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ELAINE BARCELOS
A METÁFORA E A RETÓRICA DO MEDO NAS LETRAS DE
MÚSICAS DE RAUL SEIXAS: um drible à censura
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação da Universidade de Franca, como
exigência parcial para a obtenção do título de
Mestre em Lingüística.
Orientadora: Profa. Dra. Ana Cristina
Carmelino.
FRANCA
2009
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ELAINE BARCELOS
A METÁFORA E A RETÓRICA DO MEDO NAS LETRAS DE MÚSICAS DE RAUL
SEIXAS: um drible à censura
COMISSÃO JULGADORA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM LINGUÍSTICA
Presidente:___________________________________________________
Nome: Profa. Dra. Ana Cristina Carmelino
Instituição: Universidade de Franca
Titular :____________________________________________________
Nome: Profa. Dra. Maria Auxiliadora Brito Silva
Instituição: UNAERP
Titular : ___________________________________________________
Nome: Prof. Dr. Juscelino Pernambuco
Instituição: Universidade de Franca
Franca,_____/_____/2009
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DEDICO este trabalho a meus pais, Elena Marcelina Barcelos e José
Cândido Barcelos (in memória), por nunca terem me subestimado e
pelo apoio e incentivo que sempre me deram aos estudos;
ao meu marido, Marcílio Agege, pela compreensão e estímulo que me
deu nos estudos de pós-graduação;
à minha orientadora professora Drª. Ana Cristina Carmelino, pela
paciência, dedicação e, principalmente, pela arte de saber ensinar;
a todos que me apoiaram e fizeram com que meu sonho de chegar até
aqui se tornasse realidade.
4
AGRADECIMENTOS
a Deus, por me fortalecer nos momentos de cansaço e ter atendido as minhas preces;
à professora Drª. Ana Cristina Carmelino, pela suas preciosas orientações, estímulo,
competência, simpatia e dedicação. O mérito, pela evolução e realização deste trabalho,
também é dela, motivo pelo qual lhe serei grata por toda minha vida;
ao professor Dr. Juscelino Pernambuco, pela sabedoria, pelo incentivo, pelo coração enorme
que tem, pela honra de tê-lo tido como integrante da banca do Exame de Qualificação, por
suas valiosas contribuições para o desenvolvimento do trabalho;
ao professor Dr. Luiz Antônio Ferreira, por sua importante contribuição no Exame de
Qualificação;
à professora Drª. Maria Auxiliadora Brito Silva, pela leitura atenta de meu trabalho e pelas
contribuições para a versão final;
à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, que por meio do projeto Bolsa Mestrado
propiciou a realização deste sonho;
à Diretoria de Ensino da região de Franca, sob a administração da Professora Ivani de Lourdes
Marchesi, pela prontidão em esclarecer minhas dúvidas;
à Sirley e Iolanda, pela atenção e carinho com que conduziram o meu processo no projeto
Bolsa Mestrado;
às minhas amigas Odille, Mayra, Elisa, Cristina, Rosana, Andréia, Janaína, Renata, Ângela,
Alzira e Lílian pelo companheirismo, apoio e momentos de descontração que me
proporcionaram. Em especial, para a amiga Carmen Lúcia que muito me incentivou e
contribuiu com materiais para o meu trabalho e por, assim como eu, ser grande admiradora do
cantor e compositor Raul Seixas;
aos meus grandes companheiros do curso de mestrado Lucélia e Éderson, pelo estímulo e
apoio nos momentos difíceis pelos quais passamos juntos;
a toda minha família que são a razão do meu viver: meu marido Marcílio e sua filha Júlia,
minha mãe Elena, meu pai José (in memória), meus irmãos José, Gabriel, Marcelo, Mozair,
Roberto e sua esposa Giane, minha querida sobrinha Júlia e a todos os meus parentes, em
especial, ao primo Ronaldinho que torceram a todo momento pelo meu sucesso.
a todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização deste trabalho;
ao cantor e compositor Raul Seixas (in memória), pelas preciosas obras que nos deixou e por
ter sido a principal inspiração para o meu trabalho de Mestrado. Obrigada...
5
RESUMO
BARCELOS, Elaine. A metáfora e a retórica do medo nas letras de músicas de Raul
Seixas: um drible à censura. 2009. 110 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística)
Universidade de Franca, Franca.
Em nosso trabalho analisamos as metáforas e a paixão do medo nas letras de músicas de Raul
Seixas referentes ao período ditatorial. Nosso corpus foi composto por oito letras de músicas,
a saber: Conserve o seu Medo” (1979), Metrô Linha 743” (1984), Mosca na Sopa(1973),
Novo Aeon(1975); Carimbador Maluco(1983), Paranóia(1975), Rockixe(1973) e
Sociedade Alternativa (1974), cujo tema comum a todas elas é “o drible à censura”. O
motivo da escolha de analisarmos as canções desse cantor foi pela importância de Raul Seixas
no cenário musical brasileiro e por admirarmos sua criatividade, uma vez que suas
composições versam sobre temas diversos (como política, religião, esoterismo) bem como
fundem diferentes linguagens (como a metafórica e a filosófica). Nossa pesquisa teve como
objetivos demonstrar não como as metáforas e expressões metafóricas foram usadas como
recurso argumentativo e estratégias de persuasão para driblar a censura, mas também como o
medo e outras paixões relacionadas a ele (desprezo, confiança, cólera e indignação) são
manifestadas pelo eu-lírico ao longo de suas canções. Quanto à fundamentação teórica,
adotamos os conceitos de Reboul (2004) e Tringali (1988) para a análise das metáforas e os
pressupostos de Aristóteles (2003) para o estudo das paixões. A pesquisa também teve como
objetivo caracterizar o gênero “letra de música” com base nos pressupostos teóricos de
Bronckart (1999) e Carmelino (2006, 2007), levando em conta o conteúdo temático, o
contexto de produção e a sua infra-estrutura. Como procedimento de análise, discorremos
também sobre o contexto histórico-social da época em que as músicas foram compostas, de
acordo com os conceitos de Fausto (2002) e Vieira (1985), e tecemos algumas considerações
sobre a vida do cantor, com base em Passos (2003) e Boscato (2006), para que o leitor
pudesse, a partir dessas informações, compreender melhor a análise das letras de músicas.
Após nossa análise, constatamos que o cantor utilizou-se dessas canções para driblar a
censura, que, na época em questão, a música era um dos poucos meios de comunicação
permitidos no país, bem como tentou persuadir os interlocutores para que lutassem contra as
imposições do governo ditatorial. Verificamos também que tanto as metáforas, quanto as
paixões e o gênero podem ser observados a partir de determinadas marcas textuais que nos
permitem fazer as inferências necessárias para a construção do sentido das letras de músicas
de Raul Seixas.
Palavras-chave: Retórica; gênero; metáfora; medo; letra de música.
6
ABSTRACT
BARCELOS, Elaine. A metáfora e a retórica do medo nas letras de músicas de Raul
Seixas: um drible à censura. 2009. 110 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística)
Universidade de Franca, Franca.
In this thesis, we analyze the metaphors and the passion of fear in Raul Seixas’s lyrics during
the dictatorship period. Our corpus was composed of eight lyrics: Conserve o seu Medo
(1979), Metrô Linha 743 (1984), Mosca na Sopa (1973), Novo Aeon (1975);
Carimbador Maluco (1983), Paranóia (1975), Rockixe (1973) and Sociedade
Alternativa (1974). They all share a common theme “deflecting censorship”. One of the
reasons for choosing this singer’s lyrics is his importance in the Brazilian musical scenery. In
addition, we admire his creativity as we observe there are not only several themes in his
songs, such as politics, religion, esoterism, but also different languages, such as the
metaphorical and the philosophical ones. Our research had the objective of showing how
metaphors and metaphorical expressions were used as argumentative language resource and
persuasion strategies to deflect censorship. We also noted that fear and other related passions,
for instance, despise, confidence, wrath and indignation, are displayed by the lyric poet in
Raul Seixas’s songs. As regards our theoretical fundamentals, we follow Reboul’s (2004) and
Tringali’s (1988) concepts to analyze the metaphors and Aristotles’ (2003) principles to study
the passions. The research also aimed at characterizing the genre “lyrics”, based on
Bronckart’s (1999) and Carmelino’s (2006, 2007) theoretical concepts considering theme
content, production context and the text infrastructure. As an analysis procedure, we also
discussed the social-historical context of the time when these lyrics were written, according to
Fausto’s (2002) and Vieira’s (1985) concepts. Furthermore, we draw some considerations on
the singer’s life, following Passos (2003) and Boscato (2006), so that the reader could use this
kind of information to have a better understanding of the analysis of the lyrics. After the
analysis, we realized that the singer used these songs to deflect the censorship, since music
was one of the few means of communication allowed in the country then. He had also tried to
persuade his interlocutors to fight against the impositions of the dictatorial government.
Moreover, we verified that the metaphors, the passions and the genre can be observed in
certain textual signs which allow us to make the necessary inferences to construct meaning in
Raul Seixas’s lyrics.
Keywords: Rhetoric; genre; metaphor; fear; lyrics.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................08
1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA..................................................................................11
1.1 RETÓRICA ANTIGA, CLÁSSICA E NOVA RETÓRICA..........................................11
1.1. As figuras retóricas........................................................................................................17
1.1.1.1 A metáfora.................................................................................................................21
1.1.2 As paixões....................................................................................................................24
2 METODOLOGIA............................................................................................................31
2.1 CORPUS DE ANÁLISE.................................................................................................31
2.2 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE...............................................................................31
3 RAUL SEIXAS E SUAS MÚSICAS...............................................................................33
3.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE RAUL SEIXAS..........................................33
3.2 CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL: O REGIME MILITAR NO BRASIL E AS
LETRAS DE MÚSICAS DE RAUL SEIXAS DE 1973 – 1984..........................................37
4 O GÊNERO LETRA DE MÚSICA................................................................................45
4.1 GÊNERO DE TEXTO....................................................................................................45
4.2 O MODELO DE ANÁLISE DE GÊNERO PROPOSTO POR BRONCKART
(1999)....................................................................................................................................48
4.3 CARACTERIZAÇÃO DO GÊNERO LETRA DE MÚSICA........................................53
5 UMA ANÁLISE DAS METÁFORAS E DA PAIXÃO DO MEDO NAS LETRAS DE
MÚSICAS DE RAUL SEIXAS..........................................................................................69
5.1 AS METÁFORAS USADAS POR RAUL SEIXAS PARA DRIBLAR A
CENSURA............................................................................................................................69
5.2 A PAIXÃO DO MEDO NAS LETRAS DE MÚSICAS DE RAUL SEIXAS...............80
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................92
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................................95
ANEXOS..............................................................................................................................98
8
INTRODUÇÃO
O nosso trabalho intitula-se A metáfora e a retórica do medo nas letras de
músicas de Raul Seixas: um drible à censura e tem como foco o estudo das metáforas e da
paixão do medo em algumas letras de músicas de Raul Seixas, as quais se referem à época
ditatorial.
Os objetivos principais são demonstrar como as metáforas e expressões
metafóricas são usadas como recurso argumentativo e estratégias de persuasão para driblar a
censura, bem como o medo e outras paixões relacionadas a ele (como é o caso do desprezo, da
confiança, da cólera e da indignação) são manifestadas pelo eu-lírico ao longo de suas
canções.
Além desses, outro objetivo de nosso estudo, que toma como base os
pressupostos teóricos do interacionismo sociodiscursivo, é caracterizar o nero “letra de
música”. Para isso, levamos em conta o conteúdo temático, o contexto de produção (que
inclui o quadro físico e o sócio-subjetivo) e a infra-estrutura das letras (que abrange os tipos
de discurso, os tipos de seqüência textual, os mecanismos de textualização e os mecanismos
enunciativos).
Este trabalho se justifica não pela importância de Raul Seixas no cenário
musical brasileiro, nos anos da ditadura, mas também pela sua criatividade, ousadia e
coragem em enfrentar aos ditadores da época. Outro motivo é o fato de suas composições
versarem sobre temas diversos como é o caso da política, religião e esoterismo e, em grande
maioria delas fundem-se linguagem metafórica e filosófica, motivo pelo qual não é tão fácil
compreendê-las. A variedade do estilo de suas músicas também é interessante, visto que
mistura ora rock com o baião (Elvis Presley com Luiz Gonzaga), como fez na música Let me
sing”; ora rock com ritmos de candomblé, conforme vemos na canção Mosca na Sopa”.
Apesar de ter sido impedido, várias vezes, pela dia de demonstrar seu talento no período da
censura, o cantor foi reconhecido, principalmente com a explosão do sucesso da canção Gita
,
tocada em quase todas as emissoras de rádio da época. Até os dias atuais, o sucesso de Raul
Seixas ainda se propaga, pois continuamos a ouvir suas músicas em vários lugares. Notamos
9
que o cantor vem acompanhando todas as gerações com seus sucessos. Quem nunca ouviu a
música Metamorfose Ambulante e Ouro de Tolo? Ou a mais popular e conhecida entre os
jovens da atual geração, Maluco Beleza? Como dizia Raul Seixas “A arte de ser louco é
jamais cometer a loucura de ser um sujeito normal".
A criatividade nas canções e a ousadia de Seixas fazem dele um imortal entre
as gerações vindouras e, como o próprio cantor dizia "A desobediência é uma virtude
necessária à criatividade".
O corpus de nosso trabalho é composto de oito letras de músicas de Raul
Seixas, a saber: Conserve o seu Medo” (1979), Metrô Linha 743” (1984), Mosca na Sopa
(1973), Novo Aeon(1975); Carimbador Maluco(1983), Paranóia(1975), Rockixe
(1973) e Sociedade Alternativa (1974). Para selecionarmos tais canções adotamos como
critérios: a época em que as letras de músicas foram compostas – de 1973 a 1984, período em
que o governo vigente no país era a Ditadura Militar, e o tema comum a todas elas “o drible à
censura”.
No que se refere à fundamentação teórica, adotamos os pressupostos teóricos
do interacionismo sociodiscursivo especialmente o modelo de análise proposto por
Bronckart (1999) e Carmelino (2006, 2007) para caracterizar o gênero “letra de música”, e
os pressupostos da Retórica e Nova Retórica – principalmente a partir dos conceitos de
Aristóteles (1964, 2003), Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), Reboul (2004) e Tringali
(1988) – para analisar as metáforas e paixão do medo.
Em se tratando dos procedimentos de análise, podemos resumi-los em três
etapas, a saber: primeiramente, caracterizamos o gênero “letra de música”, com base no
modelo de análise proposto por Bronckart (1999) e Carmelino (2005, 2006). A seguir,
exploramos as metáforas e expressões metafóricas como um recurso argumentativo e
estratégias de persuasão de acordo com os pressupostos teóricos de Reboul (2004) e Tringali
(1988); e, finalmente, com base nos conceitos de Aristóteles (1964, 2003), demonstramos
como a paixão do medo, e outras, são manifestadas pelo eu-lírico.
Além disso, para que o leitor faça as inferências necessárias para a construção
do sentido das letras de músicas analisadas, achamos importante tecer algumas considerações
sobre a vida do cantor Raul Seixas e sobre o contexto histórico-social da época em que essas
letras de músicas foram compostas (1973-1984). Para os dados da vida do cantor, baseamo-
nos principalmente na obra de Passos (2003) e Boscato (2006), e para a contextualização das
letras de músicas, perfilhamos a obra de Fausto (2002) e Vieira (1985).
10
Quanto à estrutura, este trabalho apresenta cinco capítulos. No primeiro,
apresentamos as bases teóricas que fundamentam nossas análises: Algumas considerações
sobre a Retórica e a Nova Retórica, as figuras retóricas (em especial, a metáfora), e as
paixões. No segundo capítulo, que trata da metodologia, esclarecemos o corpus bem como os
procedimentos de análise. No terceiro capítulo, tecemos algumas considerações sobre Raul
Seixas e sobre o contexto histórico-social (o regime militar no Brasil, 1973-1984), para
contextualizar as letras de músicas no momento da análise. No quarto capítulo,
caracterizamos o gênero letra de música com base no modelo de análise de textos proposto
por Bronckart (1999). No último capítulo, fizemos a análise das metáforas usadas por Raul
Seixas para driblar a censura e da paixão do medo (e outras geradas pelo medo) manifestada
pelo cantor ao longo de suas canções.
11
1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A metáfora e a paixão do medo são objetos de estudo contemplados em nossa
análise e para que possamos compreendê-los melhor, necessitamos conhecer suas origens que
provém da retórica. Desse modo, neste capítulo, achamos importante tecer algumas
considerações sobre a Retórica Antiga, a Nova Retórica e as figuras retóricas antes de
tratarmos das metáforas e das paixões.
1.1 RETÓRICA ANTIGA, CLÁSSICA E A NOVA RETÓRICA
De acordo com Reboul (2004), a Retórica surge na Sicília grega por volta de
465, após a expulsão dos tiranos, e possui origem judiciária e não literária, visto que, na
época, não existiam advogados e os cidadãos, despojados pelos tiranos, para reclamarem seus
bens, a utiliza para defender suas causas. Desse modo, Córax e seu discípulo Tísias publicam
uma coletânea de exemplos para pessoas que necessitam recorrer à justiça. Górgias (487-380
a. C.), embaixador dos sicilianos, leva a Retórica a Atenas que se firma definitivamente por
obra dos sofistas. Eles abrem as primeiras escolas de Retórica que tinham como intuito a arte
do discurso persuasivo que ensinava fazer belos discursos de qualquer assunto. Para eles, a
verdade e a justiça são relativas por dependerem de um acordo inicial e final entre os
interlocutores. Os alunos eram treinados para defenderem qualquer um dos dois lados da
questão, cujo objetivo era ganhar a causa e não se preocupar com os aspectos éticos e fez com
que a retórica adquirisse valor depreciativo ao longo dos tempos.
Para Reboul (2004), Isócrates (436-338), grande professor de retórica, tenta
reconciliar retórica e sabedoria, pois ambas estão interligadas, ou seja, uma não tem valor sem
a outra. Ele acredita que o ensino não está acima de tudo, pois o orador, além do ensino e da
prática, precisa de habilidades naturais. Se dominarmos a palavra, somos capazes de também
dominar todas as técnicas. Por isso, a eloqüência assume um papel fundamental. A Retórica
deve, anteriormente, ter um objetivo e, posteriormente, encontrar os meios para atingi-lo
12
cautelosamente para que nada passe despercebido. Ela deve ser aceita se a causa for
honesta e nobre e não deve ser desprezada em função dos que a utilizam de forma negativa.
Platão (427-347 a. C.) preocupa-se com a Retórica em seu aspecto moral, ela deve ser sempre
justa, pois é melhor sofrer injustiça do que praticá-la. O autor condena a Retórica pelo fato de
o orador dizer o que sabe e o que não sabe, o que representa um discurso dispersivo e evasivo,
com o intuito de apenas adular e lisonjear as multidões. Assim, o sábio deve substituir o
orador e é por esse motivo que desencadeou a visão platônica e fez com que a retórica
adquirisse valor depreciativo ao longo dos tempos.
Reboul (2004) afirma que a Retórica antiga tem suas fontes em Aristóteles,
Cícero e Quintiliano. Nosso trabalho se baseia nos conceitos de Aristóteles (1964, 2003),
nascido em 384 a.C. em Estagira, antiga colônia jônia da Calcídica de Trácia e foi
considerado um dos maiores pensadores de todos os tempos e discípulo de Platão.
Definida por Aristóteles (1964, p. 22) como “a faculdade de ver teoricamente o
que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão”, a Retórica possui suas regras que
não se estabelecem em um gênero particular, definido, e não pode ser considerada como uma
ciência determinada, pois trata de questões que não deixam de apresentar analogias com a
Dialética, visto que ambas são de competência comum a todos os homens. Seu fim não é
persuadir, mas ensinar o possível, aduzir provas. Ela se utiliza de procedimentos capazes de
descobrir o que é próprio para persuadir em uma dada situação, fornece argumentos para
demonstrar os contrários e também procura convencer a partir de opiniões.
Para Aristóteles (1964), a Retórica é uma parte da Dialética, pois nenhuma é
objeto definido, cujos caracteres se dêem ao trabalho de investigar. São apenas faculdades de
fornecer argumentos e a persuasão será eficaz quando relacionada aos valores e costumes dos
sujeitos e quando despertadas as paixões que fazem variar seus julgamentos. A demonstração
e as provas mais convincentes da Retórica são os entimemas que são uma espécie de
silogismo e fornecem a convicção mais decisiva. Será mais apto para manejar o entimema,
todo aquele que melhor souber aprofundar as premissas e a marcha do silogismo.
Baseado em Aristóteles, Reboul (2004) se utiliza de seus conceitos para dividir
e definir a Retórica como “a arte de persuadir pelo discurso”. Ela se divide em quatro partes: a
invenção (heurésis, em grego), que seria a busca de todos os argumentos e meios de
persuasão, pelo orador, relacionados ao tema do seu discurso; a disposição (taxis), que é a
organização interna do discurso do orador, através da ordenação dos argumentos; a elocução
13
(lexis), que se refere à redação escrita do discurso e não à palavra oral; e a ação (hypocrisis),
que se refere à articulação do discurso com seus efeitos de voz, mímicas e gestos.
De acordo com Tringali (1988), a Retórica Antiga é completa em todas as suas
partes: invenção, disposição, elocução, memória e ação. É considerada a Retórica-mãe e, de
antiga, nada tem, pelo contrário, ainda se faz atual. A classificação, Retórica Antiga, é usada
somente para diferenciá-la das demais. O autor também se baseia nos conceitos de Aristóteles
(1964) para defini-la e afirma ser a teoria e prática do discurso retórico que explica os
problemas da elaboração, produção e efeitos do discurso. Segundo ele, a retórica também
ensina a fazer discursos persuasivos e como fazê-los bem feitos. Esse discurso persuasivo se
refere ao ponto de vista formal em que a persuasão se destaca.
Para Tringali
A persuasão indica a finalidade da Retórica. Persuadir vem de “persuadere”, “per +
suadere”. O prefixo “per” significa de modo completo, “suadere” significa
aconselhar, não impor. Portanto, “persuadere” significa aconselhar, levar alguém a
aceitar um ponto de vista de modo suave, habilidosamente. Para persuadir deve-se
provar de alguma forma. (1988, p. 20)
Para o referido autor, há três modos de persuadir: convencer (persuadir a mente
através de provas lógicas), comover (persuadir através da afetividade) e agradar (persuadir
através da estética, da arte do bem falar). Ainda, de acordo com o referido autor, a Retórica
Clássica se consolida na Renascença, mas tem antecedentes na própria Retórica Antiga que
apresenta duas vertentes, uma que deriva de Aristóteles e privilegia a invenção, a busca de
provas para persuadir. A outra, que provém dos sofistas, Isócrates e Cícero que realçam a
elocução sem negar a eficácia das outras partes. Cícero chega a dizer que quando se quer
elogiar um orador se diz que é eloqüente; palavra que deriva da elocução. Quintiliano
define a Retórica não como a arte de persuadir, e sim como a arte de escrever e falar bem.
Tringali (1988) afirma que a Retórica se enquadra nas duas definições, porém a
persuasão ocupa o primeiro lugar porque sem ela, a Retórica se desvirtua, se desnatura. Para
ele, um discurso necessita ser bem feito para persuadir, mas nem sempre um texto bem escrito
ou bem pronunciado pode ser retórico. Um texto mal escrito ou mal pronunciado pode ser
retórico e por isso dizer bem é uma propriedade da Retórica, mas não a define.
14
O referido autor também se baseia em Aristóteles (1964) que distingue três
tipos de raciocínio: analítico, dialético e sofístico. Os raciocínios analíticos são certos,
verdadeiros, evidentes e levam à ciência. Os raciocínios dialéticos são prováveis, baseados na
crença mais geral e levam a uma conclusão provável. Os raciocínios sofísticos são falsos com
aparência de verdade, pretendem enganar.
Graças às contribuições de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), na obra
Tratado da argumentação: a nova retórica, a retórica é reformulada e tida como teoria da
argumentação. Ela renasce nos anos 60, renova-se e constitui uma forte teoria do discurso
persuasivo, vinculando-se à Antiga retórica. A classificação como Nova retórica se pelo
fato de ser um reexame da obra de Aristóteles. Conforme dito por Tringalli (1988), de
antiga nada tem, pois a Nova retórica se baseia nos conceitos da Antiga retórica de
Aristóteles. De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), o outro motivo para a
classificação Nova retórica é porque ela se relaciona com o Renascimento e com os autores
gregos e latinos que estudaram a arte de persuadir e de convencer e a técnica da deliberação e
da discussão. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) retomam os conceitos de Aristóteles
1
para
também enfatizar que é em função de um auditório que se desenvolve qualquer argumentação.
Para eles, auditório diz respeito ao “conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua
argumentação” (2005, p. 22). O orador deve pensar, de forma consciente, naqueles que
procura persuadir para que, através de um acordo prévio, haja argumentação entre eles.
Para esses autores existem três tipos de auditório: o universal, que é constituído
por toda a humanidade; o particular, formado por um ou vários interlocutores que tenham os
mesmos interesses e características; e o constituído pelo próprio interlocutor, quando ele
mesmo delibera ou representa as razões de seus próprios atos como, por exemplo, diários e
monólogos interiores. Segundo Perelman (1993, p. 41), “o orador pode escolher, como
ponto de partida do seu raciocínio, teses admitidas por aqueles a quem se dirige”. O orador
expõe sua conclusão a fim de impor e encerrar a discussão e, para isso, é necessário que seja
mais forte que as premissas que a geram. Por sua vez, os ouvintes podem ou não aceitar a
conclusão do orador, independente do que ele considera verdadeiro, o que importa é o que os
ouvintes do discurso têm a dizer a respeito. A qualidade da argumentação é determinada pelo
auditório.
Enfim, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) conceituam a Retórica como o
estudo das técnicas discursivas que podem provocar ou acrescentar, em um determinado
1
Aristóteles. Retórica, liv. II, cap. 12 a 17, 1388 b a 1391 b.
15
auditório, adesão a teses apresentadas. Nesse sentido, podemos verificar que, conforme o uso
das técnicas de argumentação no discurso, o orador poderá fazer com que seu auditório seja
persuadido ou até mesmo chegar a um acordo mediante divergências de opiniões.
De acordo com Mosca (2004), a Retórica, ao longo de toda a sua história, está
repleta de pontos altos, mas também de crises e questionamentos. Ela sempre refloresce, pois
aceita mudanças, respeita as diferenças, as diversidades e a consideração da língua como um
lugar de confronto das subjetividades. Para a autora (2004), a argumentatividade está presente
em toda e qualquer atividade discursiva e argumentar é considerar o outro como capaz de
reagir e de interagir mediante determinados assuntos e argumentos que lhe são apresentados.
É o exercício do entendimento e discussão, de forma dialogal, que pode fazer com que os
interesses se entrechoquem quando o clima é de negociação, em que o jogo de influência e
poder são predominantes. Mosca (2004) ainda afirma que para compreendermos os
fundamentos da Retórica, faz-se necessária a retomada dos conceitos de Aristóteles (1967) e
dos manuscritos de diversas culturas que nos foram legadas, como fonte primeira de estudo.
Assim, a partir dos anos 60, as teorias argumentativas da Nova retórica
representadas especialmente por Perelman e seus continuadores e pela Retórica Geral ou
Generalizada, do Grupo µ de Liège (Bélgica), vem retomar a Velha retórica e, ao mesmo
tempo, renová-la, através dos avanços de diversas disciplinas do nosso século: Lingüística,
Semilogia/Semiótica, Teoria da Informação, Pragmática.
Mosca (2004) afirma que contrário aos conceitos de Aristóteles (1967) que
visavam ao exercício da reflexão pessoal, a Retórica passou a uma reformulação rígida e ao
aprisionamento a cânones e essa tendência fez com que a Retórica e a Poética fossem vistas
como um conjunto de regras que deveriam abranger toda produção e avaliação de obras
concretas, presentes nos manuais do culo XIX que, por sua vez, distorceram e deformaram
o conceito original da Retórica. Os próprios introdutores da Retórica em Atenas, os sofistas,
propagaram a descrença ao exercer o ceticismo e aceitar raciocínios de toda ordem, neles
incluindo-se os enganosos e só aparentemente corretos. Contudo, a palavra Retórica foi
adquirindo um valor depreciativo de que mais recentemente vem se libertando. Essa é a
razão pela qual se faz necessária a vota renovada para evitar interpretações concretizadas ao
longo dos tempos. O marco fundamental da doutrina aristotélica é considerar que a Retórica
reside no domínio dos raciocínios prováveis e não no domínio das certezas e evidências,
os
quais caberiam aos raciocínios lógicos e científicos. Por conseguinte, seu campo é o da
16
controvérsia, da crença, do mundo da opinião, que se forma dialeticamente pela oposição das
idéias e aptidão na manobra do discurso.
Embasada no Tratado da argumentação de Perelman e Tyteca (1996), Mosca
(2004) afirma que:
o discurso persuasivo, o que se destina a agir sobre os outros através do logos
(palavra e razão), envolve a disposição que os ouvintes concedem aos que falam
(ethos) e a reação a ser desencadeada nos que ouvem (pathos). Esses três elementos
compreendem o instruir (docere), comover (movere) e o agradar (delectare). (2004,
p. 22)
Contudo, para Mosca (2004), as características básicas da Retórica, desde as
suas origens até o momento atual, são a eficácia e o caráter utilitário.
Quanto à eficácia, o discurso persuasivo utiliza-se de todos os recursos
retóricos manipuladores para se produzirem os efeitos de sentido. Portanto, todo discurso é
uma construção retórica, desde que o produtor induza o seu destinatário a agir de certo modo
ou em certa direção, conforme seus objetivos ou ponto de vista.
Em relação ao caráter utilitário, para se decidir em que medida um discurso
visa persuadir e como o faz, devemos levar em consideração as características fundamentais
da situação em que ele se e as relações de intersubjetividade dos interlocutores. Assim, a
argumentação é sempre situada, dando-se basicamente num processo dialógico entre os
sujeitos.
França (2006, p. 109) afirma que “a Retórica pressupõe debates, opinião e
paixão”. Conforme a teoria aristotélica, a atividade retórica envolve um orador (ethos), um
discurso (logos) e um auditório (pathos). Diante de um discurso bem estruturado, o orador
tenta convencer e persuadir seu auditório. A autora ainda afirma que a persuasão se relaciona
às paixões, às emoções que podem ser despertadas no auditório.
Para Citelli (1991), a Retórica Clássica revela como se faz a persuasão; é
analítica e abarca todas as formas discursivas. Já a Moderna se vincula ao estudo das figuras
de linguagem e ao estudo das técnicas de argumentação, da organização discursiva ligada à
adesão a um ponto de vista das idéias apresentadas.
Meyer (1998), ao tratar da Retórica, diz que ela busca persuadir e convencer;
agradar, seduzir ou manipular; fazer passar o verossímil; sugerir o implícito através do
17
explícito; inserir, através do literal, um sentido figurado utilizando-se das figuras de estilo;
utilizar-se da linguagem literária e descobrir as intenções daquele que fala ou escreve
atribuindo razões para o seu dizer.
A partir desses vários conceitos, podemos verificar que, ao longo dos tempos, a
Retórica, apesar de seus pontos positivos, esteve em crise e adquiriu valor pejorativo. Graças
às contribuições de muitos estudiosos, ela foi retomada e seus conceitos foram reformulados
através dos fundamentos aristotélicos. A Retórica se atém ao estudo das técnicas de
argumentação e das figuras retóricas em que ocorre uma pluralidade de significação e sua
comunicação pode revelar intenções diferentes e contraditórias.
Após essas considerações, trataremos das figuras retóricas em especial da
metáfora e das paixões, conceitos priorizados na análise das letras de músicas aqui
estudadas.
1.1.1 As figuras retóricas
De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), desde a antiguidade e o
momento em que o homem meditou sobre a linguagem,
verificam-se certos modos de
expressão que não se enquadravam no comum. Desse modo, os estudos a esse respeito foram
incluídos nos tratados da retórica; daí o nome de figuras de retórica. Diferentemente de
figuras de estilo, para esses autores a figura é retórica (ou argumentativa) se, acarretando uma
mudança de perspectiva, seu emprego parecer normal em relação à nova situação sugerida. Se
o discurso não provocar a adesão do ouvinte a essa forma argumentativa, a figura será apenas
um ornamento, no entanto, uma figura de estilo.
Para os referidos autores algumas figuras podem aparecer imbricadas, como a
metáfora e a metonímia. Toda analogia, com exceção as que se apresentam em formas rígidas,
como a alegoria e a parábola, se tornam espontaneamente metáfora. Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2005) ainda classificam as figuras retóricas em figuras de escolha, figuras de presença
e figuras de comunhão, explicando que:
não se designam gêneros dos quais certas figuras tradicionais seriam as espécies.
Significam somente que o efeito, ou um dos efeitos, de certas figuras é, na
18
apresentação dos dados, impor ou sugerir uma escolha, aumentar a presença ou
realizar a comunhão com o auditório (1996; p. 195).
Guimarães (2004) fundamenta-se nos conceitos de Perelman e Olbrechts-
Tyteca (1996) para classificar e definir as figuras retóricas como fatores de persuasão e
instrumentos discursivos com função argumentativa. As figuras se caracterizam como
determinadas expressões que fogem da forma normal e despertam interesse no leitor ou
ouvinte. Assim, são marcadas sob dois aspectos: o efeito de concretude que elas provocam no
leitor ou ouvinte; e o distanciamento em relação à outra forma de linguagem, inserida dentro
dos padrões gramaticais.
Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) classificaram as figuras em: figuras de
caracterização, de presença e de comunhão e, Guimarães (2004), faz um esboço para explicá-
las:
As figuras de caracterização buscam impor ou sugerir uma caracterização.
Podemos, nesse sentido, pressupor que o texto revela não a intenção de definir uma palavra,
mas a de fazer associações e assimilações, através de elementos argumentativos, para se
chegar a uma conclusão.
As figuras de presença reforçam o sentimento de presença do objeto do
discurso, tanto de quem o faz quanto de quem lê ou ouve, vinculando-se, principalmente, à
figura de repetição em que o produtor, além de utilizar-se dela como um recurso estilístico,
também a transforma em um recurso argumentativo.
No que diz respeito às figuras de comunhão, estas podem ocorrer num processo
de pressuposição, ou seja, espera-se que o público tenha conhecimento da mensagem
transmitida, por isso é capaz de comungar com o orador das informações. Essas figuras
fazem, portanto, com que o auditório participe da exposição do orador.
De acordo com Tringali (1988) a Retórica das Figuras passou por duas fases.
Na primeira fase, a Retórica das Figuras foi atacada pelo romantismo que lutava contra o
ensino impositivo das figuras em prol da liberdade criadora do artista. Na verdade, os
românticos concebiam, de modo diverso, o valor das figuras. Para eles a linguagem era
primeiro figurada e só depois, se faz natural, própria. Na segunda fase, Tringali (1988, p. 120)
afirma que “a Retórica das Figuras volta a renascer em nossos dias com a chamada Retórica
Geral que considera a Retórica Antiga morta e o nome disponível”.
Para o referido autor, Retórica Geral é:
19
uma redução da Retórica às figuras e se qualifica geral porque define a função
poética da linguagem pelo uso das figuras, ou seja, a função artística da linguagem,
o que acontece quando a linguagem deixa de ser utilitária, um simples meio de
comunicação e se converte em si mesma e obriga a atenção fixar-se nela. As figuras
são um recurso para a manifestação artística da linguagem. Por isso, em vez de dizer
função poética da linguagem, diz-se função retórica da linguagem (1988, p. 120).
Segundo Tringali as figuras consistem em:
modificações da linguagem, seja da palavra, seja da frase e tanto no nível da
expressão, como do conteúdo, ou acrescentando alguma coisa (levantar - alevantar),
ou subtraindo (ainda - inda), ou repetindo (Deus, Deus), ou permutando (da vida
pela estrada), tendo como objetivo obter efeito artístico, em outros termos, obter o
efeito poético ou retórico ou estilístico da linguagem (1988, p. 121).
O autor retoma os conceitos da Retórica Geral ou Generalizada, do Grupo µ de
Liège (Bélgica) para classificar as figuras em: metaplasmos ou figuras fonológicas, que
compreendem todas as figuras que modificam o aspecto gráfico ou sonoro do vocábulo, como
“ainda – inda”; metataxes ou figuras gramaticais, que são as figuras que mexem com a
estrutura da frase, como, por exemplo, as figuras de inversão da ordem das palavras na frase;
metassememas, também conhecidas como figuras semânticas ou tropo, que são todas as
figuras que modificam o conteúdo do vocábulo, que mudam sua significação; e metalogismos
ou figuras de pensamento, que são as figuras que modificam o valor lógico da frase,
modificam a semântica da frase, como, por exemplo, a ironia.
Para Mosca (2004), a figura retórica se constitui em figuras de texto, ou seja, a
produção geral de sentidos de um texto se através de um procedimento discursivo de
construção de sentido que possibilita a produção de novos sentidos e outras leituras, outros
pontos de vista sobre o mundo, uma nova perspectiva em um processo de reorganização
cognitiva e sensorial. A figura torna sensível um conteúdo ausente, propiciando à criação de
uma ilusão referencial, passando de uma isotopia a outra ao longo do discurso.
A classificação das figuras feita por Mosca (2004) toma como base também as
considerações do Grupo µ e de Tringali.
20
Convém ressaltar aqui que, ao tratar das figuras, essa autora observa que a
metáfora reina sobre as demais figuras e constitui um dos recursos mais importantes no plano
de expressão da retórica e da poética.
Segundo Meyer, “as figuras são um desvio de sentido, um rodeio inabitual
relativamente ao sentido literal” (1998, p. 105). Portanto, as figuras têm a função de transpor
o sentido próprio, de palavras ou expressões, propiciando um novo sentido denominado
sentido figurado.
Citelli (1991) afirma que as figuras retóricas são recursos relevantes que
garantem a atenção do receptor através dos argumentos articulados pelo discurso. Elas
também redefinem determinadas informações proporcionando novos efeitos, quebrando o
sentido literal das expressões. Dentre as figuras retóricas, o autor aborda as figuras mais
usadas: a metáfora e a metonímia.
Para Reboul (2004), as figuras são “um recurso de estilo que permite
expressar-se de modo simultaneamente livre e codificado” (p. 113). Nesse sentido, não
precisamos recorrer às figuras para nos comunicarmos e cada figura é constituída em uma
estrutura conhecida, codificada. O autor classifica as figuras em quatro grupos: figuras de
palavras, que dizem respeito à matéria sonora do discurso: figuras de ritmo e figuras de som
(aliteração, paranomásia, antanáclase); figuras de sentido, que dizem respeito à significação
das palavras ou dos grupos de palavras: tropos simples (metonímia, sinédoque, metáfora),
tropos complexos (hipálage, enálage, oximoro, hipérbole, etc.); figuras de construção, que
dizem respeito à estrutura da frase: figuras por subtração (elipse, assíndeto, aposiopese ou
reticência), figuras de repetição (epanalepse, antítese), figuras diversas (quiasmo, hipérbato,
anacoluto, gradação); e figuras de pensamento, que dizem respeito à relação do discurso com
seu sujeito “o orador” ou com seu objeto: alegoria, ironia, figuras de enunciação (apóstrofe,
prosopopéia, preterição, epanortose); figuras de argumento: conglobação, prolepse, apodioxe,
cleuasmo).
Abreu afirma que as figuras retóricas são:
recursos lingüísticos utilizados especialmente a serviço da persuasão. As figuras
retóricas possuem um poder persuasivo subliminares, ativando nosso sistema
límbico, região do cérebro responsável pelas emoções. Elas funcionam como cenas
de um filme, criando atmosferas de suspense, humor, encantamento, a serviço dos
nossos argumentos (2001, p. 105).
21
O autor dividiu as figuras retóricas em quatro grupos: As figuras retóricas
dividem-se em quatro grupos: figuras de som (as que se ligam à seleção de palavras por sua
sonoridade, tais como a paronomásia e homeoteleuto); figuras de construção (pleonasmo,
hipálage, anáfora, epístrofe e concatenação); figuras de pensamento (antítese, paradoxo e
alusão); e figuras de palavra (metonímia e metáfora).
Esse autor retoma os conceitos de Perelman (1996) e ressalta que é preciso
distinguir as figuras retóricas, que possuem caráter funcional e têm a intenção de persuadir,
das figuras estilísticas, que se objetivam em causar emoção estética, sem a preocupação de
convencer o receptor.
França afirma que “as figuras retóricas são recursos ideais para a construção do
discurso sedutor” (2006, p. 109), ou seja, o orador, diante de um discurso estruturado, tenta
convencer e persuadir seu auditório.
Partindo da diversidade de como os autores não só definem as figuras retóricas,
mas também as classificam (levando em conta diferentes critérios), aqui apenas gostaríamos
de salientar que, para nós, não importa o valor estético e estilístico que essas figuras assumem
ou assumiram ao longo do tempo, mas seu valor argumentativo. As figuras, segundo o que
entendemos, consistem em recursos persuasivos.
Abordemos agora a figura aqui eleita para estudo: a metáfora.
1.1.1.1 A metáfora
Segundo Mosca (2006), a metáfora sempre foi alvo de muitas investigações. É
a rainha das figuras e vem sendo retomada por vários autores, conforme veremos. A autora se
atém aos conceitos de Aristóteles (1967), que define a metáfora como a capacidade de
perceber semelhanças, tratando-a tanto na Arte Retórica como na Arte Poética, mas a sua
função difere de uma para outra, ou seja, na Retórica o seu valor é argumentativo. A distinção
não está no procedimento metafórico, mas na estratégia de sua utilização. E em ambas, a
metáfora constitui sempre um processo de enriquecimento, tanto na estética de ornamento,
quanto elemento argumentativo. Para Mosca (2006), a metáfora é eficaz em seu uso em
variados tipos de discurso, não só os persuasivos (políticos, publicitários, jornalísticos e
outros), mas também os literários.
22
Para Aristóteles (1964), a metáfora é igualmente uma imagem; entre uma e
outra a diferença é pequena. Quando Homero diz de Aquiles “que se atirou como leão”, é uma
imagem; mas quando diz: “Este leão atirou-se”, é uma metáfora. Como o leão e o herói são
ambos corajosos, por uma transposição Homero qualificou Aquiles. No entanto, podemos
perceber que a metáfora passa por um processo de transposição de sentido por semelhança.
Podemos também observar exemplos de imagem de acordo com Tringali
(1988), que também a denomina símile ou comparação: “Ela é bela como uma rosa” ou “qual
uma rosa” ou “semelhante a uma rosa”. Comparar é notar semelhanças e diferenças entre duas
coisas. Nessa figura, buscam-se as semelhanças sem rigor lógico. Sob algum ponto de vista
percebemos uma semelhança entre a “moça” e a “rosa”, visto que a comparação se baseia
numa analogia. É crença de que tudo no universo se corresponde de algum modo, portanto,
são possíveis as comparações. Em: “é bela como uma rosa”, é uma comparação, mas em: “Ela
é uma rosa”, é uma metáfora. A diferença é que, na metáfora, não aparecem expressões
gramaticais de comparação tais como: qual, como, semelhante... Nela, uma identificação e
uma abreviação: “é uma rosa”.
Segundo Tringali (1988), metáfora quer dizer, em grego, transporte. Como
podemos notar no exemplo: “no inverno da vida...”, a palavra “inverno” tem um sentido
próprio que significa estação do ano, mas por alguma semelhança, foi atribuída a uma fase da
vida humana, houve o transporte da palavra “inverno” do sentido natural de estação do ano
para a “velhice”, que é uma metáfora.
Valente (2002) considera a metáfora como uma comparação implícita (sem
conectivo) e a símile como uma comparação explícita (com conectivo). O autor ainda
classifica as metáforas em puras e impuras. A metáfora pura apresenta apenas um termo de
comparação, enquanto que a metáfora impura apresenta dois termos de comparação. Para
exemplificar a símile e as metáforas puras e impuras, o autor se vale de alguns versos da
canção: “dói quando eu rio”, de Moacyr Luz e Aldir Blanc. Em “Volto sempre a ela,/feito
criminosa.../ Doce e dolorosa”, notamos a presença da símile no verso “feito criminosa”; em
“ela diz quanto eu sofri./E Copacabana,/a linda meretriz-princesa”, notamos a presença da
metáfora impura nos versos “E Copacabana,/a linda meretriz-princesa”; já em “Loura Mãe de
Santo/com sua gargantilha acesa.../ela me ensinou pureza e pecado”, notamos a presença da
metáfora pura no verso “com sua gargantilha acesa...”
Citelli (1991) define a metáfora como uma figura que denomina representações
para as quais não se encontra um indicativo mais apropriado e ela passa por alguns processos
23
tais como: transferência ou transposição, que é a passagem do plano base (significação
própria da palavra ou expressão) para o plano simbólico (representativo, figurativo); e
associação que, na transposição, ocorre um processo de associação ou comparação subjetiva
entre a significação própria e o efeito figurativo.
De acordo com Meyer (1998), a metáfora diz respeito a uma semelhança entre
dois domínios ou conjuntos disjuntos. A identidade figurativa é assimilada a uma identidade
real.
Conforme Reboul (2004, p. 122), a “metáfora designa uma coisa com o nome
de outra que tenha com ela uma relação de semelhança”. O autor afirma que a metáfora é um
tropo simples que se enquadra nas figuras de sentido as quais consistem em empregar um
termo (ou vários) com um sentido que não lhe é habitual. A figura de sentido desempenha
papel lexical, não que acrescente palavras ao léxico, mas enriquece o sentido das palavras e é
um tropo, um significante tomado no sentido de outro como podemos observar no exemplo:
“O olho escuta...” Esta metáfora de Claudel poderia ser vista como um desvio, transgressão da
norma lexical, mas restabelecendo-se o termo próprio, perde-se sentido, pois o olho que
“escuta” uma obra de arte compreende-a, e compreende-a porque lhe obedece. Portanto
“escuta” é o termo exato. Isso acontece com toda verdadeira figura. A metáfora é uma
semelhança de relações entre termos heterogêneos como podemos observar no exemplo:
“Sofia é uma pedra de gelo.” A semelhança em que se baseia essa metáfora provém de termos
heterogêneos, que não têm matéria nem medida em comum; Sofia não é nem uma pedra de
gelo, nem é como uma pedra de gelo.
Para Abreu (2001), a metáfora (que vem do grego metaphorá) sugere a idéia de
transporte do sentido próprio para o sentido figurado. Baseado em um artigo de J. V. Jensen
(1975): “Metaphorical Constructs for the Problem-solving Process”, Abreu ressalta que o
autor classifica a metáfora em cinco grupos: (i) metáforas de restauração: quando algo sofre
algum tipo de prejuízo, havendo a necessidade de reparação, tais como as metáforas médicas,
de roubo, de conserto e de limpeza; (ii) de percurso: são as que associam a resolução de
problemas a uma jornada, tais como as metáforas de percurso em terra, mar, cativeiro e ar;
(iii) de unificação: que tornam uno ou unido, como é o caso das metáforas de parentesco,
pastoral e esportiva, criativas que têm espírito inventivo, que favorece a criação, tais como as
metáforas de construção, tecelagem, composição musical e de lavrador; e (iv) naturais:
produzidas pela natureza ou regulado pelas suas leis, tais como as metáforas de claro-escuro e
de fenômenos naturais.
24
Diante das várias definições de metáfora, podemos verificar que essa figura:
é um processo de escolha por semelhança, transposição e associação;
desconstrói o sentido literal propiciando outro sentido;
funciona como um recurso persuasivo e argumentativo;
Desse modo, convém esclarecermos que, dentre os vários conceitos de
metáfora apresentados, valer-nos-emos das considerações de autores que mais se ajustam ao
nosso propósito de análise, a saber, as de Reboul (2004) e Tringali (1988).
É importante ressaltar que nas letras de músicas selecionadas para estudo,
consideraremos, além das metáforas, as expressões que, de certa forma, podem ser
consideradas metafóricas.
Passemos, agora, a tratar de outro aspecto teórico em nossa análise: as paixões,
propostas por Aristóteles (2003).
1.1.2 As paixões
Como a presença da paixão do medo é marcante nas letras de músicas
selecionadas para estudo, neste item, trataremos do conceito de paixão e de todas as paixões
elencadas por Aristóteles em Retórica das paixões (2003).
Segundo Aristóteles (2003, p. XIV), “as paixões são todos aqueles sentimentos
que, causando mudança nas pessoas, fazem diferir seus julgamentos”. Dessa forma, podemos
entender que as paixões tocam e mexem com os sentimentos dos indivíduos e podem até fazer
com que eles ignorem a razão e modifiquem o modo de pensar ou agir.
As paixões são igualmente as respostas às inferioridades e às superioridades
que se aventuram a pôr em risco o fim comum, o qual tem de subjugar as diferenças e não
provocá-las. São respostas às representações que os outros concebem de nós.
Lebrun (1987) afirma que “a paixão é sempre provocada pela presença ou
imagem de algo que me leva a reagir, geralmente de improviso. Ela é então o sinal de que eu
vivo na dependência permanente do outro” (p. 18). Para o autor, o objetivo do orador e do
poeta, não é apenas convencer pelos argumentos, mas sim, pelo afeto, pelas emoções que são
movimentados pelas paixões.
25
De acordo com Aristóteles (2003), as paixões são também conhecidas como
formas da consciência de si, pois nos preocupamos com que os outros pensam a nosso
respeito e buscamos encontrar uma resposta a tal julgamento e vice-versa. O autor ainda
afirma que, nas paixões, um conflito das opiniões humanas, pois as ações, qualidades e
pensamentos dos indivíduos são questionáveis, oferecem opções, alternativas contraditórias e
não-contraditórias. Nesse sentido, as paixões se ligam ao pathos que se refere às ações e às
qualidades que se vão atribuir ao sujeito e não ao que ele possui por natureza, não à sua
essência. Para ele buscamos a aceitação e não a exclusão do outro e, aceitar o outro, é aceitar
a si mesmo, é admitir as diferenças e alcançar uma identidade comum.
O autor ainda afirma que as paixões podem ser analisadas quando um
meio termo e se elas chegam a extremos, se tornam um vício ou se encontram em um estado
de inconsciência, não mais podem ser analisadas, pois já é um fim e não mais um meio termo,
ou seja, não mais caberão contestações, questionamentos e reflexões. Nas paixões deve haver
um julgamento, uma resposta, o reequilíbrio, a busca de alternativas.
Aristóteles (2003) divide as paixões em quatorze tipos, a saber:
1) Compaixão: também conhecida como piedade, é certo pesar por um mal que pode destruir
e atingir quem não o merece. Sentir compaixão é colocar-se na situação do outro que está a
ser julgado. Temos compaixão a quem nos é semelhante no caráter, nos hábitos, dignidades,
na origem.
2) Indignação: é oposta à piedade, é a não-aceitação (moral) da desordem, opõe-se à
compaixão. Deve-se sentir compaixão aos que são infelizes sem o merecer e indignação aos
que são felizes sem merecer. É quando o inferior, de alguma maneira, contesta o superior.
Indignar-se é também ser contra a injustiça. Até mesmo as pessoas dignas de maiores bens
podem sentir indignação.
3) Inveja: se manifesta entre as pessoas que são iguais ou parecidas quanto à idade, bens,
hábitos, reputação. Normalmente, os ambiciosos tendem a serem mais invejosos que os
homens sem ambição. Nela, buscamos bens, fama, consideração e glória. Ela gera a
competição e, nesse sentido, podemos até vê-la de forma positiva, visto que serve de
motivação para o indivíduo buscar o sucesso com grande probabilidade de consegui-lo.
Invejamos os que almejam o mesmo que nós. Na inveja, além de querermos o que o outro
tem, também desejamos tirar todos os seus bens para que somente nós o tenhamos.
26
4) Emulação: dirige-se para os iguais, consiste na imitação do outro, valoriza os bens que o
outro tem, ou seja, a coragem, a sabedoria, a autoridade; como também aqueles a quem
muitos admiram, ou a quem nós próprios admiramos. Ela se assemelha à inveja, pois também
serve de estímulo ou incentivo a outrem.
5) Desprezo: desvaloriza o que o outro tem e tende para a ruptura. Desprezamos os que
gozam de boa sorte quando esta não vem acompanhada de bens honrosos. Quando as pessoas
sentem-se superiores e mais fortes, sem de fato sê-los, o sentimento de desprezo se manifesta.
Com ele, deseja-se gerar a diferença.
6) Favor: é o serviço pelo qual concedemos aos que têm necessidade, não em troca de alguma
coisa, nem com intuito de obter alguma vantagem pessoal, mas no interesse do favorecido. O
favor se torna grande quando o fazemos a alguém muito necessitado ou se somos os primeiros
a fazê-lo. É um serviço que prestamos aos que consideramos tristes, pobres, aflitos. Não será
favor se esperarmos por gratidão e reconhecimento, se for troca. Ele tem que ser espontâneo.
7) Vergonha: é certo sentimento de inferioridade, reforçando a importância do olhar e
julgamento do que o outro faz de nós. Nela, valorizamos o julgamento do outro, pois temos
vergonha daqueles por quem temos consideração.
8) Impudência: é certo sentimento de superioridade pela qual não nos importamos com o que
os outros pensam a nosso respeito. A imagem que o outro forma de nós é indiferente.
9) Segurança: também conhecida como confiança, provém de certa superioridade sobre as
coisas ou pessoas. É o afastamento do perigo, distanciamento do prejudicial, do temível e a
aproximação dos meios de salvação.
10) Cólera: é o reflexo de uma diferença entre aquele que se entrega a ela e aquele ao qual ela
se dirige. É um brado contra a diferença imposta, “injusta” ou como tal sentida; revela ao
interlocutor que a imagem que ele forma do locutor carece de fundamento. Ela se diferencia
do ódio, visto que o encolerizado deseja vingar-se e notar o desgosto, o sofrimento causado
27
em seu adversário, enquanto que, no ódio, não a necessidade de notar tal desgosto, mas
sim, que seu adversário desapareça.
11) Ódio: é certo sentimento de rancor e suas causas são a cólera, o ultraje e a calúnia. A
cólera vem do que nos toca pessoalmente, é individual, o ódio surge mesmo sem nenhuma
ligação pessoal. Se supusermos que uma pessoa é mau caráter, nós a odiamos. O ódio volta-se
também para a classe de pessoas, pois todo homem odeia o caluniador, o ladrão e assim por
diante. A cólera é o desejo de causar desgosto, mas o ódio é o de fazer o mal, visto que o
colérico quer notar o desgosto causado, enquanto ao que odeia nada importa. Em muitas
circunstâncias na cólera pode-se sentir compaixão, no ódio nenhuma.
12) Calma: estar calmo é o contrário de estar encolerizado. A calma é a inibição, talvez o
antídoto da cólera. Ela nos permite reconhecermos e nos arrependermos dos nossos erros,
fazendo com que nossa cólera se cesse. Ela é a verdadeira paixão, pois agimos, sobre certa
imagem, que o outro forma de nós, mantendo nossa calma. É a aceitação de uma relação que
pode gerar a indiferença, a ausência de toda paixão, o contrário absoluto daquilo que
encoleriza os homens.
13) Amor: também conhecida como amizade, é um vínculo de identidade mais ou menos
parcial. Amamos a quem se alegra com nossos bens e sofre com nossas tristezas, que
consideram como bem e mal as mesmas coisas que nós, os que têm em comum conosco os
mesmos amigos e inimigos, têm os mesmos desejos que temos. São também aqueles que nos
fazem favor de boa vontade, sem interesse. Amamos os que são sensatos e justos, cuja
presença nos é agradável, os que não censuram nossos erros, os que não guardam rancor, os
que não se opõem às nossas discussões, pois os que combatem parecem ter desejos opostos ao
nosso. As formas de amizade são: companheirismo, familiaridade, parentesco e
relacionamentos análogos. As causas da amizade são o favor, sem interesse.
14) Temor: é certo desgosto ou preocupação resultante de um suposto mal iminente, danoso
ou penoso. O temível parece estar bem próximo e é justamente nesse sentido que o perigo
reside. Não tememos o que nos é distante, como por exemplo, a morte. Tememos àqueles que
consideramos mais fortes que nós, como nossos adversários e inimigos que estão prestes a nos
prejudicar. Tememos também os calmos e os astutos, pois podem estar prestes a nos agredir.
28
De acordo com Aristóteles (2003), a lista das paixões é diferente na Ética, visto
que nela, a alegria, o desejo ou o pesar, que são estados de alma da pessoa considerada
isoladamente, por assim dizer, ou em todo caso tomada em sua temporalidade individual. Na
Retórica, ao contrário, as paixões passam por resposta a outra pessoa, e mais precisamente à
representação que ela faz de nós em seu espírito. Como mencionamos, Aristóteles
classificou em quatorze as paixões. Discorreremos sobre a paixão do medo, objeto de análise
do nosso trabalho, de acordo com Aristóteles (2003).
O referido autor afirma que são temíveis aquelas coisas que parecem possuir
grande capacidade de arruinar, ou de causar danos que levam a grande desgosto. Tememos o
ódio e a cólera das pessoas que têm poder de fazer algum mal, pois elas estão a ponto de fazê-
lo. É temível estar à mercê de outrem, pois os que têm conhecimento de prática de uma ação
fazem temer que nos denunciem ou nos abandonem. Os que sofrem injustiça também são
temíveis, pois estão sempre na expectativa de vingança. Os que praticam a injustiça também
temem serem vítimas de vingança. Os calmos, astutos e dissimulados são temíveis, pois não
se pode saber se estão prestes a agredir. Não tememos aquilo que julgamos que não
poderíamos sofrer ou aqueles que não se crê que poderiam nos causar algum mal. Não
tememos somente às pessoas que nos podem fazer mal, mas o que elas podem fazer.
Assim, conforme Aristóteles (2003), para temer é preciso guardar no íntimo
alguma esperança de salvação contra que se luta.
De acordo com Chauí (1987), que baseia-se nos conceitos aristotélicos, as
paixões se ligam aos afetos e compreender os afetos é alcançar sua origem, saber quais são
primitivos e quais derivados, quais são fortes e quais fracos, o que os diferencia, aproxima e
distancia, o que os conserva e o que os destrói.
Para classificar os afetos: desejo, alegria e tristeza, a autora baseia-se no Livro
III da Ethica, de Espinosa (1914).
O desejo é “a própria essência do homem enquanto concebida como
determinada a fazer algo por uma afecção nela existente” (CHAUÍ, 1987, p. 49). Não envolve
a consciência, diz Espinosa, senão quando conhecemos ou imaginamos conhecer a causa de
nossos apetites.
Para Chauí:
quando a causa é imaginária, depositada no desejado e não no desejante, o desejo é
paixão; quando a causa é real, o próprio desejante, o desejo é ação. Dele nascem:
29
emulação, gratidão, inveja, vingança, crueldade, temor, audácia, pusilanimidade,
consternação, modéstia, ambição, lubricidade, avareza, benevolência, generosidade,
orgulho (1987, p. 54).
A “alegria é passagem de uma perfeição (realidade) menor a outra maior,
sentimento de que nossa capacidade ou aptidão para existir e agir aumentam em decorrência
de uma causa externa, na paixão, e de uma causa interna, na ação” (CHAUÍ, 1987, p. 54).
Dela nascem: amor, amizade, contentamento, glória, esperança, irrisão,
segurança, estima, misericórdia.
A “tristeza é passagem de uma perfeição (realidade) maior a outra menor,
sentimento da diminuição de nossa aptidão para existir e agir. A tristeza pode ter causas
exterior sendo por isso intrínseca e necessariamente paixão, jamais ação.” (CHAUÍ, 1987, p.
55)
Dela, nascem: ódio, medo, desespero, humildade, remorso, inveja, abjeção,
despeito, comiseração, vergonha, arrependimento.
Para Chauí (1987), medo é uma paixão triste. Ele é e sempre será paixão, jamais ação do
corpo e da alma. Sua origem e seus efeitos fazem com que não seja paixão isolada, mas
articulada a outras formando verdadeiro sistema do medo, determinando a maneira de sentir,
viver e pensar dos que a ele estão submetidos. O medo nasce de outras paixões e pode ser
minorado por outros afetos contrários e mais fortes do que ele, como também pode ser
aumentado por paixões mais tristes do que ele.
A autora enfatiza que o que mais causa-nos temor ou medo é a morte. Também
temos medo de todos os entes reais ou imaginários que sabemos ou cremos dotados de poder
de vida e de extermínio, como por exemplo, a cólera de Deus, a manhã do Diabo, a multidão
enfurecida, a peste, a fome, a guerra, o fim do mundo. Temos medo do esquecimento e de
jamais poder deslembrar. Da insônia e de não mais despertar. Do ódio que devora e da cólera
que corrói, mas também da resignação sem esperança, da dor sem fim e da desonra. Medo da
loucura, do mistério da fecundidade e da maternidade, fonte de tabus, ritos e terrores. Temos
medo dos vivos e dos mortos. Da fala mansa do inimigo, da angústia, do susto, espanto e
pavor, dentre outros.
A autora retoma ainda os conceitos aristotélicos para dizer que aquele que
permanece imperturbável em meio a perigos e que se comporta diante deles como é preciso é
mais verdadeiramente corajoso do que aquele que assim procede nas ocasiões seguras. É por
sua firmeza diante das coisas que trazem sofrimento que um homem é corajoso. Para a autora,
30
acidente dotado de causas e fruto da insensatez, o medo não se opõe à valentia, mas à
prudência. O medo também é companheiro de secretos ódios.
Convém, aqui, esclarecer que Chauí utilizou-se dos conceitos aristotélicos e
que, para a análise das paixões, principalmente a paixão do medo, adotaremos apenas os
pressupostos teóricos de Aristóteles (2003).
Passemos, agora, à metodologia aplicada em nossa análise.
31
2 METODOLOGIA
Nesta parte esclarecemos como se deu a constituição do corpus analisado nesta
pesquisa bem como quais foram as etapas de realização do estudo.
2.1 CORPUS DE ANÁLISE
O corpus de análise deste trabalho é constituído de oito letras de músicas de
Raul Seixas, a saber: Carimbador Maluco (Raul Seixas, 1983), Conserve o seu Medo (Mata
Virgem, 1979),
Metrô Linha 743 (Metrô Linha 743, 1984), Mosca na Sopa (Krig-ha,
Bandolo!, 1973),
Novo Aeon (Novo Aeon, 1975), Paranóia (Novo Aeon, 1975), Rockixe
(Krig-ha, Bandolo!, 1973) e
Sociedade Alternativa (Gita, 1974)
2
.
Para o critério de seleção das oito letras de músicas do nosso corpus, levamos
em consideração duas questões: a época em que elas foram compostas de 1973 a 1984,
período em que o país era regido pelo governo ditatorial, repleto de censuras e repressões; e o
tema comum a todas elas: “o drible à censura”. Como as letras de músicas, em análise, foram
compostas no período ditatorial, de 1973 a 1984, achamos importante fazer a contextualização
de tais músicas de acordo com o referido período. Essa contextualização pode ser vista no
próximo capítulo (item 3.2).
2.2 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE
A análise das letras de músicas compreendeu três etapas:
2
Krig-ha, Bandolo!, Gita e O Novo Aeon, esses álbuns foram produzidos pela gravadora Philips; Mata Virgem
pela WEA; Raul Seixas pela Estúdio Eldorado e Metrô Linha 743 pela Som Livre.
32
a) caracterização do gênero “letra de música”
A partir de uma breve descrição de alguns autores que tratam sobre a questão
do gênero como: Bakhtin (2000), Meurer, Bonini e Motta-Roth (2005), Marcuschi (2005),
Bronckart (1999) e Carmelino (2006), buscamos caracterizar o gênero “letra de música”,
levando em conta especialmente os pressupostos teóricos de Bronckart (1999) e Carmelino
(2006), os quais consideram, para a descrição de qualquer gênero:
- o conteúdo temático;
- o contexto de produção (físico e sócio-subjetivo);
- a infra-estrutura textual: tipos de discurso, tipos de seqüência textual, mecanismos de
textualização e mecanismos enunciativos.
b) estudo das metáforas em algumas letras de músicas de Raul Seixas
Com base, principalmente, nas considerações de Reboul (2004) e Tringali
(1988), procuramos não identificar as metáforas e expressões metafóricas nas letras de
músicas que buscaram “driblar a censura”, mas também demonstrar que o uso dessas
expressões funciona como um importante recurso argumentativo e persuasivo.
c) análise da paixão do medo e das paixões mobilizadas pelo medo nas letras de músicas de
Raul Seixas
Após um levantamento das paixões encontradas nas letras de música aqui
estudadas, verificamos que a que predomina é o medo. Desse modo, buscamos demonstrar
não como a paixão do medo permeia as letras, mas também mobiliza outras paixões, como
é o caso do desprezo, da indignação, da confiança e da cólera.
Para esta análise, baseamo-nos especialmente nos pressupostos de Aristóteles
(2003).
No próximo capítulo, apresentaremos algumas considerações sobre Raul
Seixas e sobre o contexto histórico em que as canções, aqui analisadas, foram produzidas.
33
3 RAUL SEIXAS E SUAS MÚSICAS
Alguns dados da vida do compositor Raul Seixas e o contexto histórico-social
da época em que as músicas foram compostas são importantes para compreendermos as
metáforas e a paixão do medo presentes nas letras aqui escolhidas para a análise. Desse modo,
antes de passarmos à análise, vejamos essas questões.
3.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE RAUL SEIXAS
Todas as informações que seguem neste item foram embasadas, principalmente,
na obra de Passos (2003) e Boscato (2006).
Raul Santos Seixas nasceu aos 28 de junho de 1945, em Salvador, Bahia. Filho
de Raul Varella Seixas, engenheiro, e Maria Eugênia Santos, dona de casa, ambos
pertencentes à classe média baiana. Casou-se por duas vezes e teve duas filhas. Faleceu em 21
de agosto de 1989, às 5 horas, por parada cardíaca causada por pancreatite crônica. O
sepultamento ocorreu às 17 horas, do dia 22 de agosto, no Cemitério Jardim da Saudade, em
Salvador, sua cidade natal.
Formou-se em filosofia e inglês arcaico e estudou Psicologia, Literatura e
Direito. Raul, ainda criança, já havia lido praticamente toda a biblioteca do pai. Era um garoto
muito intelectual. O dom para a escrita se revelou ainda na infância quando Raul escrevia e
vendia seus gibis para o irmão mais novo. Em uma entrevista concedida ao jornalista
Walterson Sardenberg à revista Amiga (1982), afirma ter estudado latim para ler
Metamorfose, de Ovídio, e que compôs a canção Metamorfose Ambulante aos doze ou treze
anos de idade.
O cantor morou ao lado do consulado norte-americano na Bahia e teve acesso,
através de garotos vizinhos, aos discos de Elvis Presley, Little Richard, Fats Domino, Jerry
Lee Lews, Chuck Berry que o influenciaram bastante. Seixas era de Elvis Presley e Luiz
34
Gonzaga, motivo pelo qual, constatamos em muitas de suas canções, a mistura do rock de
Elvis e o baião de Gonzaga, como podemos notar na canção Let me sing, Let me sing. Raul
dizia que Luiz Gonzaga era o “Elvis Presley do sertão nordestino”, pois apesar de os estilos
serem diferentes, os tons musicais eram muito semelhantes.
Raul dizia ser Presley, quando andava e penteava o topete. E era o alvo de risos
e gracinhas. Ele havia assumido uma maneira diferente de vestir, falar e agir que ninguém
conhecia. Dizia que, na Bahia, estava na frente de todos em matéria do que estava
acontecendo no mundo, com relação à música. Apesar de afirmar que não tinha consciência
da mudança social toda que o rock implicava. Seixas achava que os jovens iriam dominar o
mundo.
Montou seu primeiro grupo de rock “Relâmpagos do Rock” (1962) e se
apresentaram na TV Itapoan, onde foi chamado de “conjunto de música cowboy” que passou,
em 1963, a se chamar “The Panters”. O grupo fizera sucesso por todo o interior da Bahia. Era
o grupo mais caro de Salvador.
Seixas abandona os estudos acadêmicos em 1965 e passa a figurar em shows
no Cine Roma, onde brilhavam estrelas da jovem guarda como Roberto Carlos, Jerry Adriani,
Wanderley Cardoso, Wanderléa, dentre outros.
Conhece a americana Edith Wisner, filha de um pastor, em 1966. A pedido dos
pais da moça, o cantor presta a faculdade de Direito e passa entre os primeiros colocados.
Para sobreviver, dá aulas de violão e Inglês.
Seixas se enquadrava em um perfil anárquico e admirava a filosofia de
Aristóteles e o revolucionário Gandhi. Em um de seus shows, na década de 70, foi
distribuídos o gibi-manifesto: “A Fundação de Krig-Há”, dando início à Sociedade
Alternativa apoiada pelo seu grande parceiro Paulo Coelho. A Polícia Federal recolheu todos
os gibis e começou a investigar o que seria essa tal sociedade.
De acordo com uma matéria publicada pela revista Contigo (2004), juntamente
com seu parceiro Paulo Coelho, Raul Seixas conseguiu, de uma sociedade esotérica
internacional, uma grande área em Paraíba do Sul, Minas Gerais, para construir a tão sonhada
Sociedade Alternativa que também era conhecida como Cidade das Estrelas. Raul e seu
parceiro mergulharam de cabeça na obra do bruxo Aleister Crowley (1875–947), que defendia
a revolução interna do ser humano, principalmente em O Livro da Lei que inspirou a dupla na
criação da Sociedade Alternativa. O empreendimento chegou a ter papel timbrado, logotipo e
endereço, um conjunto de salas na Praça XV, no Rio. O cantor afirmava que:
35
“a Sociedade Alternativa era uma sociedade esotérica, lugar onde o advogado era o
não advogado, o policial era o não policial e, assim por diante. Havia arquitetos,
engenheiros e advogados querendo morar lá, uma comunidade de inversão de
valores da época” (entrevista dirigida pelo apresentador de programa de TV, Pedro
Bial, 1988).
Porém, essas afirmações não convenceram os militares e, de acordo com uma
entrevista concedida à revista Bizz, em março de 1987, Raul disse que no ano de 1974
recebeu uma ordem de prisão do Primeiro Exército que o levou para um lugar que não sabia
onde era. Estava nu com uma carapuça preta, colocada pelos militares, e foi torturado para
que dissesse os nomes das pessoas que faziam parte da Sociedade Alternativa, pois essa
sociedade estava sendo interpretada como um movimento revolucionário contra o governo.
Então o levaram e o escoltaram até o aeroporto para que ele deixasse o país juntamente com
Paulo Coelho. "Todos os partidos são variantes do absolutismo. Não fundaremos mais
partidos; o Estado é seu estado de espírito", palavras de Raul Seixas.
Os jornais divulgaram que Raul Seixas teria ido aos Estados Unidos fazer uma
visita a John Lennon. Foi convidado a retornar ao Brasil somente com o sucesso da canção
Guita para evitar especulações sobre seu exílio. Nessa época Raul disse ter estado,
pessoalmente, com Lennon, Elvis Presley e Jerry Lee Lewis.
Notamos, na maioria das canções de Seixas, a manifestação do ocultismo
inspirado no mago Aleister Crowley (1875-1947), o qual foi tido como o mais perverso
homem da face da terra, cuja vida sempre esteve simultaneamente compartilhada por
genialidade e loucura, por criação e destruição, amor e ódio, encanto e desafeto. Seu propósito
sempre esteve além de todos os dogmas, todo êxtase, além de toda vida e morte.
Para compor a música Sociedade Alternativa (1974) e A Lei (1988) Raul fez
uso de paráfrases do Livro da Lei, de Crowley (1904): A Lei de Thelema, notáveis no verso:
“Faz o que tu queres/ de ser tudo da lei”. O próprio mago gostava de ser considerado “A
Grande Besta 666”, como podemos notar em um dos versos da música Sociedade Alternativa:
“– O número 666/ Chama-se Aleister Crowley”.
Crowley acreditava que a divisão entre o bem (Deus) e o mal (Diabo) deveria
ser superada dentro de uma nova Espiritualidade a se formar. Por esse motivo, observamos
forte influência do mago nas canções de Raul Seixas, como é o caso da presença do diabo no
verso “O diabo é o pai do rock/ Foi ele mesmo que me deu o toque”, na canção Rock do diabo
36
(1975) e de Deus em “
Alô aqui é do céu/
Quem tá na linha é Deus./Tô vendo tudo esquisito/O
que é que com vocês?(DDI - Discagem Direta Interestelar, 1983). Notamos também a
divisão do bem e do mal citado por Crowley em “Ói, vem Deus,/ deslizando no céu entre
brumas de mil megatões/ Ói, ói o Mal/ Vem de braços e abraços com o Bem/ num romance
astral/ Amém.” (O Trem das Sete, 1974).
O cantor também faz referência ao disco voador como podemos notar na
canção S.O.S (1974) que se remete à religião e à censura: “Ô Ô Ô seu moço do disco voador,/
Me leve com você, prá onde você for/ Ô Ô Ô seu moço, mas não me deixe aqui/ Enquanto eu
sei que tem tanta estrela por aí.. O substantivo moço” se refere a Deus e a expreso “tanta
estrela por aí” faz
referência aos militares, porque quem carrega muitas estrelas são os
generais. Raul Seixas utiliza-se do disco voador de maneira metafórica para fazer um
apelo ao seu tripulante (Deus) que o livrasse da ditadura, mas isso não poderia ser dito
abertamente por se tratar de um período em que estávamos sob censura.
Em muitas de suas canções, o cantor também critica o “esquema da mídia”, a
qual priorizava a Música Popular Brasileira e considerava o rock-n’-roll de qualidade.
Para se destacar, Seixas teve que entrar “no jogo” das manipulações, “no jogo” da mídia, no
jogo dos ratos”, teve que aprender a lidar com o bem e o mal, com os altos e baixos, com
“Deus e com o Lobisomem”, verso citado no trecho: “Raul Seixas e Raulzito / Sempre foram
o mesmo homem/Mas pra aprender o jogo dos ratos/Transou com Deus e com o lobisomem”
(As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor, 1974). Esse verso também sugere que “Raul
Seixas” e “Raulzito” sempre foram o mesmo homem, ou seja, apesar de ter se destacado na
MPB como Raulzito, sempre foi o roqueiro Raul Seixas.
Também podemos notar essas considerações em uma das canções de nosso
trabalho, Mosca na sopa (1973), na qual o cantor critica a midia, revelando-se uma “mosca na
sopa” a infernizar e a tormentar a mídia: “Eu sou a mosca que pousou em sua sopa/ Eu sou a
mosca que pintou pra lhe pegar”. Esse verso também faz referência à ditadura militar em que
o cidadão politizado inferniza e desestrutura o sistema de governo através da denúncia dos
crimes e anunciação das reformas.
Convém acrescentar que algumas obras foram realizadas em homenagem a
Raul Seixas, tais como: o Viaduto Raul Seixas, em Salvador; o Parque Ecológico Cultural
Raul Seixas, na Zona Leste de São Paulo; o lançamento do livro “Raul Seixas Por Ele
Mesmo”, pesquisado e analisado por Sylvio Passos; e a Oficina Cultural Raul Seixas no
bairro do Tatuapé, em São Paulo.
37
As várias fases e experiências vividas por Raul Seixas contribuíram na
composição de suas canções: destacamos aqui o gosto pelo ocultismo, pela religião, pela
política, pela filosofia, pela cultura norte-americana e a nordestina.
Conforme veremos, todas essas informações sobre a vida do autor são
fundamentais para que o leitor faça as inferências necessárias para a construção do sentido das
letras das canções que serão analisadas.
3.2 CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL: O REGIME MILITAR NO BRASIL E AS
LETRAS DE MÚSICAS DE RAUL SEIXAS DE 1973–1984.
Além dos dados da vida do autor, para que o leitor faça as inferências
necessárias para a construção do sentido das letras de músicas de Raul Seixas que serão
analisadas em nosso trabalho, também é preciso que tenha conhecimento do contexto
histórico-social da época em que elas foram compostas de 1973 a 1984. Assim, nesta parte,
para que o leitor se situe, faremos uma contextualização dessas letras de músicas com a
história da época, a partir das considerações de Fausto (2002) e Vieira (1985).
No período de 1973 a 1984, época em que as letras de músicas em análise
foram compostas, o Brasil foi regido por três presidentes da república, a saber: Emílio
Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Baptista de Oliveira Figueiredo.
a) O governo Médici (1969–1974)
De acordo com Fausto, o governo Médici não se limitou à repressão e afirma que
Médici não tinha gosto pelo exercício do poder, tendo delegado aos seus ministros o
exercício do governo que resultou o paradoxo de um comando presidencial dividido
em um dos períodos mais repressivos, se não o mais repressivo, da história brasileira
(2002, p. 267),
38
Grupos armados urbanos que aparentemente desestruturariam o regime militar
fracassaram e praticamente desapareceram. Com isso, o poder de repressão cria forças e se
torna ainda mais eficiente e ameaçador.
De acordo com Vieira (1985), em sua posse, Médici leu um “credo”, no qual se
declarava Homem da Lei”. As oposições e suas organizações, sem alternativa, se renderam
às constantes repressões e a voz popular foi suprimida.
A partir de 1969, o país passa por uma série de turbulências: a fuga de presos
políticos, assaltos a bancos, ataques a quartéis para retirar armas dos militares, dentre outros.
Em setembro desse mesmo ano, o governo federal promoveu os Atos Institucionais nº. 13 e
14. O Ato Institucional 13 determinava que os presos políticos, trocados por diplomatas
seqüestrados, receberiam a condição de banidos do Brasil. O Ato Institucional 14
acrescentava à Constituição de 1967 algumas penalidades, antes inexistentes. Desde então,
começaram as práticas de penas de morte, prisão perpétua e exílio. Essas práticas seriam
aplicadas caso houvesse guerra psicológica, revolucionária ou externa.
Médici assinou o Decreto-Lei 69.534 em 11 de novembro de 1971, que foi
conhecido também por “Decreto-Lei-Secreto” que atribuía poder ao presidente da república
para fazer decretos-leis secretos que não seriam divulgados seus conteúdos. Esses decretos
autorizavam a prisão de pessoas por transgredirem a lei que muitas vezes ela nem a conhecia
por não ser uma lei clara e aberta. Nessa época, a repressão se torna ainda mais violenta.
Pessoas começam a ser revistadas e, caso fossem pegas sem documento, poderiam ser detidas
por serem consideradas suspeitas. Torturas eram aplicadas para se chegar a informações
desejadas sob risco de serem comprometedoras ao governo.
O Ministro da Justiça do governo Médici, Alfredo Buzaid, por meio do
Decreto-Lei 1.077, regulamentou a Emenda Constitucional 1 em que jornais e revistas
tinham de registrar-se na Polícia Federal, além de obedecer a uma série de exigências. Desse
modo, a Polícia Federal incumbiu-se de aplicar a prática da censura aos canais de
comunicação e a empreendimentos culturais.
Fausto (2002) afirma que, por volta de 1970, houve um grande avanço das
telecomunicações no país e, nessa época, o governo beneficiou a TV Globo que se
transformou em porta voz, motivo pelo qual se tornou rede nacional até alcançar o controle do
setor. A propaganda governamental passou a ter um canal de expressão como nunca existira
na história do país.
39
O período de 1969 a 1973 foi conhecido como “Milagre Econômico
Brasileiro” pelo crescimento econômico do país e pelas baixas taxas de inflação. No entanto,
conforme Vieira (1985) houve um aumento nos investimentos estrangeiros e estatais no
Brasil, o que provocou um rápido aumento da dívida externa do Brasil que crescia bem mais
de três vezes, enquanto se festejava o ilusório dito “Milagre Econômico”.
A partir de todas essas considerações, podemos verificar que as letras de
músicas de Raul Seixas, contempladas em nossa análise e compostas nesse período, fazem
referência ao governo Médici e que o cantor utilizou-as para tentar driblar a censura como
podemos notar nos versos: “E não adianta/Vir me detetizar/Pois nem o DDT/Pode assim me
exterminar/Porque vomata uma/E vem outra em meu lugar...” (Mosca na sopa, 1973). A
sigla “DDT” é uma potente marca de pesticida usada para eliminar, exterminar insetos e se
identifica com as siglas: DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações e ao Centro
de Operações de Defesa Interna) que era um órgão que atuava como centro de investigação e
repressão do governo militar. A sua função era eliminar todos os intelectuais que se
manifestassem contra as normas governamentais. Podemos notar outras considerações a
respeito dessa mesma música em que o cantor critica a midia, revelando-se uma “mosca na
sopa” a infernizar e a tormentar a mídia: “Eu sou a mosca que pousou em sua sopa/ Eu sou a
mosca que pintou pra lhe pegar”, visto que, conforme mencionamos, nesse período, a Polícia
Federal se destacava no campo da censura aos canais de comunicação e a empreendimentos
culturais. Tanto é que o cantor Raul Seixas, em um de seus shows, distribuiu o gibi-manifesto:
“A Fundação de Krig-Há”, dando início à Sociedade Alternativa apoiada pelo seu grande
parceiro Paulo Coelho e a Polícia Federal recolheu todos os gibis e começou a investigar o
que seria essa tal sociedade.
Em outros versos também podemos notar a referência ao governo Médici:
“Então vá!/Faz o que tu queres/Pois é tudo/Da Lei! Da Lei!/Viva! Viva!/Viva a Sociedade
Alternativa...” (Sociedade Alternativa, 1974). Obsevamos que Médici se declarava como
sendo “O Homem da Lei”, no entanto, o cantor utiliza-se do termo “Lei”, em letra maiúscula,
provavelmente, para ironizar o presidente, ao mesmo tempo que pregava os preceitos da
Sociedade Alternativa, fundada por ele próprio, que era uma comunidade de inversão de
valores, sem regras e repressões. Foi através dessa Sociedade Alternativa que Raul Seixas foi
chamado, pelos militares, a prestar depoimentos sob suspeita de ser um movimento
revolucionário contra o governo, motivo pelo qual o cantor teria sido banido do país.
40
Nos versos “Não tenho pressa, tenho muita paciência/Na esquina da
falência/que eu te pego pelo pé” (Rockixe, 1973), o cantor faz referência ao “Milagre
Econômico” do governo Médici, pois como já dito, foi um milagre ilusório em que o Brasil
fracassava, entrava em crise pelo aumento da dívida externa que crescia bem mais de três
vezes, conforme podemos notar a partir da expressão “esquina da falência”.
Enfim, a partir do que se expôs, é possível verificar que três letras de músicas,
que compõem o corpus do nosso trabalho, fazem menção às questões históricas e
acontecimentos do governo Médici. A saber: Mosca na sopa (1973), Sociedade Alternativa
(1974) e Rockixe (1973), conforme os exemplos acima citados.
b) O governo Geisel (1974–1979)
Conforme Fausto (2002) foi no governo de Geisel que se iniciou a abertura
política a qual foi definida por ele como lenta, gradual e segura. Fausto afirma que
na prática da liberalização do regime, chamada a princípio de distensão, seguiu um
caminho difícil, cheio de pequenos avanços e recuos, pois de um lado, Geisel sofria
pressões da linha dura; de outro, desejava controlar a abertura, no caminho de uma
indefinida democracia conservadora, evitando que a oposição chegasse muito cedo
ao poder. (2002, p. 270)
Em 1973 a oposição começava a se fortalecer, principalmente com o apoio da
Igreja Católica e do Estado que também era muito desgastante para o governo. A equipe de
transição de Geisel tentou um acordo com a Igreja que lutava contra a tortura, porém a
oposição e a Igreja não eram as categorias mais indicadas para a prática da distensão e as
Forças Armadas e o poder é que assumiram essa função. O poder fora tomado pelos órgãos de
repressão que gerou reflexos negativos na hierarquia das Forças e, para restaurá-la, foi preciso
promover a volta dos militares aos quartéis para suavizar a repressão.
Em 1975, Geisel combinou medidas liberalizantes com medidas repressivas e
embora tivesse terminado a guerrilha, os militares de linha dura continuavam com a prática da
tortura seguida do “desaparecimento” de várias pessoas assassinadas pela repressão como foi
o caso do jornalista Vladimir Herzog e do metalúrgico Manoel Fiel Filho, convidados a
comparecerem no DOI-CODI para prestarem depoimentos. Eles foram mortos e a versão
oficial era de suicídio por enforcamento. O fato provocou grande indignação em São Paulo e,
41
em 1976, Geisel resolveu agir e pôs um fim nas torturas provenientes do DOI-CODI. Apesar
disso, a violência em São Paulo continuou.
De acordo com Vieira (1985), desde 1974, não se podia celebrar os sucessos
do “Milagre Econômico” e, para tentar combater a crise economia do país, Geisel divulgou a
teoria da “distensão”. Vieira afirma que
para o presidente, a distensão, entendida como diminuição da pressão, seria feita em
várias etapas: suspensão parcial da censura prévia, estabelecimento de limites para o
exercício de direitos humanos, reformas eleitorais para melhorar o nível de
representação política (1985, p. 42)
A preocupação do presidente Geisel fez com que ele criasse reformas no país,
porém acabou criando medidas que reprimiam a população brasileira e continuou espalhando
insegurança às pessoas.
O presidente pensava em transformar o Brasil em potência mundial, porém as
condições sociais pioraram e na mais havia esperança de equilibrar a economia brasileira. O
interessante é que a abertura política se deu no governo de Geisel e, ao fim do seu governo, as
pessoas tinham conquistado o direito de habeas-corpus para o que se considerava crime
político, o direito de não ser preso sem acusação ou ordem judicial e os juízes conquistaram o
direito de julgar sem passar por maiores pressões. No entanto, a crise econômica aumentava
cada vez mais. Essas informações vêm a calhar com as palavras de Raul Seixas “Que o mel é
doce, é coisa de que me nego a afirmar, mas que parece doce, eu afirmo plenamente”.
Mediante tudo o que foi exposto sobre o governo do presidente Geisel,
podemos observar que Raul Seixas também faz referências a acontecimentos que se deram
nesse governo em suas canções. No intuito de driblar a censura, vemos que Seixas alerta o
interlocutor a agir com muita cautela mediante as ameaças e punições do governo opressor
como vemos nos versos: Conserve o seu medo/Mantenha ele aceso/Se você não teme/Se
você não ama/Vai acabar cedo(Conserve o seu medo, 1979). A expressão “conserve O seu
medo” revela que o cantor tenta alertar o interlocutor quantos aos perigos que tal governo
representava e que poderia levá-lo até a morte como observamos na expressão metafórica “vai
acabar cedo” que significa “morrer cedo”.
Essas considerações também podem ser vistas nos versos “Se eu vejo um papel
qualquer no chão/Tremo, corro e apanho pra esconder/Medo de ter sido uma anotação que
eu fiz/Que não se possa ler/E eu gosto de escrever, mas.../Mas eu sinto medo!/Eu sinto
42
medo!” (Paranóia, 1975). A presença do medo do eu-lírico no momento em que ele escreve,
a partir preocupação com as punições que poderia sofrer pelas autoridades ditatoriais caso
suas anotações fossem algo que conspirassem contra o governo é marcada especialmente
pelos verbos “tremo”, “corro”, “esconder” e pelo substantivo “medo”.
Como mencionamos, no governo de Geisel, além de a crise econômica ter
disparado, houve a abertura política que, de certa forma, direcionava a uma mudança no
governo com uma possível falência do sistema de governo opressor. É o que observamos nos
versos O sol da noite agora está nascendo/Alguma coisa está acontecendo/Não no rádio
nem está/Nas bancas de jornais” (Novo Aeon, 1975). A expressão “O sol da noite”, em sentido
metafórico, representa a esperança que nasce em meio às repressões, o surgimento de uma
nova geração contestadora que luta por um governo melhor, pois sabemos que nesse governo
as pessoas haviam conquistado alguns direitos como por exemplo, o habeas-corpus e o
direito de não ser preso sem provas concretas; apesar de que a censura e as repressões ainda se
faziam presentes como podemos observar em: “Não no rádio nem está/Nas bancas de
jornais”.
A partir dessas considerações notamos que as canções que fazem parte do
corpus do nosso trabalho: Conserve o seu medo (1979), Paranóia (1975) e Novo Aeon (1975)
aludem ao momento histórico do governo Geisel.
c) O governo Figueiredo (1979–1985)
Fausto (2002) afirma que no governo de Figueiredo as metas estariam
relacionadas à ampliação da abertura política e ao aprofundamento da crise econômica. Nesse
governo, a Lei da Anistia foi aprovada pelo Congresso em 1979.
De acordo com Vieira:
a Anistia de 1979 não foi concedida a quem participou da luta armada, tendo
praticado “crimes de sangue”. Os militares punidos não puderam reassumir seus
cargos, embora lhes fosse concedida aposentadoria, com pagamento integral. Os
funcionários públicos de natureza civil retomaram seus cargos depois de terem
suas situações analisadas por comissão especial. A lei da anistia permitiu a volta dos
exilados ao Brasil, devolvendo-lhes o direito político. No entanto, essa lei acabou
também beneficiando os responsáveis por abusos praticados contra pessoas,
incluindo quem praticou tortura (1985, p. 55).
43
Uma série de atos criminosos e terroristas culminava como, por exemplo,
explosões de bombas por militares radicais que não aceitavam a lei da anistia que promoveria
o fim da ditadura. Na área econômica a crise não foi enfrentada e os índices de inflação
aumentaram violentamente.
De acordo com o referido autor, foi o governo de Figueiredo que deu início à
campanha pelas “Diretas-Já!”, que era uma proposta de realizar-se eleição direta de imediato,
para os cargos de presidente e vice-presidente da repúlica, por meio do voto popular, que
transformou-se em verdadeiro anelo dos brasileiros. Em 25 de abril de 1984, a emenda
constitucional que previa eleições diretas-já para a presidência da república foi rejeitada pela
Câmara dos Deputados. Ainda em junho de 1984, parte expressiva da população brasileira se
manifestava em prol das eleições diretas-já para a indicação da presidência da república, no
entanto houve a eleição indireta, feita pelo colégio eleitoral.
A partir dessas considerações sobre o governo de Figueiredo, podemos notar
que, apesar da aprovação da Lei da Anistia que findaria a ditadura militar, esse governo
também foi marcado por conflitos e resistência da oposição, principalmente dos militares
radicais que praticavam o terrorismo e perseguiam os intelecutais da época em questão. Isso
pode ser observado nos versos “Três outros chegaram com pistolas na mão/Um gritou: Mão
na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos/ Eu disse: Claro, pois não,
mas o que é que eu fiz?/Se é documento eu tenho aqui.../Outro disse: Não interessa, pouco
importa, fique aí/Eu quero é saber o que você estava pensando” (Metrô linha 743, 1984).
Notamos a presença de uma autoridade (policial) a partir da expressão “pistolas na mão”,
dando ordem a um cidadão para que permanecesse no local em que se encontrava e explicasse
o que estava pensando, pois se o pensamento fosse algo que conspirasse contra o governo, ele
poderia sofrer graves punições. Percebemos que Seixas, de maneira implícita, revela os
crimes cometidos pelas autoridades governamentais e suas perseguições aos intelectuais da
época tais como: professores, artistas, músicos, repórteres, dentre outros, considerados uma
ameaça ao governo ditatorial, pela anunciação das reformas e denúncia dos crimes.
Essas observações também podem ser vistas em “Plunct, Plact, Zum/Não vai a
lugar nenhum!/Tem que ser selado, registrado, carimbado/Avaliado, rotulado se quiser
voar!/Se quiser voar...” (Carimbador Maluco). A expressão Plunct, Plact, Zum representa um
avião e o trânsito aéreo era permitido após uma prévia avaliação do governo que poderia
ou não autorizar a decolagem do indivíduo como podemos notar através do emprego dos
44
termos “selado”, “registrado”, “carimbado”, “avaliado”, “rotulado” e do emprego do advérbio
de negação “não”, na expressão “Plunct, Plact, Zum/Não vai a lugar nenhum!”
Mediante ao exposto, verificamos que as canções do nosso corpus,
Carimbador Maluco (1983) e Metrô linha 743 (1984), se referem aos acontecimentos
históricos do governo Figueiredo.
Passemos, agora, ao gênero letra de música, outro capítulo de nosso trabalho.
45
4 O GÊNERO LETRA DE MÚSICA
4.1 GÊNERO DE TEXTO
Toda forma de comunicação verbal, segundo Bakhtin (2000), se manifesta
através de um gênero que está vinculado ao contexto histórico, social e cultural. Por meio dos
gêneros, das práticas comunicativas, organizamos as atividades comunicativas do nosso
cotidiano.
Após a publicação dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), os quais
propõem uma mudança na educação por enfatizarem a diversidade de textos e de gêneros, a
preocupação com o gênero, que já era antiga, tornou-se ainda mais intensificada. Atualmente,
os estudos apontam para debates e pontos-de-vista diversos entre pesquisadores de várias
áreas em que muitos optam pelo termo gênero de texto e outros por gênero do discurso.
É o que observamos a partir do que afirma Meurer, Bonini e Motta-Roth
(2005). Segundo esses estudiosos, o gênero se encontra entre a língua, o discurso e as
estruturas sociais e sua terminologia é muito diversa, por esse motivo, surgem diferentes
teorias que promovem um diálogo entre pesquisadores que adotam o conceito gênero de texto
e outros que adotam o conceito gênero do discurso. Esses autores optam por demonstrar os
conceitos de três abordagens teóricas: as sócio-semióticas, as sócio-retóricas e as sócio-
discursivas. No entanto, ressaltam que todas elas retratam a noção de gênero como ação
social, ou seja, ligam-se mais ao caráter social da linguagem do que ao estrutural.
A fim de demonstrar a variedade de posicionamento acerca do assunto,
apresentamos, a seguir, algumas considerações de acordo com diferentes autores.
Para Bakhtin (2000, p. 279), “os gêneros são, pois, tipos de enunciados
relativamente estáveis, caracterizados por um conteúdo temático, uma construção
composicional e um estilo”. Assim, falamos sempre por meio de gêneros no interior de uma
dada esfera de atividade. Para o autor, o enunciado se constrói pelo conteúdo temático
(domínio de sentido de que se ocupa o gênero), estilo (seleção de meios lingüísticos),
46
organização composicional (modo de organizar o texto, de estruturá-lo) e é marcado por
esferas de ação tais como as da escola, as da igreja, as da política, as das relações de amizades
e assim por diante.
O autor ainda divide os gêneros em primários e secundários. Os primários são
gêneros da vida cotidiana, pertencentes à comunicação verbal espontânea em um contexto
mais imediato como a piada, bate-papo e outros. os secundários pertencem à esfera da
comunicação cultural mais elaborada como a jornalística, a jurídica, política, dentre outras.
Em suma, o gênero é relativamente estável e não fixo.
Como os gêneros se relacionam com contexto histórico, social e cultural,
segundo Bakhtin (2000), notamos que eles não podem desaparecer com o passar do tempo
como também podem aparecer. Observamos que eles podem diferenciar-se e ganhar um novo
sentido, como é o caso dos e-mails que, atualmente, têm substituído as cartas e telegramas.
De acordo com Marcuschi (2005), na perspectiva da lingüística textual, o autor
opta pela terminologia gênero de texto e considera que, atualmente, as teorias do gênero que
focam a forma pronta e acabada ou a estrutura estão em crise, pois, assim como a linguagem,
o gênero é flexível e variável. A tendência, desse modo, é observar os gêneros pelo lado
dinâmico, processual, social, interativo, cognitivo, evitando a classificação e postura
estrutural. Para o autor, o gênero é mais que uma forma, é uma ação social tipificada que,
mediante determinadas situações, faz com que ele se torne reconhecível. Os gêneros estão
relacionados às práticas sociais, à cultura, aos aspectos cognitivos, interesses, tecnologias,
relações de poder e atividades discursivas. Por esse motivo, não são estáticos e nem puros e
fundem-se, misturam-se, mudam e são flexíveis.
Para esse autor, “todas as manifestações verbais se dão como textos e não
como elementos lingüísticos isolados” (MARCUSCHI, 2005, p. 25), isso implica que todo
gênero se concretiza dentro de um texto. Texto pode ser considerado como toda manifestação
verbal praticada por um indivíduo através da fala ou da escrita. Eles são enunciados que não
são atos isolados nem na oralidade e nem na escrita e são marcados pelas instituições e ações
sociais.
O autor ainda observa que os gêneros circulam na sociedade e ajudam a
estruturar toda a ação de uma comunidade e fazem toda a intermediação das práticas sociais e,
mesmo que o indivíduo seja analfabeto ou de baixo letramento, ele tem uma relação com os
gêneros escritos como se fosse uma relação de dominação. Isso pode ser notado através de
exemplos simples tais como listas de compra e anotação de vendas, através dos gêneros que
47
organizam as ações religiosas e profanas tais como: reza, canto, benditos, ensaio, novena,
missa, procissão; dos gêneros recorrentes no dia-a-dia regulados por papéis de circulação tais
como consulta, escritura de casa, cadastro, conta de luz, conta de água; gêneros que circulam
na família como listas de dívidas a pagar, título de eleitor, receitas culinárias, bula de
remédio, dentre outros.
Para Bronckart (1999, p. 137), cuja perspectiva teórica é o interacionismo
sociodiscursivo:
os textos são produtos da atividade de linguagem em funcionamento permanente nas
formações sociais: em função de seus objetivos, interesses e questões específicas,
essas formações elaboram diferentes espécies de textos, que apresentam
características relativamente estáveis (justificando-se que sejam chamados de
gêneros de textos) e que ficam disponíveis no intertexto como modelos indexados,
para os contemporâneos e para as gerações posteriores.
A partir de todas essas considerações, podemos dizer que os gêneros são
fenômenos culturais, que nascem a partir da necessidade comunicativa de um grupo. É,
portanto, na prática social que os indivíduos organizam sua comunicação, de maneira a
facilitar seu discurso mediante a função a que se propõem. Desse modo, tanto podem ocorrer
transformações em um gênero existente em nossa cultura, como pode surgir um novo
gênero mediante as necessidades de interação.
Segundo os estudiosos, o gênero pode ser inovador, mas não novo, como
podemos perceber com relação ao telegrama, por exemplo, que, com o avanço da tecnologia,
está sendo substituído por mensagens instantâneas via internet (programas de “bate-papo”,
como MSN, Skype, e-mails, entre outros). Contudo, está sempre aberto a mudanças, visto que
o mundo está sempre em um processo de transformação e evolução, conforme menciona
Bronckart (1999, p. 38):
os neros mudam com o passar do tempo sendo impossível classificá-los como
estáveis ou definitivos, visto que tal classificação não pode se basear no único
critério facilmente objetivável, a saber, nas unidades lingüísticas que neles são
empiricamente observáveis. Qualquer que seja o nero a que pertençam, os textos,
de fato, são constituídos, segundo modalidades muito variáveis, por segmentos de
estatutos diferentes (segmentos de exposição teórica, de relato, de diálogo, etc.). E é
unicamente no nível desses segmentos que podem ser identificados regularidades de
organização e de marcação lingüísticas.
48
De acordo com o que foi exposto, notamos, junto com Meurer, Bonini e Motta-
Roth (2005), que a discussão sobre gênero a partir de diferentes abordagens teóricas tende a
ser bastante rica, visto que se trata mais de um diálogo entre pesquisadores.
O nosso estudo, no entanto, baseia-se especialmente nas considerações
Bronckart (1999) e Carmelino (2006), autores que optam pela terminologia gênero de texto e
levam em conta para caracterizar os gêneros elementos como: conteúdo temático; contexto de
produção, que abrange tanto o contexto físico como o sócio-subjetivo; e a composição, que
engloba a infra-estrutura geral do texto, os mecanismos de textualização e os mecanismos
enunciativos.
A seguir apresentamos o modelo de análise de gênero proposto por Bronckart
(1999) e comentado por Carmelino (2006).
4.2 O MODELO DE ANÁLISE DE GÊNERO PROPOSTO POR BRONCKART (1999)
Quanto às concepções de Bronckart (1999), convém esclarecer que o autor não
toma os gêneros como unidade de análise, mas as ações verbais (agir verbal) e não-verbais
(agir geral). Assim, suas propostas e conceitos se voltam para um modelo de análise de textos
e não de gêneros, mas que, conforme veremos, pode ser perfeitamente útil para a análise e
caracterização de diferentes gêneros.
O seu modelo pode ser resumido nos seguintes elementos: conteúdo temático,
contexto de produção e organização interna do texto, ou seja, a arquitetura textual. Esta
abrange a infra-estrutura geral do texto, os mecanismos de textualização e os mecanismos
enunciativos.
Segundo Bronckart (1999), o conteúdo temático se refere ao conjunto de
informações visíveis em um texto, as quais variam em função das experiências e
conhecimentos de mundo armazenados na memória do agente-produtor, anteriores à
manifestação da linguagem.
O contexto de produção diz respeito ao conjunto de todos os parâmetros que
contribuem para a organização do texto. Tais parâmetros se referem ao mundo físico, e ao
mundo sócio-subjetivo.
Conforme Bronckart (1999, p. 94):
49
a produção de todo texto inscreve-se no quadro das atividades de uma formação
social e, mais precisamente, no quadro de uma forma de interação comunicativa que
implica o mundo social (normas, valores, regras, etc.) e o mundo subjetivo (imagem
que o agente dá de si ao agir)
O autor (1999, p. 93) ressalta ainda que “todo texto resulta de um
comportamento verbal concreto, desenvolvido por um agente situado nas coordenadas do
espaço e do tempo; portanto, todo texto resulta de um ato realizado em um contexto físico”.
O contexto físico se refere ao lugar de produção (lugar onde se produz o texto);
ao momento de produção (tempo gasto para se produzir o texto); ao emissor (produtor ou
locutor), ao receptor [indivíduo(s) que recebem o texto].
O contexto sócio-subjetivo pode ser definido como o lugar social (instituição
em que foi produzido o texto: imprensa, universidade, empresa, etc.); a posição social do
emissor (a função que ele exerce, como por exemplo, a de cantor, professor, jornalista); a
posição social do receptor (papel social do receptor, como o de público, aluno, leitor); e o(s)
objetivo(s) da interação (ponto de vista do enunciador e o(s) efeito(s) que o texto produz no
destinatário).
Tratemos agora da composição ou organização textual que Bronckart (1999, p.
119) concebe como “a organização de um texto como um folhado constituído por três
camadas superpostas: a infra-estrutura geral do texto, os mecanismos de textualização e os
mecanismos enunciativos”.
De acordo com Bronckart (1999), a infra-estrutura se constitui em plano geral
do texto, tipos de discurso e pelas seqüências textuais que nele se apresentam.
Com relação ao plano geral do texto, podemos dizer que se trata da
organização do conjunto do conteúdo temático nítido no decurso da leitura e identificado em
um resumo.
A noção de tipo de discurso se refere aos diferentes segmentos que o texto
comporta. Segundo Bronckart (1999) e Carmelino (2006), para classificar os diferentes tipos
de discurso, faz-se necessário intervir duas decisões binárias: a de conjunção-disjunção
[quando o conteúdo temático é simultâneo ao momento de produção do agente (ordem de
narrar) ou não (ordem de expor)]; e a de implicação-autonomia (quando ocorre ou não a
explicitação do agente-produtor, interlocutor e situação de espaço-tempo). O cruzamento de
tais decisões denomina-se mundos discursivos, os quais se dividem, pelas considerações feitas
50
anteriormente, em: narrar implicado, narrar autônomo, expor implicado e expor autônomo.
Bronckart (1999) subdivide em quatro os tipos de discurso:
(i) Discurso interativo:
apresentado sob forma de diálogo ou monólogo;
estabelece a presença de unidades referentes à própria interação verbal e ao caráter
conjunto-implicado do mundo discursivo criado;
apresenta tempos verbais que comprometem os participantes da interação e os
conteúdos verbalizados simultâneos ao momento da produção (presente, pretérito
perfeito do indicativo e futuro perifrástico);
apresenta dêiticos temporais e espaciais; formas verbais, nomes, adjetivos e pronomes
que remetem à e pessoa do singular ou plural; e auxiliares de modo; e frases não
declarativas (interrogativas, imperativas, exclamativas).
(ii) Discurso teórico:
apresenta-se monologado e escrito;
estabelece a presença de unidades referentes ao caráter conjunto-autônomo do mundo
discursivo criado;
apresenta verbos no presente e pretérito perfeito do indicativo, formas verbais na
pessoa do plural; organizadores gico-argumentativos; modalizações lógicas; e frases
declarativas e passivas, e procedimentos metatextuais (aspas, travessões, itálico), de
referência intertextual.
(iii) Discurso relato interativo:
apresenta-se monologado em uma situação de interação;
estabelece a presença de unidades referentes ao caráter disjunto-implicado do mundo
discursivo criado;
apresenta verbos no pretérito perfeito e imperfeito do indicativo (ligados ao mais-que-
perfeito, futuro do presente e futuro do pretérito); e organizadores temporais, adjetivos
e pronomes que remetem à 1ª e à 2ª pessoa do singular ou plural e frases declarativas.
(iv) Discurso narração:
apresenta-se monologado;
estabelece a presença de unidades referentes ao caráter disjunto-autônomo do mundo
51
discursivo criado;
apresenta verbos no pretérito perfeito e imperfeito do indicativo (ligados ao mais-que-
perfeito e futuro do pretérito); e organizadores espaço-temporais e frases declarativas.
As articulações entre tipos de discurso ocorrem num processo de dependência
de um segmento em relação a outro, como também num processo de fusão, em um mesmo
segmento, de dois tipos de discursos diferentes.
A noção de seqüência seria os modos de planificação de linguagem que se
desenvolvem no interior do plano geral de texto. Os tipos de seqüências são seis:
a) narrativa, na qual ocorre a presença de uma intriga que se mantém e as personagens estão
inseridas em um acontecimento organizado e consecutivo. Prevalecem várias fases: situação
inicial, complicação, ações desencadeadas, resoluções, situação final, avaliação e moral;
b) descritiva, em que predomina fases que se combinam e se encaixam de forma não,
necessariamente, ordenada. Salientemos a ancoragem (tema-título no início); aspectualização
(enumeração de vários aspectos do tema-título); relacionamento (elementos descritos
associados a outros pela comparação ou metáfora) e reformulação;
c) explicativa, em que se constata um fenômeno incontestável por meio das fases: constatação
inicial, problematização, resolução, e conclusão-avaliação;
d) argumentativa, que se apresenta sob forma de persuasão e convencimento do produtor, de
seu posicionamento, para com o destinatário. Suas fases: premissas (constatação de partida);
argumentos (exemplos, regras que direcionam para a conclusão); contra-argumentos
(limitação à orientação argumentativa) e conclusão (integração dos argumentos e contra-
argumentos);
e) injuntiva, que induz o destinatário a agir de determinado modo ou em certa direção.
Manifesta-se sob a forma de enumeração de ações temporalmente subseqüentes; e
f) dialogal, em que os actantes se interagem em um processo de conversação. Suas fases
podem ser: abertura (inicia-se um contato entre os interactantes), transacional (o conteúdo
temático se constrói através da interação verbal) e encerramento (fim da interação).
52
Quanto aos os mecanismos de textualização, notamos a partir de Bronckart
(1999), que são constituídos pelos mecanismos de conexão, coesão nominal e coesão verbal.
No que se refere aos mecanismos de conexão, verificamos que eles contribuem
para marcar as articulações da progressão temática através dos organizadores textuais que se
adéquam ao plano geral do texto. Os mecanismos de coesão nominal introduzem temas e/ou
personagens novos, garantindo sua retomada ou substituição na propagação e andamento do
texto; são realizados a partir de unidades e estruturas anafóricas (pronomes pessoais, relativos,
demonstrativos e possessivos, e também alguns sintagmas nominais). Já os mecanismos de
coesão verbal mantêm a organização temporal e/ou hierárquica dos processos verbalizados no
texto (estados, acontecimentos ou ações); manifestam-se através dos tempos verbais, como
também com outras unidades de caráter temporal (advérbios); relacionam-se com os tipos de
discurso ocorrentes.
Em se tratando dos mecanismos enunciativos, vemos que eles são constituídos
por posicionamentos enunciativos e vozes que se referem, respectivamente, às instâncias
que assumem o que é enunciado no texto e as vozes que ali se expressam, sejam elas do autor
principal, das personagens ou vozes sociais (instituições) e pelas modalizações, que nos
revelam os julgamentos, opiniões, avaliações e sentimentos relacionados ao conteúdo
temático
As modalizações, segundo Bronckart (1999) podem ser gicas (julgamento
com valor de verdades certas, possíveis, prováveis, improváveis); deônticas (julgamento
com valores sociais fatos permitidos, proibidos, necessários); apreciativas (julgamento
subjetivo fatos bons, maus, estranhos); e pragmáticas (julgamento da capacidade de ação,
intenção e razão, sendo a personagem, responsável por tal ato).
Carmelino (2002), que se baseia nos pressupostos de Dik (1989), subdivide os
tipos de modalidade em: modalidade epistêmica, que parte da certeza até os limites da
possibilidade (certo – provável – possível – improvável – impossível – não certeza); e
modalidade deôntica, que se situa no domínio do dever, variando da obrigação à permissão, e
se liga à expressão da volição e ordem (obrigatório aceitável permissível inaceitável
proibido + ordem e volição).
Essa autora ainda ressalta que os valores que compõem a escala da modalidade
epistêmica, acrescenta-se a não-certeza, valor que marca o extremo da certeza, e é expresso
por modalizadores que indicam opinião, crença e aparência.
Em suma, podemos dizer que, para Carmelino (2006), a manifestação da
53
linguagem se por meio de um gênero, quando um agente-produtor enuncia um conteúdo
temático de um determinado contexto (físico e sócio-subjetivo), organizando sua produção.
4.3 CARACTERIZAÇÃO DO GÊNERO LETRA DE MÚSICA
Para caracterizar o gênero letra de música, baseamo-nos na metodologia de
análise proposta por Bronckart (1999) e Carmelino (2006), abordada anteriormente e, para tal
caracterização, tomamos como exemplo, algumas letras de músicas de Raul Seixas.
Comecemos nossa análise conceituando, de um modo geral, a palavra música
que vem a ser, segundo Houaiss (2001), a arte de se exprimir por meio de sons, seguindo
regras variáveis conforme a época, a civilização, etc. (a música é uma das manifestações mais
autênticas de uma cultura)”. As letras de músicas se aproximam muito das poesias, pois
manifestam sentimentos, emoções, pensamentos e podem ser lidos sem a melodia.
De acordo com Cícero (2007), que escreve poemas e letras de canções, a
expressão “letra de canção” indica de que modo essa questão deve ser entendida, pois a
palavra “letra” remete à escrita. A verdadeira questão parece ser se uma letra de canção é
necessariamente um bom poema ou se uma letra de canção é possivelmente um bom poema.
Segundo ele, nenhum poema é necessariamente um bom poema; nenhum texto é
necessariamente um bom poema; logo, nenhuma letra é necessariamente um bom poema,
pois, conforme Tatit (1996), em seu livro O Cancionista
3
, no mundo dos cancionistas não
importa tanto o que é dito, mas a maneira de o dizer, e a maneira é essencialmente melódica, e
é por isso que podemos perfeitamente apreciar cantores a cantar canções em línguas que não
entendemos. Assim, uma boa letra de canção não é necessariamente um bom poema. Uma
letra de canção é possivelmente um bom poema. Os poemas ricos da Grécia antiga e dos
provençais eram letras de canções. Perderam-se as músicas que os acompanhavam, de modo
que os conhecemos na forma escrita. Para o referido autor, nada impede que um bom
poema, quando musicado, se torne uma boa letra de canção.
Cícero (2007) conceitua poema como um objeto autotélico, isto é, ele tem o
seu fim em si próprio. O poema se realiza quando é lido tanto em voz baixa, interna ou aural.
3
TATIT, L. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.
54
uma letra de canção é heterotélica, isto é, ela não tem o seu fim em si própria. Se uma letra
de canção sevir para fazer uma boa canção, ela é boa, ainda que seja ilegível. E a letra pode
ser ilegível porque, para se estruturar, para adquirir determinado colorido, para ter os sons ou
as palavras certas enfatizadas, ela depende da melodia, da harmonia, do ritmo, do tom da
música à qual se encontra associada.
Segundo o referido autor, a letra se realiza na canção, mas a canção se
realiza plenamente quando interpretada, isto é, quando cantada e escutada.
Enfim, podemos dizer que as letras buscam, muitas vezes, seduzir, despertar
sentimentos, emoções, paixões. É a arte de se fazer apreciar, tal como as poesias, podendo
também ampliar o nosso universo cultural. Além disso, a música é um gênero sincrético, pois
aglutina fala e contexto; letra e melodia.
O estilo da grande maioria das músicas do cantor contemplado em nosso
trabalho, Raul Seixas, é o rock-and-roll (rock-‘n’-roll), “música popular usualmente executada
em instrumentos amplificados eletronicamente e caracterizada por um ritmo muito marcado e
persistente, pela repetição de frases simples e freqüentemente pela presença de elementos dos
gêneros country, folk e blues.” (Dicionário HOUAISS, 2001).
Após essas considerações gerais, passemos à caracterização, segundo os
pressupostos anteriormente expostos, do nero letra de música, mais precisamente a partir
das letras de Raul Seixas, para verificarmos não as suas peculiaridades, mas também se
existe uma padronização em sua configuração.
No que diz respeito ao conteúdo temático, verificamos que nas letras de
músicas de Raul os temas mais explorados são: religião, esoterismo e política. Como
podemos observar nos versos das músicas que seguem.
Religião:
Conversa pra boi dormir (1980)
“João Batista batizou Jesus
De água e sal e o sinal da cruz
Com a profecia que já estava esquecida
Para que o seu povo encontrasse a luz”
D.D.I. – Discagem Direta Interestelar (1983)
55
“Alô aqui é do céu
Quem está na linha é Deus
Estou vendo tudo esquisito
O que é que há com vocês?”
As profecias (1979)
“Sem fogo, sem sangue, sem ais
O mundo dos nossos ancestrais
Acabam sem guerra, os mortais
Sem glórias de mártir ferido
Sem o estrondo, mas com gemido
Está em qualquer profecia
Que o mundo se acaba um dia
Um dia”
S.O.S. (1974)
Andei rezando para totens e Jesus
Jamais olhei pro céu
Meu disco voador além”
O trem das sete (1974)
“Vê, é o sinal, é o sinal das trombetas, dos anjos e dos guardiões
Ó, lá vem Deus, deslizando no céu entre brumas de mil megatons”
Um messias indeciso (1984)
“E acreditando em si mesmo
Tornou-se o mais sábio entre os seus
E o povo pedindo milagres
Chamava este homem de Deus
Esoterismo:
56
Sociedade Alternativa (1974)
"-O número 666
Chama-se Aleister Crowley"
"-A Lei de Thelema
Viva! Viva!”
Gita (1974)
“Eu sou o seu sacrifício
A placa de contramão
O sangue no olhar do vampiro
E as juras de maldição”
Novo Aeon (1975)
“Ao som da flauta
Da mãe serpente
No para-inferno
De Adão na gente
Dança o bebê
Uma dança bem diferente”
Caminhos (1975)
“O caminho do bruxo é a nuvem,
O da nuvem é o espaço,
O da luz é o túnel,
O caminho da fera é o laço”
Canceriano sem lar (1987)
“Eu sou um canceriano sem lar
Eu tomo café pra mim não chorar
Pergunto à nuvem preta quando o sol vai brilhar”
Política (que critica a repressão e as regras impostas pelo governo ditatorial):
57
Rockixe (1973)
Eu tinha medo do seu medo
Do que eu faço
Medo de cair no laço
Que você preparou
Eu tinha medo de ter que dormir mais cedo
Numa cama que eu não gosto só porque você mandou...”
Metrô linha 743 (1984)
“O homem apressado me deixou e saiu voando
Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando
Três outros chegaram com pistolas na mão
Um gritou: Mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos”
Paranóia (1975)
“Se eu vejo um papel qualquer no chão
Tremo, corro e apanho pra esconder
Medo de ter sido uma anotação que eu fiz
Que não se possa ler
E eu gosto de escrever, mas...
Mas eu sinto medo!”
Convém esclarecer que, por causa da diversidade de temas abordados por Raul
Seixas em suas canções, o conteúdo temático a ser explorado nas letras de músicas escolhidas
como corpus deste trabalho é “o drible à censura”.
Esse tema pode ser observado a partir dos exemplos de versos das letras de
músicas Rockixe, Metrô linha 743 e Paranóia, mencionadas acima.
Em relação aos versos da letra Rockixe, vemos que a expressão “dormir mais
cedo”, sugere o toque de recolher da época ditatorial em que os militares proibiam os
cidadãos de permanecerem fora de suas casas após as vinte e duas horas. No entanto, apesar
de explícita a referida expressão, será possível, ao leitor, reconhecer o conteúdo temático
“o drible à censura”, se ele tiver estocado em sua memória conhecimentos sobre a questão
histórica, social e cultural da época em que a música foi lançada.
58
Nos versos da letra Paranóia, o compositor revela o medo de escrever, ou seja,
o medo de se manifestar, de protestar contra o sistema de governo ditatorial, vistos a partir do
emprego explícito dos verbos “tremo”, “corro”, “esconder” e do substantivo “medo”.
Em Metrô Linha 743, notamos a presença de uma autoridade (policial) dando
ordem a um cidadão para que permanecesse no local em que se encontrava e explicasse o que
estava pensando, pois se o pensamento fosse algo que conspirasse contra o governo, ele
poderia sofrer graves punições. Percebemos que Seixas, de maneira ora implícita ora
explícita, revela os crimes cometidos pelas autoridades governamentais e suas perseguições
aos intelectuais da época tais como: professores, artistas, músicos, repórteres, dentre outros,
considerados uma ameaça ao governo ditatorial, pela anunciação das reformas e denúncia dos
crimes.
Tratemos agora do contexto de produção do gênero em análise, que segundo
Bronckart (1999) diz respeito ao aspecto físico e sócio-subjetivo da ação de linguagem.
Dos elementos que compõem o contexto físico, mencionado por Bronckart, é
possível, em relação ao corpus analisado, identificar a pessoa que produz fisicamente as
letras, no caso Raul Seixas, e a pessoa que recebe concretamente as letras, que são os seus
ouvintes. O tempo físico diz respeito à época em que tais músicas foram compostas, ou seja,
no período de 1973 a 1984 e o lugar físico em que as letras foram produzidas por Raul é o
Brasil.
Quanto ao contexto sócio-subjetivo, observamos que o lugar social de
divulgação das letras é a mídia (a qual compreende as emissoras de rádio, televisão e shows) e
o tempo social é a época da ditadura militar. A posição social do emissor é a de compositor
(eu lírico, ídolo) e o papel social dos receptores é o de ouvintes-fãs e autoridades
4
. Quanto ao
objetivo das composições, podemos dizer que as letras de músicas que versam sobre a censura
procuravam revelar uma visão política e crítica contra a forma de governo opressora e
ditadora da época.
Em relação ao plano geral do gênero, que se resume na infra-estrutura geral das
letras, nos tipos de discurso e tipos de seqüências presentes, verificamos que as letras de
músicas se assemelham ao gênero poesia, uma vez que apresentam versos e estrofes. Como já
dissemos, de acordo com Cícero (2007), que escreve poemas e letras de canções, a expressão
“letra de canção” indica de que modo essa questão deve ser entendida, pois a palavra
4
As autoridades se referem aos policiais e à imprensa
59
“letra” remete à escrita. A verdadeira questão parece ser se uma letra de canção é
necessariamente um bom poema ou se uma letra de canção é possivelmente um bom poema.
No caso das letras de músicas de Raul Seixas em análise, consideramo-nas
bom poema. Essa consideração pode ser confirmada a partir dos versos de uma das letras de
música de nossa análise, Novo Aeon(1975), a saber: “O vento voa e varre as velhas ruas/
Capim silvestre racha as pedras nuas”. Além da metáfora, vemos que os versos apresentam
aliteração e paradoxo, figuras que muitas vezes caracterizam poema. A partir dessas
considerações observamos, através desse e de outros exemplos das letras de músicas que
serão analisadas em nosso trabalho, que elas não foram feitas somente para serem cantadas,
mas interpretadas.
Das letras analisadas, a maioria possui elementos constitutivos comuns, como
refrão e rima, conforme podemos notar nos versos que seguem:
Refrão:
Paranóia
“Eu estava com Deus!
Eu estava com Deus!
Eu estava com Deus!”
Rima:
Conserve o seu medo
“Conserve o seu medo
Mantenha ele aceso
Se você não teme
Se você não ama
Vai acabar cedo
Em se tratando dos tipos de discurso, observamos que nas letras analisadas o
mais freqüente é o discurso interativo (já que aparece em cinco das letras), no entanto também
aparecem o teórico e o relato interativo, conforme veremos a seguir.
60
O tipo de discurso teórico pode ser visto na letra de música intitulada Lei, uma
vez que notamos um distanciamento da situação de produção, já que há o uso de:
* tempo no presente do indicativo com valor genérico: “Todo homem tem direito de pensar o
que quiser”;
* de frases declarativas: “Todo homem tem direito de viver como quiser”;
* de modalizadores lógicos, como o modo indicativo, que indica certeza: “Todo homem tem
direito”.
No que diz respeito ao relato interativo, tomemos como exemplo a música
Metrô Linha 743, na qual observamos a presença de:
* unidades que se referem ao caráter disjunto-implicado, como a presença da 1ª e 2ª pessoa do
singular e o tempo verbal no pretérito perfeito do indicativo: Eu morri e nem sei mesmo
qual foi aquele mês”/ “Eu quero é saber o que você estava pensando”;
* verbos no pretérito imperfeito do indicativo: “Ele sabia que tava sendo vigiado”;
* frases declarativas: “Ele ia andando pela rua meio apressado”.
O tipo mais freqüente, conforme mencionamos, é o discurso interativo, já que é
o tipo que prevalece nas músicas Novo Aeon, Sociedade Alternativa, Rockixe, O Carimbador
Maluco e Conserve seu Medo. Esse tipo de discurso pode ser identificado nessas letras a partir
da presença de:
* verbos no presente do indicativo: “Um larga a fábrica, outro sai do lar” (Novo Aeon);
“Todo homem, toda mulher/ É uma estrela” (Sociedade Alternativa);
* verbos no pretérito perfeito do indicativo: Aprendi a ficar quieto e começar tudo de novo”
(Rockixe)
61
* dêiticos temporais: Agora, o Plunct, Plact, Zum/ Pode partir sem problema algum” (O
Carimbador Maluco); “Mas pro seu foguete viajar pelo universo” (O Carimbador
Maluco); “O sol da noite agora está nascendo” (Novo Aeon); não há mais culpado, nem
inocente” (Novo Aeon);
* frases não declarativas: “Vê se me entende, olha o meu sapato novo” (Rockixe); “Parem,
esperem aí” (O Carimbador Maluco); “Esteja atento” (Conserve seu Medo).
Quanto às seqüências textuais, verificamos a presença de várias delas (dialogal,
descritiva, injuntiva, narrativa) nas músicas em exame, entretanto as mais comuns são a
seqüência injuntiva e a seqüência narrativa.
A seqüência dialogal, em que os actantes estão efetivamente engajados em uma
conversação e há troca de turnos, pode ser observada em:
Um gritou: Mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos/ Eu
disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?” (Metrô Linha 743).
Quanto à seqüência descritiva, observamos a presença de elementos descritos
assimilados a outros pela metaforização nos seguintes versos:
Eu sou a mosca/ Que pousou em sua sopa” (Mosca na Sopa);
Eu sou o anjo do inferno que chegou pra lhe buscar” (Rockixe).
A seqüência injuntiva que faz com que o destinatário aja de certo modo ou em certa
direção, pode ser vista nos versos a seguir:
Conserve o seu medo/ Mantenha ele aceso” (...)
Esteja atento/Ao rumo da História/Mantenha em segredo/Mas mantenha viva/Sua
paranóia” (...)
“E ande pra frente/Olhando pro lado/Se entregue a quem ama” (Conserve o seu medo);
“Então / Faz o que tu queres/ Pois é tudo da lei” (Sociedade Alternativa);
62
No que diz respeito à seqüência narrativa, observamos que ela é sustentada por
uma intriga e mobiliza personagens em acontecimento organizado no eixo sucessivo:
“Ele ia andando pela rua meio apressado
Ele sabia que estava sendo vigiado” (Metrô Linha 743);
“Atenção, eu sou a mosca
A grande mosca
A mosca que perturba o seu sono” (Mosca na Sopa);
“O sol da noite agora está nascendo
Alguma coisa está acontecendo” (Novo Aeon);
“Se eu vejo um papel qualquer no chão
Tremo, corro e apanho pra esconder” (Paranóia).
Abordemos, agora, os mecanismos de textualização, ou seja, vejamos como as
letras são construídas em termos de conexão, coesão nominal e coesão verbal.
Com relação aos elementos de conexão, é freqüente o emprego das conjunções
“mas” e “se” nas letras de músicas de Seixas:
Se você não teme
Se você não ama
Vai acabar cedo” (Conserve o seu medo)
“Mantenha em segredo
Mas mantenha viva
Sua paranóia” (Conserve o seu medo)
Mas se eu quero e você quer”
Tomar banho de chapéu” (Sociedade Alternativa)
Mas o negócio aqui tá muito bandeira
63
Dá bandeira demais meu Deus” (Metrô Linha 743)
“E eu gosto de escrever, mas...
Mas eu sinto medo!
Eu sinto medo!” (Paranóia)
Mas eu não via Deus
Achava assombração, mas...
Mas eu tinha medo!
Eu tinha medo!” (Paranóia)
“Você é forte, faz o que deseja e quer
Mas se assusta com o que eu faço, isso eu já posso ver” (Rockixe)
“Tem que ser selado, registrado, carimbado
Avaliado, rotulado se quiser voar!
Se quiser voar...” (Carimbador Maluco)
“Pra Lua: a taxa é alta
Pro Sol: identidade,
Mas já pro seu foguete viajar pelo universo
É preciso o meu carimbo dando o sim,
Sim, sim, sim.” (Carimbador Maluco)
Mas eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou prá lhe abusar...” (Mosca na Sopa).
Como podemos verificar, a maioria das conjunções “mas” empregadas nas
letras de música em análise funciona como advertência, ou seja, o cantor busca alertar os
interlocutores a agirem com cautela perante os perigos e punições que poderiam sofrer pelo
64
governo opressor, pois na época em questão, o indivíduo não tinha liberdade de expressão e
deveria permanecer em estado de alerta como podemos observar em “E eu gosto de escrever,
mas.../Mas eu sinto medo!/ Eu sinto medo!” (Paranóia). O ato de escrever era considerado
suspeito na época em questão, pois poderia ser algo que conspirasse contra o governo.
O uso das conjunções “se” indica bem claramente a condição a que o
interlocutor estava submetido: ele poderia tomar determinadas atitudes levando-se em
conta as condições impostas pelo governo opressor, pois caso isso não fosse obedecido, ele
seria punido. É o que vemos em “Tem que ser selado, registrado, carimbado/Avaliado,
rotulado se quiser voar!/Se quiser voar...” (Carimbador Maluco). Nesses versos, podemos
notar que na referida época, o governo ditatorial impunha suas regras e o cidadão poderia
transitar pelo país mediante as condições impostas por tal governo, ou seja, não era permitido
transitar pelo país sem a sua autorização.
Quanto à coesão nominal, por predominiar o tipo de discurso interativo nas
letras em estudo, é freqüente o uso dos pronomes “eu”, “tu” e “vocês”, e de pronomes
possessivos os quais podem ser vistos em:
Eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês” (Metrô Linha 743)
Eu sou a mosca/ Que pousou em sua sopa” (Mosca na Sopa)
“Mas ora, vejam só, já estou gostando de vocês (Carimbador Maluco)
“Cuidado brother, cuidado sábio senhor/ É um conselho sério pra vocês” (Metrô Linha 743)
“Conserve o seu medo/ Mantenha ele aceso” (Conserve o seu medo)
“Mantenha em segredo/ Mas mantenha viva/ Sua paranóia” (Conserve o seu medo)
“Olha o meu charme, minha túnica, meu terno/ Eu sou o anjo do inferno que chegou pra lhe
buscar” (Rockixe)
“Eu sou a mosca/ Que perturba o seu sono/ Eu sou a mosca/ No seu quarto a zumbizar”
(Mosca na Sopa)
Minha cabeça caída, solta no chão/ Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez”
(Metrô Linha 743)
Meu coração não diz e eu.../ Eu sinto medo” (Paranóia)
“Essa é a nossa lei/ E a alegria do mundo” (Sociedade Alternativa)
“Querer o meu/ Não é roubar o seu/ Pois o que eu quero/ É só função de eu ” (Novo Aeon).
65
A presença desses elementos pronominais pressupõe uma interação entre o
locutor e seus interlocutores.
Em se tratando de coesão verbal, o que é marcante nas letras é o uso dos
tempos verbais no presente e pretérito perfeito do indicativo, como vemos em:
“Todo homem tem direito de amar a quem quiser” (A Lei);
“Eu sou a mosca/ Que pintou pra lhe abusar” (Mosca na Sopa);
“O vento voa e varre as velhas ruas” (Novo Aeon)
“Um gritou: Mão na cabeça malandro” (Metrô Linha 743);
“Eu sou a mosca/ Que pousou em sua sopa” (Mosca na Sopa);
“Minha mãe me disse há tempo atrás” (Paranóia).
Notamos também, a freqüência dos advérbios de tempo “agora”, “já” e “aí”,
como em:
“O sol da noite agora está nascendo
Alguma coisa está acontecendo” (Novo Aeon);
não há mais culpado, nem inocente
Cada pessoa ou coisa é diferente” (Novo Aeon);
que assim, baseado em que
Você pune quem não é você?” (Novo Aeon);
“O homem apressado me deixou e saiu voando
eu me encostei num poste e fiquei fumando” (Metrô Linha 743);
“Eu avalio o preço me baseando no nível mental
Que você anda por aí usando
E eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando” (Metrô Linha 743);
“Mas pro seu foguete viajar pelo universo
É preciso o meu carimbo dando sim...sim...sim...” (Carimbador Maluco).
66
“Mas que eu não posso, boa viagem
E até outra vez” (Carimbador Maluco).
Passemos à análise dos mecanismos enunciativos presentes nas letras de
músicas em análise, isto é, ao posicionamento das vozes e às modalizações.
É comum notarmos a presença das vozes:
* do eu-lírico:
Eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês” (Metrô Linha 743);
Eu sou a mosca/ Que pousou em sua sopa” (Mosca na Sopa);
“Querer o meu não é roubar o seu” (Novo Aeon);
Eu sinto medo!” (Paranóia);
“O que eu quero, eu vou conseguir” (Rockixe);
* dos interlocutores (público ouvinte-fãs):
“Faz o que tu queres” (A Lei);
“Cuidado brother, cuidado sábio senhor/ É um conselho sério a vocês(Metrô Linha 743);
“Se eu quero e você quer” (Sociedade Alternativa).
Além disso, observamos as vozes sociais das autoridades governamentais que
censuravam a imprensa: “Alguma coisa está acontecendo/ Não no rádio nem está/ Nas
bancas de jornais!” (Novo Aeon), como também proibiam o cidadão de transitar pelos países
sem autorização: “Plunct, Plact, Zum
5
/ Não vai a lugar nenhum/ Tem que ser selado,
registrado, carimbado/ Avaliado e rotulado se quiser voar!” (Carimbador Maluco); e a voz
dos policiais: “Três outros chegaram com pistolas na mão/ Um gritou: Mão na cabeça
malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos” (Metrô Linha 743).
A partir desses dados, podemos notar que são predominantes, nas músicas de
Raul Seixas, as vozes: do cantor, do público (ouvintes-fãs) e as vozes sociais (mídia, censura,
policiais e governo). Isso pode sugerir que a voz do locutor se direciona aos interlocutores
que, tanto podem ser indivíduos comuns (fãs e público ouvinte), quanto às autoridades
(policiais e governantes), em uma tentativa de alertar o cidadão para o perigo próximo e para
5
Avião.
67
chamar a atenção quanto à necessidade de mudanças no sistema de governo em que todos
devem ter o direito de expressar-se livremente.
No que tange às modalizações, percebemos que são mais comuns as lógicas e
as deônticas. Na modalização lógica, há o julgamento do valor de verdade em que os fatos são
colocados como prováveis de acontecer. Dos valores expressos por essa modalização variam,
nas músicas em análise:
* a certeza:
“O sol da noite agora está nascendo/ Alguma coisa está acontecendo” (Novo Aeon);
“O que eu quero, eu vou conseguir” (Rockixe);
* a incerteza:
“Sinto a culpa que eu não sei de que” (Paranóia).
Na modalização deôntica, notamos a avaliação do que é enunciado à luz dos
valores sociais em que os fatos são permitidos, conforme vemos nos versos da música
Carimbador Maluco: “Agora, o Plunct, Plact, Zum/ Pode partir sem problema algum”;
* proibidos: “Plunct, Plact, Zum/ Não vai a lugar nenhum”;
* necessários: “Mas pro seu foguete viajar pelo universo/ É preciso o meu carimbo dando,
sim, sim, sim”.
Convém ressaltar ainda que, nessa modalização, há a presença de
modalizadores que revelam a volição:
“Faz o que tu queres/ Pois é tudo da lei” (Sociedade Alternativa);
“Eu quero é saber o que você estava pensando” (Metrô Linha 743);
“O que eu quero, eu vou conseguir” (Rockixe).
As modalizações presentes nas músicas em análise ajudam a revelar o medo, a
incerteza e a insegurança do cidadão com relação às atitudes do governo ditatorial que
reprimia e punia todos os que contrariassem suas regras. Notamos também a manifestação do
68
desejo do cidadão de se conseguir reverter os fatos, ou seja, driblar a censura e repressões, na
certeza de que a almejada liberdade será conquistada.
Em geral, após a análise das letras de músicas de Raul Seixas, verificamos que
nesse gênero, em termos de infra-estrutura, o predomínio do tipo de discurso interativo
por haver um diálogo entre locutor e interlocutores e pela freqüência do tempo presente do
indicativo –, e do tipo de seqüência narrativa, uma vez que, na maioria das letras, o eu lírico
nos conta uma história que se sustenta por uma intriga e mobiliza personagens em
acontecimento organizado.
Quanto aos mecanismos de textualização, que levam em conta a conexão, a
coesão verbal e a coesão nominal, as letras são marcadas pela presença das conjunções “se” e
“mas”, pelo tempo presente do indicativo e pelos pronomes pessoais “eu” e “tu”. O emprego
das conjunções “se” e “mas” nos leva a pressupor que o cantor “eu” interage com o
interlocutor “tu”, e busca alertá-lo quanto aos perigos que o governo ditatorial representava
para a sociedade, como também adverti-lo para que permaneça sempre atento e cauteloso, sob
risco de sofrer punições.
No que diz respeito aos mecanismos enunciativos, prevalecem as vozes do eu-
lírico, do público (ouvintes-fãs) e as vozes sociais (mídia, censura, policiais e governo). Em
geral, verifica-se um diálogo entre o cantor e o público, cuja função é alertar o cidadão sobre a
necessidade de mudança para que haja o fim da censura imposta pelas autoridades.
Em relação às modalizações, predominam as lógicas; por revelarem valores de
certeza e incerteza; e as deônticas, por revelarem fatos permitidos, proibidos, necessários e
desejados.
A seguir, apresentaremos um capítulo que trata especificamente da análise das
metáforas e expressões metafóricas presentes nas letras de músicas de Raul Seixas.
69
5 UMA ANÁLISE DAS METÁFORAS E DA PAIXÃO DO MEDO NAS LETRAS DE
MÚSICAS DE RAUL SEIXAS
5.1 AS METÁFORAS USADAS POR RAUL SEIXAS PARA DRIBLAR A CENSURA
A análise das letras de músicas selecionadas contempla o conceito de metáfora
e expressões metafóricas como um recurso argumentativo usado pelo compositor, para expor
seus pensamentos, idéias e protestar, de maneira implícita, contra a censura e as atitudes
impostas pelo sistema ditatorial. Para tais conceitos de metáfora e expressões metafóricas,
tomamos como base os conceitos de Reboul (2004) e Tringali (1988).
Segundo Reboul (2004), a metáfora designa uma coisa com o nome de outra
que tenha com ela uma relação de semelhança. Vejamos como essa figura é freqüente nas
letras em questão:
1. “Metrô Linha 743
“Disse: O prato mais caro do melhor banquete é
O que se come cabeça de gente
Que pensa e os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam
Porque quem pensa, pensa melhor parado”
Nesses versos, “cabeça de gente” se identifica com os intelectuais, “banquete”
com o governo militar e “canibais de cabeça” com os militares que perseguiam, reprimiam e
censuravam os intelectuais da época ditatorial. Nesse sentido, notamos que a metáfora foi
empregada como um recurso argumentativo para criticar e denunciar os crimes cometidos por
tais autoridades.
“Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha
70
Eu era agora um cérebro, um cérebro vivo a vinagrete
Meu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tiete”
Nesse caso, o “cérebro” do cidadão se assemelha a uma comida que está sendo
servida a vinagrete. Essa construção alude ao cidadão que foi pego pelas autoridades sendo
exposto e obrigado a confessar possíveis informações que possam comprometer o sistema de
governo. Ao mencionar um tipo de tortura adotada pelas autoridades ditatoriais (que
obrigavam o cidadão a delatar todas as informações que poderiam prejudicar e desestruturar a
forma de governo), o eu lírico busca despertar o sentimento de revolta à sociedade, levando-a
a agir contra atitudes do governo. Podemos notar também essas considerações nos versos em
destaque:
“Fui posto à mesa com mais dois
E eram três pratos raros, e foi o maître que pôs”
Por uma relação de semelhança, a expressão “três pratos raros”, que representa
pratos não muito comuns de se encontrar, é designada como três cidadãos intelectuais,
conscientes do que era o Estado Ditatorial, difíceis de serem encontrados, que viviam se
escondendo das autoridades ditatoriais por serem perseguidos para que prestassem
depoimentos sob suspeita de estarem envolvidos em atitudes contra o sistema governamental.
Esses intelectuais, da referida época, eram considerados uma ameaça ao governo por
denunciar os crimes e desestruturar as regras impostas pelo governo opressor.
2. Mosca na Sopa
Eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou pra lhe abusar...
Eu sou a mosca
Que perturba o seu sono
Eu sou a mosca
71
No seu quarto a zumbizar...
E não adianta
Vir me detetizar
Pois nem o DDT
Pode assim me exterminar
Porque você mata uma
E vem outra em meu lugar...”
Nos versos acima, o termo “a mosca” que representa um inseto perturbador,
por uma relação de semelhança foi empregado para designar o eu-lírico, visto que, como a
mosca, ele também infernizava e perturbava as autoridades (policiais, delegados,
investigadores) através da denúncia dos crimes, da anunciação das reformas, da sua
irreverência, coragem e ousadia. A sigla “DDT”
6
é uma potente marca de pesticida usada
para eliminar, exterminar insetos e se identifica com as siglas: DOI-CODI (Destacamento de
Operações e Informações e ao Centro de Operações de Defesa Interna) que era um órgão que
atuava como centro de investigação e repressão do governo militar. A sua função era eliminar
todos os intelectuais que se manifestassem contra as normas governamentais. Muitos
professores, políticos, músicos, artistas e escritores eram investigados, presos, torturados ou
exilados do país. A metáfora utilizada nesses versos possui valor argumentativo, pois sugere a
tentativa de persuadir o cidadão, através de sua consciência política, para que ele se sinta
forte, reaja e lute contra a censura imposta e contra as repressões governamentais. Convém
ressaltar que além dessas metáforas fazerem alusão à Ditadura Militar, podem se referir a uma
crítica ao jogo da mídia que promovia a MPB e censurava o que não lhe fosse viável.
3. O Novo Aeon
Sociedade Alternativa
Sociedade Novo Aeon
É um sapato em cada pé
É direito de ser ateu
Ou de ter fé”
6
DDT (Dicloro-Difenil-Tricloroetano) potente veneno muito usado na II Guerra Mundial para proteger soldados
contra insetos. A partir daí tornou-se um popular pesticida, tanto para combater doenças transmitidas por insetos,
quanto para ajudar fazendeiros a controlar pestes agrícolas (www.ambientebrasil.com.br).
72
A “Sociedade Alternativa” ou “Sociedade Novo Aeon”, oposta às regras do
governo ditatorial, pois representava uma sociedade anárquica, uma inversão de valores, sem
regras e imposições, criada pelo cantor, por uma relação de semelhança é designada como um
sapato em cada pé, ou seja, ao conforto supostamente de se sentir livre e não mais pressionado
e reprimido pela censura. O valor argumentativo desses versos está no fato de o eu-lírico
tentar motivar e convencer a sociedade, a nova geração, de que ela possuía forças suficientes
para lutar e combater o sistema de governo opressor, bem como fazer um apelo à sociedade
para que siga os preceitos da Sociedade Alternativa.
4. Rockixe
“Olha o meu charme, minha túnica, meu terno
Eu sou o anjo do inferno que chegou pra lhe buscar
Eu vim de longe, vim d´uma metamorfose
Numa nuvem de poeira que pintou pra lhe pegar”
O “anjo do inferno” representa o demônio e indica o próprio compositor a
infernizar os opressores através da denúncia dos crimes e anunciação das reformas. A
metáfora utilizada nesse verso possui valor argumentativo, pois busca fazer com que os
interlocutores ajam de acordo com o eu lírico, ou seja, que se movam, a partir de uma
consciência política, contra as atitudes do governo ditatorial.
5. Sociedade Alternativa
"-Faz o que tu queres
Há de ser tudo da Lei"
Viva! Viva!
Viva a Sociedade Alternativa
"-Todo homem, toda mulher
É uma estrela"
73
O “homem” e a “mulher” identificam-se com uma “estrela”, astro
aparentemente fixo que tem luz e calor próprios, possivelmente por ser iluminados e capazes
de brilhar, de conquistar seu espaço na sociedade, sua própria liberdade.
Essa metáfora
procura fazer com que todo cidadão reflita sobre si mesmo e sobre seu valor (ser iluminado),
incitando-o a não aceitar que fosse considerado como ser inferior, como faziam as autoridades
ditatoriais, daí seu valor argumentativo.
"- O número 666
Chama-se Aleister Crowley
Viva! Viva!
Viva! A Sociedade Alternativa”
Popularmente conhecido pelo número da besta, o “número 666” representa a
marca do diabo e, por uma relação de semelhança, esse número foi designado como Aleister
Crowley, um mago do século XX, por ter sido considerado um anti-cristão, o próprio diabo a
divulgar o esoterismo através de seus pensamentos revolucionários, que pregavam a
libertação do espírito humano em busca de sua essência. Notamos que o eu-lírico tenta
divulgar o anarquismo, a rebeldia e lutar contra a censura imposta através da exaltação do
nome Crowley e do mero 666, marca do diabo, considerado forte, e fazer com que os
interlocutores lutem pela sua liberdade, pelos seus pensamentos e idéias e que revolucionem e
desestruturem os sistemas de valores e normas sociais
Consideremos, agora, a linguagem metafórica, de acordo com os pressupostos
teóricos de Tringali (1988) que, conforme mencionamos, afirma que a metáfora passa por
um processo de transposição ou associação do sentido próprio da palavra ou expressão para o
sentido figurativo. Analisemos os versos que seguem:
1. Metrô Linha 743
“O homem apressado me deixou e saiu voando
Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando
Três outros chegaram com pistolas na mão,
Um gritou: Mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos”
74
No primeiro verso, em O homem voando”, notamos que, por um processo de
transposição de sentido, foram atribuídas ao homem características de ave ou máquina, pois
voar significa, literalmente, sustentar-se ou mover-se no ar por meio de asas. Essa construção
sugere que o cidadão, sentindo-se perseguido pelas autoridades (policiais), se pôs a correr
velozmente por medo de sofrer graves punições. O referido verbo também foi usado como
expressão argumentativa para enfatizar e reforçar o quanto eram severas e cruéis as formas de
censuras aplicadas pelo sistema ditatorial ao ponto de todo cidadão não mais poder caminhar
livremente pelas vias públicas, sentindo-se tomado pelo medo e desespero. Em
“Eu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?
Se é documento eu tenho aqui...
Outro disse: Não interessa, pouco importa, fique aí
Eu quero é saber o que você estava pensando
Eu avalio o preço me baseando no nível mental
Que você anda por aí usando
E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando
o sentido literal da palavra “cabeça”, parte superior do corpo humano, é transportado para o
sentido metafórico, que se associa à uma mercadoria, como podemos notar através do
substantivo “preço” e do verbo “custando”, e sugere que ela tanto pode ser valiosa ou não,
conforme o grau intelectual do cidadão e as informações que eles poderiam revelar aos
governantes. Nesse sentido, o homem vale pelo que pensa. Esse verso busca fazer com que o
interlocutor reflita (e se convença) sobre o quanto o cidadão era menosprezado e mal tratado
pelas autoridades governamentais. Nos versos
“Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado
Meu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou grilado:
Quem será este desgraçado dono desta zorra toda?”
a palavra “comida”, que em sentido literal significa refeição, foi usada em um sentido
metafórico, associando-se às confissões do eu-lírico e ao senhor alinhado que representa uma
autoridade a torturá-lo com prazer, tanto quanto se degusta uma comida, possivelmente um
delegado de polícia ou investigador, a interrogá-lo, obrigando-o a revelar seus pensamentos
com a intenção de descobrir se ele estaria ou não conspirando contra a regras do governo
75
opressor. Conforme mencionamos em um dos capítulos de nosso trabalho, o cantor disse ter
sido torturado pelas autoridades para que dissesse o nome dos integrantes de Sociedade
Alternativa e, provavelmente, esses versos podem se referir a esse episódio na vida do cantor.
O eu-lírico busca despertar o sentimento de revolta à sociedade, levando-a a agir contra
atitudes do governo. Em
“Cuidado brother, cuidado sábio senhor
É um conselho sério pra vocês
Eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês
Ah! Metrô linha 743”
na expressão “Eu morri” houve transporte do sentido próprio para o figurado, por se associar
à perda da própria identidade e não à morte que, literalmente, significa falecimento, pois o
cidadão não podia expressar-se livremente, agir conforme sua vontade, por medo das censuras
e punições que poderia sofrer. O cantor busca mobilizar o cidadão para que lute contra a
maneira pela qual as autoridades ditatoriais maltratavam e humilhavam as pessoas através de
seus interrogatórios.
2. Mosca na Sopa
“Atenção, eu sou a mosca
A grande mosca
A mosca que perturba o seu sono
Eu sou a mosca no seu quarto
A zum-zum-zumbizar
Observando e abusando
Olha do outro lado agora
Eu tô sempre junto de você
Água mole em pedra dura
Tanto bate até que fura
Quem, quem é?
A mosca, meu irmão!”
76
A expressão “Água mole em pedra dura/ Tanto bate até que fura” significa que,
por mais que um desejo se torne difícil ou quase impossível de se realizar, com persistência e
perseverança, ele pode se transformar em realidade. Nesse caso, o desejo é o fim da censura.
Essa expressão metafórica passa por um processo de transposição do sentido próprio da
palavra para o sentido figurativo, visto que “água mole” se associa ao cidadão oprimido,
considerado fraco, e “pedra dura” ao governo ditatorial, considerado forte. Esse verso é
persuasivo por tentar fazer com que o cidadão (“água mole”) persista e lute confiante de que
pode, um dia, derrubar tal governo (“pedra dura”) e conquistar sua liberdade de expressão.
3. Novo Aeon
O sol da noite agora está nascendo
Alguma coisa está acontecendo
Não dá no rádio nem está
Nas bancas de jornais”
A expressão “O sol da noite”, por um processo de associação é transportada do
sentido literal ao figurado, pois “sol”, em sentido literal, significa um astro luminoso e
“noite”, significa espaço de tempo entre o crepúsculo da tarde e crepúsculo da manhã e, em
sentido metafórico, a expressão sugere a esperança de um mundo melhor, de uma nova forma
de governo que surge em meio às repressões, sofrimentos e tristezas marcadas pelo governo
ditatorial, pois a palavra “sol” é associada ao início de uma nova geração, consciente e
contestadora e a palavra “noite” se associa às punições, às angústias e sofrimentos causados
pelo governo opressor. Essa expressão metafórica tem função argumentativa por fazer com
que a sociedade perceba que uma mudança no governo vigente está acontecendo, que ele está
prestes a fracassar e que seria esse o momento de lutarem confiantes na conquista de um novo
governo, sem imposições e censuras. Isso também pode ser notado nos versos em destaque:
O vento voa e varre as velhas ruas
Capim silvestre racha as pedras nuas
Encobre asfaltos que guardavam
Hitórias terríveis”
77
Esses versos sugerem uma possível quebra do sistema ditatorial que, através do
tempo que passou, surge uma nova visão política, uma nova geração que começa a reagir
contra o governo ditatorial na tentativa de eliminá-lo, de acabar com a censura e as repressões,
propiciando a paz. Podemos notar essas considerações através das expressões metafóricas que
foram transportadas para o sentido figurativo: “O vento voa” que se associa ao “tempo que
passa rápido”; “velhas ruas” ao “antigo governo ditatorial”, “capim silvestre” a “nova
geração”; e “pedras nuas” as “repressões”. Nesse sentido, notamos que o eu-lírico percebe que
o sistema de governo ditatorial começa a fracassar e aproveita a ocasião para tentar convencer
e incentivar seus interlocutores para que se fortaleçam e reajam contra tal governo, a fim de
acabarem com a censura, repressões e injustiças.
4. Carimbador Maluco
Plunct, Plact, Zum
Não vai a lugar nenhum!
Plunct, Plact, Zum
Não vai a lugar nenhum!
Tem que ser selado, registrado, carimbado
Avaliado, rotulado se quiser voar!
Se quiser voar...”
Nesse caso, “Plunct, Plact, Zum” é uma expressão onomatopaica por emitir um
som e, ao mesmo tempo, metafórica, pois “Plunct, Plact” passa por um processo de
transposição de sentido e é associado ao som de um carimbo usado pelas autoridades
governamentais para autorizar ou não o trânsito pelo país, e “Zum” ao som da decolagem de
um avião e ao próprio avião, notável através do emprego do verbo “voar” no verso: “Se quiser
voar”. Nessa época, era muito comum o exílio e, conforme mencionamos, Raul Seixas foi
exilado do país por suspeitas de estar tramando algo que conspirasse contra as regras do
governo, através da Sociedade Alternativa. Isso pode ser um dos motivos que levaram o
compositor a se utilizar desses versos como um recurso argumentativo para tentar mobilizar
os interlocutores a não aceitarem a maneira como os passageiros eram censurados, visto que
poderiam desembarcar após uma prévia avaliação das autoridades governamentais,
78
concebidas através de um carimbo de autorização e que, eram tais autoridades, que decidiam
quem ficava ou se exilava do país, sob risco de estarem tramando contra o governo.
Essas considerações também podem ser notadas nos versos que seguem:
“Pra Lua: a taxa é alta
Pro Sol: identidade,
Mas já pro seu foguete viajar pelo universo
É preciso o meu carimbo dando o sim,
Sim, sim, sim.
O seu Plunct, Plact, Zum
Não vai a lugar nenhum!”
Na expressão metafórica “Pra Lua: a taxa é alta/ Pro Sol: identidade” houve a
transposição do sentido literal ao sentido figurativo, pois em sentido literal, o termo “Lua”,
representa um satélite natural de qualquer planeta e “Sol”, representa um astro luminoso. Em
sentido figurado, esses dois termos se associam a lugares comuns de se transitar, como países,
cidades, estados, dentre outros, cuja passagem era muito cara e necessário a apresentação de
documento de identidade para decolar.
5. Rockixe
“Eu tinha medo do seu medo
do que eu faço
Medo de cair no laço
que você preparou
Eu tinha medo de ter que dormir mais cedo
numa cama que eu não gosto só porque você mandou...”
A expressão metafórica “cair no laço”, que literalmente significa “cair em
armadilhas” é transportada para o sentido figurativo “ser preso”, “ser exilado” e “ser
torturado”. Essa expressão metafórica foi empregada de maneira argumentativa na tentativa
de mover os interlocutores a não aceitarem o modo como as autoridades ditatoriais
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rebaixavam os cidadãos ao ponto de serem caçados como um animal irracional, e a criticarem
e denunciarem o abuso de poder das autoridades governamentais. No versos
“Olha o meu charme, minha túnica, meu terno
Eu sou o anjo do inferno que chegou pra lhe buscar
Eu vim de longe, vim d´uma metamorfose
Numa nuvem de poeira que pintou pra lhe pegar
O que eu quero, eu vou conseguir
O que eu quero, eu vou conseguir
Pois quando eu quero todos querem
Quando eu quero todo mundo pede mais
E pede bis”
a palavra “metamorfose”, literalmente, representa uma mudança de forma física, e também
passa por um processo de transposição de sentido literal a figurado que se associa a um lugar
bem distante, “longe”. Conforme já mencionamos, Raul Seixas foi exilado nos Estados
Unidos. Nesse caso, é possível inferir que ele tenha utilizado a palavra “metamorfose” para se
referir ao sistema de governo americano, ao mundo consumista, a uma nova sociedade e que,
ao conviver com essa nova cultura, retorna ao país de origem transformado moralmente e
mais politizado. Essa metáfora tem valor argumentativo, porque o compositor busca
convencer e mobilizar os interlocutores para que sejam audaciosos e criem coragem para
enfrentar o estado ditatorial e acabar com a censura, como ele mesmo afirma, em tom
ameaçador, nas expressões “Eu sou o anjo do inferno” e “que pintou para lhe pegar”.
Retomando os conceitos de Reboul (2004) e Tringali (1988), constatamos que,
nas músicas examinadas, as metáforas e expressões metafóricas ora designam uma coisa com
o nome de outra a partir de uma relação de semelhança, ora passam por um processo de
transposição ou associação do sentido próprio da palavra ou expressão para o sentido
figurativo. Seja por uma relação de semelhança ou por uma transposição de sentidos, o
constante uso das metáforas e expressões metafóricas por Raul Seixas nos leva a entender que
o cantor se utilizava dessas expressões como estratégia de persuasão, como um recurso
argumentativo, para driblar a censura e protestar contra as injustiças do governo ditatorial.
Essas considerações vêm de encontro com as palavras de Raul Seixas: "Sou tão bom ator que
80
me finjo de compositor e poeta e todo mundo acredita. Eu apenas uso a música para expressar
o que penso!”
Passemos, agora, à análise da paixão do medo nas letras de músicas
selecionadas e as que são mobilizadas por ela.
5.2 A PAIXÃO DO MEDO NAS LETRAS DE MÚSICAS DE RAUL SEIXAS
Sabemos que, segundo Aristóteles (2003, XIV), “as paixões são todos aqueles
sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem diferir seus julgamentos”. Levando-
se isso em conta, notamos que nas letras de músicas de Raul Seixas, aqui analisadas, as
autoridades ditatoriais provocam não o medo no eu-lírico, mas também outros sentimentos
mobilizados por essa paixão.
O medo consiste em certo desgosto ou preocupação resultante de um suposto
mal iminente, danoso ou penoso. No caso de nosso corpus de análise, vemos que o eu-lírico é
movido pelo sentimento de temor por causa da presença do perigo, das possíveis torturas e até
mesmo da morte, caso não aja com certa cautela e cuidado perante as imposições do governo
ditatorial. É o que observamos em várias das letras analisadas.
1. Conserve o seu medo
“Conserve o seu medo
Mantenha ele aceso
Se você não teme
Se você não ama
Vai acabar cedo
Observamos a paixão do medo, na expressão em destaque, através do emprego
do verbo no imperativo “conserve” e do substantivo “medo”, pois por medo e conhecimento
do perigo, o eu-lírico sente-se preocupado em alertar o indivíduo para que ele mantenha
“aceso” seu medo, visto que a falta de cautela poderia fazer com que sofressem punições
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severas como torturas ou até mesmo a própria morte, conforme notamos na expressão “vai
acabar cedo”, isto é, vai ser morto.
2. Novo Aeon
“O vento voa e varre as velhas ruas
Capim silvestre racha as pedras nuas
Encobre asfaltos que guardavam
Histórias terríveis
Observamos, na expressão em destaque, a manifestação do medo a partir do
desgosto resultante dos males causados pelas autoridades ditatoriais a ponto de esses males
ficarem registrados às lembranças, pois sabemos que a época foi marcada por torturas,
prisões, mortes e exílios. Essas considerações podem ser notadas por meio do emprego do
adjetivo “terríveis” e da expressão “Histórias terríveis” que se remetem à “lembranças
terríveis”.
3. Paranóia
“Se eu vejo um papel qualquer no chão
Tremo, corro e apanho pra esconder
Medo de ter sido uma anotação que eu fiz
Que não se possa ler
E eu gosto de escrever, mas...
Mas eu sinto medo!”
Nesses versos notamos a manifestação do medo pelo eu-lírico no momento em
que ele escreve, a partir da preocupação com um suposto mal danoso, ou seja, punições que
poderia sofrer pelas autoridades ditatoriais caso suas anotações fossem algo que conspirassem
contra o governo. Essas considerações podem ser observadas através dos versos “Medo de ter
sido uma anotação que eu fiz/Que não se possa ler”, do emprego explícito dos verbos
“tremo”, “corro”, “esconder”, do substantivo “medo”, e da conjunção “mas”, a qual indica a
contraposição da idéia de gostar de escrever e não poder por se tratar de um período de
censuras. Nos versos
82
Tinha tanto medo de sair da cama à noite pro banheiro
Medo de saber que não estava ali sozinho porque sempre...
Sempre... sempre...
Eu estava com Deus!
Eu estava com Deus!
Eu estava com Deus!
Eu tava sempre com Deus!”
observamos a manifestação do medo nas expressões em destaque por meio do emprego do
substantivo “medo”, que sugere o medo até de fatos corriqueiros como ir ao banheiro à noite,
pois o eu-lírico sentia-se perseguido pelas autoridades ditatoriais e preocupado com os
supostos males que tais autoridades poderiam lhe causar. Até mesmo a figura Deus era
sinônimo de perseguição. Convém ressaltar que, como os governantes ditatoriais perseguiam
vários cidadãos, considerados suspeitos de estarem tramando contra o governo, também
podemos notar que tais perseguições levavam o indivíduo a atitudes paranóicas, ou seja,
delírios de perseguição, daí o motivo pelo qual a música se intitula Paranóia. Também
podemos observar tais considerações nos versos que seguem:
“Minha mãe me disse há tempo atrás
Onde você for Deus vai atrás
Deus vê sempre tudo que cê faz
Mas eu não via Deus
Achava assombração, mas...
Mas eu tinha medo!
Eu tinha medo!
Nesse caso, o substantivo “assombração” se refere às autoridades ditatoriais,
visto que, assim como a assombração, as autoridades ditatoriais também causam espanto e
medo. Nesse sentido, podemos perceber que o sentimento de medo do eu-lírico é gerado por
tais autoridades e, nem mesmo a presença de Deus era suficiente para eliminar tal medo como
podemos notar nos versos “Mas eu não via Deus/Achava assombração, mas.../Mas eu tinha
medo!/Eu tinha medo!
83
4. Rockixe
“Eu tinha medo do seu medo
do que eu faço
Medo de cair no laço que você preparou
Eu tinha medo de ter que dormir mais cedo
numa cama que eu não gosto só porque você mandou...”
A expressão “cair no laço” revela o medo de o eu-lírico ser punido, cair em
armadilhas, ser preso e exilado, caso suas atitudes e modo de agir contrariassem as normas do
governo ditatorial. A presença desse sentimento, manifestado pelas punições do governo
ditatorial no eu-lírico pode ser vista também na expressão “dormir mais cedo”, conhecida
como “o toque de recolher” da época ditatorial em que o cidadão era obrigado a permanecer
em seus aposentos antes das vinte e duas horas. Nessa parte, achamos válido ressaltar que a
expressão “do seu medo/ do que eu faço” se refere ao medo que as autoridades
governamentais também sentiam dos cidadãos críticos e politizados, tais como repórteres,
professores, artistas e músicos, dentre eles, do próprio cantor Raul Seixas, que eram tidos
como uma ameaça, um desequilíbrio ao sistema de governo ditatorial por divulgarem os
crimes e anunciarem as reformas. Isso justifica o porquê desses cidadãos serem perseguidos,
torturados e exilados por tais autoridades.
Mediante ao que foi exposto, podemos verificar que a análise das letras de
músicas de Raul Seixas se enquadra na teoria aristotélica, pois notamos que o cantor foi
mobilizado pela paixão do medo que é a preocupação e desgosto resultante de um mal danoso
ou penoso, ou seja, o medo é manifestado pelo cantor em função das preocupações e
desgostos gerados pelos males cometidos pelas autoridades ditatoriais tais como: torturas,
prisões, exílios, injustiças e repressões.
Passemos, agora, à observação de outras paixões que estão relacionadas ao
medo nas canções de Raul Seixas, pois notamos que esta paixão mobiliza uma série de outros
sentimentos no eu-lírico, como é o caso do desprezo, da confiança, da cólera e da indignação,
conforme veremos no decorrer da análise.
Comecemos pelo desprezo que, de acordo com Aristóteles (2003), desvaloriza
o que o outro tem. Desprezamos os que gozam de boa sorte quando esta não vem
84
acompanhada de bens honrosos, ou seja, julgamos os que gozam de boa sorte sem serem
dignos de consideração. Quando as pessoas sentem-se superiores e mais fortes, sem de fato
sê-los, o sentimento de desprezo é manifestado. Com ele, deseja-se gerar a diferença. No que
tange às letras de músicas analisadas, vemos que o desprezo está atrelado ao medo, pois o eu-
lírico utiliza-se dessa paixão como uma espécie de mecanismo de defesa, para desprezar,
desvalorizar o poder das autoridades ditatoriais por julgar que essas autoridades não são
dignas de consideração, como podemos observar nos versos de algumas das músicas que
seguem.
1) Rockixe
Você é forte, mas eu sou muito mais lindo
O meu cinto cintilante, a minha bota, o meu boné
Não tenho pressa, tenho muita paciência
Na esquina da falência
que eu te pego pelo pé
O poder de reprimir que as autoridades ditatoriais tinham desperta o medo no
eu-lírico e, conseqüentemente, esse medo mobiliza a paixão do desprezo como uma espécie
de mecanismo de defesa, visto que o eu-lírico desvaloriza o poder das autoridades ditatoriais
que o utilizava de forma abusiva, não sendo dignas de consideração, conforme notamos na
expressão “Você é forte, mas eu sou muito mais lindo” em que o eu-lírico se considera “mais
lindo”, mais digno de consideração e desvaloriza o poder das autoridades ditatoriais
representadas, nesse verso, pelo emprego do adjetivo “forte”. Esse mesmo desprezo também
pode ser notado na música a seguir:
2) Sociedade Alternativa
“Se eu quero e você quer
Tomar banho de chapéu
Ou esperar Papai Noel
Ou discutir Carlos Gardel
Então vá!
85
Faz o que tu queres
Pois é tudo
Da Lei! Da Lei!”
Através desses versos em destaque podemos perceber que o eu-lírico, movido
pela paixão do desprezo, incita os interlocutores para que, assim como ele, desvalorizem as
regras impostas pelo governo ditatorial, uma vez que a palavra “Lei” foi empregada como
substantivo próprio para que o indivíduo haja pela sua própria Lei”, perceba que ela é mais
digna de consideração do que a ditada pelo governo ditatorial e, por isso, que a despreze.
Assim, notamos que o eu-lírico deseja gerar a diferença entre ele e o governo ditatorial pelo
desprezo, pela desvalorização.
Outra paixão mobilizada pelo medo nas letras de músicas de Raul Seixas é a
segurança ou confiança que, segundo Aristóteles (2003) provém de certa superioridade sobre
as coisas ou pessoas. É o afastamento do perigo, distanciamento do prejudicial, do temível e a
aproximação dos meios de salvação. Em algumas situações, o medo pode até ser visto como
um ponto positivo, pois gera a esperança de salvação e, muitas vezes, também desperta a
coragem. Quando tememos algo que, aparentemente nos é ameaçador e conseguimos
combatê-lo, criamos coragem para superar o medo. Não fosse pelo medo, não haveria motivo
de existir a coragem. A coragem provém do medo e, nesse sentido, o medo mobiliza a paixão
da confiança e acaba por se tornar um sentimento positivo, conforme veremos nos versos das
canções que seguem.
Mosca na sopa
“E não adianta
Vir me detetizar
Pois nem o DDT
Pode assim me exterminar
Porque você mata uma
E vem outra em meu lugar
Eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou prá lhe abusar”
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As punições aplicadas pelas autoridades ditatoriais despertam o medo no eu-
lírico e, por meio desse medo, surge a coragem e a esperança de se salvar. Tais sentimentos
são mobilizados pela paixão da confiança, a qual resulta de suas experiências e
conhecimentos do que é o sistema de governo opressor, levando-o a agir, com confiança,
contra as autoridades ditatoriais. Nesse sentido, notamos um suposto afastamento do perigo
que tal governo representa. Essas considerações podem ser notadas através dos termos
“mosca” e “DDT”. A mosca sugere o próprio eu-lírico a infernizar e perturbar, tal como uma
mosca, as autoridades ditatoriais, representadas pela sigla DDT (veneno usado para
exterminar moscas), através da denúncia dos crimes e anunciação das reformas. Também
podemos notar essas observações por meio dos versos: “E não adianta/Vir me detetizar/Pois
nem o DDT/Pode assim me exterminar” em que o eu-lírico, independente de quaisquer tipos
de punições, sente-se forte, confiante, com coragem para lutar contra as imposições do
governo opressor. Vejamos essas considerações também nos versos da música que segue:
Rockixe
“Vê se me entende, olha o meu sapato novo
Minha calça colorida o meu novo way of life
Eu tô tão lindo porém bem mais perigoso
Aprendi a ficar quieto e começar tudo de novo”
O que eu quero, eu vou conseguir
O que eu quero, eu vou conseguir
Pois quando eu quero todos querem
Quando eu quero todo mundo pede mais
E pede bis”
“Você é forte, faz o que deseja e quer
Mas se assusta com o que eu faço, isso eu já posso ver
E foi com isso justamente que eu vi
Maravilhoso, eu aprendi que eu sou mais forte que você
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Os versos destacados nessa música revelam que o eu-lírico é mobilizado pelo
sentimento de confiança, o qual resulta de seu conhecimento quanto a um possível
desequilíbrio, falência do governo ditatorial e, portanto, de um suposto afastamento do perigo
que tal governo representava. Esses versos também sugerem que, diante do desequilíbrio
econômico e poder de luta do eu-lírico e dos demais intelectuais da época, os ditadores se
vêem assustados, o que aumenta ainda mais a sua segurança e confiança. Todas essas
considerações e a manifestação da paixão da confiança no eu-lírico podem ser observadas a
partir de várias expressões desta canção, as quais se referem ao eu-lírico: “bem mais
perigoso” que significa mais forte e seguro; “começar tudo de novo” que se refere ao poder de
luta; “O que eu quero eu vou conseguir” que diz respeito à conquista da liberdade de
expressão; “se assusta com o que eu faço” que faz alusão à denúncia dos crimes e anunciação
das reformas; “sou mais forte que você” que revela a confiança e segurança. Convém ressaltar
que os termos “sapato novo” e “calça colorida” se referem a um novo estilo de vida
promovido pelo consumismo americano, notável na expressão: “novo way of life” que, por
conseguinte, já era a anunciação das reformas, ou seja, a anunciação do mundo capitalista, do
fracasso da economia do Brasil conhecido, na época, por “Milagre Econômico” que
desestruturaria o governo ditatorial com sua possível falência. Isso pode ser confirmado pelo
fato de Raul Seixas ter convivido com a nova cultura americana, quando esteve exilado do
país, e percebido o fracasso econômico do governo ditatorial. Contudo, o medo que o eu-
lírico sentia das autoridades ditatoriais fez com que a coragem fosse despertada e esse medo
mobilizou a paixão da confiança pelas suas experiências e conhecimentos das reformas
anunciadas.
A cólera também é outra paixão mobilizada pelo medo. Retomando os
conceitos de Aristóteles (2003), vemos que a cólera é o reflexo de uma diferença entre aquele
que se entrega a ela e aquele ao qual ela se dirige. É um brado contra a diferença imposta,
“injusta” ou como tal sentida; revela ao interlocutor que a imagem que ele forma do locutor
carece de fundamento. O encolerizado deseja vingar-se e notar o desgosto, o sofrimento
causado em seu adversário, como também deseja aquilo que lhe parece possível. uma
diferença entre o ódio e a cólera, pois aqueles que são movidos pelo ódio querem que seu
adversário desapareça, em contraposição, o encolerizado quer notar o desgosto causado no
seu adversário. O medo, conforme mencionamos é um desgosto resultante de um suposto mal
danoso. Quando experimentamos um desgosto, é possível que nos encolerizemos e o desejo
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de vingança se manifeste. Nesse sentido, o desgosto desperta o sentimento de vingança, ou
seja, o medo mobiliza a paixão da cólera.
A partir do exposto, podemos observar que o sentimento de desgosto que as
autoridades ditatoriais provocam no eu-lírico faz com que ele se sinta encolerizado e tomado
pelo sentimento de vingança, desse modo, o medo mobiliza a paixão da cólera no eu-lírico,
conforme podemos verificar nos versos das letras de músicas que seguem:
Mosca na sopa
Eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou pra lhe abusar
Eu sou a mosca
Que perturba o seu sono
Eu sou a mosca
No seu quarto a zumbizar.
A mosca é um inseto incômodo que nos atormenta em todos os lugares como
podemos notar nas expressões: “pousou em sua sopa”, “pintou pra lhe abusar”, “perturba o
seu sono”, “no seu quarto a zumbizar”. Nesse sentido, “a mosca”, que nesse caso representa o
próprio eu-lírico, busca infernizar e contrariar as autoridades ditatoriais através da denúncia
dos crimes e anunciação das reformas. Assim, o eu-lírico é movido pela paixão da cólera, ou
seja, sente-se encolerizado pelos desgostos resultantes dos males causados pelas autoridades
ditatoriais e deseja não só se vingar, mas observar o sofrimento de seu adversário (autoridades
ditatoriais). Também verificamos essas considerações nos versos abaixo:
Rockixe
“Olha o meu charme, minha túnica, meu terno
Eu sou o anjo do inferno que chegou pra lhe buscar
Eu vim de longe, vim d’uma metamorfose
Numa nuvem de poeira que pintou pra lhe pegar”
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O “anjo do inferno” se refere ao demônio, aqui representado pelo eu-lírico, que
é mobilizado pela cólera, pelo desejo de vingar-se das autoridades ditatoriais, infernizando-as
como o demônio a contrariar e a desestruturá-las. O encolerizado “eu-lírico”, além de querer
vingar-se, ao contrário do que significa a paixão do ódio (que quer que seu adversário
desapareça), quer notar o desgosto que causa a seus adversários, conforme podemos observar
pelo uso das expressões “chegou pra lhe buscar” e em “pintou pra lhe pegar”.
A paixão da indignação também é mobilizada pelo medo. Segundo Aristóteles
(2003), oposta à piedade, a indignação é a não-aceitação (moral) da desordem. É o sentimento
que se opõe à compaixão. Deve-se sentir compaixão aos que são infelizes sem o merecer e
indignação aos que são felizes sem merecer. É quando o inferior, de alguma maneira, contesta
o superior. Indignar-se é também ser contra a injustiça. Até mesmo as pessoas dignas de
maiores bens podem sentir indignação. Conforme dito anteriormente, a coragem provém do
medo e é através da coragem que o inferior contesta o superior. Já que indignar-se é ser contra
a injustiça, é contestar de alguma maneira, é a não-aceitação da desordem, nesse sentido, é
pela coragem que a indignação se manifesta e, se a coragem provém do medo,
conseqüentemente o medo mobiliza a paixão da indignação.
Nas músicas em análise, o medo gera, no eu-lírico, a paixão da indignação,
visto que ele contesta contra as injustiças cometidas pelas autoridades governamentais e se
mostra indignado por possuírem o poder sem o merecer, conforme veremos nos versos a
seguir:
Novo Aeon
“Já não há mais culpado
nem inocente
Cada pessoa ou coisa é diferente
Já que assim, baseado em que
Você pune quem não é você?
Nos versos, a partir do enunciados destacados, observamos que o eu-lírico é
movido pela indignação, pois se dirige às autoridades ditatorias para questionar e contestar a
90
maneira como abusavam do poder, por suas punições e injustiças. A indignação do eu-lírico
pode ser notada a partir do questionamento que faz às autoridades ditatoriais, através do
emprego da construção interrogativa: “baseado em que/Você pune quem não é você?”. Ainda,
nesse verso, podemos observar que o eu-lírico sente compaixão dos que são injustiçados, dos
que são punidos sem o merecer e indignação por aqueles que cometem injustiça, que abusam
do poder e punem sem motivo algum, no caso em questão, o eu-lírico se mostra indignado
com as autoridades ditatoriais por estarem no poder sem o merecer. Essas considerações
também podem ser notadas na música que segue:
Rockixe
Você é forte, faz o que deseja e quer
Mas se assusta com o que eu faço, isso eu já posso ver
E foi com isso justamente que eu vi
Maravilhoso, eu aprendi que eu sou mais forte que você”
Na expressão em negrito, observamos que o eu-lírico também é movido pela
paixão da indignação, pela não-aceitação do abuso de poder, pela indignação aos que estão no
poder sem o merecer, no caso em questão, os opressores e controladores das forças que se
mantém livres para fazer o que desejam e quer. O eu-lírico, mesmo considerado inferior,
fraco, de certa forma, contesta sua indignação às autoridades ditatoriais, consideradas
superiores e fortes. Essas considerações podem se vistas no verso “Mas se assusta com o que
eu faço, isso eu posso ver”, pois a expressão “eu faço” se refere às atitudes do eu-lírico, ao
que ele faz, ou seja, contesta, anuncia as reformas e denuncia os crimes cometidos pelas
autoridades ditatoriais. Nesse sentido, o medo mobiliza a paixão da indignação, pois para
contestar é preciso ter coragem e a coragem, conforme mencionamos provêm do medo.
De acordo com a análise exposta, podemos verificar que por se tratar de uma
época em que o governo vigente no país era a Ditadura Militar, período marcado por censuras,
ameaças e punições, o eu-lírico foi movido pela paixão do medo, motivo pelo qual ela se faz
predominante nas letras de músicas em análise, e que essa paixão mobiliza outras, como é o
caso do desprezo, da confiança, da cólera e da indignação, uma vez que esses sentimentos se
manifestam quando algo nos é ameaçador e temível. Portanto todos esses sentimentos se
associam de certa forma, ao medo.
91
Notamos também que a coragem provém do medo, pois sentimos coragem
quando precisamos lutar contra tudo o que nos é ameaçador. Nas músicas analisadas,
observamos a manifestação da paixão do medo pelo eu-lírico que o impulsiona, despertando-
lhe a coragem para lutar contra as repressões das autoridades ditatoriais. Se não fosse o medo,
não haveria coragem. Ela existe pelo medo que a impulsiona. A coragem está atrelada a
diversas paixões como: confiança, indignação, cólera e desprezo e, conseqüentemente, todas
essas paixões são mobilizadas pelo medo. Justamente por isso que o medo também mobilizou,
no eu-lírico, essas paixões.
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a análise das letras de músicas de Raul Seixas, chegamos a algumas
conclusões interessantes.
No que diz respeito ao primeiro objetivo proposto em nosso trabalho,
caracterização do gênero “letra de música”, em se tratando da infra-estrutura geral, notamos
que é comum a seqüência textual injuntiva por fazer com que o destinatário aja de certo modo
ou em certa direção através dos argumentos utilizados pelo eu-lírico; a seqüência textual
narrativa, porque a maioria das letras retrata acontecimentos referentes à maneira como as
autoridades ditatoriais agiam; e o tipo de discurso interativo, uma vez que a maioria das
canções apresenta uma interação entre o eu-lírico e os interlocutores. Essa interação,
conforme ressaltamos em nosso trabalho pode ser vista a partir do predomínio dos pronomes
pessoais “eu”, “tu” e “você” e pela presença dos verbos no presente do indicativo, dados que
caracterizam esse tipo de discurso. Isso nos sugere que o locutor dialoga com os
interlocutores para que fiquem atentos e para que tenham muita cautela com relação às
autoridades ditatoriais, visto que poderiam sofrer punições, tais como pena de morte, tortura e
exílio, caso contrariassem as regras do governo opressor.
Essas considerações também podem ser notadas nos mecanismos de
textualização, que levam em conta a conexão, a coesão verbal e a coesão nominal, pois as
letras de músicas são marcadas pela presença das conjunções “se” e “mas”, pelos verbos no
imperativo e pelos pronomes pessoais “eu” e “tu”. O freqüente emprego das conjunções “se”
e “mas” e dos verbos no imperativo nos leva a concluir que o cantor “eu”, ao interagir com o
interlocutor “tu”, busca alertá-lo quanto aos perigos que o governo ditatorial representa para a
sociedade, advertindo-o a permanecer sempre cauteloso, que ele corre o risco de sofrer
punições.
Quanto aos mecanismos enunciativos, prevalecem as vozes do eu-lírico, do
público (ouvintes-fãs) e as vozes sociais (mídia, policiais e governo). Em geral, verifica-se um
diálogo entre o eu-lírico e o público, cuja função é, através da audácia e irreverência desse eu-
lírico, mover o cidadão a compartilhar dos seus argumentos.
93
Em relação às modalizações, predominam as lógicas, que se relacionam aos
valores de certeza e incerteza: a incerteza do cidadão quanto à sua segurança e a sua proteção,
mediante as ameaças das autoridades ditatoriais, e a certeza do cidadão de um futuro melhor,
sem repressão e punições. Além dessas, as letras apresentam também as modalizações
deônticas, que se referem aos fatos permitidos, proibidos, necessários e desejados. Ao mesmo
tempo em que percebemos as autoridades ditatoriais estipulando as regras, o que era
permitido, proibido ou necessário ao cidadão perante as leis governamentais, vemos o desejo
do cidadão de conquistar sua liberdade de expressão.
Com relação às metáforas e expressões metafóricas usadas por Raul Seixas,
segundo objetivo de nosso trabalho, constatamos que essas expressões não consistem na
figura retórica mais usada pelo cantor em suas letras, mas também que elas foram usadas
como recurso argumentativo e estratégia de persuasão. Com o seu jeito audacioso de ser,
comportamento anárquico e revolucionário, Seixas se destacou entre os cantores da MPB no
período ditatorial brasileiro, pois, mesmo sendo punido pelos militares, deixou que sua
ousadia falasse mais alto e, através de suas letras de músicas, mandou o seu recado aos
governantes ditatoriais e à sociedade, ou seja, utilizou-se das metáforas como recurso
argumentativo para driblar a censura, criticar o governo opressor e denunciá-lo pelos crimes
que cometeu. Na verdade, o emprego das metáforas, nas letras de músicas, consiste em uma
estratégia usada por Raul para poder se manifestar e persuadir o cidadão a se mover, a agir, a
lutar contra as injustiças e opressões do governo ditatorial.
Consideremos, agora, os resultados obtidos com relação ao terceiro objetivo de
nosso trabalho: a análise da paixão do medo e das demais paixões mobilizadas por esta nas
letras de músicas estudadas. A paixão do medo é predominante nas canções de Seixas.
Retomando os conceitos de Aristóteles (2003, p. 31), que afirma que o medo consiste em
“certo desgosto ou preocupação resultantes da suposição de um mal iminente, ou danoso ou
penoso”, verificamos que o eu-lírico foi movido por essa paixão pelas ameaças e punições
que poderia sofrer do governo ditatorial caso não agisse com cautela e cuidado. Notamos
também que o medo mobiliza outras paixões, como é o caso do desprezo, da confiança, da
cólera e da indignação, uma vez que esses sentimentos se manifestam quando algo nos é
ameaçador e temível.
Embora o medo apareça nas letras de músicas, por se tratar de um período em
que o país era regido pela Ditadura Militar, o eu-lírico não pode ser considerado medroso,
94
muito pelo contrário, pois notamos, a partir das músicas em análise, a sua irreverência ao
argumentar de forma corajosa e audaciosa com o intuito de driblar a censura.
Diante dessas considerações, podemos verificar que tanto o gênero quanto as
metáforas e as paixões podem ser observadas a partir de determinadas marcas textuais que nos
permitem fazer as inferências necessárias para a construção do sentido das letras de músicas
de Raul Seixas.
Constatamos também que, além dessas considerações, foi de suma importância
recorrermos ao contexto histórico-social da época em que as músicas foram compostas para
fazer as devidas inferências e chegarmos à compreensão das letras analisadas, pois se o leitor
não vivenciou a época ditatorial ou não tem conhecimento estocado na memória do momento
histórico, social e cultural do período em que as músicas foram compostas, como poderia
então fazer inferências sem recorrer à história e acontecimentos marcantes desse período? Os
dados da vida do autor também são de grande importância, uma vez que nos ajudaram a
inferir informações implícitas de modo a facilitar o entendimento do texto, pois sabemos que
o cantor vivenciou essa época e que sofreu punições por ser considerado ameaçador ao
governo ditatorial, motivo pelo qual, conforme já mencionamos, foi exilado do país.
Convém ressaltar que, na época ditatorial, as músicas, reportagens, entrevistas,
enfim, todos os meios de comunicação passavam por uma avaliação do governo que
censurava tudo o que o era de sua conveniência ser divulgado. Até mesmo o pensamento
era censurado e quem ousasse a opor-se contra o governo ditatorial seria punido. Como a
música nesta época era permitida, mesmo que com uma prévia avaliação do governo, o astuto
e sagaz, Raul Seixas, aproveitou-se do momento para, através de suas composições,
expressar-se, driblar a censura e criticar as imposições das autoridades ditatoriais. Com o seu
estilo inovador, talento e perspicácia, Raul Seixas não deixou por menos, desafiou a tudo e a
todos como ele mesmo declara nos versos de sua canção No fundo do quintal da escola
(1978):
“Sou o que sou
porque vivo da minha maneira...
Você procurando respostas olhando pro espaço,
e eu tão ocupado vivendo...
Eu não me pergunto,
Eu faço!”
95
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96
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97
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RAUL, S. Discografia. Disponível em:
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REBOUL, O. Introdução à retórica. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins
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SOUZA, M. C. R. C. O discurso de oposição de Chico Buarque de Hollanda na ditadura
militar brasileira. Mestrado em Língua Portuguesa. Pontifícia Universidade Católica de São
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TATIT, L. O cancionista: composição de canções no Brasil, São Paulo: Edusp, 1996.
TRINGALI, D. Introdução à retórica: a retórica como crítica literária. São Paulo: Duas
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VALENTE, A. Metáfora, campo semântico e dialética na produção e na leitura de textos.
Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
VIEIRA, E. A república brasileira: 1964 – 1984. São Paulo: Ed. Moderna, 1985.
98
ANEXOS
ANEXO A – Carimbador maluco (Raul Seixas, 1983)
5, 4, 3, 2...
- Parem, esperem aí.
Onde é que vocês pensam que vão?
Plunct, Plact, Zum
Não vai a lugar nenhum!
Plunct, Plact, Zum
Não vai a lugar nenhum!
Tem que ser selado, registrado, carimbado
Avaliado, rotulado se quiser voar!
Se quiser voar...
Pra Lua: a taxa é alta
Pro Sol: identidade,
Mas já pro seu foguete viajar pelo universo
É preciso o meu carimbo dando o sim,
Sim, sim, sim.
O seu Plunct, Plact, Zum
Não vai a lugar nenhum!
Tem que ser selado, registrado, carimbado
Avaliado, rotulado se quiser voar!
Se quiser voar...
Pra Lua: a taxa é alta
Pro Sol: identidade,
Mas já pro seu foguete viajar pelo universo
É preciso o meu carimbo dando o sim,
Sim, sim, sim.
Plunct, Plact, Zum
Não vai a lugar nenhum!
Plunct, Plact, Zum
Não vai a lugar nenhum!
Mas ora, vejam só, já estou gostando de vocês
Aventura como esta eu nunca experimentei!
O que eu queria mesmo era ir com vocês
Mas já que eu não posso:
Boa viagem, até outra vez.
Agora...
99
O Plunct, Plact, Zum
Pode partir sem problema algum
O Plunct, Plact, Zum
Pode partir sem problema algum
(Boa viagem, meninos. Boa viagem).
100
ANEXO B – Conserve o seu medo (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1979)
Conserve o seu medo
Mantenha ele aceso
Se você não teme
Se você não ama
Vai acabar cedo
Esteja atento
Ao rumo da História
Mantenha em segredo
Mas mantenha viva
Sua paranóia
Conserve o seu medo
Mas sempre ficando
Sem medo de nada
Porque dessa vida
De qualquer maneira
Não se leva nada
E ande pra frente
Olhando pro lado
Se entregue a quem ama
Na rua ou na cama
Mas tenha cuidado
Conserve o seu medo
Mas sempre ficando
Sem medo de nada
Porque dessa vida
De qualquer maneira
Não se leva nada
E ande pra frente
Olhando pro lado
Se entregue a quem ama
Na rua ou na cama
Mas tenha cuidado
Cuidado! Ah! Ah!
Muito cuidado!
101
ANEXO C – Metrô linha 743 (Raul Seixas, 1984)
Ele ia andando pela rua meio apressado
Ele sabia que tava sendo vigiado
Cheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?
Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá pro outro lado
Dois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!
Disse: O prato mais caro do melhor banquete é
O que se come cabeça de gente
Que pensa e os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam
Porque quem pensa, pensa melhor parado.
Desculpe minha pressa, fingindo atrasado
Trabalho em cartório mas sou escritor,
Perdi minha pena nem sei qual foi o mês
Metrô linha 743
O homem apressado me deixou e saiu voando
Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando
Três outros chegaram com pistolas na mão
Um gritou: Mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos
Eu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?
Se é documento eu tenho aqui...
Outro disse: Não interessa, pouco importa, fique
Eu quero é saber o que você estava pensando
Eu avalio o preço me baseando no nível mental
Que você anda por aí usando
E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando
Minha cabeça caída, solta no chão
Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez
Metrô linha 743
Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha
E eu era agora um cérebro, um cérebro vivo à vinagrete
Meu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tiete
Fui posto à mesa com mais dois
E eram três pratos raros, e foi o maître que pôs
Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado
Meu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou grilado:
Quem será este desgraçado dono desta zorra toda?
Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibais
Mas o negócio aqui tá muito bandeira
Dá bandeira demais meu Deus
Cuidado brother, cuidado sábio senhor
É um conselho sério pra vocês
Eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês
Ah! Metrô linha 743
102
ANEXO D – Mosca na sopa (Raul Seixas, 1973)
Eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou prá lhe abusar...(3x)
Eu sou a mosca
Que perturba o seu sono
Eu sou a mosca
No seu quarto a zumbizar...(2x)
E não adianta
Vir me detetizar
Pois nem o DDT
Pode assim me exterminar
Porque você mata uma
E vem outra em meu lugar...
Eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou prá lhe abusar...(2x)
- “Atenção, eu sou a mosca
A grande mosca
A mosca que perturba o seu sono
Eu sou a mosca no seu quarto
A zum-zum-zumbizar
Observando e abusando
Olha do outro lado agora
Eu tô sempre junto de você
Água mole em pedra dura
Tanto bate até que fura
Quem, quem é?
A mosca, meu irmão!”
Eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou prá lhe abusar...(2x)
Eu sou a mosca
Que perturba o seu sono
Eu sou a mosca
No seu quarto a zumbizar...(2x)
103
Mas eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou prá lhe abusar...
104
ANEXO E – Novo Aeon (Raul Seixas, Cláudio Roberto e Marcelo Motta, 1975)
O sol da noite agora está nascendo
Alguma coisa está acontecendo
Não dá no rádio nem está
Nas bancas de jornais
Em cada dia ou qualquer lugar
Um larga a fábrica, outro sai do lar
E até as mulheres, ditas escravas,
Já não querem servir mais
Ao som da flauta
Da mãe serpente
No para-inferno
De Adão na gente
Dança o bebê
Uma dança bem diferente
O vento voa e varre as velhas ruas
Capim silvestre racha as pedras nuas
Encobre asfaltos que guardavam
Hitórias terríveis
Já não há mais culpado
nem inocente
Cada pessoa ou coisa é diferente
Já que assim, baseado em que
Você pune quem não é você?
Ao som da flauta
Da mão serpente
No para-inferno
De Adão na gente
Dança o bebê
Uma dança bem diferente
Querer o meu
Não é roubar o seu
Pois o que eu quero
É só função de eu
Sociedade Alternativa
Sociedade Novo Aeon
É um sapato em cada pé
É direito de ser ateu
Ou de ter fé
Ter prato entupido de comida
Que você mais gosta
É ser carregado, ou carregar
Gente nas costas
Direito de ter riso e de prazer
105
E até direito de deixar
Jesus Sofrer
106
ANEXO F – Paranóia (Raul Seixas, 1975)
Quando esqueço a hora de dormir
E de repente chega o amanhecer
Sinto a culpa que eu não sei de que
Pergunto o que é que eu fiz?
Meu coração não diz e eu...
Eu sinto medo!
Eu sinto medo!
Se eu vejo um papel qualquer no chão
Tremo, corro e apanho pra esconder
Medo de ter sido uma anotação que eu fiz
Que não se possa ler
E eu gosto de escrever, mas...
Mas eu sinto medo!
Eu sinto medo!
Tinha tanto medo de sair da cama à noite pro banheiro
Medo de saber que não estava ali sozinho porque sempre...
Sempre... sempre...
Eu estava com Deus!
Eu estava com Deus!
Eu estava com Deus!
Eu tava sempre com Deus!
Minha mãe me disse há tempo atrás
Onde você for Deus vai atrás
Deus vê sempre tudo que cê faz
Mas eu não via Deus
Achava assombração, mas...
Mas eu tinha medo!
Eu tinha medo!
Vacilava sempre a ficar nu lá no chuveiro, com vergonha
Com vergonha de saber que tinha alguém ali comigo
Vendo fazer tudo que se faz dentro dum banheiro
Vendo fazer tudo que se faz dentro dum banheiro
Para...nóia
Dedico esta canção:
Para Nóia!
Com amor e com medo (com amor e com medo)
Com amor e com medo (com amor e com medo)
Com amor e com medo (com amor e com medo)
Com amor e com medo (com amor e com medo)...
107
ANEXO G – Rockixe (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1973)
Vê se me entende, olha o meu sapato novo
Minha calça colorida o meu novo way of life
Eu tô tão lindo porém bem mais perigoso
Aprendi a ficar quieto e começar tudo de novo
O que eu quero, eu vou conseguir
O que eu quero, eu vou conseguir
Pois quando eu quero todos querem
Quando eu quero todo mundo pede mais
E pede bis
Eu tinha medo do seu medo
do que eu faço
Medo de cair no laço
que você preparou
Eu tinha medo de ter que dormir mais cedo
numa cama que eu não gosto só porque você mandou...
O que eu quero, eu vou conseguir
O que eu quero, eu vou conseguir
Pois quando eu quero todos querem
Quando eu quero todo mundo pede mais
E pede bis
Você é forte, mas eu sou muito mais lindo
O meu cinto cintilante, a minha bota, o meu boné
Não tenho pressa, tenho muita paciência
Na esquina da falência
que eu te pego pelo pé
O que eu quero, eu vou conseguir
O que eu quero, eu vou conseguir
Pois quando eu quero todos querem
Quando eu quero todo mundo pede mais
E pede bis
Olha o meu charme, minha túnica, meu terno
Eu sou o anjo do inferno que chegou pra lhe buscar
Eu vim de longe, vim d´uma metamorfose
Numa nuvem de poeira que pintou pra lhe pegar
O que eu quero, eu vou conseguir
O que eu quero, eu vou conseguir
Pois quando eu quero todos querem
Quando eu quero todo mundo pede mais
108
E pede bis
Você é forte, faz o que deseja e quer
Mas se assusta com o que eu faço, isso eu já posso ver
E foi com isso justamente que eu vi
Maravilhoso, eu aprendi que eu sou mais forte que você
O que eu quero, eu vou conseguir
O que eu quero, eu vou conseguir
Pois quando eu quero todos querem
Quando eu quero todo mundo pede mais
E pede bis, e pede mais...
109
ANEXO H– Sociedade alternativa (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1974)
Viva! Viva!
Viva A Sociedade Alternativa
(Viva! Viva!)
Viva! Viva!
Viva A Sociedade Alternativa
(Viva O Novo Eon!)
Viva! Viva!
Viva A Sociedade Alternativa
(Viva! Viva! Viva!)
Viva! Viva!
Viva A Sociedade Alternativa...
Se eu quero e você quer
Tomar banho de chapéu
Ou esperar Papai Noel
Ou discutir Carlos Gardel
Então vá!
Faz o que tu queres
Pois é tudo
Da Lei! Da Lei!
Viva! Viva!
Viva A Sociedade Alternativa...
"-Faz o que tu queres
Há de ser tudo da Lei"
Viva! Viva!
Viva A Sociedade Alternativa
"-Todo homem, toda mulher
É uma estrela"
Viva! Viva!
Viva A Sociedade Alternativa
(Viva! Viva!)
Viva! Viva!
Viva A Sociedade Alternativa
Han!...
Mas se eu quero e você quer
Tomar banho de chapéu
Ou discutir Carlos Gardel
Ou esperar Papai Noel
Então vá!
Faz o que tu queres
Pois é tudo
Da Lei! Da Lei!
Viva! Viva!
110
Viva a Sociedade Alternativa
Viva! Viva!
Viva A Sociedade Alternativa...
"-O número 666
Chama-se Aleister Crowley"
Viva! Viva!
Viva! A Sociedade Alternativa
"-Faz o que tu queres
Há de ser tudo da lei"
Viva! Viva!
Viva! A Sociedade Alternativa
"-A Lei de Thelema"
Viva! Viva!
Viva A Sociedade Alternativa
"-A Lei do forte
Essa é a nossa lei
E a alegria do mundo"
Viva! Viva!
Viva A Sociedade Alternativa
(Viva! Viva! Viva!)...
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