sangue e do solo; uma sociedade que lhe dê a possibilidade de transcender à natureza
pela criação e não pela destruição.
O legado de Marx representa, justamente, o esforço de toda uma vida, pensando e
trabalhando para a constituição de uma sociedade como essa. Não podemos, entretanto, ser
levianos a ponto de afirmar categoricamente que a implantação da sociedade comunista teria
como conseqüência necessária a felicidade. Concordando com Leopoldo e Silva (2007, p. 81),
o que podemos afirmar, com certa segurança,
é que uma organização social pautada pela preservação da dignidade dos indivíduos e da
comunidade, algo que não acontece numa sociedade dividida, seria mais propícia — porque
satisfaria um maior número de condições — para a busca e eventual realização da felicidade, a
qual restaria ainda definir, nos parâmetros de uma outra relação indivíduo/sociedade.
De acordo com o discurso propagado pelos arautos da moral burguesa, a filosofia de
Marx deveria ser entendida como uma antifilosofia, utópica e “fora de moda”. Entretanto, ao
estudarmos a obra de Marx, o que vemos em sua filosofia representa a fé que esse pensador
deposita no homem, acreditando na capacidade humana para libertar-se do jugo do
capitalismo e realizar em plenitude sua natureza.
Quanto mais os discursos midiáticos e acadêmico falarem contra a filosofia de Marx,
acusando-o de obsoleto, mais evidente fica para nós que essa filosofia, ainda hoje — talvez,
mais do que no passado — incomoda aos detentores do capital. Por isso, a “libertação”
proposta por Marx passa necessariamente pela superação das noções ideológicas de
felicidade, mas engendrando uma nova noção de felicidade — fiel à filosofia da ação —
pautada na realização plena das potencialidades do homem.
Por esse prisma, a felicidade não é uma dádiva que vem do exterior para o interior do
ser humano. Na sociedade sem classes, fundada na dignidade e na comunhão entre os homens,
apesar da possibilidade do trabalho ser visível como uma ação humana exterior, ele mobiliza a
natureza mais íntima desse homem, realizando-a em todo seu potencial. O homem não fica
mais preso irremediavelmente a uma única atividade (ofício) que lhe foi imposta pelo
mercado, mas ao contrário,
81
na sociedade comunista, onde cada um não tem uma esfera exclusiva, mas pode aperfeiçoar-se
no ramo que lhe apraz, a sociedade regula a produção geral, dando-me assim a possibilidade de
hoje fazer tal coisa, amanhã outra, caçar pela manhã, pescar à tarde, criar animais ao anoitecer,
criticar após o jantar, segundo meu desejo, sem jamais tornar-me caçador, pescador, pastor ou
crítico (MARX; ENGELS, 1986, p. 47).
Nesse modelo de sociedade proposto por Marx, a felicidade aparece como o resultado
de uma personalidade humana forjada pela produtividade máxima do homem para consigo
mesmo e para com o mundo. A felicidade — maior conquista humana — indica, portanto, que
o problema existencial do homem foi resolvido. Ou seja, significa que o homem conseguiu
realizar produtivamente todas as suas potencialidades, em união com o mundo e preservando
toda a integridade e dignidade do seu próprio ser.
82
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