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Tese apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial
para obtenção do título de Doutora em Comunicação e
Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sob a orientação do Prof. Dr. José Luiz Aidar Prado.
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Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não
Manuel Alegre
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N
estes quatro anos de pesquisa pude contar com a generosidade de inúmeros cola-
boradores e parceiros de caminhada. Aos amigos do hip-hop agradeço de coração a
amizade para toda a vida e projetos vindouros: Rogério Vieira; Diko BF; Zaro; Neco;
Maura Costa; Rael da Rima; Massao; Kleber (Criolo Doido); Lei di Dai; Marcinho;
Jorge Hilton; Preto Zezé; Kall; Chullage.
A Peu Pereira, Fabíola Aquino e Célia Antonacci por gentilmente cederem seus docu-
mentários e permitirem a reprodução em diversos eventos públicos.
A Neco, Rogério Vieira, Isaumir Nascimento e Kall pelo uso de suas fotos. A Márcio
Honório pela revisão ortográfica. A Lucília Borges pelo projeto gráfico e diagrama-
ção. A Neco pela tipografia. A Gavin Adams pela revisão do inglês.
Ao Grupo Resistência (Rogério Vieira; Anderson Clayton; Neco; Isaumir
Nascimento; Ana Paula do Val) por sonharmos juntos.
Aos amigos Ana Elisa de Carli, Cristiane Lima, Juliana Torquato, Criziany Félix,
Izabel Lima, Aluísio Lima, Preto Zezé, Kall, Wagner Tavares, pela leitura atenta de
diversas partes da tese. Em particular à Luciane Lucas pela paciência e por suas con-
tribuições acertadas nas inúmeras (re)estruturações dos capítulos.
Na primeira fase da pesquisa foram fundamentais as conversas com militantes de
outros movimentos sociais. Na Ocupação Prestes Maia agradeço a atenção de
Severino; Roberta; Domingas; Lamartine; Warlas; Cecília; Manuelzinho; Jô e
Sebastião Nicodemos. Agradeço ao MTSC por permitir minha participação em algu-
mas reuniões. Ao amigo Gegê, do MMC, pelas longas conversas sobre moradia e
outras questões do mundo contemporâneo. Para uma melhor compreensão do pro-
jeto Oficina.Boracea pude entrevistar (para um futuro documentário) Cibely Zenari;
Grasiella Drumond; Aldaíza Sposatti; Roberto Loeb; Geralda, Carlos e Rodrigues. As
inquietações sobre arte e ativismo pude compartilhar com Gavin Adams; André
Mesquita; Yili Maria; Túlio; Fabi Borges; Mila Goudet; Gabi Lambert; Gabi (da
Pinacoteca). Sobre a lei de fomento ao teatro agradeço a reflexão conjunta com
Renato Rebouças. Para entender o contexto das rádios comunitárias foi importante
acompanhar, mesmo de longe, a trajetória de Lígia Pinheiro na elaboração de seu
TCC. Fábio Bruni e Nabil Kadri me deram explanações valiosas sobre história da
economia.
Diversas foram as participações indiretas contempladas neste trabalho e não posso
deixar de mencionar o pessoal do Samba da Vela, da Cooperifa, da Casa de Cultura
de Diadema; às amigas Ana Paula do Val, Kátia Hale e Lucília Borges pela compa-
nhia de sempre nas andanças por São Paulo; à Moira Toledo pelo apoio ao projeto
de documentário sobre o Oficina.Boracea; à Izabel Lima, Janaína Oliveira, Mônica
Santos e Regina Facchinni pelas entrevistas concedidas à hipermídia realizada pelo
Grupo de Pesquisa em Mídia Impressa da PUCSP, através das quais pude aprofun-
dar minha compreensão sobre relações raciais, homofobia e mídia.
Na PUCSP os professores Sílvio Ferraz e Edson Passetti fizeram valiosas observações
na qualificação deste trabalho. Agradeço imensamente a ajuda determinante das pro-
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fessoras Christine Greiner e Cecília Salles pelos conselhos em momento bastante
delicado nesta trajetória; aos coordenadores Ana Claudia Mei de Oliveira e Eugênio
Trivinho, por apoiar decisões difíceis; ao professor Nelson Brissac pela amizade e
compreensão de sempre; à Cida, pela paciência e orientação nos meandros misterio-
sos das burocracias acadêmicas; ao Paulão, também pela paciência e conselhos técni-
cos no laboratório de vídeo e informática do COS. Foram fundamentais as ricas tro-
cas de idéias com os amigos Nadir Lara Junior, Aluísio Lima; Ana Paula Azarias da
Fonseca; Leo Sanveca; Daniel Cardoso; Néle Azevedo; Jorge Miklos e Célia
Antonacci.
A amizade e o carinho de diversos amigos em Portugal fizeram toda a diferença no
aproveitamento do meu estágio de doutoramento: Eurídice Monteiro, pela acolhida
carinhosa na minha chegada; Juliana Torquato; Cristiane Lima; Criziany Félix;
Cristiano (Saci) Lima; Luciane Lucas; Ana Elisa de Carli; Ana Rita Uhle; Lílian
Gomes; Renata Reis; Cleisa Rosa; Lorena Romão; Priscila Vasconcelos; Michelle
Sales; Oriana Brás; Carlos Elias; Victor Barros; Julião de Sousa; Ncok Lama; Gerson
Marta; Edi. Aos companheiros do CES: Giovanni Alegretti, pelo apoio em diversas
ocasiões e projetos; à Marta Araújo pela confiança; à Cecília McDowel pelas valiosas
orientações acerca da teoria feminista; a Feliciano Mira; a Acácio e Maria José da
biblioteca, pela paciência, gentileza e prontidão de sempre; ao grupo Emancipação,
em especial Márcio Pereira e Maria Lúcia Leal. Aos alunos do Itap sou grata por com-
partilharem seus conhecimentos sobre juventude e hip-hop em Portugal e à prof.
Helena por apoiar o intercâmbio cultural entre ambos os países. Na Cova da Moura,
ao MC LBC e ao amigo Victor Barros.
Minha estada em Portugal não teria sido possível sem suporte técnico e burocrático
de diversas pessoas no Brasil: Aline Geraidine; Lélia Assunção; Joviano Moassab;
Simone Casado; Néle Azevedo; Fábio Bruni; Ana Paula do Val; Luciano Chalita.
Pelo apoio incondicional, meus sinceros e profundos agradecimentos a meus pais,
Lélia e Joviano, e minha irmã, Aline, que apóiam sempre sem entender nem pergun-
tar os motivos e ainda se orgulham de minhas escolhas. Com muito carinho agrade-
ço à amiga Ana Paula do Val por acreditar e viver intensamente esta pesquisa comi-
go. Com muito amor sou grata a Luis Lubrano por partilharmos juntos esta etapa
árida.
Ao meu orientador, José Luiz Aidar Prado com quem iniciei por meio desta pesqui-
sa um caminho ainda muito longo pela frente, minha eterna gratidão por aceitar o
desafio, acreditar no trabalho e apoiá-lo em todos os momentos.
À memória de Reynaldo Cué, sempre convicto de que um outro mundo é possível.
Ao CNPq pela bolsa de doutorado e pela bolsa-sanduíche em Portugal.
Em especial ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra por aceitar
meu estágio doutoral e ao professor Boaventura de Sousa Santos por generosamen-
te acolher minhas inquietações epistemológicas.
Um salve a todos!
É nóis!.
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Palavras-chave
hip-hop mídia comunicação contra-hegemônica
globAlização resistência emancipação
9
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E
sta tese discute os processos de resistência realizados em ações de milhares de
jovens do hip-hop que, no mundo contemporâneo, participam ativamente na pro-
dução de conhecimento e ressignificação das periferias brasileiras. Trata-se de uma
voz que se impõe face às construções simbólicas homogeneizantes produzidas pelo
pensamento dominante, em torno de valores e da criação de desejos em concordân-
cia estrita com aqueles do sistema econômico hegemônico.
Entende-se que a base da construção da resistência é a partilha de conhecimento, de
modo que a comunicação passa a ocupar o cerne da resistência: conhecimento divi-
dido e multiplicado. O conceito de comunicação, no entanto, tem sido cada vez
mais limitado aos objetos midiáticos, de forma que diversas práticas comunicativas
têm sido negligenciadas nas teorias da comunicação. Daí a importância de ampliar o
entendimento do que são os objetos comunicacionais com vistas a incluir manifes-
tações não visíveis na mídia.
O corpus analítico, dentro do movimento hip-hop, são as letras das músicas, analisa-
das sob a ótica da comunicação, em diálogo com a sociologia. Um dos principais
marcos teóricos desta pesquisa são os conceitos de ecologia de saberes e sociologias
das ausências e das emergências de Boaventura Santos (2006a). Nas questões concer-
nentes a poder, resistência, empoderamento e emancipação foram fundamentais os
trabalhos de Foucault (1979; 1988; 2000), Santos (2005a; 2006a; 2006b; 2007a) e das
teóricas feministas, em especial Magdalena León (2000) e Patrícia Collins (1991). No
campo da comunicação, o diálogo foi estabelecido com José Luiz Aidar Prado
(2006a; 2006b), Muniz Sodré (2002), e, na filosofia política, com Hannah Arendt
(2007), no que diz respeito aos temas de discurso e ação. O debate sobre globaliza-
ção foi feito sob a perspectiva de Milton Santos (2001) e novamente de Boaventura
Santos (2002), com referências a Zizek (2006) e sua crítica ao multiculturalismo, esta-
belecendo um diálogo sobre a relação entre globalização, culturas locais e resistência.
Momentos pontuais da tese solicitaram teóricos de áreas específicas como planeja-
mento urbano; movimentos sociais; relações raciais; violência urbana; violência poli-
cial; instituições penais e direitos humanos; criminologia crítica; construção da iden-
tidade; gênero; e oralidade.
Terminamos a investigação indicando como o hip-hop constrói uma comunicação
insurgente, recolocando simbolicamente os principais aspectos deturpados pela
mídia hegemônica no que tange à população negra, pobre e moradora dos bairros
periféricos. O hip-hop enquanto prática contra-hegemônica se constituiu, por conse-
guinte, em uma ação crítica capaz de desconstruir visões naturalizadoras das cultu-
ras.
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Key-Words
hip-hop media counter-hegemonic communication
globalization resistence emancipation
11
This thesis studies the resistance processes carried out in Brazil by thousands of
young people linked to hip-hop. These youngsters actively participate in the produc-
tion of knowledge and in the re-semantization of the Brazilian deprived suburbs in
the context of the contemporary world. Their voice emerges against homogenized
symbolic constructions produced by dominant thinking, i.e., that strand of thought
grounded on values and desires in strict accordance with the hegemonic economic
system.
We understand that the sharing of knowledge is the basis for resistance. Therefore,
comunication is placed at the core of resistence: knowledge shared and multiplied.
The concept of comunication, however, has been increasingly limited to mediatic
objects. As a consequence, diverse communicative practices are being neglected in
communication epistemological theory. This is why it is extremely important to
widen the understanding of communicational objects in order to include manifesta-
tions otherwise invisible in mainstream media.
The analytical corpus of this investigation is composed by the lyrics of hip-hop songs,
analysed from the point of view of comunication and sociology. One of the main
theoretical landmarks in this work are the concepts from Boaventura Santos (2006a):
ecology of knowledge, sociology of absence and sociology of emergence.
Fundamental texts regarding power, resistence, empowerment and emancipation in
the text were: Foucault (1979; 1988; 2000), Santos (2005a; 2006a; 2006b; 2007a) and
feminist thought, especially Magdalena León (2000) and Patrícia Collins (1991). In
the comunication field, we have made extensive use of the work by José Luiz Aidar
Prado (2006a; 2006b) and Muniz Sodré (2002), as well as Hannah Arendt’s writings
(2007) in political philosophy. The discussions on globalization were carried out
from the perspective of Milton Santos (2001) and again Boaventura Santos (2002), as
well as Zizek`s (2006) criticism of multiculturalism, in order to establish a relation-
ship between globalization, local cultures and resistence. Specific points on our
investigation demanded specialized approaches such as urban planning; social move-
ments; racial relations; urban violence; police violence; criminal control and human
rights; critical criminology; identity; gender; and oral culture.
We conclude the text pointing out that hip-hop is an active actor in the construction
of an insurgent communication. Such insurgent comunication is able to symbolical-
ly reorder aspects misrepresented by hegemonic media concerning black and poor
people living in the suburbs. Therefore, hip-hop as counter-hegemonic pratices cons-
titutes a critical action able to deconstruct naturalizing visions on cultures.
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Levante as Caravelas, Aqui não Daremos Tréguas
19 1. Coleção de Figurinhas Carimbadas nesse Neoliberalismo de Jaulas
25 2. Dando um Rolê
26 3. O Papo é Cabuloso
29 3.1. Da Estruturação Teórico-Conceitual
34 3.2. Da Pesquisa de Campo
41 3.3. Da Análise da Mídia e das Letras das Músicas
PARTE I - HIPHOPOLOGIA
47 capítulo 1 – Antigamente Quilombo, Hoje Periferia
48 1. Hip-Hop: do Subúrbio para a Periferia
67 2. O Hip-Hop Como Movimento Social
68 2.1. A Relação com o Movimento Negro
77 3. O Lugar do Hip-Hop
81 3.1. Movimentos Sociais e Segregação Espacial
85 3.2. Os Instrumentos de Dominação
92 3.3. A Topologia do Território
96 capítulo 2 – Ocupar, Resistir, Produzir
97 1. Resistência, Empoderamento e Emancipação
108 1.1. Voz e Lugar
111 2. Microfísica da Resistência: Dividir é Multiplicar
114 2.1 Rádios Comunitárias: por uma Reforma no Ar
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PARTE II – DESLIGAR A TELEVIO E DAR INÍCIO À REVOLUÇÃO
121 capítulo 3 – Guerreiro Quilombola
122 1. O Hip-Hop, a Batalha Simbólica, o Cotidiano
146 2. Vozes Hegemônicas
150 2.1. O Hip-Hop na Mídia
157 2.2. Movimento Social, Violência e Juventude na Mídia
169 3. Comunicação e Resistência
178 capítulo 4 – Derrubei Calígula na Rima
180 1. Hip Hop: Comunicação Contra-Hegemônica-
187 1.1. A (re)Construção da Identidade e da História nas Narrativas do Cotidiano
201 1.2. Violência e Racismo Policial
220 1.3. O Mundo a Partir das Periferias
234 2. Os Silenciados também Silenciam
Somente o Verso e a Rima Continuaram, no Dia em que a Terra Parou
REFERÊNCIAS
271 1. Bibliografia
289 2. Videografia
291 3. Musicografia
296 4. Páginas Eletrônicas
298 5. Siglas
ANEXO: MATERIAL AUDIOVISUAL (DVD)
1. Músicas
2. Videoclips, entrevistas e documentários disponíveis na internet
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introdução
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Os elementos do hip-hop: MC (Gaspar do Z’África Brasil); DJ; Consciência (Kall da Conceitos de Rua no evento
“Hip-Hop 20 Anos”, 2004); Break (festa na Casa de Cultura de Diadema, 2003); Graffiti (Beco do Pona, 2007)
Fotos: Rogério Vieira (1 e 2); arquivo Kall (3); Andréia Moassab (4); Neco (5).
1 Z’Áfica Brasil, Antigamente Quilombo, Hoje Periferia.
1
Esta tese busca discutir os processos de resistência realizados em ações de milhares
de jovens do hip-hop que no mundo contemporâneo participam ativamente na pro-
dução de conhecimento e na ressignificação das periferias brasileiras. Nos últimos
anos, o movimento hip-hop amadureceu e se consolidou como uma das grandes for-
ças político-culturais no país, somando voz às demandas de diversos outros movi-
mentos sociais. Estes setores sociais organizados estão pouco a pouco conquistando
resultados concretos para as suas demandas: a produção cultural da periferia, a luta
pela reforma urbana ou a produção econômica dos catadores de material reciclável.
O hip-hop, neste cenário, é uma voz que se impõe face às construções simbólicas
homogeneizantes produzidas pelo pensamento dominante, no qual estamos imersos
nos últimos tempos, em torno de valores e da criação de desejos em concordância
estrita com aqueles do sistema econômico hegemônico.
A luta pelo direito à cidade, iniciada nos anos de 1980, tem apresentado saldos posi-
tivos, a despeito das lentas transformações nas estruturas dominantes da organização
social, desde a inclusão do direto à cidade na constituição federal até recentemente a
criação do Fundo e do Conselho Nacional de Habitação de Interesse Social. Por sua
vez, os catadores de papel, reunidos em cooperativas nos últimos 15 anos têm tido
participação fundamental na discussão sobre resíduos sólidos e sobre a coleta seleti-
va na cadeia econômica produtiva. Em 2001, foi criado o Movimento Nacional dos
Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR, mostrando a importância da organiza-
ção coletiva e colaborando para a independência e a autogestão de seus integrantes.
Como conseqüência, foi formado o Comitê Interministerial da Inclusão Social dos
Catadores, no qual são discutidas as Políticas Nacionais de Saneamento Ambiental e
de Resíduos Sólidos, entre outros.
Nas artes, merece destaque, como movimento de resistência, a formação dos grupos
de discussão e de ação coletivos. Em São Paulo, as reuniões do Arte contra a Barbárie,
realizadas desde os finais dos anos de 1990, formadas por grupos de artistas das prin-
cipais companhias do teatro paulista e também por personalidades ligadas ao meio
teatral, foram fundamentais para a elaboração e aprovação da Lei Municipal de
Fomento ao Teatro (Lei n. 13.279/02)
2
. A lei, sancionada em 2002, determina que
a prefeitura destine um valor ajustado anualmente a um Programa de Fomento cria-
do para financiar o trabalho de companhias teatrais previamente selecionadas por
uma comissão. Desde a sua implementação, diversos grupos foram beneficiados e
mais de cem espetáculos montados. Desta maneira, a cultura passa a ser entendida
como um processo de longa duração no qual o processo de criação não está vincu-
16
2 O texto da lei está disponível na página eletrônica de Vicente Cândido
(www.vicentecandido.com.br/teatro.htm), autor do projeto durante seu mandato como vereador da
câmara municipal.
....................
lado ‘à venda’ de um produto de patrocinador, colaborando, desta forma com a for-
mação de espectadores ao invés de consumidores. A lei paulistana tem servido de
exemplo para todo o Brasil e a outras categorias artísticas que vêm reivindicando a
mesma atenção do poder público.
Por sua vez, tornada completamente invisível nos meios de comunicação hegemôni-
cos, a periferia vem mostrando sua força em várias vertentes culturais: desde as suas
produções cinematográficas, literárias e musicais, como a organização em movimen-
tos de rádios comunitárias e na voz emergente que se inscreve através do movimen-
to hip-hop, foco desta tese.
Na concepção de Boaventura de Sousa Santos, a sociedade civil é configurada pela
“união de cidadãos trabalhando em ações voluntárias, para conversar, discutir, criar
soluções, sem visar o lucro” ou seja, “baseada na solidariedade, voluntariado e reci-
procidade [...] Além do mais, numa sociedade onde o mercado se tornou dominan-
te, a sociedade civil solidária passou a envolver os oprimidos e explorados. Portanto,
estamos tentando construir uma sociedade civil global dos excluídos” (SANTOS,
s/d). Se para o sociólogo trata-se de outra configuração de sociedade civil, distinta
daquela moldada sob os auspícios neoliberais, Antonio Negri e Michael Hardt cha-
maram de “multidão” esta nova configuração na base da produção contemporânea,
do trabalho imaterial, envolvendo cada vez mais habilidades lingüísticas, afetivas e
de comunicação. Em contraposição à “massa” ou “povo”, a multidão não é una, ela
é sempre plural e múltipla, sendo “composta por um conjunto de singularidades
e com singularidades queremos nos referir aqui a um sujeito social cuja diferença não
pode ser reduzida à uniformidade, uma diferença que se mantém diferente” (NEGRI
e HARDT, 2005: 139, grifo no original). Para estes autores, “na pós-modernidade a
riqueza social acumulada é, cada vez mais, imaterial; ela envolve relações sociais, sis-
temas de comunicação, informação e redes afetivas” (ibidem, 2005: 279), sendo parte
do projeto da multidão a possibilidade de uma democracia baseada na livre expres-
são e na vida em comum. Ou nas relações de vizinhança, como afirma Milton
Santos, para quem a cultura endógena de solidariedade dos pobres, resultante da
experiência da escassez e da convivência, acontece “independentemente e acima dos
partidos e das organizações” (SANTOS, 2001: 145). Desta maneira, a resistência é
uma prática que se contrapõe às relações de poder a partir do seu interior, nas diver-
sas esferas do cotidiano, realizada pelos atores usualmente inferiorizados, segregados
ou silenciados pelo sistema dominante.
As ações do cotidiano, na cultura solidária da vizinhança, são atravessadas em todas
suas instâncias por uma partilha de saberes, constituída por meio de um ciclo de for-
mação e amadurecimento em conjunto de diversas experiências resistentes, resultan-
do numa globalização contra-hegemônica, conforme denomina Boaventura Santos:
“a articulação transnacional de movimentos, associações e organizações que defen-
dem interesses e grupos subalternizados ou marginalizados pelo capitalismo global”
(1999: 33).
17
O filósofo francês Gabriel Tarde já afirmava, no final do século XIX, que “sozinha
[...] uma mônada não pode nada. É este o fato capital, e ele serve para explicar ime-
diatamente outro: a tendência das mônadas a juntarem-se” (TARDE, 2003:58). Se
naquela ocasião o autor vislumbrava que nenhum indivíduo pode “revelar-se de
nenhuma forma, sem a colaboração de um grande número de outros indivíduos”
(ibidem), nos dias atuais Negri e Hardt encontram na multidão o conjunto de singu-
laridades criadas a partir de interações sociais colaborativas (NEGRI e HARDT,
2005:286).
O hip-hop, sob o aspecto da solidariedade, da união e da articulação entre diversas
localidades, apresenta alta capacidade de resistência e inscrição como alternativa à
sociedade global dominante. Composto por diversos elementos, como veremos
adiante, o hip-hop é fortemente embasado pelo “conhecimento” e “atitude”, isto é,
o pensamento e a ação em acordo com as posições discursivas que circulam e ama-
durecem por todos os eventos e meios de divulgação do movimento. Esta base cons-
titui a sobrevivência do movimento enquanto resistência e autonomia, sem que seja
capturado pelo sistema produtivo hegemônico da sociedade de consumo.
Por fim, entende-se que, em épocas nas quais há uma tendência ao pensamento
único guiado pelo poder econômico, discutir uma possibilidade de atuação resisten-
te é de fundamental importância para compreender mais adequadamente as forças
distintas que configuram a sociedade contemporânea. É o que tem ocorrido nessas
épocas de neoliberalismo, desde os anos de 1980.
Se o poder hegemônico tem sistematicamente inferiorizado ou silenciado ações que
não estão sob o seu domínio, esta tese entende ser importante trazer para o debate
acadêmico outras formas de conhecimento. Uma delas a ser tratada aqui, nomeada-
mente o hip-hop, é capaz de nos mostrar alternativas fecundas de construção de
mundo.
18
Manifestação contra a guerra do Iraque, São Paulo, 2003.
Foto: Andréia Moassab
1. COLEÇÃO DE FIGURINHAS CARIMBADAS
NESSE NEOLIBERALISMO DE JAULAS
3
Os anos 80 foram marcados no país pela transição democrática, com o término da
ditadura militar (1964-1984) e o reestabelecimento das primeiras eleições presiden-
ciais diretas em 1989. O hip-hop e outros movimentos de resistência de forte expres-
são no país, como movimentos dos sem-teto, dos sem-terra, das rádios comunitárias,
dos catadores de material reciclável, do passe livre, dos atingidos por barragens, entre
outros, têm em comum um forte amadurecimento a partir dos anos 80 e 90, com
intensa relação na luta contra a lógica hegemônica da política neoliberal predomi-
nante neste período.
Nos EUA, berço do hip-hop, dá-se nos anos 60 a ebulição de diversas lutas a favor
dos direitos civis para os negros, culminando na morte de Martin Luther King (1968)
e Malcom X (1968). O primeiro pregava a resistência pacífica, tendo recebido o
Prêmio Nobel da Paz em 1964 e Malcom X, ao contrário, defendia a violência como
forma legítima de luta. Nesta mesma época foram intensificados os ataques racistas,
com torturas e morte de negros comandadas por grupos como a Ku Klux Klan, fun-
dada no século XIX para afirmar a supremacia branca e o protestantismo. Os anos 70
se iniciam neste contexto com força para os Panteras Negras
4
, partido político de
19
3 ZÁfrica Brasil, Hip-Hop Rua.
4 O partido, diretamente ligado à luta da população negra estadunidense, foi fundado em 1966
com vistas a proteger os habitantes dos guetos contra a brutalidade da polícia.
Panteras Negras, anos 1960 e 1970. No meio: Angela Davis. Militante dos Panteras Negras
desde 1968; passou 16 meses presa por motivos políticos no início dos anos 1970. À direi-
ta: Nos jogos olímpicos do México (1968) os medalhistas Tommie Smith (ouro) e John
Carlos (bronze) protestaram contra a discriminação racial nos EUA subindo ao pódio des-
calços, de luvas pretas e erguendo os punhos com a saudação dos Panteras Negras durante
o hino estadunidense.
Fotos: internet.
....................
influência marxista, forte inspirador do hip-hop com o seu lema “black power”, tra-
duzido para o português como “4P: Poder Para o Povo Preto”. Um dos seus líderes,
Mumia Abu-Jamal, ficou popular com seu programa de rádio A Voz dos Sem-Voz,
tendo sido injustamente preso e condenado à morte no início dos anos 80. Desde
então foram mais de vinte anos de intensa batalha judicial e protestos no mundo
todo para rever o processo repleto de irregularidades. Jamal encontra-se no corredor
da morte, aguardando a execução da sentença, e é um dos grandes símbolos da resis-
tência negra mundial, constantemente lembrado nas letras do hip-hop brasileiro.
No Brasil, os anos 60 e 70 não foram menos conturbados, marcados pela linha dura
do regime militar, com o AI-5 de 1968 e os “anos de chumbo” sob a presidência do
general Emílio Garrastazu Médici (1969-74). Por outro lado, também foi o período
de germinação de diversas atuações sociais, entre as quais a Comissão Pastoral da
Terra – CPT (1975) e as greves do ABC (1978-80). Na década seguinte emergiram
alguns dos resultados das lutas quase silenciosas dos anos anteriores, com a fundação
do Partido dos Trabalhadores (1980), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-
Terra – MST (1984), do Movimento Diretas-Já (1984) e da votação da nova
Constituinte (1988). Foi durante este período, por exemplo, que o movimento de
moradia tomou corpo, aproximando-se das reivindicações atuais, passando por uma
importante atuação no processo Constituinte e, nos anos 90, nas articulações para
aprovação do que veio a constituir o Estatuto da Cidade (2001).
Os anos 80 foram essenciais para estes movimentos sociais e, particularmente, para o
hip-hop nacional. Naquela década foram dados os primeiros passos da dança de rua
e das rimas acompanhadas por DJs no metrô São Bento em São Paulo. Naquele
momento estas manifestações traziam forte influência do hip-hop que nascera na
década anterior nos EUA. Elas eram bastante próximas do movimento negro estadu-
nidense e de suas reivindicações, amadurecendo nos anos seguintes em um dos movi-
mentos hip-hop mais politizados no mundo, o brasileiro. No mesmo período tam-
bém despontam importantes rádios universitárias ligadas a diversos grupos sociais, de
certa maneira semelhantes às atuais rádios comunitárias (Xilik, Totó Ternura, Onze,
Vírus, Dengue, entre outras). Os catadores de material reciclável, para citar outro
exemplo, apesar de existirem desde os anos 50, começaram a se organizar somente
décadas mais tarde, com o apoio das organizações de base ligadas à igreja católica,
com criação da Coopamare em 1984, em São Paulo, uma das primeiras cooperativas
de catadores do país.
Em São Paulo, a eleição de Luiza Erundina (1989-1993), pelo Partido dos
Trabalhadores – PT, veio em um momento de ebulição de vários desses movimentos.
Seu governo ouviu diversas demandas que ainda não haviam sido atendidas por polí-
ticas públicas: utilização do rap nas escolas, mutirões de moradia, construção de
pequenos conjuntos habitacionais em áreas centrais, apoio às iniciantes cooperativas
de catadores de material reciclável, entre outras.
20
No cenário mundial, em 1989 a queda do muro de Berlin assinalou o fim da Guerra
Fria, conflito político-ideológico entre os hegemônicos Estados Unidos (capitalista)
e União Soviética (socialista) desde o final da Segunda Guerra Mundial (1945) até a
extinção da União Soviética (1991) (HOBSBAWN, 2002). Com a economia fragili-
zada, os países alinhados com a União Soviética abriram-se para trocas comerciais
com outros países, aproximando-se e adaptando-se rapidamente das estruturas eco-
nômicas capitalistas, basicamente reguladas pelo mercado.
É por volta dos anos 80 que chegaram ao poder, em diversos países, governos “com-
prometidos com uma forma extrema de egoísmo comercial e laissez-faire” (ibidem:
247), dentre os quais se destacam as ascensões de Margareth Tatcher ao governo bri-
tânico (1979-90) e de Ronald Reagan nos EUA (1981-89). Tais “governos da direita
ideológica” (ibidem) adotaram medidas rigorosas de diminuição da ação do Estado
na regulação social, em favor de um maior controle do mercado sobre a economia,
sob a máxima da primeira ministra britânica: “there is no alternative” (apud FIORI,
2007a: 49). Entre as principais ações defendidas por estes governantes estavam as pri-
vatizações de empresas estatais e a diminuição da participação do Estado nas políti-
cas de segurança social, em especial no que diz respeito às aposentadorias. Os gover-
nos de Tatcher e de Reagan foram os mais fortes, em nível internacional, a adotarem
políticas econômicas neoliberais, designação dada pelos economistas à doutrina eco-
nômica dominada pela total liberdade de mercado e uma restrição à intervenção esta-
tal sobre a economia, a partir dos anos de 1970. De acordo com Hobsbawn, para esta
nova direita o capitalismo de bem-estar social era uma variação do socialismo. Por
este motivo, a “Guerra Fria reaganista era dirigida não só contra o ‘Impérido do Mal’
no exterior” (HOBSBAWN, 2002: 248), mas, dentro do próprio país, contra o esta-
do de bem-estar social. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que o fim da União
Soviética “enterrou a promessa comunista [...] o mundo capitalista também declara
o fracasso de sua promessa desenvolvimentista” (FIORI, 2007a: 45).
Em favor da consolidação desta nova matriz econômica em nível mundial, em 1989
economistas de grandes instituições financeiras como o Fundo Monetário
Internacional – FMI e Banco Mundial definiram um conjunto de medidas de ajusta-
mento macroeconômico designado por “Consenso de Washington”
5
. Estas medi-
das foram severamente exigidas dos países emergentes como condicionantes para
obtenção de recursos financeiros e renegociação de suas dívidas. Este cenário econô-
mico mundial configurado a partir dos anos 70 e aprofundado no final da década de
80 tem sido designado como “globalização”. Apesar de seu caráter fortemente econô-
mico, diversos autores, entre os quais Boaventura Santos, entendem a globalização
21
5 As dez regras básicas do Consenso de Washington: (1) disciplina fiscal; (2) redução dos gastos públi-
cos; (3) reforma tributária; (4) juros de mercado; (5) câmbio de mercado; (6) abertura comercial; (7)
investimento estrangeiro direto sem restrições; (8) privatização de empresas estatais; (9) desregulamen-
tação ou flexibilização de leis trabalhistas e econômicas; (10) direito à propriedade.
....................
como “um fenómeno multifacetado com dimensões económicas, sociais, políticas,
culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo” (2002: 01).
José Luis Fiori, professor de economia política internacional na Universidade Federal
do Rio de Janeiro, analisa a globalização para além de seu caráter econômico de for-
tes imposições tecnológicas. Em convergência com Santos, neste aspecto, Fiori ava-
lia a globalização como um fenômeno que envolve “novas formas de dominação
social e política que resultaram de conflitos, estratégias e imposição vitoriosa de
determinados interesses, tanto no plano internacional quanto nacional” (2007a: 52).
Estas transformações do sistema capitalista em curso desde os anos 70 não podem ser
entendidas sem considerar as estratégias de poder mundiais desenhadas a partir de
seu eixo anglo-saxão (ibidem: 53). Trata-se, para o autor, de um mesmo e único pro-
cesso histórico de criação de riqueza e acúmulo de poder político.
A hegemonia dos países centrais tem por base conceitual a “teoria da estabilidade
hegemônica”, desenvolvida por Charles Kindleberger e Robert Gilpin, no início dos
anos 70 (FIORI, 2007b: 11). A argumentação central destes autores, explica Fiori, é
que a garantia de uma paz mundial duradoura e de uma economia internacional está-
vel depende da concentração, em um único país, da responsabilidade pela gestão
mundial. Ainda que duramente criticada na década seguinte, a tese de Kindleberger
e Gilpin consolidou uma vasta discussão em torno da necessidade de haver “países
estabilizadores” ou “hegemônicos”. Mesmo diante de uma gama de debates em torno
do tema, a conclusão é consensual no sentido de diversos autores afirmarem ser
indispensável um Estado com poder global “para assegurar a ordem e a paz do siste-
ma interestatal e o bom funcionamento da economia internacional“(FIORI, 2007b:
13). No entanto, após os anos 90, não obstante a hegemonia estadunidense, a paz
duradoura e a estabilidade econômica não corresponderam às expectativas. Nesta
época os EUA se envolveram em 48 conflitos militares; três vezes mais do que em
todo o período da Guerra Fria (ibidem: 14).
No entendimento gramsciniano, hegemonia é o modo pelo qual determinada classe
mantém o controle social de um país (GRAMSCI, 1975); no cenário internacional é
a hegemonia que permite a hierarquização e o controle de um ou de poucos países
sobre os demais. A supremacia de um grupo social sobre outro se manifesta, em
Gramsci, de duas maneiras: pelo domínio (o uso da força repressiva) e pelos direcio-
namentos intelectuais e morais. Ambos instrumentos são levados em conta para a
perpetuação da hegemonia dos países centrais desde há algumas décadas.
No Brasil, as políticas neoliberais incentivadas pelo FMI foram implementadas desde
o início dos anos 90, nas gestões de Fernando Collor de Mello (1990-92) e nas duas
gestões de Fernando Henrique Cardoso – FHC (1995-99 e 1999-2003). Neste perío-
do houve grande abertura às importações a assistiu-se a uma grande onda de privati-
zações, levadas a cabo especialmente durante a era FHC. Setores estratégicos da eco-
22
nomia foram privatizados como mineração e siderurgia (CVRD, USIMINAS, ACE-
SITA, CSN); telefonia (Telebrás); energia (Light, Excelsa); bancos (Meridional,
Banespa, BEG, BEA), entre outros setores, com desdobramentos nas privatizações de
empresas Estaduais. Uma das mais polêmicas privatizações foi a da Eletropaulo, esta-
tal energética paulista, cuja compra foi 100% financiada pelo BNDES, ou seja, recur-
sos públicos foram amplamente utilizados para compra do patrimônio público por
empresas privadas.
A política cultural do governo FHC não foi exceção à cartilha neoliberal. Com a
aprovação da Lei Rouanet (Lei 8.313/91) em 1991, durante o governo Collor de
Mello, o instrumental para gestão praticamente privada da cultura estava garantido.
A lei de incentivo fiscal libera as empresas do pagamento do imposto de renda desde
que a verba seja revertida para projetos culturais. Ao mesmo tempo, observa-se uma
diminuição drástica dos investimentos públicos diretos na área da cultura, resultan-
do em uma gestão da cultura pelos departamentos de marketing das empresas. Se no
início houve um alarde favorável deste novo quadro elogioso da eficácia administra-
tiva privada, contra a morosidade estatal, no final dos anos 90 percebeu-se que este
mecanismo alijava artistas experimentais e de pouco apelo comercial do acesso às ver-
bas públicas.
No caso de São Paulo é necessário mencionar que nos anos 90 a cidade foi governa-
da por prefeituras conservadoras, de Paulo Maluf (1993-97) e seu sucessor, Celso Pitta
(1997-2000), ambos fortemente alinhados com o ideário neoliberal. É neste contexto
de reflexão e crítica contra a privatização da cultura que se constitui, a partir de 1998,
em São Paulo, o Movimento Arte Contra a Barbárie, formado por grupos de artistas
das principais companhias do teatro paulista e também por personalidades ligadas ao
meio teatral.
Simultâneo ao endurecimento das políticas econômicas e ao enfraquecimento do
apoio do Estado às políticas sociais, houve uma reorganização das forças mundiais
de resistência. Algumas manifestações anti-globalização foram duramente repreendi-
23
Fórum Social Mundial, Porto Alegre, 2005.
Foto: Andréia Moassab
das e tornaram-se marcos simbólicos no período: Seattle (1999), Davos (2000),
Genova (2001). Na década seguinte teve seqüência o que viria a ser o maior encon-
tro e organização anti-globalização dos últimos tempos: o Fórum Social Mundial –
FSM, com edições anuais desde 2001, em contraposição ao Fórum de Davos, encon-
tro do grupo dos países mais ricos do planeta. De acordo com Boaventura Santos, o
FSM é a manifestação mais consistente e global contra as políticas neoliberais
(2005b).
Nos anos de 2000, um importante marco no endurecimento das políticas repressoras
internacionais foi o ataque conhecido por “11 de Setembro”, no qual dois aviões de
passageiros foram jogados contra o World Trade Center em Nova York (EUA). Este
episódio deu início a uma série de ações antiterror por parte do governo estaduni-
dense, incluindo a invasão do Afeganistão e em seguida do Iraque. Diversos muçul-
manos e árabes são detidos em todo o mundo e levados para Guantánamo, base esta-
dunidense em Cuba, onde foram presos sem direito a julgamento e defesa. Os
Estados Unidos conclamam diversos países para se unirem à luta antiterror: “ou estão
conosco ou com os terroristas” (BUSH apud CHOSSUDOVSKY, 2004:11), o que
pode também ser entendido como uma nova fase de expansão do poderio estaduni-
dense. Em seu livro Guerra e Globalização (2004), Michel Chossudovsky demonstra
como o fortalecimento do poderio militar, do comércio de armas, da indústria da
segurança e do acesso às reservas mundiais de petróleo foram fundamentais para o
reaquecimento da economia das grandes potências mundias na última década, prin-
cipalmente, dos Estados Unidos.
É neste cenário mundial e nacional de aprofundamento e espraiamento do capitalis-
mo e das práticas neoliberais, concomitante ao acirramento das desigualdades sociais,
que está configurado o ambiente sociopolítico desta tese, examinando a construção
da resistência nas periferias das grandes cidades, por meio do hip-hop, com maior
enfoque na cidade de São Paulo. Trata-se de discutir como este movimento, em par-
ticular a sua manifestação oral através do rap engajado, é parte ativa do mundo con-
temporâneo, na desconstrução de representações sociais produzidas pelo sistema
hegemônico e na proposição de alternativas de enfrentamento, em especial no que
tange à produção simbólica. E não menos importante, vamos nos dedicar às aproxi-
mações do hip-hop com outros movimentos sociais, com os quais une esforços por
uma luta pela melhoria da qualidade de vida das populações comumente alijadas da
distribuição da riqueza nacional e mundial.
Ademais, a base da construção da resistência é a partilha de conhecimento, de modo
que a comunicação passa a ocupar o cerne da resistência: o conhecimento dividido
e multiplicado, ou seja, o quinto elemento do hip-hop, é uma das condições de sua
existência enquanto movimento social. O conceito de comunicação, no entanto, tem
sido cada vez mais limitado aos objetos midiáticos, de forma que diversas práticas
comunicativas têm sido negligenciadas nas teorias da comunicação. Por sua vez a
24
mídia, sem hesitação, traduz os valores hegemônicos através de uma produção restri-
ta a pouquíssimos grupos de comunicação, tanto no cenário nacional quanto inter-
nacional (LIMA, 2003). Daí a importância de ampliar o entendimento do que são os
objetos comunicacionais, conforme defende José Luiz Aidar Prado, com vistas a
incluir manifestações não visíveis na mídia (2006b: 28)
Neste sentido, o hip-hop traça linhas de fuga em relação ao modelo capitalista, apro-
fundado pelo ideário neoliberal a partir dos anos 80, pondo em funcionamento uma
produção coletiva interessada menos na aferição de lucros e mais no bem comum
por meio da construção de outro imaginário para a periferia e para a população pobre
e negra deste país. Sua ação simultânea em diversas escalas (local, nacional, global)
mostra uma possibilidade de ação transterritorial alternativa capaz de lidar com a
nova topologia global.
2. DANDO UM ROLê
6
O objeto deste trabalho é apresentar o movimento hip-hop como possibilidade de
produção de uma comunicação contra-hegemônica. Discutiremos como sua prática
comunicativa é elemento primordial e estratégico de resistência, empoderamento e
emancipação das populações moradoras dos bairros pobres das cidades brasileiras.
Sob este aspecto, a tese se organiza em torno de três focos: (1) espaço e território; (2)
resistência, empoderamento e emancipação; e, (3) comunicação contra-hegemônica,
todos articulados através das práticas do hip-hop.
Em linhas gerais, são duas partes principais alinhavadas em torno destes focos. Na
primeira Parte o principal tema de encadeamento é a maneira como se configura o
hip-hop, em termos de luta e resistência. No capítulo inicial da Parte I é feita uma
apresentação do hip-hop, sua contextualização sociopolítica e sua profunda relação
com os espaços urbanos segregados. A seguir, no capítulo 2, destrincharemos alguns
aspectos acerca de resistência, empoderamento e emancipação.
A Parte II da tese é dedicada a investigar a comunicação contra-hegemônica como
veículo de resistência. O hip-hop é compreendido neste contexto como um proces-
so dialógico que efetiva a resistência contra o sistema dominante e a emancipação
25
6 Z’África Brasil, Mano Chega Aí. Tanto o título da música (Mano Chega Aí) quanto o verso “dando
um rolê” são expressões amplamente utilizadas no universo do hip-hop e na linguagem coloquial de
modo geral.
....................
pela reconstrução de outra história para o país e outras narrativas não apresentadas
pela mídia convencional. Desta maneira, o hip-hop é uma experiência de luta contra
as produções simbólicas dominantes nas quais estamos imersos no mundo contem-
porâneo, e pela (re)construção de um mundo pautado por outros valores e pelo reco-
nhecimento das diferenças.
O capítulo 3, na Parte II, é dedicado a discutir aspectos da mídia e da produção sim-
bólica no Brasil contemporâneo. No capítulo 4, já caminhando para o fechamento
da argumentação desta tese, abordaremos como o hip-hop, enquanto importante
meio de comunicação contra-hegemônico, constrói resistência emancipatória a par-
tir, especialmente, do confronto direto com as representações e produções de senti-
dos hegemônicas por meio de uma batalha simbólica em territorialidades difusas, e
com a ressignificação simbólica das periferias e seus moradores, a partir de seus pró-
prios valores, em detrimento daqueles impostos pelos padrões dominantes.
3. O PAPO É CABULOSO
7
Nesta tese, analisaremos como o hip-hop, enquanto movimento social, constitui
uma comunicação contra-hegemônica com capacidade de empoderamento com fins
à emancipação social da população que habita as periferias das grandes cidades bra-
sileiras. O nosso corpus analítico, dentro do movimento hip-hop, são as letras das
músicas, analisadas sob a ótica da comunicação, em diálogo com a sociologia. Assim,
buscamos com este item elucidar o método e, por conseguinte, os percursos de cons-
trução da pesquisa, esclarecendo os pontos de partida e as escolhas metodológicas
adotadas para viabilizar e circunscrever os limites desta pesquisa.
Este trabalho teve início no segundo semestre de 2004 no âmbito dos desdobramen-
tos da pesquisa de mestrado que especulava, entre outras coisas, as relações entre arte
e espaço urbano. Defendida em 2003, no Programa de Estudos Pós-Graduados em
Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUCSP), a dissertação Pelas Fissuras da Cidade: Composições, Configurações, Intervenções
partia de minha experiência profissional em estudos urbanos, especificamente com
planejamento urbano e regional, e trazia as colaborações da arte contemporânea inse-
rida no contexto urbano para o debate e percepção do espaço da cidade. A intenção
inicial do doutoramento seria focar sobre um dos aspectos da dissertação; a possibi-
26
7 Z’África Brasil, Hip-Hop Rua.
....................
lidade de mapeamento das dinâmicas territoriais e sociais. Contudo, no decorrer do
percurso aconteceu uma reformulação profunda no projeto inicial, e foram abando-
nadas por completo as questões de mapeamento, sendo assumido o foco na valori-
zação na partilha de conhecimento e construção da resistência contra-hegemônica
nos dias atuais.
Entre aquele projeto inicial, totalmente modificado, e a tese ora apresentada houve,
ademais, um momento intermediário, no qual, para além do hip-hop, outros movi-
mentos sociais tornaram-se objetos de análise, a saber, os movimentos de moradia,
de catadores de material reciclável e de arte contra a barbárie e das rádios-comunitá-
rias. Ao delinear a linha condutora da pesquisa sobre a construção da resistência, pre-
tendia-se construir uma reflexão não apenas sobre o hip-hop, mas acerca dos movi-
mentos sociais de um modo geral na cidade de São Paulo. Este rearranjo do projeto
foi fundamental para conceber as escolhas metodológicas que acompanharam a pes-
quisa desde então. A proposta era analisar de que maneira estes movimentos têm
lugar ativo do mundo contemporâneo, na construção da resistência contra-hegemô-
nica.
A hipótese investigada é a de que a base da organização da resistência é a partilha de
saberes, de modo que a comunicação ocupa o cerne da resistência: o conhecimento
partilhado intra e entre movimentos é a condição de sua existência. As práticas
comunicativas podem, deste modo, traçar linhas de fuga em relação ao modelo capi-
talista. Para compreender este universo múltiplo e complexo, foi dada atenção espe-
cial ao conceito de ecologia de saberes de Boaventura de Sousa Santos (2006a) e
tomadas em consideração as teorias de Deleuze e Guattari (1995; 1997) sobre
devir/decalque, rizoma, espaço liso/estriado, máquinas de guerra/aparelhos de cap-
tura, bem como o conceito de biopoder, de Foucault (1979; 2000) e de multidão,
desenvolvido por Antonio Negri e Michael Hardt (2005) em conjunto com a teoria
da diferença de Gabriel Tarde (2003). Veremos adiante como cada um destes concei-
tos possibilitou montar a grade conceitual da pesquisa, naquela etapa.
De posse desta fundamentação teórica fez-se a primeira organização do conhecimen-
to sob três aspectos: (1) espaço e território, (2) poder e resistência, (3) comunicação
e partilha de saberes. Todos estes tópico foram articulados através da ação dos movi-
mentos sociais em questão. O ponto central da pesquisa, naquele momento, era res-
ponder às seguintes indagações: como se constrói a resistência pelos movimentos
contra-hegemônicos? Como suas práticas comunicativas cotidianas implicam uma
partilha de saberes? Como se configura a inter-relação entre construção de novas ter-
ritorialidades, práticas comunicativas e resistência?
Com o avanço e aprofundamento da pesquisa, dois fatores foram fundamentais para
um novo recorte com vistas exclusivas ao movimento hip-hop, em detrimento dos
outros movimentos sociais. O primeiro fator a considerar foi o espaço que o movi-
27
mento hip-hop passou a ocupar em diversos projetos paralelos à pesquisa de douto-
ramento, que desenvolvemos sob a temática da resistência e do hip-hop
8
. O segun-
do fator decisivo foi o estágio de doutoramento no Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra, sob a orientação de Boaventura de Sousa Santos. Ao
28
Pôster de divulgação do evento “Hip-Hop e Arte na Periferia em Portugal e no Brasil”, que teve
lugar no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra em novembro de 2007.
Foto: arquivo da autora.
8 A saber, no Brasil: Oficina de Projetos para Pequenas Iniciativas Culturais; I-Margem: Microfísica da
Resistência. Em Portugal: Hip-Hop: Arte na Periferia em Portugal e no Brasil; e, Hip-Hop: Outros Saberes e
Linguagens.
....................
longo deste período, não apenas os conceitos de Santos foram aprofundados, como
o contato com as teorias feministas sobre empoderamento foi fundamental no enten-
dimento que proponho acerca da relação entre resistência, empoderamento e eman-
cipação.
Desta maneira, quando o escopo final da pesquisa ficou claro, qual seja, hip-hop,
comunicação e resistência, foi delineado um procedimento metodológico, sob a luz
da sociologia e da comunicação, com base no tripé: estruturação teórico-conceitual,
pesquisa de campo e análise das letras das músicas/análise de mídia.
3.1.
DDaa EEssttrruuttuurraaççããoo TTeeóórriiccoo--CCoonncceeiittuuaall
A principal preocupação metodológica a considerar está em como compreender os
múltiplos conhecimentos de resistência ao sistema econômico e político hegemôni-
co, em suas próprias singularidades sem levá-los a uma análise uniformizante, sob o
risco de minar sua força constituinte. Neste sentido, buscamos fundamentações teó-
ricas valorativas do múltiplo, especialmente nos conceitos de ecologia de saberes e
sociologias das ausências e das emergências de Boaventura de Sousa Santos (2006a).
Para o autor, muito do que não existe econômica, social, política e culturalmente é
ativamente produzido como não existente, isto é, não é tornado visível. Deste modo,
a sociologia das ausências e das emergências buscam expandir e tornar visível o domí-
nio de experiências sociais. A ecologia de saberes considera a pluralidade epistemo-
lógica do mundo em contraposição à monocultura do saber dominada, na moderni-
dade, sobretudo pelo saber científico.
Com vistas a abordar questões concernentes a poder, resistência, empoderamento e
emancipação foram fundamentais os trabalhos de Foucault (1979; 1988; 2000),
Santos (2005a; 2006a; 2006b; 2007a) e das teóricas feministas, em especial
Magdalena León (2000) e Patrícia Collins (1991). No campo da comunicação, o diá-
logo foi estabelecido com José Luiz Aidar Prado (2006a; 2006b), orientador deste tra-
balho, Muniz Sodré (2002), e, na filosofia política, com Hannah Arendt (2007), no
que diz respeito aos temas de discurso e ação. Concernente às impossibilidades de
negociação de sentidos impostas pela mídia, tomamos como ponto de referência a
proposta de Boaventura Santos sobre o fascismo social (2006a; 2007b) alinhavado
com os conceitos de humilhação social de José Gonçalves Filho (2004), de dialética
da marginalidade de João Cezar de Castro Rocha (2006) e de violência simbólica de
Pierre Bourdieu (1999).
O debate sobre globalização foi feito sob a perspectiva do geógrafo brasileiro Milton
Santos (2001) e novamente de Boaventura Santos (2002), com referências a Zizek
29
(2006) e sua crítica ao multiculturalismo, estabelecendo um diálogo sobre a relação
entre globalização, culturas locais e resistência. Também foram levadas em conside-
ração as reflexões de Chossudovsky no que concerne à globalização e guerra.
Momentos pontuais da tese solicitaram teóricos de áreas específicas, como Flávio
Villaça (2001), no âmbito do planejamento urbano, para elucidar os caminhos acer-
ca de segregação espacial urbana, juntamente com as reflexões de Ermínia Maricato,
Otília Arantes e Carlos Vainer, em textos reunidos no livro A Cidade do Pensamento
Único (2000). No caso específico dos movimentos sociais, direito à cidade e reforma
urbana, utilizamos Raquel Rolnik (2001), Marcelo Souza e Glauco Rodrigues (2004)
e, novamente, Ermínia Maricato (2001), para entender o panorama histórico da luta
pela reforma urbana no país.
No sentido de delimitar o campo dos movimentos sociais, as reflexões de Ilse Sherer-
Warren (2006) do departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade
Federal de Santa Catarina e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Movimentos
Sociais da mesma universidade, foram fundamentais, juntamente com o conceito de
novíssimo movimento social – NMS, de Boaventura Santos (1999). O eixo delinea-
dor para o entendimento das relações raciais no Brasil foi estabelecido a partir de
Antonio Guimarães (1999; 2003), professor e pesquisador em Sociologia das
Relações Raciais da Universidade de São Paulo.
Com relação à violência urbana são fundamentais os trabalhos publicados pelo
Núcleo de Estudo da Violência da Universidade de São Paulo, especialmente pelos
professores Sérgio Adorno (2002; 2003; 2007) e Nancy Cárdia (2003). Sob o viés da
violência policial destaca-se o trabalho de compilação e denúncia do Observatório
das Violências Policiais, integrado desde 2006 ao Centro de Estudos de História da
América Latina (CEHAL), do Núcleo Trabalho, Ideologia e Poder, da PUCSP, bem
como as pesquisas de Márcia Regina da Costa (1998), especialista em antropologia
urbana e estudo da violência na mesma instituição. Acerca das instituições penais e
direitos humanos, Vera Andrade (2003), da Universidade Federal de Santa Catarina,
é uma importante referência na criminologia crítica brasileira, em contraposição à cri-
minologa positivista, bem como a obra de Foucault (2000) no que tange a questio-
namentos ao sistema prisional.
Tendo em vista compreender a construção da identidade, Manuel Castells em seu
livro O Poder da Identidade (2003), oferece um largo contributo sob o ponto de vista
de uma abordagem coletiva e política do processo identitário. Uma melhor com-
preensão da distinção entre “identidades políticas” e “políticas de identidade” é tra-
zida sob a luz de Antonio Ciampa (2002) e Aluísio Lima (2008), preocupados em dis-
cernir os aspectos tanto reguladores quanto emancipatórios do conceito de identida-
de. Estas contribuições são colocadas em diálogo com Carmela Zigoni (2006), pes-
quisadora da Universidade de Brasília, no concernente à relação entre o processo de
30
construção identitária dos negros e o movimento hip-hop. Para a autora, este proces-
so é uma organização política, retórica e sígnica, ou seja, a identidade como um pro-
cesso de conscientização política. Ao alinhavar todos estes autores percebemos que
a identidade é importante fator de resistência e emancipação, com vistas a novos
espaços e culturas, tornando-as operativas e visíveis.
Com o intuito de melhor discutir as questões de gênero, poder e mídia, além da con-
tribuição conceitual fundamental de Pierre Bourdieu, particularmente no livro A
Dominação Masculina (1999), tivemos acesso a investigações de grupos de pesquisa
em torno do tema, em Portugal e no Brasil. No primeiro caso, trata-se da compila-
ção A Televisão das Mulheres: Ensaios sobre a Recepção (2006), resultado do projeto
Televisão e Imagens da Diferença, com a participação de pesquisadores de diversas insti-
tuições portuguesas. Soma-se a este conjunto, o trabalho de Rita Simões (2007) sobre
a violência contra as mulheres nos media, com base no seu mestrado defendido na
Universidade de Coimbra. No Brasil, foram centrais as entrevistas a Dulcília Buitoni,
do Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero da ECA/USP e Maria
Lúcia da Silveira, da Coordenadoria da Mulher da Prefeitura de São Paulo, constan-
tes da hipermídia A Invenção do Mesmo e do Outro na Mídia Semanal (PRADO et al,
2008), desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa em Mídia Impressa do Programa de
Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica da PUCSP
9
.
Especificamente na discussão sobre a eficácia das cotas para mulheres na política,
tomamos por base a teórica feminista Anne Phillips (2001), da London School of
Politics and Political Science, e seus artigos sobre democracia e representação.
No que diz respeito à comunicação e à mídia, foi fundamental compreender os
mecanismos de poder relacionados à construção do bios midiático, com vistas a vis-
lumbrar a possibilidade de uma comunicação contra-hegemônica desenvolvida pelos
movimentos de resistência, em particular, o hip-hop. Neste sentido, seguimos as
abordagens de Muniz Sodré (2002) sobre as transformações nas formas de vida con-
temporânea vetorizadas pelas novas tecnologias da comunicação; acompanhamos
também o debate proposto por Venâncio Lima (2003) acerca de mídia e poder; e,
novamente, Aidar Prado (2006b; 2007), com as séries de paisagens culturais e políti-
cas euforizadas ou distanciadas pela mídia hegemônica.
A oralidade dos griots e dos repentistas foi pensada com a colaboração de Paulo
Farias (2004), do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Birmingham
(Inglaterra); Tomas Hale (1997), da Universidade da Pennsylvania (EUA), com amplo
trabalho sobre literatura africana e cultura oral; e Elba Braga Ramalho (2002), profes-
sora das universidades Estadual e Federal do Ceará e pesquisadora em estudos com-
parados em tradições orais e música popular.
31
9 Maiores informações na página eletrônica do grupo: www.pucsp.br/pos/cos/umdiasetedias.
....................
Diversas foram as fontes de dados estatísticos: no Brasil, sobretudo aqueles produzi-
dos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA); os dados internacionais são basicamente das
Nações Unidas (PNUD, UNESCO, Banco Mundial, BIRD). Em algumas ocasiões
foram utilizados dados levantados ou compilados por instituições e organizações
não-governamentais como a Anistia Internacional (Inglaterra); Agência de Notícias
dos Direitos da Infância (Brasília); Criola (Rio de Janeiro); Centro de Estudos da
Metrópole (São Paulo); ou pelas universidades, através do Núcleo de Estudos da
Violência (USP); e do Observatório das Práticas Policiais (PUCSP).
Visando a um maior esclarecimento sobre os motivos da escolha do trabalho de
Boaventura de Sousa Santos, como um dos principais marcos teóricos desta tese, res-
salto que o sociólogo vem, ao longo de sua obra, se dedicando a analisar as dimen-
sões epistemológicas da crise do modelo civilizacional da modernidade. Já em Pela
Mão de Alice (2005a), no início dos anos 90, é feita uma primeira análise das suas
dimensões sociais, políticas e culturais. Em seu trabalho A Gramática do Tempo
(2006a), o autor trata da retomada da tensão entre regulação social e emancipação
social como condição para voltar a pensar e querer as transformações sociais eman-
cipatórias. Com base no que é designado por epistemologia do sul, Santos propõe
um pensamento alternativo de alternativas apresentando propostas para o que defi-
ne por democracia de alta intensidade, centrando-se em articulações entre os espa-
ços-tempo local, nacional e global. Este trabalho está em franco diálogo com A
Critica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência (2007a), no qual são defi-
nidos os parâmetros da transição paradigmática apontada pelo autor ao longo de sua
obra. A partir de uma forte crítica ao paradigma da modernidade, Santos apresenta
um quadro epistemológico dos paradigmas emergentes e suas possibilidades emanci-
patórias.
O pensamento de Foucault (1979; 1988; 1997; 2000) é de fundamental valor para
entender as relações de poder nas sociedades capitalistas, sua natureza, a relação com
as instituições e com a produção de verdades. Ainda que caminhando em direções
divergentes, Boaventura Santos não desconsidera a obra de Foucault para desenvol-
ver suas reflexões acerca das estruturas espaciais do poder, sendo possível, no cruza-
mento de ambas, verificarmos a possibilidade de construção de estratégias de resis-
tência nas sociedades contemporâneas. Se para Foucault os dispositivos de regulação
social fundamentam as práticas de governo, que por sua vez explicam a gênese do
Estado, Santos não exclui a possibilidade do Estado como um ator social com vistas
à emancipação.
As teorias feministas, com destaque para Magdalena León (2000) e Patrícia Hill
Collins (1991), partem de Foucault, Gramsci e Paulo Freire, para trazer para o âmbi-
to das relações de gênero a discussão sobre poder e, conseqüentemente, empodera-
mento. Embora nenhum destes autores tenha versado sobre empoderamento, tam-
32
pouco se dedicado às questões de gênero, seus entendimentos de poder como rela-
ção social foram basilares ao pensamento feminista acerca do assunto. Collins acres-
centa, em meio à discussão de gênero, as relações raciais, trilhando o que ficou desig-
nado por teoria feminista negra a partir de seu livro Black Feminist Though. A distin-
ção e complementariedade entre empoderamento e emancipação, sob a luz das femi-
nistas e de Boaventura Santos, foram indispensáveis para embasar as reflexões desta
tese sobre resistência no mundo contemporâneo.
José Luiz Aidar Prado, professor do programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Semiótica da PUCSP, tem diversas publicações na área de comunicação e globaliza-
ção. Para além da orientação desta tese, no que concerne especificamente à reflexão
sobre comunicação e resistência, foram importantes suas reflexões registradas no arti-
go Regimes Cognitivos e Estésicos da Era Comunicacional: da Invisibilidade de Práticas à
Sociologia das Ausências, no qual o autor discute a importância de se colocar os obje-
tos midiáticos como subconjunto dos objetos comunicacionais, no sentido de se
operar com uma epistemologia crítica no campo da comunicação. Tendo em vista
alargar o campo da comunicação, recorremos, ademais, ao pensamento da teórica
alemã, Hannah Arendt (2007), nomeadamente no que diz respeito à importância da
ação e do discurso como formas predominantes da condição de existência dos
homens, defendida em seu livro A Condição Humana (2007), publicado originalmen-
te em 1958.
Negri e Hardt, no livro Multidão, apostam na realização da democracia a partir do
abandono de conceitos ultrapassados, segundo os autores, como classe trabalhadora
e proletariado, que já não dão conta das complexidades envolvendo etnia, gênero e
classes da contemporaneidade. Neste ponto, estes teóricos convergem com as idéias
de Boaventura Santos. A multidão emerge do estado de violência permanente susten-
tado por aquilo que designam como “Império”, para destruir a soberania em favor da
democracia. Ao invés de massas silenciosas e oprimidas, indivíduos podem constituir
uma multidão, com o poder de forjar uma alternativa democrática à atual ordem
mundial. A multidão e as complexidades que ultrapassam a divisão social entre bur-
guesia e operariado têm um ponto comum na teoria da diferença proposta por
Gabriel Tarde (2003) no final do século XIX. É neste viés que Tarde nos auxilia a per-
ceber a importância de diferenciar para existir, na qual a diferenciação infinitesimal
das mônadas tardianas rompe com o dualismo cartesiano de compreensão do
mundo. Pode-se perceber uma influência de Tarde no pensamento de Deleuze e
Guattari e, posteriormente, em Negri e Hardt, da monadologia para a multidão.
Além disso, ao identificar uma tendência a homogeneizar aquilo que desconhece-
mos, Tarde colabora para uma compreensão da estratégia de categorização e estigma-
tização social imposta por diversos mecanismos nos dias atuais, em especial pela
mídia.
33
No caso do geógrafo brasileiro Milton Santos, sua colaboração é proeminente espe-
cialmente em Por uma Outra Globalização, livro no qual avalia o caráter globalmente
destrutivo do capitalismo nos dias de hoje, com a profunda polarização entre rique-
za e pobreza, através da segmentação dos mercados e com populações submetidas à
concentração do capital e do poder. Neste cenário, as cidades e as relações de vizi-
nhança podem reaparecer como espaço de liberdade e solidariedade, produzindo
uma nova centralidade social e política.
Tendo em conta que, neste início do século XXI, a crise do projeto moderno e a tran-
sição paradigmática na qual vivemos, de acordo com Santos (2002), tendem a domi-
nar a cena ainda por algumas décadas, torna-se cada vez mais relevante estarmos aten-
tos para as alternativas de resistência. É neste contexto que se justifica o recorte teó-
rico-conceitual adotado com vistas ao não desperdício da experiência do movimen-
to hip-hop nacional como um arauto da possibilidade de construção de um mundo
pós-capitalista calcado numa “democracia de alta intensidade” (SANTOS, 2002).
3.2.
DDaa PPeessqquuiissaa ddee CCaammppoo
A pesquisa de campo, para além da observação participante, na qual o pesquisador
se vê pessoalmente exposto ao fenômeno que vai analisar, permitiu uma colaboração
duradoura de lenta convivência com os hiphoppers e moradores da zona sul de São
Paulo, destacadamente no Monte Azul e, em menor intensidade, mas não menos
importante, no Jd. Iporanga. Todavia, o convívio com o grupo não tinha finalidade
34
Festa de aniversário no Monte Azul, 2007.
Foto: arquivo da autora.
exclusiva de investigação científica, tampouco se restringia à coleta dados, mas trata-
va-se de relações de amizade e afeto para além do trabalho investigativo. Resulta daí
uma certa inadequação do termo “observação participante”. Esta relação, apesar do
forte vínculo com o desenvolvimento da tese, não se finda com o encerramento da
pesquisa, pois foram cultivados laços de amizade e de partilha de conhecimento mul-
tidirecionais. A este convívio duradouro os antropólogos contemporâneos designam
de “comunidade de destino” (BOSI apud GONÇALVES FILHO, 2003: 196).
Em adição a este convívio, foram gravadas algumas entrevistas informais com inte-
grantes da comunidade destino, na zona sul e na zona leste de São Paulo, com
homens e mulheres, músicos e produtores musicais, durante o primeiro semestre de
2007. Estas entrevistas, quando citadas ao longo da tese, foram identificadas com
números (por exemplo, Entrevistado 1) para manter a privacidade dos colaboradores.
Da mesma maneira, locais e outros elementos que possam identificá-los foram subs-
tituídos por nomes fictícios. Exceto em casos específicos, quando devidamente auto-
rizados, é feita a identificação pelo nome do entrevistado.
Neste sentido, é pertinente fazer neste item um breve relato sobre a minha relação
com o hip-hop, anterior ao doutoramento. Optei por deixar registrado o nome
daqueles que fazem parte desta trajetória, uma vez que são interlocutores importan-
tes, cada qual com sua história. Afinal, lembra Gonçalves Filho, “uma pessoa não é
matéria de conhecimento [...] não encontramos alguém como um alvo de análise,
mas como um parceiro na interpretação e interrogação do mundo” (2003: 199).
Há alguns anos, da minha experiência com espaço urbano e periferias de grandes
cidades em todas as regiões do país, sentia falta de uma proximidade maior com duas
manifestações culturais sistematicamente discriminadas pela mídia: as festas hip-hop
e os bailes funk. Em 2003 fui convidada
10
para ir a uma festa hip-hop na Casa de
Cultura de Diadema, com a presença de Afrika Bambaataa, Nino Brown, Thaíde,
Z’Africa Brasil. Naquele momento tive a grata oportunidade de estar com nomes rele-
vantes para o hip-hop nacional e internacional, sem, contudo, ter condições de pesar
a dimensão da centralidade que estas figuras viriam a ter para o meu trabalho em um
futuro próximo. Aos bailes funk ainda não tive a oportunidade de ir.
No momento da qualificação do doutoramento, em fins de 2006, a pesquisa estava
bastante avançada no que dizia respeito aos movimentos de moradia (especificamen-
te a ocupação Prestes Maia), aos catadores de material reciclável e aos artistas-ativis-
tas do espaço urbano (Arte contra a Barbárie e artistas da ocupação Prestes Maia).
35
10 O convite foi feito por Célia Antonacci, professora titular da Universidade Estadual de Santa
Catarina e coordenadora do projeto Poéticas do Urbano, do Centro de Artes da UDESC. Naquela
ocasião, o material gravado por Antonacci foi organizado e compilado no documentário Hip-Hop em
Cena (2005), citado ao longo desta tese.
....................
36
Fotos: arquivo da autora (1 e 2); Marilda Borges (3); Isaumir Nascimento (4).
Com Chullage, no evento “Cultura Urbana: Workshop de Hip-Hop”, 2008; com Peu Pereira, no Sarau da Cooperifa,
2008; com Alessandro Buzo no lançamento do livro Favela Toma Conta, 2008; com Lei di Dai, 2007.
Faltava ampliar o repertório concernente ao hip-hop, tarefa para o ano seguinte. Foi
quando, no ínicio de 2007, conheci Diko, produtor e um dos fundadores do portal
Bocada Forte
11
. Desde então comecei a freqüentar os encontros semanais de hip-
hop na Galeria Olido
12
, no centro de São Paulo, onde fui apresentada a várias pes-
soas ligadas de alguma maneira ao hip-hop (músicos, produtores, freqüentadores).
Destes contatos iniciais, alguns foram entrevistados para esta pesquisa, outros se tor-
naram amigos e parceiros de trabalhos posteriores.
Colaboraram intensamente para esta tese, através de debates intensos, reuniões espe-
cíficas, conversas informais, troca de emails e bate-papos via internet: Maura Costa,
produtora musical; Lei di Dai, uma das vozes femininas do ragga influeciado pelo
hip-hop, da zona leste de São Paulo; Zaro, produtor da banda Núcleo; Rato e
Rogério Vieira, da banda Núcleo; Rael da Rima e Massao, do grupo Pentágono;
Kleber (Criolo Doido), mediador da Rinha dos MCs, batalha de rimas que acontece
nas madrugadas de sábado, na zona sul de São Paulo; Edvan Soares (Neco), grafitei-
ro de Franco da Rocha (SP); e Chullage, MC de Lisboa (Portugal). Diversos debates
importantes foram viabilizados pela internet: Jorge Hilton, do grupo Simples
Rap’ortagem (Bahia)
13
; Kall, da posse Conceitos de Rua (atualmente ONG), no
Capão Redondo (São Paulo), que mora hoje em dia em Berlim (Alemanha) e Preto
Zezé, da Central Única das Favelas – Cufa (Ceará).
Freqüentei durante este período algumas festas e shows, com destaque para o
Z’África Brasil e o grupo africano Faso Kombat, de Burquina Faso, o qual pude assis-
tir ao vivo em São Paulo. Estive na Rinha dos MCs, no Sarau da Cooperifa, no
Samba da Vela, em rodas de samba informais, em botecos. Ir a estes eventos já não
dizia respeito somente à tese, mas eram momentos e espaços de encontros e afetos.
37
11O portal bocadaforte (www.bocadaforte.com.br), fundado em maio de 1999, é um dos mais impor-
tantes neste segmento no país, com uma média de 3.500 visitas por dia, 385.000 execuções de arqui-
vos de áudio e 540.000 de arquivos de vídeo em streaming e 2.784 gigabytes de transferência, segundo
dados de 2004. No ano de 2007, um convênio com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (SEPPIR) permitiu a atualização da tecnologia e o desenvolvimento de uma nova
versão para o portal, atualmente em sua terceira edição. Informações fornecidas pelo release do por-
tal.
12 Os encontros semanais de hip-hop na Galeria Olido foram cancelados pela prefeitura no meio
daquele ano junto com os shows que já estavam agendados. Fizemos uma petição online pela volta
dos encontros, disponível em: www.petitiononline.com/hholido/petition.html.
13 Conheci-o através de uma comunidade no orkut. A internet nos permitiu estender a conversa e
ampliar a troca de idéias, tanto por MSN quanto por email. Numa destas ocasiões, Hilton lamentou
que no documentário Hip-Hop com Dendê (AQUINO e MACHADO, 2006) não constasse qualquer
menção sobre o hip-hop feminista negro da Bahia, que é muito significativo no cenário estadual.
Desde então me aproximei de uma temática que ganhou espaço relevante nesta tese: a questão de
gênero e hip-hop.
....................
38
Neco (graffiti e grafiteiro); Diko (BocadaForte) e Sérgio Vaz, no lançamento
do livro Colecionador de Pedras, 2007; Núcleo, cd Fatos e Notas, 2005.
Fotos: arquivo de Neco; Andréia Moassab; Alexandre Orion.
Não me mudei para o Monte Azul, Capão Redondo ou Jd. Iporanga, como fazem
alguns antropólogos como metodologia de pesquisa. Isto já não seria preciso, pois “o
compromisso para a vida toda, um compromisso interior e de trabalho ombro a
ombro, que veio designar a amizade e a parceria” (GONÇALVES FILHO, 2003: 196)
estava selado. Não há mais retorno possível, o nosso comprometimento é por um
mundo menos desigual e não para o desenvolvimento de um trabalho acadêmico.
Amizade e parceria, no entanto, não significam aceitar as opiniões, o que poderia ser
uma humildade arrogante, mas, ao contrário, implica em constituir um lugar de par-
tilha de conhecimento. A partir deste convívio e das inquietações trocadas emergi-
ram alguns desdobramentos que resultaram em projetos e atividades conjuntas, em
relação profunda com a tese, no Brasil e em Portugal. Estes trabalhos colaboraram
tanto para a consolidação de parcerias quanto para apreender os limites e potenciali-
dades do hip-hop em fomentar discussões e práticas de caráter emancipatório.
O trabalho empírico foi amplamente acompanhado da leitura de teses, artigos e
livros específicos sobre o hip-hop sob os mais diversos recortes: educação, gênero,
juventude, identidade, comunicação, música, literatura, geografia. A literatura produ-
zida pelas vozes do movimento e da periferia é essencial para ajudar a compreender
este universo. As obras de MV Bill, Celso Athayde, André du Rap, DJ TR, Ferrez,
Sergio Vaz, Alessandro Buzo e Paulo Lins são marcantes na literatura nacional e na
cena cultural dos últimos dez anos. Note-se que nem sempre este material está dis-
39
Festa na Casa de Cultura de Diadema, 2003. À esquerda Afrika Bambaataa, um dos fundadores do
movimento hip-hop nos EUA.
Foto: Andréia Moassab.
ponível na forma de livros, mas em blogs, vídeos na internet e documentários. O
número especial da revista Caros Amigos sobre o hip-hop (2005) e os portais da inter-
net (em especial, bocadaforte e realhiphop) foram fontes importantes de dados,
nomes e contextualizações.
Finalmente, material imprescindível de informação e reflexão são filmes nacionais e
internacionais sobre temas direta ou indiretamente relacionados à tese tais como rela-
ções raciais, tráfico de drogas, violência urbana, violência policial, globalização,
juventude e a produção específica sobre hip-hop e arte na periferia. Merece destaque
o documentário de Peu Pereira, Panorama: Arte na Periferia (2007), realizado com o
apoio do programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), da Secretaria
Municipal de Cultura de São Paulo. O filme apresenta um panorama da arte produ-
zida na periferia sul de São Paulo por diversos grupos e iniciativas independentes que
estão alterando a cena cultural local nos últimos anos.
Os documentários Notícias de uma Guerra Particular (SALLES, 1999) e Falcão: Meninos
do Tráfico (MV BILL e ATHAYDE, 2006) apontam aspectos relevantes da relação
entre tráfico de drogas, desigualdade social, desemprego, juventude e globalização.
Sobre racismo, incluindo o viés do racismo policial, a obra do diretor estadunidense
Spike Lee é fulcral. Da produção nacional são relevantes os documentários Zumbi
Somos Nós (FRENTE 3 DE FEVEREIRO, 2007); O Prisioneiro da Grade de Ferro
(SACRAMENTO, 2003); Ônibus 174 (PADILHA, 2002); e, os filmes de ficção
Quanto Vale ou é por Quilo? (BIANCCHI, 2005) e Tropa de Elite (PADILHA, 2007). No
filme O Invasor (2001), Beto Brant narra a relação entre desigualdade social, violên-
cia e corrupção, através da ligação entre submundos do crime: o matador, originário
da periferia e os mandantes, empresários da alta classe média.
No tocante à globalização, Silvio Tendler concebeu o documentário Encontro com
Milton Santos: O Mundo do Lado de Cá (2007), baseado no último livro do intelectual
brasileiro, no qual intercala trechos de sua última entrevista e cenas de um amplo
acervo documental acerca dos problemas da globalização sob a perspectiva das peri-
ferias. Cronicamente Inviável (1999), de Sérgio Biancchi, juntamente com documentá-
rios sobre o golpe contra o presidente Hugo Chavez, da Venezuela: A Revolução Não
Será Televisionada (BARTLEY e O’BRIAN, 2003) e Venezuela Bolivariana Pueblo y Lucha
de la IV Guerra Mundial (ARREAZA, 2004); e The Corporation (ABBOTT e ACHBAR,
2003), sobre as empresas multinacionais, abarcam diversas perspetivas sobre a globa-
lização hegemônica.
O hip-hop é central nos seguintes filmes: Favela no Ar (FERREIRA, 2007); Hip-Hop
com Dendê (AQUINO e MACHADO, 2006); É Tudo Nosso! O Hip-Hop Fazendo
História (Toni C, 2006); Hip-Hop em Cena (ANTONACCI, 2005); III Encontro de
Gênero e Hip-Hop da Bahia (LIZ, 2005); Rap – o Canto da Ceilândia. Brasil (QUEIROZ,
2005); 100Comédia (DJAN, 2005); Sabotage (FERREIRA et al, 2004); Style Wars (SIL-
40
VER e CHALFANT, 1983). Diversas entrevistas a personagens significativos para o
hip-hop nacional estão disponíveis na internet, com destaque à participação de
Mano Brown, no programa Roda Viva da TV Cultura, em 24 de setembro de 2007.
Todo o material audiovisual citado ao longo deste volume, quando disponível na
internet, está reunido no Anexo.
3.3.
DDaa AAnnáálliissee ddaa MMííddiiaa ee ddaass LLeettrraass ddaass MMúússiiccaass
No decurso desta tese serão tratadas, em diversos e distintos momentos, as letras das
músicas do hip-hop e reportagens da mídia, sobretudo da mídia impressa. Com rela-
ção à mídia, foram amplamente aproveitados o banco de dados e as entrevistas ela-
boradas no âmbito da pesquisa A Invenção do Mesmo e do Outro na Mídia Semanal,
desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa em Mídia Impressa do Programa de Estudos
Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUCSP sob a coordenação de José
Luiz Aidar Prado. O objetivo da pesquisa foi a construção de um banco de dados
multimidiático, organizado em hipermídia, com vídeos, textos e imagens, sobre a
mídia semanal no país. O eixo crítico do trabalho está na pergunta sobre os modos
de construção (e, conseqüentemente, das figuras), do Outro (o pobre, o criminoso, o
descamisado, o sem-terra etc.), em oposição aos modos de construção dos vencedo-
res (os executivos, os empreendedores de sucesso no mundo dos negócios, os artistas
milionários, os endinheirados etc.), apontando, assim, uma possibilidade de educar
os leitores para a mídia, em especial a semanal.
A partir desse material e tendo participado ativamente dos módulos da hipermídia
sobre mulheres, homossexualidade, periferia e movimentos sociais, em diversos
momentos da tese serão apresentadas as construções midiáticas hegemônicas acerca
destes temas, quando pertinente ao assunto focado em itens específicos. Por exem-
plo, no item O Lugar do Hip-Hop (item 3, capítulo 1, parte I), cujo eixo temático é
a divisão econômica dos espaços das cidades e formação das periferias, há uma breve
análise sobre o modo pelo qual a mídia constrói uma periferia homogeneizada em
uma hierarquia inferiorizante com relação aos espaços ocupados pelos detentores do
capital econômico. Da mesma maneira, a discussão sobre mídia permeará os itens:
Movimento de Moradia, Violência e Juventude na Mídia; A (re)Construção da
Identidade e da História das Narrativas do Cotidiano; e, Os Silenciados Também
Silenciam.
Em episódios pontuais (Racionais MCs na Virada Cultural; Massacre do Carandiru;
Ocupações Prestes Maia/SP e Sonho Real/DF) foram pesquisados jornais, revistas,
blogs de opinião e portais da internet, dada a relevância dos fatos para a questão em
análise. O mesmo sucede para o item O Hip-Hop na Mídia. Nestes casos, a pesqui-
41
sa de mídia foi feita por buscas na internet, através de palavras-chave. Nas polêmicas
envolvendo o movimento hip-hop (Racionais MCs na Virada Cultural e artigo de
Bárbara Gancia no jornal Folha de S. Paulo), houve um acompanhamento rigoroso das
controvérsias em diversos blogs, portais e listas de discussões
14
.
No que diz respeito às músicas, é preciso esclarecer que não há uma intenção de
mapear a produção do hip-hop nacional, embora tenham sido analisadas as letras de
grupos de várias regiões do país: São Paulo, Rio de Janeiro, Maranhão, Bahia e
Distrito Federal. O hip-hop, por tratar-se de um movimento dos dias atuais, não é
um universo fechado, ao contrário, está em curso, constitui-se uma rede em constan-
te ampliação e alterações. Uma vez ciente da impossibilidade de mapear a totalidade
da produção nacional, optou-se por um método de amostragem matemática não-pro-
babilística designado como “snowball sampling” (GOODMAN, 1961).
Desenvolvido matematicamente por Leo Goodman no início dos anos 60, o méto-
do consiste no apontamento dos sujeitos iniciais da amostra, qualitativamente esco-
lhidos, que, por sua vez, indicam contatos posteriores e assim sucessivamente (ibi-
dem: 01). Ao longo das décadas seguintes o método foi sendo aperfeiçoado para uso
em amostragem de redes sociais, sem, contudo, alterar o uso dos contatos geradores,
ou seja, os sujeitos que apontam para novos sujeitos na amostra (ROTHENBERG,
1995: 105 e 106). Sob esta perspectiva, procurou-se, a partir dos primeiros contatos
da pesquisa de campo, configurar um amplo leque de compreensão do hip-hop que
permitisse uma diversidade contextual e temática. Além das referências pessoais, a
vasta bibliografia especializada também foi cruzada com as informações dos conta-
tos geradores.
42
Z’África Brasil, Tem Cor Age, 2007; Núcleo, Na Contra-Mão, 2008; Pentágono, Microfonicamente Dizendo, 2005.
14 Sobre o episódio dos Racionais MCs, foi elaborado um paper para o Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra, em co-autoria com Ana Elisa de Carli (socióloga, doutoranda da USP
em estágio no CES, com pesquisa sobre a questão de mídia, racismo e cotas raciais) e com Cristiane
Lima (assistente social da polícia militar do Pará, doutoranda da UFRN e do CES, versando acerca
das relações entre polícia, segurança e direitos humanos). Referência completa na bibliografia
(MOASSAB et al, 2008).
....................
Desta maneira, foram referidas diversas figuras centrais do hip-hop nacional e inter-
nacional, cujo trabalho procurei conhecer com maior profundidade. Dos Estados
Unidos as referências são principalmente: Afrika Bambaataa, Kool Herc,
Grandmaster Flash, SugarHill Gang, Public Enemy, KRS-One, Ice Cube, sem esque-
cer as influências de James Brown. No Brasil: Racionais MCs, Sabotage, Thaíde,
Rappin’ Hood, MV Bill, GOG. Em São Paulo, o Z’África Brasil é amplamente cita-
do como referência da nova geração, com um trabalho que começa a se difundir por
todo o país. De todos estes grupos tive acesso a vários álbuns. Devido a minha rela-
ção com a banda Núcleo e o grupo Pentágono, também conheci intensamente suas
produções
15
.
No momento seguinte, com um amplo cenário musical e temático do que seriam as
principais referências do hip-hop, delineamos alguns eixos temáticos centrais, que
levaram a conhecer o trabalho de outros grupos. É o caso, por exemplo, do sistema
carcerário e da violência policial, questões responsáveis pela aproximação com o tra-
balho de Dexter, Pavilhão 9, Império Z/O e Facção Central. Ao verificar as afinida-
des entre o hip-hop e outros movimentos sociais, alguns grupos emergiram, como o
Clã Nordestino e Simples Rap’ortagem.
Os grupos de mulheres e as MCs não foram citados espontaneamente na pesquisa de
campo, à exceção de Nega Gizza, do Rio de Janeiro, tendo sido necessária, portanto,
uma busca específica. No entanto, ao ser induzida a questão da presença feminina
no hip-hop, a maioria das pessoas apontava alguma referência. Desta maneira, che-
gou-se aos grupos Visão de Rua (SP), Munegrale (BA), Atitude Feminina (DF) e Flora
Matos (DF). Lei di Dai, da zona leste de São Paulo, foi um contato significativo para
começar a entender a complexidade da relação entre hip-hop e gênero. A existência
de uma discussão com embasamento feminista no hip-hop veio à tona em um con-
versa com Jorge Hilton, do grupo Simples Rap’ortagem. Os desdobramentos desta
conversa em buscas pela internet fizeram emergir um trabalho sólido das mulheres
no hip-hop, com nomes como: Minas da Rima (SP), Anastácias (RJ), NegaAtiva (RJ)
e La Bella Máfia (RS). É importante ressaltar que apesar do trabalho consistente e de
longa data, as mulheres não são visíveis à primeira vista, havendo um processo de
invisibilização das vozes femininas no hip-hop. Não obstante os avanços, ainda é
preciso ultrapassar a naturalização social da discriminação para que as mulheres no
hip-hop tenham o mesmo nível de reconhecimento espontâneo que os homens.
A cultura hip-hop é marcadamente oral, o que implica alguns entraves na elaboração
de um trabalho escrito, como uma tese. Muitas das músicas não têm suas letras regis-
tradas por escrito, nem em encartes dos CDs, tampouco em páginas específicas de
43
15 Os grupos são formados por MCs (vocais) e pelo DJ, responsável pelo beat, ou batida. Na forma-
ção em banda, o DJ é substituído por músicos instrumentistas (baixo, guitarra, percusão e outros).
....................
letras de música na internet e, não raro, nem mesmo os próprios autores ou intérpre-
tes as possuem em registro escrito. Portanto, diversas citações de músicas tiveram que
ser transcritas e, neste caso, foi respeitada a oralidade sem acertos da linguagem colo-
quial para as regras escritas. Quando existe a letra disponível, foram corrigidos os
erros ortográficos (por exemplo, a letra “z” em “quizeram”), porém mantida a colo-
quialidade intencional, a despeito das concordâncias e outras regras gramaticais
pouco observadas na oralidade (como “as arma”, sem o plural do substantivo). Para
citação das músicas ao longo da tese consideramos mais relevante, para fins de aná-
lise, adotar o sistema nome do grupo (DJs e MCs) ou banda (DJs e MCs acompanha-
dos de músicos), seguido do nome da música, ao invés do padrão autor/data. Desta
maneira, ao invés de: “dos pobres pelos pobres para os pobres com os pobres / orgu-
lho de ser da periferia” (Autoria Discutível, 2003), pouco elucidativo, preferimos:
“dos pobres pelos pobres para os pobres com os pobres / orgulho de ser da periferia”
(CLÃ NORDESTINO, Introduclã), no qual o primeiro nome, em caixa alta, é sem-
pre o nome do grupo/banda, seguido do nome da música. Contudo, há uma sessão
específica ao final da tese com toda a referência musicográfica, identificando os auto-
res (quando o dado é disponível), o álbum e a data de lançamento. Além disso, todas
as músicas citadas estão gravadas no Anexo.
Conforme exposto acima, a partir da articulação indissociável entre a abordagem teó-
rico-conceitual, a pesquisa de campo e a análise das letras das músicas e da mídia,
procuraremos mostrar, nos capítulos que seguem, a existência de uma produção cole-
tiva e insurgente, indo ao encontro de um protagonismo dos novos movimentos
sociais, defendido por Boaventura Santos como “produto-produtor de uma nova cul-
tura” (2005a: 278). Em outras palavras, mostraremos como o hip-hop se constitui
como comunicação contra-hegemônica face à produção de sentidos dominada pelos
valores da globalização econômica capitalista.
44
45
16 GASPAR apud BRASIL DE FATO (2006).
16
PARTE 1
47
CAPÍTULO 1
17 Z’África Brasil, Antigamente Quilombo, Hoje Periferia.
17
1. HIP-HOP: DO SUBÚRBIO PARA A PERIFERIA
Ohip-hop
18
, movimento político-cultural nascido nos bairros negros das grandes
cidades estadunidenses da década de 70, num período caracterizado por lutas pelos
direitos civis e políticos por parte dos negros americanos, espalhou-se pelas periferias
do mundo, numa relação estreita e essencial com cada lugar no qual se desenvolveu.
No Brasil, o HH foi rapidamente transformado em “uma produção política e cultu-
ral dos guetos, das periferias e das favelas” (SOUZA e RORIGUES, 2004: 101-102).
No início dos anos 70, Afrika Bambaataa, criado no Bronx, subúrbio de Nova York,
juntamente com o jamaicano Clive Campbel (DJ Kool Herc) e Grandmaster Flash
fundaram o movimento cultural hip-hop (LEAL, 2007; CALADO, 2007), reunindo
as diversas manifestações culturais em emergência naquela vizinhança. No entanto,
o termo veio a público em 1979 na música “Rappers Delight”, do grupo SugarHill
Gang (CALADO, 2007).
A criação do hip-hop constituiu numa resposta à violência urbana à qual as popula-
ções afro-descendentes e hispânicas foram submetidas com as transformações urba-
nas das cidades estadunidenses das décadas anteriores. O planejamento urbano esta-
dunidense do período criou bolsões de pobreza nos interstícios da ampla malha viá-
ria de fluxo intenso que conectava diversos pólos econômicos regionais. Esta rede
viária integrava, no contexto da Guerra Fria (1945-91), um plano nacional estratégi-
co de defesa para o caso de ataque nuclear. Ainda que ao final do período nenhum
ataque nuclear tenha sido efetivado, “gerações inteiras cresceram à sombra de bata-
lhas nucleares globais que [...] podiam estourar a qualquer momento, e devastar a
humanidade” (HOBSBAWN, 2002: 226). O plano de defesa estadunidense consis-
tia, sobretudo, em assegurar a existência de uma malha viária capaz de escoar rapida-
mente as grandes cidades e dar mobilidade ao transporte militar de tropas e arma-
mentos (CALADO, 2007: 43). Esta malha viária expressa alterou profundamente a
organização espacial local das cidades americanas: a população mais abastada se ins-
talou nos bolsões de acessibilidade às vias expressas e deixou para trás uma série de
terrenos entrecortados, desvalorizados pelo confinamento e falta de acessibilidade,
ocupados pelas camadas de baixa renda.
No Bronx, bairro de Nova York, cerca de duas décadas antes da germinação do hip-
hop, foi construída a “Cross-Bronx Expressway, uma auto-estrada de oito vias que
48
18 O termo hip-hop aparece na literatura com diversas grafias: hip hop, hip-hop, hiphop ou ainda
Hip Hop (com maiúsculas). No Brasil, os portais digitais, livros e revistas especializados utilizam
majoritariamente “hip-hop” e sua sigla “HH”, motivo pelo qual optamos por esta grafia na tese que
se apresenta.
....................
obrigou à deslocalização de 60.000 habitantes” (ibidem: 59). Enquanto os mais
afluentes se mudaram para os locais servidos pela auto-estrada, os mais pobres,
nomeadamente hispânicos e afro-descendentes, foram realojados em conjuntos habi-
tacionais em South e East Bronx. De acordo com Jeff Chang, em seu livro Can’t Stop,
Won’t Stop: A History of the Hip Hop Generation (2005), citado por Pedro Calado (2007)
em sua dissertação de mestrado sobre o hip-hop em Portugal, o baixo valor cobrado
pelo aluguel destes imóveis levou seus proprietários a desistirem de mantê-los em
boas condições, preferindo conseguir renda a partir das indenizações pagas pelas
companhias seguradoras. Deste modo, o baixo valor imobiliário destas áreas foi um
dos responsáveis por uma onda de incêndios criminosos no Bronx, com a finalidade
de receber o dinheiro dos seguros (CALADO, 2007: 61 e 62). Entre 1968 e 1978, mais
de 43 mil habitações foram consumidas pelo fogo, ao mesmo tempo em que o poder
público reduziu o apoio social, considerando irreversível o processo de autodestrui-
ção do bairro (ibidem). Neste cenário de abandono, ruínas e desestruturação social,
a violência juvenil emergiu rapidamente através das lutas entre gangues, não raro cul-
minando na morte de seus integrantes.
Somados à desestruturação espacial urbana nos anos 60 e 70, do ponto de vista his-
tórico é preciso lembrar que, com o intuito de conciliar o ideal de liberdade e a eco-
nomia escravocrata, os Estados Unidos negaram aos negros a condição humana, acar-
retando uma difícil reversibilidade na invisibilidade e anonimato a que foi jogada a
comunidade negra americana desde o princípio (CORNEL apud CASTELLS, 2003:
67). Para não se perder de si mesma, esta comunidade teve que se imbuir de uma pro-
funda noção de significado coletivo (ibidem), cujos sonhos foram personalizados nos
líderes do anos 60 e continuados através do hip-hop. Sob esta ótica, é bastante sig-
nificativa a influência do pensamento libertário dos Panteras Negras e de outros líde-
res importantes para a comunidade afro-descendente naquele período: Malcom X,
Marthin Luther King, James Brown. Nos depoimentos dos fundadores do hip-hop
há uma intenção clara de construir valores positivos para esta juventude desassistida:
quando nós criamos o hip-hop, o fizemos esperando que seria em função da paz, do
amor, união e diversão e que as pessoas se afastariam da negatividade que estava con-
taminando nossas ruas [...]. Embora esta negatividade ainda aconteça aqui e ali, à
medida que a cultura cresce, nós desempenhamos um grande papel na resolução de
conflitos e no cumprimento da positividade (BAMBAATAA apud LEAL, 2007: 26 e
27).
A fragmentação urbana das cidades, a discriminação dos negros e a conseqüente
noção de significado coletivo, juntamente com as fortes lideranças da luta política
dos negros nos Estados Unidos naquele período, foram definidoras da construção do
movimento hip-hop desde a sua gênese, com forte viés identitário, de afirmação da
auto-estima do negro e de reivindicação pelos direitos civis, juntamente com a sua
expressão cultural e artística.
49
Não é apenas através da música que se manifesta o hip-hop. A expressão cultural e
artística está presente em várias manifestações: (1) no break, dança dos b-boys e b-
girls
19
; (2) nas pinturas urbanas do graffiti
20
; (3) no canto falado do rap (rythm
and poetry), entoado pelos MCs – mestres de cerimônia, na prática o cantor ou o res-
ponsável pelo comando da festa, com base nas batidas ritmadas fornecida pelos DJs;
e (5) a chamada “consciência” ou “atitude”, que é o modo pelo qual os integrantes
do hip-hop se posicionam diante do grupo e frente à sociedade, isto é, o seu com-
prometimento social. Sem estes cinco pilares em conjunto não se pode falar em hip-
hop. Por isso, a música rap não é do hip-hop, mas independente, e não diz respeito
às várias manifestações, principalmente ao pensamento do HH: “sem os outros ele-
mentos do hip-hop o rap se torna apenas um estilo de música, que pode estar na
moda ou não. Perde a raiz, o compromisso de transformar a violência, o sofrimento,
o que é negativo em positivo, construção” (NINO BROWN apud CAROS AMI-
GOS, 2005: 06).
É necessária a distinção entre o rap enquanto estilo musical e o rap integrante de um
movimento. O que importa a essa tese é o movimento hip-hop em seu conjunto, sob
a especificidade das letras do rap vinculadas à ‘consciência’, e não as vertentes artís-
ticas separadamente ou desconectadas do movimento e sem comprometimento. Por
este motivo, não trataremos do rap vinculado à indústria fonográfica absorvido aos
interesses hegemônicos
21
, na medida em que nos propomos a investigar o movi-
mento em sua capacidade transformadora e emancipadora.
No hip-hop todas essas práticas artísticas carregam consigo o protesto contra a pobre-
za e marginalização, bem como a denúncia da violência policial e do racismo e uma
mensagem de valorização e aumento da auto-estima da população das periferias,
adaptando-se às especificidades de cada local, o que é notado especialmente nas letras
do rap. No Brasil é notória a semelhança da roda de break com a roda de capoeira,
inclusive nas regras e gestos de solicitação de entrada no centro da roda.
50
19 B-boy e b-girl é a maneira pela qual são designados os dançarinos e as dançarinas do hip-hop. O
break, apesar de ser o nome de um dos movimentos corporais entre os vários que acompanham o
ritmo sincopado da música, é o modo genérico como ficou popularmente conhecida a “dança do hip-
hop”. Estes termos (b-boy, b-girl, break) constarão nesta tese em sua grafia original em inglês, incor-
poradas ao texto sem distinção do tipo itálico ou entre aspas, uma vez que fazem parte do vocabulá-
rio corrente do movimento hip-hop no Brasil.
20 A grafia adotada no mundo todo é originária do italiano, plural de graffito (escrita com carvão)
e designa atualmente a arte da escritura no espaço urbano. O graffiti pode incluir diversos estilos
como a pixação (ou tag reto), tags, stencil, 3d, wild style, free style, entre outros. Será incorporada ao
texto sem distinção dos caracteres, pelos motivos expostos na nota anterior.
21 Micael Herschmann, pesquisador da Escola de Comunicaçã da UFRJ, em seu livro O Funk e o
Hip-Hop Invadem a Cena (2005) faz uma análise relevante sobre as tensões entre hip-hop, funk, indús-
tria fonográfica e cultura de massa: “tomo o funk e o hip-hop, na verdade, para repensar as articula-
ções entre Estado, sociedade e mercado, que permitiriam enfatizar algumas das articulações que vêm
caracterizando as relações entre cultura (especialmente as minoritárias e/ou marginais) e poder nos
anos 90” (HERSCHMANN, 2005: 18).
....................
O hip-hop brasileiro surgiu em São Paulo, nos anos 80, nos tradicionais encontros
no metrô São Bento e na praça Roosevelt. Alguns nomes importantes da cena hip-
hop contemporânea surgiram neste período, como Thaíde, Dj Hum, Styllo
Selvagem, Região Abissal, Nill (Verbo Pesado), Sérgio Riky, Defh Paul, Mc Jack,
Sampa Crewn, Racionais MCs, Doctors Mcs, Shary Laine, Mt Bronks, Rappin Hood
entre outros. Era a expressão corporal do hip-hop que tinha maior destaque naquele
momento, através da figura de Nelson Triunfo
22
e seu grupo de dança Funk &
Cia, com forte influência do black soul (LEAL, 2007). Já naquela altura foram regis-
trados desentendimentos com a polícia e os seguranças do metrô, impedindo o uso
dos espaços públicos e o encontro dos jovens em torno da dança. As desavenças com
a polícia serão notórias do hip-hop nos anos subseqüentes, até os dias atuais: “tive a
idéia de trazer o movimento para a rua – como era feito no Bronx, era feito na 24 de
Maio... A gente tinha problemas com a polícia...” (TRIUNFO apud LEAL, 2007:
144). Em 1988 os rappers se afastam da São Bento e passam a se encontrar na praça
Roosevelt, também centro de São Paulo. Pouco depois são criadas as primeiras comu-
nidades organizadas do hip-hop: as Posses, reunião de diversos grupos de uma
mesma região, com o intuito de fomentar a vertente cultural, social, política e edu-
51
Bboy (campeonato Break do Pantanal organizado pela CUFA, 2008); Graffiti; MC (Núcleo, show na
Casa das Caldeiras, 2008); DJ (Beco do Pona, 2007)
Fotos : arquivo CUFA (1); Neco (2 e 4); Andréia Moassab (3).
22 Em 06 de junho de 2008 a Câmara Municipal de São Paulo prestou uma homenagem a Nelson
Triunfo, concedendo-lhe o título de Cidadão Paulistano, em reconhecimento a sua contribuição para
a cultura da cidade.
....................
cacional do hip-hop junto às comunidades. É desta época o Sindicato Negro, Força
Ativa, MH2O, Aliança Negra, Conceitos de Rua (LEAL, 2007:161; KALL, comuni-
cação pessoal, 2008).
52
Mano Brown, 2006 (Racionais MCs)
Rapin’Hood, 2008.
Foto : Isaumir Nascimento
Foto : Rogério Vieira
No início do ano seguinte a recém eleita gestão municipal progressista
23
incorpo-
rou o hip-hop em diversas ações educativas nas periferias, com programas como Rap
nas Escolas e Rapensando a Educação
24
. Vários grupos se formaram impulsionados
por estes programas, como relata um dos integrantes do grupo Herança Negra na
página eletrônica do Movimento Enraizados:
teve um Projeto dos Racionais MCs com a PMSP (Prefeitura do Município de São
Paulo) [...] a escola aqui do Kemel II, conhecida como Cordeiro, foi umas das esco-
las escolhidas, eu, o Léo e o DJ ALX estudávamos lá [...]. Como o tempo era curto
para palestras, debates e shows, inclusive do próprio Racionais, a Sueli Shan [coorde-
nadora do Projeto] sugeriu que cantássemos juntos, então em uma reunião com a coor-
denação da escola, a Sueli Shan... e os Racionais, na pessoa do Brown e Edy Rock suge-
riu a união e foi o que aconteceu. A data precisa foi 21 de Outubro de 1991 (MAR-
CEL, s/d)
Alguns anos depois, em 1992, foi lançada a primeira revista de hip-hop nacional:
Pode Crê!, com o apoio da Organização Não-Governamental – ONG Mulheres Negras
Geledés. A revista foi importante articuladora política do hip-hop e este, por sua vez,
ampliou a aproximação do Movimento Negro à juventude da periferia (ARRUDA
apud LEAL, 2007:167). É desta época também o projeto Rappers no qual cerca de
dez grupos de forte expressão na capital, incluindo o Geledés e a Conceitos de Rua,
se reuniram em torno de oficinas de formação e politização (KALL, comunicação
pessoal, 2008).
Todos estes fatos foram marcantes, mas não exclusivos, para uma virada do hip-hop
no Brasil dos anos 90 rumo a um forte comprometimento social, especificamente
ligado às questões do negro, da pobreza, da periferia e da violência policial. É pun-
gente desta virada o lançamento de dois álbuns: Consciência Black, uma coletânea, e
Holocausto Urbano, dos Racionais MCs, ambos de 1990. Estoura o sucesso Pânico na
Zona Sul, do álbum Holocausto Urbano, uma narrativa aguda das dificuldades da peri-
feria imersa num cotidiano violento e esquecido:
53
23
Luiza Erundina foi prefeita de São Paulo de janeiro de 1989 a janeiro de 1993, pelo Partido dos
Trabalhadores. Em sua gestão, diversos intelectuais progressistas assumiram secretarias importantes:
Paulo Freire (Secretaria da Educação), Marilena Chauí (Secretaria da Cultura), Ermínia Maricato
(Secretaria da Habitação), para citar alguns.
24
O programa Rap nas Escolas é tido como uma das experiências mais inovadoras na área da
Educação (GONÇALVES e SPOSITO, 2002), no qual eram realizadas apresentações musicais segui-
das de debates sobre violência, preconceito e racismo com os alunos (GONÇALVES e SPOSITO,
2002; SPOSITO, 1992). As atividades tiveram seguimento para além de apresentações e debates,
tendo servido também para aglutinar diversos grupos em encontros nos finais de semana, indepen-
dente de suas participações nas atividades pedagógicas, culminando num encontro municipal de hip-
hop, em 1992 (SPOSITO, 1992). O Rapensando Educação são oficinas de educação e cultura espalha-
das por toda periferia. Ambos programas tiveram a participação, entre outros, de Nelson Triunfo e
Racionais MCs.
....................
- Certo não está né mano, e os inocentes quem os trará de volta? / - É...a nossa vida
continua, e aí quem se importa? / - A sociedade sempre fecha as portas mesmo... [...]
então quando o dia escurece / só quem é de lá sabe o que acontece [...] justiceiros são
chamados por eles mesmos / matam humilham e dão tiros a esmo / e a polícia não
demonstra sequer vontade / de resolver ou apurar a verdade / pois simplesmente é
conveniente / e por que ajudariam se eles os julgam delinqüentes / e as ocorrências
prosseguem sem problema nenhum / Continua-se o pânico na Zona Sul [...] eu não
sei se eles / estão ou não autorizados / de decidir quem é certo ou errado / inocente
ou culpado retrato falado [...] o sensacionalismo pra eles é o máximo / acabar com
delinqüentes eles acham ótimo [...] mal te conhecem consideram inimigo / e se você
der o azar de apenas ser parecido / Eu te garanto que não vai ser divertido / se julgam
homens da lei (RACIONAIS MCs, Pânico na Zona Sul)
O hip-hop nacional sente o impacto destes versos. Naquele ambiente do início dos
anos 90 é consolidado o quinto elemento do hip-hop: a “consciência” ou a “atidu-
de”, isto é, o comprometimento dos participantes do movimento com os problemas
enfrentados pelas comunidades, tais como as lutas contra o racismo e violência poli-
cial, e conscientização acerca da precariedade de infra-estrutura. Importantes figuras
do hip-hop de todo o país despontam com um trabalho consistente neste sentido:
GOG (Brasília), MV Bill (Rio de Janeiro), Sabotage (São Paulo), Rappin’Hood (São
Paulo), só para citar alguns.
54
Revista Pode Crê!, junho / julho de 1992. Na capa os grupos que iniciaram o projeto, entre
os quais: Posse Conceitos de Rua, Posse Aliança Negra, FNR, DMN, Pensadores Negros,
Personalidade Negra (atualmente Resumo do Jazz), Tina, e Sharylaine e Cia .
Foto : arquivo Kall
Nos anos 2000, uma nova geração se formará num diálogo com os marcos da cena
anterior, seja de concordância ou dissonância. Entre as novas vozes com repercussão
nacional estão Z’África Brasil (São Paulo), Clã Nordestino (Maranhão), Simples
Rap’ortagem (Bahia) e Núcleo (São Paulo). Em 2003, Afrika Bambaataa, fundador do
movimento, esteve presente em uma festa na Casa do Hip-Hop de Diadema, coor-
denada pela Zulu Nation Brasil. Entre as diversas falas daquela ocasião, merecem des-
taques as de MC Levy, Oswaldo Faustino e Thayde:
Eu quero convidar agora o King, da Zulu Nation Brasil. Uma pessoa humilde que faz
uma pesquisa sobre a história do negro, os nossos lábios grossos... olhar pra cima e
saber que o negro é belo. Você pesquisando ali, se você não tem esta identidade, pas-
sando por aqui, por aquela salinha no acervo, vai conversar com ele, vai trocar uma
idéia. (MC LEVY apud ANTONACCI, 2005)
55
Sabotage
Foto: internet.
GOG
Foto: internet.
Mas é muito importante entender o seguinte: que a nossa música é violenta, que a
nossa dança é violenta, que a nossa arte é violenta. Mas a mídia não vê que a violên-
cia independe de nossa cultura e que a nossa cultura consegue é juntar a juventude
para um ideal, para uma proposta de construção, para uma proposta de cidadania. É
isso que a mídia não vê. (FAUSTINO apud ANTONACCI, 2005)
Só uma coisa, quem está na escola levanta a mão. Quem está estudando levanta a mão.
Muita gente, graças a Deus. E tem que ter mais. (THAYDE apud ANTONACCI, 2005)
O evento reuniu, em Diadema, diversos nomes importantes da história do hip-hop,
com a presença de lideranças nacionais e internacionais. Documentado por Célia
Antonacci, da Universidade Estadual de Santa Catarina, a festa foi permeada por
mensagens que abordam questões de auto-estima do negro, violência na periferia e
incentivo aos estudos. Juntamente com violência policial, história da África e dos
afro-descendentes, e culto aos heróis negros, estes são os principais temas abordados
nas músicas do hip-hop.
Nega Gizza, uma das vozes femininas neste universo essencialmente masculino, foi
uma das mulheres a acrescentar o tema do preconceito de gênero para discussão no
hip-hop:
o machismo existe, o preconceito existe, e eu sempre digo que não só no rap, mas em
vários lugares. A mulher nunca teve uma posição que marcasse a história. A dificulda-
de da mulher existe em todo lugar. Ela precisa romper as barreiras que são colocadas
a cada dia. A luta é grande. (NEGA GIZZA, 2002: 14)
Sua primeira música, uma das mais conhecidas, aborda o tema da prostituição: “das
pragas sociais sou a pior / cocorococó sou o efeito dominó / o lenocínio ofusca,
induz, coage, atrai / o marinheiro aventureiro sorrateiro desembarca e cai / sou de
quem me vir primeiro / sou a ausência do amor com a presença do dinheiro” (NEGA
GIZZA, Prostituta). As questões de gênero no hip-hop serão tratadas mais detalhada-
mente adiante.
56
Nega Gizza, cd Na Humildade, 2002.
O rap comercial desvinculado do movimento hip-hop ganhou espaço midiático em
canais do tipo MTV, com uma forte influência dos rappers estadunidenses como
Eminem, Snoop Dog, 50 Cent ou Marcelo D2, no Brasil. Ao mesmo tempo, há uma
forte vinculação, pela mídia nacional, dos shows de hip-hop com violência, ponto ao
qual voltaremos. A MTV difundiu por todo o mundo basicamente o gangsta
rap
25
, de caráter comercial e de exaltação da identidade negativa, com uma estra-
tégia evidente de conquista de novos públicos. Não há nesta absorção pela televisão
uma preocupação com a perspectiva histórica, nem com os compromissos sociais ori-
ginários do HH; ao contrário, o hip-hop é marcado pela emissora como um estilo
musical puramente comercial, sexista, consumista e individualista. Muito do que o
grande público sabe sobre o hip-hop, ou melhor, do rap, foi construído a partir deste
modelo imposto comercialmente pelas MTVs do mundo todo, fortemente vincula-
do com a sociedade de consumo.
A naturalização do preconceito contra o hip-hop decorrente desta imagem midiática
foi praticamente imediata, com conseqüências avassaladoras para a distorção da com-
preensão e má vontade com relação ao hip-hop nacional por parte de intelectuais,
57
25
Originalmente o gangsta, surgido nos finais dos anos 80, causou forte impacto devido às letras
bastante duras e violentas e de forte denúncia contra a violência policial. Os maiores ícones são:
Snoop Dog, Ice Cube e Dr. Dre. Foi um estilo absorvido comercialmente e transformado em produ-
to midiático com 50Cent, Jay-Z, Eminem, cujas vidas não correspondem à violência cantada, tendo
adquirido um caráter meramente de “estética da violência”.
....................
Snoopy Dog e Ice Cube.
Fotos: internet.
jornalistas e formadores de opinião. Em quaisquer conflitos envolvendo público,
músicos ou artistas do hip-hop, como foi o caso do episódio entre Racionais MCs e
polícia militar de São Paulo, detalhado nos capítulos subseqüentes, as reportagens
veiculadas através da mídia hegemônica são sempre negativas. O jornalista Reinaldo
Azevedo, por exemplo, da Veja Online, referindo-se ao episódio, escreveu: “eles [os
músicos] promoveram a baderna e a incitação da massa contra a polícia [...] gente
que deveria estar na cadeia está dando lição de moral” (VEJAONLINE, 2007). Não
se vê na mídia tradicional a construção do hip-hop como um espaço de reflexão
social, discutindo temas como periferia, racismo, violência policial, pobreza, globali-
zação, gênero, desemprego e outras temáticas caras à grande parte da população deste
país.
Para além da música, as outras manifestações artísticas vinculadas ao HH também
apresentam um histórico de protesto e denúncia contra as condições de vida das clas-
ses menos privilegiadas. O graffiti apareceu como movimento organizado nas artes
na Nova York dos anos 70, com o aproveitamento de espaços urbanos pelos artistas,
de maneira a criar uma linguagem intencional para interferir na cidade, geralmente
em lugares proibidos. Foi logo incorporado ao hip-hop, que estava germinando
naquela ocasião nos bairros pobres da cidade, como mais um instrumento de protes-
to do movimento
26
.
Em São Paulo foi criada uma forma distinta de graffiti: a pixação, com caligrafia espe-
cífica e regras próprias. É independente do graffiti hip-hop e é a mais praticada na
58
26
Agradeço ao grafiteiro Neco, de Franco da Rocha, São Paulo, a colaboração para um melhor
entendimento sobre o graffiti no universo do hip-hop.
....................
Pixação (tag reto) no ed. São Vito (SP). Tag em vitrine de loja em Franco da Rocha (SP).
Fotos: internet; Neco.
capital paulista. De certa maneira a pixação corresponde aos tags retos, ou marcas de
identificação, que são assinaturas para a demarcação de territórios.
Esta prática surgiu no final dos anos 60 e início dos 70, com frases de protesto como
“abaixo a ditadura” e alguns trocadilhos do tipo “kh100hcháé1/2arriskdo”. Há na
pixação uma busca pelos lugares de mais difícil acesso ou inusitados, como foi o caso
do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, pixado por uma dupla paulistana em 1991.
Os altos dos edifícios também são muito cobiçados pelos pixadores que muitas vezes
os escalam por fora, apoiando-se em janelas e bordas sem qualquer equipamento de
segurança, num ato de enorme risco de morte.
Ainda nos anos 70 começaram a surgir imagens estampadas com máscaras vazadas
(stencil). Na década seguinte, o filme Beat Street (LATHAN, 1984), sobre o hip-hop
59
Grapixo (SP) e graffiti (beco do Pona, 2007).
Fotos: Neco.
Pixação em muro e sobrado comercial, feita durante o dia. Seqüência extraída do documentário
100Comédia (DJAN, 2005).
nos EUA, impulsionou a popularização do graffiti, quando aparecem Gêmeos,
Binho, Speto, Cobal e Vitché. Nos anos 90 estas manifestações urbanas ganharam
visibilidade em revistas nacionais sobre graffiti e arte de rua. Nos últimos anos houve
uma ampliação no espaço de atuação dos grafiteiros, sobretudo em São Paulo, espe-
cialmente por conta de oficinas promovidas por ONGs e pelo poder público.
Algumas galerias de arte também expõem os trabalhos realizados por grafiteiros e já
há lojas especializadas. No entanto, para os grafiteiros mais radicais, a arte do graffi-
ti só faz sentido quando está na rua, pois sua natureza é transgressiva e urbana, com
todas as complexidades e desafios impostos pelo espaço urbano.
No caso da dança de rua, ou break, sua origem se refere às atividades dos intervalos
(break) nas festas dos bairros negros de Nova York, Bronx e Brooklyn, no final dos
anos 60. Na década seguinte espalhou-se por todo o país, com sutilezas e caracterís-
ticas próprias em cada lugar (b-boying, boogalooing, popping, locking). Os diversos
grupos são conhecidos por “crews” e há diversas batalhas dançantes nos encontros.
As equipes se organizam e se desafiam durante as festas, de maneira que a competi-
ção violenta entre as gangues foi sendo substituída por batalhas “rítmicas”. No Brasil
todos estes estilos chegaram unificados, no início dos anos 80, sob a denominação
de break dance. Como o graffiti, o break é uma manifestação do espaço urbano e aí
foi dado o impulso inicial para o movimento hip-hop em São Paulo.
Nos encontros no metrô São Bento e na praça Roosevelt passaram figuras históricas
importantes e também muitos dos meninos que hoje em dia estão rimando nas
comunidades e bairros da periferia, como Rael da Rima, do grupo Pentágono, con-
forme conta em sua entrevista:
60
Campeonato Break do Pantanal organizado pela CUFA, 2008.
Foto: arquivo CUFA.
nessa época aí, 90, 89, o break era forte em todo ponto da cidade [...] aonde se reunia
todas as tribos, todo mundo, até do país se marcar, era na São Bento. Todo final de
semana, sábado e domingo [...] lá era muito forte, era bem organizado, cada crew ia
com seu agasalho, com seu nome, tinha uns racha, tá ligado? Ia todo mundo, DJ, MC.
Na real acho que todo mundo dançou já também (RAEL DA RIMA, 2007, depoimen-
to para a autora)
No entanto, apesar da dança de rua e o graffiti também integrarem o hip-hop, o
recorte deste trabalho se constitui na análise da expressão oral, ou seja, das narrativas
contadas nas músicas do hip-hop. A oralidade é uma forma importante de constru-
ção de conhecimento na cultura popular brasileira e também nas culturas indígenas
e africanas. Ao recusar o uso da escrita como padrão preferencial para a partilha de
conhecimento, há um posicionamento político do hip-hop contra os modos hege-
mônicos de produção de conhecimento, que tendencialmente ignoram “a existência
de outras explicações, não científicas da realidade” (SANTOS, 2006a: 139).
2. O HIP-HOP COMO MOVIMENTO SOCIAL
No âmbito das ciências sociais, um dos únicos espaços reservados para o hip-hop
enquanto movimento social é a sociologia da juventude. Os trabalhos nesta área
abarcam majoritariamente as chamadas “tribos urbanas” (punks, metaleiros, anarco-
punks, darks etc.), pastorais da juventude, juventudes operárias, juventudes cristãs,
movimento estudantil e assim por diante.
No entanto, o enquadramento do hip-hop nos movimentos juvenis traz limites ao
que seria a sua atuação e capacidade de transformação da sociedade, restringindo sua
influência a uma camada bastante definida do corpo social. Não obstante serem os
jovens os protagonistas do HH, as temáticas, demandas e ações do HH ultrapassam
a questão da juventude e dizem respeito a todo modelo social brasileiro baseado em
desigualdades e exclusão, sem distinção por faixa etária. Trata-se menos de uma sub-
versão do chamado “mundo adulto” e mais de uma subversão do ordenamento do
mundo contemporâneo, organizado “de cima para baixo, das classes dominantes
para as classes populares; dos adultos (ordem estabelecida) para as crianças e adoles-
centes (seres em formação)” (MAGRO, 2002: 65). Neste ordenamento está construí-
da a autoridade adulta sobre as crianças e adolescentes, no entanto o HH não trata
direta e exclusivamente desta questão, mas amplia a discussão para outras esferas da
61
É isso a principal alternativa / que tem arte, tem cultura, tem iniciativa /
hip-hop, todos eleme tos / mais que um movimento, um estilo de vida
NÚCLEO, Convite
organização social. Desta maneira, não nos limitamos nesta tese a tratar o hip-hop
como um movimento juvenil. Porém, para poder designá-lo movimento social, é per-
tinente uma breve revisão desse conceito, tendo em vista fazermos um recorte mais
justo do hip-hop nas ciências sociais.
A pesquisadora Ilse Scherer-Warren
27
tem argumentado, em textos recentes, sobre
a dificuldade de se classificar os movimentos sociais posteriores aos anos 50 devido
às mudanças políticas das últimas décadas, no que concerne às relações entre Estado,
mercado e sociedade civil. Ela tipifica, de modo geral, três níveis de organização da
sociedade civil brasileira, a partir de um conceito genérico e contemporâneo de socie-
dade civil como sendo uma das partes da organização político-social da sociedade,
juntamente com mercado e Estado (SCHERER-WARREN, 2006). Os três níveis são:
associativismo local, formas de organização inter-organizacionais e mobilizações na
esfera pública. As duas primeiras dizem respeito a formas organizacionais institucio-
nalizadas e a terceira tem a ver com protestos sociais de maior abrangência, que
incluem diversos atores e movimentos sociais, com base numa articulação ou eixo
reivindicatório central, como, por exemplo, a Marcha Nacional pela Reforma Agrária
(2005), as Paradas GLBT ou o Grito dos Excluídos, de peridiocidade anual. Como
resultado, a autora reconhece a formação da “idéia de rede de movimento social”
(Idem, 2006: 113). Este conceito é importante para entender se o HH se constitui
enquanto movimento social ou rede de movimento social. Voltaremos a essa ques-
tão.
62
Parada do orgulho GLBT, São Paulo. Grito dos Excluídos, sempre no dia 07 de setembro, desde 1995
em diversas cidades do país.
Fotos: internet
27
Professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa
Catarina e Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Movimentos Sociais da mesma universidade.
....................
Do ponto de vista da ação movimentalista, ainda segundo a autora, é necessário iden-
tificar as várias dimensões definidoras de um movimento social: identidade, adversá-
rio e projeto. Concernente ao primeiro item (identidade), o HH constrói o sujeito
étnico (negro) e de classe (pobre da periferia). O adversário é o sistema opressor que
se manifesta no racismo, na violência policial e nas desigualdades sociais. Na tercei-
ra dimensão, embora não haja o desenho de um projeto objetivo e claramente iden-
tificado, o hip-hop luta por maior justiça social e melhoria da qualidade de vida da
população pobre da periferia, majoritariamente negra, menos pela reivindicação pon-
tual de demandas e mais pela denúncia das desigualdades sociais, do racismo e da
precariedade à qual as periferias estão submetidas e pela conscientização da popula-
ção em relação aos processos históricos que dizem respeito a estas desigualdades.
Tendo em vista o não enquadramento do HH nestas três dimensões apontadas por
Scherer-Wasser, sobretudo no que diz respeito a um projeto para o movimento, seria
o caso de considerar o hip-hop muito mais como um ator político do que como um
movimento social. Se adicionarmos a estes critérios a questão da institucionalização,
reforça-se o pressuposto de que o HH não é um movimento social. Ele não é forma-
do a partir de organizações de base e outras hierarquias comumente observadas em
outros movimentos sociais (lideranças locais, estaduais e nacionais), tampouco tem
encontros periódicos no sentido de se auto-organizar, criticar e definir estratégias.
Por outro lado, o hip-hop apresenta claramente uma plataforma política, ao comba-
ter insistentemente o preconceito contra a periferia e os negros, a violência policial e
as desigualdades, tendo uma imensa capacidade de sensibilização e conscientização
de grande parcela da população jovem e pobre do país.
De acordo com o IBGE (2001), havia no país quase 35 milhões de jovens em 2000,
o que corresponde a 20% da população, com idades entre 15 e 24 anos. Estes jovens
moram, sobretudo, em áreas urbanas (82%) e concentram-se na região sudeste e nor-
deste (42% e 29% respectivamente). Ressalta-se que mais de 40% dos jovens pardos
e negros vivem em condições de alta incidência de pobreza, com renda familiar per
capita de meio salário mínimo. É importante atentar para os índices aproximadamen-
te 10% superiores de incidência de pobreza em jovens do sexo feminino, com rela-
ção aos homens pardos e negros (CASTRO e ABRAMOVAY, 2004).
Além disso, o hip-hop tem diversas aproximações temáticas com outros movimentos
sociais, especialmente MST, Movimento Sem-Teto do Centro – MSTC (em São
Paulo), sem esquecer o movimento feminista ou mais especificamente os movimen-
tos dos povos da floresta, pra lembrar dos grupos de hip-hop do norte do país.
Deve-se mencionar também algumas tentativas de institucionalização com ampla
abrangência do HH, como o Movimento Hip-Hop Organizado Brasileiro –
MHHOB. O movimento se organizou em 2003, a partir do III Fórum Social
63
Mundial em Porto Alegre, articulando diversas organizações de todo o território
nacional, com sede em Teresina (PI). O lema “nas quebradas somos hip-hop, juntos
somos MHHOB” reflete a articulação complexa do HH posta entre o espaço local e
o nacional. No entanto, ainda que esteja explícita a vontade de articulação nacional,
até 2006 eram 26 grupos de todo o país, distribuídos por 12 estados, que assinavam
como parceiros da organização. Apesar da boa distribuição por todas as regiões, o
número de organizações parceiras é bastante pequeno para o amplo cenário do HH
nacional, colocando em cheque a questão da representatividade deste movimento.
Vale notar, de qualquer maneira, que a carência de representatividade nacional do
MHHOB não tem impedido acesso a verbas de incentivo do governo federal, atra-
vés dos Pontos de Cultura
28
ou mesmo a participação nas campanhas da
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR. Neste
sentido o MHHOB acaba servindo de exemplo para outros grupos, mostrando como
a institucionalização pode permitir a realização de alguns trabalhos através do aces-
so a verbas públicas ou instituicionais. Há outras organizações de hip-hop com
abrangência por todo o país: a Nação Hip-Hop Brasil, MH2O – Movimento Hip-
Hop Organizado, Frente Brasileira de Hip-Hop, todas desempenhando função seme-
lhante ao MMHOB, como exemplo de organização e possibilidades de ação.
Em 2003, o presidente Lula convocou uma reunião com diversos membros do movi-
mento hip-hop a partir de uma solicitação de MV Bill, entre os quais estavam repre-
sentantes destes movimentos organizados e figuras importantes do cenário nacional
como Nega Gizza, Binho do Grafitti, o próprio Mv Bill, Celso Athayde, GOG, Da
Guedes, Rose MC, Fama de Rondônia, Marcelinho do Espirito Santo, Ghoez e
Nando do Maranhão. A intenção era discutir uma maneira do hip-hop ser mais valo-
rizado, respeitado e participar do processo político do país
29
. Deste encontro saí-
ram quatro propostas: (1) formação e legitimação de uma comissão (grupo de traba-
lho) que dialogasse diretamente com a Presidência da República; (2) formação de gru-
pos de desenvolvimento do hip-hop (ações sociais e culturais) nas 27 capitais brasi-
leiras; (3) liberação de espaços públicos ociosos que servissem como base para o tra-
balho dos grupos; (4) criação de um Fundo Nacional para apoio e patrocínio a pro-
jetos do hip-hop de periferia.
64
28
Os Pontos de Cultura são parte do Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura.
Selecionados por editais públicos, os Pontos de Cultura ficam responsáveis por articular e impulsio-
nar as ações que já existem nas comunidades. Sem modelo único, instalações físicas, ou programação
pré-estabelecida, o programa, bastante flexível e adaptável às necessidades locais, baseia-se na trans-
versalidade da cultura e a gestão compartilhada entre poder público e a comunidade. O papel do
Ministério da Cultura é o de agregar recursos e novas capacidades a projetos e instalações já existen-
tes e, desta maneira, amplificar as possibilidades do fazer artístico e recursos para uma ação contínua
junto às comunidades. Maiores informações em www.cultura.gov.br.
29
Depoimentos e fotos sobre este encontro em: www.realhiphop.com.br/materias/materia_hip-
hop-lula.htm#
....................
A participação deste grupo em Brasília não foi isenta de polêmicas. Diversas críticas
foram feitas no sentido de acreditar que uma proximidade com o governo estava
sendo feita com base em cooptação ao invés de cooperação. Contudo, é importante
ressaltar pelo menos dois fatos bastante significativos para a história do hip-hop
nacional: (1) a abertura de um canal de diálogo com um presidente da república,
rompendo barreiras e preconceitos históricos de ambas as partes, e, (2) a capacidade
do grupo, mesmo de origens distintas e não organicamente organizadas, que foi
capaz de apresentar demandas concretas. É provável que caso houvesse uma organi-
zação de caráter nacional unificado para o hip-hop, as polêmicas teriam sido meno-
res ou irrelevantes, mas as vozes dissonantes são partes potencializadoras no proces-
so, muito mais construtivas que destrutivas.
Embora não utilizem no nome a palavra “movimento”, diversos grupos (incluindo
grafiteiros, bboys/bgirls) de uma mesma comunidade organizados em torno do HH
têm se institucionalizado com o intuito de acessar verbas governamentais ou apoio
de ONGs, especialmente estrangeiras. Estes grupos organizados são conhecidos
como “posses”, mobilizações coletivas com vistas a refletir as ações dos envolvidos
com a cultura hip-hop. Além de organizar eventos na comunidade e oficinas de apri-
moramento artístico, as posses têm forte atuação política no sentido de conscientiza-
ção da população através de atividades educativas e palestras (YOSHINAGA, 2001:
64 e 65). As posses surgem dos diversos encontros na rua e nos bailes da periferia a
partir de uma vontade de “trocar idéia sobre música, arte e problemas da periferia, de
estudar as nossas origens – a afro-descendência –, que a escola não ensina. Também
é nossa união para lutar por espaço na sociedade, exigir locais para os nossos ensaios
e apresentações”, de acordo com relato de Marcelinho, da Posse Negroatividade
(apud MAGRO, 2002: 08).
Algumas Posses são bastante importantes e conhecidas nacional e internacionalmen-
te, como é o caso da Posse Conceitos de Rua, na zona sul de São Paulo. Do Capão
Redondo, a Conceitos de Rua já formou, apoiou e incentivou diversos grupos e artis-
tas, entre os quais o grupo Z’África Brasil, um dos mais conhecidos grupos de hip-
hop da nova geração. Em atividade desde o final dos anos 80, esta Posse tem se arti-
culado em torno de um dos elementos do HH: a conscientização, contando com o
reconhecimento internacional de associações e hiphoppers de países como
Alemanha, França, EUA, Chile, Noruega, Argentina, Colômbia, entre outros.
Alguns trabalhos têm sido publicados no país sobre a relação entre hip-hop e educa-
ção, abordando o tema da conscientização. Neste sentido, a pesquisadora Viviane
Magro aponta as posses
como organizações caracterizadas pelo comprometimento com a educação não-for-
mal, pois têm explicitamente o objetivo de reunir adolescentes da periferia para uma
ação coletiva voltada para uma conscientização política e de exercício da cidadania,
para aprendizagem de conteúdos que não são abordados com profundidade na escola
65
formal (como, por exemplo, o da questão racial e origem étnica do povo brasileiro) e
para a produção artística e cultural (MAGRO, 2002: 70).
Resulta daí que a partir de uma leitura mais alargada do conceito de movimento
social, que inclui alguns daqueles critérios apontados por Scherer-Warren (identida-
de, adversário e projeto), unindo-os às formações de rede de movimento social, pode-
se afirmar que o HH é um movimento social que aponta para um outro modelo de
organização. Esse modelo difere tanto do que se convencionou chamar de “Novos
Movimentos Sociais” quanto dos “Novíssimos Movimentos Sociais”.
O conceito de “Novos Movimentos Sociais” ganhou força a partir dos anos 70 tendo
como base não mais a divisão do trabalho ou a transformação geral do sistema. Nos
países mais ricos estão majoritariamente ligados às lutas feministas, ambientalistas,
pacifistas ou de direitos dos consumidores. Nos periféricos, são vinculados a lutas por
direitos sociais, contra desigualdades (étnicas, de gênero, sociais) ou afirmação de
identidades. Já os Novíssimos Movimentos Sociais estão vinculados, nas definições
de Boaventura de Sousa Santos, às configurações atuais do Estado que permitem
“concebê-lo como novíssimo movimento social” (1999: 38), diferenciando do que o
autor designa por Estado-Empresário, que é o Estado articulado com o mercado e
não com a comunidade.
O que se observa é que apesar de algumas tentativas de institucionalização do movi-
mento hip-hop, seja nas redes de âmbito nacional ou nas posses exclusivamente
locais, o HH é maior do que tais formatações. Não é necessário se institucionalizar
pra ser HH ou pra fazer hip-hop. O fato é que o hip-hop está espalhado pelas peri-
66
Posse Conceitos de Rua, anos 1989/1990.
Foto: arquivo Kall
ferias do Brasil e a maioria dos “periféricos” se reconhece como HH: “eu sou o hip-
hop”, “o hip-hop está em mim” ou “o hip-hop é a minha vida”, sendo cada voz um
agente multiplicador da “consciência”, do jeito que pode, da maneira que dá, sempre
preocupado com a “mensagem”. Ou como dizem os versos da banda Núcleo: “mais
que um movimento, um estilo de vida” (NÚCLEO, Convite).
Os manos e as minas, como são referidos os integrantes do hip-hop, têm uma iden-
tidade e um adversário, formando uma das redes sociais mais embrenhadas do país.
Articulados com outros movimentos sociais, o HH está silenciosamente promoven-
do alterações significativas para estas populações no sentido de conscientização do
processo histórico de exclusão e do fortalecimento da auto-estima da população
pobre das periferias com vistas a incentivar a luta pelo reconhecimento de sua cultu-
ra e pelo direito à cidade e à cidadania. De acordo com o MC Kall, da Posse
Conceito de Rua (SP): “há 20 anos o hip-hop tem mudado a vida das pessoas [...] É
uma ferramenta de expressão, de questionar a vida e olhar o mundo de uma forma
diferente”, acrescentando que com o HH “encontrou um caminho de vida [...] Não
conheci nada, nenhuma forma de arte que se transformasse tão fácil em uma lingua-
gem comum” (KALL apud AGENCIA REPORTER SOCIAL, 2005b).
Desta maneira, ainda que o hip-hop não atenda completamente às definições de
movimento social, especialmente no que diz respeito a um projeto claro de ação
segundo os critérios de Sherer-Warren, e excluindo a possibilidade de enquadrá-lo
como movimento juvenil, optamos por tipificá-lo como movimento social (e tam-
bém político-cultural) nesta tese, ampliando o conceito usualmente empregado pelas
ciências sociais. São pessoas e grupos com uma identidade comum, unidas por laços
de afeto e ideais, com possibilidades concretas de transformação social, nomeada-
mente através da ressignificação simbólica das periferias e de seus habitantes, Ou, nas
palavras de GOG: “o que mais nos interessa são as mudanças estruturais que estamos
fazendo na comunidade, a periferia jamais será a mesma” (2007). Sob este prisma, o
hip-hop é um novo ator na política brasileira, que não pode ser desconsiderado, pois,
“tendo abolido a unidade utópica que sustentava a ‘velha’ política dos movimentos
sociais, esses novos atores, organizados em redes descentralizadas e ligados à produ-
ção e ao consumo cultural, assumem uma política de identidade fluida” (HERS-
CHMANN, 2005: 18).
Esta rede liga a juventude em torno do hip-hop nos espaços intra-urbanos e também
faz as conexões entre as diversas periferias do país, de modo a consolidar uma ampla
troca de experiências do que os une e os diferencia. Assim, o hip-hop configura uma
nova maneira de ser movimento social, articulado em rede, por diversos territórios,
não muito distante das definições da sociologia, mas acrescentando características
próprias que merecem, sem dúvida, um olhar mais atento dos cientistas sociais.
67
2.1.
AA RReellaaççããoo ccoomm oo MMoovviimmeennttoo NNeeggrroo
30
Embora os temas preferencialmente tratados pelo hip-hop não se detenham nas ques-
tões dos negros, esta é uma temática bastante relevante, seja em termos da constru-
ção identitária e do aumento da auto-estima do negro, seja da denúncia do racismo
e do difícil cotidiano da grande massa de população negra concentrada na periferia
das grandes cidades, ou no que se refere à reescrita da história do país, com grande
presença dos heróis negros.
Ambos os movimentos sociais (negro e hip-hop) têm, no entanto, trajetória própria
e autonomia em suas demandas, ainda que coincidentes. Contudo, é possível afirmar
que o HH é um meio de comunicação e uma vertente cultural importante para o
Movimento Negro (MN), assim como a capoeira, as rodas de samba, as religiões afro-
descendentes etc.
Em letras como No Brooklin, de Sabotage, Brasil com P, de GOG ou Traficando
Informação; de MV Bill, tem-se uma amostra do que são estas denúncias do racismo
policial ou judiciário:
se liga juca, favela pede paz, lazer, cultura / inteligência não muvuca /
rap é compromisso esse é meu hino que me mantém vivo / então que seja breve e con-
sidere isso / branco e preto pobre não dão sorte contra o meritíssimo / então vai arris-
car se errar, tá perdido (SABOTAGE, No Brooklin)
pesquisa publicada prova / preferencialmente preto / pobre prostituta pra polícia pren-
der / pare pense, por quê? (GOG, Brasil com P)
o sistema de racismo é muito eficaz / pra eles um preto a menos é melhor que um
preto a mais (MV BILL, Traficando Informação)
Na letra de A Cor que Falta na Bandeira Brasileira, de Z’África Brasil, há uma releitura
da história do país, incluindo como protagonista os negros e os índios, ao invés do
usual papel subalterno e apaziguado como escravos e serviçais:
e ali estava ela, hasteada, para que todos pudessem ver as suas cores radiantes / simbo-
lizando ordem e progresso / e aos redores grandes quilombos periféricos / um lugar de
guerreiros cujo olhar vermelho / é pela liberdade entre terras e mares [...] como o ver-
melho de xangô a cor do amor / que pulsa no coração com passos de ódio e paixão /
esparramando sangue ao chão / na eterna contradição de uma nação / verde amarelo
azul branca e vermelha / são as cores que compõem a bandeira brasileira / só que o
68
30
Agradeço neste item o debate intenso com Ana Elisa de Carli dos Santos, cuja pesquisa de dou-
torado versa sobre ações afirmativas, relações raciais e mídia no Brasil.
....................
vermelho não quiseram botar / é cor de sangue é cor de morte é cor de farsa / é todo
o sangue derramado nesses 500 anos / é toda a história maquiavélica tramada nos nos-
sos mocambos [...] meus antepassados indígenas celebravam os deuses / hoje me lem-
bro que os índios são poucos / e só aparecem às vezes / quando são queimados vivos
em praça pública [...] isso é para quem sabe para quem tem raiz / porque sou índio
porque sou negro / por isso sou feliz / por ter esse sangue correndo nas veias / por ter
nascido de três raças formada brasileira / habitada por índios construída por negros
[...] falta o vermelho derramado por eles / o vermelho do sangue (Z’ÁFRICA BRA-
SIL, A Cor que Falta na Bandeira Brasileira)
Sob esta mesma ótica do negro em papel ativo e fundamental na construção do país,
em outra música o grupo questiona: “o que seria de tudo isto aqui se não fosse o
negro para construir?” (Z’ÁFRICA BRASIL, A Luta).
Vocábulos como quilombo, Zumbi, mocambos, senzala, orixás e deuses afros, fazem
parte do que Gaspar, MC do grupo, designa por quilombologia. O músico esclarece
o termo nos seus versos Periafricania: “ideologia quilombola ferve da sul até o nor-
deste”, unindo o sufixo quilombo, local de refúgio de escravos, ao prefixo logia, indi-
cativo de ciência, arte, tratado.
O grupo maranhense Clã Nordestino também usou e desenvolveu o termo, com a
participação de Gaspar em uma das faixas do CD A Peste Negra. Em todos os casos,
a ideologia quilombola ou quilombologia, diz respeito às atitudes de resistência con-
tra a opressão, sofrida majoritariamente pelo povo negro, mas sem excluir do termo
os nordestinos e pobres das grandes periferias brasileiras.
O hip-hop vem, desta maneira, unir forças às denúncias do MN no que concerne ao
“mito da democracia racial”, a partir de Gilberto Freyre, em que o autor afirmava, nos
anos 30, que a miscigenação entre brancos, índios e negros resultou num convívio
harmonioso entre estes povos, abafando as relações de poder e opressão existentes no
país. Além disso, este mito privilegia o que se denomina “branqueamento” da raça,
num direcionamento claro de valores positivos do eurocentrismo: a brancura e a
valorização das raízes da cultura européia.
69
Yemanjá; Omulu; Nana; Xangô.
Fotos: Xilogravuras de Do Val, 2006
(1,2 e 3), internet (4)
De fato, nos tempos de Freyre, quando vigoravam com muita força as teorias cientí-
ficas acerca da constituição das raças, desenvolvidas no final do século XIX, seu tra-
balho foi de imensa coragem. Naquele contexto, defender a harmonia das relações
raciais no Brasil significava resistir à cientifização da discussão imposta por cientistas
naturais e biólogos.
No ensaio sobre a Desigualdade sobre as Raças Humanas (1855), o Conde de Gobineau,
pensador francês, sustentava teorias acerca de racismo e eugenia, defendendo a supe-
rioridade da raça ariana face às demais. Nesta mesma direção, em 1899, foi publica-
do, na Alemanha, Os Fundamentos do Século XIX, no qual o inglês Houston
Chamberlain identificava a raça ariana com o povo alemão. Estas obras foram ampla-
mente incorporadas pelo programa político do regime nazista que vigorou na
Alemanha de 1933 a 1945. No final do século XIX também foi constituída a socio-
logia como ciência, pautada especialmente para explicar o mundo social a partir do
próprio contexto social e da cultura e não a partir de raça ou clima, conforme expli-
ca Antonio Guimarães (2003: 95) professor e pesquisador em Sociologia das Relações
Raciais da Universidade de São Paulo. Ainda que a sociologia tenha deslocado os
estudos raciais para a perspectiva da cultura material ou simbólica, seu debate vai
sofrer uma série de transformações ao longo do século XX.
O racismo doutrinário com base em teorias biológicas foi definitivamente sepultado
após a experiência trágica da Segunda Guerra Mundial (1939-45) na qual judeus, ciga-
nos e deficientes físicos foram assassinados em prol da melhoria da “raça ariana”.
Mesmo para as áreas científicas da biologia, nesta altura, já estava clara a impossibi-
lidade de dividir as populações humanas em termos raciais. De acordo com
Guimarães, foi constatado que diferenças genéticas internas a um mesmo grupo se
sobrepunham às diferenças entre grupos distintos. Por exemplo, africanos e europeus
eram geneticamente mais próximos do que a comparação interna entre indivíduos de
populações européias ou africanas. Desde então, passou a ser consensual que “as
raças são, cientificamente, uma construção social e devem ser estudadas por um ramo
próprio da sociologia ou das ciências sociais, que trata das identidades sociais.
Estamos, assim, no campo da cultura, e da cultura simbólica. Podemos dizer que as
‘raças’ são efeitos de discurso” (ibidem, 2003: 96, aspas no original).
Uma vez efeito de discurso, cada momento histórico apresentará um enunciado pre-
dominante acerca desta questão. Gilberto Freyre, juntamente com os artistas da
Semana de Arte Moderna de 1922
31
, tentou incorporar o negro e o índio na cria-
70
31
A Semana de Arte Moderna aconteceu em São Paulo em fevereiro de 1922. Foi marcada por uma
ruptura com o passado e ideais estéticos do século XIX. Seus principais desdobramentos foram o
Movimento Pau-Brasil, Movimento Verde-Amarelo e Movimento Antropofágico. Havia uma clara
busca de identidade nacional, sem abandonar as influências externas, com o procedimento que os
antropofagistas conceberam como deglutir a cultura do “outro externo”, especificamente a cultura
americana e européia. Não se deve negar a cultura estrangeira, mas ela não deve ser imitada.
....................
ção dos símbolos nacionais da nação emergente dos anos 20 e 30. Todavia, passados
mais de meio século, o movimento negro ainda continuava a lutar para ser integra-
do nesta nação, não apenas simbolicamente.
Em 1965, Florestan Fernandes levantou sérias dúvidas sobre o “mito da democracia
racial” implantado a partir da obra freyriana: “democracia racial seria apenas um dis-
curso de dominação política [...] usado apenas para desmobilizar a comunidade
negra; como um discurso de dominação, seria puramente simbólico, sua outra face
seria justamente o preconceito racial e a discriminação sistemática dos negros” (ibi-
dem, 2003: 102). A democracia racial seria, portanto, sob este aspecto, mais uma
idealização do que uma realidade no país. Os trabalhos de Fernandes terão influên-
cia basilar no Movimento Negro Unificado fundado nos finais dos anos 70. É neste
período de emergência de diversos atores políticos importantes no país, acenando em
direção ao fim da ditadura militar (1964-84), que é reintroduzida a idéia de raça e da
origem africana dos negros no Brasil. Neste contexto, há um trabalho profundo de
desconstrução e ressignificação do que é ser negro, por parte do MN: “um negro,
para ser cidadão, precisa, antes de tudo, reinventar sua raça” (ibidem, 2003: 103).
Vale lembrar a influência, neste debate, das lutas por direitos civis pelos movimentos
negros estadunidenses em vigor nos anos 60 e 70, mesmo período da organização dos
Panteras Negras e a das mortes de diversas lideranças negras, quando surge o hip-hop
nos subúrbios novaiorquinos, sob o lema “Black Power”, cuja tradução foi incorpo-
rada pelo HH nacional como “4P: Poder Para o Povo Preto”. Durante a ditadura mili-
tar, os ativistas que tentaram trazer à tona o debate sobre discriminação racial no país
foram acusados de imitar a luta pelos direitos civis dos negros estadunidenses, uma
vez que o “mito da democracia racial” foi um dos fios condutores da propaganda do
regime ditatorial no Brasil.
Por sua vez, o Movimento Negro, ao contrário do HH, tem uma preocupação estra-
tégica de inserção nas estruturas sistêmicas, para mudar o sistema a seu favor a partir
de dentro. Neste sentido, apostou e tem apostado na formação de intelectuais negros
e na conquista de postos estratégicos nos diversos níveis governamentais (municipal,
estadual e federal). Com esta estratégia e com a forte articulação nacional do movi-
mento (ainda que haja contradições e discordâncias internas), vitórias importantes
foram conquistadas:
• 1988 – a constituição tem um caráter amplamente anti-racista com a crimi-
nalização do racismo no país
32
; no ano seguinte é promulgada a Lei Carlos
Alberto de Oliveira – CAO, que considera qualquer prática racista como crime
71
32
Reza o artigo 5
o
, inciso XLII da Constituição Federal: “a prática do racismo constitui crime ina-
fiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
....................
inafiançável e sujeito a reclusão (Lei 7.716/89); é criada a Fundação Cultural
Palmares vinculada ao Ministério da Cultura com o objetivo de preservação
das manifestações afro-brasileiras
33
;
• 1995 – reconhecimento oficial da existência das desigualdades sociais come-
tidas a negros e pardos pelo Estado brasileiro; e instituição do dia 20 de
novembro como a data nacional comemorativa do tricentenário da morte de
Zumbi dos Palmares, signo de luta e resistência contra a opressão histórica do
povo negro;
• 2001 – III Conferência Mundial Contra Discriminações Raciais, Xenofobia,
Racismo e Discriminações Correlatas em Durban, na África do Sul, na qual o
Brasil enviou uma comissão oficial e acatou o documento produzido na con-
ferência que instituía as ações afirmativas como política de Estado;
• 2003 – Promulgação da Lei 10.639 que institui o Ensino de História e Cultura
afro-brasileira e africana nas escolas.
Atualmente, a principal reivindicação do MN é que seja decretado feriado nacional
no dia 20 de novembro, dia de Zumbi, em reconhecimento a um marco da história
dos negros deste país, em contraposição às demais datas históricas marcadas com
feriado. Alguns municípios paulistas como São Paulo, Campinas, Hortolândia e
Guarulhos, como também em outros Estados, já decretaram feriado municipal.
Merece destaque o episódio polêmico no município de Guarulhos / SP, no qual o
Centro das Indústrias do Estado de São Paulo – CIESP entrou com um pedido na
justiça contra o feriado recém-decretado
34
. Este fato ilustra bem a dificuldade da
luta pelo reconhecimento da história do negro, sempre camuflada sob outros argu-
mentos, como os prejuízos econômicos trazidos ao município pelo encerramento
das atividades no dia de feriado.
Fazendo uma comparação da cronologia das datas marcantes para o MN, pode-se
observar que os anos 90 foram significativos também para uma maior politização do
hip-hop. Neste período surgiram trabalhos como Holocausto Urbano (1990), primeiro
álbum do grupo paulista Racionais MCs, com letras marcadas pela denúncia contra
o racismo e a miséria na periferia:
72
33
A Fundação Cultural Palmares foi instituída pela Lei n. 7.668/88, tendo o seu Estatuto aprova-
do pelo Decreto n. 418/92, com a finalidade de “promover a preservação dos valores culturais, sociais
e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira” (artigo 1
o
).
34
Noticiado pela Associação Cultural e Empresarial de Guarulhos em www.aceguarulhos.com.br/
content.php?m=20070831150048&m1=ciesp e por diversos portais de noticias locais como Olhão e
Guarulhosweb (www.olhao.com.br/geral_20112007191317.shtml e http://guarulhosweb.locaweb.
com.br/detalhe.asp?nrnotici=11387&cdcanal=cidad01)
....................
a sarjeta é um lar não muito confortável / o cheiro é ruim, insuportável / viaduto é o
reduto nas noites de frio / onde muitos dormem, e outros morrem, ouviu? / são cha-
mados de indigentes pela sociedade / a maioria negros, já não é segredo, nem novida-
de / vivem como ratos jogados / homens, mulheres, crianças, / vítimas de uma ingra-
ta herança / a esperança é a primeira que morre / sobrevive a cada dia a certeza da eter-
na miséria (RACIONAIS MCs, Beco Sem Saída)
Em 1992, GOG, do Distrito Federal, lança também seu primeiro álbum, Peso Pesado;
esse é um entre outros marcos importantes no cenário hip-hop nacional que despon-
tam nesse período com trabalhos contundentes de crítica social.
Em 2003, com a promulgação da lei 10.639, as letras do hip-hop começam a ser reco-
nhecidamente fontes importantes para elaboração de material didático de ensino da
história da África e afro-brasileira. O jornal Brasil de Fato publicou, em finais de 2006,
uma matéria na qual eram comparados os rappers com a figura dos griots, soldados
que seguiam à frente dos exércitos africanos, cantando e tocando. O MC Gaspar, do
Z’África Brasil, citado pela reportagem, também resgata em suas letras o papel impor-
tante dos griots e de figuras fundamentais na história recente da descolonização afri-
cana, como Amílcar Cabral. A reportagem termina numa comparação interessante
entre HH e cultura africana: “como nas culturas tradicionais africanas, no hip-hop,
a palavra é de importância fundamental, a imagem gráfica constitui o seu alfabeto
visual (na África, é a estatuária) e música e dança caminham junto com o conheci-
mento, vivido corporalmente” (BRASIL DE FATO, 2006).
73
Racionais MCs, Holocausto Urbano, 1990. GOG, Peso Pesado, 1992.
• Hip-Hop, Movimento Negro e Outros Movimentos Sociais
Finalmente, a juventude é outro ponto de união entre o hip-hop e o movimento
negro. Embora nem um nem outro seja um movimento juvenil, “a pátria do hip-hop
é a juventude”, como diz o sociólogo Gey Espinheira (apud AQUINO e MACHA-
DO, 2006), em sua maioria a juventude negra das periferias das grandes cidades. Estes
jovens são constantemente vítimas de discriminação social e racial, vistos pela mídia
como delinqüentes, violentos, desinformados e desqualificados profissionalmente,
contrapostos a um modelo de “adolescência formal”. A mídia tem um forte papel na
construção deste imaginário ao retratar as periferias como o lugar de “perigo”, tema
tratado adiante. O hip-hop, feito em grande parte por esta juventude, coloca o jovem
como protagonista e sujeito de sua própria história, deixando de ser reduzido a um
“não-ser”, aquele que está na passagem entre a infância e a idade adulta. Dando voz
a estes sujeitos e transformando o espaço de lazer também em espaço de luta e rei-
vindicações, o hip-hop desenha um papel fundamental na articulação e na atuação
no campo social, aproximando estes jovens de outros movimentos sociais, como o
movimento negro, mas também do movimento de moradia, sem-terra, mulheres etc.
Há uma cena no documentário Zumbi Somos Nós (FRENTE 3 DE FEVEREIRO,
2007), na qual o MC Gaspar, do Z’África Brasil, declama seu poema Periafricania
enquanto são mostradas imagens de uma das tentativas de reintegração de posse da
Ocupação Prestes Maia, em São Paulo
35
. O documentário é um manifesto do
coletivo de artistas Frente 3 de Fevereiro que propõe uma reflexão sobre as relações
raciais no Brasil, a partir de trabalhos artístico-performáticos desenvolvidos pelo
grupo após a morte do dentista negro Flávio Sant’ana, pela polícia, na frente de sua
casa, em 2004
36
.
Nas imagens desta cena específica vê-se a tropa de choque alinhada com escudos,
cacetetes e armamentos, usando estratégias de intimidação psicológica (barulho da
marcha e dos cacetetes nos escudos), enquanto a população, em sua maioria mulhe-
res e crianças, é acuada. Cerca de quinze pessoas são encurraladas na parede do pré-
dio pelo batalhão militar, sem saída e sem quaisquer armamentos contra os policiais,
nem mesmo paus ou pedras. No som de fundo ouve-se os versos de Gaspar, cujas pri-
meiras linhas clamam:
É / não tenha medo de dizer que tu é preto / não tenha espanto de dizer que tu é bran-
co / não seja omisso em dizer que tu é índio / e nos tambores corre sangue nordesti-
no / antigamente quilombo, hoje periferia (GASPAR apud FRENTE 3 FEVEREIRO,
2007)
74
35
este trecho do filme está disponível no Anexo.
36
Os diversos trabalhos do grupo podem ser conferidos em www.frente3defevereiro.com.br.
....................
Em setembro de 2007, GOG, de Brasília e o grupo Periafricania, de São Paulo, se
apresentaram na assembléia do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto – MTST, em
São Paulo. O acampamento Chico Mendes, em Taboão da Serra e a ocupação João
Cândido, em Itapecirica da Serra, ambos do MTST, costumam receber grupos de hip-
hop em seus eventos culturais, para apresentações e conversas com a comunida-
de
37
.
O MST vem se aproximando desde 2005 do hip-hop, quando lideranças de ambos
os lados sentaram pela primeira vez, em setembro daquele ano, para se conhecerem
melhor. Estavam presentes Gaspar, GOG, Ferrez entre outros
38
. Alguns meses
depois os movimentos voltaram a se encontrar. Estes encontros permitiram que
ambos se conhecessem fora dos filtros tendenciosos da mídia: “o problema é que a
mediação entre os dois é feita pela grande imprensa. Muitos sem-terra ainda acredi-
tam que a favela é perigosa e cheia de bandidos. E muita gente da periferia tem medo
do MST, porque acham que vão invadir suas propriedades” (MAURO apud
AGÊNCIA REPÓRTER SOCIAL, 2005a).
75
37
A formação política e jurídica, educação e cultura estão na base do MTST, de modo que datas
comemorativas são amplamente festejadas com apresentações culturais e sarais. Além disso, rotinei-
ramente há a realização de debates, apresentação de peças de teatro e projeções de filmes e documen-
tários. Grupos de hip-hop e MCs usualmente têm participado destes eventos, tanto com concertos
musicais quanto debates e conversas com o público. Outras informações sobre os acampamentos, as
reivindicações do movimento e os eventos culturais estão disponíveis em www.mtst.info.
38
Este encontro foi divulgado no blog do escritor Ferrez (http://ferrez.blogspot.com/2005/09/
hip-hop-e-mst.html) e também na Agência Repórter Social (www.reportersocial.com.br/
noticias.asp?id=1039 &ed=negros)
....................
Postal de divulgação do documentário com a placa em memória a Flavio Sant’Ana, realizada em ato
simbólico dois meses após a sua morte, pelo coletivo de artistas Frente 3 de Fevereiro.
Foto: Frente 3 de Fevereiro.
Na 2
a
Marcha da Periferia, em novembro de 2007, no Maranhão, pôde-se ler no
folheto: “emprego, educação, reforma agrária” e “18
o
Festival Hip-Hop: Política e
Negritude”, ilustrado com a imagem de Zumbi dos Palmares. Se a ligação com o
Movimento Negro é imediata pela própria chamada e figura do folheto, a reforma
agrária não é deixada de lado, tema bastante caro ao MST e outros movimentos da
luta no campo no país.
O que se percebe, portanto, é uma proximidade cada vez maior entre os movimen-
tos sociais de resistência. É certo que há uma predominância de coincidência temá-
tica entre movimento negro e movimento hip-hop, no entanto as reivindicações dos
demais movimentos também vêm somar forças na luta, que é, no fim das contas, por
uma sociedade menos desigual, na qual todo ser humano seja respeitado em suas
diferenças.
Neste sentido, o HH forma, em conjunto com estes outros movimentos, uma ampla
rede que une diversas lutas e lugares onde estão as práticas cotidianas da resistência,
tanto nas periferias das grandes cidades como nas periferias do sistema econômico e
social. À semelhança das mônadas abertas de Gabriel Tarde (2003), movimentos
sociais como hip-hop, movimento negro, movimento de moradia, movimento dos
sem-teto, movimento das rádios comunitárias vão se enriquecendo mutuamente atra-
vés das suas diferenças e semelhanças. São heterogeneidades em relações de coopera-
ção e não de dominação, aumentando conjuntamente, desta forma, suas potências
de criação e ação no mundo.
76
Panfleto de divulgação da 2ª Marcha da Periferia, em São Luís do Maranhão, 2007.
Foto: internet.
3. O LUGAR DO HIP-HOP
A segregação espacial por classes sociais é estruturadora das metrópoles brasileiras,
conforme demonstra Flavio Villaça em seu trabalho o Espaço Intra-Urbano no Brasil.
Esta segregação é entendica como o processo no qual “diferentes classes ou camadas
sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes regiões gerais ou conjun-
tos de bairros da metrópole” (VILLAÇA, 2001: 142), sem impedir a convivência com
outras classes no mesmo espaço. O autor nota que embora não haja a presença exclu-
siva da classe mais rica em nenhuma área das metrópoles brasileiras, há, por outro
lado, a concentração exclusiva de população de baixa renda em grandes regiões urba-
nas. As configurações urbanas no Brasil são assentes em um forte processo de segre-
gação espacial. Trata-se de um processo dialético, no qual a segregação voluntária de
uns (dos mais ricos) provoca a segregação involuntária de outros (dos mais pobres),
seguindo a “mesma dialética do escravo e do senhor” (ibidem: 147), constituinte da
formação social do país.
77
Segragação involuntária versus segregação voluntária, bairro do Morumbi, São Paulo.
Foto: Tuca Vieira (Folha Imagem)
Rael tentou se concentrar em Deus, mas pensou no que seria o céu... teria periferia lá?
E Deus? Seria da mansão dos patrões ou viveria na senzala?
Ferrez em
Capão Pecado
A partir do estudo de diversas metrópoles brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo
Horizonte, Salvador e Recife), Villaça conclui que “a segregação é um processo neces-
sário à dominação social, econômica e política por meio do espaço” (ibidem: 150).
Foucault (1988) ao analisar espaços de confinamento como prisões, hospitais e mani-
cômios, afirma que para além das qualidades de distância, o espaço é uma categoria
política e sua demarcação, prática de poder. No caso da análise de Villaça, a apropria-
ção de vantagens de localizações do espaço urbano, através da segregação, é o meio
pelo qual a classe dominante detém o controle espacial e exerce sua dominação. Os
mais ricos comandam a apropriação “diferenciada dos frutos, das vantagens e dos
recursos do espaço urbano” (VILLAÇA, 2001: 328), produzidos social e coletivamen-
te.
O processo de segregação espacial tem raízes históricas no Brasil, com marco legal na
promulgação da Lei de Terras de 1850
39
,
instrumento que excluiu do acesso à
terra, através do corte econômico de suas exigências, os escravos (alforriados e, mais
tarde, libertos) e os imigrantes. Afastados da possibilidade da compra da terra e do
mercado imobiliário formal, uma grande massa populacional é levada involuntaria-
mente a ocupar parcelas e edificações precárias do espaço urbano. As insistentes legis-
lações proibindo cortiços ou moradias precárias e ocupação de áreas de risco, desde
o final do século XIX e ao longo de todo século XX, sem uma política de acesso à
terra e à moradia, apenas tornaram irregulares ou ilegais boa parte da população urba-
na no país, sem de fato apontarem uma solução para a questão. Neste contexto, a ile-
galidade acaba por ser funcional, da qual dependem relações políticas arcaicas, tro-
cas de favores e clientelismos, com vistas à especulação imobiliária e à aplicação arbi-
trária da lei, conforme interesses de momento (MARICATO, 2000: 123). A “exclu-
são urbanística” (ibidem:122) é, portanto, estruturante do processo brasileiro de urba-
nização, acirrado após os anos de 1950, período marcado pelo início da industriali-
zação e forte migração campo-cidade, incentivada, mais tarde, pelo governo militar.
Embora a urbanização do país tenha se dado, sobretudo, nos últimos quarenta anos,
já nos finais do século XIX, com a abolição da escravatura e a chegada dos imigran-
tes europeus, as cidades brasileiras tiveram seu primeiro impacto de crescimento. Mas
foi na década de 70 que o país se urbanizou e mais de 50% da sua população passou
a viver nas cidades. Ainda que haja especificidades locais, quase todas as grandes capi-
tais do país passaram por processos de crescimento acelerado naquele período.
Deixando de lado uma análise mais detalhada destes fluxos migratórios e suas cau-
sas, detemo-nos em seus efeitos. Os terrenos urbanos atendidos por infra-estrutura
78
39
A Lei de Terras (lei n°601/1850) determinou que a apropriação da terra se daria apenas pela com-
pra, venda ou autorização do rei, eliminando a possibilidade da posse, usada no período colonial.
Com isso, as terras não ocupadas passam a ser propriedades do Estado e as já ocupadas são regulari-
zadas como propriedade privada.
....................
são demasiado caros para uma população migrante basicamente devido à escassez
econômica de suas localidades de origem. Em suma, é uma população pobre, quan-
do não, miserável, que chega para trabalhar nas grandes cidades.
Suas alternativas de acomodação são quase que exclusivamente os cortiços em áreas
mais centrais ou moradias precárias nas zonas mais afastadas dos centros, cujas pri-
meiras ocupações nas periferias têm um aspecto indistintamente provisório e tempo-
rário. Em São Paulo, a maior parte desta população é de nordestinos, que por sua vez
são majoritariamente, porém não exclusivamente, afro-descendentes. Na Região
Metropolitana de São Paulo – RMSPsão quase 20 milhões de habitantes em seus
39 municípios, isto é, um a cada dez brasileiros mora na RMSP. É a quinta maior
área urbana do mundo. Só o município de São Paulo concentra metade da popula-
ção da RMSP com mais de um milhão de seus habitantes em favelas (MARQUES,
TORRES e SARAIVA 2003: 13), que são áreas de situação fundiária irregular com
habitações bastante precárias, comumente de madeira, e outras tantas áreas nos bair-
ros de periferia, nas quais as famílias são donas dos terrenos sobre os quais constroem
suas casas em regime de auto-construção, em sua maioria de alvenaria.
Quando os Racionais MCs cantam “às vezes eu acho / que todo preto como eu / só
quer um terreno no mato / só seu / sem luxo, descalço, nadar num riacho / sem
fome, pegando as fruta no cacho / quero também / mas em São Paulo / Deus é uma
nota de 100” (Vida Loka – Parte 2), estão manifestando a vontade dos mais pobres
ao acesso, historicamente negado, à terra, à moradia, à cidade. Está subtendida, nes-
tes versos, a consciência de que se trata de um desejo simples e legítimo (“só quer”),
inacessível por conta da estrutura de dominação do poder econômico (“Deus é uma
nota de 100”). No mapa da exclusão/inclusão, desenvolvido pelo CEDEST – Centro
de Estudos das Desigualdades Socioterritoriais, da PUCSP, fica evidente a diferença
da qualidade de vida entre áreas mais centrais e aquelas mais periféricas. Outro dado
significativo, no que diz respeito a São Paulo, é o fato de a maior parte dos afro-des-
cendentes morarem nestas regiões, onde, também, está o maior número de mortes
pela polícia.
Em termos de localização, o processo de afastamento das vantagens locacionais urba-
nas expulsou os mais pobres para as regiões periféricas aos centros urbanos, não
somente devido à melhor infra-estrutura nas áreas centrais, mas, sobretudo, confor-
me demonstra Villaça, pelas facilidades de deslocamentos. Neste sentido, ainda que
as camadas mais ricas ocupem áreas periféricas (como Alphaville, em São Paulo, por
exemplo), elas levam consigo “os empregos e os serviços, os shopping centers, os apa-
relhos de Estado e os centros empresariais” e, “otimizam seus tempos gastos em des-
locamento” (VILLAÇA, 2001: 343). Para o autor, o padrão de segregação centro ver-
sus periferia em termos de distância, embora verdadeiro, não é suficiente para expli-
car a exclusão urbana. Há que se considerar uma disputa por localizações, cujo valor
é “dado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la, ou seja, para
79
produzir a cidade inteira na qual a localização é parte” (ibidem: 334). Isto significa
que “a produção e apropriação do espaço urbano não só reflete as desigualdades e as
contradições sociais, como também as reafirma e reproduz” (MARICATO, 2001:
170).
Cabem aos mais pobres, portanto, nas cidades brasileiras, as áreas fora do padrão
legal, irregulares, assentes em zonas de risco ambiental, longínquas, de difícil acessi-
bilidade, carentes de infra-estrutura e equipamentos, e com parca presença do Estado.
A dimensão do que é viver ou sobreviver em lugares precários é contundente nas nar-
rativas do hip-hop, como é o caso da música Gênesis, dos Racionais MCs, cujos ver-
sos são declamados sobre um fundo de latidos de cães e sirenes de polícia: “Deus fez
o mar, as árvores, as crianças, o amor / o homem me deu a favela, o crack, a traira-
gem, as arma, as bebida, as puta / eu? Eu tenho uma Bíblia véia, uma pistola auto-
mática e um sentimento de revolta / eu tô tentando sobreviver no inferno” (RACIO-
NAIS MCs, Gênesis). O livro do Gênesis, referenciado pelo título da música, é o pri-
meiro livro da Bíblia, aquele que anuncia a criação divina e os seus desígnios para o
tempo dos homens: “no princípio criou Deus os céus e a terra” (Gênesis: 1,1). Para o
grupo paulista, o Gênesis é a criação do inferno, isto é, a periferia precária criada pelo
homem, na qual é necessário tentar sobreviver a cada dia. É neste ambiente de con-
flitos e batalhas cotidianas pela sobrevivência que vem sendo produzida boa parte do
hip-hop nacional, evidenciando a luta de classes usualmente ocultada pelos instru-
mentos políticos e ideológicos que perpetuam a dominação do espaço urbano, entre
os quais a mídia hegemônica, como veremos na segunda parte desta tese.
80
(1) inclusão/exclusão, 2002; (2) localização dos afro-descendentes (negros e pardos), 2000; (3) mortos pela polícia, 2003.
Fontes: Centro de Estudos das Desigualdades Socioterritoriais – CEDEST/PUCSP (1); Frente 3 de Fevereiro (2 e 3).
3.1.
MMoovviimmeennttooss SSoocciiaaiiss ee SSeeggrreeggaaççããoo EEssppaacciiaall
As políticas públicas habitacionais dos anos 70 e 80, quando o país se urbanizou,
tinham por base a construção de grandes conjuntos habitacionais com vistas a reu-
nir os pobres nas áreas afastadas dos centros consolidados. Todavia, nas últimas déca-
das, duas importantes mudanças paradigmáticas foram travadas pelos profissionais
do espaço urbano: ocupação dos vazios intra-urbanos e urbanização dos bairros peri-
féricos, dotando-os das mesmas vantagens locacionais (infra-estrutura, equipamentos,
acessibilidade) das partes habitadas pelas camadas mais ricas
40
. Para esta viragem
paradigmática, vários atores foram importantes, entre eles os movimentos sociais de
moradia. Entender, portanto, as periferias contemporâneas, passa por compreender
os movimentos de moradia e a luta pela reforma urbana no país.
Nos anos 80, o Movimento Nacional de Reforma Urbana – MNRU, com a necessi-
dade de garantia do direito à cidade, conseguiu articular uma grande discussão em
torno do tema, resultando na proposta da Emenda Popular n. 63 de 1987, originária
do capítulo da Política Urbana da Constituição Federal de 1988. Entende-se por
direito à cidade o acesso garantido democraticamente a um espaço social que ofere-
ça condições e oportunidades eqüitativas aos seus habitantes de viverem com digni-
dade e apropriarem-se da riqueza urbana, tanto no aspecto econômico, como tam-
bém na produção do conhecimento e da cultura. Em que pesem as alterações naque-
le projeto de lei originário (PL 775/83) articulado pelo MNRU, foram contempladas
vitórias importantes como o parcelamento e edificação compulsórios e o Imposto
Predial e Territorial Urbano – IPTU progressivo
41
.
Ambos são instrumentos de indução ao desenvolvimento urbano com a finalidade
de promover uma reforma urbana nos municípios, estruturada numa política fundiá-
ria que garanta a função social da cidade e da propriedade. Estes instrumentos são
aplicados a áreas já dotadas de infra-estrutura e equipamentos urbanos, definidas no
plano diretor de cada município, evitando pressão e expansão horizontal do espaço
urbano em direção a áreas não urbanizadas. O artigo 182 da Constituição faculta ao
poder público municipal, mediante lei específica, aplicar determinadas penalidades
aos proprietários de solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, como,
por exemplo, o parcelamento e edificação compulsórios e o IPTU progressivo. Isto
81
40
O arquiteto Nabil Bonduki produziu uma extensa reflexão sobre a questão da moradia e da
habitação social, que pode ser conferida nos livros: Arquitetura e Habitação Social em São Paulo: 1989-
1992 (1993); Origens da Habitação Social no Brasil (1998); e, Habitar São Paulo: Reflexões sobre a Gestão
Urbana (2000).
41
Ver artigo 182 da Constituição Federal Brasileira.
....................
quer dizer que é imputada ao proprietário a obrigatoriedade de construção ou parce-
lamento do terreno urbano, e que a alíquota cobrada no IPTU poderá ser aumenta-
da a cada ano de subutilização da propriedade.
Esta conquista constitucional remonta a 1963, data simbólica para marcar a história
da reforma urbana no país, em um encontro realizado em Petrópolis (RJ), no qual
teve destaque a questão da moradia (MARICATO, 2001: 97). Nos anos seguintes, sob
o regime militar, a discussão foi parcialmente interrompida. Não obstante, em 1975
foi aprovado, pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, o documen-
to Uso do Solo e Ação Pastoral, com forte conteúdo de críticas à especulação imobi-
liária e defesa da função social da propriedade e, em 1979, foi aprovada lei que dis-
põe sobre parcelamento do solo e criminaliza o loteador clandestino, com a previsão
de penas de reclusão e multa
42
.
Com a abertura política dos anos 80, além da moradia, outras questões importantes
da reforma urbana foram trazidas no ensejo da nova constituição, cujo processo esta-
va aberto à participação mais direta da sociedade por meio de emendas populares.
Foi neste momento que o MNRU apresentou a emenda parcialmente presente nos
artigos 182 e 183 da Constituição. A reforma urbana trata, fundamentalmente, de
conter a especulação imobiliária; diminuir a desigualdade sócio-espacial; garantir
acesso à infra-estrutura urbana; e democratizar o planejamento e a gestão do espaço
urbano. Ou seja, diz respeito mais a uma transformação da sociedade e menos a
intervenções físicas no espaço urbano, próprias da reforma urbanística, como bem
diferenciam Souza e Rodrigues (2004: 61-62).
82
42
Lei 6766/79, alterada pela lei 9785/99.
....................
Jornal do Movimento de Moradia põe em debate a função social da propriedade e a gran-
de quantidade de edificações abandonadas em áreas urbanas dotadas de infra-estrutura.
Na década seguinte, partiu dos movimentos sociais o primeiro Projeto de Lei de
Iniciativa Popular no Brasil (PL 2.710/92) tendo em vista a criação do Fundo
Nacional de Moradia Popular e do Conselho Nacional de Habitação Popular, além
de firmar o Direito à Moradia como direito social (Emenda Constitucional 26/00).
Em conseqüência de forte pressão do Fórum Nacional de Reforma Urbana durante
a década de 1990, finalmente, em 2001, foi aprovado o Estatuto da Cidade (Lei
10.257/01)
43
, atendendo às principais reivindicações dos movimentos organiza-
dos desde os anos 80.
Se a constituição de 1988 transferiu maior responsabilidade aos municípios, através
da elaboração de seus planos diretores, é o Estatuto que regulamenta em escala mais
profunda mecanismos importantes para “evitar que forças locais conservadoras sim-
plesmente ignorem o texto constitucional ou se aproveitem do seu caráter vago”
(SOUZA e RODRIGUES, 2004:67). Além disso, o Estatuto da Cidade tem garanti-
do maior participação da sociedade na elaboração dos planos, de modo que a gestão
participativa venha a complementar a democracia representativa. Este instrumento
vem sendo considerado “o que existe de mais vivo e vibrante no desenvolvimento de
nossa democracia – participação direta (e universal) dos cidadãos nos processos deci-
sórios” (ROLNIK, 2001).
Após um longo processo de tramitação no Congresso Nacional foi aprovado, em
2001, o Estatuto da Cidade, instrumento legal que regulamenta o capítulo de políti-
ca urbana na Constituição Federal. Foram reunidas, em seu texto final, além dos con-
sensos construídos, práticas que já eram adotadas por alguns municípios, como a
outorga onerosa do direito de construir e as operações urbanas consorciadas, mas
seguiam ignoradas pelas normas urbanísticas federais. Sua aprovação foi o início da
garantia, aos brasileiros, do direito a cidades sustentáveis, cuja efetivação depende de
implementação por leis municipais, reunidas em torno do que se denomina ‘plano
diretor’.
Fazia parte das exigências do Estatuto da Cidade a obrigatoriedade a municípios com
mais de 20 mil habitantes, e outros casos específicos previstos na lei, de apresenta-
rem seus planos diretores até outubro de 2006. Até o início de outubro daquele ano,
quase 70% dos municípios obrigados a elaborarem seus planos diretores tinham
cumprido o prazo imposto pelo Estatuto
44
. Vale ressaltar que o desenvolvimen-
to destes planos deve necessariamente passar por um processo participativo e demo-
crático, com a exigência de um número mínimo de audiências públicas e participa-
ção popular.
83
43
O Projeto de Lei do Estatuto da Cidade datava de 1990 (PL 5.788/90), tendo demorado mais de
dez anos para sua aprovação pelo Congresso Nacional.
44
1.682 estavam obrigados a cumprir o prazo do Estatudo da Cidade. Até 10 de outubro de 2006,
1.130 municípios estavam com o plano em aprovação ou já aprovados. A pesquisa feita pelo
Ministério das Cidades até março de 2007 tem previsão de compilação até o final de 2008, não estan-
do disponível até o momento de encerramento desta tese. Dados do Ministério das Cidades.
....................
Além disso, o último governo federal eleito teve cuidado com reivindicações antigas
dos movimentos sociais, refletidas na criação do Ministério das Cidades e do
Conselho Nacional das Cidades
45
, logo no início do mandato, em 2003. Dois
anos mais tarde foram criados o Fundo e o Conselho Nacional de Habitação de
Interesse Social, além da continuidade do processo das Conferências Nacionais das
Cidades
46
, iniciado também naquele ano.
No entanto, a reforma urbana é de responsabilidade de toda a sociedade e não
somente do poder público, ao qual cabe a criação e fiscalização de cumprimentos de
normas comuns a todos. Pois, “é indispensável para a transformação social e espacial,
que a sociedade civil participe efetiva e diretamente da construção de propostas, pro-
jetos, políticas públicas, planejamento e gestão urbanos” (SOUZA e RODRIGUES,
2004: 71).
Outro êxito resultante da luta histórica dos movimentos é a participação nas decisões
orçamentárias locais, o que vem se alastrando pelo país, atualmente subordinada à
exigência do Estatuto da Cidade
47
. Trata-se de conceder à população a prerroga-
tiva de decisão acerca do orçamento municipal, para a qual tem de se preparar,
tomando consciência de seus direitos em um exercício de cidadania na transforma-
ção do espaço urbano. A experiência pioneira no país acontece em Porto Alegre
desde 1989. Esta prática de decisão popular é das mais emblemáticas no cenário
nacional e internacional, tendo sido selecionada entre as 43 melhores práticas das
600 enviadas ao Centro das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos –
CNUAH, por ocasião do Habitat II
48
.
84
45
Em abril de 2004 foi instalado o Conselho das Cidades (Decreto n. 5031/04) que integra, de
forma permanente, a estrutura do Ministério das Cidades. Responsável por apontar as diretrizes de
desenvolvimento urbano no país, foi composto inicialmente de 71 titulares, distribuídos entre repre-
sentantes de movimentos populares; poder público federal, estadual e municipal; empresários; tra-
balhadores; entidades profissionais acadêmicas e de pesquisa; organizações não-governamentais; além
de observadores eleitos. Esta composição foi alterada após a II Conferência Nacional das Cidades, em
dezembro de 2005, passando a 86 integrantes.
46
No final de 2004 o Conselho das Cidades aprovou as etapas de preparação das Conferências
(municipais, regionais e nacional) ao longo do ano seguinte, cujo lema seria Reforma Urbana: Cidades
para Todos e Construindo uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Na II Conferência Nacional,
em Brasília, em dezembro de 2005, estiveram presentes cerca de 2,5 mil delegados, observadores e
convidados. A transmissão ao vivo da Conferência obteve 8.370 acessos on-line (dados do Ministério
das Cidades). A III Conferência Nacional das Cidades foi em 2007, sob o lema Desenvolvimento Urbano
com Participação Popular e Justiça Social.
47
Reza o artigo 44 do Estatuto da Cidade: No âmbito municipal, a gestão orçamentária partici-
pativa de que trata a alínea f do inciso III do art. 4
o
desta Lei incluirá a realização de debates, audiên-
cias e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e
do orçamento anual, como condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Municipal”.
48
Segunda Conferência das Nações Unidas realizada em Istambul (Turquia), em 1996, cujos dois
objetivos principais eram os assentamentos humanos sustentáveis e habitação adequada para todos.
....................
É neste contexto de luta e de compreensão da lógica do espaço urbano que se con-
figuram as periferias e se formam os “periféricos”, a população das periferias, os
novos farroupilhas. Ao lado da precariedade e da falta de perspectiva vivida nas peri-
ferias, o engajamento de parte dos moradores nos movimentos pela reforma urbana
e pelo direito à cidade, de certa maneira simultâneo ao fortalecimento do movimen-
to negro, configura um ambiente bastante propício para que proliferem os ideais
libertários das sementes dos hip-hop dos subúrbios estadunidenses em ebulição nos
anos 70. A descrição feita por Spency Pimentel acerca do contexto estadunidense em
O Livro Vermelho do Hip-Hop, traz inúmeras semelhanças, guardadas as devidas pro-
porções, com as periferias brasileiras:
gente pobre, com empregos mal remunerados, baixa escolaridade, pele escura. Jovens
pelas ruas, desocupados, abandonaram a escola por não verem o porquê de aprender
sobre democracia e liberdade se vivem apanhando da polícia e sendo discriminados no
mercado de trabalho. Ruas sujas e abandonadas, poucos espaços para o lazer. Alguns,
revoltados ou acovardados, partem para a violência, o crime, o álcool, as drogas; mui-
tos buscam na religião a esperança para suportar o dia-a-dia; outros ouvem música,
dançam, desenham nas paredes (PIMENTEL, 2007).
Esta citação poderia se referir a qualquer periferia das grandes cidades brasileiras, no
entanto é a descrição dos guetos negros e latinos de Nova York nos anos 70. Para o
autor, as semelhanças não são casuais, posto que ambos países viveram séculos sob
regime escravocrata, alimentado com negros seqüestrados da África. A diferença está
que, além dos negros, nos subúrbios estadunidenses vivem os hispânicos e, nas peri-
ferias brasileiras, os nordestinos migrantes. Tanto lá quanto cá, todos são inegavel-
mente amontoados nos espaços (da cidade), desprezados pelo capitalismo, seja em
termos de distância dos centros, seja pela precariedade.
3.2.
OOss IInnssttrruummeennttooss ddee ddoommiinnaaççããoo
Na disputa pelo espaço urbano, a hegemonia da classe dominante é garantida por
diversos instrumentos interligados: o mercado; o controle do Estado; e a ideologia
(VILLAÇA, 2001: 35). A especulação imobiliária é facilitada pela legislação urbanís-
tica excludente e pela ação do Estado em áreas de maior interesse do capital. Ambos,
mercado e Estado, dominados pelas elites econômicas, são beneficiados pelo oculta-
mento das tensões existentes no espaço urbano e do seu processo histórico por meio
das estratégias simbólicas de nomear “cidade” apenas aquela parcela do espaço urba-
no freqüentada pelas camadas de alta renda. Desta maneira, “a cidade” é o espaço
de circulação dos ricos e “a periferia”, onde estão os pobres.
Considerando a imprensa como porta-voz dos interesses hegemônicos, Villaça coor-
denou uma pesquisa nas edições dominicais de dois grandes jornais de circulação no
85
Rio de Janeiro e São Paulo (Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo, respectivamente), em
1993 e 1994, com o objetivo de verificar todas as menções feitas a logradouros públi-
cos destas cidades. Em ambas, a maior parte das designações foram feitas para as áreas
de concentração da população de alta renda. No Rio de Janeiro este índice é quase
50% e em São Paulo quase 75% das nomeações de localizações feitas em relação a
tais áreas, onde estão apenas 16% dos domicílios (VILLAÇA, 2001: 351). Isto signi-
fica que, ao tratar “da cidade”, a imprensa se refere aos locais dos dominantes que
possuem alta renda. Um dos desdobramentos mais perversos desta construção sim-
bólica é justificar as ações do Estado, majoritariamente focadas nestas regiões, como
um investimento para todos. Sob este aspecto, a “operação Faria Lima muda a cara
da cidade” (FSP, 11/05/95 apud ibidem: 348). Por outro lado, a avenida Celso Garcia,
em São Paulo, não é uma das mais movimentadas da cidade, mas “da zona leste da
cidade” (FSP, 30/10/91 apud ibidem: 349, grifo nosso)
A construção simbólica homogeneizante construída pelas camadas dominantes tanto
para “cidade” (de “todos”), quanto para “periferia” (dos “pobres”) é “uma ardilosa
construção ideológica que torna a condição de cidadania um privilégio e não um
direito universal: parte da cidade toma o lugar do todo. A cidade da elite representa
e encobre a cidade real” (MARICATO, 2001: 165). A homogeneização das periferias
produzida pela mídia as torna um todo indiferenciado e ameaçador que, por isso
mesmo, deve ser mantido isolado e afastado. Este imaginário é reforçado através da
representação que a mídia faz acerca de movimentos de moradia, de violência e de
juventude para os seus leitores, o que será analisado em item específico. A “periferia”
assim construída é o lugar da violência e da criminalidade, da desestruturação fami-
liar, da pobreza, da falta de recursos, de infra-estrutura e de cultura. Em outras pala-
vras, trata-se de uma não-cidade, um espaço fora do ideário de cidade hegemonica-
mente construído.
Mesmo em estudos técnicos nas áreas de planejamento urbano, geografia e estatísti-
ca há uma imensa dificuldade em lidar com a parte da cidade que não cabe nos
padrões de medida, de velocidade de transformação, de desenho e de legislação
usuais (MARICATO, 2001). Ademais, ainda que haja urbanistas progressistas (e há
muitos), o planejamento urbano na sua matriz modernista funcionalista pressupõe
não apenas a cidade ideal, mas a construção de um novo homem para esta cidade,
de acordo com os preceitos da Carta de Atenas
49
. É o vôo de pássaro modernis-
ta da cidade em perspectiva, a imagem da cidade sempre vista de fora e de cima. Esta
matriz conceitual lida melhor com a cidade “ideal” do que com aquela frontalmen-
86
49
Manifesto de arquitetos urbanistas escrito em 1933 durante o IV Congresso Internacional de
Arquitetura Moderna – CIAM, no qual se defendia o planejamento das cidades funcionais, ou seja,
os espaços urbanos deveriam ser separados conforme sua função: habitar, trabalhar, circular e espaços
de lazer. A maior experiência urbanística dentro dos moldes propostos pela Carta de Atenas é Brasília.
....................
te oposta à racionalidade do progresso linear, da universalidade e das divisões do
espaço por zonas funcionais. Durante a ditadura militar (1964-84), este planejamen-
to urbano, elaborado nos gabinetes dos órgãos públicos, foi ao encontro da política
desenvolvimentista característica do período.
Ermínia Maricato argumenta haver um descolamento da matriz funcionalista moder-
nista em relação à realidade urbana, designando-a “matriz postiça” (MARICATO,
2001: 136). No entanto, a nova matriz desenvolvida no esteio das políticas neolibe-
rais preconizadas pelo Consenso de Washington não são menos “postiças” (ibidem).
O novo paradigma do planejamento urbano, designado “planejamento estratégico”,
com forte influência no país especialmente a partir dos anos 90, apresenta um cará-
ter marcadamente empresarial, sob a ótica da eficácia, da eficiência, da mercadoria e
do consumo. Deste modo, a cidade é assumidamente um cenário para as ações de
marketing, como o caso de Barcelona e da Olimpíada de 92, e devem competir entre
si para atrair investidores
50
. Se o planejamento urbano modernista não reconhe-
ceu a cidade não-ajustada ao seu racionalismo, o pós-moderno a oculta deliberada-
mente.
A cidade desse planejamento estratégico é uma mercadoria a ser vendida e consumi-
da. Como tal, as intervenções urbanas, mais do que atender demandas de seus habi-
tantes, devem tratar de reforçar seus atributos específicos e “vendáveis” de modo a
atrair “visitantes solventes”, como recomendam Castells e Borja no livro Local y
Global: la Gestión de las Ciudades em la Era de la Información (apud VAINER, 2000: 80).
A gestão urbana ganha contornos de planos de marketing, nos quais a imagem de
cidade justa, segura e democrática deve ser reforçada, enquanto as tensões sociais,
amenizadas, ou mesmo ocultadas. Desta maneira, no Plano Estratégico do Rio de
Janeiro, de 1995, a cidade é apresentada como local de “baixa intolerância racial e
exemplo de harmonia social” (ibidem: 81).
Diante desta conjuntura na qual mercado, Estado, mídia e planejadores servem aos
mesmos interesses, há um intenso processo de despolitização das discussões sobre o
espaço urbano, de desconhecimento e de escamoteamento dos processos de exclu-
são. Desconstruir as representações tendenciosas sobre a cidade é fulcral em direção
à busca de um espaço urbano menos desigual. Nesse sentido, o movimento hip-hop,
a arte na periferia e outras ações que possibilitam uma conscientização do processo
histórico de exclusão (alguns processos participativos de planos diretores e de orça-
87
50
A compilação de artigos de Otília Arantes, Carlos Vainer e Ermínia Maricato, no livro A Cidade
do Pensamento Único apresenta um amplo debate sobre planejamento urbano e urbanismo pós-moder-
nos. Embora esta nova matriz se posicione criticamente aos cânones modernistas, os artigos demons-
tram o seu ajuste ao capitalismo neoliberal e sua face altamente excludente. Como afirma Francisco
de Oliveira na apresentação do livro: “é o urbanismo do apartheid, em sua acepção mais radical e per-
versa”.
....................
mentos locais) e da ressignificação da cidade em sua heterogeneidade, com a inclu-
são da periferia, são instrumentos fundamentais na luta pela reversão do profundo
quadro de desigualdades sociais e urbanas no qual nos encontramos.
A cidade, desvelada em suas contradições, é menos o ‘tecido urbano’, termo técnico
urbanístico, e mais um ‘farrapo’, metáfora para um espaço de urdidura gasta, surra-
da, enfim, um espaço de uso, e não apenas de contemplação e da ordem, como a av.
Berrini, em São Paulo, a Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, ou a planejada Brasília.
Neste sentido, a cidade é o ‘anti-tecido’, o feltro para Deleuze e Guattari:
não há distinção alguma entre os fios, nenhum entrecruzamento, mas apenas um ema-
ranhado das fibras [...] Um tal conjunto de enredamento não é de modo algum homo-
gêneo: contudo, ele é liso, e se opõe ponto por ponto ao espaço do tecido (é infinito
de direito, aberto ou ilimitado em todas as direções; não tem direito nem avesso, nem
centro; não estabelece fixos e móveis, mas antes distribui uma variação contínua)
(1997:181, grifo no original)
O espaço urbano do cotidiano não idealizado em planos e não ordenado sob os rigo-
res legislativos e normativos forma a maior parte das cidades brasileiras, sobretudo as
periferias das grandes cidades. A cidade como ela é passa necessariamente pela ressig-
nificação da periferia e é parte de uma ação continuada, na qual os juízos de valores
“bom” e “ruim”, que separam a “cidade” da “periferia”, perdem o sentido. Esta é a
luta na qual se inscrevem os guerreiros da periferia, os novos “farroupilhas”, entre os
quais, o movimento hip-hop. Sem uniforme, sem equipamentos e sem estratégias
militares conhecidas, eles vêm travando uma batalha silenciosa nestes últimos vinte
anos para a desconstrução da carga simbólica pejorativa que sempre pesou sobre os
moradores das regiões pobres das cidades.
Mais do que desordem, as cidades, incluindo suas regiões periféricas, se constituem
por heterogeneidades muito distantes da racionalidade funcional da cidade idealiza-
da pelos modernistas. Este espaço-farrapo e suas manifestações construtivas e cultu-
rais deve ser reconhecido em toda sua complexidade e não como algo subordinado,
dentro de uma hierarquia valorativa estabelecida por paradigmas externos. Sob este
prisma, as sobreposições espaço-temporais do cotiano das cidades são absorvidas no
pensamenteo criativo do hip-hop, como apontou Milton Salles, importante militan-
te do hip-hop e produtor dos Racionais MCs:
o poder libertário da arte está nos puxadinhos, nas garagens, nos barracos de qualquer
favela. A favela é um mundo em construção, recicla os materiais, ocupa o que está
abandonado, constrói o barraco sem deixar que a janela dê de cara para a janela do
vizinho, como acontece nos conjuntos habitacionais que o governo faz para confinar
pobres [...] o rap é parecido com a favela. Também é uma forma de construir em cima
do que já foi construído. O cara pega Martinho da Vila e constrói uma nova música,
entendeu? E isso possibilitou à periferia do mundo produzir com os recursos de que
ela dispõe e a criar núcleos de produção independente, como a gente foi fazendo nas
oficinas de hip-hop, nas posses (SALLES apud CAROS AMIGOS, 2005: 05)
88
Os instrumentos de dominação, ao perpetuarem a segregação espacial com vistas à
extração de vantagens locacionais urbanas, constroem um imaginário de cidade a par-
tir de um ponto de vista externo e distante. A “periferia”, sob esta visão, é muito
ameaçadora e pouco real. Quando se adentra nas regiões pobres das cidades, vascu-
lhando seus becos e vielas e percebendo sua gente, o que se vê para além da violên-
cia e precariedade infra-estrutural resultantes da segregação espacial histórica? Não
apenas problemas e infelicidades, mas também respeito ao próximo, cooperativismo,
rica produção cultural, iniciativas empreendedoras e outros valores positivos que
fazem parte deste lugar distante da imagem feita pelas classes média e alta. Só para
lembrar alguns exemplos, nos últimos anos diversos eventos culturais importantes
têm se consolidado na zona sul de São Paulo: Samba da Vela, Sarau da Cooperifa,
Sarau do Binho, Cine Becos e Vielas, Rinha dos MCs.
Apenas para se ter uma idéia geral do que são estes eventos, o Samba da Vela acon-
tece toda segunda-feira, desde 2000, na Casa de Cultura de Santo Amaro. Em torno
da vela acesa no centro de uma roda, mais de duzentas pessoas cantam sambas de
compositores locais. A vela comanda o fim da noite quando se apaga, além de indi-
car aos visitantes o tipo de samba: rosa, nas noites de composições absolutamente
inéditas; azul, para aquelas em que os compositores estão tentando conquistar o
público com as suas composições apresentadas nas semanas anteriores; e brancas,
para as noites dedicadas aos sambas eleitos, cujas letras são editadas no caderno da
comunidade. Desde 2003, no Bar do Zé Batidão, na Piraporinha, sempre às quartas-
feiras, acontece o Sarau da Cooperifa, sob o comando do poeta Sérgio Vaz. Os poe-
tas da região se inscrevem no início da noite e depois têm o microfone à sua dispo-
sição para declamar versos de sua autoria ou de autores consagrados, não raro para
um público de mais de cem pessoas. Em moldes semelhantes, às segundas-feiras
acontece o Sarau do Binho, no bairro vizinho de Campo Limpo. O Cine Becos e
Vielas surgiu do protagonismo de alguns alunos da ONG Papel Jornal, um projeto
de oficinas experimentais de jornalismo para jovens do Jd. Ângela. No meio da noite
89
Sarau da Cooperifa, 2008. Samba da Vela, 2007.
Fotos: Andréia Moassab
dançante do Jd. Iporanga, nas madrugadas de sexta-feira para sábado, há uma pausa
para a Rinha dos MCs, uma competição de rimas improvisadas. Dois MCs se desa-
fiam por vez, devendo cada um rimar por 40 segundos sobre situações à sua volta ou
em resposta ao seu desafiante
51
.
Mais do que uma periferia homogênea e ameaçadora é possível notar que, guardadas
as diferenças, as semelhanças entre os moradores da periferia e das áreas mais abasta-
das também são amplas: o “favelado” ou o “pobre”, também tem filhos, acorda cedo,
toma café, leva criança para a escola, vai trabalhar, também sofre por amor, se apai-
xona, se preocupa em pagar as contas, pensa no futuro dos filhos, batalha para que
ele estude e tenha oportunidades melhores que as dos pais; fica cansado após um dia
de trabalho; se preocupa com a beleza, faz a unha, pinta o cabelo, gosta de comprar
roupa nova e assistir a um filme no final de semana e estar com amigos; se protege
de roubos e também tem medo de ser assaltado sem, no entanto, viver a histeria da
segurança que ronda as classes privilegiadas. Sobre este ponto, ressalta-se que o mapa
da violência é coincidente ao mapa da exclusão: o pobre morador de áreas carentes
tem mais chances de ser assassinado ou assaltado e ter sua casa ou bens roubados do
que as famílias mais ricas, porém a “cultura do medo” é imputada nas classes médias
e altas. Voltaremos a isso.
É neste sentido que o hip-hop se impõe na contra-mão dos instrumentos de domi-
nação, reconstruindo simbolicamente as periferias. Nesta batalha simbólica está em
causa a produção capitalista do espaço da cidade (HARVEY, 1992) e a produção
midiática que legitima cotidianamente esta segregação espacial. Um dos resultados
concretos da segregação espacial é separar a “cidade” dos ricos da “periferia”, esta últi-
ma considerada como o lugar onde devem ficar os pobres, como o espaço que lhes
90
Criança brincando em dia de festa no Beco do Pona (zona leste) e Lei di Dai se maquiando, 2007.
Fotos: Neco e Isaumir Nascimento.
51
Muitos destes eventos culturais da zona sul de São Paulo podem ser conferidos no filme
Panorama: Arte na Periferia (2007), de Peu Pereira.
....................
cabe na divisão espacial das cidades. Pior do que isto, nos enunciados midiáticos este
espaço não deve ter as mesmas condições do resto da cidade, nem o pobre deve ter
acesso ao mesmo sistema de educação e de produção cultural. Para os pobres exis-
tem, quando muito, os cursos técnicos, para os ricos, as universidades; aos pobres,
um sistema de transporte insuficiente e precário, aos ricos, vias de alta velocidade,
pontes e viadutos para seus carros; a uns alta tecnologia e investimentos em máqui-
nas para diagnóstico e medicamentos, a outros, falta de remédio e de leitos hospita-
lares e assim por diante.
Contudo, ainda que os espaços sejam fortemente segregados, em alguns momentos
há uma fratura exposta na ordem espacial estabelecida. Um episódio marcante neste
sentido foi a atuação truculenta da polícia no show dos Racionais MCs, na praça da
Sé em São Paulo, em maio de 2007. Detalharemos em outro item a discussão sobre
a relação entre polícia, mídia e hip-hop através, especificamente deste episódio na
praça da Sé. Neste momento nos interessa defender que independentemente dos
argumentos apresentados pelas partes envolvidas no confronto há um fator espacial
fundamental no episódio: a periferia ocupava naquela noite um lugar central, a praça
da Sé. O centro de São Paulo, nos últimos anos está sendo paulatinamente reconfi-
gurado, num processo de troca das suas populações, em favor de classes média e abas-
tada. Vale lembrar o projeto para a SP Tower
52
nos anos 90, que apesar de nunca
ter sido concretizado, fez emergir o ideário de ocupação do centro pelas classes domi-
nantes. O eixo da Luz, com a Sala São Paulo e o Museu da Língua Portuguesa, é parte
deste mesmo modelo de ocupação espacial.
91
SP Tower, desenho ilustrativo do mega projeto para as pro-
ximidades do Parque D. Pedro I e zona cerealista de São
Paulo, nos anos 1990.
Foto: internet.
52
Trata-se de um mega projeto de intervenção urbana proposto para a zona cerealista de São
Paulo, nas imediações do Parque Dom Pedro I, nos finais dos anos 90. A proposta, do Grupo
Brasilinvest e do Maharishi Global Development Fund, tinha como eixo central a construção de um
centro financeiro em um edifício com mais de cem pavimentos. Alguns textos críticos estão disponí-
veis na página do projeto Arte/Cidade (www.pucsp.br/artecidade/novo/pesquisa/zl/zl_1c.htm) e da
Universidade de Barcelona (www.ub.es/geocrit/b3w-244.htm).
....................
Neste cenário, não há espaço para o hip-hop de negros e pobres com suas denúncias
de uma cidade que está muito distante tanto espacial quanto simbolicamente: “não
adianta querer, tem que ser / tem que pá,o mundo é diferente da ponte pra cá não
adianta querer ser tem que ter para trocar / o mundo é diferente da ponte pra cá”
(Racionais MCs, Da Ponte pra Cá). É como se esta cidade praticamente não existis-
se, exceto, evidentemente, para fornecer as empregadas domésticas, porteiros e
pedreiros que trabalham do lado de lá da ponte ou, então, para ocupar as páginas
policiais nos jornais e justificar a política de confinamento.
Portanto, quando um show reúne quase 50 mil pessoas, em sua maioria originárias
dos bairros periféricos, na área central falando sobre esta cidade que ninguém vê,
torna-se visível uma fratura exposta da ordem estabelecida e a única maneira de con-
trolar esta fratura está no uso da força. Na seqüência do episódio, há todo um refor-
ço simbólico de que o lugar desta população, “culpada” pelo ocorrido, é mesmo a
periferia. No mês seguinte, os Racionais MCs se apresentaram para um público tão
grande quanto o da praça da Sé, desta vez em Heliópolis, bairro pobre na zona sudes-
te. Não houve mídia, não houve confronto com a polícia. Ao contrário do que os
jornais alardeavam semanas antes, não é todo show do grupo que acaba em confusão;
isso depende dos espaços da cidade e dos espaços simbólicos em questão.
Se os movimentos de moradia ao longo das últimas décadas tiveram um papel deci-
sivo na luta pela reforma urbana e pela democratização do espaço da cidade, o movi-
mento hip-hop é, atualmente, um dos protagonistas na luta pela democratização sim-
bólica dos espaços segregados da cidade e pela ressignificação dos seus habitantes
como cidadãos.
3.3.
AA TTooppoollooggiiaa ddoo TTeerrrriittóórriioo
A construção simbólica que homogeneiza e separa a “cidade” da “periferia” serve à
manutenção da segregação espacial permanentemente produzida e reproduzida pelos
detentores do poder econômico. Deste modo, não é possível, de uma perspectiva de
resistência e emancipação, falar de apenas um lugar do hip-hop, mas acerca dos seus
múltiplos lugares, de suas pluralidades e de suas singularidades. Nenhuma periferia é
igual às demais e, ao mesmo tempo, todas guardam similaridades, tendo em vista o
modelo de segregação espacial pelo qual passaram: as periferias se parecem, mas não
são iguais, parafraseando os Racionais MCs ao falar sobre brancos e negros nas peri-
ferias. Por isso cada narrativa destas histórias é única. Isto não quer dizer que não haja
92
um conjunto possível: as periferias são as multidões de Negri e Hardt, mais do que
uma massa homogeneizada
53
.
Para a ordem historicamente estabelecida é necessária uma geografia do poder na
qual “a periferia” possa ser enquadrada, classificada e inferiorizada. O movimento
hip-hop se contrapõe a esta estrutura de poder espacial, esta divisão capitalista dos
espaços da cidade, o lugar designado para confinamento dos pobres. Ao mostrar que
esta periferia não existe, ao não enquadrá-la nos modelos, o movimento hip-hop sub-
verte simbolicamente e também espacialmente a racionalidade dominante: é a peri-
feria saindo do lugar de periferia. A ressignificação simbólica da periferia dá voz a um
lugar deliberadamente tornado invisível, ocultado e silenciado. Através de suas músi-
cas e de suas outras manifestações artísticas, em conjunto com a conscientização de
seu público, o movimento hip-hop em especial e também as novas artes periféricas,
atribuem um sentido de periferia através de um discurso produzido nas próprias peri-
ferias e não imposto ou copiado de fora.
Ao se adicionar novos atores falantes, os jovens, sobretudo negros e pobres morado-
res dos bairros periféricos, é colocada em cheque a ordem do poder. Toda a ressigni-
ficação simbólica das periferias está sendo produzida por uma juventude ativa e pro-
tagonista desta história. Esta juventude está em diversos lugares, transitando e conec-
tando as várias periferias do Brasil, da América Latina e de outros continentes. Estas
conexões rompem com a rigidez territorial, conectando topologicamente realidades
distantes, de maneiras muitas vezes imprevisíveis.
O grupo Z’África Brasil trouxe para a zona sul de São Paulo, em 2007, o Faso
Kombat
54
, grupo de hip-hop de Burkina Faso, África Ocidental. Naquela ocasião
foram apresentadas novas sonoridades, mas também novas histórias de luta como de
Samory Toure, herói da resistência africana ao colonialismo do século XIX ou de
Thomas Sankara, líder de Burkina Faso nos anos 80 com um governo baseado na
democracia participativa, educação e direitos da mulher. Foi assassinado em 1987,
por um golpe de Estado que tomou o poder no país, liderado por Blaise Comparoé.
93
53
Michael Hardt e Antonio Negri propõem, no livro Multidão: Guerra e Democracia na Era do
Império, o conceito de multidão em contraposição à “massa” ou “povo”. Para os autores, a multidão
não é una, ela é sempre plural e múltipla, sendo “composta por um conjunto de singularidades – e
com singularidades queremos nos referir aqui a um sujeito social cuja diferença não pode ser reduzi-
da à uniformidade, uma diferença que se mantém diferente” (NEGRI e HARDT, 2005: 139, grifo no
original).
54
O grupo foi formado em 2000 por Malgoubri David (David, o Combatente) e Ouedraogo Salif
(Malk’hom). Com nome inspirado no combate pelo respeito à cultura burquinense, o grupo mistura
ritmos tradicionais africanos, cantado em duas línguas: moore e francês.
....................
Na camiseta de um dos integrantes do grupo durante as apresentações em São Paulo
podia-se ler “Zongo”. Trata-se de Norbert Zongo, jornalista e editor do jornal
L’Independant, assassinado em 1999, após ter iniciado investigações que envolviam o
presidente Blaise Comparoé no poder desde o golpe contra Sankara. A luta pelo
esclarecimento das circunstâncias do crime é, com efeito, um combate pela democra-
cia, pelas liberdades e pelos direitos humanos no país.
O diálogo entre o grupo brasileiro e burkinabe trouxe para o imaginário paulista as
histórias não contadas do reino Mossi de Uagadugu ocupado pela França no final do
século XIX. Seus mais de dez mil anos de história foram praticamente dizimados
com a imposição do francês como língua oficial e outros hábitos “civilizatórios”, con-
figurando o que Boaventura Santos chama de “epistemicídio” (2005a; 2006a), isto é,
o assassinato de conhecimentos que não coadunem com a racionalidade hegemôni-
ca. O autor aponta o epistemicídio como um dos grandes crimes contra a humani-
dade: “para além do sofrimento e da devastação indizíveis que produziu nos povos,
nos grupos e nas práticas sociais que foram por ele alvejados, significou um empo-
brecimento irreversível do horizonte e das possibilidades de conhecimento” (SAN-
TOS, 2005a: 329). A visibilidade que estes jovens do movimento hip-hop fazem
emergir das histórias apagadas, dos heróis negados, das práticas sociais desligitimadas
e do cotidiano desvalorizado por uma imposição de valores vinda de fora é de fun-
damental importância no direcionamento de outras possibilidades de conhecimento
e de construção de mundo.
Santos apontou, sobretudo, a ciência moderna como grande instrumento epistemici-
da da modernidade, quando esta deliberadamente arrasa, marginaliza ou descredibi-
liza todos os conhecimentos não científicos que lhe são alternativos, tanto do Norte
como no Sul (SANTOS, 2006a: 155). Permeiam, no entanto, por toda modernidade
ocidental diversos aparelhos epistemicidas para além da ciência. A colonização e o
94
Faso Kombat com Z’África Brasil em São Paulo e manifestação pela reabertura do caso de Norbert
Zongo, em Ouagadogou (Burkina Faso), 2007.
Fotos: internet.
imperialismo foram e são projetos que negam a diversidade de conhecimentos. Na
mudança paradigmática proposta por Santos está contemplada uma ecologia de sabe-
res, com base “no reconhecimento da pluralidade de saberes heterogéneos, da auto-
nomia de cada um deles e da articulação sistêmica, dinâmica e horizontal entre eles.
[...] O conhecimento é interconhecimento, é reconhecimento, é auto-conhecimen-
to” (SANTOS, 2006a: 157).
O movimento hip-hop assente nesta territorialidade da juventude, é parte de uma
ecologia de saberes na medida em que dialoga horizontalmente com diversas outras
territorialidades e territórios, com outras periferias e outros movimentos sociais, que
denuncia a violência policial no Jd. Iporanga e também o capitalismo e o imperialis-
mo globais. Com efeito, há uma capacidade poética e política no movimento hip-
hop de retratar todos esses lugares, conectando-os numa topologia própria, rompen-
do
com a artificial divisão da vida social em cultura, economia, política, estética etc.;
quando o hip-hop se apresenta como um movimento político-cultural, ele rompe cla-
ramente com tais divisões e põe a arte e a cultura fora de uma ‘esfera’ responsável pela
criação de obras ‘apolíticas’ e alienadas que devem ser consumidas como produtos cul-
turais e artísticos que visam o entretenimento, a contemplação, a reflexão e o ‘enrique-
cimento cultural’ – como se essas ações estivessem dissociadas da política e da econo-
mia (SOUZA e RORIGUES, 2004:102-103).
É nesta produção cultural indissociada de política e economia, profundamente parte
do cotidiano, que o movimento hip-hop emerge em constante tensão de aproxima-
ção entre lugares e periferias que se tocam através do trânsito de sua juventude e da
sonoridade fluida de suas músicas.
95
96
97
CAPÍTULO 2
55 Clã Nordestino, Manifesto.
55
1. RESISTÊNCIA, EMPODERAMENTO E EMANCIPAÇÃO
Quando enfocamos o hip-hop como importante instrumento de resistência no Brasil
contemporâneo, argumentamos em favor de uma resistência contra as estruturas
dominantes e hegemônicas de poder, através do empoderamento das múltiplas vozes
da periferia. O objetivo principal deste empoderamento é possibilitar um processo
emancipatório na direção da construção de outra periferia possível, permitindo um
deslocamento heterotópico da periferia, “uma deslocação radical dentro do mesmo
lugar, o nosso” (SANTOS, 2005a: 325).
O hip-hop, através de suas práticas e da construção de sentidos desloca seus sujeitos
do lugar do oprimido, da voz hierarquicamente inferior quando posta diante das
vozes hegemônicas, para dar-lhes uma voz ativa, ressignificando os territórios onde é
produzido. A ressignificação simbólica da periferia, do pobre e do negro acontece
num embate estrategicamente difuso que permeia todos os lugares. A resistência
opera, assim, pelas microfísicas do poder, delineando a sua própria microfísica, a
microfísica da resistência. De acordo com Foucault, o poder não é algo que se detém,
ao contrário, trata-se de uma prática social e, como tal, constituída historicamente:
Marx e Freud talvez não sejam suficientes para nos ajudar a conhecer esta coisa tão
enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda
parte, que se chama poder. [...] Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamen-
te falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção,
com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se
sabe quem não o possui (FOUCAULT, 1979: 75).
Ao analisar as diferentes relações de poder historicamente constituídas, Foucault
(1988) identifica alterações significativas naquilo que ele denomina sociedade sobe-
rana, disciplinar e de controle. Se na primeira, dos tempos de reinados e monarquias,
tratava-se mais de um poder de causar a morte ou deixar viver, a partir do século XVII
o poder sobre a vida diz respeito à sua gestão, estabelecendo o que o autor define
como biopoder. Nas sociedades disciplinares, as populações são confinadas em espa-
ços fechados: a escola, a família, o exército, a igreja, o hospital, a prisão. A cidade
segregada, dos bairros operários do século XIX aos condôminos de luxo das últimas
décadas, é também um grande lugar de exercício do biopoder disciplinar, confinan-
do populações de acordo com a economia locacional do espaço urbano.
Por sua vez, nas sociedades de controle, em plena expansão desde a segunda metade
do século XX, os dispositivos de um poder disciplinar se espraiam pelas capilarida-
des de toda estrutura social, presente nas inter-relações do cotidiano, com a interio-
rização da disciplina. A sociedade de controle prescinde da arquitetura e da presen-
ça em um processo de controle dos indivíduos muito mais por meio de vigilância e
monitorização contínuas. Se a arquitetura era a máquina disciplinar por excelência
nas sociedades disciplinares, nas sociedades de controle são os computadores e a tec-
nologia da informação (DELEUZE, 1998). Nos dias de hoje, vivemos em uma sobre-
posição de ambos modelos de organização social e de poder: disciplinares e de con-
trole.
Note-se, ademais, que estruturas complexas vão se estabelecendo nos entremeios da
sociedade de controle, na qual o poder não é uma força proibitiva (que diz não), ele
se mantém e é aceito pelo fato de que “permeia, produz coisas, induz ao prazer,
forma saber, produz discurso“ (FOUCAULT, 1979: 08). Neste sentido, pode-se apon-
tar, no trânsito da sociedade disciplinar para a de controle, uma mudança clara de
abordagem coletiva para uma individual na compreensão da vida social. É possível
observar tal fenômeno quando nos dias de hoje é enfatizada uma responsabilidade
individual sobre a vida: cada um tem o corpo e a saúde que quer ter.
Na sociedade soberana o poder sobre o corpo “culminava com o privilégio de se apo-
derar da vida para suprimi-la” (FOUCAULT, 1988:128), um poder externo ao corpo,
que o subjugava, o poder de “causar a morte” (ibidem). Por sua vez, na sociedade dis-
ciplinar o poder, a despeito de permanecer externo ao corpo, não se apoderava dele
para suprimi-lo, sendo, ao contrário, necessário fazer viver para organizar os corpos,
classificá-los, hierarquizá-los. O corpo individual era apenas parte de uma massa
98
social a ser disciplinada. Ao contrário destes dois, na sociedade de controle o poder
não atua mais somente sobre o corpo, mas também na constituição do próprio sujei-
to. Sob este aspecto, não é algo que lhe seja externo, mas, interno.
Ao mesmo tempo, não se trata mais de organizar as massas, mas de controlar a massa
a partir do controle do indivíduo. A preocupação em organizar, localizar e confinar
a massa nas suas instituições (escola, exército, fábrica) através dos seus aparelhos de
repressão e coerção (castigos corporais nas escolas e exércitos, o maquinário pesado
do trabalho repetitivo) convive atualmente com mecanismos de controle (senhas,
cartão de crédito, celular, câmeras de vigilância) e aparelhos de sedução (a publicida-
de e a criação dos desejos).
Ao longo desta passagem, o corpo como força de produção da sociedade disciplinar
é sobreposto ao corpo consumidor (LUCAS e HOFF, 2006). É imposta uma obriga-
ção no indivíduo de melhora da performance, sob pena de exclusão do mundo, no
seu sentido contemporâneo, de ‘mundo do consumo’:
o que caracteriza o poder na sociedade de controle não é mais a intervenção sobre o
corpo como força de produção, mas é assimilação do corpo como objeto de investi-
mento e de consumo, alimentando-se da própria vontade dos indivíduos, já que inci-
de sobre o processo de constituição do sujeito (VAZ apud LUCAS e HOFF, 2006: 02).
O corpo e a constituição do sujeito são, portanto, capturados como mercadoria e as
escolhas individuais subjugadas sob uma pseudoliberdade:
tudo agora pode ser remodelado, reduzido, ajustado. O corpo se torna, ele mesmo, um
objeto de consumo [...] O corpo presente na publicidade brasileira atual [...] mantém-
se como espaço/instância de controle: a pseudo-liberdade de intervir no próprio
corpo, reinventando-o a partir de escolhas de caráter individual, acena para a noção de
acesso ao mercado e popularização do consumo (LUCAS e HOFF, 2006:12 e 15).
Por conseguinte, vivemos numa sociedade de controle na qual o poder faz parte da
própria constituição do sujeito: nada nem ninguém escapa de seus mecanismos; não
há exterior possível (MACHADO, 1979: XIV). Os mecanismos de controle e os apa-
relhos de sedução são ‘individuais e intransferíveis’ como reza o verso de vários deles,
de modo que não há mais a massa disciplinada, mas uma fragmentação dessa massa
em indivíduos sem coesão. Se a resistência na sociedade disciplinar era desenhada
por uma resistência da massa, do operariado organizado em sindicatos com suas rei-
vindicações contra o poder disciplinador, na sociedade de controle esse modelo é
inoperante. Afinal, como afirma Boaventura Santos, no período do capitalismo
desorganizado, desde o final dos anos de 1970, descobre-se que além de classes, o
capitalismo produz diferença racial e de gênero (2006a: 281). Neste contexto, as
novas formas de resistência encontraram, nas singularidades da multidão, alternati-
vas mais eficientes de combate ao poder-controlador, o poder que se instaura por
99
dentro. É na multidão e na reformulação simbólica do cotidiano que está a poten-
cialidade contra-hegemônica do mundo contemporâneo, a possibilidade de resistên-
cia.
Ao falarmos, portanto, do hip hop como movimento social com grande capacidade
de penetração nos grupos sociais estigmatizados e inferiorizados, reelaborando sua
história ao mesmo tempo em que dá voz e importância para suas narrativas, temos
diante de nós uma máquina de guerra deleuziana (DELEUZE e GUATTARI,
1997:11-110) altamente capacitada para combater o poder da maneira pela qual ele
atualmente se estabelece, nas relações do cotidiano, na naturalização de preconcei-
tos, na perpetuação de hierarquias e desigualdades sociais. A arte, com sua capacida-
de de elaboração cultural, quando se desenvolve de baixo para cima ou de dentro pra
fora das periferias, cuja voz mais potente no Brasil hoje em dia é o hip-hop, está se
configurando como uma das alternativas reais de enfrentamento às estruturas hege-
mônicas de poder na sociedade de controle.
A despeito da inexistência do fora nas relações de poder, da impossibilidade de esca-
pe, estas relações trazem consigo a própria resistência, que, à sua semelhança, são
também práticas sociais em constante transformação e formação. Se onde há poder
há resistência (FOUCAULT, 1979: 224), ela também permeia, se distribui e molda
territorialidades: “não existe propriamente o lugar da resistência, mas pontos móveis
e transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social” (MACHADO,
1979: xiv).
Por outro lado, Santos considera pouco eficaz a concepção foucaultiana de poder,
argumentando que se o poder está em toda parte, não estaria, ao fim e ao cabo, em
parte alguma (2005a: 125). O sociólogo prefere, ao contrário, fazer distinções de hie-
rarquia entre as diferentes formas de poder, impedindo a diluição, em especial, dos
poderes de âmbito doméstico
56. O autor propõe uma alternativa conceitual em
que acredita ser possível regressar ao indivíduo sem, no entanto, o fazer de uma
forma individualista; repor o espaço doméstico que a teoria clássica tinha atirado,
jacobinamente, para o lixo das relações privadas; colocar a sociedade nacional num
espaço mundial, concebido como uma estrutura interna da própria sociedade nacio-
nal; e, principalmente, mostrar que a natureza política do poder não é um atributo
exclusivo de uma determinada forma de poder (SANTOS, 2005a: 127; 2007a: 273).
Apesar de distintas, ambas as formas de compreensão do poder têm aspectos positi-
vos e são complementares. A releitura crítica feita por Santos aponta modos de ação
100
56 Santos distinguiu, a principio, quatro espaços estruturais nas sociedades capitalistas: espaço
doméstico, espaço da produção, espaço da cidadania e espaço mundial (2005a). Recentemente acres-
centou o espaço do mercado e o espaço da comunidade (2007a). Segundo o autor, estes espaços de
produção de poder, embora inter-relacionados, são autônomos.
....................
menos genéricos, isto é, ao mapear espaços estruturais com formas de poder distin-
tas, há a possibilidade de estratégias diversificadas e específicas de lutas emancipató-
rias (SANTOS, 2007a: 273).
Em Foucault, a generalidade do poder traz consigo a generalidade da resistência, que
pode e deve também estar em toda parte. Além disso, pode-se entender esta ubiqüi-
dade como algo que está em todas as esferas e escalas do cotidiano. Deste modo, as
formas de luta simbólica que influenciam nos processos de subjetivação e das micror-
relações sociais, são, conseqüentemente, promissoras máquinas de guerra contra este
poder foucaultiano.
Tanto na concepção de poder de Santos, quanto na de Foucault, a resistência vai se
desenhando multifacetadamente, mais através das singularidades da multidão e
menos da uniformidade combativa das massas. Sob este ponto de vista, os saraus cul-
turais organizados na periferia de São Paulo na última década e outras manifestações
coletivas recentes são tão combativos e expressivos quanto as greves do ABC no final
dos anos 70, no que concerne à conscientização política e à reivindicação de direitos
na sociedade contemporânea
57
.
Nestes eventos culturais realizados na periferia são declamadas poesias sobre o coti-
diano, cantados versos do rap engajado do hip-hop, debatidos filmes sobre a própria
condição da falta de recursos da vida nos locais afastados dos centros urbanos, como
versa GOG: “os meus erros eram normais, numa sociedade / onde as mentiras se
transformam em verdades / onde poucos vivem de barriga cheia / outros morrem de
fome ou mofam na cadeia / idéia de rocha, de responsa séria / chega de comerciali-
zar a miséria!” (Rua Sem Nome, Barraco Sem Número). A questão da cultura como
arma de guerra permeia constantemente diversas letras do hip-hop:
pra quem fingiu que não viu a cultura resistiu / num faroeste de caboclos revolucio-
nários / é o Z Zumbi que zumbizine zumbado do zumbizado / a lei da rua quem faz
é você no proceder / querer é poder, atitude é viver / hoje centuplicarei o meu valor /
eliminando a dor que afeta o meu interior / querem nos destruir mas não vão conse-
guir / se aumentam a dosagem mais iremos resistir / evoluir não se iludir com inimi-
go / que transforma cidadão em bandido, perito em latrocínio [...] acredite há milhões
de anos o poder impera, o oprimido resiste / e o opressor insiste na guerra (Z’ÁFRICA
BRASIL, Antigamente Quilombo Hoje Periferia)
101
57 Grandes greves ocorridas entre 1978 e 1980, ainda sob regime de ditadura militar (1964-80) nos
municípios do ABC Paulista (Santo André, São Bernardo e São Caetano). Direta e indiretamente estas
greves resultaram num projeto sindical (o “novo sindicalismo”), um partido político (o Partido dos
Trabalhadores) e uma central sindical (a Central Única dos Trabalhadores), além de consistirem um
importante ator político para a redemocratização do país. O atual presidente, Luíz Inácio Lula da
Silva foi uma das lideranças fundamentais nestas greves, tendo assumido a presidência do Sindicato
dos Metalúrgicos em 1975 (SANTANA, 2008).
....................
Através das músicas, filmes, poesias, dança, teatro, literatura, a cultura da periferia vai
espraiando o conceito de resistência, construindo a auto-estima de seus moradores,
explicando os porquês de sua situação à margem da sociedade. É neste sentido que
atualmente a sua importância pode ser comparada à dos grandes comícios operários
do final dos anos 70. Se naquela ocasião era o engajamento político que unia os tra-
balhadores, hoje em dia é o engajamento cultural que une estas populações. As rei-
vindicações por melhores condições de trabalho e salário deram lugar a exigências
por melhores condições de vida.
Ao entender o poder como práticas e relações das quais nada nem ninguém escapa é
que se vislumbra, em certas ações atuais, a possibilidade de resistência, posto que
acontecem justamente no interior do sistema e em sua transformação por dentro.
Trata-se de conviver com este poder, encontrando as brechas e pouco a pouco con-
quistando espaço. As ações resistentes são máquinas de guerra articuladas, flexíveis e
dinâmicas, irredutíveis “ao aparelho de Estado, exterior a sua soberania, anterior a seu
direito: ela [máquina de guerra] vem de outra parte [...] Seria antes como a multipli-
cidade pura e sem medida, a malta, irrupção do efêmero e potência da metamorfo-
se” (DELEUZE e GUATTARI, 1997:12-13). É esta a natureza da resistência, multipli-
cidade pura e sem medida que vai emergindo, brotando nos entremeios das relações
de poder.
Uma das táticas de guerra desta máquina de resistência é justamente a diferenciação.
Há que se combater as forças homogeneizantes da sociedade disciplinar e de contro-
le, as quais classificam, enquadram e controlam as diferenças em proveito da manu-
tenção das relações de poder. Reconhece-se a pobreza em contraposição à riqueza
para enclausurar ambas, uma nas periferias, abandonada à sua precariedade, e a outra
nos ‘bunkers’ fortificados dos super-condomínios, shopping centers e centros empre-
sariais. No final de 2005 a prefeitura municipal de São Paulo, numa medida ‘exem-
plar’ de enquadramento e controle do diferente, ordenou a construção de rampas
102
Greves no ABC paulista, 1978. No palanque, Luís Inácio Lula da Silva, na época presidente do Sindicato
dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. À direita, Sarau da Cooperifa em 2003.
Fotos: internet.
anti-mendigos nos viadutos sob a avenida paulista, um dos centros financeiros da
capital. À miséria daquela população restava o afastamento silencioso, o desapareci-
mento aos olhos do poder, e não uma transformação da sua condição.
Não obstante haver mecanismos homogeneizantes extremamente complexos na
sociedade de controle, o estriamento do diferente permanece. À semelhança da socie-
dade disciplinar, o diferente é moldado conforme uma métrica, adaptado a uma
regra, enquadrado, classificado, submetido a uma hierarquia. Entretanto, seus veto-
res têm sentidos opostos em cada uma destas sociedades: o desejo de ser igual parte
de dentro para fora sob a forma de pseudoliberdade, na sociedade controle, e na
sociedade disciplinar, ao contrário, era imposto de fora para dentro.
Se o saber-poder identifica o diferente não para aceitação, mas para a instrumentali-
zação da hierarquia, a resistência opera a partir da potencialização do diferente, sua
força motriz constituinte. A resistência, ao fazer a distinção entre pobreza e riqueza,
por exemplo, não a faz para enclausurar e separá-las, mas para reconhecer na diferen-
ça a necessidade de conquistar seu espaço enquanto diferente, merecendo, portanto,
uma atenção diferenciada do Estado, com vistas a receber apoio para o atendimento
das suas demandas de vida digna, ao contrário dos mais ricos, que não carecem de
atenção do aparelho governamental para este fim, pois têm seus próprios recursos.
O hip-hop, ao constituir um grupo identitário com base na localidade (periferias),
classe (pobres) e etnia (majoritariamente negros), usa esta diferenciação como sua
maior potência de ação. Não há intenção de parecer com ou imitar o outro (do cen-
tro, ricos e brancos), mas de criar seus próprios valores e legitimação a partir de den-
tro. É nesta diferenciação intencional que está sua arma de guerra, é a partir dela que
será feita a luta contra os valores impostos pelas relações de poder dominantes.
Com efeito, é na diferenciação que ocorre a vida, como demonstrou Gabriel Tarde,
em fins do século XIX:
103
Moradores de rua sob a avenida Paulista e rampa anti-mendigo em construção no mesmo local, com a
finalidade de impedir a ocupação dos vãos, 2005.
Fotos: FSP e Andréia Moassab.
a diferença é o alfa e o ômega do universo [...] O exemplo das sociedades é precisa-
mente bem apropriado [...] o termo inicial e o termo final são a diferença, o caracte-
rístico, aquilo que existe de bizarro e inexplicável, que se agita no fundo de tudo, que
sempre reaparece mais claro e mais vivo após desaparições sucessivas. Homens, todos
eles, que falam com os mais diversos sotaques, entonações, timbres de voz e gestos: eis
o elemento social, verdadeiro caos de heterogeneidades discordantes (TARDE,
2003:70 e 71).
Da mesma maneira, as diferenças potencializadas numa rede de resistência vão
pouco a pouco (re)configurando as territorialidades contemporâneas, onde o singu-
lar nas multidões cria linhas de fuga à capacidade homogeneizante do poder. Em
outras palavras, é também na diferenciação que ocorre a resistência: resistir é diferir,
parafraseando Tarde. Contudo, há que se encontrar graus de diferenciação, meios,
gradações, posto que resistir e sucumbir caminham lado a lado: “temos o direito a
ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes
sempre que a igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, 2006a: 313). É nesta tensão
entre igualdade e diferença que está a possibilidade de resistir, impedindo a captura
da diferença como mecanismo homogeneizante.
Sob esta perspectiva são colocadas diversas demandas dos movimentos sociais. Um
dos casos mais contundentes é a posição do movimento feminista: há a necessidade
de reconhecer a mulher como igual ao homem naquilo que é comum a ambos, como
a capacidade de trabalho e intelectual, e diferente naquilo que os distancia, como a
gestação. O mesmo vale para o movimento negro: brancos e negros são iguais em
capacidade, mas têm percursos sociais e históricos diferentes. As cotas nas universi-
dades são uma tentativa de diminuir as diferenças históricas para igualar as oportuni-
dades de acesso a conhecimento e formação profissional. A despeito da polêmica
gerada pelas cotas, que não é o caso de aprofundar aqui, elas são uma medida com-
pensatória que trabalha justamente nesta tensão apontada por Boaventura Santos
entre igualdade e diferença.
Deste modo, resistir é diferenciar, encontrando graus de diferenciação não para clas-
sificar, mas para traçar linhas de fuga. A diferenciação como classificação hierárqui-
ca é um mecanismo de preconceito incorporado pelas estruturas de poder dominan-
tes, como prática repetida e naturalizada pelas instituições e pelo saber, reproduzidas,
sobretudo atualmente, através da mídia. A diferenciação resistente, por sua vez, não
é fato isolado, e sim uma organização rizomática coletiva em constante construção.
Gabriel Tarde demonstrou que a tendência das mônadas a juntarem-se decorre do
fato de sozinhas nada poderem (TARDE, 2003:58). Resulta, portanto, tratar-se de
preconceito “julgar inferiores a nós todas as mônadas exteriores” (ibidem: 59).
Se no final do século XIX o autor já vislumbrava que “em uma sociedade, nenhum
indivíduo pode agir socialmente, não pode revelar-se de nenhuma forma, sem a cola-
boração de um grande número de outros indivíduos” (TARDE, 2003: 58) nos dias
104
atuais, Negri e Hardt encontram na multidão o conjunto de singularidades criadas a
partir de interações sociais colaborativas (NEGRI e HARDT, 2005: 286). Para o geó-
grafo Milton Santos, ao argüir sobre ‘os de baixo’ ou os pobres, as relações de con-
vivência se estabelecem no território e no cotidiano, configurando uma cultura de
vizinhança que valoriza a solidariedade (SANTOS, 2001).
Colaboração e solidariedade são referenciais importantes no movimento hip-hop,
como se nota nas palavras de GOG, conhecido no movimento HH como o “soció-
logo do hip-hop”: “a mudança está em cada um de nós / essa luta não venceremos
sós [...] o que falta na elite na periferia tem de sobra / solidariedade e humildade a
toda hora” (GOG, Brasília Periferia). É nesta dimensão do vivido, da relação de vizi-
nhança, do coletivo e da relação que se dá a resistência ao biopoder ou o poder sobre
a vida (FOUCAULT, 1988). Um corpo sem relação é como uma mônada fechada.
Não é possível resistir só.
Com efeito, grupos se organizam nas mais diversas áreas sob as mais distintas deman-
das, para além daquelas relacionadas à opressão das relações de produção, próprias
das organizações de classe (SANTOS, 2005: 258). Por toda parte vão se formando
redes de trocas de idéias e experiências identificadas com uma resistência a tiranias
pouco enfatizada em períodos históricos anteriores (guerra, poluição, machismo,
sexismo, racismo), ligada aos NMSs (novíssimos movimentos sociais), que “denun-
ciam, com uma radicalidade sem precedentes, os excessos de regulação da moderni-
dade” (SANTOS 2005:258). No Brasil, por exemplo, nos últimos vinte anos assistiu-
se a um incremento quantitativo e a uma consolidação de diversos movimentos
sociais: movimentos de moradia, rádios comunitárias, catadores de material reciclá-
vel, hip-hop. São redes presentes em diversos lugares, nas quais se estabelece, na rela-
ção entre seus pontos, uma organização tendencialmente descentralizada e sem hie-
rarquias.
Estas aglutinações em torno de algo em comum constituem proeminente instrumen-
to de resistência, mimetizando e subvertendo a estrutura de poder. O mimetismo é
uma estratégia da resistência, que se transveste de poder para permitir uma aproxima-
ção aos seus instrumentos e modificá-los a seu favor. É o caso das conquistas por alte-
rações numa das estruturas mais duras do aparelho de estado, ou seja, seu aparato
legal, a instrumentalização com finalidade de enquadrar, organizar, classificar. Desta
maneira, os próprios instrumentos do sistema dominante são utilizados em favor da
resistência, como ocorreu com os catadores de material reciclável, os artistas de tea-
tro em São Paulo ou os movimentos de moradia, por exemplo.
Os catadores de material reciclável, organizados em cooperativas nos últimos quin-
ze anos, têm sido extremamente importantes na discussão sobre resíduos sólidos e
coleta seletiva na cadeia econômica produtiva. Há poucos anos foi formado o
105
Comitê Interministerial da Inclusão Social dos Catadores
58
pelo governo federal,
o que significa um pequeno alisamento, como diriam Deleuze e Guattari (1997: 179-
214), do aparelho de Estado, um espaço conquistado pelos catadores nas estruturas
governamentais. O espaço liso, para Deleuze e Guattari, não é um espaço homogê-
neo, tampouco fixo, pelo contrário, é “aberto ou ilimitado em todas as direções [...]
não estabelece fixos nem móveis, mas antes distribui uma variação contínua” (ibi-
dem: 181). No que tange ao direito à cidade, a luta dos movimentos de moradia foi
responsável pela inclusão deste direto na constituição federal em 1988 e pela recen-
te criação do Fundo e Conselho Nacionais de Habitação de Interesse Social.
Do mesmo modo, numa pulsão de alisamento, em São Paulo, as reuniões do Arte
contra a Barbárie, desde 1998, formada inicialmente por dez grupos de teatro bem
como por artistas autônomos, foram basilares para a elaboração e aprovação da lei
municipal de fomento ao teatro
59
. Sancionada em 2002, a lei 13.279 determina
que a prefeitura destine pelo menos R$ 6 milhões, ajustados anualmente, a um pro-
grama de fomento que financie o trabalho de companhias teatrais previamente sele-
cionadas por uma comissão formada por quatro integrantes escolhidos pela
Secretaria Municipal de Cultura e três eleitos por entidades representativas da classe
teatral. Durante os primeiros dois anos da lei, o programa beneficiou 53 grupos e 79
espetáculos, com investimento de R$ 19 milhões em grupos teatrais permanentes
(MOASSAB e REBOUÇAS, 2006). Ainda que os editais e a aplicação da lei não
sejam isentos de polêmicas
60
, próprias de um processo de amadurecimento, a lei
municipal de fomento ao teatro tem servido de exemplo a outras categorias artísticas
brasileiras que vêm reivindicando a mesma atenção do poder público, a fim de que
o desenvolvimento de seus trabalhos deixe de depender de patrocínios privados.
Pode-se dizer que a resistência opera sempre nesta espécie de pulsão de alisamento,
tendo mostrado, nos últimos anos, certa habilidade em flexibilizar a seu favor as
106
58 Decreto Presidencial de 11/09/03.
59 É fundamental entender o contexto no qual a lei foi produzida, a partir de uma reivindicação
da classe teatral (re)organizada no final dos anos 90 em torno do Movimento Arte Contra a Barbárie.
Formado por grupos de artistas das principais companhias do teatro paulista e também por person-
alidades ligadas ao meio teatral da cidade de São Paulo, a proposta nasceu com o objetivo de discu-
tir e promover mudanças em prol de uma política cultural estável para a atividade teatral. Naquele
período a lei Rouanet, do governo federal, através de incentivos fiscais, acabou por deixar na mão dos
departamentos de marketing das empresas a decisão pelos investimentos em cultura, beneficiando
sempre artistas já consagrados, uma vez que o interesse empresarial é de divulgar sua marca. Reflexões
sobre este assunto estão feitas no artigo Arte e Cidade: Construindo Territorialidades (MOASSAB e
REBOUÇAS, 2006), referenciado ao final da tese.
60 Desde o início de 2007, representantes de mais de 150 grupos teatrais da cidade de São Paulo
passaram a se reunir em encontros semanais para discutir deficiências na estrutura da lei e na sua apli-
cação. Posteriormente estes encontros foram denominados “Roda do Fomento”. Informações em
www.kiwiciadeteatro.com.br/politica-cultural/contribuicao-da-roda-do-fomento-para-o-debate-da-12-
edicao-do-programa-de-fomento-ao-teatro-para-a-cidade-de-sao-paulo/.
....................
duras estruturas dos aparelhos de Estado e de poder. Quanto ao hip-hop, mais do que
intentar alterar leis, seu campo de batalha incide majoritariamente sobre a produção
simbólica. Portanto, suas conquistas dizem respeito, sobretudo, à possibilidade de
uma comunicação contra-hegemônica. Voltaremos a isso.
No decorrer das últimas décadas, diversas manifestações sociais têm se apresentado
como resistência aos sistemas hegemônicos. Uma das questões que se coloca é o que
diferencia estes movimentos, o que os faz ou não movimentos de resistência, uma
vez que, em sua maior parte, todos se justificam em discursos contra opressões domi-
nantes. Movimentos separatistas, como o ETA – Euskadi Ta Askatasuna (Liberdade e
Povo Basco), por exemplo, comumente seqüestram e matam em nome da causa
nacional. Se o grupo armado basco, em ação na Espanha desde os anos de1950, ori-
ginou-se para resistir contra a máquina homogeneizante nacionalista da ditadura de
Franco, suas forças justificantes se esvaíram após a reinstauração da democracia no
país, em 1978. Os integrantes do ETA acabam por utilizar as armas de poder – do
poder soberano (extinguir a vida) e do disciplinar (classificar, ordenar e hierarquizar
– o que implica a não aceitação igualitária do diferente).
Assim, o que se observa nestes casos não é mais resistência, mas uma mistura homo-
gênea de poder, na qual não há distinção entre o decalque-poder destas manifesta-
ções e as relações de poder-soberano, disciplinar ou de controle. Não há meios de
haver emancipação das estruturas opressoras ao reproduzi-las. Não é possível resis-
tência quando esta se iguala ao poder, como um decalque: “o decalque já não repro-
duz senão ele mesmo quando crê reproduzir outra coisa” (DELEUZE e GUATTARI,
1995: 23). Ao invés de subversão das armas do poder, tem-se apenas seu decalque.
Na resistência há, ao contrário, uma linha de fuga, um devir-poder: “devir é jamais
imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo [...] Os devires não são fenô-
menos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não para-
lela, núpcias entre dois reinos” (DELEUZE e PARNET, 1998: 10). Outrossim, entre
o decalque-poder e o devir-poder se estabelece uma distinção bastante clara da natu-
reza da resistência.
Neste sentido, ao se examinar movimentos de resistência como Arte contra a
Barbárie, catadores de material reciclável, movimentos de moradia, hip-hop das peri-
ferias e outros, percebe-se que eles têm em comum, além da construção de cidada-
nia, reivindicações para alterar as estruturas sociais hegemônicas, com vistas a uma
sociedade menos desigual. Atenta-se que agir dentro das estruturas mais rígidas da
organização social, como o seu corpo legal ou a produção midiática, é fato indicial
da força que este tipo de trabalho colaborativo pode ter. A resistência age se apode-
rando coletivamente das brechas do poder, o que pressupõe uma prática política, não
cessando jamais, pois a conquista precisa ser sempre mantida e ampliada. A luta da
resistência é, com efeito, uma batalha por meio da microfísica da resistência, presen-
107
te em todos os lugares, cujos atores são sujeitos e multidão, como diz a banda Núcleo
“essa parada não pára”:
eu quero ver, esse espaço é seu, faz a sua cara! / como já falaram essa parada não pára
/ não pára nem fodendo e se depender de nós / mesmo sem microfone, nem grana,
nem fama / soltamos a nossa voz / e sempre tem uns pra ouvir / nos picos, nas qua-
dras, de role ou em qualquer quebrada (NÚCLEO, Convite)
1.1.
VVoozz ee LLuuggaarr
O processo de conquistar voz e alterar as relações de poder que atravessam o cotidia-
no conduz ao empoderamento das populações oprimidas que, ao fim e ao cabo, é
parte essencial de um processo emancipatório. Se por um lado Foucault colabora
para um entendimento da microfisica do poder e do biopoder que está em toda
parte, Boaventura Santos, ao pontuar diversos espaços estruturais no qual o poder se
manifesta distintamente, acrescenta novos mecanismos na luta contra o poder hege-
mônico.
Um dos espaços estruturais apontados por Santos (2005a), o espaço doméstico, foi,
nas últimas décadas, objeto de forte politização pelo movimento feminista. Na pro-
dução teórica do movimento, um dos pontos centrais de reivindicação é o empode-
ramento da mulher, trazendo para o escopo das relações domésticas a questão do
poder, sob a ótica do poder patriarcal dominante nas sociedades ocidentais (MILLET
apud SIMÕES, 2007:18), pelo menos nos últimos quatro séculos, tornando públicas
as suas conseqüências para a mulher e para a sociedade.
Para estas teóricas, se o poder ocupou lugar central nas teorias sociológicas deve tam-
bém ter espaço significativo nas discussões de gênero. A partir basicamente de
Gramsci, Foucault e Freire
61
, os primeiros a entender o poder como relação social,
o conceito de empoderamento é amadurecido ao longo das duas últimas décadas por
diversas correntes do pensamento feminista (LEÓN, 2000). Ainda que nenhum des-
tes teóricos tenha abordado, nomeadamente, a questão do empoderamento, suas
reflexões sobre o poder como relação social foram fundamentais para as teorias femi-
nistas.
Em linhas gerais, empoderar-se significa alguém adquirir controle de sua própria
vida, adquirir habilidades de fazer coisas e de definir suas próprias agendas. O termo
108
61 Os trabalhos fundamentais destes autores para as teóricas feministas foram Cadernos do Cárcere,
de Antonio Gramsci (1
a
edição em 1948, Itália); A Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freira (1
a
edição
em 1970, EUA); e Arqueologia do Saber, de Michel Foucault (1
a
edição em 1969, França).
....................
tem a vantagem, segundo as feministas, de conter a palavra “poder”, dando maior
visibilidade à luta pelo poder nas diversas instâncias sociais. A centralidade desta dis-
cussão “permitiu sondar o processo através do qual se enraizou uma concepção
patriarcal de poder, o patriarcado, como forma de dominação masculina, como este
durou vários séculos e se apoiou em transformações ideológicas, políticas, econômi-
cas e sociais que consolidaram a soberania do homem” (SIMÕES, 2007: 18).
Poder aqui já é compreendido em seu sentido alargado, desvinculado do Estado e
disseminado por toda estrutura social. Nessa perspectiva, se o poder está em toda
parte, as mudanças nas relações de gênero baseadas no poder têm de acontecer em
todos os tipos de relações sociais (do pessoal ao institucional). O aspecto negativo
desta argumentação, criticado por algumas feministas, é o uso de empoderamento
pela psicologia comunitária estadunidense com ênfase nos processos cognitivos do
indivíduo. Isso conduz a que os indivíduos sejam mais empreendedores empresarial-
mente, minando ou enfraquecendo os laços para conquistas coletivas (RIGER apud
LEÓN, 2000). O pensamento feminista negro, especialmente através de Patrícia Hill
Collins, tem papel fundamental na defesa do empoderamento enquanto conquista
coletiva e não individual. Segundo a autora, a organização social coletiva das mulhe-
res afro-americanas, através de grupos de igreja, de mães ou centro comunitários,
aponta para a possibilidade de uso do poder como uma energia criativa de resistên-
cia e não apenas de dominação (COLLINS, 1991: 223).
Não obstante as críticas pertinentes, o fato é que as teorias feministas trouxeram o
empoderamento, ou o fato de adquirir poder nas relações sociais para o centro das
discussões acerca de desigualdade, com foco, para elas, nas desigualdades de gênero.
Em adição, tornaram evidente a opressão e subalternização da mulher em todas as
instâncias sociais. Rompeu-se, assim, a epistemologia social fortemente embasada nas
questões de classes sociais, demonstrando que as relações sociais de sexo eram trans-
versais a todo o sistema social (FERREIRA apud SIMÕES, 2007:17).
Ao tratar das desigualdades voltamos ao pensamento de Boaventura Santos para
quem “poder é qualquer relação social regulada por uma troca desigual” (SANTOS,
2007a: 266). Para o sociólogo, desigualdade e poder estão intimamente interligados.
Desigualdades não são apenas materiais e estão em relação profunda com desigual-
dades não materiais: educação, capacidades representacionais/comunicativas e
expressivas, de oportunidades e de capacidades para organizar interesses e para parti-
cipar autonomamente em processos de tomada de decisões significativas (SANTOS,
2007a: 267). As relações sociais são exercícios de poder mediante “o grau com que
são desigualmente tratados os interesses das partes na relação” (SANTOS 2007a:
269).
Ao ampliar a ligação feita inicialmente pelas feministas entre poder e desigualdade,
Santos indica alguns caminhos para a emancipação social. O autor defende que o
109
conhecimento de emancipação, suplantado ao longo de séculos na modernidade
pelo conhecimento de regulação, deve tomar seu lugar como matriz de conhecimen-
to fundamental para a consolidação da emancipação ou, melhor, emancipações
sociais (SANTOS, 2007a: 334). Para tanto é importante que o conhecimento de
emancipação constitua uma ecologia de saberes (SANTOS, 2006b: 45)
Todo o sistema de organização em que se assenta a modernidade ocultou diversas
formas de opressão, como o racismo, as castas, o sexismo e o colonialismo. As popu-
lações historicamente silenciadas são partes constitutivas da chamada ecologia de
saberes necessária para a transição paradigmática rumo à suplantação do conheci-
mento de regulação pelo de emancipação.
Desta maneira, sendo o poder construído nas relações sociais, conforme apontam
diversos pensadores, a emancipação é, portanto, “tão relacional como o poder con-
tra o qual se insurge. Não há emancipação em si, mas antes relações emancipatórias,
relações que criam um número cada vez maior de relações cada vez mais iguais. As
relações emancipatórias desenvolvem-se, portanto, no interior das relações de poder”
devendo-se, para tanto, “transformar as capacidades que reproduzem o poder em
capacidades que o destroem” (SANTOS, 2007a: 269). As relações emancipatórias
seguem, desta maneira, em direção à transformação social, com vistas a um mundo
com menos desigualdades hierarquizantes, menos discrimininação e menos opressão
e oprimidos. Em outras palavras, elas trabalham na tensão entre a luta por igualdade
e o reconhecimento da diferença, animadas “por um ethos redistributivo no sentido
mais amplo da expressão, o qual implica a redistribuição de recursos materiais,
sociais, políticos, culturais e simbólicos” (SANTOS, 2007b: 22).
Se para Foucault onde há poder há resistência, uma leitura conjunta de ambos os
autores nos leva a concluir que onde há poder há resistência, sendo possível o esta-
belecimento de relações emancipatórias. É neste contexto que o empoderamento é
intrínseco à luta pelas emancipações sociais, constitutivo de um processo de conquis-
ta de voz e espaço em relações socialmente desiguais. Esse processo, num universo
contaminado pela naturalização das representações e identidades hegemônicas, é em
si mesmo emancipatório.
Portanto, através de Foucault, de Santos e dos estudos feministas
62
percebe-se
que resistência, empoderamento e emancipação estão intimamente conectados. Para
um o poder se desvincula do Estado para estar em todos os aspectos da vida, neste
caso também da vida doméstica que é politizada pelas feministas e alcança os espa-
110
62 Martha Elena Venier, Kate Young e Magdalena León são algumas autoras feministas com trabal-
hos significativos sobre empoderamento e gênero. Patricia Hill Collins em seu livro Black Feminist
Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment (1991) trabalha sob a perspectiva de
empoderamento, gênero, classe e etnia.
....................
ços estruturais que requerem cada qual estratégias diferenciadas para lidar com a ten-
são entre igualdade e diferença, tendo em vista neutralizar o sistema de trocas desi-
guais no qual estamos imersos.
2. MICROFÍSICA DA RESISTÊNCIA:
DIVIDIR É MULTIPLICAR
Reconhece-se que na produção coletiva do conhecimento pousa uma das estratégias
mais significativas da resistência, pois que “ninguém realmente pensa sozinho, todo
pensamento é produzido em colaboração com o pensamento passado e presente de
outros” (NEGRI e HARDT, 2005: 195). Portanto, o cerne do projeto da resistência
está na produção do comum e na reconstrução do simbólico. É deste modo que se
almeja o que Santos denomina justiça cognitiva global (2006a), elemento fundamen-
tal para haver justiça social global. O conhecimento é uma intervenção no real e não
sua representação: a intervenção no mundo da vida visa transformá-lo. O hip-hop é,
neste sentido, conhecimento que age no real, circulando entre os seus sujeitos, modi-
ficando suas vidas e de sua comunidade.
111
GOG participando em debate no projeto Blackitude-Pelourinho: Na Rota da Rima, Salvador, 2005.
Chullage (ao centro) em oficina de música do projeto Cultura Urbana: Workshop de Hip-Hop para jovens
do Programa Escolhas, em Faro (Portugal), 2008.
Fotos: internet e Andréia Moassab.
Às vezes eu fico chapado aqui no campão, vendo os pivetes jogar bola, e vira e mexe um corre
atrás de um pipa, na real eles tão atrás é de um sonho, tão no fundo de tudo, querendo ter uma
vida pelo menos mais digna, com menos baixas e mais amor nesse campo de guerra da nova era
Garret apud Ferrez em
Capão Pecado
O papel desempenhado pelo hip-hop é fundamental no desenho da resistência que
está em toda parte, pois está difuso por diversas periferias, levando uma mensagem
para a juventude pobre e negra, mas também abrindo os caminhos para que esta
mesma juventude seja produtora da mensagem, construindo seu próprio conheci-
mento e sendo sujeito da sua história. Cada rapper, breaker ou grafiteiro envolvido
no hip-hop em sua comunidade é multiplicador do conhecimento para outros tan-
tos jovens, sem contar aqueles que não estão diretamente envolvidos na produção
das vertentes artísticas do HH e nem por isso deixam de fazer parte deste grande cole-
tivo e passar a mensagem adiante, transformá-la, amadurecê-la.
Essa multidão do hip-hop se espalha pelo que Rapin’ Hood chamou de “turismo ao
contrário no Brasil inteiro”. Consciente do potencial mobilizador do HH, Hood
desafia:
um salve do Mano Brown, já era. Se a gente quiser colocar 50.000 moleques no
Anhangabaú, a gente coloca. Se a gente quiser colocar um monte de pobre amontoa-
do na zona norte do Rio, a gente coloca. Se a gente quiser parar Recife, a gente pára.
Se a gente quiser parar Brasília, o nosso povo vem das cidades satélites, invade e pára
(apud CAROS AMIGOS, 2005: 11).
O problema é que as estruturas sistêmicas estão posicionadas para a guerra e, por
exemplo, os quase 50 mil na praça da Sé em 2007, para ver Racionais MCs na Virada
Cultural, sofreram dura repressão da tropa de choque. Todavia, ao invés de dispersar,
as ações truculentas da polícia confirmam a mensagem e a ressignificação simbólica
pela qual a periferia precisa passar para mudar sua condição periférica. Estas vozes
todas do HH sabem de onde vêm e da realidade que conhecem, dialogam com os
seus irmãos, por enquanto, se preparando para reivindicações pacíficas, como o
encontro com o presidente Lula em 2003, “mas, se nada der certo, a gente quebra o
país inteiro”, afirma Rappin’ Hood (ibidem).
Trata-se de dar voz a quem não tem voz, como conta MV Bill num episódio de racis-
mo que viveu aos 13 anos, quando descobriu-se sem voz: “nessa sociedade geralmen-
te a palavra de um branco vale mais do que a palavra de um negro” (MV BILL apud
CAROS AMIGOS, 2005: 08)
63
. E não é só o negro e o jovem que ganham voz
através do hip-hop, mas também os presidiários, parcela excluída e esquecida nos pre-
sídios, onde para além da pena de reclusão, prevista no código penal, os detentos
sofrem torturas e maus-tratos, em um sistema menos preocupado em reinserir e mais
em punir. Afro X, ex-detento, afirma “a gente tem que reescrever a história dos negros
no nosso país. Nossa história foi muito distorcida, e o rap é uma música que está dei-
xando tudo registrado – essa é a liberdade que o rap trouxe para a música, de falar de
112
63 Este episódio é narrado por MV Bill no capítulo ‘O Pior Sentimento que Alguém Pode Ter’, no
livro que escreve em co-autoria com Celso Athayde e Luiz Eduardo Soares, Cabeça de Porco (2005).
....................
preso, de favelado, de preto, de racismo” (AFRO X apud CAROS AMIGOS, 2005:
07). Voltaremos à questão do sistema carcerário na parte II.
Trata-se de dar voz, auto-estima, identidade e história para uma parcela significativa
da população, através deste ensino “fora da escola” feito pelo hip-hop. Pela Posse
Conceitos de Rua passou muita gente da nova geração do HH, aprendendo lá o que
não se ensinava nos bancos escolares. Funk Buia do Z’África Brasil lembra: “era aque-
la coisa de resistência, de espírito revolucionário [...] Foi onde eu descobri que nin-
guém descobriu o Brasil, tá ligado? Uma coisa assim que parece banal, mas pra você,
que tá carregando na pele todo esse sofrimento que passou os nossos antepassados,
é importante” (apud CAROS AMIGOS, 2005: 22).
Por toda a parte, o hip-hop vai dando voz e inscrevendo dignamente esta população
na história do país, em um processo de empoderamento e de emancipação no coti-
diano. Esta emancipação que atravessa todas as dimensões da vida constitui uma
microfísica da resistência, invertendo a racionalidade do conceito foucaultiano de
poder.
Se a periferia durante décadas foi o lugar esquecido, o não-lugar, um homogêneo
indistinto, numa geografia de produção e reprodução de trocas desiguais do espaço
urbano, ela pode atualmente ser convertida, à semelhança dos espaços estruturais de
Boaventura Santos e através de práticas sociais transformadoras, “em heterotopias, ou
seja, lugares centrais de relações emancipatórias” (SANTOS, 2007a: 271). Sob esta
ótica, a periferia transforma o centro, sem almejar ser o centro.
Ao adicionarmos o espaço da cidade como mais um espaço de estrutura-ação propos-
to por Santos (2007a: 273), permeado pela dominação geográfica e pela segregação
espacial (VILLAÇA, 2001), é possível subverter enormemente a lógica da produção
capitalista do espaço através do empoderamento e da emancipação da periferia. O
hip-hop, neste campo de batalha, vem formando seu exército “farroupilha” há mais
de vinte anos no país. Pouco a pouco as alterações heterotópicas estão sendo concre-
tizadas, apontando novos paradigmas e racionalidades para a sociedade contemporâ-
nea.
Estas bases, espalhadas pelo território nacional, configuram uma guerrilha de armas
simbólicas. Como as peças do Go, jogo oriental analisado por Deleuze e Guattari, a
estratégia deste bando comunicativo, é, em conjunto, se alastrar pelo território, “dis-
tribuir-se num espaço aberto, ocupar o espaço, preservar a possibilidade de surgir em
qualquer ponto” (1997: 14), de maneira a inviabilizar as tentativas de captura pelo
aparelho de estado. Esta característica de bando garante ao movimento hip-hop a
sobrevivência enquanto conjunto ou matilha. É neste sentido que se pode falar num
outro tipo de movimento social, de organização descentralizada, sem a formação de
estrutura de poder e hierarquia, na qual cada uma é independente e ao mesmo tempo
113
integrante do bando, “grupos do tipo rizoma, por oposição ao tipo arborescente que
se concentra em órgãos de poder” (ibidem: 21).
Somados a esta luta do HH estão as rádios comunitárias, portais e blogs na internet,
zines e jornais comunitários, que desempenham um importante papel de divulgado-
res do trabalho independente de muitos grupos em suas comunidades: “o hip-hop
tem hoje um exército de comunicadores muito forte, seja o DJ, seja o bboy, seja o
MC. E tem meios de comunicação que muitas vezes é desprezado pela grande massa
que acha que a comunicação é só aquela que passa nos outdoors e na televisão, tá
ligado?” (DJ BANDIDO apud AQUINO e MACHADO, 2006)
2.1. Rádios Comunitárias: por uma Reforma no Ar
64
As rádios comunitárias no Brasil desempenham um papel fundamental no desenvol-
vimento da reflexão crítica nas diversas comunidades em que se insere. Para o hip-
hop, as rádios comunitárias representam um importante meio de divulgação de suas
músicas e de consolidação e partilha de seus conhecimentos.
Rádio comunitária, segundo definições do Ministério das Comunicações, é “um tipo
especial de emissora de rádio FM, de alcance limitado a, no máximo, 1 km a partir
de sua antena transmissora, criada para proporcionar informação, cultura, entreteni-
mento e lazer a pequenas comunidades”
65
. Este alcance varia de acordo com a
localização, condições topográficas e potência de transmissão. Entretanto, com o uso
da internet seu potencial de alcance pode ser ampliado. Além disso, o conteúdo de
sua programação deve estar estreitamente ligado à comunidade e não pode ter fins
lucrativos nem vínculos de qualquer tipo, tais como partidos políticos e instituições
religiosas. É importante distinguir que rádio comunitária é um tipo de rádio livre,
não comercial, distinta das chamadas rádios piratas. Estas últimas têm sua origem nos
anos de 1950, na Inglaterra. O principal mote para sua criação foi a contraposição à
hegemonia da BBC, o canal estatal de radiofusão. Ao contrário das rádios livres, as
piratas têm na sua natureza a obtenção de lucro, enquanto as primeiras visam dar voz
às comunidades, acarretando em um questionamento acerca do controle sobre a
comunicação radiofônica.
114
64 As conversas com Lígia Pinheiro foram importantes fontes de reflexão sobre as rádios comu-
nitárias, uma vez ser este seu principal objeto de análise em Territórios de Re-Existência (2005), trabalho
de conclusão do curso de arquitetura e urbanismo.
65 Definição utilizada pelo Ministério das Comunicações na cartilha, manual e esclarecimentos
disponíveis na sua página eletrônica.
....................
No Brasil, as primeiras transmissões radiofônicas não-oficiais remontam à década de
30, na origem da Rádio Sociedade do Rio Grande do Sul e também da Rádio
Cultura, de São Paulo, ambas legalizadas poucos anos depois de iniciarem seu fun-
cionamento de modo irregular. Todavia, trinta anos mais tarde é que, preconizando
as rádios comunitárias, as rádios livres de cunho político passam a fazer parte do
cenário nacional, com destaque para a Rádio Paranóica, no Espírito Santo, com forte
crítica às figuras locais e para o município de Sorocaba, no interior de São Paulo,
onde chegaram a funcionar 42 emissoras em 1983. Ainda que nem todas adotassem
uma base ideológica, formou-se aí um sólido conjunto em torno da luta contra a
política histórica de concessões promovida pelo governo federal, que visava à distri-
buição de emissoras aos seus apadrinhados políticos.
Neste mesmo período, começam as transmissões das rádios universitárias: Xilik, dos
alunos da PUCSP, Totó Ternura, de alunos de comunicação da ECA/USP, e mais na
década seguinte, a rádio Onze, dos estudantes do Largo São Francisco e a Muda, dos
alunos da Unicamp, entre outras. Há também o surgimento de rádios vinculadas aos
mais diversos grupos, como a rádio Vírus, dos médicos residentes do Hospital das
Clínicas de São Paulo e a rádio Dengue, de militantes do Partido dos Trabalhadores,
a qual se diferenciava das demais pelo forte enfoque jornalístico. Em meados dos
anos oitenta entrou no ar, no Rio de Janeiro, a rádio Frívola City, com papel impor-
tante na germinação da essência das rádios comunitárias: a democracia na comuni-
cação, através de uma analogia com a luta pela terra, isto é, a luta pela ‘reforma no
ar’.
O amadurecimento de um movimento em favor das rádios livres tomou corpo a par-
tir de diversos fatores nos anos seguintes. Um episódio marcante foi a apreensão, em
1991, dos equipamentos da rádio Reversão, da zona leste de São Paulo, pela polícia
federal. Depois de três anos de processo, o idealizador da rádio foi considerado ino-
cente, em uma sentença na qual o juiz decide não haver crime colocar em funciona-
mento rádios não-autorizadas, sem fins lucrativos e sem motivações político-partidá-
rias
As emissoras sem concessão, mas com fins lucrativos, semelhantes às rádios comer-
ciais, não são bem vistas e tampouco acolhidas dentro do movimento de rádios
livres. Há que se mencionar ainda o grande número de rádios livres com cunho reli-
gioso, que despertam posições antagônicas daqueles contrários ao uso das rádios para
pregação e aqueles que defendem a democratização da radiodifusão, com acesso a
todos, independente de credo. Atualmente, a legislação que regulamenta as rádios
comunitárias veta o proselitismo de qualquer natureza
66
.
115
66 Lei Federal 9.612/98, artigo 4
o
, inciso IV, parágrafo 1
o
.
....................
Uma vez com a audiência ameaçada pelo sucesso das rádios livres, aquelas oficiais de
natureza comercial iniciaram forte campanha contra, encabeçada, em São Paulo, pela
Associação das Emissoras de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo – AESP e pelo
Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo – SERTESP,
alegando interferências nas transmissões oficiais e risco à sociedade, além do aspecto
ilegal das transmissões. Especialmente alimentada por este embate, foi aprovada, em
1998, lei para regulamentação das rádios comunitárias (lei federal 9612/98). No
entanto, o que se apresentava como mecanismo de legitimidade da prática da radio-
difusão comunitária serviu também para ampliar o número de emissoras que funcio-
navam na ilegalidade, dada a dificuldade de atendimento às exigências e a pouca
infra-estrutura ministerial para a avaliação centralizada de todos os pedidos de licen-
ça do país.
No final de 2005, o Grupo de Trabalho Interministerial
67
organizado pelo gover-
no federal apresentou um relatório com propostas para o setor, cuja conclusão iden-
tificava esta modalidade de comunicação como estratégica para o Estado e reconhe-
cia o efeito indireto sobre a geração de emprego e de renda, bem como a inclusão do
indivíduo na sociedade da informação. A despeito dos avanços, ministério e movi-
mento de rádios comunitárias seguem insatisfeitos: o primeiro pela contrariedade à
publicidade nas rádios comunitárias e o segundo por considerar insuficiente a reda-
ção das propostas sob a forma de recomendação. Em janeiro de 2006, o Ministério
das Comunicações divulgou uma relação na qual constavam 2.397 rádios comunitá-
rias com autorização de funcionamento, sendo 1.856 definitivas e 541 provisórias.
Frente às cerca de quinze mil rádios comunitárias operando no país
68
são apenas
15% aquelas com licença de funcionamento.
116
67 Artigo 1
o
do decreto federal de 26 de novembro de 2004: “Fica criado o Grupo de Trabalho
Interministerial com a finalidade de analisar a situação da radiodifusão comunitária no País e propor
medidas para disseminação das rádios comunitárias, visando ampliar o acesso da população a esta
modalidade de comunicação, agilizar os procedimentos de outorga e aperfeiçoar a fiscalização do sis-
tema”.
68 Estimativa da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária.
....................
Rádios Comunitárias: Pernambues FM (Salvador); Heliópolis (São Paulo); Favela (Belo Horizonte).
Fotos: Fabíola Aquino (1) e internet (2 e 3).
Junto com o hip-hop, a arte e outras ações emancipatórias feitas na periferia, pela
periferia e para a periferia, as rádios comunitárias estão em todo o território nacional,
somando forças, na mesma batalha simbólica, como um dos seus veículos principais
de comunicação.
A importância da rádio comunitária para o movimento hip-hop em Salvador é que é
um meio de comunicação alternativo, onde a gente tem a oportunidade de estar fazen-
do o nosso trabalho, divulgando o nosso material, que é nossos CDs de rap. A gente
não tem oportunidade na mídia, chamada mídia convencional, nas rádios comerciais,
onde a monopolização existe e só tocam aquelas músicas comerciais das alto produto-
ras, que são músicas que não falam a linguagem do povo [... ] E o movimento hip-hop
também na rádio comunitária, a gente discute sobre várias questões, sobre direitos
humanos, a gente procura fazer um programa interativo com a comunidade, para que
este programa possa estar informando as pessoas e formando cidadões, através do pro-
grama de rap (DJ BRANCO apud AQUINO e MACHADO, 2006)
Tal independência confere uma configuração polimorfa e difusa que vai se espalhan-
do e penetrando pelas periferias urbanas. Para cada rádio fechada, com equipamen-
tos apreendidos, outras tantas estão aparecendo, inclusive na mesma vizinhança,
como uma hidra de Lerna da qual múltiplas cabeças renascem daquela cortada. Na
relação entre as diversas rádios comunitárias se estabelece uma rede de apoio e tro-
cas de conhecimento, formando pontos de resistência móveis e transitórios por toda
estrutura social. Trata-se de uma ação interna, no interior dos mecanismos de poder
e não fora dele, e é justamente esta natureza de trabalhar dentro da rede de poder que
faz do movimento uma luta de resistência (FOUCAULT, 1979), um ‘contra-poder’.
A luta das rádios comunitárias pela possibilidade de funcionar e dar voz ao povo da
periferia sem ser fechada pela polícia ainda é uma realidade no país, não obstante
alguns avanços. O filme Uma Onda no Ar (2002) de Helvécio Ratton, é ilustrativo
desta batalha. Baseado em fatos verídicos, o filme narra a história da Rádio Favela, em
Belo Horizonte, que nos anos 80 entrava no ar sempre no horário da Hora do Brasil,
com uma programação voltada fundamentalmente contra o racismo e contra a exclu-
são social. Fundada em 1981, a rádio lutou por quase vinte anos contra a repressão
do Estado até ser licenciada: mudou de endereço mais de trinta vezes para não ser
localizada, foi fechada cinco vezes pela polícia, seus equipamentos foram destruídos,
os idealizadores presos sete vezes e, ainda assim, recebeu dois prêmios da ONU em
reconhecimento à sua importância educativa para a comunidade
69
. Na trilha
sonora do filme estão músicas de GOG e dos Racionais MCs.
Se a luta pela ‘reforma no ar’ tem uma agenda própria e distinta do hip-hop, ambas
estão, juntamente com outros movimentos sociais, numa luta maior pela transforma-
ção de estruturas de poder formadas historicamente no país. Esta batalha acontece ao
117
69 Em 2003 recebeu o prêmio de melhor programa de rádio para a conscientização da cidadania.
....................
mesmo tempo em diversas escalas e territorialidades, na qual estão todos juntos divi-
dindo o conhecimento para multiplicá-lo. Em outras palavras, “o hip-hop é uma filo-
sofia de vida [...] Ele é um Movimento porque não fica parado, ele tá crescendo igual
um vírus, dominando a Terra. Ele vai engolindo. Ele usa a brecha do sistema pra
poder prosperar” (MC EU apud ZIGONI, 2006: 14). A microfisica da resistência,
desta maneira, vai cotidiana e paulatinamente criando condições para o empodera-
mento e a emancipação dos moradores das periferias, deslocando-os para um lugar
fundamental de protagonismo social.
118
119
70 Núcleo, Essência.
70
PARTE II
CAPÍTULO 3
71 Z’África Brasil, Cidade Mutação.
71
121
1. O HIP-HOP, A BATALHA SIMBÓLICA, O COTIdIANO
Nas últimas décadas, com o aumento da produção cultural baseada nos valores esta-
belecidos pela sociedade de consumo, difundidos, sobretudo por meio das mídias
mundiais hegemônicas, houve uma tendência de predomínio de uma produção sim-
bólica unidirecional assente em possibilidades desiguais de negociação de sentidos.
Isto significa que as produções e difusões simbólicas, restritas a poucos, impõem a
muitos os seus valores.
Sob este aspecto, o conceito de fascismo social desenvolvido por Boaventura Santos
(2006a; 2007b) nos capacita a entender esta época de relações desiguais de poder na
qual sociedades politicamente democráticas podem constituir relações socialmente
fascistas em seu interior. O fascismo social, para o autor, é “um regime social de rela-
ções de poder extremamente desiguais que concedem à parte mais forte o poder de
veto sobre a vida e o modo de vida da parte mais fraca” (SANTOS, 2007b: 16), resul-
tante da quebra da lógica do contrato social, teorizado por Rousseau. Desta manei-
ra, Santos conclui que vivemos em épocas de pré e pós-contratualismo:
a nova contratualização é, enquanto contratualização social, um falso contrato, uma
mera aparência de compromisso constituído por condições impostas sem discussão ao
parceiro mais fraco no contrato, condições tão onerosas quanto inescapáveis [...] o sta-
tus pós-moderno manifesta-se como contrato abusivo, leonino (SANTOS, 2006a:
327).
Sob estas condições de disparidade entre as partes envolvidas no contrato social fica
evidenciada uma crise social nos tempos atuais na qual os processos de exclusão pre-
dominam sobre os de inclusão. A expansão deste novo regime social, não político, é
designada pelo autor de “fascismo social”, em um período de sociedades politicamen-
te democráticas e socialmente fascistas. Trata-se de um regime social e civilizacional
e não de um regime político como aqueles que vigoraram, sobretudo, na Europa, na
primeira metade do século XX. A doutrina e regime político fascista eram caracteri-
zados, principalmente, pela supressão de qualquer forma de oposição, fazendo uso
da propaganda e da censura de um Estado autoritário. Boaventura Santos emprega o
termo sob a perspectiva de um regime social e civilizacional para apontar que nos
dias de hoje há formas de fascismo social que convivem com formas de democracia
política. Apesar das sociedades serem democraticamente organizadas elas podem
conviver em seu interior com instituições fascistas, ou ainda, podem ter uma organi-
zação espacial ou financeira também fascista. Nesse sentido, o autor segue descreven-
do seis formas fundamentais de fascismo social: a do apartheid social; territorial;
paraestatal; da insegurança; contratual; e fascismo financeiro (SANTOS, 2006a;
2007b).
122
No fascismo do apartheid social há uma segregação dos excluídos que, em sua forma
mais radical, separa fisicamente “zonas selvagens” e “zonas civilizadas” por intermé-
dio de cidades privadas e condomínios fechados. Nestas zonas há um duplo padrão
de ação estatal: numa o Estado age democraticamente (Estado protetor) e em outra
age de modo fascista (Estado predador) (SANTOS, 2006a: 334). O contraste entre as
periferias e os condomínios fechados e a maneira como a força policial age distinta-
mente em cada um destes espaços evidencia claramente este apartheid social urbano.
O segundo e o terceiro tipos de fascismo social são bastante próximos e ambos estão
relacionados com o fascismo do apartheid social, pois envolvem controle territorial
e Estado. O fascismo territorial é exercido por atores privados, que, em decorrência
de seu forte poder econômico, neutralizam ou retiram do Estado o controle do ter-
ritório onde atuam, “cooptando ou violentando as instituições estatais e exercendo a
regulação social sobre os habitantes do território sem a participação destes e contra
os seus interesses” (SANTOS, 2007b: 17). Em grande parte estas situações têm acon-
tecido em zonas de conflitos armados ou em ex-colônias européias. O fascismo
paraestatal diz respeito às inações do Estado. Os espaços de regulação social esqueci-
dos pelo Estado são apropriados por atores sociais poderosos, muitas vezes com a
própria conivência do Estado.
Por sua vez, o fascismo da insegurança tem a ver com a “manipulação discricionária
da insegurança das pessoas e grupos sociais vulnerabilizados pela precaridade do tra-
balho, ou por acidentes ou acontecimentos desestabilizadores, produzindo-lhes ele-
vados níveis de ansiedade e de insegurança” (SANTOS, 2006a: 335). É o caso, por
exemplo, dos seguros de saúde e dos fundos de pensões privadas, uma vez que ocul-
tam os riscos e as condições da prestação do serviço, acarretando, não raro, surpresas
ao contratante no momento de usufruir os supostos benefícios prometidos (ibidem:
336).
O fascismo contratual concerne ao contrato de direito civil no qual uma das partes
é muito mais forte do que a outra, tendo a prerrogativa de impor condições onero-
sas, quando não despóticas, à parte mais fraca (SANTOS, 2007b: 16). O autor cita os
casos de privatização de serviços públicos no qual de usuários os cidadãos passam a
ser consumidores privados e individualizados.
Um dos exemplos mais contundentes de fascismo contratual foi a privatização da
água na Bolívia, em 2000. Neste episódio diversas manifestações populares saíram às
ruas e foram duramente reprimidas, culminando na morte de ativistas. Após os vio-
lentos acontecimentos, o governo boliviano recuou com a privatização, num raro
caso de vitória contra o fascismo contratual. No III Fórum Mundial da Água realiza-
do em 2003, no Japão, que incluiu em sua pauta a questão da privatização dos recur-
sos hídricos, Oscar Oliveira, líder das manifestações bolivianas teve voz:
123
há três anos, depois de cinco meses, mais de 500 mil pessoas expulsaram a multinacio-
nal Bechtel por tentar impor um contrato de privatização totalmente contra a vonta-
de pública. Várias das multinacionais que estão presentes aqui, muitas vezes, mancham
nossa água com sangue dos cidadãos. Não manchem mais suas mãos com sangue
(apud TENDLER, 2007).
Seu apelo não foi suficiente para que o Banco Mundial deixasse de insistir na políti-
ca de privatização. A polêmica relativa à privatização da água através de contratos
entre Estados e empresas privadas continua na agenda internacional.
A última forma de fascismo social tipificada por Santos, o fascismo financeiro, é, em
seu julgamento, a mais virulenta de todas. Estão incluídos, neste tipo de facismo
social, os mercados financeiros, a especulação financeira, o espaço-tempo instantâ-
neo e global e a lógica de lucro.
O que se propõe aqui é ampliar o entendimento destas formas fundamentais de fas-
cismo social, acrescentando mais um tipo: o fascismo simbólico, já que este também
se configura como um regime desigual nas possibilidades de produção e circulação
de sentidos, proporcional à desigualdade das relações de poder apontada por
Boaventura Santos. Trata-se de um fascismo de alto risco, pois que se impõe difusa-
mente nas entrelinhas do cotidiano mediante o uso de dispositovos sofisticados de
subjetivação simbólica.
Ao lidar com as profundas desigualdades de gênero, Pierre Bourdieu apontou, em seu
livro A Dominação Masculina, para aquilo que designou de “violência simbólica”. É,
para o autor, a violência “branda, insensível, invisível para as suas próprias vítimas,
que se exerce no essencial pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do
conhecimento ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou,
no limite, do sentimento” (BOURDIEU, 1999: 01), que transforma o arbitrário cul-
tural, no caso de gênero, em natural (ibidem). O simbólico é entendido como uma
construção e legitimação coletiva de sentidos (LUCAS e HOFF, 2006) cujos efeitos
reais se inscrevem nos corpos, no cotidiano e na história das pessoas e das socieda-
des.
A violência simbólica é uma ação na qual Bourdieu se detém para lidar com as ques-
tões da imposição dos valores masculinos sobre os femininos e para conceber a dis-
tinção hierárquica dos gêneros como uma criação cultural. As dimensões do fascis-
mo simbólico dizem respeito à produção e circulação de sentidos em sociedades
democráticas, porém atravessadas em seu interior por relações de poder profunda-
mente desiguais em que à parte mais fraca são impostos modos de vida, silenciamen-
tos e supressão de direitos, sem que estes tenham real poder de negociação. Dito de
outra forma, o regime de fascismo simbólico se apresenta em meio a sociedades
democráticas como um regime no qual há uma total ausência de negociação na pro-
dução de sentidos, ou seja, a parte dominante da sociedade impõe um lugar de fala
124
a determinados grupos subalternos, entre os quais, as mulheres, como analisado por
Bourdieu.
Concernente à produção e circulação de sentidos na sociedade atual de consumo, a
mídia hegemônica constitui um dos aparelhos mais eficientes de imposição simbóli-
ca. Em outras palavras, a imposição acontece quando a produção de sentidos, ao
invés de ser negociada coletivamente, é determinada autoritariamente por um grupo
restrito e submetida de modo compulsório a toda a sociedade. Para além da mídia,
não se pode descartar outros mecanismos também eficientes de imposição simbóli-
da como a publicidade, as formas dominantes de produção artístico-cultural, o mate-
rial didático escolar e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência. Estes são,
portanto, os quatro vetores principais de produção e reprodução de imposições sim-
bólicas a que estamos imersos nos dias atuais: (a) mídia / publicidade; (b) escola; (c)
ciências; (d) cultura.
Todos estes vetores são pautados pelos valores de mercado, de controle do Estado e
da ideologia, entrelaçados de modo a garantir a hegemonia da classe dominante, con-
forme descreveu Flavio Villaça ao analisar a perpetuação da segregação espacial urba-
na (VILLAÇA, 2001: 35). A manutenção da segregação tanto espacial, como aponta-
da por Villaça, quanto social, pressupõe condições fortemente desequilibradas nas
negociações de acesso às riquezas produzidas social e coletivamente. Em circunstân-
cias de extrema desigualdade nestas negociações, com o completo ocultamento das
tensões envolvidas, sequer percebidas pelo lado mais fraco, há uma adequação meta-
fórica do termo “fascismo”, proposto por Santos e ora alargado para o que denomi-
namos “fascismo simbólico”. A produção de sentidos, sob esta ótica, é totalmente
regulada pela lógica do mercado, do lucro, do consumo e do individualismo, cons-
truídos ao mesmo tempo em que qualquer outra forma de cultura é destruída, seja
pelo seu silenciamento, seja pela sua distorção e categorização como inferior ou peri-
gosa.
Deste modo, são naturalizadas diversas formas de preconceito cujo efeito devastador
são as violências cotidianas sofridas pelos grupos objetos usuais desta construção sim-
bólica tais como pobres, negros, homossexuais, entre outros. O racismo, por exem-
plo, atravessa a vida e a obra do hiphopper carioca MV Bill. Entre os diversos episó-
dios narrados em entrevista à revista Caros Amigos, Bill conta do lançamento de seu
livro, em co-autoria com Celso Athayde e Luiz Eduardo Soares Cabeça de Porco
(2005), na Bienal de São Paulo. Naquela ocasião, descreve a reportagem,
por três vezes organizadores do evento dirigiram-se a um branco que estava ao lado de
Bill, como se aquele fosse o escritor. Bill sorria, pois isso acontece com freqüência: ‘Pra
eles, sou no máximo um segurança’. Duro de engolir, mas é a verdade. Até a curadora
do evento achou que Bill fosse o branco (CAROS AMIGOS, 2005: 08)
125
Ao mesmo tempo, a mídia, como um dos ins-
trumentos de dominação, constrói valores
como sucesso, riqueza e beleza em con-
formidade com a lógica empresarial
do lucro, do consumo, do indivi-
dualismo. Sob estes parâmetros,
sucesso é sinônimo de ascensão
social ou fama; riqueza diz unicamente
respeito ao acúmulo de capital e
bens de consumo; e beleza é
enquadrada nos moldes das
modelos de passarelas da moda,
usualmente brancas, magras ou
super-magras, altas e cabe-
los lisos, e os homens
devem ser musculosos, altos e viris (PRADO et al, 2008). Fora destes padrões não
há, para a mídia, meios possíveis de enquadramento nos valores hegemônicos. Estes
valores acabam pulverizados por toda a sociedade, especialmente pelo grande alcan-
ce da televisão. Com isso, meninos pobres e muitas vezes miseráveis, socialmente
estigmatizados, desvalorizados em sua comunidade e de baixíssima auto-estima vêem
como única maneira de ascensão social incorporá-los. Na opinião de Celso Athayde,
produtor cultural e escritor, a televisão contribui para a nacionalização da criminali-
dade, já que é o dinheiro rápido do crime, em especial do tráfico de drogas, que per-
mite a estes meninos sexo, status e poder, conforme valorizados pela mídia (ATHAY-
DE et al, 2005: 55).
É certo que todo material publicitário trabalha em conjunto com a mídia para esta
construção simbólica, na qual o corpo e o sujeito são assimilados como mercadoria.
No momento em que a publicidade cria desejos direcionando a vontade dos indiví-
duos, a constituição do sujeito é capturada pelo biopoder, não havendo exterior pos-
sível. Deleuze, ao discorrer sobre a socidade de controle, afirmou que o marketing é
o seu instrumento de controle social, uma vez que, segundo o autor, o capitalismo
do século XXI é de sobre-produção, ao invés da produção (1998: 224). Portanto, o
foco do capitalismo contemporâneo é colocado no produto e não na produção,
como nos séculos anteriores. A acumulação de riqueza é menos na concentração da
produção e da propriedade e mais no mercado (ibidem: 223).
Mercado/mercadoria/consumidor direcionam, no “capitalismo de sobre-produção”
(ibidem), os interesses das elites hegemônicas em âmbito nacional (as classes mais
ricas) e internacional (os países ricos).
Diversos autores têm demonstrado que o domínio internacional global é liderado
pelos EUA (FIORI, 2007b; NEGRI e HARDT, 2001), ainda que a Comunidade
Européia e a China tenham ganhado alguma relevância nas últimas décadas. A hege-
126
MV Bill na Rádio Roquete Pinto (do governo do Estado do Rio
de Janeiro), onde apresenta programa de hip-hop. O programa
retornou à grade da rádio em 2007, depois alguns anos fora do ar.
Foto: Jorge Marinho.
monia estadunidense é resultado de um longo processo histórico (HOBSBAWN,
2002), no qual os meios de comunicação têm um papel relevante. Desde o final do
século XIX, conforme demonstra Muniz Sodré, teórico da comunicação, a lógica dos
processos mundiais de mídia está associada aos padrões de vida estadunidenses, com
uma exacerbação do poder imperial deste país nas últimas décadas “sobrecarregando
o agendamento midiático com as molduras neoliberais da homogeneização”
(SODRÉ, 2002: 28).
No caso do Brasil, o autor segue analisando os problemas da concentração do con-
trole dos meios de comunicação por elites regionais ou facções religiosas (SODRÉ,
2002: 32). Para ilustrar sua análise, Sodré lembra do episódio das eleições presiden-
ciais de 1989, primeiras pós-ditadura militar, na qual concorriam, no segundo turno,
Fernando Collor de Mello e Lula. Naquela ocasião, diversas foram as estratégias da
mídia, sobretudo da rede Globo, em favorecimento do primeiro: mais tempo e
melhores momentos dos debates editados para Collor de Mello, menos tempo e pio-
res momentos para Lula. Apesar de não ser possível fazer uma prova sociológica da
influência televisiva como causa determinante do resultado eleitoral vencido por
Collor de Mello, Sodré não tem dúvida da influência da televisão sobre a opinião dos
eleitores. Ao serem inquiridos acerca do motivo da escolha, eles respondiam: “todo
mundo estava falando que ele [Collor de Mello] era o melhor” (BATISTA et al apud
SODRÉ, 2002: 30). Este ‘todo mundo’ era a rede Globo. No caso específico destas
eleições presidenciais, a ação da mídia não foi apenas pontual, mas teve início nos
anos anteriores por intermédio de programas televisivos, nomeadamente “telenove-
las e sub-reptícias inflexões doutrinárias nos noticiários e programas de entrevistas”
(SODRÉ, 2002: 30 e 31) que apontavam quem deveria ser o primeiro presidente pós-
ditadura.
A homogeneização da opinião pública por meio da rede Globo apoiada pelas classes
dominantes ocultou deliberadamente a tensão histórica em causa: a concentração de
propriedade e dos meios de produção no país. Em 1989 Collor de Mello era o can-
didato representante da elite latifundiária do nordeste e Lula, do operário imigrante
nordestino em São Paulo. A cisão social do modelo de concentração de renda nacio-
nal, tão bem exposta na trajetória de vida dos candidatos, foi invisibilizada pelas per-
formances em debates e o foco em seus relacionamentos amorosos. Não houve qual-
quer possibilidade de negociação na produção de sentidos e a despeito de terem sido
eleições democráticas, constitui um episódio ilustrativo do que pode ser uma políti-
ca de imposição de valores construída historicamente, em meio a uma sociedade
socialmente democrática. De acordo com Sodré, “a mídia (‘meios’ e ‘hipermeios’)
implica uma nova qualificação da vida, um bios virtual. Sua especificidade, em face
das formas de vida tradicionais, consiste na criação de uma eticidade (costume, con-
duta, cognição, sensorialismo) estetizante e vicária, uma espécie de ‘terceira’ nature-
za” (2002: 11).
127
A “terceira natureza” midiática é por princípio isenta de conflitos e complexidades.
Apesar de haver uma grande disponibilidade de dados desagregados do
Desenvolvimento Humano produzido por órgãos governamentais, ONGs ou agên-
cias internacionais, a mídia não incorpora estes dados para complexificar o debate
sobre os mais variados assuntos que poderiam ir de desenvolvimento econômico à
violência urbana (ANDI, 2005). O relatório Infância na Mídia (2005) elaborado pela
Agência de Notícias dos Direitos da Infância – ANDI apontou que a diversidade está
fora da pauta jornalística, havendo uma rejeição deliberada da mídia a estas temáti-
cas. Em análise feita em cinqüenta dos mais importantes veículos da mídia impressa
do país, entre 2001 e 2002, apenas 1% das matérias sobre pobreza e desigualdade
abordavam questões da diversidade (ANDI, 2005: 26). Desta maneira, os recortes
raciais e de gênero ligados à pobreza e desigualdade são ocultados do imaginário
social. O que se observa são conseqüências profundas resultantes deste ocultamento
quando, por exemplo, há uma grande polêmica midiática contra ações afirmativas,
como é o caso das cotas raciais para ingresso nas universidades.
A partir da análise dos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo e das revistas IstoÉ
e Veja, acerca da cobertura da mídia sobre cotas raciais nas universidades, no perío-
do de 1995-2002, Ana Elisa dos Santos, da Universidade Federal de São Carlos, con-
cluiu que há um viés crítico desfavorável à temática (2005, 140). Ainda que com
enfoques distintos, estes jornais e revistas, para a pesquisadora, fazem uma tentativa
de “reforçar a interpretação da realidade em que as relações etnicoraciais seriam har-
moniosas, daí a não necessidade de mobilização de caracteres adscritivos tanto para
compreender e propor soluções via políticas públicas afirmativas e redistributivas a
uma parcela da população brasileira” (ibidem: 141).
128
Ve j a , 06/06/2007.
O segundo principal vetor de imposições simbólicas são os materiais didáticos esco-
lares. Todo o imaginário de um povo é reforçado desde a infância através da escola.
Este material, para além de didático, é um “espaço privilegiado de disputas políticas
de constituição de identidades” (RIBEIRO, 2004: 365). A própria escolha curricular
(do que deve ser ensinado) “corporifica um determinado arranjo do conhecimento e
que essa organização implica em seleção de conteúdos, produção de saberes e regu-
lação social” (STEPHANOU, 1998). A escola é um dos primeiros espaços de dese-
nho desta comunidade imaginada chamada história, povo ou país, perpetuada tem-
poralmente ao longo da vida e espacialmente para fora dos muros escolares. Não se
trata aqui de um debate sobre o saber-poder do professor, como demonstrou
Foucault (1979; 2000), mas de uma produção e reprodução simbólica que atravessa
a figura do professor. Este acaba por ser a voz daqueles que escrevem e criam os mitos
do país, escolhem as datas significativas, os episódios a serem inscritos, a versão a ser
contada. Desta maneira, por meio da história dos vencedores, a escola reproduz os
valores hegemônicos, servindo como um forte instrumento de dominação.
Diversos historiadores e educadores têm se debruçado sobre esta temática nas últi-
mas décadas. Ernesta Zamboni, pesquisadora da Unicamp, em um de seus artigos
analisa o conto europeu O Gato de Botas e faz uma crítica aos valores passados atra-
vés do conto acerca de pobreza e de possibilidades de saída da pobreza:
a representação existente na História do Gato de Botas mostra que a única saída para
o estado de pobreza e miséria em que viviam os pobres, era o uso da esperteza e da
astúcia, bem como da ignorância e ingenuidade dos mais favorecidos. É a figura do
gato que coloca em prática todas as artimanhas necessárias para que o seu proprietário
possa casar-se com a filha do rei e sair da situação de pobreza em que vivia. Os pobres
só conseguiam conquistar um status melhor na sociedade por meio do casamento e da
esperteza (ZAMBONI, 1998)
O Gato de Botas conta as artimanhas de um gato que em nome de seu dono leva pre-
sentes ao rei e aos poderosos do povoado. Ao final da história, seu dono casa-se com
a filha do rei, deixando para trás seu passado de pobre camponês. Este é um entre
muitos contos infantis no qual os pobres são tratados como seres incapacitados de se
emanciparem da pobreza, exceto com a ajuda de alguém mais “inteligente” ou
“esperto”, como também são, os pobres, pessoas inclinadas para pequenos ou gran-
des golpes contra os mais abastados ou os mais ingênuos. Os livros didáticos escola-
res no Brasil acompanham de perto esta racionalidade imputada aos camponeses das
histórias infantis, subestimando ou silenciando mulheres, idosos, crianças e grupos
minoritários. A história é contada a partir de um ponto de vista do homem branco
do mundo ocidental, por meio do qual são valorizados “atributos masculinos (andro-
centrismo evidente, em valores como bravura, conquista, desbravamento, belicosida-
de), fomentando igualmente o etnocentrismo, o europocentrismo, a xenofobia e mal
disfarçados preconceitos nacionalistas e genocídios” (STEPHANOU, 1998).
129
Em grande parte, os grupos minoritários, quando representados, são generalizados
em categorias de fácil assimilação e sem entrar em ruptura com o discurso hegemô-
nico. O lugar destes grupos é sempre o de subalternidade. No caso dos índios brasi-
leiros, “é como se o livro didático operasse como a categoria de um índio ‘genérico’,
ou seja, aquele índio que vivia nu na mata, morava em ocas e tabas, enfeitava-se com
cocar e penacho na cabeça, cultuasse Tupã e Jaci e que fala tupi” (RIBEIRO, 2004:
115).
Tratamento similar é concedido ao negro e ao continente africano, cuja história se
vincula à do Brasil exclusivamente pela escravidão e mediante representações negati-
vas: terra selvagem, de bárbaros e não-civilizada (ibidem: 232 e 343). Por este moti-
vo, há uma preocupação do Movimento Negro em construir outra versão da história
colonial e da vinda dos povos negros ensinada nas escolas. Ao contrário do papel
submisso e servil, o MN reivindica que o negro seja destacado como lutador e guer-
reiro, trazendo os heróis deste povo para o conjunto de heróis nacionais, como é o
caso de Zumbi dos Palmares ou mesmo Amílcar Cabral, personagem fundamental na
luta recente pela independência de alguns países africanos, nomeadamente Guiné-
Bissau e Cabo-Verde. Do mesmo modo em que a mídia comumente chama atenção
para o corpo dos negros, os livros escolares repetem o mesmo padrão, no qual o
corpo é considerado inferior à mente: “nesta perspectiva, era plausível que os negros
e índios, portadores de atributos físicos, fossem submetidos pelos portugueses, de ori-
gem européia e brancos, portanto portadores de atributos mentais. A astúcia e a inte-
ligência tinham um lugar geográfico (a Europa) e uma identidade racial (branca)” (ibi-
dem: 222).
Se os pobres são os espertos e golpistas dos contos infantis, como no Gato de Botas,
o negro escravo no passado é o negro marginal do presente (OLIVEIRA apud RIBEI-
RO, 2004: 344). Esta lógica de representação social produzida e reproduzida por
intermédio das escolas reforça a relação entre juventude pobre e negra com delin-
qüência, bastante difundida no senso comum. Contudo, a este respeito, alguns dados
130
Amílcar Cabral, importante liderança política no processo de independência de Cabo-Verde e Guiné-
Bissau. O Quilombo dos Palmares, na serra da Barriga (AL), resistiu por mais de um século durante o
período colonial (1580-1695).
Fotos: internet.
vêm alterando esta relação entre juventude e violência. Atualmente foi percebido que
os jovens ao invés de serem os atores da violência, são, ao contrário, sua vítima
(LOPES et al, 2008).
Entre as diversas representações hegemônicas vetorizadas pela escola, vale mencionar
ainda a reprodução dos valores da sociedade patriarcal, com a imposição e naturali-
zação, à mulher, de papéis submissos. É sabido haver um excessivo número de con-
tos com final feliz no casamento ou a representação da mulher como responsável
pelos afazeres domésticos, sob o comando de maridos, padrastos, reis ou príncipes.
Nas cartilhas escolares é também enfatizado o lugar dos gêneros na sociedade: é pre-
dominante a imagem de “mulheres de avental na porta da casa, acenando para mari-
dos de terno e gravata que saiam para o trabalho” (ROSENBERG apud ANDI, 2005:
28). A representação da família é sempre baseada em valores heterossexuais e estru-
turada em torno de pais casados cuja mãe está destinada ao trabalho doméstico e o
pai ao trabalho remunerado fora de casa. No sentido de romper com esta estrutura
familiar hegemônica, a escritora Manuela Bacelar lançou, em fevereiro de 2008, em
Portugal, um livro infantil que conta a história da menina Maria, filha de dois pais,
Pedro e Paulo
72
. Apesar de manter o padrão da estrutura familiar, o livro avança
na complexificação das formas de composição desta família, abrindo espaço para as
relações homoafetivas no imaginário social.
O terceiro principal vetor de um regime socialmente fascista em termos de produção
simbólica é a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia. Ao
longo de seu trabalho teórico, Boaventura Santos tem caracterizado a modernidade
ocidental como um paradigma fundado na tensão entre regulação e emancipação
social (2005a). A regulação social tem por base os princípios de Estado, comunidade
e mercado, enquanto os pilares da emancipação social são a racionalidade estético-
expressiva das artes e literatura, a racionalidade instrumental-cognitiva da ciência e
tecnologia e a racionalidade moral-prática da ética e do direito (ibidem: 77). No sécu-
lo XIX, com a consolidação do capitalismo liberal, emergiram violentamente as con-
tradições do projeto moderno, de modo que os pilares da emancipação foram paula-
tinamente impregnados pelo pilar da regulação. Deste modo, no domínio da racio-
nalidade cognitivo-instrumental há um “desenvolvimento espectacular da ciência, na
conversão gradual desta em força produtiva e no conseqüente reforço da sua vincu-
lação ao mercado” (ibidem: 82 e 83).
A capacidade da ciência na construção de regimes de verdade e o privilégio episte-
mológico a que se arrogou nos últimos séculos construiu ou colaborou para aquilo
131
72 Para a surpresa dos editores e autora, no lançamento de O Livro do Pedro, em Lisboa, estavam na
platéia inúmeros idosos, público usualmente tido como mais conservador. Um vídeo de entrevista
com a autora está em: www.youtube.com/watch?v=seivtFN8ns0. Notícias sobre o lançamento dispo-
nível em: http://dn.sapo.pt/2008/03/01/dngente/ilustrar_todos_afectos.html.
....................
que Boaventura Santos designa por “monocultura do saber”. Para o autor, esta é uma
das formas mais poderosas de produção da não-existência, isto é, tudo aquilo que
está fora dos critérios de verdade da ciência moderna, é desqualificado, desprezado e
invisibilizado de modo irreversível (2006b: 102). A universidade é um dos veículos
através do qual os cânones da ciência se consolidam como exclusivos da produçao
de conhecimento. Qualquer conhecimento produzido fora dos domínios da ciência
e, conseqüentemente, da universidade, sob este prisma, é classificado de “ignorân-
cia”.
Santos apontou, sobretudo, a ciência moderna como grande instrumento epistemici-
da da modernidade, quando esta deliberadamente arrasa, marginaliza ou descredibi-
liza todos os conhecimentos não científicos que lhe são alternativos, tanto no norte
como no sul (SANTOS, 2006b: 155). A voracidade epistemicida da ciência moderna
atravessa os diversos vetores de imposição simbólica. Ela está presente na construção
dos valores hegemônicos da mídia e da publicidade, especialmente no que diz res-
peito à construção da saúde (SFEZ apud PRADO, 2008) e de regimes de controle do
corpo. Sob as argumentações científicas constroem-se os padrões de qualidade de
vida, juventude, beleza, prazer, performance sexual, como demonstra Prado para o
caso das revistas semanais de circulação nacional no país:
as reportagens que se pode ler na mídia semanal e na televisão sobre a Saúde, sobre
qualidade de vida, sobre o corpo, constituem, em geral, um grande projeto narrativo
transformacional do corpo do indivíduo e do planeta, apoiado nos discursos da ciên-
cia (medicina, genética, biotecnologia, biologia molecular, ecologia, informática) e
divulgado pelo marketing e pela publicidade, em forte interação com as empresas vol-
tadas para esse mercado, como a farmacêutica, a de cosméticos, as academias, as de
produtos de ginástica e esportes etc. (PRADO et al, 2008)
A racionalidade estético-expressiva das artes, à semelhança da ciência e da tecnolo-
gia, foi amplamente colonizada pelo princípio de mercado, especialmente na segun-
da metade do século XX, constituindo o quarto vetor importante dos regimes de fas-
cismo simbólico. Os valores hegemônicos pautados pela produção cultural do oci-
dente nos últimos 500 anos dizem respeito a uma cultura eurocêntrica, masculina e
branca, produzida sob os auspícios da modernidade. Os livros de história da arte
dedicam vários capítulos a movimentos artísticos como Renascimento, Barroco,
Modernismo e seus artistas máximos, como Michelangelo, Rembrandt e Picasso, ou
na música, Monteverdi, Bach e Schoenberg e pouquíssimo espaço (ou nenhum) para
a arte produzida no oriente, em África ou na América Latina.
Uma discussão no sentido de apontar a invisibilidade feminina vem sendo travada
especialmente nos EUA no que concerne à história da arte (DEUSTCHE, 1996).
Trata-se de trazer à tona o quanto as artistas mulheres têm sido alijadas de inscrição
no processo histórico de produção cultural. É sabido da participação importante de
mulheres artistas nos principais movimentos das artes visuais nos últimos quinhen-
132
tos anos, contudo, os livros de história da arte não as citam, mesmo nos casos em
que tenham sido reconhecidas em seu tempo (JALLAGEAS, 1999). Desta maneira, é
perpetrado um apagamento da memória destas produções, ao mesmo tempo em que
se constrói no imaginário popular a falsa verdade de que não existiram mulheres
artistas com obras relevantes nos últimos cinco séculos.
É desta visão restrita de cultura também que resulta a distinção entre arte erudita e
arte popular, numa evidente hierarquização entre ambas, na qual a arte popular é
sempre uma produção de menor valor ou mesmo classificada como artesanato, ao
invés de arte. Outra tendência cultural hegemônica em tempos de supervalorização
do multiculturalismo é a folclorização de culturas tradicionais, buscando facilitar sua
absorção como produto “exótico” para consumo. Diversos autores têm criticado o
conceito eurocêntrico de multiculturalismo em voga nas últimas décadas. Para Zizek
(2006), por exemplo, multiculturalismo é a lógica cultural do capitalismo global e
também uma forma de racismo, mediante a afirmação da superioridade dos valores
culturais hegemônicos e esvaziamento político da discussão acerca de relações de
poder desiguais.
Nesse sentido, vale destacar uma tentativa de desqualificação do hip-hop como músi-
ca de qualidade, feita pelo maestro Julio Medaglia, ao propor um debate na internet,
na página da rádio Cultura
73
. O ponto de partida para a discussão era questionar
se o hip-hop seria uma aceitação pacífica dos jovens da periferia de valores impostos
pelos Estados Unidos e se seria também um afastamento da música brasileira das raí-
zes africanas. No entanto, os participantes não se deixaram pautar, revidando com
respostas provocativas:
é muito fácil criticar um gênero ou uma cultura quando vc esta fora dela... é uma visão
simplista falar que a cultura africana não está influenciando a vida cultural do país,
sendo ele maestro de música erudita..... e além disso como ele pode querer criticar a
influência da música americana, sendo ele especialista em música originária da
Europa? (ANÔNIMO, 18/12/2007)
Em sua resposta, o internauta evidencia o paradoxo do maestro, que rege majorita-
riamente músicas clássicas européias em seus concertos, em querer apontar uma falta
de nacionalismo do hip-hop. O que está posto nesta proposta de debate é, ao con-
trário do pretenso nacionalismo defendido, a desqualificação de uma arte própria
feita pelos jovens negros da periferia.
Milton Santos, em sua última entrevista, em 2001, ao discutir globalização, apontou
para esta maneira de desqualificar a cultura construída pelos pobres, a qual não é
nem mesmo nomeada de cultura, já que esta produção e designação seriam reserva-
das a parcelas privilegiadas da sociedade:
133
73 Este debate pode ser conferido em: www.radarcultura.com.br/node/173.
....................
há uma multiplicidade de fenômenos de baixo, que a gente não dá importância, por-
que a gente dá mais importância à chamada violência. Os jornais falam da violência
dos bairros mal-falados, porque violentos [...] as outras formas todas de manifestação,
que são propriamente culturais, mas que não aparecem com esta aura de cultura que
é reservada, digamos assim, a parcelas já privilegiadas que fazem cultura. Os outros
fazem outras coisas. A gente não admite dizer imediatamente que o que eles fazem é
cultura. Porque o que eles fazem é cultura e é política ao mesmo tempo (SANTOS
apud TENDLER, 2007)
Percebe-se, portanto, que estamos diante de mecanismos complexos e sutis de cons-
trução simbólica, cujos resultados nem por isso são sutis: a violência decorrente da
naturalização de preconceitos é avassaladora. Cotidianamente muitos negros no
Brasil são humilhados silenciosamente, por exemplo, ao serem barrados na entrada
de casas noturnas, restaurantes e clubes, ou ostensivamente, como faz a polícia ao
abordar jovens negros de modo violento e acintoso, deixando de lado qualquer pre-
ceito legal da presunção de inocência ao lidar com este grupo social.
Com efeito, a violência resultante da construção simbólica hegemônica vai desde a
violência moral do segurança do supermercado, que persegue clientes negros, até a
violência física que leva à morte, como foi o caso de Alberto Adriano, na Alemanha,
em 2000. O moçambicano de 39 anos foi atacado por um grupo de skinheads quan-
do voltava para casa depois de ver um jogo de futebol com amigos, em Dessau
74
.
Após o episódio, mais de vinte hiphoppers se juntaram para homenageá-lo, lançan-
do a música Adriano (letzte Warnung), em português: Último aviso
75
. Estes músi-
cos formaram o grupo Brothers Keepers e desde então têm uma importante atuação
na luta contra o racismo na Alemanha.
O mesmo mecanismo de construção simbólica e de naturalização de preconceitos
funciona contra as vítimas de homofobia, sexismo e xenofobia. No caso das brasilei-
ras em Portugal, há uma falsa sinonímia com a prostituição, acarretando em dificul-
dades para estudantes alugarem casas e quartos naquele país ou mesmo, não raro, a
extradição ao entrar na Comunidade Européia, como foi o episódio narrado por
134
74 Mais informações: www.vozdipovo-online.com/conteudos/cplp/alemanha_presta_homena-
gem_a_ mocambicano _ alberto_adriano/
75 A música é composta por falas de diversos hiphoppers, em alemão e inglês, com o intuito de
narrar o que aconteceu na noite do assassinato e mostrar indignação contra o episódio. Um dos tre-
chos, cantado por Adé, diz: “seventh sunday after Easter a fellow brother’s executed in his prime /
Adriano’s crime: wrong place, wrong time / I can still hear the voice of anguish fading through the
night / it was an unfair fight! / 3 versus 1, God they caught him by surprise / xenophobia’s on the
rise, victims get dehumanised / Procedures standardised as the lands germanised / Names become
numbers while death is trivialised”. O videoclipe da música está disponível em:
....................
http://br.youtube.com/watch?v=OuLf4-JUZF0&feature=PlayList&p=5D4504907F8FA09C&index=7
Patrícia Magalhães e divulgado em várias listas pela internet
76
. A mestranda da
USP, em fevereiro de 2008, iria apresentar um artigo em um Congresso em Lisboa,
quando foi detida pela polícia ao desembarcar em Madri, onde faria conexão para a
capital portuguesa. Em seu relato conta que só foi ouvida pelas autoridades espanho-
las depois de quase trinta horas de cárcere numa sala desconfortável e sob tratamen-
tos degradantes, sem acesso a seus produtos de higiene pessoal e medicamentos:
sobre as instalações do cárcere só tenho a dizer que se tratava de um ambiente degra-
dante. No primeiro dia, não havia lugar para todos sentarem e tive que ficar uma boa
parte do dia sentada no chão, inclusive na hora do almoço. Na janta, fazia frio não
queria comer no chão, então fui comer sentada na bancada do banheiro
(MAGALHÃES, 2008)
O grupo de brasileiras, e outras latino-americanas provenientes da Venezuela que che-
garam no vôo seguinte, foi enviado de volta para seus países de origem após horas
de detenção e entrevistas inúteis. Os homens foram liberados para prosseguir suas
viagens.
A construção da imagem da brasileira como prostituta no exterior já não tem como
causa apenas os folhetos de informação turística cheios de mulheres de biquíni
77
.
Constantemente na mídia de diversos países, quando o assunto é prostituição, é dado
destaque às brasileiras, não obstante não serem as únicas a trabalharem nesta ativida-
de. Além disso, programas televisivos, mesmo humorísticos e fora do jornalismo, rei-
teradamente fazem anedotas a este respeito. Em janeiro de 2008 a APEB Coimbra
(Associação de Pesquisadores e Estudantes Brasileiros em Coimbra) notificou o canal
televisivo SIC e denunciou às autoridades competentes de Portugal um dos quadros
do programa Mini-Malucos do Riso no qual constava a fala: “pelo que já ouvi dizer o
Brasil é só prostitutas e futebolistas”
78
. O grupo Câmbio Negro manifestou em
uma música, de 1996, sua indignação sobre este tema: “é incompreensível, inadmis-
sível que as únicas imagens que têm de nós / é de que todo brasileiro é desonesto e
ladrão / de que toda brasileira é puta rampeira [...] Quem não se lembra do que acon-
135
76 o caso, inicialmente, teve pequena repercussão na mídia brasileira, mas saiu na página G1 do
Globo online: http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL307027-5605,00-NUNCA+TINHA+
ME+SENTIDO+TAO+HUMILHADA+DIZ+ESTUDANTE+BARRADA+NA+EUROPA.html.
Com o aumento das extradições pela Espanha, o governo brasileiro se posicionou e os jornais deram
maior destaque para o assunto. Na edição de maio de 2008, a revista Cláudia publicou a reportagem
“Brasileira = Prostituta: É Assim que a Europa Nos Vê”, sobre a discriminação contra brasileiras em
Portugal e na Espanha.
77 Sobre a questão da representação das brasileiras no exterior, escrevemos recentemente o artigo
As Mulheres, as Brasileiras e a Batalha Simbólica, a ser publicado em Portugal em livro acerca do tráfico
internacional de mulheres para fins de exploração sexual.
78 vídeo disponível em http://br.youtube.com/watch?v=vw3o8GMKFg8
....................
teceu em Portugal? / mulher chamada de puta, homem de marginal (CÂMBIO
NEGRO, Auto-Estima).
Em tempos da luta contra o terror deve-se ressaltar o crescimento do preconceito
contra árabes e muçulmanos em nível mundial, cuja ilustração mais marcante para a
sociedade brasileira foi o assassinado de Jean Charles de Menezes, pela polícia britâ-
nica, no metrô de Londres, em julho de 2005. O brasileiro, confundido com um
homem-bomba, foi assassinado com oito tiros à queima-roupa por policiais à paisa-
na
79
.
O racismo, a homofobia, o sexismo, a xenofobia, a discriminação a grupos sociais
como sem-teto, sem-terra, imigrantes de países pobres e outras formas de preconcei-
to são um problema social perpetuado, incentivado e construído por meio de repre-
sentações simplificadas e distorcidas de grupos sociais e pela imposição de um pen-
samento único acerca do que é socialmente bom e certo.
A escolha destes exemplos internacionais foi propositada, tendo em vista demonstrar
que as representações impostas e a produção unidirecional de sentidos não são exclu-
sivas da sociedade brasileira, mas sim um fenômeno que diz respeito a todos. No
Brasil, os principais grupos a sofrer com estas (re)produções simbólicas, hoje em dia,
são a população da periferia, movimentos sociais, pobres, negros, mulheres e homos-
sexuais. Alguns destes grupos têm ligação direta com o hip-hop e serão discutidos
mais adiante. O que se nota, de todo modo, nestes casos, é uma violência decorren-
te da naturalização de preconceitos que permeia o cotidiano dos grupos vítimas deste
regime de fascismo simbólico. A naturalização é um processo lento de consolidação
de algo externo em algo que é próprio. Quando alguma coisa ou processo é natura-
lizado, mecanismos instintivos e espontâneos são acionados e não há mais reflexões
críticas ou dúvidas sobre aquilo que foi naturalizado e internalizado. Deste modo, a
sociedade produz e reproduz constantemente os valores hegemônicos de dominação
e subalternização de grupos minoritários.
Para além da violência moral e psicológica, das conseqüências da naturalização de
preconceitos, que acarreta em danos permanentes na subjetividade e formação iden-
titária, não são raros os episódios dramáticos, como o caso de Alberto Adriano,
Patrícia Magalhães e Jean Charles. Todos estes citados foram midiatizados e corres-
pondem a uma parcela ínfima do que significa viver cotidianamente sob a violência
e a dominação simbólica (BOURDIEU, 1999). Apenas as vítimas da estigmatização
social é que percebem a perversidade da violência causada pelo preconceito natura-
lizado.
136
79 O incidente levou o Ministério das Relações Exteriores a publicar uma nota oficial repudiando
a ação da polícia britânica e solicitando esclarecimento dos fatos. Este episódio teve bastante desta-
que na mídia nacional. As informações estão bem organizadas na wikipédia:
http://pt.wikipedia.org/wiki/ Jean_Charles_ de_Menezes
....................
Nesse sentido, são de grande valia discussões advindas da psicologia social, com espe-
cial atenção para José Moura Gonçalves Filho e aquilo que designa por “humilhação
social”, a manifestação de um sofrimento político resultante de um processo de invi-
sibilidade pública (2004: 21 e 22). A humilhação social é um sofrimento longamen-
te aturado e ruminado pelos mais pobres, que, no caso brasileiro, “começou por gol-
pes de espoliação e servidão que caíram pesados sobre nativos e africanos, depois
sobre imigrantes baixo-assalariados: a violação da terra, a perda de bens, a ofensa con-
tra crenças, ritos e festas, o trabalho forçado, a dominação nos engenhos ou depois
nas fazendas e nas fábricas” (ibidem: 22).
O pesquisador utiliza o conto “O Caso da Vara”, de Machado de Assis, para escrever
sobre a humilhação social no texto “Invisibilidade Pública
80
. O conto escolhido
é passado no século XIX, no Rio de Janeiro, e os personagens são Damião, semina-
rista fugitivo que pede abrigo a uma senhora viúva para fugir da ira de seu pai; Sinhá
Rita, a viúva; e Lucrécia, uma jovem escrava. A cena toda acontece na sala da senho-
ra viúva que vivia de ensinar escravas a fazer renda e a bordar. Em seu prefácio,
Gonçalves Filho descreve, a partir do conto, a criação de mecanismos sociais sofisti-
cados de violência moral:
a humilhação é angústia que os escravos conhecem bem, fincada na base de sua sub-
missão instintiva ou maquinal. O escravo sofre várias vezes o golpe físico dos maus-
tratos. Sofre continuamente o golpe moral de uma mensagem ‘Inferior! Tu não és um
de nós, trabalha baixo e sem rir ou olha a vara!’. Desde então, o golpe passa a ser espe-
rado mesmo nas circunstâncias em que não vem ostensivamente. O ambiente político
da dominação começa a agir também nas horas de trégua: age por dentro (ibidem: 13).
Não causa espanto a coincidência da escolha deste autor pelo conto “O Caso da
Vara” e o emblema do próprio fascismo enquanto regime político ser também um
fascio, cuja tradução para o português é “feixe de varas”. Na Roma Antiga o feixe era
levado pelo acompanhante dos magistrados com a finalidade de executar as decisões
da justiça, incluindo os castigos físicos. MV Bill conta ao jornalista Marcelo Salles,
da revista Caros Amigos, um dos episódios mais marcantes no início de sua juventu-
de quando trabalhava como entregador num supermercado e sofreu o duro golpe da
vara:
foi acusado de agarrar uma menina de classe média, branca, filha de uma das clientes
do supermercado. Tentou argumentar com seus superiores, tentou falar. Então desco-
briu-se sem voz. Viu que nessa sociedade geralmente a palavra de um branco vale mais
do que a palavra de um negro. Bill ficou destruído por dentro. Aquilo o marcou tanto,
que por um tempo, sempre que seus olhos cruzavam com os de uma menina pareci-
da, ele automaticamente baixava a cabeça (CAROS AMIGOS, 2005: 08)
137
80 Este texto de Gonçalves Filho está no prefácio do livro Homens Invisíveis: Relatos de uma
Humilhação Social (2004), escrito por seu orientando Fernando Braga, sobre o seu trabalho como gari
ao longo de dez anos.
....................
Aos 13 anos, praticamente da idade da pequena escrava do conto machadiano, MV
Bill, como inúmeros jovens pobres e negros, viu-se numa situação kafkiana, sem
saída, na qual certamente seria ele a ser castigado, ainda que sem reconhecer os moti-
vos. Deste dia em diante, seus olhos aprenderam a baixar silenciosamente para evitar
novas e constrangedoras punições. No entanto, diferente da pequena escrava, a voz
de Bill é ouvida e aplaudida hoje em dia por milhares de pessoas, negras e brancas.
Para Gonçalves Filho, a humilhação social de que nos fala é construída cotidiana-
mente, em seu exemplo, pelo uso da vara para punir a pequena escrava, e, no mundo
da vida, pela construção simbólica de um Outro inferiorizado imposto difusamente
no imaginário social. Esta “humilhação social é sofrimento ancestral e repetido”
(GONÇALVES FILHO, 2004: 22), não é constituída no momento da existência do
sujeito, mas sim historicamente. Todavia, atravessa os sujeitos na sua existência e se
perpetua em tempos futuros. Ou, nas palavras do próprio hip-hop:
tiram sarro das pessoas, tiram seu valor / julgam pelas roupas, crença, sua cor / discri-
minam seu pai, sua mãe, seu avô / e só o estilo dos manos já consegue responder / por-
que a policia a toda hora te persegue / ele está caracterizado como ladrão / simples, só
porque vem de lá (NÚCLEO, Onde Tudo Acontece)
séculos e séculos, mulher negra vem sendo desrespeitada / sendo sempre violentada /
agressão física, moral, psicológica se torna natural / num país que acha tudo normal
preconceito racial / a mulher negra é chamada de mulata gostosa / mulher branca de
bonita e de cheirosa [...] esta igualdade midiática não nos ilude / a loura é quase sem-
pre a bonita e eu sou a gostosa (RE-FEM et al, Mulher Negra, Tem que Respeitar)
Em ambos os exemplos há uma consciência acerca da transmissão intergeracional da
humilhação social notada nas frases: “discriminam seu pai, sua mãe, seu avô” ou
“séculos e séculos, mulher negra vem sendo desrespeitada”. Na primeira são duas
gerações anteriores (pais e avós), na outra, o tempo estendido de séculos é que cons-
truiu o desrespeito de gênero e raça contra a mulher negra.
Outra luz jogada por Gonçalves Filho é o fato de este mecanismo agir por dentro.
Trata-se de mecanismos de biopoder, do controle sobre a vida, que em seu grau mais
extremo, constitui os sujeitos. Ou seja, aqueles estigmatizados, os Outros, ao fim e
ao cabo também passam a acreditar no discurso narrativo difundido pelo poder hege-
mônico. Não obstante a humilhação social ser decorrente da interiorização do dis-
curso do dominador, o autor não propõe ou defende sua superação individualmen-
te, como rezam os manuais de auto-ajuda. Pelo contrário, a psicologia social enten-
de que se trata de um sofrimento coletivo e político, de modo que seu enfrentamen-
to deve ser também político para além de psicológico:
a cura da humilhação social pede remédio por dois lados. Exige a participação no
governo do trabalho e da cidade. E exige um trabalho interior, uma espécie de diges-
tão, um trabalho que não é apenas pensar e não é solitário: é pensar sentindo e em
138
companhia de alguém que aceite pensarmos juntos (GONÇALVES FILHO, 2004: 27,
grifo no original).
Sob este aspecto, o Movimento Negro, o Movimento Feminista, o Movimento
GLBT e tantos outros têm ciência da importância da criação identitária de grupo e
da superação coletiva, que também passa pelo individual da humilhação social.
Todos eles trabalham com a elevação da auto-estima e ressignificação simbólica da
identidade do grupo na sociedade como forma de combate à opressão da violência
simbólica. Sérgio Vaz, poeta paulista e idealizador dos Saraus da Cooperifa, que
acontecem todas as quartas-feiras no Bar do Zé Batidão, em Campo Limpo Paulista,
zona sul de São Paulo, abre o sarau com os dizeres:
Vamos começar esta bagaça nesta noite de alegria. Repitam comigo: Povo Lindo! Povo
Inteligente! É tudo nosso, tudo nosso, tudo nosso! Então vamos começar. Sai inveja,
zique-zira, ressentimento, mesquinhez, pequenez! Uh! Povo lindo, meu Deus do céu!
Vamos começar mais um Sarau da Cooperifa. Na periferia!!! E quem tiver vergonha de
ser da periferia pode ir embora agora. Vai! Porque só vai ficar os guerreiros de fé, vaga-
bundo nato! Quem tá com vergonha de ser da periferia vai embora agora! Não há espa-
ço para a mediocridade, vai começar mais um Sarau da Cooperifa [...] Viva o Povo da
Periferia!!!! (VAZ apud PEREIRA, 2007)
Há mais de seis anos o Sarau da Cooperifa, o Sarau do Binho, o Samba da Vela e
outros eventos semanais na zona sul de São Paulo estão colaborando ativamente para
a construção do “orgulho de ser da periferia”, desmontando o preconceito naturali-
zado de que o povo da periferia é feio, incapaz, inculto, analfabeto e inútil para a
sociedade, exceto sob a forma de mão-de-obra barata. Ao contrário, na periferia se
produz pensamento crítico, poesia, teatro, música, crônicas, cinema.
Além da humilhação social, regimes de fascismo simbólico e representações unidire-
cionais amplamente difundidas produzem outras formas de violência, como a cria-
ção de desejos e a formatação de subjetividades. Com efeito, regimes de fascismo
simbólico vinculam-se claramente à microfísica do poder (o poder que está em toda
parte) e ao biopoder (o poder sobre a vida e sobre os processos de subjetivação), pro-
duzindo discursos e regimes de verdade que estabelecem e alimentam hierarquias na
estrutura social na qual um grupo de atores é superior a outro. É no simbólico que
as práticas do cotidiano se estabelecem, cristalizando valores culturais. Por conse-
guinte, é na sociedade de controle (FOUCAULT, 1979; DELEUZE, 1998), com suas
estratégias de marketing (DELEUZE, 1998), publicidade e criação de desejos, que
condições absolutamente desiguais na produção de sentidos se instituiem como um
dos mais potentes e complexos mecanismos de perpetuação das relações de poder.
Para vender produtos, atualmente, não basta explicitar as características técnicas das
vantagens de usá-los, mas há que se criar novas vontades e necessidades. Da propa-
ganda de produtos passa-se a uma propaganda de marcas (PRADO, 2006b: 22). Um
creme hidratante não apenas hidrata a pele, qualidade técnica sequer mencionada na
139
sua publicidade, mas usá-lo significa a possibilidade de ser jovem, bela e bem suce-
dida na competição pela conquista do sexo oposto. Àquelas que não comprarem o
hidratante resta a infelicidade de permanecerem “feias” e “rejeitadas”.
Se nas camadas mais ricas a pressão da publicidade em uma sociedade de consumo
que valoriza mais o ter que o ser é um dos fatores para a depressão e angústia, não é
diferente para as classes pobres: “é embaçado saber que a propaganda na TV / de
carro, casa própria, não foi feita pra você [...] sei que muito pouco sonhar apenas
com comida / quem não quer ter uma casa com piscina? / um cargo bom ao invés
de comer lixo? / um carro importado último modelo esportivo?” (FACÇÃO CEN-
TRAL, Apologia ao Crime). O que se nota nessa letra, contudo, para além da vonta-
de legítima pela casa própria ou de um bom emprego, é a criação dos mesmos dese-
jos de consumo das classes médias e altas: carro importado e casa com piscina.
Nas sociedades disciplinares as massas eram organizadas a partir do seu confinamen-
to em instituições e a subversão dos padrões estabelecidos de poder passava pelo boi-
cote ou desestruturação destas instituições. Nas sociedades de controle faz-se neces-
sário desmontar as construções simbólicas dominantes. A resistência não se dá mais
contra as instituições, mas na desconstrução dos regimes de fascismo simbólico.
Nesse sentido, o trabalho A Invenção do Mesmo e Outro na Mídia Semanal, desenvolvi-
do pelo Grupo de Pesquisa em Mídia Impressa da PUCSP, tem muito a colaborar
para a desconstrução dos regimes de verdade produzidos pela grande mídia. A partir
da pergunta “é possível educar para a mídia?”, Prado, coordenador do projeto, defen-
de a elaboração de um material paradidático para uso nas faculdades de comunica-
ção, cursos na área das humanidades de um modo geral e também escolas de segun-
do grau e bibliotecas comunitárias:
a construção de um dispositivo hipermidiático de educação para a mídia visa dar ao
leitor dados, informações e textos verbais/visuais para que ele possa comparar reporta-
gens de veículos diferentes, tornando-se um leitor preparado para não se deixar con-
duzir acriticamente pelas estratégias discursivas e comunicativas de certos dispositivos
enunciadores conservadores e autoritários (PRADO, 2006a)
A principal intenção da pesquisa é fornecer ao seu destinatário final “um ambiente
pluridimensional para que ele perceba que não precisa de um enunciador carregado
de certezas e de saberes, que pode recusar o enunciador-totalizador e onisciente”
(Ibidem, 2006a). Há, conseqüentemente, a possibilidade de desconstrução de repre-
sentações impostas, por parte deste usuário, que sequer nota estar imerso em precon-
ceitos interiorizados, mediante um processo de desnaturalização de valores hegemô-
nicos. Trabalhos como estes são fundamentais para apontar caminhos na direção de
uma sociedade mais tolerante e sem medo do Outro, conduzindo a uma ecologia de
saberes e sem desperdício dos múltiplos conhecimentos importantes para a consoli-
dação da democracia no século XXI (SANTOS, 2006a).
140
No entanto, a velocidade de construção dos regimes de verdade é turbilhonar. Por
isso, a luta para miná-los deve ser cotidiana e constante, não sendo suficientes ações
pontuais no tempo e no espaço. Sob este aspecto, a resistência deve operar microfi-
sicamente para a emergência, também simbólica, de realidades plurais e diversas que
estão invisibilizadas ou inferiorizadas pelos enunciadores hegemônicos. Aliás, estes
enunciadores estão sendo constantemente analisados e denunciados pela hiphoplo-
gia da periferia, que diz não saber “até que ponto eles são sérios / se para classificar
minha aparência é o seu critério” (NÚCLEO, Onde Tudo Acontece).
Desta maneira, as práticas artísticas e culturais que proliferam nas periferias das gran-
des cidades são também práticas discursivas que vêm de fato ampliando a possibili-
dade de ressignificação simbólica do mundo contemporâneo. Escritores como Paulo
Lins, Ferrez, MV Bill e Celso Athayde
81
, mais do que originários da periferia ou
“simples” escritores da periferia, estão mostrando uma nova maneira de fazer litera-
tura, outra escola que não vem das camadas sociais formalmente educadas. Não
fazem uma literatura marginal, ainda que estejam socialmente à margem. Fazem a
nova literatura nacional. Do mesmo modo, diversos cineastas têm produzido filmes
de baixíssimo orçamento, porém de alta qualidade informativa e de linguagem, com
características próprias, sem mimetismos ou preocupações dialógicas com os padrões
culturais hegemônicos.
Esses trabalhos estão inscrevendo, a seu modo, a periferia no mundo contemporâneo
sem pedir licença, sem sequer terem por preocupação central a aprovação dos deten-
tores do saber erudito. A luta por reconhecimento é mais pela aceitação da diferen-
ça do que pela igualdade: “só seremos iguais quando pudermos ser diferentes”, con-
forme afirma Chullage, hiphopper de Lisboa
82
.
É nesta direção que João Cezar de Castro Rocha, professor de Literatura Comparada
na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, defende uma dialética da marginalida-
de para caracterizar a sociedade brasileira contemporânea, em contraposição à dialé-
tica do malandro, de Antonio Cândido. Na dialética da marginalidade a superação
das desigualdades sociais é feita por meio de confronto e não de conciliação, da expo-
sição da violência e não de seu ocultamento. Segundo o autor: “o enfrentamento des-
ses dois modos de compreender o país cria uma ‘batalha simbólica’ “ (ROCHA,
2006: 23, aspas no original).
141
81 Paulo Lins escreveu Cidade de Deus (1997); Ferrez, Capão Pecado (2005), Manual Prático do Ódio
(2003) e Ninguém é Inocente em São Paulo (2006); MV Bill e Celso Athayde escreveram Cabeça de Porco
(2005), junto com Luis Eduardo Soares, Falcão: Meninos do Tráfico (2006) e Falcão: Mulheres e o Tráfico
(2008).
82 Em conversa descontraída com esta pesquisadora.
....................
Não se trata de substituir o modelo de entendimento do país proposto por Cândido,
mas, ao contrário, a idéia é de confrontá-lo. Na dialética da malandragem formulada
por Antonio Candido em 1970, a explicação para a formação social do Brasil foi
baseada numa negociação entre os pólos de ordem e desordem levada a cabo pelo
“malandro”, cujas qualidades maiores são o gingado e o levar vantagem em tudo.
Nesse entendimento, a formação social se dá pelo acordo e não pela ruptura, já que,
afinal, o malandro almeja ser absorvido pelo pólo da ordem e a violência é controla-
da mediante compensação reconciliatória (CANDIDO apud ROCHA, 2006: 33).
Rocha, contra-argumentando Cândido, propõe uma dialética da marginalidade e usa
de início, para expor seu ponto de vista, a fratura evidente entre a versão literária e
cinematográfica de Cidade de Deus, livro escrito por Paulo Lins (1997) e filme dirigi-
do por Fernando Meirelles (2002). Se a versão para cinema acredita na velha ordem
de conciliação das diferenças (ROCHA, 2006: 31), o livro é uma profunda crítica das
desigualdades sociais, sem espaço para apaziguamento. O que está em causa é uma
disputa sobre a representação simbólica do país (ibidem: 33). Na proposta de Rocha,
a dialética do malandro está sendo substituída, ou ao menos desafiada, pela dialéti-
ca da marginalidade, a qual pressupõe a superação das desigualdades sociais pela con-
frontação e exposição da violência (ibidem: 36). Interessa ao autor, a partir dessa
constatação, identificar as representações culturais e simbólicas da violência e não
exatamente os dados estatísticos sobre violência e criminalidade no país.
Na batalha simbólica identificada e analisada por Rocha, o hip-hop se insere muito
mais por meio do confronto proposto pela dialética da marginalidade do que pela
conciliação do malandro. Para além de denunciar claramente os abusos policiais, o
sistema judiciário racista, o abandono e a violência à que está exposta a população
das periferias do país, o hip-hop tem, nas suas estratégias de ação e na sua estética, o
princípio do confronto e da ruptura com os valores vindos de fora.
Sob este aspecto da ruptura, o hip-hop é “pós-abissal”, de acordo com a proposta
conceitual de Boaventura Santos (2007b). O pensamento pós-abissal é aquele capaz
de suplantar o pensamento abissal da modernidade, entendido pelo o autor como
um
sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visí-
veis. As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a
realidade social em dois universos distintos: o universo “deste lado da linha” e o uni-
verso “do outro lado da linha”. A divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece
enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente.
Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível
(SANTOS, 2007b: 01)
A modernidade está assente em pilares de regulação e emancipação apenas nas socie-
dades metropolitanas, o “universo deste lado da linha” (ibidem). Para Santos, os ter-
142
ritórios coloniais, o “outro lado da linha” (ibidem), não podem ser compreendidos
dentro da dicotomia emancipação/regulação, mas pela dicotomia apropriação/vio-
lência (ibidem: 02). No campo do conhecimento, por exemplo, o pensamento abis-
sal concedeu à ciência moderna a prerrogativa da distinção entre o “verdadeiro” e o
“falso”, em detrimento da filosofia e da teologia, epistemologias que lhe são alterna-
tivas. As tensões entre ciência, filosofia e teologia sempre foram altamente visíveis,
uma vez que acontecem deste lado da linha. Do outro lado da linha, estão invisibi-
lizadas diversas formas de conhecer, como o conhecimento indígena ou popular, que
“desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem
para além do universo do verdadeiro e do falso” (ibidem: 03).
Estes conhecimentos são apropriados e suas populações violentadas, sem qualquer
contradição com os pilares da regulação/emancipação, uma vez que a apropriação e
violência fazem parte do pensamento abissal moderno, amplamente aceite conquan-
to aplicado do lado de lá da linha, conforme explica Boaventura Santos. A apropria-
ção traduz-se pela “incorporação, cooptação e assimilação, enquanto a violência
implica destruição física, material, cultural e humana” (ibidem: 08). Em períodos
pós-coloniais, as linhas abissais deixam de corresponder claramente, em termos loca-
cionais, às colônias e às metrópoles, movimentando-se de maneira bastante comple-
xa no interior das sociedades contemporâneas: Guantánamo, Iraque, Palestina, Dafur
ou mesmo as zonas segregadas nos espaços urbanos são alguns dos exemplos citados
pelo autor.
O pensamento pós-abissal, ao contrário de excluir e invisibilizar, reconhece que “a
diversidade do mundo é inesgotável e que esta diversidade continua desprovida de
uma epistemologia adequada” (ibidem: 22). Desta maneira, um pensamento crítico
que permaneça derivativo sem reconhecer as linhas abissais, por mais anti-abissal que
se autoproclame, continuará a reproduzir estas linhas. É nesse sentido que o pensa-
mento pós-abissal envolve uma ruptura profunda com o pensamento e as formas de
ação modernas. Em outras palavras, trata-se de pensar “a partir da perspectiva do
outro lado da linha, precisamente por o outro lado da linha ser o domínio do impen-
sável na modernidade ocidental” (ibidem: 24). O hip-hop e as artes das periferias
rompem com os modelos hegemônicos de linguagem e ação, produzindo uma res-
significação simbólica dessas periferias a partir de seus próprios referenciais. É mudar
o lugar sem mudar de lugar, uma heterotopia. Com esta ruptura referencial, tanto o
hip-hop quanto a dialética da marginalidade são pensamentos pós-abissais.
O graffiti subverte o espaço urbano com suas inscrições não permitidas por toda a
cidade, demarcando territórios e expondo afiadamente a existência de uma popula-
ção historicamente invisibilizada. Alguns anos atrás, em uma tentativa de regulamen-
tar o graffiti, o prefeito eleito de São Paulo, José Serra (2005-06), propôs um projeto
de lei que distinguia o graffiti da pixação, permitindo um e enquadrando criminal-
mente o outro. A questão colocada na época era quem decidiria o que seria um ou
143
outro: um conselho formado por burocratas, por teóricos, por artistas da academia?
Na inviabilidade de enquadrar o graffiti sem cair em categorias que pudessem beirar
o risível, o projeto não se concretizou.
As músicas do rap têm uma característica que as mantém permanentemente em con-
fronto simbólico: o uso despreocupado da língua portuguesa, conforme digerido e
utilizado nas ruas. Muitas letras sequer têm registro escrito, numa clara valorização
da tradição oral sobre a ditadura da escrita imposta pelo ocidente, especialmente nos
últimos cinco séculos. Em um dos versos de “Negro Drama”, dos Racionais MCs, é
afirmado: “gíria não, dialeto”. Quer dizer, não se trata de “linguajar rude” ou “pobre”,
mas, ao contrário, é um mecanismo de coesão do grupo, no qual ele se reconhece e
pensa seu mundo. A insistência neste modo de falar implica em criar um confronto
contra a imposição externa dos vocabulários da língua culta e de suas regras grama-
ticais e a construção de um modo próprio de se expressar.
Para ilustrar do que trata a discriminação e hierarquização lingüística, vale mencio-
nar o desmérito do português brasileiro em Portugal, ou o desprestígio e desincenti-
vo aos criolos falados em Cabo-Verde e Guiné-Bissau. No caso de Cabo-Verde, a con-
solidação do ensino formal naquele país, na segunda metade século XIX, foi uma bar-
reira à difusão, enquanto idioma culto, do crioulo, língua amplamente utilizada no
cotidiano, conforme esclarece Manuel Veiga, membro do Grupo de Padronização da
Língua Caboverdiana e atual ministro da Cultura de Cabo-Verde (VEIGA, s/d). A
institucionalização do ensino do português nas escolas, em detrimento da língua
materna dos caboverdianos, criou um contexto de competição desigual no âmbito
político, cultural e lingüístico. Marginalizado pela política colonial, o crioulo de
Cabo-Verde volta ao centro da discussão após a independência, em 1975, com o seu
reconhecimento como língua nacional, porém ainda em situação desigual diante do
português, decretado língua oficial. Atualmente, há um amplo movimento em defe-
sa do crioulo caboverdiano como língua co-oficial. Por intermédio deste breve histó-
rico da língua de Cabo-Verde, percebemos que a valorização lingüística é um ato
político-cultural. Similarmente, quando as músicas do hip-hop enfatizam um voca-
bulário próprio e reforçam o uso coloquial da gramática, estão, de fato, marcando
um posicionamento político legítimo diante de imposições externas acerca do uso da
língua.
Somado ao uso coloquial do português está o conteúdo contundente das letras no
hip-hop, sem qualquer apaziguamento contra os opressores históricos. É travada,
desta maneira, uma batalha frontal contra as representações impostas (de conteúdo e
forma) às quais está fortemente submetida a sociedade brasileira contemporânea.
Dentro do que Rocha denomina de dialética da marginalidade, a ruptura a esta estru-
tura é clara no hip-hop:
eu falo com a boca de um profeta [...] a peste negra está viva, viva / dos pretos pelos
pretos para os pretos com os pretos / todo ódio à burguesia / dos pobres pelos pobres
144
para os pobres com os pobres / orgulho de ser da periferia (CLÃ NORDESTINO,
Introduclã)
Zumbi, o redentor, agora o jogo virou, quilombos guerreou, periferia acordou / cansa-
mos de promessas, volta pro mato capitão / pois já estamos em guerra (Z’ÁFRICA
BRASIL, Antigamente Quilombo, Hoje Periferia)
São muitos os exemplos nos quais a população da periferia, consciente de sua histó-
ria e do seu papel social, se contrapõe à lógica da cordialidade do malandro. Em
entrevista sobre as representações da periferia pela mídia impressa, Wagner Tavares,
do núcleo cultural Força Ativa, defende veementemente:
aproximação com a elite? Não existe [...] O que é conciliação? Quando eu concilio,
concilio pra lá ou pra cá? Se puxar pra lá, eu to morto, se puxar pra cá, ele que se foda.
[...] Quer entrar em acordo? Então me paga 345 anos de escravidão, aí a gente entra
em acordo. Se não pagar eu tô fora. Porque, quando chamam pra mesa de negociação,
você tá em qual mesa? A sua mesa ou a minha? [...] Quando sentou na mesa de nego-
ciação, tá morto (TAVARES, 2007, depoimento para a autora)
O que se percebe aqui é um desenho de espaço público de confronto, ao contrário
do espaço de consenso de Habermas (1997). As vozes dos oprimidos históricos foram
propositadamente silenciadas pela indiferença das classes dominantes, indiferença
que “é o maior dos males, praga que viajou por céus e mares e dominou o planeta”
(NÚCLEO, Poupe Minhas Lágrimas). Estas vozes estão se colocando irreversivel-
mente nas periferias sem a pretensão de negociação e, mais, sem pedir a legitimida-
de das vozes hegemônicas, por isso, vozes pós-abissais. Desde as narrativas da violên-
cia à qual a população da periferia está exposta no dia-a-dia até uma proposta de rees-
crever a história do país a partir do ponto de vista dos oprimidos, re-situando os
heróis negros e indígenas na formação do imaginário nacional, o HH tem se mostra-
do uma arma eficiente no combate à humilhação social da qual estas populações têm
sido historicamente vítimas.
Muitas vezes, as batalhas do hip-hop estão fora das músicas e de suas vertentes artís-
ticas, mas na “atitude”, no comportamento de seus multiplicadores. As mulheres do
hip-hop, por exemplo, têm conseguido se posicionar firmemente contra o sexismo
dentro do movimento, o que veremos mais demoradamente adiante. Sem nomear o
conceito, as artistas têm plena consciência das imposições simbólicas a que estamos
submetidos:
tem coisas que eu vejo na revista [de grafite] e me dão muita raiva [...] Tem páginas ali
com uma menina pintando... Beleza! [...] Aí você vira a página, tem uma mina passan-
do na rua porque os caras tiraram foto da bunda dela. Beleza? Legal? Não acho! [...]
Você vira mais uma página e tem uma menina com os peitos de fora. Não tô falando
dos peitos dela que tão de fora, porque aí os peitos são dela, mas sim da tag em cima
dela. O cara vai lá e assina de canetão em cima dos peitos da mina [...] Chega uma
menina do Chile, muito boa, por sinal, faz um trabalho lindo. Aí tá em cima da foto:
145
‘o trabalho dela é tão louco que nem parece de menina!’. Eu vejo isso e me dá uma
revolta tão grande (SÓ CALCINHA apud LEAL, 2007: 309)
A construção do preconceito de gênero, que não é exclusiva do hip-hop, permeia
toda a sociedade em diversos níveis simbólicos. Da imagem gratuita do corpo da
mulher na revista até as legendas tão preconceituosas quanto naturalizadas, há, nas
entrelinhas, repetidamente, a seguinte mensagem: “apesar de ser ...., é bacana”. Esta
lacuna pode ser preenchida por qualquer grupo que sofre todos os dias as agruras dos
regimes de fascismo simbólico: negro, pobre, mulher, muçulmano etc., denotando
uma estrutura discursiva simples e extremamente eficiente nas perpetuações de valo-
res hierarquizados e hierarquizantes.
Todavia, a grafiteira, apesar de identificar as estruturas do poder simbólico que per-
meia a citada revista, ela não deixa de reproduzir os estereótipos acerca da mulher,
ao adotar, como nome artístico, uma peça da intimidade feminina: Só Calcinha. Este
codinome traz à tona o peso do olhar do homem sobre o corpo da mulher. Não por
acaso, a bandeira das lutas feministas dos anos 60, nos Estados Unidos, foi queimar
os sutiãs em manifestações públicas. O poder das representações hegemômicas
impostas por regimes de fascismo simbólico na construção da subjetividade é tão
forte que, não raro, mesmo os mais atentos podem cair nestas armadilhas.
Retomaremos a discussão sobre hip-hop e gênero adiante.
De um modo geral, se a guerra simbólica está longe de acabar, ao menos algumas
batalhas vêm sendo paulatinamente vencidas pelo hip-hop e pelos guerreiros da peri-
feria. O que se nota é que regimes de fascismo simbólico são impostos de cima pra
baixo, numa relação desigual de poder, perpetuando valores hegemônicos da socie-
dade capitalista contemporânea, notadamente neoliberal. As decorrências destas
imposições têm resultados concretos nas relações sociais e nos corpos da parte opri-
mida, cuja estratégia de resistência passa, necessariamente, pela ruptura com o mode-
lo imposto e pela ressignificação simbólica.
2. VOZES HEGEMÔNICAS
Vimos que um dos principais vetores de produção e reprodução de representações
hegemônicas é a mídia, incluindo, em seu conjunto, os dispositivos da publicidade.
Em sua lógica de fetichização da realidade e reificação das relações sociais, a mídia
homogeiniza as diferenças sociais no unum mercadológico associado, desde fins do
século XIX, aos valores estadunidenses (SODRÉ, 2002). No panorama internacional,
a produção midiática está restrita a pouquíssimos grupos de comunicação que domi-
146
nam desde a imprensa tradicional à internet, passando pelo cinema, rádio e televisão
(LIMA, 2003). Com o avanço da globalização neoliberal nos últimos trinta anos, em
conjunto com um inchamento do bios midiático, no qual predomina a esfera dos
negócios (SODRÉ, 2002: 25), são pautados e difundidos, por estes poucos grupos, os
valores neoliberais (individualismo, consumo, estado-mínimo, privatização e outros).
No Brasil, a concentração no setor da comunicação repete o padrão internacional. O
setor está entre as maiores concentrações econômicas do país sob a liderança das
Organizações Globo (LIMA, 2003) e do Grupo Abril, no mercado editorial (FNDC,
2007).
Neste cenário não é possível haver diversidade e pluralidade de informação e de pro-
dução simbólica. Por este motivo, a mídia é uma grande produtora unidirecional de
sentidos, construindo um lugar para a ordem estabelecida, do qual fazem parte os
incluídos nos valores e nas possibilidades de consumo impostas pela atual fase do
capitalismo global. Àqueles impossibilitados de participar desta ciranda estão desti-
nados os lugares periféricos ou até mesmo os não-lugares. Os lugares periféricos são
ocupados pelos inferiorizados e estigmatizados e a eles cabe, para além do lugar sim-
bólico, um lugar real e físico na produção capitalista do espaço das cidades: a perife-
ria. A mídia também produz uma série de não-lugares simbólicos, que são, entre
outros, no espaço urbano, os bairros pobres, as ruas, os presídios, jogando na invisi-
bilidade sujeitos e práticas não reconhecidas como legítimas. De modo que a mídia
e as tecnologias da comunicação “constituem filtros poderosos para a incorporação
do relevante e eliminação do irrelevante diante do novo ordenamento do mundo”
(SODRÉ, 2002: 237). Para Muniz Sodré, relevante tem sido tudo o que favorece o
consenso das elites nacionais e transnacionais sobre os processos de concentração de
renda. Por sua vez, irrelevante é qualquer conteúdo resistente “à abstração inapalpá-
vel da lógica do sistema de globalização das formas mercantis” (ibidem: 238).
Na já referida pesquisa A Invenção do Mesmo e do Outro na Mídia Semanal, Prado e
Bairon (2007) delimitam as categorias midiáticas para o Mesmo e para o Outro. Nas
séries de paisagens culturais e políticas euforizadas pela mídia e homólogas à valori-
zação média de seus públicos está o Mesmo. Por sua vez, o Outro midiático diz res-
peito “às séries de paisagens culturais e políticas frente às quais a mídia estabelece dis-
tâncias relativas, calculadas, homólogas ao afastamento que seus públicos mantêm”
(PRADO e BAIRON, 2007: 252). Na distância estabelecida para o Outro, a mídia
institui uma série de estratégias para se resguardar: em alguns casos qualifica-o de exó-
tico, outras vezes deixa-o às margens, ocultado dos holofotes, de modo que este
Outro possa ser assimilado, admitido, segregado ou ainda inscrito como inimigo e,
portanto, excluído (ibidem).
As estratégias da mídia de enquadramento ou afastamento do Outro se assemelham
àquelas empregadas pelo multiculturalismo, conforme defende Zizek em sua análise
(2006). Segundo o autor, o multiculturalismo é a forma ideológica do capitalismo
147
que trata cada cultura local “à maneira do colono que lida com uma população colo-
nizada” (ZIZEK 2006:72). Ambos, mídia hegemônica e multiculturalismo, estabele-
cem relações de distanciamento com o Outro naquilo que, no caso do multicultura-
lismo, Zizek chama de “racismo com distância” (ibidem: 72). A identidade do Outro
é respeitada como uma “comunidade ‘autêntica’ fechada sobre si mesma, em relação
à qual o adepto do multiculturalismo mantém, por seu lado, uma distância que torna
possível a sua posição universal privilegiada” (ibidem: 72, aspas no original). O resul-
tado deste respeito e distanciamento com relação ao Outro constitui uma afirmação
da superioridade do Mesmo.
Este mecanismo de instauração da superioridade com distanciamento é o mesmo que
leva turistas a safáris pela África selvagem e exótica ou, em sua versão pós-moderna,
ao safári urbano pelas favelas cariocas. Nos passeios, turistas estrangeiros vão de jipe,
acompanhados com guia turístico, fazer um tour pelos becos e barracos dos morros
com vista para o mar. Pelo caminho é possível ver e muitas vezes conversar com tra-
ficantes e comprar lembrancinhas nos camelôs locais (TENDLER, 2007). Apesar da
proximidade física do visitante com a favela, não é possível romper o fosso social
entre realidades tão opostas. A exotização da precariedade da favela e de seus mora-
dores expõe o grotesco a partir do qual o “racismo com distância” organiza o mundo.
Se no safári urbano há uma caricaturização máxima do multiculturalismo, muitas
vezes esta sua face é deliberadamente ocultada. É o caso da mercadorização de mani-
festações folclóricas, como aconteceu, por exemplo, no centro revitalizado de Recife,
onde, todas as noites, grupos de maracatu se apresentam para turistas.
Se o multiculturalismo tem uma raiz eurocêntrica, no caso da categorização midiáti-
ca Muniz Sodré identifica a ideologia estadunidense como a requalificadora da vida
social em função da tecnologia e do mercado (SODRÉ, 2002: 26 e 28). Neste ponto
ficam claros os alicerces dos valores do Mesmo baseado, sobretudo, nos valores
impostos pelo “Império Americano”:
nele [bios midiático], estão presentes as marcas essenciais de uma ‘universalidade’ ame-
ricana. Se o Império romano dominou o mundo pela espada e pelos ritos, o Império
Americano controla pelo capital e pela agenda midiática do democratismo comercial
(informação, difusionismo cultural, entretenimento). Não há nada de verdadeiramen-
te “libertário” nos ritos do rock’n roll e do consumo, há tão-só coerência liberal (ibi-
dem: 28, aspas no original)
O autor segue sua argumentação demonstrando a existência de uma “invisível comu-
nidade de gosto” que estabelece um sentido unidirecional (da mídia para o público)
na produção de sentidos, com forte influência normativa, “mas principalmente emo-
cional e sensorial, com o pano de fundo de uma estetização generalizada da vida
social” (ibidem: 44). Tanto a matriz européia como a estadunidense têm em comum
os valores de mercado contidos sob os auspícios da globalização neoliberal, os quais
acabam por delimitar as paisagens culturais e políticas da mídia. Neste contexto, o
148
hip-hop é um dos diversos Outros instituídos pela mídia nacional, uma vez que se
impõe na contra-mão dos valores estabelecidos pela invisível comunidade de gosto
dominante, confrontando-se abertamente com a ideologia de mercado, sem se deixar
inferiorizar pelos padrões estabelecidos pelo Mesmo.
No entanto, de maneira ambígua, o hip-hop em alguns momentos é absorvido pela
mídia, que o incorpora de modo despolitizado, como um estilo musical pronto para
ser consumido pelos públicos diversos. Neste caso, à semelhança da ideologia multi-
culturalista, há um esvaziamento do movimento político-cultural, a fim de enquadrá-
lo e domesticá-lo, por meio das estratégias de marketing, como produto cultural
149
Panfleto turístico de propaganda do Favela Tour, em inglês. Merecem destaques as frases “an illumina-
ting experience” e “don’t be shy, local people greet you in a friendly way”.
2.1.
OO HHiipp--HHoopp nnaa MMííddiiaa
O hip-hop, seus integrantes e seu público são, com efeito, tratados ambiguamente
pela mídia como o Mesmo e como o Outro: ameaçadores da paz e da ordem (ban-
didos, delinqüentes) ou absorvidos pelo sistema, como itens de venda. Ambos os tra-
tamentos estão a serviço da mesma ordem hegemônica do capital.
Ao analisar o comportamento da mídia com relação ao funk e ao hip-hop no Rio de
Janeiro, Micael Herschman (2005), pesquisador da UFRJ, constata uma mudança sig-
nificativa ao tratar estas populações, após os “arrastões”
83
de 1992 e 1993. O
autor observou que desta época em diante, na mídia, em especial na carioca, o termo
“funkeiro” (os freqüentadores e produtores dos bailes funk) passa a substituir a desig-
nação “pivete” para os enunciados referentes às juventudes das zonas pobres da cida-
de (HERSCHMANN, 2005: 69). Em simultâneo à estigmatização do funkeiro, a
mídia também promove a sua glamourização, por intermédio da “espetacularização
e do ‘encantamento’ de práticas e discursos” (ibidem: 104, aspas no original), na qual
ocorre a exotização do Outro.
Em oposição ao afastamento do exótico, como descrito por Herschman ao analisar
o cenário carioca referente ao funk e ao hip-hop, há também a sua absorção domes-
ticada pela mídia. Nesse caso, o movimento hip-hop é esvaziado de seu conteúdo
político e é dada voz a personalidades do mundo pop que a mídia escolhe como
representantes do hip-hop. Esta estratégia de despolitização, de ausência de perspec-
tiva histórica e de endossamento de individualidades bem-sucedidas (dentro do
modelo midiático de sucesso) em detrimento de esforços coletivos, é prática corri-
queira dos grandes veículos de comunicação para ocultamento das lutas sociais por
mudanças na sociedade. Por exemplo, ao apresentar uma entrevista com a cantora
Ana Carolina que afirma “não ser necessário levantar bandeiras”, o enunciador Veja
(21/12/2005) está deslegitimando os esforços do movimento GLBT para uma trans-
formação social coletiva. Ou ainda, quando a revista Ve j a insiste ao entrevistar mulhe-
res-empresárias que por “esforço próprio” subiram na carreira, há também uma omis-
são deliberada do preconceito de gênero na sociedade. Com o movimento hip-hop,
a construção dos dispositivos de verdade não é diferente.
Sob esta vertente do produto apaziguado e embalado para venda despontam a rede
de televisão MTV e, no caso dos meios impressos, a revista Veja. Em janeiro de 2004
150
83 O termo “arrastão” designa um tipo de assalto coletivo promovido por grupos de jovens pobres
em áreas pontuais e densamente povoadas da cidade. Desde os episódios nas praias cariocas de
1992/93, amplamente divulgados e midiatizados, este termo passou a designar “qualquer tipo de ação
coletiva mais radical e/ou violenta de qualquer grupo oriundo dos segmentos populares no espaço
urbano” (HERSCHMANN, 2005: 30).
....................
a revista passeia pelo universo pop japonês, trazendo o hip-hop como produto deste
universo:
outro fenômeno são as bandas de nip hop (o hip-hop nipônico). ‘Até três anos atrás
elas simplesmente imitavam os sucessos americanos, mas agora surgiu um estilo local
que é muito mais interessante – mais melódico que o hip-hop negro e com letras que
têm mensagens de amor, e não de violência’, diz o crítico Atsushi Shikano, editor-
chefe da revista musical Rockin’ on Japan (Veja, 07/01/2004).
Os termos “fenômeno” e “estilo” indicam com clareza tratar-se de um tipo de músi-
ca e não de um movimento social, tendo na seqüência um juízo de valor no qual as
mensagens de amor (ou mais melódicas) seriam mais interessantes do que as letras
sobre violência. Ainda naquele ano, em outubro, na sessão Veja Essa, na qual frases
soltas de celebridades são destacadas fora de contexto, pode-se ler: “acho que hip hop
não é música. Também não acho que seja uma forma de arte” (Veja, 20/10/2004),
única frase de Brian Wilson, integrante do grupo de rock Beach Boys, reproduzida na
revista. Não é explicitado qualquer contexto no qual a frase poderia ter sido pronun-
ciada, marcando apenas a mensagem de que o hip-hop não é música nem arte.
No início de 2007, o assunto volta à revista, por intermédio do “bem-sucedido” pro-
dutor musical norte-americano Timbaland:
em seguida iniciou uma bem-sucedida parceria com a rapper Missy Elliott, sua ex-cole-
ga no ginásio. A dupla lançou, entre outros CDs, Miss E... So Addictive, que ditou um
novo estilo para o hip hop. O gênio de Timbaland é a colagem. [...] Timbaland con-
seguiu construir uma ponte entre o mundo enfezado do hip hop e o mundo de senti-
mentos derramados do movimento emo. São achados como esse que mostram por que
ele faz a diferença na música pop (Veja, 23/05/2007).
Seguindo pelo mesmo tom do “produto de sucesso”, em julho
do mesmo ano foi a vez de trazer como bom exemplo a cantora,
também norte-americana, Fergie. Na legenda de uma foto sexy da
cantora consta: “Fergie, a desinibida do hip hop: artista mais madu-
ra, no controle da própria carreira e com todas as polegadas nos
lugares certos” (Veja, 11/07/2007). Imagem e palavras acerca das
medidas corporais da cantora prenunciam o tom sexista da matéria:
O caso mais curioso do trio é o de Fergie, nome artístico de Stacy Ann
Ferguson. Nascida em Los Angeles, numa área cheia de rappers mal-enca-
rados [...]. Quatro anos atrás, Fergie se reinventou. Deu um basta no
abuso de substâncias e se juntou ao grupo de hip hop Black Eyed Peas.
O resultado foi uma reação química extraordinária. Isoladamente, nem
Fergie nem os Black Eyed Peas usufruíam grande prestígio. Combinados,
melhoraram-se mutuamente e saltaram para a linha de frente do hip hop
(ibidem)
151
Ve j a , 11/07/07.
Em ambos os casos o hip-hop é apresentado com preconceito (“enfezados” ou “mal-
encarados”) e o significado de sucesso é pautado pelas marcas de venda (“faz a dife-
rença”, “reação química extraordinária”; “saltaram para a linha de frente do hip-
hop”). A imagem do HH construída pela revista é de um produto estéril e sem las-
tro histórico. Mesmo insistindo no padrão estadunidense, as matérias sequer mencio-
nam a origem do hip-hop acontecida nos Estados Unidos dos anos 70, como um
manifesto da população negra dos bairros periféricos de Nova York. Tampouco o
enunciador alude ao movimento social, totalmente invisibilizado pela revista, apesar
de atingir e conquistar milhares de adeptos em todas as regiões do país.
Sob o mesmo viés da banalização e desvalorização da produção cultural do hip-hop
engajado e entranhado no cotidiano urbano, um dos textos mais polêmicos já publi-
cados foi o da jornalista Bárbara Gancia, para a Folha de S. Paulo em março de 2007.
Intitulado Cultura de Bacilos, o texto critica ferozmente o Ministro da Cultura,
Gilberto Gil, por anunciar investimento em cultura hip-hop:
Se usamos verbas públicas para ensinar hip-hop, rap e funk, por que não incluir na lista
axé ou dança da garrafa? [...] Desde quando hip-hop, rap e funk são cultura? [...] Na
última quarta-feira, em meu comentário diário na rádio BandNews FM, tomei a liber-
dade de dizer o que pensava sobre esse lixo musical que, entre outros atributos, é sexis-
ta, faz apologia à violência e dói no ouvido. [...] Alô, ministro Gil! Não seria mais pro-
dutivo ministrar nas favelas um curso de um único livro de Machado de Assis ou
Guimarães Rosa, do que dar força para a molecada virar uma paródia de Snoop Doggy
Dogg? (GANCIA, 2007).
A reação do movimento hip-hop foi imediata, com manifestações em páginas e blogs
importantes de todo o país
84
, chegando-se a sugerir a realização de um debate
entre o movimento e a jornalista
85
, o qual não chegou a acontecer.
Se por um lado a mídia esteriliza o hip-hop, por outro, os meios de comunicação,
em especial os jornais paulistas, optam por sua demonização e criminalização, a
mesma estratégia utilizada com relação a outros movimentos sociais: a cultura do
medo. Desta forma, o movimento é inscrito como inimigo a ser excluído e toda ação
social neste sentido é fortemente elogiada pela mídia, como é o caso das ações poli-
ciais.
Um dos episódios mais contundentes dos ataques da mídia ao hip-hop ocorreu por
ocasião de uma ação da polícia para dispersão do público durante uma apresentação
152
84 Fundação Palmares, Zulu Nation Brasil, Real Hip Hop, Bocada Forte, Cultura Hip Hop, Blog
do Ferrez, Blog do Sérgio Vaz, entre muitos outros.
85 O desafio foi proposto por Nelson Maca, professor de Literatura da Universidade Católica de
Salvador e ativista do movimento hip-hop da Bahia (Coletivo Blackitude) postado em diversas pági-
nas online, entre as quais:
www.jornalirismo.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=67.
....................
dos Racionais MCs, na praça da Sé, em São Paulo, na Virada Cultural 2007. A Virada
Cultural é um grande evento anual promovido pela prefeitura de São Paulo, que
naquele ano estava em sua terceira edição. O evento acontece sempre das 18h do
sábado até às 18h do domingo, com uma programação ininterrupta durante 24h, nos
moldes da nuit blanc de Paris. São diversos palcos montados pelo centro da cidade e
outras regiões para apresentações de música, teatro, dança e artes plásticas. No que
concerne ao cenário das artes e políticas culturais no país, a Virada Cultural se inse-
re dentro de uma enorme polêmica acerca de grandes investimentos e aportes finan-
ceiros em eventos com forte apelo midiático, em detrimento de outros menores,
menos apelativos e mais experimentais. A despeito desta polêmica, a Virada Cultural
se tornou parte do calendário paulistano, com um aumento do público a cada ano,
chegando a 3,5 milhões de pessoas em 2007, ano da controvérsia em questão.
O concerto dos Racionais MCs foi destacado para o palco principal do evento, na
praça da Sé, com horário previsto de início para as três horas da manhã. Devido a
atrasos, o grupo entrou no palco somente uma hora e meia depois, com um som
fraco e falhante, para um público estimado em 50 mil pessoas. Pouco mais de 15
minutos do início do concerto, quando o grupo começa a cantar “Negro
Drama
86
, a polícia militar entra em ação, dispersando a população com bombas
de gás e balas de borracha. Segundo relatos, a polícia agiu em função de um atrito
153
86 A música, que trata diretamente do racismo e das dificuldades enfrentadas pelos negros da peri-
feria, tem uma letra amplamente conhecida do público: “negro drama / entre o sucesso e a lama /
dinheiro, problemas / inveja, luxo, fama / negro drama / cabelo crespo / e a pele escura / a ferida, a
chaga / a procura da cura [...] negro drama / eu sei quem trama / e quem tá comigo / o trauma que
eu carrego / pra não ser mais um preto fudido”.
....................
Praça da Sé, local do show na Virada Cultural. O palco estava localizado em frente à igreja. Na foto do
meio, o público assistindo ao espetáculo, momentos antes do confronto. À direita, ação da polícia dis-
persando a população.
Fotos: internet.
iniciado entre policiais e público, quando a polícia repreendeu alguns adolescentes
que ocupavam a cobertura de uma banca de jornal, situada na lateral da praça.
87
Naquela ocasião a mídia foi uníssona em culpar o grupo por detonar os aconteci-
mentos, devido ao “incitamento da violência” em suas letras. O que se observou foi
uma avalanche de preconceito e ódio de classe, como pode ser conferido nestes tre-
chos retirados dos maiores veículos de comunicação do país, como a revista Veja e o
jornal Folha de S. Paulo:
Sarkozy não daria palco para os Racionais MC’s. Sabem a diferença entre os nossos
‘conservadores’ e os deles — já que Sarkozy é a estrela do dia? O novo presidente da
França e seus aliados jamais convocariam a elite baderneira dos magrebinos para dar
um show. Os nossos convidam. Na Virada Cultural de São Paulo, uma iniciativa meri-
tória, bem-sucedida, algum iluminado — provavelmente petista infiltrado na adminis-
tração de Gilberto Kassab — resolveu dar um palco para os tais Racionais MCs.
Resultado: eles promoveram a baderna e a incitação da massa contra a polícia. [...] No
‘progressismo’ brasileiro, gente que deveria estar na cadeia está dando lição de moral
(VEJAONLINE, 2007).
Após um quebra-quebra entre a Polícia Militar e os fãs do grupo de rap Racionais MCs
na praça da Sé, a violência se alastrou para outras ruas [...]. O trabalho das ambulân-
cias às 6h da manhã era ininterrupto, assim como o barulho das bombas de efeito
moral. Houve ameaças com armas — não apenas por parte de PM — e foram dispara-
dos tiros para o alto. [...] Mano Brown ora apaziguava os ânimos, ora cutucava a polí-
cia [...] A hostilidade entre fãs do grupo e policiais era visível, antes mesmo de agres-
sões físicas. [...] A PM culpou ainda o conjunto de rap pelo confronto. O grupo é
conhecido por ter letras combativas, sobretudo em relação a abusos policiais. ‘É só ver
o histórico do Racionais. Acaba sempre assim. Mas nós já estávamos preparados para
isso acontecer’, afirmou o tenente (FOLHAONLINE, 2007)
Porém outras versões dos fatos correram na mídia, inclusive na própria Folha de São
Paulo, na coluna de Gilberto Dimenstein e, também, no Blog do jornalista Xico Sá
que estava no local, na hora dos acontecimentos. Na versão de Sá, a polícia usou
força em demasia para disciplinar alguns meninos que estavam em cima da banca de
jornal, causando pânico e correria no público:
Coisas da vida, vida de gado! Colado à banca de jornal onde começou o tumulto
durante o show dos Racionais MC’s, vi o exato instante em que uma PM nervosa e
despreparada resolveu, em vez de conter uma algazarra de meia dúzia de jovens, estra-
154
87 Estão disponíveis na internet vídeos feitos pelo público na hora do conflito:
http://br.youtube.com/ watch?v=RQLacmNqV64;
http://video.google.com/videoplay?docid=6430292241424408602;
http://br. youtube.com/watch?v=7caCO6Uj-rg;
além das reportagens dos canais de televisão, como Globonews:
http://br.youtube.com/watch?v=8vdJEeW2UEk.
....................
gar parte de uma das maiores festas de rua da cidade de SP, a Virada Cultural. [...] O
argumento de que os militares foram atacados, como diz a nota da Secretaria de
Segurança Pública, não convence a mais ingênua e desligada das testemunhas que esta-
vam ali no epicentro da baderna. Não foram atacados. [...] Quem já foi a shows dos
Racionais sabe que, pelo menos desde 1994, em uma apresentação histórica no Vale
do Anhangabaú, a polícia não costuma ter lá a mínima paciência com os ‘manos’. O
trato é bem diferente de qualquer outro evento cuja maioria do público é de classe
média – seja uma rave de música eletrônica ou um concerto de rock (SÁ, 2007)
Contudo, o que mais chama a atenção foram os comentários virulentos postados no
blog refletindo o profundo abismo entre as classes sociais no Brasil. Era mais de qui-
nhentos comentários, a maioria contra o artigo do jornalista e extremamente precon-
ceituosos com a população de baixa renda, encobertos muitas vezes pelo anonimato
da internet
88
:
todos deviam saber que não se pode reunir grande número de gente pobre. Sempre dá
confusão. É o óbvio (Jairo Braz de Souza, 07/05/07, 02h17)
esse bando de idiotas tem mais é que apanhar da polícia!!! (Repressão contra os
Bandidos!, 07/05/07, 07h47)
se isso se chama ‘Virada Cultural’, tento imaginar o que seria ‘Virada Criminal’... (anô-
nimo, 07/05/07, 19h12)
quem e racionais, esses grupos deveriam ser banidos do mundo artisticos, pois nao sao
artistas e sim criminosos acho que deveria os cantores tomarem essas providencias.
pois e uma vergonha. Incitar a violencia ….. e uma vergonha (Quem e racionais?,
07/05/07, 08h08)
rap, hip hop, funk e outros “gêneros” musicais não passam de propaganda racista e
comunista disfarçada de “protesto”. Toda cacetada na cabeça dessa gente é pouca. Rap,
hip hop, funk e outras manifestações pseudo-culturais da manipulação racista do
movimento negro devem ser drasticamente reprimidas, com muito pau na cabeça des-
ses marginais que ouvem e propagam esse lixo (Anti Petista e Higiênico, 07/05/07,
08h15)
isso que da fazer show para ladrão pena que não morreu uns 300!!!!!!!! (Oscar
Alejandro, 0705/07, 08h15)
Essa narrativa é resultado de uma sociedade que cada vez mais se distancia do Outro,
estigmatizando-o como aquele que deve ser afastado e exotizado – como faz o mul-
ticulturalismo – ou simplesmente inscrito como inimigo e eliminado, como demons-
155
88 Todos os comentários a seguir foram postados no blog do jornalista Xico Sá nos dias em que se
seguiram à polêmica midiática acerca da ação da polícia no show dos Racionais. Estão identificados
conforme os codinomes usados pelos autores na internet, juntamente com o dia e a hora exata da
postagem. Foram respeitadas as grafias originais, interjeições e pontuações. O Blog saiu do ar meses
depois.
....................
tram Prado e Bairon (2007) sobre as estratégias da mídia concernentes ao Outro. Se
a mídia não é responsável por esse desejo de eliminação, também é verdade que
pouco faz para contextualizar e humanizar os diversos Outros constantemente cons-
truídos. Pelo contrário, os veículos de comunicação aprofundam a dinâmica de des-
conhecimento do Outro, criando categorias homogêneas para “periferia”, “pobreza”,
“violência”, “criminalidade”.
Por sua vez, pouca ou nenhuma atenção é dada, pelos meios de comunicação, para
a revolução que vem acontecendo nas periferias na última década, com o despontar
de diversos pólos culturais, nos quais o hip-hop tem lugar central. O alastramento da
cultura produzida nas periferias tem colaborado enormemente para a construção de
alternativas concretas de lazer e perspectivas de futuro para a juventude das perife-
rias. Saraus de poesia, sessões de cinema, oficinas de dança, teatro, música, são algu-
mas das opções que, com muito esforço, os moradores dos bairros afastados têm con-
seguido proporcionar a si próprios, não raro, sem qualquer ajuda de órgãos públicos
ou patrocínios privados.
Um dos exemplos desse esforço coletivo é o Cine Becos e Vielas, germinado a partir
de um jornal de mesmo nome, produzido com a ajuda de jornalistas profissionais da
Associação de Incentivo às Comunicações Papel Jornal. Tanto a associação quanto o
jornal local nasceram do interesse dos jovens do Jd. Ângela em contar suas próprias
histórias
89
. A Casa do Hip-Hop/Centro Cultural Canhema, inaugurada em 1994
em Diadema, é outra iniciativa nascida da demanda da comunidade, que neste caso
encontrou o respaldo da administração municipal. O espaço é mantido pela prefei-
tura em parceria com a Zulu Nation Brasil, sob a coordenação de Nino Brown, per-
sonagem histórica do hip-hop nacional. Todas as oficinas e cursos para diversas fai-
xas etárias são gratuitos e o local mantém uma biblioteca pública e um acervo sobre
a cultura negra e o movimento hip-hop
90
.
Se a construção que a mídia faz do hip-hop é pautada por sua banalização e despo-
litização como produto comercial ou por sua vinculação com o crime e a violência,
a periferia, seu lugar de germinação, também recebe uma construção midiática pró-
pria: é Outro lugar, muito distinto do lugar das classes média e alta. Usualmente vista
pelas elites como degradante do ambiente urbano, antro de marginais, “os favelados
são há décadas uma espécie de pesadelo das elites urbanas” (SOUZA e RODRI-
156
89 O Cine Becos e Vielas mantem um blog atualizado com sua programação e espaço de debates
em http://becosevielaszs.blogspot.com. Sobre a associação Papel Jornal ver www.papeljornal.org.br/.
90 Informações sobre o trabalho da Zulu Nation Brasil em www.zulunationbrasil.com.br. O docu-
mentário Hip-Hop em Cena (2005) foi gravado durante uma festa na Casa de Cultura de Diadema, em
2004, com a presença de Afrika Bambaataa, um dos fundadores no hip-hop nos EUA. Nesta festa
eram dominantes as mensagens de valorização do povo negro e dos moradores da comunidade. Este
documentário está disponível no Anexo.
....................
GUES, 2004: 43); para os meios de comunicação a periferia é o lugar da violência,
da desestruturação familiar, da pobreza, da falta de recursos, de infra-estrutura e cul-
tura, da criminalidade e de outras tantas imagens desqualificadoras.
2.2.
MMoovviimmeennttoo SSoocciiaall,, VViioollêênncciiaa ee JJuuvveennttuuddee nnaa MMííddiiaa
Para além dos seus elementos (dança, música, graffiti e consciência), o universo do
hip-hop envolve temas relacionados à periferia, juventude, racismo, desigualdade
social e movimento social. Precariedade urbana, desemprego e pouca presença do
Estado nas áreas da cidade destinadas aos mais pobres tornam estas regiões vulnerá-
veis a altos índices de violência. Contudo, há uma tendência generalizada das cons-
truções midiáticas em traçar vínculos simplificados entre pobreza, periferia e violên-
cia, questões sobre as quais o hip-hop tem trabalhado sob outros pontos de vista.
Uma vez que os aspectos relacionados à periferia e ao racismo têm lugar em itens
específicos desta tese, nos detemos a seguir em analisar de que modo a mídia tem tra-
tado os assuntos concernentes a movimentos sociais, juventude e violência, com vis-
tas a desconstruir algumas de suas simplificações.
No caso dos movimentos sociais, a mídia, de um modo geral, não apenas desconhe-
ce a realidade destes movimentos, como distorce suas demandas, quando não crimi-
naliza suas ações e as de seus integrantes. O exemplo mais contundente nesse senti-
do é a campanha impetrada pela revista Veja de deslegitimação do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST, ao longo dos mais de vinte anos de funda-
ção do movimento. Ao analisarem uma reportagem da edição 1648 da revista, Prado
157
Participação especial de Nino Brown no evento 2º Suburbano no Centro,
comandado por Alessandro Buzo, 2008.
Foto: Marilda Borges
e Bairon (2007) mostram que “todas as vozes de integrantes do MST reproduzidas
nas reportagens retratam um movimento violento; as demais vozes trazidas nas maté-
rias também qualificam o MST como sem-lei, modalizado a partir do dever ser da
repreensão. Nenhuma fonte mostra um ‘outro lado’, não negativo, do MST”
(PRADO e BAIRON, 2007: 272, aspas no original). As matérias publicadas sobre o
MST na revista, não contextualizam a reforma agrária, principal reivindicação do
movimento, muito menos trazem para debate as terras públicas griladas
91
ou a Lei
de Terras, do século XIX, responsáveis estruturais pela má divisão agrária no país. Em
outras palavras, o hip-hop cobra, em suas letras, a reforma agrária enquanto repara-
ção histórica: “porque na época da tal da abolição / não fizeram a reforma agrária,
negaram nossas terras / mais uma vez o branco é o certo e o negro é o vilão”
(CÂMBIO NEGRO, Auto-Estima). Nesse contexto, o “negro vilão” refere-se ao
ponto de vista hegemônico que criminaliza os negros pobres e integrantes de movi-
mentos sociais que lutam por justiça social.
O tratamento dedicado pela mídia aos movimentos sociais urbanos, especialmente
os de moradia, que têm forte vínculo com a periferia e com moradores de rua, não
é diferente. A ocupação Preste Maia
92
ganhou espaço significativo nos jornais
paulistas, sobretudo por ter sido a maior ocupação vertical da América Latina. A ocu-
pação ficava na região da estação da Luz, em São Paulo, e foi levada a cabo pelo
Movimento Sem-Teto do Centro – MSTC. Mais de 400 famílias residiram no local,
158
91 A grilagem de terras é um processo histórico no qual grandes extensões de terras da União foram
apropriadas, através da falsificação de documentos, pelos denominados ‘grileiros’. Muitos dos latifún-
dios no país têm sua origem neste processo fraudulento.
92 Sobre a ocupação Prestes Maia ver o documentário Tobias 700: A História de uma Ocupação
(2004), de Daniel Rubio.
....................
MST em duas matérias de capa da revista Veja, de 16/04/1997 e10/05/00.
abandonado por quase quinze anos, com uma dívida de R$ 5 milhões em impostos.
Com um rendimento em torno de 1 a 2 salários mínimos, a maior parte dos mora-
dores era formada por trabalhadores autônomos em situação de insegurança de
renda: camelôs, diaristas, costureiros, catadores de material reciclável. Destaca-se
haver uma grande comunidade de bolivianos ocupantes do Prestes Maia, cerca de 40
famílias, composta por trabalhadores, sobretudo, das confecções do bairro vizinho
chamado Bom Retiro. Ao contrário do pouco número de idosos (menos de cem num
universo de mais de 2 mil pessoas), as crianças eram predominantes, contando em
média de 2 a 3 por família
93
. A resistência na ocupação Prestes Maia aconteceu
por quase cinco anos, período no qual o tornaram minimamente digno para as neces-
sidades básicas das famílias, incluindo a formação de uma biblioteca noticiada em
vários jornais
94
.
159
Ocupação Prestes Maia. Biblioteca e evento cultural no subsolo, 2006.
Fotos: Andréia Moassab.
93 Agradeço estas informações a Warlas Paiva, ex-morador do Prestes Maia desde a primeira noite
da ocupação do edifício. Paiva teve um papel importante na ação de entrada neste prédio, colaboran-
do ativamente em outras ocupações desta natureza. Os dados são estimados a partir de sua experiên-
cia empírica. Atualmente Paiva mora com a irmã, a prima e o sobrinho em um apartamento na região
central, auxiliados pela bolsa-aluguel da prefeitura, enquanto aguardam solução definitiva de moradia
pelo poder público. Sua mãe, também ex-moradora da ocupação, foi transferida para Itaquera, zona
leste da cidade, juntamente com outras famílias.
94 O mandato de reintegração de posse foi cumprido em junho de 2007, com a desocupação pací-
fica e paulatina do edifício. Muitas famílias, como a de Paiva, foram instaladas na zona leste ou no
centro, e algumas foram para outras ocupações. O acordo entre a prefeitura e o MTSC previa o aten-
dimento de todas as famílias em projetos de habitação, o qual até agora não foi cumprido, e não con-
templava a reforma para moradia do edifício Prestes Maia, o que está previsto em acordo com a ges-
tão municipal anterior.
....................
As ocupações de edifícios vazios ou subutilizados é uma das principais estratégias de
ação dos movimentos sociais de moradia. Ao ocuparem os prédios, os movimentos
de moradia obtêm forte poder de negociação, tanto com os proprietários, que mui-
tas vezes não estavam interessados nos imóveis, quanto com o poder público, para
conseguirem linhas de financiamento para projetos habitacionais para a população
de baixa renda. Os movimentos sociais reivindicam direito à moradia e questionam
a função social da propriedade, mediante o atendimento, pelo poder público, do
Estatuto da Cidade.
No caso da Ocupação Prestes Maia, por conta de existir a biblioteca, o enunciado
midiático foi sendo pouco a pouco transformado, com uma transição da categoria de
Outro para um enquadramento nos valores do Mesmo. A existência dos livros indi-
cou que os ocupantes eram, para a mídia, ‘pessoas de bem’, atraindo doações de mais
livros e computadores para acesso à internet. A manchete do caderno cotidiano do
jornal Folha de S. Paulo, de 01/02/06, dizia: “Sem-teto faz biblioteca em prédio inva-
dido”. Ao usar a palavra ‘invadido’ preferencialmente a ‘ocupado’, como defendem
os movimentos de moradia, a reportagem já anuncia estar do lado dos proprietários.
Para os movimentos de moradia não é possível invadir espaços desocupados e aban-
donados, mas sim, ocupá-los. A matéria segue fazendo comparações provocativas
com a administração municipal: “a biblioteca dos sem-teto, que funciona desde
dezembro, tem mais publicações do que as salas de leitura de colégios municipais,
que são entregues com acervo inicial de 2.000 livros” (FOLHAONLINE, 2006);
adiante, engrandece um dos moradores como ‘devorador de livros’: “o devorador de
livros do Prestes Maia é o ambulante Lamartine Brasiliano, 38, que lamenta que o
lugar não tenha ainda obras do escritor Gabriel García Márquez” (ibidem) e finaliza
confirmando o ‘diferencial’ dos moradores desta ocupação, com relação a outros
sem-teto:
diferentemente da maioria da população de baixa renda da cidade, que não tem aces-
so à cultura, as famílias do Prestes Maia vão freqüentemente à Pinacoteca do Estado.
Em 2005, os sem-teto integraram o Programa de Inclusão Sociocultural do museu,
onde estiveram sete vezes (ibidem).
Similar ao jornal, uma matéria da revista Época, de 09/06/06, embora bastante mais
‘dramática’, não é muito diversa no que diz respeito ao ‘diferencial’ dado aos mora-
dores do Prestes Maia, por conta da biblioteca ou da prática da leitura. Nas primei-
ras linhas afirma: “desde setembro do ano passado, essa ratoeira de esperanças
ganhou ares de milagre ao testemunhar nos porões o nascimento de uma biblioteca
comunitária” (ÉPOCA, 09/06/06). Ao comparar o edifício a uma ratoeira, não é exa-
gero afirmar, portanto, que o jornalista trata seus moradores como ratos. A exceção
desta classificação são dois moradores, Severino e Brasiliano, que merecem ter suas
biografias narradas pela revista, a despeito das dificuldades enfrentadas por estes pro-
tagonistas que têm o hábito da leitura:
160
Severino, sertanejo de Pernambuco, nunca sentou em um banco de escola. ‘Não tenho
nem cultura nem literatura’, diz. Depois de descarregar um caminhão nos arredores do
Recife, ainda garoto, Severino se perdeu. Varou a noite sem conseguir decifrar destinos
de ônibus e indicações de placas. Quando finalmente chegou em casa, avisou ao tio:
A partir de hoje vou parar de ser pessoa burra, analfabeta, cega e tapada’. Aos 56 anos,
ele é uma espécie de José Mindlin dos sem-teto (ibidem).
A mesma narrativa heróica é dada à história de Brasiliano:
enquanto peregrinava pelo sertão real da infância em andanças pela mão da mãe,
Brasiliano precisava da ficção para suportar dor, aridez e humanidade. ‘Os livros se tor-
naram um grande refúgio. Neles, sou personagem’, diz Brasiliano. [...] A ponte ofere-
cida pelo conhecimento, porém, é sempre trágica. No meio do salto, revela o tamanho
do abismo. Enquanto descobria o Brasil pelo ‘livro que todo brasileiro devia ler’, Casa
Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, o Brasil se revelava a Brasiliano [...] ‘Se tenho
mágoa? Como não ter mágoa deste mundo? Eu queria estudar literatura na universi-
dade. Mas faculdade é um sonho tão distante que não existe. Para isso, eu tinha de
estar na escola e estou no farol’ (ibidem).
Nessas reportagens, o gosto pela leitura e o sonho pelo curso universitário aproxi-
mam estes sem-teto de seus leitores, majoritariamente de classe média. A mídia “acei-
ta” e absorve este Outro desde que seja sob os moldes dos seus valores. Não há uma
aceitação da diferença como um valor em si que possa trazer novas e arejadas refle-
xões para a construção da sociedade. Ao contrário, há um apagamento deste Outro
enquanto Outro e uma transformação hierarquizada em um Mesmo inferior. Não
que as histórias de Lamartine e Severino não sejam importantes, pelo contrário, o
enquadramento midiático é que as esvazia de seu potencial transformador, minimi-
zando o contexto de lutas e desigualdades no qual se inserem. De modo similar são
enunciados os negros, os homossexuais, as mulheres. Desde que dentro dos padrões
estabelecidos de sucesso, riqueza e beleza, estes grupos podem ser incorporados e
passam a fazer parte do imaginário simbólico produzido pela mídia. Trata-se do que
Zizek apontou, no caso do multiculturalismo, de uma tolerância ao Outro enquan-
to este não seja o verdadeiro Outro, mas sim um Outro asseptizado (ZIZEK, 2006: 76).
Nas reportagens, tanto do jornal Folha de S. Paulo quanto da revista Época, a tolerân-
cia com os sem-teto é proporcional ao seu “gosto pela leitura”. As histórias dos outros
dois mil moradores não interessavam: a comunidade boliviana que ali morava e os
seus empregos precários no Bom Retiro; as inúmeras empregadas domésticas, portei-
ros e faxineiros, muitas vezes desempregados; os jovens com dificuldades de encon-
trar o primeiro emprego. Muitas destas trajetórias poderiam servir para matérias
diversas sob os mais variados aspectos: globalização, desemprego, empregos precá-
rios, trabalho escravo, primeiro emprego, especulação imobiliária, casa própria, entre
outros. No entanto, estes veículos preferiram uma absorção inferiorizadora e esvazia-
da da história dos moradores e da luta do movimento de moradia, o que tem conse-
qüências bastante graves em termos de naturalização de hierarquias e de relações de
poder que permeiam todo o cotidiano.
161
Por meio de gradações de distanciamento, desde a absorção até o aniquilamento, a
mídia constrói percursos de passionalização que têm “função pragmática de fazer
encarnar os discursos em seus públicos cada vez mais específicos e segmentados”,
segundo Prado e Bairon (2007). Para os autores, a partir da mobilização sensível do
corpo, produzida por meio de textos sincréticos com apelo ao lúdico, a mídia esta-
belece contratos estésicos de leitura. Trata-se de estratégias que traçam identificações
rápidas, ancoradas em um espaço-tempo do aqui e do agora, como resposta ao capi-
talismo para a construção pós-tradicional dos imaginários destradicionalizados do
ocidente (ibidem: 22). Deste modo, a peregrinação pelo sertão de Brasiliano, cheia de
“dor e aridez” e a perambulação desnorteada de Severino pelas noites de Recife são
dispositivos passionalizadores, utilizados com a função pragmática de encarnar o dis-
curso no público.
No que tange aos espaços das cidades destinados à população pobre, onde se produz
o hip-hop no Brasil, prevalece uma representação midiática de uma não-cidade, um
espaço fora do ideário de cidade erigido sob os valores dominantes acerca de cidade,
conforme demonstrou Flavio Villaça (2001). É como se esta população habitasse um
não-lugar, um lugar inconcebível para o imaginário hegemônico. Dentro da sua estra-
tégia com relação aos seus Outros, a mídia pode assimilá-los, como fez com os letra-
dos da ocupação Prestes Maia, segregá-los, como faz com o hip-hop, ou excluí-los,
como faz com o negro pobre encarcerado. Um dos pilares deste jogo de proximida-
de e afastamento é a cultura do medo.
Durante décadas o imaginário da classe média tem sido povoado por uma constru-
ção simbólica que conecta periferia ao lugar da violência. Alguns exemplos são sin-
tomáticos deste procedimento da mídia, que tem na revista Veja seu maior vetor. Na
capa da edição de 24/01/2001 a chamada diz “O Cerco da Periferia”. Na ilustração
há uma montagem na qual os edifícios ricos em meio a jardins são apresentados
numa figura colorida no centro da imagem e estão cercados por uma grande perife-
ria de casas auto-construídas, deliberadamente sem cor (estão em preto e branco). A
“cidade” é o colorido espacialmente “dentro” e no “centro” da figura. No subtítulo
da matéria lê-se: “os bairros de classe média estão sendo espremidos por um cinturão
de pobreza e criminalidade que cresce seis vezes mais que a região central das metró-
poles brasileiras”. Sem entrar nos detalhes da matéria, fica claro, de partida, que os
pobres do não-lugar designado “periferia” são uma ameaça à classe média, que deve
se proteger destes “criminosos”.
Na mesma revista, em edição bastante antiga, de 23 de abril de 1969, a manchete
“Isto É Um Assalto: A Escalada do Crime” traz a figura de uma mão empunhando
uma arma. A figura não mostra o corpo do assaltante, apenas a mão, que, não por
coincidência, é negra. Na revista IstoÉ de 01/12/04, a manchete da capa é “Ninguém
Está Seguro”, e a figura central é de um prédio de luxo, cercado por grades e arames
farpados, que é ameaçado por cinco mãos empunhando armas de fogo. Um dos
162
diversos subtítulos desta capa diz: “nem as grades protegem mais: em todo o País
aumenta o número de assaltos a condomínios”. Estes são alguns dos muitos exem-
plos que podem ilustrar como é historicamente construída a cultura do medo e a
conexão entre pobreza, periferia, negro e crime pela mídia brasileira. Todavia, ao
visualizarmos o mapa da violência em São Paulo, veremos que é coincidente ao
mapa da exclusão: o pobre morador de áreas carentes tem mais chances de ser assas-
sinado ou assaltado e de ter sua casa ou bens roubados do que as famílias mais
ricas
95
.
163
Veja, 24/01/01
A imagem do negro ligada à criminalidade em capas das revistas semanais desde os anos 1960. Veja,
23/04/69; IstoÉ, 28/10/92 e 01/12/04.
95 Conforme mostram os mapas no item 3 (O Lugar do Hip-Hop) do capítulo 1 desta tese.
....................
No que concerne à construção midiática da violência, antes do crime violento atin-
gir os patamares atuais em São Paulo, a antropóloga Tereza Caldeira detectou que a
insegurança já estava sendo construída nas imagens dos empreendimentos imobiliá-
rios para justificar uma nova fronteira de mercado, na qual se inicia a venda de um
estilo de morar cercado por aparatos de segurança e “naturalmente” (ou melhor, de
modo naturalizado) seccionado do espaço urbano. Nos anúncios publicitários veicu-
lados em jornais dos anos de 1970, já se lia que “todo o conjunto é envolvido por
altas grades protetoras. O portão das garagens possui garantia de controle.
Playground: dá liberdade segura às crianças e paz aos adultos” (OESP apud CALDEI-
RA, 2000: 266).
A autora aponta para uma “fala do crime”, que permeia o senso comum, construída
principalmente pelos meios de comunicação e apoiada em “simplificações e estereó-
tipos para criar um criminoso simbólico que seja a essência do mal” (ibidem: 348).
Além disso, esta construção discursiva do crime “de modo simplista, divide o mundo
entre o bem e o mal e criminaliza certas categorias sociais. Essa criminalização sim-
bólica é um processo social dominante e tão difundido que até as próprias vítimas
dos estereótipos (os pobres, por exemplo) acabam por reproduzi-lo, ainda que ambi-
guamente” (ibidem:10). Fica evidente, portanto, como esta “violência simbólica”, da
qual nos fala Bourdieu (1999), é intronizada e passa a fazer parte dos processos de
formação do sujeito.
Por outro lado, é deixada de lado, pela mídia, a contextualização de violência e cri-
minoso, que, ao invés de constituirem um problema social, são objetos tratados
como patologias ou erva-daninhas a serem eliminadas. Poucas ou raríssimas matérias
se aprofundam na tentativa de entender a dificuldade do cotidiano nas periferias
mais precárias, onde a luta pela sobrevivência é diária. Ao contrário, quando o crime
é cometido por pessoas de classes favorecidas, o criminoso ganha logo uma história
e é humanizado. Algumas produções cinematográficas alternativas procuram sanar
esta desigualdade de abordagens, como é o caso do documentário Ônibus 174, de José
Padilha (2002), no qual o diretor procura mostrar a vida e o ambiente de Sandro
Nascimento, menino que seqüestrou um ônibus circular urbano no Rio de Janeiro
em 2000. Suzane von Richthofen, menina de família paulistana abastada, por sua
vez, matou os pais enquanto dormiam, com planos para ficar com a herança que lhe
seria de direito, caso a polícia não tivesse descoberto o crime. Note-se que enquanto
o nome de Suzane é sempre precedido por “a jovem”, Sandro é tratado por “o seqües-
trador”. Isto é, ainda que tenham a mesma idade e mesmo que a jovem tenha sido
acusada de assassinato, crime, aliás, do qual Sandro nunca fora acusado, Suzane
merece uma dignidade que não é concedida ao rapaz, numa clara distinção discursi-
va entre ambos.
A esta altura tangenciamos outra questão que é simplificada e homogeneizada pela
mídia: a juventude. Se por um lado o tema da juventude é amplamente abordado
164
pela mídia por conta da sua capacidade de consumo (neste caso, pelos valores do
Mesmo), por outro lado há uma forte tendência a vincular juventude à violência (sob
a perspectiva do Outro). A Agência de Notícias dos Direitos da Infância – ANDI
publica regularmente relatórios sobre mídia e infância, entendida pela agência como
o grupo etário absorvido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA
96
,
ou seja, crianças e jovens até 18 anos. A pesquisa é feita com o acompanhamento diá-
rio de mais de 50 jornais espalhados por todo país, além de 10 revistas de circulação
nacional. O último relatório disponível diz respeito aos anos de 2003/2004.
Um dos critérios de avaliação qualitativa das matérias diz respeito à sua capacidade
de complexificar o debate por meio de vínculos com o ECA e com os critérios de
Desenvolvimento Humano (educação, renda, qualidade de vida, direitos civis, direi-
tos políticos, direitos sociais, democracia, gênero, etnia, desigualdade/exclusão social,
meio ambiente, pobreza/fome/miséria). A agência defende, portanto, uma aborda-
gem contextualizada do tema em questão, uma vez que “ao não dominar conceitos
mais sofisticados sobre a situação social brasileira, a imprensa deixa de retratar a ver-
dadeira história do país, oferecendo uma visão maquiada da realidade” (WEISS apud
ANDI, 2005:19)
Especificamente no que diz respeito à juventude e à violência foi constatado o uso
de termos depreciativos (menor, menor infrator) na maior parte das matérias analisa-
165
Suzane Richthofen em capa de Vej a de 12/04/06.
96 Lei 8069/90, que tem o objetivo de proteger a integridade da criança e do adolescente. O ECA
introduziu mudanças significativas em relação ao código de menores de 1979, já sob as consideração
da Constituição de 1988. Houve com o ECA uma mudança paradigmática, posto que a lei assegura
os direitos de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de qualquer tipo. Anteriormente,
no Brasil, havia duas categorias distintas de crianças e adolescentes: a dos filhos socialmente incluí-
dos e integrados (crianças e adolescentes) e a dos filhos dos pobres e excluídos (os menores).
....................
das (57% em 2004). Em corroboração a este dado, a pesquisadora Maria Clauda Maia
(2003) da Universidade Federal Fluminense – UFF demonstrou em seu artigo, “A
Produção do Discurso Jornalístico sobre o ‘Adolescente em Conflito com a Lei’:
Jovem ou Menor?”, haver tratamentos diferenciados para adolescentes infratores con-
forme sua condição social e bairro de origem. Para aqueles provenientes das áreas
ricas, além de uma identificação da procedência, com o nome do bairro, as famílias
são ouvidas nas reportagens, o que não acontece com os jovens de áreas pobres, con-
forme pesquisa e reportagem do Observatório Jovem da UFF.
A coordenadora da pesquisa, Maria Claudia Maia, afirma que para a mídia é consi-
derado “natural” que jovens provenientes de bairros populares sejam infratores (apud
OBSERVATÓRIO JOVEM s/d). Esta naturalização da mídia em relacionar juventu-
de pobre e criminalidade foi igualmente observada por Herschamnn em seu estudo
sobre o funk e o hip-hop no Rio de Janeiro. Segundo o pesquisador, há uma preocu-
pação dos meios de comunicação em construir uma argumentação que “prove” a
associação destes jovens com as organizações criminosas:
este tipo de narrativa tornou-se bastante freqüente na imprensa e reifica outras tão
recorrentes que “naturalizam” a criminalidade nas áreas carentes das grandes cidades e
que trazem forte preconceito tanto em relação aos segmentos populares quanto em
relação aos jovens negros e não-brancos que se constituem nos principais moradores
destas áreas (HERSCHMANN, 2005: 68).
Tando o estudo da UFF quanto a pesquisa de Herschmann revelam a mesma proble-
mática apontada pelo relatório da ANDI: a falta de contextualização e complexifica-
ção das reportagens no que concerne ao cruzamento com variáveis de
Desenvolvimento Humano ou do próprio ECA.
Sob este aspecto há uma tendência generalizada de perceber a criança ou o adoles-
cente como uma ameaça. No entanto, dados da Unesco acerca da violência no país
demonstram que os jovens, mais do que vitimizadores, são as grandes vítimas da vio-
lência urbana. Na última década a Unesco constatou haver um incremento de 77%
no número de homicídios de jovens, muito acima das demais faixas etárias (50%)
(ANDI, 2005; MORAES, 2004). Em São Paulo, em 2003, menos de 1% dos homi-
cídios do estado tiveram a participação de menores de 18 anos (SSP apud ANDI,
2005: 40). Entre os internos da Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor de São
Paulo – FEBEM, em 2000, apenas 8% foram internados por homicídio (apud
MORAES, 2004).
Dito de outra forma, mais do que praticar atos violentos, os jovens, sobretudo os
mais pobres, são vítimas da violência. No entanto, há na mídia uma representação
preconceituosa do vínculo entre juventude pobre e violência: “a sociedade associa a
pobreza à violência e à criminalidade. O jovem pobre é visto como um bandido em
potencial. Quando se trata de crianças e adolescentes de classe alta, o tom da impren-
166
sa é de perplexidade e revolta” (RUA apud ANDI, 2005: 40). Com isso, a mídia cons-
trói o “jovem ameaçador”, do qual a sociedade deve proteger-se. Esse discurso vem
acompanhado da defesa de medidas repressoras por parte do Estado e da polícia, no
sentido de conter o que entendem como ameaça. Quando se trata do debate acerca
de maioridade penal, o tom repressivo da mídia é ainda maior, com textos unilate-
rais e espaços privilegiados aos defensores da sua redução (ANDI, 2005).
Ao analisarmos este conjunto de temas ligados ao hip-hop, como movimentos
sociais, violência e juventude, o que se constata é que as vozes hegemônicas apresen-
tam um forte corte racial e geográfico, ou seja, o foco sempre é sobre os negros mora-
dores de bairros pobres. Reitera-se, assim, a segregação espacial da cidade pautada
pela produção capitalista do espaço urbano (HARVEY, 1992). Reproduz-se o “racis-
mo do distanciamento” (ZIZEK, 2006), que tem por resultante o cultivo da cultura
do medo do Outro, afastando, estigmatizando e eliminando o Outro.
Qualquer tentativa de subverter esta lógica coloca em risco a ordem estabelecida pelo
poder historicamente constituído. É nesta ordem que se inscreve, por exemplo,
Suzane “a jovem” e Sandro “o seqüestrador”. Nestes enunciados está evidente tanto
a divisão espacial, quanto a distinção simbólica da sociedade, ambas hierarquizantes.
Suzane é mostrada mais dignamente do que Sandro tanto porque é rica e branca
como porque circula pela “cidade” reconhecida como tal: shoppings, escolas particu-
lares, condomínios, casas noturnas elegantes. Sandro circula pela não-cidade (do
ponto de vista hegemônico): bairros afastados, becos, favelas, FEBEMs, cantos escu-
ros, praças mal iluminadas. A questão que se impõe é saber qual é a cidade “real” ou
válida: a de Sandro ou a de Suzane? Para o bios midiático, apenas a de Suzane é legí-
tima, como demonstrou Villaça (2001) em sua pesquisa: 75% dos logradouros deno-
minados pelo jornal Folha de S. Paulo referiam-se aos lugares freqüentados pelas eli-
tes. De acordo com o que temos demonstrado neste trabalho, nenhuma destas cida-
des (de Sandro ou de Suzane) isoladamente e as duas conjuntamente.
Em uma de suas músicas, os Racionais MCs apontam bastante bem a desigualdade
sócio-espacial ao narrar as diferentes possibilidades de recreação entre a população de
alto e baixo poder aquisitivo. A narrativa conta a história de meninos pobres que
moram ao lado de um clube, cuja diversão é olhar do alto do morro as pessoas brin-
cando na piscina, no play-ground, na pista de kart. Entremeando a descrição do bair-
ro sem infra-estrutura com os equipamentos de lazer do clube, a música faz emergir
toda a tensão entre as várias cidades segregadas que se sobrepõem. O trecho é longo,
mas significativo:
a toda comunidade pobre da zona sul / chegou fim de semana todos querem diversão
/ só alegria nós estamos no verão, mês de janeiro / são Paulo Zona Sul [...] olha meu
povo nas favelas e vai perceber / daqui eu vejo uma caranga do ano / toda equipada e
o tiozinho guiando / com seus filhos ao lado estão indo ao parque / eufóricos brin-
quedos eletrônicos / automaticamente eu imagino / a molecada lá da área como é que
167
tá / provavelmente correndo pra lá e pra cá / jogando bola descalços nas ruas de terra
/ é, brincam do jeito que dá / gritando palavrão é o jeito deles / eles não tem vídeo-
game às vezes nem televisão [...] olha só aquele clube que da hora / olha aquela qua-
dra, olha aquele campo / olha, olha quanta gente / tem sorveteria cinema piscina
quente / olha quanto boy, olha quanta mina [...] olha só aquele clube que da hora /
olha o pretinho vendo tudo do lado de fora / nem se lembra do dinheiro que tem que
levar / do seu pai bem louco gritando dentro do bar / nem se lembra de ontem, de
hoje e o futuro / ele apenas sonha através do muro... / a número um de baixa renda
da cidade / comunidade zona sul é dignidade / tem um corpo no escadão a tiazinha
desce o morro / polícia a morte, polícia socorro / aqui não vejo nenhum clube polies-
portivo / pra molecada freqüentar nenhum incentivo / o investimento no lazer é
muito escasso / o centro comunitário é um fracasso (RACIONAIS MCs, Fim de
Semana no Parque)
Ao registrar a vida da periferia em suas músicas, o hip-hop fragiliza a ordem impos-
ta pela produção capitalista do espaço que separa os espaços de uns e de outros, ou
do Mesmo e do Outro. Neste sentido, o Outro é uma ameaça e, como tal, precisa ser
contido e confinado, o que é feito com o uso da repressão policial. Esta ação repres-
sora não acontece apenas no cotidiano das periferias, mas também “quando grupos
de jovens da periferia tentam acessar os serviços, principalmente os de lazer e traba-
lho, nos centros ou em outras áreas em que estejam disponíveis, mas que não são,
todavia, espaço de circulação destes mesmos jovens” (MORAES, 2004: 02). Esta fra-
tura sócio-espacial e simbólica e a vontade confinar este Outro ameaçador ficou bas-
tante evidente, como já mencionado, no episódio da violência policial no show dos
Racionais MCs na praça da Sé em 2007.
Naquela ocasião, a tropa de choque da polícia militar foi extremamente truculenta
para dispersar o público local, sob justificativa de que era a única maneira da acalmar
os ânimos de “vândalos” incitados pelas músicas violentas do grupo que estava no
palco. Toda a mídia paulista e nacional reforçou, durante vários dias, a argumentação
da polícia militar. Mais uma vez ao jovem negro da periferia foi reservado, na mídia,
o lugar do Outro, impossibilitando-o de se pronunciar, de ter voz, tirando-lhe a chan-
ce de contar aquela história a partir de seu próprio ponto de vista (e assim tantas
outras histórias são silenciadas pela produção simbólica dominante).
Portanto, restringir o campo da comunicação à esfera midiática é não apenas pactuar
com o bios mediático alinhado com os interesses hegemônicos, mas, sobretudo, esva-
ziar a dimensão ético-política da questão comunicacional (SODRÉ, 2002: 224).
Ainda que o movimento hip-hop não pertença à esfera midiática, ele é um fenôme-
no com forte dimensão comunicacional. Destarte, ao analisar o hip-hop, é impres-
cindível contextualizá-lo dentro de uma perspectiva histórica e complexa dos mean-
dros e da heterogeneidade deste universo, compreendendo a batalha simbólica da
qual ele faz parte.
168
3. COMUNICAÇÃO E RESISTÊNCIA
Em tempos em que o conceito de Comunicação é cada vez mais limitado aos obje-
tos midiáticos, diversas práticas comunicativas têm sido negligenciadas nas teorias da
comunicação, apontando para aquilo que Boaventura Santos chama de “desperdício
da experiência” (2007a).
Diante do paradigma dominante, aquilo que lhe é externo ou fugidio acaba por ser
simplesmente ignorado, descartado ou invalidado. Isso não significa que uma transi-
ção paradigmática almeje romper ou substituir as formas dominantes de conheci-
mento. Estas podem continuar a se reproduzir, mas perdem o monopólio e convi-
vem com as práticas insurgentes. De acordo com prognósticos de Santos esta é uma
possibilidade factível rumo à qual segue a sociedade. Sob este aspecto, pretendemos
nos afastar de proposições positivistas e mecanicistas que restringem o campo da
comunicação à esfera das interações midiáticas, defendendo o seu alargamento rumo
a uma partilha do comum.
Prado apontou a importância de se considerar os objetos midiáticos um subconjun-
to dos objetos comunicacionais, que incluem, “por exemplo, os fluxos das manifes-
tações, não visíveis nas mídias, de movimentos sociais contra-hegemônicos” (2006b:
24). A Rede Povos da Floresta
97
, por exemplo, utiliza, desde 2003, tecnologia da
informação para conectar índios, quilombolas, ribeirinhos e populações extrativistas
com o intuito de defender seus direitos, preservar sua cultura, suas tradições e terri-
tórios. Os Ashaninka
98
, do alto rio Juruá, no Acre, em 2005, com o uso de câme-
ras digitais conseguiram jogar, diretamente na internet, denúncias contra madeireiros
que estavam colocando em risco a floresta, com a derrubada ilegal de árvores, e ocu-
pando as terras indígenas. Essa notícia rapidamente se capilarizou, mobilizando ati-
vistas do mundo inteiro (KRENAK apud TENDLER, 2007).
Tendo em vista não desperdiçar estas e outras experiências do escopo da comunica-
ção, enquanto área do conhecimento, tal disciplina deveria se debruçar sobre estu-
dos dos fenômenos comunicacionais que contêm “os fenômenos e objetos midiáti-
cos, considerando que a comunicação é o novo espaço que englobou a produção na
configuração do valor no capitalismo globalizante” (PRADO, 2006b: 25). O fenôme-
no comunicacional é entendido, para o autor, como um cruzamento, percebido e
vivido nos corpos, de várias ordens de saberes: da produção de significações (semió-
169
97 Na página www.redepovosdafloresta.org.br, temos diversas informações sobre o uso da internet
como instrumento de troca de conhecimento e conexão entre estes povos.
98 A Associação do Povo Ashaninka do Rio Amazônia mantém um blog em http://apiwtxa.blogs-
pot.com.
....................
tica e semiologia), do agenciamento de poderes (interface entre política e comunica-
ção) e da formação dos sujeitos (construção dos sujeitos e dos agentes socialmente
construídos).
Com isso, ao invés de se modular pelo viés regulador focado nos meios de comuni-
cação, a comunicação passa a ser entendida como uma ferramenta importante para
compreensão dos processos hegemônicos e contra-hegemônicos da produção simbó-
lica dos dias atuais sob o domínio da globalização. De fato, há uma comunicação a
serviço dos valores hegemônicos, especialmente voltados para o mercado e o consu-
mo. Esta comunicação não apenas designa como também produz uma realidade, a
realidade do Mesmo ou de seus pares nos jogos de poder, e a impõe para os Outros,
aqueles subalternos nas relações de poder.
Os processos contra-hegemônicos no campo da comunicação são aqueles que de
alguma maneira vêm para desconstruir o que é naturalizado pelo fenômeno comuni-
cacional relacionado exclusivamente aos processos hegemônicos empreendidos pelo
capitalismo cognitivo (GORZ, 2005). Assim, quando Prado nos fala de fenômeno
comunicacional para além da comunicação hegemônica, há uma expansão no con-
ceito de comunicação que compreende a inclusão de uma comunicação contra-hege-
mônica. Nas palavras de Muniz Sodré, trata-se de “inscrever no pensamento comu-
nicacional o horizonte de revitalização da experiência democrática a partir do
‘comum’, isto é, da capacidade de articulação ético-política das organizações regio-
nais e populares” (SODRÉ, 2002: 257).
O alargamento do campo da comunicação vai ao encontro da origem da palavra
comunicação (do latim communicatiÿne), na qual há uma relação com o comum, no
sentido de pertencente a todos. Do verbo latim communicare, originam-se comungar e
comunicar, ou seja, partilhar, pôr em ação o comum, aquilo que pertence a todos
(MACHADO, 1990: 197 e 198). Na raiz etimológica de comunicação há um víncu-
lo com a idéia de comunidade, de relação de grupo, de comunhão.
A comunicação feita nas margens do sistema (na periferia das grandes cidades, pelos
povos da floresta etc.) é comunicação “fora do lugar”, ao adotarmos o entendimen-
to corrente no país hoje em dia para o campo da comunicação. É, contudo, o lugar
da comunicação se tomarmos um entendimento alargado do campo comunicacio-
nal, nos sentidos de Prado e de Sodré, em razão da sua capacidade de pôr em ação o
comum, de propiciar a partilha de saberes. O hip-hop, a partir deste ponto de vista,
é um fenômeno comunicacional no qual o que está em jogo é o entendimento da
realidade comum aos negros, aos pobres e aos periféricos. No hip-hop se estabelece
uma comunhão em que todos produzem um conhecimento num movimento pluri-
direcional de adição, de soma de várias partes. No hip-hop há produção de sentidos
e partilha, há designação e produção de realidades.
170
Hannah Arendt expõe a importância da ação e do discurso como formas predomi-
nantes da condição de existência dos homens. Para a autora não há vida sem ação e
sem discurso, que são definidos como processos de comunicação vitais à condição
humana. Os dois são conjuntamente processos reveladores do agente: não é possível
compreender aquele que age senão através simultaneamente da sua ação e do seu dis-
curso (ARENDT, 2007). Com efeito, a comunicação fora de lugar dos periféricos tem
levado a uma (re)construção simbólica e concreta do mundo, emergindo como um
vetor real de resistência de diversos grupos contra a ordem hegemônica estabelecida,
moldando os valores do ‘nós’ por meio da partiha de saberes.
É nesse sentido que Prado argumenta que o campo da comunicação não deve “estar
alicerçado exclusivamente numa teoria dos objetos midiáticos, nem na divisão segun-
do os meios, mas nos processos hegemônicos e contra-hegemônicos empreendidos
pelo capitalismo cognitivo” (2006b: 25). O autor propõe, ao contrário, uma amplia-
ção no foco, em que os objetos comunicacionais são processos que circulam por toda
a sociedade e não se restringem aos objetos midiáticos. Desta maneira, a epistemolo-
gia da comunicação é um espaço teórico no qual a pesquisa constrói e investiga ações
concretas contra-hegemônicas, “tornando visíveis as presenças invisíveis, por exem-
plo, dos movimentos sociais e desnaturalizando a invisibilidade dessas práticas” (ibi-
dem).
Muitas vozes historicamente silenciadas têm pouco a pouco realizado transforma-
ções sociais nos bairros pobres, por meio de ação e discurso e do “pôr em comum”.
São fenômenos comunicacionais bastante significativos e nos ajudam a compreender
os processos de resistência instaurados atualmente no país. Jovens trabalhadores se
juntam em torno das suas artes, acreditando poder ser e fazer a diferença para a
comunidade onde vivem, como foi o caso do Espaço Maloca, na zona sul de São
Paulo, coordenado pelo hiphopper Terno, do grupo Pânico Brutal. O antigo espaço
comunitário abandonado pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e
Urbano do Estado de São Paulo – CDHU era proibido para os moradores da comu-
nidade vizinha. Em 2003, a comunidade levou para a CDHU um projeto de ocupa-
ção do prédio com uma biblioteca comunitária. O uso do espaço foi cedido e após
uma reforma feita pelos próprios moradores, começaram a ser realizadas no local
diversas atividades como oficinas de dança, ensaios de grupos e bandas, sarau literá-
rio e musical, oficinas de DJ, MC, debates, palestras sobre hip-hop e reuniões comu-
nitárias. Sobre seu envolvimento com o projeto, Terno afirma: “desde que falei sou
um rapper e assumi o compromisso de conscientizar, informar e buscar informações,
seja na música, no rádio, ou nos livros, o rap é o meio de comunicação mais eficaz
para o povo pobre” (TERNO apud BUZO, 2006).
O país inteiro tem suas periferias cheias de experiências desta natureza, levadas a cabo
especialmente por intermédio do hip-hop. Comunicação e resistência na periferia sig-
nifica partilha de conhecimento, discurso e ação. Milton Santos, em sua última
171
entrevista, em 2001, indica que é mediante este rapaz pobre da periferia que pode-
mos vislumbrar a possibilidade de se conviver com o futuro possível:
acho que é esta que é a grande novidade da nossa geração. É essa capacidade que nos
foi dada de conviver com o futuro possível. Não é nada do domínio dos filósofos. É
algo que tanto nós que somos, que imaginamos ser intelectuais, sabemos que existe,
como o rapaz pobre da periferia que inventa uma música revolucionária e que explica
o seu mundo. Acho que esta é que é a grande novidade (SANTOS apud TENDLER,
2007)
Em seu livro Por uma Outra Globalização, o geógrafo acredita que a mudança históri-
ca virá efetivamente a partir de um movimento de baixo para cima, numa luta que
inclui a reversão da tirania da informação e do dinheiro, fundamentos estruturantes
da globalização hegemônica. Milton Santos denuncia que as pouquíssimas agências
de notícias responsáveis por toda informação que circula atualmente são apenas
defensoras de seus objetivos particulares que têm em vista, acima de tudo, o que o
autor denomina de “dinheiro em estado puro”. Desta maneira, “a periferia do siste-
ma capitalista acaba se tornando ainda mais periférica, seja porque não dispõe total-
mente dos novos meios de produção, seja porque lhe escapa a possibilidade de con-
trole” (SANTOS, 2001: 39).
Portanto, produzir a própria informação (sem a mediação destas agências de notícias)
e a própria cultura – seja por meio da música, do cinema, da literatura etc. – é esta-
belecer outra maneira possível de fazer comunicação, neste caso uma comunicação
contra-hegemônica. Esta comunicação age diretamente no mundo, engendrando
uma gramática comunicativa insurgente e múltipla em contraposição àquela hege-
mônica e monossilábica. O hip-hop como comunicação contra-hegemônica vai
designar e produzir as periferias, os pobres e os negros, mas, ao contrário destas cate-
gorias homogeneizadas e estigmatizadas pelo Mesmo, impostas de fora, o lugar de
fala e de reconstrução simbólica do hip-hop é a partir do interior:
o som, a música que vem da rua / a fala, a rima, o ritmo, a poesia./ nasce dentro de
um povo, mostrando saídas. / pra vida, a favela agora tem voz ativa (Z’ÁFRICA BRA-
SIL, A Raiz)
não tem maldade, sem treta, sem sangue / descanse seu gatilho, aqui não é filme de
‘bang-bang’ / sente a fita mano, fique na paz de espírito / faça uma prece, para os
manos que estão no céu condenados a tiros [...] quem disse que na periferia não dá
pra curtir / mano chega aí / fique na paz, procure festa e faça por onde se divertir / aí
mano vâmo que vamos diz (Z’ÁFRICA BRASIL, Mano Chega Aí)
Nestes trechos o Z’África Brasil canta uma periferia de festa, nem sempre de sangue,
um lugar que pode ter voz ativa com a cultura que nasce na rua, com o povo e para
o povo. Outro grupo, o Núcleo, também da zona sul de São Paulo, numa de suas
letras demonstra consciência acerca dos mecanismos de dominação do poder hege-
172
mônico e contra-argumenta que há ideologia na periferia, sem a necessidade de
importação daquelas vindas de fora:
isso só é bom para o poder, que quer que a juventude seja alienada, algemada, ocupa-
da, plugada, globalizada / pode crer, justamente pra poder manter toda revolta da
massa controlada / mas se você quer saber, maloqueiro tem forte ideologia / e agonia
e o desespero do dia a dia ele supera e transforma em poesia / ferramenta pra lutar e
assim provar pro mundo e pra si mesmo que é capaz de sobreviver num lugar onde a
lei é ditada por rivais banais (NÚCLEO, Poupe Minhas Lágrimas)
A poesia não é apenas a transformação das dificuldades do cotidiano, mas um dispo-
sitivo de aquisição de auto-estima, capaz de fazer com que os moradores das perife-
rias acreditem nas suas possibilidades de sobreviver nas adversidades impostas pela
desigualdade sócio-espacial. Nos processos violentos de imposição simbólica é entro-
nizado e encarnado no Outro o conjunto dos valores do Mesmo: os periféricos natu-
ralizam sua própria “inferioridade”. Portanto, reverter esta naturalização é romper
com imposições vindas de fora, do Mesmo midiático.
O hip-hop, para além dos elementos que integram o movimento (dança, grafitti,
MC, DJ, consciência), tem influenciado também a literatura e o cinema produzidos
na periferia. Ferrez, escritor de vários livros, é também MC; o mesmo acontece com
MV Bill, que já escreveu livros e fez um documentário
99
. Da mesma maneira, o
cineasta Adirley Queiróz
100
, de Ceilândia, no Distrito Federal, documenta a cul-
tura produzida na periferia: “o cinema que a gente quer mostrar é o cinema que a
gente experimenta, é a nossa experiência de vida, nada mais do que isso. É o nosso
ponto de vista só, é a experiência de ser morador de Ceilândia, morador de periferia,
é a indignação de não se ver nas telas” (apud TENDLER, 2007). A proposta cinema-
tográfica de Queiroz tem por base os modos de produção do rap, dando voz e corpo
aos periféricos: “vamos tentar fazer um cinema que tem como exemplo os modos de
produção do rap [...] eu acho que o rap é um cara de periferia a dar identidade à peri-
feria, a dar nome às pessoas, e a contar as histórias das perspectivas deles. Então a
gente também tá tentando fazer cinema nesta perspectiva” (ibidem).
173
99 MV Bill e Celso Athayde produziram, em 2006, o documentário: Falcão – Meninos do Tráfego,
que retrata a vida de jovens de favelas brasileiras que trabalham no tráfico de drogas. As cenas foram fil-
madas entre 1998 e 2006, quando os dois visitaram diversas comunidades pobres do Brasil, experiência
também registrada no livro Cabeça de Porco (2005). O termo "falcão", que dá nome ao documentário, é
usado nas favelas para designar quem vigia a comunidade e informa quando a polícia ou algum grupo
inimigo se aproxima.
100 Adirley Queiroz é nascido em Ceilândia e formado em cinema pela UnB. Seu filme Rap, O
Canto da Ceilândia (2005) ganhou quinze prêmios no Brasil durante o ano de 2005/2006. O filme é um
diálogo com quatro consagrados artistas do rap nacional (X, Jamaika, Marquim e Japão), todos mora-
dores da Ceilândia, mostrando uma ligação entre a trajetória desses integrantes do universo da música
com a construção da cidade onde moram.
....................
Eventos literários como a Cooperifa e o Sarau do Binho trabalham na mesma dire-
ção, “pra gente entender o que tá acontecendo aqui hoje na periferia, nós estamos
numa quarta-feira de frio e isto aqui tá lotado pra gente falar sobre literatura e de poe-
sia. Isto é combater o sistema” (VAZ)
101
. Em finais de 2007, na mesma região, Vaz
e outros artistas organizaram a Semana de Arte Moderna da Periferia. No manifesto
da Semana, o Manifesto de Arte Periférica, lê-se:
A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz
que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e
inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os
brasileiros (VAZ, 2007).
Já neste primeiro trecho há o reconhecimento do silenciamento histórico (“o silên-
cio que nos pune” e “contra o passado”), numa proposta de construção de futuro não
apenas para os periféricos, mas para todos os brasileiros. O manifesto segue identifi-
cando contra quem e contra o que lutam:
contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção. Contra a arte
fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da múlti-
pla escolha [...] contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte
vigente não fala. Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala [...] Contra a arte
174
101 Sérgio Vaz na abertura do Sarau da Cooperifa, disponível em:
http://br.youtube.com/watch?v=PeOlYS exdoI
....................
Mosaico com o logotipo da Semana de Arte Moderna da
Periferia, no Bar do Zé Batidão, zona sul de São Paulo.
Foto: arquivo da autora.
domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona. Contra a
barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso
à produção cultural. Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avantajado.
Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra eles? Me ame pra
nós! Contra os carrascos e as vítimas do sistema. Contra os covardes e eruditos de
aquário. Contra o artista serviçal escravo da vaidade. Contra os vampiros das verbas
públicas e arte privada (ibidem)
Afinal, “a Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza” (ibidem). Vaz, nesta
frase deixa clara a vontade de independência, de uma construção simbólica que não
seja a importação de valores externos, mas construídos nas e pelas próprias periferias.
Seja por meio da música, dos encontros literários, das oficinas de hip-hop, do cine-
ma ou do teatro, a arte na periferia se constitui como fenômeno comunicacional con-
tra-hegemônico. É discurso e ação ao mesmo tempo, nas definições de Arendt, e são
também fluxos percebidos e vividos nos corpos, como diz Prado.
Esta comunicação contra-hegemônica das periferias está contando a sua história para
os próprios moradores das periferias do país, mas também para aqueles da cidade dita
formal. O centro da narrativa desloca-se do centro geográfico para a periferia, que se
constitui então como a centralidade desta produção artístico-cultural e política. Há,
de fato, uma mudança de lugar na produção de sentidos, de modo que são inverti-
das as paisagens políticos culturais do Mesmo e do Outro midiático. Na comunica-
ção contra-hegemônica, o Mesmo é a periferia e seus valores e o Outro diz respeito
aos valores dominantes.
A importância de ter voz e produzir sentidos é um dos requisitos para empoderar
grupos inferiorizados rumo à emancipação, ou seja, à capacidade de autonomia, esco-
lha e tomada de decisões significativas para si e seu meio. Lembramos que a falta de
capacidade representacional, comunicativa e expressiva é uma das desigualdades não
materiais de que nos fala Boaventura Santos (2007a: 267). Assim, uma comunicação
resistente ou contra-hegemônica deve necessariamente aplacar as desigualdades
impostas pelo poder dominante no que tange à produção de sentidos.
Em um artigo sobre mulheres indígenas e radiofonia, a pesquisadora Ana Barale pon-
tuou a importância significativa para a transformação das condições de submissão
histórica das mulheres indígenas em algumas comunidades no México. Em sua pers-
pectiva, a comunicação popular ou comunitária é libertadora, participativa, conscien-
tizadora e problematizante (BARALE, 2004: 164), pois tem poder de mudar o senti-
do de comunicação: aqueles que ouvem são também aqueles que falam. A comuni-
cação passa a ser, desta maneira, um processo multidirecional de construção constan-
te de sentidos, ao contrário da imposição unidirecional dos meios de comunicação
convencionais. Vale a ressalva de que não é o fato de ser comunitária ou popular que
torna a comunicação contra-hegemônica, pois poderia apenas reproduzir os padrões
dominantes. O que torna uma comunicação contra-hegemônica são suas múltiplas
175
vozes capazes de ressignificar e produzir realidades, de partilhar conhecimento, de
produzir o comum no discurso e na ação.
No caso analisado por Barale, a experiência com as mulheres indígenas transforma a
função da radiofonia, convertendo a rádio de aparato de distribuição em aparato de
comunicação. O que está em causa para a autora é um entendimento de comunica-
ção no seu sentido de produção de conhecimento, sem um fim em si mesmo, mas
como ferramenta para transformação social (ibidem: 165). O foco não é a radiofonia,
mas a sua possibilidade de multiplicação da palavra, de valorização da oralidade:
“antes de qualquer mensagem, antes de qualquer conselho ou alfabetização, o mais
libertador é a palavra. Fazemo-nos homens e mulheres quando falamos. Aprendemos
a pensar falando. Somos, quando dizemos que somos” (ibidem: 169)
102
.
Na mesma direção de valorização da palavra e na sua capacidade transformadora,
Massimo di Felice nos lembra das perdas e derrotas impostas ao governo mexicano
pelo movimento zapatista, sem que fossem necessários quaisquer ataques ou insur-
reições armadas (DI FELICI, 2004: 298). Os comunicados do movimento ao mundo,
difundidos pela internet, são o seu principal instrumento de luta. Retomando a ora-
lidade ancestral dos povos indígenas, os zapatistas atualizaram esta tradição através
das novas tecnologias, apontando para uma libertação “da concepção que vê o pre-
domínio da ação sobre a palavra e considera a primeira uma criação da segunda” (ibi-
dem). No hip-hop, a cultura oral é central, resgatando o papel dos griots africanos
para a comunidade afro-descendente e valorizando a cultura oral dos repentistas nor-
destinos. Quer dizer, é da natureza do conhecimento contra-hegemônico a consciên-
cia de que discurso e ação são partes indissociáveis de uma representação lógica de
mundo, como afirma Arendt (2007).
Diversos são os fenômenos comunicacionais emergentes em vários países, como estes
exemplos mexicanos, que, em seu conjunto, seguem em direção à outra globalização,
na qual acreditava Milton Santos, feita e pautada pela humanidade comum e não
pelos dominadores:
a questão da escassez aparece outra vez como central. Os ‘de baixo’ não dispõem de
meios (materiais e outros) para participar plenamente da cultura moderna de massas.
Mas sua cultura, por ser baseada no território, no trabalho e no cotidiano, ganha a
força necessária para deformar, ali mesmo, o impacto da cultura de massas. [...] Essa
cultura de vizinhança valoriza, ao mesmo tempo, a experiência da escassez e a expe-
riência da conviviência e da solidariedade (SANTOS, 2001: 144)
176
102 Original em castelhano: “antes que cualquier mensaje, antes que cualquier consejo o alfabet-
ización, lo más liberador es la palabra. Nos hacemos hombres y mujeres cuando hablamos.
Aprendemos a pensar hablando. Somos, cuando decimos que somos”.
....................
A experiência da convivência e da solidariedade defendida por Milton Santos diz res-
peito às territorialidades, isto é, onde acontecem as práticas cotidianas e a reprodu-
ção da cultura. A territorialidade é um espaço de relações, um espaço de encontros,
o locus do mundo da vida do qual fala Habermas (1997). É a dimensão na qual se par-
tilha o conhecimento, se produz o comum, isto é, a dimensão da comunicação. Estes
sujeitos falantes, com suas práticas comunicativas, estabelecem outros paradigmas
comunicacionais, distintos daqueles dominantes: ação, discurso e fluxos comunica-
cionais vindos de baixo e de dentro configuram uma comunicação contra-hegemô-
nica.
Os oprimidos pelas representações simbólicas impostas pelos dominantes estão se
alçando, como foi visto, a uma condição de protagonista, a exemplo do que faz o
hip-hop, desconstruindo sua lógica e ressignificando simbolicamente o seu mundo,
deliberadamente posto à margem do sistema. Para isso, deve haver um empodera-
mento multilingüístico (PRADO e MOASSAB, 2007) ou empoderamento discursi-
vo (LUCAS e HOFF, 2006) de partes invisibilizadas da sociedade: aqueles inferiori-
zados por regimes de fascismo simbólico devem sair do lugar de silêncio que lhes é
imposto (ou de fala subalterna) para impor-se com voz contra os valores simbólicos
dominantes.
É nesse sentido que se deve pensar em uma comunicação contra-hegemônica,que,
em conjunto com a sociologia das ausências (SANTOS, 2006a), (re)construa os luga-
res e seus protagonistas.
177
178
179
CAPÍTULO 4
103 ZÁfrica Brasil, Hip-Hop Rua.
103
Foto: Rogério Vieira
1. HIP HOP: COMUNICAÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA
Aracionalidade dominante nos últimos séculos com forte influência no Brasil, sobre-
tudo devido à colonização portuguesa, é fundamentalmente eurocêntrica. O racio-
nalismo e a valorização do saber científico conquistaram um espaço hegemônico na
compreensão do mundo ocidental moderno, transformando “interesses hegemôni-
cos em conhecimentos verdadeiros” (SANTOS, 2006a: 97). É neste sentido que as
ciências se inscrevem como um dos principais vetores de representações simbólicas
dominantes, ao lado da mídia/publicidade, da escola e da cultura. A separação dos
vetores é artifício meramente didático, posto que todos eles se contaminam e repro-
duzem, no fim das contas, os valores do poder hegemônico correspondente, neste
início de século, ao capitalismo neoliberal global.
Boaventura Santos propõe uma sociologia das ausências para fazer emergir as expe-
riências que são silenciadas e invisibilizadas pelo saber dominante. Na sociologia das
ausências é demonstrado que o que não existe é, com efeito, produzido como não
existente. Além disso, o autor defende que as experiências ofuscadas pelas dicotomias
hegemônicas sejam pensadas fora das relações de poder que unem hierarquicamente
dominador-dominado ou silenciador-silenciado. Ou seja, pensar o sul sem o norte, a
mulher como se não houvesse o homem, o escravo sem o senhor, em suma, traba-
lhar com outras racionalidades para lidar com experiências fora da racionalidade
dominante (SANTOS, 2006a). Este é o cerne do pensamento pós-abissal, de nature-
za não-derivativa (SANTOS, 2007b: 24). Isto significa ser sul ao invés de não-norte,
brasileiro ao invés de não-europeu e assim por diante, superando aquilo que para
Bourdieau é uma entidade negativa, para o caso das mulheres: “definida apenas pelos
seus defeitos, as suas próprias virtudes só podem afirmar-se por meio de uma dupla
negação, como vício negado ou superado, ou como mal menor” (1999: 23).
Diversos são os modos de produção de não-existência sob o julgo de totalidades
hegemônicas e excludentes, com base em critérios hegemônicos de saber (que pro-
duz o ignorante), de desenvolvimento (que produz o atrasado ou subdesenvolvido);
de classificação social (que produz o inferior, como as mulheres e os negros); de pro-
dutividade (que produz o improdutivo ou preguiçoso). Dentro do campo das ciên-
cias sociais, constituído sob os parâmetros dominantes, a sociologia das ausências é,
ela própria, transgressiva (SANTOS, 2006a). Ao mesmo tempo, o pensamento pós-
abissal livre das racionalidades construídas pelo dominador é per si emancipatório.
O hip-hop, ao fazer emergir uma periferia com seus valores culturais próprios e ao
valorizar a auto-estima coletiva de sua população com o resgate da história dos afro-
descendentes e dos migrantes, torna o negativo (a periferia da criminalidade) em
positivo (a periferia da cultura) e faz das ausências (da criatividade e capacidade ino-
vadora da sua população), presença.
180
Nesse sentido, a consciência da importância do hip-hop como meio de comunicação
e educação estava presente desde sua origem nos EUA. Chuck-D, integrante do
Public Enemy, um dos grupos estadunidenses mais viscerais nas críticas sociais, dizia
que “o rap é a CNN do gueto, na medida em que conta a vida no gueto” (apud
CONTADOR e FERREIRA, 1997: 75)
104
. Por sua vez, outro grupo contunden-
te nos EUA, KRS One, acreditava no papel didático do hip-hop. Sob a filosofia do
edutainement (educação + diversão), o grupo levantou questões políticas importantes,
motivo pelo qual ficou conhecido como representante do “verdadeiro hip-hop” (ibi-
dem: 77). No Brasil não é diferente, pois o hip-hop, por meio do rap, é um dos meios
de comunicação alternativos mais eficazes para o povo pobre em termos de veicula-
ção de suas próprias notícias e histórias (TERNO apud BUZO, 2006).
Não é apenas no conteúdo que o hip-hop se afirma como arma contra-hegemônica.
A forma de construção de conhecimento no hip-hop, ao contrário do saber conven-
cional, não se pauta pela escrita, subvertendo a hierarquização convencional na qual
a escrita formal está acima de outros modos de transmissão de conhecimento. No
hip-hop a mensagem está no corpo-movimento do break, no grafismo transgressor
do graffiti e, especialmente, na valorização da palavra. Duas influências culturais
importantes estão presentes na oralidade do hip-hop: os griots africanos e os repen-
tistas nordestinos. Desta maneira, o hip-hop, revertendo o valor da oralidade sobre a
escrita, e, portanto, contra-hegemônico também na sua forma, fortalece um elo com
a história brasileira e de seus povos originários, tanto no que se refere aos africanos
desterrados quanto aos indígenas, cuja cultura oral é mantida até os dias atuais.
A comunicação oral não deve ser confundida “apenas com o uso da palavra, pois não
é puramente lingüística, mas igualmente física e social” (FERRÃO, 2006: 06). A ora-
lidade requer “presença física de falante e ouvinte, submetidos à influência do
ambiente, às circunstâncias sociais e aos imperativos mnemônicos” (ibidem). Assim,
a memória das periferias vai sendo construída através das narrativas do cotidiano, dos
relatos sobre violência policial, das histórias ancestrais e da ressignificação da histó-
ria do país, contada nas letras das músicas do hip-hop e nas mensagens dos MCs
durante as festas. A transgressão do hip-hop não está apenas em sua comunicação
insurgente, dando centralidade aos periféricos. Sua insubordinação reside também na
recusa em aceitar a escrita como seu padrão preferencial para a partilha de conheci-
mento. Ao contrário, ao eleger a oralidade, o cotidiano e as festas, o hip-hop propõe
outra maneira de transformar seu entorno e a sociedade.
181
104Fundada em 1980, a Cable News Network – CNN é uma rede de televisão estadunidense per-
tencente ao grupo Time Warner e é especializada na transmissão de notícias vinte e quatro horas por
dia. É um dos canais de televisão mais assistidos nos EUA.
....................
• O canto-falado dos rappers, repentistas e griots
O canto do hip-hop é caracterizado por uma marcação pouco melódica e forte
expressão rítmica através dos versos, rimas e pausas. A quase ausência melódica torna
sua musicalidade muito próxima da sonoridade falada, tal qual a musicalidade dos
repentistas e dos griots, referências correntes no hip-hop: “griot traz vitórias / raiz de
glória eu canto risos / porque é preciso / entrar na memória” (Z’ÁFRICA BRASIL,
Raíz de Glória).
Os griots são os contadores de história originários do que atualmente são os países
de Mali, Gâmbia, Guiné e Senegal. A despeito das controvérsias acerca da origem e
utilização do termo “griot”, levada a cabo por historiadores e especialistas em histó-
ria da África (HALE, 1997; FARIAS, 2004), o termo vem aparecendo no Brasil atra-
vés do movimento negro e do próprio hip-hop, como um elo de ligação entre estes
espaços (Brasil e África) e tempos (presente e passado).
No livro infantil Histórias da Preta, escrito por Heloisa Lima (2006) especialmente
para cultivar um imaginário positivo para as crianças negras sobre a cultura de seus
ancestrais, lê-se:
a revista antiga foi o que sobrou no chão, aberta na imagem de um músico tocando
um instrumento, dançando e cantando. Era um griot o que o vento me trouxe. [...]
Aprendi então que griot é como os franceses chamaram os diélis, que é o nome bam-
bara para esses contadores de história. Os diélis são poetas e músicos. Conhecem as
muitas línguas da região e viajam pelas aldeias, escutando relatos e recontando a his-
tória das famílias como um conhecimento vivo (LIMA, 2006: 22)
Para Paulo Farias, pesquisador e professor do Centre of West African Studies da
Universidade de Birmingham, os diélis ou jélis, são os griots, aqueles que se incum-
bem “da louvação e da história oral” (2004: 02). Farias destaca que na origem da pala-
vra há um agrupamento dos griots com os ferreiros, apontando para o fato de os lou-
vadores de história serem socialmente agrupados com os artesãos, ou seja, o griot
é visto como um transformador tanto do invisível quanto do concreto, capaz de trans-
formar as emoções das pessoas [...] são trabalhadores que participam dos campos de
trabalho do intelectual, do artesão e do artista, e são educados como oradores, músi-
cos, vocalistas, e especialistas do conhecimento da história (ibidem: 04)
105
.
Se o griot é um transformador do invisível e do concreto, através de seu trabalho com
a palavra, ele é, acima de tudo, um agente de comunicação, assim como os repentis-
tas ou os rappers.
182
105 Para Farias, a categoria “ferreiro” é uma subcategoria de artesão, pois são pessoas que traba-
lham com as mãos. Os griots, na origem da palavra são agrupados com os ferreiros, dotados da capa-
cidade de transformação da matéria, no caso, da emoção das pessoas.
....................
Por sua vez, o repente, uma das marcas da tradição oral brasileira, também designa-
do de “cantoria nordestina”, é um improviso cantado, “arte poético-musical, consi-
derada como cristalização de sobrevivência das tradições que se imbricaram no pro-
cesso de miscigenação racial, forjando uma arte que se configura como tipicamente
regional” (RAMALHO, 2002: 03). Sua manifestação pertence tanto à cultura rural
quanto urbana, embora sua origem esteja mais circunscrita ao sertão e ao sertanejo,
sob forte influência dos trovadores medievais. Para alguns autores (TRAVASSOS
apud ibidem: 04) o repente mistura outros gêneros como a embolada, os aboios ver-
sificados e os benditos
106
.
Por todo o nordeste acontecem periodicamente festivais de repente, também conhe-
cidos por Cantorias, marcados pelo desafio do canto de improviso com regras pró-
prias de obediência à rima, à métrica e à coerência ao tema escolhido. O desafio dos
repentistas é bastante semelhante às batalhas de rap, denominadas freestyle. Nas bata-
lhas de rap, embora as regras sofram pequenas variações, de um modo geral trata-se
de sustentar a rima por um tempo limitado (por volta de um minuto) versando sobre
o opositor, o ambiente à volta ou sobre um assunto geral. Os opositores devem
necessariamente estabelecer um diálogo coerente. Normalmente é o público que
escolhe o vencedor das batalhas
107
.
A proximidade destas artes de rua, do improviso e da oralidade foi incentivada e reco-
nhecida em fins de 2007, no I Encontro Nacional de Rappers e Repentistas (Rap & Rep),
em Campina Grande (PB), promovido pelo Ministério da Cultura e pelo governo da
Paraíba, sob a curadoria de Nelson Triunfo, um dos principais nomes da primeira
geração do hip-hop nacional
108
. O evento levou nomes importantes do univer-
so do hip-hop, como MV Bill, GOG e Z’África Brasil, e da cultura popular, como
183
106 A embolada é a arte cantada de improvisos realizados por uma dupla acompanhada de ins-
trumentos de percussão. É travado um diálogo entre os dois desafiantes, diferentemente do repente,
cuja temática é basicamente versar sobre a vida cotidiana. O aboio é o canto do vaqueiro para orien-
tar o gado pelas estradas ou para o curral. O bendito diz respeito a cantos religiosos populares.
107 É possível conferir a Rinha dos MCs, tradicional batalha na zona sul de São Paulo em:
www.youtube.com/watch?v=M9VJhVYhpBc. Neste vídeo a Rinha dos MCs aconteceu em um even-
to no Vale do Anhangabaú no centro da cidade. São 40 segundos para cada desafiante e a cada roda-
da um começa e o outro rebate, constando das regras proibições como usar termos homofóbicos ou
desrespeitar a mãe, irmã e família do oponente. A escolha do vencedor é feita pelo público através de
aplausos.
108 Apesar de promovido pelo governo federal em parceria com o estadual, o evento não teve o
apoio da prefeitura municipal, o que ocasionou algumas dificuldades de realização na cidade.
Informações na página da agência Brasil e de portais de notícias locais: www.agenciabrasil.gov.br/
noticias/2007/10/28/materia.2007-10-28.6084563256/view;
www.clickpb.com.br/artigo.php?id=20071009055858.
....................
Ivanildo Vilanova, Selma do Coco e As Ceguinhas
109
para participarem de ofi-
cinas, seminários e shows. No âmbito do Encontro também tiverem lugar o Fórum
de Secretários de Cultura, o Festival Nacional de Poetas Repentistas, a Mostra
Nacional de Hip-Hop e a Feira de Literatura de Cordel. No entanto, o movimento
hip-hop não ficou satisfeito com a inclusão de nomes do universo pop como Cidade
Negra na grade de shows, ao mesmo tempo em que grupos de hip-hop locais foram
eliminados da programação prévia sem explicação
110
. A despeito das controvér-
sias, o encontro tem o mérito de registrar e incentivar as duas culturas de rua, trazen-
do para o diálogo suas semelhanças e diferenças.
MV Bill reconhece a linguagem essencialmente não musical do rap e a sua proximi-
dade com o repente, ainda que tenha chegado ao Brasil por influência do movimen-
to estadunidense (ATHAYDE et al, 2005: 84). Em sua narrativa, Bill acena para a
importância da palavra como arma, num contexto em que muitas vezes predomi-
nam, de fato, armas de fogo:
o rap valoriza a palavra, celebra a palavra, num momento em que sua posição cultu-
ral, no universo dos jovens seduzidos pelo tráfico, parece ceder à força da brutalida-
de armada [...] o hip-hop acena com a paz politizada, que se afirma com agressivida-
de crítica, isto é, com o estilo afirmativo do orgulho reconquistado (ibidem, grifo
nosso).
A agressividade crítica apontada por Bill nos remete à dialética da marginalidade de
Rocha, na qual não há mais espaço para o apaziguamento proferido pela dialética do
malandro de Cândido; ao contrário, os periféricos contemporâneos preferem a rup-
tura com as estruturas de poder dominantes. Vejamos em GOG outro exemplo do
reconhecimento da força da palavra:
é o terror meu estilo meus planos de guerra / comunidade do morro que não se rende
à lei da selva / eu sou mais um parceiro desse submundo / trazendo à tona notícias são
184
109 Ivanildo Vilanova, de Campina Grande (PB), é considerado um dos maiores repentistas do
país. Seu trabalho se destaca pela sutileza de seus versos, pela síntese de seus improvisos e pela varie-
dade temática (Banco de Dados Folha: http://almanaque.folha.uol.com.br/musicapop1.htm).
Também de Campina Grande, as irmãs Regina e Maria Barbosa cantam desde a infância em feiras no
interior do nordeste. De 1997 a 2003 o cineasta Roberto Berliner rodou um documentário sobre as
irmãs. A partir do premiado curta de 1998, foi aberto o caminho para o longa-metragem que estreou
em 2005, A Pessoa É Para O Que Nasce, baseado em suas vidas. Para ouvir as Ceguinhas: www.somda-
rua.com.br/artista.php?codArtista=7. Selma do Coco é do interior de Pernambuco e mora atualmen-
te em Olinda (PE). Desde 1997 tem se apresentado em São Paulo, Europa e Estados Unidos. É pos-
sível ouvir suas músicas em: www.somdarua.com.br/artista.php?codArtista=9#.
110 O descontentamento dos grupos paraibanos de hip-hop teve espaço de debate no blog De
Acordo Com, a ser conferido em: http://deacordocom.blogspot.com/2007/10/coluna-val-da-costa-rap-
e-repente.html e http://deacordocom.blogspot.com/2007/11/opiniops-rap-rep-j-chegada-hora-
de.html.
....................
só por alguns segundos / falo do crime de um povo que sofre / enquanto nas mansões
da minoria transbordam os cofres / o burguês discrimina / fala mal de mim de você
da sua mina apóia a chacina / desmerece o artista o ativista / deturpa a entrevista [...]
eu sou o baixo salário o incendiário / ou a foice e o martelo [...] eu sou o trator o rolo
compressor / eu luto pela paz em forma de terror / eu vim pra mudar o clima / o talen-
to na rima / sai da reta maluco eu vou passa por cima! / é o terror é o terror / rap nacio-
nal é o terror que chegou [...] sou revolucionário sou nova forma de pensar / eu sou a
papelote a inscrição pra receber o lote / a bomba que explode / o batalhão inteiro / a
esperança o orgulho do povo brasileiro [...] periferia meu compadi é a maioria / se está
do nosso lado será um vencedor / mas se for adversário ladrão se liga na fita / com cer-
teza na virada do novo milênio / futuro dos tolos eu aviso / porque serão horas de ter-
ror! (GOG, É o Terror )
juventude de atitude minha voz está no ar / trutas e quebradas da ponte pra cá / a cida-
de é nossa, rap é o som / periferia tem seu lado bom / cérebro a milhão, ritmo e poe-
sia / febre periférica, epidemia / a bomba que explode, vai explodir [...] o rap é com-
promisso nova combinação / paz no coração sem drogas, sem canhão / gladiadores
por um pouco de lei / do microfone a justiça, a lei [...] só os fortes, um brinde aos
guerreiros / histórias da vida, relatos de um guerrilheiro aviso ao sistema, nós somos
pesados / nosso inimigos, tempo esgotado (GOG, Quebra-Cabeça)
Nestas letras, GOG canta o rap como um plano de guerra e terror (“rap nacional é o
terror que chegou”), cuja missão é “mudar o clima”, através da rima. Não raro, numa
leitura fragmentada por quem é de fora deste universo, nomeadamente os meios de
comunicação, há um entendimento da proposta de GOG e outros rappers como
exaltação da violência (“eu vou passar por cima”, “a bomba que explode”, “serão
horas de terror”), quando é justamente o contrário (“o rap é compromisso [...] paz
no coração sem drogas sem canhão”). O jornalista Xico Sá (2007) já havia apontado
uma “certa má vontade da mídia” com relação ao hip-hop por ocasião da controvér-
sia envolvendo a Polícia Militar no show dos Racionais MCs na praça da Sé. É disso
que nos fala GOG em: “o burguês discrimina / fala mal de mim de você da sua mina
apóia a chacina / desmerece o artista o ativista / deturpa a entrevista”.
A proposta do hip-hop é a ruptura simbólica, trabalhando com produção de senti-
dos e com luta armada. Isto não quer dizer que não seja violenta, tampouco expres-
siva. Ressignificar simbolicamente a história de um grupo social, aumentar a auto-
estima e se firmar enquanto outro modelo de produção cultural rompe drasticamen-
te com o elo histórico hierarquizante de centro-periferia, patrão-operário, elite-pobre.
Ou seja, na agressividade crítica do hip-hop está toda sua força de batalha contra a
produção de sentidos dominante.
Portanto, a comunicação contra-hegemônica do hip-hop é discurso, ação e transfor-
mação nos corpos individuais e sociais vividos: “a revolta é o que mais influi a fusão
/ hip-hop, jazz, bossa-nova / inovação é o tema / sem fugir do lema / revolução atra-
vés da consciência” (NÚCLEO, Onda Sonora). Sob este aspecto, para além da orali-
185
dade e do formato, rap e repente se aproximam pela capacidade de contar a história
de seu meio e interferir nas comunidades, de fazer “a revolução através da consciên-
cia”.
A história contada e cantada pelo hip-hop apresenta dois vetores fundamentais:
aquele que congrega e dá identidade ao próprio grupo (periféricos) e aquele que
expõe para a sociedade, através de seu próprio ponto de vista, a imagem de si e dos
problemas do mundo. Estes dois conjuntos temáticos (a identidade coletiva para a
própria comunidade e a imagem de si para o mundo e sobre o mundo) podem ser
identificados nos diversos temas abordados nas letras, agrupados aqui da seguinte
maneira: (a) construção da identidade, (b) violência policial, (c) narrativas do cotidia-
no, (d) assuntos de interesse geral (globalização, capitalismo, neoliberalismo) e (e)
questões de gênero.
O principal deles, presente na maior parte das letras e em praticamente todos os gru-
pos é o tema da violência policial, sempre atravessada por abusos de poder, racismo,
humilhação e extorsão. Não menos importante, há uma positivação da vida nestes
bairros pobres numa construção identitária do periférico e do negro. Acrescenta-se aí
a reconstrução da história nacional, com destaque para os heróis negros e desnatura-
lização do negro ou índio no papel submisso e servil ainda presente nos livros esco-
lares. É bastante significativa também as narrativas do cotidiano destes bairros, fazen-
do uma contra-posição à visão midiática da periferia. Menos comum, mas também
presentes, são os temas caros à globalização neoliberal, capitalismo e problemas de
ordem nacional, a partir de uma leitura própria de quem é colocado à margem do
sistema econômico e social mundial. Um tema que vem ganhando importância no
hip-hop nos últimos tempos é o do preconceito de gênero na sociedade como um
todo e, em especial, no hip-hop. Grupos da Bahia, Pará e Rio de Janeiro têm se des-
tacado na liderança desta discussão.
O que se nota, portanto, é a comunicação como lugar da ruptura com o sistema
dominante historicamente imposto, uma vez que é o espaço da inclusão política
mediante construção da ação e da palavra. É neste sentido que o hip-hop exerce no
país uma posição de destaque na luta social através de uma comunicação contra-
hegemônica e combativa.
186
1.1.
AA ((rree))CCoonnssttrruuççããoo ddaa IIddeennttiiddaaddee ee ddaa HHiissttóórriiaa nnaass NNaarrrraattiivvaass
ddoo CCoottiiddiiaannoo
A identidade é uma das dimensões centrais na constituição de um movimento social
(SCHERER-WARREN, 2006), o que é bastante significativo no hip-hop, cuja iden-
tidade é construída em torno do sujeito étnico (negro) e de classe pobre (da perife-
ria). Manuel Castells, em seu livro O Poder da Identidade (2003), entende por identi-
dade a fonte de significado e experiência de um povo, que se dá através de um pro-
cesso com base em um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, interessan-
do-se especificamente pela formulação coletiva de identidade (CASTELLS, 2003:
03). Para entender a construção social da identidade é preciso pôr em contexto a his-
tória, espaço e tempo, todos atravessados por relações de poder. Sob este aspecto o
autor distingue três formas de construção de identidades: identidade legitimadora, de
resistência e de projeto (ibidem: 04).
A identidade legitimadora é introduzida pelas instituições dominantes com vistas a
expandir sua dominação. Ao contrário, a identidade de resistência é criada por ato-
res sociais inferiorizados pela lógica dominante. A identidade de projeto diz respeito
aos atores sociais que redefinem (após um processo de resistência) sua posição na
sociedade, provocando uma transformação em toda estrutura social (ibidem: 04 e
05).
Sob este aspecto, poderíamos entender o hip-hop como um canal de construção da
identidade de resistência dos negros, dos pobres e dos periféricos, em direção a uma
identidade de projeto, capaz de fazer frente às estruturas alvicêntricas e classistas da
sociedade contemporânea. A identidade de resistência seria construída no hip-hop
através do reconhecimento e da valorização dos heróis negros na história do país e
do mundo; da ressignificação da beleza negra; e do reconhecimento de dignidade da
vida na periferia com seus moradores. A criação da identidade de resistência acaba
por configurar uma comunidade, no caso, o hip-hop. A mídia, elaboradora e difuso-
ra de discurso, não cede espaço para negociação de valores e identidades, especial-
mente no que tange à identidade dos Outros. Assim, o hip-hop e outros grupos
minoritários, como os formadores de uma comunidade de sentidos, é de fundamen-
tal importância para a resistência coletiva contra formas de opressão que vão desde a
humilhação social cotidiana a casos de extrema violência.
187
o céu que mostram é elitizado, o Deus onipotente e cruel que eles escondem matou milhões; tá na
Bíblia, tá lá, pensava Rael, mas apresentam Jesus como sendo um cara loiro. Que porra é essa,
que padrão é esse?
Ferrez em
Capão Pecado
Alguns autores, ao invés de identidade de resistência, conforme entendimento pro-
posto por Castells, preferem desenvolver o conceito de identidade como metamor-
fose, explicada a partir da relação entre o indivíduo e o grupo numa tensão constan-
te entre políticas de identidade e identidades políticas, como explica Antonio
Ciampa (2002) no Brasil. A partir de uma compreensão do poder nas relações sociais,
o conceito de identidade proposto por Ciampa, em meados dos anos 80, nos permi-
te destrinchar seus aspectos tanto regulatórios quanto emancipatórios (cf. LIMA,
2008). Desta maneira, as políticas de identidade, importante fator de mobilização
política coletiva, podem ser
emancipatórias quando ampliam a possibilidade de existência na sociedade, garantin-
do direitos para os indivíduos, ou regulatórias, quando criam regras normativas que
muitas vezes impedem que o indivíduo consiga sua diferenciação. Ao passo que as
identidades políticas surgiriam quando os indivíduos desenvolvessem uma concepção
de identidade para si mesmos e passassem a se diferenciar do grande número. Podendo
em um primeiro momento se valer das políticas de identidade para fazer valer seus
direitos, fortalecendo as possibilidades de reconhecimento, aumentando os laços soli-
dários e, num segundo momento, assumindo novos projetos e novas pretensões de
reconhecimento (ibidem: 12).
A contribuição de Ciampa dentro do campo teórico da psicologia social foi, entre
outras coisas, apontar as limitações dos conceitos de identidade que tendem a des-
crevê-la como algo estático, inclinada à cristalização e fora do caráter opressor do sis-
tema capitalista. Para o autor, o contexto político é fundamental e indissociado da
questão da identidade e, por isso, em sua compreensão, identidade é um conceito
com fragmentos de emancipação e de sutil opressão (ibidem). Neste sentido, identi-
dades prévia e autoritariamente decididas, como é o caso das identidades do multi-
culturalismo, criticado por Zizek (2006), têm um aspecto profundamente regulatório
e opressor. Por outro lado, identidades de resistência, conforme definidas por Castells
(2003), quando autonomamente definidas e em constante construção, têm um cará-
ter emancipatório.
De todo modo, tanto na identidade de resistência, conforme compreendida por
Castells, quanto nas identidades políticas conceituadas por Ciampa, é no grupo que
a opressão deixa de ser insuportável. Ou seja, a identidade é coletivamente construí-
da, com vistas à projeção de cenários futuros de transformação social, sem, contudo,
o aniquilamento do indivíduo. É esta identidade de resistência sob o prisma eman-
cipatório que nos interessa no hip-hop. O sonho possível de transformação é canta-
do em várias músicas, sob perspectivas distintas:
saudação aos morros e as favelas / saudação a todos os rappers que fazem parte dela /
agradeço a Deus por termos rap aqui / aí, quem disse que na periferia não dá pra cur-
tir / prossegue o som, prossegue o sonho / prossegue a sede por justiça de ano em ano
/ fazer com que em um minuto não houvesse guerra e poder acreditar / que ainda há
tempo pra tudo, pra curtir e pra sonhar (Z’ÁFRICA BRASIL, Mano Chega Aí)
188
acredito que o mundo pode ser diferente / sou romântico sim, se me entende / se você
não sonha, não crê, já morreu / mesmo estando vivo entendeu? / justiça, paz, amor e
liberdade / aos quatro cantos da cidade / é isso que sonho, que penso, que quero /
mais vida, menos necrotério / tô à pampa de treta, de tiro / quero um futuro melhor
pro meu filho / tô à pampa de guerra vagabundo / somente o amor salvará o mundo
(DEXTER, Tamo Junto)
ainda vivo graças a Deus e ao meu sonho de igualdade / permaneço me virando do
avesso / pelos becos dessa grande cidade / a crueldade predomina de forma estúpida
e irracional / onde o sistema promove a tortura física e mental (NÚCLEO, Poupe
Minhas Lágrimas)
Ao saudar os morros, favelas e rappers, o Z’África Brasil identifica seu interlocutor e
com ele canta o sonho que prossegue ano a ano. Há uma esperança de um mundo
melhor, sem a “guerra” à qual a periferia está submetida, com tempo para tudo, inclu-
sive para sonhar. Por sua vez, Dexter, que escreveu e gravou seu CD de dentro da
penitenciária, estabelece seu diálogo com os companheiros de prisão, cujo projeto
diz respeito à justiça e liberdade. O futuro melhor, no caso, é para a próxima gera-
ção, reconhecida no filho. Com uma vertente mais altruísta, a banda Núcleo confia
na possibilidade de igualdade social fora da crueldade do sistema dominante. Nem
o favelado saudado pelo Z’África Brasil, tampouco o companheiro de cela de Dexter
é apresentado de modo estigmatizado. Ambos são partes de um mesmo grupo que
em conjunto está construindo a possibilidade de sonhar.
O periférico, ao invés do estigmatizado “bandido” ou “vagabundo”, assume no hip-
hop a qualidade de guerreiro: “esquenta não, somos madeira que cupim não rói, a
gente supera / todas as drogas e as armas que estão aqui / devolveremos em guerra”
(Z’ÁFRICA BRASIL, Antigamente Quilombo, Hoje Periferia). A figura do guerreiro
é identificada com outros revolucionários históricos, que é o escravo negro, como
neste trecho de GOG: “no negro escravo correu sangue meu / meu ancestral sofreu
e o seu?” (GOG, É o Terror), e também com importantes símbolos da resistência no
século XX:
Che Guevara (presente) / Emiliano Zapata (presente) / Rosa Luxemburgo (presente) /
Zumbi de Palmares (presente) / Malcom X (presente) / Stephen Biko (presente) / Rosa
e José Luís Sundermann (presente) / façamos a chamada dos guerreiros, camaradas /
dos que sobreviveram ou tombaram nas jornadas / de todos aqueles que se ergueram
em armas / de todos aqueles que mantiveram a calma / de todos aqueles que foram
torturados / a todos o respeito de todas as quebradas / a peste negra se alimenta das
mentes revolucionárias (CLÃ NORDESTINO, Lokomotiva da Vida)
Há neste trecho do grupo Clã Nordestino um elo com revolucionários mortos em
lutas de libertação, tanto de passados remotos e contemporâneos, nacionais e inter-
nacionais. Zumbi é um dos heróis nacionais mais cantado pelo hip-hop e, também,
imensamente respeitado pelo Movimento Negro. Biko, Guevara, Luxemburgo,
189
Malcom X são referências internacionais de lutas contra o racismo e contra o capita-
lismo. Na música estes nomes são chamados para se juntarem aos guerreiros “das
quebradas”, uma das maneiras de designar as periferias no hip-hop.
É significativo nesta música, como registro de memória em contraposição à grande
mídia, o nome de Rosa e José Luis Sundermann. O casal foi assassinado em sua casa
no interior de São Paulo em 1994. Fundadores do Partido Socialista dos
Trabalhadores Unificados – PSTU, lutavam, no interior paulista, contra fortes grupos
políticos e oligarquias locais, como os usineiros. Em 2004, a falta de esclarecimento
do crime levou ao encaminhamento de uma denuncia à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, contra o Estado brasileiro, por negligência e omissão (JORNAL
OPINIÃO SOCIALISTA, 2006). Com pouca reverberação na mídia tradicional, a
letra do grupo maranhense registra o nome do casal junto a líderes amplamente reco-
nhecidos, como uma maneira de fazê-los presentes no imaginário do hip-hop.
O “guerreiro”, como sinônimo de forte, combatente, corajoso e leal, é reincidente em
diversas letras no hip-hop, como forma de aumento da auto-estima coletiva do peri-
férico, usualmente marcado pela humilhação social ancestral (GONÇALVES
FILHO, 2004) e discriminado cotidianamente pelas classes médias e altas. Junto ao
guerreiro, as músicas trazem todo um universo de ressignificação da periferia:
essa saga cidade / e suas mutações / instituto coletivo das transformações / DNA alte-
rado / etnia miscigenada / que invade os poros afetando as camadas / da calamidade
da cidade / o grande centro tá chegando aqui / dá pra acreditar? / postura de guerrei-
ro pra coronel não desrespeitar (Z’ÁFRICA BRASIL, Cidade Mutação)
só os fortes, um brinde aos guerreiros / histórias da vida, relatos de um guerrilheiro /
aviso ao sistema, nós somos pesados / nosso inimigos, tempo esgotado [...] a verdadei-
ra malandragem o exemplo tá aí / se o mundo inteiro pudesse me ouvir / quebra-cabe-
ça bem bolado, viagem na rima / vai na paz, vamos dar a volta por cima (GOG,
Quebra-Cabeça)
Os exemplos são inúmeros, mas nos dois casos acima é possível verificar a contrapo-
sição centro-periferia (“o grande centro tá chegando aqui”). O “coronel” designa
190
Che Guevara; Steve Biko; Emiliano Zapata e Rosa Luxemburgo.
Fotos: Korda (1) e internet.
todos aqueles do “outro lado da ponte”, outra metáfora, marcada pelos Racionais
MCs, para denominar o lado rico da cidade. É importante para o pobre se posicio-
nar com dignidade, e não de modo subalterno, diante de seus opressores históricos,
sintetizados no “coronel” da música do Z’África Brasil (“postura de guerreiro para
coronel não desrespeitar”). Para GOG, os guerreiros são fortes e vão dar a volta por
cima. A guerra cantada, ao contrário do que nos faz acreditar a mídia, não é a vio-
lência armada e beligerante de bandidos e do crime organizado. Ao contrário, é a
guerra da rima (“se o mundo inteiro pudesse me ouvir / quebra-cabeça bem bolado,
viagem na rima”) e da fala, como afirma MV Bill (ATHAYDE et al, 2005).
Sérgio Vaz, poeta e idealizador da Cooperifa, mostrou-se indignado em seu blog com
uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo de manchete: “Na Periferia, Ataque à
Polícia é Celebrado: jovens dessas áreas de SP não vangloriam PCC, mas comemo-
raram atentados contra forças que impõem medo a eles” (FSP 22/05/06 apud VAZ,
2006). Já na chamada há um vínculo claro entre violência e periferia, entre jovens e
celebração da morte. O poeta da periferia se contrapõe: “mentira! Na periferia não
há nada a comemorar, nem a vida e nem a morte de ninguém [...] Os jovens estão
morrendo de medo, de tudo e de todos! [...] Estamos trabalhando duro, através da
literatura e a criação poética, e essa manchete não nos ajuda em nada” (VAZ, 2006).
Em conjunto com os rappers, Vaz se manifesta sempre a favor da poesia, em contra-
posição à violência, sem deixar de lado a ironia: “nós somos a OLP – Organização
de Libertação da Periferia” (apud PEREIRA, 2007).
A periferia é o espaço no qual as referências históricas, os laços de vizinhança e as
redes de sociabilidade do hip-hop são construídos. Há um forte vínculo com o terri-
tório embasado em fronteiras bastante claras naquilo que distingue periferia de não-
periferia ou as várias periferias entre si. Para o hip-hop, a periferia constitui uma mul-
tiplicidade orgânica e polifônica. Nos concertos, nos álbuns e nas músicas há sempre
um salve ou uma referência para determinada “quebrada”:
salve o time da quebrada, pra quem tem dor na caminhada, salve o time da quebrada,
que tá comigo na minha área (PENTÁGONO, Salve)
se liga ai Jd. Evana, Pq. Engenho, Jerivá, Jd. Rosana, Pirajussara, Santa Tereza, Paz de
Lima, Pq. Santo Antonio, Capelinha [...] e pra todos os aliados espalhados pelas fave-
las do Brasil (RACIONAS MCs, Salve)
assim, Campinas foi minha quebrada (VISÃO DE RUA, Amor e Ódio)
Reconhecer a periferia como parte integrante do espaço urbano heterogêno, ou da
cidade-farrapo, distinta daquela homogeneizada pelas vozes dominantes, é trabalhar
na tensão entre igualdade e diferença, de acordo com a proposição de Boaventura
Santos (2006a). Vale retomar as palavras do autor: “temos o direito a ser iguais sem-
pre que diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igual-
dade nos descaracteriza” (ibidem: 313). No caso das periferias, reconhecer suas dife-
191
renças é lutar para que tenham as qualidades locacionais e infra-estruturais das áreas
mais ricas, sem descaracterizá-las, transformando-as em caricaturas das zonas segrega-
das: berrinis, aphavilles, barras da tijuca. Mesmo entre as periferias, deve-se atentar
para o reconhecimento de sua heterogeneidade, como é ressaltado nas músicas: ao
mesmo tempo em que a saudação é para todas as “favelas do Brasil” naquilo que elas
têm em comum, há um esforço em nomear cada uma distintivamente ou, pelo
menos, aquela de maior laço afetivo, como é o caso de Campinas para o grupo Visão
de Rua ou cada um dos bairros periféricos no trecho de “Salve”, do CD Sobrevivendo
ao Inferno, dos Racionais MCs.
A identidade de resistência embasada no território (as periferias) é híbrida e insepa-
rável, no hip-hop, à identidade étnica (os negros). O racismo faz parte de suas denún-
cias e também da construção identitária do negro e sua história. Em contraposição à
postura subserviente e inferiorizada imposta aos negros, o movimento se preocupa
em denunciar o racismo, fazendo uma conscientização dos processos históricos das
relações raciais no país, ao mesmo tempo em que ressignifica a auto-estima do negro
ao cantar seus valores morais e sua beleza própria. Para Carmela Zigoni, pesquisado-
ra da Universidade de Brasília, a identidade negra no hip-hop é uma organização
política, retórica e sígnica, pautada sob os seguintes aspectos:
percepções de raça/cor e racismo e identificações de classe social; fragmentos de dis-
cursos negros hegemônicos (movimentos negros); mitos de origem baseados em um
passado comum em África e da existência conseqüente de uma “população negra bra-
sileira”, originalmente escrava, opondo-se a uma população branca e rica; “origens” do
Hip Hop nos EUA [...] aspecto estético em que signos diversos são escolhidos para
compor uma negritude; por fim, uma territorialidade particular (ZIGONI, 2006: 08,
aspas no original).
A pesquisadora ocupa grande parte de seu artigo para discorrer sobre os mitos de ori-
gem e aquilo que seus entrevistados, todos do hip-hop, definem como “ser negro”.
Em suas entrevistas o “ser negro” não está em nenhum momento associado à cor da
pele, mas a um processo de conscientização. Neste sentido, o conceito de identida-
de trabalhado por Zigoni se aproxima do conceito de identidade política de Ciampa
(2002). Ambos são projetos de identidade de caráter emancipatório. Se por um lado
no Brasil o racismo tampouco é pautado pela cor da pele (o negro paulista pode ser
branco na Bahia), mas nas relações históricas hierárquicas constitutivas da estrutura
social escravocata e posteriormente coronelista, construir o ser negro através de cons-
cientização deste processo é importante ferramenta de ruptura e ressignificação.
Autodenominar-se negro é, desta maneira, distinto de ser designado negro. De uma
subordinação passiva, passa-se a uma ação política:
ser negro é conhecer a sua história, é ter auto-estima, é poder falar que é negro, é poder
reconhecer a cor que você tem, é poder gostar da sua cor, ser negro é tudo isso. Ser
negro não é porque falaram na televisão [...]. Então eu aprendi a ter auto-estima, a me
reconhecer, não tenho vergonha de falar em momento algum que eu sou negro, não
192
tenho vergonha de falar que meu cabelo é crespo, sarará, aprendi a gostar do meu cabe-
lo, a gostar da minha cor, dos meus traços, então isso tudo é ser negro. Ser negro é ser
descendente de uma raça que construiu um país, que foi escravo e que foi escraviza-
da, que é diferente. Ser negro é isso e é isso que a rapaziada tem que aprender, a rapa-
ziada nova (RENEGADO apud ZIGONI, 2006 : 08 e 09)
A ação política da identidade de resistência passa pela recontextualização da história
dos negros no Brasil, tema constante nas letras do hip-hop. Trata-se, deste modo, de
desenvolver identidades políticas do “ser negro”. O Z’África Brasil é um grupo que
tem se destacado imensamente a partir desta abordagem mítico-histórica da afro-
ascendência, papel assumido com consciência pelo grupo: “o esquema é contar a
História dos que não têm História, aquela que ainda não foi contada nos livros, a
que ninguém ensina na escola” (MC GASPAR apud XAVI, 2008). O trabalho musi-
cal do Z’África Brasil pode ser compreendido como uma “trilogia da diáspora”
111
(XAVI, 2008), apresentada através dos cantos sobre duas grandes ondas migratórias:
dos negros africanos para o Brasil e dos nordestinos para o sudeste do país. A sauda-
ção ao passado de raízes africanas passa pela construção da figura heróica de Zumbi:
(silêncio! está nascendo um Deus negro) / salve o rei, salve o rei Zumbi / salve o rei
Zumbi, salve o rei…/ Zumbi, o último guerreiro, o Deus da guerra o rei de todos os
negros / irmão e dono do mar, o mais poderoso dos gênios / Zumbi-zumbi oia zumbi
/ veio a terra pra chefiar a liberdade dos negros [...] Zumbi, não apareceu por acaso foi
um predestinado à resistência de um herói / símbolo na libertação dos escravos / as
guerras nas capitanias eram / estratégias de combate / o grande reino negro tornou-se
poderoso / não subestime a força de Palmares [...] história antiga refletida nos dias de
hoje / onde o negro pobre vive num constante açoite / domina um leão por dia e por
isso assim, grito pra todo mundo ouvir / salve o rei Zumbi (Z’ÁFRICA BRASIL, Rei
Zumbi)
salve quilombola / o fruto remanescente África / país origem, Brasil / salve quilombo-
la / a essência, a origem, o costume, a história, a raiz / mantenha a raiz / salve Zumbi,
salve / Zumbi é o senhor das guerras / Zumbi é o senhor das demandas./ quando
Zumbi chega / é Zumbi que manda [...] semba, o batuque, através da dança a escolha
surge samba / origem Brasil, carro forte da nossa cultura milenar / sou preto velho do
morro, quelé caboclo do samba / Rei de Palmares z, Zumbi saurê preto bamba [...] a
partir dos quilombos dos Palmares, iniciava-se a consagração (Z’ÁFRICA BRASIL, A
Raíz)
No primeiro trabalho do Z’África Brasil é central a figura de Zumbi e no seguinte há
a presença de Gamgazumba, também herói de Palmares, Lampião, representando o
sertão nordestino, e ainda revolucionários latinoamericanos como Zapata e mais
193
111A “trilogia da diáspora” é composta por dois álbuns: Antigamente Quilombos, Hoje Periferia (2002),
Tem Cor Age (2007), e um CD Verdade e Traumatismo (2007). O termo foi cunhado por João Xavi, rap-
per da baixada fluminense e colaborador de sites de hip-hop, em uma entrevista que fez com o grupo
no início de 2008, disponível em: www.overmundo.com.br/overblog/trilogia-da-diaspora.
....................
recentes como o MST (XAVI, 2008). Além das narrativas do passado e da fixação de
mitos e heróis, há um reconhecimento do negro como personagem fundamental na
composição da nação brasileira: “o que seria de tudo isso aqui se não fosse o negro
para construir?” (Z’ÁFRICA BRASIL, A Luta). Não é apenas nos versos que as
influências africanas e nordestinas estão presentes; o grupo incorpora musicalmente
instrumentos e batidas vindos de África e, sobretudo, do nordeste (XAVI, 2008).
Ainda que a discriminação contra a periferia no Brasil seja uma discriminação de clas-
se (contra os pobres e seu lugar) este fator não pode escamotear o racismo, que impõe
uma dupla carga contra o negro da periferia: a discriminação racial e de classe. De
fato, o discurso da democracia racial de Freyre, na década de 30, acabou por enco-
brir o racismo no país. Mais de três décadas depois é que Florestan Fernandes reela-
borou Freyre, demonstrando que a democracia racial “é um discurso de dominação
política [...] usado apenas para desmobilizar a comunidade negra” (cf.
GUIMARÃES, 2003: 102) sendo, portanto, um mito (cf FERNANDES apud ibi-
dem). Absorvido pelo Movimento Negro a partir dos anos 70, o mito da democracia
racial é conscientemente cantado pelo hip-hop. Não obstante o acolhimento de clas-
se (dos pobres), ao configurar a identidade dos periféricos, há uma distinção entre
negros e pobres da periferia, marcada em versos conhecidos dos Racionais MCs:
o rotineiro Holocausto urbano / o sistema é racista cruel / levam cada vez mais irmãos
aos bancos dos réus / os sociólogos preferem ser imparciais / e dizem ser financeiro o
nosso dilema / mas se analisarmos bem mais você descobre / que negro e branco
pobre se parecem / mas não são iguais (RACIONAIS MCs, Racistas Otários, grifo
nosso)
Não é apenas no Brasil que os negros e brancos pobres “se parecem, mas não são
iguais”. Ainda que seja confundido muitas vezes com um problema de conflito de
classes, o racismo atravessa a divisão social entre pobres e ricos também em outros
países. Discorrendo sobre identidade e etnia nos Estados Unidos, Manuel Castells
afirma que: “os negros de classe média são precisamente os que se sentem mais frus-
trados com o Sonho Americano, sentindo-se completamente discriminados pela per-
manência do racismo, enquanto a maioria dos brancos acredita que os negros estão
a ser favorecidos demais pelas políticas de acção afirmativa” (CASTELLS, 2003: 68).
No filme Crash (HAGGIS, 2004)
112
, sob a temática das relações raciais estaduni-
denses, há uma cena marcante que ilustra bem o preconceito racial independente de
classes, nos EUA, conforme apontado por Castells. Na cena, um diretor de cinema
194
112 Co-produção EUA e Alemanha, de 2004, dirigido por Paul Haggis. O filme fala de preconcei-
to através das tensões raciais e sociais em Los Angeles. Os vários personagens se aproximam através
de eventos aparentemente sem ligação, mas que, no final, interferem um no outro. Marcados por sua
etnia ou nível social, estes personagens acabam envolvidos em conflitos que os forçam as examinar
seus próprios preconceitos.
....................
negro e sua mulher são abordados em uma batida policial. Eles estão em trajes a rigor,
voltando de uma festa elegante em seu carro último modelo, o que indica pertence-
rem a uma classe social favorecida. Nada disso os impede de passar pelo constrangi-
mento e as humilhações impostas pelo policial, branco, que, no seu limite, apalpa
desrespeitosamente a mulher do diretor de cinema. Sob o álibi da revista policial o
que está em jogo é a provocação e demonstração de poder entre aquele homem bran-
co sobre o diretor, negro. Entre outras questões, a trama do filme expõe uma divisão
de classes entre os negros estadunidenses, devido à ascensão social de alguns negros,
na qual aqueles que ascendem esforçam-se por se afastar da realidade dos negros
pobres (CASTELLS, 2003).
No Brasil, este fenômeno de afastamento tem sido denominado por “embranqueci-
mento” ou “ideal de branqueamento”, isto é, o processo no qual os negros eram sis-
tematicamente assimilados e absorvidos às elites nacionais brasileiras sob a condição
de renegarem sua ancestralidade africana ou indígena (GUIMARÃES, 1999). Com
esta absorção pelas elites e a conseqüente mudança de classe social, instaura-se um
vazio de referencial identitário para os negros de classe média. Um dos principais des-
dobramentos deste vazio é a incorporação dos valores do sistema hegemônico racis-
ta, resultando, muitas vezes, em negros que repetem a discriminação racial contra
seus semelhantes, com a ilusão de, com isso, se aproximarem mais da casa grande e
se afastarem da senzala. O discurso normativo desta reação da classe média negra é
o individualismo, isto é, sua ascensão ocorre através de esforço pessoal e mérito, não
vendo o racismo como um problema coletivo, nem reconhecendo as conquistas do
movimento negro, o qual, inclusive, não lhe diz respeito. Este discurso individualis-
ta pautado no mérito pessoal é reforçado pela mídia sob enunciados acerca dos
“negros de sucesso”.
195
Veja, 18/08/99.
Na capa de Veja (18/08/99) lê-se: “a classe média negra: advogados, professores,
médicos, vendedores, empresários. Já são 8 milhões e movimentam 50 bilhões de
reais por ano”. Apesar do tom otimista da revista no que diz respeito às conquistas
dos negros, medidas pela revista por critérios econômicos (“movimentam 50 bilhões
por ano”), não há uma problematização destes números. Num universo de quase 80
milhões de negros (JACCOUD, 2002), equivalente a cerca de 50% da população do
país os oito milhões referenciados por Veja somam apenas 10% da população negra
e 5% da população nacional. Se em 1999 a questão profissional, especialmente liga-
da aos estudos (advogados, médicos, professores), é destacada como fator de ascen-
são social, o otimismo da revista é revertido em anos posteriores quando entra em
debate a importância das cotas para o acesso às universidades.
Na maioria das vezes o negro é usado nas revistas semanais como figura para ilustrar
matérias sobre pobreza, violência, periferia, prostituição. Por exemplo, quando a
reportagem é sobre a beleza da mulher, a capa é Gisele Bündchen, branca (Veja,
27/11/02), mas ao tratar do tema da prostituição, a capa é uma mulher negra (Época,
23/10/00). Em reportagens sobre beleza o cabelo crespo sutilmente é apresentado
como algo a ser lamentado (Época, 01/07/02). Ou ainda, em tempos de eleições Veja
(16/08/06) sinaliza, com preocupação, o peso eleitoral da mulher negra, nordestina
e mal remunerada, na escolha do presidente: “Ela Pode Decidir a Eleição: nordesti-
na, 27 anos, educação média, 450 reais por mês, Gilmara Cerqueira retrata o eleitor
que será o fiel da balança em outubro”. Falta às revistas, de um modo geral, a presen-
ça dos negros no seu expediente rotineiro para tratar de assuntos diversos como eco-
nomia, cultura ou opinião. O espaço reservado ao negro ocorre sempre nas pautas
especiais sobre negritude ou em temas ligados à violência, subemprego e pobreza.
196
O tema da beleza com Gisele Bundchen (Vej a , 27/11/02) e da prostituição com uma mulher negra
(Época, 23/10/00). Na matéria “Belas e Ricas”, o cabelo crespo é lamentado (Época, 01/07/02).
Preocupação com o peso eleitoral da mulher negra (Veja, 16/08/06).
Esta cisão identitária causada por questões de classe nas bases étnicas demonstra fra-
gilidade nos critérios étnicos enquanto variável suficiente para construir significados,
de acordo com Castells ao analisar os EUA (2003: 72). Entretanto, o hip-hop no
Brasil vem demonstrando que a etnia é sim capaz de construir significados identitá-
rios, mas não é uma variável isolada e sua construção é necessariamente política. Em
conjunto com a questão étnica, o autor identifica outras duas maneiras de formação
dos laços identitários, que são também cabíveis ao hip-hop brasileiro: a cultura e o
território.
No hip-hop brasileiro há o reconhecimento de outros grupos sociais como nordesti-
nos e índios, sem nunca abandonar a classe social (os pobres) e a fratura espacial, os
bairros pobres (periferias, favelas, morros), ou seja, a identidade ligada aos vínculos
territoriais. Todavia, as análises de Castells limitam território à comunidade e à vizi-
nhança, com laços formados, sobretudo, a partir de demandas por melhorias nas
condições urbanas (infra-estrutura, transporte, habitação etc.). Ainda que tenha uma
forte identidade com base territorial (as periferias), o elo no hip-hop não é formado
por demandas locais ou pontuais, mas a partir da consolidação de uma identidade
das periferias enquanto compreensão do contexto histórico-político que levou às
suas formações e, por isso, motivo de orgulho e de incentivo às lutas por melhores
condições de vida nestes locais. São cantadas todas as periferias do país, mesmo que
sempre do ponto de vista de casos particulares. Isto é, a identidade não diz respeito
ao Monte Azul (SP), à Ceilândia (DF) ou à Cidade de Deus (RJ). Não obstante estes
bairros serem parte constitutiva de diversos trabalhos, a identidade não está em
nenhuma destas comunidades em particular; ao contrário, concerne a todas elas e a
todas as outras:
respeito todas as quebradas, becos e vielas / quebras cabulosas, satélites e qualquer
favela / todas se parecem muito só que a CEI é diferente / na nossa quebrada a para-
da é mais quente / mais de 500 mil e pra eles somos lixo / lutando pra sobreviver, tra-
tados como bichos / escrotos, ratos de esgotos, vermes rastejantes / cobras, bichos
peçonhentos, monstros repugnantes / terra sem lei, nova babel, casa do caralho / cu
do mundo, baixa da égua / foda-se o que dizem, véi! / Ceilândia é minha quebra /
movimento aos sábados em frente ao quarteirão [...] domingo tem feira, roda de
capoeira [...] sou da Ceilândia, eu sou mais eu (CÂMBIO NEGRO, Ceilândia, a
Revanche do Gueto)
No trecho acima do grupo do Distrito Federal, Câmbio Negro, está trabalhada a ten-
são entre igualdade e diferença (“todas se parecem só que CEI é diferente”). Embora
a música do grupo se refira a Ceilândia, as denominações dadas pelos “de fora” para
o bairro (“escrotos, ratos de esgotos, vermes rastejantes”), são utilizadas constante-
mente pelos Mesmos para designar os periféricos, como foi o caso da revista Época
(09/06/06) ao comparar a ocupação Prestes Maia com uma ratoeira, conforme cita-
do em outro momento nesta tese. O tempo todo é ressaltado, na letra, o orgulho de
197
ser da Ceilândia (“foda-se o que dizem”; “sou da Ceilândia, eu sou mais eu”), estra-
tégia bastante comum e utilizada por boa parte dos grupos do hip-hop e nas mani-
festações de arte da periferia, como é o caso do grito de guerra que abre os saraus da
Cooperifa, mencionado anteriormente: “Povo lindo! Povo Inteligente! [...] quem
tiver vergonha de ser da periferia pode ir embora agora” (VAZ apud PEREIRA, 2007).
O imbricamento dos múltiplos sentidos políticos da construção identitária no hip-
hop nos aponta para a formação de identidades complexas, com um alargamento da
construção da identidade que permite ao movimento incluir não apenas os negros,
mas também os não-negros (nordestinos, índios, brancos, mestiços) da periferia. Em
outras palavras, o hip-hop constrói identidades políticas em constante transforma-
ção, pouco moldáveis ao gosto de denominações impostas.
Ainda assim, não basta ser da periferia para se sentir representado pelo hip-hop. Isto
também seria uma meia verdade, à semelhança do que sucede com os negros de clas-
se média, posto que também há na periferia aqueles que preferem negar sua condi-
ção de periférico, como é o caso, muitas vezes, do policial. Em entrevista ao progra-
ma Roda Viva, da TV Cultura, em fins de 2007, Mano Brown, do Racionais MCs, ao
ser questionado por um espectador se “preto pode pensar como branco e branco
pode pensar como preto”, responde que não é apenas uma questão de classe social,
mas também de “convívio, cultura, não basta ser pobre, você pode estar lá conviven-
do e não gostar. Você pode estar vivendo lá e não gostar. Tem cara que mora lá den-
tro e vira polícia justamente porque não gosta do que ele está vendo, ele não gosta
dos caras que ele vê na rua, entendeu?” (MANO BROWN, 2007)
113
. Voltaremos
à questão sobre o relacionamento entre policiais, periferia e hip-hop, no item seguin-
te.
Resulta que a formação da identidade é, também, um reconhecimento de si a partir
da categorização feita pelos “de fora”, pelo Mesmo, pelo dominante, o que é poten-
cializado em força transformadora, em construções do tipo: “eu sou da
periferia/negro/pobre sim, e daí?”. Autodenominar-se é uma ação política (ZIGONI,
2006), que desloca os sujeitos da condição de objetos para um lugar central de fala.
Apenas a construção identitária ativa pode ser emancipatória, do contrário, identida-
des designadas são estigmatizantes e congelam os grupos sociais, exotizando-os, entre
outros modos, sob a “tolerância repressiva do multiculturalismo” (ZIZEK, 2006). A
198
113 Mano Brown raramente concede entrevistas ou aparece na grande mídia. Este programa foi ao
ar em 24 de setembro de 2007. Para entrevistá-lo foram convidados: Paulo Lins, escritor, professor de
literatura e roteirista de cinema; Renato Lombardi, jornalista da TV Cultura; Maria Rita Kehl, psica-
nalista; Ricardo Franca Cruz, editor-chefe da revista Rolling Stone Brasil; José Nêumane, editorialista
do jornal Da Tarde, comentarista da rádio Jovem Pan e do SBT; e Paulo Lima, editor da revista Trip. A
transcrição da entrevista está disponível no Portal Bocadaforte, em
http://bocadaforte.uol.com.br/site/?url =materias_detalhes.php&id=586.
....................
construção identitária emancipatória demanda, portanto, predisposição interna indi-
vidual e alta confiança na coesão de grupo, uma vez que o Outro (do ponto de vista
hegemônico) é discursivizado, nas falas do Mesmo, como o time dos “perdedores”
históricos. Nas palavras de Gonçalves Filho, enfrentar politicamente a humilhação
social inclui também enfrentá-la psicologicamente, por meio de um trabalho interior
“que não é apenas pensar e não é solitário: é pensar sentindo e em companhia de
alguém que aceite pensarmos juntos” (2004: 27).
Do contrário, se não houver a ação política de autodenominar-se, a vontade de ser
acolhido pelo grupo dos vencedores faz com que haja uma negação da pertença ao
Outro, como fazem os negros “embranquecidos” ou os pobres que trabalham e
defendem o poder hegemônico, tal como os policiais. Assim, nem todos os morado-
res da periferia se identificam com o hip-hop e alguns, inclusive, abominam-no. Nem
todos os negros sentem-se à vontade com as reinvidicações e denúncias do hip-hop
relativas ao racismo. Nem todos os pobres têm a burguesia como seu algoz, ao con-
trário, muitos dos desejos dos “manos”, termo usado pelo grupo para identificar os
companheiros da periferia, é enriquecer e ter bens materiais, a exemplo do poder de
consumo da classe média. No entanto, a despeito das negações de pertença de alguns
negros, pobres e periféricos às identidades complexas do hip-hop e de toda campa-
nha simbólica contra o movimento, a sua força de agregação identitária é notada atra-
vés de seu alto poder de capilaridade em todas as regiões do país: pobres, periféricos
e negros se sobrepõem às não-pertenças e formam uma grande comunidade em torno
do hip-hop. Como afirmou Rappin’Hood, se o hip-hop quiser parar o país, ele pára
(CAROS AMIGOS, 2005: 11).
A articulação do hip-hop enquanto grupo, ao invés da violência, “privilegia o lúdi-
co, e a possibilidade de colocar-se criticamente, através da música, da dança e de um
199
Rapin’Hood no comando do programa Manos e Minas da TV Cultura. Ao fundo o grupo Pentágono e
a grafiteira Pan, 2008.
Fotos: Andréia Moassab.
tipo de arte plástica, frente à sociedade dominante, criando um campo de disputa
que envolve um discurso político engajado e a ocupação de espaços públicos da cida-
de” (ZIGONI, 2006: 06). É esta possibilidade de unir, através do lúdico ou da cultu-
ra, tanto etnia, quanto classe e território, que possibilita a formação de sua identida-
de. O hip-hop é, portanto uma cultura multidentitária de alinhavos complexos em
torno de etnia (negro), classe social (pobre) e território (periferias), capaz de desvelar
de maneira ampla as desigualdades sociais em que vivemos.
Num primeiro momento, sua identidade pode nascer de reações defensivas, numa
formação de identidade de resistência (CASTELLS, 2003), mas é possível avançar
com proposições construtivas, para identidades de projeto. Em Castells há dois cami-
nhos para estas comunas (identidades reativas com base territorial): (1) que se insur-
jam como sujeitos históricos, construindo novos significados em torno da identida-
de de projeto; ou, como isto não é uma necessidade histórica, (2) que a resistência
cultural fique restrita às fronteiras das comunas. Neste caso, corre-se o risco, segun-
do o autor, de as comunidades se fecharem em um fundamentalismo latente. No hip-
hop, ainda que a resistência seja um forte fator de coesão, é clara a produção de sujei-
tos capazes de mudar a própria história e promover transformações sociais substan-
ciais. Na fala do MC Flávio Renegado há um reconhecimento do valor da identida-
de para alçar a transformação social:
é preciso ter um momento que nem Malcom X fazia, eu tenho essa viagem dele de
‘vamos nos relacionar com outras raças, mas primeiro a gente precisa se achar’ se afas-
tar um pouco do que está ao seu redor pra poder se achar, se centrar, pra voltar pra
caminhada de novo. Pra depois a gente poder se relacionar com outras etnias, outras
classes, porque se a gente quer ter transformação tem que ter atrito, pra ter transforma-
ção no processo. Se num tiver, mano, num vai, fica passivo (RENEGADO apud
ZIGONI, 2006: 13)
Neste processo a construção política da identidade é importante para a coesão de
grupo e para o aumento da auto-estima do pobre, negro e habitante das periferias. A
identidade é construída, no hip-hop, em dois sentidos: (1) de dentro para dentro,
isto é, a identidade como eixo fortalecedor com vistas a contar sua história para si e
para toda a sociedade; e (2) de dentro para fora, colocando-se a identidade como
força propulsora que permite denunciar com dignidade os sofrimentos impostos pela
desigualdade social e pelo racismo:
tô num confronto, não me encontro, me sinto perdido, fudido, a vida é uma batalha,
mas ainda não me dei por vencido (PENTÁGONO, Me Diz Pra Quem)
nossa vida vale menos que um real / aqui pobre só presta pra doar orgão no hospital
/ por isso vai pra colégio tentar ser o arquiteto / não faça os porcos aplaudirem mais
um nóia analfabeto [...] o sistema tem que chorar, mas não com você matando na rua
/ o sistema tem que chorar vendo a sua formatura (FACÇÃO CENTRAL, Apologia
ao Crime)
200
A proposta de construção nos exemplos acima é surpreender o sistema hegemônico
com estudos e diploma, subvertendo a ordem historicamente naturalizada de que as
camadas pobres da sociedade constituem exclusivamente mão-de-obra pouco quali-
ficada e valorizada. De acordo com o grupo Pentágono, a vida é uma batalha de
sobrevivência no cotidiano destas comunidades. Nesta batalha, a transformação
social requer atrito, como afirma o MC Renegado: “a gente prega a paz, não a passi-
vidade” (RENEGADO apud ZIGONI, 2006: 13), em acordo com a dialética da mar-
ginalidade de Rocha (2006). O hip-hop, por ser uma prática discursiva cotidiana
engajada aos ideais configurados especialmente a partir da identidade, não é apenas
um canto de esperança, mas uma prática que apresenta possibilidades reais de saídas
do ciclo vicioso da pobreza e da humilhação social, isto é, da falta de perspectivas de
ascensão social intergeracional.
1.2.
VViioollêênncciiaa ee RRaacciissmmoo PPoolliicciiaall
A violência policial que incide no cotidiano na vida das periferias é tema recorrente
na maioria dos grupos de hip-hop, tanto por parte daqueles com uma linha mais
positivada de atuação, como o Z’África Brasil, quanto por aqueles que preferem
letras mais pesadas, como o Facção Central. Esta não é uma preferência temática
aleatória, ao contrário, é uma denúncia da violência policial sofrida cotidianamente
pelos moradores dos bairros pobres. A polícia não freqüenta estes lugares para pro-
teger seus moradores: “quem deveria dar a proteção / invade a favela de fuzil na
mão” (MV BILL, Soldado do Morro). Ao contrário, a polícia entra nas periferias e
favelas para extorquir e humilhar, como relata o grupo Núcleo: “sofri as conseqüên-
cias dela / dos que saem só pra captar / na sua ronda, alguma grana / não conseguem,
nem vão se importar se é de bem / se tem família te esperando em casa ou se não
tem” (NÚCLEO, Onde Tudo Acontece).
Deve-se tomar em conta que historicamente a força policial surgiu para defender os
interesses das elites e do Estado. No Brasil, a polícia tem origem no final do período
colonial, tendo em vista conquistar o território, manter as faixas ocupadas e expan-
dir a conquista territorial com uma finalidade ligada à estrutura econômica, política
e social de assegurar a “empresa da colonização”, de acordo com Nelson Sodré ao
201
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais / já sofreram violência policial / a
cada quatro pessoas mortas pela polícia três são negras / nas universidades brasileiras / apenas
2% dos alunos são negros / a cada quatro horas / um jovem negro morre violentamente em
São Paulo / aqui quem fala é Primo Preto mais um sobrevivente
RACIONAIS MCs em Capítulo 4, Versículo3
escrever a história militar do país (SODRÉ apud MOASSAB et al, 2008). Em 1831
foi criada a Guarda Nacional, distinguindo-se do Exército, ao qual cabia a defesa das
fronteiras contra inimigos externos e, à Guarda Nacional, a manutenção da ordem
pública (ibidem).
Sob o discurso da ordem pública reside a intenção de controlar e vigiar determina-
das camadas subalternas da população, conforme cada época. A ação repressiva sem-
pre foi a tônica histórica da ação policial combinada com uma filosofia de guerra
(LIMA, 2001:27), onde se buscavam sempre inimigos para serem combatidos, desde
os índios, no período colonial, os estrangeiros no início da república e, mais tarde, a
repressão política contra os opositores da ditadura. Historicamente, às “classes peri-
gosas” sempre foi destinado um estreito controle social por parte do Estado que
“incluía detenções ilegais, aplicação de torturas e maus tratos nas delegacias e postos
policiais e perseguições arbitrárias”, conforme analisa Sérgio Adorno, coordenador
do Núcleo de Estudo da Violência da Universidade de São Paulo (ADORNO, 2002:
108). Durante o regime militar, a violência institucional, restrita anteriormente ape-
nas aos pobres e socialmente marginalizados, atingiu a classe média. Com o restabe-
lecimento da democracia, o uso abusivo da força policial voltou a recair apenas sobre
as classes pobres.
O Núcleo de Estudo da Violência – NEV organizou um banco de dados sobre a vio-
lência policial, monitorando as notícias veiculadas pela imprensa nacional nos anos
de 1980 a 2000. Dos mais de seis mil casos analisados pelo NEV, 64% ocorreram
depois da Constituição de 1988: “análises do perfil dos casos antes e depois do retor-
no à democracia indicam não ter havido mudanças no modo como a polícia pára e
busca suspeitos e no modo como o uso de armas é decidido” (ADORNO, CARDIA
e POLETO, 2003: 49).
Vale lembrar que no século XIX, período de formação da polícia brasileira, floresce-
ram as teorias de racismo científico no mundo todo, a partir principalmente dos tra-
balhos do Conde de Gobineau e de Houston Chamberlain. Neste período há uma
ruptura paradigmádica importante no campo jurídico, com um trânsito do classicis-
mo para o positivismo jurídico. Esta mudança significou deslocar a atenção do direi-
to penal, até então centrado no crime, para o criminoso, fazendo emergir o “homem
delinqüente” (ANDRADE, 2003: 61). Se no classicismo jurídico é fundamental o
livre-arbítrio, o positivismo é pautado pelo determinismo social.
Um dos precursores e um dos maiores representantes do positivismo jurídico é o ita-
liano Cesare Lombroso (1835-1909) que publicou, em 1876, o livro O Homem
Delinqüente, no qual argumenta que “a causa do crime é identificada no próprio cri-
minoso” (ANDRADE, 2003: 64). Em seus estudos, Lombroso caracteriza detalhada-
mente as “anomalias” físicas e morais dos tipos criminosos, tais como fronte esquiva
e baixa, grande desenvolvimento dos arcos supracílios, assimetrias cranianas, grande
202
desenvolvimento das maçãs do rosto, orelhas de abano, uso freqüente de tatuagens,
resistência à dor, entre outros, chegando inclusive a afirmar a condição hereditária da
criminalidade, ou o “criminoso nato” (LOMBROSO, s/d: 57 e 58). Enrico Ferri
(1856-1929), outro importante nome deste período, somou às teorias de Lombroso
as causas sociais que dão origem ao “delinqüente” (ANDRADE, 2003: 65), embasan-
do diversas práticas de controle social desde então, já que “o crime [...] não é, por-
tanto, decorrência do livre arbítrio humano, mas o resultado previsível determinado
por múltiplos fatores (biológicos, psicológicos, físicos e sociais) que conformam a
personalidade de uma minoria de indivíduos como ‘socialmente perigosa’
“(ANDRADE, 2003: 66, aspas no original).
No Brasil, o positivismo jurídico teve forte influência sobre Raimundo Nina
Rodrigues (1862-1906), médico legista e antropólogo baiano. Sua obra, fortemente
racista, consiste de publicações como Mestiçagem, Degenerescência e Crime; Antropologia
Patológica: os Mestiços; Degenerescência Física e Mental entre os Mestiços nas Terras Quentes;
e Os Africanos no Brasil, da qual se destaca o seguinte trecho:
a Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à
nossa civilização, por mais justificadas que seja as simpatias de que a cercou o revol-
tante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros de seus
turiferários, há de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo
[...] A civilização ariana está representada no Brasil por uma fraca minoria da raça
branca a quem ficou o encargo de defendê-la [...] (dos) atos anti-sociais das raças infe-
riores, sejam estes verdadeiros crimes no conceito dessas raças, sejam, ao contrário,
manifestações do conflito, da luta pela existência entre a civilização superior da raça
branca e os esboços de civilização das raças conquistadas ou submetidas (RODRI-
GUES apud BUONICORE, 2005)
Em 1906 o Instituto Médico Legal de Salvador, um dos departamentos da Polícia
Técnica da Bahia, recebe o nome de Nina Rodrigues, em homenagem a essa figura,
numa clara evidência do significado e influência do seu trabalho na polícia baiana.
A decorrência destas teorias científicas e jurídicas é a divisão da sociedade entre sujei-
tos “normais” e o mundo dos “perigosos” e “anormais” (ANDRADE, 2003: 67),
resultando em práticas de controle social observadas até os dias atuais. Nas últimas
décadas o tipo criminoso, no Brasil, é o indivíduo pobre, negro e morador das peri-
ferias e favelas: “quando a polícia chega, todo mundo fica com medo / a descrição
do marginal é favelado, pobre, preto!” (MV BILL, Traficando Informação). Há uma
associação mecânica entre pobreza e violência (ADORNO, 2002: 108), possivelmen-
te decorrente da naturalização destas teorias do século XIX, embora diversos estudos
venham demonstrando que não há causalidade direta entre estes fatores (ibidem:
109). As pesquisas sobre violência urbana demostram que a maior parte dos trabalha-
dores pobres não são criminosos e que os municípios com menores taxas de delin-
qüência são justamente aqueles mais pobres (ibidem: 110). O problema, portanto,
segundo Adorno, não é a pobreza, mas a criminalização da pobreza. Há uma predis-
203
posição do Estado em punir a delinqüência cometida por cidadãos pobres, isto é,
polícia e justiça revelam “maior rigor punitivo contra negros, pobres, migrantes” (ibi-
dem: 108).
Estas constatações extravazam os limites das pesquisas acadêmicas, aparecendo já
com freqüência no cinema, na literatura e na música, nomeadamente através do hip-
hop. Sobre o rascimo policial, o coletivo de artistas Frente 3 de Fevereiro fez o docu-
mentário Zumbi Somos Nós (2007), alinhavando os seus manifestos poéticos urbanos
sobre o racismo, ao longo de vários anos, com entrevistas a especialistas na
área
114
. O nome do coletivo de artistas (Frente 3 de Fevereiro) é referência à data
do assassinato do dentista Flávio Santana, morto pela polícia quando chegava em sua
casa, em São Paulo, em 2004. O dentista teria sido confundido, pela polícia, com um
assaltante de carros que fugia pela região. No que tange à justiça e sistema carcerário,
no documentário O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), de Paulo Sacramento, em
colaboração com os próprios detentos, é possível observar o corte étnico na popula-
ção prisional do Carandiru, por anos o maior presídio da América Latina, cuja popu-
lação carcerária foi composta majoritariamente de afro-descendentes ou migrantes
nordestinos. Dez anos depois do massacre dos 111 detentos, em dezembro de 2002,
o Carandiru foi implodido. É da cena da implosão que inicia o filme de Paulo
Sacramento, revelando o cotidiano dos diversos pavilhões e grupos internos (evangé-
licos, artistas, esportistas, homossexuais etc.). A história do Carandiru é também nar-
rada por diversos grupos de hip-hop dos quais falaremos adiante.
Por sua vez, a violência policial e a brutalidade das ações nas favelas podem ser vis-
tas no documentário de João Salles, Notícias de uma Guerra Particular (1999), sobre o
tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Em uma das cenas deste filme, Hélio Luz, chefe
da polícia civil do Rio de Janeiro
115
, aborda em seu depoimento a corrupção e a
violência na polícia:
a instituição que existe é uma instituição que foi criada para ser violenta e corrupta.
[...] A polícia foi feita pra fazer segurança de Estado e segurança de elite. Eu faço polí-
tica de repressão [...] mantém a favela sob controle. Como é que você mantém dois
milhões de habitantes sob controle? Com repressão. [...] A sociedade quer uma polí-
204
114 Foram entrevistados, para o documentário, Frei Davi (Educafro), João Cezar de Castro Rocha
(UERJ), Julita Lengruber (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania - RJ), Lilian Schwarcz (USP),
Nicolau Sevcenko (USP), Noel Carvalho (cineasta), Vânia Ceccato (Instituto de
Criminologia/Cambridge), Vera Malaguti (Instituto Carioca de Criminologia).
115 Hélio Luz foi chefe da polícia civil do Rio de Janeiro em 1995 e 1996. Na sua gestão caiu pela
metade o número de seqüestros no Estado. Ao assumir a Divisão Anti-Sequestros – DAS, desmante-
lou cinco quadrilhas internas de seqüestradores. Em entrevista para o jornal Folha de S. Paulo, Luz afir-
mou que uma das maiores dificuldades que enfrentou para diminuir a corrupção policial foi conven-
cer empresários a não financiar a polícia: “um dos maiores problemas que eu tive foi o empresariado.
Empresário faz questão de dar dinheiro para a polícia, de manter a polícia corrupta. Não dêem dinhei-
ro para a polícia, eu dizia. A polícia tem de reivindicar salário” (FOLHAONLINE, 2002a).
....................
cia que não seja corrupta? É fácil, não é difícil não. E isso não tô falando só de teoria,
não. Eu já trabalhei com equipe nossa, ia pra cidade do interior com trinta homens
que não levavam grana. Os dois primeiros meses foram ótimos. [...] Aí um fazendeiro
praticou homicídio, foi autuado. Pronto. O que era bom já deixou de ser. A gente colo-
ca pra sociedade: há interesse na sociedade em ter uma polícia que não seja corrupta?
[...] Então a gente chega e atua na favela e atua no Posto 9, pára de cheirar em Ipanema,
vai ter mandado de segurança e pé na porta na Delfim Moreira [...] A sociedade vai
conseguir segurar isso? (LUZ apud SALLES, 1999)
Neste depoimento, Hélio Luz traz à tona a diferença de abordagem que historica-
mente a polícia sempre concedeu às camadas pobres e ricas da população, o “pé na
porta” da polícia não chega aos bairros sofisticados do Rio de Janeiro. A partir de sua
prática na polícia civil, Luz constatou que a sociedade não tenciona uma polícia que
proceda igualmente em todos os espaços da cidade. Ao fim e ao cabo, a polícia se
configura como mais um instrumento da manutenção da segregação sócio-espacial,
o pobre nas áreas precárias e o rico nos bairros abastados, por meio do tratamento
diferenciado que concede a um e a outro.
O filme mais recente e polêmico sobre esta temática é Tropa de Elite (2007), de José
Padilha, que mostra, a partir do ponto de vista do policial, as ações do Batalhão de
Operações Especiais – BOPE nos morros cariocas. No filme há cenas de tortura e
execuções sumárias protagonizadas por ambos, policiais e traficantes, com igual frie-
za e crueldade. Premiado como melhor filme no Festival de Berlim de 2008, a histó-
ria narrada pelo capitão Nascimento gerou polêmicas e controvérsias em torno da
exaltação da violência policial, tanto com elogios da crítica quanto com acusações de
apologia à tortura (FOLHAONLINE, 2008). Sem entrar na análise do mérito dos juí-
zos acerca do filme, a polêmica revela que boa parte da sociedade apóia ações trucu-
lentas contra a população pobre
116
, à semelhança do apoio recebido pelo
Esquadrão da Morte, grupo de extermínio formado por policiais, em décadas ante-
riores (COSTA, 1998).
Nos últimos anos também foi crescente a produção literária dedicada ao tema da
periferia, incluindo a violência policial, como os livros Cidade de Deus, de Paulo Lins,
Capão Pecado, de Ferrez, ou Cabeça de Porco, de MV Bill, Celso Athayde e Luis
Eduardo Soares. MV Bill e Ferrez além de escritores são rappers profundamente
envolvidos com o movimento hip-hop. Numa das passagens do livro de Ferrez, lê-
se:
205
116 Diversas comunidades no site de relacionamentos Orkut foram criadas para o filme, majorita-
riamente com vistas a elogiar o personagem central da trama, Capitão Nascimento. A maior delas,
com mais de 650 mil participantes (dados de junho de 2008), chama-se Tropa de Elite – Filme e Séria
(www.orkut.com/ UniversalSearch.aspx?searchFor=C&q=tropa+de+elite). Em boa parte dos tópicos
discutidos está um apoio irrestrito ao BOPE e outras polícias ostensivas, como a ROTA, e o uso de
termos pejorativos para se referir às vitimas desta violência, como “vagabundo”, “viado”, “baiano”,
que trazem junto a homofobia e a discriminação contra o nordestino.
....................
todo baile que surgia não passava de duas semanas e acabava, ou era por causa de
morte ou por causa dos policiais. Inclusive na Cohab tinha um som em frente ao bar
do Quitos, tinha noite que chegava a ter mais de 2 mil pessoas curtindo o baile, o som
já tinha mais de anos e era muito difícil sair alguma confusão, até que numa sexta-feira,
quando o som estava lotado, uma viatura da Rota veio em toda velocidade e partiu pro
meio do povão, sem mais nem menos. Mais de dez pessoas foram atropeladas e mui-
tas acabaram com contusões, pois foram pisoteadas na correria (FERREZ, 2005: 23)
Embora o livro de Ferrez seja ficção, tem por base a realidade da periferia. A Ronda
Ostensiva Tobias Aguiar – ROTA, equipe da Polícia Militar de São Paulo, iniciou suas
ações no final dos anos 70, durante a ditadura militar, imbuída da missão de “limpar
a sociedade”, substituindo, na ocasião, o extinto Esquadrão da Morte (COSTA,
1998). A título de ilustração do poder repressivo da ROTA, em 1981, entre os meses
de janeiro a setembro, foram mortos por esta equipe policial 129 pessoas e apenas
sete ficaram feridas, sempre sob o argumento de resistência à ordem de prisão. Na
equipe da polícia foi morto um policial e 18 ficaram feridos (PINHEIRO apud ibi-
dem: 27). O desequilíbrio dos dados revela a desigualdade de forças imposta às víti-
mas e torna pouco aceitável a justificativa policial de resistência à prisão
117
.
Em seu artigo sobre o Esquadrão da Morte, Márcia Regina da Costa, especialista em
antropologia urbana e estudo da violência, esmiuçou o surgimento deste grupo de
extermínio, de origem policial, nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, em
finais dos anos 50. A brutalidade da polícia contra a população, contudo, é conheci-
da desde o século XIX, quando os jornais aconselhavam às pessoas a não passarem
nas ruas ou lugares onde tivesse soldados da polícia (FAUSTO apud ibidem: 02). Nos
anos 30, com a ascensão de Getulio Vargas, a polícia assumiu “uma posição chave
para a repressão dos opositores do Estado” (CANCELI apud ibidem: 03), quando a
tortura, a execução e a prisão ilegal foram adotadas como técnicas comuns de atua-
ção, juntamente com a corrupção policial (ibidem). O poder sobre a vida e sobre os
corpos torturados dava à polícia, legitimada pelo Estado, os instrumentos necessários
para “negociar” com suas vítimas, gerando um ciclo perverso de corrupção. É desta
articulação entre violência e corrupção que tem início a atuação do Esquadrão da
Morte (ibidem: 09), formado por policiais com o apoio e reconhecimento extra-ofi-
cial do Estado.
As mortes violentas, usualmente sob tortura, eram fartamente veiculadas na mídia
que, em conjunto com uma parcela da população, apoiava estas ações de “limpeza
206
117Em 1993, o jornalista Caco Barcellos lançou o livro Rota 66 – A História sobre a Polícia que Mata,
com o qual ganhou o prêmio Jabuti na categoria reportagem. Trata-se de uma rigorosa investigação
sobre o trabalho da Polícia Militar de São Paulo entre as décadas de 1970 e 1990. O autor denuncia
no livro a atuação irregular da Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar como um verdadeiro aparelho esta-
tal de extermínio, cujas principais vítimas são pobres e negros, sem nenhum envolvimento com o
crime.
....................
social”, nas quais o policial tornava-se herói (ibidem: 09), fenômeno semelhante à
recente glorificação do capitão Nascimento, personagem central do filme Tropa de
Elite (2007), por setores da sociedade. Exceto quando a violência policial adentra a
classe média e alta, como foi o caso do período da ditadura, há uma conivência e
apoio de setores da população, principalmente as classes dominantes, a este tipo de
ação higienista. Tanto é que a ROTA e o BOPE continuam em operação, apesar das
inúmeras denúncias. Vale mencionar que o treinamento pelo BOPE é dos mais pro-
curados por policiais do país inteiro e, recentemente, foi firmado um acordo interna-
cional de colaboração deste batalhão com a polícia portuguesa (CORREIO DA
MANHÃ, 05/05/08).
Por sua vez, à população pobre que sofre no corpo a humilhação constante com as
investidas policiais resta tentar se defender através das denúncias possíveis, em gran-
de parte por intermédio do hip-hop:
pro boy a causa é o código fora de época / o cusão quer pena de morte, prisão perpé-
tua / acha que com menor cumprindo como adulto / não vai ter na CNN político do
Brasil com furo / aposta na repressão, na polícia hostil / um gambé me torturando
num terreno baldio / enquanto era pobre desfigurado no caixão preto / vale o ditado:
no cu dos outros é refresco (FACÇÃO CENTRAL, Hoje Deus Anda de Blindado)
Neste trecho seco e duro o grupo Facção Central acusa a classe média (“boy”) de
apoio irrestrito à repressão, já que a violência da polícia não a atinge (“no cu dos
outros é refresco”). De fato, parte da sociedade é favorável à diminuição da maiori-
dade penal e da implantação da pena de morte, com reverberações deste discurso nos
meios de comunicação. Ciclicamente a mídia aproveita certos casos de violência con-
tra a classe média, com forte apelo emocional, para reafirmar e divulgar seu discurso
a favor de maior repressão do Estado. Este foi o caso de episódios como Ives Ota (São
Paulo, 1997), O Maníaco do Parque (São Paulo, 1998), O Caso Champinha (São Paulo,
2003), João Hélio (Rio de Janeiro, 2007).
Nas entrevistas realizadas durante esta pesquisa o tema da truculência policial nas
abordagens à população da periferia foi constante, impulsionado pelo conteúdo das
músicas. Alguns entrevistados relataram que o número de shows de hip-hop não é
maior por conta de implicância da polícia: “eu acho que teria muito mais show se a
polícia não encrencasse tanto” (Entrevistado 1, 2007). Muitas vezes as apresentações
em locais públicos são canceladas porque o responsável pelo policiamento da área
afirma, na última hora, que não é possível fazer a segurança do local e, portanto, não
poderá haver show.
Concernente às abordagens truculentas sofridas pelos moradores das periferias, vários
episódios foram narrados. Na conversa com Rogério Vieira, guitarrista da banda
Núcleo, ele conta como estes episódios influeciam diretamente no trabalho da
banda:
207
tem no novo disco uma música [...]chama ‘despreparados pra função’. Função no sen-
tido de trabalho, de agir [...] Na letra fala que a gente foi abordado uma vez na Faria
Lima, pela polícia, ridicularizado total... A gente tava voltando de ensaio: ‘põe a mão
na cabeça todo mundo’, oito pessoas, oito pessoas!!! Tava de carro, parou os dois car-
ros, maior saco... tivemos que tirar sapato, meia... ‘porra, nós somos músicos, meu,
não temos nada... alguém fuma? Ninguém fuma’. [...] Não dá, imagina, o cara abrir sua
carteira e puxar cinqüenta reais... pegar assim e você não pode fazer nada. Aconteceu
isso comigo. Meu amigo fala ‘a gente não tem nada, você já viu que a gente não tem
nada, a gente não é ladrão, não é nada’ e ele diz assim ‘cala a boca!’. Pra que? Fazer
tirar a meia... absurdo! Outra vez a gente tava com um amigo DJ eles ficaram seguin-
do a gente na avenida Ipiranga toda, chegou na av. 9 de Julho a gente foi abordado.
Um monte de viatura, metralhadora, a coisa toda. Revistaram o carro. A gente não
tinha nada! Nada! Nós somos músicos, meu... tinha vinil... não levaram grana, porque
a gente não tinha também (VIEIRA, 2007, depoimento para a autora)
A música “Despreparados pra Função”, citada por Vieira, faz parte do segundo CD
da banda, lançado em 2008:
mas e a lei, serve pra quê? [...] estão capacidados para julgar, bater, extorquir e matar /
agir de má fé, com violência e malícia / virar celebridade, ser condecorado na notícia
do jornal / do bairro, do estado, em rede nacional [...] transformam qualquer sujeito
em suspeito / jogam na viatura, dão um jeito / desempregado indefeso é preso / polí-
tico ladrão sai ileso / trabalhador paga o preço / a prepotência nas ruas é tanta / de
noite, de dia, que ironia / como se gambé não morasse em bairros de periferia / chei-
rados na ronda noturna [...] dizem que ela existe pra combater / o crime, mas abusam
do poder / mesmo sem dever temos que sofrer / com o enquadro, te param pra bater
[...] sirene tocou, gambé parou / arma apontada pra cabeça, mão no capô / vasculhou,
fuçou, com a gente nada encontrou [...] te param na rua do nada / por causa da sua
aparência ou da sua cor [...] passam por cima dos seus direitos / negam até a morte,
mas são movidos por preconceitos [...] querem manter o pobre calado à base de alge-
mas e cacetetes (NÚCLEO, Despreparados pra Função)
Nesta letra é relatada a desigualdade de tratamento proporcional à desigualdade
social: o político sai ileso, o desempregado vai preso, ambos identificados sob uma
hierarquia social, na qual o político diz respeito a uma classe abastada e o desempre-
gado (ou trabalhador), às classes pobres. Outro fato recorrente narrado pelo Núcleo
é a maneira como são feitas as abordagens policiais, muitas vezes com base em pre-
conceito e não, como diz a polícia, por conta de “atitudes suspeitas” (“te param na
rua do nada / por causa da sua aparência ou da sua cor”). A polícia é, deste modo, o
instrumento de controle social do Estado contra as “classes perigosas”, visando “man-
ter os pobres calados à base de algemas e cacetetes”. Com efeito, grande parte da
população que vive nos bairros pobres tem alguma história pra contar sobre a ação
policial na periferia, não rara, acompanhada também de extorsão, como relata outro
dos entrevistados para esta pesquisa:
era um dia que eu tava no campo aí, não tinha essa reforma ainda, aí desceu a Polícia
Civil e a Polícia Militar e fechou o campo, fechou tudo. Tava atrás de algumas pessoas
208
só, mas humilhou todo mundo, mandou a gente deitar de barriga no chão na terra do
campo... Um amigo meu é psicólogo e tava indo pra faculdade, ele disse ‘não interes-
sa’ [...] Às vezes eles passam e pegam um dinheiro aqui, pegam dinheiro ali, às vezes
têm acerto. Nas bocadas [ponto de tráfico de drogas] tem acerto, né. Às vezes eles
pegam um cara, aí, pra não levar o cara eles falam ‘me dá uma certa quantia’. O tráfi-
co ainda é um bagulho que sustenta a corrupção na polícia, mesmo com os ‘caça
níquel’, os bingo, as roleta... alimenta a rede de corrupção (Entrevistado 6, 2007)
Em boa parte das vezes, do mesmo modo que aconteceu com a banda Núcleo, estas
narrativas vão para os versos cantados de diversos grupos:
mas sei que tem gambé / que corta o barato assim / revista meu boné / pra ver se tem
verdim / se você não deve cacetete não merece / mas se gritar ‘coxinha’ / os rec vai se
dar no pé / vixi, nem me liga / tomar bica de polícia / No Iporanga, já é notícia”
(PENTÁGONO, Chegaí)
Há um vocabulário próprio neste universo temático: as palavras “polícia” ou “poli-
cial” são freqüentemente substituídas por “gambé”, “coxinha”, “porco”, “cana”. Nessa
música do Pentágono, são narradas a corrupção e a violência: o policial faz a revista
para ver se encontra algum dinheiro (“revista meu boné / pra ver se tem verdim”) e
com freqüência os moradores apanham da polícia (“tomar bica de polícia / no
Iporanga já é notícia”).
Contudo, há setores da sociedade, principalmente ligados às universidades, pastorais
e ONGs defensoras dos Direitos Humanos, que vêm tentando dar apoio às vítimas
da violência policial e se contrapõem ao discurso da “limpeza social”. Um deles é o
Observatório das Violências Policiais, integrado desde 2006 ao Centro de Estudos de
História da América Latina – CEHAL, do Núcleo Trabalho, Ideologia e Poder, da
PUCSP
118
. Logo na apresentação do Observatório na internet lê-se:
209
118 Na página do Observatório (www.ovp-sp.org) é possível acompanhar vários casos de torturas,
chacinas, abusos de poder, mortes sob custódia e frases relevantes sobre o assunto que tenham saído
na mídia. Navegar por todas estas informações organizadas e reunidas chega a ser um retrato de hor-
rores da sociedade atual. Na seção “Frases: Note e Anote” está registrada, por exemplo, a declaração
de Antonio Uostom Germano, comandante do Batalhão de Policiamento das Vias Especiais da Polícia
Militar do Rio de Janeiro, para o jornal Folha de S. Paulo em 29/05/07: “era excelente antigamente: Cê
botava tomando choque a madrugada toda, precisava punir não, choque e porrada. Aaahhhh [simu-
la grito de dor]! De manhã, ele estava enquadrado, entendeu? Com o orgulho até desencarnado.
Infelizmente, é democracia, eu não posso fazer isso, tenho que seguir o rito legal. Vontade não me
falta! Não me falta [...] Tortura! Pediu dez pratas pro polícia. Bota ele a noite inteira! Magnésio! Os
mais novos não sabem nem o que é magnésio [eletrochoque]. Magnésio: segura uma ponta e uãaaaaa
[simula grito de dor], treme que nem perereca! [...] Como tá na democracia, eu só posso punir. Minha
vontade, se tá na ditadura militar, é botar tomando choque elétrico a noite inteira. Meu sonho é vol-
tar essa ditadura, ahhhhh! [...] Não posso fazer, tem que seguir os limites da lei e a gente vai cumprir
os limites da leI”.
....................
o Observatório das Violências Policiais – SP é um sítio voltado para a documentação
da violência institucional no Estado de São Paulo, expressa pela ação de policiais e
de outros agentes do Estado contra as populações pobres das periferias urbanas.
Contém um banco de dados de casos de violências (chacinas, execuções sumárias,
torturas, mortes sob custódia, abuso de poder, injustiças) baseado essencialmente em
notícias de cerca de 100 jornais. Contém ainda a lista mensal de mortos por policiais
e homens encapuzados em chacinas. Pretende ser um espaço de memória desses anô-
nimos torturados e mortos na tragédia social cotidiana. Contém ainda denúncias, notí-
cias de protestos, documentos, relatórios, artigos, entrevistas, legislação, bibliografia e
comentários sobre obras culturais que tratam da violência sofrida pelas populações
urbanas pobres (grifo nosso)
Este tipo de apoio às populações vítimas da violência policial garante legitimidade
institucional à questão, produzindo estatísticas e pressionando as autoridades. Soma-
se assim, ao hip-hop, o papel de memória de inúmeros anônimos injustiçados nos
bairros pobres das grandes cidades. Por meio das músicas, estas histórias têm viajado
pelas diversas periferias fazendo um contraponto às vozes uníssonas à construção
midiática predominante que por um lado oculta e por outro distorce os episódios
violentos nestas comunidades.
Um bom exemplo de memória contra a violência policial é a música “Sonho Real”,
de GOG, na qual a operação da polícia na reintegração de posse da ocupação Sonho
Real (DF), em 2005, terminou com dois mortos, dezenas de feridos, centenas de
desabrigados e cerca de 800 detenções
119
. GOG fez uma longa narrativa sobre
os eventos daquele dia e do contexto da luta de moradia na região. Vejamos alguns
trechos:
em homenagem a Pedro Nascimento da Silva, Wagner da Silva Moreira, Joriver Santos,
Sônia Maria Alves, Cristiano Reis dos Santos e a todos que se eternizaram na luta pela
terra / governador, justiça, prefeito e polícia / quadrado mágico da malícia / um gover-
nador que prometeu e não cumpriu / a Justiça que decretou despejo hostil / um pre-
feito que poderia e não fez / a polícia que efetivou a ação com insensatez / empresá-
rios inadimplentes mas muito ricos / proletários desabrigados, mortos e feridos /
empregadas, catadores de papel, garis / operários, lavadeiras viviam ali / um local ina-
bitável transformado em moradia / agora um bairro, agora cheio de vida, alegria / cedo
ou tarde pagariam por essa ousadia / a juíza a desocupação exigia / barricadas monta-
das pelos moradores para chamar a atenção / mas os bastidores preparavam a opera-
ção batizada inquietação / atenção, ninguém vai dormir não / e os guerreiros das ruas
de barro vermelho / faziam dos quilombolas seu espelho / quinze longos dias / o povo
heroicamente resistia / até que o acesso foi fechado por todas a vias / os jagunços pre-
parados pra exibir seus trunfos / iniciou-se a Operação Triunfo” (GOG, Sonho Real)
210
119 Em busca na internet quase a totalidade dos resultados por “sonho real” e “reintegração de
posse” são para o Centro de Mídia Independente – CMI (http://brasil.indymedia.org), com raras
menções em outros jornais. Saiu uma nota no jornal Folha de S. Paulo, anterior à operação, com a man-
chete: “Clima tenso marca reintegração de posse em Goiânia” (FSP, 16/02/05). Disponível em:
www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u105707.shtml.
....................
A ocupação Sonho Real se formou em 2004 em uma área abandonada no Parque
Oeste Industrial de Goiânia (GO), agrupando cerca de três mil famílias em poucos
meses. Os proprietários do terreno estimado em R$ 38 milhões devem mais de um
milhão e meio em impostos para a prefeitura. Desocupado e com dívidas, o terreno
estava em desconformidade com o cumprimento da função social da propriedade,
conforme previsto no Estatuto da Cidade. Não obstante, a 10
a
Vara Cível de Goiânia
concedeu, em setembro daquele ano, a ordem de reintegração de posse, que aconte-
ceu em fevereiro de 2005. Com um custo de R$ 300mil para o Estado, a Operação
Triunfo, como foi batizada pelas autoridades, mobilizou 2.500 homens da PM, desde
tropas de elite até policiais disfarçados e Forças do Exército. Ainda que o direito à
moradia e a função social da propriedade estejam garantidas em lei, na maioria das
ocupações de prédios e terrenos abandonados a decisão judicial é patrimonialista, ou
seja, é defendida a propriedade mais do que outros direitos. Este também foi o caso
da ocupação Prestes Maia em São Paulo, desocupada em junho de 2007, cujo prédio
permanece vazio e lacrado desde então e os moradores espalhados em soluções pro-
visórias pela cidade.
As edificações abandonadas e os terrenos vazios em meio à área urbana consolidada
são um ônus para a sociedade na medida em que pressionam a expansão urbana em
direção a novas áreas sem infra-estrutura, ao mesmo tempo em que se valorizam pelas
condições locacionais favoráveis. Ou seja, os ônus dos vazios urbanos recaem sobre
toda a sociedade e os seus dividendos, apenas aos respectivos proprietários. É nesse
sentido que os movimentos de moradia e o Movimento Nacional de Reforma
Urbana têm pressionado o poder público para que tome medidas contra este tipo de
especulação imobiliária. Uma das maneiras encontradas para fazer esta pressão, prin-
cipalmente nos anos 90, foi a ocupação desautorizada destas edificações ou terrenos,
como foi o caso da ocupação Sonho Real (DF) ou Prestes Maia (SP). Embora a maior
211
Reintegração de Posse da ocupação Sonho Real, 2005.
Foto: internet.
parte das vezes, por conta de decisões judiciárias patrimonialistas alinhadas às elites
especuladoras, sejam executados os mandatos de reintegração de posse, há outras
negociações possíveis para as ocupações, como o aproveitamento dos prédios e ter-
renos para atender a demanda por moradia destinada à população de baixa renda.
No início dos anos 2000, pelo menos três edifícios abandonados por longas décadas
e ocupados por movimentos de moradia na área central de São Paulo foram reforma-
dos e entregues à população de baixa renda: ed. Maria Paula, ed. Riskallah Jorge e ed.
Brigadeiro Tobias
120
. A Prefeitura de São Paulo (gestão 2001-04), em convênio
com a Caixa Econômica Federal, desapropriou, reabilitou, reciclou e requalificou os
prédios para uso residencial de famílias, com renda mensal entre três e seis salários
mínimos (SALCEDO, 2007).
Portanto, as reintegrações de posse não são inevitáveis, tampouco sua realização com
força policial ostensiva, como aconteceu na ocupação Sonho Real. GOG segue
reportando o episódio, a partir do ponto de vista das vítimas:
bombas de gás, granadas, armas letais, centenas de hematomas / provas demais / vários
desaparecidos / centenas detidos / nem cara, nem idade foram paleativos / todos os
barracos foram derrubados / área pra um shopping, condomínio fechado / os desabri-
gados alojados em ginásios [...] silêncio na Assembléia Legislativa / respeitem pelo
menos nossos mortos / difícil era reconhecer os corpos / um exibia RMV na mão /
iniciais do PM baleado na operação / clima de revolta, guerra / destruíram a câmera
da TV Anhanguera que durante todo o processo mentiu / aliada das elites do Brasil
[...] toda a rebeldia tem seu preço / onde a terra vale muito mais que vidas / sofremos
com o triunfo dessas injustiças [...] baseado em fatos reais que ocorrem no Brasil e se
repetem na América Latina e em todo o mundo / a dura realidade exige soluções
urgentes / pobre não tem / o rico não desfruta / e a vida vai, nessa eterna luta / aviso
às gerações (GOG, Sonho Real)
Os moradores da ocupação Sonho Real foram levados para ginásios de esporte da
cidade em condições precárias e seus pertences encaminhados para um depósito da
prefeitura. Todas as construções levantadas (inclusive de alvenaria) foram derrubadas.
Confirmando a brutalidade da ação policial, na página online do Ministério Público
do Estado do Paraná, foi publicada a seguinte matéria: “Policial dá 5 tiros em enter-
212
120 O edifício Maria Paula, datado dos anos 50, foi ocupado em 1997 pelo Fórum de Cortiços.
As treze residências originais (uma por andar) foram transformadas em 75 apartamentos para popula-
ção de baixa renda. O custo total da obra, incluindo aquisição do prédio, reforma e legalização teve
um orçamento próximo de R$ 2 milhões. O edifício Riskallah Jorge, projetado na década de quaren-
ta, estava abandonado e sob deteriorização desde os anos 70, tendo sido ocupado pelo Movimento
de Moradia do Centro – MMC. Após a reforma, com custo total de cerca de R$ 4 milhões, o edifí-
cio abrigou 167 apartamentos. O Edifício Brigadeiro Tobias, também dos anos 40, foi projetado ori-
ginalmente para escritórios da Rede Ferroviária Federal – REFFESA. Vazio desde a década de 90 foi
ocupado pela União dos Movimentos de Moradia – UMM, em novembro de 1999. O valor total do
projeto, finalizado com 84 apartamentos, foi pouco menos de R$ 3 milhões (SALCEDO, 2007).
....................
ro de sem-teto” (MP, 18/02/05), na qual é registrado o clima de confronto após a
reintegração de posse, no enterro das duas vítimas. Segundo a reportagem, um dos
mortos teria sido amarrado pela polícia e foi morto quando já estava rendido, deita-
do no chão, com um tiro pelas costas. O fato de GOG ter cantado em versos o epi-
sódio é um importante registro do acontecimento, além de divulgar outra versão dos
fatos por todo o território nacional, ampliando o repertório da luta pela moradia e
da luta contra a violência policial por todas as periferias
121
.
A violência policial nas periferias, embora atente especialmente contra homens e
jovens, não exclui as mulheres. Uma das integrantes do grupo feminino de hip-hop,
União da Rima, de Diadema (SP), contou, em uma entrevista, que suas letras vêm do
cotidiano, principalmente da violência. De acordo com seu relato, a revista policial
é muitas vezes seguida de agressão física, como puxões de cabelo e socos e, não raro,
de ameaças mais graves (FCL, s/d)
122
.
Sabotage, importante MC no cenário nacional, morto em 2003, apontou para uma
viatura da polícia durante a gravação de uma entrevista para um documentário sobre
o seu trabalho e falou: “tá vendo, os cara têm medo de câmera. Vão dar geral ali na
rua de trás. Cada batimento desses na rua em que as crianças brincam, é um terroris-
mo. Os caras vêm cheio de colete, com o corpo pra fora do carro, as metralhadora
na mão, parecendo uns robocop” (apud CAROS AMIGOS, 2005: 18). A polícia
representa, para as crianças da periferia, muito mais o medo e insegurança do que o
contrário. Eles, os policiais, são aqueles que vão humilhá-los e mal-tratá-los quando
crescerem e, segundo Sabotage, as crianças sabem disso. Em uma de suas letras, o
MC afirma que “de vez em quando a lei vai lá pra nos atrapalhar / choque, borra-
chada, bala perdida, coronhada / cotidiano violento na favela da Espraiadas / quem
tem sorte é forte enfrenta treta, cata” (SABOTAGE, No Brooklin). Para Sabotage, “o
rap denuncia umas pa de coxinha, denuncia tudo” (apud FERREIRA et al, 2004).
• Hip-Hop e Sistema Carcerário
O positivismo jurídico emergente no século XIX com Lombroso e Ferri, cuja princi-
pal mudança com relação à filosofia jurídica anterior foi o foco no criminoso, ao
213
121 Há um vídeo clipe da música, com imagens do episódio
(www.youtube.com/watch?v=SuKBHTBaioI). Há também uma página de informações sobre a
Ocupação Sonho Real em http://sonhoreal.naxanta.org, na qual é possível pesquisar o histórico da
ocupação, além de depoimentos de moradores e jornalistas presentes na reintegração de posse.
122 Vale ressaltar que em quaisquer circunstâncias as mulheres devem ser revistadas por agentes
do sexo feminino, tendo em vista o respeito pela dignidade inerente ao ser humano, conforme reco-
menda o manual do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV, 2000).
....................
invés do fato criminal, pautou mudanças estruturais nos mecanismos estatais de con-
trole e punição de delitos. Com isso, a pena passa a ser proporcional não apenas ao
delito cometido, mas deve “adaptar-se também e sobretudo à personalidade, mais ou
menos perigosa, do delinqüente” (FERRI apud ANDRADE, 2003: 69). Deste modo,
foi dado ao criminoso um passado, de periculosidade, e um futuro, de recuperação
social (ibidem: 70).
Neste sentido, as prisões passaram a ser um espaço de recuperação social dentro do
sistema disciplinar nomeado por Foucault, que inclui também as escolas, os hospi-
tais e os quartéis. Na França, no início do século XIX, a detenção é a forma essencial
de punição, em substituição ao flagelo do corpo, às mortes ou às multas (FOU-
CAULT, 2000: 95): “por que haveria a sociedade de suprimir uma vida e um corpo
de que ela poderia se apropriar?” (ididem: 91). Todavia, o futuro de recuperação
social após o processo de domesticação apontado por Foucault não está necessaria-
mente garantido, dentro desta mesma racionalidade. O determinismo social funda-
dor do positivismo jurídico que cria o “criminoso nato” impede que o ex-detento
esteja livre de estigmas após o cumprimento da pena.
Muitas vozes do hip-hop têm denunciado este sistema estigmatizante sob a ótica de
quem o vive de dentro. Dexter, no trabalho Exilado Sim, Preso Não (2005), totalmen-
te gravado durante o seu encarceiramento, utilizou intencionalmente, no título do
CD, a designação “exilado”, em contraposição a “detento” ou “preso”, palavras car-
regadas de estigma social, das quais o músico tem plena consciência. Antes de ser
preso por assalto, Dexter já tinha um projeto musical e um CD quase que inteira-
mente produzido, inviabilizado por falta de verba. Alguns de seus anos de “exílio”
foram vividos em cidades no interior do Estado, o que impossibilitou ao MC visitas
da família. Sob o ponto de vista de quem viveu o sistema carcerário, Dexter analisou-
o em entrevista à revista Caros Amigos:
214
Dexter, Exilado Sim, Preso Não, 2005.
acho que a forma de penalizar do sistema é por aí mesmo. Construir cadeias que,
quanto mais longe, melhor. Ao contrário do que se espera do sistema carcerário, que
é uma política de ressocialização, de correção ou de incentivo. É o inverso. É produ-
zir cada vez mais monstros. Tem cara que veio pra cadeia, mas roubou um botijão de
gás. Aí, o juiz dá uma pena de dois anos numa situação que pode ser uma pena alter-
nativa. Infelizmente, o sistema carcerário não recupera ninguém, a recuperação vem
do interior (DEXTER apud CAROS AMIGOS, 2005: 16)
Esta recuperação, segundo o hiphopper, vem da força de vontade de seguir com a
música, em seu caso, e assim, se distanciar do crime: “quero ser rocha para suportar
a dor / e assim como Ghandi difundir o amor” (DEXTER, Me Faça Forte). A lógica
carcerária deflagrada por Dexter deixa exposto o sistema de “vigiar e punir”, duramen-
te criticado por Foucault em sua obra, sistema que tem na prisão sua máxima inuti-
lidade (2000: 196). Ao fazer um estudo exaustivo sobre o nascimento do sistema pri-
sional, em meados do século XVIII, como método de substituição das penas inciden-
tes sobre os corpos, Foucault constata que a prisão e a reforma prisional são contem-
porâneas, isto é, os mecanismos de acompanhamento desenhados para corrigi-la,
fazem parte de seu funcionamento (ibidem: 197). Desde o século XIX, quando passa
a haver o registro de estastísticas prisionais na França, o autor constatou sua inutili-
dade por meio de inúmeros dados: as prisões não diminuem a taxa de criminalida-
de; as condições dadas a detentos libertos condenam-nos fatalmente à reincidência;
ela se destina a aplicar as leis, mas seu funcionamento interno viola constantemente
as leis, por meio de abusos de poderes; a corrupção dos guardas é endógena ao fun-
cionamento do sistema; o trabalho dos presos não é educativo, mas tão somente
exploração; a prisão condena a familia do detento à miséria (ibidem: 221 a 224).
Para Foucault, a própria delinqüência foi fabricada pelo sistema prisional, pois que a
prisão deu “à justiça criminal um campo unitário de objetos, autentificado por ‘ciên-
cias’ e que assim lhe permitiu funcionar num horizonte geral de ‘verdade’” (FOU-
CAULT 2000: 214 aspas no original). Uma vez dentro do sistema penitenciário,
ainda que para a Justiça ao final da pena cumprida a pessoa tenha pagado sua “dívi-
da”, para a sociedade esta dívida nunca cessará:
vai fazer dois anos que eu estou em liberdade. Emprego, eu não consigo [...] Na nossa
sociedade, o ex-presidiário vai ser sempre ex-presidiário. A sociedade me colocou um
carimbo: ex-presidiário [...] Antes de eu ser preso, eu era o André. Eu era o André que
estudava, que trabalhava, eu tinha uma família” (DU RAP, 2002: 105 e 106).
Estes fenômenos de etiquetamento e construção social do criminoso vêm sendo dis-
cutidos pela Criminologia Crítica
123
nas últimas décadas, sob a denominação
215
123 A Criminologia Crítica é uma teoria criminológica de inspiração marxista, com base episte-
mológica na teoria do etiquetamento do sistema penal, isto é, na seletividade dos orgãos de controle
social formal (do Estado), como pobres, negros, egressos. No Brasil, Vera Regina Pereira de Andrade,
Vera Malaguti Batista e Nilo Batista são algumas referências na matéria.
....................
de labelling approach (ANDRADE, 2003). Segundo esta abordagem, o foco central da
criminologia deixa de ser o crime e o criminoso passa a ser o sistema de controle ado-
tado pelo Estado e as desigualdades de poderes inerentes à sua constituição:
os interesses que estão na base da formação e aplicação do Direito Penal não são inte-
resses comuns a todos os cidadãos, mas interesses dos grupos que têm o poder de
influir sobre os processos de criminalização. Conseqüentemente, a questão criminal
como um todo [...] é uma questão eminentemente política (ANDRADE, 2003:213)
A prisão é, sob a racionalidade vigente, inserida num modelo de sociedade centrado
no saber-poder disciplinador das ciências, em que o “delinqüente” permite “consti-
tuir com a caução da medicina, da psicologia ou da criminologia, um indivíduo no
qual o infrator da lei e o objeto de uma técnica científica se superpõem – aproxima-
damente” (FOUCAULT, 2000: 214). Ao fim e ao cabo, o “bandido”, o “marginal”, o
“criminoso” são produtos, em grande parte, de um regime de verdade produzido pela
sociedade disciplinar. É este mecanismo que permite a criminalização, por exemplo,
dos movimentos sociais, como é o caso do tratamento dado ao MST pela mídia
hegemônica ou, no contexto internacional, a criminalização dos árabes e mulçuma-
nos.
Ademais, a prisão, ao tirar dos ‘olhos’ sociais as pessoas confinadas, leva a sociedade
a um esquecimento de fraturas sociais estruturais, como a desigualdade socioeconô-
mica e o racismo no Brasil. Ambos, desigualdade social e racismo, estão, de certa
maneira, encarnados no sistema prisional, uma vez que o largo da população carce-
rária é constituída de negros, mulatos e pobres. Sob este aspecto, a questão criminal
é, como dizem os criminologitas críticos, de ordem política.
Imersos nesse sistema de desigualdades, ao conquistar voz, aqueles pobres da perife-
ria que também carregam consigo o estigma de ex-presidiários, são capazes de ressig-
nificar suas vidas, como é o caso de Dexter, Afro-X e André du Rap. Além disso, estas
vozes trazem à tona elementos para uma reflexão crítica acerca do modelo prisional,
como foi feita por Foucault e a criminologia crítica contemporânea, adicionando um
ponto de vista a partir da experiência de dentro do sistema carcerário. O hip-hop
demonstra, portanto, claramente sua capacidade de empoderamento destes que estão
à margem da margem, colocando-os como sujeitos produtores de um conhecimento
que deve ser partilhado por todos. Estas vozes precisam urgentemente serem ouvidas
a fim de repensarmos o modelo penal e prisional, dentro de um paradigma de socie-
dade mais justa do que aquela na qual vivemos atualmente.
Um dos episódios mais marcantes na história recente do país envolvendo o aparato
de repressão policial foi o “massacre do Carandiru”, como ficou conhecido o dia 02
de outubro de 1992, quando mais de cem presos foram brutalmente assassinados por
policiais militares, em uma ação que visava reprimir uma rebelião na maior casa de
detenção da América Latina, o Carandiru. A história contada por quem sobreviveu
216
àquele dia é muito diferente daquela contada pela polícia. André du Rap narra em
livro a visão de quem esteve presente, na qual relata as intermináveis horas de tortu-
ra, psicológica e física, levadas adiante pelo Estado através de policiais militares.
Alguns presos foram trancados com os cachorros da polícia e morreram com seus tes-
tículos e outras partes do corpo arrancadas. Outros foram jogados pelo fosso do ele-
vador ou simplesmente metralhados, aleatoriamente. Muitos sobreviveram e carre-
gam consigo, além do trauma, seqüelas físicas: perderam um olho, o movimento de
braços ou pernas, têm cicatrizes das queimaduras, cortes e pancadas sofridas (DU
RAP, 2002).
No relatório da Human Rights Watch sobre as vítimas do massacre, 84 ainda não
haviam sido condenadas (apud DU RAP, 2002: 26), ou seja, 75% dos mortos esta-
vam ainda esperando o julgamento, todos réus primários. Morreram sob a tutela do
Estado, por agentes deste mesmo Estado. A maioria tinha menos de trinta anos,
sendo que doze não tinham chegado aos 21 anos. “O que esperar de um país que
mata sua população na idade mais ativa?”, diz o coletivo de artistas Frente 3 de
217
Fotos: Andréia Moassab (1) e Folha Imagem (2 a 4).
Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), inaugurada em 1920, pouco antes da implosão em 2002.
Imagens internas logo após o Massacre, em 1992.
Fevereiro no documentário Zumbi Somos Nós, sobre racismo policial. Afinal, dizem
estes artistas, “quem policia a polícia?”. Mano Brown, do grupo Racionais MCs, a
partir do relato do ex-detento Jocenir, outro sobrevivente do massacre, escreveu a
música “Diário de um Detento”. É uma longa narrativa sobre o cotidiano na prisão,
com o detalhe de retratar justamente aquele dia. O primeiro verso já anuncia: “São
Paulo, dia 1
o
de outubro de 1992, 8h da manhã”. Na seqüência o MC vai descreven-
do demoradamente os pensamentos ao longo do dia. A narrativa é lenta e longa,
refletindo a própria morosidade do cotidiano lá de dentro:
O dia tá chuvoso / o clima tá tenso [...] será que o juiz aceitou a apelação? [...] tirei
um dia a menos ou um dia a mais, sei lá... / tanto faz, os dias são iguais / acendo um
cigarro, vejo o dia passar / mato o tempo pra ele não me matar [...] cada detento uma
mãe, uma crença / cada crime uma sentença / cada sentença um motivo, uma história
de lágrima / sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio, / sofrimento, desprezo,
desilusão, ação do tempo [...] tic, tac, ainda é 9h40 / o relógio da cadeia anda em câme-
ra lenta [...] hoje, tá difícil, não saiu o sol / hoje não tem visita, não tem futebol
(RACIONAIS MCs, Diário de um Detento)
É no final da canção que o episódio é tratado diretamente com ironia diante das
autoridades e do descaso com a população carcerária:
de madrugada eu senti um calafrio / não era do vento, não era do frio / acertos de
conta tem quase todo dia / ia ter outra logo mais, eu sabia [...] avise o IML, chegou o
grande dia / depende do sim ou não de um só homem / que prefere ser neutro pelo
telefone / ratatatá, caviar e champanhe / Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe!
/ cachorros assassinos, gás lacrimogêneo... / quem mata mais ladrão ganha medalha de
prêmio! / o ser humano é descartável no Brasil / como modess usado ou bombril /
ratatatá! sangue jorra como água / do ouvido, da boca e nariz / o Senhor é meu pas-
tor... / perdoe o que seu filho fez / morreu de bruços no salmo 23 / sem padre, sem
repórter / sem arma, sem socorro / vai pegar HIV na boca do cachorro / cadáveres no
poço, no pátio interno / Adolf Hitler sorri no inferno! / o Robocop do governo é frio,
não sente pena / só ódio e ri como a hiena / ratatatá, Fleury e sua gangue / vão nadar
numa piscina de sangue / mas quem vai acreditar no meu depoimento? / dia 3 de
outubro, diário de um detento (ibidem)
Além de claramente responsabilizar o governador do estado na época, Luiz Antonio
Fleury Filho (1991-95), o músico confessa sua descrença no sistema, com consciên-
cia de que o testemunho dos sobreviventes terá pouco valor. O coronel Ubiratan
Guimarães, comandante da ação, foi condenado em 2001, mas recorreu em liberda-
de e jamais chegou a ser preso. Em 2006, sob alegação de erro no julgamento ante-
rior, a defesa do coronel conseguiu a sua absolvição. Outros policiais envolvidos no
episódio foram, inclusive, promovidos
124
. Fica evidente a desigualdade do siste-
218
124 Dados do caderno especial “Carandiru”, feito pela Folha Online, na ocasião da implosão do
presídio. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2002/carandiru/
....................
ma judiciário e penal: os comandantes e envolvidos nesta chacina mal foram respon-
sabilizados, mas muitos periféricos que nunca mataram estão encarcerados.
Outro grupos também se preocuparam em relatar o cotidiano nas prisões como é o
caso de Império Z/O e Pavilhão 9 e alguns são formados, inclusive, por presidiários:
Detentos do Rap, 509E, Linha de Frente. O Carandiru foi implodido dez anos após
o massacre, contudo, a sua implosão foi pouco significativa para alterar estrutural-
mente o sistema, conforme entendimentos do Império Z/O:
circo de horrores / casa do terror, dia de cão / é um mundo louco, é o Carandiru / é
a Casa de Detenção [...] dia 8 de Dezembro de 2002 / eu retorno ao Carandiru agora
com crachá / sou convidado pelas autoridades / pra ver o presídio terminar / o
Carandiru vai ser implodido / as autoridades e a elite vão comemorar / o que eles
menos sabem / é que este inferno só vai mudar de lugar (IMPÉRIO Z/O, Paraíso
Carandiru)
Se Foucault demonstra em Vigiar e Punir que o sistema carcerário, como o conhece-
mos hoje, foi implantado com a necessidade de reformas estruturais, já desde o sécu-
lo XVIII, estes rappers colocam esta tese em debate público, por meio de seus versos:
“este inferno só vai mudar de lugar”, uma vez que a implosão do Carandiru não sig-
nificou mudanças profundas no sistema. O que atravessa a maioria das narrativas do
hip-hop sobre a detenção é a absoluta falência do discurso acerca da “ressocialização”
do preso: “pode censurar, me prender, me matar / não é assim promotor que a guer-
ra vai acabar” (FACÇÃO CENTRAL, A Guerra Não Vai Acabar).
A intenção disciplinar do modelo prisional, juntamente com as outras instituições
analisadas por Foucault (exército, escola, igreja) (1988; 2000) é mostrada nestas letras
como uma fantasia inexistente. Ao contrário, o que se vê é a formação de aparelhos
capazes de destruir os últimos lastros de humanidade dos encarcerados, num proces-
so de “exclusão moral”, de acordo com Sérgio Adorno (2002: 107). Ao analisar dados
da Comissão de Justiça e Paz, sobre representação da violência, no início dos anos
90, o pesquisador aponta para este processo no qual “delinqüentes e infratores das
leis penais eram percebidos como pessoas não apenas destituídas do direito a ter
direitos, mas, mais que isso, também destituídas de humanidade, razão por que pode-
riam até ser eliminadas sem julgamento” (ADORNO, 2002: 106).
Para o Estado e parte da população, estas pessoas são indivíduos destituídos de sua
humanidade, cujas mortes, mesmo polêmicas, são rapidamente esquecidas: “enquan-
to isso o bicho pega do outro lado / quem é que não se lembra da chacina geral em
Vigário / massacre no Carandiru, onde morreram vários / mas tudo isso pra eles
virou histórias do passado” (PAVILHÃO 9, Execução Sumária). Todavia, ao conquis-
tarem voz, os encarcerados elaboram ativa e simbolicamente sua história. Com uma
visão contundente, são capazes de refletir sua própria situação e a condição falida do
sistema penitenciário.
219
Desta maneira, tanto as denúncias sobre violência policial como do sistema prisio-
nal, o hip-hop se inscreve como importante meio de empoderamento de um vasto
setor da sociedade, que tem a oportunidade de produzir sentidos e reconfigurar sim-
bolicamente seu mundo. O hip-hop produz, portanto, uma realidade para seus inte-
grantes, delimitando outra paisagem política e cultural de comunhão e de ação
comum, diferente daquela imposta pelo sistema hegemônico de produção de senti-
dos.
1.3.
OO MMuunnddoo aa PPaarrttiirr ddaass PPeerriiffeerriiaass
Em diversas músicas do hip-hop é expresso um viés crítico sobre desigualdade social
global, guerras e mundo do consumo, tudo isso reunidos, de certo modo, sob um
entendimento acerca da globalização hegemônica. Por intermédio destas letras pode-
se compreender o modo como o mundo é reelaborado a partir daqueles a quem o
sistema dominante relegou as margens sociais, econômicas e espaciais.
De acordo com Boaventura de Sousa Santos, a globalização é um “fenómeno multi-
facetado com dimensões económicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídi-
cas interligadas de modo complexo” (2002: 01), que se traduz através de relações
transnacionais estabelecidas por estados nacionais, empresas e práticas sociais e cul-
turais. Não se trata, como querem alguns, de um entendimento consensual, usual-
mente reduzido à esfera econômica. Ao contrário, é um intenso campo de conflitos
entre uma gama de atores ligados tanto a interesses hegemônicos, como àqueles
subalternos. Neste sentido é necessário, para o autor, distinguir os processos de glo-
balização, ao menos em duas vertentes distintas: a globalização hegemônica e a glo-
balização contra-hegemônica (ibidem).
A globalização hegemônica ou dominante é aquela que se sustenta na política eco-
nômica neoliberal preconizada pelo Consenso de Washington: um conjunto de
medidas de ajustamento macroeconômico definido por economistas de grandes ins-
tituições financeiras, nomeadamente FMI e Bando Mundial, no final dos anos 80. O
eixo central destas medidas visava restringir a interferência estatal na economia (com
destaque para privatizações e redução de gastos públicos); fortalecer o direito à pro-
priedade (sobretudo no que tange a investimentos estrangeiros); e flexibilizar leis tra-
balhistas, com vistas a facilitar e ampliar o avanço do capital privado sobre novos
mercados. O impacto de tais políticas foi o profundo acirramento das desigualdades
sociais mundiais, produzindo, em seu rasto, a “globalização da pobreza” (CHOSSU-
220
a miséria é uma ferida que nunca cicatriza
Clã Nordestino, Todo Ódio à Burguesia
DOVSKY apud SANTOS, 2002: 07). Esta pobreza é conseqüência, em escala mun-
dial, do aumento do desemprego, da forte contração dos salários e da destruição das
economias de subsistência (ibidem).
Sob este ponto de vista, o hip-hop narrativiza as conseqüências perversas locais da
“globalização da pobreza” nos espaços segregados das cidades. Suas narrativas, distin-
tas das abstrações estatísticas, corporificam, através das dificuldades dos moradores
da periferia, o que é o acirramento do desemprego, da desigualdade e da falta de
oportunidades na vida das pessoas. Neste sentido, GOG, em “Assassinos Sociais”,
propõe falar em uma relação multiescalar para os problemas da periferia, conectan-
do Ruanda e Haiti à fome, à desnutrição, ao desamparo de idosos e ao trabalho
infantil:
a lição meu irmão está aí / nos ataques a bomba / no genocídio em Ruanda / na pobre-
za no Haiti / é triste mas eu vi / o clamor materno / rogando logo o céu o inferno /
ao seu filho subnutrido / que aos dezoito não pesava mais que vinte e poucos quilos
/ mas de nada adiantava isso / do outro lado do mundo seu futuro era decidido / num
café matinal entre políticos malditos / parasitas cínicos / assassinos sociais [...] é pre-
ciso, antes de mais nada, ter noção do horror / que é ver velhos vagando na madruga-
da das ruas / com frio nas rugas / é preciso ver crianças / pesinhos pequenos, desde
cedo na estrada / esse é o preço pago vendendo dim dim picolé amendoim cocada /
pra sobreviver toda a iniciativa é válida (GOG, Assassinos Sociais)
Em outra música de GOG é descrita a sensação de fracasso e impotência de adultos
desempregados vendo suas casas e suas famílias sem quaisquer perspectivas de futu-
ro:
acionaram de novo o gatilho / e o barulho ouvido deixou um pai sem seu filho / ou
um filho sem pai / a ordem dos fatores aqui tanto faz / matemática na prática / sub-
tração feita de forma trágica / onde a divisão é o resultado / e a adição são os proble-
mas multiplicados [...] todas as noite quando acordo olho o telhado do barraco / e
junto as orações que faço / imagina se o futuro fosse hoje seria complicado / muito
complicado / minha mulher na beira do fogão, só cansaço / meu filho um moleque
sem espaço / eu a um passo do fracasso / com um salário que se colocado no papel,
ladrão / mal daria a cesta básica e o aluguel [...] tudo isto é uma cadeia uma grande
teia prepara a fuga / sou meu próprio carcereiro e a chave minha conduta [...] a mate-
mática na prática é sádica / reduziu meu povo a um zero a esquerda, mais nada / uma
equação complicada / onde a igualdade é desprezada (GOG, Matemática na
Prática)
125
.
Nessas músicas está claro o ciclo de pobreza e desemprego imposto por políticas eco-
nômicas que reduzem “meu povo a um zero a esquerda, mais nada”. Para o MC, o
futuro do povo pobre é decidido “num café matinal entre políticos malditos”, que
221
125 O vídeo da música está disponível em www.youtube.com/watch?v=ZZTfCDmN9e4.
....................
não se importam com as conseqüências de suas decisões no cotidiano das pessoas,
cujo limiar entre vida e morte é extremamente tênue. É partindo desta ótica que
GOG qualifica os (ir)responsáveis por tais decisões de “Assassinos Sociais”, título da
primeira música. A proximidade real de morte é narrada em “Matemática na Prática”,
demonstrando sua banalização pelos poderosos, a quem pouco importa morrer um
filho ou um pai, fatos corriqueiros no cotidiano das periferias. Ao dar corpo à mate-
mática, isto é, aos dados, trazendo-a para o dia-a-dia, há uma ironia em evidenciar
que os números são abstratos, mas as pessoas não.
Nas longas letras de MV Bill o ponto de vista comumente adotado para contar as his-
tórias da vida nos morros cariocas é deslocado do observador-externo (policial, esta-
do, mídia/sociedade) para aqueles afetados pela desigualdade social: o morador e o
assaltante. Em “Traficando Informação”, é um morador que observa e descreve o
cotidiano:
na favela, corte de negão é careca / é confundido com traficante, ladrão de bicicleta /
está faltando criança dentro da escola / estão na vida do crime, o caderno é uma pis-
tola / garota de doze anos esperando a dona cegonha / moleque de nove anos experi-
mentando maconha / bala perdida, falta de emprego, moradia precária / barulho de
tiro na noite / é outra quadrilha querendo invadir minha área / na minha casa, na
madrugada, todo mundo deitado no chão / com medo da bala perdida, que não tem
nome nem direção [...] coroa chorando, corpo coberto, sangue no chão, ao lado uma
vela / acerto de contas, cheirou e não pagou / os caras chegaram e cobraram com tiro
na cara / o sofrimento fica pra coroa / que sempre rezava querendo ver seu filho numa
boa / morreu por causa de pó, vê se pode / estava bebendo uma cerva, dentro do pago-
de [...] você tem que tomar cuidado com os convites / convite para cheirar, convite
para fumar, convite para roubar / aqui ninguém te convida para trabalhar / meu racio-
cínio é raro pra quem é carente / MV Bill, sobrevivente / da guerra interna, dentro da
favela / só morre preto e branco pobre, que faz parte dela (MV BILL, Traficando
Informação).
222
MV Bill, Traficando Informação, 1998.
A história da comunidade é contada por um integrante, que “trafica informação”, ou
seja, divide com os outros moradores e com a sociedade as reflexões sobre o que vê
e vive: crianças fora da escola e dentro do crime, gravidez precoce, drogas, desempre-
go, moradia precária, insegurança e racismo. Neste ambiente, com a total ausência do
Estado, as ofertas restringem-se mais a caminhos de dependência (química e crimi-
nal) e menos a alternativas de autonomia e emancipação, especificamente através do
trabalho ou emprego. No próprio título da música há um jogo de palavras, positivan-
do o sentido ilícito de “tráfico”, normalmente conectado ao comércio ilegal de dro-
gas, para o “tráfico” entendido como divulgação de informações importantes com
vistas à conscientização (dos moradores) e à denúncia (para a sociedade) das condi-
ções precárias de vida na comunidade. Em “Soldado do Morro”, MV Bill conta, em
primeira pessoa, a trajetória de um morador para melhorar de vida:
minha mina de fé tá em casa com o meu menor / agora posso dar do bom e melhor
/ várias vezes me senti menos homem / desempregado meu moleque com fome / é
muito fácil vir aqui me criticar / a sociedade me criou agora manda me matar / me
condenar e morrer na prisão / virar notícia de televisão / seria diferente se eu fosse
mauricinho / criado a Sustagem e leite Ninho / colégio particular depois faculdade /
não, não é essa minha realidade / sou caboquinho comum com sangue no olho / com
ódio na veia soldado do morro [...] já pedi esmola já me humilhei / fui pisoteado, só
eu sei que eu passei / eu tô ligado, não vai justificar / meu tempo é pequeno, não sei
o quanto vai durar / é pior do que pedir favor / arruma um emprego tenho um filho
pequeno, seu doutor / fila grande eu e mais trezentos / depois de muito tempo sem
vaga no momento / a mesma história todo dia é foda / é isso tudo que gera revolta
(MV BILL, Soldado do Morro)
Trata-se da história de um rapaz com mulher e filhos que passaram privações (“meu
moleque com fome”) por conta da sua dificuldade em obter emprego. A sensação
constante de humilhação na procura de trabalho atravessa toda a narrativa: “já pedi
esmola já me humilhei, fui pisoteado só eu sei que eu passei”; “é pior do que pedir
favor: arruma um emprego tenho um filho pequeno, seu doutor”; “a mesma história
todo dia é foda”. O rebaixamento moral imputado cotidianamente às pessoas nos
processos de seleção de emprego seguido repetidamente pela recusa abala a auto-esti-
ma e debilita moralmente grande parte da população pobre. Tanto em GOG quanto
em Bill, nas músicas escolhidas, há uma forte valorização do emprego, não apenas
como meio de sustento, mas também de garantia da auto-estima. O desemprego ou
o salário insuficiente para as necessidades básicas são apontados como causas de
diversos dramas pessoais (“várias vezes me senti menos homem” ou “eu a um passo
do fracasso”) para o qual cada um tem uma solução própria (“para sobreviver toda
iniciativa é válida”).
Milton Santos denominou o período histórico atual de “globalização perversa”
(SANTOS, 2001: 37), na qual fatores antes isolados são atualmente generalizados e
permanentes: fome, falta de acesso à água potável, refugiados, sem-teto, desemprego,
pobreza (ibidem: 59). A pobreza e o desemprego são parte estruturante da produção
223
e da concentração da riqueza global. Neste “sistema de perversidades” é, segundo o
autor, legitimada a “preeminência de uma ação hegemônica, mas sem responsabili-
dade, e a instalação sem contrapartida de uma ordem entrópica, com a produção
‘natural’ da desordem” (ibidem:60, aspas no original).
A humilhação decorrente do desemprego sistemático está diretamente ligada a um
processo estrutural global, motivo pelo qual tal desemprego não pode ser compreen-
dido isoladamente como drama pessoal, outrossim, como humilhação social, confor-
me conceituado por Gonçalves Filho (2004). Diversos grupos sociais estão “expostos
à desonra e ao desrespeito cultural” (ibidem: 25), reunidos, para Gonçalves Filho, sob
uma comunidade política: a exposição ao sofrimento em ser dominado. Nos casos
relatados por GOG e MV Bill, estão expostos a este sofrimento os trabalhadores
desempregados ou submetidos a baixíssimos salários e à mendicância. No trecho
abaixo retirado do livro Manual Prático do Ódio, de Férrez (2003), pode-se adentrar o
universo dos humilhados pelo desemprego, através da angústia de José Antonio:
a época glamourosa de trabalho na Metal Leve havia chegado ao fim, e José Antonio
sabia o que iria passar, pois havia visto a mesma situação com tantos amigos seus, José
Antonio sabia que nunca mais teria o mesmo padrão de vida, jamais seria apontado
pelos vizinhos como o homem da Metal Leve novamente, jamais os jovens que eram
geralmente filhos de amigos seus o cumprimentariam com um grande sorriso no rosto
e na mente a idéia de um dia serem indicados por José Antonio para uma vaga na
empresa (FERREZ, 2003: 47)
Desde a primeira aparição de José Antonio na história, ele já nos é apresentado atra-
vés de sua angústia matinal em ter coragem para abandonar sua vida familiar, devido
à vergonha do longo tempo desempregado e ter de suportar o aumento da miséria de
sua família. Sua rotina consiste em enfrentar longas filas de emprego, com a roupa
puída, sob sol forte, frio e fome; realizar pequenos bicos de pintor e ir à rua a pedi-
do da mulher, como forma de ajudá-la com os afazeres domésticos. A humilhação e
a falta de dignidade o acompanham todo o tempo: nos olhares opressores que sente
dos vizinhos, nas comparações que faz com os outros desempregados da fila, na
sujeira em sua casa e na falta de cuidados da esposa e filhos, expressos nas suas rou-
pas velhas, nos sapatos furados, nos cabelos sem corte. À semelhança do personagem
de GOG, em “Matemática na Prática”, “a um passo do fracasso” e “um zero à esquer-
da”, José Antonio é uma figura consternada que vive um presente dolorosamente
estendido entre o passado de metalúrgico e o futuro sem quaisquer perspectivas. Ao
deslocar a humilhação social da esfera pessoal para o âmbito político, reconhecendo-
a como um problema social, Gonçalves Filho demonstra ser necessário enfrentá-la
politicamente, para além do esforço individual dos humilhados. Do contrário, a res-
posta inadiável dos oprimidos é a revolta violenta proferida nos versos de MV Bill.
A formação da identitade enquanto trabalhador é importante elemento para a valo-
rização coletiva dos moradores dos bairros pobres. Contudo, embora a questão iden-
224
titária para o hip-hop tenha complexidade entre raça (negro), classe (pobre) e lugar
(periferia), não há uma preocupação específica focada no trabalhador. Este tema é
tratado muito mais pelo viés da desigualdade social e do desemprego do que sob o
prisma de identidade política.
Na “globalização perversa” (SANTOS, 2001), pobreza e desemprego diferem de
períodos anteriores por sua generalização permanente e por sua naturalização como
algo banal e inevitável. Em programas promovidos pelas Agências Internacionais
(PNUD, UNICEF, BID etc.) contra a escassez econômica, grandes somas são inves-
tidas com vistas a sanar manifestações pontuais da pobreza, enquanto, simultanea-
mente, ela é gerada de modo estrutural, também por instituições transnacionais
(SANTOS, 2001: 73). O hip-hop tem fundamental importância ao nomear estas per-
versidades do sistema econômico mundial, uma vez que mais do que abstrações, as
desigualdades sociais acirradas pela globalização hegemônica têm desdobramentos
concretos na vida das pessoas e das populações.
Na medida em que as “iniciativas para sobreviver”, citadas por GOG, resultam mui-
tas vezes na revolta violenta narrada por MV Bill, mais verbas são destinadas a apa-
ratos de segurança e controle, como se a força policial fosse suficiente para conter a
violência estrutural. Pelo contrário, a repressão e a criminalização da pobreza é ape-
nas uma maneira de administrar os próprios conflitos criados pelo sistema no que se
refere ao acúmulo de riqueza em detrimento do aumento da pobreza. A mesma rela-
ção entre concentração de riqueza e uso de força policial é feita pela banda Núcleo
em “Poupe Minhas Lágrimas”:
os erros do imperialismo / o terceiro mundo é que sente [...] se existem alguns bilio-
nários / é graças à miséria de vários inocentes [...] ainda vivo graças a Deus e ao meu
sonho de igualdade [...] os nossos ideais se baseiam em condições iguais e nada mais
/ você não quer dividir / por isso contrata policiais (NÚCLEO, Poupe Minhas
Lágrimas).
Estão em destaque, neste trecho, as relações imperialismo x terceiro mundo, bilioná-
rios x miséria, alinhavadas pelo “sonho de igualdade”. Uma vez que aqueles detento-
res da riqueza não querem dividir, a opção é pela contratação de policiais, conclui a
música. Sob esta perspectiva, a cidade é dividida em enclaves fortificados, em que de
um lado estão os condomínios fechados e de outro, os bairros pobres (CALDEIRA,
2000: 09; SANTOS, 2006a: 334). Para Teresa Caldeira, os muros de separação e
exclusão constituem o emblema simbólico e material das estratégias de evitação,
exclusão e restrição dos movimentos nas cidades contemporâneas. No regime de fas-
cismo do apartheid social, conceituado por Boaventura Santos, as cidades são dividi-
das em zonas civilizadas e zonas selvagens, nas quais ocorre um duplo padrão de
ação do Estado: “o policial que ajuda o meninos das zonas civilizadas a atravessar a
rua é o mesmo que persegue e eventualmente mata o menino das zonas selvagens”
(SANTOS 2006a: 334). A violência policial nos bairros pobres é tema de forte denún-
cia no hip-hop, conforme demonstrado no item anterior.
225
A estigmatização da periferia enquanto lugar da violência impede um reconhecimen-
to de sua riqueza manifesta na sua produção cultural: “escondem os barracos com o
Cingapura
126
/ capitalista / e segue a escravatura” (Z’ÁFRICA BRASIL, Cidade
Mutação). Ao subordinar as periferias aos padrões homogeneizantes da regulação do
espaço urbano e inferiorizar a sua população, está-se desperdiçando criatividade,
juventude e potencialidade transformadora em nome de preconceitos produzidos
pela ideologia da globalização (SANTOS, 2001:38).
Por sua vez, a violência combatida pelo Estado com mais repressão concerne, de
acorco com Milton Santos (2001), a violências funcionais derivadas da violência
estrutural. Ou seja, a violência criminal não é endêmica das “zonas selvagens”, ao
revés, é o saldo da violência estrutural. O que ocorre nas ações de segregação, exclu-
são e repressão é uma condenação das violências periféricas particulares (os crimes),
não alterando, portanto, as causas centrais da violência. Para o geógrafo, a violência
estrutural é conseqüência “da presença e das manifestações conjuntas, nessa era de
globalização, do dinheiro em estado puro, da competitividade em estado puro e da
potência em estado puro” (ibidem: 55 e 56).
Em outras palavras, a globalização impõe novas noções de riqueza e prosperidade,
assentes no dinheiro e no consumo como reguladores da vida individual; na compe-
titividade em diversas escalas (entre pessoas, empresas, cidades, regiões, nações), e no
poder (ou potência) com o uso da força como meio para obter um e outro (dinhei-
ro e competitividade) (ibidem: 56 a 58). Neste sentido, em outro trecho de “Poupe
226
126 Cingapura é a denominação dos conjuntos habitacionais feitos pela Prefeitura Municipal de
São Paulo na gestão de Paulo Maluf (1992-96). Nestes projetos os prédios eram construídos na parte
de mais visibilidade da comunidade, sem que houvesse uma preocupação de reurbanização ou aten-
dimento de toda a população do local. Não houve participação popular durante o desenvolvimento
e implantação do projeto.
....................
Prédios do projeto Cingapura, 1998. De frente para a marginal Pinheiros, os prédios impedem a visão
do restante das moradias em condições precárias.
Foto: Andréia Moassab
Minhas Lágrimas” é apresentada uma crítica à temática de riqueza e prosperidade,
como imposição da globalização:
na verdade a intenção de toda a nação é pura ambição / resultado, uma sociedade con-
sumista [...] pra mim, loucos são aqueles que fazem guerras na eterna ambição de bens
materiais / se acham especiais, mais que qualquer outro ser humano / infelizmente,
foram contaminados, mano / pelo que eu chamo de síndrome dos norte-americanos /
ganância insaciável, egoísmo excessivo (NÚCLEO, Poupe Minhas Lágrimas).
Ao redor do eixo temático do desemprego e da pobreza há, no hip-hop, uma refle-
xão sobre os valores da sociedade de consumo, que exerce uma pressão avassaladora
em quem tem muito pouco, e sobre o individualismo, que pauta soluções individuais
e rápidas para o enriquecimento. Ambos (consumismo e individualismo) são denun-
ciados nas letras através de termos como ambição, ganância, egoísmo ou, então, com
o uso dos nomes de multinacionais (por exemplo, coca-cola, nike). A crítica a estes
valores pode ser dirigida tanto aos membros da própria comunidade quanto aos
poderosos, propondo, em seu lugar, a difusão de qualidades como solidariedade,
companherismo e respeito. Esta mensagem não circula exclusivamente pelas músi-
cas, mas é transmitida no cotidiano, através das atitudes e das ações dos multiplica-
dores do hip-hop: “o que adianta eu ganhar dinheiro e, aonde eu moro, tá lá sem
infra-estrutura, sem uma quadra pra mim jogar bola, sem uma água pra tomar, não
tem nada. Isso eu não quero. Se através do meu trabalho eu trazer algum benefício
pra minha comunidade, é isso que eu quero” (Entrevistado 2, 2007).
A perversidade sistêmica é reconhecida por MV Bill quando canta em “Traficando
Informação”, que o “sistema faz o povo lutar contra o povo” de modo a escamotear
as estruturas da desigualdade, pois “na verdade nosso inimigo é outro”. Em sua leitu-
ra, o MC convoca a comunidade para desconstruir esta “armadilha” e sair do ciclo
de autodestruição imposto aos mais pobres:
o sistema faz o povo lutar contra o povo / mas na verdade o nosso inimigo é outro /
o inimigo usa terno e gravata / mas ao contrário a gente aqui é que se mata / através
do álcool, através da droga / destruição na boca de fumo, destruição na birosca / fazen-
do justamente o que o sistema quer, saindo para roubar / para botar um Nike no pé!
/ armadilha pra pegar negão, se liga na fita (MV BILL, Traficando Informação).
A armadilha é pressão consumista sobre os mais pobres e sem oportunidade de
emprego, ou com salários exíguos, que induz muitos jovens a cometer delitos sob a
vontade de aquisição de bens de consumo, como um tênis Nike. Os produtos de
marcas têm um significado simbólico importante na construção da identidade de
grupo, especialmente na sociedade de consumo. Se “todos” os jovens usam determi-
nadas roupas e produtos, não há porque supor que os jovens estigmatizados e social-
mente invisibilizados das comunidades pobres não sejam também compelidos a usá-
los.
227
Em um depoimento do livro Cabeça de Porco, o pai de um jovem traficante relata: “ele
[o filho] estava me pedindo muita coisa: tênis da moda, roupa da moda, essas coi-
sas. Eles pedem, todos eles pedem” (apud ATHAYDE et al, 2005: 212). A marca
importa porque enquanto objeto cobiçado é nele que se deposita a esperança de
valorização e reconhecimento social. Desta maneira, “os jovens invisíveis copiam os
hábitos dos outros para identificar-se com os outros, passando a valer o que eles
valem para a sociedade” (ATHAYDE et al, 2005: 227). Neste ponto, desconstruir os
valores impostos pela sociedade de consumo é mais uma importante batalha simbó-
lica travada pelo hip-hop. Esta batalha passa não apenas pelas denúncias das desigual-
dades, mas é amplamente embasada na construção da identidade (os periféricos) e na
valorização das narrativas históricas de sua formação enquanto coletivo social signi-
ficativo, sobretudo no reconhecimento da importância dos povos afro-descendentes
e dos migrantes nordestinos.
Em “Rua sem Nome, Barraco sem Dono”, GOG conta um sonho no qual descreve
como deveria ser, ou como gostaria que fosse, o lugar onde mora: pessoas sorrindo,
se cumprimentando despreocupadas, o córrego limpo e rodeado de flores, os idosos
descansando e as crianças na escola, bibliotecas abertas e assim por diante. Um dos
versos traz lado a lado uma multinacional e produtores locais, de modo a demons-
trar, à semelhança de Bill, que o sistema glogal hegemônico oculta a relação intrín-
seca dos mecanismos de produção de pobreza e de riqueza mundiais. Na segunda
parte da música, já fora do ambiente onírico da narrativa inicial, GOG aponta para
a pobreza indigna em contraste com a dignidade do sonho relatado:
sei que foi lindo ver crianças se divertindo / pessoas se cumprimentando sorrindo [...]
os rios cristalinos, espetáculo visual, divino! [...] os vidros se abriam todos se congra-
tulavam / idosos em casa, crianças na escola / o salário do trabalho não era esmola /
cada pessoa, todo ser valorizado, intrigas deixadas de lado / sucos de cajá, umbu e gra-
viola, faliu a poderosa coca-cola [...] poucos vivem de barriga cheia / outros morrem
de fome ou mofam na cadeia / idéia de rocha, de responsa séria / chega de comercia-
lizar a miséria! (GOG, Rua sem Nome, Barraco sem Número)
Ao vislumbrar o mundo como deveria ser em contraste com o que é, o autor termi-
na com uma mensagem: “é necessário parar de comercializar a miséria”. Neste apelo,
é reconhecida a conexão entre pobreza e concentração de riqueza, profundamente
marcada no cenário nacional. No Relatório de Desenvolvimento Humano produzido
pelas Nações Unidas em 2006, o Brasil consta como o 10
o
pior país em distribuição
de renda entre 130 analisados. A metade da renda nacional é detida por apenas 10%
da população. Apesar de ter melhorado no ranking mundial (estava em 8
o
pior no
ano anterior), o país continua a ser citado pelas Nações Unidas como um exemplo
de desigualdade social (PNUD, 2006: 288).
Afora os hiatos sociais e econômicos internos ao país há, no cenário internacional,
uma desigualdade estrutural brutal que distancia os países mais ricos daqueles mais
pobres, conforme atestam os dados das Nações Unidas:
228
• o consumo médio de água varia entre 200-300 litros por dia e por pessoa na
maioria dos países da Europa enquanto em Moçambique é inferior a 10
litros/pessoa/dia (PNUD, 2006);
• a mortalidade infantil representa um terço do total de óbitos registrados em
regiões em desenvolvimento e, nos países ricos, não chega a 1% do total de
óbitos (PNUD, 2006);
• os 500 indivíduos mais ricos do mundo têm rendimento conjunto maior do
que o rendimento das 416 milhões de pessoas mais pobres do mundo (PNUD,
2005b);
• 40% da população mundial divide 5% do rendimento mundial enquanto os
10% mais ricos detêm 54% do rendimento mundial (PNUD, 2005b);
Neste cenário de desigualdades avassaladoras, após quase vinte anos das políticas
neoliberais recomendadas pelo Consenso de Washington, o hip-hop constrói sua
própria perspectiva sobre a situação mundial:
que se foda o governo norteamericano / do meu lado os aliados / verdadeiros manos
que persistem que resistem há 500 anos / minha alma africana sobrevoa a Palestina /
onde Ariel Sharon executa a chacina / tudo foi autorizado pelas Nações Unidas /
Chirrac, Tony Blair, George Bush / Assassinos! Assassinos! / tudo o que eles querem é
o petróleo, é o poder / Alá seja louvado por te proteger / da desgraça imperialista que
tem sede de sangue / intifada molecada [...] Casa Branca, Casa Grande / o mundo é
uma senzala / calma que Zumbi guia as minhas palavras / Fora Alca! Fora Alca! / sou
guerreiro quilombola da América Latina (CLÃ NORDESTINO, Manifesto)
Duas questões fulcrais estão postas em debate pelo grupo Clã Nordestino: a violên-
cia de Estado e os acordos de livre comércio. Na atual configuração internacional de
poderes, guerra e globalização são processos intimamente vinculados por meio de
uma complexa relação entre bancos, instituições financeiras internacionais, indústria
bélica, empresas de petróleo e energia, consórcios da biotecnologia e meios de comu-
nicação (CHOSSUDOVSKY, 2004: 19). Os acordos de livre comércio integram o
contexto da globalização, sob sua vertente econômica hegemônica, em que os países
estreitam suas relações comerciais através da redução de taxas alfandegárias. É sob
este viés que foi idealizada, pelos Estados Unidos, a Área de Livre Comércio das
Américas – Alca (mencionada na música), durante a Cúpula das Américas, em 1994.
Ambas as questões alinhavadas pelo Clã Nordestino, guerra e livre comércio, com-
põem a agenda da globalização dominante, que em conjunto com as medidas pres-
critivas do Consenso de Washington estruturam um cenário progressivo de desigual-
dade mundial. Alguns dados extraídos de Relatórios das Nações Unidas (2005) e da
Anistia Internacional/Oxfam (2003) demonstram o tamanho das assimetrias:
• em média, as barreiras comerciais enfrentadas pelos países em desenvolvi-
mento que exportam para países ricos são três a quatro vezes mais altas do que
229
as que os países ricos enfrentam quando fazem comércio entre si (PNUD,
2005b);
• para cada um dólar gasto em ajuda ao desenvolvimento (transferência para os
países pobres) os países ricos gastam dez dólares com o orçamento militar
(PNUD, 2005b);
• a despesa anual mundial com a AIDS, causa do óbito de três milhões de pes-
soas por ano, corresponde a três dias de despesas militares no mundo (PNUD,
2005b).
• França, EUA e Reino Unido ganham mais com exportações de armas para
países pobres do que os ajudam em desenvolvimento (ANISTIA INTERNA-
CIONAL e OXFAM, 2003).
Apesar da diferença de poder entre os EUA e os demais países negociadores da ALCA
e das fortes pressões para aceitar sem alteração os pontos de interesse estadunidenses,
suas negociações não foram encerradas em 2005, como previsto inicialmente. A posi-
ção do Brasil, com vistas a consolidar o Mercosul e marcar sua autonomia em novos
acordos internacionais, em conjunto com um maior foco da política externa dos
Estados Unidos na segurança e no terrorismo, refreou a inevitabilidade do acordo,
conforme se fazia crer no início dos anos 2000 (VIGEVANI et al, 2001; VIGEVANI
e MARIANO, 2004). Ao introduzir o tema nas periferias, sob uma ótica contrária à
ALCA (“Fora ALCA!”), o grupo Clã Nordestino espraia uma voz dissonante na dis-
cussão pública nacional, especialmente face às omissões da grande mídia diante do
tema (ARBEX, 2002).
No que diz respeito ao aumento significativo dos gastos militares, o século XXI se
inicia com a agenda internacional dominada por preocupações com segurança
(PNUD, 2005b). No caso específico dos EUA, trata-se de uma reorientação de sua
política econômica ao longo da década anterior, consolidada após os ataques de 11
de Setembro (CHOSSUDOVSKY, 2004: 21 e 22). Embora o relatório das Nações
Unidas aponte para o desequilíbrio orçamentário entre despesas militares e outras
áreas, a análise restringe-se aos chamados países “frágeis”, sem colocar em questão os
interesses econômicos e estratégicos dos conflitos, ainda que os altos aportes milita-
res sejam feitos por países ricos.
A conexão feita nos versos musicais entre petróleo e governantes de países como
França (Chirrac), Reino Unido (Blair) e EUA (Bush) vai ao encontro da análise entre
guerra e globalização, proposta por Michel Chossudovsky (2004). Em seu livro,
Chossudovsky põe em evidência as profundas relações entre poderosos grupos eco-
nômicos transnacionais, alinhamento político de países centrais e os conflitos arma-
dos ao longo dos últimos vinte anos. O ano de 1989, marcado pelo Consenso de
Washington, é também referência do fim da Guerra Fria, com a queda do muro de
Berlim. Contudo, isso não significa o início de um período menos conflituoso, pelo
contrário, as décadas seguintes são assinaladas por inúmeros conflitos: Chechênia;
230
Iugosávia; Afeganistão; Iraque, para mencinar alguns. Grandes empresas de armas e
conglomerados petrolíferos ligados aos países envolvidos nos conflitos têm interes-
ses diretos e estratégicos nas regiões beligerantes (Ibidem).
A forte pressão para implantação das políticas neoliberais em países do sul e a reo-
rientação de recursos orçamentários nacionais de países do norte voltados para a
segurança e guerra são partes da mesma estratégia de avanço do capital rumo a novas
fronteiras econômicas. No concernente aos países em desenvolvimento há a forma-
ção da “tripla aliança” (EVANS apud SANTOS, 2002: 05) entre as empresas multi-
nacionais, a elite capitalista local e a chamada “burguesia estatal”, com vistas a garan-
tir as reformas e os ajustes prescritos por Washington. Com relação à economia de
guerra, cargos estratégicos de quadros governamentais de países ricos têm sido ampla-
mente ocupados por gestores e investidores de empresas e instituições financeiras
internacionais, cujos interesses são garantidos pela orientação política dos governos
dos quais fazem parte (CHOSSUDOVSKY, 2004). Outros setores econômicos ren-
táveis, como narcotráfico e tráfico de armas, articulam-se com esta complexa rede
internacional (ibidem).
Neste cenário configurado por interesses econômicos e guerra, há, no Brasil, pelo
menos um forte viés local amplamente relatado pelo hip-hop: o envolvimento cres-
cente de jovens, cada vez mais novos, com armas, tráfico de drogas e crime organi-
zado:
meu sangue tá no chão por causa de prosa errada / a minha marra foi lavada de ver-
melho / o matador não percebe que atirou no próprio espelho / é só pra isso que a
gente tem valor / achar que matou o cara certo que é da sua cor [...] mais uma mãe
que chora / mais um filho que vai / mais um G3 que canta [...] drogas, armas na mira
de um jovem preto / sem respeito, sem dinheiro, sem Cyclone / sem Nike, sem vida,
sem fé, sem nome / nota 10 pra falta de atitude / nota 0 pro futuro da juventude / não
tava pronto pra morrer, mas pronto pra matar / há muito tempo eu não fazia minha
mãe chorar (MV BILL, Soldado Morto)
Drogas, armas, consumo e sonhos é uma combinação fatal para a juventude, confor-
me narra MV Bill. No entanto, as armas não são fabricadas na periferia do país, tam-
pouco por grupos separatistas da Chechênia ou fundamentalistas do Afeganistão.
Armas como G3, citada na música, ou UZI e AK-47, usadas pelo tráfico de drogas no
Brasil, são originárias da Alemanha, Israel e Rússia. É nesta direção que o MC Gaspar
do Z’África Brasil se pergunta: “mas algo em meu pensamento dizia pra mim / porra,
se na periferia ninguém fabrica arma / quem abastece isso aqui?” (Z’ÁFRICA BRA-
SIL, Antigamente Quilombo, Hoje Periferia). Diante da mesma indagação, em 2002
o governo brasileiro solicitou ajuda internacional no sentido de localizar e estancar
as rotas de armas. Todavia, de todos os países envolvidos – EUA, Espanha, Bélgica,
Itália, República Tcheca, Áustria, França, China, Israel, Rússia, Suíça, Argentina e
Alemanha – apenas estes dois últimos se manifestaram (ANISTIA INTERNACIO-
NAL e OXFAM, 2003: 65).
231
Os interesses internacionais ligados às armas são bastante controversos, uma vez que
os atores com poder e influência suficientes para conter a escala mundial da violên-
cia são os mesmos interessados no seu aumento. Os cinco membros permanentes do
Conselho de Segurança das Nações Unidas – França, Rússia, China, Reino Unido e
EUA – respondem, juntos, por 88% da exportação mundial de armas, sendo que os
Estados Unidos são responsáveis por 45% de todas as armas exportadas no mundo
(ibidem: 54). Ainda assim, sob forte pressão internacional, as Nações Unidas, em
2006, deram início ao grupo de trabalho concernente à formulação do Tratado
Internacional de Comércio de Armas. Naquela ocasião, 139 países votaram a favor
da criação do grupo e apenas um foi contrário: os Estados Unidos
127
.
As teorias sobre globalização tendem, majoritariamete, a identificá-la como algo ine-
vitável, consensual e de caráter estritamente econômico. Essa visão monolítica e
monocausal da globalização é constitutiva de dispositivos ideológicos e políticos,
segundo Boaventura Santos (2002:16). Duas intenções circunscritas sob estes dispo-
sitivos são o determinismo e o desaparecimento do sul. O primeiro concerne à cren-
ça na globalização como um processo espontâneo e irreversível com lógicas próprias,
de modo a escamotear as decisões políticas e seus atores. O desaparecimento do sul
concerne à divulgação da idéia de que os impactos da globalização são uniformes no
mundo todo, isto é, “quanto mais triunfalista é a concepção da globalização menor
é a visibilidade do Sul ou das hierarquias do sistema mundial” (ibidem: 17). Neste
232
127 O fotógrafo Kyle Cassidy registrou no livro Armed América (2007) fotos da população estadu-
nidense com suas armas em casa. Seu trabalho mostra, por meio de imagens contundentes, o fascí-
nio de pessoas ‘comuns’ (não envolvidas no mundo do crime ou policiais) por armas. Algumas fotos
podem ser vistas na página: www.armedamerica.org.
....................
Fotos: Kyle Cassidy.
Dan com seu Mossberg Model 88, Bushmaster AR-15, Rock Island Armory/Sendra M16, Remington
700 PSS, Springfield XD, FN Five-seveN, H&K USP, Sig Sauer P226, Colt Commander 1911 e Glock
22. Beth, Paul, Gavin e Emma com as AK-47, Bersa .380, Ruger P345.
caso, o desaparecimento do sul não significa que as hierarquias sejam eliminadas e
haja a possibilidade de igualdade nas relações de poder, ao contrário, apaga-se a pers-
pectiva histórica impondo regras iguais a condições inicialmente muito díspares.
Em direção oposta à inevitabilidade da globalização hegemônica e à descrença na
possibilidade de resistência, Boaventura Santos (2002) afirma existir uma globaliza-
ção contra-hegemônica. Insurgente, ela é levada a cabo de “baixo-para-cima”, por
diversos atores sociais com possibilidades de organização transnacional, através do
uso das ferramentas criadas pelo sistema dominante (tecnologias de informação e
comunicação) com vistas a “transformar trocas desiguais em trocas de autoridade par-
tilhada” (ibidem: 27). Em outras palavras, trata-se da globalização das lutas para tor-
nar possível a democratização da riqueza agindo contra a “exclusão, a inclusão subal-
terna, a dependência, a desintegração, a despromoção” (ibidem: 27).
Sob uma ótica convergente, Milton Santos acredita na possibilidade de realização de
uma outra história a partir dos vetores “de baixo” em oposição àquela dominante
imposta “de cima” (2001: 166). Para o autor, o processo de tomada de consciência
acerca da perversidade da globalização de pensamento único, ou globalização hege-
mônica, deverá “permitir a implantação de um novo modelo econômico, social e
político que, a partir de uma nova distribuição dos bens e serviços, conduza à reali-
zação de uma vida coletiva solidária e, passando da escala do lugar à escala do pla-
neta, assegure uma reforma do mundo, por intermédio de outra maneira de realizar
a globalização” (ibidem: 170). As condições materiais, especialmente as novas tecno-
logias necessárias para esta transformação já estão dadas, sendo exigível, contudo, o
seu aproveitamento político, isto é, o uso destas ferramentas para a transformação
social dos de baixo (ibidem: 174). Se as técnicas são irreversíveis porque aderem ao
cotidiano, a globalização domindante não o é (ibidem).
Deste modo, o hip-hop, através de um processo de tomada de consciência com
ampla penetração nas periferias, seja por meio das rádios-comunitárias, dos portais da
internet, dos zines ou de seus multiplicadores, está reconfigurando as possibilidades
de transformação da periferia e da sociedade. Tanto a sua visão de mundo quanto sua
ação de caráter coletivo são politicamente definidas, posicionando-se no cenário
internacional como um movimento insurgente claramente contra-hegemônico.
233
2. OS SILENCIADOS TAMBÉM SILENCIAM
128
Não obstante o vasto universo temático do hip-hop e sua luta histórica contra o racis-
mo e o preconceito de classes, é necessário fazer uma reflexão sobre algumas vozes
silenciadas ou invisibilizadas pelo HH: as mulheres e os homossexuais. Em ambos
os casos o hip-hop reproduz o preconceito social contra estes grupos, multiplicando,
em seu interior, o padrão simbólico hegemônico da mulher-objeto submissa e do
homossexual como desviante comportamental patológico.
O preconceito de gênero é estruturante da sociedade patriarcal, conforme apontado
pelas teorias feministas ao longo do século XX
129
. Esta estrutura, produto de
uma construção histórica, foi naturalizada após longo processo de violência simbóli-
ca (BOURDIEU, 1999: 02) fortemente cristalizada pelos vetores unidirecionais de
produção de sentidos (mídia/publicidade, escola, cultura e ciência) nos últimos 50
anos, em especial devido às tecnologias de comunicação (televisão, rádio, internet).
Para ilustrar a imposição simbólica da mídia sobre a figura da mulher no Brasil, vale
fazer um breve apanhado sobre as capas das revistas semanais de circulação nacional:
Veja, IstoÉ, Época e Carta Capital, amplamente trabalhadas na já referida pesquisa A
Invenção do Mesmo e do Outro na Mídia Semanal. Apesar de não se tratar de revistas de
temática sexual, é enorme a presença do corpo feminino desnudo em suas capas,
mesmo em reportagens cuja temática central não é o universo feminino, tampouco
questões de gênero
130
.
234
128Agradeço a Jorge Hilton, do grupo baiano Simples Rap’ortagem, por ter mencionado, em con-
versa online, a forte presença da mulher no hip-hop baiano e também os encontros estaduais de HH
e Gênero.
129 Estamos, atualmente, na terceira onda feminista. Em linhas gerais, a primeira onda feminista
corresponde às lutas feministas desde fins do século XVII até as primeiras décadas do século XX, cen-
tradas principalmente nos direitos políticos, civis e trabalhistas negados às mulheres. A segunda onda
feminista diz respeito aos anos 60 e 70 do século XX quando as mulheres percebem que as conquis-
tas legais não foram suficientes para eliminar o sexismo expresso nos costumes, na linguagem, nas
relações íntimas, familiares e econômicas. O lema deste período é “o pessoal é político”. A terceira
onda, a partir dos anos 90, prioriza o reconhecimento da diferença (“diferença sim, desigualdade
não”) e os direitos sexuais e reprodutivos (“nosso corpo nos pertence”) (Rodrigues, 2002).
130É o caso de matérias como “O Laboratório do Corpo” (VEJA, 13/09/00); “Mexa-se” (ÉPOCA,
10/09/01); “Os Limites do Corpo” (VEJA, 05/03/03); “” (ÉPOCA, 08/04/01); “Beleza de Alto Risco”
(ÉPOCA, 02/12/02); “” (ISTOÉ, 10/09/03); “Ortomolecular, a Dieta da Moda” (ISTOÉ, 06/10/04),
para citar algumas.
....................
Os temas acerca de dietas, controle do corpo e juventude também exercem enorme
pressão, quase que exclusivamente sobre o corpo feminino, com raras representações
da boa-forma sobre o corpo masculino que, ao contrário, é resguardado. Quando este
corpo aparece é sob metáfora visual de obra de arte ou mediante outros subterfúgios,
como pode ser conferido na capa de IstoÉ de 29 de outubro de 2003, na qual vemos
de um lado o David de Michelangelo e de outro, o interior do corpo humano.
Os mesmos cuidados concernentes à preservação da imagem masculina foram obser-
vados na televisão portuguesa, conforme artigo de Willy Silva Filho sobre a represen-
tação dos imigrantes brasileiros no jornalismo televisivo em Portugal (2006). Das sete
235
Superexposição do corpo feminino na mídia de um modo geral. Acima vê-se Veja, 13/09/00; Época,
10/09/01; Ve j a , 05/03/03; Época, 08/04/01; Época, 02/12/02; IstoÉ, 06102004
peças televisivas analisadas
131
, o pesquisador verificou tratamento distinto para
os imigrantes homens e para as mulheres:
nas peças que envolvem crimes e contravenções a imagem do homem brasileiro é mais
poupada que a da mulher brasileira. [...] Nota-se que os ilícitos supostamente pratica-
dos por homens brasileiros (falsificação de cartões e trabalho ilegal) resulta em ‘peças
de gabinete’, onde os argüidos não aparecem. Já as contravenções imputadas às mulhe-
res (prostituição e tráfico de drogas) resultam em construções valorizadas por imagens
mais vibrantes e ‘de momento’, captadas nos locais dos acontecimentos, onde tende a
haver um menor cuidado, ou esforço, na preservação da imagem dos envolvidos
(SILVA FILHO, 2006: 157)
Não obstante a estigmatização dos imigrantes brasileiros pela mídia portuguesa, há
uma diferenciação no tratamento dado aos homens e às mulheres, “onde os argüidos
não aparecem” (ibidem), em consonância com a lógica de preservação da imagem do
corpo e da identidade masculina observada nas revistas brasileiras. O fato basilar
deste tratamento desigual para homens e mulheres em países distintos é, com efeito,
o patriarcado como concepção de poder dominante nas sociedades ocidentais duran-
te séculos (SIMÕES, 2007: 18).
Outra observação ilustrativa desta desigualdade simbólica imputada pelas revistas
semanais diz respeito a matérias acerca de memória e cérebro. Nestas capas nos depa-
ramos com figuras tanto masculinas quanto femininas, entretanto, quando a figura
236
Istoé, 29/10/03 o corpo do homem através da obra de
Michelangelo e dos órgãos internamente.
131Foram analisadas, por Willy Silva Filho, as seguintes peças: “Legalização de Brasileiros” (RTP1,
16/01/04); “Falsificador de Cartões” (TVI, 27/01/04); “Trabalhadores Ilegais” (SIC, 12/02/04);
“Ordem de Despejo” (SIC, 30/03/04); “Criança Retida no Aeroporto de Lisboa” (SIC, 07/08/04);
“Rusga num Bar de Alternes em Felgueiras” (RTP1, 12/06/04); e “A Confissão de uma Correio de
Droga Brasileira” (SIC, 20/10/04).
....................
central é feminina, a manchete diz respeito à memória (ISTOÉ, 20/10/99). Ao optar
pela face masculina, a chamada, ao contrário, é para “malhação cerebral” (ISTOÉ,
14/03/01). A “memória”, referida à imagem feminina, remete à incapacidade de lem-
brar. Por sua vez, ao homem está reservado o exercício e o vigor do cérebro. A des-
peito da desigualdade dos sentidos produzidos pelas imagens, ambas as matérias
tinham conteúdos bastante semelhantes, relacionados a dicas para “estimular os neu-
rônios” e “melhorar a eficiência da atividade cerebral”.
Quando as conquistas femininas são o tema central, aparecem esquadrinhadas na
mídia como ocupação de cargos de poder no mundo do trabalho, no qual a figura
feminina é uma mímese do homem, vestida de paletó e com charuto na boca, como
mostra a revista Época de 26/03/07, sobre a “mulher alfa”. Nas palavras de Pierre
Bourdieu:
para conseguir plenamente manter uma posição [de poder], uma mulher teria de pos-
suir não só o que é explicitamente exigido pela descrição do posto, mas também todo
um conjunto de propriedades que os seus ocupantes masculinos importam habitual-
mente para o posto, uma estatura física, uma voz, ou disposições como a agressivida-
de, a segurança, a ‘distância em relação ao papel’, a autoridade dita natural etc., para as
quais os homens foram preparados e treinados tacitamente enquanto homens (BOUR-
DIEU, 1999: 54)
O padrão referencial para o sucesso ou poder feminino é sempre aquele imposto pela
estrutura patriarcal de organização social. Nesta estrutura não é possível conceber ou
perceber a mulher sem o homem, numa adesão dos instrumentos de conhecimento
do dominador para pensar o dominado (ibidem: 30). Ou seja, o acesso da mulher à
linguagem dá-se por meio de “sistemas de representação ‘masculinos’ que a desapro-
priam da sua relação consigo própria e com outras mulheres” (IRIGARAY apud
SIMÕES, 2007: 19).
237
Malhação Cerebral em contraposição à Memória nas revistas IstoÉ de
20/10/99 e 14/03/01
No trabalho levado a cabo pelo Grupo de Pesquisa em Mídia Impressa da PUCSP,
foi destacada, em várias entrevistas, a sub-representação da mulher nas revistas sema-
nais, através de uma invisibilidade deliberada de inúmeras formas de ser mulher na
contemporaneidade, como, por exemplo, as importantes lideranças femininas de
movimentos sociais com relevante luta por alteração de políticas públicas no país (cf
PRADO et al, 2008). Com efeito, a mídia constrói a figura da mulher de acordo com
o pensamento patriarcal: a sua felicidade atrela-se “ao casamento, à maternidade e à
posse de eletrodomésticos necessários para facilitar o trabalho no lar e prestar um
bom serviço à família” (FRIEDAN apud SIMÕES, 2007: 63).
A felicidade atrelada ao casamento povoa o imaginário feminino desde cedo através
das histórias infantis, com seus “príncipes encantados” e “finais felizes”, em que se dá
o casamento da protagonista. Igualmente, a mídia cristaliza este imaginário com
reportagens sobre casamento, sob a ótica masculina, na qual não casar não pode ser
uma opção da mulher, afinal, para a mídia (refletindo e ao mesmo tempo cristalizan-
do os valores sociais), a felicidade da mulher é inseparável do matrimônio e da mater-
nidade. “Falta Homem?” ou “As Chances de Casar” são duas chamadas de capa,
nesta direção, das revistas Época (03/03/03) e Veja (29/11/06), respectivamente.
Por sua vez, a realização pessoal vinculada à “posse de eletrodomésticos” concerne
ao modelo hegemônico de sociedade, na medida em que as figuras com destaque na
mídia “ligam-se a um discurso individualista de busca da vitória, não se tornando
visíveis formas mais coletivas de ser mulher, ligadas a movimentos sociais e à socie-
dade civil” (PRADO et al, 2008).
Sob esta ótica, a luta feminista é usualmente ironizada pela mídia e raramente trata-
da em sua complexidade e em profundidade. Ao público de um modo geral pouco
se dá a conhecer das principais pautas, reivindicações e construções teórico-concei-
tuais feministas. O que se observa é, portanto, uma crise de representação (BUITO-
238
Época, 26/03/07.
NI apud PRADO et al, 2008) na qual invisibiliza-se amplos setores da realidade
social e se constróem “representações cuja lógica audioverbivisual se liga ao mundo
da grande comunicação ou sociedade de controle, a saber, das tecnologias discursi-
vas da publicidade e do marketing, em que predomina a mulher dos estereótipos de
beleza e a mulher que busca prazer” (PRADO et al, 2008).
Invariavelmente conectadas a temáticas como prazer e beleza, o lugar da mulher no
ambiente midiático não alcança o “universo das coisas sérias” (BOURDIEU, 1999:
84), restringindo-a reiteradamente a uma confinação forçada aos assuntos domésticos
ou relacionadas ao corpo. Tanto num quanto noutro lugar, a mulher está subordina-
da ao homem: a casa como lugar da reprodução biológica e o corpo como lugar de
satisfação dos desejos masculinos. Se a casa, o espaço privado da reprodução, é o
lugar histórico de confinamento da mulher, o espaço público da produção está des-
tinado ao homem. Nesta construção espacial do patriarcado definindo os lugares
sociais ocupados por cada gênero, é possível compreender o afastamento sistemático
da presença das mulheres na vida pública e, não diferente, das vozes femininas no
hip-hop, uma vez que se trata de uma cultura de rua.
Na mídia, raras vezes a voz da mulher ocupa o lugar do especialista ou da autorida-
de. A título de ilustração, em trabalho desenvolvido pela pesquisadora Dulcília
Buitoni do Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero da
ECA/USP, concluiu-se que a revista Veja, em suas páginas amarelas, chegou a entre-
vistar apenas uma mulher em 51 edições anuais (apud PRADO et al, 2008). Nos anos
70, Gaye Tuchman, em pesquisa acerca das mulheres nos meios de comunicação de
massa, revelou uma forte sub-representação feminina, ainda que a população mun-
dial fosse mais da metade constituída por mulheres. Para além da sub-representação,
Gaye também mostrou haver uma trivialização das mulheres representadas: “são
retratadas como ornamentos infantis que precisam de ser protegidas ou então são
desvalorizadas dentro das fronteiras protetoras do lar” (apud SIMÕES, 2007: 68).
239
Época, 03/03/03 e Ve j a 29/11/06.
No universo do hip-hop, o lugar da mulher não escapa à estrutura patriarcal da socie-
dade na qual vivemos:
eu fiz um campeonato de skate para meninas no Brasil [...] Aí a gente até chamou a
Rede Globo, a Globo não apoiou, falaram que não era bacana. Ninguém iria querer
ver a mulher no skate, era feio... então acho que é o mesmo preconceito com a meni-
na no skate: não é coisa pra menina. Menina tem que dançar ballet, tocar piano
(Entrevistado 1, 2007).
O skate, por ser um esporte que requer agilidade, força motora e coragem, quando
praticado por mulheres não merece divulgação televisiva. Os canais de televisão pre-
ferem, conforme ironiza a entrevistada, consolidar a representação feminina, divul-
gando atividades menos viris como “ballet” ou “piano”. Dada esta construção simbó-
lica hegemônica é fato o preconceito de gênero e o uso da imagem da mulher-obje-
to no hip-hop, seguindo padrões da sociedade patriarcal, especialmente naquele hip-
hop de viés comercial e de estilo “gangsta rap” veiculado, sobretudo, pela MTV. São
videoclips com carros de luxo, homens com colares e pulseiras de ouro e prata e
mulheres de roupas bastante diminutas, dançando. Nestas letras é freqüente o uso de
termos depreciativos como “vagabunda”, “vaca” e “cachorra” para designar as mulhe-
res.
Ainda que o gagnsta rap não seja bem visto pelo hip-hop de um modo geral, nas
músicas de grupos respeitados pelo movimento e pela comunidade este tipo de tra-
tamento pejorativo com relação à mulher é, de certo modo, freqüente. O hip-hop
reproduz, assim, o modelo de mulher imposto hegemonicamente pela sociedade
240
50Cent no videoclip da música Candy Shop.
patriarcal e constrói a figura feminina sobre uma base dual: a mãe e esposa/namora-
da são intocáveis, sendo a primeira endeusada e venerada; e as demais mulheres,
aproveitadoras e mentirosas:
pronto pra chamar minha preta pra falar / que eu comi a mina dele, rá! / se ela tava lá
/ vadia mentirosa, nunca vi, deu mó faia (RACIONAIS MCs, Vida Loka – Parte 1)
pra ela, dinheiro é o mais importante / seu jeito vulgar, suas idéias são repugnantes /
é uma cretina que se mostra nua como objeto / é uma inútil que ganha dinheiro fazen-
do sexo [...] mulheres só querem / preferem o que as favorecem / dinheiro, ibope, te
esquecem se não os tiverem (RACIONAIS MCS, Mulheres Vulgares)
A atividade sexual exacerbada aparece sempre como um ponto positivo e de orgulho
ao ser praticada pelos homens (“eu comi a mina dele”) e é depreciada no caso das
mulheres (“vadia”, “jeito vulgar”), sendo que este homem hipersexuado precisa de
uma mulher para consolidar sua atividade sexual, considerando-se uma relação hete-
rossexual. A virilidade é, desta forma, construída “diante dos” e “para” outros
homens, num afastamento e subjugação do feminino (BOURDIEU, 1999: 45).
Nesta relação hierarquicamente polarizada, ambos, homens e mulheres, são inversa-
mente valorados: para a supervalorização masculina é necessária a maxidesvaloriza-
ção feminina. Esta oposição valorativa no juízo moral da atividade sexual de homens
e mulheres é proporcional à desigualdade de poder no mundo androcêntrico no qual
vivemos. O hip-hop expõe cruamente esta desigualdade em suas letras ao reproduzir
a sociedade sem questioná-la. Todavia, quando setores das classes dominantes acu-
sam-no de machismo, estão distanciando de si a própria misoginia, como se o pro-
blema fosse apenas do Outro, no caso, os jovens do hip-hop.
A antropóloga Alba Zaluar, especialista em antropologia da violência, escreveu em
sua coluna semanal de opinião no jornal Folha de S. Paulo sobre o episódio de con-
fronto entre os Racionais MCs e a Polícia Militar na praça da Sé, em maio de 2007:
na Inglaterra, turmas de idade e de sexo diferentes não se misturam. Bandos de jovens
do sexo masculino saem para brigar, bater ou quebrar. Exatamente o que acontece com
os jovens no baile funk do Rio de Janeiro e em alguns eventos do hip hop em São
Paulo. O tumulto na praça da Sé no último fim de semana não parecia coisa nossa [...]
Esses jovens vulneráveis, movidos a ressentimento, orgulham-se de serem machões
durões e de fazerem guerra para valer. Matam-se entre si e matam os outros também.
É a tal da hipermasculinidade ou a masculinidade exibicionista, exagerada, uma exibi-
ção espetacular de protesto masculino (ZALUAR, 2007)
Os “jovens machões movidos a ressentimento” apontados por Zaluar não são todos
os jovens, mas aqueles vulneráveis, dos bailes funk e dos eventos de hip-hop. No dis-
curso da antropóloga há um distanciamento deste grupo de jovens em relação ao res-
tante da sociedade: os jovens de classe média e média alta. Adultos e demais jovens
são, portanto, para a autora, isentos de responsabilidades, como se a “masculinidade
exibicionista” da qual nos fala seja atributo exclusivo de um grupo, neste caso, liga-
241
do aos jovens pobres da periferia. Em uma sociedade cujas estruturas de poder estão
assentes em modelos patriarcais, os valores androcêntricos atravessam todas as clas-
ses sociais e se constituem historica e intergeracionalmente (BOURDIEU, 1999:32).
A pesquisadora Rita Simões conclui, em sua dissertação de mestrado sobre a repre-
sentação da violência de gênero na mídia portuguesa, que “a visão hegemônica da
realidade conduz a uma clara associação dos actos criminosos a grupos minoritários”
(SIMÕES, 2007: 97 e 98), referindo-se a uma tendência apontada pelo teórico da cul-
tura, Stuart Hall, nos anos 70. Em diversos países, relata a autora, a mídia produz,
tendencialmente, notícias sobre violência doméstica aferindo-lhes características de
violência culturamente endêmica quando praticada por minorias étnicas. Quando o
agressor pertence à maioria dominante, o viés endêmico é substituído pela desuma-
nização do atacante, apresentado como “monstro”, “besta”, “não-humano” (ibidem:
99). Desta maneira, é obscurecida a violência doméstica no seio dos grupos dominan-
tes.
Este foi o caso, por exemplo, do episódio que veio à tona na imprensa portuguesa e
européia no primeiro semestre de 2008, sobre um austríaco que manteve sua própria
filha em cativeiro por quase trinta anos, com quem teve vários filhos, frutos de vio-
lação e relação incestuosa. Termos como “aberração da natureza”, “carrasco inteligen-
te” ou “monstro de Amstetten” foram bastante comuns para designá-lo. Contudo,
em nenhum momento a imprensa relacionou o ocorrido à estrutura profunda de
desigualdade de poder entre os gêneros, na qual a violência contra as mulheres atin-
ge números bastante elevados por todo o mundo. A Organização Mundial de Saúde
admitiu, em 2002, que 70% das mulheres vítimas de homicídios foram mortas pelos
seus companheiros (apud SIMÕES, 2007: 26).
Em outras palavras, quando praticada pelo Outro, a agressão doméstica a mulheres é
um problema estrutural, conforme os argumentos de Zaluar sobre a misoginia no
hip-hop (exclusiva dos negros pobres da periferia que “orgulham-se de serem
machões durões”). Por sua vez, de acordo com este ponto de vista, quando esta vio-
lência é exercida pelo Mesmo, ela é de ordem pontual ou exceção (o “monstro de
Amstatten”).
Ainda que o preconceito de gênero seja inegável no contexto do hip-hop quando o
problema é apontado como restrito a este grupo social, as vozes da mídia não põem
em debate a dominação masculina da racionalidade ocidental historicamente cons-
truída. Ademais, muitas vezes frases retiradas das longas narrativas das letras do hip-
hop são tomadas em um processo metonímico equivocado, distorcendo-se o todo,
através da parte. É o que sucede com um dos versos mais polêmicos, usualmente cita-
do como exemplo do sexismo no hip-hop: “afoga essa vaca dentro da piscina”
(RACIONAIS MCs, Fim de Semana no Parque). Ao analisarmos a música inteira de
onde foi extraída esta frase, percebe-se que não se trata, nesse caso, de preconceito de
242
gênero, mas de confronto de classes
132
. Ao contextualizarmos o polêmico verso
em relação ao todo da letra, é possível notar a diferença da conotação que lhe é
comumente atribuída:
olha só aquele clube que da hora / olha aquela quadra, olha aquele campo
Olha, olha quanta gente / tem sorveteria, cinema, piscina quente / olha quanto boy,
olha quanta mina / afoga essa vaca dentro da piscina / tem corrida de kart dá pra ver
/ é igualzinho o que eu vi ontem na TV / olha só aquele clube que da hora / olha o
pretinho vendo tudo do lado de fora [...] ele apenas sonha através do muro...”
(RACIONAIS MCs, Fim de Semana no Parque)
Com isso não queremos isentar de críticas o hip-hop no que se refere ao preconcei-
to de gênero e orientação sexual. Porém, as simplificações midiáticas devem ser ana-
lisadas com parcimônia. Mesmo porque esta postura preconceituosa e agressiva é
também bastante controversa dentro do próprio movimento. Alguns entrevistados
discordam veementemente deste tipo de atitude, com críticas severas a estes grupos.
No caso específico da polêmica música dos Racionais MCs, um dos músicos entre-
vistados afirma:
“Mas por quê? você não pode ir no clube? Minha mãe não pode? Como é a outra letra
lá? Sei lá [pausa] minha namorada tem olho azul, como é que eu vou ouvir um negó-
cio desses? Não dá. Eu não vou falar mal de mulher nunca, nunca” (Entrevistado 3,
2007).
Algumas vozes do hip-hop têm se esforçado nos últimos anos em reavaliar o precon-
ceito de gênero. No livro Acorda Hip-Hop!, escrito por DJ TR, nome artístico de
Sérgio Leal, há um capítulo dedicado à questão das mulheres no hip-hop, no qual o
autor faz uma autocrítica:
mesmo apresentando uma proposta contrária aos tabus da sociedade brasileira, o hip-
hop nacional não conseguiu superar o seu lado machista. Antes de fazermos parte de
um movimento de resistência, fomos criados por nossas famílias, que seguem passiva-
mente a cultura dominante que prega de forma sutil o poder do homem na socieda-
de. Da mesma forma que aprendemos que somos superiores às mulheres, as mulheres
aprendem a ser submissas aos homens (LEAL, 2007: 298)
A submissão levantada por Leal faz parte de uma imposição da sociedade patriarcal,
conforme explica Bourdieu, inscrita também nos corpos: à mulher cabe “sorrir, bai-
xar os olhos, aceitar as interrupções” (BOURDIEU, 1999: 24). A inscrição nos cor-
243
132 Esta música foi analisada sob o aspecto do confronto de classes no item Movimento Social,
Violência e Juventude na Mídia. Trata-se de uma longa narrativa sobre uma comunidade pobre vizinha
a um clube sofisticado, cuja diversão dos meninos pobres é ficar no alto do morro observando as pes-
soas nas piscinas, quadras poliesportivas, etc, enquanto na comunidade não há nenhuma infra-estru-
tura de lazer.
....................
pos é o resultado, para Gonçalves Filho (2004), da humilhação social da qual nos fala
ao analisar o caso da vara e a reação corporal da pequena escrava descrita por
Machado de Assis. De acordo com o autor, o ambiente político da dominação age
ininterruptamente e por dentro, isto é, inscreve-se na constituição dos sujeitos
(GONÇALVES FILHO, 2004:13). No que concerne às mulheres, a teoria feminista
demonstra que a identidade de gênero é construída social e dialeticamente: “uma
pessoa não nasce, torna-se mulher, por força das dinâmicas sociais e, em particular,
por oposição àquilo que a sociedade espera e confia ao masculino” (BEAUVOIR
apud SIMÕES, 2007: 09). O “tornar-se mulher” de Beauvoir inclui submeter-se à
“vara” da dominação masculina, uma vez que a opressão simbólica se exerce com a
intronização pelo dominado dos valores do dominador. É necessário, portanto, para
entender o aprendizado pelos homens da superioridade masculina e, pelas mulheres,
da submissão feminina, conforme afirma Leal na mesma direção de Bourdieu, ter em
conta “os efeitos duradouros que a ordem social exerce sobre as mulheres (e os
homens), quer dizer as disposições espontaneamente adaptadas a essa ordem que
lhes impõe” (BOURDIEU, 1999:32, grifo no original).
De todo modo, o hip-hop apresenta, contraditoriamente, para além de seu vigor
combativo contra representações simbólicas impostas ao povo pobre da periferia,
uma faceta que coaduna com a estereotipagem da mulher, reproduzindo os valores
dominantes.
Conscientes desta contradição, diversos grupos têm dedicado seu trabalho ao tema,
como é o caso do Projeto Minas da Rima, iniciativa de várias representantes do hip-
hop nacional: Lady Cris (Lady Rap), Rúbia (RPW/ Jogadorez), Sharylaine, Biba
Limeira e T. L. Queen. Formado em São Paulo, em 1999, a união das MCs foi moti-
vada especificamente pelas questões de desigualdades de gênero e raça:
com relação ao machismo no hip-hop, por ser um movimento libertário e que luta
contra todas as formas de opressão, o hip-hop se contradiz quando o assunto é mulher,
porém nada mais é do que reflexo de uma sociedade historicamente machista como a
nossa. Por esta razão a Minas da Rima atuam na intenção de discutir questões estrutu-
rantes das desigualdades como a questão de raça e gênero (MINAS DA RIMA apud
REVISTA SIBILA, s/d)
Embora o movimento hip-hop tenha amadurecido nos últimos anos, a reflexão acer-
ca do preconceito de gênero, as letras sexistas e o estilo “gangsta rap” difundidos na
mídia como sendo “o hip-hop”, deturpam o imaginário construído pelo grande
público acerca do movimento. Por desconhecer o hip-hop, a sociedade de um modo
geral toma a parte pelo todo e generaliza algo pontual, ou seja, a música depreciati-
va de gênero e de vulgarização da mulher como a única mensagem do HH. Com
isso, muitas barreiras são criadas para um aprofundamento e melhor conhecimento
do universo complexo do hip-hop pela sociedade.
244
Para além da questão da representação depreciativa da mulher, não raro, há um silen-
ciamento das vozes femininas do hip-hop. As poucas rimadoras têm se esforçado
para se consolidar no movimento hip-hop, num ambiente de trabalho predominan-
temente masculino. Em São Paulo, alguns relatos narram estas dificuldades que vão
desde o boicote nos ensaios até em apresentações em público. Em um episódio par-
ticular, pudemos presenciar o DJ atravessar as rimas da MC depois de duas músicas
num ato de expulsão sutil, porém eficiente, conseguindo, dessa forma, retirar a can-
tora do palco. Logo em seguida, o palco foi assumido por um homem
133
.
Para a MC Negra RO, em entrevista na internet, este silenciamento acontece porque
“os homens sabem que temos capacidade para chegar ao patamar deles, por isso aca-
bam atrapalhando o nosso trabalho” (apud FCL, s/d). Na mesma direção de Negra
Ro, uma voz masculina concorda:
a primeira relação do hip-hop com a mulher é o homem fazendo sucesso e querendo
comer todas as meninas. Aí vem a segunda relação: a menina cansou de ser comida
[...] e descobre que tem potencial pra fazer aquilo também, e conquistar o lugar, não
como uma mina que fica andando atrás do cara, mas uma mina que fica andando ao
lado do cara. Aí começa uma grande guerra, né? (RICHARD apud LEAL, 2007:299)
A grande guerra referida por Richard, produtor cultural e MC carioca, diz respeito a
alterações na estrutura de poder no hip-hop, quando a mulher passa a ter voz e pro-
duzir sentidos, saindo do lugar de submissão e de silenciamento que usualmente lhe
é imposto pelo patriarcado. Isto é, há um empoderamento das mulheres no hip-hop,
245
Minas da Rima, show em Ato pela Descriminalização do Aborto, São Paulo, 2005. Em Campinas, 2007.
Fotos: internet
133 Este episódio foi presenciado pela pesquisadora em uma apresentação, a convite da MC,
numa casa noturna em São Paulo, no primeiro semestre de 2007.
....................
com reflexos neste ambiente específico e na sociedade de um modo geral, colaboran-
do para que se tornem sujeitos de suas próprias histórias: “o hip-hop me deu uma
profissão, foi por causa disso que consegui meu primeiro emprego”, afirma ReFem,
MC carioca (apud REVISTA DEMOCRACIA VIVA, 2008).
Apesar das dificuldades narradas pelas mulheres do hip-hop, a percepção da discri-
minação de gênero não é uniforme pelo movimento, sendo majoritariamente narra-
da pelas vozes femininas. Um dos músicos entrevistados reconhece a pequena parti-
cipação feminina no hip-hop, todavia não atribui o fato a preconceito:
eu acho que não há preconceito não. Eu acho que há uma barreira entre homem e
mulher sim, eu acho que há uma barreira, mas preconceito eu acho que não. Todo
mundo gosta de ver uma mulher cantar, todo mundo gosta. No nosso disco participa
uma garota [...]. Ela canta três faixas do nosso disco. [...] canta muito, super vocal. Vem
cantar no nosso disco, por que não? Mulher... existe os caras do rap mais maduros e
mais toscos, ortodoxos, vamos falar assim, que não gostam mesmos e existem as pes-
soas que gostam, na minha opinião, a grande maioria. Mas tem pouca mulher fazen-
do hip-hop, então ela não aparece. No rap, a grosso modo deve ter 90% homem e 10%
mulher, desses 10%, 1% faz rap. Então, fica difícil. Acho que não tem preconceito não
(Entrevistado 3, 2007)
Uma vez que a dominação masculina é naturalizada, o sistema de desigualdades de
oportunidades se impõe sem o reconhecimento de seu funcionamento. Este mesmo
mecanismo foi incutido no Brasil no que tange às relações raciais. O mito da demo-
cracia racial adiou, por algumas décadas, o enfrentamento frontal ao racismo no país
(FERNANDES apud GUIMARÃES, 2003: 102). A mobilização da sociedade,
nomeadamente do Movimento Negro, e a produção de estatísticas com corte étnico
foram fundamentais para demonstrar as desigualdades de oportunidades entre bran-
cos e negros nas mais distintas áreas (saúde, educação, emprego, habitação etc.) nos
últimos trinta anos.
O silenciamento estrutural das mulheres atravessa diversas esferas do cotidiano e não
seria diferente nos meios de comunicação, onde persistem diferenças acachapantes
relativas às oportunidades de voz entre homens e mulheres na sociedade. Uma pes-
quisa feita na Espanha em 2005 sobre representação de gênero nos noticiários reve-
lou que apenas 21% das pessoas mencionadas nos telejornais são mulheres e que elas
compõem somente 26% do universo de entrevistados (SIMÕES, 2007: 72). Soma-se
a esta pequena fração de representação feminina que boa parte das mulheres não são
identificadas por nome, sobrenome e profissão, sendo sua fala restrita majoritaria-
mente a testemunhos de experiências pessoais. Ou seja, “a população feminina acaba,
assim, por constituir uma ‘ilustração’ da notícia” (ibidem: 73).
Esta desatenção à identificação das vozes femininas é recorrente e pouco percebida.
No documentário Hip-Hop com Dendê (2006), de Fabíola Aquino e Lílian Machado,
sobre o movimento hip-hop na Bahia, a MC paulista Negra Lee não mereceu uma
246
tarja de identificação como os demais entrevistados. Única mulher a falar, Negra Lee
teve apenas sete segundos nos cerca de quinze minutos de filme: “é nisso que eu acre-
dito, é por isso que eu canto rap, dentre os tantos estilos de música que hoje em dia
existem” (LEE apud AQUINO e MACHADO, 2006). Seu depoimento acabou por
ser utilizado somente para corroborar outras falas do filme ou como “ilustração”, à
semelhança do descaso com as mulheres pela televisão espanhola mencionada acima.
Entre os especialistas (jornalistas, sociólogos) convocados para este documentário,
não havia mulheres. O pouco espaço reservado às mulheres em Hip-Hop com Dendê
é tanto mais supreendente por ser a Bahia um dos estados no qual o hip-hop femi-
nista atua com bastante força, como veremos adiante.
Todavia, mesmo silenciadas, muitas mulheres têm encontrado no hip-hop um espa-
ço para denunciar o preconceito de gênero, tanto em relação às dificuldades do coti-
diano na sociedade de modo geral, quanto para a sua aceitação artística no hip-hop,
seja no rap, no grafitti ou no breaking. É o caso de grupos como Minas da Rima (SP),
Visão de Rua (SP), Atitude Feminina (DF), NegaAtiva (RJ), La Bella Máfia (RS), as
Anastácias (RS), RAP de Saia (RJ), para citar alguns.
Se por um lado as mulheres são literalmente silenciadas em seu canto, por outro os
homossexuais sequer existem, são completamente invisibilizados neste ambiente. O
silenciamento e a invisibilidade constituem sistemas diferenciados: o primeiro refe-
re-se à desigualdade e o segundo, à exclusão. Ambos são, de acordo com Boaventura
Santos, sistemas de pertença hierarquizada:
a desigualdade implica um sistema hierárquico de integração social. Quem está em
baixo está dentro e a sua presença é indispensável. Ao contrário, a exclusão assenta
num sistema igualmente hierárquico mas dominado pelo princípio da segregação: per-
tence-se pela forma como se é excluído. Quem está em baixo, está fora (SANTOS,
2006a: 280).
247
RAP de Saia (RJ); La Bella Máfia (RS); Atitude Feminina (DF).
Fotos: internet
Sob este prisma, as mulheres estão integradas no hip-hop (e na sociedade) numa hie-
rarquia inferiorizante, estruturada segundo uma desigualdade de poder entre homens
e mulheres. Entretanto, estas mesmas mulheres podem também ser excluídas, numa
combinação entre ambos os sistemas (de desigualdade e de exclusão), próprio do
sexismo, segundo apontado por Santos (ibidem: 281). Os homossexuais, por sua vez,
estão excluídos do hip-hop. Interditadas suas vozes e corpos no movimento, os
homossexuais são invisibilizados e segregados.
Não se trata de pretender que o hip-hop dê conta de abordar todos os problemas da
sociedade contemporânea, mas sim de trazer à tona um assunto que está nas entreli-
nhas de um universo bastante homofóbico. A homofobia no hip-hop não está decla-
rada em suas letras, mas se torna visível nas brincadeiras em momentos de descon-
tração, nas piadas e nas recusas de tocar em casas noturnas cujo público predominan-
te seja homossexual
134
. Embora o hip-hop seja bastante comprometido com
diversas causas que afligem a periferia e o povo negro deste país, tem deixado de lado
este tema, praticamente um tabu na periferia e no hip-hop.
Ativistas GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transexuais) sabem desse total desco-
nhecimento acerca da homofobia e do perfil dos homossexuais na periferia:
os homossexuais que não vão à Parada são exatamente aqueles homossexuais que estão
na periferia muitas vezes e, como muitos heterossexuais, não saem da periferia. E aí,
dizer que os homossexuais são ricos é mais injusto ainda com relação a esta popula-
ção, que nem visibilidade nenhuma tem. A gente não sabe o que as pessoas estão pas-
sando na periferia porque elas não saem de lá pra contar pra gente (FACCHINI apud
PRADO et al, 2008)
Contudo, embora possa parecer paradoxal o sexismo e a homofobia num movimen-
to que luta contra diversas formas de opressão, esta contradição é estruturante da
sociedade na qual vivemos:
a gente pode cair no grande erro de dizer que o hip-hop é que é machista. E criar uma
grande guerra entre os sexos [...] Então, vamos tentar entender o que é essa grande
sociedade machista em que a gente vive! A partir daí, a gente vai passar a enxergar o
papel da mulher na história [...] na resistência das Senzalas, da Casa Grande, qual foi
o sofrimento da mulher nativa e também da mulher africana, que foram estupradas
(MARA apud LEAL 2007: 302)
248
134 Um dos entrevistados narrou um episódio no qual foram convidados para tocar numa casa
noturna no centro de São Paulo, conhecida pelo amplo público homossexual. Após intensos debates
entre os integrantes do grupo, com opiniões divergentes, ficou decidido que não aceitariam o convi-
te. A justificativa era não vincular a imagem do grupo aos homossexuais, o que poderia, segundo este
julgamento, prejudicar seu relacionamento com o público do hip-hop de um modo geral.
....................
Mara, do grupo Amandula, segue destacando a ocultação do papel da mulher na his-
tória, inclusive das heroínas negras no período da escravidão, como Dandara,
Anastácia e Chica da Silva. No entanto, não basta a conscientização para levar a uma
emancipação da mulher, seja no hip-hop, seja na sociedade. É necessário um longo
trabalho no cotidiano, a fim subverter as estruturas dominantes inscritas nos hábitos
e nos corpos que historicamente subjugaram as mulheres. O que se nota é que, ape-
sar da pouca visibilidade e das dificuldades, de toda maneira, ao menos no que diz
respeito ao preconceito de gênero, o hip-hop tem amadurecido a discussão nos últi-
mos anos. O mesmo não se pode afirmar com relação à homofobia, cujo debate é
bastante incipiente ou quase nulo.
No projeto Mandando Fechado sobre Saúde e Sexualidade, coordenado pelas ONGs
Cemina e Redeh, foi usado o hip-hop para tratar de gênero e homossexualidade
junto à população jovem. Uma das músicas gravadas no CD resultante deste proje-
to trata da diversidade sexual e homofobia no hip-hop, em um tom bastante autocrí-
tico com relação ao movimento:
jovens agredindo homossexuais, que não podem nem mesmo andar nas ruas em paz /
no futuro há uma luz no fim do túnel / ainda não está perdido / pelo menos tudo /
gritamos que o preconceito é um problema / mas reproduzimos o mesmo jogo do
sistema [...] evolua sua mente, escuta o rap, assimila / pois nossa cultura é contra todo
o preconceito / aqui a escolha é sua, todos têm o seu direito / de ir e vir, tranqüilo sem
ser julgado [...] que movimento é esse que estamos participando? / que agride outros
seres humanos! / que porra de cultura é essa que estamos formando? / ao invés de unir,
estamos segregando! [...] respeito é a palavra chave cumpadi / cada um é de um jeito,
essa é a realidade / é preconceito com o preto, é preconceito com o gay / mas quem
sofre também é preconceituoso que eu sei / dentro do rap os mano tudo diz que mata
/ se pega / se igualando ao skinhead [...] mas fala sério! / quem é você pra julgar? / é
opção sexual / temos que respeitar / cada um faz da sua vida o que quiser / indepen-
dente se é preto, branco, homem ou mulher / chega de hipocrisia e abra a mente / pre-
conceito zero e vamos em frente (CACAU et al, O Julgamento, grifo nosso)
Para além de projetos específicos como este que funciona no Rio de Janeiro, a abor-
dagem do tema é bastante rara. Um dos poucos grupos a trazer a orientação sexual
para as músicas do hip-hop é o Munegrale, da Bahia. Estes temas são uma escolha
clara de orientação política assumida pelo grupo: “não somos apenas o feminino no
hip hop, mas as feministas no hip-hop” (PORTAL SOU DE ATITUDE, 2007), con-
forme afirma sua produtora. O Munegrale lançou, em 2007, a música “Eu Gosto
Dela
135
, cuja narrativa está em primeira pessoa e é cantada por uma mulher:
era um dia como todos os outros / na verdade era uma sexta-feira / eu me vesti de
branco / coloquei meu sapato de couro e minhas contas / coloquei minha alfazema e
249
135 O videoclipe está disponível em http://br.youtube.com/watch?v=2MWEJWC4VCw.
....................
fui visitar meu amor [...] olhei pra cima e percebi que meu amor estava na janela / eu
disse: amor! Rapunzel! Joga as tranças minha nega! / ela relutou e não olhou pra mim
/ então olhei de novo e disse bem alto / minha nega, isto aqui não é mais um conto
/ é preta, é lésbica e ponto! / eu gosto dela, ela gosta de mim, a gente tem um segre-
do que não fim (MUNEGRALE, Eu Gosto Dela).
De maneira poética e alegre o grupo começa uma batalha simbólica contra as repre-
sentações heterossexuais hegemônicas e o padrão imposto às mulheres no que diz
respeito ao casamento e à maternidade. Nesta música é contada a história de uma
menina (Maria) cuja mãe, homossexual, tenta criá-la fora dos padrões opressores do
universo heterossexual, no qual à mulher está destinado o “final feliz” com o casa-
mento.
Além dos questionamentos acerca do modelo familiar heterossexual, o hip-hop baia-
no tem se destacado pela relevância e amadurecimento nas discussões sobre sexismo,
por meio dos Encontros Anuais de Hip-Hop e Gênero. A terceira edição do encon-
tro ocorreu em 2005, no município de Lauro de Freitas e articulou mulheres do hip-
hop de cinco cidades baianas (Barra do Choça, Pau Brasil, Salvador, Vitória da
Conquista e Lauro de Freitas). Para os organizadores e participantes do encontro, este
é um importante processo de empoderamento das mulheres no hip-hop. No vídeo
documentário foi dada atenção especial à importância das referências femininas no
hip-hop e à forma como as mulheres têm feito o hip-hop à sua maneira e não segun-
do um modelo masculino
136
. Uma das primeiras falas do vídeo esclarece o
motivo do encontro:
gênero é tudo aquilo que foi construído a partir de uma cultura, a partir da sociedade.
Foi uma construção. Então, assim, quando a gente vem discutir gênero, nós queremos
discutir todas estas questões, essas relações de mulher com mulher, homem com
homem e homem com mulher (SUZANETE apud LIZ, 2005)
Suzanete, MC de Vitória da Conquista, como as demais vozes neste encontro, tem
um discurso alinhado com as teorias feministas, sob o tema principal da relação de
dominação masculina e do empoderamento feminino. O vídeo termina com os ver-
sos de Mara Asantewaa nos quais a questão de gênero é atravessada pelo debate sobre
o racismo, passando pela valorização das ancestralidades africanas e da mitologia dos
orixás:
belas africanas em cima na rima / na luta pelo resgate pela auto-afirmação feminina /
contra a discriminação machista / não é simplesmente um problema de auto-estima /
doença que facilmente contamina / seja nas Américas, na Europa, ou até na China /
da África do Sul até a Palestina / somos peças fundamentais na humanidade / o ser
250
136 A vídeo-reportagem sobre o evento pode ser acessada na internet em:
http://br.youtube.com/watch? v=z95s4_H1Uos&eurl
....................
que dá a vida e equilibra / o nosso poder é maior do que o da mulher-maravilha / da
mulher-gato ou até mesmo da She-ra / as nossas forças vêm dos nossos ancestrais / das
almas guerreiras e dos Orixás / laruey Exu / atoto eparrei odoiá / pelos poderes da
minha mãe Yemanjá / a minha espada é de Ogum / com descendência em Oxalá /
minha resistência é Africana / e a minha luta é contra a falsa supremacia machista,
racista e ariana (ASANTEWAA apud LIZ, 2005)
Ainda em 2005, aconteceu no Rio de Janeiro o encontro Dimensões de Gênero e
Raça no Movimento Hip-Hop, no qual uma das mesas de debate era sobre o tema
A Presença da Mulher Negra no Movimento Hip-Hop”. Um dos eixos principais
levantados pelos organizadores do encontro foi apontar que o sexismo disseminado
na sociedade e muitas vezes reproduzido no hip-hop tem conseqüências concretas na
vida de jovens mulheres, com a disseminação de DSTs (Doenças Sexualmente
Transmitidas), maternidade precoce e abandono dos estudos por imposição dos pais
ou companheiros.
Outra iniciativa carioca, naquele mesmo ano, liderada pela organização de mulheres
Cemina, foi a realização de oficinas pelo país em prol da eliminação da violência
contra a mulher. O resultado desse trabalho foi a gravação de um CD. Nestas ofici-
nas participaram homens e mulheres em torno da discussão da violência de gênero.
De acordo com um dos responsáveis pelo projeto, Fábio ACM, a principal impor-
tância deste tipo de iniciativa para as mulheres do hip-hop é “a possibilidade de
conhecer outras meninas de outros estados, com experiências e atuações diferentes.
Deste seminário saíram mulheres mais conscientes de seus direitos e com vontade de
multiplicar esses direitos para muitas outras” (ACM apud PORTAL VÍRGULA,
2005).
Na maioria das músicas do projeto há uma forte denúncia da violência de gênero,
incentivando as mulheres a romper o ciclo de violência. Uma das letras mais fortes
narra a história de uma jovem filha de pai alcoólatra, que vê no namorado uma chan-
ce de sair de casa. Aos poucos o parceiro se transforma em agressor, com o aumento
progressivo dos ataques contra a jovem. Sua esperança de paz familiar é anunciar a
gravidez ao companheiro que, entretanto, chega em casa embriagado e a agride vio-
lentamente. Segue abaixo a parte final da história:
tentei acalmá-lo, ele ficou irritado / começou a quebrar tudo loucamente lombrado /
eu falei que estava grávida ele não me escutou / me bateu novamente, mas desta vez
não parou / vários socos na barriga, lá se vai esperança / o sangue escorre no chão,
perdi a minha criança / aquele monstro que um dia prometeu me amar / parecia
incontrolável, eu não pude evitar / talvez se eu tivesse o denunciado / talvez se eu
tivesse o deixado de lado / agora é tarde, na cama do hospital / hemorragia interna /
o meu estado era mal / o sonho havia acabado e os batimentos também / a esperança
se foi pra todo sempre, amém / hoje o meu amor implora pra eu voltar / ajoelhado,
chorando, infelizmente, não dá / agora estou feliz, ele veio me visitar / é dia de fina-
dos, muito tarde pra chorar / hoje o meu amor veio me visitar e trouxe rosas pra me
251
alegrar / e com lágrimas pede pra voltar / hoje o perfume eu não sinto mais / o meu
amor já não me bate mais / infelizmente eu descanso em paz... / é muito importante
que o limite seja posto pela mulher (ATITUDE FEMININA, Rosas)
Em outra música está o incentivo à denúncia e à luta pelos direitos da mulher:
eu não quero ser mais uma vítima de espancamento / e ter uma ferida que não cicatri-
za por dentro [...] no outro dia é só cobrança / e o constrangimento do olhar da vizi-
nhança [...] lute pelos seus direitos / você é cidadã e merece respeito [...] o primeiro
tapa eu não revidei / vejam só a merda que eu criei (NEGRA RO et al, Marcas que
Ficam)
Vários pontos relevantes são tocados nestas letras: perigo real de morte como conse-
qüência da violência de gênero (“infelizmente eu descanso em paz”) e o constrangi-
mento e a vergonha diante dos amigos, parentes, vizinhos (“o olhar da vizinhança”).
A maioria das narrativas é em primeira pessoa, de modo a criar uma proximidade
entre os fatos e as ouvintes. Esta cumplicidade é fundamental para gerar uma identi-
dade de grupo, do mesmo modo que as outras temáticas do hip-hop abordam a ques-
tão do negro e da periferia.
A denúncia do grupo Atitude Feminina expõe a situação da violência contra a
mulher por seus companheiros sem eufemismos, indo ao encontro das teorias femi-
nistas que têm se esforçado para desconstruir algumas explicações tradicionais sobre
este problema: (a) que é um acontencimento anormal, extraordinário ou irracional;
(b) que está relacionado a fatores externos como guerra, pobreza ou desemprego; (c)
que há a transmissão intergeracional da conduta agressiva (violência como resultan-
te do ambiente). Com vistas a alterar radicalmente o quadro das explicações conven-
cionais para a violência de gênero, a investigação feminista vem demonstrando que
num mundo em que 70% das mulheres vítimas de homicídio são mortas por seus
companheiros (OMS apud SIMÕES, 2007: 26), esta agressão é um traço cultural-
mente aceito e, “por isso, deve ser entendendida no contexto do patriarcado” (ibi-
dem).
O combate à violência contra a mulher deve levar em conta a politização do espaço
privado, decorrente das lutas da segunda onda feminista, marcadamente com as
obras de Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo, 1949 [1ª ed], Paris); Betty Friedan (A
Mística Feminista, 1963 [1ª ed], Nova York); e Kate Millet (Política Sexual, 1970 [1ª ed],
Nova York). Esta última autora falou do patriarcado como sistema social opressor das
mulheres, em uma relação de dominação e subordinação. Resulta daí uma transfor-
mação das relações entre homens e mulheres, que passam a ser entendidas como rela-
ções políticas, demonstrando como as mulheres são um grupo oprimido tanto no
espaço público quanto privado (SIMÕES, 2007: 19).
O debate acerca da violência contra a mulher adentra um novo paradigma no início
dos anos 90. As feministas levam para a Conferência de Direitos Humanos em Viena,
252
na Áustria, em 1993, a demanda pelo reconhecimento dos direitos das mulheres
como direitos humanos. Como resultante do acolhimento da demanda feminista, é
abandonada a premissa de que apenas Estados Nacionais atentam contra os direitos
humanos, entendendo-se que agentes privados, inclusive maridos e companheiros,
realizam abusos contra os direitos humanos. Sob esta perspectiva, passa a ser consen-
so internacional que a violência contra a mulher não é natural ou justificável (COR-
REA, 2001). Em consonância com o debate feminista internacional, o tema dos direi-
tos humanos das mulheres está também presente nas oficinas sobre violência contra
a mulher e hip-hop, organizadas pelo Cemina em 2005.
direitos humanos para mim e pra você / direitos humanos é para nos proteger / direi-
tos humanos é direito de mulher / leis mais severas para os agressores é o que a gente
quer [...] a justiça em relação a essa mulher é falha / pois às vezes ainda estão em mãos
patriarcais / preferem condenar uma mulher à morte do que um homem à cadeia [...]
na real eles estão protegendo as suas próprias cabeças [...] sem se importar que a pró-
xima vítima poderá ser a sua própria filha [...] pra nunca mais eu ter que ouvir da boca
de um delegado / o que foi que você fez pra ele te bater? [...] o rap luta pelos pobres,
luta pelos pretos / mas onde é que está o rap na luta pelos meus direitos? / se o rap
hoje tem a minha voz e canta minha realidade / é porque as minas que são da rima /
têm o poder, a força e a liberdade (RE-FEM et al, Direitos de Mulher)
Neste trecho há um reconhecimento do direito humano como direito das mulheres,
contra uma tendência histórica do sistema judiciário dominado pelo patriarcado, que
culpabiliza a mulher (“o que foi que você fez pra ele te bater?”) e na direção da com-
preensão do hip-hop como possível instrumento de empoderamento para as mulhe-
res (“porque as minas que são da rima têm o poder, a força e a liberdade”). Re-Fem
(Revolta Feminina), uma das autoras da letra, é uma referência importante no hip-
hop carioca e na defesa das mulheres. Para ela, hip-hop e ativismo artístico não se
separam (apud REVISTA DEMOCRACIA VIVA, 2008)
137
. Em conjunto com
a MC Queen, Re-Fem gravou, em 2005, um documentário tendo em vista dar visi-
bilidade à participação das mulheres no hip-hop do Rio de Janeiro. Mapeando todo
o estado, a dupla conseguiu reunir vinte grupos e artistas solos em torno dos seguin-
tes assuntos: rivalidades (entre homens e mulheres); postura da mulher no hip-hop;
sexualidade no hip-hop; e relação familiar
138
.
Na região norte do país, em Belém, o Fórum Estadual de Hip-Hop de 2002 incluiu
a questão das mulheres entre os seus três principais assuntos: Movimento Negro,
Partidos Políticos e Gênero. Nas deliberações finais do fórum, diversos pontos foram
aprovados por consenso concernentes a este tema: (a) representar positivamente as
253
137 uma entrevista com Re.Fem, gravada pela TV Rio, está disponível em:
www.youtube.com/watch?v=A1l wSA HwCk4
138 É possível ver o trailler do documentário em: www.youtube.com/watch?v=p_r5Fihzz6A.
....................
mulheres nos eventos promovidos pelo movimento hip-hop; (b) criar, com parceiros
e simpatizantes do movimento hip-hop, um núcleo de formação sócio-política para
capacitação e garantia da igualdade de direitos na diferenciação de gênero; (c) lançar
e divulgar nacionalmente, em nome do fórum, um manifesto contra os meios publi-
citários que colocam a imagem da mulher de maneira estereotipada e negativa; (d)
promover debates para ressignificar os conceitos, abordagens e apresentações das
mulheres ligadas ao hip-hop; (e) estabelecer uma cota de participação de 50% para as
mulheres de qualquer atividade até as apresentações de palco, quando promovidas
pelo movimento hip-hop.
No Fórum de Belém do Pará ficou evidente, de modo diverso dos outros estados,
uma preocupação do hip-hop no que tange a ações afirmativas e cotas para mulhe-
res. A importância de ações afirmativas está em reconhecer e equilibrar discrimina-
ções sociais, impedindo que se perpetuem. Neste sentido, desde os anos 70 o movi-
mento feminista vem lutando pela ampliação da representação feminina no sistema
político, defendendo o sistema de cotas.
No Brasil, a experiência de cotas para mulheres na representação político-partidária
foi instaurada pela primeira vez em 1996
139
, com resultados tímidos (BOCHE-
NEK, 2008: 12). Ao contrário do esperado, o número de mulheres eleitas diminuiu
após a adoção das cotas. Embora os partidos tenham aumentado o número de can-
didatas, isto não significou que o eleitorado tenha votado mais nas mulheres, já que
a escolha do voto passa pelo crivo cultural. O país apresenta o pior resultado da
América do Sul no ranking do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
– PNUD acerca da representatividade feminina no parlamento, ocupando o 122
o
lugar no ranking mundial, entre 168 países (apud BOCHENEK, 2008: 07).
De qualquer maneira, as linhas teóricas que defendem o uso das cotas tendem a
baseá-lo no princípio da presença, isto é, há que se aumentar a presença físico-corpo-
ral das mulheres na vida pública para que o preconceito seja eliminado ou, ao menos,
diminuído (PHILLIPS, 2001). Todavia, este é um critério quantitativo e não qualita-
tivo, o que significa que não necessariamente as mulheres eleitas teriam qualquer
ligação com o movimento ou com a causa feminista. Anne Phillips, importante refe-
rência na teoria política feminista, referindo-se, em artigo recente, à sua obra The
Politics of Presence (1995) demonstra que:
embora a política de idéias seja um veículo inadequado para tratar da exclusão políti-
ca, há pouco que se possa ganhar simplesmente pendendo para uma política de pre-
254
139 Desde a lei 9.100/95 ficaram estabelecidas cotas para as mulheres nas eleições municipais de
1996, limitando a um mínimo de 20% das vagas de cada partido ou coligação para candidatas mulhe-
res. Este percentual foi alterado pela Lei 9.504/97, passando a 30%. Esta mesma lei ampliou o esco-
po das cotas também para âmbito o estadual e federal.
....................
sença [...] A maior parte dos problemas, de fato, surge quando as duas são colocadas
como opostos mutuamente excludentes: quando idéias são tratadas como totalmente
separadas das pessoas que as conduzem; ou quando a atenção é centrada nas pessoas,
sem que se considerem suas políticas e idéias (PHILLIPS, 2001: 22)
A autora sugere, portanto, a necessidade de uma relação entre idéias e presenças para
alcançar “um sistema justo de representação, não numa oposição falsa entre uma e
outra” (ibidem: 22). Neste sentido, a reinvidicação do Fórum de Belém, apesar de sin-
tonizada com as demandas do movimento feminista, merece ser aprofundada na dis-
cussão acerca da política da presença como instrumento eficiente no que tange à
diminuição da discriminação de gênero no hip-hop. No entanto, é inegável haver um
efeito pedagógico válido na proposição, uma vez que pode impulsionar o debate
interno sobre as desigualdades de gênero.
Por sua vez, a exigência de representação positiva da mulher nos eventos de hip-hop,
outro ponto deliberado pelo Fórum de Belem, trava uma batalha simbólica direta
com as imagens hegemônicas depreciativas exibidas pela mídia e pela publicidade em
geral, não exclusivamente do hip-hop. Neste caso, lutar pela presença positiva (não
qualquer presença) da imagem da mulher na mídia pode, de fato, colaborar para o
início de uma reversão do preconceito reiterado simbolicamente ou, ao menos,
refrear a sua perpetuação.
Em síntese, no cenário atual de mobilização em torno das mulheres no hip-hop, têm
sido defendidas duas linhas de ação: empoderamento das mulheres e denúncia da
violência praticada pelos homens. O empoderamento é um tema bastante caro à teo-
ria feminista, especialmente a partir dos anos 90. Magdalena León (2000) defende
que se o debate acerca de “poder” ocupa um lugar central nas teorias sociológicas ele
deve ser incorporado pelas feministas. A despeito do uso variado e, muitas vezes, dis-
torcido, nos últimos quinze anos, do conceito de empoderamento, ainda hoje em dia
é um tema central na discussão sobre a transformação das estruturas patriarcais na
sociedade.
No hip-hop feminista, fala-se em dar poder e emancipar a mulher, ou seja, defende-
se que as mulheres adquiram o controle sobre suas próprias vidas e decisões. Há, con-
tudo, um paradoxo no próprio conceito de empoderamento, identificado por León:
é possível empoderar (ou dar poder) os outros? (2000: 203). O que tem se notado
no hip-hop nacional é que atualmente questões como saúde sexual e reprodutiva e
violência contra a mulher, estão pouco a pouco ganhando espaço na agenda do
movimento, mesmo que em locais pontuais como Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo.
Nestes casos, o poder não é “dado” às mulheres do hip-hop, pelo contrário, é um
espaço que vem sendo batalhado e criado por elas. Por conseguinte, é possível afir-
mar que há empoderamento das mulheres no hip-hop, cujos desdobramentos podem
vir a ser uma emancipação das mulheres na sociedade, a partir das comunidades de
base do movimento hip-hop. Há que se observar o amadurecimento desta discussão
nos anos vindouros.
255
Outro aspecto positivo da presença feminina no hip-hop está em alterar paulatina-
mente, por intermédio da amizade entre os grupos, “a postura preconceituosa dos
homens com relação às mulheres” (SOUZA, 2006: 17), como demonstra Patrícia de
Souza em artigo específico sobre mulheres jovens e hip-hop.
Se por um lado as vozes silenciadas têm conquistado espaço neste universo essencial-
mente masculino, por outro lado há ainda um longo caminho para a recuperação das
vozes que foram invisibilizadas. A homofobia está quase que totalmente ausente do
debate no hip-hop, não obstante estar presente nas práticas cotidianas dos grupos e
de jovens por toda a periferia.
Tendo em vista a força emancipatória na batalha contra-hegemônica travada pelo
hip-hop, é importante que estes trabalhos corajosos emergentes em algumas cidades
e estados consigam generalizar os debates para o hip-hop nacional acerca do sexismo
e da homofobia. Vislumbra-se, deste modo, um amadurecimento do movimento e
de seu público na ampliação do espectro da luta contra representações simbólicas
dominantes e pela construção de uma periferia e uma sociedade mais justas.
256
MCs Lica e Titã, do grupo La Bella Máfia. Grafiteira Pan e bgirls Isis e Natasha, no programa Manos e
Minas, 2008.
Fotos: internet (1) e Andréia Moassab (2 e 3).
257
140 Z’África Brasil, Hip-Hop Rua.
140
conclusão
Ao iniciarmos este trabalho buscávamos verificar se os processos de comunicação
subalternos, desconsiderados pelos padrões comunicativos hegemônicos, eram capa-
zes de se consolidar como meios importantes de produção e partilha de conhecimen-
to no cenário nacional. A comunicação, sob este aspecto, seria o cerne de consolida-
ção dos movimentos de resistência, daí optarmos por investigar o movimento hip-
hop a partir das letras das músicas, dada sua alta capilaridade nas periferias de todo
o país.
Desta maneira, nos debruçamos sobre o objeto de pesquisa a partir das teorias da
comunicação, em conjunto com a sociologia. Neste trajeto foram fundamentais os
conceitos de ecologia de saberes, sociologia das ausências e o pensamento pós-abis-
sal de Boaventura de Sousa Santos (2006a; 2007b); os estudos de Foucault (1979;
2000) sobre poder, sociedades disciplinares, sociedades de controle e sistema prisio-
nal; as teorias feministas sobre empoderamento (LEON, 2000); o conceito de multi-
dão, desenvolvido por Antonio Negri e Michael Hardt (2005); e foram levadas em
conta as teorias de Deleuze e Guattari (1995; 1997) sobre máquinas de guerra/apare-
lhos de captura.
É certo que ao longo do percurso nos deparamos com diversas questões que merece-
ram aprofundamento, como o processo de segregação espacial e a formação das peri-
ferias nas grandes cidades brasileiras (VILLAÇA, 2001); as relações raciais e o modo
como elas são estruturadoras de desigualdades socioeconômicas (GUIMARÃES,
1999; 2003); a organização do sistema penal e carcerário, cujo corte étnico e econô-
mico é evidente (ADORNO, 2002; ANDRADE, 2003); e, finalmente, como a mídia
apresenta todas estas questões, sob o viés do pensamento dominante. Neste sentido,
os meios de comunicação exercem um papel fundamental na perpetuação das estru-
turas dominantes que historicamente organizaram a sociedade brasileira e estão, nas
últimas décadas, em profunda consonância com os interesses globais hegemônicos.
Desta maneira, a primeira parte da tese esclareceu aspectos históricos do movimento
hip-hop, desde sua gênese nos subúrbios estadunidenses até sua consolidação políti-
co-cultural no país, dos anos 90 até os dias atuais. É relevante para o hip-hop, no
Brasil, a sua aproximação com o movimento negro e suas demandas concernentes à
ressignificação da história do povo afrodescendente. A questão territorial é outro
aspecto relevante, uma vez que toda a organização do hip-hop tem forte ligação com
os bairros precários e afastados nos quais vivem majoritariamente as populações
pobres. No capítulo 2 investigamos como os conceitos de resistência, empoderamen-
to e emancipação estão relacionados com o hip-hop e como este desenha o que
denominamos “microfísica da resistência”.
A segunda parte da tese é focada naquilo que concerne à produção simbólica no
mundo contemporâneo, especialmente centrada nas construções midiáticas. No ter-
259
ceiro capítulo examinamos como se estabelece o campo de batalha simbólica do qual
o hip-hop faz parte, em particular, nos aspectos que lhe dizem respeito: juventude,
violência, movimentos sociais e relações raciais.
Terminamos esta investigação indicando como o hip-hop constrói uma comunicação
insurgente, recolocando simbolicamente os principais aspectos deturpados pela
mídia hegemônica no que tange à população negra, pobre e moradora dos bairros
periféricos. Neste sentido, agrupamos em quatro questões centrais a produção temá-
tica do hip-hop: a construção da identidade e as narravitas do cotidiano; a violência
policial; a globalização; e, por último, as relações de gênero.
Resulta que a construção da identidade é complexa, transitando entre diversos aspec-
tos, envolvendo as questões étnicas (negro), de classe (pobre) e territoriais (periferia),
em projetos de identidades políticas (CIAMPA, 2002), em que autodenominar-se é
distinto de ser designado (ZIGONE, 2006). Deste modo, a identidade é uma ação
política em constante transformação que escapa das políticas de identidade “folclo-
rizantes”, caras ao multiculturalismo (ZIZEK, 2006). Reescrevendo a história do povo
negro e migrante por meio das narrativas do cotidiano, são traçadas as identidades
complexas do hip-hop.
A violência e o racismo policial são temas fulcrais: diversas são as denúncias e os rela-
tos de um cotidiano de relações tensas com a polícia, na qual jovens em atividades
corriqueiras, como jogar futebol ou passear com os amigos, podem ser revistados,
enquadrados ou presos. Nas periferias, como apontou Sabotage (apud FERREIA et
al, 2004), as crianças aprendem, paradoxalmente, a se proteger da polícia, aos invés
de serem por ela amparadas. Para além de relatos há também a ressignificação sim-
bólica da periferia e a reescrita da história dos povos negros originários da África. A
globalização e seus efeitos devastadores sobre os menos favorecidos (com aumento
do desemprego, da pobreza, da precariedade) é outro aspecto contemplado nas ativi-
dades de diversos grupos do hip hop.
Finalmente, encerramos esta trajetória investigando as relações de gênero e orienta-
ção sexual no movimento. Na medida em que o hip-hop se posiciona e luta contra
as diversas formas de opressão social, qual é a sua maneira de lidar com questões de
gênero e sexualidade? Verificamos que em grande parte o movimento não conseguiu
superar a discriminação de gênero, reproduzindo os padrões da sociedade patriarcal.
Contudo, diversas são as mulheres e grupos femininos e feministas que têm conquis-
tado um espaço neste universo, lutando pelo empoderamento e emancipação das
mulheres no hip-hop e na sociedade de modo geral. Por outro lado, estão bem menos
avançadas as questões concernentes à homofobia, constatada, sobretudo, no dia-a-dia
das comunidades e dos grupos, menos do que nas mensagens e nas letras das músi-
cas.
260
• Brasil Periferia(s): a comunicação insurgente do hip-hop
Em seu livro Ninguém é Inocente em São Paulo, Ferrez explica que seus contos têm ori-
gem em um “mesmo ambiente, de um mesmo país, um país chamado periferia”
(FERREZ, 2006:10). Nesta tese discorremos sobre este país, procurando amplificar a
sonoridade destas vozes silenciadas, as quais narram suas experiências e controem a
sua versão da história, diferente daquela contada pelos Mesmos midiáticos. São todos
pontos de vista de um mesmo país, cindido pela imensa desigualdade social e de
oportunidades. Ao confrontar o discurso dos meios de comunicação hegemônica
com a versão escrita ou cantada pelos Outros estamos expondo esta fratura e fazen-
do emergir a dialética da marginalidade (ROCHA, 2006): a ruptura do marginal ao
invés da cooptação do malandro. Ruptura e cooptação, todavia, não se excluem, co-
existem em constante tensão.
Alguns MCs e grupos apontam para uma mudança drástica rumo ao mercado, con-
forme declaração de Thaíde: “antes pra mim o hip-hop era só consciência. Hoje,
além de consciência, o hip-hop também é negócio. E um negócio muito lucrativo”
(THAIDE apud BOCADA FORTE, 2007). Neste cenário, fica a pergunta: é possível
conciliar denúncia do sistema ao mesmo tempo em que há a necessidade de sobre-
vivência imersa nele?
Há quem diga que por isso o hip-hop morreu, pois não foi capaz de propulsionar as
mudanças que intensionava há vinte anos. Preto Zezé, da Cufa-Ceará, se questiona
com esta pesquisadora em conversa online: “que referência tem um jovem cantor de
rap que mora numa casa caindo aos pedaços? Que referência é para meu filho, um
jovem que passa fome, mas acha que dançar break é a revolução? Isso é desumano”.
Na mesma direção, Kall, da Conceitos de Rua, relata em troca de email:
Pois hoje, essa noção de hip-hop é um romantismo, para uma pequena “elite”, ou
melhor, um grupo cada vez mais pequeno, do que a massa, que nem sabe e nem enten-
de, essa tal cultura HipHop... pois está com ouvidos na música...o RAP...que tem um
conteúdo próprio, e se afasta do que se chama hip-hop...isso não é só no Brasil, mas
no mundo todo... aliás é muito comum ver hip-hop como estilo musical e não como
cultura... (KALL, 2008: comunicação pessoal)
A desilusão povoou estas conversas. Não é muito diferente da desesperança de
Ferrez, exposta por meio dos pensamentos de um personagem jornalista, bem nasci-
do, no conto “Pegou um Axé”: “e no final esse pessoal do hip-hop acha que pode
mudar as coisas. Não podem nem pagar a pensão pros filhos e querem mudar algu-
ma coisa” (FERREZ, 2006: 59).
No entanto, vejo o trabalho do próprio Kall, na Conceitos de Rua; da Cufa, organi-
zação da qual Preto Zezé faz parte; da Força Ativa, núcleo cultural na zona leste; da
261
Casa de Cultura de Diadema sob o comando de Nino Brown; os meninos do
Z’África Brasil ou do Núcleo, com tanta coisa ainda por falar e nos mostrar das coi-
sas que conhecem; a arte despontando no extremo sul de São Paulo com o Sarau da
Cooperifa, Sarau do Binho, Samba da Vela, Panelafro, Cine Becos e Vielas, entre
outros; Ferrez, MV Bill e André du Rap, MCs e escritores; Dexter, que de dentro do
presídio tem concedido entrevistas marcantes
141
; o recente programa Manos e
Minas, comandado por Rappin’Hood na TV Cultura, com música, graffiti, dança e
muita informação; Alessando Buzo, em seu quinto livro, firme no evento de hip-hop
que produz na zona leste, Favela Toma Conta, e responsável por um quadro no pro-
grama de Rapin’Hood, no qual mostra na televisão aberta, bairros da cidade total-
mente desconhecidos por parte da população
142
. De fato, nem tudo isso é hip-
hop, porém todos em conjunto constroem coletivamente a “consciência”, um dos
elementos estruturadores do movimento, de maneira que estas ações são atravessadas
pelo hip-hop ou foram por ele influenciadas, convivendo em intenso diálogo.
262
141 Um pequeno trecho pode ser conferido no trailer do filme Favela no Ar (FERREIRA, 2007),
disponível em: www.youtube.com/watch?v=UCJBUS6YhN8.
142 Os quadros comandados por Alessandro Buzo, Buzão – Circular Periférico, podem ser vistos
no youtube. No Anexo estão disponíveis algumas edições.
....................
Cartaz do 17º Favela Toma Conta, 2008. Alessandro Buzo entrevista MV Bill na Cidade de Deus (RJ)
para o quadro Buzão Periférico, da TV Cultura, 2008.
Foto: Marilda Borges.
Talvez não seja a revolução conforme esperançava quem trilhou esta batalha há vinte
anos. É um outro tipo de transformação, apontando possibilidades de mudanças nas
pessoas e nas comunidades, como afirmou um dos MCs entrevistados:
Daí pra cá a música me tomou por inteiro. Eu já tinha saído da vida que eu levava lá
pra baixo, na biqueira, e hoje em dia a música fez com que eu encontrasse quem eu
sou, lapidou um pouco minha personalidade, me trouxe responsabilidade e me dá um
pouco de dignidade. E é isso aí. (Entrevistado 5, 2007)
Ferrez, ainda que desesperançado, segue acreditando em seu trabalho, conforme rela-
ta em uma carta/conto:
continuo andando Pai, e por isso nunca mais deu tempo pra gente se falar, eu conti-
nuo de escola em escola, de entidade em entidade, de show em show, tentando espa-
lhar informação, tentando cultivar o prazer de ler e de buscar algo melhor, e sei que o
senhor também me apóia e torce para que um dia nós todos, brasileiros sofredores,
lutemos com as armas certas, um livro, um caderno e um lápis [...] (2006: 81).
Com efeito, toda a lógica do capitalismo selvagem urge por transformação: tudo é
produto e mercadoria; o individualismo se sobrepõe punjentemente sobre o coleti-
vo; o competitivo é mais valorizado do que o cooperativo. Pessoas são mercadorias,
desde o trabalho escravo ao tráfico internacional de mulheres para fins de exploração
sexual; imigrantes são despossuídos de sua humaninade pelo simples fato de não
estarem documentados; massas de trabalhadores são demitidas repentinamente com
os deslocamentos das grandes indústrias; cidades inteiras vão à falência, lançando
milhares ao desemprego, à fome, às ruas.
O Brasil, ao olhar estrangeiro, é uma imensa periferia global, para os lusófonos, nossa
língua é um português errado e mal falado, para os demais, o próprio português é
uma língua exótica. Em Portugal ouvi que lá eles não têm periferia (excluindo sim-
bólica e semanticamente do mapa os milhares de moradores dos arredores de Lisboa
e Porto) ou que aqui as campanhas antitabaco com imagens fortes nos maços de
cigarro funcionam bem porque somos um país de analfabetos. Neste silogismo sim-
plista é ocultada a força da imagem na cultura contemporânea e não se toma em
conta, que apesar das taxas de analfabetismo (em torno de 13%), somos aproximada-
mente 120 milhões de letrados (IBGE, 2001). Sem mencionar o que já expusemos
em outra parte, as mulheres brasileiras que na visão colonial androcêntrica são todas
vulgares e sexualmente disponíveis (MOASSAB, 2008a). Este é um pouco do Brasil
Periferia, o Outro sob a ótica dos Mesmos globais.
GOG canta em seus versos “Brasília Periferia”, aquilo que há de ruim (“estupros,
assaltos, fatos corriqueiros”) e de bom (“depois bater um rango na fonte do bom pala-
dar / curtindo com Sandrão e Tonhão / ouvindo discos do batuque / que na madru-
gada rolava no galpão tarugue / A candanganha e o bambam sempre tiveram que
tempo bom”) na região onde vive.
263
Nesta tese passeamos pelo Brasil Periferia(s), este imenso arquipélago de periferias,
diferente daquele todo homogêneo do olhar estrangeiro. Somos quase 140 milhões
de brasileiros moradores de áreas urbanas, dos quais mais da metade (78 milhões)
estão concentrados nas 23 regiões metropolitanas e três regiões integradas de desen-
volvimento do país (IBGE, 2007). Se considerarmos apenas as seis maiores regiões
metropolitanas (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e
Salvador), apesar de o percentual de famílias pobres ter diminuído, desde 2002 de
35% para 24%, ainda são quase 12 milhões de famílias pobres, isto é, famílias com
renda mensal per capita de até meio salário mínimo (R$ 207,50) (IPEA apud G1,
2008).
Transformar este país de números abstratos, de tão imensos, e simultaneamente tão
reais, posto que encorpados em pessoas que sofrem cotidianamente as agruras da
pobreza, é tarefa hercúlea. Carolina de Jesus, escritora, pobre e negra, com suas pala-
vras contundentes, escritas nos anos 50, expõe cruamente a dura vida sob condições
precárias: “se eu pudesse mudar desta favela! Tenho a impressão que estou no infer-
no [...]13 de maio – Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o
dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. E assim no dia 13
de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!” (DE JESUS, 2007:
27 e 31). Escravos da fome e da pobreza são os habitantes das periferias, que o hip-
hop dignamente ressignificou em guerreiros da resistência, em quilombolas contem-
porâneos. Não há tempo para a passividade, os quilombolas estão em guerra para
afirmarem-se como agentes de transformação social, mudando as periferias, sem
mudar de lugar: “quem tiver vergonha de ser da periferia pode ir embora agora [...]
Não há espaço para a mediocridade [...] Viva o Povo da Periferia!!!!” (VAZ apud
PEREIRA, 2007). A luta é por reconhecimento, visibilidade, voz, ação e transforma-
ção.
Desta maneira, procuramos demonstrar, ao longo desta pesquisa, a capacidade trans-
formadora de práticas sociais protagonizadas de dentro para fora ou pelos “de baixo”,
segundo Milton Santos (2001). São milhares de pequenas ações espalhadas pelas peri-
ferias, constituindo heterotopias: “lugares centrais de relações emancipatórias”, como
escreve Boaventura Santos (SANTOS, 2007a: 271).
A comunicação insurgente do hip-hop é, por conseguinte, uma ação crítica. Prado
(2006b), a partir de sua leitura da obra de Judith Butler, afirma que “a crítica não é
um manual que tudo recusa [...] trata-se de uma prática desnaturalizadora, descons-
trutora no concreto de cada texto e prática, apontando para novas configurações dos
objetos comunicacionais” (PRADO, 2006b: 37). O autor sugere que “ao invés de
produzir, por exemplo, manuais de crítica midiática, deveríamos construir experiên-
cias desconstrutoras de visões naturalizadoras das culturas, visões estas que circulam
socialmente e aparecem incorporadas nas mídias hegemônicas, integradas ao biopo-
der” (ibidem). O hip-hop, enquanto prática contra-hegemônica, vem construindo
264
aquilo que foi proposto por Prado: “experiências desconstrutoras de visões naturali-
zadoras das culturas” (ibidem).
Ampliar o campo da comunicação, de modo a incluir fenômenos comunicacionais
não restritos à mídia, traz outro aporte de conhecimento aos meios acadêmicos,
importantes para agregar esforços na batalha contra-hegemônica. Afinal, a universi-
dade é um dos pilares de construção de um país, no qual são formados pensadores,
professores e profissionais das próximas gerações. Inserir o hip-hop enquanto fenô-
meno comunicacional sob esta perspectiva é vislumbrar uma possibilidade de
mudança dentro dos auspícios majoritariamente conservadores dos estudos acadêmi-
cos. Defendemos, em outra ocasião, que o lugar das ciências sociais e humanas na
universidade do futuro deve ser pensado a partir de uma ecologia de saberes. Nesse
rumo, acreditamos caber às humanidades a função de tutoras para fazer valer dentro
da universidade os diversos conhecimentos que ao longo de séculos foram negligen-
ciados pela ciência hegemônica moderna (MOASSAB, 2008b).
Historicamente as primeiras universidades originárias do modelo contemporâneo
foram implantadas na Europa, no final da idade média, coligando projetos ligados às
monarquias e ao clero. Voltadas para ensino, pesquisa e produção de saber, os inte-
resses das universidades estiveram profundamente ligados aos jogos de poder social,
seja à Igreja ou à razão, conforme concebe Kant, à cultura, segundo definições de
Humboldt, e, atualmente, ao mercado (BELLEI, 2006: 53). Nascida da instituciona-
lização do ensino, sua prática não estava voltada para a emancipação social, outros-
sim para a formação de elites educadas, com vistas a ocupar cargos nos quadros de
Estado e outras instituições. Com o avanço do modo de produção capitalista, a uni-
versidade é um dos lugares privilegiados de produção e reprodução do paradigma
cultural da modernidade. Contudo, o ensino superior sempre foi central ao desenho
de valores do Estado, pautando sua missão sob o prisma da função social e nacional.
A partir dos anos 60 e adotando-se como marco as revoltas estudantis de maio de
1968 em Paris, as perspectivas kantianas da razão e humboltianas da cultura têm sido
rapidamente substituídas por preceitos basilares à eficácia de mercado (ibidem).
Neste sentido, as humanidades perdem verbas e espaço em detrimento dos saberes
das ciências exatas, nomeadamente as engenharias e as novas tecnologias. O saber
científico supostamente objetivo e neutro subsidia a formação de técnicos mais vol-
tados ao aumento da eficiência e da eficácia, segundo padrões de medidas da produ-
tividade capitalista, e cada vez menos aptos à reflexão crítica destes próprios padrões.
O avanço dos valores de mercado, acirrados especialmente nas últimas décadas com
a consolidação da globalização neoliberal, tem penetrado diversos espaços da vida
social e não é diferente na universidade:
se invertem hierarquias de forma a privilegiar administradores mais do que docentes e
pesquisadores; enfatiza-se a percepção do aluno como consumidor e do professor
(devidamente rebatizado como “servidor”) como vendedor de pacotes prontos para
265
entrega; e, por fim, institui-se a redução drástica do que se conhecia anteriormente
como educação, ou seja, a formação ética do indivíduo para a cidadania e para o exer-
cício das práticas sociais responsáveis, a formas rápidas e “produtivas” de adestramen-
to. (ibidem: 57, aspas no original)
Com efeito, neste ambiente resta pouco espaço para saberes e conhecimentos não
científicos, dotados de outras temporalidades e cujos padrões de medições diferem
daqueles usualmente aceitos pela racionalidade cognitivo-instrumental, ligada direta-
mente ao princípio de mercado para o qual individualismo e concorrência são cen-
trais (SANTOS, 2005a: 77). A maneira de criar teorias reprime, deslegitima, desacre-
dita e invisibiliza conhecimentos próprios (SANTOS, 2006b: 46). Este modelo de
produção e transmissão de conhecimento está fundamentado sob os moldes da “edu-
cação bancária”, criticada por Paulo Freire, na qual o educando é considerado esva-
ziado de conteúdo e o educador, o responsável pelo seu preenchimento (FREIRE,
2006). A educação bancária é a pedagogia ideal para a lógica quantitativa que carac-
teriza a “universidade da excelência” (BELLEI, 2006: 58), na qual áreas como huma-
nidades, literatura, filosofia e artes perdem espaço por desrespeitar “a exigência bási-
ca determinada pela ‘excelência’ ”, ou seja, “a exigência de proteger o poder burocrá-
tico e o gerenciamento contábil”, devendo, “no limite, ser excluídas” (ibidem: 59,
aspas no original).
É deste modo que a universidade construiu ou colaborou para aquilo que
Boaventura Santos designa por “monocultura do saber”. Para o autor, esta é uma das
formas mais poderosas de produção da não-existência, ou seja, tudo aquilo que está
fora dos critérios de verdade da ciência moderna é desqualificado, desprezado e invi-
sibilizado de modo irreversível (2006a: 102). A universidade é uma das instituições
através da qual os cânones da ciência se consolidam como exclusivos da produção de
conhecimento. Qualquer conhecimento produzido fora dos domínios da ciência e,
conseqüentemente, da universidade, sob este prisma é classificado de “ignorância”. A
ciência moderna, ao arrasar, marginalizar ou descredibilizar conhecimentos, é um
grande instrumento epistemicida, atuando em conjunto com a colonização e o impe-
ralismo. Todos estes aparelhos epistemicidas ocultaram as diversas formas de opres-
são da modernidade: o racismo, as castas, o sexismo e o colonialismo. A mudança
paradigmática proposta por Santos contempla uma ecologia de saberes, a qual deve
necessariamente reconhecer a pluralidade de saberes heterogêneos (ibidem: 157). As
populações historicamente silenciadas são partes constitutivas da chamada ecologia
de saberes necessária para a transição paradigmática rumo à suplantação do conheci-
mento de regulação pelo de emancipação.
Para se redesenhar outra concepção de universidade menos conectada aos desígnios
de mercado e mais voltada para a emancipação social dos cidadãos, é necessário tra-
zer a ecologia de saberes para dentro das universidades. Isto significa reinstrumenta-
lizar a prática universitária, ou seja, apreender novas maneiras de construção de
266
conhecimento, menos pautadas pelas medidas padronizadas pela racionalidade cong-
nitivo-instrumental. Se as ciências exatas foram responsáveis pelo desenvolvimento
do modelo atual de educação e produção científica, é possível que as humanidades
sejam a área de conhecimento mais adequada para fazer da ecologia de saberes uma
prática universitária. Contudo, desenhar um modo de construir conhecimento den-
tro de um modelo estruturalmente preparado para as convenções de medida atuais,
não é tarefa simples.
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira – INEP organizou, de
2004 a 2006, diversos simpósios acerca do Plano Nacional de Educação. Um deles
versava exclusivamente sobre Universidade e Compromisso Social sob a ótica das
políticas de Estado direcionadas para o ensino superior e a sua relação com a eman-
cipação social. No centro do debate estava a relação entre um sistema de ensino supe-
rior pequeno, excludente e catedrático, em contraposição a um sistema inclusivo,
diversificado e democrático. Está assente nesta relação uma tensão entre aqueles que
defendem a universidade como um “lugar onde pessoas altamente inteligentes e rigo-
rosamente selecionadas convivem com os melhores doutores e mestres” (RISTOFF e
SEVEGNANI, 2006: 12) e outros que entendem o ensino superior dentro de um
modelo de inclusão, ou seja, um “conflito entre um sistema de educação superior de
elite e um sistema inclusivo” (ibidem: 13). Em linhas gerais, este simpósio concluiu
que cabe às humanidades reverter o ensino universitário: de prática de mercado pau-
tada sobre os avanços das ciências duras para um local de construção do pensamen-
to capaz de levar indivíduos a construir suas próprias oportunidades e contribuir para
a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos de um país.
Sob este aspecto, está nas humanidades a responsabilidade de incluir conhecimentos
historicamentes alijados da produção científica, igualmente capacitados para contri-
buir com a emancipação social e com a construção de uma nação soberana e demo-
crática. A questão que se coloca é: como efetivamente abrir espaço para estes conhe-
cimentos, de modo a que façam parte da produção acadêmica, sem que pra isso se
incorra numa hierarquização subordinada? Como enfrentar a racionalidade regula-
dora da Universidade para que se cumpra seu papel de tutora e tradutora da ecolo-
gia de saberes?
Sob esta perspectiva, acreditamos que esteja nas ciências humanas, por intermédio de
pequenos projetos possíveis de multiplicação e desdobramentos, a possibilidade de
trazer para a universidade os diversos conhecimentos que ao longo de séculos foram
veementemente negligenciados. O hip-hop e outros conhecimentos contra-hegemô-
nicos, para além da transformação heterotópica dos seus lugares, quando inseridos
no debate acadêmico podem, pouco-a-pouco, colaborar na reconfiguração do saber
científico, cujo desdobramento, a médio e longo prazo, é impulsionar uma maior
diversidade de pontos de vista acerca do mundo que nos rodeia.
267
Boaventura Santos afirmou há alguns anos a necessidade de se reinventar o futuro,
na medida em que não existe e nem existirá o futuro prometido pela modernidade:
“o vazio do futuro não pode ser preenchido nem pelo passado nem pelo presente. O
vazio do futuro é tão-só um futuro vazio” (2005a: 322). Reinventar o futuro exige, de
acordo com Santos, definir o paradigma emergente e fazer valer o pensamento utó-
pico (ibidem: 323). O autor finaliza seu livro Pela Mão de Alice, em meados da déca-
da de 90, argumentando a importância da utopia: “o que é importante nela não é o
que diz sobre o futuro, mas a arqueologia virtual do presente que a torna possível.
Paradoxalmente, o que é importante nela é o que nela não é utópico” (ibidem: 324).
A arqueologia virtual a que se refere concerne em escavar “sobre o que não foi feito
e, porque não foi feito” (ibidem), orientando-se para os silêncios e os silenciamentos.
Neste ponto voltamos à proposta de Boaventura Santos no que tange à heterotopia:
ao invés de inventar um lugar totalmente outro – a utopia –, Santos propõe “uma
deslocação radical dentro de um mesmo lugar, o nosso” (ibidem: 325). A comunica-
ção insurgente do hip-hop é capaz de transformar as periferias, sem sair delas.
Considerá-la nos meios acadêmicos como importante forma de conhecer o mundo
desloca o saber universitário para a perspectiva da inclusão e da emancipação.
Nem romantismo tampouco desilusão; trata-se, com efeito, de uma outra transfor-
mação, heterotópica e imponderada há duas décadas, quando começaram os cami-
nhos diversos dos colaboradores diretos e indiretos desta tese. Desta maneira, com-
pactuando com Z’África Brasil, termino este trabalho com a confiança de que o verso
e a rima continuarão, no dia em que a Terra parar.
268
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Blog do Sarau do Binho: http://saraudobinho.blogspot.com/
Blog do Sérgio Vaz / Cooperifa: www.colecionadordepedras.blogspot.com
Centro de Mídia Independente: http://brasil.indymedia.org ; www.midiaindepen-
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Coletivo Artistas Frente 3 de Fevereiro: www.frente3defevereiro.com.br
Fórum Social Mundial: www.forumsocialmundial.org.br
Grupo de Pesquisa em Mídia Impressa PUCSP: www.pucsp.br/pos/cos/umdiase-
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Ministério da Cultura: www.cultura.gov.br
Ministério das Cidades: www.cidades.gov.br
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Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto: www.mtst.info
Observatório das Violências Policiais: www.ovp-sp.org
Ocupação Prestes Maia: http://ocupacaoprestesmaia.zip.net
Ocupação Sonho Real: http://sonhoreal.naxanta.org
Portal Bocada Forte: www.bocadaforte.com.br
Portal Enraizados: www.enraizados.com.br
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Rede Povos da Floresta: www.redepovosdafloresta.org.br
Zulu Nation Brasil: www.zulunationbrasil.com.br
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NUNCA+TINHA+ME+ SENTIDO+TAO+HUMILHADA+DIZ+ESTUDAN-
TE+BARRADA+ NA+EUROPA.html
http://guarulhosweb.locaweb.com.br/detalhe.asp?nrnotici=11387&cdcanal=cidad01
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean_Charles_ de_Menezes
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www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/10/28/materia.2007-10-28.6084563256/view
www.clickpb.com.br/artigo.php?id=20071009055858
www.jornalirismo.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=67.
www.olhao.com.br/geral_20112007191317.shtml
www.orkut.com/ UniversalSearch.aspx?searchFor=C&q=tropa+de+elite
www.overmundo.com.br/overblog/trilogia-da-diaspora
www.petitiononline.com/hholido/petition.html
www.pucsp.br/artecidade/novo/pesquisa/zl/zl_1c.htm
www.radarcultura.com.br/node/173
www.realhiphop.com.br/materias/materia_hiphop-lula.htm#
www.reportersocial.com.br/noticias.asp?id=1039&ed=negros
www.ub.es/geocrit/b3w-244.htm
www.vozdipovo-online.com/conteudos/cplp/alemanha_presta_homenagem_a_
mocambicano_ alberto_adriano
www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u105707.shtml
www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2002/carandiru/
4.1.1 vídeos citados em notas de rodapé
http://br.youtube.com/watch?v=7caCO6Uj-rg
http://br.youtube.com/watch?v=RQLacmNqV64
http://br.youtube.com/watch?v=8vdJEeW2UEk
297
http://br.youtube.com/watch?v=OuLf4-JUZF0&feature=PlayList&p=
5D4504907F8FA09 C&index=7
http://br.youtube.com/watch?v=PeOlYSexdoI
http://br.youtube.com/watch?v=vw3o8GMKFg8
http://video.google.com/videoplay?docid=6430292241424408602
www.somdarua.com.br/artista.php?codArtista=7
www.somdarua.com.br/artista.php?codArtista=9# www.youtube.com/watch?v=
buGwKsnDvQk&feature=PlayList&p=5D4504907F8FA09C&index=13
www.youtube.com/watch?v=A1lwSAHwCk4
www.youtube.com/watch?v=M9VJhVYhpBc
www.youtube.com/watch?v=p_r5Fihzz6A
www.youtube.com/watch?v=seivtFN8ns0
www.youtube.com/watch?v=SuKBHTBaioI
www.youtube.com/watch?v=ZZTfCDmN9e4
5. SIGLAS
ABC - Municípios de Santo André, São Bernardo e São Caetano, na Grande São
Paulo
AESP - Associação das Emissoras de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo
AIDS - Acquired Immunodeficiency Syndrome / Síndrome da Imunodeficiência
Adquirida
ALCA - Área de Livre Comércio das Américas
ANDI - Agência de Notícias dos Direitos da Infância
BEA - Banco do Estado do Amazonas
BEG - Banco do Estado de Goiás
BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento
BIRD - Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento
BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
BOPE - Batalhão de Operações Especiais
CDHU - Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São
Paulo
CEHAL - Centro de Estudos de História da América Latina
CIAM - Congresso Internacional de Arquitetura Moderna
CIESP - Centro das Indústrias do Estado de São Paulo
CLACSO - Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales
CMI - Centro de Mídia Independente
298
CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CNN - Cable News Network
CNUAH - Centro das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos
CPT - Comissão Pastoral da Terra
CSN - Companhia Siderúrgica Nacional
CUFA - Central Única das Favelas
CVRD - Companhia Vale do Rio Doce
DAS - Divisão Anti-Seqüestros da Polícia Civil do Rio de Janeiro
DST - Doenças Sexualmente Transmitidas
ECA - Escola de Comunicação e Artes
ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente
FEBEM - Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor de São Paulo
FHC - Fernando Henrique Cardoso
FMI - Fundo Monetário Internacional
FSM - Fórum Social Mundial
FSP - Jornal Folha de S. Paulo
GLBT - Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros
HH - Hip-Hop
HIV - Human Immunodeficiency Vírus (vírus da AIDS)
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IML - Instituto Médico Legal
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IPTU - Imposto Predial e Territorial Urbano
MH2 - O Movimento Hip-Hop Organizado
MHHOB - Movimento Hip-Hop Organizado Brasileiro
MN - Movimento Negro
MMC - Movimento de Moradia do Centro
MNCR - Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis
MNRU - Movimento Nacional de Reforma Urbana
MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
MSTC - Movimento Sem-Teto do Centro
MTST - Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto
MTV - Music Television
NEV - Núcleo de Estudo da Violência
NMS - Novíssimo Movimento Social
OESP - Jornal O Estado de S. Paulo
PL - Projeto de Lei
PMSP - Prefeitura do Município de São Paulo
PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PSTU - Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados
PT - Partido dos Trabalhadores
PUCSP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
299
RMSP - Região Metropolitana de São Paulo
ROTA - Ronda Ostensiva Tobias Aguiar
SEPPIR - Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
SERTESP - Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo
SSP - Secretaria de Segurança Pública
UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFF - Universidade Federal Fluminense
UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro
UMM - União dos Movimentos de Moradia
UNESCO - United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
USP - Universidade de São Paulo
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