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UFRJ
OTAKUS.
CONSTRUÇÃO E REPRESENTAÇÃO DE SI ENTRE AFICIONADOS POR
CULTURA POP NIPÔNICA
André Luiz Correia Lourenço
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Antropologia.
Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte
Rio de Janeiro
2009
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OTAKUS.
CONSTRUÇÃO E REPRESENTAÇÃO DE SI ENTRE AFICIONADOS POR
CULTURA POP NIPÔNICA
André Luiz Correia Lourenço
Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia.
Aprovada por:
____________________________________
Presidente, Prof. Luiz Fernando Dias Duarte
(Doutor, PPGAS/MN/UFRJ)
____________________________________
Prof. Gilberto Cardoso Alves Velho
(Doutor, PPGAS/MN/UFRJ)
____________________________________
Prof. Adriana de Resende Barreto Vianna
(Doutora, PPGAS/MN/UFRJ)
____________________________________
Prof. Hermano Paes Vianna Junior
(Doutor, Pesquisador Autônomo)
____________________________________
Prof. Adriana Facina Gurgel do Amaral
(Doutora, UFF)
Suplentes:
_________________________________
Prof. Aparecida Maria Neiva Vilaça
(Doutor, PPGAS/MN/UFRJ)
__________________________________
Prof. Vanessa Andrade Pereira
(Doutora, ESPM-POA)
Rio de Janeiro
2009
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Lourenço, André Luiz Correia.
Otakus. Construção e Representação de si entre
aficionados por cultura pop nipônica/ André Luiz
Correia Lourenço. Rio de Janeiro: UFRJ/ MN/
PPGAS, 2009.
xi, 370f.: il.; 30 cm.
Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte
Tese (doutorado) UFRJ/ MUSEU NACIONAL/
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ANTROPOLOGIA SOCIAL, 2009.
Referências Bibliográficas: f. 324-337.
1. Antropologia Social. 2. Construção Social da
Pessoa. 3. Cultura Pop Nipônica. 4. Redes Sociais. 5.
Juventude. I. Duarte, Luiz Fernando Dias. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu
Nacional, Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social. III. Título.
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a minha família,
principalmente a meu pai, Gelson, e a minha tia,
Jandyra, os quais puderam assistir ao início desta
pesquisa, mas não puderam estar fisicamente aqui
para testemunhar seu final. A presença deles está
marcada nestas páginas, bem como está inscrita
no meu coração.
AGRADECIMENTOS
Agradeço aqui aos meus parentes e amigos que contribuíram para a manutenção da
minha sanidade, bem como a minha namorada, Juliana do Outeiro, cujo carinho e dedicação
foram fundamentais nesses momentos finais de atribulação agora passeios e viagens serão
possíveis.
Meus agradecimentos também para aqueles que se dispuseram a ir a alguns eventos
comigo ou leram versões da tese, agiram como interlocutores e debateram comigo: Carlos
Alberto Bizarro, José Ricardo Fazolo, Ilza Vianna e Paula Prata
Devo muito também a toda a equipe do PPGAS. Sem esse apoio, minha ida à VII
RAM, por exemplo, não teria sido possível. Um abraço especial para as bibliotecárias mais
qualificadas, solícitas, educadas, meigas e gentis do Rio de Janeiro.
Não posso me esquecer de meus alunos, dos adultos na graduação aos adolescentes no
Ensino Fundamental e Médio. Muito do que está aqui aprendi observando-os. Muito do que
pensei, e repensei, o fiz em função de vocês. Se em algum momento falhei com vocês por
causa da tese, peço desculpas. Tenham certeza que mais de uma vez preferi me arriscar aqui
do que por em risco a aprendizagem de vocês.
Guardo aqui também um agradecimento à Lourdes e Simone, diretoras durante meu
tempo na Escola Municipal Ruy Barbosa; a Edelberto Coura, Marcus Cruz e Marize Barros,
que foram meus coordenadores na UNISUAM, e por fim, mas não menos importante, à
Rosinda Oliveira, minha coordenadora na Universidade Estácio de Sá. Para um intelectual
que trabalhou na linha de frente do Ensino Fundamental, Médio e Superior, o apoio de vocês
foi fundamental para poder conciliar vida profissional com vida acadêmica.
Aproveito para retribuir o carinho dos meus colegas de Ruy Barbosa e de CEFET pela
convivência amistosa e pelo auxílio na confecção dessa tese. Na Ruy Barbosa, devo lembrar
de Fausto e Franciane, os quais, além de colegas, foram entrevistados. O CEFET também
contribuiu me dando condições de ir à ANPOCS em 2006. Concluo meus agradecimentos
“cefetianos” com um abraço às colegas Talita de Oliveira e Gisele Cohen, Coordenadoras do
Ensino Médio, e à minha estagiária, Caroline Pontes, cujo apoio me deixou respirar um pouco
neste último ano de redação da tese.
Uma palavra especial de obrigado pelos debates e pelo carinho das amigas
“museúnicas” Liane Alves, Tatiana Siciliano e Maria Elvira Díaz (meu socorro em meu
momento mais difícil). Também Maria Barroso, Mila Burns, Eduardo Dullo, Marcelo
Natividade e Rogério Azize foram essenciais nesse trabalho.
Sou muito grato também aos demais professores do PPGAS que tive a oportunidade
de perturbar com meu tema um tanto sui generis. Desses, destaco as professoras Adriana
Barreto e Aparecida Vilaça, que acompanharam parte desta jornada, e os professores Gilberto
Velho e Antonádia Borges, que viram neste trabalho muito do que ele poderia ser e me
estimularam a tentar torná-lo realidade – obrigado pelo apoio.
Agradeço também às professoras Adriana Facina e Vanessa Pereira, integrantes da
banca, juntamente com Hermano Vianna que, de referência, se tornou dado etnográfico!
Confesso que o que de ruim aqui foi devido às minhas falhas; se algo de bom
aqui foi por esforço meu; se houver algo excelente, terá sido influência do meu orientador,
meu professor, meu mestre. Sempre me considerei afortunado por me inserir em uma ilustre
linhagem: Gilberto Cardoso Alves Velho, Luiz Fernando Dias Duarte e ... eu. Sendo o elo
mais fraco da corrente, esforcei-me para não rompê-la. Espero com esse trabalho poder ser
motivo de orgulho para meu mestre, como me orgulho de ter sido, por duas vezes, seu
discípulo. Dômo arigatou, Duarte-sensei.
RESUMO
OTAKUS.
CONSTRUÇÃO E REPRESENTÃO DE SI ENTRE AFICIONADOS POR
CULTURA POP NIPÔNICA
André Luiz Correia Lourenço
Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte
Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia.
Esta tese tem como objetivo compreender como a cultura pop nipônica pôde contribuir para
que seus consumidores, os otakus, construíssem uma representação de si mesmos. Esse
trabalho discute como esses jovens aficionados por desenhos animados (animês) e revistas
em quadrinhos (mangás) buscam sentido e socialização através do consumo, e apropriação,
de produtos culturais japoneses. Foi realizado um trabalho de campo em diferentes
convenções, realizadas no Rio de Janeiro e em São Paulo, por vezes com milhares de pessoas.
Essas reuniões são locais de expressão da especificidade desse grupo e são percebidos por
esses aficionados como espaços de sociabilidade. Apesar de ser parte de um fenômeno
mundial, o crescimento da cultura pop nipônica no Brasil possui elementos específicos.
Através de uma releitura da presença japonesa em terras brasileiras e da representação do
Japão como uma nação de cultura singular (em relação ao Ocidente), é possível entender
porque a cultura pop nipônica foi interpretada como alternativa às tendências disseminadas
pela indústria cultural ocidental. A orientalização do Ocidente, a persistência de valores
hierárquicos, as transformações da família, a importância do desenvolvimento da
individualidade e o surgimento de novas tecnologias de informação e comunicação criaram
condições para que a cultura pop nipônica se tornasse um referencial acessível e atraente para
uma parcela da juventude brasileira. Para reconstruir esse contexto foram utilizados desde
recursos digitais a material impresso, passando por entrevistas e por observação participante.
Mais do que meros consumidores, os aficionados por cultura pop nipônica tendo como
referência um produto cultural exótico e parcialmente suspeito (os mangás e os animês)
estabeleceram um espaço de sociabilidade através da assimilação e apropriação dessas
manifestações da indústria cultural japonesa. A historicidade desse movimento informal de
valorização da cultura pop japonesa no Brasil torna compreensível como uma tendência a
princípio marginal se tornou uma referência comportamental para um número considerável de
jovens brasileiros.
Palavras-chave: Antropologia Urbana, Pessoa, Cultura de Massa, Cultura Pop Nipônica,
Sociabilidade, Juventude, Educação, Tecnologia.
ABSTRACT
OTAKUS.
BUILDING AND REPRESENTATION OF THE SELF AMONG THE ADMIRERS OF
JAPANESE POP CULTURE
André Luiz Correia Lourenço
Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte
Abstract da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia.
This thesis aims to understand how the Japanese pop culture did contribute to their
consumers, the otakus, to build a self representation. This work discusses how these young
people admirers of cartoons (animes) and Comics (mangas) seek meaning and
socialization through the consumption, and appropriation of Japanese cultural products. Field
work was done in different conventions, held in Rio de Janeiro and São Paulo, sometimes
with thousands of participants. These meetings are places for the expression of the specificity
of this group and are perceived by the fans as space of sociability. Despite being part of a
world phenomenon, the growth of Japanese pop culture in Brazil has specific elements.
Through a rereading of the Japanese presence in Brazilian land and the representation of
Japan as a nation with a singular culture (in relation to the West), it is possible to understand
why Japanese pop culture was interpreted as an alternative to the trend references
disseminated by the cultural industry of the West. The orientalization of the West, the
persistence of hierarchical values, the transformations of the family, the importance of the
development of individuality and the emergence of new technologies of information and
communication created conditions for the Japanese pop culture to become an accessible
reference possible and attractive to a part of Brazilian youth. To reconstitute this context it
was necessary to deal with digital resources and printed material, to interviews and participant
observation. Rather than mere consumers, the admirers of Japanese pop culture having as a
reference an exotic and partially suspect product (the mangas and the animes) established a
space of sociability through the assimilation and appropriation of the manifestations of
Japanese industrial culture. The historicity of this informal movement of valorization of
Japanese pop culture in Brazil allows us to understand how a initially marginal trend has
become a behavior reference for a considerable number of Brazilian youngsters.
Keywords: Urban Anthropology, Personhood, Mass Culture, Japanese Pop Culture,
Sociability, Youth, Education, Technology.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES (QUADRO E FIGURAS)
Quadro 1 – Impacto da corrupção no Brasil sobre a forma de se pensar a política................159
Figura 1 – Mangás shonen......................................................................................................346
Figura 2 – Mangás com apelo para o público feminino.........................................................346
Figura 3 – Página de aviso presente em mangá com forma de leitura oriental......................347
Figura 4 – Páginas de um mangá............................................................................................348
Figura 5 – Página de aviso presente em mangá espelhado.....................................................349
Figura 6 – Capa de um caderno escolar..................................................................................350
Figura 7 – Adesivos no estilo de Digimons e Tokusatsus.......................................................351
Figura 8 – Comércio informal de cartas de baralho................................................................352
Figura 9 – Circulação de material através da Internet............................................................353
Figura 10 – Amostra de um mangá nacional..........................................................................354
Figura 11 – Sensualidade e sexualidade nos mangás.............................................................355
Figura 12 – Gekigás................................................................................................................356
Figura 13 – Manhwas..............................................................................................................356
Figura 14 – Anime Dreams 2005 (programação, frente).........................................................357
Figura 15 – Anime Dreams 2005 (programação, verso).........................................................358
Figura 16 – Instalações do Anime Friends 2005.....................................................................359
Figura 17 – Placas e cartazes no Anime Friends 2005............................................................360
Figuras 18 e 19 – Cosplayers sendo fotografados...................................................................361
Figuras 20 e 21 – Cosplayers e público no Anime Friends 2005............................................362
Figuras 22 e 23 – Profissionalização.......................................................................................363
Figuras 24 e 25 – Divulgação de eventos...............................................................................364
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.............................................................................................................12
1. O JAPOP E OS OTAKUS..............................................................................................24
1.1. Entre Indústria Cultural e Cultura Pop...........................................................................28
1.2. A Juventude Entra em Cena...........................................................................................37
1.3. Mangás e Animês na Terra do Sol Nascente..................................................................40
1.4. Otaku: do Pejorativo ao Positivo...................................................................................52
2. CONFISSÕES DE UM INTELECTUAL COSPLAYER.............................................57
2.1. Da FC ao Animê.............................................................................................................58
2.2. Redes Criadas e Descobertas.........................................................................................59
2.3. Ser e Estar: Facilidades e Dificuldades de Inserção......................................................60
2.4. Da Concha ao Cosplay...................................................................................................62
2.5. Ganhos e Preocupações..................................................................................................69
2.6. “Que Nem Maré”: Rumo ao Auge e ao Ocaso dos Eventos..........................................70
3. ILHA DAS FLORES: JAPÃO COMO CONSTRUÇÃO DO OCIDENTE.........................72
4. O JAPONÊS BRASILEIRO: IMIGRAÇÃO E PRESENÇA JAPONESA NO BRASIL....81
5. CULTURA POP NIPÔNICA NO BRASIL....................................................................95
5.1. A Entrada dos Mangás no Mundo dos Gibis.................................................................96
5.2. Presença mais Exótica do que Japonesa (Décadas de 1950, 60 e 70).........................109
5.3. Japonês vira Adjetivo (Anos Oitenta)..........................................................................118
5.4. O Primeiro Impacto (Década de 90)............................................................................124
5.5. Invasão Animê (2000-2003)........................................................................................133
5.6. Da Periferia para a Hegemonia? (2003-2009).............................................................135
6. O QUE O POP JAPONÊS TEM? PUREZA E PERIGO?............................................137
6.1. Fascinação pelo Todo: A Alteridade da Totalidade......................................................143
6.2. Valores em Jogo: Brasil X Japão?................................................................................153
6.3. Jogando com Almas: Pokémon e Yu-Gi-Oh.................................................................165
6.4. Jogos, Mangás e Animês: Homos(sexualidade) e Violência?......................................174
6.5. Mulheres no Planeta dos Homens................................................................................192
7. OS AFICIONADOS POR CULTURA POP NIPÔNICA.............................................198
7.1. Juventude e Produtos: Diferentes Grupos e Tendências..............................................201
7.2. Aspectos Congregacionais: Entre o Pentecostalismo e a Nova Era.............................207
7.3. Família e Individualização: Do Tradicional à Modernidade (e Diversidade)..............212
7.4. TV e PC no Quarto: Espaço e Autonomia Juvenil.......................................................220
7.5. Cultura Pop Nipônica e Socialização..........................................................................223
8. O MUNDO ANIME, UM MUNDO COMO QUALQUER OUTRO?.........................228
8.1. Busca de Legitimidade: Uma Luta Folclórica.............................................................229
8.2. O Mistério do Japão: Construção de um Valor............................................................242
8.3. Por Amor ao Animê: Aficionados como Torcedores...................................................263
8.4. Ocupação de Espaços: “Japanização” do Ocidente.....................................................272
8.5. A “Niponicidade” nos Cosplays, Mangás, Vozes e Piratas..........................................277
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................309
9.1. Construção de um Mundo Juvenil no Meio de Mangás e Animês...............................311
9.2. O Domínio dos Fãs Brasileiros: Japop como Diferenciação.......................................313
9.3. Vulgarização dos Mangás e Animês: da “Originalidade” à Massificação?.................318
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................324
GLOSSÁRIO..........................................................................................................................338
APÊNDICE I – CRONOLOGIA BÁSICA.............................................................................342
APÊNDICE II – EVENTOS VISITADOS.............................................................................344
ANEXO I – FIGURAS...........................................................................................................346
ANEXO II – PROJETO DE LEI 6581/06..............................................................................365
ANEXO II – PROJETO DE LEI 821/07................................................................................369
12
APRESENTAÇÃO
Hoje, em parte por causa da comemoração pelos cem anos da imigração japonesa para
o Brasil, a questão da importância da cultura pop nipônica, ou Japop, ganhou um grande
espaço nos noticiários. Tornaram-se comuns as matérias jornalísticas sobre as convenções de
consumidores de mangás (revistas em quadrinhos japonesas) e de animês (os desenhos
animados japoneses).
1
Os desenhos animados japoneses são chamados, no Brasil, tanto de “anime” quanto de
“animê”. Usarei a primeira forma para me referir ao microcosmo social e cultural dos otakus
por (mundo anime) e às convenções por eles criadas e freqüentadas (eventos anime) as duas
possibilidades do termo são categorias nativas. O termo anié reservado exclusivamente
para os desenhos animados nipônicos. Os aficionados por esse material produzido pela
indústria cultural nipônica são conhecidos como otakus.
Antes de começar esse texto, alguns esclarecimentos se fazem necessários. Essa
pesquisa se mostrou uma iniciativa que me trouxe uma série de surpresas. Uma delas era o
fato de ser uma pesquisa dentro de uma sociedade complexa, a minha própria. Meu estudo,
por desenrolar-se nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde também desenvolvi
atividades de campo, se insere na linha dos estudos de antropologia urbana.
Ele traz também uma outra especificidade: não tem um local definido. Não se trata de
um estudo de alguma comunidade dentro da cidade do Rio de Janeiro e nem de alguma
pesquisa em um hospital específico ou escola determinada. Minha atividade desenvolveu-se
em diferentes locais, a maioria deles citados nessa tese, embora tenha feito observações
incidentais, que ocorreram em locais e situações não planejadas, como dentro do Metrô ou em
sala de aula.
1
13
Como desenvolvi a maior parte da minha pesquisa na minha própria cidade e não
interrompi minha vida profissional para a realização dessa tese, não pude usufruir das
condições de um trabalho de campo clássico. Não me foi possível vivenciar o tradicional
isolamento do antropólogo que habita entre seus nativos, “(...) em solidão existencial e longe
de sua cultura de origem, tendo, portanto que ajustar-se, na sua observação participante, não
somente aos novos valores e ideologias, mas a todos os aspectos práticos que tais mudanças
demandam.” (DAMATTA, 1991, p. 143)
Apesar dessa imagem de distanciamento do antropólogo ter sido desconstruída no
último quartel do século XX, sendo mais uma representação do que uma realidade, ela ainda
possui uma forte carga simbólica: ser antropólogo é ir ao campo. A impossibilidade de me
inserir em uma aldeia otaku, ou uma comunidade otaku me preocupou nos primeiros passos
desse estudo.
No meu caso, o que pude fazer foi me concentrar nas convenções onde se reúnem.
Mesmo sabendo que a antropologia urbana já possui uma tradição de grandes estudos, desde o
trabalho pioneiro de Gilberto Velho (1982), eu desejava poder realizar uma experiência de
imersão dentro do meu objeto de estudo. Ao tomar conhecimento da realização de caravanas,
para visitar grandes convenções de otakus em São Paulo, encontrei uma oportunidade para
poder vivenciar, ainda que parcialmente, o mundo dos meus nativos.
Em minhas viagens a São Paulo, tentei ter um pouco dessa vivência de inserção quase
completa no campo. Tanto no primeiro grande evento do qual participei o Anime Dreams de
2005 (quando permaneci no evento durante o dia todo, todos os dias) –, quanto nos eventos
seguintes – o Anime Friends de 2005, o Anime Friends de 2006 e o Anime Dreams de 2007 –,
eu praticamente não saí da área dos eventos, me retirei deses locais para interagir com
colegas de caravana (passeando pelo bairro da Liberdade). Busquei vivenciar os eventos até a
14
quase exaustão, circulando o tempo todo, percorrendo todas as dependências, etc.
Outro fator que me preocupava era que os nativos com os quais eu lidava não podiam
ser interpretados simples, e meramente, como otakus. Eles são isso e muito mais, posto que
têm outros interesses; suas vidas não se limitam a ler mangás e assistir animês. A sua
identificação como consumidores de bens produzidos pela indústria cultural japonesa é uma
dentre várias. O próprio uso do termo otakus para descrevê-los é controverso e será explicado
detalhadamente a frente.
Posso dizer que me vi obrigado a utilizar, além do trabalho de campo tradicional,
dentro do qual pratiquei intensamente, a observação participante a qual descrevo mais
detalhadamente no capítulo três. Também recorri a:
a) entrevistas semi-estruturadas curtas, realizadas nos eventos, e longas (realizadas na casa
dos próprios entrevistados);
b) entrevistas através de programas de computador para comunicação instantânea como o
MSN (sigla comumente utilizada para se referir ao MicroSoft Network Messenger);
c) consultas a comunidades de relacionamentos como Orkut, páginas de fotografias online
(fotologs/flogs), boletins pessoais (blogs), páginas pessoais e institucionais (páginas oficiais
de eventos);
d) material fotográfico e fílmico, a maioria produzido por mim nos eventos visitados
também me utilizei de fotos e vídeos disponibilizados publicamente pela Internet, a rede
mundial de computadores;
e) análise de questionários preenchidos em eventos;
f) consulta a material impresso como revistas e jornais.
Para narrar esse processo de constituição da cultura pop nipônica no Brasil, e sua
influência sobre uma parcela da juventude brasileira, utilizo matérias jornalísticas, artigos de
15
revistas voltadas para os aficionados por revistas em quadrinhos e desenhos animados
japoneses, etc. Utilizando esses recursos busquei mostrar como uma manifestação cultural
periférica foi, através de avanços e recuos, ocupando um espaço de considerável relevância
nos meios de comunicação de massa brasileiros.
Toda essa diversidade de materiais trouxe em si uma dificuldade de organização
documental. Dessa forma, posso dizer com certeza que essa tese se utiliza de uma pequena
porção da documentação arregimentada nessa pesquisa. Por um lado, devido às minhas
limitações de tempo, por não ter podido me afastar das minhas atividades acadêmicas como
professor. Por outro, por ter havido um aumento exponencial do material relativo ao universo
dos consumidores de mangás e animês.
Ressalto que a maior parte do que é relatado nessa tese foi desenvolvido a partir das
minhas observações realizadas em vinte e sete eventos, entre 2003 e 2008, sendo que quatro
dessas observações foram feitas em São Paulo, nos maiores eventos do Brasil a lista dos
eventos visitados se encontra no apêndice II. Também fiz visitas em cursos de japonês da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em outubro de 2003, e realizei uma
pequena experiência de campo no Instituto Cultural Brasil-Japão, o qual cursei semanalmente
entre agosto de 2003 e dezembro de 2003.
Como os aficionados se reúnem nesses eventos, realizei a maioria das minhas
observações nos mesmos. Durante as minhas inserções no campo, eu circulei, entrei em salas
de exibição, assisti desfiles de cosplay, (pessoas caracterizadas como personagens de mangás
e/ou animês), visitei estandes e fiz compras (camisas com desenhos de personagens, DVDs,
etc.), etc. Tentei me engajar no máximo de atividades que considerei que poderiam ser
produtivas.
Em vários momentos existirão referências a acontecimentos que testemunhei fora
16
desses eventos, mas que se mostraram pertinentes para essa pesquisa. Tal ocorreu pelo fato do
meu campo ter se expandido, ter deixado de ser particular a um grupo relativamente reduzido
de jovens e de ter se tornado, de domínio público” as implicações de tal transformação
serão discutidas no final da tese.
No que concerne às entrevistas, tanto as realizadas dentro dos eventos quanto as feitas
fora, elas trazem uma limitação: pude entrevistar jovens que costumam ir a eventos. Posso
deduzir que existe um contingente bastante amplo de jovens que desconhecem esses eventos
e/ou não os freqüentam – por vontade própria ou por proibição dos pais.
A relação com os pais também evidenciou uma outra limitação: só consegui falar com
pais que estavam com filhos nos eventos e/ou que se dispuseram a me receber em suas casas
para falar sobre o interesse de seus filhos por essa cultura de mangás e animês. Bem, com
isso, só falei com pais que, em certa medida, reconheciam o gosto de seus filhos por desenhos
animados japoneses. Os pais que proíbem seus filhos de freqüentar tais eventos não puderam
ser contatados.
Essa foi uma das questões que logo me chamou a atenção, o fato de que o meu
universo de pesquisa era relativamente fluido. Esses aficionados operam outras referências
além das japonesas, interagem com outros grupos e também possuem variados graus de
comprometimento. Como disse Lúcia, funcionária de uma banca de jornais do Rio de Janeiro,
quando lhe perguntei sobre quem eram os compradores de mangás.
Em geral, adolescentes de um estilo mais roqueiro, vestindo preto, de uma faixa de
15, 16, até 20 anos. Mas também vêm pessoas de mais idade, até pais de família,
compram para eles e para os filhos. (Lúcia, 21 anos)
2
Por isso, apesar de sua grande identificação com o universo da cultura pop nipônica,
evitei pensá-los exclusivamente como otakus. Tentei vê-los como pessoas com múltiplos
2
Vale a pena comentar que há grande proximidade entre os que gostam de rock pesado e os que gostam de
mangás e animês. Como exemplo basta citar o fato de que Edu Falaschi, vocalista do grupo Angra, cantou a
música Pegasus Fantasy, do animê Cavaleiros do Zodíaco, que é constantemente cantada nos shows do seu
grupo.
17
gostos e interesses, sendo o consumo de bens culturais de origem japonesa um dos principais.
Embora o mundo anime possua elementos semelhantes aos de vários grupos sociais
consideravelmente diversos como os DJs, os folcloristas, as travestis, os usuários de maconha,
os membros de torcidas organizadas de futebol, os músicos de jazz, etc., foi no futebol que
encontrei a primeira característica comum: essa supracitada fluidez.
Pode-se ser aficionado, ou otaku, sem ter que manter algum tipo de vínculo formal.
Como o torcedor que vai ao estádio quando quer, um aficionado vai a um evento se tiver
tempo, dinheiro e/ou vontade. Esse grau de autonomia traz uma mobilidade e diversidade
muito grande dentro do campo, como também ocorre nas torcidas organizadas.
O quadro de associados varia de uma torcida para outra, sofrendo constantes
alterações. É interessante registrar que, além da grande rotatividade, nem todos os
torcedores são atuantes, ou seja, além do grupo de participantes fiéis, que podem ter
entre cinco e 15 anos de atuação, existem aqueles que atuam durante um certo tempo
e depois desaparecem, ou ainda os que acompanham todo o campeonato, saem e
depois retornam. Há, por fim, casos de integrantes que só vão aos jogos, sem contato
assíduo com a torcida. (CÂMARA, 2000, p. 107)
Por isso, optei por trabalhar basicamente com observações em eventos, tentando
perceber como eles eram loci de socialização dos aficionados que deles participavam. Isso me
levou a outra observação: a relevância das redes sociais (que comentarei nos capítulo dois e
oito). Quase todas as pessoas entrevistadas nos eventos me disseram espontaneamente que
estavam indo com algum amigo ou que tinham sido avisadas do evento por um amigo.
No que concerne às entrevistas, também devo informar que todos aqueles que foram
entrevistados em suas casas tinham, em maior ou menor grau, alguma relação social comigo.
Eram amigos, alunos, ex-alunos, colegas de trabalho ou do próprio PPGAS, etc. Embora
tenha tentado entrevistar famílias de pessoas do mundo anime com as quais mantive contato,
tal não foi possível. Alguns aficionados até se dispuseram a ser entrevistados, mas achavam
difícil conseguir que seus pais participassem da entrevista.
Tentei também participar de algumas atividades mais reservadas dentro desse
18
universo, como ensaios de apresentações, de coreografias e de lutas. Aconteceu fenômeno
semelhante: houve até concordância com a proposta, mas não se conseguiu definir uma data
para que isso ocorresse e essa idéia acabou não indo a frente.
Devo confessar aqui que tive certa dificuldade de ser mais incisivo, ou mais simpático,
para conseguir maior envolvimento em algumas situações. Porém, como verão aqui, muito foi
alcançado: viajei para longe, dividi quartos com desconhecidos, entrevistei pessoas que nunca
tinha visto antes, superei (ou pelo menos tentei superar) preconceitos, etc.
Quanto a redação da tese, reconheço que foi um tanto difícil compartimentalizar esse
universo. Suas principais manifestações estão interligadas: não se pode entender o mangá sem
se falar um pouco do Japão; para se entender a representação que se tem do Japão é preciso
saber algo sobre o samurai, símbolo do Japão feudal que nos parece fascinante,
principalmente por ser apresentado como dando alto valor a idéia de hierarquia, de totalidade
(o que parece estranho em um país ocidental como Brasil).
Apesar de ocidental, a cultura brasileira mantém uma forte tradição hierárquica,
tradição essa parcialmente reelaborada de forma lenta no último século. O século XX viveu
uma grande transformação tecnológica que permitiu aos jovens ter acesso a uma miríade de
manifestações culturais, como os mangás e os animês atualmente consumidos por muitos
desses jovens.
Essa imbricação e circularidade dos temas aqui abordados indústria cultural, cultura
de massa, revistas em quadrinhos, mangás, feudalismo, hierarquia, individualismo, sociedade
de consumo, animês, jogos eletrônicos, eventos, cosplays, sociabilidade, etc. fez com que
alguns pontos fossem esboçados aqui, para serem aprofundados ali, e recuperados adiante
para se ter uma visão mais definida dos mesmos.
Como muitos trabalhos acadêmicos, esse trabalho ganhou vida própria no decorrer dos
19
quase seis anos da minha pesquisa. Alguns capítulos se transformaram muito desde as
discussões em cursos do PPGAS, passando por debates na ANPOCS 2006, na RAM e na
ABRAPSO de 2007, e na RBA de 2008, até alcançarem a sua forma definitiva. Várias versões
foram apresentadas, discutidas, corrigidas, apagadas, reescritas, revistas, reinventadas,
acrescentadas, rediscutidas, etc.
Esse trabalho, em alguns momentos, me incentivou a ampliá-lo, em outros, tive que
contê-lo, mas tentei sempre ouvi-lo. Apesar dos contratempos naturais de qualquer pesquisa,
essa tese consegue dar conta, ainda que parcialmente, de um universo que se complexificou e
se expandiu consideravelmente nos últimos anos.
Nove capítulos constituem o corpo desta tese. Para desenhar esse trajeto de construção
do universo dessa cultura pop nipônica consumida pelos otakus, e preencher com as devidas
nuanças todas as cores que compõem esse quadro, foi seguido um caminho que, da mesma
forma que a cultura pop japonesa, pretende integrar o tradicional e o novo, o global e o local,
o individual e o coletivo.
O primeiro capítulo faço algumas considerações sobre o que seria a indústria cultural e
como ela contribuiu para a criação da cultura pop esse passo era necessário para poder
analisar o caso japonês. Também tive que definir o que entendo por juventude. Para isso
recuperei parte do desenvolvimento do sentido de infância e de juventude.
Visando familiarizar o leitor com o universo aqui estudado, que pode parecer estranho
e exótico para muitos, descrevi o processo de construção da indústria dos mangás e dos
animês. Feito isso, se tornou possível explicar o sentido da categoria pela qual muitos dos
aficionados pela cultura pop nipônica se reconhecem, o termo otaku.
No capítulo dois, a partir de algumas considerações etnográficas, exponho,
sucintamente, a natureza do campo. Reconstruo minha trajetória, desde a escolha do tema,
20
passando pela descoberta desse universo, em grande parte através de conhecidos meus, a a
minha inserção dentro desse campo. Recupero parte das minhas impressões iniciais, bem
como penso a minha própria relação com meu objeto de estudo, com o qual guardo algum
envolvimento afetivo, fruto dos meus tempos de criança e adolescência.
Termino esse capítulo discutindo as implicações pessoais envolvidas no meu trabalho
de campo, indo da fascinação pelo mundo anime até a minha relativa desilusão para com o
mesmo. Descrevendo-o, evidencio as referências que guiam esse estudo, bem como relato os
passos que caracterizaram a minha entrada nesse microcosmo.
No capítulo três, faço uma revisão de parte da literatura sobre o Japão, sua sociedade e
cultura. Realizo uma discussão a respeito da sua construção pelo Ocidente, destacando as
dificuldades de se saber, a partir das noções tão consolidadas a respeito do que seria esse
país, como seria um suposto Japão real.
Tal debate, fortemente matizado pelas reflexões de Said (1990), serve ao propósito de
mostrar que o Japão que os jovens cultuam hoje, através de seus bens culturais, é em grande
parte uma construção que, provavelmente, não corresponde totalmente à sua representação.
Contudo, tal representação, mesmo que não conta do que seria o Japão real, é importante
na medida em que traz elementos que a indústria cultural japonesa considera importantes para
a definição de uma identidade japonesa.
O capítulo seguinte é dedicado à imigração japonesa para o Brasil, iniciada em 1908.
A presença nipônica em nosso país deixou de ser marginal e hoje as produções da indústria
cultural japonesa ocupam um grande espaço nos meios de comunicação de massa. Esse
processo tem particularidades que remontam, em parte, ao contexto específico da inserção da
população imigrante japonesa no Brasil.
Trato aqui das representações que marcaram a presença japonesa no Brasil, a qual, em
21
alguns momentos, foi alvo de preconcepções fantasiosas enquanto que em outros sofreu
preconceitos racistas. Tento traçar aqui, senão uma origem da cultura pop nipônica no Brasil,
mostrar o contexto dentro da qual se construiu um dos pontos centrais desse trabalho: a
“Liba”, o bairro da Liberdade, a Meca dos aficionados por animês e mangás.
Tendo costurado o pano de fundo, no quinto capítulo eu desenho, de forma um tanto
impressionista recuperando parte de reminiscências pessoais e utilizando-as como fio
condutor – o desenvolvimento do universo da cultura pop nipônica no Brasil. Assim, pretendo
mostrar como a minha própria história acompanhou, com aproximações e distanciamentos, a
constituição desse campo. Com isso, considero possível dar um relato mais próximo do
próprio mundo anime vivenciado pelos otakus, posto que compartilho (ainda que
parcialmente) alguns de seus interesses.
Logo, recupero aqui a penetração cultural nipônica no Brasil nesses últimos 40 anos
desde os pequenos cinemas voltados para a comunidade nikkei (termo que designa os
membros da comunidade japonesa, tanto os de origem japonesa, quanto seus descendentes)
em São Paulo até a exibição, pela televisão (em rede nacional) dos animês.
Parto do seu aparecimento, dentro dessa comunidade em São Paulo, até a sua
disseminação pelo Brasil através da televisão. Esse levantamento histórico não foi exaustivo,
servindo mais para contextualizar o momento do início da minha inserção no campo. Viso
tornar o mundo anime mais compreensível para aqueles que tomaram conhecimento dele
mais recentemente.
Em seguida, dedico um capítulo à discussão dos motivos que podem explicar o
interesse de jovens brasileiros pela cultura pop nipônica. Afinal, apesar da distribuição dos
bens culturais japoneses ser um fenômeno mundial, o caso brasileiro tem sua especificidade.
Para compreender, por exemplo, a fascinação pelas concepções hierárquicas presentes nos
22
mangás e animês, recupero a discussão a respeito das semelhanças e diferenças das noções do
que seriam as representações relativas à identidade nacional no Japão e no Brasil.
Também mostro como o acesso a tecnologia aumentou a capacidade dos jovens
brasileiros de poder fazer escolhas quanto aos bens culturais com os quais melhor se
identificam. Nesse ponto fez-se necessário recuperar o caráter suspeito que os quadrinhos
ganharam para poder compreender o porquê de os mangás, por vezes, serem vistos como
ameaçadores.
No capítulo sete, eu procedo a uma descrição dos aficionados, buscando entender suas
características dentro de um contexto marcado pela diversidade de tendências que compõem o
universo juvenil. Destaco como esse universo se insere em um processo maior de busca de
sentido seja na religião ou nas práticas alternativas orientais como formas de se desenvolver a
individualidade. Em virtude da crença na maior necessidade de se dar mais autonomia aos
jovens para que se desenvolvam como indivíduos, essa subcultura de origem japonesa aparece
como forma alternativa de socialização.
O oitavo capítulo é uma descrição do aqui chamado mundo anime. Discuto a noção
nativa de que esse é um mundo diferenciado, bem como mostro a complexidade da luta de
alguns aficionados pela constituição de um espaço de legitimidade para esse universo. De
forma a explicar os motivos de tal engajamento, trago a questão de como o Japão foi
reconstruído por parte desses aficionados e como eles têm lutado pela constituição de locais
para reuniões. Encerro o capítulo com uma discussão sobre os conflitos pela manutenção da
autenticidade da cultura pop nipônica no Brasil, dentro da expansão desse microcosmo.
O último capítulo, o das considerações finais apresenta uma síntese de como os
produtos da indústria cultural japonesa, principalmente os mangás e os animês, se tornaram
uma referência para uma parcela da juventude brasileira e forneceram os elementos
23
necessários para a criação de um universo juvenil próprio e peculiar. A compreensão desse
processo é útil para se pensar a inserção de jovens em grupos com temáticas semelhantes e
com dinâmicas próximas.
O texto termina com uma conclusão na qual comento o momento atual de ampliação
em larga escala desse, até então, microcosmo dos aficionados pela cultura pop nipônica. Com
isso, encerro a tese, discutindo as conquistas e os problemas advindos desse processo de
expansão.
Os termos ani e mangá não foram transcritos em itálico por serem versões
aportuguesadas, embora ainda sejam palavras pouco conhecidas. O mesmo critério também
foi utilizado para o termo cosplay, pelo fato de ainda não existir equivalente em português e
de ter se mantido com essa forma em outros países, como na Espanha e na França. Essas
palavras aparecem nessa forma em diferentes publicações brasileiras, logo, já não sendo
reconhecidas, pelos próprios editores, como estrangeirismos.
Outro motivo foi evitar a duplicidade de grafias no texto, confundindo o leitor, que
na maioria dos textos citados, esses termos não aparecem em itálico. Os argumentos
anteriores não se aplicaram ao termo otaku pelo fato de ser uma categoria controversa, como
será explicado a frente, não sendo reconhecido por todos os aficionados. Nesse caso também,
o termo aparece algumas vezes aparece em itálico, outras vezes não, o que mostra que muitos
o reconhecem como palavra estrangeira.
Para não interromper a leitura desse trabalho, e por questões de formatação do arquivo
de texto (o que gerou muitas dores de cabeça), as imagens que coloquei na tese ficaram todas
no final, juntamente com os anexos.
24
1. O JAPOP E OS OTAKUS
Nos últimos cinco anos, é assombroso notar com
que rapidez e intensidade os mangás (histórias em
quadrinhos japonesas) e os animes (desenhos
animados japoneses) se integraram ao cotidiano
do mundo ocidental em geral e do Brasil em
particular. (MEIRELES, 2003, p. 203)
Quem não ouviu falar nos Pokémons ou em
Godzilla? Gostando ou não, são personagens que
marcaram a vida de mais de uma geração dentro e
fora do Japão. Os mais velhos viram Godzilla e
acabam conhecendo os Pokémons através dos
filhos. Nas últimas décadas, os heróis vindos do
Japão se rivalizam em popularidade com os Walt
Disney, Hanna Barbera ou Marvel. É um ramo da
indústria de entretenimento genericamente
conhecido como japop, ou cultura pop japonesa.
(SAKURAI, 2007, p. 342)
25
Quando se fala em Japão, as imagens que vêm à mente da maioria das pessoas,
provavelmente remeterão a duas possibilidades:
a) um Japão exótico, povoado de gueixas e samurais, de origamis, bonsais, ikebanas,
lutadores de sumô, sushis e sashimis; um mundo onde as tradições milenares do passado são
preservadas no presente;
b) um Japão futurista, dominado por robôs e computadores, pleno de recursos tecnológicos
como TVs gigantescas ou minúsculas, celulares ultra-modernos, casas inteligentes, etc., onde
o presente já traz o futuro.
Esse trabalho, ao tratar do Japop, traz em si parte dessas duas representações do Japão.
A cultura pop japonesa dilui o tradicional enquanto o mescla com parte do que a mídia
ocidental produz e exporta. De forma interessante, o Ocidente hoje se assolado pelos
produtos da indústria cultural japonesa, indústria essa que ao digerir, assimilar e transformar
as manifestações da cultura pop ocidental, as reelaborou de tal forma que parecem
eminentemente japonesas.
Bastaria citar, como exemplos:
a) uma imagem de Blade Runner que, ao retratar as metrópoles futuristas com referências à
imagem de Tóquio, parece esquecer que essa cidade, de certa forma remete a uma versão
hiperbólica de Nova York;
b) um filme como O Chamado, uma versão estadunidense do filme japonês Ringu, e que deu
partida para a onda do J-Horror (adaptações, e lançamentos, de filmes de terror japoneses);
c) o som da J-Music, com bandas e cantores japoneses cantando música pop, em um estilo
bem próximo do Ocidental até bandas com ênfase no visual, as chamadas Visual-Kei,
com aparência similar à de figuras do glam rock dos anos setenta, como David Bowie.
Assim, essa cultura pop japonesa consegue um efeito duplamente interessante: é
26
visível e invisível. Visível no que parece ter diferente e invisível naquilo que já foi tomado por
ocidental, sem se imaginar que pudesse ser nipônico. Pode-se perceber claramente que o
material produzido pela indústria cultural do Japão é, em muitos aspectos, diferente do que é
feito no Ocidente; na mesma medida, ele traz em si uma clara identificação com o mundo
ocidental.
Os japoneses tinham, como ainda têm, preferências locais baseadas em suas
condições, tradições, folclore e cultura, que demonstraram ser fortes o bastante para
criar e manter um amplo e rico mercado nacional. E assim se formou o pop japonês
contemporâneo: ocidentalizado na forma, mas nipônico no conteúdo.” (SATO, 2007,
p. 14-15)
Com isso, muitas pessoas se surpreendem ao saber que Speed Racer é um animê e que
a Hello Kitty é uma criação nipônica com mais de trinta anos. O Japão está entre nós. Sua
presença vai do caderno infantil, com capas com desenhos que reproduzem “bichinhos”
semelhantes a Pokémons, aos restaurantes da Zona Sul do Rio de Janeiro que servem comida
japonesa.
Tal penetração da cultura japonesa no Brasil, não pode ser negligenciada, pois é um
fenômeno mundial, que alcançou vários países, como os Estados Unidos, onde surgiu o
termo Japanimation, para se referir à animação japonesa essa “invasão” é discutida desde a
compra de empresas cinematográficas estadunidenses por corporações como a Sony. Os
animês e mangás fazem sucesso também na Espanha e na França esse último país, um
grande centro de produção de quadrinhos, (vide a importância do trabalho de Hergé e de
Moëbius) e de desenhos animados, através da produtora Société Nouvelle des Établissements
Gaumont, mais conhecida como Gaumont.
3
Contudo, esse sucesso atual está longe de significar aceitação unânime. Ainda
dificuldade em se aceitar que o mangá e o animê possam ser um bem cultural de qualidade.
Eles sofrem críticas que cobrem tanto o campo da estética quanto o dos valores.
3
Para um painel da produção quadrinística européia, cf. PATATI & BRAGA, 2006. Quanto a relevância da
produtora Gaumont, cf. BAWDEN, 1976.
27
Le manga souffre depuis des années, em Europe, d'une mauvaise réputation: les
dessins seraient bâcles, les scénarios inconsistants, et les thématiques hésiteraient
invariablement entre violence gratuite (dans les mangas pour garçons) et romantisme
à l'eau de rose (pour les mangas destinés à un public féminin). Les préjuges ont la
vie dure e l'éventail artistique du manga a longtemps été occulté.” (SCHMIDT e
DELPIERRE, 2005, p. 6)
Com isso, o Brasil de hoje, como boa parte do Ocidente, se tornou mais um mercado
consumidor de material da indústria cultural nipônica. Essa situação é visível, a título de
ilustração, a partir dos dados do artigo de Satomi (2005), na revista Made in Japan, de
fevereiro de 2005:
a) mais da metade dos desenhos animados exibidos no mundo são japoneses;
b) o “fenômeno Pokémon” teria movimentado em torno de 18,7 bilhões de dólares
c) 4,36 bilhões de dólares teriam sido exportados pelo Japão para os EUA em animês e
produtos relacionados.
Essa expansão mundial também está ocorrendo no Brasil, basta observar, por exemplo,
a diversidade de produtos relacionados ao desenho animado Naruto, o maior sucesso atual da
animação japonesa em nível global. Através desse produto toda uma série de licenciamentos
foi realizada, estando acessível ao público consumidor brasileiro. “Pour 'Naruto', la maison
d'édition Shueisha a pensé l'univers de ses héros comme un vaste plan marketing: manga,
animation, film, cartes à jouer, jeux vidéo, t-shirts, tapis de souris et autres gadgets sont placés
au même niveau d'intérêt éditorial.'” (SCHMIDT e DELPIERRE, 2005 p. 170)
Naruto é parte dessa crescente presença da animação e dos quadrinhos japoneses no
Ocidente. Devo ressaltar que essa tendência mundial teve aqui características específicas e
que os bens culturais de origem japonesa sofrem uma releitura peculiar em terras brasileiras.
O surgimento do mundo anime no Brasil, suas transformações, e os efeitos das recentes
mudanças nesse universo no perfil dos aficionados por cultura pop nipônica, serão
desenvolvidos posteriormente.
28
1.1. Entre Indústria Cultural e Cultura Pop
Para compreender melhor o impacto dessa presença nipônica no Brasil, faz-se
necessário discutir suas características. A indústria cultural como a conhecemos se torna
possível a partir do contexto gerado pela Revolução Industrial. Com a progressiva expansão
do capitalismo liberal, começa a se formar uma economia de mercado que criará condições
para o estabelecimento de uma sociedade de consumo. Isso ocorreu devido à constituição dos
mass media, os meios de comunicação de massa como a grande imprensa, o rádio, o cinema
e, posteriormente, a televisão (chegando aos dias atuais com a Internet).
Desenha-se a partir daí um debate entre os críticos da indústria cultural que a
consideram empobrecedora e até mesmo nociva para o desenvolvimento cultural de um
indivíduo ou de uma sociedade e os seus defensores que a vêem como democratizadora,
como propiciadora do acesso à cultura, até então restrita a poucos. Essa querela foi bem
definida por Umberto Eco como a oposição entre os “apocalípticos” e os “integrados”.
Para o “apocalíptico”, a cultura de massa é uma vulgarização da verdadeira cultura,
considerada como tendo sido produzida fora dos padrões do mercado. A crença na idéia de
uma arte pura, desvinculada dos interesses comerciais e acessível apenas a uma elite
esclarecida, impossibilita crer na possibilidade de tal arte poder ser levada até as massas sem a
sua corrupção.
Se a cultura é um fato aristocrático, o cioso cultivo, assíduo e solitário, de uma
interioridade que se apura e se opõe à vulgaridade da multidão (…), então o
pensar numa cultura partilhada por todos, produzida de maneira que a todos se
adapte, e elaborada na medida de todos, será um monstruoso contra-senso. (ECO,
1970, p. 8)
Por outro lado, o “integrado” acredita que a cultura da elite pode ser traduzida de
29
forma a atender aos interesses do público em geral. Sua diluição e padronização, ainda que a
transformando e reduzindo seu significado a formas mais simples e conteúdos mais gerais, é
válida pelo simples fato de deixar de ser restrita a poucos, passando a estar ao alcance de
muitos. Afinal,
(...) que a televisão, o jornal, o rádio, o cinema e a estória em quadrinhos, o
romance popular e o Reader's Digest agora colocam os bens culturais à disposição
de todos, tornando leve e agradável a absorção das noções e a recepção de
informações, estamos vivendo numa época de alargamento da área cultural, onde
finalmente se realiza, em amplo nível, com o concurso dos melhores, a circulação de
uma arte e de uma cultura 'popular'. (ECO, 1970, p. 8-9)
A concepção tradicional do que é uma obra de arte, como foi analisada por Benjamin
(2000), está ainda fortemente marcada pela crença e um valor superior que a mesma possuiria,
por ser (em tese) um produto único fruto do trabalho de um artista, em relação às obras
produzidas pela indústria cultural feitas em série por profissionais que visam atender às
demandas do público.
A obra de arte, pelo seu caráter único, possuiria uma aura, um valor diferenciado por
ser de difícil acesso por ser única, seria exclusividade de poucos, ou de um o que
estabeleceria um distanciamento entre ela e o público. O fato de ser um produto exclusivo
geraria um alto valor cultual, posto que seria extremamente valorizada por um número
reduzido de pessoas, em condições de ter acesso a ela.
O fato de ser uma obra única, lhe conferiria uma autenticidade e originalidade que a
diferenciaria dos produtos da indústria cultural, os quais são feitos em série, de forma
idêntica, tornando-os indiscerníveis uns dos outros. Levando em conta os atributos que
caracterizariam a obra de arte (aura, valor cultual e autenticidade), pode-se ver que o valor da
mesma depende muito mais da existência desses três elementos do que do seu valor
intrínseco. Esse valor é muito mais uma construção social do que algo inerente à obra de arte.
Como destacou Simmel
30
We are accustomed simply to designate as cultural values great works of artistic,
moral, scientific, and economic production. It is possible that they all are; but in no
way are they cultural by virtue of their purely objective, independent meaning, and
in no way does the cultural importance of the individual product exactly correspond
to its importance within its own objective category. (SIMMEL, 1971, p. 231)
Simmel coloca em destaque o fato de que uma parte considerável do valor atribuído às
chamadas grandes obras de arte” não seriam fruto da sua qualidade intrínseca, mas sim da
importância que adquiriram. Essa importância se deveria principalmente à constituição de
uma aura de singularidade que as envolveria, que justificaria o seu culto.
A indústria cultural, ao simplificar e reproduzir o que antes era complexo e antes
irreproduzível, contribuiria para a degradação da arte. Logo, a “arte” que essa indústria viesse
a produzir, não teria como se igualar à obra de arte que era produto de um talento único e sem
possibilidade de reprodução.
Com isso, as posições dicotômicas, para não dizer maniqueístas, dos apocalípticos e
dos integrados, ainda estão presentes. Está claro que a indústria cultural nos bombardeia
continuamente com produtos que, veiculados através dos mass media, constituem uma cultura
de massa marcada por valores ligados ao consumo, enfatizando a necessidade de consumo
crescente e contínuo que, se não for satisfeita, implicará em frustração pessoal e exclusão
social.
A indústria cultural, a cultura de massa e a sociedade de consumo estarem interligadas,
fazem parte do capitalismo liberal, o que levou alguns intelectuais (os “apocalípticos”) a
terem uma perspectiva negativa da indústria cultural. Entretanto, não é possível negar a
existência da indústria cultural e a importância dos bens que ela produz.
O interesse em agradar ao consumidor, para gerar consumo, não implica
necessariamente na total perda de qualidade de todos os seus produtos. espaço para
experimentações, para desenvolvimento de obras que não se destinam ao entretenimento fácil;
material direcionado para um público mais seleto.
31
Essa situação é visível dentro do meu próprio campo onde uma diversidade de
estilos, de autores, etc. Contudo, essa diversificação aconteceu depois que Osamu Tezuka
estabeleceu as bases do mangá e do animê contemporâneos. O trabalho de Tezuka une
elementos japoneses e ocidentais.
Na sua infância, ele foi um grande admirador da Companhia Teatral de Takarazuka
(Takarazuka Kagekidan). uma companhia teatral composta de mulheres. O guarda-roupa
dessas artistas e a sua maquiagem (realçando os olhos) seriam atributos que Tezuka integraria
a outros elementos, como a influência recebida do trabalho de Walt Disney. Com essas
referências, o depois conhecido “deus do mangá criou as fundações em cima das quais se
desenvolveriam os quadrinhos e a animação no Japão.
Do mangá ao anime, Osamu Tezuka (1928-1989) praticamente redefiniu a cultura
popular japonesa após a 2ª Guerra Mundial. Ele diversificou o estilo dos quadrinhos,
convertendo-os numa forma de arte e numa coqueluche nacional. Criou muitos dos
padrões repetidos até hoje no mangá, como aqueles olhos grandes das personagens.
Foi também o primeiro no Japão a descobrir o potencial da televisão para os
desenhos animados com a pioneira série Astro Boy. (ANIMA MUNDI /
WIEDEMANN, 2007, p. 301)
As bases lançadas por Tezuka foram simplificadas por alguns, bem como ampliadas
por outros. A produtora Toei ,responsável por desenhos como como Dragon Ball, Saint Seiya
e Digimon, pode ser considerada como um dos exemplos de estúdio de busca da simplicidade
formal, estando mais preocupada em realizar desenhos que alcancem grande sucesso de
público geralmente, o sucesso desses desenhos significa um grande lucro em licenciamento
de roupas, cadernos, brinquedos, jogos eletrônicos, etc.
Sua animação, em diversas ocasiões não é a mais original, tendo uma aparência
simples, com traços mais ligeiros, estando mais atenta à dinâmica da história, principalmente
às lutas de suas animações de estilo shonen (voltado para os rapazes, com ênfase nas lutas).
Cabe lembrar aqui que, mesmo que de forma um tanto superficial, a existência de temas como
amizade, companheirismo, auto-sacrifício, etc., costumam estar presentes nos desenhos da
32
Toei. O mesmo vale para o carro-chefe desse estúdio, os tokusatsu, seriados com heróis ou
equipes que, geralmente, enfrentam monstros que atacam a Terra, como O Fantástico Jaspion
e Comando Estelar Flashman, Esquadrão Relâmpago Changeman, etc. falarei novamente
deles no capítulo cinco.
4
Por outro lado, dentro desse mesmo universo existe o Studio Ghibli, responsável por
obras de reconhecido valor artístico, como os longas A Viagem de Chihiro (2001) e o Castelo
Animado (2004), dirigidos por Hayao Miyazaki. Ele dirige animês desde o final dos anos 70 e
seus filmes superam em público as animações da Disney, no Japão. Esse estúdio é a prova de
que é possível conciliar lucro com o que seria considerado qualidade artística, tanto do ponto
de vista da animação quanto do roteiro.
O Studio Ghibli tem uma sólida filosofia de trabalho. Pouco produz para a TV,
mercado principal do estúdios de animação japoneses, e ainda assim mantém-se
lucrativo com o sucesso crescente de seus longa-metragens para o cinema. Almeja
basicamente o público japonês, mas tem tido repercussão cada vez maior no resto do
mundo.” (ANIMA MUNDI/WIEDEMANN, 2007, p. 291)
Esse interesse do estúdio, principalmente do seu maior nome, Miyazaki, mostra a uma
alternativa à padronização na produção de desenhos animados. Porém, a concentração do
trabalho do Studio Ghibli na área cinematográfica, onde o ritmo de produção é mais lento,
evidencia a demanda por produtos uniformizados no mercado televisivo japonês, crítica
comumente feita à parte da animação ocidental.
Com um mercado tão amplo e lucrativo é possível encontrar aqueles como Hayao
Miyazaki e Katsuichi Nagai (criador da revista Garo), cujos trabalhos não se inserem na
dinâmica de linha de produção que caracteriza a indústria dos mangás e dos animês.. Entre
1964 e 1996, um período considerável, a Garo trabalhava explorando formatos mais ousados,
dando liberdade criativa aos autores.
4
“As ries japonesas O Fantástico Jaspion e Esquadrão Relâmpago Changeman tornaram-se uma verdadeira
febre no Brasil, gerando diversos produtos: revistas recreativas, gibis que reproduziam os episódios, álbuns de
figurinhas, bonecos, chicletes, armas de brinquedo e discos com trilhas sonoras.” (PEREIRA, 2008, p. 188)
33
Nem todos os mangás estão à mercê das vendas em grande quantidade e em curto
espaço de tempo, do público-alvo, das ordens das editoras e das vontades dos
leitores. Nos setores mais marginais da publicação de quadrinhos, em vários livros e
revistas especializados para adultos e nos cada vez mais comuns dojinshi, ou
fanzines, vêm surgindo todo tipo de visionários singulares dedicados à criação de
um mangá que eles são capazes de fazer. Alguns desses mangakás poderiam
receber o rótulo ocidental de 'underground' por sua recusa, ou falta de interesse, à
aceitação do sistema e sua abordagem pessoal sem concessões.” (GRAVETT, 2006,
p. 136)
Porém, o mercado ainda é dominado pelas grandes editoras como a Shueisha,
responsável pela publicação da revista Shonen Jump. Essas editoras exigem que as séries
mantenham altas tiragens e por isso exercem forte pressão sobre os mangakás. Essa situação
provoca um grande desgaste nas relações entre alguns autores, preocupados com sua
autonomia artística, e as editoras, atentas aos aumentos e reduções das vendas.
5
As cobranças para o cumprimento dos prazos, às vezes comprometendo a qualidade do
material produzido, bem como solicitações para que histórias de sucesso fossem
prolongadas, são conseqüências do mercado. As demandas do público acabam por influir nas
atividades das editoras, que buscam satisfazer aos consumidores ainda mais com as quedas
no número de tiragens nos últimos anos.
6
Essa necessidade de manter o público satisfeito, ainda que leve a um possível
comprometimento da qualidade artística de parte da produção, não deixa de ser um sinal da
importância do consumidor. Ele não seria um elemento totalmente passivo, sujeito aos
interesses das editoras, as quais trabalham continuamente tentando atender seus gostos.
Contudo, como os meios de comunicação de massa são produtos do próprio processo
de industrialização e da produção em série, eles foram considerados por alguns intelectuais
como meras formas de reificação e portadores de alienação para aqueles que consomem seus
5
“Nos anos 70, a Shonen Jump era líder imbatível do mercado de mangás japoneses. Para se ter uma idéia do
potencial de vendas da revista, em 1980 ela tinha uma circulação por volta de 3 milhões de exemplares; em
1985, 4 milhões; 1988, 5 milhões e, em seu auge do sucesso, mais de 6 milhões em 1994.” (GONÇALVES,
2006, p. 17)
6
As vendas de mangás no Japão, apesar de ainda manterem números astronômicos, têm diminuído com a
concorrência digital, principalmente devido ao material disponível para leitura em aparelho celular.
34
produtos. Essa postura é visível na seguinte observação feita por dois grandes nomes da
conhecida “Escola de Frankfurt”, Max Horkheimer e Theodor Adorno:
Filme e rádio se autodefinem como indústrias, e as cifras publicadas dos
rendimentos de seus diretores-gerais tiram qualquer dúvida sobre a necessidade
social de seus produtos. Os interessados adoram explicar a indústria cultural em
termos tecnológicos. A participação de milhões em tal indústria imporia métodos de
reprodução que, por seu turno, fazem com que inevitavelmente, em numerosos
locais, necessidades iguais sejam satisfeitas com produtos estandardizados.
(HORKHEIMER e ADORNO, 2000, p. 170)
Dessa forma, a cultura de massa muitas vezes foi analisada de forma negativa dentro
da academia, que a considerava alienante e de cunho mercadológico. Essa preocupação em
estabelecer e/ou satisfazer gostos de seus consumidores, seria uma das definições da
sociedade de consumo. que seria marcada pelo consumo desenfreado, sem maior sentido que
não o qual de encontrar prazer no próprio ato de consumir. Outra crítica à cultura de massa
seria a de que ela veicularia estereótipos, visões simplificadas da sociedade.
Essa indústria cultural produziria, em série, versões padronizadas da realidade social,
as quais seriam disseminadas pelos meios de comunicação de massa, constituindo
manifestações culturais que gerariam a alienação e incentivariam o consumo contínuo. Esta
perspectiva também faz parte das críticas de Adorno e Horkheimer à indústria cultural:
A atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural de hoje não
tem necessidade de ser explicada em termos psicológicos. Os próprios produtos,
desde o mais típico, o filme sonoro, paralisam aquelas faculdades pela sua própria
constituição objetiva. Eles são feitos de modo que a sua apreensão adequada exige,
por um lado, rapidez de percepção, capacidade de observação e competência
específica, e por outro é feita de modo a vetar, de fato, a atividade mental do
espectador, se ele não quiser perder os fatos que, rapidamente, se desenrolam à sua
frente.” (HORKHEIMER e ADORNO, 2000, p. 175)
Essa interpretação da indústria cultural, como simplificadora do real para melhor
aceitação e satisfação de seus consumidores, estabeleceria um antagonismo entre os bens
culturais por ela produzidos em série, que comporiam a cultura de massa, e as manifestações
únicas produzidas pelos artistas tradicionais que seriam a base do que seria uma cultura
superior e/ou erudita.
35
Até o século XIX, havia a tradicional oposição entre o que era considerada cultura
erudita produzida por artistas especializados, conhecedores de técnicas e de conhecimentos
apurados (voltada para as elites) – e o que era chamada de cultura popular que, diferentemente
da cultura erudita, era produzida pelo próprio povo, de forma espontânea para seu próprio
consumo.
A cultura de massa, por ser um bem industrial, não possuiria o mesmo valor que a
cultura erudita por seu caráter simplificado, para um consumo amplo, e também não possuiria
a autenticidade, espontaneidade que se atribui à manifestações da cultura popular. Colocada
entre a cultura erudita (elevada) e a cultura popular (autêntica), a cultura de massa seria uma
cultura inferior, por ser produzida em série e estando voltada para o mercado.
Isso explica o fato de que, enquanto que a cultura popular é alvo de intensas pesquisas,
por ser considerada como autêntica, tida até como representativa do que seria a nacionalidade
de um país, a cultura de massa seria malvista, tendo menor valor por ser industrial, não sendo
representativa por ser estrangeira, sendo ameaçadora, por ser mera mercadoria, sendo
superficial, por ser simplificadora. Logo, a cultura de massa é vista de forma pejorativa, como
cultura pop. Como bem destaca Eco:
O apocalíptico não reduz os consumidores àquele fetiche indiferenciado que é o
homem-massa, mas enquanto o acusa de reduzir todo produto artístico, até o mais
válido, a puro fetiche reduz, êle próprio, a fetiche o produto da massa. E ao invés
de analisá-lo, caso por caso, para fazer dêle emergir as características estruturais,
nega-o em bloco. (ECO, 1970, p. 19)
É interessante perceber como essa perspectiva fincou raízes no senso comum, como
percebi em minha pesquisa. Uma colega de trabalho, professora alfabetizadora do município
do Rio de Janeiro, ao ser perguntada sobre o que achava dos desenhos animados japoneses,
me disse simplesmente que não gostava, sendo que não aceitou que eu lhe emprestasse um
animê que eu considerava desprovido de violência.
Experiência semelhante vivi com um amigo, adepto do kardecismo, que se mostrou
36
reticente a assistir um animê que lhe emprestei (eu achava que as discussões filosóficas que
percebi no desenho lhe interessariam); sem o assistir, disse que não gostava desse tipo de
animação, mas acabou assistindo devido a minha insistência e reconheceu algumas qualidades
no desenho. Tal resistência à cultura pop também foi vista na academia, a qual ainda
manifesta certa reticência em dar valor à cultura de massa.
Os intelectuais consideram como grandemente improvável a idéia de que os mass
media poderiam ter uma ação mais positiva do que marginal. Eles estigmatizam
como contrária aos interesses intelectuais, e de concepção vulgar, a maior parte do
que existe de popular no conteúdo dos mass media; nos escalões médios e inferiores
da população, esta inegável popularidade é vivamente deplorada entre os educadores
e, em geral, entre aqueles cujos interesses artísticos e culturais são educados.
(WIEBE, 1973, p. 156)
Em conversa com outro pesquisador, vindo da área da pedagogia, mas também voltado
para o estudo dessa subcultura de origem japonesa, ele confirmou que também recebeu
olhares oblíquos, risos e comentários jocosos quando falava de seu tema o que também
ocorreu comigo quando explicava minha pesquisa para alguns de meus pares (por outro lado,
alguns também demonstraram vivo interesse por meu trabalho e lhe deram grande
importância).
Cabe aqui discutir essas visões que interpretam a indústria cultural como vilã,
destruidora da arte, ou como heroína, disseminadora da cultura. Sem negar que a indústria
cultural, tem como objetivo o consumo, o que significa atender aos interesses de seu público
consumidor, cabe destacar que esse público, não é necessariamente passivo.
7
Além disso,
deve-se evitar pensar que todo entretenimento seja uma forma de alienação. Essa relação entre
entretenimento e alienação se coloca como ponto a ser discutido.
Também cabe questionar se os produtos da indústria cultural são capazes de reduzir a
7
Na interpretação de Horkheimer e Adorno, o consumidor dos bens produzidos pela indústria
cultural possui uma atitude passiva diante da mesma, sendo totalmente manipulado por ela. “A indústria cultural
pode fazer o que quer da individualidade somente porque nela, e sempre, se reproduziu a íntima fratura da
sociedade. Na face dos heróis do cinema e do homem-da-rua, confeccionada segundo os modelos das capas das
grandes revistas, desaparece uma aparência me que ninguém mais crê, e a paixão por aqueles modelos vive da
satisfação secreta de, finalmente, estarmos dispensados da fadiga da individualização, mesmo que seja pelo
esforço – ainda mais trabalhoso – da imitação.” (HORKHEIMER e ADORNO, 2000, p. 203)
37
capacidade intelectual de seus consumidores, geralmente vistos como incapazes de exercer
um juízo crítico sobre o que consomem. um certo elemento pejorativo nessa perspectiva
de que o público é totalmente passivo e manipulado pelos meios de comunicação de massa. A
presença de jovens usando esses mesmo meios como forma de interação social evidenciam a
limitação de tal raciocínio.
Como o alvo dessa tese é a cultura pop nipônica no Brasil, caracterizada pelos mangás,
animês e jogos eletrônicos, a complexidade da relação entre os bens produzidos pela indústria
cultural japonesa e o seu consumidor brasileiro será mais explorada a frente, quando da
análise do campo.
1.2. A Juventude entra em Cena
A influência da mídia sobre os jovens é um assunto de grande discussão e possui uma
grande importância nesse trabalho. Por isso, é necessário esmiuçar aqui o significado dos
termos adolescente e jovem os quais aparecem de forma recorrente no texto. Também é
preciso delimitar o que entendo por juventude, dentro dos limites da nossa pesquisa
principalmente no que se refere aos seus limites cronológicos.
Cabe aqui destacar a importância do trabalho pioneiro de Philippe Ariès sobre a
criança e a família, publicado em 1973. Sua pesquisa foi marcante por colocar uma questão: a
de que a visão atualmente existente a respeito da infância como um período diferenciado do
desenvolvimento humano foi historicamente construída.
A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua evolução pode
ser acompanhada na história da arte e da iconografia dos séculos XV e XVI. Mas os
sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente numerosos e
significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII. (ARIÈS, 1981,
p. 65)
38
Com esse texto, ele valorizou a discussão a respeito da temporalidade da infância, da
juventude e da família, mostrando que eram instituições constituídas no tempo, sujeitas a
transformações, e não entidades atemporais, fixas. Ele afirma que a atual idéia de infância
seria recente, remontando à passagem da Idade Média para a Idade Moderna.
Por outro lado, apesar de haver a constituição da idéia de infância (como é conhecida
atualmente), mais precisamente entre os séculos XVI e XVII, ainda não havia grande rigor na
diferenciação por faixas etárias: salvo a criança, no caso entendida como aquela na primeira
infância (até os 9-10 anos) uma maior definição cronológica do que seriam a
adolescência/juventude só seria alcançada em um período bem mais recente, basicamente no
século XIX.
De fato, ainda não se sentia a necessidade de distinguir a segunda infância, além dos
12-13 anos, da adolescência ou juventude. Essas duas categorias de idade ainda
continuavam a ser confundidas: elas se separariam mais para o fim do culo
XIX, graças à difusão entre a burguesia, de um ensino superior: universidade ou
grandes escolas. (ARIÈS, 1981, p. 176)
Tal preocupação com a educação é um dos sinais do aumento da importância da
juventude como período privilegiado para a formação da vida adulta. A psicologização
crescente ganha força entre as classes mais elevadas no final do século XIX e começa a se
disseminar (muitas vezes de forma incompleta e parcial) entre as camadas médias no século
XX. Essa nova realidade, que marcaria a família de modelo burguês (da qual falarei no
capítulo sete), propiciará condições para uma atenção maior à formação da individualidade de
seus filhos.
Para não entrar de forma demasiada no campo da discussão sobre as características da
juventude, sua diferença em relação à adolescência, etc. o que será feito mais a frente ao
tratar especificamente dos jovens aficionados –, optei por trabalhar com um critério
cronológico de juventude.
39
Para os fins desse trabalho foram considerados jovens todos aqueles entre 12 e 25
anos. Esse parâmetro baseou-se tanto em definições legais, quanto em considerações feitas
dentro do ramo da psicologia da adolescência e da juventude, tendo em mente as
contribuições dos estudos sobre a juventude brasileira, mas principalmente, estando atento às
minhas observações no campo.
Um dos limites que poderia ter sido levado em conta seria o legal. Bastaria seguir o
que está escrito no ECA (o Estatuto da Criança e do Adolescente), segundo o qual, de acordo
com o art. da Lei 8.069/90: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até
doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.”
Contudo, a minha inserção no mundo anime evidenciou uma grande presença de
crianças (menores de doze anos), geralmente acompanhadas por seus pais, interessados em
conhecer esse microcosmo, e/ou instigados a levá-las. Cheguei a ver, no Anime Dreams de
2005, uma criança se apresentando em palco caracterizada de personagem do animê
Cavaleiros do Zodíaco.
Da mesma forma, também uma grande quantidade de jovens, com mais de dezoito
anos (geralmente na faixa dos 25 anos) entre os aficionados. Apesar de nem todos trabalharem
e de ainda viverem com os pais, sendo economicamente dependentes deles, eles podem ser
pensados como participantes de uma cultura juvenil. Isso sem falar na minoria de pessoas com
mais de trinta, como é o meu caso.
Apesar da periodização aqui utilizada se distanciar dos limites estabelecidos pelo
ECA, ela tem legitimidade dentro dos estudos da psicologia do adolescente, onde diversos
autores trabalham com periodizações diferentes para o que seriam a adolescência e a
juventude, bem como também possuem visões diferentes das características tanto de uma
quanto da outra. Não uma delimitação definitiva, aceita de forma unânime por todos os
40
pesquisadores, entretanto:
(...) um número crescente de psicólogos parece concordar com Ariès que o período
de desenvolvimento denominado adolescência é, em larga escala, uma ‘invenção’ da
moderna sociedade industrial. (...) argumentam que o conceito está intimamente
ligado às leis trabalhistas para as crianças e os sistema educacional de massas
ambos os quais mantêm a maioria dos jovens longe da força-trabalho e
economicamente dependentes de seus pais até quase que os vinte anos de idade.
(GALLATIN, 1978, p. 11)
Contudo, colocar os vinte anos como marco final da juventude não conta da
realidade que encontrei no campo, onde é visível uma quantidade considerável de aficionados
fora dessa faixa etária os assim chamados “jovens adultos”, com a idade entre 25 e 30 anos.
Essa escolha também “estica” a juventude um pouco além do que tem sido a prática das
pesquisas sobre jovens brasileiros. “O grupo de idade (...), de 15 a 24 anos, é o que vem se
tornando convenção, no Brasil, para abordagem demográfica sobre juventude, pois
corresponde ao arco de tempo em que, de modo geral, ocorre o processo relacionado à
transição para a vida adulta.” (ABRAMO, 2005, p. 45)
Sendo assim, apesar de considerar o período entre os 12 e os 25 como minha principal
referência em termos de faixa etária, deixo claro que um número considerável de
aficionados que escapam desses limites. Entretanto, esse número de crianças e de adultos, não
compõem a maioria do universo aqui analisado.
1.3. Mangás e Animês na Terra do Sol Nascente
Ao se recuperar a origem do mangá, abre-se a possibilidade de se reconstruir o
surgimento dessa forma de expressão. Observando-o a história do mangá, pode-se perceber
que ele possui um grande débito em relação ao Ocidente. Embora os quadrinhos ocidentais
possam, aparentemente, ter perdido sua vitalidade frente ao mangá o qual é visto como um
41
produto de maior valor artístico por alguns aficionados –, os quadrinhos japoneses adquiriram
a sua feição atual graças ao contato com os quadrinhos ocidentais,
Na verdade, o mangá poderia jamais ter nascido se a longa herança cultural japonesa
não tivesse sido violentamente sacudida pelo fluxo de desenhos, caricaturas, tiras de
jornal e quadrinhos ocidentais. Negar isso é reescrever a história. O mangá nasceu
do encontro do Oriente com o Ocidente, do velho com o novo, ou, como outro
slogan da modernização do século XIX colocou, foi um caso de wakon yosai
'espírito japonês, aprendizado ocidental'. (GRAVETT, 200, p. 22)
Apesar da importância da troca com o Ocidente, costuma-se reconhecer que as origens
do mangá remontam a um período bem anterior ao contato com a cultura ocidental. O
quadrinho surgiu como arte seqüencial no Ocidente no século XIX; as origens remotas do
mangá seriam bem anteriores, remontando aos chôjûgiga. Eram pergaminhos com desenhos
de animais produzidos pelo sacerdote-artista Toba (1053-1140). No período Edo, também
chamado de período Tokugawa (1603-1868), ganhariam importância os ukiyo-e, gravuras
cômicas e, às vezes eróticas, produzidas em pranchas de madeira. (MOLINÉ, 2004, p. 18)
No século XIX, o artista Katsushita Hokusai, famoso por seus ukiyo-e, acabou por dar
origem ao mangá seus desenhos passaram a ser chamados de Hokusai Mangá. O termo
mangá, uma palavra composta por dois kanjis: , man, que significaria involuntário e/ou
irresponsável, e , ga, que significa desenho e/ou imagem. Em função da diversidade de
significados que um ideograma pode assumir, o termo mangá por vezes é traduzido como
desenhos cômicos, involuntários ou irresponsáveis.”
Com a chegada da frota estadunidense e a posterior abertura forçada do Japão para o
Ocidente, a influência dos quadrinhos europeus e dos Estados Unidos se fez presente. Em
1862 era criada a revista Japan Punch e, no início do século XX, começaria a surgir uma
produção quadrinistica expressiva no Japão o termo mangá seria retomado para definir os
quadrinhos japoneses. “Desta maneira, as duas primeiras décadas do século 20 presenciaram a
42
implantação definitiva da narrativa ilustrada no Japão, particularmente graças à introdução
das primeiras strips (tiras) procedentes dos Estados Unidos, que, da mesma maneira que nos
países ocidentais, vão exercer sua potente influência entre os desenhistas japoneses.”
(MOLINÉ, 2004, p. 19)
Tem início assim a publicação regular de quadrinhos, inicialmente em semanários para
adultos, mas logo alcançando o público infanto-juvenil. Embora a produção de quadrinhos
fosse uma presença regular nos jornais, ela sofreu uma redução durante a guerra. A
diminuição do volume do papel e o esforço de guerra levaram à utilização dos mangás como
arma de propaganda.
Os mangás adquiririam o seu formato contemporâneo após a derrota da Japão na
Segunda Guerra Mundial. A ocupação estadunidense aumentou a influência ocidental e os
quadrinhos tiveram um forte impacto no Japão. Vale ressaltar, como foi falado anteriormente,
que os quadrinhos produzidos nos EUA estavam se expandindo pelo mundo, inclusive no
Brasil. A descoberta dos comics teve grande efeito sobre o mangaka ( , autor de
mangá), o que levou ao surgimento de material produzido pelos japoneses para japoneses.
Após a guerra, ser um mangaká representava entrar num ramo de competição
totalmente novo e uma alternativa criativa ao trabalho no chão de fábrica ou no
escritório. Durante os primeiros oito meses de paz, o número de editores de livros e
mangás cresceu de cerca de 300 para mais de 2 mil. O mercado de mangás para
meninos estava pronto para ser explorado, e histórias destinadas a ele gradualmente
começaram a ocupar mais espaço nas revistas mensais que se multiplicavam nas
bancas desde o final dos anos 1940, período em que foram estabelecidas as
fundações da emergente indústria de mangá de massa. (GRAVETT, 2006, p. 58-59)
Assim, o mangá se tornaria progressivamente um produto fundamental da indústria
cultural japonesa. O caráter artesanal que marcara a sua origem era substituído pelo ritmo
frenético das editoras, ávidas por páginas e mais páginas. Esse novo campo abria
possibilidades para jovens desenhistas e roteiristas. Um desses desenhistas era o
43
mencionado Osamu Tezuka.
Além de sua formidável energia, Tezuka era movido pela crença de que o mangá e o
animê deveriam ser reconhecidos como parte integrante da cultura japonesa. Ele foi
o principal agente da transformação da imagem do mangá, graças à abrangência de
gêneros e temas que abordou, às nuances de suas caracterizações, aos seus planos
ricos em movimento e, acima de tudo, à sua ênfase na necessidade de uma história
envolvente, sem medo de confrontar as questões humanas mais básicas: identidade,
perda, morte e injustiça. (GRAVETT, 2006, p. 28)
Tezuka não produziu obras para crianças e jovens, como também para adultos,
mostrando a possibilidade de o mangá atender diferentes faixas etárias. Ele também
influênciou toda uma geração de autores de mangás como Reiji Matsumoto (Uchuu Senkan
Yamato), Shotaro Ishinomori (Ciborg 009), Tatsuo Yoshida (Speed Racer), entre outros.
Os leitores de mangás foram ficando mais velhos, mas continuaram lendo mangás,
nesse caso, voltados para temáticas adultas. Com isso a leitura de mangás se tornou um hábito
comum a uma grande parcela da população japonesa. Isso é evidenciado pelas grandes
tiragens, devido ao seu baixo custo e pela sua segmentação, atendendo diferentes públicos,
desde estudantes, trabalhadores assalariados e aposentados, mulheres solteiras e donas de
casa, etc. Cobrem uma diversidade enorme de temas, desde sexo até enologia, de esportes a
ficção científica, da vida escolar às atividades empresariais.
Em virtude dessa diversificação, constituíram-se publicações voltadas para rapazes,
com histórias centradas em ação, lutas, amizade, companheirismo, esforço e superação (os
mangás shonen), e para moças, com narrativas mais voltadas para os relacionamentos (os
mangás shojo). Progressivamente o segmento do mangá shojo foi se complexificando. Nos
anos 60, com o número crescente de mulheres mangakás surgiram alterações na forma e no
conteúdo dessas obras, tornando-as mais próximas do público feminino.
8
Existem também mangás com temática adulta, os gekigá, que abordam assuntos mais
8
Assim, dentro do shojo, acabaria por surgir as linhas yuri e yaoi, com personagens femininas e masculinas
envolvidas em relações afetivas homoeróticas. Essas duas linhas serão comentadas mais a frente.
44
pesados, como crime, política, etc. Esse tipo de mangá garantiu a continuidade e fidelidade
dos leitores ao passarem da juventude para a maturidade. Com isso, a revista em quadrinhos
japonesa tornou-se uma mídia consumida não só por crianças e adolescentes, mas também por
adultos.
A história de sucesso do mangá moderno não pode ser compreendida por inteiro sem
o reconhecimento do papel crucial dos dramas e do clima instigante introduzidos
pelos novos artistas de gekigá. Em grande parte graças à sua contribuição, em vez de
crescerem e se afastarem dos quadrinhos, tanto os leitores como os criadores
continuaram a crescer com eles. (GRAVETT, 2006, p. 42)
A liberalidade com a qual os japoneses lidam com a sexualidade, vista como uma face
da vida, sem as noções ocidentais de pecado explica o porquê de muitos quadrinhos
possuírem cenas com grande tensão sexual. Vale destacar que o mangá, por se tratar de
desenhos, possui uma liberdade maior para explorar imagens sensuais e até cenas de sexo.
Isso é evidenciado pelo surgimento dos mangás pornográficos, os conhecidos hentai o
termo significa “pervertido”. Embora os quadrinhos japoneses não sejam alvo da mesma
vigilância que os comics estadunidenses, eles também são passíveis de censura; a proibição de
se representar órgãos sexuais talvez seja a mais conhecida.
Tais proibições se estenderam também para os animê, filmes pornográficos e ensaios
com gente de carne, osso e genitália, que precisam se valer do que for, seja distorção
de imagem, tarja preta ou cortes para esconder os órgãos sexuais. No entanto, essa
lei é aplicada para aquilo que é lançado internamente. Os produtos do gênero são
exportados em suas versões integrais. (ROSA, 2005, p. 38)
A partir dos anos 70 surgem os dôjinshi (fanzines), e ocorre, em 1975, a primeira
Comiket (de Comic Market), uma convenção voltada para os aficionados por revistas em
quadrinhos. Esse evento chega a alcançar cerca de duzentas mil pessoas em seus três dias de
duração. (SCHMIDT e DELPIERRE, 2005, p. 162) Através dos fanzines surgem novos
talentos, cujos trabalhos podem alimentam as revistas de grandes editoras.
Os mangás acabaram por influenciar o estilo de produção de quadrinhos em vários
45
países. Essa influência chegou aos Estados Unidos, onde a estética do mangá tem forte
presença nos trabalhos de Frank Miller, por exemplo. Outros países onde o mangá alcançou
grande repercussão foram a França e Espanha, além da Coréia, onde surgiu uma grande
produção de quadrinhos, os manhwas.
Um mangá japonês é editado em ordem inversa à do Ocidente, da direita para
esquerda, começando-se a leitura pelo que seria, no Ocidente, a contracapa por isso, alguns
mangás possuem uma página de advertência caso uma pessoa tente lê-lo na ordem ocidental
(“Pare! Você está lendo do lado errado”). Houve o lançamento de mangás adaptados para o
ordem característica do Ocidente, as chamadas edições espelhadas.
Com o tempo, o conhecimento do universo dos mangás pelo público ocidental fez
com que se acostumasse com a leitura oriental. Como resultado, atualmente
editoras que apresentam seus títulos com a ordem de leitura japonesa não
necessariamente por que seus autores exigiram isso, mas por que boa parte dos seus
leitores assimilaram completamente a maneira de ler e compreender um mangá de
acordo com a mentalidade japonesa. (MOLINÉ, 2004, p. 27)
Os mangás são publicados geralmente em antologias com várias histórias diferentes.
publicações com tantas páginas que parecem catálogos telefônicos, porém possuem baixo
custo e têm alta vendagem. Algumas histórias, as de maior sucesso, após alcançarem cerca de
150 páginas, acabam por ser publicadas separadamente, em volumes próprios, os chamados
tankohon. Esse é o formato de mangá conhecido no Brasil.
Algumas das principais características presentes em muitos mangás são a impressão
em preto e branco, para reduzir de custos e baratear o preço; a linguagem cinematográfica,
com narrativa dinâmica (por vezes páginas sem texto, apenas com imagem para dar a
ilusão de movimento). As histórias possuem grande tensão emocional e dramática,
envolvendo o leitor. Para explorar mais as reações das personagens o uso recorrente do
close, com ênfase no rosto e nos olhos.
46
No que concerne ao conteúdo, os personagens dos mangás são diferentes dos
produzidos no Ocidente pelo fato de viverem vidas bastante verossímeis. Eles nascem,
crescem e envelhecem, o que não costuma ocorrer nas histórias em quadrinhos ocidentais
onde os personagens não evoluem como pessoas. Eles não modificam suas personalidades,
sendo basicamente os mesmos no decorrer do tempo (isso se passagem de tempo na
história).
“(...) na maioria das vezes, os protagonistas de um mangá têm seu lado psicológico
mais profundamente abordado que os 'heróis de papel' ocidentais. Diferente do
arquétipo do herói 100% perfeitos, os personagens têm seus defeitos e sentimentos:
riem, choram, crescem, amadurecem e alguns morrem (…); paralelamente ao
desenvolvimento do mangá, aprendem a partir de seus erros, e sua história quase
sempre tem um final definitivo, quando o autor conclui uma série.” (MOLINÉ,
2004, p. 29-30).
Enquanto nas revistas em quadrinhos ocidentais espera-se e deseja-se o final feliz,
com a vitória do herói, no Japão ela não é a única possibilidade aceitável. Um final onde o
herói morre pela sua causa ou sacrifica sua felicidade, às vezes até a própria vida, para
cumprir uma obrigação também pode ser um “final feliz” do ponto de vista japonês. O
comportamento seria fortemente pautado por uma série e obrigações e deveres:
a) ko on – dever para com o imperador
b) oya on – dever para com os pais
c) nushi no on – dever para com seu chefe
d) shi no on – dever para com seu professor
e) on jin – dever para com alguém com quem estamos em débito
a) gimu – condição de se estar em débito (nunca totalmente quitável)
b) gimu chu – estar em débito com o imperador
c) gimu ko – estar em débito com os pais
d) gimu nimmu – estar em débito com seu trabalho
a) giri uma obrigação específica que deve ser paga de forma equivalente ao favor
recebido, dentro de um certo tempo.
b) giri para o mundo uma obrigação para com um senhor, a família ou outros
benfeitores
c) giri para o próprio nome obrigação de vingar um insulto, de não aceitar fracasso
profissional, de observar os devidos costumes.
9
9
Para maiores detalhes sobre esses deveres e obrigações, cf. BENEDICT, 2002, p. 101.
47
Ainda que tais obrigações não sejam encaradas com a mesma rigidez que séculos
atrás, elas ainda constituem referências importantes, estando presentes nas representações
produzidas pela indústria cultural japonesa. Isso explica porque nem sempre o bem estar dos
personagens principais é algo que agrade o público japonês, a não ser que eles tenham
cumprido o ciclo de realizações necessário para desempenharem todas as obrigações devidas
e esperadas deles. Se a missão foi cumprida, se o fardo foi carregado de forma digna, a morte
do herói é plenamente aceitável.
As platéias populares japonesas assistem debulhadas em lágrimas o protagonista
chegar ao seu fim trágico e a adorável heroína ser assassinada devido a uma (sic)
giro da fortuna. Tais enredos constituem os pontos altos do entretenimento de uma
noite. São o que as pessoas vão ver no teatro. Mesmo os seus filmes modernos são
construídos sobre o tema dos sofrimentos do herói e da heroína. (...) Não precisa
haver um final feliz. A piedade e a simpatia pelo herói e heroína abnegados têm toda
a procedência. O seu sofrimento não advém do julgamento de Deus sobre eles.
Revela que cumpriram a todo custo o seu dever sem que nada desamparo, doença
ou morte – os desvie do verdadeiro caminho. (BENEDICT, 2002, p. 164)
Essa perspectiva permite perceber que o que alguns poderiam considerar um certa
“flexibilidade moral” devido ao fato de que em algumas obras o bem vence com dificuldade e
nem sempre os vilões são punidos. Pode-se ver que essa aparente “flexibilidade moral” é
relativa, e que a moralidade japonesa não é tão flexível quanto parece.
O que ocorre é que a definição do que é certo pode ser variável, dependendo das
dimensões da honra que estão envolvidas. Não existe um bem ou mal puro posto que qualquer
ação possui conseqüências e o que é benéfico é relativo. Em tese, uma pessoa pode agir de
diferentes formas, de acordo com a situação em que se encontra e como se posiciona em
relação a mesma. Suas ações podem estar corretas dentro daquele contexto, bem como podem
ser criticadas se vistas em outra escala ou perspectiva. Assim, os japoneses:
Não invocam um imperativo categórico ou algum preceito áureo. A conduta
aprovada é relativa ao círculo dentro do qual se manifesta. Quando um homem age
'pelo ko' está se comportando de certa maneira; quando age 'simplesmente pelo giri'
ou 'no círculo do jin', estará procedendo, julgariam os ocidentais, em caráter bem
diferente. Os códigos, mesmo para cada 'círculo', estão organizados de tal maneira
que, quando as condições mudam dentro dele, poderá justificar-se uma conduta
totalmente diversa. (BENEDICT, 2002, p. 168)
48
Vilões como Vegeta (Dragon Ball Z), Maximilian Pegasus (Yu-Gi-Oh), Shinobu
Sensui (Yu-Yu Hakusho), Mikage Kagami (Ayashi no Ceres), entre outros, que no Ocidente
seriam considerados como o puro mal, não são vistos assim no Japão. Eles estão seguindo um
círculo, devendo cumprir atribuições ou papéis que herdaram ou que acabaram por criar para
si mesmos. Por isso, mesmo realizando vários ações ruins, perseguindo e atrapalhando os
heróis, eles também podem ser “heróis”, por cumprirem com seus deveres e/ou obrigações.
Muitas vezes a sua derrota não é uma derrota de verdade que eles realizaram seus
objetivos e “pagaram” seu on. No Ocidente, são adorados por serem vistos como
transgressores, o que a rigor não são. O certo e o errado dependem da situação em que se está
inserido, já que os deveres e obrigações são diversos e atingem níveis diferentes.
Vegeta pode ser vilão por ser um guerreiro violento e cruel, porém estava agindo de
acordo com os princípios de seu povo. Quando ele se junta a Goku, o herói das séries Dragon
Ball e Dragon Ball Z, e passa a lutar do lado dos heróis, suas falhas anteriores deixam de ter
sentido, são esquecidas, e seu vínculo gera uma nova ordem de deveres e obrigações. O
mesmo acontece com outros vilões que depois se tornam aliados dos heróis, como Piccolo
(Dragon Ball Z), Desslar (Uchuu Senkan Yamato), etc.
Assim, a percepção de heroísmo presente nos animês e mangás é quase que
diametralmente oposta à que existe no Ocidente, o que pode explicar o fascínio desse material
sobre muitos jovens que o consomem sem, no entanto, o compreenderem totalmente. Aquele
personagem que, aqui no Ocidente, seria um vilão, no Japão tem características heróicas por
cumprir o que se espera dele.
Embora Vegeta seja arrogante e cruel; ele na verdade está agindo como se espera de
um príncipe Saiyajin raça de violentos guerreiros do universo ficcional de Dragon Ball Z.
Logo, ele não é um desajustado, um transgressor; se analisado mais detidamente, pode-se ver
49
que ele está seguindo as regras ainda que sejam regras cruéis e que o levem a fazer ações
violentas.
Um exemplo é quando Vegeta enfrenta Majin Boo, que está destruindo o mundo.
Quando o filho de Vegeta, Trunks, decide lutar com o pai, Vegeta engana o próprio filho para
nocauteá-lo e tornar possível que ele seja salvo, enquanto enfrenta uma luta mortal para salvar
a todos com a sua própria morte. A lógica do que é heróico é bastante diferente.
O herói com que simpatizamos por estar apaixonado ou porque nutra ambições
pessoais, eles condenam como fraco por ter permitido que tais sentimentos viessem
interpor-se entre ele e o seu gimu ou giri. Os ocidentais sentem-se inclinados a
considerar um sinal de força revoltar-se contra as convenções e conquistar a
liberdade, a despeito dos obstáculos. Os fortes, entretanto, de acordo com a opinião
japonesa, são aqueles que desprezam a felicidade pessoal e cumprem as suas
obrigações. A força de caráter, acham eles, é revelada conformando-se e não se
rebelando. (BENEDICT, 2002, p. 177)
Comentando as características dos mangás que os diferenciam das revistas em
quadrinhos ocidentais, pode-se ver como possuem características diversas. A sua aceitação no
Ocidente não foi fácil. Um dos motivos foi que a publicação de mangás no Ocidente era
dificultada pela necessidade do espelhamento das edições nipônicas. O que conquistou
primeiro os países, foi a exibição dos animês nas redes televisivas.
O termo anime, originário da palavra animation (animação em inglês), que é
usualmente atribuído ao desenho japonês, possui significado diverso no Japão para os
japoneses, qualquer tipo de animação recebe esse nome. Tanto a fórmula anime quanto animê
são empregadas no Brasil a segunda daria destaque à pronúncia, em japonês, da palavra
animation (animeeshon). Sendo assim, utilizo aqui a palavra animê para me referir à
animação japonesa, empregando a sem acento quando trato das categorias nativas mundo
anime e evento anime, por exemplo.
Seitarô Kitayama é considerado o pai da animação japonesa, no início do século XX, a
qual sofreu forte concorrência da animação estadunidense, na década de 1920. Da mesma
50
forma que o mangá, os desenhos animados japoneses se tornaram instrumentos de propaganda
durante os anos anteriores à Segunda Guerra Mundial.
Somente em 1956, com a criação da Toei Doga é que começaria a animação japonesa
como é conhecida atualmente. É nessa década que a denominação animê se impõe,
substituindo os termos até então utilizados para se referir à trabalhos de animação. “Assim, os
desenhos animados eram chamados de dõga (imagem ou desenho que se move) ou de mangá
eiga (filme de quadrinhos). Apenas no pós-guerra, a partir da década de 50, a expressão animê
passou a ser usada no Japão.” (SATO, 2007, p. 31)
As primeiras animações da Toei eram inspiradas em lendas orientais, diversificando-se
posteriormente. Nos anos 1950, os desenhos japoneses ocupavam um grande espaço na
programação das redes de televisão. Em 1963, uma das primeiras obras de Tezuka, Astro Boy
(Tetsuwan Atom), foi transformada em uma animação para a televisão.
Com a adaptação de mangás para animês; garantia-se uma parcela de público. Os
otakus assistiriam o desenho para poder (re)ver as aventuras que tinham acompanhado pelos
mangás. Com o tempo, acabaria havendo o processo inverso, a transformação de animês em
mangá. Mais recentemente, haveria até o caso de animês e mangás se tornarem jogos
eletrônicos, e vice-versa. Essas conexões ampliaram as possibilidades comerciais dos mangás,
dos animês e dos jogos eletrônicos.
Os mangás são parte de uma indústria monumental, caracterizada por um tripé cujas
bases estão assentadas nas vendas não de revistas em quadrinhos, mas de
produtos de dois outros gêneros: animês (desenhos animados inspirados nas histórias
impressas) e videogames. Juntos, eles formam um círculo gerador de produtos de
entretenimento. (LUYTEN, 2004, p. 51)
De forma a atender ao aumento da demanda por desenhos animados, os estúdios
passaram a simplificar a animação, reutilizando fundos e congelando imagens, de forma a
economizar desenhos. As diferenças entre a versão original em mangá e a adaptada para a
51
televisão colocam questões para a discussão a respeito de autenticidade, arte e comércio, etc.,
que movimentam polêmicas entre os aficionados.
Nos anos 1960 e 1970, os animês conquistariam um maior espaço no mercado
ocidental. Para que a animação japonesa pudesse se disseminar pelo mundo, se passou um
longo existia era bem mais simples, bastando a dublagem e ocasionais cortes nas cenas mais
violentas ou com nudez. “Essa provou ser uma forma relativamente barata de preencher as
grades de programação infantil na TV. Porém as transmissões de animês prepararam o público
para o consumo do mangá.” (GRAVETT, 2006, p. 156)
Com a superação do preconceito inicial, o formato japonês passou a ser não só aceito –
em parte devido a facilidade de acesso aos scanlations, traduções digitalizadas dos mangás, na
sua forma oriental –, mas também desejado, como forma de se ter uma experiência de leitura
mais do que seria o mangá original, como será visto no capítulo oito.
Um ponto interessante é que com a expansão da produção de desenhos animados,
muitos deles não são mais produzidos no Japão. Parte da animação é feita na Coréia do Sul e
China, por exemplo, onde a mão-de-obra é mais barata. Com isso, pode-se ver que o ritmo de
produção frenético que caracterizou os mangás também caracteriza os animês.
Na década de 70, a produção de desenhos diretamente para o mercado de vídeo, os
chamados OVAs (Original Video Animation), ampliou ainda mais o mercado. Seria porém, no
final dos anos 1980, quando foi produzido o longa-metragem de animação Akira, adaptação
de Katsuhiro Otomo para o seu próprio mangá de mesmo nome, que o animê conquistou em
definitivo um espaço no Ocidente. Com esse filme e com o sucesso, e o reconhecimento do
valor artístico dos trabalhos de Miyazaki, o animê ultrapassou as fronteiras dos aficionados se
tornando conhecido por um público mais amplo.
Embora os animês estivessem presentes nos EUA e na Europa, principalmente na
52
Espanha e na França, a partir dos anos 60 e 70, foi na década de 90 que houve a presença
maciça dos quadrinhos e da animação japonesa nos Estados Unidos e na Europa. Para isso
contribuíram Dragon Ball e Os Cavaleiros do Zodíaco.
Imitando as convenções de mangá e anime que desde a segunda metade dos anos 70
eram celebradas nos Estados Unidos, apareceriam manifestações similares na
Europa a partir dos anos 90. Uma das primeiras foi a AnimeCon, celebrada na
população britânica de Sheffield em 1991; pouco depois começavam a ser
celebrados eventos na França e na Itália.” (MOLINÉ, 2004, p. 61)
Os mangás e animês vivem um contexto de crise no Japão, em parte devido à crise
econômica surgida a partir dos anos 90, o que levou à redução dos custos (e da qualidade) nos
desenhos. No caso dos quadrinhos, a crise é visível pelas quedas nas vendagens (as quais
ainda são gigantescas, para os padrões ocidentais), haveria falta de mangakás com idéias
originais capazes de cativar os leitores.
Também o recrudescimento da censura no Japão, em parte por causa do assassinato
de três meninas no final da década de 1980, por Tsutomo Miyazaki que possuía vários vídeos
e mangás eróticos na sua residência. Esse incidente levou a discussão sobre a necessidade de
um código moral para os mangás, além de gerar uma imagem negativa dos otakus, os quais
passaram a ser vistos como desajustados sociais e possivelmente perigosos.
10
Esse é um breve esboço do contexto de produção dos mangás e animês, necessário
para poder se questionar a respeito da especificidade das revistas em quadrinhos e dos
desenhos animados japoneses. Com isso, espero poder esclarecer como se desenvolveu o
interesse pela cultura pop nipônica no Brasil e o surgimento dos otakus brasileiros.
1.4. Otaku: Do Pejorativo ao Positivo
10
Esse incidente deu origem ao manga panic / otaku panic no Japão, que marcou o início dos anos noventa.
Mais detalhes: KINSELLA, 1998: 308-313.
53
Essa tese pretende, portanto, tentar mapear o que de específico e de geral no
consumo dessas manifestações da cultura pop japonesa no Brasil. Para isso, é feita uma breve
exposição/justificativa para o porquê do título por mim escolhido, bem como para o formato
que escolhi para o desenvolvimento da nossa argumentação.
O termo otaku foi usado pela primeira vez em 1983, por Nakamori Akio, para se
referir aos jovens que viviam isolados, com hobbies exóticos, mantendo contatos virtuais com
a realidade, interagindo apenas com outros com hobbies e comportamentos semelhantes. A
palavra otaku remonta a uma forma de tratamento impessoal e ao espaço da casa.
Barral (2000) descreve alguns otakus com os quais teve contato no Japão, homens na
sua maioria que viviam com coleções de modelos de aviões e bonecas. Seu relato mostra uma
certa empatia para com essas pessoas, que transparecem um deslocamento e afastamento em
relação ao mundo.
Por isso, o termo acabou por ser usualmente utilizado no Japão para se referir a
pessoas que vivem isoladas, quase que reclusas em seus quartos e/ou casas. O termo se refere
basicamente aos consumidores de cultura de massa que se isolam socialmente esse perfil,
embora possivelmente pertinente no caso japonês não se aplica à totalidade dos aficionados
brasileiros, como será visto posteriormente. Esse termo surgiu no Japão principalmente, mas
não exclusivamente, em função dos fãs de animês e mangás.
11
Os otakus (nerds) são conhecedores fanáticos de algum assunto obtuso, que podem
variar de torcedores alucinados de algum esporte, ou colecionadores maníacos de
objetos incomuns, a jogadores viciados de videogames, mas geralmente são fãs
doentios de tokusatsu (filmes de monstros e heróis uniformizados), animês e
mangás, e que em comum possuem a característica de não conseguirem relacionar-
se socialmente com pessoas que não compartilhem do mesmo ramo ou grau de
conhecimento específico. (SATO, 2007, p. 21)
11
Tanto um trekkie, aficionado por Star Trek, quanto um aficionado por Star Wars, seriam otakus.
Essa classificação também poderia ser aplicada a alguns aficionados por futebol, por exemplo. Mais importante
do que o hobby envolvido, é a forma pela qual a pessoa se relaciona com ele.
54
Hesitei muito em usar o termo otaku para me referir aos aficionados por Japop com os
quais trabalhei. Esse receio se explica pelo significado original do termo no Japão que não
se refere exclusivamente a consumidores de mangás e animês, mas também aos que são
capazes de interagir com as novas tecnologias de comunicação. Originalmente, havia uma
conotação pejorativa, com esse termo sendo usado para designar pessoas associais,
idiossincráticas, reclusas em seus gostos exóticos ou específicos.
Em minhas incursões no campo dos eventos anime, pude observar jovens que fazem
uso intenso de equipamentos tecnológicos como telefones celulares (agora cada vez mais
utilizados para tirar fotos), meras digitais (que com os avanços recentes se converteram em
“minifilmadoras”). Esses jovens também me confirmaram a importância da informática e da
Internet em suas interações sociais a ida aos eventos muitas vezes é planejada através de
programas como MSN e/ou através de sítios de comunidades de relacionamento como o
Orkut.
Se o primeiro significado, o de integrado às novas tecnologias, pode ser aplicado aos
aficionados brasileiros, pelo fato de muitos terem acesso ao material nipônico através da
Internet, o segundo significado, o de socialmente isolado, não é totalmente pertinente.
Pretendo mostrar que os equivalentes brasileiros dos otakus japoneses são consideravelmente
diferentes.
Contudo, o campo, ao mesmo tempo que respostas, coloca perguntas. Algumas das
pessoas com as quais me relacionei, principalmente os que tinham contato com o universo dos
mangás e animês a mais tempo, conheciam o sentido pejorativo atribuído ao termo otaku.
Essa visão mais negativa daqueles que centravam sua vida nesse consumo de produtos
culturais foi bem expressa em uma conversa durante um lanche, às seis da manhã em um
Habib's de São Paulo, entre os membros de uma caravana para o Anime Dreams de 2005,
55
quando uma das pessoas à mesa disse: “Otaku é sem noção”.
Em vista disso, sempre preferi usar o termo aficionado, evitando também recorrer à fã,
pelo caráter mais passional da mesma bastando lembrar que sua origem remonta à
“fanático”, o que se aplica a uma pequena parcela dos aficionados pela cultura pop nipônica.
Contudo, como falei antes, o próprio campo, ao me dizer que havia restrições ao termo otaku,
me dizia que muitos o reconheciam como legítimo. Basta lembrar do Anime Friends de 2006
quando vi um rapaz, na faixa dos 25-30 anos, com um filho com menos de 10 anos, usando
uma camisa escrita: “Filhote de otaku.”
Com isso percebi que o termo otaku, apesar das restrições por parte dos mais antigos e
mais bem informados, sofreu uma ressignificação no Brasil. Ele não teria o mesmo sentido
pejorativo que possuía no Japão, sendo apenas uma forma de denominação para os
aficionados brasileiros por cultura pop nipônica.
Para novatos, otaku é uma palavra que denomina a tribo dos que curtem mangá,
animês e cultura japonesa em geral. Para que tem certo aprofundamento, sabe que
o termo otaku, no Japão, surgiu como um termo pejorativo para tarjar os nerds e,
sabe também, que no Ocidente a interpretação japonesa foi ignorada. Brasileiros,
americanos e europeus usam o termo 'otaku' somente para se diferenciar, se dividir
em um grupo tão peculiar quanto os dos trekkers, cinéfilos ou metaleiros.
(SAKUDA, 2006, p. 26)
O termo passou a ser um nível dentro de uma escala de interesses, significando o
aficionado com maior comprometimento com os bens da indústria cultural japonesa, sendo
aquele que assiste diversos animês, está em todos os eventos, etc. Como me disse uma das
minhas colegas no mundo anime: “Já fui mais otaku, hoje sou menos.”
Hoje, o termo otaku se popularizou de tal forma que não pode ser negligenciado no
próprio Japão se utiliza outra categoria, wotaku, para se referir aquele aficionado mais
isolado, desconectado da realidade. Faz parte do vocabulário do campo e é abertamente
utilizado como denominação identitária entre os aficionados. Apesar das reservas feitas pelos
mais antigos a respeito do seu caráter pejorativo, a maioria dos consumidores adotou o termo,
56
o qual já passou a ser de uso relativamente freqüente na mídia.
57
2. CONFISSÕES DE UM INTELECTUAL COSPLAYER
Poxa, que legal. Vocês agora são exóticos o
bastante para serem pesquisados. (Geisa, esposa
de meu amigo Breno, ao saber que eu tinha sido
aprovado para o doutorado com esse tema)
Os problemas e questões aqui expostos foram ou
são, de um modo geral, vivência minha, na
medida em que faço parte do universo objeto
desta reflexão. (VELHO, 2006: 38)
58
2.1. Da FC ao Animê
Cabem aqui algumas considerações sobre o caminho que me levou ao meu objeto.
Parte desse trajeto foi percorrida de forma pensada e planejada de forma meticulosa, enquanto
que a outra foi realizada de acordo com o desenvolvimento da pesquisa.
Tendo terminado meu mestrado no início do ano 2000, que versava sobre a
representação da pessoa no Ocidente em obras de ficção científica (livros, filmes e seriados de
televisão), eu pretendia continuar nessa linha. Como tinha interesse em ir além de um trabalho
bibliográfico, pensei em fazer uma pesquisa sobre clubes de fãs de ficção científica.
Apesar de ter essa idéia em mente, não pude colocá-la em prática. O fato de não
pertencer a um segmento social mais bem favorecido economicamente impediu de prosseguir
imediatamente na vida acadêmica. Sendo assim, me vi obrigado a me engajar de forma
decidida no magistério público inicialmente estadual e depois municipal e particular
primeiro em escolas de ensino fundamental e médio e, posteriormente, em instituições de
ensino superior.
No convívio direto com alunos de diferentes classes sociais, em diversos momentos
percebi que possuía um ponto em comum com alguns deles: o gosto pela animação japonesa.
Isso me surpreendeu, visto que, para mim, esses desenhos não configuravam um material
prontamente acessível, fácil de se ver nas redes de TV aberta.
Isso me intrigava e, um dia (em 2003), durante uma reunião de amigos, um deles (que
também compartilhava esse interesse pela animação japonesa) mencionou um evento de fãs
de animê (foi uma das primeiras vezes que ouvi esse termo) o Anime Rio, realizado na Casa
do Minho. Resolvi ir para ter uma melhor idéia do que se tratava.
12
Ao ver um grupo de jovens fantasiados de personagens de desenhos japoneses,
12
59
conversando, tirando fotos, comprando mangás, etc., percebi que tinha encontrado meu tema.
A partir daí, comecei, na medida do possível afinal, a carga de trabalho de quatro empregos
era consideravelmente desgastante – a investigar o assunto.
Fui esporadicamente a outros eventos, entrei em um curso de japonês para ver se era
freqüentado pelos aficionados, tentei entrar em contato com organizadores de eventos, mas
essas iniciativas, devido à minha jornada de trabalho, não foram continuadas.
Em 2004, tendo abandonado um de meus empregos, decidi (num tour de force)
tentar a prova para o PPGAS. Redigi um projeto, consultei meu antigo orientador para saber
se, caso eu passasse, ele aceitaria me orientar novamente. Tendo sua aprovação, enveredei
pelas leituras e consegui retornar ao espaço acadêmico como aluno de doutorado.
2.2. Redes Criadas e Descobertas
Aqui, mais uma vez, as redes tiveram um papel fundamental. Quando ingressei no
curso de doutorado do PPGAS eu era professor da Universidade Estácio de Sá, do Centro
Universitário Augusto Motta (UNISUAM) e da rede municipal de ensino da cidade do Rio de
Janeiro.
Percebi que uma das minhas alunas da Estácio também era uma aficionada pela
cultura pop nipônica; posteriormente percebi que ela era uma “celebridade” no meio, sendo
uma das figuras mais antigas do movimento anime. Confidenciei a ela ter interesse em
realizar uma pesquisa sobre o assunto.
Algum tempo depois, ela me informou da realização de uma caravana para um evento
de fãs de animê e mangá em São Paulo, em janeiro: o Anime Dreams de 2005. Nessa
60
caravana, e nas seguintes, fiz colegas que foram essenciais em vários momentos desse
trabalho. Graças a essas amizades, contatos pessoais e profissionais, pude estabelecer uma
pequena rede com a qual interagi ao longo dessa pesquisa.
2.3. Ser e Estar: Facilidades e Dificuldades de Inserção
Assim, se deu minha inserção nos eventos anime”, como costumam ser chamados. A
partir daí, realizei um reingresso no universo que, no passado, teve um certo encanto sobre
mim, o que talvez tenha dado a essa pesquisa um caráter um tanto peculiar por subverter a
idéia de uma separação, tão cara às ciências naturais, entre sujeito e objeto. Hermano Vianna,
ao começar o seu relato sobre o funk carioca, conta como deu uma bateria eletrônica para o
DJ Marlboro e como, com esse ato, ele interferia no mundo funk. Essa descrição chamava a
atenção para a o fato de que tal separação nem sempre é produtiva no campo das ciências
humanas e que tomar conhecimento da mesma como parte da pesquisa é essencial mais do
que negá-la é importante entendê-la e perceber como lidar com ela da melhor forma possível.
Esse comentário trouxe a baila uma reflexão que faço a respeito da minha atividade no
campo. Posso dizer que, até o momento, eu não interferi no mundo anime; talvez tenha sido
até o contrário: talvez ele que tenha interferido na minha vida. Tal fato se deu por eu estar em
uma situação diferente da vivida por Hermano. Tive, como todo aquele que se insere no
mundo anime”, que realizar um percurso de familiarização com o mesmo, de aprendizado
das terminologias, etc.
Se tal percurso é semelhante ao feito pela maioria dos antropólogos, no meu caso, ele
possuía cores diferentes por ser tanto uma caminhada para o futuro da pesquisa quanto um
61
retorno ao passado. A principal diferença entre a minha experiência (destacando esse conceito
como vivência subjetiva) com o mundo anime e a de Hermano Vianna com o mundo funk,
talvez repouse no fato de que se o funk lhe surgiu como tema antropológico, o animê tinha
surgido na minha vida antes da Antropologia. Havia um interesse pessoal que foi capitalizado
pelo interesse do pesquisador. Essa diferença pode ser melhor entendida a partir de uma
situação vivida por mim e pelo próprio Hermano.
Em um evento ocorrido no América, encontrei o Hermano e trocamos algumas
palavras ele sabia quem eu era pois tinha entrado em contato por e-mail ao perceber
seu interesse pela cultura pop nipônica. Nesse dia havia apresentação do grupo Anime Daiko e
me juntei ao público dançante que acompanhava as músicas de desenhos animados marcadas
pela percussão japonesa. Em dado momento, enquanto dançava, Hermano se aproximou e
disse: “Isso que é observação participante.”
Talvez, naquele momento e como em muitos outros da pesquisa, eu fosse mais um
“participante observador”. Como eu compartilhava dos gostos e referências dos aficionados
por animês e mangás, eu me sentia um deles, embora o fato de ser de uma faixa etária um
tanto limítrofe e de ser um antropólogo me distanciava dos mesmos. Essa minha atitude,
permitia uma proximidade necessária à compreensão dos meus informantes e até de mim
mesmo (o que também exigia um esforço de controle da minha dimensão pessoal para não
influenciar negativamente na pesquisa).
Hermano disse em certo momento de seu trabalho que ele se divertia nos bailes, mas
não pulava e não tentava se sentir nativo. Eu era parcialmente nativo, logo, me divertia nos
eventos e até pulava em alguns. Ao seu “Nunca deixei de ser um estranho.” (VIANNA, 1997:
15) posso contrapor o meu: “Se nunca fui um otaku, nunca cheguei a ser um estranho.” O
gosto semelhante e a tentativa, bem sucedida creio eu, de usar uma indumentária semelhante
62
(sempre usando camisas pretas, comuns entre os aficionados) ajudaram.
13
2.4. Da Concha ao Cosplay
Pude explorar parte do nativo em mim e utilizá-lo como recurso de pesquisa; um
exemplo disso foi a minha decisão de me caracterizar de “Chonchu”, percorrendo todas as
fases da realização de um cosplay. Tal atitude seria impensável cinco anos atrás, quando do
início do meu contato com o mundo anime. Se nunca me senti um estranho, também houve
momentos em que me senti diferente (personalidade, gosto, idade, ser antropólogo, etc.), mas
nem por isso fui percebido como alguém de fora daquela realidade.
Aconteceu então uma situação que tem se repetido nesse período de pesquisa: o tema
que me parecia distante e invisível tem se tornado cada vez mais próximo e evidente. Em
diferentes momentos cruzei com pessoas que, de diferentes maneiras, tinham relação com o
assunto que estava pesquisando. Desde colegas de trabalho a cosplayers conhecidos, de
professores, pais de adolescentes consumidores de Japop, a antropólogo de renome passeando
em evento anime. Atualmente, com o crescimento desse universo e após o desfile da Escola de
Samba Porto da Pedra que tratou do tema da imigração japonesa para o Brasil e trouxe um
carro alegórico ligado aos mangás e animês, o que antes era quase marginal, tornou-se
mainstream.
Em virtude da facilidade de acesso ao material, bem como à diversificação interna do
próprio mundo anime”, devo traçar aqui uma diferença existente entre os aficionados pela
cultura pop nipônica:
13
É preciso ressaltar que não existe um perfil étnico homogêneo no mundo anime, diferentemente
do mundo funk, onde há uma presença majoritariamente negra. Assim, eu pude passar bem mais despercebido do
que aconteceu com Hermano Vianna.
63
a) os que consomem esse material, de acordo com a oferta das redes majoritárias de televisão,
assistindo o que está disponível nos diferentes canais, tanto nas redes de TV aberta ou por
assinatura;
b) os que assistem material nipônico diretamente da Internet através de sites de
compartilhamento de vídeos, como o YouTube ou que baixam episódios da rede mundial de
computadores geralmente possuem uma conexão de alta velocidade (banda larga), embora
conheça casos de download de animês através de conexão discada (o que é mais demorado);
Os dois tipos de aficionados podem ser encontrados em eventos anime, bem como
existem aqueles que gostam de cultura pop nipônica, lêem mangás e assistem animês sem
serem freqüentadores de eventos por desconhecimento, por desinteresse, por pensarem que
tais eventos são encontros de pessoas socialmente deslocadas, etc.
14
Devo confessar que até o início dessa pesquisa, me encontrava nesse último grupo:
assistia animês que passavam na TV aberta, não tinha hábito de ler mangás acabei lendo
esse tipo de material apenas em 2002, em parte por sugestão de um aluno que comentou o
conteúdo histórico de um que tratava do final do Shogunato e da instauração da Restauração
Meiji. Apesar de existirem eventos, ainda que de escala minúscula para os padrões atuais,
eu os desconhecia, o mesmo se passando com meus amigos que também tinham interesse por
esse material.
O fator geracional teve um peso importante nesse momento. O boom dos animês,
termo que era desconhecido para mim na época, se deu com Cavaleiros do Zodíaco (Saint
Seya), exibido no Brasil em 1994. Repetia-se aqui o sucesso que o mangá e o desenho
animado tinham alcançado na França no início, das exibições na Rede Manchete, havia
14
Infelizmente, não é possível ter um perfil mais claro desse grupo; não é fácil encontrá-lo; posto
que não interage intensamente com os demais aficionados. Esse problema também se com aqueles que
consomem esse material mas são proibidos de ir a eventos por seus pais entrevistamos alguns pais ou
responsáveis, mas o simples fato da presença deles no evento era um sinal de abertura (em nossas entrevistas
apenas um pai achou que a presença da sua filha ali era uma perda de tempo).
64
imagens da abertura francesa.
Saint Seiya” est un des derniers grands succès du manga classique. Sa force est
d'avoir réussi à creer un univers très codifiè, auquel les adolescents se sont
largement identifiés. Avec quatre longs métrages, une série animée qui depasse tous
les records d'audience (114 épisodes au compteur) et des millions de figurines
vendues à travers le monde, “Saint Seiya” est um modèle de réussite commerciale.
(SCHIMIDT e DELPIERRE, 2005, p. 116)
Naquele momento eu e meus amigos tínhamos em média cerca de 25 anos, a idade
média dos meus informantes mais “velhos” atuais – “o pessoal das antigas”, como já me disse
meu informante Bruno. tendo passado da adolescência, concluído o Ensino Médio e já na
reta final da universidade, a presença mais maciça da cultura pop nipônica se deu em um
momento em que já tinha um espectro de interesses e preocupações consideravelmente amplo.
Embora assistisse o máximo de animês possíveis e até gravasse alguns deles – fazendo
esforço para estar em casa no horário da exibição ou cuidadosamente programando o aparelho
de videocassete para a gravação –, além de comprar um dos bonecos dos Cavaleiros e até
pensar em uma história própria dentro desse universo (que se tivesse sido escrita configuraria
uma fanfiction, uma histórias escritas por aficionados sobre um filme, série ou desenho), uma
idéia discutida e debatida com outros colegas, nunca cheguei a ter uma postura mais ativa.
Não escrevi a história que planejei, não cheguei a produzir uma animação dos
Cavaleiros (projeto que eu, e alguns amigos, alimentamos por um tempo), não produzi um
fanzine, embora soubesse que esse tipo de publicação amadora existia. Enquanto que eu
não procurei um engajamento maior com esse universo da cultura pop nipônica, outros o
fizeram e deram início ao movimento que hoje estudo.
Por quê? Porque estava às portas do mercado de trabalho, preocupado com a
elaboração de uma monografia, ocupado com os trabalhos semestrais, etc. O interesse por
animês era um entre vários na verdade, minha predileção por Batman e por Star Trek talvez
merecessem maior atenção da minha parte na época. Em verdade, meu interesse pelos
65
produtos da indústria cultural nipônica aumentou bem mais quando comecei minha pesquisa,
em parte:
a) pela necessidade de familiarização com o meu objeto de pesquisa;
b) pela facilidade de acesso com o aumento do número de publicação nas bancas em geral;
c) pela novidade e variedade de objetos disponíveis nos eventos que visitei (fitas, CDs,
DVDs, revistas, camisas, brinquedos, etc.);
d) por perceber nesse material um apelo que sempre existira, mas que sempre fora pequeno
devido à reduzida presença de bens culturais japoneses no mercado.
Desenvolveu-se então um processo de “compensação”, de satisfação de uma demanda
reprimida pela escassez. Comprei vários mangás, animês, etc. até chegar a um ponto ótimo a
partir do qual esse interesse foi perdendo a força, devido a crises domésticas, falta de tempo
para as leituras, maior carga de trabalho em função de quatro empregos, etc.
Posso concluir essas considerações a respeito da minha relação para com meu tema e
meu campo com alguns comentários sobre a minha decisão de realizar um cosplay. Em 2006,
a partir das minhas incursões nos eventos, sempre retornava com observações das
apresentações. “Dona Rosangela” responsável pelos afazeres domésticos de minha
residência brincava comigo dizendo que um dia eu também sairia “fantasiado”. Daí, dessas
conversas informais, surgiu a idéia de realizar um cosplay, na expectativa de ter uma idéia de
saber como seria esse processo.
Primeiramente tive que escolher um personagem. O personagem escolhido,
“Chonchu” era o centro de uma trama de um manhwa (mangá coreano) de mesmo nome que
tinha sido lançado aproximadamente um ano antes. Como Chonchu, apesar de forte era
magro, assim acreditei possuir o physique du rôle necessário afinal, embora identificação
física entre cosplayer e personagem não seja obrigatória, ela é desejável. O personagem
66
também possui uma história dramática, além de ser um tanto solitário e melancólico,
características que pensei terem paralelo comigo mesmo. Por fim, sua roupa não me pareceu
de difícil confecção.
Munido de um personagem, parti para a construção da sua indumentária. Sua roupa
parecia de couro, com isso, Dona Rosangela que também é costureira sugeriu o uso de
napa. Fomos a uma loja e começamos a compra dos materiais necessários como napa, fivelas,
velcros, etc. Algumas soluções foram improvisadas como:
a) um sapato em estilo boot que teve que servir como bota;
b) madeira de aeromodelismo, fibra de carbono, fita adesiva, tiras de napa e duas colheres de
madeira que acabaram se tornando uma espada;
c) uma peruca (posteriormente acrescentada) que teve que ser penteada para ter alguma
semelhança com o cabelo do personagem.
Empreendi assim minha tentativa de me familiarizar com o mundo anime. Não sabia
muito bem como me inserir nas conversas. Afinal, era comum a presença de pequenos grupos,
às vezes de dois ou três nas caravanas. Isso facilitava a interação entre eles, além disso a
informalidade reinava e isso dificultava um pouco meu acesso, em parte pela minha
formalidade e timidez.
Porém, como as conversas desses grupos giravam em torno de animês, mangás ou em
função das expectativas e decepções relacionadas aos eventos para os quais se vai ou dos
quais se m, consegui me inserir em algumas conversas, ou pelo menos participar como
ouvinte.
Dentro desses pequenos grupos de amigos é de praxe ver os otakus se chamando por
apelidos, enfatizando a informalidade, a intimidade e evidenciando algum atributo peculiar.
Esse comportamento também existe entre os membros das torcidas organizadas analogia
67
que será recuperada mais a frente. “É muito comum as pessoas possuírem apelidos. Tais
nomeações são originadas de diversas maneiras e circunstâncias, características físicas,
comportamentos, vícios, a profissão etc. Tudo serve de motivo para que as pessoas ganhem
um outro nome entre a torcida.” (TOLEDO, 1996: 43-44)
Assim, no mundo anime, muitas vezes as pessoas ganham apelidos ligados aos
personagens que gostam. Tentei criar um apelido, o qual passei a usar no nome que utilizo no
meu perfil na comunidade de relacionamentos Orkut, mas não pegou. Eu fui nomeado
quando apareci para ir, caracterizado de Chonchu, no Anime Friends 2006. uma das
pessoas da caravana passou a me chamar de Chonchu, como passei a ser chamado por alguns
com os quais interagi mais nessa viagem.
Esse ato de nomeação, de certa forma, age como construção de uma identidade anime,
que muitos possuem algum tipo de apelido, pelo qual são chamados e reconhecidos nesse
mundo. Isso vale principalmente para os cosplayers, geralmente conhecidos pelo nome de
algum personagem com o qual estão mais identificados um personagem preferido ou
recorrente, ou algum que tenha feito muito sucesso.
Tal prática é muito parecida com a ocorrida no universo das travestis discutido por
Benedetti (2005) e que também utilizo como referencial comparativo no capítulo oito –, onde
a transformação em uma personagem feminina é bem mais radical e intensa do que a
transformação relativamente temporária e superficial dos cosplayers.
Convivendo e observando outras travestis, nos locais de prostituição ou em outros
espaços, como salão de cabeleiro, bares, boates, praças, parques e pontos de reunião
de travestis e homossexuais, as bichas-boys aprendem quais alterações corporais são
mais valorizadas e como efetivá-las. Nessa convivência são aprendidos os segredos
da montagem; as técnicas de maquiagem; as formas legítimas e ilegitímas de seduzir
um homem e relacionar-se sexualmente; os segredos e truques da compra, venda e
uso de drogas, como maconha, cocaína, anfetaminas, álcool; a linguagem do bate-
bate, as habilidades e mistérios da prostituição. É também nesse processo que a
travesti recebe um nome feminino que, a partir de então, vai afirmar sua qualidade
maior. (BENEDETTI, 2005, p. 103)
Tem se assim um quadro semelhante ao dos músicos de jazz descritos por Becker.
68
Receber um nome, ou em alguns casos adotar um que é reconhecido pelo grupo, é um sinal de
identificação com outro universo. Adotar um pseudônimo, o que, como já disse antes é
bastante comum no mundo animê, é sinalizar a existência de uma “persona anime”, de uma
dimensão pessoal comprometida com os animês e mangás.
Para os mais antigos ela é apenas um sinal de afeição para com esse mundo, para os
mais jovens, uma marca identitária a ser ostentada. O fato de me tornar Chonchu dentro da
caravana me tornava mais otaku aos olhos de meus pares e de mim mesmo tenho certeza
que alguns nem se lembram de meu nome, só de meu apelido.
Devo confessar que tive prazer na realização desse processo de inserção no mundo
anime, para o qual a minha caracterização como Chonchu teve um papel fundamental.
Através dela pude entender melhor a satisfação de se ver um cosplay tomando forma. Na
Anime Friends (2006) circulei caracterizado em dois dias e embora não tenha sido um
destaque na época a série não tinha mais edições inéditas, não sendo mais produzida na
Coréia – fui reconhecido e fotografado por algumas pessoas.
15
Em 2007, em um evento no Rio de Janeiro decidi participar de um desfile cosplay,
com isso podendo ter acesso à “área cosplay”, restrita para os participantes. Na área cosplay
pude ver os cosplayers acertando os últimos detalhes de suas roupas, conversando sobre seus
personagens e, tirando fotos para o sítio Cosplay Brasil ( www. cosplay brasil.com.br ) ?
Com a aproximação do desfile veio algum nervosismo, com a subida ao palco não
houve reação do público (sem aplausos ou vaias), talvez pelo fato do personagem ser quase
desconhecido ou por eu ter sido um tanto ligeiro em minha aparição. Por essa razão, minhas
aparições como cosplayer chegaram ao fim, que não vi mais motivo para continuar com as
mesmas. Só haveria lógica em prosseguir se partisse para a confecção de outro cosplay, e para
15
Chamei a atenção inclusive de um outro pesquisador, da área da Pedagogia, com interesse em
mangás e animês que confessou seu satisfação por poder ver um antropólogo de tal forma inserido em seu estudo
69
isso me faltava o tempo e (principalmente) a disposição iniciais. Alguns alunos do CEFET
que estavam no evento e tiraram foto comigo comentaram a respeito da minha apresentação e,
até hoje, alguns que me pedem para ir de Chonchu em festas à fantasia realizadas
regularmente na escola onde tanto professores quanto alunos vão caracterizados.
2.5. Ganhos e Preocupações
Durante essa espiral ascendente, e posteriormente descendente, também reparei em
uma mudança na minha relação com meu objeto. Percebi que, mais do que estudar algo que
gostava, eu gostava de viver esse estudo. A possibilidade de inserção nesse ambiente juvenil
me permitiu exercitar uma jovialidade que não tinha praticado muito, até então por ter
adotado, desde a adolescência, uma postura um tanto austera.
Além disso, o fato de estudar um tema que fugia aos parâmetros da maioria dos meus
colegas da academia (escravidão, campesinato, religiosidade, etc.) aparecia para mim como
possibilidade de distinção e de constituição de uma identidade própria, conferindo a mim
mesmo um certo ar “alternativo”, cultivado por muitos de meus pares ao invés de ouvir
Cesária Évora, eu ouvia animesongs; no lugar de assistir filmes iranianos, eu assistia animês;
em vez de possuir uma camisa com motivos indígenas, eu usava uma camisa com um símbolo
“alquímico” do desenho Full Metal Alchemist.
De certa forma, meu interesse pelo mundo anime fez de mim mesmo, parcialmente,
um nativo. Parcialmente, visto que minha posição de pesquisador sempre me cobrava uma
preocupação com o que acontecia, como se dava a interação social, etc. Além disso, por ter
vivido outra época da constituição do campo, minhas preferências eram outras para alguns,
70
clássicas, para outros, desatualizadas, para muitos, desconhecidas.
O fator geracional antes mencionado aqui recupera sua força. Enquanto que meu
encantamento foi transitório e rápido, em virtude de já possuir definido um raio de interesses,
para muitos desses jovens, tudo é novidade e fascinante. Com um ano de campo, esse ar de
novidade e fascínio tinha sido bastante relativizado e me era mais compreensível o
discurso de alguns dos mais antigos no meio que se queixavam do “inchaço” do mundo anime
que se tornara muito diferente do que era nos seus primórdios. Ao final desses quatro anos de
pesquisa, esse interesse diminuiu, mas não desapareceu, apenas o furor inicial enfraqueceu – o
que, segundo minhas observações, não parece ser exclusividade minha.
2.6. “Que Nem Maré”: Rumo ao Auge e ao Ocaso dos Eventos
Como disse antes, a realização de um cosplay constituiu o ponto máximo da minha
aproximação para com meu tema. Embora ainda vá a eventos e até faça compras nos mesmos,
o fascínio inicial que me atingiu arrefeceu e acredito que isso também ocorra com os
freqüentadores mais jovens muitas das pessoas que entrevistei estavam indo pela primeira
vez, levadas por amigos.
Com as transformações ocorridas no campo, como o aumento exponencial da
quantidade de eventos e a sua visibilidade cada vez maior na mídia em geral, houve uma
mudança substancial no público freqüentador dos eventos. Tal aumento tem levado ao
surgimento de algo que está sendo chamado de “batalha dos eventos”, com vários eventos
ocorrendo no mesmo mês e, às vezes, até no mesmo dia.
A rivalidade crescente entre os organizadores e a mudança no perfil dos otakus, a qual
71
é descrita no capítulo oito, não passou em branco para outros, o “pessoal das antigas”, como
chamou o meu informante Bruno. Há uma consciência de que o mundo anime mudou
consideravelmente nesses seis anos de estudo.
Os otakus levam amigos, que chamam conhecidos e assim mantém-se um número de
iniciantes que substitui os iniciados que passam a se dedicar a outras atividades e que
começam a rarear sua presença nos eventos. O público se renova, mudando os eventos e
alterando esse microcosmo. Ao que parece, o mundo anime ainda enfrentará novas mudanças,
isso tudo descrito aqui, talvez (na visão de alguns), seja apenas o começo.
72
3. ILHA DAS FLORES: JAPÃO COMO CONSTRUÇÃO DO OCIDENTE
16
É grande a tentação de ficar nos estereótipos
quando se trata dos japoneses. São disciplinados e
limpos para uns, silenciosos e desconfiados para
outros. Os amantes de lutas marciais lembram dos
xoguns e dos samurais, os executivos se recordam
do modo japonês de administrar. As mulheres
seriam gueixas submissas ou, antes, mulheres
modernas que desejam maridos com salário e
estatura elevados, de preferência muito ocupados
para lhes propiciar mais liberdade? (SAKURAI,
2007, p. 9)
Embora geralmente desprezados como material
para pesquisas acadêmicas e estudos culturais,
histórias em quadrinhos e desenhos animados em
geral e, em especial, os mangás e animes são
indubitavelmente uma rica fonte de contato com a
sociedade e a herança cultural japonesa, colocada
cada vez mais ao alcance do mundo ocidental.”
(MEIRELES, 2003, p. 210)
16
O título desse capítulo possui dois sentidos: ele faz referência ao curta-metragem de Jorge
Furtado o qual denuncia a miséria dos catadores de lixo da Ilha das Flores partindo da visão cômica de um
japonês plantador de tomates e também se refere ao Japão, que tem na flor da cerejeira um símbolo de grande
importância.
73
Faz-se necessário definir aqui o que entendo por Japop. Quero deixar claro que o
Japão, como a maioria dos países, possui uma cultura vasta e diversificada. Dentro dessa
cultura, é possível encontrar manifestações artísticas que remontam a períodos
consideravelmente distantes da história japonesa.
Farei aqui um breve levantamento de algumas das principais formas de expressão
existentes no Japão:
a) O origami, por exemplo, é capaz de transformar papel em obra de arte;
b) Há também o Ikebana, que dá tratamento artístico aos arranjos florais;
c) Existe também a elaboração de bonecas com indumentárias refinadíssimas;
d) A metalurgia também merece destaque, reconhecido através da belíssima espada samurai (a
katana).
também atividades que, na sua própria execução, cercada de um tom ritualístico
ganharam status de expressão artística como:
a) o kenjutsu, a esgrima japonesa, com suas intrincadas armaduras;
b) o sumô, esporte nacional, e que transforma seus campeões em celebridades;
c) o teatro bunraku, com marionetes e histórias que recontam lendas da tradição japonesa;
d) o teatro , com atores com maquiagem pesadíssima e gestos milimetricamente calculados.
Essa visão que muitos podem possuir do Japão como sendo um país com uma cultura
uniforme, exótica, rica em manifestações tradicionais, é mais uma representação do que uma
realidade, posto que
O Japão tornou-se tão aberto e infestado por formas culturais ocidentais
estrangeiras que críticos conservadores escrevem com pesar a respeito de como o
Japão perdeu sua identidade; mas muitos japoneses consumidores dessas formas
culturais estrangeiras parecem não se importar.” (MATHEWS, 2002, p. 34)
Meu trabalho trata desse material que, influenciado pelo Ocidente, desenvolveu-se e,
apesar de muitos japoneses mais tradicionalistas não o considerarem como cultura japonesa
74
propriamente dita, tem sido visto por muitos ocidentais como tipicamente japonês: a cultura
pop nipônica, principalmente na sua forma de mangás e animês.
O material com o qual lido é consideravelmente diferente do que se considera como
originalmente japonês, tratando-se muito mais de manifestações artísticas características da
modernidade, embora trazendo em si mesmas elementos da tradição cultural japonesa.
É interessante que, em função desse material pop, as manifestações tradicionais
japonesas tenham se tornado de interesse de muitos jovens ocidentais que até então, antes de
terem contato com os quadrinhos e os desenhos animados japoneses, as desconheciam quase
que completamente.
O fascínio pelo Oriente, visto como símbolo de exotismo, está presente ainda nos dias
atuais. Para isso basta reparar nas batas indianas presentes nas ruas e nas tatuagens com
ideogramas japoneses (kanjis) estampados na pele dos braços de homens e mulheres. Esse
fascínio pode ser considerado como um dos sinais da grande presença de material produzido
pela indústria cultural de origem oriental como os filmes de ação chineses e os desenhos
animados japoneses.
17
Muitos dos jovens aficionados pela cultura pop nipônica possuem, em princípio, pouca
informação a respeito do Japão. Esse país é tratado dentro de um enfoque muito mais
econômico do que cultural e social. Sabe-se de sua pujança econômica, mas se conhece muito
pouco da sua dinâmica social e de suas tradições. Sendo assim, o interesse pelos bens
culturais nipônicos se em função de um fascínio pelo diferente, ou supostamente diferente
– ainda mais se for levado em conta que cada vez mais o Japão se ocidentaliza (fato visível no
crescente uso da língua inglesa em obras japonesas).
Assim, parte-se de uma imagem do Japão como algo diferente do Brasil. Tal imagem
17
Esse fascínio pelo Oriente também pode ser compreendido através da idéia de Orientalização do Ocidente,
proposta por Campbell (1997).
75
encontra eco em muitas das obras que aqui chegam que retratam um universo com um
comportamento marcado por formalismos, por valores sólidos de honra e companheirismo.
Meu informante Breno, por exemplo, chamou a atenção para isso, ao explicar por que gosta
dos seriados japoneses.
Ver atores reais, efeitos especiais. Compro de um amigo em São Paulo. Tem aquela
coisa mentirosa e absurda, mas tem coisas da cultura oriental japonesa de honra,
tradição, mostram essa cultura mais ainda. (Breno, 21 anos)
Com isso, a disseminação de imagens que remetem a uma representação criada
pelos próprios autores japoneses. Embora seja produto das tradições nipônicas, isso não
significa que essa representação correspondam necessariamente ao que seria a realidade
japonesa.
Incontáveis incidentes e histórias de heróis, entre os quais a mais popular é a
histórica Narrativa dos quarenta e sete ronins, são conhecidos de todos. São lidos
nos seus livros escolares e representados no teatro, transformados em filmes
modernos e divulgados em publicações populares. Fazem parte da cultura viva do
Japão moderno. (BENEDICT, 2002, p. 139)
Logo, muitos jovens buscariam e encontrariam no Japão costumes, práticas, valores,
que para eles não seriam mais hegemônicos no Ocidente, porém que ainda estariam presentes
no Oriente seria uma projeção de expectativas nesse material. “Desse modo, todo o
orientalismo está fora do Oriente, e afastado dele: que o orientalismo tenha qualquer sentido
depende mais do Ocidente que do Oriente, e esse sentido é diretamente tributário das várias
técnicas ocidentais de representação que tornam o Oriente visível, claro e 'lá' no discurso
sobre ele.” (SAID, 1990, p. 33)
A facilidade propiciada pelos meios de comunicação de massa poderia, em tese,
permitir um acesso maior e “mais real” ao que seria o Oriente, afinal: “Se o mundo tornou-se
imediatamente acessível para o cidadão ocidental que vive na era eletrônica, o Oriente
também ficou mais próximo, e talvez seja agora menos um mito que um lugar permeado por
interesses ocidentais, e especialmente americanos. (SAID, 1990, p. 37)
76
Porém, tal análise é questionável que os otakus exercem uma interpretação própria,
pessoal, daquilo que lêem nos mangás. E os mangás e animês presentes na mídia em geral não
podem ser pensados como uma representação ipsis litteris da realidade japonesa. O próprio
Oriente possui uma representação de si e os mangás não deixam de ser uma representação de
como o Japão se vê. Quando se examinam modernas biografias, novelas e acontecimentos,
torna-se claro que, conquanto muito aprecie o Japão a vingança nas suas tradições, as histórias
de represálias são hoje em dia certamente tão raras quanto nos países ocidentais, talvez mais
raras.” (BENEDICT, 2002, p. 140)
Pode se argumentar que a melhor maneira de conhecer o “Japão real” seria visitando,
porém tal ação es fora do alcance da maioria dos nativos com os quais lidei. Muitos otakus
brasileiros têm dificuldade de ir ao Japão, poucos vão. Estariam interessados em conhecer o
Japão real? Alguns dos jovens com os quais interagi já possuem uma noção de que lugares são
mais freqüentados pelos otakus japoneses para fazerem suas compras.
Assim, uma grande possibilidade de que, no caso de se ter uma chance de se
conhecer a cultura japonesa in loco, que esses jovens acabem indo aos mesmos lugares
freqüentados por suas contrapartes japonesas. Uma professora do curso de japonês da UERJ
me disse, quando realizei uma visita a uma de suas aulas, que sua turma anterior era
composta, em sua maioria, por aficionados de animês e mangás e que eles pareciam
relativamente ansiosos para saber mais da realidade japonesa.
Contudo, ela percebeu que a realidade à qual eles se referiam era, em grande parte,
imaginada a partir dos quadrinhos e desenhos aos quais eles tinham acesso e ela chegou a
comentar que o Japão real não correspondia à imagem que eles faziam daquele país, que os
mangás não representavam o mundo real.
Logo, os dogmas do Orientalismo comentados por Said são totalmente pertinentes à
77
visão aplicada ao Japão, mesmo em se tratando do país oriental que passou, e ainda passa, por
um grande processo de ocidentalização. Ainda assim, o Japão guardaria, pelo menos a partir
do olhar ocidental, alguns dos principais elementos que o caracterizariam como um país
oriental;
(...) um é a absoluta e sistemática diferença entre o Ocidente, que é racional,
desenvolvido, humanitário e superior, e o Oriente, que é aberrante, subdesenvolvido
e inferior. Outro é que as abstrações sobre o Oriente, particularmente as que se
baseiam em textos que representam uma civilização oriental 'clássica', são sempre
preferíveis às evidências diretas extraídas das realidades orientais modernas. Um
terceiro dogma é que o Oriente é eterno, uniforme e incapaz de definir a si mesmo;
presume-se, portanto, que um vocabulário altamente generalizado e sistemático para
descrever o Oriente de um ponto de vista ocidental é inevitável e até cientificamente
'objetivo'. Um quarto dogma é que o Oriente, no fundo, ou é algo a ser temido (o
Perigo Amarelo, as hordas mongóis, os domínios pardos) ou a ser controlado (por
meio da pacificação, pesquisa e desenvolvimento, ou ocupação pura e simples
sempre que possível). (SAID, 1990, p. 305)
Ainda que positiva, a visão que os aficionados por cultura pop nipônica possuem do
Japão é pautada, por um lado, em uma expectativa a muito disseminada no Ocidente do que
seria o Oriente e, por outro, em uma representação que os japoneses fazem de si mesmos. O
que seria o Japão real se encontraria entre esses dois extremos, podendo ser experimentado
através de um contato direto, o que é difícil para a maioria dos aficionados.
Para estes, a visão que se tem do Japão é consideravelmente limitada ao que é
veiculado pela sua cultura de massa, a qual ressalta alguns aspectos importantes dentro do
Japão, como a noção de hierarquia, de honra, de grupo, etc. Assim, estão presentes nas obras
de cultura pop nipônica representações que ainda são bastante fortes no imaginário japonês.
Os japoneses, portanto, organizam o seu mundo em constante referência com a
hierarquia. Na família e nas relações pessoais, idade, geração, sexo e classe ditam a
conduta devida. No governo, religião, Exército e indústria, as zonas acham-se
cuidadosamente separadas por hierarquias, onde nem aos mais elevados, nem aos
mais baixos se permite ultrapassar as suas prerrogativas sem uma punição.
(BENEDICT, 2002, p. 84)
Como exemplo, posso mencionar aqui um debate de intelectuais japoneses, em 1942,
sobre a modernidade e, conseqüentemente, contrapondo o Japão (visto como liderança do
Oriente) ao Ocidente (simbolizado pelos Estados Unidos) – paradigma dessa modernidade.
78
Todos concordavam que a cultura isto é, a cultura tradicional japonesa era
espiritual e profunda, enquanto a moderna civilização ocidental era superficial,
desenraizada e inibidora do poder criativo. O Ocidente, particularmente os Estados
Unidos, era friamente mecânico. Um Oriente holístico e tradicional, unificado sob o
domínio divino do império japonês, restituiria a saúde espiritual à ardente
comunidade orgânica. (BURUMA e MARGALIT, 2006, p. 9)
Há, portanto, uma percepção bastante ácida do que seria o Ocidente, perspectiva essa
parcialmente compartilhada pelos críticos da civilização ocidental moderna. A crítica
romântica, em parte inspirada por uma representação idealizada do Oriente concordaria com
alguns dos traços que o Ocidentalismo ataca, como a:
(...) hostilidade em relação à Cidade, com sua imagem de cosmopolitismo
desenraizado, arrogante, ganancioso, decadente e frívolo; em relação à mente
ocidental, manifesta na ciência e na razão; em relação ao burgês bem estabelecido
cuja existência é a antítese do herói que se entrega ao auto-sacrifício; e em relação
ao infiel, que deve ser esmagado para dar passagem a um mundo de imaculada.
(BURUMA e MARGALIT, 2006, p. 17)
Essas críticas também aparecem com determinado interesse. Said mostrou como o
Ocidente, ao criar uma determinada representação do Oriente, elaborou por oposição uma
imagem que considerava positiva de si mesmo: frente à hierarquia e ao misticismo opunha-se
o individualismo e o racionalismo. O Ocidentalismo, por sua vez, repete o processo de forma
inversa: frente ao individualismo e o racionalismo teria-se uma coletividade harmoniosa.
Tal perspectiva seria visível na reação dos japoneses aos filmes. O que lhes
interessaria, o que os comoveria não seria nem tanto o final feliz, mas sim a sensação de dever
cumprido para com o todo social.
Mesmo os seus filmes modernos são construídos sobre o tema dos sofrimentos do
herói e da heroína. (...) Não precisa haver um final feliz. A piedade e a simpatia pelo
herói e heroína abnegados têm toda a procedência. O seu sofrimento não advém do
julgamento de Deus sobre eles. Revela que cumpriram a todo custo o seu dever sem
que nada desamparo, doença ou morte os desvie do verdadeiro caminho.
(BENEDICT, 2002, p. 164)
Essa preocupação com o todo, com o coletivo, é uma atitude consideravelmente
diversa da que caracterizaria as sociedades individualistas do Ocidente. Contudo, a existência
de tal preocupação, ainda que marcante nas tradições culturais japonesas, não significa que ela
79
seja um elemento preponderante nas relações sociais. Ao mesmo tempo em que a
permanência das tradições possui um papel fundamental na sociedade japonesa, essas mesmas
tradições abrem caminho para problemas que a colocam em questão.
A valorização dos vínculos sociais acaba por gerar uma política de troca de favores, a
qual facilita o surgimento da corrupção. “Another weakness of Japanese democracy was that
one party dominated Japanese politics for nearly half a century after the Second World War;
patronage and corruption became so widespread, they were practically institutionalised.”
(GRENVILLE, 1994, p. 667) É interessante destacar que tal imagem está presente nos animês
e mangás, onde muitas vezes elementos do governo são figuras suspeitas, preocupadas com
agendas pessoais e com interesses escusos.
Assim, pode-se dizer que a imagem do Japão que chega aqui é uma construção a partir
do real, a qual traz, aumentados ou diminuídos, aspectos da sua realidade. Contudo, enquanto
que os japoneses podem ter maior noção do que é relativizado ou valorizado nos quadrinhos
que lêem e nos desenhos que assistem.
A professora de japonês que mencionei antes, é nissei, filha de imigrantes japoneses.
Ela me disse que seus alunos, que eram leitores de mangás, manifestaram seu interesse em
aprender a língua para poderem ter um maior acesso à cultura japonesa, a qual lhes parecia
interessante por valorizar a amizade, o companheirismo, etc. Ela, que já morara no Japão,
disse aos jovens que tal imagem não corresponde à realidade atual, onde a competição é
ferrenha.
É importante comentar que nem sempre o interesse pelo Japop implica na disposição
para se procurar aprender mais sobre o Japão e a sua língua. Essa é uma das possibilidades,
bem como nem todos que procuram estudar japonês o fazem por serem otakus. A imagem de
sucesso conquistada pelos descendentes dos imigrantes japoneses, bem como a importância
80
econômica do Japão, são elementos que contribuem para que muitos vejam o aprendizado da
língua japonesa como um instrumento de ascensão profissional, por exemplo.
O aumento da procura pela formação em japonês deve-se, em primeiro lugar, à
comunidade japonesa no Brasil, que trabalhou no sentido de divulgar sua cultura
materna. Acrescenta-se, ademais, a exposição que os países asiáticos alcançaram na
mídia nos últimos anos e o grande sucesso dos mangas e dos animes. No Brasil,
contudo, o interesse dos não-descendentes não é resultado de mero modismo.
(LOPES, 2008, p. 230)
Nas duas turmas que visitei na UERJ, havia pessoas interessadas em aprender japonês
por outros motivos, como um diferencial no currículo, interesse de trabalhar no Japão, etc.
Isso também ocorreu no curso de japonês que freqüentei no Instituto Cultural Brasil-Japão,
embora tenha visto jovens no Instituto que liam mangás empolgados nos intervalos das aulas.
Tal percepção dificilmente poderá ocorrer com a maioria dos aficionados brasileiros,
os quais não têm total conhecimento do cotidiano no Japão. Dessa forma, o Japão continua,
ainda hoje, sendo uma representação, ponto que será mais desenvolvido no capítulo seis.
81
3. O JAPONÊS BRASILEIRO: IMIGRAÇÃO E PRESENÇA JAPONESA NO BRASIL
Não precisamos da imigração de serviçais. Precisamos
de imigração para que se divida a propriedade, pra que se
valorize o solo, para que se cultivem os campos, para que
se ligue o proprietário à terra, para que daí saia uma vida
ruralmente sadia, ruralmente patriótica, ruralmente presa
ao terreno.
Necessitamos mais da imigração japonesa do que
da imigração citadina dos húngaros e magiares, que
vão para as capitais formar os bairros da desordem e do
crime, que desgraçadamente a nossa São Paulo conhece
perfeitamente. (Discurso de Morais de Andrade, em
1934, apud LEÃO, 1989, p. 217)
Acrescento eu que se ele é inassimilável, sob o ponto de
vista da antropologia, propriamente, mais ainda o é, e de
maneira integral, do ponto de vista do seu psiquismo.
Isto, como uma característica de seu normo-tipo racial, e,
mais, até, por sua constituição intra-psíquica, sem
esquecer, nem por de lado, as razões mais profundas,
ainda, de seu misticismo religioso, mesclado com o
fanatismo patriótico, que é uma das mais notáveis das
suas qualidades intrínsecas. (Discurso de Xavier de
Oliveira, em 1934, apud LEÃO, 1989, p. 258)
82
Do ponto de vista formal, a presença nipônica em solo brasileiro remonta ao início da
imigração japonesa. Esses imigrantes vieram para o Brasil em busca de melhores condições
de vida, porém mantendo o retorno ao Japão como perspectiva definida a médio prazo.
18
Entretanto, as discussões a respeito da imigração japonesa para o Brasil têm uma
origem muito mais antiga, remontando à segunda metade do século XIX. Havia então
intensos debates sobre a vinda de trabalhadores orientais, inicialmente chineses. Tal imigração
era vista como uma possibilidade para a substituição da mão-de-obra escrava e negra.
O questionamento sobre a pertinência, ou não, de se aceitar imigrantes orientais (no
caso, oriundos da China), tinha sua remota origem na iniciativa de D. João VI de trazer
chineses para a produção de chá. Por não ter alcançado êxito e nem continuidade, esse
reduzido contingente de chineses não chegou a ter grandes efeitos na construção de uma
imagem definida desse grupo de imigrantes frente à população brasileira.
Porém, o governo brasileiro, desde a extinção do tráfico negreiro em 1850, tinha
demonstrado interesse em atrair europeus para, além de clarear a população mestiça do Brasil,
substituir a mão-de-obra negra no cultivo dos cafezais. Reavivou-se assim o interesse pela
imigração chinesa.
A reação aos primeiros grandes contingentes de chineses contratados para trabalhar em
terras brasileiras chegados em 1854 (303) e 1855 (368) será bem maior do que a ocorrida no
período joanino e terá maior persistência no imaginário brasileiro. “Acusados pelos
fazendeiros de morosidade e indisposição ao trabalho, alguns se rebelaram e outros foram
castigados corporalmente. Os contratos foram reincididos por serem os chineses, segundo os
fazendeiros, indolentes, indisciplinados, inúteis e prejudiciais.” (DEZEM, 2005: 56)
Essa percepção negativa a respeito dos chineses abriu caminho para o
18
Hoje, o retorno à pátria se não através dos pais, ou avós, mas sim através dos filhos e netos
que vão trabalhar no Japão, os chamados dekaseguis, vide o trabalho de SASAKI, 2002.
83
desenvolvimento da assim chamada “questão chinesa”. Os debates que a cercavam tinham um
forte elemento preconceituoso, até mesmo racista. De elemento intermediário entre as raças
branca e negra, solução para a questão de mão-de-obra no Brasil, discussão cujos contornos
e lógica hoje nos escapam quase que completamente a imigração chinesa se tornou ameaça
de inserção de novo fator degenerador, que viria somar (negativamente) à inferior presença
das populações negras aqui existentes.
Essa imagem “contaminou” parcialmente a questão da pertinência de se aceitar
imigrantes japoneses. A visão inicial que se tinha do Japão era relativamente imprecisa, porém
o fascínio que adquiriu, em fins do século XIX, contribuiu para que a representação
preconceituosa atribuída aos chineses não se consolidasse sobre os japoneses.
O fascínio que os otakus sentem pelos bens culturais vindos do Japão não é algo
inédito na história brasileira e mundial. Bem antes, quase cento e cinqüenta anos atrás, o
exotismo do Japão (cf, SAID, 1990), alcançou a Europa e, posteriormente todo o Ocidente. A
fascinação crescente na Europa pela arte, indumentária e costumes japoneses contribuiu para a
construção ocidental de um Japão exótico e misterioso.
Foi o caráter estético da cultura japonesa, amplamente desenvolvida durante os anos
de isolamento do 'país da cerejeira', que começou a chamar a atenção na Europa e
nos Estados Unidos. Esse olhar diferenciado deu origem a um movimento que ficou
conhecido como Japonismo. Este, sob o ponto de certos aspectos artísticos e
culturais, atribuía aos japoneses características positivas. (DEZEM, 2005, p. 135)
Em contrapartida, começava a disseminação do mito do “perigo amarelo” (gelbe
Gefahr), instigada pela Alemanha. Esse temor de uma ameaça amarela à civilização ocidental,
explica-se pelo interesse germânico (em virtude das rivalidades européias) em se aproximar
do governo russo, cujo imperialismo entrava em choque com o do Japão, posto que ambos os
países tinham interesses na China. No século XX, o fortalecimento da política expansionista
japonesa faria com que a imagem positiva, ainda que exótica, que o Japão possuía
desaparecesse progressivamente dando razão aos temores de um “perigo amarelo”.
84
Entretanto, em fins do século XIX, o Japão conquistava uma imagem de nação em
desenvolvimento, de um país diferente, porém civilizado. O fato de o império japonês ter
conseguido se modernizar, questionando a ingerência estrangeira sobre seus assuntos internos,
em parte graças ao apoio interno conquistado pelo imperador, o Japão se apresentava como
uma nação consideravelmente diferente da enfraquecida China, alvo prioritário dos interesses
ocidentais – e dos interesses do próprio Japão.
Progressivamente os imigrantes de origem nipônica foram adquirindo um estatuto
diferente dos de origem chinesa. Nos Estados Unidos, por exemplo, os imigrantes japoneses
passaram, no final do século XIX, a serem percebidos como sendo substancialmente
diferentes dos imigrantes chineses.
A questão não era demonstrar que o trabalhador japonês era 'melhor' do que o
trabalhador chinês, e sim como o papel de uma educação calcada em ideais
nacionalistas e em uma religião baseada no culto ao Imperador ajudavam a
consolidar na mente de cada imigrante japonês o ideal de 'missão a ser cumprida',
ainda que fora de seu país. É nessa questão que se encontra o elemento mais
importante desse processo: havia a 'proteção' do governo japonês com relação aos
seus imigrantes. Vistos como 'embaixadores mundo afora', que além de se
posicionarem como representantes de uma nação que se consolidava e que se
tornava reconhecida como potência, também buscavam enquanto raça o
reconhecimento do Ocidente. (DEZEM, 2005, p. 181)
Entretanto, em 1905, a disseminação do “perigo amarelo” ganhou força na Califórnia
levando ao fim da imigração japonesa para os Estados Unidos. Foi a partir dessa limitação da
imigração para os EUA que o governo imperial japonês começou a incentivar a emigração
para a América Latina. A América Latina se tornou um destino interessante para o
excedente populacional japonês quando a política exterior estadunidense progressivamente foi
reduzindo a entrada de asiáticos nos Estados Unidos.
Quando a corrente migratória japonêsa se dirigiu para o Brasil no início do século
[XX], já existia no Japão uma longa tradição de migração. Por outro lado, a América
do Sul foi procurada pelas Companhias de Emigração numa época em que o Hawaii
e os Estados Unidos, principais recebedores de imigrantes japonêses fora da área de
contrôle político, começaram a pôr obstáculos à imigração nipônica, até culminar,
em 1924, com o ‘Exclusion Act’, que cerrou definitivamente as portas para os
japonêses. (VIEIRA, 1973, p. 25)
85
Com isso, o Brasil passou a se tornar uma nova possibilidade e, devido a diminuição
do fluxo de italianos, em parte pelos maus tratos e pelas péssimas condições de trabalho aqui
encontradas, assinou-se um acordo de imigração com o governo japonês.
Tal interesse brasileiro em receber imigrantes do Japão em um momento em que
outros lhes fechavam as portas pode ser melhor entendido se for levado em conta que,
enquanto que entre 1903 e 1908 a imagem do Japão foi se alterando no mundo (ganhando
contornos mais suspeitos), o Brasil ainda se mantinha encantado com a visão exótica
característica do contexto do japonismo.
Como foi dito anteriormente, na segunda metade do século XIX, após a chamada
abertura para o Ocidente realizada pela Restauração Meiji, o primeiro destino dos emigrantes
japoneses não era o Brasil, mas sim os Estados Unidos, que vinham recebendo grandes
quantidades de chineses.
Dezem (2005) explica tal atitude em função do fato de durante o tempo em que países
como o Peru e, principalmente, os Estados Unidos estavam revendo seus discursos a respeito
dos japoneses, em função da real presença desses imigrantes em seus territórios os quais
passaram a ser considerados suspeitos em virtude da vitória do Japão na Guerra Russo-
Japonesa – o Brasil ainda guardava uma imagem positiva do império japonês.
Esse império teria se mostrado capaz de derrotar uma atrasada (feudal) potência
(decadente) européia cabe lembrar aqui que tal situação era vista como semelhante à da
república brasileira, que substituíra o decadente império de D. Pedro II. Dessa forma, as
restrições que se faziam a imigrantes orientais, presentes na “questão chinesa” não recaíram
pesadamente sobre a imigração japonesa.
19
19
Isso explica o porquê do “perigo amarelo” não ter alcançado no Brasil com a mesma intensidade
com a qual alcançara, por exemplo, os Estados Unidos. A idéia de receber os “brancos da Ásia”, membros de um
povo trabalhador e obediente à ordem parecia justificada. Contudo, as diferenças culturais que até então eram
vistas com um olhar de encantamento ganharam um peso considerável quando se tornaram próximas. A
presença real dos japoneses no Brasil, com suas tradições e língua consideravelmente diferentes logo se
86
Assim, uma saída para a falta de mão-de-obra nas plantações de café de São Paulo foi
a vinda de imigrantes japoneses. Com isso, em 1895 (já no Brasil republicano), os governos
brasileiro e nipônico assinaram o Tratado de Amizade. Com a assinatura de um acordo
diplomático entre Japão e Estados Unidos formalmente encerrando a emigração japonesa para
os EUA, em 1908, um acordo com o governo do estado de São Paulo transformou o Brasil em
novo destino da emigração japonesa.
20
No início, os pioneiros da imigração japonesa viveram situações difíceis e muito
sofridas. Ao invés de encontrarem a terra das oportunidades que esperavam, os primeiros
colonos encontraram uma dura realidade composta pela exploração gananciosa dos grandes
proprietários paulistas, além das péssimas condições de habitação e do choque devido às
diferenças de costumes.
Frustrados em suas expectativas de sucesso rápido e retôrno ao Japão, os colonos
nipônicos utilizavam-se de qualquer pretexto para abandonar as fazendas,
recorrendo mesmo à fuga. Terminado o contrato, por outro lado, os deslocamentos
são freqüentes. Abandonando as fazendas, os imigrantes dirigem-se em grande parte,
para outras fazendas na frente de expansão em busca de melhores salários ou
dispersam-se pelas regiões recém-desbravadas. Outros deslocam-se para as
vizinhanças da cidade de São Paulo, reemigram para a Argentina, retornam ao Japão.
(VIEIRA, 1973, p. 63-64)
A dificuldade de adaptação a um Brasil distante do que era divulgado pela propaganda,
fez com que muitos imigrantes permanecessem isolados. Em parte isso era uma estratégia
para preservar a sua identidade japonesa, o que acabou levando a constituição de associações,
cooperativas, escolas comunitárias.
Ao mesmo tempo em que essas atitudes contribuíam para manter a unidade da
comunidade nipônica no Brasil, elas também geravam suspeitas. Essa impermeabilidade das
comunidades japonesas, vivendo isoladas, criou condições para a intensificação de idéias
colocaram como um problema, perdendo rapidamente seu gosto exótico.
20
“A partir de 1925, o Brasil é para o Japão, não apenas pràticamente (sic) o único país recebedor
de emigrantes, mas também mercado potencial para investimentos fora da Ásia e a ação combinada do govêrno e
dos capitalistas japonêses imprime novas características à política migratória japonêsa no Brasil.” (VIEIRA,
1973, p. 41)
87
contrárias à presença japonesa no Brasil. Para isso contribuíam o crescimento das idéias
totalitárias e a situação do Japão no primeiro quartel do século XX, onde um contexto de
recessão, desemprego, inflação e corrupção levou ao uma progressiva militarização.
Como esses imigrantes japoneses aqui no Brasil ainda eram considerados como
membros do império japonês, com muitos ainda mantendo o sonho (cada vez mais
improvável) de um retorno ao Japão, eles passavam a ser vistos como possíveis representantes
do “perigo amarelo”, agentes do expansionismo japonês. A partir dos anos vinte a crescente
presença nipônica em solo brasileiro foi se tornando um assunto politicamente polêmico.
Desde o início dos anos vinte, registraram-se no Brasil algumas iniciativas
contrárias à imigração japonesa, em parte motivadas por preocupações de natureza
etno-culturais com ênfase nos aspectos raciais e eugênicos em parte por receios
quanto às ambições imperialistas porventura alimentadas pelo Japão. Foram porém
posturas isoladas, que não chegaram a ganhar densidade. (LEÃO, 1989, p. 173)
Dessa forma, na conturbada década de 1920 quando a mobilização operária,
inspirada nos ideais anarquistas trazidos pelos imigrantes italianos e consolidada com a
fundação de uma seção do partido comunista no Brasil –, começaram a surgir propostas
favoráveis ao controle da entrada de imigrantes de origem japonesa.
Essa situação se agravou na década de 1930, principalmente em virtude da agitação
política presente na Assembléia Nacional Constituinte de 1933-1934. O Itamarati (,
denominação utilizada para se referir ao Ministério das Relações Exteriores), preocupado com
a manutenção das boas relações com o Japão, passou a desenvolver um trabalho de
articulação tentando, sem sucesso, evitar a aprovação de leis discriminatórias anti-japonesas.
21
A partir de 1937, com o estabelecimento do Estado Novo e a preocupação com a
construção de uma identidade nacional, as comunidades japonesas sofreram pressões
21
Em 1934, foi aprovada a chamada “Emenda Miguel Couto”, a qual (através do estabelecimento
de um sistema de quotas) acabaria por limitar a entrada de imigrantes oriundos do Japão. “Esse dispositivo
constitucional determinava, em seu parágrafo sexto, que nenhuma corrente imigratória poderia exceder,
anualmente, o limite de 2% sobre o número total de seus respectivos nacionais aqui fixados durante os últimos
50 anos.” (TAKEUCHI, 2007: 58)
88
crescentes para se integrarem à sociedade brasileira. A partir de 1938, ano da transformação
da DEOPS (Delegacia Estadual de Ordem Política e Social), de São Paulo, para DOPS
(Delegacia de Ordem Política e Social), aumentou a repressão aos estrangeiros e a
comunidade nipônica concentrada em São Paulo foi mantida sob estreita vigilância.
A partir daquele momento, a atitude em relação aos japoneses também se tornou
mais vigilante, pois propagava-se que o japonês além de ser fanático, traiçoeiro e
inassimilável, queria dominar o Brasil, iniciando sua conquista pelo Estado de São
Paulo com o objetivo de construir aqui o Império do Sol Poente”. (DEZEM, 2000,
p. 39)
A situação se agravou após 1941, com o ataque japonês à base estadunidense de Pearl
Harbour, no oceano Pacífico. Em 1942, o governo brasileiro (que se aproximava dos Estados
Unidos), em apoio aos aliados, cortou relações diplomáticas com o Japão. Com isso, toda a
comunidade de descendentes de japoneses passava a ser vigiada para se evitar possíveis ações
colaboracionistas como espionagem e sabotagem.
Até esse período, a população nipônica que vivia no Brasil evitava maiores contatos
com a realidade brasileira, permanecendo relativamente isolada em comunidades de
imigrantes que mostravam pouco interesse em se integrarem mais fortemente à sociedade
brasileira. Essa tentativa de preservação da língua, da cultura, mantendo fortes vínculos com o
Japão, deu aos membros da comunidade nikkei (os descendentes de imigrantes japoneses)
uma clara percepção de que constituíam um grupo diferenciado de pessoas dentro da
população brasileira.
A competência e a honestidade para o trabalho foram as ferramentas que deram
condições para compensar os prejuízos de ser estrangeiro. Assim como, com força
de vontade e com perseverança, os japoneses foram conseguindo superar as
desvantagens de não serem iguais aos outros brasileiros. (SAKURAI, 1993, p. 32)
Essa diferenciação foi um dos motivos pelos quais os japoneses foram tidos como um
grupo exótico, como ocorreu durante os anos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Assim, a comunidade nikkei passou a ser alvo de vigilância. Os imigrantes, tratados como
89
inimigos, passaram a ser perseguidos e vistos com desconfiança.
22
Para isso também contribuiu o caráter relativamente recluso dos próprios japoneses
que, ciosos da sua diferença étnica e cultural, preferiram se manter socialmente afastados dos
brasileiros. Em parte, muitos ainda ambicionavam retornar ao Japão e por isso não tinham
interesse em buscar maior integração com o restante da população brasileira.
Infere-se, pois, que os imigrantes japonêses da Alta Paulista, até 1941, estavam
fortemente orientados para o Japão, não em vista dos motivos puramente
adaptativos e econômicos ‘Êxito rápido e volta à terra natal’ –, como também pelo
tipo de produção agrícola, estimulada e amparada pelo capital nipônico e destinada
ao Japão. Isso nos permite supor, nos núcleos japonêses da Alta Paulista no período
anterior à guerra, predisposição geral pequena de mudança, com profunda ênfase na
orientação instrumental e na solidariedade étnica. Seria de esperar-se, portanto, uma
orientação social e cultural para valôres e tradições japonêsas e pouca identificação
nesse sentido como a sociedade brasileira. Em relação ao sistema social mais amplo
a orientação seria predominantemente negativa, aliada à ausência de desejo de
construir um novo modo de vida. (VIEIRA, 1973, p. 69)
A idéia presente em alguns dos imigrantes japoneses de que eram parte de um império
poderoso e que tinham que afirmar essa superioridade, os levou a criar a Shindo Renmei, uma
associação cujo nome significa “Liga do Caminho dos Súditos”. Ela surgiu durante a Segunda
Guerra Mundial, em 1944, durante o período do Estado Novo (1937-1945).
A proibição da circulação de jornais em japonês significava manter a comunidade
nipônica, que na maioria não possuía fluência na língua portuguesa (tendo sido educada em
escolas da própria comunidade), desinformada quanto ao que se passava na guerra,
principalmente no que se referia à participação japonesa.
Essa situação aumentava as suspeitas, por parte dos próprios imigrantes, sem acesso a
informações confiáveis, a respeito do que se passava no Brasil e no mundo. Tal situação de
ignorância, de humilhação, de repressão e de cerceamento da liberdade de preservar sua
língua e tradições explica o estado de desconfiança que crescia dentro da comunidade. A
22
Como bem destacou Marcelo Ennes em relação a uma cidade do interior de São Paulo: “A
Segunda Guerra Mundial motivou a exacerbação nacionalista, tornando as diferenças étnicas e culturais mais
explícitas. Falar japonês, ler em japonês, possuir fotografias (com uniforme de exército ou que comprovava que
tinha sido funcionário do governo japonês), rádio em casa, cartas, enfim, tudo o que ligava ou o que mantinha a
família japonesa em Pereira Barreto ligada ao Japão era alvo de suspeita.” (ENNES, 2001: 85)
90
sensação de dúvida a respeito do que era divulgado, e a certeza de que algo era ocultado
tomou conta de alguns dos seus membros.
Praticamente isolados e contidos pelo aparato repressivo do governo que os vigiava
permanentemente, os japoneses se viram impossibilitados de manter uma fonte
segura de notícias sobre o decorrer da guerra, além de estarem proibidos de cultivar
suas tradições culturais. Esse clima de tensão e constante controle alimentava o
desejo, cada vez mais intenso, da grande maioria de voltar ao Japão. Por outro lado,
nascia para uma minoria a desilusão do retorno em face da realidade dos rumores
que a guerra tomava no final dos anos 40. Mas grande parte da comunidade não
estava preparada para enfrentar a notícia da derrota do Japão. (DEZEM, 2000, p. 48)
Assim, em 1944, bem antes do lançamento das bombas atômicas sobre o Japão,
formava-se a Shindo Renmei, afirmando ter como propósito a preservação da cultura japonesa
e da figura do, até então ainda tido como divino, imperador Hiroíto. Após o final da Segunda
Guerra Mundial, entretanto, houve uma radicalização dos seus objetivos. A notícia da
rendição do império japonês frente aos Estados Unidos, representando as forças aliadas no
Pacífico, não foi aceita prontamente por seus membros aqui no Brasil.
Começou então a perseguição por parte dos katigumi (vitoristas), os quais não
acreditavam na notícia da derrota do Japão e consideravam traidores os makegumi, aqueles
que reconheciam a derrota japonesa frente aos aliados. As ameaças e mortes levaram o terror
dentro da comunidade de descendentes de imigrantes nipônicos. As atividades desse grupo,
depois desarticulado pela polícia, em 1946, em muito contribuiu para dar um caráter de
mistério e de suspeita às populações de origem nipônica somente em 1952 foram
restabelecidas as relações oficiais entre o Brasil e o Japão.
É relevante destacar aqui a importância do elemento geracional dentro desse processo,
através do qual a população de origem japonesa foi se integrando à sociedade brasileira.
Aqueles que vieram do Japão, os mais velhos e líderes da comunidade possuíam uma
vinculação mais estreita com as tradições nipônicas, parte integrante da sua identidade,
enquanto que as gerações nascidas no Brasil, aos poucos foram desenvolvendo uma maior
91
aproximação dos costumes brasileiros.
23
A partir desse momento, começou um processo de integração, através do investimento
na socialização positiva dos filhos, incentivando os estudos – o objetivo era a ascensão social.
Com isso, na tentativa de conseguir um melhor padrão de vida, as famílias nipônicas
perseveraram com trabalho duro e investimento na educação dos filhos. A educação ganhava
assim um papel fundamental e contribuía para a inserção dos jovens no todo da sociedade
brasileira.
Para os jovens, a freqüência da escola brasileira intensificou a orientação positiva
para a sociedade nacional e as oportunidades de trabalho assalariado não
estenderam o campo de relações sociais, mas permitiram o desenvolvimento do
individualismo e aumentaram a predisposição à mudança. O criticismo e oposição às
normas e valôres japonêses levam-nos a procurar namôro e casamento com não-
japonêses. (VIEIRA, 1973, p. 163)
Dentro desse processo de inserção social começou a se desenhar dois pólos dentro da
comunidade nikkei: os nissei, a geração de filhos de imigrantes japoneses nascidos no Brasil,
começaram a se dividir entre os mais integrados à sociedade brasileira e os que desejavam
manter maior vínculo com as tradições nipônicas.
24
Dessa forma, houve, progressivamente, a inserção dos descendentes de japoneses
dentro da sociedade brasileira. “(...) no período posterior à guerra começou a exteriorização de
manifestações da cultura japonesa para o grande público.” (SAKURAI, 1993, p. 84) Com
isso, a imagem um tanto pejorativa advinda das atitudes altamente formalistas características
da cultura japonesa, do fato da dificuldade de se expressarem em português, etc., bem como o
receio advindo da Segunda Guerra Mundial foram sendo modificados e, a partir dos anos
1970 (com o Japão se destacando como potência econômica), começou a se reconstituir a
23
“(...) acompanhar a história da imigração através do comportamento das diferentes gerações,
leva facilmente à conclusão de que a mudança cultural se processa, no caso, através do conflito entre elas. Em
vários trabalhos encontram-se referências ao papel estimulante dos jovens no processo aculturativo em
contraposição ao conservantismo dos velhos, vinculados às tradições nipônicas.” (CARDOSO, 1977, p. 364)
24
“(...) os nissei que se afastam da orientação coletiva tradicional no sentido de um maior
individualismo e de uma identificação cada vez maior com a sociedade brasileira e os nissei mais conservadores,
que permanecem mais apegados aos padrões e sistemas de valores japonêses (sic).” (VIEIRA, 1973, p. 82)
92
imagem do japonês como um povo trabalhador e empreendedor.
Portanto, as famílias de origem japonesa, ao se darem conta da impossibilidade de um
retorno bem sucedido ao Japão, começaram a investir na educação dos filhos. Esse objetivo,
de conseguir que seus filhos ocupassem uma posição social ascendente, as levou a rever a
prática de agricultura familiar, na qual todos os membros participavam. Os jovens teriam um
novo papel dentro da estrutura da família japonesa no Brasil: o de estudar.
25
Essa valorização do estudo pode explicar a facilidade com a qual os jovens
encontravam diferentes oportunidades de leitura, inclusive os mangás que eram vistos como
uma parte integrante da cultura nipônica. O pai de Minami Keizi, por exemplo, que fazia parte
da Cooperativa Agrícola de Cotia, garantiu ao filho a possibilidade de ter contato com essa
manifestação artística japonesa.
A Cooperativa Agrícola de Cotia oferecia as assinaturas de revista japonesas,
inclusive as de mangá. Papai assinava a Shonen Club, uma revista que tinha o
número de páginas de uma lista telefônica e era recheada de mangás; a Reibon, outra
revista grossa sobre cinema; e a no Hikaru, “Luz do Lar” em tradução literal.
(KEIZI, 2008, p. 106)
A facilidade na aceitação do mangá, por ser visto como manifestação cultural
japonesa, também explica porque o mesmo não era visto com o mesmo preconceito que era, e
em grande parte ainda é, visto por membros da sociedade brasileira. Diferentemente da visão
brasileira, acostumada a encarar os quadrinhos como arte menor, a comunidade nipônica via
no mangá uma forma de expressão da sua realidade ao retratar atividades esportivas,
reconstruir eventos históricos, descrever a vida do trabalhador o sarariman (salary man).
Enquanto que o consumo dos mangás era algo bastante comum nas famílias oriundas da
comunidade nikkei, essa realidade não era a mesma nas demais famílias brasileiras.
26
25
“A valorização do trabalho intelectual, que trouxeram do Japão, e o propósito de proporcionar
aos jovens uma vida melhor, fizeram com que estes 'issei' incentivassem nos 'nissei' o desejo de conseguir uma
profissão urbana e bem categorizada socialmente.” (CARDOSO, 1977, p. 368)
26
“Minha família sempre assinava várias revistas de mangá e eu comprava muitos gibis também.
Eu era o moleque que mais tinha gibi na cidade de Guaiçara. Acho que tudo é uma questão cultural. No Brasil,
com exceção do Maurício de Sousa, não temos nenhum outro exemplo de personalidade nacional por fazer
93
Com isso, a comunidade nikkei, embora valorizasse sua especificidade, foi buscando
inserir seus membros mais jovens dentro da sociedade brasileira. O isolamento inicial foi
sendo substituído pela maior participação na dinâmica da vida social fora do universo
nipônico. Dessa forma, os filhos passaram a ter outra função: a de se inserirem na grande
sociedade brasileira e de serem bem sucedidos sem esquecerem sua condição de
representantes das tradições japonesas (a vitória dos mesmos seria um exemplo do valor
dessas tradições).
27
Essa inserção dos jovens descendentes na sociedade brasileira acabou por fazer com
que esses repensassem sua condição de membros da comunidade nikkei. A identificação dos
mesmos passou a ser pensada muito mais em termos de Brasil do que de Japão. A ida para os
centros urbanos, em busca de maior qualidade de ensino e de melhores condições de ascensão
social, os colocou em contato com a diversidade cultural que caracteriza a sociedade
brasileira. Atualmente assistimos a uma radicalização da atuação destes jovens, que pregam
a necessidade da integração total na sociedade nacional e procuram, realmente, participar da
vida do país sem levar em conta sua situação marginal [de nipo-brasileiro].” (CARDOSO,
1977, p. 371)
É como parte desse processo de inserção dos nisseis na sociedade brasileira que se
pode entender, por exemplo, a importância de Alexandre Nagado (cuja trajetória comentarei a
frente). Por ser filho de nisseis, dentro de um contexto de integração, ele contribuiu para a
maior penetração da cultura pop nipônica dentro da cultura brasileira.
A verdade é que, se por um lado os nikkeis se aculturaram perfeitamente, por outro,
deixaram influências que muitas vezes passam desapercebidas, pois foram
incorporadas aos costumes brasileiros. Por exemplo a inclusão de “sushis” em
quadrinhos. Então acho que não se trata de preconceito. Os pais e mestres não têm onde se espelhar para fazer
um julgamento.” (SETO, 2008, p. 132)
27
“É assim que se quebram certos preconceitos, que se admite a freqüência a bailes, que o
portuguẽs começa a ser a língua corrente dos 'nisseis', que o casamento fora da colônia deixa de ser severamente
condenado, etc. É preciso se adestrar para participar da sociedade brasileira, porque a ascensão social é
possível dentro dela.” (CARDOSO, 1977, p. 370)
94
churrascarias e restaurantes por quilo; práticas medicinais alternativas, como o “do-
in”, shiatsu, acupuntura e meditação; a prática de esportes como o judô, o beisebol e
o karatê; a diversão com o “karaokê”, a popularização da “saikirinha” (caipirinha
feita com sakê); entre outros. (ISHITANI, 2008, p. 99)
95
5. CULTURA POP NIPÔNICA NO BRASIL
Muitos adolescentes e jovens adultos desfrutam
hoje de diversas características da cultura
japonesa, absorvendo-a tanto de maneira positiva
(conhecimento racional e gradativo) quanto
negativa (radicalismo). Vocês podem ter certeza
que essa revista existe por causa de três
animês: Pokémon, Dragonball e Saint Seya. E
com certeza excluindo os respectivos mangás,
que não têm até hoje poder de venda comparado
com o da televisão. (MASSARANI, 2007, p. 61)
Lamentável, deplorável, injusto, ridículo. Essa é a
única maneira de classificar o que foi feito no
programa Observatório da Imprensa do dia 16.
Um programa que deveria ser imparcial jamais
poderia ter atacado a animação japonesa do jeito
que atacou. O que é isso? Tribunal sem defesa?
Humph! Se existe violência em algumas séries de
animação japonesa, ela não é injustificada, como
acontece em séries que os senhores classificaram
como inofensivas, e algumas outras que nem
foram mencionadas, como Beavis & Butt- Head e
South Park. Em nome de todos os admiradores de
animação japonesa deste país, exijo uma
retratação. (Victor Hugo Nicholas Urameshi,
mensagem enviada para a seção “Caderno do
Leitor” do sítio Observatório da Imprensa,
05/12/1999. Disponível em
<http://www.observatoriodaimprensa.com.br/caix
a/cp051299a.htm> Acesso em 05 fev. 2009)
96
5.1. A Entrada dos Mangás no Mundo dos Gibis
De maneira geral, as revistas em quadrinhos têm sido alvo constante de críticas,
ataques e de tentativas de censura, desde que se constituíram como um dos novos meios de
comunicação de massa. Logo, para se entender como as historietas em quadrinhos, comics,
bandes dessinées, gibis e (no caso específico dos quadrinhos japoneses) os mangás têm sido
encarados, é preciso fazer uma pequena revisão do seu surgimento.
Para isso também será necessário comentar como se desenvolveu o mercado de
quadrinhos estadunidenses os quais, até recentemente, dominaram as bancas de jornais
brasileiras – e japoneses, principal influência na produção de animês e de jogos eletrônicos
Ao contrário do que muitos fãs de animês acham, as séries não são para serem
exibidas e pronto. Nenhuma série é feita se não tiver retorno financeiro, seja ele qual
for. As séries para crianças têm como apelo vender bonequinhos, assim como as para
adultos têm o objetivo de vender DVDs. Mas, atualmente, outro mercado se abriu: o
dos videogames. Não basta mais ter um animê na TV, brinquedos nas lojas e DVDs
nas prateleiras, os personagens de olhos grandes e cabelos multicoloridos têm de
estar também nas sessões de jogos de todas as lojas do país. (VEJA A SÉRIE,
DEPOIS JOGUE-A, 2007, p. 64)
O surgimento do consumo de mangás e de animês no Brasil, apesar de ser uma
manifestação de uma tendência mundial, se deu dentro de um contexto específico. Algumas
das características da relação dos pais e da mídia em geral com os aficionados por Japop se
explica ao se tomar contato com o processo histórico que marcou a constituição do espaço dos
quadrinhos e da animação no Brasil.
Para se compreender como surgiu a literatura de quadrinhos no brasil, deve-se voltar
os olhos para o Rio de Janeiro da Belle Époque. A imprensa carioca, produzida na capital da
República, tinha se expandido no final do século XIX, industrializando-se: novos
equipamentos possibilitavam maiores tiragens com menor custo, e o desenvolvimento da
publicidade oferecia uma nova fonte de receita. Com isso, o alcance dos jornais, até então
97
relativamente reduzido, ampliou-se, levando os campos da imprensa e da produção literária a
se transformarem durante a passagem do século XIX para o século XX.
A impressão era endossada pelo perfil do mercado editorial da época que, animado
com o barateamento das edições (possibilitado pelas novas tecnologias) investia em
publicações voltadas para o 'povo', mais preocupado com o número de vendas do
que com a qualidade literária propriamente dita. Por 'povo' respondia (...) não as
camadas pobres e de baixa renda, mas sim toda e qualquer pessoa dentre as mais de
400 mil pessoas alfabetizadas, entre homens e mulheres (cerca de 50% da população
da capital). Um bom exemplo desse boom de literatura popular é o sucesso
alcançado pelas novelas-folhetins nesse princípio de século XX. (O'DONNELL,
2008, p. 74-75)
Dessa forma, a imprensa começava, ainda que em escala reduzida para os padrões
atuais, a se constituir como um meio de comunicação de massa. É nesse contexto que é
possível encontrar algumas das críticas feitas às publicações de grande vendagem e de alcance
popular que têm sido uma constante na história brasileira, remontando ao final do século XIX.
Dúvidas sobre sua relevância do ponto de vista artístico, principalmente no que se
refere à qualidade dos valores morais presentes nessas obras, podem ser observadas nesse
comentário do cronista João do Rio, no início do século XX, descrevendo a literatura das
ruas:
Desde 1840, o fundo das livrarias ambulantes, as obras de venda dos camelôs têm
sido a Princesa Magalona, a Donzela Teodora, a História de Carlos Magno, a
Despedida de João Brandão e a Conversação do Pai Manuel com o Pai José ao
todo uns vinte folhetos sarrabulhentos de crimes e de sandices. (RIO, 2008, p. 87)
João do Rio esboça uma associação entre a disseminação desse tipo de literatura nas
camadas populares e o crescimento do crime na cidade do Rio de Janeiro. O autor como
exemplo disso, o caso de Carlito da Saúde que (após ser preso por desordens), se tornou muito
violento depois de ler a supracitada História de Carlos Magno, prometendo matar a primeira
pessoa que encontrasse ao sair em liberdade, promessa cumprida logo após a sua soltura.
28
28
Relatos semelhantes, entrevistas, cartas, relatórios, etc., produzidos por outros, visando outro
material produzido pela imprensa, os suplementos juvenis, seriam transcritos nos jornais dos anos 40 e 50 do
século XX. Da mesma forma, buscaria-se estabelece uma relação entre violência e leitura de revistas em
quadrinhos. Da mesma forma que a literatura folhetinesca da segunda metade do século XIX, consumida pela
população mais humilde, as revistas em quadrinhos também seria alvo de críticas quase idênticas: de deformar o
caráter, ensinar o ofício do crime e estimular a violência.
98
Contudo, deve-se ressaltar que a crítica feita por João do Rio era a uma parte da
produção literária de sua época; a sua própria atividade na imprensa desse período mostra que
nem tudo era violência nas páginas dos jornais. Em 1901 eram lançadas as revistas Revista da
Semana, que se apresentava com uma publicação de alcance popular e que já dava atenção à
literatura infantil contava regularmente com um conto infantil e a Ilustração Brasileira
que contava com colaboradores do calibre de Olavo Bilac, João do Rio (Paulo Barreto), entre
outros. “A revista publicava em suplemento, fora do texto, romances de aventuras, como o
Arsênio Lupin de Maurice Leblanc e a Guerra nos ares de Wells, no que seguia, igualmente,
uma praxe de L'Illustration Française.” (BROCA, 2004, p. 299)
No Brasil, apesar da tradição da caricatura a qual teve como um de seus maiores
destaques Angelo Agostini –, somente no início do século XX, a revista O Tico-Tico
começaria a publicar quadrinhos de forma mais regular.
29
O Tico-Tico surge juntamente com uma outra série de revistas que marcou época e que
teve um papel fundamental na vida literária do Brasil no início do século XX. São do mesmo
período as revistas Fon-Fon (1907), Careta (1908) e a revista paulista O Pirralho (1911). A
principal diferença entre essas revistas ilustradas e O Tico-Tico, era o fato dessa publicação
ser exclusivamente voltada para o público infantil.
maior preocupação com a formação das crianças, visível pelas traduções e
adaptações de obras estrangeiras, como o célebre caso de Juca e Chico (1910), tradução de
Olavo Bilac para a série Max und Moritz de Wilhelm Busch, publicada originalmente em
1865. Publicam-se livros infantis com o objetivo de desenvolver valores cívicos, sentimento
patriótico e elevadas qualidades morais.
29
É difícil ter noção hoje da importância dessa publicação, porém, pela sua longevidade de quase 50 anos, é
possível ter alguma idéia do alcance que teve na formação de muitos jovens brasileiros. “Até Carlos
Drummond de Andrade era apaixonado pela revistinha, dedicando uma crônica aos personagens que fizeram
a alegria de sua infância.” (ESQUENAZI, 2003, p. 59).
99
Vêem-se também multiplicar as publicações de revistas e jornais infantis, assim
como suplementos infantis de jornais como, por exemplo, o 'João Paulino', do
Jornal do Brasil. A revista Tico-Tico, lançada em 1905, é uma amostra do sucesso
dessas publicações. Ela permaneceu durante muito tempo no cenário editorial,
recebendo colaborações de grandes artistas. Outros exemplos são O Grilo, O Peque
polegar, O Cri-Cri, Nené, o Fafasinho. (ARAÚJO, 1993, p. 176)
Tem-se aí uma visão positiva das publicações para crianças; esses textos poderiam não
entreter, mas principalmente educar. O interesse pela formação dos valores éticos e morais
poderia ser atendido através dessas publicações. Portanto, o lançamento da O Tico-Tico
insere-se dentro dessa opção pelo público infantil. A preocupação com a qualidade educativa
da revista, também era compreensível pelo fato de O Tico-Tico ter no historiador e educador
Manoel Bomfim um de seus idealizadores.
30
O sucesso e a longevidade de O Tico-Tico podem ter contribuído para a construção da
noção, no Brasil, de que revista em quadrinhos é voltada para o público infantil. A chegada
dos comics estadunidenses elevaria a faixa etária, já que suas histórias de aventura
encantavam mais os jovens. Essa vinculação dos quadrinhos ao público infanto-juvenil viria a
dificultar, no futuro, a percepção do mangá como uma manifestação cultural produzida para
todas as faixas etárias, inclusive adultos.
No Japão, o mangá é uma leitura contínua, cobrindo diferentes idades (crianças,
jovens e adultos), grupos (estudantes, executivos, etc.), sexos (homens e mulheres). Essa
segmentação do mercado, que será detalhada mais a frente é desconhecida no Brasil, que
considera os quadrinhos como um entretenimento infanto-juvenil, diferentemente do que
ocorre no Japão.
Os quadrinhos infantis conquistam os leitores, os quadrinhos adolescentes exploram
sua capacidade de consumo ao máximo, e dez anos depois... os leitores de
quadrinhos adolescentes não serão mais adolescentes. Migrarão para revistas seinen
como a Young Jump ou a Young Animal, e estarão se dividindo. Mais alguns anos e
os leitores de uma Animal migrarão para uma Morning ou a Afternoon, de acordo
30
“Bomfim foi (...) um dos criadores da primeira revista infantil brasileira, O Tico-Tico (1905). Meio século
depois do lançamento dessa publicação, ou seja, em 1955, ela deixou de circular. Em meados da década de 1950
as revistas estrangeiras, voltadas para o público infantil, inundaram as bancas de jornal do país.” (ALVES
FILHO, 2008, p. 13)
100
com seu perfil. Com o tempo, se fragmentarão cada vez mais e é por isso que
nenhuma dessas séries parecem vender tanto quanto os sucessos juvenis da Jump ou
da Nakayoshi. O tempo passa e sempre traz novos rumos na vida de uma pessoa. E
serão estes rumos que o definirão como leitor também. (LANCASTER, 2007, p. 24)
A diferença da constituição do mercado dos mangás e animês no Japão será analisada
em outro momento. Retornando ao contexto brasileiro da primeira metade do século passado,
as tiras em quadrinhos vindas dos Estados Unidos, como mencionado antes, dominaram o
mercado de publicações para o público infanto-juvenil.
Nos Estados Unidos, os jovens do início do século XX tiveram um papel fundamental
no processo da construção de uma cultura alternativa, gestada dentro do mercado editorial e
que, com o passar do tempo, acabou por se tornar um campo novo, o das revistas em
quadrinhos.
A partir da realidade de um país que se tornava uma potência continental e mundial,
em um contexto de afluência que trazia uma série de artefatos tecnológicos para o dia-a-dia
sendo talvez o rádio um de seus símbolos mais presentes na vida doméstica muitos jovens
encontraram um universo com o qual se identificar. Era uma literatura que estava integrada a
essas transformações, que lançava questões, esboçava possibilidades, no momento em que
esses jovens viviam as demandas de inserção no mundo adulto.
As relações que mantinham com a masculinidade, a sexualidade, o poder, a
individualidade, a violência, a autoridade e a moderna fluidez do indivíduo eram tão
intrincadas e profundas que seu trabalho falava diretamente às ansiedades da vida
moderna – e com um conhecimento de causa que jamais julgaram ter. À medida que
o tempo passava suas criações tornaram-se cada vez mais importantes. Eles
previram e ajudaram a moldar a cultura geek, estabeleceram o padrão de franquia
para entretenimento, criaram uma fantasia pronta para ser vendida à cultura do
narcisismo de consumo. Provocaram o surgimento de subculturas artísticas.
(JONES, 2006, p. 19-20)
Talvez tenha havido certo exagero nessa proposta inovadora atribuída ao surgimento
da indústria cultural ligada ao universo dos quadrinhos. havia diversidade artística
anteriormente visível na pluralidade de manifestações da Belle Époque como os painéis de
Toulouse-Lautrec e a criação do cinema no final do século XIX e que estava se tornando um
101
entretenimento de massa no primeiro quartel do século passado. Porém, não se pode negar um
elemento inovador nessa subcultura peculiar, tecnológica, que tanto é um produto para”
quanto um “produto dos” seus consumidores/produtores, deve ser levado em conta.
Uma das origens dessa nova cultura eram as pulp magazines, que dariam origem à
pulp fiction reverenciada por Quentin Tarantino nos anos 90 daí o tulo do seu filme, aqui
chamado de Pulp Fiction: Tempo de Violência. Essas revistas, com uma impressão de
qualidade, mas com capas chamativas e histórias variadas, desde aventuras no oeste selvagem
ou em florestas exóticas, com detetives durões e astronautas em foguetes, tinham grande
vendagem. Algumas eram destinadas ao público adulto, mas a maioria visava garotos de 8 a
14 anos – a 'idade dos heróis', como um editor a chamou.” (JONES, 2006, p. 51)
Assim, no início do século XX, nos Estados Unidos, juntamente com o crescimento
dessas publicações, a tira de quadrinhos diária nos grandes jornais também se disseminava e,
em 1929, com Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, surgia o primeiro grande herói desse
universo. Essa década seria ainda marcada pelo nascimento da Ficção Científica, a qual estava
representada nos quadrinhos através das histórias de Buck Rogers.
O segmento da Ficção Científica, mencionado por Lourenço (2000), embora sendo
conhecido pelos romances de H. G. Wells e Julio Verne, desenvolveu-se basicamente na
forma de contos, a maioria dos quais publicados em revistas, como as editadas por Hugo
Gernsback na década de 1920, o criador do termo “Ficção Científica”.
O fato de ser uma literatura que discutia a crescente presença da tecnologia na vida
diária, e a influência que ela teria no futuro, mostrava sua ligação com a modernidade que
marcava esse momento de crença no futuro, na vitória da tecnologia, do mundo industrial
como propiciador de bem estar que parecia ter se instalado nos EUA.
É a partir da Ficção Científica que começa a construção de um universo marcado pelo
102
consumo, discussão, reprodução e até produção, de um saber juvenil. Esse saber, criado a
partir da cultura de massa, reproduzindo-a, ampliando-a e até criticando-a surge no ano de
1929, quando se reúne o primeiro clube de Ficção Científica em Nova York.
31
Surgia assim, na primeira metade do século XX, em Nova York, o fandom, (da união
de fan, da palavra fanatic, e kingdom, significando “reino dos fãs”) que serviria para designar
toda a comunidade marcada por essa cultura juvenil, formada por especialistas, iniciados e/ou
apenas interessados em construir/conhecer esse saber juvenil.
O interesse pela Ficção Científica era explicável não pela sua ênfase na tecnologia,
mas também pelo seu interesse em reflexão, discussão a respeito das aventuras, tramas e
questões levantadas sobre o impacto da ciência na vida humana. Essa literatura, mais voltada
para a imaginação do que para a ação, porém, era muito imaginativa para o pragmatismo que
é uma das características marcantes da sociedade estadunidense.
(...) a ficção científica estava na contracorrente do caráter pragmático da América
burguesa, que desconfiava de imaginações muito férteis e ridicularizava tudo o que
remetesse abertamente à infância. (...) Assim a ficção científica permaneceu à
margem, e a pouca atenção que recebeu foi o menosprezo daqueles imunes a seu
encanto especialmente garotos atléticos, sociáveis e realistas que viam seus
colegas excêntricos lendo sozinhos, na hora do almoço, essas revistinhas de
reluzentes heróis interplanetários. (JONES, 2006, p. 55)
Sem heróis de aventuras, entretanto, Walt Disney lançaria seu Mickey Mouse nos anos
vinte, sucedido nos anos trinta, pelo Pato Donald, criando ao longo do tempo o estilo Disney,
basicamente voltado para o público infantil. Seu sucesso, com o tempo e com a exibição de
suas obras nos cinemas, contribuíram para se pensar o desenho animado como um material
que poderia ser voltado para as crianças apesar da existência de uma produção de animação
direcionada para o público adulto.
32
31
É interessante destacar que, menos de 10 anos depois, em 1934 surgiu o Clube dos Juvenilistas,
um fã-clube do Suplemento Juvenil composto por alunos do Colégio Pedro II, com objetivo semelhante: discutir
questões relativas à nova literatura que surgia.
32
“Para grande parte do público em todo o mundo, Disney é sinônimo de animação. (…) Walt
Disney logo percebeu que, para criar uma indústria de desenho animado, ele teria que deixar de desenhar para
coordenar uma equipe com os melhores artistas, em busca das melhores histórias e dos mais empáticos
personagens. Graças à sua determinação e competência, em décadas seguidas de sucesso, a tradição e as
103
A década de 1930, influenciada pela Lei Seca, que proibia o consumo de bebida
alcoólica, e pelo surgimento do crime organizado nos EUA, teve uma forte presença das
histórias policiais, envolvendo detetives e gângsteres. Como um desses exemplos, é possível
mencionar Dick Tracy. Nessa mesma década, a partir do trabalho de Alex Raymond, também
surge Flash Gordon, cujas aventuras logo foram transpostas para a tela de cinema. Ainda nos
anos trinta, Lee Falk criaria Mandrake e Fantasma, histórias caracterizadas pelo exotismo e
magia. Em 1938, a dupla Siegel e Schuster criaria o mais poderoso dos super-heróis, o
Superman, e em 1939, Bob Kane criaria um dos heróis mais sombrios, o Batman.
Na década de 1920, os americanos começaram a comprar revistas como nunca.
Tecnologia de impressão barata, distribuição na era dos automóveis, dinheiro para
gastar e uma fome de informações sobre um mundo que mudava a cada dia
conspiraram para tornar a banca de revistas uma das principais arenas da cultura
nacional. (...) Os americanos passavam mais tempo lendo revistas do que em
qualquer outra atividade de lazer. Cada turma ou grupo com um determinado
interesse tinha periódicos próprios, e o editor sortudo que descobrisse um gosto
ainda inédito do público podia fazer fortuna com investimentos ridículos. (...) O
ramo de revistas era um ímã para visionários, pessoas com hobbies excêntricos,
oportunistas e também para os envolvidos com o mercado negro. Algumas vezes
todas essas características se juntavam na mesma pessoa.” (JONES, 2006, p. 75)
No Brasil, a indústria de quadrinhos cresceu rapidamente nos anos 30, mantendo-se
atualizada com as mudanças que ocorriam nos Estados Unidos. Em 1934, Adolfo Aizen, após
ter tomado contato com o mercado de quadrinhos estadunidense, teve a idéia de lançar o
Suplemento Infantil (depois renomeado como Juvenil).
Esse encarte, que vinha dentro do jornal, era constituído basicamente por traduções de
histórias em quadrinhos que estavam sendo publicadas nos Estados Unidos, embora o
Suplemento Infantil também trouxesse contribuições de desenhistas e escritores nacionais,
como Jorge Amado.
Aizen se espantou ao ver que as continuações das histórias de Buck Rogers e Tarzan
eram acompanhadas com ansiedade por uma legião de fãs, como se fossem
folhetins. O mais curioso: os comics exerciam fascínio sobre o público de todas as
influências da Disney na Animação se tornaram tão profundas e complexas que criaram um estilo que marca, de
maneira indelével, a história desta arte e influencia artistas de todo o mundo.” (ANIMA
MUNDI/WIEDEMANN, 2007, p. 325)
104
idades, ao contrário do que acontecia no Brasil, onde os raros quadrinhos publicados
em revistas como O Tico-Tico eram dirigidos às crianças.” (GONÇALO JUNIOR,
2004, p. 26)
Esse suplemento era um dentre vários suplementos que vinham encartados dentro de
um jornal diário. Porém, o Suplemento Infantil era o que tinha maior receptividade e procura
entre os leitores, principalmente os jovens que, através dele, tiveram contato com Flash
Gordon (lançado aqui após dois meses do lançamento nos Estados Unidos), Buck Rogers, Jim
das Selvas, Mandrake e Tarzan. Algumas dessas aventuras, como Buck Rogers, Agente
Secreto X-9, Flash Gordon e Mandrake, eram lembradas com saudosismo por meu tio
(nascido em 1918) e meu pai (nascido em 1925).
Em pouco tempo, o pioneirismo de Aizen, marcado por percalços, críticas e fracassos,
acabou significando um novo mercado que apresentava possibilidades de expansão e de lucro.
Começou assim a competição que marcaria o início da construção do mercado editorial dos
quadrinhos no Brasil, a disputa entre os jornalistas e editores Roberto Marinho, proprietário
de jornal O Globo e de Adolfo Aizen, o qual criaria em 1945 a Editora Brasil-América, a
EBAL.
Aizen trabalhara no O Globo, tendo proposto a Marinho sociedade na sua iniciativa de
publicar quadrinhos. Inicialmente descrente, o sucesso do Suplemento Juvenil de Aizen. levou
Roberto Marinho a entrar no ramo dos quadrinhos, lançando o O Globo Juvenil, em 1937
após comprar os direitos de publicação dos principais personagens lançados por Aizen.
Ao final da década, havia cerca de 40 editores vendendo 300 títulos – 50 milhões de
revistas ao mês. Uma pesquisa mostrou que mais da metade dos leitores tinha mais
de 20 anos, que o leitor adulto consumia uma média de 11 gibis por mês, que quase
metade dos leitores era mulher e que o pessoal de escritório, de terno e gravata,
constituía o grande público consumidos. Pelo visto, os gibis estavam prestes a se
tornar respeitável veículo de comunicação e se integrar ao mainstream. (JONES,
2006, p. 296)
O sucesso dos quadrinhos, porém logo sofreu ataques. Em parte devido ao clima tenso
dos anos trinta, marcados pelo avanço dos movimentos totalitários. Havia a preocupação com
105
a publicação de títulos estrangeiros no Brasil, principalmente em um contexto de guerra
iminente onde havia a possibilidade de seu uso como instrumento de propaganda. Esse
material poderia distorcer os valores das crianças.
Essa resistência a alguns produtos da indústria cultural estrangeira, não era uma
exclusividade do meio das revistas em quadrinhos. Esse receio também atingia o cinema
produzido em Hollywood, e colocava em dúvida que efeitos esse cinema teria na cultura
brasileira. Claudio De Cicco (1979) mostra a importância atribuída ao cinema americano na
mudança de certos valores da cultura brasileira durante a década de 40. Ele também mostra a
importância da Igreja Católica como preservadora dos valores.
De tudo isto se pode inferir que na realidade se tinha a oposição de dois mundos, o
proveniente da moral católica tradicional que era o vigente no Brasil, e que por essa
mesma razão correspondia a uma visão católica do mundo e dos homens, de um
lado. E o difundido pelo cinema, baseado superficialmente na moral americana,
correspondendo a uma visão naturalista das coisas. O primeiro era difundido nas
escolas católicas e associações religiosas, nos manuais católicos e nas apreciações de
'Orientação moral dos espetáculos'. O segundo era difundido pelo cinema, revistas
de filmes, livros norte-americanos traduzido depois de sua adaptação para a tela, etc.
(DE CICCO, 1979, p. 113)
Cabe aqui lembrar que muitos padres que compunham o corpo da Igreja Católica no
Brasil eram de origem italiana. Na Itália fascista de então havia uma visão de que as revistas
em quadrinhos seriam uma forma de penetração cultural estadunidense com fins políticos de
propaganda sendo, portanto, uma ameaça ao regime fascista.
Essa crítica teve ressonância no Brasil através de padres católicos, os quais acusavam
as revistas em quadrinhos de ameaçarem os valores tradicionais. Os quadrinhos e o cinema
estadunidenses eram perigosos, perigo hoje representado, na opinião de alguns, pelos mangás
e animês.
33
As revistas em quadrinhos de então, bem como o cinema da época, trariam idéias
33
Deve-se ressaltar que o contexto histórico dos anos trinta e quarenta do século XX, que marcaram a
penetração cultural estadunidense no Brasil (até então sob maior influência européia, principalmente
francesa), é bastante diferente do que caracterizou a entrada do Japop. Para maiores detalhes sobre o
crescimento da presença da indústria cultural dos Estados Unidos no Brasil, ver MOURA, 1984.
106
próprias da realidade dos Estados Unidos, incutindo costumes e comportamentos nocivos,
podendo levar à degradação moral da juventude. Essas críticas não surtiram maiores efeitos
que, durante a ditadura do Estado Novo, não houve nenhuma mobilização do governo contra
os quadrinhos, os quais chegaram a ter a confiança de Getúlio Vargas. Os quadrinhos
chegaram a ser defendidos pelo DIP, vide a seguinte transmissão radiofônica divulgada pelo
programa A Voz do Brasil:
Os homens que dirigem os destinos dos povos, nesta confusão crescente, leram, com
certeza, Júlio Verne, na idade em que as realidades ainda não aprisionam o espírito e
as fugas pelas páginas de um livro são possíveis. Os editores do grande mercado de
idéias sabem que a criança que leu as façanhas da fada Morgana será, na
adolescência, a leitora de milhares de livros de aventuras. Depois virá a idade da arte
e da sabedoria, e os bons livros contarão com a sua preferência, porque a leitura é
um hábito. O que os editores não compreenderiam é a publicação de O príncipe, de
Maquiavel, no Suplemento Juvenil, e As aventuras do Pequeno Polegar numa
revista literária para adultos. Não nos alarmemos com a quantidade extraordinária de
livros de aventura que a nossa juventude devora. Ela está lendo as histórias de sua
idade e adquirindo o louvável vício da letra de fôrma. Amanhã, esses milhares de
leitores inveterados farão a glória póstuma de alguns de nossos mestres, provocando
a reedição de obras que os contemporâneos condenaram a tiragens dolorosamente
limitadas. (GONÇALO JUNIOR, 2004, p. 80-81)
O mercado das revistas em quadrinhos entrava em expansão: em 1939, Aizen lançou o
primeiro comic book nacional: Mirim. Logo Assis Chateubriand, dono da rede de jornais
Diários Associados, percebeu a potencialidade desse segmento e, em 1940, lançou O Guri.
Posteriormente, a editora Abril, de propriedade de Vitor Civita, publicaria Pato Donald e
outros personagens da Disney no Brasil nos anos 50. Em São Paulo, a editora La Selva se
especializaria na publicação de histórias de crime, mistério e terror. Ampliava-se assim, da
mesma forma como estava ocorrendo nos Estados Unidos, toda uma cultura ligada ao
consumo de revistas em quadrinhos.
Tanto quanto os filmes de aventura e os seriados semanais, as revistinhas ilustradas
de heróis e mocinhos se integravam em definitivo no imaginário infanto-juvenil
brasileiro. As publicações de Adolfo Aizen, Roberto Marinho e, agora, Assis
Chateaubriand difundiam entre seus leitores uma mania que seria o grande barato
das duas décadas seguintes: o saboroso hábito de colecionar revistas, prazer
comparável apenas ao de completar álbuns de figurinhas, que fazia estrago no bolso
da meninada brasileira desde o século anterior. O ritual de juntar gibis envolvia
troca, compra e venda de exemplares nas tardes dos fins de semana, nas portas dos
cinemas, antes das disputadas matinês dos seriados de aventura que passavam
107
semanalmente. (GONÇALO JUNIOR, 2004, p. 94)
Com a democratização, porém, os ataques ganharam maior força, através de figuras
como Carlos Lacerda que, entre outros, defendiam a teoria de que as revistas em quadrinhos
poderiam influir negativamente na formação intelectual da criança tese essa defendida por
trabalhos como Seduction of the Inocent, do psiquiatra Fredric Wertham, publicado em 1954,
nos Estados Unidos.
As críticas ganharam maior visibilidade e houve até iniciativas de censura aos
quadrinhos em diferentes estados. A situação tornou-se grave, posto que os quadrinhos
também foram utilizados por Orlando Dantas, dono do Diário de Notícias, e por Samuel
Wainer, fundador da Última Hora, como material para atacar a credibilidade e o poder
político de Roberto Marinho na época um dos maiores editores de quadrinhos, junto com
Aizen.
O acirramento desse debate a respeito do caráter nocivo dos quadrinhos,
principalmente devido ao domínio do mercado dos quadrinhos pela produção de origem
estadunidense, é compreensível se for levado em conta que a influência estadunidense estaria
se consolidando no Brasil. O impacto da presença da cultura dos Estados Unidos não era visto
apenas na área dos quadrinhos, mas também no campo do cinema.
Em cidades de grande porte, como Rio de Janeiro ou São Paulo, 80% da população
freqüentava as salas de exibição centrais ou as de bairro pelo menos uma vez por
semana. Parte considerável deste grupo consumia os materiais midiáticos
relacionados a este cinema, fosse por meio de colunas de jornais, de revistas de
variedades, de revistas especializadas, ou de álbuns de fotografias.
(MENEGUELLO, 1996, p. 11)
Entretanto, essa expansão da cultura de massa estadunidense não se fazia sem reveses.
Nos próprios Estados Unidos, os ataques de Wertham associavam o aumento da criminalidade
juvenil ao consumo de revistas em quadrinhos. Essa tese fazia uma relação de causa e efeito:
quadrinhos expõe sexo e violência – jovens influenciados praticam sexo e violência.
108
Os resultados de observações feitas pelo próprio Wertham, que tivera contato com
jovens delinqüentes, pareciam fornecer bases sólidas para seu argumento – ressaltando que os
quadrinhos eram vistos com certa desconfiança, como possível propaganda política.
“Wertham havia ligado os comic books a sexo e violência, mas eles estavam sendo
associados à doutrinação política ofensiva, tanto para a direita quanto para esquerda.”
(JONES, 2006, p. 298)
Os anos cinqüenta, com o surgimento da televisão, foram marcados por uma queda nas
vendas e pela discussão, no Brasil, a respeito da necessidade de uma reserva de mercado para
os desenhistas e escritores nacionais. Essa tentativa de nacionalização dos quadrinhos, supriu-
se parcialmente da munição disparada contra as revistas em quadrinhos, as quais eram
atacadas por retratarem uma realidade estrangeira, estadunidense. Alguns defendiam que os
quadrinhos teriam uma influência positiva se trouxessem elementos educativos e nacionais
como personagens históricos brasileiros e histórias do nosso folclore.
Em 18 de junho de 1951, Álvaro Moya (desenhista ligado a editora La Selva)
organizou a I Exposição Didática Internacional de Histórias em Quadrinhos em São Paulo. No
final dessa década, em 1959, Ziraldo (leitor dos quadrinhos publicados por Aizen) lança o
Pererê, utilizando o folclore nacional.
Nos anos 1960, nos Estados Unidos, a visão negativa a respeito dos quadrinhos
começa a mudar. existe uma geração criada convivendo com esse tipo de manifestação
cultural. Jovens adultos, na faixa dos trinta anos, que cresceram com televisão e comics,
ingressam na população economicamente ativa. Essa geração, por estar mais familiarizada
com os meios de comunicação de massa, tendo convivido com eles, não demonstrou a mesma
hostilidade com eles.
Vale ressaltar que, posteriormente, com o crescimento da televisão no Brasil, também
109
houve ataques aos seriados estadunidenses, frequentemente acusados de violência excessiva.
Tendo a televisão brasileira vivido uma parte considerável da sua existência sob a égide do
regime militar, a censura era uma constante, que os meios de comunicação eram
instrumentais na disseminação dos valores, ideais e “verdades” defendidas pelo regime.
34
Logo, a atitude defensiva em relação à expansão dos mangás não é um fenômeno
específico, nem recente. Tal resistência, por parte da imprensa e da academia, está longe de
constituir uma novidade no Brasil. O preconceito em relação aos quadrinhos e aos desenhos
animados japoneses possui uma certa peculiaridade devido a algumas de suas características,
as quais serão exploradas mais a frente.
5.2. Presença mais Exótica do que Japonesa (Décadas de 1950, 60 e 70)
Como visto anteriormente, a participação da indústria cultural japonesa começa a se
fazer notar no Brasil na segunda metade do século XX. São Paulo se destacava nos anos 50
como o novo centro de exibição de filmes, com cinemas amplos e com um grande número de
críticos cinematográficos como Paulo Emílio Salles Gomes, entre outros que discutiam as
novas tendências.
Além disso, os críticos paulistanos “descobriram” o cinema japonês, que nos anos
50 contava com duas salas de exibição no bairro da Liberdade (Tokyo, na rua São
Joaquim, e Niterói, na Galvão Bueno). Os paulistanos se juntavam aos imigrantes
nas filas de cinema, dedicando uma admiração a Akira Kurosawa, Toshiro Mifume e
Kinuyo Tanaka, entre outros, que adentraria os anos 60, quando aconteceram
festivais de cinema japonês e mais salas foram inauguradas no bairro Liberdade.
(MENEGUELLO, 1996, p. 47-48)
Na reconstrução do processo de inserção dos quadrinhos japoneses no Brasil, uma
tentativa de recriar uma ascendência “ilustre”; é a busca de um momento originário desse
34
Para maiores informações sobre o contexto econômico, social e político que envolveu o desenvolvimento
da televisão brasileira cf Mattos (2008).
110
movimento atual de consumidores ligados aos quadrinhos uma suposta antigüidade seria
uma forma de passar credibilidade.
O mercado de quadrinhos em São Paulo teve sua origem com as revistas de terror
publicadas pela editora La Selva com as revistas Terror Negro, Sobrenatural, Contos de
Terror e Frankenstein, lançadas no início dos anos 50. O sucesso dessa editora, apesar dos
ataques ao fato de publicar material de conteúdo moral questionável e de origem estrangeira,
basicamente estadunidense, acabou por abrir o mercado para a criação de outra editora, a
Continental (depois conhecida como Outubro).
Essa editora foi criada em 1959 com a proposta de publicar quadrinhos nacionais. Um
dos artistas que contribuíram para a Continental foi Julio Shimamoto, o qual posteriormente
seria tesoureiro da ADESP, a Associação de Desenhistas de São Paulo (uma das grandes
defensoras de políticas favoráveis à produção nacional de quadrinhos).
Nos anos 60, a aprovação da Lei de Nacionalização das Histórias em Quadrinhos, em
1963, acenava com a possibilidade de estabelecimento de um mercado dominado por
quadrinhos nacionais, o que não ocorreu, que a lei não chegou a ser regulamentada. A
aprovação da Lei das Publicações Perniciosas aos Jovens, de 1965, colocava as revistas em
quadrinhos sob vigilância; revistas com temas de crime, terror e violência se tornavam
possíveis alvos da censura. “A produção nacional no período se limitou quase apenas às
pequenas editoras de São Paulo, que funcionavam num esquema próximo do clandestino, com
tiragens que quase nunca ultrapassavam 40 mil exemplares.” (GONÇALO JUNIOR, 2004, p.
383)
Assim, as principais referências a essa Pré-História” dos mangás no Brasil teriam
como principais nomes, além de Julio Shimamoto, Fernando Ikoma cujo trabalho
supostamente teria influenciado Neil Gaiman (o conhecido autor da série de quadrinhos
111
Sandman) e que, juntamente com os irmãos Paulo e Roberto Fukue, além de Cláudio Seto,
trabalharam como quadrinistas da editora Edrel, cujo principal responsável foi Minami
Keizi.
35
Tendo nascido em 1945, e vivido sua infância em uma colônia, Keizi foi para São
Paulo com 19 anos. Como muitos descendentes de japoneses que iam para a capital, foi morar
no Bairro da Liberdade; esse bairro ainda hoje um ponto de referência da comunidade nikkei
em São Paulo. Para muitos aficionados, ir a “Liba”, termo afetuoso utilizado por alguns, seria
o equivalente a ir a Meca para um muçulmano.
Quando cheguei [Minami Keizi] em São Paulo, em 1964, fui morar num prédio de
apartamentos na Rua Conde de Sarzedas, no bairro da Liberdade, porque o aluguel
era barato. Logo descobri o por- quê: o local era conhecido como Baixada do
Glicério e era um reduto de prostitutas e traficantes de drogas. Quando chovia, a
gente tinha que entrar no prédio de barco. (KEIZI, 2008, p. 105)
Foi na Liberdade que Keizi teve a oportunidade de interagir com uma série de
desenhistas de quadrinhos, muitos dos quais habitavam numa pensão na sua rua, como
Fernando de Almeida. Essa proximidade criou condições para encontros regulares, muitas
vezes à noite no apartamento de Keizi, onde esses desenhistas trocavam idéias sobre seus
projetos.
Ainda na mesma rua, o ponto de encontro era a Livraria Sol, onde encontrávamos os
últimos mangás japoneses. Ali, eu Seto e Fukue abastecíamos os nossos arquivos, as
nossas referências para os próximos quadrinhos. Foi uma época boa que eu guardo
como uma doce lembrança. (KEIZI, 2008, p. 105)
Cláudio Seto é um dos nomes mais reverenciados desse período. Sua trajetória não foi
marcada por nenhum engajamento com o universo do mangá ele não era um otaku, embora
a leitura de mangás fosse parte do seu cotidiano e tivesse grande influência sobre ele.
36
35
Keizi é “(...) hoje reconhecido como um dos grandes pioneiros dos quadrinhos brasileiros,
principalmente por ser um dos primeiros e principais introdutores do estilo man no Brasil, além de ter
colaborado para a constituição de novos gêneros de histórias em quadrinhos voltadas para o público adulto.”
(CRUZ, ROSA e KEIZI, 2008.78)
36
“Eu nunca fui fanático por quadrinhos. (...) Minha visão sempre foi a de fazer um trabalho que
tenha xis páginas por mês, que mexis dinheiro para que eu possa viver. Fazer um trabalho esporádico não me
interessa. Não sou um curtidor de quadrinhos. me interessa o compromisso profissional. Por isso, no tempo
que era editor procurava criar condições para que o pessoal pudesse viver de quadrinhos, não como bico.”
112
A ligação de Seto com os quadrinhos se deu muito mais pelo caminho profissional do
que pela via do entretenimento, sem minimizar a importância dessa última. Seu envolvimento
com os quadrinhos começou a partir de sua atuação profissional, o caminho inverso do de
muitos aficionados atuais, que tentam transformar uma atividade de entretenimento em
profissão.
Eu [Cláudio Seto] morava em Sorocaba no início da década de 1960, era auxiliar de
caminhoneiro e, na folga, pintor de porta de caminhão. Na época, todos os
caminhões tinham águias ou paisagens pintadas nas portas. (...) Daí, um cidadão do
tipo descobridor de talentos me levou para a fábrica de Tecidos Votorantin e me
arrumou um emprego na sessão de desenho de tecido e fotolito. Influenciado por um
amigo chamado Wilson de Campos, que era desenhista da Votorantin, enviei umas
piadas diagramadas em ginas inteiras para a Editora Bentivegna, que foram
logo publicadas. (SETO, 2008, p. 130-131)
Depois disso, ele trabalhou no jornal de ofertas de uma loja de departamentos, a rede
Arapuã, tendo como atribuição produzir uma página de quadrinhos e de passatempos. Seto
conseguiu que esse jornal de ofertas fosse entregue nas editoras existentes na época (Abril,
Bentivegna, Ebal, La Selva, Outubro e Pan Juvenil). Essa iniciativa fez com que seu trabalho
se tornasse acessível aos editores, o que poderia possibilitar novas oportunidades
profissionais.
Um belo dia eu estava dormindo no meu quartinho de estudante, e um cara me tirou
da cama, convidando para trabalhar para uma editora que estava abrindo. Era o
Minami Keizi [conhecido de Salvador Bentivegna], que estava fundando a Edrel.
Assim, quase sem saber desenhar, virei profissional. Era final da década de 1960.
(SATO, 2008, p. 131)
Após ser convocado para assumir duas revistas com baixa vendagem (“Humor Negro”
e “Ídolo Juvenil”), Seto recebeu a sugestão de criar novas revistas. Foi nesse momento que a
sua ligação cultural com o Japão se manifestou. Ele criou dois mangás que faziam referência
ao universo dos ninjas e dos samurais: “Fiz então 'Ninja, o Samurai Mágico' e 'O Samurai'. O
Samurai número 1 tinha desenhos e textos horríveis. E o tema era polêmico: incesto. Naqueles
tempos de repressão e código de ética, decididamente não era uma revista aconselhável a ser
(SETO, 2008, p. 132)
113
lançada.” (SETO, 2008, p. 131)
Durante o período em que trabalhou na editora Edrel, Cláudio Seto travou contato com
outros importantes nomes do mangá nacional. Além da Seto Produções Artísticas”, existiam
mais dois estúdios de desenho que colaboravam com a editora: os estúdios de Fernando
Ikoma e de Paulo Fukue.
Embora as tentativas de produção de mangás nacionais tenha sido relativamente bem
sucedida, ela não foi suficiente para desenvolver um amplo público de aficionados. Em parte,
devido ao próprio desinteresse do público por quadrinhos nacionais com a exceção do
trabalho de Maurício de Sousa e talvez, em menor escala, de Ziraldo.
Lembro que no início da década de 1970. na minha fase Edrel, havia em Tóquio a
Mangakai, uma associação de desenhistas e argumentistas de mangá com mais de
dois mil associados. O universo de quadrinhos brasileiros é um ovo. Todo mundo
conhece todo mundo. (...) É uma questão cultural, de formação de hábito. Aqui
ninguém nada, nem livros, nem jornais, nem filmes legendados. E,
principalmente, o brasileiro não tem dinheiro para comprar gibi. Somos o País do
“Gibi Zero”. (SETO, 2008, p. 132-133)
Pode-se, portanto, rastrear a presença da cultura pop nipônica no Brasil a partir dos
anos 50 e 60 do século XX com a publicação de mangás nacionais pela Edrel e com a
exibição da série National Kid.
37
Até os anos sessenta, de acordo com a cronologia proposta
por Mattos (2008) para a história da televisão brasileira, a televisão tivera um caráter restrito a
um número pequeno de pessoas, devido ao alto custo dos aparelhos de televisão.
Mesmo tendo um impacto relativamente reduzido, esse seriado marcou profundamente
a memória dos telespectadores que o assistiram. Essa carga nostálgica foi tão forte que foi
mencionada por Paulo, pai do meu informante Breno, quando lhe perguntei sobre os possíveis
motivos do interesse do seu filho pela cultura pop nipônica. Ele me respondeu:
De repente veio do DNA. Gostava de National Kid, era uma coisa nova, não havia nada
37
“O primeiro seriado japonês a desembarcar na televisão brasileira foi Nacional Kid, exibido pela
Record nos domingos à tarde. (...) Criado pelo desenhista Daiji Kazumine, a série foi a segunda produção da
Toei Company e a primeira exportada para a América, chegando aos Estados Unidos em 1961.” (PEREIRA,
2008, p. 22)
114
parecido. Power Rangers, Jaspion, eram os netos do National Kid. Criança na nossa época
tinha quase nada para assistir a não ser Vigilante Rodoviário. (Pedro, 53 anos)
Apesar da importância história dos mangás da Edrel e do próprio National Kid, a
visibilidade dessa presença da cultura pop nipônica para a sociedade em geral ganha força
mais recentemente. Ela se deve muito mais aos seriados (dentre os quais National Kid foi um
dos precursores) e, principalmente, aos desenhos animados exibidos nos anos 80 e 90, do que
aos mangás brasileiros dos anos 60.
38
Embora reverenciados pelos aficionados mais informados, são praticamente
desconhecidos do grande público, o qual, ainda hoje manifesta pouco interesse por produções
nacionais em estilo mangá que continuam sendo produzidas apesar do relativo desinteresse
do público.
Assim, esse trabalho destaca a importância dos animês e dos tokusatsus que marcaram
os otakus atuais não é à toa que a maioria dos eventos têm como termo recorrente a palavra
“anime” (Anime Friends, Anime Paradise, AnimeCon, Anime Center, etc.). Logo, apesar da
importância histórica da iniciativa da Edrel, foi nos anos 70, quando houve o aparecimento de
desenhos como Speed Racer, que produtos da indústria cultural japonesa se tornaram
referências importantes historicamente em parte devido às diversas reprises em diferentes
canais ao longo dos anos.
Apesar dos nomes de Keizi, Fukue, Ikoma e Seto serem mencionados como
precursores dos mangás atuais, esse movimento de disseminação dos quadrinhos de estilo
nipônico tem sua origem bem mais recente. Um dos nomes fundamentais na valorização desse
material é Alexandre Nagado, também um descendente de japoneses, porém de uma geração
mais nova – ele tem a mesma idade do autor dessa tese.
38
Outro exemplo da influência do National Kid no Brasil é o fato de infelizmente ter se tornado uma referência
para alguns pichadores brasileiros. “Pichadores de várias cidades brasileiras começaram a escrever a frase
'celacanto provoca maremoto', muito ouvida durante o seriado.” (PEREIRA, 2008, p. 23)
115
O fato de pertencer a uma geração inserida na sociedade brasileira permitiu a
Nagado ter mais convivência com os jovens de fora da comunidade nikkei. Isso, além de
haver um maior desenvolvimento dos meios de comunicação de massa no Brasil, com a
constituição de redes televisivas, lhe permitia assistir a seriados e desenhos ocidentais e
japoneses.
Mesmo sendo um descendente sem mistura racial e tendo sido criado até os 12 anos
com a presença marcante de meu avô materno, tive uma criação bem mais ocidental
que muitos amigos também descendentes que estudavam comigo. mas (sic) eu me
interessava muito por um lado do Japão não muito ligado às tradições ancestrais, que
eram os desenhos e seriados que via na TV. E havia também o mangá, que eu
descobri na escola onde fiz o pré-primário. Desde pequeno, gostava de desenhar e
fazia isso o tempo todo, em grande parte motivado pelo que eu lia e assistia.
(NAGADO, 2008, p. 96)
Esse procedimento de reprisar seriados e animações japonesas funciona, muitas vezes,
como forma de “tapar buracos” na programação, deixando-os espremidos entre programas
mais importantes (como noticiários, por exemplo). Ocupando horários marcados
tradicionalmente pela baixa audiência (e pelo relativo desinteresse dos anunciantes),
caracterizavam-se como uma opção de baixo custo para as emissoras. Nos anos setenta: “A
ascensão da Rede Globo total liberdade aos núcleos de dramaturgia para criarem uma
programação com novas séries, ao mesmo tempo que restringe o horário de exibição de
seriados estrangeiros, batizados pejorativamente pela imprensa de 'enlatados'.” (PEREIRA,
2008, p. 90).
Nagado destaca que, embora assistisse produções americanas na televisão, possuía
uma predileção pelas poucas produções japonesas que eram exibidas pelas redes de televisão
brasileira.
39
A presença de produtos da indústria cultural nipônica era reduzida no final da
década de 1970. Diferentemente dos dias atuais, o material importado do Japão ainda não era
39
“(...) o que eu mais curtia era ver seriados japoneses de animê (animações) e tokusatsu (efeitos
especiais), apesar de na época nem imaginar tais definições. Assistia a Ultraman, Ultra Seven, Robô Gigante,
Speed Racer, A Princesa e o Cavaleiro, Sawamu, Fantomas e outros, especialmente na TV Record e na extinta
TV Tupi.” (NAGADO, 2008, p. 97)
116
visto como um produto com público garantido, não sendo alvo de estratégias definidas de
exibição.
No geral, tanto as emissoras quanto os empresários viam tudo isso como tapa-
buraco de programação, até mais do que hoje. Praticamente não havia
licenciamento. Somente Spectreman teve série em quadrinhos, pela Editora Bloch,
mas não parecia material oficial. (...) E Ultraman teve alguns brinquedos lançados
pela Glasslite no começo dos anos 80, que passaram meio despercebidos. Mas foram
fatos bem isolados. (NAGADO, 2008, p. 97)
40
Como é possível perceber, embora esses seriados e desenhos tivessem um público até
fiel, ele não era levado em conta pela direção das redes de televisão. Na verdade, eram as
novelas e os telejornais os principais interesses da programação da TV brasileira. “Na década
de 70, ninguém poderia prever que os seriados com super-heróis japoneses, robôs gigantes e
monstros devastadores fossem fazer tanto sucesso no Brasil, como aconteceria nos anos 80.”
(PEREIRA, 2008, p. 112)
Com isso, não havia uma regularidade na exibição dos seriados e/ou desenhos; muitos
não eram exibidos até o fim e era comum não haver grande preocupação com a ordem
cronológica dos episódios essa última prática é particularmente negativa para as obras
japonesas que costumam seguir “arcos” (sagas com princípio, meio e fim, muitas vezes
enfatizando a passagem do tempo e as mudanças no perfil dos personagens).
Essa ausência de uma regularidade na presença nipônica na televisão, e a falta de uma
prática de licenciamento de produtos ligados às mesmas, pode ter sido um obstáculo à criação
de um público ativo, capaz de ganhar uma visibilidade que justificasse uma maior atenção
para com os seriados e desenhos animados japoneses. É possível falar na existência de uma
demanda potencial por material nipônico, mas que não se realizou pela dificuldade de acesso
a esse material.
41
40
Lembro-me de ter visto, nessa época, máscaras de plástico de Ultraman e de Spectreman sendo vendidas em
bancas de jornal, na época do Carnaval.
41
“Falando em música, as canções de séries japonesas, as chamadas anime songs, também
chamavam muito a minha atenção, mas não havia, na época, onde procurar tais coisas.” (NAGADO, 2008, p. 97)
117
Entretanto, mesmo exibidos de forma irregular, nem sempre seguindo a ordem
cronológica dos episódios, com muitas mudanças nos horários de exibição, geralmente nas
manhãs e nas tardes (quando os jovens estão em casa), esses produtos se tornaram acessíveis a
sucessivas gerações de crianças, adolescentes, jovens e até adultos.
As séries japonesas, apesar de nostalgicamente cultuadas por adultos, não podem,
no entanto, ser levadas a sério quando vistas com maiores exigências técnicas e
estruturais em relação a roteiros, direção, interpretação etc. Ao criticá-las ou
condená-las pelo seu aspecto trash e completamente absurdo, é preciso considerar
que seu público alvo são crianças com, no máximo, dez anos de idade, que começam
a ter algum discernimento quanto a valores éticos e morais. Acima dessa faixa etária,
aumenta sempre a possibilidade de notar situações inverossímeis e a precariedade de
suas histórias, personagens e cenários.” (GONÇALO JUNIOR, 2008, p. 269)
Esses seriados, apesar de tudo, tiveram considerável impacto pelas suas narrativas
exageradas, pelos efeitos especiais toscos (muitas vezes sendo mais cômicos do que
dramáticos) e, assim, deixaram uma marca de uma forma narrativa própria, que foi se
mostrando peculiar ao material nipônico, e que foi se consolidando nos anos seguintes.
Dessa forma, muitas produções nipônicas adquiriram, no decorrer do tempo, um status
de clássicos, ganhando um grande elemento de saudosismo, permanecendo na memória
afetiva de alguns aficionados na faixa dos 30 e 40 anos que os viram quando crianças em
reprises que chegaram a ser exibidas até os anos 80 tem-se aqui os exemplos dos tokusatsus
(seriados com atores e efeitos especiais) Ultraman, Regresso de Ultraman e Spectreman.
Esses seriados, bem como os animês, que foram exibidos nas redes de televisão Tupi e
Record, constituíram os primeiros produtos da cultura pop nipônica a sair da comunidade
nikkei e se tornarem conhecidos do público em geral. Tais programas de televisão foram
pioneiros, apesar da situação um tanto precária da TV brasileira, que nem todas as cidades
captavam as principais redes emissoras televisivas no Rio de Janeiro, por exemplo, nem
todos os bairros recebiam o sinal de todos os canais. Spectreman chegou ao Brasil no final da
década de 70, sendo exibido à noite pela Record, sem muita repercussão. Mas quando a TVS
118
passou a exibi-lo durante o programa do Bozo, nos anos 80, se tornou um fenômeno cult.”
(PEREIRA, 2008, p. 188)
5.3. Japonês vira Adjetivo (Anos Oitenta)
Como foi visto, mesmo com os problemas destacados anteriormente, programas
televisivos de origem japonesa tiveram, senão um grande sucesso, uma relativa penetração
dentro de uma fatia dos espectadores. Apesar de pequena, essa presença se tornou mais
recorrente na televisão e (...) tivemos a segunda invasão dos seriados de super-heróis
japoneses, que consolidou um assíduo e exigente público para esse tipo de programa.”
(PEREIRA, 2008, p. 112)
Na cada de 1980, relativamente poucos animês foram lançados, em iniciativas
tímidas e sem que houvesse um grande fenômeno. Com poucos títulos disponíveis
em vídeo e menos ainda tendo ido para o cinema, a TV sempre se mostrou o veículo
mais popular para os desenhos animados japoneses. (NAGADO, 2007, p. 72-73)
Nos anos oitenta, a situação mudou consideravelmente visto que, a recém inaugurada
Rede Manchete de Televisão criada em 1983, foi o primeiro espaço onde regularmente eram
exibidos desenhos japoneses. A vinculação da imagem da Rede Manchete com a animação
japonesa começou através do programa infantil “Clube da Criança”. Foi nesse programa, que
a então modelo Maria da Graça “Xuxa” Meneghel começou sua carreira como apresentadora
de programas televisivos. (SIMPSON, 1994, p. 53)
A inserção dos animês na grade de entretenimento da Rede Manchete explica-se pelo
fato da televisão brasileira ser dominada então pela Rede Globo de Televisão, cujo carro chefe
eram as novelas, cuja produção era de alto custo. Sem condições de igualar-se à Rede Globo,
a estratégia da Manchete para configurar uma programação competitiva, sem a necessidade de
119
investimentos de maior vulto, concentrou-se na compra de uma série de filmes e seriados
esses último não eram prioridade para a Rede Globo, mais preocupada com suas novelas.
Se houve um canal de TV brasileiro identificado com heróis japoneses, foi sem
dúvida a extinta TV Manchete, que alavancou manias nacionais puxadas por Jaspion
e Cavaleiros do Zodíaco na década de 1990. Alguns anos antes, a emissora exibiu
produções que, se não foram ícones pop como as duas séries citadas, chamaram a
atenção do público infanto-juvenil na metade da década de 1980, época em que
poucos seriados nipônicos eram vistos na TV. (NAGADO, 2007, p. 88)
42
Foi assim, indiretamente, quem os animês começaram a ocupar um espaço na Rede
Manchete, que algumas produtoras colocavam, dentro dessas compras, como bônus, alguns
seriados e desenhos japoneses. Parte desse material foi fornecido através da Everest Vídeo,
pertencente ao empresário Toshihiko Egashira, o responsável pela vinda de séries como
Jaspion. Um dono de locadora de vídeo direcionada para a comunidade nikkei do Bairro da
Liberdade, Egashira passou a licenciar seriados para a TV.
Fundei a Everest Vídeo em 1986. No início, mexia mais com filmes. Não conhecia
muito como funcionava a televisão. Antes de começar com a Everest eu lidava
com vídeo, pois tinha uma locadora no bairro da Liberdade. Trazia fitas com
programas japoneses para atender à colônia e esses seriados tokusatsu, na época
ainda os anteriores ao Jaspion, vinham junto. Como eles faziam sucesso entre as
crianças, resolvi ir atrás dos direitos originais, pois percebi que essas produções
tinham potencial para dar certo com o grande público.” (EGASHIRA, s/d, p. 10)
Dessa forma, em grande parte não intencional, o material nipônico continuou a ocupar
um espaço na televisão. Muitos desses seriados se tornaram presença constante dentro da
programação da Manchete, como os seriados de estilo tokusatsu, dentre os quais: Jaspion e
Sharivan chamados de Metal Hero (geralmente algum jovem que se transformava em um
herói com armadura) – e Comando Estelar Changeman e Esquadrão Relampago Flashman, –
chamados de Super Sentai (equipes de jovens que podiam se transformar em heróis com
uniformes semelhantes).
Tudo indicava que os anos 80 seriam uma década em que apenas alguns desenhos
animados produzidos no Japão, como Patrulha Estelar, estariam representando o
Império do Sol Nascente na programação brasileira. Mas a Rede Manchete veio
42
Tal influência foi tão grande que cheguei a ter um aluno do CEFET, no ano de 2007, cujo nome
é Daileon, uma homenagem dos pais ao robô gigante do seriado Jaspion.
120
mostrar que havia espaço não somente para os super-heróis de lá, mas também para
a criação de um novo segmento de consumidores e fãs. Tudo começou com Jaspion
e Changeman. Depois deles, os heróis japoneses criariam uma legião gigantesca de
fãs no Brasil, algo nunca imaginado na época de Ultraman e Nacional Kid.
(PEREIRA, 2008, p. 141)
Nagado, diferentemente da maioria dos aficionados (como eu e muitos outros), buscou
ir além da condição de espectador, e foi bem sucedido nas suas tentativas de conseguir um
envolvimento mais ativo com a cultura pop nipônica. Em meados dos anos 80, ele foi estudar
desenho, pensando em se tornar desenhista de quadrinhos. Com isso, ele tentava realizar o
sonho de alguns dos otakus alcançado posteriormente por outros como, Arima e Ju Tsukino
de poder tornar esse interesse pessoal em uma atividade profissional. Tal projeto começou a
ser uma opção mais viável a partir do sucesso dos seriados Jaspion e Changeman.
Esses seriados, em boa parte produzidos pela Toei, uma das maiores produtoras
televisivas de caráter comercial no Japão, acabaram trazendo consigo uma série de produtos
licenciados produzidos pela Bandai e que, através do mercado informal, chegaram em pouco
tempo aos comerciantes ambulantes das grandes cidades, como o Rio de Janeiro.
A chegada de Jaspion e Changeman ao Brasil, no final dos anos 80, causou uma
verdadeira febre de consumo e incendiou a audiência. Depois de lançados em fitas
VHS pela Everest Vídeo, agitaram a audiência na TV Manchete e abriram caminho
para muitas séries similares em outros canais. Logo, vi nas bancas gibis que
adaptavam os episódios da TV, mas feitos por artistas nacionais e com a autorização
da produtora Toei Company. A editora era a EBAL, outrora uma gigante do mercado
editorial que dava tímidos passos para se manter na ativa. (NAGADO, 2008, p. 98)
No que concerne aos animês, a presença de cenas de grande violência e intensidade
dramática em obras como Pirata do Espaço (Groizer X) e Patrulha Estelar (Uchuu Senkan
Yamato) evidenciavam um estilo de animação totalmente diferente do seguido no Ocidente.
Nesse período, a cidade de São Paulo, devido ao fato de possuir a maior concentração
de descendentes de imigrantes japoneses principalmente no bairro da Liberdade teve um
papel importante. Era através de parentes e/ou amigos de origem nipônica que possuíam
vínculos no Japão, que muitos dos que apreciavam as produções nipônicas conseguiam
121
material novo. Muitos seriados eram copiados em fitas VHS e distribuídos dentro de um
círculo de amigos.
Em 1984 havia sido fundada em São Paulo a ABRADEMI (Associação Brasileira de
Desenhistas de Mangá e Ilustrações) que foi a realizadora dos primeiros eventos ani de
maior expressão no Brasil, “(...) dando origem a um mero sempre crescente de clubes e
associações de fãs de mangás e animes cujos esforços resultaram no grande número de séries
hoje traduzidas para o português e vendidas no Brasil.” (MEIRELES, 2003, p. 204)
Essa associação, que nos anos oitenta tinha trazido o “deus do mangá” Ozamu Tezuka
ao Brasil, organizava cursos, exposições, sessões de vídeo e outras atividades ligadas à cultura
japonesa. Em 1988, um aficionado, Sérgio Peixoto, criaria a ORCADE Organização
Cultural de Animação e Desenho que realizava exibições de animês.
O Rio de Janeiro não contava com uma grande comunidade nikkei como a de São
Paulo. Uma das possibilidades de se manter atualizado a respeito dos novos lançamentos
japoneses era através do consulado japonês. Um amigo meu, nessa época comentou que tinha
acesso a desenhos animados e filmes japoneses através do Centro Cultural e Informativo do
Consulado Geral do Japão no Rio de Janeiro, o qual, dentro de uma política de divulgação da
cultura nipônica, permitia a cópia de filmes e animês.
No final da década de oitenta, pela primeira vez, foi publicado um mangá no Brasil.
Tratava-se do mangá adulto, com cenas de grande violência gráfica e dramática, Lobo
Solitário, o qual tinha dado origem a uma série de filmes eu próprio me lembro, ainda
criança, de ter visto na televisão cenas de algum dos filmes desse samurai justiceiro.
Com o título de Lobo Solitário, Kozure Okami foi o primeiro mangá a ser publicado
no Brasil, em 1988, pela Cedibra (...), que durou nove números. Em 1992, foi
lançado novamente pela Nova Sampa, alcançando a tiragem de 12 números.”
(MOLINÉ, 2004, p. 124)
Apesar da importância histórica dessa iniciativa da Cedibra, o mercado de quadrinhos
122
não sofreu maiores transformações e a publicação de mangás não ganhou maior incentivo,
nem encontrou maior aceitação. No início dos anos noventa, a editora Nova Sampa, além de
relançar o Lobo Solitário ainda publicaria em 1992 outro mangá adulto Crying Freeman,
porém esses lançamentos tiveram pouca repercussão, ficando mais restritos aos consumidores
de quadrinhos e aficionados mais engajados tive um aluno, da minha faixa etária, no curso
de História da UNISUAM, que em 2005, comentou ter lido esse mangá.
A mudança da legislação de imigração, em 1990, pode ter sido um fator importante
que contribuiu para um aumento da presença dos animês e mangás no Brasil. O Japão passou
a facilitar a entrada e permanência de estrangeiros descendentes de japoneses.
Com a crise econômica vivida no Brasil durante a década de 80, a abertura para a
imigração de brasileiros gerava uma possibilidade de trabalho para muitos jovens de origem
nipônica.
43
A presença de um grande número de jovens dekasseguis no Japão, a partir dos
anos 90, pode ter facilitado o processo de intercâmbio cultural, trazendo as mais recentes
produções japonesas.
Nesse contexto, o público começou a perceber que estava em contato com uma
manifestação cultural com características particulares. Dessa forma, esse tipo de material
começou a ser, mais claramente, identificado como japonês – o desenho ou seriado “japonês”.
Em 1990, com 19 anos, Nagado conseguiu, através do roteirista Rodrigo de Goes, a
oportunidade de trabalhar com quadrinhos. A partir daí, Nagado passou a fazer parte do meio
editorial e pôde estabelecer contatos que lhe permitiram se inserir profissionalmente nesse
43
“Accompanying the evolution of the migratory movement of this contingent, we observe a
change in the profile of the Dekasseguis, in terms of: more distant generations (second and third generation
descendants); equal sexual dimensions; a younger age group; without it being essential to be able to speak
japanese (due to the substantial presence of Brazilians in Japan); more single people or 'newly weds' (i.e. those
who were recently married or had small children) amongst the Dekasseguis in Japan (without necessarily
signifying that it was restricted to these individuals); a more family oriented rather than individual character of
the migration; and the presence of non-descendants amongst the Dekasseguis (that accompanied them as spouses
of Japanese descendants).” (SASAKI, 2002, p. 121-122)
123
meio, o que lhe garantiu trabalho regular e abriu portas para novos projetos.
44
Um conhecido da época em que escreveu histórias para a editora Abril, Marcelo
Cassaro, o chamou para assumir a edição da revista em quadrinhos Street Fighter II,
publicada pela editora Escala. Em 1993, o inesperado sucesso do gibi Street Fighter II
(baseado no game japonês que era a sensação da época) pegou a Editora Escala desprevenida.
(...) Quando a revista foi cancelada, em 1996, eu estava bastante envolvido com outra
atividade, também ligada a personagens japoneses.” (NAGADO, 2008, p. 99)
Após saber que a revista SET Terror e Ficção realizaria uma matéria sobre
Ultraman, Alexandre Nagado entrou em contato com o editor (Carlos Eduardo Miranda), e
realizou uma resenha sobre o assunto. Assim, ele conseguiu ser redator da revista durante os
anos 1992 e 1993. Depois da matéria sobre Ultraman, ele realizou uma outra sobre monstros
japoneses.
Esse é um gênero de tokusatsu bastante popular no Japão e que teve alguns filmes
exibidos no Brasil, como A volta dos Monstros Gigantes (Gamera tai Gyaos, 1967) e
Destruam Toda a Terra! (Gamera tai Bairas, 1968), que passaram na rede de TV Record na
década de 70, e Godzilla versus Biollante (1989), exibido pelo SBT já nos anos 80.
45
Nos anos 80, também se discutiu a crise dos quadrinhos, com a redução das tiragens e
a queda das vendas. Surgindo nomes como os irmãos Caruso, Laerte, Henfil, entre outros.
Henfil teve suas tiras publicadas no O Pasquim, a partir de 1973. Na Folha de São Paulo,
Angeli criou o Chiclete com Banana, com personagens marginais como Bordosa e Bob
44
“Daí, comecei a escrever algumas histórias que foram sendo publicadas na Abril, como
Flashman, Maskman e Changeman. Primeiro, foi na revista Jaspion, que depois mudou para Heróis da TV
(um título que a Abril havia usado para heróis Marvel e Hannah Barbera), quando passou a ser produzida
internamente pela Abril. (...) Para a EBAL, eu ainda iria escrever roteiros para uma edição de Goggle V,
Machine Man e Sharivan.” (NAGADO, 2008, p. 98)
45
“Além de puxar muita coisa de memória daquelas sessões na TV Record, pesquisei dados de
jornais da colônia sobre alguns filmes de monstros (especialmente Godzilla), exibidos nos extintos cinemas da
colônia japonesa, como o Niterói e o Shochiku, que eu nem cheguei a conhecer. Aliás, como era difícil
conseguir informação naquela época!” (NAGADO, 2008, p. 99)
124
Cuspe. O aparecimento da Internet comercial no Brasil, com a circulação de informações
através de fóruns, páginas de criadores, etc. permitiria a presença desses personagens em
sítios virtuais mantidos por seus criadores.
Na era do computador, da aldeia global, do consumo em ascensão, das cidades-
dormitórios, da celebração da diversidade e também do relativismo cultural, moral e
filosófico, os interesses dos geeks se tornaram os interesses do mundo cultural. Os
geeks foram os primeiros a conhecer o prazer e a poderosa sensação de organizar
informações inúteis. Foram os primeiros a conhecer a alegria de se unir em torno de
totens industrializados, assim como entenderam primeiro a inconveniência das
velhas classificações sexuais, o desejo de glorificar e caricaturar o corpo e a
necessidade de sufocar a agressão e dissipá-la em fantasias quadrinísticas. A década
de 1980 marcou o triunfo dos geeks. (JONES, 2006, p. 394)
5.4. O Primeiro Impacto (Década de 90)
Enquanto destaquei o campo dos quadrinhos no Brasil, contextualizando como se deu
a inserção do mangá nesse meio, dei pouca atenção à inserção dos animês dentro do contexto
da animação brasileira. Tal omissão tem seus motivos. A produção de animação no Brasil
existe, tendo uma considerável tradição no campo da propaganda. “Quem não conheceu a
tartaruga da cerveja, a mascote da Sadia e o Jotalhão? Até mesmo o menino-marca das Casas
Bahia agora é uma personagem animada e tridimensional, que corre e joga bola diante dos
olhos do espectador.” (PINNA, 2006, p. 13-14) Infelizmente, apesar da qualidade dos
profissionais brasileiros no campo da animação, ela não ocupa um grande espaço na
televisão.
46
Contudo, houve uma relativa mudança nessa situação nos anos noventa. Existe a
possibilidade de ver uma animação brasileira nos cinemas, principalmente em festivais como
o Anima Mundi que, desde 1993, tem trazido diferentes experiências no campo da animação
46
Para citar um nome, bastaria destacar aqui Carlos Saldanha, diretor de “A Era do Gêlo 2” (Ice Age 2 The
Meltdown), de 2006. No campo dos quadrinhos também existem brasileiros trabalhando como desenhistas
dos Estados Unidos, como Rogerio (ou Roger) Cruz, Deodato Boges (lá conhecido como Mike Deodato).
125
produzida no Brasil e no mundo.
47
Até a metade dos anos 90, a produção da indústria cultural nipônica, ainda que mais
presente na televisão do que a animação brasileira, ainda ocupava uma situação marginal
enquanto que existiam quadrinhos brasileiros tentando ter seu espaço nas bancas de jornal, os
mangás eram praticamente desconhecidos. Porém, essa situação se alterou consideravelmente.
“Com a tendência de desenvolvimento global, na década de noventa começou-se a estabelecer
as bases para o surgimento estruturado da televisão por assinatura, via cabo ou via satélite,
estruturada nos moldes americanos, e a se debater a televisão de alta definição.” (MATTOS,
2008, p. 125)
Mesmo que de forma esporádica e instável, emissoras como a Rede Globo de
Televisão, o Sistema Brasileiro de Televisão, a rede Bandeirantes e a (nova) Record exibiram
alguns desenhos com relativo sucesso de audiência. “Nos anos 90, parecia que os animês
estavam fadados a ficarem cada vez mais restritos. No segundo semestre de 1994, pela TV
Manchete, o título Cavaleiros do Zodíaco (Saint Seiya, 1986) iniciaria a maior explosão do
animê no Brasil, de maneira devastadora e definitiva.” (NAGADO, 2007, p. 73)
É interessante chamar atenção para o fato de que a exibição desse desenho não foi, no
início, um alto investimento. Apesar do sucesso da série em outros países, não havia maiores
expectativas. Ninguém na Rede Manchete imaginava o impacto que as aventuras dos
cavaleiros da deusa Athena teriam no Brasil, como relata essa matéria da revista VEJA, de
novembro de 1994.
A emissora colocou Os Cavaleiros do Zodíaco no ar um mês e meio como mais
um entre muitos desenhos apresentados no programa Clube da Criança, que começa
às 17 horas. Não foi preciso tirar dinheiro do bolso. A Manchete cedeu o horário de
três comerciais para a Samtoy, responsável pela comercialização dos brinquedos no
Brasil, em troca do desenho comprado no Japão da empresa Bandai. “Sabíamos que
o desenho era sucesso no exterior, mas não imaginávamos que seria aqui também
dessa forma”, diz Osmar Gonçalves, superintendente comercial da Rede Manchete.
47
Foi nesse evento que, em uma de suas primeiras edições, assisti junto com alguns amigos, os animês RG Veda
e Bubblegum Crisis
126
(VEJA, 1994, p. 155)
Em função do sucesso do animê Cavaleiros do Zodíaco, 1994 tornava-se o divisor de
águas da presença da cultura pop nipônica no Brasil. O alcance desse desenho foi algo sem
paralelo para a época. Nessa mesma matéria da revista Veja menção a uma distribuidora
brasileira que teria investido três milhões de dólares comprando 400.000 bonecos e ainda
gastaria 500.000 em publicidade para vendê-los.
Além disso, a identidade abertamente japonesa do desenho gerou um interesse mais
amplo dos brasileiros pela cultura japonesa e pelos próprios japoneses. O Jornal do
Brasil chegou a relatar o caso de um menino carioca de 5 anos, filho de mãe
brasileira e pai descendente de japoneses que passou a idolatrar o pai por ser
'japonês que nem os Cavaleiros' e a exigir que ele pessoalmente o buscasse na
escola, exibindo o pai como um herói aos coleguinhas. (SATO, 2007, p. 45)
As animações japonesas começavam a ter maior destaque na mídia, embora muitas
vezes o que chamasse atenção fosse o fato de terem fortes doses de violência e até de
erotismo. Tal fato é compreensível pelo fato desses desenhos serem lançados sem uma
estratégia de mercado semelhante à praticada no Japão.
Enquanto que no Japão há animês sendo exibidos uma vez por semana (durando meses
e até anos) em diferentes horários, de acordo com a faixa etária pertinente, no Brasil,
realizava-se a exibição diária (com isso, as histórias chegavam ao fim rapidamente) e dentro
de programas infantis, colocando-se desenhos para um público juvenil juntamente com
animações infantis essa situação se alteraria um pouco com o aparecimento da TV por
assinatura. “A consolidação da TV paga no Brasil, durante os anos 90, resolveu um dilema
dos fãs de séries internacionais, já que, a partir da segunda metade da década, vários canais
começaram a exibir uma variedade soberba de seriados, e muitos se transformaram em objeto
de culto.” (PEREIRA, 2008, p. 192)
Mesmo com as críticas, presentes até hoje, obras como Cavaleiros do Zodíaco, se
tornaram referência para a maior parte dos espectadores ocidentais. Esse desenho fazia parte
127
de uma tendência mundial, que tem se ampliado nos últimos anos, de penetração da cultura
pop nipônica no Ocidente. Seu sucesso, seguido pelo êxito mundial ainda maior de Pokémon
desenho que surgiu a partir de um jogo para game boy, um aparelho de vídeo-game portátil.
Pokémon apareceu nas mais diferentes mídias, tornando-se uma série animada de sucesso. Foi
este o sinal de que havia um mercado com uma demanda insatisfeita.
Não deixa de ser curioso o fato de que após milhares de produtos licenciados,
vendidos e exportados para todo o planeta, grande parte dos fãs de Pokémon não
sabem que o início de tudo se deu em um videogame meio despretensioso para o
console portátil Game Boy da Nintendo, no longínquo ano de 1996.
(MASSARANI, 2007, p. 57)
Cabe aqui ressaltar a interação entre as mídias eletrônica (jogos), impressa (mangás),
televisiva e cinematográfica (animês) no Japão. Um produto pode facilmente migrar de uma
para outra, com mangás que geram animês, que depois se transformam em jogos eletrônicos, e
vice-versa. Além disso, personagens de animê são vendidos como bonecos, da mesma forma
que brinquedos podem dar origem a animês, como foi o caso do aniZillion, produzido para
o lançamento da pistola do mesmo nome.
A ligação entre os animês, os mangás e os jogos eletrônicos constitui uma das bases da
indústria de entretenimento japonês. A diversidade por ela gerada permite uma ampliação e
entrecruzamento dos aficionados, os quais acabam por ter áreas de interesse comum. Afinal,
uma grande possibilidade de um aficionado por Dragon Ball queira jogar com sua
personagem preferida, e vice-versa.
48
Tal possibilidade levou ao lançamento da revista Anime Invaders, posteriormente
renomeada como Animation Invaders, lançada em 2005. Essa publicação é dedicada aos jogos
originários de animês ou mangás, e vice-versa afinal, Pokémon era um jogo que depois
virou animê. Ela traz dicas, estratégias de jogos, descrições de personagens, além de abrir
espaço para publicação de mangás produzidos pelos leitores.
48
128
A rede de contatos que Alexandre Nagado construíra dentro do meio editorial da
época, permitiu-lhe participar de um projeto que acabou por se tornar fundamental para a
definição de um público com um interesse mais específico pelos seriados e desenhos
animados japoneses.
No final de 1994, dois jornalistas que eu havia conhecido na SET, André Forastieri
e Rogério de Campos, criaram uma publicação para falar de gibis, seriados e
desenhos animados, a revista Herói (ed. ACME, depois Conrad). Fui chamado para
escrever sobre personagens japoneses e, com o grande sucesso dos Cavaleiros do
Zodíaco na TV Manchete naquela época, a revista assumiu patamares de venda
impensáveis, com tiragens na casa das centenas de milhares de edições. Verdadeira
histeria coletiva, os Cavaleiros foram um marco na TV brasileira e abriram espaço
para uma infinidade de títulos. Uma edição chegou a atingir 600 mil exemplares, um
fenômeno sem precedentes. Sobre os Cavaleiros, era o Marcelo Del Greco quem
escrevia enquanto eu pesquisava sobre outras produções que serviam para dar um
tempero extra. Foi uma época bastante divertida e desafiadora. (NAGADO, 2008, p.
100)
O aparecimento da revista Herói, em dezembro de 1994, foi um marco no
desenvolvimento da cultura pop nipônica no Brasil. Posteriormente, em 2002, foi lançada a
Herói Mangá, de curta duração, voltada exclusivamente para a cultura pop nipônica. A partir
daí surgiram outras como a Animax, lançada em 1996 por Sérgio Peixoto e José Roberto
Pereira, seguida pela ANIME EX, editada por Marcelo Cassaro e Sérgio Peixoto.
49
No ano seguinte foi lançada a Anime>Do, lançada em 1997, continua sendo publicada
pela editora Escala, a mesma editora lançou mais recentemente a Neo Tokyo, em 2006. Em
2000, a JBC lançou a revista Henshin (termo que significa transformação), editada por
Marcelo Del Greco, a qual ainda existe em sua versão online. Ainda em 2006, José Roberto
Pereira lançou a revista Kamikaze, na qual atacava os aficionados por Japop. Essa publicação,
restrita a um único mero causou grande polêmica na época por acusar os fansubbers de
prática de pirataria, os otakus de seguidores de modismo, etc.
Logo, foi a partir do Cavaleiros do Zodíaco, que surgiram as primeiras publicações
tratando do então nascente mundo anime, como a revista Herói. Essas revistas contavam, em
49
A importância de Sérgio Peixoto ultrapassa a de editor pois, no início do século XXI, ele se tornaria um
importante realizador de eventos, como falarei adiante.
129
boa parte com matérias nacionais feitas por aficionados, e se diferenciavam dos fanzines pelo
fato de serem publicações com qualidade um pouco superior, e por serem distribuídas em
bancas, diferentemente daqueles, que possuíam uma distribuição mais restrita.
Existe também toda uma série de fanzines que produzem os mais variados tipos de
histórias, algumas das quais conseguem maior distribuição, como a revista Ethora, com
ambientação em um mundo de características medievais. É dentro desse contexto de final de
século XX, que entram os mangás japoneses, publicados aqui inicialmente pela Conrad
Editora (criada pelos responsáveis pela revista Herói), que começa com o mangá dos
Cavaleiros do Zodíaco, e a JBC (Japan Brazil Corporation), as quais disputam a primazia do
lançamento dessa nova onda de mangás.
O fato de revistas com maior alcance como a Herói e a Animax, e as outras que as
sucederam, geralmente terem espaço para cartas, divulgarem fanzines, indicarem lojas para a
compra de mangás, CDs, etc., ajudou na troca de informações e de material entre os
aficionados.
Essas publicações também funcionavam como mediadoras” da relação com as
produtoras e estúdios de dublagem, responsáveis pelo lançamento de animês no Brasil. Se não
possuíam, necessariamente, um poder de pressão sobre essas empresas, pelo menos
funcionavam como um canal de críticas e sugestões.
Nesse período de final dos anos noventa, embora a palavra mangá tivesse uma
presença mais regular na imprensa, o termo animê ainda não havia se consolidado como
denominação da animação nipônica. Era bastante comum o uso do termo Japanimation, de
origem estadunidense e em uso nos EUA desde os anos setenta (KINSELLA, 1998, p. 307).
Assim, a interação entre os consumidores do material nipônico e a formação de um
universo cultural compartilhado foi se constituindo. Esse painel se ampliou progressivamente
130
com a criação da Internet comercial, que facilitava a comunicação entre os aficionados.
Através de fóruns de discussão onde os mais informados divulgavam novidades,
popularizou-se um universo de referências para os participantes mais recentes. Alexandre
Nagado também teve um papel de destaque nessa participação da Internet no universo dos
aficionados por cultura pop nipônica. “Falando em sites, com a explosão da Internet, eles
realmente tiraram muito espaço das revistas, pois oferecem informação grátis e com mais
rapidez.” (NAGADO, 2008, p. 100)
Nesse final dos anos noventa, a produção na forma de quadrinhos também ganhou um
novo espaço através da Internet, como o caso do trabalho de Fábio Yabu, criador (em 1998)
dos Combo Rangers, claramente inspirados nas equipes de heróis japoneses.
“Combo Rangers” é a criação máxima do desenhista Fábio Yabu. Criados para a
Internet, os heróis são inspirados nos chamados Super Sentai (os seriados japoneses
estilo “Power Rangers”). Durante muito tempo os personagens foram um verdadeiro
sucesso on-line e geraram vários produtos como bonecos, camisetas e até revista
impressa (onde Claudia [Medeiros, desenhista] trabalhou) (...) (LOBÃO, 2007, p.
37)
50
Também surgiu, em 1999, a revista Holy Avenger, o primeiro mangá nacional de
sucesso, realizado a partir do universo do RPG (Role Playing Game) um jogo onde os
participantes interpretam personagens e simulam ações como se estivessem em um mundo de
fantasia. A prática do RPG tem suas origens no jogo Dungeons & Dragons (também
conhecido como D&D), criado por Gary Gygax e Dave Arneson, nos anos setenta. a partir do
mundo de fantasia produzido por J. R. R. Tolkien.
(...) o mundo da Terra-Média serviu de inspiração para muitos jogos de computador
modernos, e toda a indústria criada em torno de Dungeons and Dragons tem raízes
no mundo mítico dele [Tolkien]. Para uma imensidão de jovens, que se entregam aos
jogos de computador, em que são eles mesmos personagens, é uma maneira de
estender seu envolvimento com a Terra-Média muito depois de lido ou relido o livro.
(WHITE, 2002, p. 248)
O sucesso da adaptação do livro do jogo D&D em animação, exibido aqui com o nome
50
Atualmente o canal Discovery Kids está exibindo o desenho Princesas do Mar, produzido a partir de
livros de Fabio Yabu.
131
de Caverna do Dragão, contribuiu para o interesse pelo RPG. Foram lançadas revistas
brasileiras especializadas no assunto, como a Dragão Brasil, editada por Marcelo Cassaro, na
editora Trama. Chegou-se inclusive a criar um sistema para se jogar RPG com personagens de
estilo ani (o sistema Defensores de Tóquio). Foi nesse contexto de expansão do mercado
para RPG que surgiu a iniciativa do mangá Holy Avenger.
Casssaro, criador de Holy Avenger, título original da série, conta, ao estilo mangá,
aventuras de fantasia com personagens aos moldes dos do RPG Dungeons and
Dragons, ou seja, personagens à moda dos de Tolkien, sem fazer muita pesquisa
sobre a cultura que os gerou. (PATATI & BRAGA, 2006, p. 206)
Essa revista era capitaneada pela dupla Marcelo Cassaro (roteiro) e Erica Awano
(desenho). Nesse mesmo período, porém seguindo uma linha diferente, também surgem novos
talentos como André Dahmer, com sua tira Malvados, Caco Galhardo, com seus Pescoçudos,
Allan Sieber, que dirigiu o curta-metragem de animação Deus é Pai, entre outros artistas que
produzem tanto para jornais quanto para sítios da Internet.
Iniciativas como Holy Avenger, apesar do relativo sucesso, foram de alcance restrito
nesse caso, entre os aficionados por RPG.vi a revista uma ou duas vezes, em um banca de
jornal dentro de um shopping center da zona norte do Rio de Janeiro que dava especial
atenção a esse seguimento.
51
É dentro desse contexto que, no final dos anos 90 e início do século XXI, começam os
primeiros eventos anime”, podendo se considerar o ano de 1996 como o ano fundador desse
processo com a realização da MangáCon (Convenção Nacional de Mangá e Animê), em São
Paulo, organizada pela ABRADEMI.
São realizadas cinco MangáCon, sendo que a última ocorre em 2000. Desde o início, a
fórmula era basicamente a mesma: exibição de vídeos, stands de venda de produtos, concurso
cosplay e palestras ou shows esse formato, apesar das transformações e acréscimos
51
Para um painel de alguns autores de quadrinhos e de animações nacionais, indico FÁBRICA DE
QUARINHOS, 2001. Essa publicação apresenta alguns dos trabalhos do grupo de mesmo nome, criado por
Marcelo Campos e Rogério Vilela.
132
subseqüentes não foi radicalmente mudado.
Assim, as reuniões de aficionados para assistirem animês e discutirem sobre os
mesmos, deixavam de ser encontros domésticos para ocupar espaços públicos. A partir da
experiência da MangáCon, o já mencionado Sérgio Peixoto, desenvolveu o projeto de um
novo evento: AnimeCon. O primeiro AnimeCon ocorreu em 1999 e é realizado até os dias
atuais.
O Animecon 99, realizado de 9 a 12 de outubro em conjunto com a Faculdade e
Fundação Casper Líbero na Avenida Paulista, foi um grande sucesso: mais de 3000
visitantes nos 4 dias de duração, 2.500 metros quadrados de área (somados Térreo
Alto mais o andar do prédio da Fundação), 60 horas de exibição de anime,
exposições, palestras e quase 100 cosplayers presentes o maior evento de fãs de
anime acontecido em São Paulo, qualquer que seja o número comparativo.
(PEIXOTO, 2000a, p. 10)
No Rio de Janeiro, as atividades dos aficionados por animês e mangás se resumiam a
exibições, como as que ocorriam no SESC Tijuca, na zona norte da cidade.
52
O SESC foi, a
partir de 1997, um espaço onde houve exibições regulares mensais. Atualmente, esse tipo de
atividade praticamente desapareceu. O que permaneceu foi a existência de salas realizando
exibições de animês dentro dos eventos. Essas salas ainda cumprem o papel de “amostra
grátis” para os aficionados, os quais podem se familiarizar com as novidades e os clássicos.
Esses encontros eram uma forma dos otakus interagirem, repetindo falas dos
personagens, cantando as músicas das séries, etc. A prática do cosplay, embora não tivesse a
divulgação que tem hoje, começou a aparecer nesse período, com jovens indo aos eventos
caracterizados como seus personagens. Outro local onde também aconteceram exibições foi
na COBAL do Humaitá, na zona sul do Rio de Janeiro.
52
No caso do Rio de Janeiro, referências, presentes em entrevistas de cosplayers cariocas publicadas em
revistas como a Neo Tokyo e em sítios na Internet mencionando uma exibição pública de desenhos japoneses em
1991.
133
5.5. Invasão Animê (2000-2003)
O crescimento desse universo chamou a atenção das redes de televisão que começaram
a dedicar parte da sua programação para esse material. Isso teve início no final da década de
noventa com o programa USMANGÁ na Rede Manchete (1997) e, posteriormente, com o
Bandkids da Rede Bandeirantes (2000). A apresentadora desse programa, Renata Sayuri, que
no programa representava a personagem Kira, chegou a aparecer na AnimeCon 2000 como
convidada especial.
O mercado editorial também tinha se ampliado, com algumas tentativas de publicar
mangás nacionais, bem como pelo crescimento do mero de mangás nas bancas de jornais,
disponíveis de Porto Seguro à Porto Alegre.
53
Vale ressaltar que a década de noventa marcou também a decadência da Rede
Manchete de Televisão, que enfrentou uma série de crises, greves e endividamento. Apesar de,
em 1997, a Rede Manchete de Televisão alcançar 73% das residências com aparelhos de
televisão, em 1999 ela era vendida e se transformava na RedeTV!. Com isso, deixava de
existir a emissora que por cerca de quinze anos tinha sido, em parte involuntariamente,
referência em desenhos animados japoneses. (MATTOS, 2008, p. 216)
Enquanto o antigo oásis dos animês desaparecia, a animação japonesa encontraria
espaço nas televisão por assinatura. Canais como o Locomotion, que depois foi substituído
pelo Animax (totalmente dedicado aos animês), o Cartoon Network e o Fox Kids, atual Jetix,
passaram a exibir desenhos animados japoneses nas suas programações o Fox Kids tinha o
espaço Invasão Anime. “Em dezembro de 2002, na estréia do Toonami nacional [espaço para
53
Atualmente é possível encontrar mangás em praticamente todas bancas do Brasil, seja no
interior do Rio de Janeiro, como em Miguel Pereira (fevereiro de 2008), ou em outros estados, como em Porto
Alegre (durante a VII RAM, em julho de 2007) ou em Porto Seguro (durante a 26ªRBA, em julho de 2008)
onde encontrei um número de Gravitation, clássico yaoi.
134
animês no Cartoon Network], Inuyasha começou a ser exibido às 18h junto aos pesos-pesados
Pokémon, Dragon Ball GT e Gundam Wing.” (GARCIA, 2008, p. 28)
No que concerne à realização de eventos no Rio de Janeiro, começa a haver um
movimento semelhante ao ocorrido em São Paulo, ainda que talvez em menor escala. Um dos
eventos mais antigos seria o AnimeRio, em 2000, no Museu da República, onde havia
exibições regulares de animês. Esse foi o primeiro grande evento do Rio de Janeiro,
organizado por Júlio César Fortini, que atualmente é dono de uma loja especializada em
animês, mangás, card games, etc.
Posteriormente, o surgimento de novos eventos com uma certa regularidade, como
o Anime Center, realizado pela primeira vez em 2002 e que costumava ocorrer na UERJ,
organizado por Pedro Carvalho, o Anime Paradise, organizado pelo Alcides Guedes em 2003
no Colégio Marista São José, na Usina (zona norte do Rio de Janeiro), etc.
Nesse início do século XXI, a estética japonesa dos mangás e animês também ganhou
espaço através das referências do mundo da moda. Também começa a se tornar visível nos
cursos de desenho, um interesse por parte dos alunos em se desenhar no estilo mangá. A
cultura pop nipônica passa a se disseminar e a ganhar status de cultura alternativa, de atitude
moderna, singular.
Anime Friends, criado em 2003 (em São Paulo),e que tradicionalmente ocorre no mês
de julho, tornou-se o maior evento da América Latina relacionado diretamente a animês,
superando o AnimeCon (que continua sendo realizado). O Anime Friends é organizado pela
Yamato Comunicações e Eventos, de Takashi Tikasawa, a mesma empresa que também é
responsável pelo Anime Dreams, que desde de 2004 ocorre no mês de janeiro, iniciando o
“calendário” nacional de eventos anime.
Esse outro momento de expansão beneficiou-se da expansão do acesso à Internet, com
135
o barateamento das conexões de banda larga o que permitia se baixar episódios para se
assistir em casa, sem a necessidade de se depender das redes de TV aberta –, bem como do
maior acesso à televisão por assinatura (com canais que exibem animações nipônicas). “O
avanço dos canais a cabo abriu uma nova opção para os otakus (fanáticos) brasileiros. Como
os canais abertos não primam por respeitar horários e exibir séries na íntegra, a saída para o
público de classe média e alta foi acompanhar canais a cabo.” (NAGADO, 2007, p. 73)
5.6. Da Periferia para a Hegemonia? (2003-2009)
Avanços técnicos, como programas shareware ou freeware de editoração de CDs e
DVDs, forneciam recursos a jovens com conhecimento médio ou avançado de informática
para que esses pudessem realizar suas próprias compilações de desenhos animados. Com isso,
esses mesmos jovens conseguiam animês e mangás disponibilizados na Internet por outros
aficionados e, muitas vezes, os vendiam em eventos. Com o aumento da oferta de material
nipônico, houve a possibilidade de um número maior de jovens se aproximar dessas
manifestações culturais.
DVDs piratas legendados por fãs são facilmente encontrados no bairro da
Liberdade, no centro de SP ou podem ser adquiridos pela Internet através de uma
grande variedade de sites não-oficiais. Isso, mais os programas de compartilhamento
de arquivos, fez com que animês (em qualquer mídia) se espalhassem com grande
velocidade. (...) Isso tem alimentado legiões cada vez maiores de fãs que se dizem
otakus com orgulho e lotam as enormes AnimeCon e Anime Friends, que acontecem
anualmente em São Paulo, capital. (NAGADO, 2007, p. 74)
Isso levou à criação de eventos com uma freqüência cada vez maior. Surgiram assim
os primeiros organizadores de eventos, aficionados que decidiram organizar encontros onde
pudesse haver a interação entre amigos com interesse comum por mangás e animês.
Inicialmente, o que era um passatempo acabou se tornando para alguns uma atividade regular.
136
Em São Paulo, com maior número de espaços disponíveis para eventos, com cidades de
médio porte realizando eventos locais e um grande número de possíveis anunciantes, começou
a profissionalização dos eventos.
Atualmente, com a consolidação da Yamato como empresa organizadora de eventos,
houve uma maior especialização nesse segmento do mercado. Com esse crescimento, outros
eventos, até então organizados de forma improvisada, m procurado estabelecer um padrão
de qualidade semelhante. Por outro lado, o reconhecimento desse ramo de atividades como
um investimento lucrativo, leva a um acirramento da competição entre os organizadores.
O estabelecimento, em 2005, do canal Animax (especializado na exibição de 24 horas
de animês), que passou a aparecer com um dos patrocinadores em vários eventos, é uma
evidência do crescimento desse segmento.
137
6. O QUE O POP JAPONÊS TEM? PUREZA E PERIGO?
Meu nome é Alexandre Maki Suetsugu e tenho 23
anos. Venho aqui expressar meu ressentimento e
revolta quanto a algumas abordagens feitas no
programa [Observatório da Imprensa]
transmitido pela TV Cultura no dia 16 de
novembro de 1999 em relação aos anime
(desenhos animados japoneses).
(…) Os críticos de anime se esquecem porém de
seu lado belo e benéfico. Todas as histórias têm
temas universais importantes como amizade,
perseverança, coragem, obstinação, amor e
justiça. Coloco-me à disposição para tirar
quaisquer duvidas sobre animes, mangás
(quadrinhos japoneses), suas origens,
características, gêneros e tudo mais.” (Alexandre
Maki Suetsugu, mensagem enviada para a seção
“Caderno do Leitor” do sítio “Observatório da
Imprensa”, 05/12/1999. Disponível em
<http://www.observatoriodaimprensa.com.br/caix
a/cp051299a.htm> Acesso em 05 fev. 2009 )
As situações detectadas foram as disputas e
possíveis torneios de “Bey Blades” que, na
verdade, pressupõem a modernização dos antigos
brinquedos lúdicos como o peão. A situação
criada pela narrativa mostra que apenas os
garotos mais evoluídos podem participar de
torneios, indicando a exclusão social a partir do
momento que estes mesmo garotos, aficionados
cada vez mais pelas “Bey Blades”, não interagem
com os demais. Dessa situação nascem os
“otakus”. (GORGATTI, 2004)
138
Através das epígrafes desse capítulo, é possível ver que as manifestações da cultura
pop nipônica são alvo de críticas por parte da imprensa e também por parte da academia,
principalmente dos setores mais ligados ao campo da educação. Essas críticas são em grande
parte devidas ao desconhecimento a respeito do universo da cultura pop nipônica.
Viso discutir como alguns jovens brasileiros, os otakus aficionados por animês e
mangás –, buscam sentido e socialização através da admiração (na falta de termo melhor) de
produtos culturais japoneses. Considero a possível presença de pontos comuns nas matrizes
culturais “Oriental” e “Ocidental”, bem como uma construção, por parte do público, de uma
imagem “fantasiosa” a respeito do Japão.
Nos animês e mangás, principalmente os voltados para o público jovem, os heróis
também são jovens (muitas vezes adolescentes) o que proporciona empatia e apresenta
diferentes possibilidades de identificação (há diferentes personagens com diferentes
comportamentos.
Além de uma análise do discurso do material em questão, para se ter uma percepção
mais próxima da experiência vivida pelos otakus brasileiros é necessária uma pesquisa da
dimensão cotidiana da mesma – através do trabalho de campo.
Trabalho com a hipótese de que uma relação entre a atual presença de produtos da
indústria cultural nipônica e a formação da identidade dos jovens brasileiros. uma
disposição (pessoas que consomem produtos da indústria cultural nipônica) e uma resposta (a
formação de uma subjetividade particular nos jovens).
Dentro dessa demanda, tem-se um espectro consideravelmente amplo, indo desde os
fãs do estilo de desenho animê (traços, cores, etc.), até os que gostam do conteúdo dos animês
(roteiros, personagens, etc.), passando por aqueles que estão mais interessados nos valores
presentes nesses desenhos.
139
Esses otakus encontram nesse produto cultural (de origem distante e quase inacessível)
um referencial de um mundo melhor e mais estruturado do que o seu próprio; e se a busca por
esse referencial os une nessa “utopia nipônica”, onde seriam valorizados o esforço, a honra, a
lealdade, etc., valores que estariam perdidos no Ocidente mesmo os vilões, geralmente,
seguem algum tipo de código de honra.
54
Pretendo perceber como algumas das supostas características do povo brasileiro
poderiam abrir possibilidades de ressonância com características culturais japonesas,
propiciando assim condições para a identificação desses otakus, brasileiros com essa cultura
aparentemente tão diversa.
55
Assim, tendo Barth (2000) como um dos eixos de referência, pode-se fazer algumas
reflexões gerais a respeito da situação da juventude dentro da sociedade complexa brasileira.
É fundamental, como ressalta Barth, descartar a idéia de que nossa sociedade é, em princípio,
caracterizada por uma integração e uma consistência rígidas.
56
Dentro de um mundo caracterizado por diversos e diferentes fluxos de pessoas,
produtos, etc. não se pode ter uma visão monolítica e homogeneizante. Para que haja uma
vida comum, é necessária a existência de códigos comuns, sem se esquecer que a interação
social é complexa e plural. Imersos na variedade de informações e práticas, indivíduos em
construção/interação e deve-se estar atentos à complexidade dos mesmos, à forma como se
relacionam, como se apropriam dos diferentes streams” aos quais pertencem, aos quais se
referem.
54
“Quando o Indivíduo constitui o valor supremo, falo de individualismo; no caso oposto, em que
o valor se encontra na sociedade como um todo, falo de holismo.” (DUMONT, 1985, p. 37)
55
Apóio-me em Gans para definir a cultura pop nipônica, consumida no Brasil, como uma
“cultura de gosto” por ser uma escolha voluntária, entre outras possíveis, principalmente a de origem
estadunidense pois, como esse autor nos diz: I would demarcate taste culture as the culture which results from
choice; it has to do with those values and products about which people have some choice.” (GANS, 1974, p. 14)
56
Como ele ressaltou: “As pessoas participam de universos de discursos múltiplos, mais ou menos
discrepantes; constroem mundos diferentes, parciais e simultâneos, nos quais se movimentam. A construção
cultural que fazem da realidade não surge de uma única fonte e não é monolítica.” (BARTH, 2000, p. 123)
140
Para isso, que se determinar os significados compartilhados pelos atores sociais
nessa pesquisa caso, os jovens aficionados pela cultura pop nipônica e tentar ver como são
aplicados e qual a intensidade do envolvimento desses atores para com os mesmos. Pude
perceber, por exemplo, que o grau de comprometimento entre os otakus é variável.
Existem aqueles que se referem a sua preferência pelos produtos da indústria cultural
nipônica por causa de suas (supostas) qualidades morais, os valores como amizade,
solidariedade, etc., freqüentemente enfatizados em diferentes obras. Também os que se
aproximaram dessa manifestação cultural devido às suas características formais (traços fortes
no desenho, cores vivas, etc.). Essa divisão interna relativa aos à intensidade do
comprometimento dentro do mundo anime é parcialmente compreensível pelo fato do mesmo
ter se expandido.
Os pequenos grupos iniciais de aficionados que mantinham relações face-a-face
regulares, que viam nesse material um recurso diferenciado de identificação através do qual
puderam realizar a construção de suas redes de amizade em torno não de elementos
estéticos, mas principalmente em cima de valores viram o aparecimento de uma nova
geração fascinada mais pelos efeitos visuais do que pelo conteúdo tido como mais complexo.
Além disso, também graus variáveis na forma como esses fãs atuam socialmente,
existindo aqueles que transformam tal predileção numa forma de vida trabalhando na
confecção/comercialização de material ligado a esse universo (DVDs de séries, CDs de
música, bottons, etc.), aqueles que se vestem ocasionalmente como os seus personagens
preferidos (cosplayers), bem como os que são consumidores ocasionais ou apenas
admiradores afetuosos mas com um maior distanciamento.
57
57
Por não constituir um universo particular independente da sociedade, a cultura pop nipônica (no
Brasil) pode ser pensada como uma cultura parcial, nos termos de Gans: “The partial cultures are part-time
versions of the total cultures, supported by people who maintain their economic position and social status in
mainstream society, participating in them only on evenings and weekends.” (GANS, 1974, p. 96).
141
Um elemento comum a todas essas variáveis é o fato de que todos compartilham a
mesma “rede de significados”, de forma semelhante à percebida/experienciada por Gilberto
Velho em plena Copacabana. A respeito das pessoas que assistiram à possessão do “preto-
velho”:
Enquanto estiveram juntos, participaram do mesmo interesse, tinham um foco
comum de atenção e suspenderam, ou adiaram, outras atividades e compromissos.
Compartilharam, por algum tempo, de uma definição comum de realidade, operaram
na mesma província de significado, nos termos de Alfred Schutz. Interagiram
através de uma rede de significados, conforme a definição de Geertz. Atuaram
dentro de um sistema compartilhado de crenças e valores. Mesmo admitindo uma
certa variação individual, o comportamento e a atitude dos participantes
apresentavam notável homogeneidade. (VELHO, 2003, p. 16-17)
Tem-se assim, um contexto semelhante ao dos eventos anime: Diferentes pessoas,
diferentes origens e/ou grupos, classes, etc., porém compartilhando um sistema de referências
relativamente comum que lhes permitia ter uma compreensão ainda que parcial da situação
em que estão envolvidas.
Logo, ao mesmo tempo em que me preocupo com a heterogeneidade dos atores sociais
envolvidos, percebi que existe uma cultura comum (com conhecimentos e informações
bastante específicos), que existem redes de significados, mas que elas têm uma interação, por
vezes não facilmente relacionável, com a prática da vida social. Indo aos “eventos”
(convenções/reuniões de otakus) vê-se que há uma movimentação entre diferentes subdivisões
dentro dessa mesma cultura.
Isso é visível na própria forma como se dão os eventos, com vários espaços ou salas,
para atender a grupos e gostos diversos. Assim, nas fronteiras desse universo centrado no
Japão, existem outros grupos interagindo como Trekkers, Pottermaníacos, fãs de Star Wars,
etc. que também ocupam espaços nesses eventos. Isso é um sinal de que:
a) os aficionados por animês e mangás possuem outros interesses, não se restringindo a uma
única influência;
142
b) os eventos anime são uma arena de confluência para todos os interesses compartilhados
pelos aficionados pelo universo japonês.
58
c) a possibilidade de “esgotamento”, na opinião de alguns, do próprio mundo anime que tem
se aberto para outras preferências e atividades, diversificando sua estrutura básica (estandes,
exibição, desfile, etc.) e de atraindo novos aficionados.
Dessa forma, para compreender as ações desses jovens, é preciso conhecer os valores
que os guiam, e uma possível chave para isso, pode ser encontrada nas suas preferências
dentro da diversidade de material oferecida pela cultura de massa em geral e pela cultura pop
nipônica em particular. Nesse ponto é fundamental a referência a Simmel (2006a): ele
destacou que quanto maior o mero de grupos dos quais alguém fizer parte, maior a
possibilidade de desenvolver uma ação individual, porque a vinculação/identificação com um
só grupo é menor.
Bastaria dizer que, para a ação no âmbito das relações do indivíduo, a diferença
perante outros indivíduos é muito mais importante do que a semelhança entre eles. A
diferenciação perante outros seres é o que incentiva e determina em grande parte a
nossa atividade. Precisamos observar as diferenças dos outros caso queiramos
utilizá-las e assumir o lugar adequado entre eles. (SIMMEL, 2006a, p. 45-46)
Vê-se assim, a importância de se reconhecer a existência de diferentes “mundos”, a
cultura pop nipônica sendo um dentre vários. Os jovens que estão imersos na mesma, também
transitam entre outras preferências. Com isso, embora existam fronteiras entre as diferentes
tendências, existem afinidades, posto que possuem públicos comuns, que circulam entre
universos diversos. Está tudo em movimento, o que é visível até materialmente na própria
movimentação constante presente nos eventos anime.
59
58
“These choices are not made randomly. Research into consumer behavior and leisure indicates
that choices are related; people who read Harper's or the New Yorker are also likely to prefer foreign movies and
public television, to listen to classical (but not chamber) music, play tennis, choose contemporary furniture, and
eat gourmet foods.” (GANS, 1974, p. 68)
59
a percepção de um trânsito constante, de estarmos navegando entre diferentes “streams of
culture” existentes dentro, ou nas fronteiras, desse “mundo nipônico”.Essa variedade de influências e
manifestações culturais, permite me remeter a Barth que, ao analisar o pluralismo cultural no Oriente Médio,
disse ter considerado “(...) esclarecedor pensar em termos de correntes (streams) de tradições culturais (...), cada
143
Da mesma forma que outras manifestações da cultura de massa como o funk, o rock,
etc., a cultura pop nipônica com seu universo habitado por animês, tokusatsus, mangás
shojo, shonen, yaoi, animesongs, J-pop, jogos, etc. permite o desenvolvimento de uma
variedade de ações sociais, abrindo diferentes caminhos para que os indivíduos escolham
aqueles com os quais mais se identificam.
De certa forma, a expansão vivida pelo mundo anime, que nos seus eventos incorpora
outras tendências, como a dos aficionados por Senhor dos Anéis, Harry Potter, etc., acaba por
reproduzir, ainda que parcialmente, a complexidade da sociedade onde ele está inserido. O
universo dos mangás, animês e jogos eletrônicos, interage com uma grande variedade de
influências, as quais por vezes digere e as torna nipônicas. Isso ocorreu com a saga de
Tolkien, que deu origem a The Record of Lodoss War, e às aventuras de um jovem mago
inglês, o Magister Maho Negima, fisicamente parecido com Harry Potter sem falar na
influência nipônica no Ocidente, como o visual samurai dos cavaleiros Jedi de Star Wars.
Quanto maior a heterogeneidade, variedade de produtos culturais, maior a
possibilidade de nos apropriarmos de diferentes elementos de diferentes mundos para a
construção da nossa individualidade. A cultura de massa oferece, uma diversidade de
elementos para a nossa diferenciação, bem como o desenvolvimento dos meios de
comunicação (telefone, Internet, fóruns de discussão online, MSN, etc.) aumentam a
facilidade de contato (embora não necessariamente não aumentem a proximidade/intimidade)
com quem compartilha preferências conosco.
6.1. Fascinação pelo Todo: A Alteridade da Totalidade
uma delas exibindo uma agregação empírica de certos elementos e formando conjuntos de características
coexistentes que tendem a persistir ao longo do tempo, ainda que na vida das populações locais e regionais
várias dessas correntes possam misturar-se.” (BARTH, 2000, p. 123)
144
Mais do que a descoberta de valores orientais com os quais nós (ocidentais) nos
identificamos, o que existiria seria o fato de se ver (ou de se querer ver) no Oriente ideais que
teriam sido hegemônicos no Ocidente. Tal argumento encontra respaldo no modelo das três
funções proposto por Dumézil, no qual ele destaca a existência, dentro dos povos de origem
indo-arábica, de uma representação tripartite da sociedade.
(...) que la conception de la société qui a abouti au système indien des varna, des
classes sociales - brahmares-prêtres, ksatriya-guerriers, vaisya-éleveurs-agriculteurs
- était déjà indo-iranienne et s'observait non seulement chez les Iraniens d'Asie, mais
chez leurs frères européens les Scythes et même, jusqu'a notre temps, chez les
descendants de ceux-ci, les Ossètes du Caucase du Nord (...). (DUMÉZIL, 1968, p.
13)
Esse modelo de representação social aparece e reaparece em diferentes formas e
maneiras em diversos grupos de origem indo-européia. A presença dessa divisão tripartite da
sociedade em função de três funções básicas se explicaria pelo fato de remontar, segundo
Dumèzil, a três necessidades básicas: a administração da relação do Homem com o universo
do divino, do sagrado; a defesa e a proteção do grupo de ameaças externas e internas; a
garantia da sobrevivência do grupo através da produção de alimentos e demais recursos.
60
Com isso, tem-se geralmente três grupos sociais – é possível encontrar variações como
um grupo se ocupando das duas primeiras funções (o que implicaria na existência de dois
grupos, ao invés de dois, sem alteração do esquema das três funções) aos quais competem
cada uma dessas funções, um complementando o outro.
Apesar da percepção da sociedade como um corpus integrado (no qual suas diversas
partes se complementam e lhe dão unidade) não ser mais dominante na Europa, pode-se dizer
que seus elementos continuam presentes de forma periférica. Embora o modelo das três
60
“(...) les trois besoins que tout groupement humain doit satisfaire pour survivre administration
du sacré (ou, aujourd'hui, de ses substituts idéologiques), défense, nourriture avaiente déjà donné naissance
chez les Indo-Européens, avant leurs dislocations, à une idéologie pleinement consciente qui avait été travaillée
par des intellectuels et avait modelé la théologie, da mythologie et l'organisation sociale (...).” (DUMÉZIL, 1968,
p. 48)
145
funções não exista, se é que existiu, de forma real-concreta no Ocidente atual, a sua
presença enquanto representação ainda é uma referência.
(...) l'<ideólogie tripartie> ne s'accompagne pas forcément, dans la vie d'une société,
de la division tripartie réelle de cette société, selon le modèle indien; qu'elle peut au
contraire, là on la constate, n'être (ne plus être, peut-être n'avoir jamais été) qu'un
idéal et, en même temps, un moyen d'analyser, d'interpréter les forces qui assurent le
cours du monde et la vie des hommes. (DUMÉZIL, 1968, p. 15)
Dessa forma, ele se colocava como uma possiblidade de garantia de estabilidade e de
bem estar, em oposição à desordem que poderia advir da busca desenfreada pela satisfação de
interesses particulares. Com o sacrifícios dos interesses específicos em favor do interesse
coletivo, através da atuação específica para a manutenção do equilíbrio, cada grupo garantiria
a existência dos demais. Logo, é compreensível que, mesmo após o fim do Império Romano,
tenha ocorrido a permanência (ainda que reelaborada) de uma concepção de que todos
compartilhavam de uma totalidade, com a substituição da res publica romana pela cristandade
medieval,
La légende de la première guerre de Rome, avec ses épisodes logiquement articulés,
est donc bien un récit significatif, paralèle à ceux des Indiens et des Scandinaves que
nus avons d'abord cités: il montre comment, à partir de trois ou de deux éléments
ethniques d'abord séparés, et caracterisés chacun dans une des trois fonctions (ou
l'un dans deux fonctions), une société unitaire 'meilleure' se forme, associant pour
toujurs les spécialistes de la politique, du droit et de la plus haute religion, et ceux de
la guerre (ces deux groupes étant parfois confondus), avec les maitres de la richesse
e de la fécondité. (DUMÉZIL, 1968, p. 299)
Com isso, não é surpreendente que valores hierárquicos, vistos como fonte de
solidariedade e de integração, sejam recuperáveis nos dias atuais, quando o individualismo
seria hegemônico. Ainda mais que, essa forma de interpretação do mundo se colocou como
sendo um modelo de caráter positivo, fornecedor de ordem e integração. O modelo das três
funções, pelo seu caráter hierárquico, conferia um papel determinado à cada grupo, sendo
capaz de trazer um sentido maior à atividade de cada unidade que o compunha.
Esses valores seriam encontrados por uma parcela da nossa juventude nos produtos da
cultura pop nipônica que, apesar de ser considerada como exótica, lhes propicia uma
146
identificação com valores semelhantes aos que aqui estariam perdidos.
61
Dentro de uma perspectiva dumontiana a qual o Individualismo hegemônico no
Ocidente como uma experiência particular, diferente do holismo que seria uma característica
geral nas sociedades humanas –, pode-se marcar o fim da Idade Média (principalmente
através dos processos do Renascimento e da Reforma) como um ponto de inflexão inicial a
partir do qual a concepção de Individualismo ganha força dentro do Ocidente.
Até esse período, a Cristandade ocidental vivia dentro de uma sociedade integrada
segundo um modelo hierárquico de três ordens: oratores (clero), bellatores (nobreza) e
laboratores (trabalhadores). Essa compreensão da vida social, na qual cada grupo cumpria um
papel específico e complementar, reforçava a idéia de uma unidade/entidade totalizante.
Durante a passagem para a modernidade, o Individualismo torna-se uma referência
central na representação que se estabelece do que seria a “cultura ocidental”. A perspectiva
moderna se contrapõe ao que poderia ser considerado como o Ocidente tradicional”,
marcado por elementos totalizantes e hierárquicos. Enquanto que o Individualismo estaria se
tornando hegemônico no Ocidente, em oposição às culturas holistas (inclusive a ocidental
tradicional), o Oriente teria sido construído como mais um referencial de culturas holistas.
62
uma tentativa de se pensar o Japão dentro de categorias semelhantes às do
Ocidente, chegando-se a falar em Feudalismo Japonês, bem como em Japão medieval. Tal
terminologia, embora seja usual e até conveniente, é de aplicação discutível. Um motivo para
61
Portanto, a postura de se considerar a cultura de massa produzida pelo Japão como algo de
somenos importância, com objetivos meramente consumistas e com características fora da nossa realidade, é
simplista; é claro que a preocupação com o lucro (venda de chaveiros, estojos, vídeos, marcas, estilo de
vestuário, etc.), porém como destacara Simmel, ao falar de alguns dos produtos da cultura de massa: “(...) they
may be incomplete and unimportant with respect to objective, technical, specialized spheres of life, but
contribute perfectly to what our being needs for the harmony of its elements, to that mysterious unity that
transcends all specific needs and forces.” (Simmel 1971, p. 232)
62
A relativa atração por modelos hierárquicos, como os atribuídos ao Oriente, não deixa de ser um
exemplo da permanência (mesmo que periférica) da representação tripartite proposta por Dumézil que
“"Même si plusieurs sont de composition relativement récente, ils prolongent dans leur principe un type indo-
européen demeuré longtemps vivace dans le folklore, dans les à-côtés de la vie sociale, après que la tripartition
avait cessé de gouverner l'ordre public et la religion." (DUMÉZIL, 1968, p. 623)
147
a dificuldade de se aplicar o conceito de Feudalismo ao Japão, é o fato desse conceito ter sido
desenvolvido tendo um determinado contexto histórico europeu.
Feudalismo é um conceito histórico construído com o intuito de servir de ferramenta
teórica para o estudo de determinado período na formação do Ocidente. Ou seja,
refere-se especificamente ao sistema político, econômico e social da Europa
medieval. Mas esse conceito pode se tornar também uma categoria de análise ao ser
aplicado a realidades tão diversas como o Japão medieval e o Islã. No entanto, o
modelo de Feudalismo clássico foi construído a partir da Europa ocidental,
principalmente da França. (SILVA e SILVA, 2005, p. 150.)
A utilização desse conceito no caso japonês tem que ser relativizada pois, embora
existam elementos semelhantes, como a ausência de um poder monárquico centralizado, uma
classe guerreira com um código comportamental próprio e uma sociedade hierarquizada com
uma economia fortemente agrícola, eles se constituíram dentro de processos históricos
diferentes dos ocorridos no Ocidente europeu.
Embora, no início da sua história, o Japão tenha sofrido forte influência chinesa, a
partir do século VIII, o Japão começou a se afastar dessa influência, desenvolvendo a sua
própria especificidade cultural. Kyoto, sede da corte imperial, era o centro da arte e da
sofisticação. Entretanto, progressivamente o imperador, de caráter divino e governante
máximo do país, passou a delegar os principais cargos administrativos e políticos para os
chefes das famílias nobres, aos quais entregou terras em troca de serviços.
De forma semelhante ao que aconteceu em parte da Europa, esses chefes (conhecidos
como daimyos) transformaram suas propriedades em domínios políticos, protegidos por
exércitos particulares de guerreiros, os samurais.
Os samurais eram os lendários guerreiros que no antigo Japão levavam vidas nobres
e violentas regidas pelos ditames da honra, da integridade pessoal e da lealdade.
Esses ideais se concretizavam nos serviços que os samurais prestavam a seus
senhores feudais por intermédio do governo e a seus comandantes nos campos de
batalha. Era um dever cuja expressão mais sublime se encontrava na morte.
(TURNBULL, s/d, p. 7)
O imperador passou a sofrer o assédio desses daimyos, desejosos de aumentar suas
terras e poderes, o que levou a sucessivos ataques à Kyoto. Em 1192, após de uma guerra civil
148
envolvendo famílias nobres, Yoritomo Minamoto recebeu o título de shogum (generalíssimo)
do imperador.
63
Esse título, até então de relativa importância, permitiu à Minamoto ter
legitimidade para ser o primeiro dos vários chefes militares que governaram o Japão até o
século XIX, mantendo os daimyos sob estreita vigilância.
O imperador exercia o poder formal do país em seu palácio, em Kyoto, porém, era o
shogum (alegadamente em nome do imperador) quem exercia o poder de fato assim tem
início o shogunato, instituição política que marcará o “feudalismo japonês”.
Por isso considero que a utilização do conceito de feudalismo para se pensar o caso
japonês deve ser feita de modo cuidadoso, levando-se em conta as especificidades do Japão,
sendo que cabe lembrar que o próprio conceito de Feudalismo não é uniformemente aceito
entre os historiadores especializados em Europa medieval. “Os termos feudalidade,
feudalismo, Idade Média têm inúmeras conotações e mesmo entre os medievalistas seu
emprego suscita graves discordâncias.” (GUERREAU, 2006, p. 437).
Como foi mostrado, a dinâmica que leva à gestação do feudalismo japonês é
consideravelmente diferente da que levou ao desenvolvimento da sua contrapartida européia.
Henri Pirenne, na primeira metade do século XX, chamava atenção para o fato de que o
sistema feudal europeu
(...) é tão a desintegração do poder público entre as mãos de seus agentes, que
pelo mesmo fato de possuir cada um parte do solo, tornaram-se independentes e
consideravam as atribuições de que se achavam investidos como parte do seu
patrimônio. Em suma, o aparecimento do feudalismo, na Europa Ocidental no
decorrer do século IX, nada mais é do que a repercussão, na ordem política, do
retorno da sociedade a uma civilização puramente puramente rural. (PIRENNE, s/d,
p. 13-14).
O caso japonês tem a sua especificidade em relação ao europeu: na Europa, o rei era
quase uma figura simlica, semelhante ao imperador japonês; contudo, no Japão, durante o
período do shogunato, o shogum era reconhecido como poder centralizado, ainda que por
63
É possível encontrar em português tanto a grafia xogum como a shogun, bem como também é comum se ler
daimio e daimyo. Preferi a segunda forma por ser a mais difundida, sendo a adotada pela língua inglesa.
149
vezes questionado. Assim, não é possível dizer que houve um vazio de poder nos mesmos
moldes do ocorrido em parte da Europa.
A manutenção do poder do shogum não era simples, posto que existiam cerca de 270
domínios, sendo que muitos eram ricos, poderosos e fortemente armados. Além disso, haviam
rivalidades e alianças as quais podiam operar tanto a favor quanto contra o shogum. Havia
também uma massa camponesa submetida à tributação por parte dos daimyos.
Essa população explorada por vezes irrompia em revoltas. O período de 1430 a 1570,
foi marcado por várias dessas revoltas. No século XVII começou o shogunato Tokugawa, que
durou até meados do século XIX, quando com a Restauração Meiji (1868-1912) acaba o
assim chamado Feudalismo Japonês ou o Japão Medieval.
Falar em Japão medieval também é complicado que a própria Idade Média européia
tem sido alvo de intensas revisões no último século. A chamada “Escola dos Annales”, que
teve como um de seus fundadores o grande medievalista Marc Bloch e que possui como
grande destaque atual outro medievalista de renome, Jacques Le Goff, tem dado grande
atenção ao período medieval europeu – havendo maior preocupação com o contexto francês.
Nesses últimos cinqüenta anos, tem se marcado o fato de que a representação que se
tinha da Idade Média teria sido consideravelmente influenciada por uma leitura engajada,
principalmente no que se refere à historiografia francesa, preocupada em dar uma unidade ao
passado histórico francês. Desse modo, falar de Idade Média como uma realidade objetiva,
definida, é equivocado.
A Idade Média não existe. Este período de quase mil anos, que se estende da
conquista da Gália por Clóvis até o fim da Guerra dos Cem Anos, é um (sic)
fabricação, uma construção, um mito, quer dizer, um conjunto de representações e
de imagens em perpétuo movimento, amplamente difundidas na sociedade, de
geração em geração, em particular pelos professores do primário, os 'hussardos
negros' da República, para dar à comunidade nacional uma forte identidade cultural,
social e política. (AMALVI, 2006, p. 537)
Embora sejam expressões usadas freqüentemente, é questionável a pertinência de se
150
falar em “Japão medieval” ou em “Japão feudal” para se referir à situação sócio econômica do
Japão anterior à Restauração Meiji. Os conceitos de Idade Média e de Feudalismo possuem
uma especificidade geográfica e delimitação cronológica. A “queda” do Império Romano do
Ocidente e a “descoberta” da América conferem os limites temporais da Idade Média, mas sua
arbitrariedade e eurocentrismo são discutidas pelos historiadores. No caso do Feudalismo, sua
determinação é ainda mais fluida. Dizer que é um sistema sócio-econômico que existiu na
Europa Ocidental dos séculos XI ao XII está longe de ser uma definição unânime entre os
especialistas.
Contudo, é preciso reconhecer que no Japão anterior à Restauração Meiji, realmente
existe a presença de alguns elementos que guardam certa similitude com o que poderiam ser
pensadas como sendo suas possíveis contrapartidas ocidentais. Isso é possível se houver uma
interpretação relativamente aberta do conceito de Feudalismo: “(...) se podemos falar de
sociedade feudal, de feudalismo, é porque consideramos uma certa forma de relações
humanas, um certo espírito consuetudinário que se foi traduzindo pouco a pouco em
instituições e muito raramente em códigos escritos.” (TOUCHARD, 1970, p. 52)
Assim, sem querer entrar no mérito da discussão a respeito da existência de um
feudalismo japonês uma posição controversa, posto que a existência de elementos quiçá
semelhantes (que podem ser vistos, mutatis mutandi, como feudais) não quer dizer que
tenham necessariamente a mesma função ou significação que as existentes no Ocidente
pode-se perceber a presença de uma visão integradora na qual os diferentes grupos sociais
japoneses se encontram dentro de uma hierarquia clara (guerreiros, lavradores, artesãos e
mercadores).
64
64
“No Japão havia uma organização política e econômica basicamente semelhante à da China
(organização de economia aldeã, artesanato e comércio desenvolvidos, organização social hierarquizadas,
propriedade imperial das terra etc.), mas as diferenças eram bastante acentuadas: (1) o poder central encontrava-
se nas mãos do 'xogum', chefe militar que se interpunha entre o Imperador e os daimio (grandes senhores de
terra); (2) a organização econômica se aproximava de um modelo 'feudal', na medida em que entre o poder
151
Enquanto que o modelo social ocidental tradicional começou a ser minado e
desapareceu paulatinamente após o Renascimento, estando praticamente extinto em fins do
século XIX, a estrutura social acima referida, característica do Shogunato, permaneceu em
pleno funcionamento até a segunda metade do século XIX no Japão.
Apesar de ter desaparecido enquanto forma de poder, elementos que o caracterizaram
ainda demonstram sua persistência no imaginário japonês, como a valorização da hierarquia,
nunca quebrada explicitamente no respeito do shogum à figura simbólica do imperador. O
respeito à hierarquia é um elemento fundamental dentro da sociedade japonesa. É um valor
presente em todos os níveis e é em função dele que se estruturam as relações sociais.
Qualquer tentativa de entender os japoneses deverá começar com a sua versão do
que significa ‘assumir a posição devida’. A sua confiança na ordem e na hierarquia e
a nossa fé na liberdade e na igualdade situam-se a pólos de distância, sendo difícil
para nós atribuir à hierarquia seu valor devido como mecanismo social. A confiança
japonesa na hierarquia é básica, dentro da sua noção global da relação do homem
com o seu semelhante, da relação do homem para com o Estado, sendo que somente
através da descrição de algumas de suas instituições nacionais como a família, o
Estado, vida religiosa e econômica, é que nos será possível entender a sua visão do
mundo. (BENEDICT, 2002, p. 42)
Essa valorização da hierarquia, podendo levar até a morte, é visível nas suas
representações artísticas: a imagem recorrente do samurai, símbolo dos valores mais elevados
daquele período, é um exemplo disso.
O Japão, diferentemente da China, empreendeu um processo de absorção de elementos
ocidentais e reelaborou-os de forma a poder se inserir, de forma autônoma e soberana dentro
do teatro diplomático e político do final do século XIX. Com isso, a elite japonesa “(...)
aceitou a interferência ocidental, aprendeu suas técnicas econômicas e militares, modernizou
suas instituições político-jurídicas à maneira ocidental, mantendo, porém, sua cultura,
organização social e o controle político da nação.” (FALCON e MOURA, 1989, p. 98)
Logo, o Japão contemporâneo se construiu em um processo onde as dinâmicas
imperial e as aldeias existiam cerca de 270 'feudos' (han), cujos senhores, os daimio, exploravam o trabalho dos
camponeses; (3) os samurais, elementos militares, eram um grupo à parte, socialmente superiores aos
camponeses e comerciantes, embora subordinados ao daimio.” (FALCON e MOURA, 1989, p. 96-97)
152
internas interagiram com as influências externas, como a pressão dos Estados Unidos para a
sua abertura para o Ocidente. Tal elemento externo, pelo seu caráter de evento, talvez tenha
sido demasiadamente valorizado, não permitindo se reconhecer como a sociedade japonesa se
moldou em boa parte em reverência e contraste à influência chinesa e, posteriormente, em
relação à influência ocidental.
A sociedade japonesa tem sido caracterizada como tendo grande rigidez e plasticidade,
podendo preservar tradições na mesma medida em que se adapta ao novo. Da mesma forma
que a religião xintoísta permanece até hoje, o confucionismo e o budismo importados da
China foram absorvidos e essas três práticas religiosas convivem em harmonia. No campo da
política, a existência de um imperador dava unidade ao Japão e era preservada pelo shogum
que, embora fosse o poder de fato, sempre se colocou como autoridade submetida ao
imperador, ainda que esse não tivesse poder real.
Foi essa presença do poder central, materializado na figura do imperador, que
legitimava a centralização do poder efetuada pelos shoguns. “Whatever its psychological or
emotional effects, this penetrating power of the central administration, the roots of which
were already well established in the Tokugawa period, was an essential basis for the rapid
modernization which has taken place since the Meiji period,” (NAKANE, 1973, p. 107)
Dentro dessa perspectiva, a presença da frota dos “navios negros” (, kurofune) do
almirante Perry tem sua importância relativizada, para isto basta levar em conta o fato de que
a Restauração Meiji não foi sua conseqüência direta e imediata. O shogunato, que vinha sendo
abalado por revoltas camponesas, ao aceitar a abertura para o Ocidente, também abriu
caminho para que a oposição por parte dos daimyos permitisse a restauração do poder
imperial.
65
65
“Here is further evidence that the basic social and political system of modern Japan was already
firmly established at the start of the process of modernization. It can be argued that the basic system of modern
Japan was inherited from the previous Tokugawa regime and that the modern changes of the Meiji period, which
153
Com isso, realizando sua inserção no cenário mundial, o Japão deu início a um
processo de ocidentalização que está longe de ser submisso. A entrada de práticas culturais e
sociais ocidentais, juntamente com os avanços tecnológicos e atividades capitalistas não
trouxe uma transformação imediata nas relações sociais ou na visão de mundo japonesa. As
mudanças foram reinterpretadas à luz dessa visão, ou das necessidades de se preservá-la.
Penso aqui no fato de que a entrada do imaginário ocidental no Japão não significou,
imediatamente uma mudança tão radical e imediata que implicasse no abandono das suas
relações sociais tradicionais ou da cosmologia. No próprio Ocidente, o Renascimento, a
Reforma, o Iluminismo e a Revolução Científica precederam as revoluções industriais e
políticas. Muito se alterou no Japão nesse último século, muito foi mudado, mas nessa
mudança, características essenciais foram mantidas.
6.2. Valores em Jogo: Brasil X Japão?
Por outro lado, a constituição da sociedade brasileira se deu dentro de um processo
consideravelmente diferente. O contato dos portugueses com as terras recém encontradas
aconteceu no bojo de uma série de transformações que estavam alterando de forma estrutural
a realidade social e cultural européia; transformações essas das quais Portugal participou em
maior ou menor grau. A Península Ibérica teria passado ao largo das mudanças mais radicais
trazidas pelas revoluções religiosa com a Reforma do século XVII, que teria sido essencial
na constituição da idéia de consciência privada e científica com a chamada Revolução
Científica do século XVII, marcada pela importância da demonstração experimental.
appear so drastic, occurred without any structural change in terms of the basic state configuration.” (NAKANE,
1973, p. 119)
154
Realizando uma análise comparativa, Richard Morse chama atenção para a
possibilidade de que, enquanto (...) os ingleses compraram o pacote 'moderno', convertendo-
se talvez nos mais 'modernos' dos europeus, a despeito, ou devido ao fato, de terem evitado a
elegância racionalista francesa e a metafísica compensatória alemã. (...) [os ibéricos]
Acompanharam as questões-chaves durante o final da Idade Média e então, no umbral da
modernidade, mantiveram suas posições. (...) Eles não cavaram simplesmente trincheiras, mas
retrocederam, por razões circunstanciais, ante as implicações últimas das duas revoluções.”
(MORSE, 1998, p. 28-29)
Dessa forma, os países ibéricos teriam entrado na chamada modernidade estando
armados de um instrumental interpretativo que estava sendo progressivamente substituído em
boa parte da Europa da época. Esse fato teria efeitos a longo prazo no processo de
constituição das nações americanas originárias da colonização espanhola e lusitana pois
(...) o mundo ibérico rejeitou as implicações últimas das revoluções religiosa e
científica e, portanto, não pode (sic) experimentar plenamente seus resultados
lógicos na forma do utilitarismo e seu subordinado individualismo, que estão
implantados como marca-passos na mente coletiva do resto do Ocidente. (MORSE,
1988, p. 134)
A influência dessa escolha é visível, de acordo com DaMatta, na oposição entre um
Brasil formal, jurídico onde a lei seria universal, e um Brasil informal, onde as relações são a
norma. A convivência entre os dois modelos, um universalista e um relacional, seria um
elemento intrínseco, constituinte da própria realidade brasileira. Segundo esse autor,
(...) uma nação brasileira que opera fundada nos seus cidadãos, e uma sociedade
brasileira que funciona fundada nas mediações tradicionais. A revolução ocidental
moderna eliminou essas estruturas de segmentação, mas elas continuam operando
social e politicamente no caso brasileiro, sendo também parte de seu sistema social.
(DAMATTA, 1987, p. 86)
Essa duplicidade estrutural, e estruturante, onde coexistem duas formas de se lidar
com a realidade social, explicaria como os conceitos de liberalismo e de democracia foram
aplicados nos países de origem ibérica de forma diferente da ocorrida nos Estados Unidos.
155
Esses conceitos foram adaptados à especificidade da construção social existente nas duas
realidades: a ibero-americana e a anglo-americana.
Na Ibero-América o liberalismo e a democracia não interagiam diretamente, sendo
assimilados de forma independente, e em verdade intermitente, a uma cultura
política que ambos podiam afetar, mas nenhum podia suplantar. Se na Anglo-
América a coexistência de ambos levou adiante a dialética de liberdade-ordem, na
Ibero-América eles foram integrados à dialética ainda mais antiga entre o cálculo do
poder e bem comum, entre política como arte ou ciência e o Estado como
incorporativo ou tutelar. (MORSE, 1988, p. 89)
No Brasil independente, constituiu-se progressivamente uma nação que se propunha
antenada com os ideais liberais e democráticos, mas que os aplicava de uma forma
consideravelmente diferente da que ocorria nos EUA. Isso se dava pelo fato de que embora o
liberalismo e a democracia tenham sido absorvidos, eles o foram dentro de uma sociedade
ainda marcada pelas noções de hierarquia e de totalidade noções essas eliminadas dentro
do contexto da colonização inglesa na América.
Essa situação superpôs no Brasil duas dinâmicas que tinham sido colocadas como
opostas na Europa. Enquanto que houve o estabelecimento progressivo da hegemonia do
individualismo, com seus desdobramentos liberais e democráticos sobre os valores
hierárquicos e relacionais, aqui eles foram reelaborados de forma integrada, numa fórmula
nem sempre simples de operar onde o universalismo e hierarquia se manifestam em
diferentes situações e contextos.
Tudo isso parece lógico, pois como é possível operar uma sociedade semi-
hierarquizada com uma forte dose de individualismo e igualitarismo? Individualizar
significa, antes de tudo, desvincular-se dos segmentos tradicionais como a casa, a
família, o eixo das relações pessoais como meios de ligação com a totalidade. Trata-
se de buscar uma ligação direta com o Estado, por meio de associações voluntárias
como o sindicato, o partido político e os órgãos de representação de classe. Mas para
tanto é preciso abrir mão dos direitos substantivamente dados pelo sangue, pela
filiação, pelo casamente, pela amizade e pelo compadrio. (DAMATTA, 1983, p.
180)
Sendo o Brasil um país de colonização ibérica, ele ainda pode manter na sua estrutura
social e cultural elementos que guardam relação com uma sociedade patriarcal hierarquizada
que caracterizou a maior parte da nossa história. Esses valores têm sido continuamente
156
corroídos, mas não eliminados, pela modernização pela qual o país tem passado nos últimos
cem anos, processo esse que tem se acelerado recentemente pela intensificação da divulgação
dos ideais individualistas através dos meios de comunicação de massa e pela progressiva
escolarização.
66
Dessa forma, dizer que o Brasil “mantém elementos hierárquicos” ou que aqui
“sobrevivem traços holistas” seria uma visão evolucionista um tanto simplista, que a
relação que esses elementos e traços mantém com os chamados marcos da modernidade,
como o individualismo e a igualdade, é dinâmica e está em transformação e adaptação
constante. Logo,
O que os ibero-americanos preservam, por tradição e pela força maior das
circunstâncias, não é, salvo em alguns rincões com teias de aranha, uma antiquada
ideologia ibero-católica, mas a capacidade de manter um enfoque globalizante,
'holístico', sendo o 'holismo', tal como o entendo, mais característico de uma
concepção arquitetônica que de um sistema cartesiano ou marxista. (MORSE, 1988,
p. 141)
Portanto, pode-se postular que existe na sociedade brasileira uma defasagem entre os
valores tradicionais e a situação contemporânea. a permanência de um senso de
“hierarquia”, de “holismo” visível na relacionalidade brasileira, que coexiste com a difusão da
ideologia do individualismo.
A sugestão foi a de que o Brasil fica situado a meio caminho: entre a hierarquia e a
igualdade; entre a individualização que governa o mundo igualitário dos mercados e
dos capitais e o código das moralidades pessoais, sempre repleto de nuanças,
gradações, e marcado não mais pela padronização e pelas dicotomias secas do preto
e do branco, de quem está dentro ou fora, do é ou do não é, mas permitindo mais
uma diferença e uma tonalidade. (DAMATTA, 1983, p. 191)
É conhecida a convicção de que existiria uma forma de ser própria do brasileiro, seu
caráter nacional, sendo interessante destacar que renomados autores, de diferentes tendências,
fizeram afirmações bastante semelhantes a respeito do que seria essa natureza do brasileiro.
É preciso ressaltar aqui que estou falando do que seriam as principais tendências que
66
Sobre a importância da escolarização na alteração dos elementos hierárquicos característicos da
sociedade brasileira, cf Almeida (2007).
157
norteariam a representação que a maioria dos brasileiros possui da sua realidade social e de si
mesmos. Tais tendências, destacadas por alguns pensadores, não constituiriam um todo
inflexível e invariável. “O Brasil é hierárquico, familista, patrimonialista e aprova tanto o
'jeitinho' quanto um amplo leque de comportamentos similares. Porém, uma qualificação
importante precisa ser feita. O país não é monolítico, é uma sociedade dividida entre o arcaico
e o moderno.” (ALMEIDA, 2007, p. 275)
As opiniões oscilam desde a mais elevada autocrítica até o mais alto ufanismo.
Qualidades “típicas” do brasileiro como a hospitalidade, o caráter pacífico, etc. convivem
pari passu com defeitos como a preguiça, indolência, indiferença, passividade, corrupção, etc.
Para o político Joaquim Nabuco, por exemplo, a relutância do brasileiro em trabalhar por
salário estaria relacionada à escravidão.
Foi a isso que a escravidão, como causa infalível de corrupção social, e pelo seu
terrível contágio, reduziu a nossa política. O povo como que sente um prazer cruel
em escolher o pior, isto é, em rebaixar-se a si mesmo, por ter consciência de que é
uma multidão heterogênea, sem disciplina a que se sujeite, sem fim que se proponha.
(NABUCO, 2000, p. 136)
Por outro lado, para o historiador Capistrano de Abreu, ao analisar a situação do Brasil
no início do século XIX e discutir a respeito da possibilidade de independência, também
ficava evidente a incapacidade do povo brasileiro de assumir posturas ativas. “Não se inquiria,
porém, o meio de conseguir tal independência vagamente conhecida, tão avessa a índole do
povo a questões práticas e concretas. Preferiam divagar sobre o que se faria depois de
conquistá-la por um modo qualquer, por um modo qualquer, por uma série de sucessos
imprevistos, como afinal sucedeu. Sempre a mesma mandrice intelectual de Bequimão e dos
Mascates!” (ABREU, 2000, p. 242)
Essas visões contundentes a respeito do nosso suposto caráter nacional são
consideravelmente recorrentes, marcando autores das mais diferentes tendências. Caio Prado
Junior, especialista em história econômica e com influência do marxismo, via na indolência
158
indígena e na escravidão elementos que teriam conseqüências na nossa nacionalidade pois:
“De tudo isto resultará para a colônia, em conjunto, um tom geral de inércia. Paira na
atmosfera em que a população se move, ou antes 'descansa', um vírus generalizado de
preguiça, de moleza que a todos, com raras exceções, atinge. (PRADO JUNIOR, 2000, p.
360)
Esse “negativismo” também é compartilhado por Raymundo Faoro, autor weberiano,
que ao analisar um revoltado comentário de um estadunidense que traz uma visão do Brasil
como decadente, com elites corruptas e povo passivo, nos fala que: No exagero das cores,
filtra-se uma conseqüência: o povo quer a proteção do Estado, parasitando-o, enquanto o
Estado mantém a menoridade popular, sobre ela imperando. No plano psicológico, a
dualidade oscila entre a decepção e o engodo.” (FAORO, 2000, p. 375-376).
Em oposição a este criticismo, o ufanismo um tanto ingênuo (e um tanto
exagerado) de Affonso Celso, que é capaz de nos listar uma série de qualidades típicas do
brasileiro em geral como:
1°) Sentimento de independência, levado até à indisciplina. 2°) Hospitalidade. (...).
3°) Afeição à ordem, à paz, ao melhoramento. 4°) Paciência e resignação. 5°)
Doçura, longanimidade, desinteresse. 6°) Escrúpulo no cumprimento das obrigações.
Julgar-se-ia desairado quem, no interior, alegasse prescrição de dívida. 7°) Espírito
extremo de caridade. (...) 8°) Acessibilidade que degenera, às vezes, em imitação do
estrangeiro. 9°) Tolerância; ausência de preconceitos de raça, cor, religião, posição,
decaindo mesmo em promiscuidade. 10°) Honradez no desempenho de funções
públicas ou particulares. (CELSO, 1997, p. 156)
Essa visão um tanto negativa de nós mesmos também é compartilhada pelos jovens
brasileiros. Basta lembrar de uma pesquisa feita em 1996, quando vários jovens
(perguntados a respeito do impacto da corrupção no governo Collor, PC Farias, escândalos,
etc.) foram questionados quanto à sua forma de pensar a política e disseram que esses
acontecimentos serviram para que:
159
Quadro 1: Impacto da corrupção no Brasil sobre a forma de se pensar a política (ZAGURY, 1996, p. 230)
O desinteresse pelos mecanismos tradicionais da política se mantém, com muitos
jovens se engajando em outras atividades de intervenção social, como o voluntariado. Essa
descrença e desesperança com o Brasil atual podem ser interessantes para se entender o
fascínio que a cultura pop nipônica exerce sobre parte da juventude brasileira. Haveria a
necessidade de se reconhecer uma maior capacidade de “agência” dos jovens, pois as pessoas
não aceitam algo por aceitar, motivos, interesses para isso. A percepção de tal fato coloca a
questão de se ter que problematizar da coerência e consistência dos sistemas culturais.
A simpatia por um universo aparentemente marcado pela honra, dignidade,
solidariedade, etc. pode ser um elemento atraente para alguns dos jovens brasileiros que se
sentem insatisfeitos com a realidade cultural e social brasileira contudo, tal argumento não
parece ter o mesmo efeito sobre aqueles que se interessam pela indústria cultural japonesa
pelo seu aspecto mais formal e/ou superficial (cores, dinamismo, violência, etc.).
Alguns dos depoimentos que ouvi, representam esse apelo do ponto de vista do
conteúdo, bem como o fascínio, por outra parte desse público, pelo aspecto estético do
material nipônico. Os dois argumentos estão presentes na fala de Márcio, filho do meu colega
de trabalho Roger.
Eu gosto do estilo de Cowboy Bebop, Love Hina, Full Metal Alchemist e, se você
perceber, tem a ver com Harry Potter.
Mesmo tendo poderes e coisa diferente, é igual a gente no dia-a-dia. Ed e Alphonse
160
de Full Metal Alchemist são órfãos, mas têm o amor pela mãe. (Márcio, 13 anos)
A importância do sacrifício pelo outro, é um valor bastante nipônico. Isso explicaria a
atração que parte desses jovens que consomem esse material têm pelos samurais, símbolos do
Japão. Alguns textos fundamentais relativos à reflexão dos samurais sobre si mesmos e sobre
seu papel na sociedade têm sido editados mais recentemente no Brasil, bem como cada vez
mais saem novas edições de mangás com os mais diferentes tipos de guerreiros nipônicos
porém a referência ao samurai, “aquele que serve”, é sempre viva.
Através dessas obras, senão pela sua leitura direta, mas também pela sua
“vulgarização” através de animês e mangás, muitos dos valores tradicionais japoneses são
veiculados e atingem o público jovem brasileiro, sequioso de ideais e modelos sólidos. Posso
citar alguns pensamentos a título de ilustração:
Estude a estratégia no decorrer dos anos e conquiste o espírito do guerreiro. Hoje é a
vitória sobre o você de ontem; amanhã será a sua vitória sobre homens inferiores.
(MUSASHI, 2000, 79)
Todos nós desejamos viver. E, na maioria das vezes, construímos nossa lógica de
acordo com o que gostamos. Mas não atingir nosso objetivo e continuar a viver é
covardia. (YAMAMOTO, 2004, 28)
Para o Bushido, são essenciais estas três qualidades: Lealdade, Boa Conduta e Valor.
(YUZAN, 2004, 31)
Os valores presentes nos trechos citados acima remetem a elevados padrões morais e
éticos, padrões esses que os desmandos recentes da história brasileira levam os jovens a crer
que estejam perdidos. A afirmação de tais ideais não significa que os mesmos tenham
ocorrido de forma constante no Japão do passado e que ainda estejam em prática na sociedade
japonesa do presente. Entretanto, eles aparecem como referência, permitindo ao jovem
brasileiro construir uma imagem do Japão que lhe seja mais interessante.
67
67
Nesse ponto podemos nos remeter às discussões sobre como o Ocidente criou o Oriente (SAID,
1990) e também o Japão (BENEDICT, 2002), bem como às reflexões de Levi-Strauss sobre as tentativas
(fracassadas) de Asdiwal de viver uma vida diferente (LEVI-STRAUSS, 1976) choque da realidade que os
otakus brasileiros praticamente não correm posto que o Japão é um mundo consideravelmente difícil para ser
acessado diretamente e colocar em conflito as crenças construídas a partir do que é lá produzido.
161
A existência de uma aproximação com uma cultura, em princípio tão diversa da nossa,
vista como possuindo forte ênfase no coletivo, coloca o problema de como entender esse
fascínio que jovens brasileiros, de um país que se pensa como pertencente a uma civilização
ocidental individualista, podem encontrar interesse por uma cultura com características
próximas de um Holismo à la Dumont.
Como foi destacado por Geertz, a partir da sua experiência em Bali, existem (na
opinião dos nativos balineses) práticas, costumes, etc. que se coadunam perfeitamente. “Nesse
sentido mais amplo e abstrato, dois itens tjogtjog quando sua coincidência forma um padrão
coerente que dá a cada um significado e um valor que eles não têm em si mesmo.” (GEERTZ,
1978, p. 147)
Utilizando essa idéia, penso que valores, ideais, etc. estão em circulação e alguns deles
podem tjogtjog mais em uma cultura do que em outra, o que nos permitiria postular o motivo
da identificação de jovens brasileiros com uma realidade tão distante, pois a cultura japonesa,
aparentemente, não tjogtjog com a nossa (lembrando de interpretações que associam a cultura
brasileira à indolência, à malandragem, o “jeitinho”, etc.).
Cabe lembrar aqui a reação de muitos brasileiros frente à fascinação que a ordem
exerce sobre os nativos do país do jeitinho, pois como destacou DaMattta ao falar da surpresa
com a qual observamos o cumprimento das regras em certos países:
Nessas sociedades, sabe-se que não prazer algum em escrever normas que
contrariam e, em alguns casos, aviltam o bom senso e as regras da própria
sociedade, abrindo caminho para a corrupção burocrática e ampliando a
desconfiança no poder público. Assim, diante dessa enorme coerência entre a regra
jurídica e as práticas da vida diária, o inglês, o francês e o norte-americano param
diante de uma placa de trânsito que ordena parar, o que - para nós - parece um
absurdo lógico e social, pelas razões já indicadas. Ficamos, pois, sempre
confundidos e, ao mesmo tempo, fascinados com a chamada disciplina existente
nesses países. (DAMATTA, 1984, p. 97)
Embora, aparentemente, a cultura nipônica não seja diretamente/facilmente integrável
com a cultura brasileira, isso não a impediria de se coadunar melhor com ethos específicos,
162
como o da juventude, mais ligada com questões que são trabalhadas pela indústria cultural
nipônica:
a) a presença da violência e da sexualidade, temas importantes para jovens passando por
transformações físicas/sociais;
b) a importância de ideais como superação, nobreza de caráter, companheirismo, valores
fortes no idealismo juvenil.
Desse modo, produtos da indústria cultural nipônica que, em princípio, foram
concebidos para um universo cultural específico, podem encontrar ressonância entre jovens
brasileiros inseridos em uma tradição cultural e dinâmica social diferente, porém em busca
de valores semelhantes (ao menos na visão deles) aos presentes nas manifestações artísticas
da cultura pop nipônica.
Ao mesmo tempo em que se encontram jovens vivenciando de forma mais intensa a
fugacidade, transitoriedade e relativismo (que, por vezes, beira o niilismo) do mundo
contemporâneo, também outros, mais localizáveis circa vinte anos, que possuem uma
visão mais crítica e questionadora. Apesar das “aparentes” disparidades existentes entre essas
duas tendências presentes dentro do público de animês e mangás, elas convivem de maneira
amistosa. Elas conseguem encontrar dentro da enorme diversidade desse universo obras que
correspondem aos seus diferentes interesses.
68
Da mesma forma que a questão do valor é importante, tendo sido mencionada por
muitos nativos, evidenciando um certo fascínio por um “holismo nipônico”, também existem
(como foi mencionado antes) aficionados que não aparentam manter uma conexão tão estreita
com esses ideais. Esses se aproximam muito de outros aspectos da cultura nipônica,
aparentemente diversos dos nossos, que podem ser mais bem entendidos a partir das idéias de
68
“Several studies have shown that people choose media content to fit individual and group
requirements, rather than adapting their life to what the media prescribe or glorify.” (GANS, 1974, p. 32)
163
“realismo grotesco” de Bakhtin (1987). Ao descrever o espaço do riso, do corpo, da
reprodução, da morte, etc. como caracterizando uma forma de realismo que se preocupa em
perceber o corpo não como belo ou feio, mas apenas como um corpo qualquer, Bakhtin abriu
uma porta fundamental.
69
Essa chave interpretativa se tornou ainda mais explícita pelo fato dele destacar que o
“realismo grotesco” se manifesta em eventos coletivos (como as reuniões de otakus); para
alguns participantes com maior vivência (maior conhecimento do universo animê, mais idade
e/ou uma interioridade mais desenvolvida), e para os quais o apelo desse produto cultural
torna-se uma viagem interior ligada ao obscuro, soturno, próxima do “realismo grotesco”
romântico.
70
Dessa forma, torna-se mais compreensível o motivo pelo qual o traço distorcido da
aparência dos personagens (lembrando que o termo mangá pode ser traduzido como “desenho
irresponsável”), com personagens retratados de uma forma bem fora do naturalismo possa ser
atraente para uma parcela da juventude brasileira.
Não adianta expor o jovem a produtos culturais de forma totalmente desvinculada da
sua realidade se estes produtos não forem disponibilizados com uma linguagem acessível que
possa ser entendida e assim assimilada para completar esse indivíduo em formação. Isto
permitiria entender como muitos jovens acabam tendo acesso a valores nipônicos através da
linguagem “grotesca” dos animês/mangás.
Os aficionados mais jovens, preocupados com as transformações físicas características
da puberdade, estão mais voltados para obras vistas como sendo de conteúdo mais superficial
69
A presença de uma violência e de uma sexualidade expostas de forma diferente da característica
das manifestações artísticas do Ocidente abre caminho para o interesse do jovem, um ser em mutação física e
social, por essa forma (que para mim seria “grotesca”) de representação, pois: “A imagem grotesca caracteriza
um fenômeno de transformação, de metamorfose ainda incompleta, no estágio da morte e do nascimento, do
crescimento e da evolução.” (BAKHTIN, 1987, p. 21)
70
“Na realidade, o grotesco, inclusive o romântico, oferece a possibilidade de um mundo
totalmente diferente, de uma ordem mundial distinta, de uma outra estrutura da vida.” (BAKHTIN, 1987, p. 42).
164
– animês e mangás violentos ou com fortes toques de sensualidade. Por outro lado, os
aficionados mais maduros, preocupados em refletir sobre as questões relativas à sua
identidade, estão mais atentos a valores, ideais, etc. – há maior interesse por animês e mangás
que lidam com questões e/ou relacionamentos (tanto masculinos quanto femininos).
Logo, o fato da indústria cultural japonesa ser extremamente segmentada, tanto em
termos de forma quanto de conteúdo, possibilita uma oferta variada de bens culturais que
podem ser consumidos. Obras mais carnavalescas (no sentido bakhtiniano) cativam mais o
segmento mais infantil” do público otaku, enquanto que os animês e mangás com
problemáticas mais prementes são preferidos pela fração mais adulta” desse mesmo
público.
71
O máximo que pude fazer foi esboçar a existência de uma “pequena comunidade”, um
tanto alienígena por se reportar a referenciais culturais estrangeiros, inseridas dentro da
sociedade brasileira. Faço algumas considerações superficiais sobre como uma sociedade
complexa como a nossa, por suas características, criou condições para o
surgimento/desenvolvimento desse nicho, onde um número crescente de jovens tem
encontrado espaço e/ou meios para expressarem sua individualidade.
No entanto, com esses jovens tornou-se claro que esse universo se compõe de uma
etiqueta, regras, valores, etc. que, ao mesmo tempo em que se reportam a uma parcial
identificação com a cultura pop nipônica, também traz na sua releitura e transformação na
prática, elementos da cultura brasileira. Essa interação mostra que a juventude brasileira, mais
do que mera receptora de material produzido pela cultura de massa, aparece (dentro de certos
limites) como tendo uma grande capacidade de mobilização para operacionalizar suas
71
Com isso, diferentes gostos e preocupações são satisfeitos. Para os mais jovens, forma vibrante
com conteúdo (tido como) descartável; para os mais velhos, forma razoável (no mínimo, excelente se
possível) com conteúdo (considerado como) consistente questionamentos a respeito de valores, discussão das
relações humanas, etc.
165
vontades e satisfazer seus gostos, recorrendo a elementos do outro lado do mundo para isso.
Assim, as manifestações artístico-comerciais produzidas pela indústria cultural
japonesa, e disseminadas pelos meios de comunicação de massa, se reportam a um contexto
sócio-cultural consideravelmente diverso do nosso. Mesmo assim, elas têm ganho mais e mais
espaço na mídia ocidental, ocupando prateleiras nas bancas de jornal com os mangás, sendo
referências no universo dos jogos eletrônicos (muitos jogos são produzidos pela Sega e a
Nintendo, empresas japonesas) e ocupando horas da programação televisiva com seus animês
(os desenhos animados japoneses).
Essa presença, talvez não tão recente dado o fato das produções japonesas terem
uma presença regular entre nós desde os anos 1970 com o desenho de Speed Racer e os
tokusatsu, seriados Live Action (versões de mangás, ou animês, com atores) de Ultraman e
Spectreman –, mas recentemente crescente a partir dos anos 1990, trouxe uma grande
preocupação em relação a temas e conteúdos presentes nas mesmas, mais notoriamente a
preocupação com um certo erotismo e uma violência excessiva, em comparação com os
padrões estabelecidos pelos estúdios Disney no Ocidente.
72
6.3. Jogando com Almas: Pokémon e Yu-Gi-Oh
Uma verdade a ser aceita é que o estilo japonês de fazer desenhos animados, revistas
em quadrinhos, etc, tem ganho maior penetração na juventude ocidental. Nesse ponto, tal
“invasão” cultural poderia trazer um peso negativo para essa presença nipônica, visto que
desenhos animados, jogos eletrônicos e revistas em quadrinhos têm sido alvos regulares da
72
Vale lembrar aqui o fato de a animação estadunidense também ter produtos consideravelmente
violentos e que os mesmos não sofrem um patrulhamento estético-ideológico da mesma ordem do sofrido pela
animação japonesa – para repensar isso bastaria citar aqui os desenhos Tom & Jerry e Pernalonga.
166
atenção, preocupação e crítica por parte dos pais e educadores. “Uma das coisas de que se fala
muito é a influência da televisão e do cinema, a forte absorção e reprodução de
comportamentos e visões de mundo expressas nesses meios.” (ALMEIDA, 2001, p. 9)
As acusações mais freqüentes (geralmente mais contundentes e aplicadas
principalmente à televisão) se referem ao fato de serem socialmente desagregadores, por
estimularem a violência, incentivarem a rebeldia, acelerarem o desenvolvimento da
sexualidade, reduzirem a capacidade cognitiva e provocarem o isolamento social.
As reflexões e análises sobre o papel e a função da TV nas sociedades
contemporâneas apresentam-se sob variadas tendências, indo da mais acrítica
aceitação do veículo até a crítica mais contundente, que diz respeito à alienação e
reprodução das situações de dominação que a televisão promove e acentua.
(GUIMARÃES, 2000, p. 108)
Muitas dessas críticas partem dos professores que percebem um constante, para não
dizer contínuo e crescente desinteresse pelo ambiente escolar frente à televisão e à Internet. É
interessante salientar que os próprios educadores têm noção de que a escola, como se encontra
atualmente, ainda não conseguiu sair da sua inércia e se modernizar no mesmo ritmo que a
sociedade da qual faz parte. “Esta imagem da escola, isolada da vida cotidiana por seu
formalismo enfadonho, apesar de não ser recente e nem única, parece resistir, com muita
intensidade, a muitas tentativas de modificação sugeridas e/ou empreendidas.”
(GUIMARÃES, 2000, p. 17)
De certa forma, o crescimento do interesse dos jovens por formas de diversão, de
aprendizagem e de socialização que passam ao largo da escola, acabou por sinalizar de forma
contundente a necessidade, por parte dos professores, pedagogos, diretores e formuladores de
políticas educacionais, de perceberem que a “(...) realidade que o aluno conhece e vive não é
somente aquela empiricamente apreendida; é, também, a realidade sonhada, a das idéias, das
crenças, das emoções, das aspirações, das fantasias, dos desejos.” (GUIMARÃES, 2000, p.
25)
167
Essa preocupação com os possíveis efeitos negativos da mídia sobre os jovens voltou-
se, mais recentemente, para as manifestações da cultura pop nipônica em grande parte devido
ao chamado “fenômeno Pokémon quando, a partir de jogos eletrônicos, jogos de cartas,
animês e venda de uma infinitude de produtos licenciados, os pocket monsters (pokémons)
começaram a ser uma constante nas conversas, atividades e na vida dos jovens de todo
mundo.
Um colega de trabalho comentou que vivenciou esse momento, tendo sido “levado” ao
cinema para assistir Pokémon: o Filme. Na opinião dele, que tinha convivido com Super-
Dínamo, Speed Racer, Fantômas, Ultraman, Rodak e Robô Gigante
Pokémon era uma versão moderna dos meus heróis japoneses. (Roger, 44 anos)
Pokémon, como todo produto da indústria cultural japonesa, veio cercado de uma
ampla estratégia de marketing. Uma possível diferença é o fato de que tenha chegado aqui em
um momento em que a presença nipônica está mais consolidada no Brasil. Graças ao
lançamento de mangás em português, à exibição de animês em canais de TV por assinatura e
esporadicamente na TV aberta e, principalmente, através da Internet que permite baixar
episódios inteiros, animesongs (as músicas dos animês), copiar e imprimir fotos e/ou
desenhos, bem como comprar facilmente produtos importados, o acesso ao universo Pokémon
é mais fácil, e para muitos, tão fácil acesso o torna mais perigoso.
Numerosos pais e educadores colocam em questão o interesse e a moralidade que
representa esse jogo para as crianças. Os críticos denunciam o esforço econômico
exigido aos pais e também a presença excessiva de combates que parecem fazer
apologia à violência, encorajam o desejo de poder, transformam a criança num
pequeno capitalista e mergulham os de menos idade numa pesquisa obsessiva.
Totalmente imersos num mundo irreal, as crianças teriam dificuldades em separar o
imaginário da realidade. Outras, ao contrário, evocam a respeito desses personagens
a capacidade de desenvolver certa forma de inteligência, de desembaraço e de
memória (150 nomes e características correspondentes). A violência permitiria
colocar em cena as angústias e os desejos dos mais jovens. Por outro lado, o sistema
de cartas para colecionar desenvolveria as relações e as permutas entre as crianças.
(MONTIGNEAUX, 2003, p. 213)
Pode-se reconhecer a possibilidade de que existam os problemas destacados pelos
168
críticos, da mesma forma que os argumentos positivos dos que defendem o caráter inofensivo
(ou no máximo pouco danoso) do “fenômeno Pokémon podem ter validade. Ao conversar
com uma mãe, cujo filho de oito anos conseguiu socializar-se com jovens noruegueses
durante a estadia de ambos na Noruega através da troca de cartas Pokémon, ela relatou a
felicidade pela interação de seu filho com outros garotos, ao mesmo tempo em que ressaltou
as dificuldades de negociação existentes devido aos pedidos de seu filho para se comprar mais
cartas.
A acumulação e troca de figurinhas já era uma dimensão muito importante da
sociabilidade infanto-juvenil antes do surgimento do “fenômeno Pokémon”; porém, o que
chama a atenção é o fato desse caso transcender a mera troca, por se tratar de um jogo,
tornando-se não um canal de interação e de comunicação, mas também uma forma de
aprendizagem de um saber juvenil.
Para um efetivo domínio do universo Pokémon, não basta o mero ato da troca, mas
sim também conhecer os atributos de ataque, defesa, habilidade especial de cada criatura, que
posta em jogo tem que interagir com outra, também possuidora de qualidades e habilidades
específicas. Esse aspecto foi destacado por um de meus entrevistados:
Todo mundo sempre quis ter uma coisa além do normal, algo diferente, treinar seu
bicho, botar habilidades diferentes, criar várias estratégias. (Gabriel, 16 anos)
Assim, um possível aspecto positivo na prática dos jogos de cartas Pokémon,
contudo, também pode-se ver como esse aspecto acaba dependendo, ou melhor, dizendo,
incentivando uma possível tendência ao consumismo, gerando gastos excessivos. Essa
interação pode se dar tanto através das cartas quanto pela conexão entre os consoles dos
jogadores, conectando dois gameboys.
O jogo é construído também em cima da noção de permuta e constitui um
formidável utensílio de socialização para as crianças que são levadas a trocar as
cartas de jogar e técnicas para capturar os Pokémon. Essa troca pode ser feita tendo
o Gameboy como entreposto. A noção de permuta entre as crianças é fundamental.
169
Favorece a emergência de comunidades de jogadores, desenvolvendo o espírito de
grupo. (MONTIGNEAUX, 2003, p 216)
Produtos como Pokémon e, posteriormente, Yu-Gi-Oh, também centrado no jogo de
cartas, possuem forte apelo consumista. O sucesso do card game de Yu-Gi-Oh levou a uma
certa repercussão, negativa, na imprensa. “No Brasil, a febre foi tão grande que até já
mobilizou alguns programas de TV sensacionalistas, que colocaram o jogo em suas miras e
tentaram acabar com sua fama. Mas nem isso foi capaz de deter o poder adquirido pelo jogo.”
(FONSECA, 2006b, p. 23).
Para se participar de jogos oficiais, você deve estar comprando continuamente novos
baralhos (os decks), geralmente importados e a custos exorbitantes cabe ressaltar que um
comerciante informal me confidenciou que, no auge do fenômeno Yu-Gi-Oh, um baralho
falsificado podia chegar a custar cem reais. Logo, fica a dúvida a respeito de quais os
possíveis ganhos envolvidos nesses jogos, o que pode justificar certa reserva em relação aos
mesmos por parte dos pais.
Além das acusações de sexualidade exacerbada, de vulgarização da violência e de
incentivo ao consumismo, a cultura pop nipônica também sofre ataques de foro religioso,
mais comuns dentro de uma linha neopentecostal. Um autor estadunidense, John Paul Jackson
chama atenção para o fato de que os role playing games e os card games, mais
especificamente no caso de Pokémon, seriam uma forma de se invocar forças demoníacas e de
se estimular valores não cristãos (até pagãos).Creio que Pokémon e jogos semelhantes a ele
abrem portas para que o demônio desencadeie ataques espirituais tanto sobre aqueles que não
têm consciência quanto sobre os que deliberadamente abraçam o lado escuro.” (JACKSON,
2001, p. 33)
O autor traz no seu livro uma série de comentários onde, através de relatos de pessoas
com as quais manteve contato, busca evidenciar como a prática de se jogar Pokémon teria
170
uma influência nociva sobre as crianças e jovens. O fato de o jogo envolver a posse de
monstros, os pocket monsters, seria uma forma de atrair energias maléficas, capazes de
perturbar os jovens. Ele cita o caso de uma mãe que comentara a respeito da influência
demoníaca do Pokémon sobre seu filho, o qual passara a ter pesadelos após ter começado a
jogar Pokémon.
Antes do filho ir para a cama, ela havia removido do quarto dele todas as coisas
relacionadas aos Pokémons, mas as noites de terror do garoto ainda continuaram. Ao
orar, o Senhor deu a ela uma palavra sobrenatural de sabedoria: seu filho havia
escondido um cartão dos Pokémons junto com as figurinhas de beisebol. (...) Ele
relutou, mas confessou que havia escondido um cartão. Depois de explicar os
problemas espirituais associados ao jogo, os dois foram juntos até a lareira e
queimaram o cartão restante. Pela primeira vez em vários meses, seu filho dormiu a
noite toda em paz. Ao acordar, o menino estava de bom humor, o que não acontecia
desde o início dos pesadelos. (JACKSON, 2001, p. 34-35)
O autor também evidencia uma preocupação para com o crescimento do interesse pela
cultura oriental. Reconhecesse o fato de que Pokémon teria forte relação com as tradições
religiosas e culturais do Japão. A importância do xintoísmo seria um sinal de como uma
religiosidade pagã poderia, sutilmente, se infiltrar dentro do universo cristão.
Haveria o perigo de forças espirituais perigosas se manifestarem através do jogo. O
baralho poderia ser um mecanismo para que essas forças entre em contato com as crianças e
jovens. Para Jackson, no xintoísmo existiriam espíritos, conhecidos como kami, e que
poderiam ser invocados através de rituais que envolvem músicas para criar um estado de auto-
hipnose, esse estado seria uma forma de se permitir que um demônio entre na vida de alguém.
Os poderes espirituais que a ação humana pode desencadear podem ser divididos
em aproximadamente duas classes: interna e externa. A primeira reside na psique do
agente – tal como o mau-olhado, bruxaria, dons de visão ou profecia. A segunda são
símbolos externos sobre os quais o agente precisa trabalhar conscienciosamente:
conjuros, bênçãos, imprecações, encantamentos, fórmulas mágicas e invocações.
Esses poderes requerem ações pelas quais o poder espiritual é descarregado.”
(DOUGLAS 1976, p. 122)
Ao jogarem Pokémon, as crianças, ao dizerem os nomes dos monstros com os quais
jogam, estariam (sem saber) invocando demônios. Com isso, além da preocupação com uma
171
perigosa “orientalização” das crianças e jovens através do jogo de Pokémon, também o
tema da luta permanente contra as forças demoníacas, que estariam se utilizando do jogo para
ter acesso aos jovens.
Como os jogos de RPG se caracterizam por uma preocupação em se imaginar o
cenário envolvido, bem como em se envolver com o personagem com o qual se joga, eles
seriam capazes de canalizar a imaginação juvenil para um mundo de fantasia, onde cada um
incorporaria um personagem esse processo seria semelhante ao transe pelo qual alguns
indivíduos atraem e incorporam entidades.
Canalizar espírito é uma coisa que existe milhares de anos. Intrometer-se no
reino espiritual é muito perigoso, e até mesmo brincar com isso pode ser prejudicial.
Convidar 'espíritos familiares' é uma atividade de médiuns e bruxos. Se você não
acredita que seu filho está canalizando espíritos quando joga Pokémon, então tenha
certeza de que está sendo enganado. Canalizar é um dos aspectos dos jogos RPG.”
(JACKSON, 2001, p. 49)
Por fim, o jogo de Pokémon teria o possível efeito de afastar o jovem do conhecimento
formal, que esse se preocuparia muito mais em conhecer a diversidade de elementos que
cercam o jogo ao invés de dar atenção aos saberes tradicionais, disseminados pela escola e a
Igreja.
Ao invés de serem treinados para se tornarem mestres de Pokémons, nossos filhos
deveriam ser treinados a seguir o Mestre Jesus Cristo. Um professor de escola
dominical percebeu que seus alunos eram capazes de recitar o nome e os atributos de
todos os 151 Pokémons, mas, com tristeza, viu que os mesmo alunos tinham
dificuldades em memorizar um único versículo bíblico ou até mesmo a tabuada.
(JACKSON, 2001, p. 55)
Portanto, pode-se ver que o fenômeno Pokémon (tomado aqui como exemplo), mas
não exclusivamente ele, também é alvo de críticas religiosas, inclusive no Brasil. Uma vez,
em uma sala de aula de uma escola da rede municipal do Rio de Janeiro, em uma aula de
história para uma turma de sétima série do ensino fundamental, o assunto surgiu e um aluno
disse que não assistia os desenhos de Pokémon e Digimon porque o pastor lhe havia dito que
eram coisa do demônio.
172
Embora essa acusação o tenha desestimulado, o mesmo não ocorreu com Edmilson,
um inspetor do CEFET/RJ, unidade de Nova Iguaçu. Ele, um homem de vinte e sete anos,
apesar de evangélico, gosta de animês e assiste mesmo os que possuem alguma temática
próxima de assuntos como feitiçaria. Mesmo reconhecendo que esse tipo de material é
criticado pelos líderes da sua seita, ele é capaz de relativizar o fato e de assisti-lo sem se
considerar em conflito com sua fé.
Essa atitude é similar à dos leitores de Coelho, cujos livros também sofrem uma certa
restrição por parte dos líderes dos grupos pentecostais, de alguns padres mais ortodoxos
encontrando resistência até entre os intelectuais, como eu. Os dois exemplos, o do meu aluno
e o do inspetor, mostram atitudes diferentes, tanto de abandono dos produtos culturais
japoneses devido a questões religiosas, quanto de adesão a esse universo, apesar da religião.
“São católicos, pentecostais, espíritas ou participam de cultos afro-brasileiros. e embora
conheçam as sanções que a ortodoxia denominacional lança contra Coelho, eles as rechaçam.”
(SEMÁN, 2003, p. 134)
É claro que deve ser considerada aqui a diferença de idade, pois estou comparando
uma criança entre doze e treze anos com um adulto de quase trinta. Um talvez estivesse muito
ais sujeito a respeitar a autoridade instituída, o pastor, do que o outro, com maior capacidade
de discernimento e de questionamento. Tal preocupação deve ser levada em conta,
principalmente pelo fato de muitos produtos da indústria cultural nipônica serem
disponibilizados sem muitos critérios no que concerne a horários de exibição, por exemplo.
Como muitos animês, alguns com doses de violência e de sexualidade exagerados para
nossos padrões, são exibidos indiscriminadamente em programas infantis, a visão negativa
que recai sobre eles é parcialmente compreensível. No caso de Pokémon, por exemplo,
ainda o precedente de que muitas crianças japonesas passaram mal, em 1997, ao assistirem
173
um episódio. Uma série de imagens luminosas provocou um intenso mal-estar e gerou uma
grande polêmica na época.
Assim, a proibição, por parte do pastor, de se assistir esse animê não parece tão
arbitrária. Ela funcionou como uma forma de restrição, de impedir que esse garoto tivesse
algum contato com esse tipo de material considerado como sendo espiritualmente perigoso.
Com isso, evitar Pokémon ou Digimon seria uma garantia de segurança, o que é importante se
for levado em conta como uma pessoa pode, inadvertidamente, envolver-se com um elemento
poluidor, trazendo perigo para si e para outros.
Uma pessoa que polui está sempre em erro. Desenvolveu alguma condição indevida
ou, simplesmente, cruzou alguma linha que não deveria ter sido cruzada, e este
desvio desencadeia perigo para alguém. (...) Pode ser intencionalmente cometida,
mas a intenção é irrelevante para seu efeito é mais provável que aconteça
inadvertidamente. (DOUGLAS, 1976, p. 140)
Portanto, a presença do demônio seria mais um elemento a se juntar à questão da
alienação pelo consumo e à crítica ao caráter violento da animação japonesa devido à
presença constante de lutas em muitos animês, bem como a recorrência de temas ligados à
morte e a violência.
73
Um ponto interessante a ressaltar é o fato de que, embora os animês sejam
aparentemente violentos, isso (até agora) não parece ter tido efeitos nocivos na sociedade
nipônica. Argumenta-se que a forma como esse material lida com as tensões é diferente da
que vigora no Ocidente.
Interessantemente, no Japão, os “bandidos cometem a maior parte da violência,
com os “mocinhos” sofrendo as conseqüências o exato oposto da programação
norte-americana. Nesse contexto, a violência é vista como algo errado, como uma
atividade de vilões com conseqüências reais e dolorosas, ao invés de ser vista como
justificável. (STRASBURGER, 1999, p. 47)
73
Essa preocupação por parte dos pais e educadores não é improcedente visto que uma pesquisa
com mais de 5000 alunos de 12 anos de idade em 23 países revelou que “Os programas (TV/filmes/vídeo)
favoritos das crianças de 12 anos eram histórias de crimes ou ação, ficção científica e horror, respectivamente
os programas/filmes dessas três categorias foram mencionados, cada um, por cerca de 20 por cento das crianças,
ou, tomadas em conjunto, por quase dois terços dos alunos de 12 anos.” (GROEBEL, 2002, p. 71)
174
6.4. Jogos, Mangás e Animês: Homos(sexualidade) e Violência?
Outra dimensão da presença nipônica que também é alvo de críticas por parte dos pais,
bem como pelos educadores, é a do entretenimento através dos jogos eletrônicos. Esse
segmento do campo de entretenimento tem crescido exponencialmente, e é sabido que são os
avanços no campo da qualidade da imagem e da jogabilidade dos jogos que têm estimulado
outros avanços nas indústrias de hardware e de software. Essa polêmica sobre os possíveis
danos que podem ser causados pelos jogos eletrônicos é um tema recorrente.
74
As acusações mais comuns são as de que esses jogos incentivam a agressividade pelos
seus conteúdos violentos, dessensibilizar o jovem pela banalização da morte, provocam
passividade e acabam se tornando um vício pelo fato do jogador ficar às vezes horas sentado,
jogando e olhando para a tela de uma televisão ou de um computador, abandonando outras
atividades.
Quando se lê algumas matérias em revistas especializadas em jogos eletrônicos, é
possível observar que algumas das acusações, principalmente as relacionadas à questão da
violência, parecem justificadas.
Resident Evil: Outbreak:
O arsenal também é bastante variado e conta com as armas clássicas faca, pistola
– e também com algumas armas novas que merecem destaque, como o Molotov, por
exemplo, que promete fazer um grande estrago nos mortos-vivos. (TESTA, s/d, p.
21)
Tenchu Kurenai.
Os inimigos possuem uma inteligência incrível, muitas vezes, quando estão perto da
morte, eles param de lutar e começam a correr em busca de ajuda e se você deixar
algum escapar, com certeza ele voltará com ajuda e isso te causará problemas.
(KAMIKAZE, s/d, p. 30)
74
teóricos como Giovanni Sartori, um crítico dos meios de comunicação de massa em geral,
que consideram a atividade de se jogar videogame ou jogos de computador como sendo prejudicial: “Na
verdade, o problema de fundo é que a televisão criou e está criando um homem que não , que revela um
alarmante entorpecimento mental, um ‘molóide criado pelo vídeo’, um viciado na vida dos videogames.”
(SARTORI, 2001, p. 24)
175
É uma indústria que movimenta milhões, dominada por empresas japonesas como a
Sony, que produzem tanto os jogos quanto os aparelhos de videogame, sendo um ramo da
indústria que cresce continuamente e firmou bases no Brasil.
75
Tal expansão serve como
justificativa para a preocupação dos pais e educadores que temem que os jovens percam a
noção da realidade e/ou que não desenvolvam uma socialização satisfatória, preferindo o
mundo dos jogos eletrônicos ao mundo real.
Uma outra acusação recorrente é o fato de que os jogos eletrônicos estão voltados
basicamente para um público jovem, masculino e que gosta de jogos violentos, o que foi
comprovado por uma pesquisa realizada em 1995 sobre o conteúdo dos jogos de computador:
Os resultados mostraram que a maioria dos jogos de computador existentes é
destinada ao sexo masculino e implica claramente altos níveis de violência.
Contudo, o pesquisador insistiu em afirmar que não há relação entre estes conteúdos
e as crianças que usam tais softwares aprenderem sobre discriminação sexual e
tornarem-se mais agressivas. (KODAIRA, 2000, p. 111)
O argumento acima não é suficiente, entretanto, para tranqüilizar os pais que vêem
seus filhos considerando personagens virtuais como Lara Croft, da série de jogos Tomb
Raider, Chun Li da série Street Fighter ou Mai Shiranui, dos jogos da linha Fatal Fury com
suas formas voluptuosas e roupas exóticas ou escassas como padrões de beleza e/ou de
comportamento feminino.
Embora haja um estilo de quadrinho pornográfico, o chamado hentai denominação
que cobre um espectro amplo de trabalhos com abordagens com diferentes ênfases e
características as revistas em quadrinhos em geral primam por um erotismo que soa
exagerado para os ocidentais. Como o sexo não seria visto como algo que é potencialmente
perigoso, mas sim como complementar e necessário, o prazer é procurado e praticado. “Os
japoneses não condenam a auto-satisfação. Não são puritanos. Consideram os prazeres físicos
75
Além dos milhões de jogos eletrônicos comercializados, através da possibilidade de se baixar
jogos via Internet e de se comprar jogos pirateados, pode-se ter certeza de que a disseminação dos jogos
eletrônicos cresce exponencialmente. (Dias, Aguerre e Vassoler, 1999: 34)
176
bons e dignos de serem cultivados. Daí serem procurados e apreciados. Entretanto, precisam
ser contidos no devido lugar. Não devem misturar-se aos assuntos sérios vida.” (BENEDICT,
2002, p. 151-152)
Isso tem sido explicado pela possível forma pela qual a sexualidade seria vivida no
Japão: de forma reservada, mas sem uma noção de pecado e impureza semelhante à existente
entre os povos ocidentais. Enquanto que no Ocidente o sexo é pensado como um elemento
fundamental na nossa própria construção pessoal, na cultura japonesa o sexo ocuparia um
papel importante, mas não tendo o mesmo peso físico-moral que lhe é atribuído no Ocidente.
ele é encarado como mais uma necessidade, não como algo extraordinário. “Como
qualquer outro 'sentimento humano', consideram o sexo de todo bom ocupando um lugar
secundário na vida. Nada de mal nos 'sentimentos humanos' e portanto não necessidade
de ser moralista quanto aos prazeres do sexo.” (BENEDICT, 2002, p. 156)
uma grande diferença no que concerne à forma como os japoneses lidam com a
sexualidade, se comparada à maneira como esse tema é tratado nas sociedades ocidentais em
geral. Os comportamentos nipônicos sofreram influência ocidental na segunda metade do
século XIX, quando dos primeiros contatos com as potências ocidentais.
As autoridades japonesas se empenharam em evitar críticas ocidentais aos hábitos
populares que parecessem, pelos padrões correntes ocidentais, incivilizados.
Tentaram introduzir vigorosas regulamentações em duas questões novas. O
homossexualismo nunca fora grande problema na cultura japonesa, mas em 1873, no
ápice das reformas de ocidentalização, o governo passou uma lei impondo prisão de
noventa dias a quem participasse de atividades homossexuais. A medida foi logo
relaxada, quando os entusiasmos pelo Ocidente se atenuaram; o crime foi abolido
em 1883 e substituído por uma vaga discriminação de 'atitude indecente' e as
manifestações de afeto entre homens foram mais uma vez toleradas. (STEARNS,
2007, p. 175)
Pode-se entender o porquê da presença de personagens com traços femininos, com
comportamentos afeminados e até envolvidos em relações homoafetivas chamar a atenção dos
fãs ocidentais com uma opção sexual menos enquadrada nos parâmetros tidos como
convencionais.
177
Deve-se ressaltar, contudo, que a forte presença da sexualidade nas obras da indústria
cultural japonesa es inserida nas tradições culturais nipônicas. Esse material chega aqui e
pode ser visto como um exemplo de liberdade no trato com o corpo ou de respeito à
diversidade sexual, porém, ele não é necessariamente produzido com essa intenção. Basta
lembrar que essa liberalidade no que diz respeito à sexualidade já foi combatida
vigorosamente.
Os esforços para impor novos controles da família sobre a sexualidade foram mais
sérios. Enquanto os códigos sexuais da classe alta sempre tinham sido estritos, o
comportamento popular, tanto urbano quanto rural, era mais espontâneo, com
considerável atividade sexual antes do casamento. (Curiosamente, o xintoísmo tinha
deusas com vários parceiros sexuais.) Com a reforma, a classe alta tradicional, a
moralidade confuciana e o exemplo da era vitoriana no Ocidente, com suas
condenações oficiais a qualquer liberdade sexual se combinaram para produzir um
novo código sexual, em parte para evitar comentários ocidentais embaraçosos sobre
a moral japonesa. (STEARNS, 2007, p. 175)
Tem-se assim, um quadro ambíguo, onde a mulher é hierarquicamente inferior ao
homem, passando a ter sua liberdade sexual controlada, mas dentro da qual, grande
abertura para a prática sexual, sem as mesmas restrições moralistas do Ocidente.
Um dos temas que preocupam muitos dos adultos quando se trata de cultura pop
nipônica: o da forte sexualidade presente no material exportado pelo Japão. Isso é bastante
visível, bastando observar capas de alguns mangás, prestar atenção ao traço dos corpos das
personagens dos jogos eletrônicos e ver como em muitos animês muitas adolescentes em
trajes sumários ou em situações ousadas.
São comuns histórias eróticas com personagens entre 12 e 17 anos mas no Japão
histórias desenhadas não são consideradas pedofilia, pela única razão dos
personagens ali apresentados não existirem de verdade. Existe uma clara distinção
na mente oriental daquilo que é real do imaginário, daí estas histórias serem
publicadas sem problema. (ROSA, 2005, p. 34)
Essa aparente liberalidade no que concerne à sexualidade, com revistas em quadrinhos
e desenhos animados exibindo meninas adolescentes muitas vezes seminuas, também se
manifesta no campo da relação com a homossexualidade. Mais do que ações que devam ser
178
julgadas, são ações que devem ser aceitas por estarem inseridas dentro das possibilidades de
relacionamento social existentes. Existem mais como uma necessidade possível do que como
uma presença negativa perigosa e anormal já que fazem parte do repertório cultural. “As
satisfações homossexuais também fazem parte dos 'sentimentos humanos' tradicionais. No
Japão antigo constituíam elas os prazeres autorizados de homens de posição elevada tais como
os samurais e os sacerdotes.” (BENEDICT, 2002, p. 159)
a produção de toda uma literatura, e principalmente de fanfiction que circula pela
Internet, envolvendo pares homossexuais femininos (Yuri) ou masculinos (Yaoi). É
relativamente comum perceber uma certa tensão homoerótica em algumas obras japonesas,
geralmente apresentada de forma idealizada e discreta. Tal abordagem é bastante recorrente
nos mangás do grupo CLAMP, formado por cinco autoras.
76
Dentro dessa classificação mais ampla, uma diversidade interna impressionante
como o shonen ai (amor entre garotos), envolvendo certo romance e toques mais sutis como
beijos, etc. Dentro dessa classificação mais elaborada, o estilo yaoi seria algo onde houvesse
uma tensão corporal, com carinhos mais evidentes, sendo yaoi lemon histórias onde houvesse
sexo explícito.
também material com ênfase em cenas de relações sexuais como os fanfics
lemon (relações sexuais explícitas entre homens) e PWP (Porn Without Plot ou Plot? What
Plot?, apenas com cenas de sexo, sem maior atenção à história). Cabe aqui destacar que seria
necessário estabelecer todo um índice classificatório para essas manifestações, posto que a
segmentação do mercado nipônico é tão grande que para cada categoria pode haver várias
subdivisões – tal classificação escaparia inicialmente ao nosso objetivo.
76
O termo yaoi teria sua origem na expressão yama nashi, ochi nashi, imi nashi, que significaria
algo como sem clímax, sem conclusão, sem sentido”. Eram paródias sem sentido, brincando com personagens
dos mangás, porém acabaram por se tornar histórias com temática homossexual masculina. o termo yuri
significa “lírio” e remonta a uma publicação voltada para lésbicas.
179
As mulheres são as principais consumidoras desse material isso pode parecer
estranho em um primeiro momento, que o material yaoi é produzido, em sua maior parte
por autoras heterossexuais. Isso talvez ocorra, provavelmente por serem obras que retratam
relacionamentos masculinos a partir de um lado mais emotivo de uma relação entre iguais, no
caso tratando-se geralmente de dois belos homens sensíveis que se respeitam.
Os mangás e os animês yaoi têm alcançado grande alcance no Brasil, no último Anime
Dreams, em janeiro de 2007, houve duas salas Yaoi Dreams (uma sala de exibição de
animês com temática próxima do Yaoi e uma sala de convivência para os aficionados pelo
gênero). “(...) os fãs de yaoi são ardorosos, organizados e muito produtivos, usando a Internet
para divulgar seus trabalhos.” (FERNANDES, 2006: 47).
Apesar de os mangás yaoi destacarem a homossexualidade masculina enquanto que os
mangás yuri se dedicam a retratar a homossexualidade feminina, eles possuem um ponto
comum: estão mais preocupados com a criação de uma tensão homoerótica, dando mais valor
ao processo de se explorar os sentimentos do que com a simples reprodução do ato sexual
entre homens ou entre mulheres.
Um dos argumentos constantes no que se refere ao porquê da atração por esse tipo de
material seria a igualdade nas relações, que não seria comum nas relações heterossexuais.
Citarei alguns depoimentos retirados do tópico “pq afinal 6 gostam de yaoi??” (infelizmente,
o dono e os moderadores da comunidade apagaram esse e outros tópicos), “postado” em 18 de
julho de 2004, na comunidade Yaoi Brasil do sítio de relacionamentos Orkut:
Eu gosto de yaoi e gosto de gays, gosto da maneira como soa o amor de dois
homens, em uma fic hetero nao é de costume haver entrega de ambas as partes, já no
yaoi a entrega é maior e o apelo bem mais emocional, de dois seres iguais que se
atraem ( vc pode me perguntar pq eu nao gosto de yuri.... sinceramente nao sei,
nao tenho nada contra mas nao gosto de ler, e p/ mim ver 2s mulheres se beijando é
indiferente... mas adoro ver dois homens se beijando)
as cenas lemon (hentais no seu dizer hehe) me atraem muito, e se vc perceber elas se
concentram mto em sentimento e expressao...
180
há sim dark lemon, mazoquismo etc, mas até mesmo nesses amor.... se vc for
reparar... mesmo quando há sangue... o sangue soa poético..
sobre mulheres gostarem mais de yaoi que homens, bem, acho que o motivo 1 é
exatamente pelo romantismo e o motivo 2... é pelo mesmo motivo que 99% dos
homens gostam de ver mulheres se beijando... Anônimo (18/07/2004)
porem assim, eu gosto de yuri tb, mas como normalmente sao homens que
desenham/escrevem (justamente por preferirem yuri), nao eh a mesma coisa que
yaoi, onde mulheres escrevem, simplesmente pq a mulher sabe o essencial do amor
e da paixao, e eh mto mais romantica, e mulher gosta disso... homem eh um pouco
mais bruto, em todos os sentidos, e mulher no geral nao gosta disso.
no fim, mulher entende o que mulher sente, assim como homem tb sabe o q homem
sente, entao nao tem pq a gente tentar explicar o pq da gente gostar de yaoi...
e se tu for ver, os homens que gostam de yaoi, se nao sao gays, sao muito mais
sentimentais e livres de qualquer preconceito nesse sentido. eh o q falta nesse
mundo... Myrrha* (19/07/2004)
77
O respeito e igualdade presentes nessas representações que caracterizam as obras yaoi
atuais evidenciam uma ressonância de valores mais antigos, permissíveis dentro do
comportamento samurai, como é demonstrado pelas considerações de Edayoshi
Saburôzaemon sobre o homossexualismo: “Viver sua vida em função de outra é o princípio
básico da homossexualidade. Se não for assim, ela se torna uma vergonha. No entanto, não
existe nada mais que você possa oferecer a seu mestre. E, assim, entende-se que é algo
agradável e ao mesmo tempo desagradável.” (YAMAMOTO, 2004, p. 79)
Essa delicadeza e preocupação com a questão da sexualidade, bem como com os
sentimentos envolvidos, são alguns dos atrativos existentes nesse material para alguns jovens
com uma preferência ou identificação sexual que não se encaixa nos padrões tradicionais, os
quais ganham material para sua identificação nos produtos da indústria cultural japonesa bem
como um espaço privilegiado para a sua manifestação nos eventos.
Essa interpretação da caracterização dos personagens nipônicos se perde ao ser
transplantada para a nossa realidade, e acaba sendo relida/revista de forma diferente no Brasil,
permitindo a pessoas com uma sensibilidade mais delicada um referencial para identificação;
77
Foi preservada aqui a grafia original.
181
até pouco tempo atrás esse tipo de representação não existia na mídia brasileira (à exceção dos
estereótipos caricaturais).
78
Pode-se tentar traçar um esboço desse universo onde as relações afetivas entre iguais
são trabalhadas pelos mangás. Cabe ressaltar alguns pontos: que a homossexualidade,
basicamente masculina, está inserida dentro das referências culturais nipônicas o que, de
certa forma, reduz o impacto da sua representação (o que aqui nos causa certo espanto).
79
A forma como os japoneses lidam com a sexualidade é consideravelmente diferente da
que caracteriza o Ocidente e quem possa julgar tal influência nociva. A presença de fortes
doses de sensualidade bem como de tensões homoeróticas em animês aparece como algo
perigoso para pais acostumados à ingenuidade dos desenhos animados tradicionalmente
voltados para o público infanto-juvenil o fato desse público estar vivendo o momento do
que seria a construção da sua individualidade aumenta o receio por parte dos pais, temerosos
dos efeitos que esse material possa ter sobre a personalidade de seus filhos.
Convém, nesse momento, evidenciada a diversidade das produções que exploram esse
tipo de sexualidade dentro da produção nipônica, descartar (em princípio, pelo menos nesse
caso) a crença na possibilidade da imposição de sentidos e valores da mídia no
comportamento juvenil pois há, como mencionei anteriormente, um mercado de opções muito
diferenciadas que são oferecidas à la carte. Dessa forma, cada escolha é um ato do sujeito,
que escolhe o que lhe interessa escolher, dentre as escolhas possíveis é claro.
80
78
O caráter andrógino onde personagens masculinos com aparência feminina é compreensível
dentro do universo nipônico, onde a tradição xintoísta relaciona o feminino ao civilizado e a barbárie ao
masculinizado.
79
Há referências ao homossexualismo em um texto clássico sobre o comportamento dos samurais
(YAMAMOTO, 2004) onde um relacionamento homossexual é definido como possuindo uma grande dimensão
de igualdade e respeito mútuo onde “A natureza da relação pode ser determinada apenas se eles forem capazes
de se ajudar mutuamente e devotar sua vida um ao outro.” (YAMAMOTO, 2004, p. 78)
80
É possível ver a capacidade de ão do de animês e mangás, que pode exercer uma certa
liberdade de escolha de acordo com seus interesses, dentro das condições possíveis. “Several studies have shown
that people choose media content to fit individual and group requirements, rather than adapting their life to what
the media prescribe or glorify.” (GANS, 1974, p. 32)
182
Pude ver, até aqui, os receios, críticas e acusações relativos aos desenhos animados,
jogos e quadrinhos japoneses. Da mesma forma que possui detratores, também encontra
defensores, alguns mais explícitos, outros menos engajados. Essa cultura centrada nos jogos
eletrônicos, animês e mangás têm ganho um número cada vez maior de aficionados nos
últimos anos.
81
Independente de se ser favorável ou não à crescente presença de produtos da indústria
cultural nipônica, um fato deve se reconhecido: ela está entre nós e têm influenciado a todos,
por vezes sem nos darmos conta. É praticamente impossível passar um dia sem ver alguém
como uma bolsa de Hello Kitty, sem passar por um comerciante informal vendendo bonecos
falsificados dos Power Rangers ou sem entrarmos em uma papelaria e ver um caderno com o
Pikachu (Pokémon) na capa. Esse é um fenômeno mundial, disseminado principalmente
através dos animês, porta de entrada para o universo da cultura pop nipônica.
82
É claro que, à parte o fato de que a presença nipônica não pode ser ignorada, é preciso
ver que a cultura pop nipônica não pode ser analisada levando-se em conta apenas seus
supostos aspectos negativos, como a violência e a sexualidade exacerbada.
Para esclarecer como se dá a inserção da violência na mídia, recorro a dados referentes
ao contexto japonês, onde o material em questão é produzido e veiculado. Kodaira (2000)
informa de uma pesquisa realizada em 1993 que chegou à conclusão de que a influência de
cenas e/ou situações violentas veiculadas pelos meios de comunicação de massa não afeta os
jovens de forma uniforme. Os efeitos variam mais de acordo com a forma como a violência é
exposta do que em função da mera exibição de atos violentos.
83
81
É difícil imaginar décadas atrás os mangás, animês e games penetrando tão amplamente no
mercado ocidental. Mas as cifras de exportação entre 1992 e 2002 extrapolaram 300% em vendas, abarcando
adolescentes e adultos e criando um novo nicho de mercado mundial: o público feminino.” (LUYTEN, 2004, p.
53)
82
“Um dos segredos para o sucesso dos animes é que as histórias trazem mensagens para todas as
pessoas, de todos os países.” (SATOMI, 2005, p. 34)
83
As teorias relativas à violência na TV seriam basicamente quatro: “1) Catarse, que postula que
183
Os dados analisados revelaram quatro tipos de programas violentos: recreativo,
empático, que satisfaz intelectualmente e que é acompanhado de risada. A natureza
dos quatro tipos de programas violentos foi analisada e mostrou-se que estes tipos de
programa estavam correlacionados com os efeitos previstos das quatro teorias da
violência na televisão. O efeito da catarse estava relacionado aos programas
violentos recreativos, enquanto que o efeito da aprendizagem por observação se
correlacionava com os programas violentos que satisfazem intelectualmente. O
efeito da dessensibilização se relacionava com os programas violentos
acompanhados de risada, e o efeito da enculturação estava relacionado aos
programas violentos empáticos. (KODAIRA, 2000, p. 105)
A partir desses resultados pode-se perceber que a violência per si não é
intrinsecamente negativa, podendo ter até efeitos positivos. Tal observação não isenta os
meios de comunicação de massa de uma grande responsabilidade, visto que, programas
que podem ter efeitos nocivos nos jovens em formação.
O argumento de que o uso constante (atenção, não estou falando necessariamente de
uso contínuo) de jogos eletrônicos poderia provocar embotamento mental não parece, em
princípio, encontrar respaldo unânime no meio acadêmico.
84
Uma pesquisa realizada em 1996
sobre os efeitos positivos dos jogos de computador afirmou que “Os resultados indicaram que
as crianças que jogam jogos de computador tinham excelentes habilidades perceptivas,
motoras e de processamento de informações.” (KODAIRA, 2000, p. 111)
Assim, trabalhos a partir da realidade japonesa, segundo os quais a existência de
manifestações da cultura de massa marcadas por cenas e atitudes violentas, como animês e
jogos eletrônicos não possuiriam elementos, em princípio, negativos. Tendo em mente que
tais produtos da indústria cultural nipônica são realizados visando o próprio mercado japonês
cuja sociedade não possui uma tradição de crimes violentos –, pode-se pensar na
uma participação vicária na agressão reduz o comportamento agressivo. 2) Aprendizagem por observação, pela
qual os comportamentos agressivos representados na televisão são aprendidos e imitados pelos espectadores. 3)
Dessensibilização, pela qual as pessoas se habituam à violência, deixando de ficar aborrecidas ou de se sentir
agredidas por ela. 4) Enculturação, que pressupõe que uma alta exposição à violência na televisão contribua para
concepções tendenciosas da realidade social.” (KODAIRA, 2000, p. 103)
84
“Os softwares de jogos, como elementos da inteligência artificial, iluminam as diferenças
fundamentais entre a força bruta de cálculo das máquinas e as habilidades humanas, que operam conforme
modelos e são freqüentemente intuitivas.” (GINSBERG, s/d, p. 80) Ginsberg está se referindo a jogos como
xadrez, gamão, pôquer, otelo, etc., em vista disso, tais resultados devem ser considerados com certa reserva
quando confrontados com os jogos preferidos pela maioria dos jovens (os de luta, como King Of Fighters, e de
tiro em terceira pessoa, como Counter Strike).
184
possibilidade de tais criações terem reduzido caráter negativo e podendo possuir fins
“terapêuticos”.
Pode ser que os japoneses tendam a aliviar seu estresse assistindo a programas
violentos na TV e jogando jogos violentos no videogame. Contudo, e mencionamos
isto anteriormente, a violência nas histórias japonesas é com freqüência seguida de
cenas mostrando os efeitos sobre as vítimas e o processo de seu sofrimento, algo que
pode diminuir a tendência para atitudes e comportamentos agressivos entre os
espectadores japoneses. (KODAIRA, 2000, p. 119)
85
O estabelecimento de uma classificação indicativa, de acordo com temáticas, faixas de
idade e horários de exibição é uma dessas possibilidades, juntamente com a edição dos
desenhos animados, alterando cenas mais eróticas e violentas de acordo com o horário em que
o animê será exibido esse recurso é muito atacado por parte dos consumidores do material
nipônico. Além de se buscar parâmetros para a exibição de material televisivo, também há um
importante papel reservado aos pais, o de submergirem no universo cultura juvenil
atualizando-se nos hábitos, valores, etc, compartilhados por seus filhos.
Os pais de adolescentes precisam perceber que podem combater a natureza
exageradamente sexual ou violenta de muitos programas de televisão, incluindo a
MTV, mas apenas se assistem a esses programas com seus filhos adolescentes e
explicam suas próprias opiniões. (STRASBURGER, 1999, p. 119)
Da mesma forma que os jogos são um dos alvos prioritários nas críticas dos pais, a
sexualidade, tida como exacerbada em muitos desenhos animados e revistas em quadrinhos, é
um outro ponto de preocupação que gera discussões com perspectivas variadas. Enquanto
existem os que acreditam que a exibição de temas polêmicos, como a homossexualidade, nos
desenhos nipônicos pode levar a uma confusão entre os jovens que estão descobrindo sua
sexualidade, há quem considere que o fato dos japoneses tratarem a sexualidade de uma forma
diferenciada é positiva, por colocar a diversidade em questão, vide o depoimento da mãe de
uma jovem de 17 anos que assiste animês yaoi:
85
Cabe aqui discutir se os jogos violentos que funcionam como forma de catarse para uma
sociedade muito formal como a japonesa, que mantém seus jovens sob extrema tensão preocupados com
rendimento escolar, têm os mesmos efeitos na sociedade brasileira.
185
Não acho que isso interferir na sexualidade da minha filha. Até porque sexo não
é opção, é orientação, e cada um vai ter a sua. Acho até que a presença desse tema
nos desenhos, de forma respeitosa, ajuda a trabalhar a cabeça das crianças para não
embarcar no preconceito. (HELENA e NEVES, 2006, p. 27).
De certa forma, o material nipônico, ao expor a sexualidade de forma diferente da que
tradicionalmente se no Ocidente, acaba por provocar questionamentos lembrando que no
Japão, mais do que transgressora, essa abordagem é (em grande parte) legitimadora da ordem
social.
Aqui, a possibilidade de existir outra maneira de lidar com o sexo traz polêmicas por
nos fazer ver como nossas noções, naturalizadas, são relativas.O que é exatamente que as
categorias e discursos dominantes determinam? A que nível operam? Alguém realmente
acredita identificar-se de todo coração com as categorias dominantes de gênero de sua própria
sociedade?” (MOORE, 2000, p. 18)
Embora o material yaoi e yuri seja produzido no Japão visando mais um público
heterossexual feminino, o que não exclui a possibilidade de ser lido por homossexuais
japoneses, essas obras também alcançaram bissexuais e homossexuais no Ocidente. Percebi
assim a complexidade existente no contato de uma cultura com material produzido por outra e
como esse material pode ser relido de forma peculiar, de acordo com a realidade do receptor.
É certo que o pop humaniza, mas o reverso desta moeda é que por ser reflexo da
cultura japonesa, carregando inevitavelmente o conjunto de valores, referências e
tradições de seu povo, nem sempre o pop nipônico é compreendido, sendo
freqüentemente interpretado de forma equivocada. (SATO, 2007, p. 24-25)
Tenho claro o fato de que as noções a respeito dos papéis de gênero são construções
complexas e peculiares a cada cultura em particular, entretanto, elas colocam-se, ou melhor,
nos são apresentadas como naturais. Essa naturalidade de tal realidade é de difícil assimilação
pelo jovem, em processo de definição e que, em diversas situações, tentará se adaptar
(geralmente de forma precária) a essas noções.
Discursos sobre gênero não são poderosos porque oferecem descrições acuradas de
186
práticas e experiências sociais, mas porque, entre outras coisas, produzem homens e
mulheres marcados por gênero, como pessoas que são definidas pela diferença.
(MOORE, 2000, p. 17)
Assim, ganha escopo a questão, que não é nosso objetivo, de discutir as possíveis
repercussões que uma obra, elaborada dentro de determinados valores e em função de certas
expectativas de um público relativamente conhecido, pode ter em uma realidade
consideravelmente diversa, com pressupostos ético-morais diferentes. A mera oposição e
crítica à entrada desse material é inconseqüente, visto que a penetração e/ou influência da
indústria cultural nipônica é um fato. Tal postura reproduz, mutatis mutandi, os ataques à
entrada do rock estadunidense nos anos 1950 e 1960.
Tomando tal exemplo por parâmetro, é interessante notar que o temor em relação à
presença de produtos da cultura pop japonesa ganhou força, dando maior destaque a um
pretenso conteúdo negativo existente na mesma, a partir dos anos 1980. Até esse momento, a
existência de material traduzido e/ou dublado vindo do Japão era consideravelmente restrito,
aparecendo esporadicamente – mas mesmo assim, tendo uma grande (porém ainda
imperceptível) influência em toda uma geração.
86
Atualmente, a facilidade de acesso através da Internet, bem como a sua disseminação
através dos meios de comunicação de massa, criou a possibilidade de se “importar” do Japão,
de forma constante, a sua produção artístico-cultural. Mais do que meramente criticar um
acontecimento que é real, e contra o qual (aparentemente) pouco pode ser feito, devido às
necessidades do mercado e à existência de uma demanda, é preciso estar atentos às possíveis
conseqüências, posto que
(...) por meio da animação difundiram-se internacionalmente aspectos de valores e
referências culturais japoneses, assim como o cinema hollywoodiano serviu de
86
“De certa forma, os heróis e os monstros japoneses sempre rondaram minha vida – e a de outros
de minha geração. Dos bonequinhos dos Transformers aos enlatados de Ultraman e Jaspion, da descoberta dos
quadrinhos 'sérios' como Akira aos finais de tarde (des)ocupados assistindo a Cavaleiros do Zodíaco. Fanáticos
ou não,todos tivemos pelo menos uma borracha do Speed Racer ou um videogame Sega ou Nintendo.” (ASSIS,
2005, p. 125)
187
difusor dos valores, do estilo de vida e da estética norte-americanos. Isso se verifica
não apenas na constatação pacífica de aspectos curiosos ou exóticos que aparecem
nessas produções, como também em situações que geram interpretações às vezes
equivocadas e conflitantes com a cultura local onde os desenhos japoneses são
exibidos. (SATO, 2005, p. 29)
A norma, até o momento, tem sido a mera crítica, muitas vezes fruto maior de
desconhecimento e preconceito do que de um juízo produzido a partir de uma análise mais
meticulosa – posso citar como exemplo uma professora de ensino fundamental (amiga minha)
que, ao pedir-lhe para assistir um animê e me dar sua opinião como mãe e professora,
recusou-se a assisti-lo sob o argumento de que era contra esse material, e não assistia a esse
tipo de coisa. Outra colega de trabalho, professora de alfabetização e pedagoga, tinha opinião
semelhante. Eu lhe emprestei uma revista e um DVD com um desenho animado no estilo
shojo e ela reviu a sua opinião.
Gostei mais, achei mais interessante, é mais tranqüilo, não é tão violento, diz para
buscar pelos objetivos, correr atrás por mais que se tenha dificuldade, buscar um
sonho. (Franciane, 27 anos)
Dessa forma, se debruçar sobre animês e mangás que lidam com sexualidade e
violência, atacá-los sem conhecê-los é uma estratégia de pouca rentabilidade frente a esses
especialistas juvenis, que acusaram seus pais de ignorância e preconceito, adotando com isso
uma postura defensiva, gerando munição para um conflito geracional.
Também deve-se ter claro que muitas das discussões levantadas pelo material
nipônico, como a fluidez no que concerne à sexualidade, não são invenção japonesas, nem são
novidade no Ocidente, podendo ser, talvez, consideradas elementos que ganharam força
dentro de um processo de estabelecimento de posturas alternativas no tocante à sexualidade e
ao gênero.
New forms of sexuality and of gender identity are taking shape, and it might be
easier to characterize this as a process of 'Westernisation' or 'trade in exports' were it
not for the fact that so-called Western gay and lesbian culture and other forms of
popular culture have long depended on influences from non-Western sources.”
(MOORE, 2003, p. 159)
188
Indiferente a isso, essa literatura, por possibilitar o contato com uma temática ainda de
difícil assimilação pelos meios de comunicação de massa, permitiu a um grupo de jovens
que não encontrava no universo dos quadrinhos e dos desenhos animados questões que
estariam em consonância com seus desejos e interesses trabalhos que tratavam de questões
próximas do seu dia a dia como as angústias e os conflitos dos relacionamentos (com pouco
destaque nas revistas em quadrinhos tradicionais).
É legal ter desenhos em que os personagens são abertamente gays e isso não
interfere na forma como são aceitos no grupo deles. Mostra que o preconceito está
acabando. Que bom diz Júlia, admitindo que nem todos os pais pensam como
Consuelo, e por isso alguns colegas vêem esses desenhos escondidos. Tem pai que
proíbe. Bobagem, porque ninguém vai deixar de ver por isso. Vai é perder a chance
de uma conversa aberta em casa. (HELENA e NEVES, 2006, p. 27)
Posso dizer que o material nipônico, por possuir uma diversificação enorme de
propostas, estilos, etc., abre caminhos para a expressão da sexualidade que o material
ocidental, ainda preso a tipologias de gênero mais fixas, não consegue suprir. Tal sutileza
pode explicar a presença de tantos jovens dispostos a assumir e/ou exibir, pelo menos nos
eventos, a sua sexualidade.
A representação de si passa pelo caminho da aparência física, que é um elemento bem
destacado entre os aficionados por animê e mangá. Esses jovens, como disse antes, se
apresentam nos eventos trajados com os mais diversos adereços através dos quais sinalizam
sua simpatia pelos seus personagens preferidos.
O conjunto desses comportamentos de consumo, ou igualitários, é contemporâneo
de uma oscilação decisiva da qual a estrela do pós-guerra estabeleceu o exemplo: a
afirmação definitiva da condição feminina. Tudo muda a partir dos anos 1960: é
impossível pensar, como antes, no horizonte do masculino e do feminino. (...) Um
segundo feminismo se impôs, além da igualdade abstrata, privilegiando a
problemática do indivíduo, o 'desenvolvimento pessoal', a realização de si.
(VIGARELLO, 2006, p. 175)
Esse componente andrógino é muito presente no universo analisado, em parte pelas
transformações ocorridas na segunda metade do século XX que permitiam uma abertura no
que se refere às formas de expressão de si. As fronteiras de gênero se tornaram,
189
aparentemente, mais fluidas, permitindo o recurso à uma feminilização como maneira de se
apresentar de forma a realçar uma singularidade.
Essa atitude seria semelhante à dos freqüentadores da cena musical noturna carioca,
estudada por Fernanda Eugênio (2006), onde há uma atitude mais autônoma no que se refere à
construção de si. A partir de uma apropriação estética e musical, um conjunto de referências
modernas se aproxima de uma visão mais flexível das relações de gênero. Nesse contexto, a
homossexualidade, se não é totalmente aceitável, é parcialmente compreendida.
A “cena moderna” faz-se zona fronteiriça, lugar de sujeitos que constroem suas
representações de si mesmos recorrendo menos à vida sexual que levam e mais à
adesão estética às musicalidades como modo de vida, a orientar todo um encarnado
trabalho de incremento corporal. (EUGENIO, 2006, p. 161)
Alguns dos freqüentadores dos eventos anime possuem diferentes maneiras de lidar
com o seu corpo, utilizando-o por vezes para exercitar uma representação da sua sexualidade.
Não é incomum ver garotos com aparência andrógina ou efeminada, o que em tese, não
significa necessariamente uma opção homossexual. Essa pluralidade de opções tem ganho
maior espaço nesses últimos quarenta anos, com a revisão do que seria o conceito de
masculino.
A masculinidade hegemônica é definida como um modelo central, o que implica
considerar outros estilos como inadequados ou inferiores. Isso abre caminho para
uma abordagem mais dinâmica da masculinidade: a divisão crucial entre uma
masculinidade hegemônica e várias subordinadas que lhe servem de contraponto e
antiparadigma. (CECCHETTO, 2004, p. 63)
Ainda que, pelo caráter liberal que caracteriza muitos mangás e animês, haja maior
aceitação de outras possibilidades de postura masculina, isso não significa que elas sejam
totalmente aceitas. Um dos responsáveis pela sala Yaoi no Anime Dreams 2007 me afirmou
que a criação da sala foi uma conquista e que ocorrem atitudes de deboche para com seus
freqüentadores. O fato de não corresponder ao perfil masculino hegemônico pode implicar em
preconceito, ostracismo social, etc. Dessa forma, assumir uma postura diferenciada da
predominante traz em si um certo preço.
190
A atitude de deboche de alguns jovens em relação aqueles que apresentam uma
aparente homossexualidade ou bissexualidade é compreensível. Mesmo tendo sido educados
dentro de um contexto marcado pela ideologia do individualismo que defenderia a livre-
escolha individual –, também carregam elementos tradicionais hierárquicos onde os papéis de
gênero estariam bem definidos.
Essa ambigüidade transparece nas brincadeiras, geralmente não indo além disso. Com
isso se jovens que, mesmo que às vezes a contragosto, convivem jovens efeminados nos
eventos, entendem a presença dos mesmos. “Pela própria velocidade do processo no Brasil, o
que se tem é a aquisição de novas identidades (articuladas de modo complexo e variável aos
novos ideais), que se sobrepõem às antigas identidades posicionais, sem, contudo, alterá-las
substancialmente.” (FIGUEIRA, 1987, p. 17-18)
Permite-se ao jovem se expressar, desde que dentro de um ambiente saudável cabe
lembrar aqui que não se vende bebida alcoólica nos eventos anime, o que os diferencia de
boates, micaretas, etc. Dessa forma, o interesse pelos mangás e animês é acompanhado por
alguns pais com olhar vigilante como muitos aficionados são menores de 18 anos, não é
incomum ver a presença de pais ou responsáveis nos eventos.
A diversão é possível, desde que controlada, e a transgressão é permitida, desde que
não prejudique as atividades regulares dos jovens. Essa atitude que oscila entre a liberalidade
e a vigilância é bem característica da tensão entre os ideais hierárquicos tradicionais e as
novas perspectivas igualitárias mencionadas por Sérvulo Figueira. Essa situação parece
permear a vida do jovem brasileiro, também sendo perceptível entre os participantes da “cena
moderna”, cuja atitude consistiria em
(...) uma maneira de “estar” fundamentalmente urbana, mergulho encarnado em uma
particular representação do 'ser jovem', aquela que faz deste momento do ciclo da
vida o locus privilegiado para uma “transgressão tolerada”, associando-o a um certo
hedonismo autorizado. A poética e o dizer-se desses sujeitos exprimem-se em uma
estética irrequieta, colorida e andrógina, que aponta para uma relação específica com
191
o corpo e com os espaços, cristalizada em toda uma “montação” de si (...).
(EUGENIO, 2006, p. 158)
A menção a esse grupo é importante por ele possuir características bastante próximas
às que caracterizam um determinado perfil dos aficionados por Japop, aqueles que acabei de
mencionar como sendo alvo de olhares suspeito pelas sua aparência efeminada.
Compreender como este importante segmento social urbano, jovem,
“modernizante” e “formador de opinião” [os freqüentadores das casas noturnas da
zona sul do Rio de Janeiro] elabora identidade justamente por intermédio do recurso
à não-elaboração pode ajudar a compreender uma das possíveis reordenações em
curso na sociedade brasileira no que toca à manifestação do estigma do desejo
homoerótico.” (EUGENIO, 2006: 164)
Essa concepção de atitude moderna aparece como uma das referências para alguns
otakus. Mesmo que possam não estar na “cena moderna” da noite das casas de música
eletrônica, eles fazem parte do mundo anime (vide a criação do Espaço Yaoi). Mais
recentemente, esse segmento moderno ganhou uma atividade dançante, que se aproxima do
contexto da música eletrônica, estilo preferido pelo grupo estudado por Eugenio.
pouco tempo surgiu o ParaPara, tendo tomado contato com essa prática no Anime
Park, em 2006. Para mim, tratou-se de um grupo de jovens dançando coreografias,
acompanhando dois dançarinos e imagens de um vídeo com a a encenação da coreografia.
Essa atividade, que tem caráter mais dinâmico e que remete ao universo das casas noturnas
com músicas dançantes, tem ganho cada vez mais espaço, como no Anime Dreams 2007.
Para quem curte música, as atrações também não foram poucas. Além dos
tradicionais animekê, houve show, apresentações de banda e uma novidade, a
presença foi o B.P.P.D.A. (Brazilian ParaPara Dance Association), ParaPara é o
nome de uma dança originária do Japão, nela você acompanha o ritmo da música
com os pés e faz movimentos com as mãos, é semelhante a 'disco'. É muito
engraçado. (FONSECA, 2007, p. 47)
O ParaPara aparece assim como mais uma possibilidade de agregar jovens
aficionados por cultura pop nipônica, no caso, o interesse aqui é a música. Enquanto que o J-
Pop e o J-Rock estão presentes na abertura de alguns desenhos animados, o ParaPara acaba
por ser uma atividade voltada basicamente para a música. O ParaPara é basicamente um
192
estilo de dança, diferentemente do Anime Daiko, um grupo paranaense criado por Dam
Camargo. Ele teve a idéia de utilizar a percussão japonesa (com tambores chamados taikos)
para tocar músicas de animês, com as pessoas dançando em círculo reproduzindo coreografias
inspiradas nos movimentos dos personagens.
Enquanto que o Anime Daiko está fortemente ligado ao universo dos animês e mangás,
sendo uma invenção brasileira, o ParaPara é muito mais um elemento da cultura pop
nipônica do que do mundo anime. Ele se encontra no entrecruzamento de tendências que têm
como convergência algum elemento japonês, que aparece como garantia de diferença,
autenticidade e/ou de modernidade, de forma semelhante à “cena moderna”.
6.5 Mulheres no Planeta dos Homens
Personagens masculinos com aparência feminina e personagens femininos com
atitudes e trejeitos masculinos são relativamente comuns em alguns dos estilos de mangá e de
animê. Uma possível explicação para essa aparência e atitude andrógina de parte dos
aficionados seria uma mencionada liberalidade (para os padrões ocidentais) na
representação das posições de gênero bastante presente nos mangás shojo, que enfatizam
relacionamentos.
Novas formas de expressão de si, que não se limitam aos parâmetros tradicionais de
masculino e feminino, presentes no material produzido pela indústria cultural nipônica
surgem como alternativa, permitindo uma diferenciação. Embora tenham sua lógica dentro
das tradições culturais japonesas, esses personagens acabam por ser relidos no Ocidente à luz
de uma outra dinâmica cultural.
193
O investimento na aparência surge como sinal exterior de uma definição de si, como
tomada de posição. A preocupação com a beleza, nas suas diferentes formas (mesmo as que
fogem aos padrões tradicionais), permite a esses jovens explorar novas possibilidades de
construção de si.
A explosão inesperada do embelezamento, suas variedades, sua extensão, não se
explicaria apenas pelas práticas de consumo ou o imaginário da igualdade. Uma
mudança também profunda acompanha esses dados, uma ruptura que diz respeito à
identidade: investimento particular na imagem individual e seu sentido. Mais do que
nunca esta identidade se reduz hoje ao próprio indivíduo, sua presença, seu corpo. A
'grande sociedade' não diz mais ao indivíduo aquilo que ele deve ser. (...) O
indivíduo, e apenas ele, é hoje responsável por suas maneiras de ser, suas 'imagens'.
(...) Desse jogo de 'mostrar' levado mais longe: a ambição crescente de promover
o visível, esse trabalho sobre a beleza como perfeição do indivíduo. (VIGARELLO,
2006, p. 181)
Embora tenha testemunhado certa indisposição para com os emos. Esses jovens, cujo
gosto musical seria o emotional hardcore e que teriam uma postura emotiva, frágil e que
cultivariam um gosto por roupas, pretas e/ou listradas, cabelos coloridos e franjas sobre os
olhos, são uma presença regular nos eventos.
Sua aparência quase andrógina, que muitos rapazes aparentam uma certa delicadeza
e fragilidade quase feminina, é singular. Contudo, não parecem se preocupar com as reações
alheias. Em verdade, parece haver o interesse em ser visto e percebido. Essa é uma tomada de
posição, mesmo que sob olhares de estranhamento.
Uma das questões mais atuais é a extrema valorização da aparência, que traz consigo
graves conseqüências. Deve-se ressaltar a exigência velada, sob o risco de se cair em um
ostracismo social, de se corresponder aos padrões estéticos estabelecidos. O isolamento, a
estigmatização e o bullying podem ser alguns exemplos do preço a se pagar por não se
enquadrar dentro do perfil hegemônico nas representações do que seria uma juventude
positiva e vitoriosa. “O imperativo do cuidado, da vigilância e da ascese constante de si,
necessário para atingir e manter os ideais impostos pela ideologia do healthism e do bodyism,
exige uma disciplina enorme.” (ORTEGA, 2006, p. 45)
194
Em um mundo extremamente competitivo onde o comportamento adequado (sociável
e espirituoso), o visual aceitável (estilo antenado com a moda atual) e o corpo definido (seja
através de atividade física, de dieta ou de intervenção cirúrgica) acabam por ser vistos como
sinais do domínio e do controle de si, o não cumprimento desses requisitos pode significar um
fracasso social.
O universo da cultura pop nipônica aparece para muitos otakus como depósito de
elementos para a definição de uma identidade contrastiva em relação à concepção hegemônica
do que é ser jovem. É visível, por exemplo, a diversidade de atitudes e posturas masculinas.
Ao mesmo tempo em que os jovens correspondem visualmente a um padrão relativamente
homogêneo – mochilas, roupas pretas e desalinhadas – eles guardam especificidades na forma
de como compõem, ou melhor recompõem esses elementos.
Enquanto que os otakus japoneses seriam em sua maioria homens, sem capacidade de
socialização com o sexo oposto, os eventos brasileiros possuem uma grande quantidade de
casais de namorados, e de moças e rapazes tentando se aproximarem uns dos outros.
Essa exploração de diferentes composições e recomposições de estilo, são ainda mais
exploradas pelas jovens, que compõem uma parcela considerável do número de
freqüentadores dos eventos. Essa grande participação feminina nos eventos, visível nos
grupos de amigas e nos casais de namorados, seria uma diferença entre os otakus brasileiros e
seus equivalentes nipônicos, um público majoritariamente masculino. Uma de minhas
entrevistadas me confirmou que, a partir do ano 2000, houve aumento do número de moças
nos eventos.
Agora tem bastante menina, mas em 2000, quando não havia eventos grandes,
mostras, eventos pequenos, passava anime o dia inteiro, onde a maioria eram
homens mais velhos, a maioria era adolescente para cima. (Caroline – 21 anos)
O interesse feminino pelo mundo anime teria aumentado com a publicação de mangás
próximos do estilo shojo, com algum destaque para os relacionamentos afetivos, como Video
195
Girl Ai e Samurai X, Guerreiras Mágicas de Rayearth, etc., pela editora JBC, no início dessa
década.
Não são apenas as adolescentes aficionadas pela cultura pop nipônica que se fascinam
por produtos desse universo. Édna, esposa de meu colega de trabalho Roger, assitia Speed
Racer e gosta muito da personagem Pucca, que vive tentando conquistar o amor do enfezado
Garu, um ninja.
Eu sou alucinada pela Pucca. Não tem explicação. Eu acho que é porque ela luta
pelo amor dela. Toda delicada, mas forte. Eu acho que me identifico com esse lutar
pelo que se quer. (Édna, 37 anos)
Da mesma forma que Édna, as jovens brasileiras apodem recorrer a uma grande
diversidade de referências de estilos, e de atitudes, originários do Japão. Essas tendências não
envolvem apenas o elemento do vestuário, trazendo consigo uma certa medida de atitude, o
que tem ganho força no Japão atual, onde a importância social da mulher tem aumentado.
Apesar de a sociedade tradicional japonesa atribuir um lugar secundário à mulher, houve uma
maior flexibilização desse papel feminino na sociedade japonesa.
(...) as japonesas têm avançado incansavelmente no mundo da moda e estão na
vanguarda cultural décadas. É provável que você tenha idéia de quem sejam e
com quem se parecem. Até os novatos associam facilmente a imagem da Kogal
garota inocente, ainda que sexy, de uniforme escolar e meias folgadas nos
tornozelos. Bem ou mal, elas são símbolos do país, assim como o quimono da
gueixa ou o sarariman (trabalhador de escritório) em seu serviço asfixiante.
(MACIAS e EVERS, 2007, p. 7)
Com isso, desde os anos setenta, surgiram diferentes tendências femininas,
consumidas basicamente pelas jovens. Utilizo aqui a classificação esboçada por MACIAS e
EVERS (2007):
a) as “garotas más”, aquelas que poderiam ser qualificadas como delinqüentes juvenis as
garotas sukeban (que cometiam pequenos furtos) e as Lady's (com visual de motoqueiras);
b) as “garotas alternativas”, com roupas e maquiagens exóticas, como as goth loli, com suas
roupas brancas ou negras e maquiagem pálida, ou com roupas altamente customizadas, como
196
as decora, com uma diversidade de acessórios continuamente renovados e alterados;
c) as “garotas sexy”, que gostam de dançar, de se vestir com roupas caras e de bronzear-se
para fugir da brancura nipônica as takenokozoku, que dançavam ao ar livre ao som dos seus
toca-fitas, as kogals, que bronzeavam a pele e usavam roupas colegiais, e as ganguros, que
eram praticamente negras, respectivamente.
Assim, as jovens podem expressar sua identificação com seus personagens preferidos,
representados nos bottons e chaveiros que agregam a suas bolsas e mochilas, cada apetrecho
dizendo algo sobre aquele que o ostenta. Um adereço de Sailor Moon, por exemplo, pode
significar um sinal de meiguice e inocência ou de força e determinação, dependendo da
guerreira escolhida. Uma aluna minha sinalizava sua simpatia pela determinação e força da
Sailor Júpiter através da utilização do nome dessa guerreira como login do seu email.
Da mesma forma que existe uma diversidade de personagens masculinas com atributos
e trajetórias diferentes, capazes de gerar empatia com algum aficionado, também existem não
só personagens femininas com as quais as jovens possam se identificar, mas sim também uma
grande variedade de tendências de comportamento e de vestuário.
Dentre os diversos estilos existentes no Japão, (Sukeban, Takenokozoku, Lady's,
Kogal, Ganguro, Mamba, Kigurumin, Gal, Nagomu Gal, Gothloli e Decora), um dos que me
pareceu mais visível nos eventos brasileiros, seria o das Goth loli. Esse termo é originário das
palavras em inglês gothic (gótico) e lolita (referência à adolescente sedutora do romance de
mesmo nome escrito por Vladimir Nabokov). Esse estilo tem sido bastante presente nos
eventos, em parte devido a presença de muitos adolescentes que gostam de bandas com
temática gótica, como Evanescence, NightWish, Lacuna Coil, etc.
À medida que a música gótica continua a se desenvolver nos anos 90, grupos como
X Japan e Buck Tick (...) iniciaram uma fase de muitos experimentos em moda. Os
integrantes tentavam ter um visual cada vez mais diferente, aplicando maquiagens
elaboradas no rosto e vestindo roupas que misturavam gótico e punk. (MACIAS e
EVERS, 2007, p. 120)
197
O refinamento visual desse estilo também atraiu a atenção dos que gostam de bandas
de J-Pop e J-Rock que se destacam mais pela atenção para com a aparência do que com a
própria música uma mistura de pop, rock e metal. L'Arc~en~Ciel, X JAPAN, etc, são bandas
desse estilo musical e que são presença relativamente constante nos vídeos exibidos nos
eventos, bem como nos estandes onde são vendidos DVDs de shows. Recentemente, o
imaginário lolita-gótica reapareceu em várias animações e comics, como Doll, Portrait de
Petit Cossette, Rozen Maiden e God Child. O estilo apela às fãs que aderem ao cosplay:
vestir-se como as personagens bidimensionais favoritas.” (MACIAS e EVERS, 2007, p. 125)
Com esse visual, as jovens apresentam uma alternativa à moda de verão,
tradicionalmente mais despojada. A produção visa evidenciar o refinamento do vestuário e o
desejo de mostrar que houve um cuidado especial para com a aparência. Como disse Victoria
Fattore, dona de uma loja especializada nesse estilo, no Rio de Janeiro: “O estilo não é para
mostrar a pele, nem para dar a impressão de que acordamos e vestimos qualquer coisa.
Queremos nos produzir.” (BRAILE, 2007, p. 29)
87
87
Sobre a expansão da cultura gótica cf BADDELEY, 2005.
198
7. OS AFICIONADOS POR CULTURA POP NIPÔNICA
Existe uma diferença, talvez abissal, entre o
legítimo e o mero admirador. é aquele que se
interessa por um determinado assunto e vai a
fundo nele, sem necessariamente se importar com
modas ou altos e baixos. O admirador comum
nem sempre leva seus gostos a sério por mais do
que alguns meses. Todos nós fomos, em algum
momento, admiradores comuns. (SETA, s/d, p. 3)
Comunidade - e que comunidade! - para reunir os
otakus de todo país, que nao se importam de falar
que veem “desenhos animados japoneses” ou q
leem “gibis ao contrario”Anime e mangá é muito
bom! E quem não gosta é pq não conhece! [zuera,
gosto é que nem cu...] (Descrição da comunidade
Sou Otaku, com Orgulho! Disponível em
<http://www.orkut.com.br/Main#Community.asp
x?cmm=2394442>. Acesso em 04 fev. 2009)
199
Uma grande parte da juventude atual é influenciada pelos meios de comunicação de
massa. Esses meios “oferecem” diferentes referenciais, os quais são trabalhados pelos jovens.
É visível o fato de que os padrões tradicionais de comportamento não possuem uma grande
importância para uma parte da juventude atual – tida como apolítica, descrente, individualista.
“Rebelde hoje é antes de tudo uma marca. A juventude aparece rebelde e revolucionária nos
anúncios de desodorante, mas... alguma coisa desse sentimento insurrecional a que nos
referimos parece ter se perdido.” (MOURA, 1987, p. 44).
Essa imagem está um pouco exagerada. Ela talvez se deva, em parte, por se esperar da
juventude atual que ela se apresente como uma força de rebeldia, de contestação, nos moldes
da juventude dos anos 60, simbolizada pelo movimento estudantil de 1968. De acordo com tal
expectativa, os jovens dos dias de hoje seguramente parecem bem pouco rebeldes.
Temos que deixar de pensar a rebeldia em termos tão reativos (resiste, recusa, opõe-
se etc.). Ela parece ter uma positividade própria nos dias atuais. Não existe mais a
pretensão de ser rebelde em favor de um mundo novo, mais justo... O único
compromisso da rebeldia hoje é ser rebelde. Seu efeito não se produz mais como
proposta, mas como ato: ação positiva de criar intensidade, atrito, de romper, e
desorganizar, na medida em que se escapa da ordem, da organização. (MOURA,
1987, p. 48)
A juventude atual composta por membros das camadas médias, por ser filha de pais
liberais que lhes permitiram o (quase) pleno exercício da sua individualidade, não tem porque
ser rebelde da mesma forma que a geração que a antecedeu. Sua rebeldia é expressa, mais do
que exercitada, através de atitudes e de símbolos. Ser rebelde é poder se expressar sem ter que
possuir justificativas ideológicas ou preocupações sociais imediatas.
(...) se a família mudou, se mais estímulo para que cada membro dentro dela
revele sua natureza mais íntima, mais particular, e se, por outro lado, os jovens
parecem obcecados pelos signos do sucesso e da competência, desaparece então o
conflito, diluído na valorização das diferenças, da individualidade. Todos são
exortados a 'se assumirem' como são. Desaparecem a rebeldia, o inconformismo, a
insurreição, que revelam (segundo esta lógica) sua natureza de modismos, 'ismos'
quaisquer sem a menor força de atuação sobre a ordenação do social. (MOURA,
1987, p. 47)
A partir da minha experiência, tanto como professor como pesquisador, foi possível
200
perceber que jovens com alguns referenciais relativamente comuns de valor, de
comportamento e de consumo. Esses referenciais se manifestam de diferentes formas: estojos,
pastas, “grafites”, “pixações”, rabiscos, desenhos, músicas, roupas, piercings, etc.
É possível perceber que os jovens utilizam um certo conjunto de referências. Esses
referenciais são produtos da indústria cultural que acabam por ser manipulados, de acordo
com a identificação particular de cada jovem. Essa recorrência nos permite postular que tais
referências seriam tentativas de materializar representações de valores particulares desses
jovens.
No momento atual, de ocaso das ideologias e do início da pós-modernidade, novos
modelos se tornaram disponíveis para esses jovens. Alguns desses referenciais são
preocupantes para os pais e para a maior parte da sociedade civil.
Essa discussão sobre os modelos éticos e comportamentais da juventude atual é
essencial para se entender a especificidade que constituiu o estado de juventude e aquele que
o vive. O jovem, nas sociedades capitalistas ocidentais, onde os limites entre a infância e a
maturidade são fluidos e imprecisos, é marcado pela sua liminaridade. Ele é um ente
indefinido, por isso perigoso – principalmente para si mesmo.
Por não poder mais ser tratado como criança e por ainda não poder interagir
socialmente como um adulto pleno, o jovem aparece como um ser marginal no limiar entre a
infância e a idade adulta. Essa situação é claramente vivida, pelos jovens em geral,
principalmente no momento da adolescência, como mostrou o jovem entrevistado por Lucia
Rito: “Nós adolescentes somos tratados às vezes como crianças, às vezes como adultos.”
(RITO, 1993, p. 26).
201
7.1. Juventude e Produtos: Diferentes Grupos e Tendências
A identificação social do jovem está consideravelmente ligada à inserção em um grupo
uma pequena comunidade” que, diferentemente da “grande sociedade” que o excluiu por
sua diferença, o aceita por causa da mesma. Esses grupos consistem de associações
geralmente espontâneas e informais, estruturadas a partir de preferências e/ou gostos
comuns.
88
Sem querer entrar dentro da diversidade de grupos existentes no meio urbano,
comentarei alguns a título de contextualização da realidade na qual os otakus estão inseridos.
Algumas das identidades que percebi, principalmente entre meus alunos da rede municipal e
estadual, se referiam a gêneros musicais pagode, “pop” e “funk”.
Esses estilos geralmente não são tidos pela crítica musical como possuidores de grande
mérito artístico, com raras exceções. Essas pessoas são adultas, letradas, formadoras de
opinião. Sendo assim, jovens (muitos de comunidades carentes, excluídos e pouco letrados) se
identificam com uma proposta que é vista como sendo contrária ao sistema, embora ela
própria não possua, em princípio, tal posicionamento o que não ocorre, por exemplo, com o
rap, tradicionalmente ligado à idéia de contestação.
Uma série de entrevistas de seleção de 110 jovens, entre 14 e 22 anos, para o
Programa de Profissionalização do Núcleo de Educação: trabalho e cidadania, na “Grande
Tijuca” (composta por 29 favelas com cerca de 50 mil habitantes) já chamava a atenção, em
1999, para isso:
(...) todos demonstraram bom nível de conhecimento em música teen (expressão
utilizada por um deles) e preferência pelo funk e rap. Mais do que a
88
Para mim, essacomunidade de estigmatizados”, estando prenhe de um valor diverso daqueles
ideais cristalizados característicos do mundo ocidental e adulto, poderia ser lida dentro da perspectiva de Victor
Turner e da sua oposição entre “communitas” e “societas”, vide TURNER, Victor. O Processo Ritual: Estrutura e
Antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.
202
instrumentalidade do consumo midiático, fica evidente aqui a aproximação entre
esses gêneros musicais e a visão de mundo e condição de classe desses jovens.
(GOUVEIA, 2000, p. 67)
Uma influência anti-sistema, muito presente na realidade atual das escolas é a do
narcotráfico, cujos líderes estão presentes nas mochilas, mesas e paredes. Nem sempre essa
presença significa uma vinculação do jovem com o “movimento” – como o tráfico de drogas é
chamado pelos nativos. Contudo, uma clara consciência de que os traficantes são
poderosos, principalmente nas comunidades onde muitos alunos de escolas públicas vivem.
Uma outra linha, também tida por muitos como marginal que, contudo não está (a
princípio) ligada à criminalidade, apesar de por vezes ser associada à violência, é a dos
“roqueiros”, chamados assim por alguns colegas professores, e até mesmo alunos. O
diferencial aqui é a referência explícita a um estilo que se propõe a ser transgressor e, em
certa medida, revolucionário e transformador: o “rock”. Alguns dos jovens dessa linha de
“roqueiros” com os quais tive contato, fazem um investimento cultural relativamente intenso.
Esse investimento também é visível no universo dos aficionados por produtos da
indústria cultural japonesa, dentro do qual também existe um ramo que possui interesse por
heavy metal ou hard rock. Alguns desses jovens acabam fundindo as duas preferências e
criando bandas de J-Rock, muitas das quais caracterizadas por um som consideravelmente
pesado, cantado em japonês. Esses aficionados por J-Rock possuem um visual característico
dos consumidores do estilo metal:
(...) cabelos longos, camisetas pretas podendo ou não ter estampas de capas de
CDS, logotipos de bandas ou foto dos integrantes (pode-se afirmar que literalmente
vestem a camisa do estilo musical que ouvem) –, calças jeans também negras ou em
tom escuro, botas de couro (boots, como as chamam) e casacos ou coletes de couro
ou jeans, no estilo motociclista. Alguns podem ter brincos, piercings, tatuagens,
cavanhaques, braceletes de couro com pinos de metal (os ‘spikes’), pulseiras estilo
hippie, colares com motivos característicos (místicos, medievais ou símbolos
religiosos). Muitas das mulheres do grupo têm o cabelo pintado de negro ou ruivo,
podendo ter mechas de cores como roxo, verde ou azul; vestem-se em tons escuros,
geralmente de preto, com calças jeans, minissaias, ou saias longas, camisetas com
menos destaque para ou nenhuma referência a bandas, tops, espartilhos, cintos com
elementos em metal prateado (jamais dourado, tido como cafona e cor de adereços
203
‘de patricinha’), colares, brincos, pulseiras, muitos anéis, unhas com esmalte negro
ou outros tons escuros, tatuagens, piercings e botas de couro. Temas medievais,
símbolos orientais [grifo meu], egípcios, cruzes e cruzes invertidas (a chamada cruz
satânica), pentagramas (tradicionais ou invertidos, estes também chamados de
satânicos) e mais raramente motivos celtas ou nórdicos podem ser vistos em suas
vestimentas, brincos e pingentes. (LOPES, 2007, p. 169-170)
Um outro segmento que se poderia destacar e que nutre críticas à civilização atual são
os que nutrem algum interesse, ainda que superficial, pelo mágico, pelo oculto em alguns
casos, até pelo sombrio. Esse grupo possui uma presença maior entre os jovens de camadas
médias e limítrofes, sendo composto principalmente por aqueles com maior acesso à
literatura.
Esses jovens aficionados por Star Wars, pelo culto Wicca e por grupos como
Nightwish e Evanescence, são, em grande parte, leitores dos romances de terror escritos por
André Vianco e dos livros das séries Harry Potter, Senhor dos Anéis e Crônicas de Nárnia
essas séries são citados aqui pelo fato de terem aparecido mais de uma vez entre as referências
de leitura dos aficionados com os quais conversei.
89
Esse interesse pela leitura de obras de fantasia é compartilhado pelos consumidores de
Japop. Cabe lembrar que uma das manifestações dessa cultura é através dos mangás,
quadrinhos que a partir do seu próprio aspecto formal devendo ser lidos da direita para a
esquerda – lhes conferem um estatuto diferenciado dos quadrinhos ocidentais.
Os mangás, os animês e os jogos eletrônicos aparecem, portanto, como elementos que
atraem a atenção dos que gostam de leitura (mangás), bem como dos que gostam de se
expressar através:
a) da escrita (produzindo fanfictions relativas a suas histórias e personagens preferidos);
b) da arte (visível na arte do desenho, muito comum nas mesas de sala de aula e nos cadernos
escolares);
89
Quanto às obras de J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis, pode-se ter um painel geral das mesmas através de
DURIEZ (2006).
204
c) da tecnologia (através da produção de fanfilms, de anime videos, da tradução e legendagem
de episódios a serem disponibilizados na Internet);
d) da música (na iniciativa de criar bandas de J-Pop e J-Rock, além de se cantar no animekê),
etc.
90
Assim, o mundo da fantasia que se estabelece em torno da cultura pop produzida no
Japão, está longe de ser passivo e solitário. O isolamento é possível, mas a interação e troca
parece muito mais comum, principalmente em função dos interesses comuns dos aficionados,
o que os leva a procurarem uns aos outros para trocarem informações, material, etc.
91
É interessante notar que esse segmento atende a múltiplos grupos, que, dentro de uma
proximidade considerável, guardam diferenças sutis. É fácil compreender porque o mago
Harry Potter, pelo fato de ser um adolescente com grandes poderes, é um personagem de
grande identificação com o público jovem que como ele sofre e aprende na sua luta no
caminho tortuoso da passagem para a maturidade.
as sagas Senhor dos Anéis e Crônicas de Nárnia, com sua miríade de personagens,
oferece uma série de possíveis modelos de comportamento. Entretanto, a força dessa série está
em criarem cosmologias complexas, no retrato de um mundo diverso do nosso, onde a
nobreza e a amizade são recompensadas e o mal vencido. Como bem destacou Levi-Strauss:
“A relação entre o mito e o real é indiscutível, mas não sob a forma de uma re-presentação.
Ela é de natureza dialética e as instituições descritas nos mitos podem ser o inverso das
instituições reais.” (LEVI-STRAUSS, 1989,p. 182).
92
90
“O consumo da fantasia não é somente a província dos que são limitados como fantasistas; de
fato, escritores de ficção e outros artistas, em geral soberbos fantasistas, tendem a ser ávidos consumidores de
obras de fantasia e narrativa. (...) Para eles, assim como para todos nós, histórias de ficção, em qualquer forma,
tornam possível a construção de um mundo alternativo, um espaço da imaginação.” (PERSON, 1997, p. 47)
91
“Quando observamos fantasias representadas por outros, ficamos mais livres para representar
fantasias semelhantes. Além disso, quando descobrimos que alguns de nossos pares compartilham nossas
identificações fantasiosas, podemos usar tal compartilhamento para acentuar laços mais íntimos com eles.”
(PERSON, 1997, p. 252-253)
92
A respeito do fascínio que esses mundos fantasiosos possuem, são interessante as considerações
de Oliver Sacks (2002) no seu texto “Um Antropólogo em Marte” onde destaca o fascínio que os autistas têm
205
Esse interesse pela fantasia, mostra um fascínio, ainda que superficial para muitos,
pelo mágico, o que estaria indo contra a maré weberiana, por se buscar um “re-encantamento
do mundo” aqui entendido como um processo inverso ao da idéia de “desencantamento do
mundo” discutida por Weber (2001).
A crença em uma Força, uma presença maior, manipulável e que nos une a todos, são
temas que estavam fascinando adultos no final dos anos 80 com o impacto da literatura de
Paulo Coelho. Talvez não seja por acaso que o tipo de leitor de Paulo Coelho seja basicamente
o mesmo que mangás. “(...) deve-se dizer que, tanto na Argentina como no Brasil, os
leitores de Coelho pertencem a níveis educacionais que são superiores ao elementar e abarcam
os níveis médios e altos. Em geral terminaram a educação primária e secundária e muitos m
nível universitário.” (SEMÁN, 2003, p. 132-133)
É conveniente chamar atenção para o fato de que os romances de Paulo Coelho, que
são grandes sucessos de vendagem, possuem uma temática bastante semelhante à de algumas
obras de mangá e de animê. Muitosm como eixo o tema da necessidade de perseverança e
da recompensa pelo esforço, fundamentais para o aprimoramento pessoal.
Em muitos mangás, os personagens não envelhecem, bem como crescem no
decorrer da trama. Mesmo nas histórias voltadas para rapazes, as lutas constantes trazem
sempre a mensagem de que o guerreiro ou lutador deve tentar desenvolver seu potencial,
estando pronto para novos, e maiores, desafios.
Os livros de Coelho são, em geral, narrações nas quais os personagens enfrentam
dilemas morais como os que dizem respeito a reconhecer e atuar de acordo com seus
desejos, suportar e interpretar as experiências ruins, e aceitar que nem tudo o que
fazemos depende de nós mesmos, mas que as decisões de cada um importam e são
necessárias. (SEMÁN, 2003, p. 131)
A Força, mencionada nos filmes da série Star Wars, se aproxima muito de noções
orientais como a da existência de um tipo energia que pode ser gerada/manipulada pelos seres
por esse mundo estruturado, criado por J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis a partir de mitos e lendas.
206
humanos, o ki. Essa energia está presente em Dragon Ball, onde o poder de luta, bem como o
poder de cura, dependem da quantidade de ki. referências semelhantes em outras obras,
como no caso dos Cavaleiros do Zodíaco (o Cosmo) e de Shurato (o Soma), Yu-Yu-Hakusho
(Força Espiritual), Street Fighter Victory (Chi) (cf. HENSHIN ESPECIAL. s/d.)
Indo além de simplesmente ler e se identificar com tais idéias, é possível conversar
com jovens que vão a convenções de cavaleiros Jedi e que afirmam seguir a “Religião de Star
Wars”, bem como pedir a opinião de moças que afirmam ser bruxas Wicca sendo esse
último um tema preferencialmente feminino e podem explicar o porquê do uso de
pentagramas.
Com alguma relação com os grupos acima, sendo que muitos transitam entre essas
diferentes preferências, os góticos com sua fascinação pelo mórbido, pela morte, pela
putrefação libertadora. Nem todos são radicais na prática de tais sinais, existindo um espectro
bastante amplo que vai desde jovens que usam camisas negras e maquiagem soturna até
aqueles que possuem fotologs (páginas na Internet onde são disponibilizados fotos e textos)
onde pode se ver fotos de cemitérios e pessoas com olhos sangrando.
93
Dentro dessa linha de contato com produtos de indústrias culturais diferentes da nossa,
uma em particular tem chamado atenção recentemente: o fascínio pela cultura nipônica. Essa
cultura pop japonesa, geralmente desvalorizada por uma perspectiva simplificadora que a
associa à violência, à sexualidade ou à infantilidade. O diferencial nesse caso é que o Japão,
por ser uma referência não ocidental, aparece como lugar de qualidades e de valores perdidos
no Ocidente.
Os animês e os mangás são alguns dos meios pelos quais os jovens brasileiros são
capazes de entrar em contato com um universo onde honra, esforço, etc. ainda são
93
Para maiores informações sobre esse interesse pelo tema do decadente, do subterrâneo, do
maligno e do oculto, cf. MUCHEMBLED (2001).
207
valorizados, onde os vilões não são simplesmente maus, e onde os mocinhos guardam
mistérios. Nesse mundo com referenciais diversos dos nossos, em que histórias nas quais
jovens estão sempre sendo assediados por belas moças e onde as jovens encontram sempre
rapazes atraentes e íntegros, o jovem se refugia o seu mundo real de pequenos e grandes
fracassos e/ou problemas.
94
Esse culto aos heróis e histórias produzidos no Japão se reverte na confecção ou
compra de objetos dos mais variados, indo desde estojos até baralhos de cartas muitos
desses objetos são caríssimos (acessíveis a poucos) ou contrabandeados/falsificados (ao
alcance de muitos). Além do investimento em objetos de consumo, também o interesse
pela cultura, visível no uso recorrente de kanjis (ideogramas) em desenhos, tatuagens, etc.
muitos tentam aprender a língua em cursos de baixo custo, como os ministrados pelo Instituto
de Letras da UERJ.
Longe de ser mais um grupo ou tendência, os aficionados pela cultura pop nipônica
acabaram por se diferenciar internamente, uma situação que foi se tornando cada vez mais
evidente no decorrer dessa pesquisa, e a qual aludirei mais a frente.
7.2. Aspectos Congregacionais: Entre o Pentecostalismo e a Nova Era
Esse grupo dos aficionados pela cultura pop nipônica, geralmente é visto como mais
uma dentre as várias tendências urbanas que pululam nesse início de milênio, e que tem
crescido muito nos últimos dez anos e cujo objeto de “culto”, os mangás e os animês, tem
preocupado os pais. Algumas das preocupações que envolvem a filiação a esse “Orientalismo”
94
Com relação à disseminação da cultura “pop” japonesa pelo mundo, posso citar o texto
clássico SCHODT (1996).
208
pop juvenil podem ser compreendidas dentro do mesmo debate do crescimento (inesperado)
do Pentecostalismo (classes populares) e da Nova Era (classes altas).
Dentro de uma perspectiva comum ao pentecostalismo, na qual se vive constantemente
em luta contra as forças demoníacas que nos circundam e nos ameaçam continuamente, o
material da cultura pop nipônica, por fazer referência a entidades como sacerdotes, feiticeiros,
divindades e demônios, aparece como uma possível fonte de corrupção.
Tal cultura seria ainda mais ameaçadora por ter grande penetração no meio juvenil,
cuja capacidade de discernimento do que é bom e mal ainda não foi plenamente desenvolvida,
o que justifica a vigilância que grupos pentecostais mantém sobre possíveis ameaças
demoníacas. “Ocorrem simultaneamente, nesses grupos, campanhas que ora acusam, como
demoníacos, certos produtos de consumo (por exemplo, o biscoito Piraquê e a maionese
Hellmann's) e ora acusam grupos religiosos, como o espiritismo, cultos afro-brasileiros e
grupos do tipo Nova Era.” (MARIZ, 1997, p. 46)
O chamado movimento da “Nova Era” aparece como um forma de contestação à
sociedade materialista industrializada que aliena o Homem. Esse processo de alienação seria
conseqüência de um individualismo que teria separado cada indivíduo de seus semelhantes e
da natureza que o cerca. Assim, a busca da restauração das ligações do ser humano consigo
mesmo, com seus iguais e com a natureza, começa a ganhar força na segunda metade do
século XX, e a constituir um discurso alternativo ao da modernidade tecnológica e capitalista.
Dessa forma, disseminam-se os grupos partidários da necessidade da constituição de uma
“Nova Era”.
Com esse termo, podemos nos referir, em princípio, a um fenômeno espiritual, | que
vem se tornando visível desde a década de 60, no qual um campo variado de
discursos se cruzam: a) o dos herdeiros da contracultura com suas propostas de
comunidades alternativas; b) o do autodesenvolvimento, na base das propostas
terapêuticas atraídas por experiências místicas e filosofias holistas, fazendo-as
corresponder às modernas teses científicas, por aproximações de ordem metafórica;
c) o dos curiosos do oculto, informados pelos movimentos esotéricos do século XIX
209
e pelo encontro com religiões orientais, populares e indígenas; d) o discurso
ecológico de sacralização da natureza e do encontro cósmico do sujeito com sua
essência e perfeição interior; e) o da reinterpretação yuppie dessa espiritualidade
centrada na perfeição interior, através dos serviços new age oferecidos para o
treinamento de pessoal nos setores de recursos humanos, nas empresas capitalistas.
(AMARAL, 2003, p. 19-20)
Para as diferentes tendências que caracterizam o movimento neo-esotérico que
defende a chegada de uma “Nova Era”, a modernidade teve uma influência nociva sobre a
humanidade. Ao defender um saber visto como mecanicista, analítico, segmentado, que
isolaria o ser humano, desvinculando-o do todo social e da natureza, a modernidade estaria
levando a civilização ocidental a negligenciar outras perspectivas.
Conhecimentos ancestrais do próprio Ocidente teriam sido perseguidos e, senão
eliminados, reduzidos a superstições sem fundamentos ou crenças exóticas. Os grupos da
“Nova Era” buscariam a revalorização desse saber tradicional, descartado no Ocidente; bem
como defenderiam a divulgação de um saber oriental alternativo preservado no Oriente.
(...) o saber tradicional é considerado a resultante da contribuição de culturas
distantes no tempo (as grandes civilizações do passado) ou no espaço (culturas
indígenas atuais), o que lhes um caráter de contraponto à civilização ocidental,
encarada sob o prisma de suas mazelas e distorções. Os neo-esôs voltam-se para a
Tradição justamente porque dizem preserva algo de que o homem
contemporâneo, dominado pelos imperativos de uma modernidade que terminou se
revelando arrogante e parcial, fora despojado. (MAGNANI, 1999, p. 84)
Dessa mesma forma que os saberes indígenas e orientais, vindos de sociedades social,
temporal ou geograficamente distantes, seriam estes vistos como conhecimentos autênticos,
portadores de um valor diferenciado.
95
Tal autenticidade seria um dos motivos que teria
levado muitos franceses a se aproximarem de escolas alternativas, que teriam uma proposta
educacional que se colocasse como uma opção ao projeto desenvolvido pelo sistema escolar
público francês.
Supomos, então, estar diante de pais que teriam evidente afinidade com as variações
contemporâneas da contracultura: experiências comunitárias e religiosidades
95
Uma interpretação semelhante é perceptível entre aficionados por cultura pop nipônica, os quais
vêem os mangás e animês como superiores aos seus similares ocidentais por possuírem uma singularidade. O
fato de ser japonês, de possuir um referencial originário da cultura japonesa seria um dos motivos da dificuldade
de se aceitar a produção de mangás nacionais.
210
orientais; o privilégio concedido às afinidades subjetivas nas relações sociais; e o
distanciamento e a desconfiança das instituições oficiais de reprodução dos valores
do modelo republicano, das igrejas reconhecidas e das instituições políticas.
(BIRMAN, 2006, p. 247-248)
Patricia Birman faz uma análise das acusações contra as seitas que estariam, segundo
seus acusadores franceses, retirando da família o seu lugar de formação do indivíduo por
enfatizarem uma dimensão exacerbada de congregação que ganharia uma dimensão
importante na relação sujeito-família, afastando o jovem da mesma.
A escola por ela descrita seria, na opinião dos pais que matricularam seus filhos nela,
uma possibilidade de oferecer um ambiente que valorizasse as características peculiares de
cada criança. Essa escola era vista como um possível locus de desenvolvimento da
individualidade bem como permitiria a seus filhos constituir uma rede de relacionamentos
mais densos, diferentes da superficialidade que seria a norma da sociedade atual.
Esses pais, portanto, rejeitavam uma educação para seus filhos que não valorizasse
suficientemente as manifestações subjetivas e expressivas. À diferença da maioria,
preferiram matricular seus filhos em uma escola privada na qual o aprendizado com
fontes e saberes 'não tradicionais' se combinava com forte ênfase na aquisição de um
ethos individualista de natureza expressiva, construído em um meio comunitário
(...) –, antagônico aos valores de integração republicana e laica defendidos na e pela
escola pública. A aquisição dos instrumentos da razão como meio de alcançar a
autonomia plena dos indivíduos estaria subordinada, para esses pais, ao
desenvolvimento das dimensões mais expressivas do individualismo, por meio da
valorização do teatro, das artes e das experimentações subjetivas no interior do
grupo. (BIRMAN, 2006, p. 248)
Enquanto que alguns pais consideram esse tipo de proposta como uma iniciativa
válida, capaz de fornecer a seus filhos uma experiência que irá além das vivências
proporcionadas pelas escolas tradicionais, outros temem que essa modalidade educacional
afaste os jovens das famílias por enfatizar a coesão interna dentro do grupo escolar
inquietação que por vezes se manifesta na visão que se tem dos aficionados por cultura pop
nipônica.
O seu caráter “congregacional”, reunindo jovens em pequenos e grandes “eventos”
envolvendo milhares de pessoas, é uma fonte de inquietação para muitos pelo fato de que essa
211
indústria cultural oriental poderia ter uma maior ressonância entre os jovens, que estão no
processo de construção da sua identidade (pessoal e social).
Essa preferência traz apreensões em relação não à organização da vida familiar,
através da inserção do adolescente em redes sociais cujo ethos é novo e desconhecido pelos
pais, mas também em relação a que tipo de representação da pessoa, do self, do indivíduo, se
dará em função dos valores exóticos (no caso nipônicos) aí envolvidos.
Embora a realidade dos fiéis e dos aficionados seja diferente, ela guarda algumas
semelhanças, o que me permite utilizar o instrumental teórico a respeito da religião para tecer
algumas considerações sobre o universo da cultura pop nipônica. Da mesma forma que no
“mercado religioso”, no universo animê/mangá, há:
a) diferentes opções (mangás shojo, shonen, yaoi, yuri, etc);
b) diferentes formas de acesso com o consumo de desenhos via TV aberta, via TV por
assinatura, via “TV à gato” (com conexão pirata, ilegal), via Internet;
c) diferentes tipos de envolvimento variando em níveis de adesão e pertencimentoo simples
telespectador ocasional que assiste um animê de vez em quando, o aficionado leitor de vários
mangás, o freqüentador/organizador de eventos, etc.
Essa adesão ao universo da cultura pop japonesa, pela sua exoticidade, colocaria
alguns pais em alerta, temerosos de que esse material poderia levar seus filhos a um
isolamento social ou desligamento da sociedade receios e acusações semelhantes às
ocorridas na França.
Lá, as seitas estariam sendo vistas como uma iniciativa visando reconstituir uma
relação diferenciada entre as pessoas, que teria desaparecido dentro do Ocidente moderno,
reforçando laços de unidade entre seus membros (a partir de uma crença comum e/ou da
figura de um líder carismático), representando uma tentativa de construir um mundo onde
212
fosse possível existir algo além do que é visto como um universo mecânico.
(...) uma das grandes discussões entre sociólogos na França, durante os anos 1990,
diz respeito ao estatuto dessas crenças e desses grupos religiosos de 'novo tipo':
seriam eles índice de reencantamento das sociedades pós-modernas ou antes de
desencantamento do mundo, apesar de sua 'roupagem' religiosa? (...) De todo modo,
em qualquer uma dessas possibilidades de interpretação, reconhece-se que teria
aumentado a presença de um religioso 'mágico', 'carismático', aparentemente
disforme e pervasivo, que tem abalado os modos mais racionalizados e consolidados
das práticas religiosas. (BIRMAN, 2006, p. 245)
96
acusações de que a preferência por produtos provenientes da cultura pop nipônica
poderiam ter caráter nocivo e que seriam capazes de levar os jovens a comportamentos anti-
sociais, desconectados da realidade e centrados apenas no universo dos mangás e animês. Isso
se pelo fato de que, embora os aficionados pela cultura pop nipônica organizem eventos
onde se reúnem em grupos, eles não possuem um “projeto” de deslocamento do jovem para
fora do meio familiar. Esses jovens constituiriam mais uma cultura parcial do que uma
proposta comunitária englobalizadora como são percebidos pelos críticos das seitas francesas
que Patricia trabalha.
97
Os jovens aficionados pela cultura pop nipônica, apesar de possuírem um incipiente
aspecto congregacional, evidenciam uma fluidez que se torna compreensível ao se pensar,
como Simmel, a sociabilidade como forma autônoma ou lúdica, de associação.
À medida que a sociabilidade, em suas configurações puras, não tem qualquer
finalidade objetiva, qualquer conteúdo ou qualquer significado que estivesse, por
assim dizer, fora do instante sociável, se apoiaria totalmente nas personalidades.
Nada se deve buscar além da satisfação desse instante quando muito, de sua
lembrança. (Simmel, 2006b, p. 66)
7.3. Família e Individualização: Do Tradicional à Modernidade (e Diversidade)
96
No meu universo de pesquisa, tais acusações, não me parecem pertinentes a princípio.
97
Cabe lembrar aqui que o grau de envolvimento dos jovens com os bens da indústria cultural
japonesa pode variar do engajamento mais intenso ao interesse superficial. “O pertencimento social por
'congregação' nas sociedades modernas se caracteriza por uma enorme diversidade fenomenal. Mesmo no
segmento religioso desse processo, podemos reconhecer que a idéia de uma unidade efetiva, vivida, de
participação pode variar grandemente.” (DUARTE, 2006b: 59)
213
A autonomia que o jovem possui, nos dias atuais, para poder construir suas
preferências, suas redes de relacionamento, etc. é compreensível em vista das alterações que
se deram no decorrer do século passado – parte de um processo de transformações já em curso
muito mais tempo. “Fundamentalmente, a família moderna cresceu em torno dos conceitos
de autonomia e disciplina, elaborados por uma civilização particular um artifício fabricado
pelo homem, não um legado natural.” (CASEY, 1992, p. 175)
Pelo menos desde o século XVIII, estava se tornando claro que estava ocorrendo
uma série de mudanças no papel da família no Ocidente, pois, como bem disse Foucault:
“Não se trata, apenas, de produzir um melhor número de crianças, mas de gerir
convenientemente esta época da vida.” (FOUCAULT, 1979, p. 199). Dessa forma, a família
torna-se mais do que uma instância produtora (biológica) de indivíduos, pois passa a ter o
papel de formadora de indivíduos autônomos.
Começa a haver uma crescente valorização da importância de se reconhecer, e de se
incentivar, a singularidade de cada um. O jovem deve ter direito de desenvolver as qualidades
que fazem dele um ser único. Se na modernidade, o reconhecimento de que todos somos
indivíduos, também a necessidade de se perceber que esses indivíduos são diferentes.
Como ressaltara Simmel, ao se referir a Wilhelm Meister Lehrjahre (1796), de Goethe.
Nos Anos de aprendizagem é pela primeira vez esboçado um mundo que se ergue
plenamente sobre a singularidade de seus indivíduos e que se organiza e desenvolve
a partir destes isso sem considerar o fato de que os personagens são entendidos
como tipos. Por mais que se repitam na realidade, persiste o sentido interior de que
cada um, em seu fundamento último, é diferente do outro com o qual esbarra por
força do destino; e de que a ênfase da vida não está posta no igual, mas no que é
absolutamente diferente.” (SIMMEL, 2006c, p. 112)
Essa nova necessidade implicou no surgimento de um novo papel que foi se
desenhando para a família ocidental e que trouxe uma nova complexidade para a mesma. A
sua missão de ter que conciliar o seu papel de socialização do jovem dentro da sociedade com
214
o de permitir-lhe desenvolver a sua individualidade nem sempre é fácil de cumprir.
A vida familiar moderna está continuamente no fio da navalha, em busca de um
equilíbrio perfeito difícil de alcançar e de manter. Essa preocupação foi perceptível no
depoimento de uma mãe que me disse que permitia que as filhas fossem aos eventos anime,
mas que também não deixava que fossem sempre. Que lhes dava liberdade por confiar nelas,
ao mesmo tempo em que ficava preocupada por vê-las falarem em Japão, e até pensarem
em namorar rapazes japoneses.
Entre a regra e a flexibilidade, entre o limite e a liberdade, os pais ficam
continuamente inseguros se estão dosando os limites de forma correta. É preciso garantir a
segurança de seus filhos sem tolher-lhes o desenvolvimento.Há um risco permanente de que
a família não cumpra com suas tarefas: ora que insuficientemente individualizante
restrinja a 'liberdade' de seus membros em desenvolvimento; ora que insuficientemente
hierarquizante – não lhes inculque 'responsabilidade' e 'ética'.” (DUARTE, 1995, p. 31)
Tem se assim, a constituição da família conjugal, da família nuclear em oposição à
família extensa. Dentro dessa nova família que começa a se constituir, o espaço dado aos
filhos (que passam a ser o centro da instituição familiar) cresce e ganha importância.
Progressivamente, há um “empoderamento” dos filhos, que têm uma autonomia crescente.
Chacun des membres qui la composent a son individualité, sa sphère d’action
propre. Même l’enfant mineur a la sienne, quoiqu’elle soit subordonnée à celle du
père, par suite de son moindre développement. (...) Enfin, pour ce qui est des
rélations personnelles, les droits disciplinaires du père sur la personne du mineur
sont étroitement limités. (Durkheim, 1975, p. 37)
Singly, ao pensar as mudanças na estrutura familiar (preocupado em discutir a idéia da
família como locus de construção da interioridade), nos diz que “(...) a família mudou para
produzir esses indivíduos.” (SINGLY, 2000, p. 14) Ele mostra o universo familiar como lugar
relacional de expressão da individualidade dos pais, e principalmente do desenvolvimento da
individualidade dos filhos.
215
Assim, a família atual, com uma forte visão do seu papel estando ligado à
individualização, traz em si como um princípio norteador o pressuposto de que a criança
traz em si sua individualidade, que deve ser despertada, estimulada, libertada, logo “(...) novas
formas de pedagogia pelas quais a natureza da criança deve ser respeitada mais do que
modificada (no período precedente, [até os anos 1960, comentário nosso] a educação moral
deveria retificar a natureza imperfeita da criança).” (SINGLY, 2000, p. 15)
Essa preocupação com a educação, vista a partir dos anos 60 e 70 como possuindo a
missão de possibilitar à criança e ao jovem um melhor desenvolvimento da sua
individualidade, começou a se disseminar entre as camadas médias e ganhou força nos anos
80. Os pais passaram a ver a escola tradicional, na qual tinham sido criados, como limitadora
das potencialidades e incapaz de garantir o pleno aproveitamento das múltiplas capacidades
que seus filhos pudessem possuir:
(...) a pedagogia tradicional dos dias de hoje ainda observa os princípios da
transmissão de conteúdos, da avaliação padronizada e comparativa através de notas,
do controle explícito das atitudes e comportamentos visíveis da criança em situações
nas quais elas raramente podem expressar-se livremente, e da pouca atenção a suas
características individuais. (NICOLACI-DA-COSTA, 1987, p. 37)
Isso explicaria uma possível maior abertura da maioria dos pais para as escolhas dos
filhos, dentro do que seja tido por aqueles como estando dentro da normalidade o universo
da cultura pop nipônica, pelo seu exotismo, afigura-se (a princípio) como estranho e, para
alguns, possivelmente perigoso.
Essas transformações familiares recentes acenariam, para o jovem, com possibilidades
mais positivas de construção e de expressão de si. Por possuir maior espaço, bem como por
ser alvo de investimentos que lhe permitam desenvolver-se plenamente cursos de línguas,
atividades físicas, acesso às novas tecnologias informacionais e comunicacionais, etc. –, ao
jovem (aparentemente) é oferecido um campo de possibilidades amplo, rico e estimulante.
Hoje, a educação familiar se transformou, depreciando a obediência e valorizando a
216
iniciativa, a autonomia e a satisfação pessoal. Contrariamente à representação
comum, a criança aprende a ser um ser individualizado no seio de sua família de
origem. Ela pode fazê-lo porque seus pais o diferenciam de seus irmãos e irmãs e
porque, freqüentemente, ele dispõe de um território para si, seu quarto, no interior
do qual ele faz suas próprias regras (que podem parecer anárquicas ao olhar dos
outros). Ele torna-se autônomo em uma relação de dependência. (SINGLY, 2000, p.
18)
A família, mais do que construir o indivíduo, é um espaço para que a individualidade
aflore; para tal, dentro das camadas médias principalmente, até a definição de um espaço
físico para o jovem: o seu quarto. Nesse ponto, é possível afirmar que o jovem “preso” em
casa, pode se individualizar através das novas mídias como a TV, computador, o acesso à rede
mundial de computadores, etc.
Importa chamar a atenção, aqui, para o fato de que tanto a mídia atual quanto os
especialistas vêem apontando a particular aptidão dos jovens de classe média dos
grandes de centro urbanos de fazer uso simultâneo de dispositivos eletrônicos, tais
como telefone celular, computador, som e TV. (ALMEIDA e TRACY, 2003, p. 68)
Esses equipamentos eletrônicos aparecem então como ferramentas utilizadas pelo
jovem para a construção da individualidade. Isso é visível nas nossas entrevistas onde a
maioria dos aficionados afirmou ter acesso ao material da cultura pop nipônica através de
programas para “baixar” material (fotos, músicas, vídeos, etc.) da Internet.
Logo, esse processo que Singly descreve, tendo a Europa como referência mais direta,
também ocorreu no Brasil, onde houve a passagem de uma “família hierárquica” para uma
“família igualitária” (FIGUEIRA, 1987, p. 15). Essa mudança se deu dentro de um curso de
transformações, com resistências, mas também com avanços como a inibição do uso de
xingamentos, flexibilização das fronteiras com o homossexual e o negro (FIGUEIRA, 1987,
p. 20).
Essa maior abertura, que tem ganho evidência até em novelas recentes, com
personagens homossexuais masculinos e femininos retratados de forma menos estereotipada,
nos leva a refletir sobre a questão da maior facilidade de aceitação de que jovens possam
consumir esse tipo de material que tal atitude se pelo fato de que esses pais liberais
217
acreditam que esse tipo de mangá não irá influir necessariamente na opção sexual do jovem.
É interessante a ambigüidade que essa liberalidade traz a reboque: pode-se levar
mangás “gays porque não será um mangá yaoi que fará alguém se tornar gay; pode-se ler
mangás, assistir animês, jogar jogos eletrônicos, ir a eventos e praticar cosplay, desde que se
tenha boas notas na escola. Esse tipo de atitude dos pais evidencia o fato de oscilarem entre
uma perspectiva tradicional e 'moderna' de lidar com a formação de seus filhos.
Os novos pais, não nos esqueçamos, foram educados nos moldes tradicionais das
décadas de 50 e 60. Posteriormente, adquiriram novos valores aqueles
vanguardistas que servem de fundo para as novas pedagogias. Ao incorporarem estes
novos valores sem maiores restrições, estes sujeitos pensavam ter abandonado
aqueles sobre os quais pautavam sua conduta duas ou três décadas atrás. No entanto,
e disto estes sujeitos não parecem poder se aperceber com facilidade, é possível
constatar que seus valores arcaicos aqueles que servem de base à pedagogia
tradicional – não foram erradicados, mas passaram a conviver, embora em diferentes
níveis de consciência, com os valores mais modernos adquiridos recentemente. Ou
seja, embora em um nível mais consciente os pais desejem que seus filhos
desenvolvam aquilo que não lhes foi permitido desenvolver (criatividade,
expressividade etc.), em outro, nem sempre tão consciente, almejam que eles
também conheçam o que lhes é facultado conhecer (as regras do 'bom português',
eventos históricos etc.). (NICOLACI-DA-COSTA, 1987, p. 41)
Alguns pais dos jovens com os quais lidei são possíveis filhos desses “novos pais”
mencionados por Nicolaci da Costa. Possuem entre 35 e 40 anos, e possuem filhos circa 15
anos, ou menos. Esses jovens foram criados pela primeira geração de pais educados dentro
de uma ideologia com forte carga igualitária, valorizadora da individualidade e da necessidade
do jovem possuir condições de exercer e expressar a sua subjetividade. Nesse contexto,
escolher ser otaku não deixa de ser um sinal de afirmação de uma identidade. “Quando um
indivíduo se apresenta diante de outros, consciente ou inconscientemente projeta uma
definição da situação, da qual uma parte importante é o conceito de si mesmo.” (GOFFMAN,
1999, p. 221-222)
Figueira destaca a importância da Psicologia dentro dessa dinâmica, discutindo e
propondo argumentos em prol das idéias de espontaneidade, autenticidade e opção. Por esse
“psicologismo” estar ligado à contracultura, à sexualidade, etc., ele possibilita a uma parcela
218
dos pais uma flexibilidade e abertura para lidar com esses assuntos com seus filhos apesar
de uma defasagem geracional que implica em certa dificuldade dos pais de compreender a
realidade dos filhos (informática, mangá, rock, etc.).
98
Esse “desmapeamento” vivido pelos pais e a sua necessidade de lidar com diferentes
realidades criadas através da modernização, exigência essa que muitos não conseguem
satisfazer, pode explicar o receio deles em relação às preferências exóticas e/ou desconhecidas
dos seus filhos.
Uma das preocupações que afligem os pais é quanto a uma perfeita socialização dos
filhos. Alguns me expressaram um receio inicial quando seus filhos começaram a se inserir no
mundo anime. O visual alternativo, com predominância de roupas pretas e com a presença de
adultos entre tantos adolescentes os otakus mais antigos, alguns dos quais com mais idade
do que eu – parecia justificar um certo cuidado.
Tal precaução se reduzia após algumas incursões nesse meio, que passava a ser visto
como estranho, mas inofensivo. Contudo, os pais com os quais conversei me confidenciaram
que procuravam “dosar” o engajamento dos filhos. Tentam evitar que os filhos desenvolvam
um envolvimento demasiado, que possa significar um afastamento do convívio familiar ou
dos outros círculos de amigos.
Apesar da hegemonia do modelo igualitário individualista, ainda a presença de
modelos tradicionais hierárquicos. Esses modelos não devem ser vistos como sobrevivências,
resquícios arcaicos de uma outra época. Eles estão inseridos dentro da modernidade, com a
qual dialogam, sendo reelaborados na medida em que sua adaptabilidade é posta a prova pelas
transformações da vida social.
Ora, esses modelos aparentam-se com as formas 'tradicionais' por serem, como elas,
98
“A modernização da família é, portanto, um processo complexo que resulta da modernização
dos ideais e das identificações, da dissolução e da criação de categorias classificatórias, da plurificação das
aparências e da psicologização dos discursos.” (FIGUEIRA, 1987, p.: 21)
219
não-individualistas, por conterem um prioritário componente hierárquico.
Diferentemente das formas pré-modernas, eles se encontram porém em relação com
o modelo individualizante central e imaginariamente hegemônico e se desenvolvem
no interior de sociedades institucionalmente comprometidas com sua ideologia.
Embora as classes populares representem certamente um espaço de
indisponibilidade primordial a esses valores graças, em parte, à sua condição não-
letrada, não-cultivada –, elas não deixam de vir sofrendo longamente a pressão do
pólo cultural dinâmico, sobretudo nesse locus privilegiado da individualização que é
o mundo urbano moderno. (DUARTE, 1995, p. 35)
A permanência de valores tradicionais no meio da sociedade moderna possibilita um
maior entendimento da hesitação por parte dos pais, os quais defendem o ideário moderno da
igualdade e da primazia da individualidade. Dão mais liberdade às escolhas e preferências de
seus filhos, ao mesmo tempo em que se preocupam com a posição social e de gênero que o
filho ocupará.
Essa preocupação se manifesta na atitude dos pais que, desde que os filhos mantenham
um bom rendimento escolar, o que significa basicamente ter boas notas, a sua preferência pela
cultura pop nipônica não é vista como um problema, Mais de um otaku que entrevistei relatou
essa situação: “Desde que as minhas notas estejam boas, tudo certo.” Por serem jovens, e
ainda fora da população economicamente ativa, a maioria dos aficionados podem usufruir de
seu interesse por animês e mangás desde que isso não atrapalhe a sua posterior inserção no
mundo do trabalho.
Assim, é dada relativa autonomia aos filhos, na escolha de suas preferências estéticas,
desde que seja atendido um pré-requisito nimo, o da capacitação para a vida produtiva.
Coexistem o estímulo ao desenvolvimento dos interesses pessoais e a cobrança da diplomação
e capacitação para a garantia de um bom emprego. Essa duplicidade é uma característica da
atual conjuntura educacional, preocupada com a individualidade e com a competitividade.
A relação educação-sociedade contém dois aspectos fundamentais na prática e na
reflexão pedagógica moderna: o primeiro é a presença do trabalho no processo da
instrução técnico-profissional, que agora tende para todos a realizar-se no lugar
separado 'escola', em vez do aprendizado no trabalho, realizado junto aos adultos; o
segundo é a descoberta da psicologia infantil com suas exigências 'ativas'.
(MANACORDA, 2002, p. 304-305)
220
7.4. TV e PC no Quarto: Espaço e Autonomia Juvenil
Um dos problemas enfrentados pelos pais, principalmente aqueles oriundos das
camadas médias, é o da compartimentalização do espaço doméstico, com a fragmentação dos
membros da família em cômodos próprios e distintos. Se antes a existência de um aparelho
televisivo na sala servia como forma de reunir, mesmo que às vezes apenas fisicamente, a
família e a valorização do espaço do adolescente (com o aparecimento do quarto como
“refúgio” do jovem) trouxeram uma maior complexidade ao espaço domiciliar.
Por que disputar o controle remoto da televisão que fica na sala ocupada por toda
a família se ir para o quarto para 'ficar na minha' em outro mundo conversando
com a galera, ou bancando o hacker é bem mais fácil e convidativo? Todos querem
estar “plugados”, visitar todos os portais e acompanhar qualquer novidade, além de
“baixar” de tudo: músicas, filmes e até a tal pesquisa que o professor pediu para
daqui a dois dias em vez de queimar neurônios para redigir um trabalho original.
Cada vez mais os adolescentes usam a Internet e, muitas vezes, têm computador no
próprio quarto, fazendo o papel de confidente e melhor amigo. (ESTEFENON e
EISENSTEIN, 2008a, p. 47-48)
O quarto do jovem constituiu-se em um locus privilegiado para o exercício da sua
individualidade, baixando animês e mangás pela Internet, ouvindo animesongs ou J-Pop sem
maiores interferências parentais. O jovem possui agora um lugar sobre o qual ele possui maior
poder, podendo decorá-lo como bem aprouver está claro que estou ciente das negociações,
recusas e, muitas vezes, impossibilidades que perpassam essa situação.
Contudo, a delimitação de um espaço juvenil é uma demanda dos filhos, atendida na
medida da disponibilidade sócio-econômica dos pais e também, da vontade dos mesmos.
Dentro desse quarto, de posse de um televisor próprio, de uma linha ou extensão telefônica
para acesso à Internet ou apenas de um celular para conversar, o jovem pode escapar ao
controle que antes os pais podiam facilmente exercer.
221
(...) a comunicação interpessoal se tornou possível a partir do próprio espaço
privado: do telefone familiar, controlado pelos pais e localizado na sala de refeições
ou no corredor, se passou para o telefone celular personalizado, que se pode usar no
quarto; da comunicação escrita por carta se passou para comunicação digital SMS,
e-mail ou chat. Graças à Internet, os adolescentes ascederam (sic) a comunidades
virtuais que estão muito além de seus quartos. E graças aos videogames (console,
Gameboy, Play Station), podem praticar em suas casas o que antes tinham que fazer
nas salas públicas de jogos. (FEIXA, 2006, p. 100)
Essa transformação do quarto em um espaço de exercício da individualidade, de
acesso ao mundo exterior através da tecnologia sem a chancela dos pais ganha ares
assustadores para muitos desses. A situação de impotência, de incapacidade de controlar o que
os filhos recebem dos meios de comunicação de massa não deixa de ser compreensível ao se
lembrar que “Adolescentes de vários países do mundo passam pelo menos 50% de tempo a
mais ligados na tevê do que em qualquer outra atividade não-escolar, incluindo os deveres de
casa ou o convívio com a família.” (REMOTO CONTROLE, 2004, p. 28)
Sei que nem todo jovem tem condições de ter um quarto onde possa se colocar fora do
alcance do controle dos pais. a possibilidade de um grau de vigilância paterna, mas nada
impede, por exemplo, que se veja um filme pornográfico quando os pais não estão em casa ou
que se baixe um desenho animado violento da Internet à noite, quando seus responsáveis estão
dormindo.
Apesar da existência do quarto do jovem como um locus de expressão da
individualidade ser uma realidade mais restrita às famílias das camadas médias, não se deve
pensa que essa situação de redução do controle parental sobre as atividades juvenis (em
função dos avanços das tecnologias de informação e comunicação) não existe também em
outras faixas sócio-econômicas. Trabalhei cinco anos em uma escola municipal onde os
alunos estavam familiarizados com as novas tecnologias, via aquisição ilegal ou por compras
parceladas em vários meses.
Um sinal do acesso a bens como computadores e videogames era perceptível pela
222
quantidade de vendedores ambulantes com “estandes” de jogos e filmes. Como existe a
possibilidade de se desbloquear videogames de forma a funcionar com produtos pirateados,
esses jovens tinham acesso a CDs de jogos eletrônicos cujo preço, em tese, seria proibitivo.
Como esses jogos são baratos, o jovem pode comprá-los sem ter que dar maiores
esclarecimentos aos pais.
A disseminação das LAN houses (lojas com acesso à Internet através de uma rede de
conexão local) nas assim chamadas comunidades carentes”, também possibilitou a esses
jovens escapar do controle dos pais enquanto acessam a Internet.
Existe uma importante expansão em áreas pobres das lan houses e cibercafés, onde
as crianças e adolescentes de comunidades carentes podem usufruir das tecnologias
da era digital como os de classe média. É o caso das favelas cariocas, como o
Complexo da Maré, que em 2008 tinha 150 lojas para uma população de 130 mil
habitantes. (ESTEFENON e EISENSTEIN, 2008b, p. 64)
Juntamente com o aumento das possibilidades do jovem desenvolver a sua
individualidade, as novas tecnologias também trouxeram novos riscos e preocupações para os
pais. A pornografia, pedofilia, violência online, etc., são realidades perturbadoras e cada vez
mais palpáveis. Por isso, a vigilância sobre os vínculos estabelecidos via Internet, sobre as
fotos disponibilizadas em flogs ou em álbuns do Orkut, etc.
Os novos recursos tecnológicos podem permitir que problemas como ansiedade,
depressão, etc., ganhem uma dimensão maior, caso não haja uma observação atenta por parte
dos pais. O receio de que o computador e a Internet funcionem como instrumentos de
alienação, retirando o jovem do mundo real e levando-o para o mundo virtual, é algo que gera
grande insegurança entre os responsáveis.
Como o mundo anime possui uma forte interação com as novas tecnologias, ele pode
parecer um tanto suspeito, ainda mais por envolver manifestações culturais não-canônicas,
como as revistas em quadrinhos e os desenhos animados isso sem falar nos jogos
eletrônicos. Essa suspeita explica o porquê da presença de alguns responsáveis nos eventos
223
anime, acompanhando seus filhos.
Com exceção de um pai, que considerava o ambiente dos eventos um desperdício, não
havendo nenhum aproveitamento do que a cultura japonesa teria de melhor, a maioria dos
responsáveis com os quais conversei manifestou uma visão positiva da convivência nessas
reuniões.
O fato de acharem o ambiente estranho, principalmente devido às roupas exóticas, não
era suficiente para caracterizá-lo como nocivo. Alguns pais chegaram a afirmar que aquilo era
coisa da idade, uma oportunidade de os jovens se manifestarem, de se divertirem, como eles
mesmos (os pais) haviam feito no seu tempo.
7.5. Cultura Pop Nipônica e Socialização
Deve-se ter em mente que, no Ocidente, pensa-se o jovem como sendo possuidor de
uma individualidade complexa, composta de diferentes interesses, motivações, gostos e
angústias. Apesar de, para fins didáticos e/ou científicos, poder categorizá-lo como
headbanger, geek, otaku, etc. ele não é definível por uma mera relação de termos e/ou
conceitos. Essas referências identitárias não podem ser cristalizadas e substancializadas, visto
que o jovem transita sobre e entre elas.
Nesse período da vida em que se defronta com a necessidade de construir de forma
ativa a sua identidade, esse processo conflituoso, que em certa medida nunca es completo
mesmo na idade adulta é um momento rico, quando diferentes possibilidades de ser estão
disponíveis, podendo ser ativadas e desativadas (dependendo do grau de comprometimento e
224
do campo de possibilidades à disposição do jovem).
A noção do sujeito como lugar de subjetividades múltiplas e potencialmente
contraditórias é muito útil. Se a subjetividade for vista como singular, fixa e
coerente, torna-se muito difícil explicar como os indivíduos constituem seu sentido
de si mesmos suas auto-representações como sujeitos por referência a várias
posições de sujeito freqüentemente contraditórias entre si e não a uma posição
singular de sujeito. (MOORE, 2000, p. 23)
O fato da cultura pop nipônica se reportar a um universo de referências e simbolismos
diferentes do Ocidente além de ser um atrativo, é, na opinião de muitos, um ponto positivo.
Muitos aficionados afirmam que o contato com animês, mangás e jogos eletrônicos não os
afastou da leitura. Para alguns, o fascínio por esse universo exótico os levou a procurar
aprender mais sobre ele, lendo, procurando informações sobre história, comportamento, etc.
Vale ressaltar que tal atitude parece ser bastante comum entre os aficionados pela
cultura pop nipônica. “É bastante interessante comprovar como os otakus espanhóis não se
limitam somente a ler os mangás, mas também sentem curiosidade em conhecer os costumes e
folclore japoneses, incluindo o aprendizado da língua.” (MOLINÉ, 2005, p. 45)
Também devo destacar o fato de que, apesar de reproduzir características comuns a
outras partes do mundo, onde a penetração da indústria cultural nipônica tem tido
considerável importância como Brasil, Estados Unidos, Espanha e França, para citar apenas
alguns casos, que tenho informações de aficionados por Pokémon na Noruega –, os
brasileiros consumidores dessa produção possuem suas peculiaridades.
O público brasileiro é formado por muitas garotas e casais de namorados otakus, o
que seria uma contradição no Japão. Muito mais soltos, entusiastas e barulhentos do
que suas contrapartes orientais, os fãs brasileiros se acotovelam por um autógrafo de
seu dublador preferido, pulam ouvindo anime songs como se estivessem em um
show de rock e promovem uma confraternização bem brasileira, que certamente,
estão distantes do fanatismo solitário e isolado presente em muitos otakus japoneses.
(NAGADO, 2005, p. 56)
Esse aspecto de socialização, que aqui no Brasil possivelmente ganhou um grau de
intimidade muito maior do que em outros países, é um elemento que também marca os
aficionados pela cultura pop nipônica, bem como outros consumidores dos produtos
225
veiculados pelos meios de comunicação de massa.
Jones (2005) mostrou como um nicho específico de mercado pode tornar possível a
jovens que não se enquadravam dentro das expectativas formais de familiares, professores,
colegas, etc., criar suas próprias redes alternativas de amizades, e através delas, desenvolver
habilidades sociais para poderem se inserir no mundo.
Hulk levou-me a uma busca apaixonada por outros gibis. Quando isso passou a ser
pouco para me satisfazer, fez com que eu fosse a encontro de Jack Baty e seus
amigos; depois, levou-me a telefonar para meu velho amigo Brian a fim de convertê-
lo à minha nova devoção; e em seguida a procurar novos amigos, jovens nerds cujos
superheróis interiores davam significado a seus medos, raivas e desejos particulares.
Logo eu fundava meu próprio grupo de histórias em quadrinhos. Escrevia cartas
para editores de gibis e recebia respostas. Ia a convenções e conhecia os antigos
adolescentes nerds cujas fantasias os impeliram a escrever e desenhar as histórias
que davam forma às minhas próprias. E, quando as fantasias deles não bastaram,
comecei a escrever as minhas. (JONES, 2005, p. 17)
Concluo, portanto, que a presença do material cultural nipônico permite tanto formas
de socialização, como pode fornecer elementos para uma possível reclusão. Os animês,
mangás e jogos eletrônicos, longe de serem a maravilha artística que muitos de seus
defensores (boa parte dos quais é produtora, distribuidora ou consumidora dos mesmos)
afirmam ser, são apenas uma expressão da cultura de massa, sem qualidades ou defeitos
intrínsecos.
Existem obras que são consideradas por críticos de cinema, por exemplo, como sendo
altamente recomendáveis do ponto de vista estético e/ou filosófico, bem como existem
trabalhos que visam o entretenimento mais elementar. Por isso, a crítica de pais e professores,
principalmente, é de fundamental importância.
Na própria academia, o desconhecimento a respeito de boa parte do que é produzido
pela indústria cultural e veiculado pelos meios de comunicação de massa é marcado por um
certo desdém. Essa atitude não deixa de ter paralelo com a ignorância dos responsáveis pela
educação de nossos jovens em relação ao que é consumido por eles, tido muitas vezes como
inútil ou infantil.
226
Embora tais atitudes sejam compreensíveis, não são recomendáveis; afinal,
desconhecer esse universo da cultura de massa no qual o jovem habita, é desconhecer o
próprio jovem. Há necessidade de se conhecer os elementos, a dinâmica e a importância desse
saber juvenil. O conhecimento dos nomes e atributos de todos os pokémons podem ser úteis
na interação através de jogos, o domínio de todos os jutsus (golpes) de Naruto podem
funcionar como sinal de uma expertise corporal e mnemônica, além do conhecimento da
diferença entre o Shinsengumi (tropa leal ao Shogun no início da Restauração Meiji) e os
Shinigami (entidades responsáveis pela transição para o outro mundo) que evidencia um
conhecimento histórico importante nesse universo.
Tais saberes poderiam ser, tranqüilamente, desqualificados como subproduto de
estratégias de mercado, como formas de se atrair consumidores. Realmente, eles não deixam
de ser efeitos, talvez secundários, de uma indústria de entretenimento que, geralmente,
procura agradar seu público e incentivá-lo ao consumo no Japão existe todo uma série de
estabelecimentos para isso.
Reconhecidos (e portanto desejados) como consumidores em alto grau, os otakus
tornam-se, por isso, alvo dos empresários. Sob a aparência de prover suas paixões,
inúmeras lojas especializadas na cultura otaku fazem fortuna à sua custa, e isso
apear da crise econômica que arruína outras atividades. (BARRAL, 2000, p. 193)
Embora não exista no Brasil um mercado exclusivamente voltado para os otakus, os
eventos cumprem, parcialmente, essa função. A existência dos estandes vendendo uma
diversidade cada vez maior de itens, visa gerar/atender aos anseios dos aficionado por Japop.
Esse fato evidencia o caráter consumista que envolve esse universo, porém, percebe-se que
esse público também atribui a esse material outro sentido.
Os objetos comprados, por remeterem a mangás e animês, são referências a atitudes,
fatos, personagens, etc. Conhecer os personagens, seus golpes, suas armaduras, são de grande
valia no mundo anime, permitindo o estabelecimento de conversas, de interações sociais.
227
Dessa forma, esse saber juvenil torna-se um conhecimento vital, que diferentemente dos
saberes formais, pode ser utilizado no dia-a-dia das suas relações sociais.
228
8. O MUNDO ANIME, UM MUNDO COMO QUALQUER OUTRO?
Todas estas sociedades estão, mais ou menos
indivisas interiormente e mais ou menos isoladas
umas das outras no exterior. Todas estas
sociedades estão, ou estavam, longe da nossa
unificação e da unidade que uma história
insuficiente lhes atribui. Por outro lado, no
interior desses grupos os indivíduos, mesmo
fortemente marcados, eram menos tristes, menos
sérios, menos avaros e menos pessoais do que
nós; pelo menos exteriormente eles eram, ou são,
mais generosos, mais liberais. (MAUSS, 1988, p.
203)
Seu universo particular de bonecos articulados e
quadrinhos, que dava diferencial à sua vida, não é
mais seu muito tempo. (…) Você se tornou
mainstream... e suas editoras favoritas estão
adorando isso, quer você queira, quer não. Seu
próprio domínio pessoal foi cooptado e sua
palavra foi espalhada pelas massas que agora
acham tudo isso maneiro”... (SMITH, 2006, p.
84)
229
8.1. Busca de Legitimidade: Uma Luta Folclórica
A partir das observações no campo e das entrevistas, pude perceber que parte dos
aficionados, principalmente os mais antigos e engajados, desejava um reconhecimento
público da importância do mundo anime. Isso significava uma aceitação do valor estético da
cultura pop nipônica, o que implicaria no fim de uma representação dos aficionados como
alienados ou marginalizados sociais.
Além disso, uma perspectiva positiva do movimento anime poderia trazer também um
aumento do número de freqüentadores, maiores recursos, mais facilidade de acesso a espaços
para realização de eventos, etc. Apesar da valorização dessa cultura pop nipônica pela mídia
em geral não ser necessária para a existência do mundo anime (afinal, ele tem crescido e se
expandido sem ela), ela seria bem recebida. Esse processo de luta para se conferir
legitimidade ao universo da cultura pop nipônica remete, mutatis mutandis, à luta dos
folcloristas pelo reconhecimento do Folclore como campo acadêmico no Brasil, e a tentativa
de institucionalização do mesmo.
Assim, uma das diferenças entre o movimento folclórico, estudado por Vilhena (1997),
e o “movimento anime”, poderia ser explicitada da seguinte forma: o primeiro queria espaço
acadêmico e institucionalização enquanto que o segundo busca reconhecimento pela mídia e
cria sua própria institucionalização sem ligação de dependência estrita do Estado é um
movimento privado, que progressivamente encontrou apoio econômico.
Apesar de possuírem características internas diferentes, ambos compartilhavam o que
pode ser considerada como uma atitude de movimento organizado, possuindo um projeto
próprio no caso dos aficionados pela cultura pop nipônica a percepção desse projeto parece
não ser tão clara entre os nativos, embora seja perceptível em seus discursos e em algumas de
230
suas iniciativas. Se for levado em conta que os folcloristas pautaram sua luta por visibilidade
pública a partir da realização de eventos com palestras, atividades culturais, exposições e etc.,
a sua semelhança com o mundo anime mostra-se considerável.
99
Ambas realidades, a da cultura pop nipônica e a dos estudos de folclore,
compartilhavam uma outra característica: seu caráter marginal dentro das ciências sociais. Os
folcloristas, vistos como diletantes e autodidatas, e os estudos de cultura de massa vistos
como tema recente, mais pertinentes ao campo da comunicação.
Resumindo sua situação numa fórmula, podemos dizer que quanto mais eles se
aproximam do 'núcleo duro' dessas ciênciasdas disciplinas 'puras' e do seu sentido
'estrito' –, mais se rarefaz a presença dos estudos folclóricos. Assim, nos cursos de
graduação, quando é oferecida uma cadeira específica sobre o tema no currículo de
ciências sociais, tende a ser optativa, enquanto é muito mais comum e quase sempre
obrigatória nos cursos ligados à ciência social aplicada da educação (pedagogia,
educação física) e às artes (educação artística que se enquadra também na
categoria anterior –, letras e literatura, música e teatro), assim como em algumas
carreiras profissionalizantes da área (como turismo e comunicação). (VILHENA,
1997, p. 42-43)
Cabe destacar que o primeiro estudo sobre mangá e anime no Brasil, é realizado na
área da comunicação posso também ressaltar as reações dos meus pares quando da menção
do meu trabalho que, muitas vezes, era recebido tanto com interesse quanto com sorrisos.
Haveria assim uma visão, tanto entre folcloristas quanto entre aficionados por produtos da
indústria cultural japonesa, de que seus interesses eram percebidos com um tom pejorativo.
A transformação de um termo antes meramente descritivo, que designa um objeto de
estudo e eventualmente a disciplina que dele se ocupa, em um adjetivo pejorativo,
que caracterizaria uma postura teórica e ideologicamente incorreta ilustra claramente
a desvalorização semântica do termo 'folclore'. (VILHENA, 1997, p. 65)
100
Uma outra semelhança entre a abordagem do mundo anime aqui realizada e a de
Vilhena a respeito do movimento folclórico pode ser evidenciada ao se comentar a
99
“Embora a expressão 'movimento folclórico brasileiro' também inclua as idéias e as pesquisas
dos seus participantes, estas ganham todo o seu sentido no interior de uma mobilização que inclui gestões
políticas, apelos à opinião pública, grandes manifestações coletivas em congressos e festivais folclóricos.”
(VILHENA, 1997, p. 28)
100
Esse comentário poderia ser aplicado ao mundo anime, visto como mundo de quadrinhos e
desenhos animados.
231
periodização por ele utilizada. Essa periodização, se relacionada ao processo histórico que foi
descrito anteriormente nesse texto, mostra uma possibilidade de se encontrar coincidências
entre as dinâmicas do movimento folclórico e do surgimento do mundo anime:
a) Precursores (reuniões de amigos, grupos trocando vídeos, Consulado do Japão, parentes e
amigos nisseis);
b) Projetos institucionais em tempos heróicos (a revista Herói, Abrademi com a MangáCon, o
AnimeCon);
c) CNFL: construindo a grande corrente nacional de folcloristas (Internet facilitando contatos,
surgimento dos fóruns, blogs, fotologs e o Orkut);
d) CDFB: entre a mobilização e a institucionalização (multiplicação de eventos, eventos da
Yamato se espalhando, implantação do circuito cosplay, etc.). (VILHENA, 1997, p. 75-115)
A passagem do “literato” ao “cientista”, descrita por Vilhena dentro de uma tentativa
de desenvolvimento de um campo acadêmico profissional, também traz semelhanças com o
mundo anime, no qual alguns dos participantes conseguiram passar do status de mero
aficionado ao de organizador de eventos.
Se o plano da constituição de identidades intelectuais é influenciado pela expansão
da organização social dessas atividades, essa expansão pode atender a demandas
produzidas por esses mesmos intelectuais. No caso específico do movimento
folclórico, percebemos como, unidos por preocupações semelhantes, os seus
participantes se apropriaram de recursos institucionais que se mostravam disponíveis
e procuram criar as instituições que consolidariam sua tradição de estudos e
implementariam a política preservacionista que defendiam. (VILHENA, 1997, p.
126)
De forma relativamente próxima, um pequeno número de aficionados começou um
processo de articulação para a realização de eventos, mobilizando amigos, contactando
instituições, ganhando credibilidade no campo, conquistando público, adquirindo
regularidade, atraindo patrocinadores, etc. Foram se formando assim as bases para a criação
dos eventos como existem hoje, com uma considerável diversidade e periodicidade, cobrindo
232
(em maior ou menor grau) quase todo o território nacional.
Na busca pela sua legitimação, os folcloristas tentavam mostrar a importância da sua
atividade, destacando sua contribuição para a preservação do folclore. No caso da cultura pop
nipônica, o fato de não ter uma origem popular que pudesse ser trabalhada e/ou reconstruída,
além de ser um produto do mercado e produzida em outro país, trazia problemas para seu
enobrecimento. Tentando se separar da idéia de mero entretenimento de caráter
mercadológico, buscando não ser vista como “desenho animado” ou gibi, como coisa infantil,
é perceptível a constituição de um discurso nativo de alguns em defesa da cultura japonesa, da
cultura pop nipônica como forma de acesso a conhecimentos e valores orientais.
O próprio aumento dos estudos sobre a presença e a influência dos produtos da
indústria cultural japonesa no Brasil podem ser inseridos dentro desse processo de expansão
do campo representado pelos aficionados por mangás e animês. O reconhecimento do mundo
anime como instância legítima de interação social, interessante e positiva torna cada vez mais
compreensível e justificável o estudo desse universo. Houve no movimento folclórico,
expectativa semelhante e a esperança de que a visibilidade dos eventos de folclore pudesse
abrir caminho para uma institucionalização do folclore.
101
Ao se retornar aos objetivos um tanto diferentes dos dois movimentos, deve-se
destacar uma certa clareza e articulação, nem sempre evidente e perfeita, do movimento
folclórico como um todo – o que lhe conferia uma unidade que o mundo anime não possui.
Ao definir sua atividade como um movimento, os folcloristas brasileiros organizados
em torno da Comissão Nacional de Folclore expressavam a sua identidade como um
grupo que não apenas compartilhava um tipo de produção intelectual específica, mas
principalmente adotava um engajamento coletivo na defesa das tradições populares.
(VILHENA, 1997, p. 173)
101
“Além da possibilidade de formar quadros, a criação de uma cadeira de folclore nas faculdades
de filosofia permitiria o seu reconhecimento como disciplina autônoma. O esforço em distinguir-se da literatura,
pelo qual Édison Carneiro caracteriza o período anterior à Comissão, lugar, em um segundo momento, à
definição do lugar próprio que o folclorista deveria ocupar em meio aos intelectuais científicos dedicados à
reflexão objetiva sobre a realidade brasileira.”(VILHENA, 1997, p. 138)
233
A Comissão Nacional de Folclore cumpria um papel de articuladora central nacional
que não possui paralelo no mundo anime. Da mesma forma que não havia total sintonia e
comprometimento entre a CNFL e as comissões estaduais, conflitos muito maiores no
mundo anime, com a competição entre os organizadores, enfraquecendo sua capacidade de
articulação, superada parcialmente pela profissionalização, através da empresa de eventos
Yamato.
Entretanto, apesar de não haver uma instância organizadora nacional que talvez a
Yamato esteja assumindo de modo informal (através da realização do concurso nacional de
cosplay, havendo disputas em diferente estados e regiões) –, não é possível negar que os
mesmos elementos básicos estão presentes no movimento folclórico e no mundo anime. “A
atuação do movimento folclórico pode ser descrita esquematicamente através de três
elementos: um conjunto de atores sociais, as práticas que marcaram sua estratégia de ação e
os objetivos comuns que pretenderam atingir através delas.”(VILHENA, 1997, p. 173)
A articulação desses atores é cada vez mais evidente. Antes era expressa através de
cartas enviadas às emissoras pedindo a exibição de desenhos animados e de seriados
japoneses. A mobilização é uma estratégia semelhante à produção do rumor trabalhado por
Vilhena no movimento folclorista.
Princípio subjacente à maioria das estratégias utilizadas pelo movimento folclórico
para obter apoios em seus esforços em favor da pesquisa, da defesa e da promoção
do folclore, divulgando essas ações e criando uma disposição favorável a esses
objetos, a produção do 'rumor' folclórico marca esse movimento.” (VILHENA,
1997, p. 198)
Tem-se, portanto, um fenômeno muito próximo no mundo anime vide pedidos,
críticas e sugestões através de cartas, aparecimento de revistas, criação de fóruns na Internet,
sítios virtuais, fotologs, comunidades, etc. As formas, senão de pressão, mas de exposição de
intenções, insatisfações, etc. têm permitido aos aficionados algum grau de influência no meios
de comunicação de massa a escolha dos dubladores dentro de um grupo de profissionais
234
conhecidos e reconhecidos por parte dos otakus é um sinal disso, bem como a participação
desses como editores de revistas ou prestando consultoria nas traduções de mangás e animês.
Um aspecto no qual o mundo anime tem sido, aparentemente, mais bem sucedido do
que o movimento folclorista, pode ser o da proporção entre visibilidade e ganhos práticos em
função dessa visibilidade. Da mesma forma que os folcloristas, os organizadores de eventos,
bem como os aficionados mais engajados, estão em busca de legitimidade frente à opinião
pública principalmente dos meios de comunicação (visível na preocupação com notícias na
TV e nos jornais).
Posso mencionar um acontecimento que, em 2007, levou grande preocupação a esse
grupo. Houve um incidente que gerou certa agitação no mundo anime. A fuga de um casal de
adolescente foi retratada por parte da mídia, como uma conseqüência do efeito negativo dos
animês sobre os jovens os dois foram classificados como otakus. O programa dominical
Fantástico, da Rede Globo de Televisão, ao apresentar uma matéria sobre a fuga do casal,
entrevistou um grupo de cosplayers e depois exibiu uma série de imagens violentas e
assustadoras de alguns animês.
Esse evento gerou polêmica nos fóruns e comunidades como o Orkut. Os cosplayers
entrevistados foram criticados e a rede de TV acusada de simplificar a realidade. Alguns dos
entrevistados depois se manifestaram dizendo que a matéria tinha sido editada e que eles não
tinham noção de que sua participação na matéria seria com a finalidade de ligar o interesse
por animês e mangás com fuga da realidade. Há um receio de que uma representação negativa
do mundo anime possa recair sobre os otakus, os quais passariam a ser vistos com maior
desconfiança. Poderiam até surgir dificuldades para a realização de eventos.
Essa inquietação e cuidado com os eventos e a sua divulgação, evidenciam o fato de
que esses encontros (na perspectiva de alguns dos aficionados engajados na sua organização)
235
seriam uma forma de ganhar respeito, de se ter credibilidade para conseguir espaços melhores
com bons preços para eventos. O sucesso aparece como garantia para novas, e maiores,
iniciativas.
Diferentemente dos folcloristas, tal atividade não passou necessariamente pela
institucionalização e tem sobrevivido e se ampliado sem maiores investimentos ou atenções
públicas. “Por mais importante que fosse o apoio da opinião pública aos folcloristas, atingir as
autoridades governamentais era essencial porque, supunham eles, delas ou melhor, das
instâncias de governo por elas ao folclore.” (VILHENA, 1997, p. 201)
Essa realidade, de certa forma, acaba evidenciando o calcanhar de Aquiles do mundo
anime, a sua vinculação ao mercado. A presença de editoras vendendo mangás, de empresas
na organização de eventos e de estandes com produtos diversos, etc. destacam a participação
basicamente privada dentro desse universo, bem como o seu apelo consumista.
Contudo, se no caso dos eventos da Yamato uma grande empresa por trás da
realização de encontros de aficionados por Japop, a maioria dos participantes desse meio
sejam cosplayers ou organizadores de caravanas ou eventos também não alcançou a
profissionalização desejada pelos folcloristas.
Não é possível, pelo menos no Rio de Janeiro, se viver da organização de eventos,
embora tal atividade possa significar um considerável acréscimo na renda regular, se tiver um
bom público. Mesmo os profissionais que atuam na área acabam tendo algum outro vínculo
basta lembrar o caso do organizador do Anime Rio, que possui uma loja para o público otaku.
Devido ao crescimento e consolidação do mundo anime, a possibilidade de se
conseguir desenvolver uma atividade lucrativa nesse meio está se tornando mais real. Com o
aumento exponencial do número de aficionados, a tendência é a ampliação e diversificação de
atividades econômicas lucrativas aluguel de aparelhagem de som, produção de cosplays,
236
gravação e venda de DVDs de séries, shows, etc.
Contudo, embora tenham importância para e durante a realização desses encontros, a
atividade desses aficionados ainda é conciliada, com a exceção de poucos casos, com uma
vida profissional regular, com empregos fora desse universo – uma situação vivida por muitos
folcloristas.
Não havia, portanto, recursos próprios significativos em apoio às atividades do
movimento folclórico em suas atividades cotidianas. Apesar disso, quando se
reuniam em semanas e congressos, eles eram capazes de mobilizar recursos por
vezes vultosos, permitindo a realização de eventos grandiosos. O contraste entre
esses grandes rituais coletivos e o difícil trabalho cotidiano do movimento folclórico
são um dos traços mais característicos de sua atuação. (VILHENA, 1997, p. 202)
Cabe aqui ressaltar a diferença entre “rumor interno”, interior ao meio folclórico
(interior ao mundo anime), e “rumor externo”, voltado para a publicidade do movimento
folclórico (voltado para conquistar o exterior do mundo anime) (VILHENA, 1997). Esse
“rumor interno”, a agitação, mobilização interna era importante para a discussão dentro dos
quadros do folclore, enquanto que o “rumor externo” era fundamental para a expansão e
visibilidade do universo dos aficionados pela cultura pop nipônica.
(...) podemos dizer que a série dos Documentos da CNFL, sendo um dos importantes
elementos da estratégia de produção de 'rumor' empreendida pelo movimento
folclórico e aquele que pode ser estudado de forma mais sistemática, indica uma
mudança de ênfase nos níveis em que era empreendida essa estratégia. Divulgando
principalmente, durante todo o período, artigos produzidos por folcloristas membros
das comissões estaduais e, mais importante do que isso, tendo esses pesquisadores
como seus principais destinatários, essa publicação procurava fortalecer a ligação e a
comunicação dentro desse grande movimento intelectual disperso por várias partes
do país. (...) A simples mobilização dos folcloristas foi deixando de ser um objetivo
prioritário e cresceu o empenho por questões mais amplas como os debates
conceituais em torno do folclore e, principalmente, a conquista de espaços
institucionais para apoiar sua pesquisa e preservação. (VILHENA, 1997, p. 206-207)
Assim, os documentos da CNFL, meio de divulgação produzido pelos próprios
membros, mostram como esses folcloristas buscam se colocar como profissionais, não como
diletantes. Nas publicações especializadas no mundo anime, boa parte dos artigos são de
aficionados que se “especializaram” ou que acabaram conseguindo um conhecimento
especializado (experiência na área do jornalismo, por exemplo). Como dizem muitos, são
237
revistas feitas em boa parte de fãs para fãs”, de forma semelhante aos fanzines, só que
enquanto que esses não conseguem uma distribuição em massa, constituindo-se um veículo de
alcance mais restrito, essas revistas são publicações de editoras profissionais.
Uma diferença é que, enquanto que a CNFL tinha uma forte participação das
comissões estaduais, as publicações têm um foco centrado mais em São Paulo, o que não
deixa de ter lógica, visto ser o “centro” do mundo anime brasileiro. Também se percebe uma
ampliação no conteúdo de algumas publicações, como a Neo Tokyo, indo além dos animês e
mangás, absorvendo também temas da cultura nipônica.
Outra características que aproxima os dois universos seria a semelhança do ethos
folclorista com o manifestado pelos aficionados mais engajados no mundo anime: o ideal de
missão, ênfase em uma ação coletiva. A dimensão de 'movimento' provém exatamente de
uma ênfase na ação. O essencial é que essa ação seja comum, mesmo que haja concepções
opostas acerca de teorias e estratégias.” (VILHENA, 1997, p. 211-212)
Embora exista, pelo menos nos discursos, uma preocupação com a divulgação da
cultura pop nipônica, uma forte competição dentro do mundo anime (talvez por falta de
uma instituição central como a CNFL), principalmente entre os responsáveis pela organização
de eventos.
Como foi exposto anteriormente, a expansão do mundo anime, inicialmente em função
de pequenos grupos, foi incrementada pela recurso à Internet que permitia um acesso mais
fácil ao material nipônico, bem como possibilitava uma divulgação maior dos encontros de
aficionados.
Nos primórdios da popularização da Internet, a maior dificuldade dos fãs de animê
era achar um local para assistirem aos vídeos que procuravam, sejam AMVs,
aberturas e encerramentos, trechos de episódios para conferir a qualidade da série ou
mesmo ver versões zuadas de seus animês favoritos. Tudo começou a mudar em
fevereiro de 2005, quando surgiu o site Youtube. Hoje ele é o site de vídeos mais
acessado do mundo, e os fãs de animê encontraram o seu próprio paraíso.
(ANIMES NA TELINHA DO YOUTUBE, 2008, p. 40)
238
A rede mundial de computadores, através de seus fóruns, sítios, comunidades virtuais,
etc., condições para uma interação mais dinâmica sem restrições de espaço e sem grande
necessidade de muitos custos.
“Se o ideal do movimento folclórico (...) era o da constituição de uma grande rede,
cobrindo todo o país e tendo nos secretários-gerais apenas os seus pontos de articulação, o
resultado obtido foi mais tímido do que o pretendido.” (VILHENA, 1997, p. 214) Partindo
dessa observação, se coloca a seguinte questão: o aumento do mundo anime significou maior
engajamento? Relativo, visto queum grupo cada vez mais jovem que entra no movimento
sem ter o mesmo comprometimento dos membros mais antigos similar ao movimento
folclórico onde a luta era muitas vezes travada por poucos.
A questão dos graus de engajamento, dedicação, comprometimento existe tanto entre
os folcloristas quanto dentro do mundo anime (poucos se engajam em eventos e poucos
permanecem, se profissionalizam no meio). Nos dois casos, alguns buscam mais do que
conciliar suas atividades como folcloristas e otakus com as suas vidas profissionais, convertê-
las em profissão (o que não foi possível para a maioria dos folcloristas, bem como também
não é uma realidade para a maioria dos otakus). Logo, “(...) um dos móveis do movimento
[folclórico] foi a tentativa de criar a figura de um folclorista profissionalizado especialista e
científico e, para atingir esse objetivo, a institucionalização das atividades folclorísticas
surgia como a principal prioridade.” (VILHENA, 1997, p. 248).
Embora esse não seja um objetivo claro do movimento anime, que nem chega a ter as
características formais de um movimento organizado nos moldes do movimento folclórico,
muitos que ambicionam se profissionalizar na área, como o “Arima” e a “Ju Tsukino” os
dois vivem da produção de artefatos e de roupas para cosplayers e o público em geral.
Paralelamente também houve uma “profissionalização na realização de eventos, mais bem
239
sucedida em São Paulo, tanto com a Yamato, que não era uma empresa do mundo anime, mas
que o assumiu. O mercado editorial também está concentrado lá, com editoras como a Conrad
e a JBC que possuem alguns dos aficionados precursores trabalhando em suas revistas.
Se o engajamento prático, do ponto de vista de uma atuação regular em prol da
divulgação e ampliação do mundo anime não é uma marca entre todos os aficionados, a
maioria dos quais é apenas consumidora de mangás e animês – um gosto hegemônico no meio
de uma série de outras preferências não se pode negar que houve uma expansão numérica
no número de freqüentadores dos eventos.
Mesmo que os freqüentadores não sejam particularmente envolvidos nas dinâmicas
internas do mundo anime, eles o percebem como algo com o qual mantém uma afinidade.
Assim, os eventos anime ganham importância como instâncias onde uma identidade comum é
desenvolvida e confirmada. Como disse Alex, meu companheiro de caravana no Anime
Friends de 2006: “Cara, me achei aqui, não que não curtisse outras coisas, mas conheci aquilo
que sou.”
Esse papel de evidenciar uma unidade, uma identidade compartilhada por diversas
pessoas, também era de fundamental importância na realização dos congressos dos
folcloristas.
A capacidade mobilizadora do movimento baseava-se também na presença entre os
seus membros de um certo sentimento comum entre seus participantes, que [Renato]
Almeida [secretário-geral da CNFL] define como de 'solidariedade nacional em
torno de um ideal comum'. Esse sentimento era parte integrante do ethos
folclorístico e (...) era ritualmente produzido nesses grandes encontros. (VILHENA,
1997, p. 216)
Esse caráter de congregação, de assembléia onde todos se reúnem para trocar idéias
(sobre Folclore ou sobre mangás e animês), estabelecer relações de troca (acadêmicas ou
comerciais), etc., tem um efeito positivo na construção da identidade dos participantes, que se
regozijam da companhia dos seus pares e percebem que não estão sós no compartilhamento
240
de interesses comuns seja em um gabinete em Natal ou em um quarto no Flamengo. Tal
situação propiciava aos congressos folclóricos, como propicia aos eventos anime, um caráter
bastante festivo, de consagração.
102
Embora realmente possa afirmar que os freqüentadores dos eventos anime sejam, no
geral, simpáticos e solícitos haja visto que a maior parte se mostrou bastante gentil em minhas
incursões e entrevistas, vi que essa característica não pode ser tida como exclusiva desse
universo, visto como ambiente positivo, onde há interesses comuns.
A existência de um ambiente amistoso não é o único ponto comum entre os encontros
de folcloristas e os encontros de otakus. Da mesma forma que em congressos acadêmicos, há,
em alguns dos eventos anime, a presença de palestras com dubladores, mesas redondas de
debates, oficinas, etc.
Mas se existem em todos os congressos científicos e intelectuais discursos e moções
essas últimas muito comuns, votadas por todo o plenário, como a Carta do
folclore brasileiro –, havia algo presente em todas as reuniões do movimento
folclórico que as distinguia de todos os encontros semelhantes: os festivais e
exposições folclóricas. Eram eles que davam a sua dimensão comemorativa e
espetacular, garantindo a afluência de público leigo e a ampla cobertura da
imprensa; seus efeitos para o 'rumor' folclorístico não se davam apenas sobre o
público externo, contribuindo igualmente para a produção do 'entusiasmo criador' a
que se referia Renato Almeida. (VILHENA, 1997, p. 218)
Enquanto que os congressos eram palestras com comemorações, os eventos anime são
comemorações com palestras. Vale a pena lembrar aqui da divisão nativa descrita por um dos
aficionados em um lanche no restaurante Habib's, na madrugada da chegada em São Paulo
para o Anime Dreams 2005 (essa divisão foi referendada por outro informante):
a) exibição quando apenas exibição de animês, tokusatsus e ou vídeos de shows; - essa
modalidade de evento está praticamente extinta;
b) evento, que é o termo mais usual para se referir a encontro que envolve não exibições,
102
“Esse calor e essa cordialidade pareciam não apenas impressionar os próprios participantes do
movimento folclórico, mas igualmente aqueles que freqüentavam pela primeira vez esse tipo de evento (...).”
(VILHENA 1997, p. 217)
241
mas apresentações musicais, desfiles e concursos de cosplay, etc., cobrindo um espectro maior
do universo otaku;
c) festival, que é o mesmo termo usado no meio folclorista, e que se refere a um evento anime
que incorpora outros elementos da cultura japonesa como oficinas de origami, apresentações
de artes marciais, etc.
Agora, pode-se entender melhor a representação do mundo anime como um locus
extraordinário, um espaço onde a dádiva ainda existiria, onde haveria uma grande integração
entre seus membros, os quais seriam pessoas agradáveis. Assim, se justifica o caráter festivo
que tanto chamava a atenção nos eventos folclóricos bem como se destaca nos eventos anime.
O festival folclórico se encaixa perfeitamente no congresso porque este, mais que
uma simples reunião de especialistas, é uma celebração do folclore brasileiro e da
cordialidade que estaria presente em nossa cultura e que se procura reproduzir na
interação entre os folcloristas durante o certame. (VILHENA, 1997, p. 220)
Por sua vez, a representação que alguns fazem do mundo anime, marcado por uma
certa dimensão de sacrifício, de dedicação à imagem de uma atividade realizada por amor à
cultura pop nipônica evidencia que o engajamento no mundo anime, apesar de poder ser uma
atividade secundária (por não constituir sustento para aquele nela envolvido), não configura
um divertimento inconseqüente. Essa percepção é bastante presente entre os mais engajados,
onde uma forte dimensão afetiva, manifestada na dedicação à confecção de cosplays e na
participação ativa, geralmente mal remunerada monetariamente na realização de eventos.
As dificuldades parecem pequenas ou desaparecem quando se sobe ao palco, quando
se é aplaudido ou fotografado, bem como se obtém satisfação em elogios ou em retorno
financeiro com um evento bem feito. Esse retorno, nem sempre positivo do ponto de vista
lógico-racional presente em uma sociedade capitalista, traz muitas vezes um ganho afetivo
que não pode ser convertido em metal sonante. Essa sensação de ver algo realizado e
reconhecido não é exclusiva dos organizadores, também tendo sido vivida pelos folcloristas,
242
já que:
Sensibilizando emocionalmente os seus participantes,cultivando ritualmente um
certo ethos que os mobiliza e os aproxima, o movimento folclórico é capaz de
investi-los de um sentido de missão que, na medida em que seja reconhecido pela
sociedade, permite avanços em direção aos seus objetivos. (VILHENA, 1997, p.
267)
8.2. O Mistério do Japão: Construção de um Valor
Tem-se reforçada a visão nativa do mundo anime como um universo de iguais, que
compartilham de uma identidade de grupo proveniente de um interesse comum: a cultura pop
nipônica. Essa é uma observação bastante recorrente no discurso dos aficionados por Japop, o
fato dele ser composto por “gente legal”. Essa imagem do meio como alegre, divertido,
aparece como uma representação nativa, e positiva do mundo anime, retratado como favorável
ao desenvolvimento da amizade.
Mesmo sendo visto como algo 'instintivo' e 'aleatório', esse sentimento se
manifestava entre pessoas consideradas 'sociáveis', 'agradáveis' e 'bem-humoradas'.
As qualidades de sociabilidade, afabilidade e senso de humor espelhavam, por sua
vez, uma base de interesses e gostos comuns, particularmente quanto ao lazer.
(REZENDE, 2002, p. 40)
Pelo fato do ambiente dos eventos ser consideravelmente festivo, com grande
agitação, movimentação constante e atividades variadas, ele cria uma atmosfera divertida
gerando uma grande interação entre os participantes. Como há muita alegria dentro do evento,
cria-se uma atmosfera agradável e propícia para que as pessoas estejam, em geral, de bom
humor.
O riso visível em muitos dos jovens circulando, para os quais um evento é uma grande
reunião de amigos, confirma a impressão de que um evento anime é um lugar onde todos se
divertem. “Enfatizar o humor como elemento importante de sociabilidade era assim uma
243
tentativa de compensar a atitude séria e disciplinada que eles sentiam ser necessária no
trabalho e que raramente estivera presente na adolescência.” (REZENDE, 2002, p. 41)
Contudo, tal construção não se confirma em todas as situações e relatos. Em nossas
viagens em caravanas para São Paulo, as pessoas que se conheciam interagiram entre si não
demonstraram interesse em interagir com outros. Devo confessar que minha capacidade de
socialização é relativa, mas não me pareceu haver uma predisposição diferenciada para o
estabelecimento de relações sociais.
Tal me pareceu, mas em se tratando de um conjunto de jovens devo destacar que
houve a formação de novos e pequenos grupos, bem como a interação entre pessoas
desconhecidas – em parte facilitada, em alguns casos, pelo fato de ocuparem o mesmo quarto.
Evidencia-se a diferença da relação informal entre pessoas que se conhecem em função de um
gosto comum e a relação de amizade próxima que preexiste ao mundo anime.
Após um contato inicial facilitado pelo gosto comum por animês, se esse contato irá se
tornar uma amizade, dependerá de muito mais do que uma preferência comum. Assim,
existem os que fazem amizades no meio, bem como grupos de amigos que também
freqüentam o universo dos eventos. O mundo anime reproduz essa diferença na qual: “(...)
amigos eram pessoas que trocavam beijos, abraços e afagos, com quem se gostava de estar e
cuja companhia era agradável. A sociabilidade era outro traço que marcava todos os tipos de
amigos, do colega e vizinho com quem se 'brinca' ao amigo próximo.” (REZENDE, 2002, p.
95)
Da mesma forma, uma defasagem entre a representação nativa e algumas
observações que demonstram que, longe de ser um mundo perfeito, o universo dos
aficionados por cultura pop nipônica é marcado por rivalidades, interesses, etc. A expectativa
de se encontrar uma grande disponibilidade para o estabelecimento de uma amizade profunda
244
não deve ser exagerada; os caminhos da amizade no mundo anime, bem como suas
características, não diferem muito dos caminhos tradicionais, bem descritos por Rezende.
O critério de diferenciação entre os tipos de amizade estava no graus de
“profundidade” da relação. Eram mais “profundas” as relações com os “amigos
mesmo”, enquanto as relações com colegas ou amiguinhos” eram tidas como mais
“superficiais”. A idéia de “profundidade” na amizade envolvia uma série de
aspectos, como afinidade de visão de mundo e “intimidade” – estado de
proximidade entre as pessoas caracterizado pela troca de confidências e pelo
compartilhamento de experiências diversas –, que por sua vez pressupunham haver
confiança entre os amigos. (REZENDE, 2002, p. 96)
Contudo, essa representação positiva do mundo anime é relativamente constante entre
os aficionados mais antigos, com os quais lidei, os quais têm uma visão bastante afetiva desse
universo. Relações mais profundas que existiam antes do mundo anime mantém-se, bem
como casos de pessoas que se conheceram nesse meio e que mantiveram vínculos e os
ampliaram – posso dizer que eu mesmo vivo as duas situações.
Por ser um meio onde circulam os consumidores de animês e mangás, elementos que
garantiram um conjunto de referências comuns, esse universo se construiu como um espaço
de socialização positivo, onde todos compartilham os mesmos interesses, o que facilitava uma
interação social. “A empatia e a identificação por afinidades eram, pois, aspectos importantes
na fase inicial da amizade, mas com o tempo a sinceridade entre amigos adquiria relevância
especial.” (REZENDE, 2002, p. 99)
Da mesma forma que há uma diferenciação no grau de engajamento nas atividades que
compõem a dinâmica interna do mundo dos aficionados pela cultura pop nipônica, também há
uma diferença nos graus de amizade. Como foi destacado por Rezende, a existência de
interesses comuns pode ser um ponto de partida para o estabelecimento de uma amizade, mas
não é sua única característica.
Envolvimento e confiança apontavam também para uma “doação” que era desejada
e esperada do amigo, mas que continha sempre um elemento de incerteza. Essa idéia
de “doação” de tempo, atenção e afetividade ao outro era consoante com a
importância dada a estar aberto ao outro, ressaltando uma visão mais básica de que
as pessoas deviam estar sempre voltadas para as suas relações para com os outros.
245
Isso implicava necessariamente reciprocidade, devendo haver de fato uma troca de
afeto, confiança, 'intimidade' e cuidado. (REZENDE, 2002, p. 101)
Esse campo específico possui pequenas peculiaridades, como o fato de, apesar de estar
em clara expansão, ainda comportar a possibilidade do contato face-a-face. Tanto os
principais organizadores de eventos, quanto os cosplayers mais importantes, possuem
conhecimento uns dos outros. “A existência de indivíduos que agem como mediadores
culturais, e de espaços sociais onde essas mediações são implementadas, é uma idéia
fundamental para a análise do mistério do samba.” (VIANNA, 2004, p. 41)
Desse modo, tanto os organizadores de eventos quanto os aficionados que convidam e
levam colegas ou amigos interessados em cultura pop nipônica, agem como mediadores, de
forma semelhante ao que ocorreu no universo do samba. Da mesma forma, os locais dos
eventos, bem como as praças de alimentação de shoppings onde aficionados se reunem e as
casas de amigos onde se realizam exibições informais, funcionam como loci de socialização e
de familiarização com o mundo anime.
Como aficionados de outras manifestações culturais contemporâneas, os consumidores
de mangás e animês compartilham, em maior ou menor grau, influências diversas. Essa
combinação de referências variadas lhes permite desenvolver uma visão de que possuiriam
uma individualidade peculiar, advinda de uma harmonização própria de elementos, por vezes,
aparentemente díspares. “Esses indivíduos 'radicais' e extremamente singularizados podem
elaborar projetos que tenham como objetivo a facilitação (e também a intensificação, a
aceleração, a instituição) das trocas e outros tipos de relações entre dois ou mais 'mundos' que
participam da heterogeneidade cultural das sociedades complexas.” (VIANNA, 2004, p. 42)
Esses espectro de múltiplas referências culturais que através dos meios de
comunicação de massa se torna cada vez mais amplo (fornecendo diferentes opções para
diferentes públicos), tornou possível uma segmentação do mercado de consumidores de bens
246
culturais. Por isso a ênfase continuamente reafirmada na existência de uma cultura pop que é
produzida no Japão e consumida no Brasil. Ainda que ela possua uma característica “pop” que
a marque como algo feito para o mercado, o fato de ser de origem japonesa a torna um
material diferenciado.
O “pop” japonês, por suas nuanças orientais, seria diferente do que se costuma pensar
como sendo o “pop tradicional” aquele de matriz anglo-saxônica (pelo menos na visão dos
nativos com os quais tenho trabalhado). Enquanto que o adjetivo pop marcaria uma
homogeneização, a origem nipônica conferiria a essa cultura uma singularidade. Apesar de
estar originalmente ligada a um grupo étnico específico (a comunidade nikkei), a cultura pop
nipônica cada vez mais pode ser pensada como sendo pertencente a todos, sem perder sua
marca oriental.
103
É compreensível que essa cultura sofra uma releitura no Brasil e que ela adquira aqui,
principalmente no que se refere à interação social entre seus consumidores, feições próprias.
O fato de um cosplayer subir ao palco e, durante a sua apresentação, fazer referência a fatos
ou situações da realidade brasileira são uma prova da assimilação de elementos nacionais
dentro de uma prática estrangeira. Já vi, por exemplo, um cosplayer puxar uma carta do
mosquito da dengue para utilizá-la contra seu rival no palco.
Coloca-se a questão do que é nacional, isto é do que seria autenticamente brasileiro e
do que seria estrangeiro. Esse problema tem sido um tema relevante desde a construção da
nossa identidade nacional, e ganhou características novas no início do século passado, quando
os modernistas se lançaram nesse projeto de definição do que seria a cultura nacional e que
teria na valorização da mestiçagem, a grande contribuição de Gilberto Freyre. É preciso,
103
Uma interpretação semelhante aos que vêem o samba como manifestação cultural negra, mas
dissolvida no cadinho cultural brasileiro, sem deixar de ser vista como uma manifestação de negritude. “A
dissolução no arco-íris de todas as raças não significa o apagar das diferenças, mas sim o convívio, sem
separação, entre diferenças, com infinitas possibilidades de combinações entre elas.” (VIANNA, 2004, p. 91)
247
repito, para quem está interessado no processo de construção do nacional, definir a
mestiçagem que nos interessa, o que é o 'brasileiro' que nos interessa. Corre-se o risco de
acabar querendo impor esse 'brasileiro' a todos os diferentes brasileiros.” (VIANNA, 2004, p.
104)
Esse alerta de Hermano Vianna é válido ao se pensar que as contribuições japonesas,
sem deixarem de ser nipônicas, já estão inseridas na nossa cultura, mesmo que sua origem não
seja conhecida ou reconhecida – como os casos de Speed Racer, Hello Kitty e Power Rangers,
muitas vezes tidos como estadunidenses.
Quando se desqualifica o material nipônico, atualmente altamente presente na vida de
nossos jovens, como sendo estrangeiro, se esquece de um fato real: ele está próximo de todos.
Desejável ou não, positivo ou não, é possível ver DVDs Cavaleiros do Zodíaco ou versões
piratas de bonecos de Naruto em quase qualquer esquina do Mercado Popular da Central do
Brasil, em lojas de produtos populares na Tijuca ou no calçadão de Nova Iguaçu.
Mesmo as tentativas de mangá nacional enfrentaram problemas de aceitação, talvez a
que mais tenha se aproximado de alcançar algum sucesso tenha sido Holy Avenger. É
interessante destacar que, apesar de ser uma história com elementos retirados da mitologia do
Senhor dos Anéis, essa obra manteve expressões e gírias brasileiras prática presente na
dublagem de alguns animês, como Yu-Yu Hakusho, e também na tradução de alguns mangás.
Esse “abrasileiramento” do material nipônico, alvo tanto de elogios quanto de críticas
por parte dos aficionados, não é possível quando se realiza mangás nacionais com temática
japonesa, com histórias de samurais. Se é possível tornar um produto nipônico mais próximo
da realidade brasileira, alguns otakus consideram difícil criar uma obra brasileira que se passa
por material nipônico. aqueles que dizem que mais do que um estilo veloz e alguma
referência à samurais ou ninjas, desenhar/escrever mangá implica em ser membro daquela
248
realidade.
No caso de se pensar o consumo de material pop nipônico como sendo nocivo por ser
japonês, Holy Avenger escaparia de críticas por ser realizado no Brasil? O fato de ser
brasileiro, apesar do estilo oriental, o tornaria uma manifestação da cultura brasileira? Por ter
temática semelhante à das obras nipônicas, isso o tornaria um exemplar de cultura pop
nipônica?
Essa discussão encontra certa ressonância nas palavras de D. Mauro Morelli
(publicadas na Folha de São Paulo de 24/11/84), alguns meses antes da realização do Rock in
Rio, que poderiam facilmente ser pensadas como uma das falas dos críticos da presença da
cultura pop nipônica no Brasil: “Que contribuição traz para a cultura brasileira uma
manifestação como esta, toda importada e que não valoriza a nossa própria cultura?” (apud
VIANNA, 2004, p. 134)
Esse debate é bizantino e sem resposta simples. O samba sofreu críticas por ser de
origem negra e o futebol foi atacado por ser de origem estrangeira e acabaram se tornando
símbolos da nossa nacionalidade. A cultura pop nipônica, atualmente, pertence muito mais a
um grande número de jovens brasileiros do que aos membros da comunidade nikkei do Brasil.
De certa forma, ela compõe parte de nossa forma de ser, bem como foi alterada e relida
por essa mesma forma de ser brasileiro.
Negociações transculturais, exemplificadas aqui na emergência do samba como
música nacional brasileira, são fenômenos comuns em sociedades complexas. A
coexistência de inúmeros grupos sociais, com estilos de vida e visões de mundo
contrastantes (e mesmo conflitantes), exige esforços cotidianos de negociação da
realidade por parte de cada um desses grupos. (VIANNA, 2004, p. 153)
Diferentemente do samba, que no seu processo de definição como mbolo da
nacionalidade encontrou um contexto histórico favorável nos anos 1920 e 1930 (indo ao
encontro de uma intelectualidade sequiosa de referencial que pudesse ser tomado como
símbolo nacional), a cultura pop nipônica, devido as suas características (estrangeira, tida
249
como exótica e comercial) e pela ausência de uma situação semelhante, não seguiu o mesmo
caminho de inserção na mídia brasileira e ainda busca o reconhecimento que o samba
conseguiu, diga-se de passagem com bastante dificuldade.
Por isso, a constituição do mundo anime seguiu um rumo diferente do samba, mas
também buscou sua legitimidade, bem como tentou criar seus mitos de origem e heróis
fundadores. É no movimento folclórico, estudado por Vilhena (1997), que penso encontrar os
paralelos mais pertinentes e esclarecedores para se compreender como o mundo anime
adquiriu as feições que o marcam atualmente.
Enquanto que os folcloristas tentaram criar seu espaço e não foram bem sucedidos, os
otakus tiveram mais sucesso. Esse sucesso aparentemente repentino é fruto de um processo
que foi lento, tomando mais de uma década. Entre os aficionados precursores, atualmente
entre os vinte e cinco e trinta anos, aqueles que estão envolvidos com o mundo anime
pelo menos quinze anos ou mais, desde o impacto de Cavaleiros do Zodíaco. Dessa forma,
vários aficionados que vivenciaram diferentes fases e momentos nessa expansão do
universo da cultura pop nipônica no Brasil. Essa trajetória poderia ser pensada como uma
“carreira de otaku” no mundo anime.
Como foi tratado anteriormente, ao se mostrar tanto a presença dos produtos da
indústria cultural japonesa no Brasil e ao se analisar a constituição do mundo anime brasileiro,
foi possível evidenciar como essas pessoas direcionaram parte considerável do seu tempo e
esforço na dedicação aos mangás e animês.
Originalmente desenvolvido em estudos de ocupações, o conceito se refere à
seqüência de movimentos de uma posição para outra num sistema ocupacional,
realizados por qualquer indivíduo que trabalhe dentro desse sistema. Além disso,
inclui a noção de “contingência de carreira”, aqueles fatores dos quais depende a
mobilidade de uma posição para outra. Contingências de carreira incluem tanto fatos
objetivos de estrutura social quanto mudanças nas perspectivas, motivações e
desejos do indivíduo. (BECKER, 2008, p. 35)
Assim, é possível compreender como alguns dos aficionados se tornaram cosplayers,
250
organizadores de evento ou permaneceram como meros consumidores, etc. As contingências
que cercam a carreira no mundo anime, permitindo seu desenvolvimento ou favorecendo o
afastamento do mesmo, envolvem uma diversidade de fatores:
a) objetivos, como a juventude de seus aficionados e a não-obrigatoriedade de trabalhar ou a
necessidade de inserção em uma atividade profissional;
b) subjetivos, como a possibilidade de aumento ou perda de interesse por esse universo em
vista das transformações sociais advindas da entrada na vida adulta (ensino superior, novas
amizades e interesses, primeiro emprego, etc.).
Embora o mundo anime tenha se tornado bem mais amplo, englobando um número de
jovens muito maior do que era no seu início (de eventos de cerca de duas mil pessoas para
eventos com mais de quarenta mil), ainda é possível pensá-lo como um universo um tanto
peculiar. Acredito que, ainda que seja um tanto temerário classificar uma carreira no mundo
anime como desviante, acho que é possível considerar o otaku um outsider.
Tal perspectiva é pertinente porque esse universo, o da cultura pop nipônica, ainda é
consideravelmente desconhecido para muitas pessoas e seu referencial (originário de produtos
da indústria cultural japonesa) ainda não é totalmente reconhecido como possuidor de um
valor positivo.
Considero válido uso da categoria de carreira desviante para os aficionados pela
cultura nipônica, embora esteja relativizando o peso dessa categoria, utilizando-a aqui sem
enfatizar toda a densidade atribuída ao desvio. O fato de esses aficionados (ainda que em
maior ou menor grau) terem adotado uma terminologia própria para se identificarem, a
denominação otaku, é um sinal de que consideram como possuindo alguma especificidade.
Apesar de não serem alvo de um processo evidente de (auto)exclusão social, considero
útil a idéia de desvio, pelo fato de não acompanharem alguns dos referenciais culturais
251
dominantes, preferindo uma referência alternativa, a da cultura pop nipônica.
Essa cultura otaku atrai, pois é sem dúvida uma das raras culturas jovens que
nutrem os sonhos dos adolescentes, sem tomá-los por crianças e sobretudo sem ser
moralista. Com o pesar de alguns adultos.
Da mesma forma que os jovens japoneses, os jovens franceses, americanos
ou de Taiwan evadem-se da rotina redundante de sua vida escolar ou das
contingências do meio social através dos desenhos animados, dos mangás, dos video
games, nos quais encontram sensações fortes com que saciam seu imaginário.”
(BARRAL, 2000, p. 269)
Por consumirem produtos de uma indústria cultural considerada exótica, e até suspeita,
alguns aficionado consideram-se alvo de certa vigilância embora seja diferente do grau de
desconfiança que recai sobre usuários de maconha, por exemplo. Esse receio de serem vistos
como desajustados, é perceptível quando algum tipo de reportagem os retrata como exóticos
ou infantilizados. Por isso, Edmilson disse ter certa reserva quanto a comentar que gosta desse
tipo de material, só tocando no assunto quando alguém demonstra interesse pelo tema.
“Pô um cara de 27 anos gosta de desenho?” (Edmilson, 27 anos)
Por isso, uma certa preocupação com a forma como esse universo é descrito pela
mídia em geral, e também a preocupação de alguns dos participantes em dizer que possuem
vidas normais, de forma a anular um possível impacto negativo sobre suas vidas por ser
chamado de, ou por se assumir como, otaku.
A identificação do sujeito como desviado pode apagar todas as demais, daí o receio de
um conhecido cosplayer que é um funcionário público, cuja função é depositária de grande
confiança da população. Então, ser reconhecido como cosplayer poderia levantar dúvidas em
relação ao quanto esse indivíduo é confiável.
104
Tal preocupação explica o grau de racionalização existente nas publicações voltadas
para os otakus, bem como os comentários freqüentes de alguns cosplayers afirmando que
possuem “vidas normais” fora do mundo anime, além de observações sobre como esse
104
Um colega de corporação desse cosplayer, me confidenciou que, ao mesmo tempo em que outros acham
graça do fato do colega praticar essa atividade, há um certo receio de que isso possa comprometer a confiança na
instituição da qual fazem parte.
252
universo pode ser benéfico para aqueles nele inseridos. Isso também explica a preocupação
com os primórdios do mangá no Brasil, mostrando que a presença da cultura pop nipônica não
seria algo recente, possuindo uma um passado significativo. Desenvolve-se assim um discurso
de auto-justificação, o qual visa construir uma representação própria desse grupo e desse
universo.
A rigor, existiriam duas carreiras possíveis no mundo anime:
a) a ocasional (ida a eventos, consumo de produtos, etc.);
b) a intermediária (trabalha às vezes como staff, realiza eventos esporádicos, faz cosplay,
gosta de montar estande, mas tem outra atividade geradora de renda);
c) a profissional (vive do seu trabalho com eventos, da confecção de cosplays, da venda de
produtos como DVDs, acessórios, etc.).
105
O otaku iniciante aprende a participar desse mundo anime, organizado em torno de
jogos eletrônicos, desenhos animados e revistas em quadrinhos de origem nipônica. Ele é
socializado, portanto, com os integrantes mais experientes, os quais dão dicas sobre produtos,
vestem acessórios “japas” (como bottons, camisas com kanjis ou desenhos de animês, etc.)
convidam para eventos, etc.
Esse processo é consideravelmente semelhante ao que caracteriza a carreira de um
torcedor de futebol. O desenvolvimento de uma carreira no futebol e no mundo anime guarda
pontos comuns, alguns dos quais retomarei a frente. Aqui vale ressaltar o caráter hesitante,
indeciso, sem uma intenção clara de se tornar otaku ou torcedor.
A entrada para a torcida geralmente ocorre pelas mãos de colegas e amigos. Em
alguns casos, antes de ingressarem definitivamente, “ficam” na torcida, na
arquibancada, sem vínculo estabelecido (a carteirinha configura a situação de sócio);
às vezes, encontram conhecidos que os integram à torcida, passando a assistir aos
jogos com eles, até decidirem associar-se. (CÂMARA, 2000, p. 115-116)
105
A carreira pessoal pode evoluir para as outras, bem como pode regredir, com a diminuição do interesse pelos
eventos. Também vale lembrar da dificuldade de conseguir a profissionalização, alcançada por um número
reduzido em comparação com a maioria dos aficionados.
253
Além da inserção em torcidas organizadas, os passos iniciais no mundo anime
comportam características semelhantes às de outros processos de entrada em outros grupos
relativamente restritos, como o dos usuários de maconha e de músicos de jazz estudados por
BECKER (2008).
Embora a tipificação por ele feita dos usuários de maconha também se divida em três
tipos (iniciante, ocasional e habitual), ela não corresponde diretamente à divisão aqui feita. O
aficionado de nível pessoal, que apenas assiste desenhos animados na TV aberta acaba por
saber por amigos que existe como baixar animês (passa a conhecer essa denominação) pela
Internet, começa a pegar DVDs emprestados com episódios, etc.
A comparação entre consumidores de cultura pop nipônica e usuários de maconha
pode parecer um tanto exagerada, e talvez o seja à primeira vista. A dinâmica do processo de
introdução nesses universos referenciados nos animês e mangás por um lado, e na maconha
pelo outro – é semelhante.
106
Becker (2008) destaca o fato de que o início de uma vida de desvio não se por uma
ruptura clara, mas por um processo progressivo, que pode ser seguido de idas e vindas em
diferentes momentos, mas que acaba por avançar na direção do desvio. Os padrões de conduta
se alteram e se desenvolvem em seqüência, em um fluxo onde cada passo explica e possibilita
o passo seguinte.
Por exemplo, aquele que fuma maconha, para ser usuário, precisa estar inserido num
grupo social no qual a substância seja acessível. A partir desse contexto, é preciso que ele
esteja disposto a experimentá-la e, mesmo após o uso inicial, deve haver interesse em repetir o
uso e condições para mantê-lo, de forma que o consumidor possa continuar usando-a,
106
Estou interessado nos aficionados que praticam um consumo “saudável” de produtos da indústria cultural
nipônica, não estou me focando em otakus que possam ser considerados como sujeitos com desvio psicológico,
alienados ou que tenham substituído a realidade pela fantasia dos animês e mangás os quais parecem ser casos
raros entre os aficionados.
254
tornando-se um usuário.
A teoria começa com a pessoa que chegou a ponto de se dispor a experimentar
maconha. (…) Ela sabe que outros usam maconha para 'ter um barato', mas não sabe
o que isso significa de maneira concreta. Es curiosa com relação à experiência,
ignorante do que ela pode ser e temerosa de que possa ser mais do que espera. Os
passos delineados a seguir se a pessoa passar por todos eles e mantiver as atitudes
neles desenvolvidas a deixarão desejosa e apta a usar a droga por prazer quando a
oportunidade se apresentar. (BECKER, 2008, p. 55)
Percebi que havia uma semelhança entre o processo de iniciação ao consumo da
maconha e o processo de inserção no mundo anime. Afinal, muitos assistem desenhos
japoneses na televisão, acham interessante ou não, e, por vezes, assistem outras coisas.
Assistir a um desenho ocasionalmente e isoladamente, pode não ser o suficiente para gerar um
envolvimento tive depoimentos de pais, por exemplo, que nunca assistiram a um animê, ou
que tinham assistido uma vez, não compreendido ou não gostado, pela violência ou estilo do
desenho.
Em 1995/1996 perguntei a um amigo de faculdade sobre como o irmão mais velho
dele tinha começado a gostar de Cavaleiros do Zodíaco. Ele me disse que o irmão não assistia
o desenho e que achava besteira o fato dele [meu amigo assistir]. Após algum tempo, o irmão
acabou vendo alguns episódios e continuou a achar a história exagerada, a animação ruim, etc.
Depois de observar vários episódios, começou a tirar dúvidas a respeito da história,
das motivações dos personagens com o irmão [meu amigo de faculdade] e começou a
acompanhar regularmente a história, passando a “assistir por prazer”. Ele, que era funcionário
da empresa da família (uma gráfica), chegou a cogitar a idéia de produzirmos uma história em
quadrinhos ou algo semelhante.
Processo semelhante é vivenciado por aquele que se inicia prática de fumar maconha.
O usuário iniciante não costuma gostar das primeiras experiências, dificilmente ele alcança o
“barato” nas primeiras tentativas como o aficionado por animê, que geralmente assiste um
episódio de uma série sem saber o contexto no qual ele está inserido. Para se ter prazer
255
(“viajar”) com a maconha, o usuário em geral acaba por fazer várias tentativas de uso pois,
para viajar, existem várias etapas que ele deve passar, caso não as vivencie, acaba desistindo
do uso da droga. Como disse Becker: “O noviço em geral não fica no barato na primeira vez
que fuma maconha, e várias tentativas são necessárias para induzir esse estado.” (BECKER,
2008, p. 35-36)
Após várias experiências, o usuário começa a perceber as sensações advindas do
barato como sendo prazerosas. Com o tempo, enquanto que um aprende como fumar, como
tragar, etc., através do contato com outros usuários, um otaku iniciante, vai aprendendo sobre
a história do animê que assistiu, toma conhecimento de outros com histórias semelhantes ou
diferentes, descobre revistas sobre o assunto destacando os (supostos) pontos positivos e
negativos desse e daquele desenho, etc. Para isso, também é fundamental a contribuição dos
outros aficionados. É um aprendizado social.
Com a crescente experiência, o usuário desenvolve uma maior percepção dos efeitos
da droga; continua aprendendo a ter um barato. Ele examina atentamente sucessivas
experiências, procurando novos efeitos, certificando-se de que os antigos continuam
presentes. A partir disso, desenvolve-se um conjunto estável de categorias para a
experimentação dos efeitos da droga cuja presença permite ao usuário ter um barato
com facilidade. (BECKER, 2008, p. 60-61)
Assim, alguns otakus desenvolvem um nível de racionalização que, ao serem
questionados, possibilita-lhes dizer o que consideram mais interessante em um determinado
desenho e ou estilo. Como disse antes, os que mencionam a violência evidente, outros o
traço característico, alguns a qualidade das histórias (o valor do trabalho em conjunto, a
valorização da auto-superação, etc.).
Esse conhecimento do que haveria de distinto nos animês e mangás fornece elementos
para trocas em conversas, bate-papos, gerando discussões por vezes até apaixonantes, nas
quais os aficionados podem exercitar esse saber juvenil. “À medida que adquirem esse
conjunto de categorias, os usuários se tornam connaisseurs.” (BECKER, 2008, p. 61)
256
Outro ponto interessante na comparação entre os aficionados Japop e os usuários de
maconha é o fato de que, pelo menos até tempos recentes, havia uma grande dificuldade de
acesso ao material consumido por cada um desses grupos. Nesse caso, a situação mudou
consideravelmente no que se refere ao consumo de animês e mangás; se antes era difícil
assisti-los na TV aberta, hoje eles podem ser baixados e assistidos sem maiores complicações
no computador.
Apesar da ilegalidade desse ato, que fere a questão do pagamento dos direitos autorais,
tal ação não sofre, por enquanto, o mesmo tipo de vigilância por parte dos pais que a
consideram praticamente inofensiva que sofreria a entrada de maconha em casa. O uso de
drogas psicotrópicas, por ter seu caráter ilegal recorrentemente divulgado pela mídia, e pela
sua associação à violência devido ao tráfico de drogas, ao ato de adquirir maconha um
sentido muito mais ilegal do que o de comprar um DVD pirata de Naruto, por exemplo. Daí a
relativa dificuldade no acesso à maconha.
O uso da maconha é limitado, em primeiro lugar, por leis que tornam a posse ou a
venda da droga passíveis de severas punições. Isso restringe sua distribuição a fontes
ilícitas não facilmente acessíveis a pessoa comum. Para começar a fumar maconha,
uma pessoa deve participar de algum grupo por intermédio do qual essas fontes de
fornecimento se tornem acessíveis para ela, em geral um grupo organizado em torno
de valores e atividades opostos aos da sociedade convencional mais ampla.
(BECKER, 2008, p. 71)
Assim, o contexto que ainda caracteriza o consumo da maconha hoje, corresponde ao
que foi o momento inicial do mundo anime, quando o acesso aos animês (já que praticamente
inexistiam mangás em português) era bastante difícil, devido à oferta reduzida. Como a
exibição desses desenhos animados pelas redes de televisão era pequena e irregular, isso
dificultava o surgimento de um grande público, o que, por sua vez, não justificava um
aumento da presença de desenhos japoneses na programação televisiva.
O progressivo aumento do mero de animês na televisão brasileira, bem como a sua
disseminação de forma independente pela Internet, mudou essa configuração, alavancando a
257
expansão do mercado e permitindo um crescimento exponencial daqueles que passariam a se
considerar otakus.
Como destacou Becker, referindo-se aos usuários de maconha, mas cuja afirmação é
totalmente válida para os aficionados por Japop: “Cada estágio de uso, da iniciação à rotina,
tem portanto seu modo típico de fornecimento, o qual deve estar presente para que esse nível
ocorra. Assim, os mecanismos que operam para limitar a disponibilidade da droga restringem
também seu uso.” (BECKER, 2008, p. 75)
Os eventos acabaram por se constituir em um espaço onde os aficionados podiam se
encontrar, trocar referências, comprar objetos (inicialmente, camisas com motivos de animê,
com o posterior aparecimento de CDs e atualmente de DVDs), assistir às novidades
conseguidas por algum conhecido, apresentar seu cosplay, etc. Formou-se um locus de
socialização entre aficionados.
Quando pessoas que se envolvem em atividades desviantes têm oportunidade de
interagir, é provável que desenvolvam uma cultura constituída em torno dos
problemas decorrentes das diferenças entre sua definição do que fazem e a definição
adotada por outros membros da sociedade. Elas desenvolvem perspectivas sobre si
mesmas e suas atividades desviantes e sobre suas relações com outros membros da
sociedade. (Alguns atos desviantes, claro, são cometidos isoladamente, e as pessoas
que os cometem não têm a oportunidade de desenvolver uma cultura. Exemplos
disso são o piromaníaco compulsivo e o cleptomaníaco.) Como operam dentro da
cultura da sociedade mais ampla, porém diferentemente dela, essas culturas são
muitas vezes chamadas de subculturas. (BECKER, 2008, p. 91)
Como foi demonstrado no capítulo cinco, esse universo inicial se transformou
consideravelmente. Essa dimensão face-a-face dos aficionados, quando as pessoas se
conheciam e se reconheciam nos eventos, se modificou com o aumento dos mesmos. A
popularização do mundo anime, em parte devido ao grande público presente nos eventos e aos
concursos de cosplay, levaram a uma gradual superação do estranhamento em relação a esse
universo.
É verdade que, ainda um certo elemento de estranheza quando os aficionados por
cultura pop nipônica são retratados, houve uma diminuição da imagem de alienados. Até
258
alguns anos atrás, ainda não tinha ocorrido fenômeno otaku; o mundo anime era reduzido e se
constituiu nesses últimos quinze anos de forma subterrânea, marginal mutatis mutandi, de
forma semelhante ao universo dos usuários de maconha.
Contudo, com a sua expansão nos últimos anos, ele acabou por se tornar uma
referência para muitos, sem possuir uma imagem tão negativa quanto a que pesa sobre os
usuários de drogas: assistir desenhos animados, brincar com jogos eletrônicos e ler mangás
são hábitos que, não sendo obsessivos, aparecem como práticas relativamente inofensivas.
Assim, atualmente, embora os eventos anime não sejam proibidos e nem sejam alvo de
uma preocupação extremada por parte dos pais, eles ainda são vistos como uma realidade
diversa. Alguns pais me passaram a impressão de que a relativa estranheza das roupas e do
ambiente não eram preocupantes pelo fato de ser um mero modismo, um ato de “rebeldia
juvenil” temporário e passageiro (“também já tive minha fase”).
O exotismo das atividades que caracterizam os eventos, como o andar fantasiado (no
caso dos cosplayers), de se vestir com acessórios que remetam ao Japão, cantar músicas em
japonês, etc., não são atividades convencionais, por isso ainda causam estranhamento, mesmo
que não gerem temores exacerbados.
Esse caráter um tanto marginal, aceito sem maiores reservas, também remeteu a
outro grupo de outsiders, os músicos de jazz. A associação com esse universo é bastante
esclarecedora da forma como os otakus se relacionam com a cultura pop nipônica e a
construção dela como sendo possuidora de um valor o que acontece no caso da relação
desses músicos com o jazz.
Da mesma forma que os músicos formam grupos e, muitas vezes, eles são estáveis e
duráveis, os aficionados também formaram pequenos grupos para a apreciação dos animês e
os mangás. Assim, tanto esses músicos quanto os otakus acabaram por desenvolver uma
259
cultura particular, específica. A existência de um interesse comum, em um caso o jazz e em
outro a cultura pop nipônica, além de passarem por situações semelhantes, como um relativo
isolamento devido a uma certa desconfiança pela sociedade convencional, levaram a
constituição de uma identidade relativamente comum.
Ao se relembrar da luta por reconhecimento da cultura pop nipônica, pode se perceber
que o sucesso dessa empreitada acabou por gerar dilemas semelhantes aos de alguns músicos
de jazz. Esses músicos viviam a angústia de não saber se deveriam ceder aos apelos
comerciais e tentar tocar de modo acessível ao grande público, ou se deveriam manter-se fiéis
à sua arte, sem alcançar sucesso fora do meio jazzístico (sendo reconhecidos apenas entre
outros músicos e um público mais restrito).
Do lado da cultura pop nipônica, tem-se um situação semelhante: alguns dos
aficionados não sabem se querem eventos maiores e com maior divulgação, com visitantes
que pouco sabem desse mundo anime (aqueles que assistem desenhos japoneses dublados na
televisão aberta), ou se devem começar a se sentir nostálgicos de uma era de ouro, quando os
eventos eram menores e freqüentados por amigos que realmente gostavam de animês e
mangás.
Essa dúvida acontece pelo fato de tanto o jazz como os desenhos animados japoneses
serem produtos de uma cultura de massa. Embora inicialmente pertençam a um público seleto,
seu sucesso acaba por atrair os que não faziam parte dos apreciadores iniciais. O fato de se
ceder a esses neófitos, que se aproximaram e que desejam um divertimento mais acessível,
revela o caráter comercial dessa atividade. Tocar um jazz menos improvisado e mais linear
para atender o grande público que se forma, que vai para o bar para se divertir e não para
usufruir de um free jazz mais artístico, seria reconhecer que o artista estaria se submetendo ao
mercado.
260
Os músicos acham que a única música que vale a pena tocar é o que chamam de
“jazz”, termo que pode ser parcialmente definido como aquela música produzida
sem referência às demandas de outsiders. (…) Os músicos se classificam de acordo
com o grau em que cedem aos outsiders; o continuum varia desde o músico de 'jazz',
num extremo, até o músico 'comercial', no outro. (BECKER, 2008, p. 92)
Esse questionamento aparecerá ainda nesse capítulo, ao tratar da questão da
publicação de mangás e da exibição de animês em português. Alterar o material nipônico para
atender às demandas de um consumidor mais geral, o qual acabou de descobrir os desenhos
japoneses, seria esvaziar esse material do seu valor intrínseco.
Também estabelece-se aqui uma gradação que vai desde o otaku mais comprometido
com o mundo anime, que assiste o último lançamento no Japão, que aprendeu japonês e
mangá no original, até o aficionado mais superficial, o qual assiste o animê exibido na
televisão aberta.
Da mesma forma que esses músicos se consideram especiais, com um dom (pensando-
se como artistas e não como agentes de uma cultura de massa) que os diferencia dos demais,
os otakus também se vêem como especiais. Não acreditam que seja possível se ter a devida
experiência do material nipônico lendo-o em edição adaptada à leitura ocidental, nem em uma
dublagem que não dê conta das especificidades culturais japonesa.
Para alguns mais puristas, o simples fato de assistir animês não seria o bastante para
configurar uma pessoa como otaku, afinal, como me foi dito: “ser otaku virou modinha”,
afinal, qualquer um pode ver Naruto em uma rede de televisão aberta. Enquanto, como dizia
Becker: “O músico é concebido como um artista que possui um misterioso dom artístico que
o distingue de todos os demais.” (BECKER, 2008, p. 94). Pode-se dizer aqui que o otaku tem
um gosto que o diferencia dos demais.
Aqui acontece um ponto interessante. Enquanto que os aficionados precursores mal se
distinguem da maioria das pessoas, cuja ligação com o mundo anime não era um traço de
identidade que fosse explicitado continuamente, os jovens aficionados fazem questão de
261
mostrar que são otakus. Um fichário cheio de adesivos de algum personagem de Naruto
Sakura, por exemplo, uma jovem inteligente e com grande força de vontade –, significa uma
forma de expressar uma determinada atitude ou identificação, através do recurso à
personagem em questão.
Quando, em 2008, fui convidado para ministrar uma palestra na ESPOCC (Escola
Popular de Comunicação e Crítica), em Nova Iguaçu, um dos estagiários estava com uma
camisa do animê Death Note. Ao me perguntar sobre o que eu iria falar, eu acabei por lhe
falar sobre minha pesquisa. Ele demonstrou interesse e me perguntou o que eu havia
descoberto e quando eu disse que ao usar a cultura pop nipônica como referência, havia um
certo apelo a um status de singularidade, ele meio que assentiu sorrindo, um tanto surpreso e
sem graça.
107
Mostrar que se é otaku traz em si um valor, um sinal de que se contraria os ditames da
indústria cultural. Da mesma forma que esses músicos rejeitam os valores da sociedade
convencional, querendo ser diferentes, exóticos, os aficionados mais jovens querem mostrar
que são otakus, que não são conformados ao que os meios de comunicação divulgam. Ser
meio “maluco”, transgressor, é um valor positivo.
Viver da forma segundo a maioria da sociedade acha normal seria conformismo. Essa
noção de ostentar uma atitude, de se colocar como alternativo, chamou-me a atenção. Acabei
por perguntar a uma jovem que questionava os jovens que assistiam animês na televisão e
que,por ser modinha” diziam ser otakus, o que era ser otaku. Para minha (parcial) surpresa,
não houve menção a qualidades estéticas dos desenhos ou ao valor das histórias. Ela me disse:
São dois os tipos de otaku: os que zoam e os que vão pra comprar e vão embora”
(Pietra, 16 anos)
uma pequena indisposição para com os “otakus de última hora”, aqueles que
107
São esses otakus mais jovens os que mais aparecem com gorros de gatinho, perucas, camisas pretas, roupas
com adereços exóticos, roupas de cosplays comprados, etc.
262
correspondem a um perfil menos engajado no mundo anime, os que consomem o material
nipônico mais facilmente acessível: os desenhos na TV aberta e os mangás nas bancas de
jornal. Esse público iniciante no universo dos produtos da indústria cultural japonesa é visto,
por vezes, com certo desdém: estabelece-se uma hierarquia entre os iniciados no mundo
anime e os iniciantes.
108
Assim, parte dos otakus se colocaria de forma semelhante a dos músicos de jazz, os
quais se vêem como especiais, possuidores de uma qualidade que os torna singulares, o
talento para o jazz, o que lhes permite diferenciar-se dos “quadrados” que estariam por fora
desse gosto musical.
Os otakus, que utilizam um vocabulário próprio, consomem material que não é exibido
pelas redes de televisão brasileira e lêem mangás traduzidos disponibilizados pela Internet, se
colocam como verdadeiros aficionados. Para eles, os otakus iniciantes, não seriam realmente
aficionados no mesmo grau de interesse e conhecimento. Essa interpretação me foi
confirmado por Márcio, filho do meu colega de trabalho Roger.
Infelizmente, as pessoas que gostam e se denominam otakus gostam de
Naruto, que gostam de vender dublado.
As pessoas acham que ser otaku é gostar de um animê e um otaku é ver
outros animês, até pra poder comentar, sugerir outros. (Márcio, 13 anos)
O interessante é que com a acelerada expansão do mundo anime, aficionados que
começaram a consumir esse tipo de material a menos de cinco anos, passando a ir a eventos,
por exemplo, falam como se fossem otakus a muito tempo embora desconheçam clássicos
do gênero e gostem do que está em evidência. O fato de irem a eventos, lerem mangás e
assistirem animês baixados da Internet seriam diferenciais em relação aos que assistem apenas
os desenhos na TV aberta e se afirmam otakus.
108
quem defenda que os “iniciantes” devem ser acolhidos e “instruídos”, auxiliados nessa
inserção, enquanto que outros os consideram despreparados, ignorantes do universo em que adentram, sendo
portanto um aborrecimento.
263
Uma outra forma de não se aborrecer com os valores dosquadrados” é não levá-los a
sério, promover uma auto-segregação no envolvimento. Outra forma de segregação é o uso
dos jargões próprios (gírias) aos músicos, que excluem os demais de compartilhar o modo de
viver.
O processo de auto-segregação é evidente em certas expressões simbólicas, em
particular no uso de uma gíria profissional que identifica rapidamente o homem que
a pode usar adequadamente como alguém que não é quadrado, e reconhecer com
igual rapidez, como outsider, a pessoa que a emprega incorretamente ou não a
utiliza. (BECKER, 2008, p. 109)
Os otakus também desenvolveram um vocabulário, em parte inspirado em palavras
japonesas e em termos comumente vistos em animês e mangás. Essa prática não é uma
exclusividade dos aficionados por Japop e dos músicos de jazz; as travestis também possuem
uma linguagem própria (o bate-bate).
Com pouco tempo entre os otakus, percebe-se que, muito embora a maioria goste de
animês, aqueles que preferem tokusatsus, enquanto que outros só tem interesse por
mangás. Dentro desse universo as publicações shonen e shoujo, sendo as duas muito
consumidas no Brasil. Mesmo quem é baka (idiota) sabe que hentai não é acessível para
menores, que as crianças devem assistir coisas bem kawaii (meigas).
Essa pequena amostra do vocabulário utilizado pelos aficionados serve para
exemplificar como um aficionado demonstra um conhecimento da matéria, comprovando não
ser um otaku iniciante. A diferenciação, ou melhor dizendo, hierarquização dentro do mundo
anime é fruto, em parte, da sua expansão. Ela acaba por evidenciar o caráter de produto da
cultura pop nipônica, parcialmente esvaziando a sua aura de produto diferenciado dos bens da
indústria cultural ocidental.
8.3. Por Amor ao Animê: Aficionados como Torcedores
264
Após o aparecimento dos eventos, constituiu-se uma rivalidade entre os principais
realizadores. Em parte devido à carência de locais interessantes para os eventos, e também
pelo fato de o aumento do número de encontros de aficionados implicar em uma certa
competição.
Como a maior parte dos fãs é adolescente, eles não possuem recursos suficientes para
ir a vários eventos, além de sofrerem cobranças por parte dos pais provas, vestibular, etc
(atividades para as quais deveriam dedicar parte do final de semana).
Com isso, pode-se ver que o grau de engajamento dentro do mundo anime é variável,
muitas vezes dependendo dos recursos envolvidos que permitam a compra de mangás, DVDs,
entrada em eventos, confecção de cosplays, etc. Essa diferenciação entre os mais
comprometidos com o mundo anime, os que o freqüentam esporadicamente e aqueles que
adentraram no mesmo pelo seu caráter de novidade, tem ganho contornos mais evidentes com
a expansão desse universo.
Ao deixar de ser um fenômeno periférico e ir ganhando destaque nos meios de
comunicação de massa, o mundo da cultura pop nipônica deixou de ser um campo para
iniciados, muitos garimpando com dificuldade fitas de animê em locadoras ou recebendo
mangás trazidos por conhecidos do Japão, para ser uma realidade cada vez mais acessível a
todos que por ela se interessem. Esse processo de transformação nas características dos
aficionados por cultura pop nipônica guarda algumas semelhanças com o de expansão das
torcidas de clubes de futebol, onde a imagem do torcedor fanático, dedicado ao clube, foi
sendo substituída pela do torcedor cujo envolvimento se dá na dedicação à torcida organizada.
Como foi dito anteriormente, a cultura pop nipônica começou a ter maior penetração
na mídia brasileira a partir do final da década de 80 e início dos anos 90. Foi nesse período
265
que os aficionados mais antigos do mundo anime tiveram contato com desenhos animados
japoneses a palavra animê era praticamente desconhecida no Brasil (era possível ver, em
matérias jornalísticas, a palavra Japanimation). O perfil desses consumidores de bens da
indústria cultural nipônica é bastante semelhante ao dos torcedores de futebol dos anos 30 e
40, quando o futebol começou a ser visto positivamente.
Naquela época os agrupamentos torcedores eram vinculados aos times, geralmente a
alguém envolvido com a organização institucional do futebol (político, dirigente,
funcionário de ligas ou federações de futebol) ou ainda oriundos da atividade e do
empenho pessoal de alguns indivíduos. O objetivo de cada um era torcer para o time,
'não importando mais nada'. (TOLEDO, 1996, p. 22)
Essa situação é muito parecida com o que poderia ser chamada, por alguns
saudosistas, de “idade de ouro” do mundo anime, quando praticamente não havia Internet para
a disseminação de material e para a comunicação entre os aficionados. À exceção da
vinculação ao aparato dos clubes, a importância do engajamento pessoal de alguns otakus foi
fundamental para a construção das bases do mundo anime, através de reuniões informais onde
eram trocadas fitas VHS com filmes ou episódios de séries.
Esse aficionado continua presente até hoje nos eventos, alguns parcialmente
ressentidos com a expansão dos mesmos, enquanto que outros evidenciam com satisfação a
ampliação da presença da cultura nipônica, materializada em eventos cada vez maiores e
diversificados. Contudo, com uma maior participação de animês e o início da publicação de
mangás no Brasil, a situação da cultura pop nipônica começou a mudar e o perfil dos otakus
também se transformou.
Esse processo de boom do animê nos últimos 10 anos, marcou a transição dos tempos
heróicos para o momento atual. certa proximidade com as alterações vividas pelo futebol
nos anos 1970, quando o advento de uma rede televisiva de alcance nacional tornou possível à
uma grande parcela da população assistir os jogos pela TV.
109
109
“É interessante notar que a partir de 1970 a relação do torcedor e o futebol adquiriu outros
contornos, que foram além da mera paixão pelo clube. O futebol definitivamente torna-se um esporte de massa
266
Toledo fala em torcedores-símbolo, aqueles cuja dedicação ao clube era visto como
um ato de amor para com o mesmo, e o progressivo desaparecimento desse tipo de torcedor
frente às torcidas organizadas, que se constituem como grupos homogêneos e indistintos. Essa
mudança, com a exceção de não existir grupos organizados de fãs nos mesmo moldes das
torcidas, também ocorre no mundo anime. Embora não haja o desaparecimento dos seus
equivalentes, os aficionados precursores, um perfil consideravelmente diferente, em nível
de engajamento para com o universo da cultura pop nipônica..
Se, no período anterior, as torcidas eram personificadas naqueles torcedores-
símbolo, agora são representadas por coletividades mais autônomas, impessoais e
independentes de torcedores, que passam a se comportar de modo diverso daqueles.
Estabelecendo outras formas de relacionamento entre elas próprias, com os
dirigentes, imprensa, com o próprio futebol profissional. (TOLEDO, 1996, p. 28)
Os otakus atuais se mobilizam por canais mais impessoais e individuais, como o envio
de mensagens para fóruns e e-mails para as redes de televisão. Apenas os organizadores de
eventos, alguns cosplayers e parte dos aficionados (muitos dos quais são pioneiros do
movimento de constituição do mundo anime), são os que participam mais ativamente desse
mundo organizando caravanas, produzindo bottons, desenhando camisetas, fabricando
espadas, editando DVDs, etc.
Os eventos, por exemplo, que antes movimentavam um pequeno grupo de
consumidores da cultura pop nipônica que se conheciam e reconheciam ter uma identidade
comum, se ampliaram para receber um grupo extremamente amplo de jovens que possuem,
dentre vários interesses, o gosto pelos animês e mangás.
Há, portanto, uma semelhança entre o contexto que marca a relação com os eventos
anime e o das torcidas organizadas. “Estas organizações de torcedores são formadas através
das paixões individuais que cada um traz consigo por um mesmo time mas que, em torno de
projetos coletivos, adquirem uma dimensão social pautada por interesses comuns.”
largamente incentivado pelo Estado, pela mídia (...).” (TOLEDO, 1996, p. 26)
267
(TOLEDO, 1996, p. 32)
Da mesma forma, os eventos se tornam um campo aberto a toda e qualquer pessoa que
tenha interesse por cultura pop nipônica, mesmo não havendo maior envolvimento com esse
mundo. Tal situação é diferente do que era de praxe anteriormente, quando o acesso ao
material de origem japonesa era relativamente difícil e ter que ser mediado por outras pessoas
mais engajadas.
Se antes, a escassez de bens culturais produzidos pelo Japão no mercado brasileiro
fazia com que um maior interesse por esse universo implicasse em um maior envolvimento
com o mesmo, a facilidade de acesso a esse material configurou uma nova relação entre
aficionado e cultura pop nipônica. Da mesma forma que existe uma diferença entre ter
interesse por futebol e ter preferência por um time, haveria uma certa distância entre o gostar
de animê e mangá e ir a eventos.
É muito comum escutar das pessoas a frase: 'Gosto do Corinthians (ou Santos,
Palmeiras etc.) mas não acompanho futebol'. Este fato é presente também entre os
torcedores aqui estudados, os organizados. Alguns freqüentam a sede, as festas,
porém não vão aos jogos. Outros revelam gostar mais da Torcida Organizada que do
próprio time. Isto demonstra que o futebol é apreciado de inúmeras maneiras e não é
um esporte somente para especialistas. Tudo colabora para que, de algum modo,
apreciem-no: a disponibilidade em praticá-lo, a técnica, a estética do jogo, das
torcidas em ação, o seu aparecimento na literatura, na poesia, nas músicas, nos
filmes, em suma, toda uma dimensão imaginária em torno do esporte bretão.”
(TOLEDO, 1996, p. 35)
Você pode gostar de assistir animê, de ler mangá, de ouvir J-Pop, etc. Atualmente
várias formas de se desfrutar a cultura pop nipônica sem, necessariamente, freqüentar eventos,
os quais acabaram se tornando mais uma porta de entrada para novos aficionados do que uma
forma de se manter atualizado a respeito das novidades lançadas no Japão.
Assim, a diversificação das formas de acesso aos produtos culturais de origem
japonesa ampliou as possibilidades de relação com o mesmo: você pode gostar e assistir o que
passa na TV aberta, bem como pode assistir pela TV por assinatura ou através do YouTube. Da
mesma forma que os que podem importar mangás, aqueles que podem ler edições em
268
arquivos em PDF (Portable Document Format) disponibilizados pela Internet.
Essa situação permite que se consuma animês e mangás sem ter que depender de
forma passiva dos meios de comunicação de massa, bem como sem precisar ir a eventos para
se conseguir os últimos episódios da sua série preferida. As diferentes relações possíveis que
podem ser estabelecidas dependem, portanto, parcialmente dos recursos e dos interesses dos
aficionados envolvidos. Isso é uma evidência da diversidade interna desse grupo, de forma
semelhante ao que ocorre dentro das agremiações de torcedores que
(...) pelo conjunto de subgrupos que compõem as Torcidas Organizadas, diversidade
expressa nas diferenças sociais, nos grupos de idades e expectativas variadas que os
animam, não se pode conceituá-las como sendo grupos homogêneos, nem como
conjuntos de existência permanente: são, antes, o resultado (sempre provisório) de
um sistema de relação. (TOLEDO, 1996, p. 81).
Atualmente, a visibilidade dos aficionados por cultura pop nipônica é evidente, ainda
que nem sempre reconhecida por estranhos a esse universo. É fácil, para alguém familiarizado
com o mundo anime, reconhecer um aficionado ao vê-lo. Como uma maior presença da
cultura pop nipônica, os otakus têm se mostrado mais à vontade para expor sua preferência
por animês e mangás.
Por isso, os sinais dessa vinculação se tornaram mais evidentes, seja através de bottons
em mochilas ou de camisas com desenhos de personagens de animês, principalmente quando
se está perto de locais onde se realizam eventos anime como ocorre na redondeza dos
estádios em dia de jogo.
O espaço da rua e dos acessos aos locais dos estádios transmutam-se em
possibilidades outras. Os coletivos, trens e metrôs, que diariamente transportam
indivíduos e cidadãos com interesses variados aos lugares distintos da cidade. São
formados por tricolores, alvinegros, alviverdes, investidos e direcionados a uma
ação comum, coletiva, a caminho de um jogo na busca das emoções de uma vitória
ou da tragédia da derrota. (TOLEDO, 1996, p. 40)
Tal realidade é visível, por exemplo, na vizinhança do clube América (um dos locais
tradicionais de realização de eventos). Aficionados trajados de preto, portando adereços
personalizados em função de elementos nipônicos e até cosplayers já “montados”
269
(caracterizados) são uma presença evidente. É possível reconhecer muitos aficionados indo ou
voltando de metrô ou de trem.
Essa visibilidade cada vez maior do mundo anime, conseqüência da sua expansão tem,
como foi dito, levado a uma hierarquização interna. Embora os aficionados possam ter
algumas semelhanças no que concerne a gosto musical e estilo de vestuário, Começou a surgir
uma diferenciação dentro do próprio grupo.
Esse processo é reconhecido pelos próprios nativos, os quais desenvolveram uma
teorização bastante próxima à percebida por Elias e Scotson no estudo sobre a comunidade
conhecida como “Winston Parva” (ELIAS e SCOTSON, 2000). Embora o contexto seja
diferente e não seja possível explorar aqui todas as possibilidades dessa comparação,
realmente se pode perceber uma singularização de alguns aficionados mais antigos em relação
aos mais recentes.
aficionados mais antigos, pelo menos os que se consideravam otakus antes do
sucesso de Naruto na televisão aberta, que professam uma perspectiva semelhante à dos
“estabelecidos”. Por terem entrado no mundo anime a mais tempo, tendo que construir através
de seu esforço uma carreira nesse meio, eles se vêem como sendo mais antigos, possuindo
maior conhecimento de animês e mangás.
Para alguns desses aficionados, os otakus de “última hora”, os telespectadores dos
animês exibidos dublados nas redes de TV aberta, seriam recém-chegados ao mundo anime,
cujo interesse seria fruto de um modismo, de pouca densidade. “Postos no papel de outsiders,
os recém-chegados são percebidos pelos estabelecidos como pessoas 'que não conhecem seu
lugar'; agridem-lhes a sensibilidade (…).” (ELIAS, SCOTSON, 2000: 174)
Essas percepções se constroem basicamente a partir de alguns dos aficionados mais
antigos, para os quais os novos otakus, significam um inchaço e até desvirtuamento do mundo
270
anime. Os mega-eventos, como os que ocorrem em São Paulo, seriam um desdobramento dos
antigos eventos, onde o contato face-a-face prevalecia e onde o conhecimento e amizade se
construíam na troca de informações, objetos, etc.
Atualmente, os novos integrantes do mundo anime teriam interesse em se apresentar
como otakus, embora tendo um conhecimento consideravelmente limitado do universo de
referências da cultura pop nipônica. Essa relação coloca em foco as questões de superioridade
social e moral, de autopercepção e reconhecimento, de pertencimento e exclusão. Como
destacou Goffman,
(...) quando um indivíduo projeta uma definição da situação e com isso pretende,
implícita ou explicitamente, ser uma pessoa de determinado tipo, automaticamente
exerce uma exigência moral sobre os outros, obrigando-os a valorizá-lo e a tratá-lo
de acordo com o que as pessoas de seu tipo têm o direito de esperar. (GOFFMAN,
1999, p. 21)
Enquanto que Elias e Scotson buscam o conteúdo universal de uma relação de poder
em uma pequena comunidade inglesa, na tentativa de estabelecer uma teoria geral das
relações de poder, meu objetivo aqui é bem mais restrito. Desejo mostrar como o tempo
contribuiu para a diferenciação interna dentro do mundo anime, uma diferenciação que
contraria a idéia de um universo homogêneo. Sempre houve uma diversidade interna imensa,
em função das diferentes manifestações da cultura pop nipônica que compõem esse universo
(tokusatsu, ero-guro, J-Pop, shojo, jogos eletrônicos, etc.), porém, o caráter reduzido desse
microcosmo garantia uma certa proximidade entre seus membros.
Contudo, com a expansão, houve a possibilidade de inserção de um número crescente
de novos aficionados. O que antes era inacessível, quase marginal, se tornou acessível, virou
mainstream. Com isso, houve uma diferenciação no perfil dos aficionados. Os novos otakus
não construíram seu gosto pela cultura pop nipônica em um processo de vários anos, mas de
alguns. Com isso, não tem grande noção do processo que levou ao status quo atual, apenas
conhecem a situação vigente.
271
Assim, os eventos anime lhes aparecem não como consagração de um processo de luta
e de socialização, mas apenas como ocasiões festivas nas quais podem se divertir com
amigos. O comportamento um tanto exagerado e até desregrado de alguns dos novos
aficionados seria um ponto negativo.
Os mais “antigos” levantam sua bandeira, lutam por sua superioridade, seu status e
poder, seus padrões e suas crenças, e em quase toda a parte utilizam, nessa situação,
as mesmas armas, dentre elas os mexericos humilhantes, as crenças estigmatizantes
sobre o grupo inteiro, com base em observações sobre seu pior setor, os estereótipos
verbais degradantes (…). (ELIAS, SCOTSON, 2000, p. 175)
Por não terem uma história de envolvimento com o mundo anime, eles não mantém
para com o mesmo uma atitude de reverência. Um ex-aluno meu do curso de História da
UNISUAM, ex-aluno de curso de mangá e de curta-metragem, interessado em animês desde a
sétima série do Ensino Fundamental, fez (em 2007) o seguinte comentário a respeito dos
eventos de então:
Evento no Rio tem a mesma fórmula. Três razões principais: público de rock, que
tem pouco a ver; público que vai por causa de modinha; a faixa etária diminuiu,
virando coisa de rebelde além do consumo de bebidas alcoólicas.... Houve a perda
da cultura japonesa. (Elvis, 20 anos)
Os jovens que mais recentemente se envolveram com o mundo anime foram
acusados, segundo meu informante Breno, de talvez serem os responsáveis por bagunçar
alguns eventos não que haja intenção de provocar desordem, mas pelo fato de ficarem
correndo, se empurrando, brincando. Tal atitude não é vista por esses otakus como sendo algo
negativo.
Quando houve, em maio de 2008, uma exposição sobre animês e mangás no Espaço
Oi Futuro, no Rio de Janeiro, muitos jovens se dirigiram para pensando que se tratava de
um evento anime. Ao chegarem começaram a se sentar no chão, sendo convidados a se
retirar pelos seguranças. Isso os levou a ir para outro evento e a dizer que “o evento da Oi”
tinha sido péssimo. Esse acontecimento confirma o comentário de Yara. Como já foi dito pelo
meu informante Breno, esse novo tipo de otaku iria para o evento para zoar em sentido bem
272
próximo ao colocado por ALMEIDA e TRACY (2003)
Na “zoação”, lugares cedem sua importância para o imperativo da regência grupal.
Agenciamentos coletivos, o fato de se estar com os amigos, a 'galera' reunida -
classificam-se como condições cujo impacto sobre a 'zoação' em muito supera a
importância ou o atrativo dos lugares em si. (ALMEIDA e TRACY, 2003, p. 126)
No Anime Family de 2008, eu estava na fila e ouvi um comentário de que um vidro da
Universidade Gama Filho (UGF) teria sido quebrado durante o evento. Esse tipo de atitude,
na opinião de Breno, contribuiria para a dificuldade de encontrar novos locais para eventos,
no futuro.
Embora existam reclamações a respeito da presença dos novos aficionados, porém, é
desse grupo que a possibilidade de continuidade do mundo anime. Eles acabam por
preencher o espaço dos que saem, que reduzem sua freqüência aos eventos, etc. Sempre houve
neófitos, o que talvez tenha provocado um certo choque entre os aficionados mais antigos
pode ser o fato de que ser otaku virou moda.
Isso atraiu uma diversidade de interessados, porém, a lógica do sistema não sofreu
grandes alterações. Da mesma forma que nas torcidas organizadas, a existência de uma
certa rotatividade entre os aficionados por animês e mangás.
Na linguagem dos torcedores, os deres constituem-se 'o pessoal de frente', 'os
cabeças', diferenciando-se da 'molecada', da 'garotada', maioria dos integrantes da
torcida (entre 80 a 90%), situados na faixa que vai dos 15 aos 18 anos, enquanto os
primeiros normalmente têm entre 25 e 35 anos. (CÂMARA, 2000, p. 108)
O que o mundo anime parece estar vivendo é o início de uma transição, de uma
transformação da sua dinâmica interna. A impossibilidade de propiciar aos novos otakus a
vivência que os precursores experimentaram, coloca novas questões sobre como será o
desenvolvimento desse universo dentro desse novo contexto.
8.4. Ocupação de Espaços: Japanização do Ocidente
273
Existe uma diferença entre o mundo dos torcedores de futebol e o mundo dos
aficionados por Japop: as torcidas têm sede, onde podem reunir seus membros, realizar festas,
eventos, etc., o que não ocorre entre o grupo dos aficionados por mangás e animês
evidenciando o desenvolvimento de uma estrutura que ainda não possui equivalente no
mundo anime.
110
Não existem sedes dos grupos que realizam eventos, bem como nãoum lugar físico
próprio que sirva como referência para algum grupo de aficionados. “Concretamente nas
sedes existe a possibilidade das pessoas se reconhecerem na partilha de valores, visões de
mundo, aspirações bastante congruentes. As sedes são espaços vivos de pertencimento a estes
grupos e de reconhecimento frente a outros.” (TOLEDO, 1996, p. 51)
A figura da sede inexiste no universo dos fãs da cultura pop nipônica. Embora o Japão
apareça como sonho distante, o bairro da Liberdade seja visto como uma Meca possível e
locais como o clube América sejam vistos como espaços tradicionais para eventos, não há um
espaço físico próprio que exista com a mesma função de uma sede de torcida. Não um
local ao qual os aficionados possam se reportar e ir para se socializar.
Como até os grupos de organizadores de eventos são basicamente informais, não
cobrança de algum tipo de contribuição regular para a manutenção dos mesmos, o que impede
o surgimento de recursos para a compra ou aluguel de um espaço. Acrescente-se a isso o fato
de boa parte dos otakus ser bem jovem, praticamente desprovida de recursos e dependente dos
pais para seus gastos. Além disso, esses grupos não são instituições formais, não possuindo
uma continuidade no tempo ou institucionalização, organizando-se de forma irregular para a
realização de eventos a única exceção seria a Yamato, que, por outro lado (por ser uma
110
O que também acontecia de forma parcial no movimento folclórico já que os folcloristas
geralmente eram funcionários, profissionais liberais que desenvolviam suas atividades intelectuais de forma
privada, sem um apoio institucional
274
empresa), fugiria do perfil que se espera de uma sede.
111
Diferentemente das sedes das torcidas organizadas e dos espaços ocupados pelos
estabelecimentos ligados ao circuito neo-esotérico estudado por Magnani, os eventos anime
não ocupam espaços adaptados para as suas características específicas. Entretanto, a
disposição dos locais escolhidos para a realização dos eventos anime é semelhante à dos
espaços ocupados pelos centros de prática “neo-esô”. Uma das explicações possíveis é a
questão do acesso, através dos meios de transporte coletivo. “Uma delas é devida ao poder
aglutinador exercido pelo metrô e nesse sentido o comportamento das atividades tipicamente
neo-esô não difere de outros tantos serviços que usufruem das economias externas induzidas
por esse meio de transporte.” (MAGNANI, 1999, p. 67)
Esse elemento explicaria, parcialmente (no caso carioca), a predileção pelo Clube
América para a realização de eventos apesar das repetidas reclamações, principalmente, a
respeito do calor dentro das suas instalações. A localização do América é estratégica:
a) Está na Tijuca, um bairro da Zona Norte, relativamente próximo da Centro e bem servido
por uma rede de linhas de ônibus que praticamente cobre boa parte do município;
b) Encontra-se perto de duas estações do metrô da linha 1, que atende basicamente à Zona
Sul, e da linha 2, que atende, à exceção da estação de transferência Estácio (localizada no
Centro do Rio de Janeiro), exclusivamente à Zona Norte;
c) O clube também está próximo de uma estação de trem, São Cristóvão estação para a qual
convergem diversos ramais ferroviários, permitindo o acesso de aficionados da Baixada
Fluminense e de outras regiões do estado do Rio de Janeiro.
Logo, ainda que não sejam lugares fixos e com características próprias para atender às
111
A partir desse ponto pude diagnosticar outra diferença entre as torcidas organizadas e os
aficionados por Japop: o fato desses não serem entidades institucionalizadas. Como foi destacado, os
organizadores de evento, em sua maioria, não vivem dessa atividade. Logo, não há um aparelho institucional que
suporte para a realização dos encontros, o que explica um certo amadorismo visível principalmente nos
eventos cariocas.
275
finalidades dos aficionados por cultura pop nipônica, esses espaços servem para a realização
dos eventos. Em virtude da regularidade com que são utilizados, eles se tornam referências
para os otakus, chegando a ganhar elementos afetivos positivos e negativos. Pode-se encontrar
comentários elogiosos ao ambiente intimista do Clube América, ao mesmo tempo em que se
critica o calor dentro das suas instalações.
Atualmente, com a identificação do Anime Center com o Clube Hebraica, em
Laranjeiras, a área da Tijuca deixou de ser o principal centro dos eventos anime, o que
também ocorreu em São Paulo, que embora a Liberdade seja o local onde se concentrem as
lojas de produtos de origem nipônica, não é lá que se realizam os eventos. Situação
semelhante ocorreu com o campo esotérico em São Paulo.
Com relação à sua distribuição espacial, a pesquisa inicial mostrou que as práticas
médicas com base em filosofias orientais não mais se limitam ao bairro da
Liberdade, tendo se disseminado por toda a cidade. Se não uma região
específica, na forma de mancha, congregando os profissionais que seguem esses
sistemas, é possível, porém, identificar e localizar algumas instituições que
sobressaem nesse universo, atuando como pólos de contato entre terapeutas,
ensejando o estabelecimento de associações, sediando encontros e congressos,
constituindo um circuito, enfim. (MAGNANI, 1997, p. 72)
Enquanto que as torcidas organizadas possuem suas sedes e o chamado “circuito neo-
esô” possui espaços próprios, o mundo anime é caracterizado por certa fluidez e itinerância.
Os eventos ocorrem em lugares que sejam acessíveis; que tenham (em tese) condições
favoráveis (banheiros, salas disponíveis, condicionador de ar, área para estandes, etc.). Além
dessas condições estruturais, entram em questão o elemento preço, condições de pagamento,
quantidade de stands confirmados, etc.
Em virtude dessa complicada equação, nem sempre os eventos ocorrem nos mesmo
lugares, embora exista uma tendência a certos lugares se tornarem referência, como (até
pouco tempo atrás) o Colégio Marista em São Paulo, o Clube América no Rio de Janeiro, e o
SESC de Nova Iguaçu na Baixada Fluminense, por exemplo.
276
Uma escola (Colégio Marista), uma instituição de Ensino Superior (UERJ, Uni
Sant'Anna e, mais recentemente, a UGF), uma associação (Casa do Minho), um clube
(América e Hebraica) podem deixar de ser, por alguns dias, lugares de ensino, de socialização
de portugueses ou de prática de esportes (finalidades para as quais foram planejados) para se
tornarem espaços anime. Lugares transformados em espaços; de lugar para espaço-festa. “Un
lieu est donc une configuration instantanée de positions. Il implique une indication de
stabilité.” (CERTEAU, 1990, p. 173)
Durante a realização de um evento anime, as salas de aula tornam-se salas de exibição,
as quadras de esporte tornam-se arenas de luta de espada, bem como os campos de futebol
tornam-se campos de animegol (nesse caso, muda a denominação da atividade, que
continua sendo um jogo de futebol).
No caso de escolas e universidades, o lugar que é dedicado ao estudo e ao saber
formal, tradicional, torna-se um espaço de atividades de entretenimento e de socialização
informal. Embora existam horários para as atividades, as pessoas participam (ou não) de
acordo com seu interesse. Elas entram e saem do espaço do evento de acordo com sua
disponibilidade e vontade, não havendo obrigação de se assistir a alguma coisa – pode-se, por
exemplo, se sentar numa escadaria com amigos e ficar conversando.
A circulação constante é uma marca dos eventos. As pessoas andam, observam
estandes, fazem compras, lêem revistas, assistem trechos de DVDs à venda, fazem lanche,
sobem escadas, entram em salas, sentam, assistem, saem, vão ao banheiro, tiram fotos de
cosplayers, saem da área do evento, retornam. Esse ir e vir a impressão de uma atividade
coletiva consideravelmente caótica tempo para fazer tudo, bem como tempo para não
fazer nada.
Essa dinâmica em muito contraria as características tradicionais desses lugares onde,
277
geralmente, existem horários de entrada e de saída, com atividades pré-estabelecidas e
conhecidas por todos mesmo que não sejam necessariamente cumpridas da forma que se
espera, um roteiro definido a ser cumprido pelos alunos (o que não ocorre com os
participantes dos eventos anime).
O espaço do evento anime é, em tese, estabelecido de forma a fornecer aos
aficionados, possibilidade de escolherem o que fazer essa escolha, por ser relativamente
livre, torna esse espaço consideravelmente diferente do lugar que originalmente é. En
somme, l'espace est un lieu pratiqué. Ainsi la rue géométriquement définie par un urbanisme
est trasnformée em espace par des marcheurs.” (CERTEAU, 1990, p. 173)
8.5. A Niponicidade nos Cosplays, Mangás, Vozes e Piratas
Com a popularização dos eventos e, principalmente, com a prática do cosplay, é
perceptível o aumento da freqüência com a qual cosplayers aparecem na mídia, sendo talvez
um dos elementos que mais chamam a atenção da imprensa na cobertura dos eventos. Seu
caráter exótico, por ser desconhecido e por mostrar muitas vezes pessoas fantasiadas de
personagens desconhecidos do grande público o qual em sua maioria ignora a existência do
mundo anime – tem tornado a prática uma atividade bastante conhecida.
Porém, o receio de que a prática do cosplay ganhe na mídia um caráter de infantilidade
e de fuga da realidade, preocupa muitos dos que o praticam alguns dos quais possuem
empregos, atividades profissionais que poderiam ser postas em risco. Por essa razão, o
cosplay não se trataria de mera brincadeira ou esquisitice, sendo um hobby, o qual envolveria
um elemento afetivo da parte de quem o pratica, sem cair em alienação.
112
112
É claro que existem casos, comentados no próprio mundo anime, de pessoas que realmente direcionaram sua
278
A realização de um cosplay costumava ser comentada pelos cosplayers com os quais
conversei, como tendo como principal justificativa uma identificação com a personagem
representada. Essa identificação seria um dos componentes que explicaria o
comprometimento dos aficionados mais antigos com essa prática.
Muitos acham que essas pessoas fazem isso para aparecer. NÃO É VERDADE,
trata-se apenas de uma forma de diversão. É legal representar um personagem que
você gosta e melhor ainda, ser reconhecido. É gratificante quando alguém chega em
você e diz o quanto está legal sua fantasia. (LOBÃO, 2006, p. 92)
Atualmente, com a visibilidade que os otakus alcançaram nos meios de comunicação
de massa, essa identificação se diluiu consideravelmente. Uma entrevistada, de treze anos,
não manifestou essa preocupação; quando perguntada o que significava fazer cosplay, ela me
disse
Acima de tudo, se divertir! (Yara, 13 anos)
De certa forma, esse comentário evidencia um processo que percebi. Houve um certo
aumento na ênfase do sentido atribuído ao “play” de cosplay. Inicialmente, além de significar
“brincar”, ele também remetia à encenar”. Ficava subentendido que o cosplay não era uma
mera fantasia, mas uma forma de se encenar, de se vivenciar o personagem, daí a preocupação
com gestos, caras e bocas na hora das fotografias.
Esse desejo de mudar de pele é uma constante na galáxia otaku. Como se, ao
disfarçar-se de personagem de desenhos animados, os jovens chegassem a encontrar
sua verdadeira personalidade. Como se a roupa insípida de todos os dias fosse de
fato o verdadeiro disfarce, aquela que os representa nos dias em que não são eles
mesmos. (BARRAL, 2000, p. 140)
Esse senso de estar prestando uma homenagem ao personagem se diluiu um pouco
entre os aficionados mais jovens, os quais se encantam com o ambiente alegre e multicolorido
e consideram tudo uma festa, uma oportunidade para se divertir assim, às vezes até parece
estranho ver um cosplayer realizando apresentações tensas e dramáticas em frente de um
vida para essa atividade, muitas vezes manifestando atitudes extremadas e passionais nos eventos. Porém, tais
casos são minoria e provavelmente são fruto muito mais da personalidade da pessoa envolvida, a qual acabou
por traduzir no cosplay idiossincrasias pessoais.
279
público alegre, gritando e rindo.
Comprar um cosplay, não era a norma entre os cosplayers mais antigos, porém essa
concepção não é hegemônica entre os otakus mais recentes o importante é se fantasiar e se
divertir. A facilidade que existe atualmente para se compor um cosplay, com uma grande
diversidade de acessórios sendo vendidos em eventos. Quando estive na exposição no espaço
Oi Futuro, uma pessoa distribuía panfletos divulgando a confecção de cosplays. Uma garota
perto de mim disse para os pais: “Vou me dar uma Sakura”.
Também o surgimento de pessoas se profissionalizando na produção de adereços e
de fantasias inteiras, torna tal perspectiva mais comum. Antes, os cosplayers eram poucos em
relação ao público geral, hoje, alguns cosplays de mais fácil composição são vistos com
freqüência nos eventos.
A maioria dos cosplays (pelo menos os brasileiros) afirma que o legal é você
participar de cada etapa da produção de sua fantasia, seja costurando sua própria
roupa (ou ficando no da costureira), modelando os acessórios, fazendo a
maquiagem e todas as etapas até chegar ao resultado final. Resumindo: quando você
compra tudo feito parece não ter a mesma graça. (LOBÃO, 2006, p. 92)
Tendo passado pela experiência de realização de um cosplay, sou capaz de
compreender esse ponto de vista. Compartilho da mesma sensação, que vivenciei um
componente de satisfação no processo de confeccionar a própria roupa. Contudo, acredito que
isso esteja mudando um pouco. O aparecimento de profissionais que produzem capas, faixas,
etc., que podem ser feitas por encomenda como para serem vendidas em eventos, torna
possível a muitos aficionados caracterizarem-se com roupas de seus personagens favoritos.
Também existem cosplayers se desfazendo de suas roupas (afinal, roupas ocupam
espaço, não servem mais, etc.) e que encontram na venda das mesmas uma possibilidade de
recuperação parcial do capital e tempo nelas dispendido o que não é muito diferente do que
ocorre entre as travestis. “O comércio e o mercado de trocas são mostras da inventividade e
criatividade das travestis em criar novas práticas sociais com o objetivo de contornar os
280
constrangimentos a que estão sujeitas.” (BENEDETTI, 2005, p. 71)
Com isso, os cosplayers transformam o produto final de um processo pessoal de
criação, produção e identificação, em uma mercadoria, a qual se torna acessível aos que são
fascinados pela prática do cosplay, mas que não têm tempo ou disposição para produzir um. A
diferença maior estaria no fato de que a roupa se tornou um produto, não o “produto de um
processo”. Antes, devia haver um dispêndio maior de tempo e dinheiro na confecção de um
cosplay, hoje, dependendo do personagem, um cosplay poder ser montado quase que
inteiramente com peças compradas.
Antes, ser um cosplayer era um dos comprometimentos mais intensos no processo de
inserção no mundo anime. Afinal, era preciso um grande envolvimento de tempo, de dinheiro
e até de coragem para a realização de tal ão. Hoje, como o cosplay se tornou uma atração,
ele se tornou um sonho atrativo e alcançável, sem se ter que passar pelas agruras que os
pioneiros encontraram pela frente.
É claro que os maiores nomes na área realizam caracterizações muito superiores às
versões genéricas disponíveis para venda nos eventos. Porém, com a vulgarização da prática
do cosplay, o caráter competitivo que o caracterizava ganha novos contornos. Surge o que
eu chamaria de cosplay de boutique”, aquele garoto que para se vestir como Naruto,
comprou uma jaqueta, calça, bandana e kunai (réplica de uma arma ninja) em algum estande
de evento.
Pode-se dizer que houve uma certa massificação do cosplay, sem entrar aqui em um
juízo de valor. O que antes era uma prática restrita aos aficionados mais comprometidos com
o mundo anime, tornou-se acessível aos outros aficionados que apenas apreciam os animês e
mangás. Com isso, ainda que de forma superficial (sem a mesma elaboração e requinte de
alguns cosplays), aumentou a chance de se poder ser uma pequena celebridade.
281
Como meu informante Breno me disse uma vez, “Quem cosplay, tem vontade de
fazer um.” A realização de tal sonho, antes bastante difícil, devido aos custos e aao grau de
risco social embutido em sair fantasiado de personagem de animê, hoje se tornou algo
relativamente fácil, pela praticidade de se comprar acessórios, e pela maior aceitação do
cosplay como uma atividade lúdica tida, a princípio, como inofensiva.
Com o barateamento das câmeras digitais e dos celulares que tiram fotos, praticamente
todo no mundo anime pode, em algum momento, ser famoso por 5 segundos. É uma fama sui
generis, posto que muitas vezes se desconhece o nome do personagem que o cosplayer veste,
bem como se ignora o nome da pessoa fotografada. Mesmo assim, um instante de celeridade
foi conquistado, ainda que por segundos, para talvez ser revivido em frente a outro estande,
em outro evento, etc.
O fenômeno fama enreda a todos no mundo moderno. Dele participamos seja na
condição de fãs, seja, mais raramente, na condição de ídolos. De um extremo a
outro, gradações: das antológicas imagens das moças histéricas, aos prantos
diante dos Beatles, à reclusão misteriosa de uma estrela como Greta Garbo, em
algum momento do percurso nos reconhecemos todos. Somos, cada um de nós,
portadores de um potencial duplo que se expressa de forma paradigmática na
vivência do ídolo e na vivência do fã: a fama e o anonimato, o singular e o comum
ganham aqui um enquadramento no qual aparecem como termos complementares
imbricados em uma tensão que exacerba de forma dramática algo que é intrínseco à
condição individual. (COELHO, 1999, p. 134)
Em contraposição a esse cosplay de boutique”, que visa basicamente o
entretenimento, eu denominaria de “cosplay de produção”, aquele cosplay mais elaborado por
aqueles interessados não em ser vistos, mas que desejam participar de concursos visando
premiações sendo que ainda poderia falar em cosplays de exibição”, aqueles feitos apenas
para circular nos eventos, e os “cosplays de competição”, feitos para “ganhar”, por vezes tão
elaborados, que só podem ser vestidos momentos antes do desfile.
Deve-se lembrar que para participar, basta se inscrever, logo, muitos se inscrevem
como satisfação pessoal de representar um personagem com o qual se identifica (o que seria a
representação ideal da prática do cosplay), bem como outros se inscrevem em busca de seus
282
15 segundos de glória em alguns casos com apresentações simples, desorganizadas, toscas
com finalidade cômica, chamadas por alguns de “cospobre”.
Vale aqui ressaltar que o conceito de “cospobre” vai muito além desse descrição. Com
o refinamento e pompa que passou a cercar a prática do cosplay, alguns cosplayers passaram a
criticar o grau de elaboração e, principalmente, de custo que passou a caracterizar as
apresentações de cosplay. Com isso, passaram a realizar cosplays assumidamente despojados,
utilizando muitas vezes da inventividade. Isso acabou gerando o surgimento da categoria
livre, e também levou a valorização da idéia de cosplays engraçados. Esse tipo de atitude não
é compartilhado por todos os cosplayers, muitos dos quais realizam apresentações fiéis aos
seus personagens e encontram o descaso do público, interessado em algo mais cômico.
Por isso, relatos de cosplayers reclamando da atitude do público, o qual não teria
mais o mesmo respeito de anos anteriores. Vi essa situação de desrespeito, ou de pouco caso,
mais de uma vez. Na Evolution Party, uma apresentação de cosplay de Naruto foi prejudicada
pelo fato de parte do público ficar rindo e gritando piadas sugerindo a homossexualidade dos
personagens, enquanto que os cosplayers encenavam um diálogo tenso pré-gravado.
Essa situação é uma das possíveis conseqüências do alargamento do universo de
freqüentadores dos eventos. Nem todos possuem a mesma reverência que caracterizou os
pioneiros. Conversando com meu informante Breno, ele disse que a nova geração gosta do
“evento social”, da bagunça, que ela não vai ao evento por causo do animê. No tempo do
Breno, as pessoas iam para conhecer pessoas, hoje elas vão em grupos, já vão com
conhecidos.
Uma ação dessas prejudica uma apresentação que às vezes levou dias para ser ensaiada e para
a qual o cosplayer gastou uma soma considerável. Como os concursos são importantes no
meio, significando não o reconhecimento pessoal para quem participa e seu esforço ser
283
valorizado, mas também a possibilidade de conquistar prêmios e de poder participar em
concursos maiores.
A questão das premiações também é um assunto que abala parte da concepção do
mundo anime como um locus especial, onde impera a confraternização em torno da cultura
pop nipônica. Até cerca de 5 anos atrás, a prática dos cosplay se resumia basicamente a uma
brincadeira, uma homenagem ao personagem escolhido. Não havia maiores interesses a não
ser o proclamado exercício de amor ao personagem e o prazer de ser reconhecido pelos
amigos.
Até recentemente, pelo menos quando comecei minha pesquisa, poucos cosplayers
saíam de casa caracterizados dos seus personagens. Isso seria uma exposição fora do contexto
do evento e até o risco de se estragar a indumentária. Contudo, o número de pessoas que saem
de casa vestidos com seus cosplays aumentou.
Caracterizar-se ou incorporar adereços ligados a desenhos japoneses, tornou-se um
sinal de atitude, de evidenciar sua vinculação com o mundo anime; tal não ocorre com os
cosplayers tradicionais. Como muitos estão inseridos no mercado de trabalho, não querem
arriscar que outros tenham a impressão de que seu hobby está se tornando uma prioridade nas
suas vidas, entrando para a vida cotidiana.
Esse tipo de receio é compreensível se me reportar a uma observação feita por Geisa,
esposa do meu informante Breno, na fila do Anime Family 2008. Ao chegarmos e irmos para
fila, Geisa comentou sarcasticamente que tinha visto gente normal, igual a ela – ela não aceita
o fato de pessoas saírem fantasiadas e pegarem trem para ir ao evento (ao invés de se vestirem
lá)
Você já viu um ator vestido como seu personagem na rua? (Geisa, 32 anos)
Uma cosplayer, ao ser entrevistada por mim na fila de entrada do Anime Friends 2005,
284
me disse que nem sempre saía montada para um evento. O uso desse termo foi revelador
que se fala emmontar um cosplay” e em ir “montada” para um evento. Os termos montar”,
“montação” e montagem”, utilizados às vezes para se referir ao processo de construção e/ou
para o ato de vestir um cosplay, também são utilizados no universo das travestis. Nesse caso,
elas também vestem uma personagem: uma mulher.
O ato de vestir-se com roupas de mulher é comumente designado nesse universo
pelo termo êmico montação ou montagem. A montagem é um processo de
manipulação e construção de uma apresentação que seja suficientemente
convincente, sob o ponto de vista das travestis, de sua qualidade feminina. Consiste
num importante processo na construção da travesti, por ser uma das primeiras
estratégias acionadas para dar visibilidade ao desejo de transformação e também
porque constitui um ritual diário, no qual se gastam horas decidindo e provando o
modelo da noite. (BENEDETTI, 2005, p. 67)
Apesar dessa semelhança, existem uma série de diferenças entre os cosplayers e as
travestis. Uma seria a ausência de uma opção sexual em questão, posto que não uma
vinculação entre a prática do cosplay à alguma identidade sexual específica vi mulheres,
que seriam heterossexuais, recriando personagens masculinos. Outra diferença é o fato de que
o(a) cosplayer passa por uma transformação ocasional, enquanto que a travesti passa por uma
transformação cotidiana e, em princípio, permanente.
Embora existam diferenças, as semelhanças entre os dois universos são ricas para se
pensar a prática do cosplay. Os procedimentos para os concursos de travestis, como
encomendar uma roupa para uma costureira, por exemplo, são semelhantes aos que cercam
aqueles interessados em produzir um cosplay. A própria existência de concursos altamente
valorizados como atividades de socialização, e como competições, é mais um ponto comum.
Tanto um grupo quanto o outro foi capaz de estabelecer um momento de
congraçamento onde cosplayers e travestis podem se exibir para seus pares e ser
reverenciados. Nesses microcosmos, existe a possibilidade dos marginalizados pela mídia, os
otakus, e os marginalizados socialmente, as travestis, poderem alcançar um instante de
285
consagração.
De certa forma, os concursos de cosplay dão condições, ainda que por apenas alguns
minutos, de alguém se destacar, até tornando-se uma celebridade, conhecida dentro do mundo
anime. Isso ocorre com alguns cosplayers que participam regularmente dos eventos, muitos
dos quais foram premiados mais de uma vez. Além do desfile, a possibilidade de circular
pelo evento, de ter seu personagem reconhecido, ou de simplesmente ser solicitado para tirar
uma fotografia, cria uma situação de destaque.
Vale enfatizar aqui que, no que tange à prática do cosplay, existe uma diferença entre o
esse campo e o dos artistas profissionais. O cosplayer se preocupa muito em que o
personagem seja reconhecido, mas é claro que fica feliz em ser visto, reconhecido ver seu
nome lembrado como cosplayer.
Não uma confusão entre pessoa e personagem fato de se utilizar, na maioria das
vezes, personagens oriundos da animação dificulta esse fato. No campo da televisão
brasileira, por exemplo, os atores de novelas se ressentem por verem o público pensar que eles
são o personagem que representam na verdade, mais conhecido do que o ator, seria o
personagem. “O constrangimento da atriz pelo fato de o não saber quem ela é a medida
exata do quanto ídolos e fãs encontram-se enredados pelo mesmo desejo de fugir à condição
anônima pela singularização.” (COELHO, 1999, p. 98)
Aprofundando a questão dos concursos, eles aparecem como uma forma de alcançar
um grau de reconhecimento dentro desse universo, dando origem a celebridades famosas entre
os aficionados por cultura pop nipônica algumas pessoas se tornam referências e são tidas
como grandes nomes, dentro do meio dos cosplayers. Experiência semelhante é vivida entre
as travestis.
Os vestidos de festa ou de desfile podem ser instrumentos de status. Com certa
regularidade, promovem-se concursos de beleza para travestis, e os vestidos usados
para essas ocasiões são peças muito valorizadas e ostentadas com orgulho. As peças
286
preferidas para esses eventos são vestidos longos, em tecidos finos e caros, como
seda, paetê, lamê, cetim, e normalmente confeccionados sob encomenda por alguma
costureira, que pode ser inclusive uma travesti. O vestido ou o traje constitui um dos
quesitos avaliados pelos jurados nesses certames e pode ser decisivo para o título, o
que também explica o esmero dedicado a essa peça. (BENEDETTI, 2005, p. 69)
São os detalhes que definem, como a estrelinha na tiara da cosplayer que representa
Sailor Moon, o que muitas vezes escapa à visão dos jurados e que, certamente, não é a maior
prioridade do público em geral, mais preocupado com uma perspectiva mais geral da
apresentação.
Uma das diferenças entre os cosplayers tradicionais, pioneiros, e a grande maioria dos
aficionados mais jovens que vai caracterizado aos eventos, seria a questão do estilo. Afinal,
não basta ter uma indumentária perfeita, ela é um componente importante, mas não é o único.
Isso fica bem claro ao se ler o comentário de Sérgio Peixoto a respeito dos julgamentos:
Durante o Animecon 2.000, 6 juízes deram notas aos participantes nos 4 dias em
dois quesitos: fidelidade da fantasia e representação. Por isso no Animecon, quando
dizemos que os melhores cosplayers foram premiados, não significa os melhores
apenas em fantasias, mas sim os melhores em fantasia E interpretação (as notas de
interpretação são somadas com as de fantasia, e divididas por dois. O resultado é a
nota válida para premiação). (PEIXOTO, 2000b, p. 23)
Deve haver um trabalho de composição, evidenciado nas poses para fotos, no andar do
desfile, na encenação da apresentação. Esse know-how, que tanto impressiona o público que
assiste às participações dos grandes cosplayers brasileiros, seria equivalente ao que as
travestis chamam ter estilo pois, para elas: “(...) para uma boa montagem, não basta usar tal
vestido ou tal sapato: o importante é ter estilo.” (BENEDETTI, 2005, p. 71)
Ter estilo seria o equivalente à composição de uma personagem. A diferença principal
entre o sentido aplicado pelas travestis e o vivenciado pelos cosplayers consistiria no fato de
que para elas, esse estilo se desenvolveria dentro do próprio processo de construção do seu
gênero como travestis.
O estilo, para as travestis, é uma personagem que vai sendo construída a cada
esforço implementado no processo de transformação do gênero. As travestis
precisam aprender toda uma série de investimentos, que vão além do guarda-roupa.
O estilo vai também conformar os gestos, a impostação da voz, a forma do cabelo, a
287
maquiagem, o balanço no andar e até mesmo a própria maneira como a bicha vai se
relacionar com as outras travestis e com a sociedade. É preciso que essa personagem
apresente coerência entre o vestir, o gesticular, o falar, o pensar, o andar etc. Enfim,
o estilo é quase uma personalidade, é um conjunto de preferências e maneiras que, a
princípio, é a estampa daquela pessoa. É o modo como ela quer ser representada (ou
representar?) para os outros atores sociais com quem convive e para toda a
sociedade. (BENEDETTI, 2005, p. 73)
O processo de transformação em uma travesti envolve o desenvolvimento, através do
ensaio e erro, de aprendizagem e emulação, tem como finalidade a constituição de uma nova
identidade de gênero. No caso dos cosplayers, o estilo se desenvolve no assistir animês e ler
mangás, no selecionar uma personagem com o qual a pessoa se identifica, no ir aos eventos e
observar outros cosplayers, na observação das fotos e nas respostas às perguntas a eles feitas,
na compra de materiais e confecção das roupas, na memorização de falas e trejeitos da
personagem escolhida para se representar, etc.
A construção do estilo entre os cosplayers não é algo tão denso como entre as travestis,
mas não é algo superficial. Já vi cosplayers de Hermione, da série Harry Potter, preocupadas
em como fazer um movimento correto com uma varinha de condão, como vi uma jovem
vestida de Sakura Kinomoto, de Sakura Card Captor, pedir um instante para pegar seu báculo
mágico para ser fotografada, havendo inclusive o fato de uma cosplayer ter reclamado que
alguns rapazes tentam ver a sua calcinha quando está caracterizada de Sailor Moon quando
disse que isso seria resolvido colocando um short, ela disse que isso estragaria a composição
da personagem.
Esse estilo não seria hegemônico na maioria dos aficionados mais jovens que,
geralmente, utilizam “cosplay de boutique” e desconhecem a maioria dos animês. Conhecem
apenas um ou outro personagem, muitas das vezes tendo os visto apenas na TV aberta, além
de desconhecerem alguns clássicos desse universo. Como disse Yara, de treze anos:
O pior é que virou modinha. Agora tem gente que vai em evento e diz que é otaku. E
começa a falar em português. Agora tem criança aqui, vizinho, que pra ouvir
brincando: “arte ninja!”. (Yara, 13 anos)
288
Essa densidade no envolvimento com a prática do cosplay não é mais compartilhada
por todos. Se antes seria ilógico ver Ash, da série Pokémon, dizer: Eu te explodo Pikachu!”,
ao invés do tradicional “Eu te escolho Pikachu!” afinal, não é comum ver um treinador
querendo explodir seu Pokémon, um amigo tal ão não seria mais tão improvável. Como
os concursos se tornaram cada vez mais competitivos,os cosplayers que fazem encenações
cômicas, por vezes pejorativas, às vezes até de gosto questionável, com a finalidade de serem
ovacionados pela platéia.
Em uma apresentação no Anime Center Festival de 2007, por exemplo, aconteceu o
seguinte diálogo entre os personagens Shaoran (conhecido no Brasil como Shoran) e Sakura,
ambos com dez anos de idade.
Sakura, você quer saber dum bicho que fala Pika, Pikachu! Te disse que te amo e
você ficou me olhando com cara de bunda!
Desculpa Shoran, eu te amo.
Devo destacar aqui o fato de que, dentro da categoria “tradicional”, o cosplayer que
fizer algo que não tem relação com o personagem escolhido perde pontos. Embora isso o
impeça de galgar posições elevadas nas classificações, isso não impede que ele caia no gosto
popular, o que nem sempre acontece com cosplayers que realizam apresentações dentro dos
parâmetros da personagem escolhida.
Com essa transformação do mundo anime e com as convenções deixando de ser meras
exibições com pequenas apresentações de cosplays para se tornarem eventos onde o desfile e/
ou concurso cosplay aparecem como clímax, a situação mudou. Os prêmios, que até então
tinham um caráter basicamente simbólico (em parte até pela ausência de patrocínio e pelo
reduzido lucro que as pequenas reuniões propiciavam), passaram a ser mais atraentes,
desencadeando uma competitividade crescente.
Tudo começou no primeiro Anime Friends. Até então, concursos de cosplay
davam somente kits de revistas e troféus aos vencedores. Após a convenção da
Yamato Corp. de 2003 isso mudou. Daí pra frente, eventos de todo o país
289
começaram a dar prêmios de alto valor para os cosplayers campeões.
No Anime Friends de 2003, a avalanche de valiosso prêmios incluía:
PlayStation 2, GameCube, GameBoy, televisor, vídeo-cassete, DVD... Tudo com
pelo menos duas unidades de cada. Foi um concurso agitado que fez esgotarem
todas as vagas de inscrição. Depois desse evento nada mais seria o mesmo e, de
Florianópolis a Fortaleza, as grandes premiações aumentavam de valor.” (LOBÃO,
2006, 93)
Houve o estabelecimento das premiações e a posterior criação de competições
nacionais, como onde os vencedores de diferentes eventos, em vários estados, podem
participar de uma final para participar do WCS (World cosplay Summit), criado em 2003, no
Japão para premiar a melhor dupla de cosplayers do mundo. Vale destacar o fato de que o
Brasil é bicampeão desse torneio, tendo vencido em 2006, na sua primeira participação, e em
2008.
Se isso contribuiu para o evidente refinamento das apresentações e da indumentária
dos participantes, também levou à perda de parte do seu aspecto improvisado e informal. Há o
desgaste psicológico característico de uma competição, sendo que ao mesmo tempo em que
companheirismo entre alguns cosplayers, os quais ajudam a se vestir, retocar maquiagem,
etc., também acirrou vaidades e intrigas dentro do meio. São freqüentes reclamações quanto
aos votos dos jurados, quanto aos critérios envolvidos, etc.
113
A questão da escolha dos jurados merece uma pequena digressão. Ela se insere no
processo de desenvolvimento de uma carreira no mundo anime. Não critérios objetivos
para essa escolha, a não ser o grau de envolvimento desses com o universo da cultura pop
nipônica.
A rede social é fundamental. A construção das redes de relação é que garante o convite
apara ser staff, bem como garante que um dublador aceite um convite para uma palestra.
113
Essa mudança na atitude dos cosplayers, com o aparecimento de uma maior rivalidade, é comentada pelos
que conhecem os bastidores do mundo anime e é vivida pelos que trabalham nos bastidores dos eventos, como
diz Dana Guedes, responsável pelo Circuito Cosplay de 2007. “Eu sempre lidei com cosplay e cosplayers , tanto
sendo uma, como apresentando concursos, mas quando você se envolve com notas, as coisas mudam de figura
(risos). E é engraçado ver como você é vista, por algumas pessoas, ou como as pessoas se transformam por causa
de notas, é incrível!” (GUEDES, 2007, p. 91)
290
Comprometimento com a cultura pop nipônica é uma prerrogativa, mas são as redes que
permitem o acesso a essas posições, facilitam a tomada de ciência dos eventos que irão
ocorrer, etc.
Não pude explorar profundamente esse sistema de redes, mas posso dizer que o fato de
ainda haver um pequeno número de organizadores de eventos no Rio de Janeiro, os donos de
estandes os conhecem e são informados dos eventos a serem realizados, de forma que
possam alugar estandes. Da mesma forma, um evento bem sucedido em um espaço abre a
possibilidade de realização de novos eventos, bem como problemas de estrutura podem
inviabilizar futuros eventos.
É comum que as pessoas que trabalham como staff se tornem conhecidas dos
organizadores e que acabem por participar em diferentes eventos. Assim, as redes sociais
otakus possuem uma dinâmica semelhante às dos músicos de jazz. Essas redes sociais são
mais visíveis, por exemplo, na seleção para jurados, para convidados a se apresentarem em
eventos, etc.
Ao perguntar a uma das apresentadoras de um desfile de cosplay no Anime Dreams
2005 quais os pré-requisitos para ser jurado, ela disse que era preciso conhecer animê, não
houve maiores explicações. Ao ser perguntada como ela se tornou apresentadora, ela disse que
freqüentava o evento, e acabou ficando conhecida e chamada para ajudar.
Em suma, a obtenção desses empregos melhores requer da pessoa tanto competência
quanto constituição de relações informais de obrigação mútua com homens que
podem indicá-lo para eles. Sem o mínimo necessário de competência, a pessoa não
pode ter um bom desempenho no novo nível, mas essa competência resultará no
tipo apropriado de trabalho caso se tenha feito os contatos apropriados.” (BECKER,
2008, p. 117)
Resumindo, o fato de não haver critérios objetivos para a escolha de jurados, os quais
são geralmente celebridades no meio sendo portanto também aficionados, muitas vezes
amigos dos participantes dos concursos é uma das explicações para um certo desgaste
291
dentro das apresentações de cosplay.
Não é incomum ver algum cosplayer questionando alguma premiação em função de
algum favorecimento. Com isso, a aura de atividade desinteressada, sem fins lucrativos, que
cercava a atividade do cosplay se diluiu, em parte, devido ao crescimento da competitividade
em função da complexificação dos concursos, para dar maior tensão à entrega dos prêmios.
Dessa forma, o contexto atual, onde algumas das apresentações não são feitas mais
direcionadas apenas pela diversão, mas pela competição, colocou em cheque a prática do
cosplay. Comodisse antes, agora se escolhe personagens com roupas que sejam chamativas
o bastante para mostrar que foram devidamente confeccionadas; um cosplay simples, pode
não ser mais apropriado para competir visando prêmios.
Claro que discussões em cima do assunto 'prêmios' começaram a surgir em fóruns da
Internet e os fãs se perguntavam se fazer um cosplay era concorrer a grandes
premiações ou simplesmente ter o prazer de fazer uma fantasia legal do seu
personagem favorito.
A “guerra” entre os fãs que defendem que os prêmios são um incentivo e os
que preferem a extinção deles (e por vezes até dos concursos) para terminar com
rixas e rivalidades gerou a divisão de muitos cosplayers em grupos e até guetos, que
vão até o 'limite' da discussão para impor suas opiniões e desejos, ganhando
inclusive representantes de ambos os lados dentro das equipes de coordenadores dos
eventos. (LOBÃO, 2006, p. 93)
Outro ponto que permeia o mundo anime e que é pouco discutido é a questão da
pirataria. Esse foi um problema que chamou a minha atenção logo que comecei a ir aos
eventos e pude ver estandes vendendo episódios e até séries inteiras de animês. Isso me fez
pensar sobre como era visto o direito autoral dentro desse universo e pude perceber que ele
não é muito relevante.
Como a produção de mangás e animês é enorme, pouco é lançado e/ou exibido no
Brasil. Por isso, muitos fãs conseguem as novidades, e os clássicos, através da Internet. Lá,
aficionados digitalizam os mangás e colocam legendas em português muitas vezes é mais
fácil encontrar o material em inglês. Da mesma forma, os fansubbers que além de gravar
legendam os episódios em português.
292
Essa iniciativa é vista como sendo uma atividade que não visaria retorno financeiro,
buscando apenas a divulgação dessas obras. É que entra a justificativa nativa. Se houver
interesse de alguma distribuidora em lançar o animê no Brasil, a divulgação do mesmo pelo
fansubber que o traduziu e legendou será finalizada. Dessa forma, esse tipo de atividade é
interpretado como tendo uma finalidade positiva, até mesmo contribuindo para a ampliação
do mercado de consumo de desenhos japoneses.
De certa forma, gravar e legendar material inacessível para outros fãs seria um ato
abnegado, afinal, envolve um dispêndio de tempo e de trabalho. Com a facilidade de se baixar
esse material da Internet sem qualquer pagamento, tal ação ganha status de doação, de ação
desinteressada. Com isso, o fansubber transforma um produto da indústria cultural, que no
Japão é uma mercadoria, em dádiva. Assim, a idéia do animê como produto diferenciado,
ganhando o caráter de algo que não está inserido na dinâmica capitalista.
Felizmente, nem tudo está ainda classificado exclusivamente em termos de compra e
venda. As coisas têm ainda um valor de sentimento para além do seu valor venal,
supondo a existência de valores que sejam apenas deste género. Não temos senão
uma moral de mercadores. Restam-nos pessoas e classes que mantêm ainda os
costumes de antigamente e quase todos nós nos sujeitamos a eles, pelo menos em
certas épocas do ano ou em certas ocasiões. (MAUSS, 1988, p. 185)
O trabalho dos fansubbers seria visto, portanto, como um ato de amor para com os
desenhos japoneses e para com os demais aficionados. Pelo menos é essa a forma como essa
atividade se apresenta; o que nos dias atuais, tem pouca importância. Os aficionados compram
os DVDs sem maiores reflexões sobre a legalidade do ato da gravação e legendagem sem
autorização do autor ou produtor, bem como não aparenta ligar para cópia que é vendida
contra a vontade do fansubber.
114
Não importa se um aficionado compra um DVD de uma série de tokusatsu ou se ele
baixa episódios de Death Note em casa, tanto uma ação quanto a outra são ilegais. Contudo,
114
Acontece assim uma mutação sui generis: o que era produto da indústria cultural no Japão transforma-se em
dádiva na mão do fansubber, oferecida aos outros aficionados; porém, ao ser gravada e vendida em eventos,
revela-se produto outra vez.
293
não nenhuma atitude de preocupação para com esse fato. Nas entrevistas que realizei, não
houve tensão aparente ao se falar em baixar episódios da Internet, como se a ilegalidade do
ato não fosse conhecida.
O fato de uma obra estar disponível na Internet sob a forma de um arquivo digital,
não a descaracteriza como criação do espírito, passível de proteção legal. A referida
proteção legal garante ao seu criador o direito exclusivo de reproduzir, divulgar e
utilizar a obra, seja mediante remuneração ou não, uma vez que ao autor é conferido
o direito de autorizar o uso da obra por ele criada mediante pagamento ou
gratuitamente. (GANDELMAN e NIGRI, 2008, p. 173)
Não maiores restrições à venda de material baixado da Internet, à sua tradução e
legendagem não-autorizadas e nem à sua venda nos eventos na forma de DVD. O máximo
que já ocorreu foi a realização de eventos sem a venda de animês, por exigência da instituição
onde foi realizado o evento. Esse tipo de restrição ocorreu devido a problemas até com a
fiscalização governamental, sendo um dos motivos pelos quais o SESC do Rio de Janeiro não
mais autorizou a realização de eventos.
É possível ver exibida, em alguns animês, a mensagem “Feito de fãs para fãs, não
compre ou alugue”, o que não inviabiliza a comercialização desse material. Cheguei a receber
emprestada, em 2000, uma fita de vídeo-cassete de um aluno com a série Record of Lodoss
War e, no início da fita havia uma mensagem dizendo discurso semelhante, algo como
“empreste mas não alugue”. Essa frase visa transformar o desenho gravado, traduzido e
legendado pelo fansubber em uma dádiva, para outros aficionados “Ora, a dádiva não pode
ser mero objeto, pois isso significaria que é totalmente alienável, que é uma mercadoria
desprovida dos vestígios das pessoas que a conheceram.” (GODBOUT e CAILLÉ, 1999: 171)
A situação se alterou consideravelmente desde então. A a possibilidade de utilizar
gravadores de CD, e posteriormente de DVD, facilitou em muito a confecção de cópias. Com
isso, a possibilidade de mercantilização desse material ampliou-se e tornou-se um negócio
acessível e lucrativo. Ainda que a prática dos fansubbers seja movida pela satisfação de
294
divulgar os animês, sua atividade acabou por gerar um amplo campo de produção e venda de
material ilegal.
Entrou-se no mundo da reprodução, tema bastante discutido no campo da produção
musical a partir do uso da Internet para a distribuição de músicas sem o pagamento de direitos
autorais. Atualmente, qualquer um pode baixar praticamente o que quiser da rede mundial de
computadores, desde uma música a um animê. Esse gesto pode ser para uso doméstico bem
como para fazer inúmeras cópias e vender.
As reproduções perfeitas e baratas não se apresentam como novidade bastante
tempo. Por outro lado, o fato de as cópias digitais serem de graça se deve
principalmente ao veloz movimento de hipertecnologização do computador e da
Internet. Aparecem diversos softwares de compartilhamento de músicas, uma
espécie de banco de dados musical que, ao mesmo tempo, permite ao usuário
pesquisar e 'baixar' músicas da Internet, também permite a outros ter acesso ao seu
banco de dados pessoal de música. É possível afirmar que atualmente há um número
crescente de pessoas partilhando de algum software musical. Além disso, um
gravador de CD é cada vez mais barato; a prática de 'baixar músicas' e depois gravá-
las aumenta a cada dia, principalmente com a possibilidade de ter conexão ilimitada
na Internet. (BACAL, 2003, p. 58-59)
O comentário acima, escrito pensado para o universo da música, onde os DJs baixam
da Internet as músicas que desejam, é perfeitamente válido para o mundo anime. Há a
possibilidade de se baixar praticamente séries inteiras de animês através de programas como
E-Mule e E-Donkey, por exemplo.
A cada pessoa que se conecta à rede mundial de computadores através desses
programas, a expansão dessa rede de trocas de arquivos, que os arquivos que você
baixou para o seu computador passam a ser baixados para os computadores de outros em um
processo de crescimento que progride exponencialmente.
A prática da pirataria não se resume aos desenhos animados e aos quadrinhos, é
possível ver jogos eletrônicos sendo vendidos em calçadas, bem como bonecos, baralhos, etc.
O caso do card game Yu-Gi-Oh é emblemático. Embora o jogo, pelo que me foi confidenciado
por um dos organizadores de um torneio no Anime Dreams de 2005, tenha chegado ao Brasil
295
antes do animê, o baralho oficial demorou para chegar em versão brasileira.
Infelizmente, a pirataria foi mais rápida e colocou no mercado produtos com preços
muito mais baixos, até mesmo traduzidos, que conquistaram os desavisados, criando
uma legião de duelistas que utilizam produtos piratas, que não são endossados pela
Konami, Upper Deck ou por qualquer outras empresa que distribua o card game.
(FONSECA, 2006b, p. 23)
115
O caráter ilegal desse consumo de DVDs nos eventos, existindo a venda uma
diversidade enorme de séries, especiais, shows, etc., não é algo que preocupe os aficionados.
De certa forma, essa situação lhes permite escapar aos controles dos meios de comunicação de
massa brasileiros. Não mais a necessidade de que uma rede de televisão transmita um
animê para que ele seja conhecido.
O caso de Naruto é o melhor exemplo disso, quando fui ao Anime Dreams 2005, vi
cosplayers de personagens desse desenho. Eram poucos, mas circulavam e eram
reconhecidos, afinal, basta dizer que muitos estandes exibiam trechos do desenho para
alavancar as vendas de seus DVDs. “Naruto é um caso à parte. É uma série que, muito antes
de qualquer empresa pensar em licenciar o mangá no Ocidente, tinha uma crescente legião
de fãs por esses lados. Claro, tudo graças à Internet e aos fãs que escaneavam e traduziam as
aventuras de Naruto e cia.” (GONÇALVES, 2006, p. 19)
Os novos meios de comunicação de massa deram aos otakus a possibilidade de não
serem mais reféns da mídia, podendo escolher (como em um supermercado), o seriado que
melhor lhes aprouver os que possuem Internet de alta velocidade podem fazê-lo sem sair de
casa.
Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo
apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece
possível fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja
como sonho, que contribuiu para esse efeito de 'supermercado cultural'. (HALL,
2004: 75)
Infelizmente, essa presença maciça de material pirateado circulando sem controle ou
115
Situação semelhante aconteceu com Cavaleiros do Zodíaco, onde seus bonecos caríssimos nas lojas
competiam com seus similares bem mais em conta nas bancas dos camelôs.
296
censura, que nada impede que uma criança baixe um desenho violento ou de temática
sexual que não sejam condizentes com a sua idade, seria uma das dificuldades alegados pelas
distribuidoras para conseguirem trazer séries novas para o Brasil.
Até mais recentemente, os lançamentos de animês em DVD eram raros, muitas vezes
sendo distribuídos em bancas de jornais, encartados em revistas em 2002 eu comprei três
DVDs da série Vampire Princess Miyu na revista DVD Anime, lançados pela produtora Studio
Gabia, em parceria com a editora Van Blad, de São Paulo. O alto custo desse material, em
relação ao seus similar pirata, acabou por não levar essa iniciativa adiante. Esse foi um dos
argumentos expostos por Daniel Castañeda, executivo da distribuidora Cloverway,
importadora de animês.
Quando o consumidor prefere adquirir produtos piratas, isto nos fecha as portas do
mercado por fazer existir artigos com os quais nossos clientes não podem competir,
e não apenas pelo custo de licenças, produção e distribuição que resulta para se
colocar o produto no mercado, mas simplesmente pelo 'fator de retorno do
investimento', depois do reparte dos lucros. (CASTAÑEDA, 2007, p. 6)
Como uma parcela dos aficionados pode baixar seus mangás da Internet ou conseguir
seus desenhos favoritos comprando-os em eventos, não há mais uma grande preocupação com
os lançamentos realizados pelas redes de televisão aberta ou por assinatura esses veículos
deixaram de ser a única via de acesso aos animês.
Na verdade, desenha-se uma diferença na atitude do público em relação aos animês
que são exibidos pelas redes de televisão, havendo uma preferência, por parte dos aficionados
mais inseridos no mundo anime, pelos desenhos animados legendados disponibilizados pela
Internet. Porém, retornarei a esse ponto ainda nesse capítulo, quando falar da censura e da
dublagem.
Outra manifestação, que apesar de não implicar em fins lucrativos pode envolver a
quebra de direitos autorais é a prática das fanfictions. Esses textos redigidos por fãs tendo por
base personagens, artistas, filmes, grupos de rock, seriados de televisão, etc., não possuem,
297
em princípio, nenhuma irregularidade, afinal:
O artigo 47 da Lei 9.610/98 que versa sobre o direito autoral, diz que é livre a
prática de paráfrase e paródias que não tragam prejuízo às obras originais. Aplicando
este artigo para os fanfictions, veremos que estes se enquadram dentro da lei,
contudo, devem não apenas respeitar o universo, mas também os personagens
existentes nas obras originais. (MACIEL, 2007, p. 49)
é que se encontra um possível problema, posto que o que atrai os jovens para
escrever histórias a respeito de suas personagens preferidas, é a possibilidade de recriar suas
vidas e trajetórias. Com isso, pode-se colocar um herói sendo covarde, um vilão fazendo uma
boa ação, etc. Dessa forma, ao alterarem os perfis das personagens e os seus universos, os
autores de fanfiction estariam violando os direitos autorais; porém, como não há, em
princípio, nenhum ganho econômico com isso, tal prática não tem sido alvo de maiores
críticas ou de retaliações por parte dos donos dos direitos autorais.
Como disse acima, se tornou bastante corriqueiro baixar mangás e animês da Internet.
A redefinição do espaço do jovem em casa, com seu próprio quarto e computador facilitou
isso. É possível ter acesso ao material produzido no Japão sem ter que se submeter aos
ditames das grandes redes de televisão brasileira, as quais têm uma péssima (e, parcialmente,
justificada) imagem entre os aficionados poucos animês na programação, cortes e edição de
episódios, exibição sem ordem cronológica, mudanças de horário e cancelamento de séries
sem aviso.
A censura aos desenhos animados japoneses é uma das principais reclamações dos
aficionados, e um dos motivos pelos quais um relativo desinteresse pelos lançamentos de
animês pelas redes de televisão brasileiras. Existe até uma certa concepção de que os
desenhos animados japoneses seriam um alvo privilegiado da censura, a qual não teria o
mesmo peso quando se trata de outros produtos da indústria cultural brasileira. Tal ponto de
vista foi evidenciado por Fernando Janson, tradutor de vários animês, em uma entrevista para
a revista Neo Tokyo.
298
NT: E como você reagiu com a saída do animê [Shinchan] do ar por motivos de
censura?
F: Achei uma grande hipocrisia. Num país onde se tanta coisa de mau gosto na
TV aberta, como Tati Quebra Barraco e outras que nem vale a pena citar, proíbem
um anime inteligente na TV a cabo. Não consigo aceitar. É coisa de gente tacanha.
(JANSON, 2006, p. 86)
Essa postura um tanto irritadiça por parte dos que estão inseridos no mundo anime
acaba por se tornar uma postura defensiva. Todo lançamento é visto com desconfiança, com
receio de que sofrerá algum tipo de alteração para que possa ser exibido pelas redes brasileiras
de televisão. Essa preocupação para com a censura foi novamente abordada em outra
entrevista da revista Neo Tokyo. Nesse caso, a entrevistada era Deborah Amodio, diretora da
Swen Entretenimentos (empresa responsável pelos desenhos animados japoneses exibidos no
programa TV Kids da Rede TV!).
NT: A censura dificulta muito o processo de exibição de uma série de TV?
DA: A censura cumpre seu papel, obedecendo a critérios determinados para o
horário em que a série será exibida, o importante é que os próprios pais e crianças
possam se policiar para o que é e o que não é indicado para determinadas idades.
NT: Mas você não acha que certas regras não se aplicam de forma coerente? Temos
como melhor exemplo algumas telenovelas, que não respeitam certas imposições de
horário.
DA: Até concordo, mas acredito que a maior censura tem que ocorrer nas casas,
porque cada família possui regras próprias.
NT: Qual a opinião da empresa em relação à censura com os desenhos?
DA: Ela é necessária para delimitar o que pode ser assistido naquela faixa horária,
evitando que uma criança assista a programas inadequados para sua idade. Até
porque, os animês variam muito em termos de faixas etárias. Existem séries que
interessam a adultos e podem ser consideradas violentas para as crianças, e existem
séries extremamente adequadas para um público infantil. (AMODIO, 2006, p. 77-
78)
A resposta da executiva foi pragmática, afinal a empresa preferiu não entrar na
polêmica lançada pelas repetidas perguntas a respeito da pertinência, ou da impertinência da
censura aos desenhos animados. Para a distribuidora, bem como para as produtoras japonesas,
o animê é um produto, que após sua elaboração deve ser vendido e exibido pelas redes de
televisão esse aspecto de produto da indústria cultural, que pertence aos seus criadores (ou
as que possuem os direitos de distribuição e veiculação), muitas vezes não é levado em
consideração por parte dos otakus.
299
Os desenhos ganham um estatuto de posse de seus consumidores, os quais os
descobriram, baixaram, gravaram, exibiram para amigos e/ou venderam em eventos. Essa
relação é compreensível pelo contexto marginal que a marcou inicialmente, quando esse tipo
de material era praticamente inexistente, tendo que circular entre conhecidos.
Contudo, a situação mudou, a ampliação da rede de consumidores deu visibilidade a
esse mercado e fez com que surgisse maior interesse pela publicação de mangás e exibição de
animês no Brasil, inclusive com lançamentos de coleções em DVDs. Se no caso dos mangás,
parte da sua autenticidade foi mantida através da leitura em estilo oriental, da direita para a
esquerda, a exibição dos animês nas grandes redes de TV brasileira trazia um outro problema.
Os mangás, por serem uma dia impressa, possibilitam a inserção de notas
explicativas no da página, um pequeno glossário no final da edição e, inclusive pequenos
artigos comentando o período histórico retratado no mangá, etc. Esses recursos de auxílio ao
leitou foram vistos em diferentes obras, como por exemplo no mangá Vagabond, da editora
Conrad, o qual narra de forma ficcional a vida do grande samurai Miyamoto Musashi.
Tal formatação acontecia, mutatis mutandi, nos animês legendados. É comum ver,
geralmente na parte de cima da tela, notas explicativas, letras traduzidas das canções, etc. Isso
não costuma acontecer com desenhos dublados. A dublagem de desenhos tem como principal
objetivo facilitar o acesso do público infantil, muitas vezes ainda em fase de alfabetização.
Com a necessidade da dublagem, a preocupação de se reduzir a presença de termos
japoneses, afinal, não haverá legendas explicando o seu significado. Ao fazer isso, se fazem
escolhas, as quais por vezes nem sempre são aceitas pelos aficionados. Por isso a questão da
tradução, costuma ser alvo de críticas pela alteração de alguns termos e/ou expressões.
Contudo, se a dublagem enfurece os otakus mais ortodoxos, ela não desagrada aos
otakus mais recentes, os quais não possuem condições de ter contato com o material que
300
circula na Internet. Dessa forma, a reserva em relação à dublagem acaba se reduzindo aos
aficionados mais tradicionais, ou que vêem no seu acesso ao desenho animado em japonês um
diferencial em relação aos que consomem a versão dublada.
A mudança na relação com a dublagem em parte se deu pela própria pressão dos
aficionados. O campo dos animês é um dos poucos onde se importância ao papel do
dublador. É comum encontrar nas publicações voltadas para os aficionados algum comentário
relativo aos bastidores da dublagem de algum animê, à pressão feita pelos fãs para que
determinado dublador permanecesse como a voz no lançamento de alguma série em DVD,
etc.
Tal situação é sui generis, que envolve um profissional que não é visto, mas cuja
presença é facilmente percebida pelos aficionados. É perceptível a associação de certos
dubladores com determinados tipos de personagens, como heróis, por exemplo. Há, inclusive
entre os próprios dubladores, aqueles que se afirmam consumidores de animês. “Em outras
palavras, quem vive a fama não é um mito etéreo e atemporal, mas um indivíduo de carne e
osso, cuja existência é afetada pela mitificação que o cerca” (COELHO, 1999, p. 106-107)
Os dubladores mais famosos são frequentemente convidados para dublar lançamentos,
podendo ser vistos como garantia de qualidade e, talvez, de sucesso. Vale comentar que vi
oficinas de dublagem em alguns eventos; em função da expansão dos desenhos animados
japoneses no Brasil, jovens que pensam em seguir essa carreira. Atualmente, não é difícil
se encontrar um curso de dublagem.
116
Os dubladores se tornaram celebridades, dentro do mundo anime, sendo convidados
importantes em diferentes eventos. Por isso, alguns estúdios acabam por trabalhar com
dubladores conceituados, existindo um número considerável desses profissionais que são
116
Vale a pena mencionar que tramita na Câmara dos Deputados, o projeto de lei 821/2007, de autoria de
Clodovil Hernandes (PTC /SP) que garante ao dublador a menção de seu nome nos créditos e também lhe
participação nos direitos de exibição.
301
tidos como celebridades pelos otakus. É comum ver alguns em eventos dando palestras
comentando os bastidores da dublagem, tirando fotos, etc.
A Yamato criou o Oscar da dublagem, um prêmio nacional para premiar as melhores
dublagens (de todo tipo de material, não apenas de animês). Hoje, a receptividade e
reconhecimento do trabalho dos dubladores é bem maior. A atenção para com a dublagem
revela uma valorização da mesma, ainda que não alcance o grau existente no Japão, onde o
seiyū (dublador) é uma celebridade. Esse crescimento do respeito para com o profissional da
dublagem é demonstrado pelo próprio Fernando Janson:
NT: E como você lida com os fãs mais radicais que julgam seu trabalho sem
conhecê-lo bem? Existem muitos desses contratempos?
F: No começo, havia muito mais. Hoje, nem tanto. O que mais recebo agora são
elogios e carinho por parte dos fãs.” (JANSON, 2006, 83)
O próprio Janson, nessa entrevista, diz que nem todas as sugestões feitas pelos
aficionados são aceitas pelo estúdio, o que pode levar à desilusão por parte de alguns. O fato
de a dublagem brasileira ser freqüentemente mencionada como uma das melhores do mundo
não é suficiente para aplacar os ânimos.
críticas, principalmente, quando (por problemas burocráticos ou de aceleração do
ritmo da dublagem para redução de custos) ocorrem erros no produto final alguns dos quais
são perceptíveis para os aficionados que tiveram contato com o produto original em
japonês ou legendado, por exemplo.
Esse tipo de situação se explicitou quando, a cerda de dois anos, se discutia a
possibilidade, e a necessidade, do lançamento do animê Naruto, no Brasil. A série, a qual já se
beneficiou fortemente dos avanços tecnológicos dos meios de comunicação de massa (sendo
de fácil acesso através da Internet), foi alvo de grande discussão sobre a validade de sua
tradução e distribuição no Brasil.
Muitos fãs preferem a versão original, sem cortes e tudo mais. Mas é importante
lembrar que o lançamento de Naruto no país visa atingir o público brasileiro e não o
302
japonês. Com a dublagem, a série conseguirá atingir um leque maior de
telespectadores. Qualquer adaptação é feita pensando na facilidade que nós, a
assistir determinada produção, teremos para assimilar o que o personagem quer
dizer, lembrando que não teremos à disposição uma legenda explicando o que aquele
golpe ou termo significa. O retorno financeiro é parte fundamental de qualquer
empresa quando traz determinada série ao país e, nesse aspecto, as crianças exercem
um papel fundamental, sendo os principais consumidores de produtos oficiais
(mochilas, roupas, cadernos e tudo mais relacionado). Está mais um motivo forte
para as adaptações, dublagem e até mesmo os cortes que dão uma 'suavizada' nas
cenas. (FONSECA, 2006a, p.15)
A revista considera que a indisposição para com a dublagem de animês se pelo fato
de que os brasileiros têm uma suposta predileção pelo que é estrangeiro, desvalorizando o
produto nacional. Nesse caso, penso que a oposição à dublagem se muito mais pela
possibilidade de alguns de terem acesso ao produto original com legendas e notas explicativas
nos vídeos. Esse público se considera em condições de questionar a validade da dublagem.
“Com a TV a cabo e a Internet, houve uma diferenciação de uma parte do público em relação
à dublagem. Tornou-se lugar comum seguir as diretrizes de alguns críticos sobre a suposta
nocividade da dublagem em relação à obra original.“ (LESCAUT, 2006, p. 48)
Além disso, o fato de poder assistir o desenho em japonês aumenta a niponicidade, a
autenticidade do ato. Essa posição é compreensível que muitos manifestam o interesse em
aprender japonês para poder ler os mangás e assistir os animês no original. Não fazê-lo,
consumir o material que é veiculado dublado pela TV aberta é evidenciar sua conformação
com o que é produzido pela cultura de massa.
Diferentemente daqueles que buscam o produto, que constroem redes sociais para
consegui-lo, que faz pesquisa na Internet para encontrar o que lhe interessa, aquele que
consome um desenho editado e dublado seria apenas mais um consumidor. O acesso ao
material original conferiria maior singularidade ao seu consumidor.
Esse debate também se manifesta, mutatis mutandi, entre os DJs, dentro do mundo da
música eletrônica. Há os que acham importante a produção de uma música eletrônica que leve
em conta as características da cultura brasileira, como os que não querem uma adaptação,
303
preferindo-os a música com base totalmente estadunidense ou européia. Tem-se assim, entre
os DJs, tendências bastante semelhantes às existentes no mundo anime: “(...) por um lado, os
mais 'puristas' ou 'universalistas', voltados para as referências norte-americanas e européias;
por outro os 'brasileiristas', voltados para as misturas com os sons tipicamente brasileiros.”
(BACAL, 2003, p. 69)
Essa demanda pela coisa real, pela experimentação do produto japonês na sua maior
plenitude lendo mangá publicado em estilo oriental, ou baixando da Internet em inglês, ou
melhor, lendo em japonês. Assim se evidencia um dos motivos que levam alguns aficionados
a aprenderem japonês, na tentativa de poder ter acesso ao material nipônico da forma mais
próxima do seu formato original.
Tal busca de uma niponicidade que caracterizaria os mangás, tem sido um problema,
por parte de alguns otakus, em aceitar a produção de mangás nacionais. A produção de
histórias em quadrinhos em estilo mangá, de certa forma, se insere na luta pelo
desenvolvimento de uma indústria quadrinística nacional.
117
Da mesma forma que muitos aficionados começaram a escrever histórias envolvendo
seus personagens favoritos, outros criaram histórias em quadrinhos originais. Esse tipo de
atividade não é exclusividade do mundo anime, porém, uma diferença. Alguns desses
artistas escolheram o estilo cinematográfico, de cortes precisos, de ângulos dramáticos, de
olhos vivos para desenhar seus quadrinhos. O uso de um estilo que tivesse as características
de um mangá tornaria o desenho assim produzido em um outro mangá? Essa é uma questão
que divide os aficionados.
Um assunto que sempre desperta polêmica entre os fãs de animês e mangás diz
respeito aos trabalhos envolvendo o chamado “mangá brasileiro”. Fãs mais
tradicionalistas afirmam que mangá de verdade são somente os japoneses. Para os
mais liberais, o mangá se tornou um estilo e não uma nacionalidade, sendo
possível existir o 'mangá nacional'. (LOBÃO, 2007, p. 37)
117
Vale aqui informar que também está tramitando na Câmara o projeto de lei 6581/06, de autoria de Simplício
Mário (PT-PI), que trata do incentivo à produção e distribuição de revistas em quadrinhos brasileiras.
304
Esses quadrinhos, inicialmente, eram muitas vezes publicados em fanzines, uma mídia
alternativa, produzida por fãs para fãs e geralmente de caráter relativamente artesanal (muitas
vezes até fotocopiada). Alguns dos jovens que começam com o fanzine têm a expectativa de
virem a ser contratados por grandes editoras. Com o crescimento dessa produção acabou
surgindo o Fanzinecon, final da década de 1990, como uma forma de dar maior visibilidade à
essa produção.
Nos eventos que fui em São Paulo pude visitar, dentro dos Anime Dreams e Anime
Friends a área reservada para o Fanzine Expo. Ali pude ver, comprar e conversar com alguns
dos artistas envolvidos. O Fanzine Expo é uma grande vitrine onde, aproveitando-se da
movimentação do evento, os fanzineiros podem expor seus trabalhos e conseguir chamar a
atenção.
Atualmente, o Fanzine Expo é o maior encontro de fanzineiros da América Latina,
onde as histórias em formato mangá são a maioria, mas também têm espaço as
revistas informativas e os quadrinhos americanos.
O Fanzine Expo contou em 2006 com mais de 105 grupos participantes. O
encontro de fanzineiros ocorre duas vezes por ano. No Anime Dreams (janeiro) e no
Anime Friends (julho) No último Friends [2006] foram mais de 150 publicações de
mais de 200 artistas. Neste meio se destaca o gênero yaoi (histórias com garotos
homossexuais) entre as meninas e o hentai (erótico) entre os meninos. (LOBÃO,
2007, p. 40)
Aqui no Rio de Janeiro também encontrei quadrinhos em estilo mangá produzidos na
forma de fanzines. Esse material é divulgado nos eventos, que não existe aqui um evento
semelhante ao Fanzine Expo. O interessante é que, mesmo não havendo uma garantia de
pronto retorno financeiro, o interesse em desenhar quadrinhos com estilo japonês não diminui.
Cheguei a ter um aluno do município que, em 2005, desenhava figuras dos Cavaleiros do
Zodíaco na mesa da sala de aula e que, ao reencontrá-lo em um ponto de ônibus, me disse que
estava escrevendo uma história no estilo mangá já tinha até alguns nomes japoneses
escolhidos para os personagens principais.
Entretanto, a existência de uma produção em estilo mangá ainda não conseguiu
305
alcançar um sucesso equivalente ao alcançado pelos mangás de origem japonesa. Isso é um
dos destaques da entrevista que a revista Neo Tokyo realizou com os integrantes do Studio
Seasons, especializado em mangás nacionais.
Esse estúdio iniciou em 1996, tendo suas séries Sete Dias em Alesh e Oiran publicadas
e lançadas nas bancas. Devo confessar que comprei o mangá” Oiran, porém, algo
(infelizmente meu comentário é uma mera impressão) não me pareceu natural e após
vasculhar a revista, percebi que era um mangá nacional” e me desfiz da mesma naquele
momento, a minha visão era a de que havia sido enganado. Atualmente, o Studio Seasons
mantém um site onde publica mangás online.
Além da indisposição de parte dos consumidores de mangás para com o “mangá
nacional”, os membros do Studio Seasons destacaram um problema recorrente nas discussões
a respeito da produção de quadrinhos nacionais: a dificuldade das editoras de lidar com os
desenhistas e autores – geralmente preteridos em função do material estrangeiro de custo mais
baixo. Um dos contratempos enfrentados pelas histórias em quadrinhos brasileiras seria o fato
de que “(..) as editoras não estão acostumadas a produzir quadrinhos no Brasil. Salvo raras
exceções, tudo é comprado pronto! As editoras têm uma longa experiência em comprar
pronto, mas não em encomendar trabalhos e quando o fazem não sabem lidar com os artistas.”
(PIZZATO, 2007, p. 8)
Devido a pouca penetração do quadrinho nacional, o surgimento de trabalhos de
sucesso como os Combo Rangers e Holy Avenger, mencionados, são exceções. Em 2004,
foi criada, através da parceria entre o desenhista Diogo Saito e o publicitário Takashi
Tikasawa (da Yamato, realizadora dos Anime Dreams e Anime Friends), a ZN Editora, para a
publicação de mangás nacionais. Mesmo essa iniciativa acabou não alcançando o sucesso
esperado.
118
118
“Atualmente, a ZN Editora aposta na publicação de mangás on-line como o futuro dos quadrinhos brasileiros.
306
Portanto, encerrando esse assunto, um outro problema além da dificuldade de se
publicar quadrinhos brasileiros e de se conseguir montar um sistema de distribuição que
garanta que eles cheguem às bancas: o relativo desinteresse de muitos otakus pelo mangá
nacional. Uma pergunta (“Para você, existe mangá brasileiro?”) feita pela revista Neo Tokyo
de 24, mostrou tanto depoimentos favoráveis quanto contrários à idéia da possibilidade de
produção de mangás no Brasil.
Não! Na minha opinião man é quadrinho feito no Japão, assim como comics são
quadrinhos feitos nos EUA. Esse negócio de mangá nacional, mangá feito nos EUA
ou em qualquer outro lugar é uma forma de enganar os leitores e se aproveitar da
popularidade dos mangás. No máximo, quadrinhos brasileiros que seguem a
estética dos mangás, mas aí, considerá-los mangás é mentira. [Igor Nakashima A.
Souza]
Claro que sim! O mangá é famoso no mundo inteiro por uma série de 'regras' que
dão a ele um estilo próprio e quase único. Se um artista (seja ele brasileiro ou não)
consegue depois de muito treino e esforço, seguir à risca esse estilo ele está fazendo
um mangá Odeio as pessoas que falam que mangá é somente feito no Japão. Esses
puristas me dão nos nervos. [Aline Mattos Oliveira] (PARA VOCÊ, EXISTE
MANGÁ BRASILEIRO?, 2007, p. 10)
Como a resposta da Aline deixa claro, alguns aficionados que consideram o mangá
um conjunto de características, as quais podem ser aprendidas e reproduzidas fora do Japão
por artistas não japoneses. Logo, é possível perceber a expansão do interesse pelo estilo
mangá evidenciada pelo grande número de escolas de desenho que colocam a opçãomangá”
entre os seus cursos. Com o aumento dos mangás nacionais nas bancas e da participação de
fanzineiros em eventos de animês, aumentou também a procura de crianças e adolescentes por
maneiras de apreender (sic) a desenhar nesse estilo.” (LOBÃO, 2007, p. 38)
Como foi visto acima, uma considerável polêmica a respeito da possibilidade de
produção de mangá nacional, visto que ele seria uma manifestação da cultura nipônica. Um
mangá nacional seria mais uma tentativa de reproduzir elementos do mangá do que realmente
um mangá. Entraria aí uma valorização da autenticidade do mangá japonês.
A idéia não é necessariamente nova. O site Dragon Ball Milênio foi pioneiro com o lançamento do
fanzine/mangá 'DBM', que contava novas histórias com personagens e tramas inspirados no universo de 'Dragon
Ball'.” (LOBÃO, 2007, p. 43)
307
Os casos mencionados são exemplos tanto de obras que tentam reproduzir a história
do Japão, semelhantes aos mangás de conteúdo histórico Oiran se propunha um mangá do
tipo histórico, passando-se antes da Era Meiji –, quanto de obras que apenas guardam alguma
preocupação estética do estilo mangá, como Holy Avenger, cuja história se apropria de
elementos do universo dos RPGs.
119
Um dos exemplos mais recentes do primeiro tipo foi Ronin Soul, lançada em junho de
2005 com roteiro de Fabrício “Briza” Velasco e arte de Rodrigo “Rod” Pereira, no qual
pessoas dos dias atuais (um estadunidense, uma italiana, um japonês e um brasileiro)
descobriam ser reencarnações de samurais – a primeira revista se passava no Japão feudal.
120
um exemplo da outra abordagem: seria o caso da Turma da Mônica Jovem, que
no segundo semestre de 2008, Mauricio de Sousa lançou uma versão juvenil da turma da
Mônica com o visual em estilo mangá.
121
Depois de estudar e pesquisar muito para unir o estilo mangá com o do nosso
estúdio, fiquei bastante feliz com o resultado. (…) É preciso estar atento aos jovens
à nossa volta. E observando nossa juventude e mesclando com elementos dos
mangás, temos tudo para não apenas agradar os nossos leitores, mas também para
conquistar novos.” (Turma da Mônica Jovem. Disponível em
<h ttp://www.assinepanini.com/turmadamonicajovem/ >. Acesso em 08 jan. 2009)
O caso do fracasso de Ronin Soul talvez se insira nesse contexto do debate acerca do
mangá nacional. No caso da Turma da Mônica Jovem, essa publicação pode contar com um
público fiel, que acompanhou as aventuras da turminha, bem como pode sofrer com uma
possível não-identificação desse mesmo público com esse estilo visual mangá. Da mesma
119
O projeto de realizar um desenho animado de Holy Avenger teve início em 2002, com os envolvidos
chegando a ir a os eventos para divulgar o desenvolvimento do processo de produção. “No entanto, o sonho do
desenho animado chegou ao final no segundo semestre de 2007, quando o Studio-Escola de Animação fechou as
portas.” (LOBÃO, 2007, p. 36)
120
Um segundo número foi lançado, porém a terceira edição não foi concluída e a série acabou não
sendo finalizada. Algumas informações e imagens desse projeto podem ser encontrados no sítio oficial:
www. roninsoul .com e no sítio http://www.universohq.com/quadrinhos/2005/review_roninsoul01.cfm ,
acessados em 08 jan. 2009.
121
Com isso, Mauricio de Sousa, o qual contribuiu com quadrinhos para a “Coopercotia”, revista
publicada pela Cooperativa Agrícola de Cotia, uma cooperativa de uma colônia de descendentes de japoneses e
que “militou” contra a presença dos quadrinhos estrangeiros em favor da produção nacional, acabou se
adaptando à força do estilo mangá entre os jovens.
308
forma, pode ser que parte dos aficionados por mangá, aqueles menos ortodoxos, se aproxime
dessa publicação. Infelizmente, ainda é prematuro para ser discutido um possível sucesso, ou
fracasso, da Turma da Mônica Jovem.
309
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
De país acostumado a assimilar características do
Ocidente, o Japão passou a influenciar povos
além de suas fronteiras. Aqui não se trata de
tecnologia embora não haja hoje em dia quem
negue essa presença no cotidiano dos que andam
de carro, usam computador ou tiram fotografias –,
mas, sim, de bens culturais. Desde pelo menos a
década de 1970, podemos dizer sem sombra de
dúvida: o Japão é pop. (SAKURAI, 2007, p. 339)
Anos atrás, os primeiros fãs de animação
japonesa no Brasil se reuniam em pequenos
grupos, muito pequenos, grupos para assistir
animes. de animação japonesa era coisa de
gueto, de “gente esquisita que curte aqueles
desenhos animados de olhos grandes”. E mesmo
assim, era um privilégio quase que exclusivo dos
paulistanos, que tinham o bairro da Liberdade ou
algum amigo descendente de japoneses como
fonte dos animes que assistiam.
Mas quando Cavaleiros do Zodíaco estreou na
TV em 1994, tudo mudou: aos poucos surgiram
novos grupos de otakus que promoviam exibições
periódicas de animes. Os mais conhecidos e
antigos clubes (ABRADEMI e ORCADE) de
dezenas de fãs pularam para centenas! Com o
tempo, surgiram outros clubes, associações e
eventos pelo país. Atualmente os otakus deixaram
de ser uma mão-cheia de fãs, ganharam mais
respeito e reconhecimento das pessoas comuns”
e o número de clubes e convenções tem
aumentado. (DANUP, 2001, p. 30)
310
Por mais incrível que possa parecer, o raciocínio utilizado por Benjamin para a
compreensão da obra de arte, pode ser útil para se compreender o contexto atual dos mangás e
animês, e da relação desses produtos com seus aficionados. Houve um período em que esse
material devido a dificuldade de acesso e à pequena quantidade de aficionados que
mantinham um maior envolvimento com os mangás e animês – era algo extraordinário. Havia
pouco material diferente do que era exibido pelas redes de televisão e era relativamente difícil
fazer cópias para uma maior distribuição.
De forma semelhante, a cultura pop nipônica se tornou um objeto de culto em torno do
qual se desenvolveu um pequeno número de aficionados. Esse quadro se alterou
consideravelmente nos últimos dez anos. O sucesso alcançado pelos mangás e animês
contribuiu para isso, pois, os meios de comunicação de massa aumentaram a sua veiculação,
bem como as novas tecnologias possibilitaram a sua reprodução em grande quantidade.
Benjamin destacara o fato de que a obra de arte nunca possuiu, plenamente, o caráter
tão único, singular, irreproduzível que lhe era atribuído. O que acontecia era que a
possibilidade de sua reprodução era reduzida, e se descoberta, a cópia perderia o valor ao ser
percebida como reprodução.
Mesmo por princípio, a obra de arte foi sempre suscetível de reprodução. O que uns
homens haviam feito, outros podiam refazer. (...) As técnicas de reprodução,
entretanto, são um fenômeno inteiramente novo, que nasceu e se desenvolveu no
curso da história, por etapas sucessivas, separadas por longos intervalos, mas num
ritmo cada vez mais rápido.” (BENJAMIN, 2000, p. 222-223)
Benjamin chama atenção para o fato de que a indústria cultural, com o seu avanço
tecnológico, tornara possível a reprodução em massa, muitas vezes tornando a cópia
indistinguível do original. Isso levava à decadência da aura, afinal, o que antes era acessível a
poucos e inacessível a muitos, tornou-se praticamente acessível a qualquer um.
Dessa forma, o caráter de excelência, de obra-prima, de trabalho exclusivo perdeu
força frente à indústria cultural, a qual incentivava a produção de bens facilmente
311
reproduzíveis e que tentava copiar o que antes era exclusividade de uma elite por vezes,
realizando adaptações para atender ao gosto do público consumidor. Assim, Benjamim
percebeu como se dava a decadência da aura.
Ela resulta de duas circunstâncias, ambas em correlação com o crescente papel
desempenhado pelas massas na vida presente. Encontramos hoje, nas massas, duas
tendências de igual força: elas exigem, por um lado, que as coisas se lhes tornem,
espacial e humanamente, 'mais próximas', e tendem, por outro, a acolher as
reproduções, a depreciar o caráter daquilo que é dado uma vez. (BENJAMIN,
2000: 227-228)
Conforme a cultura pop nipônica se tornou cada vez mais acessível, a sua aura de
objeto exclusivo diminuiu. Ela passou a não ser mais o alvo de uma adoração tão engajada
quanto antes, posto que todo um novo público passou a ter contato com a mesma sem a vê-la
mais como algo distante, quase inalcançável. Essa perspectiva gerou uma relação bem mais
próxima com esse material que, desprovido da aura parcial que adquirira para muitos dos
aficionados precursores, se tornou mais uma referência alternativa.
9.1. Construção de um Mundo Juvenil no Meio de Mangás e Animês
A revista Shonen Jump, a principal publicação de mangás no Japão, realizou a seguinte
pesquisa entre seus leitores: “1) O que mais te toca o coração?
2) O que é mais importante para você?
3) O que faz você se sentir mais feliz?” (SATO, 2007, p. 109)
As respostas foram: amizade, esforço e vitória (como está escrito acima). Os
quadrinhos da Shonen Jump trazem, em geral e em maior ou menor grau, tais elementos em
suas tramas.
A história da presença da cultura pop nipônica no Brasil pode ser entendida em função
dessas três palavras. Ela se disseminou através de redes de amigos, muitos fascinados pelas
histórias de companheirismo e de superação presentes nos animês. Através desse interesse
312
comum por animês e tokusatsus, esses jovens estabeleceram mecanismos de troca de produtos
e de informações, estreitando seus laços entre si e criando laços com outros otakus.
Os eventos de exibição eram uma oportunidade para compartilhar acervos pessoais, de
se divertir e poder rever amigos. Da casa de amigos, para pequenos auditórios, até se chegar a
locais alugados, foi uma grande caminhada. Esforço era necessário, afinal, se ir a uma mostra
de animês era um programa agradável, organizar um evento era uma atividade estressante e
pouco rentável.
O gosto pelos animês se consolidou, uma subcultura tão alternativa quanto quase
invisível. O fato de ter como referência desenhos animados, fez com que parecesse infantil,
sendo mais alvo de risos e piadinhas do que de maior interesse. Essa situação começou a
mudar na virada do século, com o início da publicação de mangás em português.
Com as novas mídias, a comunicação entre os aficionados se tornou mais fácil e,
sendo em mero relativamente reduzido, foi possível entrar em contato com outros otakus
tanto das suas cidades, quanto de outros estados. Os mais participativos nos fóruns de
discussão pela Internet, bem como aqueles que iam regularmente às exibições, se tornaram
cada vez mais conhecidos. O crescimento do público dos animês passou a dar condição para
eventos maiores e regulares onde, a mera exibição de desenhos já não seria o bastante – com a
rede mundial de computadores, o que era raro, se tornou acessível.
Assim, surgiram os grandes eventos, que se tornariam modelos para os demais. Com
eles, o cosplay, que antes era um hobby, ganhou status de atração principal. A felicidade de
ver os espaços lotando de novos otakus era visível e o desejo de realizar eventos maiores, com
mais recursos e atividades, era algo palpável.
Os meios de comunicação de massa começaram a prestar mais atenção nessa nova
subcultura. Os artigos jornalísticos, inicialmente pouco familiarizados com esse universo
313
foram até um tanto preconceituosas, vendo os aficionados por mangás e animês como
crianças, adolescentes consumistas ou como adultos infantilizados.
Em 2008, com cem anos do início da imigração japonesa para o Brasil, o interesse
aumentou. O crescimento dos eventos era uma realidade e os cosplays, pela sua exuberância e
exotismo, ganharam destaque. Ocorreu até participação de cosplayers no desfile da Porto da
Pedra, que homenageava o centenário da imigração.
A vitória dos otakus tinha sido alcançada, as pilhérias estavam sendo superadas, o
respeito estava sendo alcançado. Convenções com milhares de pessoas, presença de mais
animação japonesa nas redes de televisão, atrações internacionais, etc. O universo do Japop
deixava de ser uma referência marginal.
A cultura pop nipônica hoje talvez já não desfrute mais dos atributos de qualidade e de
valor que lhe eram atribuídos anteriormente. Atualmente, ela é muito mais um estilo do que
um conteúdo, mais um diferencial do que algo diferente, Antes os aficionados podiam sentir
uma certa reverência por esse material, tão difícil de se encontrar; hoje, eles vêem essa cultura
produzida pela indústria cultural japonesa como uma tendência, com a qual podem se
identificar, que podem utilizar como um sinal de singularidade.
Houve uma parcela de idealização da cultura pop nipônica antes, bem como agora
uma certa vulgarização da mesma, Ela repousa no meio, sendo vista tanto como exótica e
diferente, quanto como moda e tendência alternativa. Entre a arte e o produto, entre a reflexão
e o entretenimento, entre objeto exclusivo e culto das massas, mais uma vez a cultura
japonesa aparece como um diferencial para aqueles que se aproximam dela.
9.2. O Domínio dos Fãs Brasileiros: Japop como Diferenciação
314
O contexto dos microcosmo dos otakus se transformara com a sua expansão e o
público se ampliou. Toda uma nova geração de aficionados tomou conhecimento desse
mundo anime que estava em expansão. Jovens que não tinham vivido todo o processo de
constituição desse microcosmo dos consumidores da cultura pop nipônica. Para aficionados
que viram uma proliferação de mangás e animês, sem terem acompanhado todo o processo
que a tornou possível, esse ambiente festivo era uma novidade.
Isso é visível na presença de vários Narutos nos eventos, grupos de shinigamis
guardiões da morte responsáveis pela passagem das almas desse mundo para o outro de
Bleach, etc. O que antes podia ser um sinal de singularização, está se tornando, como alguns
aficionados reconhecem, mais um modismo.
Jovens que freqüentam um mesmo ambiente nunca deixam de impressionar o
observador pela uniformidade de roupas, acessórios, penteados, gestual, vocabulário
e entonação chegando até, muitas vezes, a apresentar os mesmos tiques verbais e
corporais. Ao mesmo tempo, não parecem propriamente um exército de clones,
conseguindo apresentar-se como indivíduos claramente diferenciados entre si, graças
a variações, às vezes mínimas, introduzidas por cada um em seus 'uniformes'.
(PORTINARI e COUTINHO, 2006, p. 66-67)
Tal situação quebra um pouco a representação nativa do mundo anime como um
microcosmo alternativo com características diversas do macrocosmo social no qual a maioria
de seus membros vive. Alguns dos aficionados se ressentem disso e reclamam do inchaço e da
diversificação dos eventos, agregando outros grupos além dos otakus.
O mundo anime se complexificou com essa expansão. Os novos aficionados não
compartilham das vivências que marcaram as trajetórias dos aficionados-precursores. Um
exemplo disso é o relativo desinteresse por parte dos aficionados mais jovens em relação aos
tokusatsus seriados com atores e efeitos especiais, como National Kid, Ultraman, Power
Rangers, etc.
Essa observação me foi feita por Breno, meu informante principal, o qual é um grande
315
aficionado por tokusatsus, até mais do que por animês. A forte presença dos animês, e a
associação desses seriados ao público infantil, fez com que esse segmento fosse menos
valorizado. Existem muito mais DVDs de animês a venda, nos eventos, do que de tokusatsus.
Essa diferença é, em parte, devido à diferenciação interna que a recente expansão desse
universo vivenciou nos últimos tempos.
Por não serem exibidas no Brasil com antigamente, o público daqui considera as
séries de tokusatsu como séries trash e velhas. O público animê em sua maioria
interpreta assim, levando a se ter algumas rixas em diversos fóruns e encontros dos
fãs de animação e seriados japoneses.” (PECCILLI, 2006, p. 90)
A imagem que se passa dos eventos é de acontecimentos festivos, o que sempre foram,
porém tendo a cultura dos mangás e animês como eixo central. Essa cultura tem sido retratada
quase como um pretexto para a diversão, para a fantasia. A ênfase no caráter divertido dos
eventos, aliada ao aspecto exótico que o Japão possui, chama a atenção dos novos
aficionados, que se descobrem otakus ao tomarem conhecimento dessa denominação.
O gosto e interesse pela cultura pop nipônica existem, porém, mais do que o elemento
essencial, ela o pano de fundo na frente do qual se desenrolam as conversas, brincadeiras,
namoros, etc. Isso transformou os eventos em locais de sociabilidade mais dinâmica. Não são
mais convenções só para se assistir e comentar animês, são também festas, oportunidades para
brincar e se divertir.
Um exemplo desse lado cada vez mais festivo, que os novos aficionados atribuem aos
eventos, está no uso crescente das “plaquinhas”. Placas de fórmica foram transformadas em
um meio de comunicação não-oral entre os otakus. Esse recurso parece ter surgido a partir do
no animê Ranma ½, onde placas semelhantes eram usadas por um dos personagens para se
comunicar.
122
Essas mensagens funcionam como estratégias para contato sem maiores preocupações
122
Foi no Anime Friends de 2005 que tomei conhecimento da existência dessas placas. São escritas, com
marcadores de quadro branco, com mensagens como “me um abraço”, “procura-se dono, ou dona” ou “beijo
grátis”.
316
uma recusa sempre pode ser levada na brincadeira, sem maiores danos a auto-estima
pessoal, bem como o fato de alguém corresponder não implica necessariamente no
estabelecimento de um compromisso.
A utilização dessas plaquinhas como forma de se expressar pensamentos, intenções
e/ou atitudes, guarda alguma semelhança com os recursos expressivos da juventude moderna
carioca. Essa juventude, que também pode estar inserida no mundo anime, explora diferentes
formas de expressão, desde os celulares até as camisas com “mensagens”.
Delicado agenciamento de sensibilizações de muitas ordens, essa identidade
'montada' na superfície lisa dos corpos revela-se frente destacável como a dos
celulares usados por esses mesmos jovens, ou como as frases nas camisetas que
circulam nas festas: 'sei lá, mil coisas'; 'não quero poucos e bons, quero muitos e
ótimos'; 'glam doll'; 'gaste tudo em fliperama'; 'purposeless t-shirt'; tudo mentira';
'no me molestem, estoy bailando'; 'você pra mim é problema seu'; 'só estou aqui pelo
dinheiro'. (EUGENIO, 2006, p. 173)
Embora os otakus também utilizem as camisetas como formas de sinalizar um
determinado pertencimento, a possibilidade de se escrever e de se apagar as mensagens nessas
plaquinhas de fórmica, lhes possibilita maior capacidade de expressão do que as camisetas
dos freqüentadores da cena moderna carioca, que podem ser trocadas, mas não alteradas na
noite.
Uma placa pode ser escrita e reescrita continuamente, geralmente, com o objetivo de
atrair algum tipo de atenção. Em alguns casos, visando flertar, sem compromisso. O flerte
pode se tornar uma possibilidade real se for bem recebido, se não, pode ser apenas uma
brincadeira inconseqüente poder-se-ia remeter a uma prática bastante similar à da
coqueteria, descrita por Simmel (2001).
Esse ambiente descompromissado poderia ser considerado como um sinal de que os
eventos anime se tornaram, para muitos, eventos sociais. Se antes as pessoas iam aos eventos
para se encontrar com outros aficionados, tendo a cultura pop nipônica como um dos
interesses principais (já que a socialização também era importante), hoje, as pessoas não
317
precisam ir a eventos para ter acesso a mangás e animês.
Surgidos como espaços instrumentais para a aquisição e troca de informações e
produtos ligados ao universo das revistas em quadrinhos e dos desenhos animados japoneses,
que também funcionavam como espaços de sociabilidade, os eventos parecem cada vez mais
importantes para a convivência social dos otakus. Com a possibilidades oferecidas pelas
novas tecnologias, a função original dos eventos permanece, mas não é mais a única fonte
disponível.
Desse modo, para aqueles que dispõe de recursos para conseguir as publicações que
deseja e os desenhos que mais gosta, o que os eventos podem oferecer é uma oportunidade de
se divertir. A “aura” de evento, de acontecimento extraordinário, do evento anime se esvai, às
vezes, ficar na fila é mais interessante. Entra-se para ver quem está dentro, e aguarda-se
sentado do lado de fora.
Quando os homens se encontram em reuniões econômicas ou irmandades de
sangue, em comunidades de culto ou bandos de assaltantes, isso é sempre o
resultado das necessidades e de interesses específicos. que, para além desses
conteúdos específicos, todas essas formas de sociação são acompanhadas por um
sentimento e por uma satisfação de estar justamente socializado, pelo valor da
formação da sociedade enquanto tal. Esse impulso leva a essa forma de existência e
que por vezes invoca os conteúdos reais que carregam consigo a sociação em
particular. Assim (...), o 'impulso de sociabilidade', em sua pura efetividade, se
desvencilha das realidades da vida social e do mero processo de sociação como
valor e como felicidade, e constitui assim o que chamamos de 'sociabilidade'
[Geselligkeit] em sentido rigoroso. (SIMMEL, 2006b, p. 64)
O ato de se procurar encontrar amigos nos eventos, de ir com amigos aos eventos, de
se reunir os amigos em casa para ver animês, é bem representativo de uma tentativa de se
estabelecer um espaço de convivência agradável, sem objetivos maiores que os da pura
diversão. A divulgação que o microcosmo da cultura pop nipônica tem ganho nos meios de
comunicação de massa também contribuiu para isso.
318
9.3. Vulgarização dos Mangás e Animês: da “Originalidade” à Massificação?
A percepção de que os eventos se transformaram nos últimos anos, deixando de ser
encontros de pessoas que se conhecem para serem dominados por uma multidão de
indivíduos, é algo comentado por alguns dos aficionados mais antigos. Esse certo saudosismo,
o qual me foi confidenciado por mais de um aficionado, teria sido um dos motivos da
criação do Anime Dreams, de acordo com a palavra de um de seus idealizadores, em
entrevista de 2006.
Diferente do irmão mais velho, o Anime Friends, esse [Anime Dreams] é um evento
que tenta resgatar a magia dos eventos antigos, com atrações mais tradicionais e sem
aquele sufoco e bagunça gerada pelas atrações internacionais. Com um público final
superior ao de 20 mil, mais uma vez o evento agradou à maioria e divertiu a todos.
(FONSECA, 2006c, p. 61)
Pela grande quantidade de público divulgada e pelo crescimento do evento, o Anime
Dreams também se tornou um mega evento. Tal idéia de resgatar o ambiente dos eventos
originais não parece possível. Mesmo no Rio de Janeiro, onde mesmo os grandes eventos são
consideravelmente menores se comparados aos de São Paulo, a reclamação quanto à mudança
no perfil do público freqüentador é comum.
Mais do que o tamanho dos eventos que não cresceram e se multiplicaram, mas
também se diversificaram –, o que mudou foi o tamanho do mercado de ani e mangá. Os
animês continuam sendo o principal meio de divulgação da cultura pop nipônica, sendo que
agora parece haver uma consolidação do mangá. Praticamente todas as bancas possuem
algum mangá em suas prateleiras.
Talvez os novos aficionados não possuam a mesma reverência para com o material que
consomem, embora ainda lhe atribuam uma aura de singularidade. Aura essa ruidosamente
defendida por alguns, tanto antigos quanto novos, que exigem a sua manutenção, através da
319
defesa dos animês com som original e dos mangás com leitura oriental.
123
Para um novo
aficionado ser realmente um otaku, deve haver engajamento com o mundo anime, interesse
em procurar o que quer e não se sujeitar aos ditames do mercado.
Também vale a pena destacar que a manutenção do formato original era uma das
exigências dos aficionados mais tradicionais. Acredito que preservando a publicação na sua
forma mais básica, sem alterações, preserva-se-ia a niponicidade do material maior contato
com o seu suposto valor intrínseco só seria possível através da leitura em japonês. As editoras
perceberam essa preferência e acabaram por atendê-la, uma prova da necessidade de se
adaptar o produto ao consumidor, como é evidenciado nesse trecho da entrevista com Elza
Keiko, editora de mangás da editora Panini.
NT: Ao seu ver, leitura oriental é realmente necessária ou é questão de um purismo
excessivo?
EK: Hmm... talvez seja purismo sim, mas não excessivo. (…) Se estivéssemos em
um grupo de semiótica, o assunto seria mais do que pertinente. Mas, em se tratando
de um produto de massa, o que importa não é a minha opinião pessoal, e sim o que
vai fazer o mangá vender. (…) Pode ser que não estejamos trazendo leitores novos
para a estética mangá, ou, em outras palavras, pode ser que não estejamos
aumentando a quantidade de leitores de mangá proporcionalmente à população
brasileira; mas é certo que os nossos mangás que são publicados na ordem de leitura
original vendem mais do que os que eram invertidos. (FONSECA, 2006d, p. 83)
Da parte das editoras, a preocupação maior é com o retorno do investimento, logo, elas
procuram agradar o seu consumidor, na medida em que suas demandas possam garantir lucro.
Como foi destacado acima, a manutenção da leitura no estilo oriental é uma das preferências
do público. Essa característica evidencia a diferença do material japonês em relação ao
ocidental.
Essa diferença me saltou aos olhos quando, em 2007, eu estava no ônibus, retornando
de um dia de trabalho no CEFET, unidade de Nova Iguaçu. Enquanto estava distraído,
revendo as atividades do dia, percebi uma aluna em um banco próximo e vi que ela lia um
123
Embora dificulte um pouco a leitura, a manutenção do formato original impede imperfeições que surgem com
a sua inversão, ou espelhamento” um personagem canhoto continua canhoto, o que não acontecia em uma
edição espelhada.
320
mangá. Era um estilo shojo, voltado para meninas, infelizmente não me recordo do título. De
repente, uma colega dela sentada ao seu lado perguntou se aquilo era um mangá. Quando
recebeu a confirmação que sim, perguntou se podia olhar.
A minha aluna lhe entregou a revista e a jovem o abriu de acordo com a ordem de
leitura oriental, da direita para esquerda, começando pelo que, para os ocidentais seria o final
da revista. Nesse momento minha aluna esboçou um misto de surpresa e decepção ao
perguntar: “Você sabe ler mangá?” A impressão que tive, naquele instante, é que minha aluna
esperava que a outra jovem começasse a ler pela última página do mangá, iniciando a partir da
esquerda, de acordo com o estilo ocidental.
Naquela situação, ficou evidente que mesmo quem não era leitor de mangá, sabia
algo a respeito. Mangá deixara de ser algo exótico e desconhecido. Ao saber como ler um
mangá, a sensação de ter acesso a algo diferente, que comumente as pessoas começavam
lendo do lado errado, devendo ser instruídas a fazê-lo do jeito certo, a jovem (de forma
involuntária e inconsciente) mostrou à minha aluna que o conhecimento sobre os mangás não
era mais exclusivo dos otakus. O caso mais recente e conhecido dessa atitude de posse é o
animê Naruto.
“Alguns fãs se sentirão revoltados porque deixarão de ser 'os donos' dos
personagens. Serão forçados a conviver com o fato de que não serão apenas aqueles
que baixam animês pela Internet, preferem legendas, mesmo as mal escritas, a
qualquer tipo de dublagem, mesmo que seja a melhor do mundo, que terão acesso ao
personagem. As crianças decorarão os golpes em português; Naruto será de domínio
público, da mesma forma que no Japão, onde ele não é feito para um núcleo
pequeno de fãs, mas para a grande massa de consumidores.” (LANCASTER e
FONSECA, 2006, p. 24)
Nem todos pensam assim. Entre os novos aficionados, muitos se consideram otakus
porque assistem Naruto no SBT e Pokémon na RedeTV!. Os mangás e os animês são
manifestações diferentes dos produtos da indústria cultural ocidental, mas não são algo
inatingível, distante. Eles também são uma fonte de identificação, uma forma de se
321
singularizar, e de se divertir.
Esse novo tipo de aficionado tanto pode ir de roupa preta, com uma camisa com
desenho de Raito Yagami de Death Note, assinalando explicitamente seu pertencimento ao
mundo anime, como também pode ir de bermuda branca e uma camisa azul, apenas com uma
bandana de Naruto na cabeça, apenas para mostrar que gosta de Naruto afinal, ele gosta de
Naruto, e gostar de desenho japonês, para alguns, é ser otaku.
O mundo anime continua em transformação e agora está formando um público
diferente, que está desenvolvendo uma relação diferente com o Japop. Nesse contexto de
afluência, de abundância de animês na televisão e de mangás nas bancas, o perfil do novo
otaku ainda começa a se desenhar.
Os bens culturais japoneses podem contribuir para o desenvolvimento individual dos
aficionados brasileiros. Isso transpareceu na forma como alguns aficionados relataram o
surgimento de amizades no mundo anime e como cosplayers afirmaram ter se tornado mais
extrovertidos nesse meio. Os mangás e animês constituiriam, portanto, uma dimensão cultural
objetiva, fornecendo o substrato a partir do qual os jovens, em função de seus desejos, podem
ser capazes de construir seu próprio saber.
The term 'objective culture' can be used to designate things in that state of
elaboration, development, and perfection which leads the psyche to its own
fulfillment or indicates the path to be traversed by individuals or collectivities on the
way to a heightened existence. By subjective culture I mean the measure of
development thus attained. (SIMMEL, 1971, p. 233)
Assim, embora os bens produzidos pela cultura pop nipônica possam contribuir para o
aprimoramento cultural de alguns, isso não significa que produzirão o desenvolvimento
cultural de todos. Muitos que assistiram animês não se tornaram otakus e a animação japonesa
foi apenas um dos seus interesses, sem maior importância do que os demais.
Porém, nos casos onde houve uma disposição para se atribuir sentido a esse material,
através da busca de informações sobre a mitologia grega presente nos Cavaleiros do Zodíaco
322
ou na cultura egípcia que aparece em Yu-Gi-Oh, houve uma ação ativa, a qual levou a
produção de um conhecimento.
Esse conhecimento, ainda que de pouco reconhecimento no mundo real, como saber os
nomes de todos os Pokémons ou quais foram os inimigos de Ultraman, é um produto de uma
iniciativa própria do jovem aficionado. Em um mundo onde o conhecimento formal,
propiciado pela escola, é ainda colocado na forma de transmissão professor-aluno na qual
esse último possui um papel pouco ativo, geralmente apenas reativo –, um saber produzido
por jovens é uma conquista.
124
Quando os mangás e animês provocam uma ação ativa naqueles que os consomem,
levando os a lhes infundir um pouco de vida, essas revistas em quadrinhos e desenhos
animados se tornam a cultura objetiva sobre a qual toda uma outra cultura, subjetiva,
produzida pelos seus consumidores se desenvolve.
In a more precise sense, the two uses of the culture concept are in no way analogous,
for subjective culture is the overarching goal. Its measure is the extent to which the
psychic life-process makes use of those objective goods and accomplishments.
Obviously ther can be no subjective culture without objective culture, because the
development or condition of a subject is culture only through its incorporation of the
cultivated objects which it encounters. (SIMMEL, 1971, p. 234)
Ao serem lidos, transformados em cosplays, vistos pela televisão ou pelo computador,
discutidos em fóruns na Internet ou nos tios das escolas, comentados em fanzines, etc.,
essas revistas em quadrinhos e esse desenhos animados deixam de ser apenas produtos,
passando a ser a base para novas produções. Eles são atualizados e, por vezes, ressignificados.
Polêmicas persistem, com pontos positivos e negativos, defensores e acusadores.
Mangás e animês estimulariam a reflexão, o enriquecimento intelectual e, em alguns
casos, a criação – como os desenhos nas carteiras das salas de aula, o interesse pela história ou
pela língua japonesa, a criação de fanfiction, a elaboração de teses, a produção de anime
124
É válido lembrar aqui que a maioria dos responsáveis pelas publicações ligadas ao que seria o mundo anime,
era de jovens com menos de trinta anos.
323
videos, etc. Nesse processo de revisão e discussão se criam debates, trocas de figurinhas,
empréstimos de CDs, etc., trocas que possibilitam interações sociais, construção de
identidades individuais e coletivas.
Da mesma forma, surgem modismos, fortalecem-se hábitos consumistas, bem como
existe a possibilidade de jovens ainda imaturos, ou até crianças, terem acesso a materiais para
adultos. Produções proibidas para menores podem ser baixadas pela Internet e vir a ter uma
influência danosa, bem como a obsessão por esse universo podem levar à fuga da realidade.
Violência e sexualidade, em grau exagerado para o gosto ocidental, são presenças constantes
em diversas obras. Meu colega Roger afirmou estar atento a esses detalhes.
Sexualidade não me preocupa, que vejo mais sensualidade. a violência me
preocupa a banalização. (Roger, 44 anos)
Ao me dizer isso, ele falou com tranqüilidade. Tive a impressão que, para ele a cultura
pop nipônica pode ter defeitos e qualidades, como muitas coisas na vida. Que ela pode
estimular pontos positivos ou negativos. Ele não me pareceu ter medo dela, ela é mais uma
dentre várias influências, boas e ruins, com as quais os jovens convivem.
Esse trabalho não buscou fazer um retrato definitivo dessa subcultura, sua imensidão o
impossibilita. Pelo menos, espero ter jogado alguma luz sobre as diferentes influências que
ela pode ter tido sobre aqueles que com ela se identificaram. Também acredito ter mostrado
como ela foi recriada por aqueles mesmos que ela ajudou a moldar.
Mesmo completando quase cinqüenta anos de presença em solo brasileiro, e tendo
participado da formação de talvez um número considerável de adultos, a cultura pop nipônica
parece ainda jovem. Cresceu repentinamente, ao longo de cerca de quinze anos, alcançando
sua maturidade junto a uma geração que a conheceu criança e que agora chega a sua idade
adulta.
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GLOSSÁRIO
ABRADEMI – Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustrações.
Animê contração da palavra animation, daí a pronúncia japonesa animê (algo como
animeeshon).
Anime Music Video – vídeo editado com cenas de algum animê, geralmente com alguma trilha
sonora romântica ou pesada.
Animesong geralmente uma canção de abertura ou encerramento de algum animê (também
pode ser alguma música tema de um personagem).
Baka xingamento significando idiota, porém pode ganhar um certo tom carinhoso,
dependendo da entonação.
Bishonen – mangás com personagens masculinos extremamente bonitos.
CDFB – Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro.
Card game jogo de cartas onde, como nos casos de Pokémon e Yu-Gi-Oh, as cartas
representam criaturas com diferentes habilidades e fraquezas para serem postas em combate.
CNFL – Comissão Nacional de Folclore.
Comics – termo em inglês para revistas em quadrinhos.
Convenção reunião oficial de distribuidores de animês, garage kits, etc., freqüentada por
otakus.
cosplay abreviação das palavras costume e play significando uma apresentação onde um
aficionado se veste como um personagem (geralmente de animê, mangá ou jogo eletrônico).
Decora estilo de vestuário feminino no Japão; ênfase na superposição de adereços,
pulseiras, bottons, lenços, etc., em cores vibrantes.
Deck um conjunto de cartas de um card game (“deck iniciante” ou deck de Fulano”, por
exemplo).
Doujinshi mangás com histórias, não-oficiais de personagens famosos, e por vezes de
personagens originais produzidos por amadores.
Eroguro estilo de mangá com ênfase em práticas sexuais escatológicas e grotescos com
temas como estupros, sexo coprofágico, masturbação, sado-masoquismo, etc.
Espelhamento prática de se utilizar a imagem invertida de um mangá para adaptar a ordem
de leitura oriental (da direita para a esquerda) para a ordem ocidental (da esquerda para a
339
direita).
Evento – termo comumente usado para as convenções.
Fandom união das palavras inglesas kingdom (reino) e fan (fanático); literalmente significa
“domínio dos fãs”, cobrindo o consumo de produtos e a criação de material escrito,
desenhado, impresso, etc., relativo ao tema preferido pelo aficionado.
Fan-Art – desenhos de personagens famosos produzidos por fãs.
Fan-Fic abreviação de Fan-Fiction; textos de ficção produzidas por vãs, geralmente
parodiando personagens conhecidos de animê ou mangá.
Fan-Film filme feito por fãs com editadas de animês ou com aficionados atuando
interpretando personagens conhecidos ou criados por eles.
Fansubber aficionado que traduz e legenda (daí o sub, do inglês subtitle) animês para ser
disponibilizado pela Internet.
Fanzine termo originário da fusão das palavras fan e magazine; publicação de caráter
“artesanal” (muitas vezes impressa em casa e fotocopiada) feita for aficionados.
Gal/Kogal tendência de vestuário feminino japonês que era marcada pelo visual jovem e
sensual, com destaque para a minissaia em estilo colegial.
Ganguro grupos de jovens japonesas que escureciam a pele com bronzeamento artificial e
maquiavam os olhos e lábios da cor branca.
Garage Kit kit de modelagem de personagens famosos, estão disponíveis para a compra em
lojas especializadas.
Gekigá termo utilizado para mangás com temática mais realista ou adulta, com temas como
política, corrupção, sexo, crime, etc.
Gothic Lolita/Gothloli é uma moda urbana japonesa onde a mistura de elementos góticos
com um visual infantil.
Hentai termo significando pervertido e atribuído a mangás/animês com cenas de sexo
explícito.
HQ – abreviação para histórias em quadrinhos.
Kawaii – conceito de beleza que envolve delicadeza e, por vezes, certa ingenuidade infantil.
Kigurumin – estilo no qual as jovens vestem fantasias de animais como vacas e porquinhos da
Índia; há, inclusive, o uso de fantasias de personagens de animês, como Pikachu (do desenho
Pokémon) e o porquinho da Índia Hamtaro (do desenho de mesmo nome).
340
J-Music denominação aplicada à música originária do Japão, como o J-Pop e/ou J-Rock
(estilos de música pop produzidos por bandas/cantores japoneses).
Lady's jovens japonesas que exploravam um visual inspirado nas gangues de motoqueiros
dos EUA.,
Live-Action – geralmente é a adaptação, com atores, de um mangá ou animê.
Mamba estilo parecido com o Ganguro, como a pele bronzeada (produzida com
maquiagem), cabelos tingidos e adereços de personagens kamaii.
Mangá a palavra traduzível como “desenhos irresponsáveis” é, basicamente, a revista em
quadrinho japonesa.
Manhwa – termo pelo qual são conhecidos as revistas em quadrinhos coreanas.
Mangaká – o artista responsável pelo mangá (geralmente o desenhista e/ou roteirista).
Metal Hero tipo de seriado de tokusatsu onde o herói, geralmente, usa uma armadura de
metal.
Nagomu Gal jovens com atitude alternativa e visual inspirado no meio da música
underground. Usam camisetas de mangas, meias acima dos joelhos e boinas (visual
semelhante ao emo).
ORCADE – Organização Cultural de Animação e Desenho, um clube de exibição de animês.
OVA um Original Video Animation é um animê feito diretamente para o mercado de vídeo
(às vezes contém histórias alternativas e, por vezes, têm qualidade gráfica superior por não ser
produzido em série).
Otaku maneira formal de dizer sua casa, ou de, polidamente, chamar alguém de “você”.
Teria sido usado como forma de mostrar como os fanáticos por alguma coisa se distanciam
das demais pessoas. No Brasil ganhou um sentido positivo, de consumidor de animês e
mangás.
Scanlation – digitalização de mangás feita por fãs para ser disponibilizada pela Internet.
Seiyuu – palavra japonesa para dublador.
Shoujo/shojo – gênero de mangá voltado para o público feminino adolescente.
Shounen/shonen – gênero de mangá voltado para o público masculino adolescente.
Shonen ai tipo de mangá que possui histórias de amor, ou de sugestão de tensão amorosa,
entre homens (o seu equivalente seria shoujo ai, mas esse termo é pouco usado, sendo mais
conhecido o Yuri).
341
Staff pessoa que trabalha como assistente, coordenador ou supervisor em algum evento
anime – muitas vezes é um(a) otaku.
Sukeban grupos de adolescentes que, vestidas com uniformes colegiais de estilo “uniforme
de marinheiro”,cometiam ações consideradas delinqüentes, como furtos.
Takenokozoku jovens que dançavam em grupos, em algumas praças japonesas. Vestiam
roupas coloridas, geralmente com calças largas.
Super Sentai tipo de seriado de tokusatsu onde os heróis formam uma equipe, geralmente
com cinco integrantes.
Tankohon mangá em formato de livro, composto por edições anteriormente publicadas em
alguma antologia de mangás.
Tokusatsu a palavra tem ligação com efeitos especiais, geralmente explosões, que marcam
esse tipo de seriado com atores.
WCS – World Cosplay Summit, concurso mundial de cosplay, realizado no Japão.
Yaoi – mangá ou animê que tenha temática homossexual masculina.
Yuri – mangá ou animê que tenha temática homossexual feminina.
344
APÊDICE II: EVETOS VISITADOS
125
2003
@nime RIO IV (26 e 27/07/2003) [Casa do Minho];
Anime Paradise II (20 e 21/09/2003) [Colégio Marista São José];
Anime Center Festival (11 e 12/10/2003) [UERJ].
126
2005
Anime Dreams (21 a 23/01/2005) [Colégio Marista Arquidiocesano – São Paulo];
Anime Center Verão (26 e 27/02/2005) [Clube América];
Anime Center (09/04/2005) [UERJ];
Anime Paradise V (23 e 24/04/2005) [Colégio Marista São José];
Anime Friends (14 a 17/07/2005) [Uni Sant'Anna – São Paulo];
Carioca Anime (03/09/2005) [Clube América].
2006
Anime Center Verão (11-12/01/2006) [Clube América];
Carioca Anime (13/05/2006) [Clube América];
Anime Friends (13 a 16/07/2006) [Uni Sant'Anna – São Paulo];
127
Anime Park (08/10/2006) [Clube América];
Anime Place (15/10/2006) [Clube América];
Anime Center Hallowen (25/11/2006) [UERJ];
Anime Family (09/12/2006) [Colégio Marista São José].
125
Estão em destaque os grandes eventos em São Paulo.
126
UERJ é a sigla da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
127
Uni Sant'Anna é o nome do Centro Universitário Sant'Anna.
345
2007
Carioca Anime (13 e 14/01/2007) [Clube América];
Anime Dreams (26 a 29/01/2007) [UNICSUL – São Paulo];
128
Anime Center Verão (03 e 04/02/2007) [Clube América];
Carioca Anime (05 e 06/05/2007) [Clube América];
Pervocon 2 (10/06/2007) [Clube Mackenzie];
Anime Center Festival (25/08/2007) [Clube Hebraica];
Fã Expo (02/12/2007) [Clube América].
2008
Rio Anime Club (13/04/2008) [Clube Hebraica];
Evolution Party (04/05/2008) [Circo Voador];
Anime RIO (14/09/2008) [Casa do Minho];
Anime Family (14/12/2008) [UGF].
129
128
UNICSUL é a sigla da Universidade do Cruzeiro do Sul.
129
UGF é a sigla da Universidade Gama Filho.
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349
Figura 5 – Página de aviso presente em mangá espelhado.
Versão mangá da saga Star Wars. Essa edição foi espelhada e o aviso mostra como era o mangá no
original e como ficou ao ser adaptado para o Ocidente. Star Wars, uma nova esperança foi
publicado pela editora JBC.
350
Figura 6 – Capa de um caderno escolar.
Capa de um caderno com desenhos de criaturas semelhantes a Pokémons. Lançamento da editora
Credeal.
351
Figura 7 – Adesivos no estilo de Digimons e Tokusatsus.
Adesivos com desenhos de personagens de Digimon e com personagens similares aos dos
tokusatsus. Comprados em loja no subúrbio do Rio de Janeiro.
352
Figura 8 – Comércio informal de cartas de baralho.
Cartas piratas do baralho de Yu-Gi-Oh, vendidas em camêlos.
353
Figura 9 – Circulação de material através da Internet.
Scanlation, traduzido, de uma página do mangá Full Metal Alchemist, na ordem original oriental.
Encontrado na Internet através de programa de compartilhamento de arquivos.
354
Figura 10 – Amostra de um mangá nacional.
Exemplo do saber juvenil do universo dos mangás e animês. Propaganda do mangá nacional
Combo Rangers, de Fábio Yabu. Publicado pela editora JBC. Imagem retirada da HENSHIN. São
Paulo, Ano 2, nº 26, p. 3, s/d.
355
Figura 11 – Sensualidade e sexualidade nos mangás.
Dois estilos de mangás cômicos. Love Hina, uma produção do mangaká Ken Akamatsu, mostra
uma pensão onde moram cinco belas jovens e onde aparece um jovem atrapalhado. Já Love Junkies,
uma produção da mangaká Kyo Hatsuki, trata das confusões amorosas, e aventuras sexuais, de um
jovem atrapalhado. Publicados pela editora JBC.
356
Figura 12 – Gekigás.
Reedições de dois gekigás considerados clássicos. Publicados pela editora Panini Comics.
Figura 13 – Manhwas.
Chonchu foi o primeiro manhwa, revista em quadrinhos coreana, publicado no Brasil. Planet Blood
foi o primeiro manhwa lançado pela Lumus Editora, a qual trouxe outros quadrinhos coreanos para
o Brasil.
357
Figura 14 – Anime Dreams 2005 (programação, frente).
358
Figura 15 – Anime Dreams 2005 (programação, verso).
359
Figura 16 – Instalações do Anime Friends 2005.
O evento ocupou os seis andares, o mezanino, o térreo e a garagem da universidade com diferentes
atividades – além desse pátio da frente e de uma tenda para atividades de cosplay.
360
Figura 17 – Placas e cartazes para comunicação no Anime Friends 2005.
Plaquinhas e cartazes para comunicação, interação social ou simples divertimento.
361
Figuras 18 e 19 – Cosplayers sendo fotografados.
Cosplayer personagem de Full Metal Alchemist no Anime Center Hallowen de 2006
Grupo de Mortal Kombat no Anime Family 2006
362
Figuras 20 e 21 – Cosplayers e público no Anime Friends 2005.
Público da apresentação de cosplay. no Anime Dreams 2007.
Final de uma série de apresentações de cosplay no Anime
Dreams 2007.
363
Figuras 22 e 23 – Profissionalização.
DVD da série animê Tenjo Tenge, disponível para venda em eventos ou por encomenda.
Folheto de propaganda.
364
Figuras 24 e 25 – Divulgação de eventos.
Anime Wings no Clube América, flyer distribuído no Anime Family de 2008.
Anime Wings no Clube América, flyer distribuído no Anime Family de 2008.
365
ANEXO II – PROJETO DE LEI 6581/06
366
367
368
Disponível em <http://www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp?CodTeor=372789>. Acessado em 28 jan.
2009.
369
ANEXO II – PROJETO DE LEI 821/07
370
Disponível em <http://www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp?CodTeor=454357>. Acessado em 28 jan.
2009.
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