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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Flávia Freire Dalmaso
A MAGIA EM JACMEL
UMA LEITURA CRÍTICA DA LITERATURA
SOBRE O VODU HAITIANO
À LUZ DE UMA EXPERIÊNCIA
ETNOGRÁFICA
Rio de Janeiro
2009
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A magia em Jacmel: uma leitura crítica da literatura sobre o Vodu
haitiano à luz de uma experiência etnográfica
Flávia Freire Dalmaso
Dissertação de Mestrado apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (PPGAS) do
Museu Nacional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em
Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Federico Guillermo
Neiburg
Rio de Janeiro
Março / 2009
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Dalmaso, Flávia F.
A magia em Jacmel: uma leitura crítica da literatura sobre o Vodu haitiano
à luz de uma experiência etnográfica/ Flávia F. Dalmaso. Rio de Janeiro,
2009.
108 p.
Dissertação (mestrado): UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, 2009.
Orientador: Federico Guillermo Neiburg
1-Magia. 2-Jacmel 3-Vodu. I. Neiburg, Federico Guillermo (Orient.). II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.
A magia em Jacmel: uma leitura crítica da literatura sobre o Vodu
haitiano à luz de uma experiência etnográfica
Flávia Freire Dalmaso
Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGAS/MN/
UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Antropologia Social.
Aprovada por:
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Federico Guillermo Neiburg – Presidente da Banca examinadora
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Fausto
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz
_______________________________________________________________
Prof.ª Drª Lygia Sigaud
_______________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Diana Nogueira
Rio de Janeiro
Março / 2009
Resumo
A MAGIA EM JACMEL
UMA LEITURA CRÍTICA DA LITERATURA SOBRE O VODU HAITIANO
À LUZ DE UMA EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA
Flávia Freire Dalmaso
Orientador: Prof. Dr. Federico G. Neiburg
Resumo da dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social / Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia.
Esta dissertação tem como objetivo a construção de um diálogo critico com a literatura
acadêmica sobre o Vodu haitiano à luz da experiência etnográfica realizada na cidade de
Jacmel, no Haiti. Trata-se de contrastar o campo discursivo que organiza a literatura
com descrições etnográficas que revelam as formas pelas quais a magia, associada ou
não explicitamente ao vodu, aparecia na vida cotidiana das pessoas com as quais eu
convivi. A partir destas observações procuro evidenciar os distanciamentos e os
deslocamentos de sentido que surgem entre o Vodu, tal como tratado pela literatura
acadêmica e o vodu que encontrei em Jacmel.
Palavras-chave: Magia, vodu, Jacmel.
Abstract
A MAGIA EM JACMEL
UMA LEITURA CRÍTICA DA LITERATURA SOBRE O VODU HAITIANO
À LUZ DE UMA EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA
Flávia Freire Dalmaso
Orientador: Prof. Dr. Federico G. Neiburg
Resumo da dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social / Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia.
The purpose of this dissertation is to construct a critical dialogue with the academic
literature concerning the Haitian Vodou, using the ethnographic experience conducted
in the city of Jacmel, Haiti. It is about contrasting the discursive field that organizes the
literature with ethnographic descriptions that reveal the forms by which the magic,
explicit associated or not with the vodou, appears in the everyday life of the people
whom I lived together. Starting from these observations I intent to evidence the
separations and the displacements of meaning that emerge between the Vodou, as it is
treated by the academic literature and the vodou that I met in Jacmel.
Key-words: Magic, vodou, Jacmel.
Agradecimentos
Gostaria de agradecer ao meu orientador, Federico Neiburg, pelo imenso carinho,
presença, dedicação, esforço e amizade ao longo de todo o processo que deu origem a
dissertação. Aos profs. Carlos Fausto e Omar Ribeiro Thomaz por terem aceitado
participar da banca examinadora.
A minha mãe, pelo apoio incondicional, ao meu pai por ter me estimulado e me
ajudado a ter coragem para embarcar nesta aventura e ao meu irmão pelas piadas nas
horas de tensão.
Não poderia deixar de lembrar a atenção e as sugestões valiosas da professora
Lygia Sigaud e do professor Fernando Rabossi, quando esta dissertação era apenas um
“relato de viagem” e também a professora Renata Menezes pelas contribuições a esta
dissertação. Agradeço aos funcionários do PPGAS, da secretaria e da biblioteca, em
especial a Carla. A Carmen e ao Fabiano da Xerox.
Aos amigos que compartilharam comigo de perto os desafios e as emoções da pesquisa
no Haiti: José Renato, Felipe, Pedro e Natacha. Aos haitianos que conheci e com os
quais fiz novas amizades: Kattelie, Filomene, Lionel, William, Madame Étude,
Rodrigues e Merlande.
A Luana, Sylvia, Léo, Orlando, André, Rafael, Márcia, Karla, Ana Izabel, Marta, Jana,
Lili, Simone, Ana, Brunner, Mário, Raquel, Rafinha, Jonas e Lígia, pessoas queridas
que me acompanharam com gestos de carinho e palavras atenciosas em diversos
momentos. Ao Ricardo, meu amor, pela paciência e compreensão.
Por fim, gostaria de agradecer ao CNPq pelos 12 meses de bolsa concedida.
Para Theo
Sumário
Mapa do Haiti ............................................................................................................... 10
Glossário ....................................................................................................................... 11
Introdução ..................................................................................................................... 12
Capítulo 1 – Imagens do Vodu na literatura acadêmica ............................................... 26
Capítulo 2 – A magia em Jacmel .................................................................................. 65
Considerações finais ................................................................................................... 103
Anexo ......................................................................................................................... 105
Referências Bibliográficas .......................................................................................... 106
10
Glossário
Blanc: branco, estrangeiro (gringo)
Boko: feiticeiro.
Bondie: Bom Deus
Clairin: rum branco
Maji: magia
Mambô: feminino de ugã.
Mistike: mágico ou místico
Peristilo: poste que fica localizado no centro dos ufós, em torno do qual se realizam as
cerimônias
Ugã: chefe de um ufó
Ufó: templo vodu. Lugar onde se realizam cerimônias e rituais.
Voduisante: pessoa que pertence ao vodu.
11
Introdução
Apresentação
O objetivo desta dissertação é estabelecer um diálogo entre a literatura acadêmica sobre
o Vodu haitiano e alguns dados etnográficos, fruto de dois meses de pesquisa
desenvolvida em Jacmel, cidade localizada no litoral sul do Haiti. A dissertação consiste
em um esforço onde, por um lado, procuro apresentar um esboço do “campo discursivo”
que organiza as obras a serem analisadas e, por outro, as maneiras pelas quais a magia,
associada ou não explicitamente ao vodu, se fazia presente na vida cotidiana das pessoas
com as quais eu convivi em Jacmel.
Os autores e as obras escolhidas são representativos da literatura acadêmica
sobre Vodu na medida em que a partir deles podemos delimitar um conjunto de
enunciados que estrutura uma rede de sentidos de onde tem se tornado possível pensar o
Vodu. Dentre os trabalhos que serão examinados estão Life in Haitian Valley (1937) de
Melville J. Herskovits, e Le Vaudou Haïtien (1958) de Alfred Métraux, dois
pesquisadores, cujos livros se baseiam em etnografia feita no Haiti e que se
transformaram em referências para todos aqueles que escreveram posteriormente sobre
Vodu. Em seguida temos o livro Ainsi Parla l’Oncle (1928) de Jean Price-Mars, que
representa um esforço pioneiro no sentido de incluir o Vodu como objeto de estudo
dentro dos parâmetros científicos da época e, também, por associá-lo a “cultura
nacional” haitiana. Junto a ele temos o livro Dieu dans le Vaudou Haitïen (1975), de
Laënnec Hurbon, sociólogo, pesquisador do Centre National de la Recherche
Scientifique (CNRS), em Paris, e professor da Universidade Quisqueya de Porto
Príncipe. Hurbon publicou vários outros trabalhos a respeito do Vodu e é atualmente
uma autoridade reconhecida sobre o assunto. Por fim, chegamos aos livros de Karen
12
McCarthy Brown, Mama Lola: A Vodou Priestess in Brooklyn (1991) e de Karen E.
Richman, Migration and Voudou (2005), duas autoras norte-americanas cujas obras
dizem respeito a temática da imigração de haitianos para os EUA. Ao longo de suas
pesquisas elas acompanharam a vida de migrantes onde concentraram a maior parte de
suas etnografias, embora tenham feito trabalho de campo também no Haiti
1
.
Os contrastes e os deslocamentos de sentido, às vezes mais claros, às vezes mais
sutis, encontrados entre as maneiras de tratar o Vodu por estas obras e as formas pela
qual ele aparecia na vida dos meus interlocutores no campo serviram como ponto de
partida para construir o objeto da dissertação. Assim, tanto a literatura acadêmica
quanto a pesquisa de campo foram essenciais para o desenvolvimento da pesquisa, que
somente se tornou possível neste encontro entre campo e literatura.
Tais contrastes mereceram, nesta dissertação, a adoção de uma convenção por
meio da qual distinguimos o Vodu com V, da literatura acadêmica, do vodu com v, que
corresponde a certas experiências sociais vividas cotidianamente pelos meus
interlocutores. Este vodu, com v, se apresentava como um universo de objetos, falas e
ações que faziam parte daquilo que as pessoas geralmente se reportavam utilizando os
termos maji
2
ou mistike, distanciando-se, por vezes, das questões trazidas pelo conjunto
das obras discutidas aqui, conforme veremos posteriormente.
A literatura acadêmica e a etnografia: a construção do diálogo
Ao recorrer à literatura sobre Vodu uma das primeiras coisas que percebi foi que este
aparecia sempre caracterizado como uma “religião”, conformada por um corpo de
doutrinas e rituais, e que a magia (tradução do termo maji) com a qual os haitianos
1
Todos os anos que estão entre parênteses correspondem, aqui, a data de publicação dos livros.
2
Todas as palavras em creóle haitiano estão em itálico e seus significados podem ser encontrados no
glossário na pág. 11 ou em notas explicativas quando se tratarem de palavras que não se repetem ou
nomes de espíritos.
13
lidam no dia a dia um assunto que surgia freqüentemente nas conversas com os meus
interlocutores, era apresentada como uma dimensão do Vodu..
Ocorre que em Jacmel, a magia não era apenas reconhecida como uma prática
daqueles que se identificavam e eram identificados como voduisantes. A magia,
traduzida em creóle pelos termos maji ou mistike
3
também ultrapassava esta simples
categorização, na medida em que compreendia toda uma gama de objetos, ações ou
experiências onde o vodu podia não estar explicitamente em questão.
Por conta disso a dissertação está dividida em duas partes. Na primeira procuro
mostrar um conjunto de tópicos que organizam a literatura acadêmica sobre Vodu. Com
base no argumento de Foucault (1971), segundo o qual um conjunto de enunciados pode
ser agrupado na medida em que se referem a um único e mesmo objeto, tento mapear o
“campo discursivo” que tem como “referencial” o Vodu. Isso deixa evidente que a
minha intenção, (coerente com as possibilidades do tempo disponível para a elaboração
deste trabalho) não tenha sido fazer uma leitura exaustiva desta literatura.
Adicionando o fator de que um livro nunca se configura em uma obra isolada de
todas as outras, mas sim um ponto, em uma certa rede textual, as perguntas seriam:
Quais assuntos são trazidos à tona quando o objeto da narrativa é o Vodu? O que
significa, afinal, escrever sobre Vodu? Quais os discursos se tornaram possíveis para os
autores considerados? Neste sentido, veremos como escrever sobre Vodu é, ao mesmo
tempo, escrever sobre outras grandes discussões envolvidas com o Haiti e com a sua
história.
Sendo assim, a literatura acadêmica que será apresentada na primeira parte está
organizada em torno de um conjunto de enunciados a partir dos quais se torna possível
3
Os dois termos apareciam como sinônimos. No entanto, maji era mais freqüentemente utilizado que
mistike, conforme veremos no capítulo dois. Ao longo da dissertação com o objetivo de evitar repetições
excessivas utilizarei na maior parte das vezes apenas o termo maji.
14
pensar e descrever o Vodu. O ”campo discursivo” que toma o Vodu como referência se
estrutura basicamente ao redor de cinco questões.
4
Em primeiro lugar, o Vodu é pensado em termos de relações metonímicas e
metafóricas com Haiti.
5
Estabelecendo um paralelo entre o argumento desenvolvido por
Neiburg e a maneira encontrada pelos autores que escrevem sobre Vodu para falar dele,
podemos dizer que, assim como em um determinado momento da história da Argentina
“explicar o peronismo foi sinônimo de explicar a Argentina” (Neiburg 1997: 14), o
Vodu é visto pelos autores como algo por meio do qual a nação haitiana pode ser
revelada.
Além desta relação propriamente metonímica, onde escrever sobre Vodu é
escrever sobre a nação haitiana, como se fosse possível explicar e entender a totalidade
(a nação) pela parte (o Vodu), o argumento de alguns autores aponta na direção de que
poderíamos encontrar no Vodu uma linguagem metafórica onde estariam expressos os
dilemas haitianos e as dificuldades sociais e econômicas enfrentadas pela população do
país. Estas dificuldades, como a miséria, a fome, uma sociedade dividida entre uma elite
minoritária e o resto do povo explorado dentre outras, apareceriam, assim por meio de
metáforas nos cantos, nas possessões, nos rituais,.etc.
A “natureza” da sociedade haitiana, pensada em termos das dicotomias entre
barbárie x civilização e elite x massa, se constitui em um segundo tópico a partir do qual
a literatura acadêmica sobre o Vodu se organiza. De uma maneira mais geral, a
constatação da existência destas dicotomias proporcionam discussões acerca das
4
Cabe ressaltar que além destes cinco tópicos que serão objeto de atenção no primeiro capítulo, as
discussões que dizem respeito às relações entre Vodu e política se constituem em uma questão central na
literatura sobre a histórianacional do Haiti. Freqüentemente associado por esta literatura ao próprio
nascimento e construção da nação, por meio da cerimônia de Bois Caïman, o vodu tem aparecido na vida
política do Haiti desde a independência ocorrida em 1804 até o governo de Jean-Bertrand Aristide,
passando pela ditadura duvalierista. Algumas destas relações entre Vodu e política podem ser encontradas
em Dubois (2003), Hoffman (1990) e Trouillot (1986 e 1997). Sobre a presença do vodu na história da
Revolução Haitiana, lembro ainda o romance O Reino deste Mundo, de Alejo Carpentier.
15
imagens e dos estereótipos ligados ao Vodu. Autores como Hurbon, por exemplo,
relatam como ao longo da história ele foi associado à barbárie, à selvageria e ao atraso,
em oposição àquilo que era considerado pelos estrangeiros e pela elite intelectual do
país como civilizado. Assim, o Vodu é basicamente entendido como uma religião das
massas haitianas que possuem uma mentalidade supersticiosa, em oposição ao
catolicismo associado à elite e a civilização.
Hurbon e Price-Mars são aqueles que apresentam formulações mais assertivas
sobre esta natureza dicotômica da sociedade haitiana. De certa forma, seus trabalhos são
uma resposta aos estereótipos ligados ao Vodu, na medida em que não apenas constatam
e apontam para a sua existência, mas também possuem argumentos que procuram
desfazer estas imagens negativas e prescrever algumas maneiras de agir frente aos
estigmas que pesam sobre o Vodu e, por conseguinte, sobre o Haiti e sobre os haitianos.
Em terceiro lugar, o Vodu é visto através de uma lente funcionalista, ou seja, ele
é considerado em termos das funções que desempenharia na vida dos haitianos.
Geralmente, estas funções são apontadas tendo em vista o contexto de analfabetismo,
miséria, fome, falta de médicos e hospitais, dentre outras coisas. Ou seja, é basicamente
a partir da constatação desta “ausência” de recursos que o Vodu começa a ser visto
como algo que pode suprir, pelo menos em parte, estas carências. No entanto, nem
sempre o que está em jogo nas reflexões sobre os papéis que teria o Vodu aparece
ligado a uma supressão de carências. Desta forma, ele pode ser visto como algo que
fortalece os laços de solidariedade de um grupo ou, também, que proporciona
divertimento e segurança frente a um mundo caótico.
Um quarto tópico que organiza o “campo discursivo” a respeito do Vodu, diz
respeito às sua identificação ou não com uma autêntica religião. Enquanto alguns
autores, como Hurbon e Price-Mars, parecem estar mais preocupados em apresentar
16
características ou elementos que justifiquem que o Vodu seja tratado como religião,
outros já partem deste pressuposto, procurando adjetivos que o qualifiquem. Nesse
sentido, veremos como o adjetivo “popular” parece ser o mais utilizado para
acompanhar o substantivo religião quando se trata do Vodu. Por fim, em quinto e último
lugar escrever sobre Vodu parece obrigar a dizer alguma coisa a respeito da magia e da
feitiçaria. De maneira geral, elas são interpretadas pelos autores como práticas ligadas à
religião Vodu, ou seja como um dos elementos que fazem parte de sua composição. A
magia pode aparecer qualificada como branca (inofensiva) ou negra (exclusivamente
para o mal e, por vezes, chamada também feitiçaria). De qualquer forma, em todos os
autores ela aparece como uma das maneiras pelas quais os voduisantes explicam os
males e infortúnios que acontecem nas suas vidas.
Se o Vodu tal como foi descrito pela literatura acadêmica engloba a magia, na
minha experiência de campo não era assim. Neste caso, duas coisas pareciam ocorrer.
Primeiramente, o uso do termo maji estava referenciado ao vodu, tal como era vivido
cotidianamente pelas pessoas. Veremos que em algumas situações a prática da magia
não era associada, pelo menos explicitamente, às práticas vodu, chegando mesmo a ter
negadas as suas possíveis relações com ele. Tudo isso faz com que a maji tenha um
caráter fluido, o que torna difícil uma interpretação onde ela seja vista apenas como
mais um elemento do Vodu. Por conta de todas as possibilidades e dimensões que
revela, a maji surge como alguma coisa capaz de mudar a própria percepção do que seja
o vodu.
Desta forma, a segunda parte da dissertação é dedicada àquilo que encontrei em
Jacmel enquanto (pelo menos em boa parte do tempo) procurava pelo Vodu. Pretendo
mostrar, a partir de exemplos etnográficos, algumas ações, objetos ou situações aos
quais as pessoas com quem convivi se referiam utilizando os termos maji ou mistike, e
17
suas relações com o universo do vodu. Como veremos, maji e mistike podem ser um
meio de agir que tem como objetivo provocar mudanças em um determinado contexto,
restabelecer alguma situação anterior ou, ainda, obter proteção e sorte.
Sua prática é capaz de ocasionar de maneira intencional males a outras pessoas
como, por exemplo, doenças ou acidentes. Além disso, veremos como estes dois termos
são também utilizados simplesmente como um qualificativo para certas experiências,
objetos e ações. Assim, a maji em Jacmel pode ser, ao mesmo tempo, uma ação, o meio
pelo qual se age, e uma qualidade que nos informa sobre certos objetos ou ações. Em
outras palavras, maji e mistike são termos que possuem um amplo campo semântico, na
medida em que podem, assim como a idéia de mana analisada por Mauss e Hurbert
(2003), ser ao mesmo tempo um substantivo, um adjetivo e um verbo.
De acordo com o que havia assinalado anteriormente, o objeto da dissertação
nasceu justamente do encontro entre a experiência etnográfica e a literatura. Neste
sentido, o trabalho de campo revelou as maneiras pelas quais o vodu se fazia presente
em Jacmel. A convivência com este universo tornou possível a percepção de outros
sentidos, nuanças e sutilezas que fizeram com que o vodu ganhasse novas cores e
dimensões em relação à maneira pela qual foi pensado pela literatura acadêmica que
será aqui analisada.
O trabalho de campo em Jacmel
a) A chegada em Porto Príncipe
Olhando pela janela do avião parecia inacreditável. Do alto, um país inteiro se
apresentava. Depois de quase um ano de expectativas e de uma noite mal dormida,
finalmente poderíamos ver e sentir aquele lugar. É claro que já estávamos
18
experimentando um gostinho de Haiti dentro do próprio avião, lotado de haitianos que
conversavam sem parar e possivelmente retornavam de outros lugares do Caribe, ou
mesmo do próprio Panamá, onde pegamos a conexão que nos levaria até Porto Príncipe.
Ao desembarcarmos no aeroporto, eis que surgiu diante de nós o país em terra firme: a
funcionária que queria tirar tudo de dentro da minha mala, um trânsito caótico, o
barulho constante das buzinas, as ruas em obras, o exército da ONU, o Palácio do
Governo, enfim a vida ordinária das pessoas de um determinado lugar, no qual eu
ficaria pelos próximos dois meses.
Não estava sozinha nesta aventura. Éramos uma equipe
6
. Embora o tempo de
permanência no campo não tenha sido o mesmo para todos
7
, o trabalho de campo foi
preparado e encarado coletivamente. Ainda no Rio de Janeiro, já estávamos envolvidos
com o aprendizado do creóle haitiano, cujas aulas eram ministradas na ONG Viva Rio
pela pesquisadora Daniela Bercovitch. Além das aulas, participamos de reuniões e
seminários promovidos pelo Núcleo de Cultura e Economia (NUCEC) onde discutíamos
textos sobre o Haiti e planejávamos as estratégias do campo que nos aguardava. Neste
contexto, vale lembrar a presença da professora Lygia Sigaud e dos professores
Fernando Rabossi e Louis Herns Marcelin, que participaram conosco de algumas
discussões. Louis Marcelin dirigia na época o recém-fundado Institute Interuniversitaire
de Recherche et Developement (INURED) em Porto Príncipe, que representou um outro
espaço de inserção no universo intelectual haitiano, fundamental para o
desenvolvimento do nosso projeto.
6
Fazia parte de uma equipe composta por mais seis pessoas, além de mim. Entre elas estavam Felipe
Evangelista e Pedro Silveira, colegas da minha turma no mestrado do Museu Nacional/UFRJ, José Renato
Baptista que cursa o doutorado na mesma instituição, Federico Neiburg, meu orientador e autor do projeto
de pesquisa “Mercados e Moedas em Porto Príncipe (Haiti): uma etnografia no/do espaço internacional”,
que tornou a viagem financeiramente possível, Natacha Nicaise, pesquisadora filiada ao NUCEC assim
como todos nós, e William Jean, aluno do curso de graduação em ciências sociais da Universidade do
Estado de Porto Príncipe.
7
Eu, Pedro e Felipe chegamos juntos, em março. José Renato já estava no Haiti desde o início de
fevereiro e iria ficar lá até janeiro do ano seguinte. Federico e Natacha haviam chegado dias antes e
partiram no final de abril.
19
Foi no INURED que, durante os primeiros cinco dias de viagem, eu, Felipe e
Pedro permanecemos hospedados. A casa que abriga o instituto é incrível. Muito bonita,
com um jardim cheio de flores, espaçosa e, sobretudo, agradável. Aliás, a existência de
construções como esta em ruas que, por sua vez, são tão precárias foi uma das primeiras
coisas que me surpreendeu naquele país. Outra foi o nosso segundo café da manhã em
terras caribenhas: tutu de feijão com salsicha, bem reforçado, para garantir um bom dia
de trabalho.
b) A partida para Jacmel
O trajeto Porto Príncipe – Jacmel pode ser feito por terra e por ar. Há em Jacmel, um
pequeno aeroporto (uma espécie de pista de pouso) onde aviões com capacidade para
poucos passageiros podem aterrissar e decolar. O percurso por terra é bem cansativo e
pode ser feito de ônibus, vans ou tap taps
8
, que vão e voltam entre as estações de Porto
Príncipe e Jacmel. Estas estações são, para os estrangeiros como nós, uma verdadeira
loucura, com muita gente indo para vários lugares do país. As pessoas te puxam,
tentando te convencer a entrar em um ônibus ou outro, enfim, uma grande confusão. O
ônibus é muito apertado e se torna ainda mais porque os assentos são retirados do lugar
e puxados para o meio da passagem, de forma que os quatro lugares (dois de um lado e
dois de outro) são transformados em seis.
8
Tap tap é o nome pelo qual são chamadas caminhonetes ou caminhões pequenos cuja parte traseira é
composta de uma estrutura de metal, coberta com uma espécie de lona. Os Tap taps se constituem em um
meio de transporte bem comum no Haiti. São bem coloridos, muitos deles pintados com imagens de Jesus
ou de espíritos vodu.
20
Foto 1 – William Jean, que fez parte
de nossa equipe
Foto 2 – Tap tap
Foto 3 – Rua de Jacmel Foto 4 – Mercado de Jacmel
Esta distribuição de lugares torna o trânsito das pessoas pelo ônibus muito difícil
e o ideal é que todos permaneçam sentados do início ao fim da viagem. Muita gente vai
comendo e a combinação de ônibus apertado, estrada tortuosa, calor e comida, não
costuma dar muito certo, de maneira que é bem comum (e encarado com muita
naturalidade pelos haitianos) as pessoas se sentirem enjoadas e passarem mal no
decorrer do percurso. Entretanto, o caminho entre as duas cidades é lindo e segue o
recorte das montanhas que as separam, permitindo a visualização de vales extensos e
profundos.
21
Jacmel é a capital do Departamento Sudeste. Localizada ao sul do país) é uma
cidade que foi fundada no ano de 1698 e tem uma população estimada em 40.000
pessoas.
9
Reconhecida por muitos haitianos com os quais conversei pela sua
tranqüilidade e beleza em oposição à capital, Porto Príncipe, Jacmel também tem
reputação de cidade turística, principalmente por causa das belíssimas praias que
compõem o seu litoral. Nossa casa em Jacmel era muito bonita. Como éramos uma
equipe, durante o primeiro mês ficou bastante cheia, pois além de mim, do Zé, do Felipe
e do Pedro, ainda se hospedaram Natacha, Federico e William. William faz graduação
em ciências sociais na Universidade do Estado, localizada em Porto Príncipe. Como fala
sete idiomas, dentre eles o português, recebeu a missão de nos dar aulas de creóle todos
os dias. Foi ótima a oportunidade de termos aulas lá e também de poder sair às ruas com
a sua companhia.
O trabalho coletivo fez com que o ritmo das nossas atividades fosse bem intenso
e proveitoso para todos. Diariamente acordávamos cedo, tínhamos aula e depois
passávamos o dia inteiro fora, geralmente divididos em duplas ou trios. Já de noitinha
fazíamos reuniões para contar e discutir o que havíamos visto e feito durante o dia para,
a partir daí, planejar os próximos passos. Por questões de afinidade de interesses, quase
sempre minha dupla era o José Renato. No início, tive uma grande dificuldade em sair
sozinha, pois chamava muita atenção (não tanto por ser mulher, mas por ser uma mulher
branca, muito diferente não só das outras mulheres, mas também de todos os outros
haitianos), além de não conhecer a cidade, fato que me deixava muito tensa e insegura.
A partir do segundo mês, com a casa mais vazia
10
, os interesses de cada um mais bem
9
Dados referentes ao ano de 2003. Wikipédia.
10
William, Federico e Natacha partiram no final de abril, Zé passou a fazer sua pesquisa em Porto
Príncipe e Pedro concentrou seu trabalho em Lavoute, uma pequena vila encravada nas montanhas, no
interior rural de Jacmel, o que o fez ficar por lá também.
22
definidos, e conhecendo um pouco melhor a cidade, isso mudou bastante e passei a
andar com mais tranqüilidade nas ruas de Jacmel.
Apesar de não ter feito um investimento sistemático na literatura sobre Vodu
antes de desembarcar no Haiti em março de 2008, foi com a cabeça no Vodu enquanto
uma “religião”, que pisei no país pela primeira vez. Dito de outro modo, o
conhecimento sobre Vodu que eu carregava era o mesmo que porta o senso comum e
que contém em si toda uma gama de estereótipos que circulam fora do Haiti: do Vodu
como religião exótica, relacionada à prática de magia negra, e à feitura de zumbis,
dentre outras coisas. O diálogo com a literatura que essa dissertação propõe, envolve na
verdade, também, um diálogo (nem sempre explicito, é claro) com esse senso comum.
Durante todo o período em que estive em Jacmel visitei vários ufós, conheci
alguns ugãs e mambôs e outras pessoas declaradamente praticantes do vodu ou do
catolicismo. Embora tenha me esforçado, não consegui assistir a nenhuma cerimônia,
que naquele momento era o que eu mais queria. Mesmo querendo estudar o Vodu e, por
causa disso, procurando freqüentar lugares e conhecer pessoas que sabia serem
voduisantes, acabei também chegando (aliás, de formas muito curiosas e interessantes
como dados para a pesquisa, que serão explicitadas posteriormente) em pessoas
identificadas como protestantes. Enfim, foi neste quadro que se desenrolou a pesquisa e
que pude perceber a porosidade do vodu por meio da presença da maji na vida das
pessoas com as quais convivi ao longo destes dois meses. Esta porosidade podia ser
vista no cotidiano daquelas pessoas, não apenas nas suas falas, mas também nas suas
ações, extrapolando inclusive a confissão religiosa explícita de cada um.
Em um determinado momento, sabendo que seria quase impossível assistir a
uma cerimônia, parei de procurar. Havia um ufó que sempre freqüentava e também uma
loja especializada em produtos que são utilizados nos rituais vodu cuja dona,
23
simpaticamente, aceitava dispor de seu tempo em longos bate-papos. O Vodu com o
qual eu havia planejado trabalhar decididamente não foi o que eu encontrei em Jacmel.
Experimentei um estranho sentimento de perplexidade, fruto do encontro entre o que eu
pensava que ia ver e o que eu vi: era como se o vodu estivesse em todos os lugares e ao
mesmo tempo em lugar nenhum. As referências estavam lá, mas as cerimônias que
imaginava, não.
Sei que não passei muito tempo em Jacmel e que, se tivesse passado mais, as
chances de assistir a alguma destas cerimônias aumentaria. Entretanto, o que quero
deixar claro aqui é que, na minha fantasia deveria existir algo que fosse mais freqüente,
como ocorre como a umbanda e com o candomblé no Brasil. Não houve. Isso foi
negativo e positivo. Negativo porque, no lugar do sentimento de ansiedade em relação
às cerimônias e ao Vodu entrou uma sensação de desespero, do tipo: e agora, o que vou
fazer? Positivo porque graças a isso pude atentar para o que foi, enfim, a temática da
dissertação. Obviamente, o “clique”, o momento em me dei conta sobre o que ia
escrever aconteceu depois, somente quando retornei ao Brasil e tive que olhar o que
tinha finalmente, os meus próprios dados de campo. Cheguei, portanto, à conclusão de
que ia focar em um assunto que sempre surgia nos diálogos com meus interlocutores:
maji e mistike, dois termos que de acordo com o que vimos no tópico anterior possuem
um campo semântico extremamente complexo.
Estrutura da dissertação
Além desta introdução, a dissertação possui dois capítulos, conclusão e alguns anexos.
O primeiro capítulo consiste na análise do “campo discursivo” que organiza a literatura
acadêmica sobre Vodu. Trata-se de examinar as questões a partir das quais tornou-se
possível para os autores escolhidos falar sobre Vodu. Elas encontram-se estruturadas em
24
cinco tópicos: tratam das relações do Vodu com a nação, da natureza dicotômica da
sociedade haitiana, das funções atribuídas ao Vodu, da sua classificação como uma
religião e, finalmente, da magia e da feitiçaria. Cabe lembrar aqui que, conforme já
havia mencionado no início da introdução, não é meu objetivo fazer uma leitura
exaustiva da literatura sobre Vodu, de maneira que os autores e as suas obras são
utilizados apenas como uma forma de organizar o meu argumento, oferecendo a
“estrutura básica” do “campo discursivo” em questão.
Enquanto o primeiro capítulo se baseia na leitura de obras acadêmicas e chama
atenção para algumas questões que entram em cena quando o tema estudado é o Vodu, o
segundo tem como foco minha experiência de pesquisa em Jacmel. Desta forma, o
principal objetivo do segundo capítulo é mostrar em situações de interação ou nas falas
dos meus interlocutores os sentidos do vodu revelados a partir dos diversos usos e
significados que possuem os termos maji e mistike. Conforme pretendo demonstrar,
embora a magia seja uma das questões consideradas pela literatura acadêmica sobre
Vodu e por causa disso apareça no primeiro capítulo, há uma mudança de registro na
retomada deste tema como objeto de reflexões da segunda parte da dissertação.
Assim as observações etnográficas que descrevem os usos da maji surgem como
aquilo que ilumina o conjunto de questões por meio das quais o Vodu é pensado pela
literatura acadêmica, revelando os distanciamentos e deslocamentos de sentidos
existentes entre o Vodu e o vodu.
25
Capítulo 1 – Imagens do Vodu na literatura acadêmica
O objetivo deste capítulo é fazer uma leitura de alguns trabalhos (já mencionados na
introdução) relacionados ao Vodu mapeando o “campo discursivo” que organiza estas
obras. Mais especificamente, trata-se de compreender quais os debates e as questões que
se tornaram possíveis quando o Vodu foi objeto de atenção por parte da literatura
acadêmica. Neste sentido dois movimentos parecem ocorrer. Se, por um lado, temos
exemplos onde falar de Vodu significou a necessidade de tocar em outras questões que
eram vistas pelos autores como inerentes ao Haiti, por outro lado, falar do Haiti também
significou ter que dizer algo sobre o Vodu. Desta maneira, Vodu e nação parecem estar
em uma relação metonímica, onde não apenas falar sobre o Vodu é falar sobre a
sociedade haitiana, mas também onde o próprio Vodu se construiu como um objeto para
aqueles que têm o Haiti como centro de suas reflexões.
Cinco pontos serão apresentados. Eles formam uma rede de discussões onde se
inserem as observações dos autores relativas ao Vodu haitiano. O primeiro ponto
justamente explora a relação metonímica que parece existir entre Vodu e Haiti, tal como
mencionado acima, e também as metáforas onde o Vodu surge como um motivo no qual
se revelam conflitos e dilemas enfrentados pela população haitiana. O segundo ponto
está relacionado à ligação do Vodu com a “natureza” da sociedade haitiana. Esta
“natureza’ é vista, principalmente, em termos das dicotomias entre barbárie x
civilização, e massa x elite. O ponto número três mostra como o Vodu é visto através de
uma lente funcionalista, que procura dizer para que ele serve e quais funções
desempenharia na sociedade haitiana. O quarto ponto versa sobre os debates em torno
da classificação do Vodu como uma religião. Por fim, no quinto e último ponto entram
em cena as reflexões que os autores fizeram sobre magia e feitiçaria e suas relações com
26
o Vodu. É importante esclarecer que estes pontos são utilizados apenas como uma
maneira de organizar meus argumentos, de forma que apesar de todos os autores
compartilharem este campo discursivo, estas cinco questões-chave não aparecerão com
a mesma força em cada um deles.
Antes de entrar diretamente nos pontos e mostrar como apareceram nas obras
apresentarei um breve resumo de cada um destes trabalhos e do contexto no qual os seus
autores estavam inseridos, expondo seus principais objetivos e preocupações. Esta
alternativa surgiu como uma maneira de proporcionar ao leitor uma visão geral de cada
trabalho, fundamental para um entendimento posterior, quando eles serão
desmembrados em questões mais específicas. A exposição está organizada de acordo
com a ordem cronológica de publicação das obras, contrariamente ao que ocorre dentro
dos tópicos, onde a ordem seguida obedeceu à relevância que tem cada um dos temas
em cada trabalho e autor.
Os autores e suas obras
O livro Ainsi Parla l’Oncle de Jean Price-Mars foi publicado no Haiti, no ano de 1928.
Nesta época o país encontrava-se ocupado militarmente pelos EUA, numa operação que
teve início em 1915 e se estendeu por quase duas décadas até a retirada das tropas em
1934. Em certa medida, podemos dizer que a ocupação militar proporcionou e facilitou
a produção de uma série de obras sobre o Haiti feitas por estrangeiros (inclusive a de
Melville Herskovits, como veremos mais adiante), assim como estimulou a elaboração
de trabalhos de intelectuais haitianos, membros das elites, que passaram a refletir sobre
os dilemas de seu próprio país11. Dentre estes trabalhos temos como principais
11
Anteriormente ao lançamento do livro de Herskovits, foram escritos outros livros sobre vodu, onde seu
exotismo era explorado ao extremo. Estes primeiros livros passaram a servir como base para a produção
dos filmes norte-americanos sobre zumbis como, por exemplo, o filme “I Walked with a Zombie” de
Jacques Tourneur, estreado em 1942.
27
referências além do próprio Ainsi Parla L’Oncle, a Revista Indigène, publicada em 1927
por Jacques Roumain, e a Revista Les Griots, organizada por Louis Diaquoi, Lorimer
Denis e François Duvalier, com publicações ao longo dos anos de 1938 e 1939.
Embora estes autores pudessem divergir ideologicamente no que diz respeito às
interpretações da história e da organização social do país, todos estavam preocupados
com questões que confluíam em um nacionalismo cultural de novo tipo, onde a
valorização da herança africana passou a ser um elemento chave na construção da
identidade nacional. Os “costumes populares” (dos quais o Vodu é assinalado como
representante) passaram a ser encarados como a solução para a dicotomia entre as elites
minoritárias e a grande maioria da população do país, representando a “verdadeira alma
nacional” (Charlier-Doucer, 2005). Esta proposição colocava em pauta uma nova
definição da cultura nacional diferente daquela que havia sido dominante desde o fim do
séc. XIX, onde as elites haitianas buscavam sua referência identitária na França.
As principais questões que estão em jogo nestes trabalhos se referem a debates
sobre história, cultura e nação. A agitação política, as reivindicações sociais juntamente
com a busca por uma identidade nacional haitiana culminam com a fundação, em 1941,
do Bureau d’Ethnologie de la Republique d’Haiti
12
. Nascido em um contexto de
perseguição ao Vodu, principalmente por causa da Campanha anti-supersticiosa lançada
entre os anos de 1940 e 1942 pela igreja católica, os integrantes do Bureau d’Ethnologie
tomam para si como objetivo mais imediato à proteção e defesa dos objetos, lugares e
praticantes do Vodu que diante desta situação corria o risco de se extinguir
13
. Além
disso pretendiam iniciar a realização de pesquisas de cunho científico sobre as práticas
Vodu. Ou seja, há, com a criação do Bureau d’Ethnologie, “um projeto científico
12
Faziam parte da composição inicial do Bureau: Jacques Roumain, Kurt Fisher, Edmond Mangonès e
Louis Maximillien (Charlier-Doucet, 2005).
13
A Campanha Anti-supersticiosa foi lançada em 1940, pela igreja católica numa tentativa do que Hurbon
chamou de déracinement do vodu. Além disso, havia os “juramentos de rejeição”, onde as pessoas eram
obrigadas a renunciar publicamente as suas práticas vodu. (Hurbon, 1993:57).
28
sustentado por um objetivo ao mesmo tempo moral e pedagógico, a saber, tornar os
costumes populares conhecidos e fazer com que passem a ser respeitados pelas
oligarquias do país a partir do combate aos preconceitos de todo o tipo” (Charlier-
Doucer, 2005:111).
Tais preocupações eram um pouco as de Price-Mars, ao escrever Ainsi Parla
l’Oncle, alguns anos antes. Logo no prefácio do livro ele revela seu interesse em
apresentar o valor do “folclore haitiano”, mas ao mesmo tempo aponta para as
dificuldades do empreendimento tendo em vista o preconceito daqueles que pertenciam
à elite em relação a tudo que fosse “autêntico” do país. Na opinião do próprio Price-
Mars, seu livro representa um esforço de inclusão do “pensamento popular” (o folclore)
haitiano como objeto de estudo da “etnografia tradicional” (1928:I).
14
Trata-se de uma
obra onde as “crenças populares” são entendidas como aquilo que representa melhor
este “folclore” e onde o Vodu entra como a principal ou a mais importante destas
“crenças”. Todo o livro é marcado por argumentos que têm como finalidade uma
valorização da herança africana e conseqüentemente do Vodu enquanto a religião das
massas. Assim, o Vodu entra nas reflexões quase como uma constatação, ou seja ele
escolhe o Vodu como objeto de estudo na medida em que ele é, juntamente com o
creóle, aquilo que estaria ligado a “identidade nacional” do povo haitiano.
O livro, Life in a Haitian Valley, de Melville J. Herskovits compartilha com
Ainsi Parla l’Oncle o clima de idéias surgido no contexto da ocupação norte-americana.
Publicado nos EUA em 1937, pode ser pensado como aquele que inaugura os trabalhos
de cunho etnográfico no Haiti. Resultado de uma pesquisa de campo que durou cerca de
três meses, realizada em 1934, último ano da ocupação militar, Life in Haitian Valley
expressa uma etnografia baseada nos moldes da corrente culturalista norte-americana.
14
No obra de Price-Mars, a palavra folclore é utilizada para designar não apenas as crenças, mas também
as tradições orais, os contos as canções, os costumes e tudo aquilo que seria próprio da sociedade
haitiana.
29
Assim, “procurando refutar interpretações racistas, nas quais os haitianos eram vistos
como vivendo num estado de selvageria sem os benefícios da civilização branca,
Herskovits traz descrições de tradições seculares e religiosas complexas e estruturadas
buscando explicar seus significados de acordo com a lógica da cultura haitiana.”
(Walter Jackson, 1986:112,113).
Herskovits tem como foco de interesse a questão do “contato cultural” e da
“aculturação” de povos que conviviam por um longo período com outras culturas
diferentes da sua. Assim, em Life in Haitian Valley procura apresentar as contribuições
européias e africanas que participaram da formação do Haiti.
15
Herskovits encontra no
Vodu elementos de origem africana, como por exemplo, a possessão espiritual, que
teriam sobrevivido a este “contato cultural”
entre os escravos vindos da África e os
colonizadores europeus. Como já subentendido no próprio título do livro, o maior
objetivo de Herskovits é o de fazer um relato sobre a vida dos habitantes do Vale de
Mirabalais. O Vodu acaba entrando como aquilo que pertence à dimensão religiosa do
cotidiano daquela população de maneira que uma grande parte do livro é dedicada à
descrição de seus rituais, suas danças, seus serviços de adoração aos espíritos e seus
cultos para os mortos.
Conforme havia mencionado, a preservação de objetos, lugares e práticas Vodu
era um dos objetivos dos etnólogos que pertenciam ao Bureau d’Ethnologie. As
preocupações relativas à ameaça de desaparecimento do Vodu não foram, entretanto,
exclusivas deste grupo de pesquisadores. Em 1941, depois de uma viagem ao Haiti,
Alfred Métraux, etnógrafo francês nacionalizado norte-americano, se sensibiliza com a
destruição dos objetos utilizados no Vodu e lamenta a falta de uma pesquisa sistemática
15
Herskovits procura mostrar quais eram as características de cada tribo africana e dos grupos de
franceses que elas teriam encontrado quando chegaram no continente americano. Neste sentido, o livro
mostra uma preocupação em contar a história da formação da cultura haitiana que teria resultado
justamente deste contato entre os europeus (a maioria franceses) e africanos.
30
sobre seus rituais. Métraux volta ao Haiti diversas vezes após este primeiro contato com
o país e sua presença em 1941 chegou mesmo a ser citada por Jacques Roumain como
algo que dava um novo impulso ao projeto de criação de um instituto de etnologia no
país.
16
Sua estadia mais duradoura naquele país (cerca de 6 meses) ocorreu em 1948 e
foi financiada pela UNESCO, que pretendia implantar no Haiti, mais especificamente
em Marbial, um projeto de desenvolvimento que previa a construção de escolas,
cooperativas de produção, pequenas indústrias etc (Laurière 2005). Assim, a partir da
sua convivência com os habitantes de Marbial e também de Porto Príncipe, Métraux
escreve Le Vaudou Haïtien, que será visto aqui e que resta, ainda hoje, como uma das
principais referências nos estudos sobre o Vodu.
Le Vaudou Haïtien é resultado de trabalho de campo etnográfico realizado no
Vale de Marbial durante os anos de 1948 a 1950. Publicado na França, em 1958, é o
primeiro livro escrito por um etnógrafo que se dedica especificamente ao Vodu. O
principal objetivo de Métraux era produzir um relato sistemático que descrevesse a
riqueza dos rituais e cerimônias Vodu. Nesse sentido, todo o livro é recheado de relatos
minuciosos sobre rituais e cerimônias, além de contar com uma exposição organizada
em capítulos que procuram abarcar o Vodu na “totalidade”, desde a sua história e os
contextos econômicos e sociais até o mundo sobrenatural e dos espíritos.
Entre 1960 até o final da década de 1980, período que corresponde ao tempo de
duração da ditadura duvalierista
17
temos uma época de relativa estagnação no que
concerne a publicação, no Haiti, de trabalhos sobre o Vodu. Laënnec Hurbon, sociólogo
16
Carta de enviada de Jacques Roumain à Paul Rivet, em 3 de novembro de 1941. Gradhiva 2005 p. 252.
17
A ditadura duvalierista corresponde ao período compreendido entre os anos de 1957 e 1986. Neste
espaço de tempo, François Duvalier (Papa Doc), médico, etnólogo e ex-membro do Bureau d’Ethnologie,
se tornou presidente do país no ano de 1957, posição que ocupou até 1971, ano de sua morte, quando foi
substituído pelo seu filho Jean Claude Duvalier, também conhecido como Baby Doc, que permaneceu no
poder até 1986 quando partiu em exílio para França.
31
haitiano radicado na França, chega a mencionar no “Prefácio à Nova Edição” (1987) de
Dieu dans le Vaudou Haïtien que enfrentou dificuldades para divulgar seu trabalho no
Haiti. Segundo o autor, este livro “já havia sido publicado em Paris há uma dúzia de
anos” e demorou a ser publicado no Haiti porque o “regime duvalierista” não favorecia
a circulação de textos que pudessem contestá-lo (Hurbon, 1987:7). Hurbon talvez seja
um dos autores que tenha mais livros publicados sobre o Haiti e sobre o Vodu.
Conforme já mencionado na introdução, atualmente ele é professor da Universidade de
Quisqueya de Porto Príncipe e pesquisador do Centre National de la Recherche
Scientifique (CNRS), em Paris.
Dieu dans le Vaudou Haitien se propõe refletir sobre a noção de Deus tal como é
concebida pelos praticantes do Vodu. A partir de uma tríplice abordagem teórica
(fenomenologia, estruturalismo e hermenêutica), Hurbon, assim como Métraux, e
diferentemente dos outros autores aqui apresentados, tem o Vodu como principal foco
de sua obra. No entanto, as pesquisas realizadas para o livro não são baseadas em
trabalho de campo etnográfico, como foram as de Métraux. A primeira parte do livro é
dedicada a uma descrição do que ele entende como sendo os contextos histórico,
econômico e social do Vodu. A segunda parte compreende uma análise da simbologia
do “sistema Vodu” por meio de uma abordagem estrutural. Na terceira e última parte ele
faz uso da hermenêutica com o objetivo de dar conta daquilo que transbordaria o
sistema Vodu que, neste caso, seria a própria noção de Deus.
Finalmente, temos os livros de duas autoras norte-americanas, ambas com
pesquisas etnográficas de longa duração realizadas principalmente com migrantes
haitianos vivendo nos EUA. São trabalhos cujo principal foco de análise está inserido na
temática da “diáspora haitiana”. O primeiro livro é de Karen McCarthy Brown e chama-
se Mama Lola: A Vodou Priestess in Brooklyn, publicado nos EUA em 1991. McCarthy
32
Brown é antropóloga e professora da Universidade de Drew, em New Jersey. Trata-se
de uma etnografia focada na vida de Alourdes, uma mambô que migrou para os EUA no
início da década de 1960, e que na época da pesquisa ganhava a vida no Brooklin, em
Nova York, com os conhecimentos que possuía por ser mambô.
Esta etnografia compreende experiências passadas e presentes de Mama Lola
(como Alourdes era conhecida), e as dificuldades enfrentadas por ela tanto no Haiti,
quanto nos EUA. Segundo o relato da autora, ela conheceu Mama Lola em 1978,
enquanto trabalhava para o Museu do Brooklyn fazendo um levantamento
etnográfico da comunidade imigrante haitiana em um projeto que incluía a produção
de material fotográfico de altares Vodu nas casas de ugãs e mambôs que viviam em
Nova York.
A maneira que McCarthy Brown escolheu para estruturar seu trabalho é
particularmente interessante. Ele se encontra organizado em capítulos que, de forma
intercalada, narram e refletem sobre as histórias de alguns personagens da família de
Mama Lola desde a época de seu bisavô e sobre os principais espíritos aos quais
“serve”. Além do trabalho desenvolvido pela autora em Nova York, o livro é resultado
de pesquisa realizada também no Haiti, para onde viajou algumas vezes, acompanhada
de Mama Lola, inclusive por conta de sua iniciação no Vodu. Estas viagens permitiram
que ela conhecesse certos lugares que fizeram parte da infância e da juventude de
Alourdes, assim como familiares e amigos que lá permaneceram, assim como
enriqueceram as descrições encontradas no livro.
Karen E. Richman, autora de Migration and Vodou, foi aluna de McCarthy
Brown. Atualmente é diretora do Center for Migration and Border Studies (CMBS)
pertencente ao Instituto de Estudos Latinos da Universidade de Notre Dame, nos
EUA. Migration and Vodou é resultado de um longo trabalho etnográfico
33
desenvolvido durante mais de duas décadas (entre 1981 e 2003) com migrantes
haitianos. Uma boa parte da pesquisa foi realizada em “fazendas de trabalho” situadas
na Flórida e no sul da Vírginia para onde eram enviados estes imigrantes que, na
maioria das vezes vinham de Ti Rivyè, uma seção rural pertencente ao distrito de
Léogane, no Haiti. Por conta de seu curso de doutorado, Richman morou por um ano e
meio em Ti Rivyè, onde combinou pesquisas do tipo qualitativo e quantitativo com a
população local e pôde conhecer os familiares e amigos de Little Caterpillar, seu
principal interlocutor nos EUA.
A autora utilizou como ponto de partida para as suas reflexões o conteúdo de
fitas cassetes que eram utilizadas como “cartas orais” trocadas entre os imigrantes e
seus familiares. Por meio destas gravações, os imigrantes podiam participar de
cerimônias e ouvir recados dos espíritos sem a necessidade de estarem fisicamente
presentes no Haiti. A Richman afirma que seu trabalho não é sobre Vodu. Seus
interlocutores não usam o termo que parece ser substituído pelas noções de Guiné e
Magia. Mas, mesmo não sendo sobre Vodu, as idéias comumente relacionadas ao termo
aparecem com freqüência no livro e, como ela própria escreveu, o Vodu “está implicado
nos destinos cruéis do povo de Ti Rivyè” (2005:21).
Richman faz um grande investimento na história da comunidade de Ti Rivyè,
por meio da qual procura mostrar as transformações sócio-econômicas ocorridas na
região durante o séc. XX e como elas influenciaram para o surgimento de uma “tradição
inventada”. De acordo com ela, ao mesmo tempo em que a população rural de Léogane
foi sendo incorporada como mão-de-obra barata no capitalismo transnacional, produtora
e exportadora de trabalho assalariado, ocorreram mudanças nos seus rituais de “serviço
aos espíritos”, devido à descoberta de uma autenticidade africana da Guiné nestes
rituais. Na visão dos camponeses, esta Guiné apareceria diferenciada da Magia
34
conforme veremos posteriormente. A hipótese de Richman é que Guiné e Magia
estariam em uma “relação dialética”, representando um símbolo, a maneira pela qual a
população de Ti Rivyè enxerga e é capaz de traduzir as transformações sócio-
econômicas ocorridas na região.
Antes de entrarmos diretamente nos tópicos que organizam a literatura, valem
algumas palavras acerca do estatuto das evidências nas quais se apóiam as
observações e reflexões feitas pelos autores que serão apresentados. Nesta direção
temos os livros de Hurbon e Price-Mars que não foram escritos baseados em
pesquisa de campo etnográfica, possuindo um caráter ensaístico nos quais há a
predominância de um tom prescritivo. Herskovits que conforme assinalei mais acima
inaugura os trabalhos de cunho etnográfico a serem realizados no Haiti é primoroso
em suas descrições ainda que a duração de seu campo tenha sido apenas de três
meses. No entanto seus dados e análise não podem ser comparados com a
profundidade daqueles trazidos por Métraux que morou no Haiti por seis meses e
escreveu exclusivamente sobre Vodu, o que fez com que seu livro adquirisse um
outro nível de detalhamento e complexidade em relação aos apontamentos e
observações trazidas do campo. No que diz respeito à condição das pesquisas de
McCarthy Brown e Richman, podemos dizer que elas foram feitas na maior parte do
tempo nos EUA o que as diferencia em relação às etnografias de Herskovits e
Métraux. Devo ressaltar ainda que, apesar de Richman ter morado no Haiti, sua
pesquisa tem um caráter fortemente militante e normativo o que, por vezes, traz
dificuldades ao leitor em enxergar os dados etnográficos em si, sem os significados
que a autora atribui a eles.
35
1 – Vodu e Haiti: metonímia e metáfora
“Mais do que qualquer outro único termo, é a
palavra ‘vodu’ que vem a mente quando alguma
menção é feita ao Haiti.”
18
(Herskovits, 1971:139)
No que diz respeito ao Vodu e ao Haiti outras duas coisas parecem acontecer.
Herskovits parece ter contribuído para a construção de uma delas quando escreveu o
trecho citado acima. De fato, parece haver uma relação metonímica entre o Haiti e o
Vodu, de forma que qualquer alusão ao primeiro nos faz imediatamente lembrar do
segundo.
19
Não foi diferente com os autores escolhidos para fazer parte desta
dissertação.
Mesmo aqueles cujo objeto de estudo imediato não era o Vodu (como o próprio
Herskovits, inclusive) acabaram por falar dele, ajudando, em certa medida na
construção desta relação, por exemplo, metonímica entre Haiti e Vodu. Price-Mars
estava especialmente preocupado com a questão da identidade nacional haitiana e por
isso foi buscar no “pensamento popular” elementos que fariam parte da “tradição”, ou
seja que seriam “típicos” do Haiti. Apesar dele fazer referências aos contos, provérbios
e canções, é aquilo que ele chama de “crenças populares”, ou seja o Vodu, que ocupa
grande parte do livro Ainsi Parla l’Oncle. A segunda coisa parece estar contida na
primeira. Trata-se do fato de que além do Vodu ter servido como metonímia para Haiti,
ele também serviu como metáfora, ou seja, uma temática que serve para falar do que
ocorre em termos sociais e culturais naquele país.
18
Todas as traduções são minhas.
19
Embora a cerimônia de Bois Caïman (citada na nota 4 da Introdução) não seja objeto de análise aqui
poderíamos lembrar que, na medida em que ela própria constitui-se em uma narrativa fundacional da
nação haitiana, pode ser entendida como mais uma evidência da relação metonímica que é construída
entre o Vodu e o Haiti.
36
Este é o caso quando Richman faz a seguinte afirmação: “Os exemplares da
autêntica Guiné não personificam camponeses, mas sim as forças que os cercam: a elite
cosmopolita, as corporações agroindustriais transnacionais e o poder neo-colonial. Estas
forças tem autoridade para dominar, mas apenas isso. Elas não têm pwen, não tem a
vitalidade que têm aqueles que são dominados.” (Richman, 2005:182). O conceito de
pwen, por exemplo, que a autora defende ser complexo e significar “qualquer coisa que
captura a essência de uma situação também complexa” (Richman, 2005:15)
20
, é
utilizado como metáfora para falar dos trabalhadores imigrantes haitianos. Ou seja, para
Richman, “pwen são imitações simbólicas camponesas do poder de trabalho alienado, a
essência do capitalismo” (2005:218). O mesmo acontece com as categorias Guiné e
Magia. Segundo a autora a Guiné e a Magia estão em uma relação dialética que nos
informa sobre a história da comunidade de Ti Rivyè. Esta história é a história da
expropriação das terras que pertenciam a trabalhadores camponeses livres que foram
incorporados ao sistema capitalista de produção e se tornaram trabalhadores
assalariados e exportadores de mão-de-obra barata para os EUA.
A dialética entre a Guiné e a Magia é vista, portanto, como “uma reformulação
simbólica da história desta comunidade” (Richman, 2005:185), ou seja ela é a maneira
pela qual a população de Ti Rivyè conta a sua história. Da mesma forma, a
personalidade e os gostos dos espíritos associados pelos seus interlocutores à Guiné se
assemelhariam à personalidade e aos gostos da elite cosmopolita do Haiti, e também aos
estrangeiros que representaram as forças capitalistas ao longo do século XX. Ou seja,
em todo o seu livro, Richman parece enxergar por meio das práticas e categorias
20
Apenas para esclarecer o significado de pwen, faço aqui referência à primeira nota, do capítulo 4 do
livro de Karen McCarthy Brown (1991:94) onde a autora sustenta que: “no contexto Vodu, a palavra
pwen (point) se refere a um feitiço ou talismã. Um pwen pode consistir em palavras, gestos, objetos
rituais ou ervas colocadas em um pequeno corte na pele de uma pessoa. Em todos os casos, o pwen
representa a condensação e a apropriação de poderes espirituais.” Em Richman (2005) a palavra pwen não
aparece definida no “contexto Vodu” nenhuma única vez.
37
associadas ao Vodu apenas a história de Ti Rivyè, com todas as transformações sociais
e econômicas, até as suas dificuldades e tensões vividas entre aqueles que saíram do
país e aqueles que permaneceram.
Hurbon também enxerga no Vodu a sociedade haitiana. De acordo com seus
argumentos, o Vodu “representa a expressão de uma relação de classes”, sendo a
“religião e a cultura por excelência das camadas populares” (Hurbon, 1987:87). O
universo dos loas é visto como “o lugar imaginário da projeção dos desejos da
sociedade haitiana”, onde os próprios espíritos “imitariam” a sociedade camponesa com
todos os seus conflitos e desejos. Esta propriedade imitativa da sociedade haitiana que
teriam os espíritos Vodu é o que torna possível conhecer o Haiti e os haitianos. De
maneira semelhante, o espírito feminino denominado Kouzinn aparece descrito em
McCarthy Brown (1991:157) como uma representação da “força notória e assertiva das
‘mulheres do mercado’ que apesar disso se submetem aos homens de suas casas.” Estas
mulheres, apesar de venderem nos mercados e conseguirem por causa disso, uma
relativa independência financeira, continuariam submissas aos homens nos seus lares,
da mesma maneira que ocorreria com Kouzinn. McCarthy Brown utiliza as
características dos espíritos, ou seja, o que cada um deles representa, como uma
alavanca para reflexões sobre a relação entre gêneros, sobre a população rural e a das
cidades, sobre os mercados e outros elementos que fariam parte da “cultura haitiana”.
Assim, por exemplo, o espírito Azaca é um camponês como o bisavô de Mama Lola,
sua principal interlocutora, mas também como um típico homem, trabalhador rural
haitiano.
Mas não é apenas por meio das características e personalidades de cada espírito
que podemos conhecer o Haiti. As letras dos cantos cerimoniais Vodu também
aparecem como mais um exemplo onde é possível “enxergar” a sociedade haitiana e
38
toda a “opressão social” vivida pelos camponeses. Reproduzo aqui uma destas letras,
conforme está escrita em Hurbon (1987:99): “Nós somos órfãos de mães / Nós somos
órfãos de pais / nossos parentes estão na Guiné, quem defenderá nossa causa!” De
acordo com o autor, “para as massas haitianas, o apelo aos espíritos da África é
inseparável da percepção da implacável opressão a que estão submetidas” (Hurbon,
1987:100). Ou seja, no trabalho de Hurbon o Vodu é um meio, uma maneira de entender
o que se passa na sociedade, principalmente no que diz respeito à relação entre duas
“classes sociais” e as conseqüências disso. Se por um lado, os cantos traduziriam um
sentimento de “opressão social” por parte dos voduisantes, por outro, o conteúdo das
demandas e os apelos que são feitos aos espíritos expressariam as preocupações
cotidianas da população rural como as doenças, os acidentes e a escassez de terras e
outros recursos. Assim, “o Vodu reflete estas preocupações. O que os fiéis demandam
aos deuses é menos um pedido de fortuna e felicidade que o de livrá-los dos males que
os assolam de todos os lados” (Métraux, A. 1958:51).
Conforme mencionado no início deste tópico, o Haiti parece manter uma relação
metonímica com o Vodu. Além disso, o Vodu também pode servir de metáfora para
falar da sociedade haitiana de uma maneira geral. Dentre os autores escolhidos aqui,
nem sempre o Vodu era o objeto da pesquisa, como é o caso de Price-Mars (que
buscava estudar o “folclore” haitiano), Herskovits (cujas preocupações estavam
dirigidas para a “cultura” haitiana) e Richman (cuja ênfase é na imigração). Poderíamos
afirmar que estes três autores apesar de não terem o Vodu como foco de suas análises,
acabaram encontrando nele uma maneira de falar sobre o Haiti, o que contribui para a
construção da relação metonímica entre os dois. Já McCarthy Brown que resolveu se
ocupar de uma imigrante haitiana que vivia nos EUA, acaba por falar do Vodu durante
todo o livro, mesmo que seja a partir da biografia de sua interlocutora. Em
39
contrapartida, Métraux e Hurbon escolheram o Vodu como objeto de suas pesquisas e
assim falaram do Haiti. Apesar de todos estes autores entenderem ou enxergarem o
Vodu como uma metáfora, uma maneira de informar sobre o que se passa ou se passou
em um meio social (neste caso não apenas em um lugar físico, o Haiti, mas também
com os haitianos, independente do lugar em que estão), Richman é a autora que parece
levar isso às últimas conseqüências, de forma que todas as coisas relacionadas ao Vodu
aparecem no seu trabalho apenas como símbolos que os haitianos dispõem para relatar e
denunciar fatos que ocorreram ou ocorrem nas suas vidas.
2 - O Vodu e a natureza dicotômica da sociedade haitiana: barbárie x
civilização e elite x massa
“A ideologia ocidental para fundar sua supremacia
cultural e seu imperialismo econômico, considerava
as culturas e religiões tradicionais como culturas
primitivas ou que possuíam uma mentalidade pré-
lógica em descontinuidade total com o homem
moderno, dito civilizado”
(Hurbon,1987:139).
A “natureza” da sociedade haitiana foi pensada em termos das dicotomias entre barbárie
e civilização e entre elite e massa. Este é um tópico extremamente recorrente quando se
trata do Vodu e as alusões a ele geralmente são realizadas a partir de referências feitas
pelos autores aos contextos histórico, econômico e social do Vodu, onde aparece a sua
história, como ele chegou no Haiti, como eram vistas as suas práticas, o que elas
representavam e quais as conseqüências disso. No que diz respeito a estas maneiras de
explorar e se referir a estas dicotomias parece haver dois registros. Um, meramente
descritivo, como é o caso de Métraux, McCarthy Brown e Richman e outro que além de
descritivo é também prescritivo, como é o caso de Price-Mars e Hurbon. Estes dois
autores haitianos, por estarem engajados politicamente, procuram determinar normas de
40
comportamento que deveriam ser seguidas pelos haitianos frente a esta natureza
dicotômica da sociedade.
Apesar de ser uma questão amplamente discutida, podemos afirmar que dentre
todos os autores aqui apresentados Hurbon é o que coloca estas duas dicotomias e sua
relação com o Vodu em termos mais explícitos. Sua entrada neste debate ocorre por
meio do recurso à história do Vodu no Haiti. Os argumentos de Hurbon caminham
numa tentativa de mostrar como ele foi associado à barbárie e assim, colocado em
oposição aquilo que era associado à civilização, como por exemplo a religião católica e
a língua francesa.
21
Utilizando como apoio principalmente documentos da igreja
católica e artigos da legislação haitiana, ele mostra como o Vodu foi considerado pelo
colonialismo cristão como uma prática supersticiosa e um culto malévolo, associado à
selvageria e ao primitivismo até chegar a ser legalmente proibido.
Na interpretação do autor, o Vodu teria sofrido uma desvalorização frente ao
Cristianismo que, segundo ele contribuiu para o desenvolvimento de um complexo de
inferioridade na população rural haitiana, adepta do Vodu. O cristianismo ocidental teria
inculcado na mentalidade do povo haitiano que o Vodu era um culto de adoração ao
demônio, uma prática mágica e supersticiosa culpada pelo atraso do país na entrada no
mundo da civilização. A idéia de que o Vodu era visto pela elite haitiana e pelo
estrangeiro como aquilo que representava a África no Haiti está presente nas obras de
Price-Mars e de Hurbon. Neste caso, a presença da África era associada a tudo aquilo
que era encarado como bárbaro, selvagem e distante da civilização diretamente em
oposição ao cristianismo ocidental que representava a civilização e, no limite, um
avanço em direção à modernidade que não era possível de ser alcançada pelos países
onde estivessem presentes tais práticas demoníacas e supersticiosas.
21
Ver Hurbon (1988).
41
A possessão, uma das principais características do Vodu, segundo estes dois
autores, sendo considerada por certas correntes da medicina da época como um ato de
histeria, um desequilíbrio mental ou como uma espécie de devoção demoníaca, era um
dos elementos que teria sido utilizado pela elite e pelos estrangeiros para comprovar o
primitivismo dos haitianos e os colocar em oposição à civilização
22
. Em relação a este
ponto, Hurbon se apóia no argumento de Herskovits com o objetivo de refutar estas
interpretações que associavam-no à barbárie. De acordo com Herskovits, “dentro dos
padrões da religião haitiana, a possessão não é anormal, mas normal” (Herskovits,
1971:148). Nesta curta passagem podemos notar que Herskovits também estava
preocupado em dar uma resposta às idéias que circulavam na época, onde o Vodu
aparecia associado à barbárie. Aliás, é a isto que se refere McCarthy Brown quando
escreve que “o retrato negativo na imprensa, nas novelas e nos relatos de viagem se
iniciaram logo depois que os escravos haitianos conseguiram sua liberdade, em uma
época na qual a escravidão ainda era uma prática nos Estados Unidos e em outras
colônias européias” (McCarthy Brown, 1995:111). A recusa por parte da Europa e dos
EUA em reconhecer a independência do Haiti também é citada pela autora, na medida
em que era justamente a prática do Vodu o motivo alegado para esta não aceitação. De
acordo com ela, “o argumento mais freqüente era o de que a barbárie de sua religião
deixava claro que os haitianos eram incapazes de governar a si próprios.” (McCarthy
Brown, 1995:111).
Os rótulos negativos que o Vodu recebeu associados à barbárie e à selvageria e
trazidos à superfície por meio dos pares de oposições negro/branco, negro/mulato,
ciência/magia, e de correlações como Vodu = satã, Vodu = magia e feitiçaria conforme
demonstrado em Hurbon (1988:I), se prolongaram ao longo do tempo e tiveram
22
Importante lembrar aqui que, conforme será mostrado no quarto tópico, para Price-Mars o Vodu era de
fato uma religião primitiva.
42
conseqüências que atingiram a todos os haitianos, mesmo aqueles que viviam ou ainda
vivem fora de seu país. Os estereótipos associados ao Vodu foram denunciados como
servindo a “propósitos racistas” (McCarthy Brown, 1991:111), e o próprio termo Vodu,
por conta de todos os sentidos negativos que carregaria consigo, foi traduzido como
uma construção hegemônica fundamental que representa o dominado como exótico e
outro” (Richman, K., 2005:21), sendo inclusive este o motivo apontado por Richman
para a não utilização da palavra Vodu em seu trabalho.
Nenhum dos autores concorda com estas dicotomias, apesar de todos
constatarem a sua existência. Sob o ponto de vista de Hurbon, toda a questão se resume
apenas à diferença entre as “sociedades” e não à suposição de uma hierarquia entre elas
onde uma seja bárbara (inferior) e outra civilizada (superior). No entanto, quando ele
sustenta que existe uma diferença “cultural” entre o Haiti e os países “ocidentais”, o faz
em termos de uma outra dicotomia, desta vez entre tradição e modernidade. O Vodu
seria, portanto, parte da “sociedade tradicional”. Por causa disso, “dentro do Vodu, por
exemplo, o mal é sempre compreendido como uma desordem de ordem natural e social
implicando uma causalidade por vezes material e espiritual.” Em contrapartida, em uma
sociedade moderna, a causa do mal não seria vista como tendo uma origem em alguma
coisa exterior, sendo o indivíduo o “único responsável por suas faltas e erros.” (Hurbon,
1987:192).
Nos livros de Price-Mars, Hurbon e Métraux, o Vodu é tomado explicitamente
como a religião “popular” ou ainda, como “própria” das massas camponesas
(Hurbon,1987). Ou seja, ele seria a prática religiosa por excelência desta população,
uma “identidade cultural” que, embora “alienada pelo cristianismo” deve ser
reencontrada por estas massas (Hurbon,1987:26). A elite, na medida em que estaria com
seus olhos voltados para fora do Haiti (neste caso, para a Europa), seria adepta do
43
catolicismo e não do Vodu, justamente por causa de todas as associações relacionadas
ao Vodu e anteriormente mencionadas. Para esta elite, “a verdadeira civilização é a
civilização ocidental e a verdadeira religião é a católica, como a verdadeira língua
(aquela falada por 2 a 5% da população haitiana e que é reconhecida como língua
oficial, mesmo sendo o creóle a única língua das massas), é a língua francesa”
(Hurbon,1987:28).
O fato da elite haitiana ter seus olhos voltados para fora do país também é
ressaltado por Price-Mars logo no prefácio do seu livro, onde ele reflete sobre o desafio
de escrever sobre o valor do folclore diante do público haitiano (neste caso aquele que
seria capaz de ler, ou seja a elite) que, segundo ele desprezaria tudo aquilo que fosse
autêntico do povo de maneira que “linguagem, hábitos, sentimentos, crenças se tornam
suspeitos, marcados pelo mau gosto aos olhos da elite, tomada pela nostalgia da pátria
perdida” (Price-Mars, 928:II). Assim, ser adepto ou não do Vodu, assim como falar
francês ou apenas creóle, seria uma maneira de informar sobre as relações de classe
existentes no país. Ou seja, a língua e a religião aparecem exatamente como aquilo que
diferenciaria a elite (civilizada) das massas (não civilizadas).
No entanto, o Vodu não foi tratado apenas como um elemento de diferenciação
entre massa e elite. Assim, embora todos pareçam concordar que o Vodu cujos adeptos
são aqueles que pertencem ao povo e não à elite, nem sempre esta separação é vista de
maneira radical, conforme demonstrado na seguinte passagem: “Mesmo no domínio (do
Vodu) que nos interessa aqui, o contraste (entre massa e elite) não é tão pronunciado
quanto nós poderíamos crer. A maioria das crianças da elite é confiada a domésticas
vindas das massas que despertam neles todos os temores da Guiné” (Métraux, 1958:49).
Ou seja, aqui o Vodu continua sendo uma “religião popular” mas que, ao mesmo tempo,
atinge a todas as camadas sociais. Neste sentido, diferentemente das idéias defendidas
44
por Hurbon, o Vodu poderia ser visto como aquilo onde estas duas classes sociais se
encontram, um ponto em comum que ultrapassaria na prática uma divisão cultural. Este
ponto de contato entre pessoas de “dois universos” distintos faria com que todos os
haitianos, independentemente de sua posição social, estivessem familiarizados com o
Vodu, ainda que por meio de histórias de “zumbis” ou pela aprendizagem de como se
proteger de “feiticeiros” (Métraux, 1958:49-50).
A diferença de personalidades e gostos que caracteriza cada espírito pertencente
ao panteão Vodu é uma outra maneira pela qual as diferenças entre massa e elite podem
ser constatadas. Ezili Dantò, por exemplo, foi descrita como um espírito feminino que
“não imita as mulheres socialmente empowered. Ela conta a história das mulheres
pobres”. Em contraste a ela, teríamos Ezili Freda, um outro espírito feminino que, por
sua vez, “imita os ideais de beleza (daquelas mulheres) que têm poder social e
prestígio” (McCarthy Brown, 1991: 255). Ou seja, considerando as características
atribuídas por McCarthy Brown a Ezili Dantò e Ezili Freda, temos, na opinião da
própria autora, a representação de dois tipos de mulheres haitianas, aquela que faria
parte do povo e a que pertenceria à elite. Assim, as iconografias e os relatos ouvidos
pela autora que dizem respeito a Ezili Freda são os de uma mulher branca, que é
considerada como sendo privilegiada por causa desta característica, além de possuir
uma segurança material e social. Ao contrário, Ezili Dantò seria vista como uma mulher
negra, pobre e que por não ter qualquer garantia material ou social deve trabalhar duro
para assegurá-las.
Conforme mencionado anteriormente, a natureza da sociedade haitiana foi
pensada em termos dicotômicos, onde as oposições entre barbárie x civilização e massa
x elite são, na maioria das vezes, encaradas como inerentes à nação, como se fizessem
parte da sua essência. Neste sentido, nem sempre encontramos nos autores vistos aqui
45
reflexões que busquem entender ou questionar os motivos que levaram a uma
constituição deste tipo. Como exceção temos Hurbon que busca mostrar, a partir da
história, como foram estabelecidas estas dicotomias, e também Métraux que vai um
pouco além da simples constatação da existência da dicotomia entre massa e elite ao
colocar em cheque a visão onde elite e massa sejam vistas como radicalmente separadas
uma da outra.
3 - O Vodu e suas funções
“O Vodu cumpre uma função social útil no estado
atual da sociedade haitiana.” [...] “As cerimônias em
honra aos loas-racine contribuem para reforçar a
solidariedade do grupo familiar cujos membros
devem prestar coletivamente suas obrigações aos
espíritos ancestrais. Enfim, por causa de sua
influência ougan e mambô, introduzem um elemento
de coesão na frouxa estrutura do campesinato.”
(Métraux, 1958:322).
Métraux é o autor que mais atribui “funções sociais” às práticas (danças, cerimônias,
rituais) relacionadas ao Vodu. Estas funções aparecem no seu trabalho diretamente
ligadas ao estado de miséria extrema em que se encontrava o país na época em que ele
fez a sua etnografia. De acordo com os seus argumentos, os seres humanos não
precisam apenas de casas, roupas ou comidas, mas também de segurança frente a um
futuro incerto. Esta segurança poderia ser encontrada justamente no Vodu e seria esta
uma das causas que faria as pessoas se ligarem a ele, “o homem precisa de segurança; é
precisamente porque ele é pobre e ameaçado constantemente pela penúria e pela doença
que o camponês é tão fortemente ligado ao Vodu” (Métraux, 1958:322). O Vodu
aparece assim como o lugar de esperança, como o lugar onde existe uma possibilidade
de melhora diante de uma situação caótica. Ao mesmo tempo, o Vodu cumpriria
também as funções de divertimento, na medida em que as pessoas cantam e dançam, por
46
exemplo, e também de fortalecedor dos laços de solidariedade entre os grupos
familiares que precisam se reunir para a realização das cerimônias e dos rituais.
A função de dar segurança também é mencionada por Hurbon. No seu trabalho,
todo o “simbolismo” pertencente ao sistema Vodu é interpretado como sendo aquilo que
permite que os voduisantes sejam inseridos em uma rede de significados onde os
conflitos sociais podem ser vencidos e a segurança, encontrada. Nas suas próprias
palavras, “o recurso ao mundo dos espíritos fornece uma linguagem reveladora,
organizadora daquilo que está desorganizado, ou seja, fornece uma linguagem do
mesmo tipo que a linguagem mítica sempre pronta a rearrumar qualquer evento
perturbador, a acabar com toda incerteza, a proteger contra toda insegurança. “O
voduisante não será jamais apanhado pelo imprevisto” (Hurbon, 1987:146). O Vodu
cumpriria, assim, a função de fornecer segurança aos indivíduos, tornando um mundo
caótico em um mundo organizado, onde a realidade pode, finalmente, ganhar algum
sentido. Entender o universo a partir da linguagem dos loas, ou seja do Vodu, seria
tornar coerentes e compreensíveis tudo aquilo que está desorganizado ou fora do lugar.
Perder esta linguagem significa, segundo Hurbon, perder a chance de reconhecer seu
lugar no mundo e toda a segurança garantida por ela.
Uma outra maneira de compreender o Vodu em termos funcionalistas é
relacioná-lo diretamente aos papéis desempenhados pelos espíritos. Assim, no trabalho
de McCarthy Brown os espíritos por se constituírem em “reflexos” da vida dos próprios
haitianos também foram vistos como tendo algumas funções a cumprir. Isso pode ser
exemplificado quando McCarthy Brown sustenta que o espírito Azaca, por ser um
“trabalhador camponês”, um “homem das montanhas”, é importante “para lembrar aos
devotos de suas raízes, de sua necessidade em relação à família (o grupo que inclui os
ancestrais e os espíritos) e de sua ligação com a terra” (McCarthy Brown, 1991:36).
47
Além disso, da mesma forma que Métraux, McCarthy Brown considera que as práticas
Vodu reforçam estes laços familiares na medida em que por meio das cerimônias e
outros rituais, como os de iniciação por exemplo, a família que geralmente se encontra
espalhada seja no próprio Haiti ou fora dele, pode se reunir.
4 - Vodu e Religião: das justificativas à constatação
“O Vodu é uma religião porque todos os seus
adeptos crêem na existência de seres espirituais que
vivem em alguma parte do universo em estreita
intimidade com os humanos, os quais dominam as
atividades.”
“O Vodu é uma religião porque o culto devotado a
seus deuses reclama um corpo sacerdotal
hierarquizado, um conjunto de fiéis, de templos, de
altares, de cerimônias e, enfim, toda uma tradição
oral que, apesar de não ter chegado até nós sem
alteração, foi o que garantiu a transmissão das partes
essenciais deste culto.”
(Price-Mars,1928:32)
No grupo de autores escolhidos nesta dissertação, as questões relativas à
problemática das relações entre Vodu e religião parecem obedecer a dois
movimentos. Se por um lado temos autores que procuram fornecer argumentos e
justificativas para que o Vodu seja definido como uma religião, por outro temos
aqueles que, já tomando esta classificação como um dado, não necessitam de
maiores explicações. No entanto, todos estes autores, ou seja tanto os que procuram
justificativas quanto os que já partem do pressuposto de que o Vodu é uma religião,
parecem estar especialmente preocupados com a qualidade desta religião. Dito de
outra maneira, um dos fatores que fica evidente no conjunto dos autores aqui
reunidos é a necessidade, senão de justificar sim de adjetivar a religião Vodu. Além
disso, veremos como o conceito de religião quando relacionado ao Vodu parece ser
construído de forma negativa, principalmente nas obras de Price-Mars e de Hurbon,
48
onde a única alternativa possível à não classificação do Vodu como uma religião é
classificá-lo como superstição e assim colocá-lo ao lado da barbárie e da não-
civilização.
Dos autores que serão citados aqui, Price-Mars é o primeiro a apresentar o Vodu
como uma religião e o que mais se preocupa em fornecer justificativas para que o Vodu
seja qualificado desta maneira. Interessado em transformar o “pensamento popular
haitiano” em objeto de estudos reconhecido nos moldes da “etnografia tradicional”,
Price-Mars defende que as “crenças” do povo seriam aquilo que melhor representaria o
“folclore” haitiano. Se apoiando em trabalhos anteriores ao dele
23
, que procuravam
definir o que poderia ser entendido como religião, Price-Mars chega à conclusão de que
o Vodu satisfaria as condições para que fosse assim denominado. Ou seja, o Vodu
contaria com a presença de seres espirituais invisíveis aos quais pessoas se tornam
devotas, assim como a presença de templos e cerimônias e a distribuição de papéis
específicos como o de sacerdote, por exemplo. Todas estas características foram vistas
pelo autor como fundamentais para que o Vodu fosse compreendido como uma
autêntica religião.
No entanto, na opinião do autor, apenas a presença destas características não
seria suficiente se o Vodu fosse uma prática imoral ou amoral. Este fator leva Price-
Mars a estabelecer uma breve discussão acerca da moralidade no Vodu, ou seja
sobre aquilo que poderia fornecer uma justificativa definitiva acerca da classificação
do Vodu como uma religião. Assim, a partir de uma perspectiva comparativa ele
chega à conclusão que a moralidade do Vodu não precisa ter como modelo aquela
que faz parte das religiões cristãs, e acaba buscando como referência a idéia de
moral que possuem as sociedades primitivas. De acordo com ele, a moral tal como
23
Para organizar seus argumentos e tentar entender o que seria uma religião, Price-Mars se apóia nas
idéias desenvolvidas por Durkheim no livro Les formes élémentaires de la vie religieuse, por j. Bricourt
em Où en est l`histoire des religions e aqueles contidos no livro La religion des primitifs, de Mrg. Leroy.
49
está presente nestas sociedades, se expressaria por meio de um código de
obrigações, de origem religiosa, que regulariam a vida pública e privada das pessoas.
Seu argumento caminha, assim, no sentido de uma comparação da moralidade do
Vodu com a moralidade das sociedades primitivas, julgando-a não em relação ao
cristianismo onde esta moral estaria num estágio mais elevado, mas sim por seu
valor intrínseco.
Portanto, é com a proposta de mudar o eixo de referência (da moral cristã para a
moral das sociedades primitivas) que Price-Mars vai sustentar que o Vodu é uma
religião, sobretudo porque possui uma moral que, embora não seja a moral cristã, tem
uma concepção de ordem social organizada por um conjunto de obrigações religiosas
que não são de forma alguma incoerentes ou sem sentido. No entanto, ele conclui que o
Vodu, ao contrário das religiões cristãs é uma religião “muito primitiva” da qual fazem
parte, a “crença” no poder de seres espirituais e a “crença” na magia e na feitiçaria. No
Haiti esta religião não estaria em seu estado puro, mas sim misturada à religião católica
e adaptada às condições de vida da população rural (1928:37).
A preocupação em definir o Vodu como uma religião não é, entretanto,
exclusividade de Price-Mars. Em Hurbon (1987), por exemplo, apesar do autor partir
inicialmente do pressuposto de que o Vodu é uma religião, sem apresentar
argumentos que justifiquem esta classificação como o faz Price-Mars, podemos
notar uma certa dose desta preocupação quando ele escreve que “o caráter das
cerimônias voduisantes
24
, e mesmo o culto dos mortos, já é suficiente para nos
convencer da presença permanente de atitudes propriamente religiosas nestas
práticas” (Hurbon, 1987:165). Este trecho revela também a necessidade de
convencer os leitores da idéia de que o Vodu é uma religião. Ou seja, tanto para
24
O autor usa o termo francês vaudouesque ou voduisante em creóle.
50
Hurbon, quanto para Price-Mars, sustentar o argumento de que o Vodu é uma
religião significa afirmar que não é incoerente, não é ilógico, não é bárbaro e, enfim,
não é não civilizado. Ainda que esta característica esteja de certa forma presente nos
outros trabalhos me parece que é nestes dois que ela aparece com mais força, como
se fosse crucial o enquadramento das práticas relacionadas ao Vodu em um sistema
religioso, na medida em que representa a possibilidade de tirar os voduisantes da
barbárie. Além disso, a qualificação do Vodu como uma religião possibilita a
aquisição de uma certa nobreza em seu estudo fazendo com que ele passe a ser
encarado como um objeto digno de atenção por parte dos próprios pesquisadores e
autores que escrevem sobre ele.
O Vodu como apresentado por Hurbon, é um “sistema religioso” bem
organizado, com um lugar bem definido para cada elemento. Sua principal preocupação
parece ser a de mostrar como este “sistema” possui um corpo hierarquizado, composto
basicamente de sacerdotes e de servidores dos espíritos. Há uma tentativa muito clara de
mostrar como o Vodu é uma religião formada por um “sistema lógico e coerente”, que
tem uma idéia de Deus e de “justiça divina” parecida com a idéia do catolicismo, com
papéis definidos, com elementos simbólicos próprios, com cerimônias organizadas de
acordo com determinadas épocas do ano, com rituais complexos de iniciação etc.
No que diz respeito ao reconhecimento do Vodu como uma religião, a primeira
nota do capítulo oito de Life in a Haitian Valley (Herskovits, 1971) é particularmente
interessante. Nela, Herskovits argumenta que “Se o Vodu é ou não uma religião, um
problema que os escritores haitianos (e.g., Price-Mars (I), 32 ff.) estão inclinados a
discutir demoradamente, não necessita ser considerado aqui desde que, para um
etnólogo, a resposta é tão obviamente afirmativa para necessitar uma discussão”
(Herskovits, 1971:336). Ou seja, enquanto nos trabalhos de Price-Mars e de Hurbon há
51
uma preocupação intensa em procurar elementos que justifiquem a classificação do
Vodu como uma religião, Herskovits já toma isso como um dado óbvio que não
necessita ser justificado. Mesmo assim, a questão de ser ou não o Vodu uma religião
está colocada com tanta força que, ainda que Herskovits argumente a favor da evidência
deste fato, ele sente a necessidade de colocar uma nota que não apenas faz referência a
tal discussão, mas também explica o motivo pelo qual ele não vai entrar nela.
A idéia de que a religião Vodu, seria resultado do “contato” e conseqüente
“adaptação” dos negros escravos às novas formas de vida impostas a eles pelos
colonizadores está presente praticamente em todos os trabalhos como, por exemplo, na
seguinte passagem: “Se o Vodu representa um modo de adaptação original dos negros
desde o seu desembarque na ilha do Haiti, é necessário vê-lo dentro de um movimento
geral de restauração de todo o sistema africano em função das novas condições
encontradas por estes negros no país” (Hurbon,1987:82). Além disso, não apenas o
Vodu é uma religião, mas sobretudo uma religião “desvalorizada” frente ao catolicismo,
idéia esta que aparece com muita força principalmente no trabalho de Hurbon. Mas o
Vodu é mais do que isso, sendo visto por Price-Mars e por Hurbon como uma
“linguagem”, ou seja um meio de se expressar aquilo que seria próprio da população
rural do Haiti, que estaria diretamente relacionada a sua identidade cultural.
Um fator interessante de ser ressaltado diz respeito aos adjetivos que
acompanham a religião Vodu nesses textos. É raro que a palavra religião, em referência
ao Vodu, não venha imediatamente qualificada, como se houvesse uma necessidade não
apenas de justificá-la como religião, mas também definir às suas caracteristicas. Dentre
os adjetivos que são mais utilizados, a palavra “popular” parece estar em primeiro lugar,
ainda que outros qualificativos sejam freqüentemente empregados. Conforme já descrito
52
acima, em Price-Mars, por exemplo, o Vodu, além de ser uma “religião popular”
também é “uma religião muito primitiva” (1928:37).
Podemos encontrar outros exemplos da adjetivação do Vodu em Métraux que,
ao contrário de Price-Mars e Hurbon, já parte do pressuposto de que o Vodu é uma
religião. O Vodu aparece aqui definido como sendo “essencialmente uma religião
popular” (1958:49), como “uma religião prática e utilitária que se preocupa mais com
questões terrenas do que aquelas do céu” (1958:81). Segundo ele, o Vodu se apresenta
sob duas formas, uma doméstica (tal como é praticado no meio rural haitiano) e outra
pública. O “Vodu público”, ou seja aquele que ocorre em templos e congregações na
cidade de Porto Príncipe, que é, segundo o próprio autor, o objeto de sua pesquisa, é
resultado da fusão de vários elementos e não se constitui em uma herança pura de
tradições africanas.
A idéia de que o Vodu não é uma religião pura e que mistura vários elementos
também aparece em outros autores. Praticamente em todos eles, o Vodu é uma religião
que mistura elementos africanos com elementos católicos. Hurbon utiliza o termo
“sincretismo” para expressar esta mistura. Herskovits utiliza o termo “influência”
(1971:274) quando se refere aos elementos católicos. Já em McCarthy Brown o Vodu
aparece como “a nova religião que emergiu do caos social e da agonia dos escravos
(trabalhadores) das plantations do Haiti do séc. XVIII, misturada a diversas religiões
africanas com o catolicismo colonial francês” (1991:3,4). Além disso, contaria com uma
particularidade em relação a outras religiões africanas do que ela chama do Novo
Mundo. Para a autora, o Haiti passou por um isolamento do resto do mundo depois de
sua independência, o que fez com que o Vodu ficasse mais próximo de suas origens
africanas.
53
O debate mais expressivo em relação à definição do Vodu enquanto uma religião
pode ser encontrado na obra de Price-Mars e de Hurbon, embora o primeiro seja o autor
que mais procura justificativas que fundamentem a idéia de que o Vodu é uma religião,
ainda que primitiva. Herskovits parece estar um pouco na fronteira. Neste sentido,
mesmo que tome como dado que o Vodu é uma religião, ainda precisa explicar, ainda
que em uma nota, o motivo para a sua posição. Nos outros autores esta idéia já é tomada
como um pressuposto, como um dado e não necessita mais de explicação. A
preocupação de Metraux e de McCarthy Brown, por exemplo, parece estar muito mais
voltada para as qualificações da religião Vodu (ainda que esta seja uma característica
compartilhada por todos os autores) ou como os adeptos desta religião vivem, do que
para uma problematização da questão de ser ou não uma religião em si. No entanto,
todos estes trabalhos, com exceção do de Métraux (que chama o Vodu de “superstição”
algumas vezes ao longo do seu livro e com isso parece se contradizer), parecem ter
como característica comum o fato de que a definição de religião ser construída
negativamente. Ou seja, os autores compram os termos que estigmatizam o Vodu para
negá-los e a partir daí poder enxergar o Vodu de forma positiva.
Assim, parecem existir apenas estas duas opções de interpretação do Vodu: ou
ele é uma religião porque não é superstição, ou é superstição e daí está aprisionado
dentro de estereótipos que o estigmatizam. A partir da constatação de que o Vodu é uma
religião, as referências que se tornam possíveis são aquelas que dizem respeito aos loas,
às cerimônias, à possessão, à hierarquia e aos rituais. São estes elementos que entram
em cena, que aparecem quando o debate é sobre a religião Vodu. Neste sentido, ao
contrário de Price-Mars e de Hurbon cuja discussão é de ordem mais ensaística,
Herskovits, Métraux, McCarthy Brown e Richman trazem descrições etnográficas mais
ricas e detalhadas de cerimônias, possessões e rituais.
54
5 - Vodu e magia e feitiçaria
“O termo maji (magic) é totalmente flexível. Ele é
freqüentemente utilizado, por exemplo, por um in-
group para caracterizar as práticas de um out-group.
Pessoas de Porto Príncipe falam sobre a religião do
Vale de Artibonite como maji...”
“Às vezes, a palavra é usada de forma auto-
descritiva como um termo próprio para os ritos
Petwo em quase todas as suas práticas. O período
entre o natal e o ano novo é conhecido como a
estação da maji por toda parte no Haiti.”
(McCarthy Brown, K., 1991:188)
Magia e/ou feitiçaria são palavras extremamente mencionadas pela literatura acadêmica
sobre Vodu. Nenhum dos autores aqui apresentados deixou estes termos de fora, o que
nos leva a pensar que falar de Vodu significa ter que falar de magia seja como feitiçaria
que, conforme veremos, também pode ser chamada de magia negra, seja como magia
branca ou ainda somente como magia, sem qualificativos. Algumas vezes ela aparece
como sinônimo de feitiçaria, em outras a feitiçaria aparece como sinônimo apenas da
magia negra. Portanto, só mencionarei a palavra feitiçaria quando ela for parte do
vocabulário utilizado pelo autor apresentado e a seguir explicarei o que o termo
significa na sua obra.
Conforme exemplificado na citação acima, o termo maji se caracteriza por uma
grande flexibilidade, mas aparece de maneira mais freqüente como um qualificativo
para as práticas de um outro, algum vizinho, alguém de fora, e assim por diante. Além
disso, maji pode ser utilizado como uma auto-referência quando os ritos qualificados
como petwo
25
têm lugar nas cerimônias. McCarthy Brown é a única, dentre os autores,
aqui apresentados que faz uma reflexão, ainda que breve, um pouco mais concreta sobre
25
Sobre o Vodu haitiano, a literatura freqüentemente aponta para a existência de alguns tipos de ritos.
Hurbon, por exemplo, sustenta que no Vodu podemos encontrar três grandes ritos, o Rada feito em honra
aos espíritos chamados de loas da Guiné, considerados loas bons e originários de Dahomé; o Kongo que
corresponde aqueles dirigidos aos loas de origem banto; e os Petro (em francês) por meio do qual se
celebram os loas que vem da própria colônia de Santo Domingo. (1993:71). De uma maneira geral, os
loas petwo são descritos como aqueles que são utilizados para fazer magia.
55
aquilo que os haitianos entendem quando o termo maji é empregado. No que diz
respeito aos trabalhos de Herskovits, Métraux e Richman que, assim como o de
McCarthy Brown, estão baseados em pesquisa etnográfica o conceito de magia ou é
alargado para dar conta daquilo que os autores, mas não os “nativos”, consideram como
magia (que é o caso de Herskovits e de Métraux), ou sofre tantas sobre-interpretações
que se torna difícil quais são os sentidos que os haitianos dão ao termo quando o usam,
como é o caso de Richman.
Apesar de todos os autores constatarem a existência da magia associada ao
Vodu, Price-Mars e Hurbon, cujos trabalhos não são etnográficos, parecem estar mais
preocupados em justificar e explicar esta presença e o funcionamento da magia na
religião Vodu, e por isso acabam entrando em debates também teóricos sobre os
conceitos de religião e magia. Price-Mars, por exemplo, mesmo depois de considerar a
dificuldade de uma delimitação de fronteiras entre os “domínios” da magia e da religião,
acaba diferenciando um “domínio” do outro pelo “tipo de crença” que lhes seriam
característicos. Segundo ele, as “crenças religiosas” possuiriam “a virtude de nos reunir
em comunidade, de tornar mais sensíveis os laços que ligam os indivíduos uns aos
outros.” Já as “crenças mágicas são obrigadas a se cercar de mistérios por aspirar pelo
medo à dominação das almas e não se difundem a não ser entre os raros iniciados. Elas
revelam por isso um caráter particularmente individualista. Neste sentido, notamos que
se existem comunidades religiosas, não existem comunidades mágicas” (Price-Mars, J.
1928:37).
“Sem dúvida, na civilização ocidental, a magia não vive mais que em um estado
de sobrevivências curiosas...” (Durkheim, E., apud. Price-Mars, 1928:36-37). Conforme
mencionado anteriormente, parte da atenção de Price-Mars e de Hurbon está voltada
para buscar justificativas para a presença da magia no Vodu, como se esta presença
56
ameaçasse o estatuto do Vodu como uma verdadeira religião. As saídas encontradas por
estes dois autores são, no entanto, muito diferentes. Price-Mars tinha uma postura
evolucionista diante desta questão e acreditava que com o avanço do “conhecimento”, a
“crença na magia” se tornaria cada vez mais restrita. Como a magia é vista pelo autor
como algo que poderia atrapalhar seu esforço em provar que o Vodu era uma religião,
ele passa a argumentar no sentido de que faria parte de outras religiões também. Sua
maior ou menor presença apenas nos informaria o quanto a religião já “avançou”,
caminhou em direção à modernidade. Ou seja, Price-Mars se coloca numa posição onde
admite que magia e religião são duas formas distintas de crença, mas como seu objetivo
é defender a classificação do Vodu enquanto religião, sua saída para justificar as
práticas mágicas dos voduisantes é afirmar que as religiões passam por um processo
evolutivo do qual a magia é constitutiva, principalmente nas etapas iniciais. Logo, o
Vodu como ainda conta com “crenças mágicas”, é uma “religião primitiva”, mas mesmo
assim uma religião.
Ao contrário de Price-Mars, Hurbon não vê razões para o estabelecimento de
uma distinção precisa entre magia e religião. A magia seria “como uma estrutura
permanente da humanidade. Ela não é um obstáculo ao espírito científico e nem ao
espírito religioso. Ela pode estar em todas as situações, religiosas, irreligiosas ou a-
religiosas” (Hurbon, L., 1987:159). Com base nos argumentos desenvolvidos por Lévi-
Strauss, sustenta que o procedimento mágico é apenas um modo de lidar com a
realidade diferente do modo científico, não estando nem em oposição e nem em uma
linearidade com ele. Dito de outra maneira, Hurbon ao mesmo tempo em que coloca a
magia ao lado da ciência e da religião e não em uma posição de anterioridade a uma ou
outra, sustenta que ela faz parte da humanidade e por causa disso pode estar presente em
diversos contextos. Seguindo a lógica de seus argumentos, não haveria qualquer
57
problema de sua presença no Vodu, ou seja, ela não representaria uma ameaça ao
estatuto de “sistema religioso” e nem o classificaria como primitivo.
Para Hurbon a magia, a feitiçaria e a religião seriam “aspectos” do sistema
Vodu. Assim como Price-Mars, também sustenta que a magia faz parte do Vodu, só
que, ao contrário dele esta característica não faz com que o Vodu seja primitivo. Em
Dieu dans le Vaudou Haïtien, a magia e a feitiçaria constituem um “modelo de
interpretação para os males” de que dispõem os “voduisantes” (Hurbon, 1987:158). Para
lidar com estes males existiriam três personagens denominados ugã, boko e feiticeiro
que segundo Hurbon “são criados por um consenso social, sempre ligados uns aos
outros, para evitar o imprevisível, graças aos poderes sobrenaturais dos quais eles
dispõem, ou melhor, dos quais ele se tornam depositários...” (Hurbon,1987:162). A
diferença residiria nos usos que cada um faz dos poderes que tem. O feiticeiro utilizaria
estes poderes apenas para fazer o mal, o ugã, ao contrário, apenas para o bem, e o boko
(ugã que “trabalha com as duas mãos”) seria aquele personagem que utilizaria seus
poderes para o bem ou para o mal.
Neste sentido, sua definição de feitiçaria fica muito clara: ela é um “aspecto” e
uma prática utilizada exclusivamente para o mal. Podemos encontrar uma definição do
que seriam os aspectos mágicos do sistema Vodu se observarmos a seguinte passagem:
“entre o ugã e o feiticeiro, existe o boko que ocupa uma posição mediana, aquela que
passeia livremente nas regiões do mal (feiticeiro) e do bem (ugã). Aqui aparece
particularmente imprecisa a distinção entre magia e religião” (Hurbon,1987:163). Se
somarmos a isso o fato dele, por vezes, empregar as palavras magia e feitiçaria
indistintamente e sustentar que os serviços do ugã “devem estar orientados para o bem,
quer dizer para fins apenas curativos e religiosos” (Hurbon,1987:165), podemos
58
imaginar que os aspectos mágicos correspondem ao mal e os aspectos religiosos, ao
bem, em uma relação de oposição dentro de um sistema religioso maior que é o Vodu
26
.
Algumas vezes, a palavra feitiçaria pode ser associada ao termo magia negra
(voltada para o mal) em oposição à magia branca (voltada para o bem). De acordo com
Métraux, a “magia negra”, sinônimo de feitiçaria, seria aquela voltada exclusivamente
para o mal. Dentre os elementos que são associados a ela no trabalho de Métraux estão,
por exemplo, os serviços feitos pelos feiticeiros de expedição dos mortos, onde um
morto é enviado para afligir uma determinada pessoa considerada inocente. A compra
de espíritos também é interpretada como sendo do domínio da “magia negra”, assim
como a feitura de zumbis. Já a magia branca é definida por Métraux como profilática.
Fariam parte dela principalmente os tratamentos rituais de cura contra a “feitiçaria”, as
formas de se proteger de feitiços por meio de talismãs e amuletos, assim como os
banhos de ervas que também possuem finalidades protetoras e curativas. Uma outra
forma de denominação que apareceu para estas duas espécies de magia foi o de
qualificá-las simplesmente como boa ou má, como o fez mais freqüentemente
Herskovits. A “magia boa” seria segundo Herskovits, “uma forma socialmente
desejável”, em contrapartida a “magia má” é classificada como agressiva, destrutiva e
com manifestações anti-sociais” (Herskovits,1971:241).
Conforme já foi dito, Herskovits e Métraux chamam a atenção para as diferenças
de emprego do termo magia como feito por eles, e aquele que é entendido pelos
haitianos. Na opinião de Métraux, por exemplo, “muitos haitianos, no seu desejo de
lavar o Vodu das imputações que ele freqüentemente carregou, opõem com vigor culto
dos loas e magia. Uma tal distinção não é válida a não ser se dermos à palavra ‘magia’ o
sentido restrito de magia negra ou de feitiçaria” (Métraux, 1958:236). De acordo com
26
Em um trecho do livro Dieu dans le Vaudou Haïtien, Hurbon utiliza a palavra feitiçaria como sinônimo
de magia negra (p. 166), o que torna confuso saber exatamente o que ele está entendendo por magia sem o
qualificativo “negra”.
59
este autor, os adeptos do Vodu adotariam um critério moral para a definição do que é
magia que na sua opinião não seria válido, a não ser se restringido aos sentidos atribuído
aos termos “magia negra” ou “feitiçaria” que seriam usados exclusivamente para o mal.
No sentido considerado por Métraux, a magia foi então vista como “toda manipulação
de forças ocultas, toda utilização de propriedades imanentes às coisas ou aos seres, toda
técnica pela qual o mundo sobrenatural se deixa dominar e utilizar para fins pessoais”
(Métraux,1958:236). Ou seja, Métraux alarga o significado do conceito de magia
conforme utilizado pelos haitianos, o que faz com que ele passe a englobar também
outras ações que não seriam voltadas para apenas o mal, mas também com fins
protetores e curativos. De acordo com ele, neste sentido, a magia faz parte da religião
Vodu, se misturando com ela, de maneira que torna impossível o estabelecimento de
uma fronteira precisa que separe uma da outra.
Já Herskovits ressalta que “o termo magia empregado por um haitiano não
significa a mesma coisa que o emprego da palavra ‘magic’ por um Europeu. Para o
estudante, o vasto corpo de práticas médico-mágicas haitianas, prescritas e
administradas por aqueles que conhecem como manipular o sobrenatural e por aqueles
cujos remédios são baseados principalmente no conhecimento herdado dos poderes
curativos de ervas e raízes, são todos agrupados sob a rubrica de magia”
(Herskovits,1971:223-224). Para o “nativo” existiria, no entanto, “uma diferença de
primeira ordem entre um tratamento para cura, e a magia empregada para a proteção
contra as injúrias ou para causá-las a um outro”. (Herskovits,1971:224). A principal
característica da magia, tal como sustenta Herskovits, seria o fato dela sempre operar
em circunstâncias específicas, independente de seus fins serem considerados bons ou
malévolos”. Além disso, Herskovits sustenta que a magia forma um sistema em si
60
própria, devendo ser vista como algo aparte do culto Vodu, mas não em oposição aos
serviços e a adoração aos loas.
A presença da magia também foi associada ao “ambiente”, ou “clima social” no
qual viveriam os haitianos. Conforme explicitado no argumento de Métraux,
“certamente, a herança cultural da África reencontrou um clima social propício, um
ambiente de miséria e ignorância que favorece a crença de espécies mágicas das mais
variadas” (Métraux, 1958:239). No entanto, exatamente como ocorre com a religião
Vodu, a magia Vodu também teria recebido contribuições não apenas da África, mas
também da Europa. Isso é inclusive lembrado por Métraux quando ele sustenta, em
continuidade com o que foi dito acima que “pela constância de falar da África,
esquecemos a França cuja contribuição para a magia e para a feitiçaria haitianas está
longe de ser negligenciável [...] O mundo da magia européia não é muito diferente
daquele da África” (Métraux,1958:239). Tudo isso nos remete para a questão da relação
entre o Vodu e a barbárie, pois o fato de lembrar da influência da magia européia não
impede que Métraux continue a pensar que a magia do Vodu seja uma característica de
pessoas “ignorantes”, como ele próprio chamou. Além do mais, “a magia proliferou no
Haiti um pouco à maneira das ervas daninhas, em uma clareira tropical” (Métraux,
1958:239) o que, obviamente, não aconteceu na Europa na medida em que esta jamais
aparece associada à miséria, à ignorância, à não-civilização e, no limite, à barbárie.
São as idéias de ignorância e de incapacidade de pensamento racional ou lógico
que parecem finalmente estar em jogo em alguns argumentos desenvolvidos por
Richman quando ela trata da feitiçaria. Reproduzo aqui um trecho exemplar: “A família
de Toro tinha que dar sentido para a perda de seu querido e zeloso migrante. Eles
encontraram a resposta na feitiçaria. Eles culparam um vizinho acessível ao invés de um
remoto sistema que transforma os camponeses haitianos em pwen para o capital
61
transnacional. A narrativa da feitiçaria providencia uma outra maneira para a Guiné se
destituir da sua responsabilidade por transformar migrantes em pwen.” (Richman,
2005:208). A leitura desta passagem nos leva a pensar que o migrante de Richman não
parece ter noção da exploração à qual ele está submetido, ou seja, parece ser incapaz de
chegar a uma conclusão deste tipo. Por conta disso, porque o “sistema capitalista” é
“remoto”, este migrante acaba colocando a culpa na feitiçaria e não no sistema, como
deveria ser.
Como Richman extrapola os limites de suas interpretações baseadas única e
exclusivamente em questões sociais, a palavra Magia sempre aparece relacionada à
Guiné, e esta relação é meramente uma forma camponesa de representação da
sociedade. Magia seria um símbolo para as relações de contrato destes camponeses com
estrangeiros, para uma vida regulada pelo dinheiro, além de representar um poder que é
ilegítimo, na medida em que não é herdado, mas sim procurado. Além disso, ela
sustenta que os imigrantes são os principais alvos de feitiçaria e também são
freqüentemente acusados de serem eles próprios feiticeiros, na medida em que a
acumulação de riquezas é vista como moralmente suspeita pelos haitianos. A morte de
seu principal interlocutor, por exemplo, foi vista por uma parte da família como causa
de um enfeitiçamento e, por outra parte, como resultado dele próprio ter feito um
feitiço, por meio da compra de um espírito (pwen).
Em relação aos trabalhos aqui analisados podemos afirmar que de uma maneira
geral, a magia e a feitiçaria são tratadas como partes ou “aspectos” do Vodu, como
recursos que os voduisantes possuiriam dentro deste universo para explicar os seus
males, para satisfazer seus desejos ou, ainda para se proteger. Price-Mars vê a magia
como algo que ameaça a classificação do Vodu como uma religião. Por conta disso ele
sente a necessidade de justificar a presença de “crenças mágicas” no Vodu. Sua saída é
62
afirmar que estas “crenças” seriam características de todas as religiões, mas sobretudo
daquelas mais “primitivas”, em estágios menos avançados em relação à modernidade. Já
Hurbon discorda da idéia da magia como um signo de primitividade e argumenta que o
Vodu é um “sistema religioso e cultural” que contém aspectos religiosos e mágicos e
que a magia sendo inerente à humanidade pode aparecer em diversos contextos, sejam
religiosos ou não.
Métraux, ao associar o “florescimento” da magia ao “clima de miséria e
ignorância” do Haiti, parece justamente concordar com Price-Mars quando este defende
que nas civilizações ocidentais a magia poderia ser vista apenas por meio de
“sobrevivências curiosas”. Ou seja, tanto em Price-Mars quanto em Métraux à magia
surge como uma característica de sociedades ainda não modernas.
Se levarmos em conta as descrições encontradas na literatura acadêmica
chegaremos à conclusão de que não é qualquer pessoa que está autorizada a fazer magia e
feitiçaria. Assim, uma característica comum a todos estes trabalhos é a presença de
agentes responsáveis por isso, os ugãs, bokos e feiticeiros. Além disso, a magia parece ser
sempre tratada como um elemento, um aspecto ou algo que faz parte do Vodu enquanto
um “sistema religioso”. No entanto, ela aparece sempre como uma forma de fazer o mal
ou se proteger da ação deste mal. Ou seja, o termo magia só é mencionado quando os
autores passam a descrever ou analisar as explicações que os voduisantes têm para os
males, as formas encontradas por eles para resolvê-los ou para causá-los a outras pessoas.
Conclusões
Este capítulo teve como objetivo oferecer uma leitura de algumas obras que falam do
Vodu haitiano. Procurei apresentar as principais questões que formam um campo ou
uma rede discursiva, a partir da qual tornam-se possíveis às abordagens relativas a este
63
tema. O capítulo organizou-se em cinco tópicos referentes a estas questões. Se
quisermos, podemos imaginar que eles encontram-se dispostos de uma maneira que vai
da sociedade para a cultura. Neste movimento são apresentadas as ligações construídas
entre o Vodu e o Haiti, a partir do estabelecimento de relações metonímicas e/ou
metafóricas entre os dois, as dicotomias (barbárie x civilização e massa x elite) que são
consideradas como sendo algo da “natureza” da sociedade haitiana, as interpretações do
Vodu em termos funcionalistas, até chegar às discussões acerca da religião e da magia.
Se até aqui nossa atenção estava voltada para o Vodu conforme foi tratado pela
literatura acadêmica, no capítulo seguinte haverá uma mudança de registro. Isso
significa que as próximas observações, baseadas no trabalho de campo, nos conduzirão
a reflexões acerca do vodu e da magia tal como se apresentavam no cotidiano das
pessoas com as quais eu convivi. Este vodu, com v minúsculo, constitui um universo de
referências que se revela nos diversos usos dos termos maji e mistike e se distancia dos
sentidos atribuídos ao Vodu tal como pensado por esta literatura. Ainda assim, posso
dizer que vivi em Jacmel alguns contextos de interação, nos quais os estereótipos
relacionados ao Vodu e sistematizados pelos autores discutidos no capítulo anterior
também apareciam, o que nos leva a pensar não apenas em distâncias, mas também em
aproximações da literatura com o campo e das interações das pessoas com os
estereotipos que a literatura traduz e elabora. Somando-se a isso, veremos situações
concretas onde fica claramente demonstrado que a magia que está em jogo no dia a dia
das pessoas não pode ser vista apenas como uma dimensão pertencente ao Vodu, mas
como algo que ultrapassa a associação religiosa (tal como pensada pela literatura)
atingindo a todas as esferas da vida social.
64
Capítulo 2 – A magia em Jacmel
Neste capítulo faço uma reflexão sobre os usos e significados atribuídos pelas pessoas
que conheci em Jacmel aos termos maji e mistike. Estes termos são empregados para se
referir a elementos, características ou ações reconhecidas explícita ou implicitamente
como pertencentes ao universo do vodu. Além disso, eles podem compreender
experiências com seres humanos ou não humanos, ou objetos considerados como sendo
“místicos” ou “mágicos” em casos que, dependendo do ponto de vista, podem não ser
encarados como tendo relação com o vodu. Estas duas palavras encontram-se
amplamente difundidas, fazendo parte do vocabulário e das práticas cotidianas das
pessoas de Jacmel.
Como ficará demonstrado a partir dos exemplos etnográficos, os termos maji e
mistike podem ser substantivo, adjetivo e verbo, assim como a idéia de mana, explorada
por Mauss e Hubert (2003). Cabe chamar a atenção para o fato de que apesar destes
vocábulos serem utilizados como sinônimos, nas minhas interações em Jacmel o termo
maji foi mais freqüentemente empregado que o termo mistike e por isso aparecerá com
mais freqüência aqui.
27
Os objetos, pessoas e ações chamados assim eram aqueles considerados pelos
meus interlocutores como detentores de algum tipo de poder ou força, o que fazia com
que tivessem a capacidade de produzir mudanças no mundo. Em outras palavras, isso
quer dizer que a magia constituía-se em um meio pelo qual era possível causar
modificações e novos arranjos em situações pré-existentes, além de ser um principio de
explicação para determinados acontecimentos.
27
Algumas vezes utilizarei a palavra magia, tradução direta do termo maji, como uma forma de tornar a
leitura mais simplificada. Nestes casos, a “magia” estará substituindo os dois termos.
65
Segundo Malinowski (1974:90-91), o poder da magia não está localizado no
mana das coisas, mas sim no próprio homem, por meio do segredo que passa de geração
em geração e dos rituais. Em Jacmel temos uma combinação do mana com a proposição
feita por Malinowski. Alguns objetos por serem considerados mágicos carregam em si
uma força (como é o caso dos amuletos, por exemplo) e não precisam da intervenção
humana para alcançar os resultados que se deseja. Por outro lado, temos situações
mágicas que combinam objetos e ações, sendo as duas coisas consideradas essenciais
para o sucesso da magia.
Vodu e vodu
Como vimos no primeiro capítulo, o Vodu foi compreendido pela literatura acadêmica
dentro de certos parâmetros ou enunciados que formam uma rede de sentidos de onde se
torna possível falar sobre ele. Nesta direção, o Vodu foi pensado a partir de reflexões
sobre o próprio Haiti (a partir da construção de uma relação metonímica e/ou metafórica
entre os dois), sobre a “natureza” dicotômica da sociedade haitiana, sobre suas funções
e, finalmente sobre as suas relações com a religião e com a magia. O termo Vodu com
V maiúsculo reuniria em si, todas estas idéias.
No entanto, os dados etnográficos que serão apresentados aqui permitem outras
formas de compreensão e abordagem, onde o que está em jogo é o vodu, com v
minúsculo, tal e como aparece no dia a dia da vida das pessoas com as quais interagi em
Jacmel. Se distanciando das relações estabelecidas pela literatura acadêmica por meio
de contrastes ou deslocamentos de sentidos, o vodu que se revela a partir da magia da
qual as pessoas falam e a qual se referem cotidianamente conta com um universo mais
amplo e diferente.
66
Com isso não estou querendo dizer que os meus interlocutores não refletiam
acerca de suas práticas e discursos ou que as pessoas nunca falassem do Vodu. Em
certas situações o vodu aparecia relacionado a algumas questões trazidas pela literatura
acadêmica. Posso citar o exemplo de Bayar
28
, um pastor batista que ao estabelecer uma
diferença entre o Vodu-religião e o Vodu-folclore parecia interagir exatamente com esse
Vodu com V maiúsculo. Isso abre, por sua vez, uma outra questão interessante, relativa
às percepções que no dia a dia as pessoas tem do Vodu com v maiúsculo, isto é, dos
estereótipos ligados ao Vodu e das imagens construídas sobre ele pela literatura, pela
mídia e, principalmente, levadas em consideração nas relações com os estrangeiros.
Conforme discutirei um pouco mais adiante isso ficava especialmente evidente em
alguns contextos de interação comigo, uma blanc (gringa), a qual os haitianos pensavam
procurar pelo Vodu.
O Vodu é a religião da maior parte da população haitiana. Mesmo quando os
haitianos se convertem ao protestantismo é muito difícil largar os hábitos
anteriores e abandonar as práticas do Vodu. Só que o Vodu é ruim, é uma
religião que serve ao diabo e por isso o Haiti está nesta situação de miséria,
de fome de falta de emprego. Já o Vodu que é folclore, que é arte, que atrai
o turismo este não tem nenhum perigo pois faz parte da cultura haitiana.
Por meio desta fala podemos perceber que Bayar não apenas considerou o Vodu como
uma religião, como também emitiu seu ponto de vista sobre que tipo de religião ele é,
ligada à barbárie. Neste caso, emitiu um juízo de valor: o Vodu é “ruim” e “serve ao
diabo”, além disso é culpado pela “situação” em que se encontra o seu país. Neste ponto
podemos lembrar o artigo de Omar Ribeiro Thomaz (2005) acerca da percepção das
elites haitianas sobre a pobreza. Segundo o autor, apesar dos jovens pertencentes às
elites intelectuais sustentarem que o Vodu é uma religião que deve ser respeitada,
aqueles que são mais velhos vêem o Vodu como um “problema” e como causa do
“atraso” e da “pobreza” em que vive a maior parte da população haitiana. Em
28
Mais informações sobre quem é Bayar serão acrescentadas posteriormente.
67
contrapartida, o Vodu pode ser folclore e desta maneira foi considerado por Bayar como
bom e inofensivo. Além disso, quando afirma que o Vodu-folclore, “fazia parte” da
“cultura haitiana” estava, de certa forma, reconhecendo no Vodu também o próprio
Haiti, assim como o fizeram os autores apresentados no primeiro capítulo.
Como vimos há um “discurso dominante” que se produziu principalmente fora
do Haiti que associou o Vodu à barbárie e a selvageria. No entanto, os estigmas ligados
ao exotismo do Vodu, utilizados para denegrir a imagem do Haiti, também podem ser
resignificados pelos próprios haitianos, adquirindo um caráter positivo, se
transformados em cultura, por exemplo. Além disso, podem ser utilizados em situações
específicas de acordo com o caráter da interações que estão em jogo. Herzfeld se refere
a esta situação quando sustenta que “o ator se apropria dos estereótipos de um discurso
dominante, alargando-os para servir aos seus próprios interesses.” (1992:72). Esta
proposição parece ir ao ponto quando se trata das relações entre os estrangeiros que vão
ao Haiti e o vodu.
Sendo assim, a característica “exótica” do vodu pode ser fortemente explorada
por aquele que está nos informando, dado que a interação conosco, pesquisadores, é, na
verdade, uma interação com um estrangeiro (um blanc) ao qual são atribuídas estas
representações dominantes sobre o que seja o vodu. São situações em que a pessoa, já
sabendo que existe uma procura do Vodu por parte destes estrangeiros, por causa dos
estereótipos ligados ao exotismo, ao mistério, à magia negra etc, podem começar a fazer
questão de ressaltar mais ainda este rótulo. Em alguns momentos, tive a impressão de
que os ugãs que conheci tentavam me impressionar ou me fazer ficar com medo daquilo
que diziam, tendo em mente esta imagem estereotipada do Vodu que é projetada para
fora do Haiti. Isso ocorria principalmente quando eles afirmavam, por exemplo, que
eram o “diabo” ou então quando me perguntavam se eu tinha medo dele (do “diabo”).
68
Nestas situações não pude deixar de pensar naquilo que eu mesma representava,
como uma estrangeira que queria saber sobre vodu, num contexto em que talvez
importasse menos “decifrar os enunciados – ou aquilo que é dito – do que compreender
quem fala, e para quem.” (Favret-Saada, 1977:32). O trabalho desenvolvido por esta
autora sobre feitiçaria no Bocage é um exemplo de como os estereótipos negativos
ligados a um objeto de pesquisa podem dificultá-la ou trazer novos desafios. Assim
como o Vodu no Haiti, a feitiçaria no Bocage era vista pelo “discurso público” como
sinal de atraso. Em contrapartida, enquanto no Bocage ninguém queria falar sobre
feitiçaria por causa dos seus rótulos negativos, em Jacmel a situação foi bem diferente,
na medida em que as pessoas falavam abertamente sobre vodu e magia.
Se um estereótipo negativo pode, de certa maneira, “atrapalhar” (pelo menos
inicialmente, como no caso de Favret-Saada) uma pesquisa, devemos ressaltar que um
rótulo negativo que passa a ser valorizado como cultura também. Ou seja, a partir do
momento em que o vodu passa a ser folclore e cultura, passível de ser vendida, ou ainda
um atributo de identidade que distingue os estrangeiros e coloca a relação com eles no
registro específico dos estereótipos já mencionados acima (ligados ao mistério, ao
exotismo, à magia negra etc), os pesquisadores podem se ver frente a outros desafios.
Estes contextos os obrigam a reformular seus objetos e reconduzir a própria pesquisa de
maneira a aproveitar as circunstâncias por vezes inesperadas.
Ao discutir isso penso em outras situações que ocorreram quando estava em
Jacmel. Certo dia, por exemplo, eu e Felipe, um colega da nossa equipe de pesquisa, nos
deparamos com um destes desafios. Estávamos juntos, quando um amigo de Felipe nos
levou para conhecer um tio seu que “sabia de magia”. Durante a conversa, ele propôs
que a gente pagasse e em troca ele nos levaria até um lugar onde alguém “faria uma
magia”, uma espécie de demonstração. Ou seja, ia ser uma coisa preparada
69
exclusivamente para nós, em uma situação forjada, exatamente o contrário daquilo que
eu desejava.
Lembrando da fala de Bayar, onde o vodu é associado à arte, ao folclore e ao
turismo podemos, portanto, ver um vodu que, conforme mencionado acima é
considerado positivo e passa a ser valorizado como representativo da “cultura” haitiana
sendo transformado em mercadoria e objeto de atração para estrangeiros. Apenas como
um exemplo que torna evidente a existência deste vodu como “cultura” e como arte a
ser comercializada podemos citar o chamado “setor dos turistas”, localizado no antigo
Marché em Fer, em Porto Príncipe, reservado a venda de objetos vodu.
29
Dentre os
objetos referentes a “arte vodu” temos, por exemplo, os “drapeaux vodu”.
30
Neles, são
bordados com miçangas coloridas os chamados vèvès, desenhos feitos com símbolos
que representam os loas.
Foto 5 – Drapeau com o vèvè do loa Papa Gede
(Imagem extraída de Hurbon, 1993)
Foto 6 – Drapeau com o vèvè do loa Erzulie Freda
(Imagem extraída de Hurbon, 1993)
29
Devido a um incêndio ocorrido no Marché em Fer, em 2008, este setor não existe mais.
30
Em Pétion Ville, município colado em Porto Príncipe, capital do Haiti há uma galeria onde podem ser
encontrados por preços, as vezes, altíssimos produtos classificados como “arte vodu” Ver site:
http://www.galeriedartnader.com
70
No que diz respeito às relações estabelecidas pelos meus interlocutores entre vodu e
Haiti estava sempre em jogo também a idéia da cultura nacional. Assim como o futebol
ou o samba são, por exemplo, identificados com o Brasil, o Vodu podia ser reconhecido
como aquilo que caracterizava o próprio Haiti. Certo dia, enquanto conversava com
Merlande, uma conhecida de Laënnec Hurbon que se hospedou por um fim-de-semana
na nossa casa, ela falou:
No Haiti, todo mundo tem, no mínimo, uma pessoa na família que é
mistike
31
. Além disso, mesmo que uma pessoa não faça mistike, ela conhece
como se faz, porque isso faz parte da cultura haitiana.
Idéias assim parecem reproduzir os discursos sobre caráter nacional na medida em que
pressupõem uma homogeneidade cultural entre os haitianos como se o Haiti “pudesse
ser considerado um sujeito coletivo, com características análogas aos sujeitos empíricos
que o habitam.” (Neiburg, 2001).
Outras pessoas, em outros contextos falaram do Vodu o que nos permite
enxergar não apenas diferenças entre o Vodu e o vodu, mas também aproximações ou
deslocamentos de sentidos. No entanto, se o Vodu da literatura acadêmica congrega
todas as discussões já mencionadas, dialogando com estereótipos e estigmatizações,
quando os meus interlocutores falavam de Vodu geralmente estavam identificando-o ou
com a magia ou com a religião ou com a nação, assim como o fez Bayar. Ninguém
parecia estar preocupado com as suas funções ou se ele expressava ou não a natureza
dicotômica da sociedade haitiana. Ainda que tenha havido contextos de aproximação
entre aquilo que estava em jogo no Vodu da literatura e no vodu do cotidiano, devo
ressaltar que a partir daqui utilizarei o v maiúsculo apenas quando estiver me referindo à
literatura.
31
Dentre outras acepções, o termo mistike é utilizado para se referir àquelas pessoas que são do vodu e
aqui era este o caso.
71
Maji e mistike: uma reflexão sobre os termos
Conforme havia assinalado no início do capítulo, maji e mistike podiam ser relacionadas
ao vodu pelas pessoas com as quais interagi no campo. Neste caso, o vodu ganhava o
estatuto de “religião” num contexto no qual era comparado a outras religiões, como, por
exemplo, quando era diferenciado das religiões protestantes por conta de suas práticas.
Desta maneira, quem é voduisante fé maji [faz magia] e quem é protestante não. Cabe
ressaltar aqui que esta não era a opinião apenas de protestantes querendo desqualificar o
outro, mas também de alguns dos próprios voduisantes que conheci. Entretanto, se as
palavras maji e mistike serviam para denominar a prática daqueles que eram adeptos do
vodu, ao mesmo tempo designava outras coisas. Conforme veremos, elas podiam ser
utilizada para resolver aquilo que é considerado como um problema, para proteção, para
alcançar sucesso, para evitar traições ou até mesmo para nomear um tipo especial de
experiência.
De qualquer forma, foi por meio dos usos e das falas relacionadas a estes dois
termos que o universo vodu apareceu para mim, em Jacmel. Os anjos, os santos, os
espíritos, as preces e a bíblia são considerados como seres ou coisas que são ou têm
maji ou mistike. Certa vez, por exemplo, ouvi que “bondie [Bom Deus] é o maior
mistike de todos os seres mistikes”. Além disso, expressões como fé mistike ou fé maji
são utilizadas em diversas ocasiões para qualificar uma determinada ação como sendo
“mágica” ou “mística”. Enquanto estava em Jacmel apenas Fritz, um amigo de Felipe
que morava perto da nossa casa, preocupou-se em diferenciar os termos maji e mistike.
Mistike é fazer coisas com espíritos ou então mover objetos sem encostar as
mãos. É algo mais mental. O maçom trabalha no nível da mistike. Já a maji
é uma coisa mais braçal, do tipo uma pessoa vai lá e faz com as mãos uma
maji, embora também com espíritos. A mistike e a maji pertencem a um
sistema que tem três partes: em primeiro lugar está o padre, em segundo está
72
o maçom e em terceiro está o ugã. O pastor não faz parte deste sistema, se
ele fizer deixa de ser pastor. Ou então ele conhece e esconde.
32
Na medida em que anjos, santos e espíritos são considerados seres mágicos ou
místicos, podemos afirmar que o envolvimento de seres não humanos é um dos fatores
cuja presença caracteriza uma ação “mágica”. No entanto, outras ações que não
envolvem estes seres também podem ser consideradas “mágicas”. Neste caso, quando
alguém, por exemplo, usa um amuleto dentro da bolsa como uma forma de proteção e
diz que isso é “fazer magia”, o que parece estar em jogo é uma propriedade inerente à
coisa utilizada. A coisa é por si própria dotada de uma capacidade de ação no mundo.
Assim, esta capacidade de agir no mundo seja por meio de seres “invisíveis” como são
caracterizados os espíritos, seja por meio de uma propriedade que tem certos objetos é
chamada de maji ou mistike.
Meu objetivo é buscar compreender os usos e significados atribuídos a estes
termos, tal como foram empregados em diversos momentos e por diferentes pessoas.
Neste sentido, a maji e a mistike, podem ser uma forma de explicação para determinados
acontecimentos, uma qualidade ou estado de algo ou alguém, ou simplesmente a
designação para um ato.
A Organization Tete Ansamble
Conforme já havia mencionado na introdução, quando cheguei ao Haiti pensava em
estudar a “religião” Vodu. Por conta disso, em um primeiro momento, grande parte dos
meus esforços se voltaram para a procura do que, na minha opinião, deveria compor tal
32
Em Métraux podemos encontrar uma referência sobre as possíveis influências da franco-maçonaria no
vodu. Neste caso, ele se pergunta se a franco-monaria teria sua parte nos cerimoniais Vodu ao que
responde: “Dizem. Chegam até mesmo a assegurar que alguns ugãs são filiados a lojas. Certamente, nos
desenhos simbólicos das divindades, reconhecemos signos maçônicos. Haveria até mesmo loas maçons
[...]. O que quer que seja, a influência maçônica foi fraca e sem nenhuma dúvida superficial.” (Métraux,
1958:140). Apesar desta conclusão de Métraux, a etnografia em Jacmel nos trouxe algumas evidências
que nos levam a pensar o contrário. Em relação a outras sociedades secretas relacionadas ao vodu no
Haiti, ver Métraux, (1958:259-266) e Hurbon (1988:175-186).
73
“religião”. Assim, busquei me aproximar de pessoas que achava que certamente tinham
uma ligação com o Vodu. Freqüentei ufós, conheci ugãs e mambôs, me aproximei de
uma loja onde eram vendidos objetos que eram, reconhecidamente pela população local,
destinados às práticas Vodu. Procurava por cerimônias e rituais, imaginava cantos,
danças e possessões.
Um certo dia, já no final da tarde, eu e José Renato, colega que fazia parte da
nossa equipe, resolvemos procurar por uma mambô que nos disseram morar perto do
cemitério. Não achamos a pessoa que havia nos indicado, mas sim outra que também
morava ali por perto. Entramos em sua casa, onde havia um altar Vodu, conversamos
um pouco, mas ela estava de saída e nos convidou para acompanhá-la. Estávamos
realmente muito cansados, tínhamos acabado de chegar de um ufó que ficava um pouco
distante, numa área rural de Jacmel. Apesar disso acabamos aceitando, pois estávamos
quase certos de que íamos a uma cerimônia em algum outro ufó. Eu estava muito feliz
para pensar que estava cansada. A alegria durou pouco, somente até descobrirmos que
sim, a mambô tinha nos levado até um ufó, mas ao contrário de uma cerimônia o que
estava acontecendo era uma reunião de uma ONG!
A OTAN como é mais comumente chamada a Organization Tete Ansamble
constitui uma espécie de rede de ajuda mútua. Suas reuniões ocorriam geralmente
durante os finais de semana, nos sábados ou domingos, sempre no final da tarde. Foi
para uma destas reuniões que eu e o José Renato fomos transportados naquele dia. O
presidente da OTAN é Rodrigues, um senhor de 65 anos de idade que trabalha no ramo
da construção civil, realizando obras em estradas e ruas de Jacmel.
74
Foto 7 – Da esquerda para a direita: membro da OTAN, eu, Rodrigues, José Renato e Lionel (filho de
Rodrigues) no ufó em dia de reunião.
Rodrigues está no seu quarto casamento e tem 16 filhos, dos quais quatro ou cinco
moram com ele. Uma filha mora em Nova York, nos EUA, e os outros estão espalhados
pelo Haiti, morando em Porto Príncipe e Marbial. Rodrigues é ugã e seus pais também
eram ugã e mambô. Sua casa, localizada bem no centro de Jacmel, é no mesmo local
que o seu ufó. Ao conjunto casa + ufó, ele dá o nome de lakou.
33
.
Não é fácil (pelo menos para um estrangeiro, não familiarizado com os sinais do
vodu), enxergar da rua, o ufó de Rodrigues. A fachada da casa esconde por completo o
espaço central onde se localiza o peristilo. Ao entrarmos, passamos por um corredor
bem estreito e escuro onde havia duas portas. A primeira, logo à direita dava acesso ao
quarto de Rodrigues. Já a segunda, no final do corredor à esquerda era a entrada para
um outro quarto que continha em seu interior uma cama de solteiro, um altar vodu e
uma outra porta por onde podíamos chegar (assim como se seguíssemos o corredor até o
seu fim) a uma espécie de pátio coberto quadrangular com um peristilo no centro. O ufó
33
Lakou é a unidade familiar residencial básica do meio rural haitiano, ainda que existam lakous urbanos.
Referências sobre lakou podem ser encontradas em Marcelin, Louis H., 1996 e também Bastien, Rémy,
1985.
75
contava ainda com alguns espaços dedicados aos loas que Rodrigues servia. Se
estivermos de costas para a estreita passagem que nos conduziu ao pátio e andarmos em
sentido anti-horário, passaremos por cinco entradas. A primeira, conforme já descrito,
nos conduz para o quarto onde se encontra o altar. A segunda nos leva a um pequeno
espaço que possui uma casinha bem pequenininha construída de cimento. Neste lugar
mora o espírito Danti. A terceira entrada nos leva a um quarto que tem uma grande cruz
preta ao centro e as paredes pintadas com caveiras e outros símbolos que na época não
fui capaz de identificar. Neste lugar estão o espírito Bawon Samidi e os espíritos dos
pais de Rodrigues. Através da quarta entrada temos acesso a um quintal com uma árvore
onde habita o espírito Bakoulou. A quinta e última entrada constitui-se, na verdade, em
uma larga passagem que liga o ufó com a rua. No entanto, dificilmente este acesso era
utilizado e na maioria das vezes, ele estava repleto de entulho. Este local era reservado a
Papa Legba, considerado pelos voduisantes como sendo o “guardião das entradas”. (ver
desenho do ufó no anexo, pág. 105).
As reuniões da OTAN sempre aconteciam no seu ufó. O desapontamento inicial
gerado pelo fato de não termos ido ao encontro de uma cerimônia Vodu logo foi
substituído por um sentimento de esperança. No final das contas, estar presente naquelas
reuniões era um ótimo pretexto para estar em contato com um ugã, com um ufó e, no
limite, com o Vodu que eu imaginava. Além disso, Rodrigues nos informou que sim,
haveria uma cerimônia. Ela estava marcada para o início do mês de maio, quando uma
pessoa da família dele deveria chegar dos EUA. Eu estava novamente no paraíso.
Neste mesmo dia conhecemos além de Rodrigues, Bayar, o vice-presidente da
OTAN, e a quem já fiz referência no início deste capítulo. Bayar tem 32 anos e é diretor
de uma escola batista. É pastor, solteiro, e possui três igrejas batistas, além de ser
presidente de uma ONG chamada Union des Chretiens Evangeliques pour la Promotion
76
de Vie Economique et Sociale des Demunis (UCEPROVESOD), cujo objetivo é ajudar
na reconstrução de casas destruídas por enchentes e furacões. O fato de Bayar ser
protestante e ainda mais pastor me deixou um pouco confusa. Como assim? Eu pensava
na intolerância religiosa que sabemos existir no Brasil entre protestantes e os adeptos às
religiões de origem africana.
Não estou afirmando que não exista intolerância religiosa no Haiti e nem que os
protestantes de lá sejam menos radicais em sua doutrina que os daqui, mesmo porque o
próprio Rodrigues definiu Bayar como um “pastor progressista.” Estou apenas relatando
uma surpresa diante de uma situação que era estranha para mim. Enquanto estava no
Haiti conheci pessoas que se diziam protestantes mas que praticavam maji ou estavam
bem próximas do universo vodu, conforme será discutido posteriormente.
Rodrigues e Bayar se tornaram duas pessoas com as quais eu mantive um
contato freqüente pelo tempo em que estive em Jacmel. Nossas relações acabaram se
estendendo para além dos encontros que aconteciam por causa das reuniões da OTAN.
Conheci a igreja de Bayar e a família de Rodrigues. Passei a ir mais vezes ao ufó de
Rodrigues e quase sempre ele estava disposto a conversar. O dia marcado para a
cerimônia se aproximava quando Rodrigues nos avisou que ela havia sido cancelada. A
pessoa que ia chegar tinha ficado doente e sem sua presença não seria realizada a tão
aguardada cerimônia. A próxima seria somente em novembro e eu já não estaria lá.
No entanto, nem tudo foi desapontamento. Afinal o vodu estava lá e as
referências a ele encontravam-se por todos os lados. No mercado de Jacmel, nas ruas,
nas músicas, nas conversas. Como seria estudar este vodu, aquele que não era
exatamente o que eu procurava, mas que foi o que se apresentou? Começou a me
chamar atenção às maneiras pelas quais as pessoas se reportavam ao vodu. Em Jacmel
era muito difícil encontrar alguém que se referisse àquilo que estava ligado ao universo
77
vodu utilizando esse termo. As palavras mais utilizadas eram maji e mistike. Mais
concretamente, não ouvi ninguém dizendo que “fazia vodu” ou que uma determinada
coisa era para “fazer vodu”, ou uma cerimônia vodu. Percebi que o termo era utilizado
para falar de religião. A religião seria o vodu. No entanto, o ufó, o lugar onde, dentre
outras coisas, podem acontecer cerimônias consideradas como vodu, é apontado como o
lugar onde se faz maji.
A maji e a mistike como princípio de explicação
a) O caso de Merlande e suas irmãs gêmeas
Irmãos gêmeos têm grande poder no Haiti. “Os gêmeos (marassa) vivos e
mortos são investidos de um poder sobrenatural que faz deles seres excepcionais.”
(Métraux, 1958:129). Além de poderosos, os gêmeos também são considerados “trés
mechantes”, conforme nos contou Merlande, uma mulher de mais ou menos 40 anos,
moradora de Porto Príncipe.
Como já mencionado, conhecemos Merlande por intermédio de Laënnec Hurbon
quando ela e uma prima estavam passeando em Jacmel e se hospedaram em nossa casa
durante um fim de semana. Merlande é católica, assim como sua mãe que atualmente
vive em Nova York, nos EUA. Seu pai, já falecido era pastor batista. Foi assim,
enquanto tomávamos café e conversávamos tranqüilamente sobre sua família que ela
nos contou que tinha duas irmãs marassa, ou seja, gêmeas. Falei que eu também tinha
primas gêmeas e, a partir daí, a conversa girou em torno dos significados de ter gêmeos
na família.
Merlande e sua prima consideram que irmãos gêmeos têm muito poder e são
muito maldosos, podendo causar problemas para os seus familiares, sobretudo se não
78
tem às suas vontades atendidas. Entretanto, este poder, do qual os gêmeos são
detentores, não é igual: “sempre tem um pior que o outro, que é mais forte.” Com suas
irmãs não era diferente, uma tinha um poder “mais forte” e, por isso, também parecia
ser mais mimada em relação aos seus desejos e manhas quando era uma criança.
Quando éramos crianças, uma das gêmeas (a pior) pediu um pedaço de bolo
para nossa mãe, que vendia no mercado bolo, biscoito entre outras coisas.
Ela não deu. Falou que ia dar somente depois da escola. Neste dia, nossa
mãe não vendeu nada no mercado.
O fato da mãe não vender nada naquele dia foi atribuído à puissance [potência]
que a filha possuía pelo fato dela ser mistike. Neste caso, não houve qualquer ação
concreta por parte da filha, dirigida contra a mãe, ela não fez nada, a não ser ficar com
raiva. Ou seja, o que gerou a má sorte da mãe parece ter sido apenas o sentimento de
raiva da sua filha que, aborrecida por não ter um capricho atendido, acabou interferindo
nas vendas da mãe. Assim como as bruxas entre os azande, o que está em jogo aqui é
que a qualidade de ser mistike, como a de ser bruxa é intrínseca ao indivíduo. De acordo
com Evans-Pritchard, “um bruxo não pratica ritos, não profere encantações e não possui
drogas mágicas. Um ato de bruxaria é um ato psíquico.” (Evans-Pritchard, E.E.,
2005:33). Este parece ser exatamente o caso da irmã de Merlande, ela nasceu gêmea e,
por isso é mistike. Esta qualidade inerente fez com que seu ato fosse puramente
psíquico, bastando um sentimento para causar algo que foi considerado como má sorte.
Este caso é bem diferente do que se segue, quando as duas irmãs gêmeas, já
adultas, passaram pela seguinte situação: uma delas trabalhava em uma ONG
internacional que funcionava em Porto Príncipe até que ficou grávida e, aproximando-se
do momento de ter o bebê se juntou à mãe em Nova York, com o objetivo de ter o bebê
nos EUA. Nas palavras de Merlande:
Quando minha irmã estava lá começou a pensar que alguém havia feito
mistike para ela, para tomar seu lugar no trabalho. Ela ligou para o Haiti e
todo mundo, para não fazer mal ao bebê, falava para ela que era besteira,
79
para esquecer isso. Um dia ela (a irmã que estava em Nova York) teve um
sonho com o pai. Neste sonho ele dizia que uma pessoa (que era exatamente
a pessoa da qual ela estava desconfiada, uma colombiana) havia feito maji
para tomar seu lugar no trabalho. Ela ligou de novo para o Haiti e desta vez
falou com nossa irmã (gêmea dela) sobre o sonho. Nossa irmã falou para ela
esquecer, mas isto foi apenas por causa do bebê, por receio de que algo de
mal pudesse acontecer a ele. Depois que o bebê nasceu e ela retornou ao
Haiti, a irmã gêmea que havia ficado fez mistike para a colombiana deixar o
Haiti em sete dias, não para ela morrer, mas apenas para ela ir embora e
esquecer que o Haiti existe.
A partir desta fala é possível perceber que a magia é algo que transcende as
próprias fronteiras do Haiti. Os trabalhos de Richman (2005) e McCarthy Brown (1995)
que, como vimos no primeiro capítulo, realizaram suas pesquisas com imigrantes
haitianos nos EUA, chamam a atenção justamente para este ponto. A convivência com
estes imigrantes permite a estas duas autoras perceber a importância que dos laços
familiares entre aqueles que deixam o Haiti e aqueles que ficam.
Nestes dois trabalhos, a força que dessas relações de parentesco são evidenciadas
por meio de obrigações relacionadas ao vodu e à magia. Richman, por exemplo, mostra
como estes imigrantes podem ser afligidos pelos loas que lhes causam doenças e
acidentes senão cumprirem com certas exigências espirituais. Assim, seus interlocutores
precisavam sempre estar mandando dinheiro para que, dentre outras coisas, os parentes
possam realizar os rituais necessários que servem como uma espécie de manutenção das
relações entre os imigrantes, a família e os espíritos.
Merlande nos mostrou como a maji foi feita. Pegou um prato que estava em
cima da mesa e disse que suas irmãs tinham ido até um rio. Depois começou a rodar o
prato e a repetir o que sua irmã teria falado: “você vai deixar o Haiti em sete dias.”
Além disso, pedia ao loa para “não assassinar a colombiana, apenas para deixar o
Haiti.”
O tipo de formulação mágica empregado aqui parece se diferenciar das que são
mencionadas nas análises feitas por Malinowski (1965). De acordo com este autor as
80
formulações mágicas possuem ao mesmo tempo um grau de estranheza e de
inteligibilidade. A linguagem mágica é estranha na medida em que se diferencia da
linguagem ordinária. Sendo assim, pode conter palavras desprovidas de sentido se
colocadas fora daquilo que ele chama de “discurso mágico”, referências mitológicas ou
então o emprego irregular de alguns termos. Apesar disso, uma formulação mágica pode
conter também palavras que tenham um significado na linguagem ordinária, o que
facilita ao pesquisador a tradução e compreensão.
No entanto, ao contrário do caráter duplo de estranheza e inteligibilidade
atribuído por Malinowisk ao discurso mágico, o que se passa aqui é uma verdadeira
ordem que deve ser entendida pelo loa que neste caso fala a mesma língua que a irmã de
Merlande, ou seja creóle haitiano. O espírito não deve assassinar a colombiana. Nada
temos na sentença pronunciada pela irmã de Merlande que nos faça pensar em palavras
obscuras, metafóricas ou distantes de seu sentido ordinário.
Se no primeiro caso o sentimento de raiva, ou seja um ato psíquico, seguindo a
interpretação de Evans-Pritchard, de uma das gêmeas foi suficiente para causar uma
realidade, no segundo foi preciso empregar o que Merlande denominou como sendo
uma contra-mistike, algo que pudesse desfazer a mistike que havia sido feita em
primeiro lugar pela colombiana. Neste caso, até mesmo os loas tiveram que entrar em
cena e o que estava em jogo era uma ação mágica, a qual não poderia ser anulada
apenas por um ato psíquico. Para que uma nova configuração fosse gerada era preciso
dar uma resposta do mesmo tipo e foi isso que aconteceu.
Ao contrário, da situação encontrada por Evans-Pritchard, na qual “a diferença
entre um feiticeiro e um bruxo é que o primeiro usa a técnica da magia e extrai seu
poder das drogas, enquanto o segundo age sem ritos ou encantações, utilizando poderes
psicofísicos hereditários para atingir seus objetivos” (2005:186), o que fica demonstrado
81
no segundo caso é que o termo mistike engloba pessoas que entre os azande poderiam
ser consideradas bruxas ou feiticeiras. Assim, enquanto entre os azande uma pessoa que
faz ritos e encantações seria chamada de feiticeira e não de bruxa, sendo a bruxaria
considerada um fenômeno hereditário, nos dois casos considerados aqui a palavra
mistike é utilizada seja para designar uma pessoa cujo ato foi apenas psíquico, seja para
nomear aquela que agiu por meio de rituais.
b) O Brasil na Copa do Mundo de 1998
Segundo Merlande, não são apenas os haitianos que fazem magia. Outras
pessoas, de outros países também, como foi inclusive o caso da colombiana relatado
anteriormente. Além disso, ela e sua prima relacionaram o poder político ou econômico,
por exemplo com o ato de fazer magia. Quando alguém é detentor de algum cargo
público importante, como os presidentes do Haiti ou de outros países, a prática da magia
torna-se indispensável, tanto para chegar a ter o poder quanto para manter afastadas as
pessoas invejosas. Neste ponto vemos um exemplo prático de uma associação cotidiana
da magia e do vodu com a política não apenas haitiana, mas sim de todos os países.
Os jogadores de futebol também podem fazem magia para ganhar uma partida,
por exemplo. Merlande e sua prima lembraram que o time brasileiro se reúne em um
círculo antes do começo dos jogos e a isso chamaram de maji. Como são figuras
públicas e famosas correm um maior risco de serem atingidos por magia.
Durante a Copa do Mundo de 1998, o Brasil disputava a final com a França.
O time brasileiro era o favorito, ele tinha o melhor time e os melhores
jogadores do mundo. Ele não poderia perder. Mas mesmo assim ele perdeu.
Por que? Fizeram magia. No final da partida, um francês de origem
senegalesa fé mistike para o time brasileiro. Ele deu a volta no campo com
um galo na mão e os jogadores do Brasil, Ronaldo, Rivaldo, ficaram com
cara de bobos, atordoados e nem viram a bola passar na frente deles. Por
causa disso, a França acabou fazendo o gol da vitória.
82
Nos três casos apresentados aqui, a magia foi à causa atribuída para que alguma
coisa acontecesse. No entanto, os três são diferentes entre si. No primeiro, um
sentimento ruim por parte de uma pessoa que é considerada como sendo mistike causou
uma má sorte a uma pessoa “comum”. Em contrapartida, no segundo, não foi um ato
psíquico que ocasionou uma mudança no mundo objetivo, mas sim um verdadeiro
ritual, uma contra-magia, uma ação mágica para desfazer uma primeira ação também
“mágica”. Enquanto no primeiro o ato psíquico teve um efeito sobre o mundo objetivo
porque a pessoa tinha como qualidade intrínseca a ela o fato de ser mistike, no segundo,
além da pessoa ser mistike, a própria ação também foi. A referência ao vodu é muito
clara; há um ritual feito na beira de um rio e os loas são acionados.
Já no terceiro caso, não se trata nem de reparar uma situação por meios mágicos,
nem de um ato psíquico por parte de um mistike. O que temos é uma ação considerada
mágica cujo objetivo era produzir um efeito no mundo objetivo, que era visto como
improvável se a magia não tivesse atuado. Poderíamos dizer que esta “ação mágica” se
constitui em uma primeira ação, assim como aquela feita pela colombiana para que a
irmã de Merlande perdesse o emprego. Estas duas ações não foram e não poderiam ser
classificadas, por assim dizer, como uma “contra-magia”, na medida em que o propósito
desta é, antes de ocasionar uma mudança no mundo objetivo, reparar uma primeira ação
mágica.
Evans-Pritchard aponta que entre os azande, o principal objetivo da magia “é
combater outras forças místicas, muito mais do que produzir mudanças no mundo
objetivo que favoreçam o homem” (Evans-Pritchard, 2005:206). Tomando como base
os exemplos descritos acima podemos afirmar que os objetivos da magia com a qual me
deparei em Jacmel são, ao contrário dos propósitos da magia zande, produzir efeitos e
mudanças no mundo. Embora possamos ter o exemplo da contra-magia, onde o mais
83
importante é o restabelecimento de uma condição primeira, anterior àquela que se
produziu por efeito da magia. Neste sentido a maji surge como algo capaz de “desfazer
o feito e reparar o dano que havia causado.” (Malinowski, 1974:103). Ainda assim este
restabelecimento acaba provocando também uma mudança em uma determinada
configuração.
Como veremos, alguns outros exemplos etnográficos que serão descritos aqui se
encaixam mais ou menos neste padrão, no qual a magia é utilizada para explicar um
determinado acontecimento (geralmente ligados aos infortúnios) ou ainda para causar
uma transformação em uma situação pré-existente.
A maji como causa de infortúnios e sofrimento
Certo dia, enquanto conversava com Bayar sobre maji, ele falou:
Aqui no Haiti já existe o risco iminente de ser atingido por maji. Se uma
pessoa não se protege ela certamente vai sofrer por causa da maji.
O termo maji pode ser empregado para explicar infortúnios. Neste sentido a
explicação é sempre feita por uma pessoa para atacar uma outra e, no limite, levá-la à
morte. Geralmente estes infortúnios estão relacionados principalmente às doenças, aos
acidentes e às questões de emprego ou de dinheiro. Enquanto os acidentes parecem
sempre ter uma causa estranha, nem todas as doenças são entendidas como sendo
resultado de maji.
Algumas delas, por exemplo, podem “vir de bondie [Bom Deus], enquanto
outras podem ser hereditárias. A idéia de “vir de bondie”, geralmente é associada a
alguma coisa que é “natural”, ou seja algo que não parece “estranho”. “As doenças
vindas de bondie, apenas bondie pode curar, através de milagres.” Esta fala expressa por
Madame Étude, uma senhora que se dizia protestante, dona de uma loja próxima ao
84
centro de Jacmel, que vendia objetos para serem utilizados em práticas de vodu, parece
ser senso comum entre as pessoas que conheci.
Foto 8 – Madame Étude na porta de sua loja
A AIDS, no entanto parece ser um exemplo de uma doença “vinda de bondie”, mas que
não é curada por ele. Nas palavras de Madame Étude:
A AIDS é uma doença que vem de bondie, mas como atinge pessoas que
não tem um parceiro fixo é vista por ele (por bondie) com maus olhos.
Como bondie condena este tipo de comportamento, ele não cura a AIDS.
Por meio desta fala, a AIDS assemelha-se, portanto, mais a um castigo divino
por causa de um comportamento considerado indevido por Deus, do que alguma doença
considerada “natural”. Já as doenças causadas por maji
bondie pode curar, mas como ele está distante dos homens é preciso fazer
uma outra maji, que seja mais forte do que a primeira.
85
Madame Étude nasceu e cresceu em Marigot, onde dava cursos de economia
doméstica para moças. Em 1986, deixou Marigot para morar em Porto Príncipe, onde
deu aulas de agricultura em uma escola e trabalhou em casa de família. Em 2000
retornou para Marigot onde abriu sua loja, até transferi-la para Jacmel em 2007.
Madame Étude nunca se casou e mora atualmente em um quarto que fica atrás de sua
loja com uma jovem que foi sua aluna em Marigot.
Foto 9 – Jovem que vive com Madame Étude em uma fotografia no interior da loja
Ramon, um ugã que conheci por intermédio de Rodrigues quando ele nos levou
(eu e Felipe) para conhecer um lugar chamado Carrefour Pingüim, também falou sobre
as doenças.
86
Foto 10 – Da esquerda para a direita: Rodrigues, Felipe e Ramon em seu ufó
Ramon foi à única pessoa que não utilizou o termo maji, mas sim fetiche. No entanto, ao
ser perguntado sobre o que significava fetiche, ele respondeu: fé maji.
As doenças provocadas por fetiche podem ser curadas, mas a cura para elas
é alcançada da seguinte forma: é preciso encontrar um espírito mais forte do
que aquele que causou a doença. A doença hereditária também tem cura,
mas tem que perguntar qual é a cura, se é através de um espírito ou da
medicina. As doenças que vêm de bondie dificilmente têm cura, a não ser
por meio de um milagre.
Ramon nos chamou para conhecer seu ufó e sua casa que ficava no mesmo
lugar. Nós entramos e ficamos um tempo conversando primeiro dentro de sua casa e
depois em um dos quartos que compõem o ufó onde havia um caixão no meio. Dentre
todos os ufós que conheci em Jacmel, este foi o que me pareceu ter as maiores
dimensões. Nas paredes do lugar central, onde se localiza o peristilo tinham imagens
de Ezili Freda e outros espíritos que não identifiquei. Além disso, havia a palavra
Guiné escrita em letras bem grandes. Tanto Rodrigues quanto Ramon diziam não
poder falar sobre vodu. Os dois em momentos diferentes falaram que era segredo.
87
Com Rodrigues, que eu via freqüentemente, tentei falar algumas vezes, sem sucesso.
Com Ramon, foi a mesma coisa.
No entanto, neste dia quando os dois juntos começaram a falar que não podiam
dizer nada sobre vodu porque era segredo, surgiu no meio da conversa, uma informação
que colocava Rodrigues e Ramon em uma relação hierarquizada. O fato é que tanto
Ramon, quanto Rodrigues afirmavam que Ramon “tinha mais poder”, era um ugã “mais
forte” que Rodrigues porque “conhecia mais segredos.” De acordo com eles, o poder
que um ugã possui depende da quantidade de segredos que ele conhece, de maneira que,
quanto mais segredos, mais poder. Não podemos dissociar o lugar no qual Ramon foi
colocado por ele mesmo e por Rodrigues ao fato dele ser uma pessoa que já viajou por
vários países como Cuba, Jamaica e Suécia, e também a sua participação em uma
espécie de encontro de cultura popular com pessoas de diversos lugares do mundo. Este
encontro resultou em um livro com fotografias de vários objetos utilizados no vodu e
um pequeno texto explicativo embaixo.
Cabe ressaltar aqui que, senão podemos separar o status de Ramon destes
fatores, isso deve ser compreendido como uma via de mão dupla. Assim, poderíamos
atribuir a causa do seu status a estas coisas que ele já fez, como viajar, participar do
encontro ou até mesmo ganhar um certo reconhecimento internacional. No entanto, não
é desta maneira que ele e Rodrigues vêem. Para eles o que ocorre é justamente o
contrário, de forma que todos estes fatores só se “tornaram possíveis” porque Ramon
“conhece mais segredos” e conseqüentemente “tem mais poder.”
Neste dia, entramos numa área bem rural, com pequenas plantações, um
caminho de terra e alguns rios para atravessar. O objetivo do nosso passeio era
Rodrigues nos mostrar aonde ele pegava as ervas com as quais fazia remédios.
88
Foto 11 – Rodrigues e eu no dia do passeio Foto 12 – Rodrigues no dia do passeio
Ao longo do caminho Rodrigues apanhava várias destas ervas e ia explicando para que
tipos de males serviam. Em vários pontos da nossa caminhada tínhamos que parar para
conversar com os amigos que Rodrigues encontrava. Dentre estes amigos, os mais
significativos foram justamente Ramon e uma outra senhora cujo nome não me recordo,
mas que era parteira e que se juntou a Rodrigues para mostrar e explicar para que
serviam algumas “ervas”. Várias podiam ser utilizadas contra doenças, como por
exemplo dores de cabeça, febres, gases, verrugas, gripes etc. Além disso, algumas
também serviam para afastar maus espíritos tanto de adultos quanto de crianças.
Quando alguém fica doente por causa de uma maji significa que há um espírito
lhe fazendo mal e que seu destino, a não ser que tome as providências necessárias, é a
morte. Em relação às doenças, a solução, a cura, passa necessariamente pelas mãos de
um especialista, geralmente um ugã, uma mambô ou um pastor. No entanto, os
procedimentos de cura utilizados são diferentes. Teoricamente, os pastores não fazem
maji nem para causar doenças e nem para curá-las. Assim, os métodos de cura utilizados
pelos pastores e pelos ugãs e mambôs são essencialmente diferentes. Enquanto os
primeiros expulsam os espíritos que estão afligindo à pessoa, numa espécie de
“exorcismo” que não é considerado por eles próprios como magia, poderíamos dizer
que os segundos “dão o troco na mesma moeda”, ou seja solucionam o problema
89
acionando outros espíritos que possam combater os primeiros. A partir daí trava-se uma
espécie de guerra ou batalha entre estes especialistas e que se estende ao plano
espiritual onde o acerto de contas passa a depender da intensidade dos poderes dos
espíritos.
O exorcismo feito pelos pastores protestantes também pode ser feito pelos
padres católicos. Um dia, enquanto andávamos pelas ruas de Jacmel, Rodrigues parou
para conversar com um homem que, posteriormente, disse ser padre. Meio espantada eu
falei: “padre”? Ao que ele me respondeu: “sim padre, da igreja, sabe? É ele que cura
minha dor de cabeça quando é por causa de espíritos.” Como assim? Eu perguntei. Ele
fez um gesto imitando o que o padre fazia, onde colocou a própria mão na cabeça e
falou: “ele manda o espírito embora porque ele é padre.”
Estas ações que compreendem os exorcismos feitos por pastores e padres e o
envio de espíritos por parte dos ugãs e mambôs, parecem depender sempre da
intermediação destes especialistas para que possam surtir efeito. Assim, embora haja
uma diferença no método empregado, são eles as pessoas que reconhecidamente sabem
como lidar com isso, e que estão autorizados a resolver este tipo de problema. Estes
especialistas são responsáveis por acionar o universo dos espíritos ou dos loas, são eles
sobretudo que podem e que sabem como fazer isso, sejam eles protestantes, católicos ou
voduisantes.
Certo dia, em um dos cultos realizados na igreja de Bayar, ele apontou para
um dos jovens que estava sentado e explicou como o havia livrado de morrer por
causa da maji
Aquele rapaz veio me procurar, ele era ugã. Tinha um espírito atrás dele
para matá-lo. Atrás não, do lado. Eu perguntei ao espírito de onde ele vinha
e o que estava fazendo ali. Ele falou que estava ali para assassinar aquele
jovem. Com certeza era maji, porque na casa do jovem tinham todas as
coisas que alguém usa para fazer maji para o mal, tinham facas e garrafas.
90
Neste caso, um outro ugã, incomodado com a concorrência que o tal rapaz
representava, foi quem enviou o espírito para assassiná-lo. Perguntei a Bayar de que
forma este assassinato iria ocorrer, como o espírito que estava do lado do rapaz poderia
finalmente matá-lo. Bayar afirmou que quando um espírito é enviado para assassinar
uma pessoa, ficando do seu lado, esta pessoa pode “ficar doente até morrer” ou então
“sofrer um acidente”, como ser atropelada, por exemplo.
Um outro elemento que deve ser destacado da fala de Bayar é o fato dele
especificar que a maji com a qual o rapaz estava envolvido era “para o mal”. Eu já havia
conversado com outros protestantes em Jacmel e nenhum deles duvidava da existência
da maji, ou seja de que uma pessoa pudesse fazer o “mal” contra outra por meios
mágicos. Para estes protestantes, tudo aquilo que estivesse relacionado ao vodu era maji
e representava o “mal”. No entanto, Bayar diferenciava a maji feita para o “mal”, ao
qual ele relacionava com o vodu, de uma outra que ele denominou simplesmente de
maji e que para ele não tinha nada a ver com o vodu.
Conforme veremos mais adiante, outras pessoas, em outros momentos também
separaram o termo maji em dois, definindo-o conforme suas intenções fossem
qualificadas como sendo para o mal ou não. Para Bayar, os pastores protestantes, por
serem pessoas “preparadas” poderiam ter experiências que ele chamou de “mágicas”
como “ser montado por um espírito”.
34
Para Bayar, as pessoas “preparadas” são os
pastores, os padres, os ugãs e mambôs. São estas pessoas que “aprendem” a lidar com
os espíritos e com a maji. Este aprendizado não é adquirido da mesma maneira por estes
personagens. Enquanto os pastores e padres “estudam”, obtendo seu conhecimento por
34
Aqui, apesar da expressão “ser montado por um espírito” utilizada por Bayar, seja a mesma que os
voduisantes usam, ele fez questão de falar que isso não era vodu.
91
meio de uma “escola”, ugãs e mambôs aprendem por meio da tradição que é passada
para eles pelos seus ancestrais
35
.
Um pastor, ou qualquer pessoa que seja preparada pode ser montado por um
espírito, e este espírito pode através da pessoa falar com as outras. Ao
contrário dos anjos que só falam a língua dos anjos, os espíritos podem falar
qualquer língua. Eu mesmo já tive uma experiência destas [...] ela é
totalmente controlada. Você acende uma vela, faz uma prece, chama o
espírito. Agora não se deve fazer isso com os anjos. Os anjos refletem sua
imagem, enquanto os espíritos montam em você. Os anjos podem refletir
qualquer imagem humana e se aproveitar desta imagem para terem uma
forma. Os espíritos podem ter qualquer forma, os anjos não. Ter uma
experiência deste tipo com os anjos é perigoso, ver um anjo também, pois o
tempo da sua vida se reduz em cinco ou até mesmo dez anos.
A todas estas experiências Bayar deu o nome de maji. Esta maji não está voltada
para o mal e, portanto não pode ser usada como explicação para as doenças ou para os
acidentes. Tampouco ela está voltada para o bem, parecendo ser simplesmente um modo
de fazer as coisas, um nome para descrever experiências que apenas colocam em
contato seres humanos com anjos ou espíritos.
Conforme descrito acima, uma pessoa qualquer pode fazer maji para
“assassinar” uma outra. Para isso, no entanto, ela precisa de um intermediário, um
especialista, como estou chamando, aquele que tem o poder de acessar o universo dos
espíritos para isso. Quando a maji é para causar um mal a alguém, geralmente o
especialista é um ugã ou uma mambô. Aqui é importante que fique bem claro que todos
os ugãs que eu conheci falaram explicitamente que podiam fazer o “mal”. Ou seja, o ato
de fazer maji para o “mal” era precisamente associado ao vodu, tanto pelos voduisantes
quanto pelos protestantes.
35
Os ancestrais podem ser os pais, os avós ou os espíritos.
92
A maji que não é para o “mal” e a maji como “proteção”
A experiência mágica de Bayar é um exemplo em que a maji não aparece como uma
explicação para os infortúnios, mas apenas qualifica um tipo de prática, aquela de poder
entrar em contato com um universo não-humano. A maji também pode ser utilizada
apenas para garantir proteção. Étude e Merlande foram às pessoas que mais me
forneceram exemplos de como a maji poderia ser a forma de designar certas coisas e
também ser utilizada com outras finalidades que não o mal, como a proteção, por
exemplo.
A loja de Madame Étude estava cheia de objetos que eram para fazer maji.
Facões, garrafas decoradas, bonecos e cordas penduradas no teto, potes bem
pequenininhos contendo pós coloridos, imagens de santos, bastões, chocalhos e muitas
outras coisas ajudavam na composição do pequeno espaço físico que continha a loja.
Nem todos aqueles objetos eram para fazer maji para o “mal”. Alguns podiam ser
usados, por exemplo, como amuletos protetores. Eu mesma comprei umas sementinhas
que, se colocadas na bolsa ou em qualquer lugar próximo do corpo, embrulhadas em um
pequeno papel onde estava escrita uma prece, serviam para proteger contra a
perseguição de possíveis inimigos. As preces, aliás, eram consideradas por Madame
Étude como uma forma eficaz de “se tornar invisível diante dos olhos dos inimigos”. No
mercado de Jacmel e também na loja de Étude encontram-se a venda pequenos papéis
aonde de um lado vem impresso o nome de um santo e do outro uma prece que é sempre
igual.
36
36
A prece impressa nestes papéis é a seguinte: « Le Jour du Brave est le Lundi et le Samedi, allez au
cimetiere allumez une bougie et dites votre priere en la terminant dites croix sous touche au salut eternel
de venir a moi qui suis expose aux naufrage de ne me succomber dans les attaques de mes ennemis qui
cherchent a me perdre. Oh ! Troupeau fortune, elu du ciel, intervenez pour moi et faites les me laisser en
paix et preservez-moi de tout danger. Grand Radegond qui est complimente par eux-meme, intervenez
pour me defendre de tout danger de morte t conduisez-moi jusqu’a la paorte du ciel, au nom de Dieu Pere,
Dieu, le Fils et Dieu le St. Espreit. Amen. Trois Pater et trois Ave ».
93
Segundo Madame Étude, todas estas preces são para fazer maji e para proteção.
Uma tarde mostrei algumas que tinha comprado no mercado para Madame Étude e
perguntei sobre o fato de todas terem o mesmo texto. Ela me explicou que cada uma era
destinada a um “santo” diferente e era isso que fazia a diferença.
Na hora de fazer a prece o nome do santo para a qual ela é destinada deve
ser falado bem claramente. Você acende uma bougie
37
e fala o nome dele.
Depois faz a prece e, no final fala de novo. Quando terminar a prece ela
deve ser queimada e transformada em cinzas. Você pega estas cinzas e
ingere com algum líquido, pode ser água, suco ou café. Isso traz proteção
porque a pessoa se torna invisível aos olhos daqueles que lhe querem fazer
mal.
Da mesma maneira, os habitantes de Jacmel, já tem proteção garantida por Saint
Jacques, le majeur e Saint Felipe, padroeiros da cidade. De acordo com o que me
contou Madame Étude, estes dois “santos” podem, da mesma forma que as sementinhas
citadas acima, “tornar os moradores de Jacmel invisíveis aos olhos dos inimigos.” Além
disso, por conta da proteção garantida por estes dois santos, “quem não é de Jacmel e
tenta fazer algum mal para quem é de Jacmel, não volta vivo para casa.” Madame Étude
dizia que estas coisas eram maji, mas como serviam para proteção não eram para o
“mal”. Para ela, que freqüentava uma igreja protestante, os loas eram os “santos” da
igreja católica e os “santos” eram “diabos”, espécies de “anjos caídos” que teriam se
revoltado contra Deus.
Havia objetos, como alguns bonecos, que podiam ser utilizados em rituais para
descobrir os números da loteria, para “ir bem” nos negócios, ou então para evitar
traições amorosas. Geralmente, estes rituais consistiam em acender uma bougie, fazer
uma prece, pegar o boneco, jogar clairin em volta deles seguindo a ordem dos pontos
cardeais e seguir adiante conforme o objetivo da maji. Os bonecos destinados a manter a
37
Bougie é uma espécie de vela, do mesmo tamanho, cuja chama é bem forte, como se fosse uma
pequena tocha. Em Porto Príncipe e em Jacmel podem ser encontradas nas cores preta, vermelha, laranja
e branca.
94
fidelidade eram feitos de pano pela própria Madame Étude. Podiam ser do sexo
masculino ou feminino e nas cores preta, vermelha, branca ou verde. Estas cores
correspondiam, segundo Madame Étude, ao tipo de maji que seria feita: o preto para
maji noir, o vermelho para maji rouge e o branco para maji blanc. O verde não foi
definido. Merlande também fez alusão, embora muito brevemente, às cores da maji. Nas
paredes da casa que havíamos alugado em Jacmel estavam algumas fotografias do
proprietário e de sua família. Quando Merlande passou o fim de semana conosco notou
um destes retratos no qual ele estava vestido com roupas que o caracterizavam como
mestre de loja maçom. Neste caso ela mencionou que a maçonaria era maji branca.
Tanto a aquisição de amuletos protetores, quanto o ritual para fazer as preces,
descrito acima e todos os outros para ter sorte, amor ou dinheiro foram chamados de
maji por Madame Étude, e o ato de fazer quaisquer destas coisas era chamado de
maji. Uma característica importante a ser notada aqui é que este tipo de maji podia ser
feito por qualquer pessoa e não necessitava da ajuda de especialistas.
Um outro exemplo de maji que podia ser feita por qualquer um aparece no relato
de Lionel, um dos filhos de Rodrigues. Uma noite eu, Felipe e ele estávamos em casa
vendo um filme quando acabou a luz. Enquanto esperávamos, na expectativa que a luz
voltasse, começamos a conversar sobre a emigração de haitianos para outros países
quando ele começou a falar sobre os haitianos que tentam entrar ilegalmente nos EUA,
os boat-people.
As pessoas que viajam nestes barcos têm o costume de fé maji para se
transformarem em comida e passarem tranqüilamente pela guarda costeira
americana. Uma vez, uma mulher se transformou em um cacho de bananas e
as outras pessoas se transformaram em outras comidas como, por exemplo,
sacos de arroz ou de batatas. Um dos guardas arrancou uma banana do
cacho e comeu. Depois quando as pessoas que estavam transformadas em
comida, voltaram a ser pessoas, a mulher que tinha se transformado em um
cacho de bananas estava com um dente faltando. Este dente era exatamente
a banana que o guarda tinha comido. Outras vezes as pessoas fazem um
95
vento muito forte, tão forte que cria uma nuvem que faz com que a guarda
costeira não consiga ver o barco na hora em que ele está passando.
Segundo Lionel, muitos haitianos tentavam entrar desta forma nos EUA, mas
depois de um acidente ocorrido por volta de 2006, onde um dos barcos afundou e muita
gente morreu, as tentativas diminuíram. A isso somava-se o fato do reforço por parte
dos EUA de sua guarda costeira, o que tornava ainda mais difícil e mais arriscado tal
empreendimento.
A maji e sua relação com protestantes e voduisantes
Certamente as pessoas com as quais eu convivi em Jacmel tinham percepções e
interpretações variadas daquilo que entendiam como sendo maji. Conheci alguns
protestantes que tinham uma posição aparentemente radical em relação aos seus
significados. Neste caso, a maji era entendida como uma prática atrelada ao vodu, na
medida em que quem é voduisante faz maji. Além disso, ela também representava
estritamente o mal, personificado na idéia de “demônio” ou “diabo”. Para Kattelie e
Filomene duas jovens com as quais fiz amizade e que eram batistas desde que tinham
nascido, o vodu era “coisa do diabo”. Elas duas, o irmão da Kattelie e outros
protestantes, como duas mulheres que conheci no mercado de Jacmel, afirmavam ainda
que bondie não gostava de maji e não gostava que “adorassem outra coisa senão a ele
próprio”.
96
Foto 13 – Da esquerda para a direita: Filomene e Kattelie
No sentido atribuído ao termo por Kattelie e Filomene, ele era um rótulo
negativo específico para os voduisantes. Apesar de sua posição radical, elas e outros
protestantes não duvidam da existência da magia e nem de sua capacidade de fazer o
“mal”. Situação semelhante a esta foi analisada por Peter Fry no artigo “O Espírito
Santo contra o feitiço e os espíritos revoltados”. Nele, o autor afirma que os protestantes
de Chimoio
38
“não colocam em questão a realidade da feitiçaria; antes pelo contrário. O
que prometem é uma solução definitiva para seus efeitos...” (Fry, 2000:90) .
Em Jacmel, o significado de ser protestante estava relacionado à idéia de ser um
“bom cristão”, ou seja, “ter fé de verdade”, e era considerado o jeito mais eficaz de se
proteger da maji. De acordo com Madame Étude, muitos protestantes haitianos fazem
maji. “Eles não são bons cristãos”. Esta sentença possui um duplo significado. Em
primeiro lugar ela aponta para a existência de protestantes que, pelo menos em teoria,
não deveriam fazer maji (entendida no sentido radicalmente negativo dado ao termo),
mas fazem. Em segundo lugar, ela se referia a pessoas que poderiam ser a qualquer
38
Conforme as informações fornecidas pelo próprio autor, Chimoio é a capital da província central de
Manica, em Moçambique, lugar onde ele realizou sua pesquisa.
97
momento alvo desta mesma maji. Ou seja, ser um “bom cristão” significa, sobretudo,
não ter qualquer contato com maji. Um “bom cristão” não faz maji e ao mesmo tempo
não pode ser atingido por ela. Cabe ressaltar que esta idéia não está presente apenas
entre protestantes, mas também entre católicos, voduisantes e até mesmo entre aqueles
que não são tão definidos em relação à religião que seguiam.
Madame Étude, assim como Bayar, se consideram “bons cristãos”. No
entanto, ela é uma protestante que pensa e age diferente de outros como Kattelie
e Filomene, por exemplo. Primeiro pelo seu próprio trabalho, afinal ter uma loja
que vende destinados a práticas consideradas mágicas seria impensável por
protestantes como Kattelie ou Filomene. Além disso, ela não só vendia estes
produtos, como muitos deles era ela também que fazia. Eu mesma estava certa de
que Madame Étude era voduisante até descobrir, quase na hora de voltar para o
Brasil, que ela era batista. Quando, posteriormente conversamos sobre o fato dela
ser protestante e ter aquela loja, ela respondeu algo do tipo “negócios são
negócios”, o que não quer dizer de forma alguma que ela duvide ou coloque em
questão a a eficácia da magia. Madame Étude contou que sua mãe era católica,
mas que ela tinha sido criada por uma tia batista que desde que ela era bem
pequena a levava para esta igreja. Uma de suas irmãs também era protestante, era
inclusive missionária e não morava permanentemente no Haiti por causa das
viagens realizadas por conta da missão da qual fazia parte.
Ainda com base nos relatos descritos anteriormente pudemos ver que Bayar é
um outro exemplo de protestante que pensa diferente daqueles protestantes mais
radicais como Kattelie e Filomene, chegando mesmo a admitir ter passado por uma
experiência “mística”, ainda que tenha feito questão de ressaltar que isso não tinha
nenhuma relação com o vodu. Assim, de acordo com ele o significado de maji nem
98
sempre está ligado ao mal e até mesmo dentro da religião Vodu podem ter ações
voltadas para o bem ou que simplesmente não causem o mal a ninguém.
Toda esta discussão aponta para a complexidade que caracteriza, na prática, as
relações entre o vodu e os diversos segmentos protestantes que existem no Haiti. Neste
sentido, o trabalho de alguns autores apresentados no primeiro capítulo podem trazer
pistas que nos informam sobre estas relações. Em Richman (2005), por exemplo, temos
uma situação na qual Little Caterpillar (seu principal interlocutor) que era voduisante se
converte ao protestantismo para depois retornar ao vodu. De acordo com a autora,
aqueles que se convertem “parecem meramente substituir um conjunto de poderes de
mediação por outro sem, contudo, alterar substancialmente a sua visão de mundo.”
(Richman, 2005:261).
No que diz respeito especificamente à questão da conversão ao protestantismo
apenas posso afirmar que em Jacmel existia a idéia de que esta opção servia para se
livrar de um “mal” ou para garantir proteção, na medida em que as igrejas protestantes
eram vistas por diversas pessoas como “mais fortes” ou “mais eficazes” que o vodu.
Esta idéia está presente em Métraux quando sustenta que o protestantismo é visto como
o “remédio radical”, aquele que é utilizado quando todos os outros recursos encontrados
no Vodu para a cura de um mal se esgotaram. Ainda de acordo com o autor, “o
protestantismo aparece como um asilo ou mais exatamente como um círculo mágico
onde se está protegido dos loas e demônios. A conversão, longe de ser fruto de uma
crise de consciência, não é mais que a expressão de um temor excessivo dos espíritos.”
(1958:312).
39
De acordo com o que foi descrito anteriormente, para alguns protestantes
os termos maji e vodu possuem apenas um caráter negativo, sendo um rótulo
39
Aqui devemos considerar que o protestantismo da época em que Métraux esteve no Haiti certamente
não é o mesmo e provavelmente não tinha a presença que tem atualmente no Haiti.
99
para tudo aquilo que representa o “mal” no Haiti. Neste sentido estes dois
termos poderiam ser pensados como uma categoria de acusação utilizada por
protestantes contra voduisantes. Realmente, ouvi poucas pessoas afirmarem que
eram voduisantes, a maioria delas falava que era católica. Ao mesmo tempo,
em um segundo plano, várias me falaram explicitamente que faziam maji,
inclusive aquelas que eram declaradamente protestantes como Bayar e Madame
Étude. No entanto, eles não identificavam o mal nas suas experiências ou ações
mágicas. Eles reconheciam e rotulavam negativamente a maji, como Kattelie e
Filomene, mas ao mesmo tempo faziam com que maji englobasse outras coisas
que não só o “mal” relacionado ao universo vodu.
Todos os ugãs que conheci afirmavam que poderiam trabalhar para o “mal”.
Rodrigues chegou mesmo a falar que ele próprio era o “diabo”. Uma vez quando ele me
explicava a quais espíritos servia e me mostrava os locais que eles habitavam em seu
ufó perguntou se eu tinha medo do diabo. Devolvi a pergunta e ouvi a resposta: “Como
eu vou ter medo do diabo se eu mesmo sou ele?” Neste momento, Rodrigues estava se
referindo aos espíritos que “montavam” ele, (Danti, Bawon Samedi e Bakoulou).
Segundo Rodrigues, os três eram muito “maus”, embora às vezes pudessem “fazer o
bem”.
Rodrigues não foi o único ugã que afirmou explicitamente que era o “diabo” e
que podia fazer o “mal”. Na verdade, os outros dois que conheci falaram exatamente a
mesma coisa. Ou seja, o rótulo negativo que relaciona a maji e o vodu com o “mal” é,
pelo menos em parte, aceito e assumido. Em contrapartida, nunca ouvi ninguém, além
dos ugãs, falar que já havia feito ou que seria capaz de fazer maji para o “mal”.
100
Conclusões
A magia se constitui em um objeto para o qual a antropologia tem desde os seus
primórdios voltado sua atenção. De acordo com o que foi descrito aqui, vimos como ela
está presente no cotidiano dos moradores de Jacmel, no Haiti, por meio dos termos maji
e mistike. Seja como um princípio de explicação para determinados acontecimentos,
seja para dar nome a certas ações ou objetos, sua maior característica parece ser a
fluidez por meio da qual escorrega e atinge a todas as brechas da vida social.
Neste capítulo procurei mostrar a partir de exemplos etnográficos, situações
concretas nas quais os termos maji e mistike foram utilizados pelas pessoas com as quais
convivi em Jacmel. A partir destes exemplos espero ter esclarecido que a magia de
Jacmel não pode ser definida por rígidos contornos podendo estar em vários lugares e
ser apropriada por diversas pessoas, em momentos e situações por vezes inesperados
para aqueles não familiarizados com este mundo social.
Se os exemplos trazidos aqui descrevem relatos e situações que falam de maji e
mistike é porque de acordo com o que vimos estes termos funcionam, sobretudo, como
uma linguagem comumente empregada para se referir a uma série de objetos, ações e
pessoas que são consideradas pelas pessoas de Jacmel como tendo ligação explícita ou
não com o universo vodu. Desta forma, o trabalho de campo permitiu enxergar um vodu
que em seus sentidos cotidianos não está necessariamente relacionado apenas a
cerimônias e rituais (como eu pensava) e nem enquadrado nas questões que organizam a
literatura acadêmica.
Por outro lado, vimos como algumas imagens relacionadas ao vodu pelo senso
comum e sistematizadas pela literatura também apareceram no campo, o que nos
possibilita alguns pontos de aproximação entre estas duas esferas. Nestes momentos as
pessoas acabavam jogando com os estigmas e estereótipos relacionados ao exotismo e
101
aos mistérios do vodu. Por sua vez isso envolvia a minha própria imagem diante dos
haitianos: eu era uma blanc, e só isso já trazia em si uma série de rótulos, como o de que
eu tinha dinheiro , por exemplo, e percepções por parte deles em relação aos
estrangeiros que vão ao seu país.
40
40
Gostaria de esclarecer que ao mesmo tempo em que existiram situações em que era rotulada como uma
estrangeira (com todos os sentidos e representações que os haitianos atribuem ao termo), em várias outras,
estes rótulos puderam, pelo menos em parte (é claro eu nunca deixarei de ser uma blanc), ser
desmantelados. Isso quer dizer que eu não fui a única que desfiz algumas imagens que tinha na cabeça
sobre o vodu e sobre os haitianos. Certamente, os haitianos também mudaram aquilo que pensavam que
eu representava como estrangeira, graças as situações em que nos aproximamos e pudemos, assim,
conhecer melhor um ao outro.
102
Considerações finais
O objetivo deste trabalho foi a construção de um diálogo entre a literatura acadêmica
sobre o Vodu haitiano e minha experiência etnográfica. Como assinalei na introdução, o
encontro entre esses dois universos foi justamente o ponto de partida, aquilo que deu o
impulso inicial para pensar a dissertação. De acordo com o que relatei, quando parti
para Jacmel não havia feito nenhum investimento sistemático na leitura sobre Vodu e o
conhecimento que carregava comigo sobre o assunto era basicamente aquele que o
senso comum tem a respeito. Na volta do campo, carregava comigo um amontoado de
informações, imagens de pessoas, relatos e situações que caracterizavam um vodu
diferente daquele que eu achava que encontraria. Eu tinha várias referências que traziam
a tona toda à confusão e complexidade do mundo social.
Conforme apontei, os discursos feitos pela literatura acadêmica sobre Vodu
poderiam ser traduzidos em algumas questões-chave que organizam as obras. Sugeri
que estas questões formavam uma rede de sentidos de onde estabelecemos limites do
pensável e do impensável sobre o Vodu. Este conjunto de enunciados, apresentado no
primeiro capítulo, corresponde às discussões acerca das relações metonímicas e
metafóricas que são concebidas entre Vodu e Haiti, da “natureza” dicotômica da
sociedade haitiana, das funções que o Vodu cumpriria naquele país e finalmente da
definição do Vodu como uma religião e as suas ligações com a magia.
Posteriormente concentrei o foco nas descrições etnográficas fundamentadas no trabalho
de campo. Dessa forma foi revelado todo um universo de complexidades e nuanças associadas ao
vodu na vida cotidiana das pessoas com as quais interagi. Esse universo se mostrou mais rico e
mais largo do que aquele assinalado pela literatura, embora às vezes ele pudesse dialogar com o
103
senso comum a respeito do vodu sistematizado no campo discursivo que trata dele e que foi
analisado no capítulo primeiro.
A partir das descrições etnográficas procurei demonstrar os variados usos e
significados de maji e mistike, dois termos que eram cotidianamente empregados pelos
meus interlocutores. As observações relativas às falas e a outras situações de interação
tiveram como objetivo mostrar a amplitude de objetos, pessoas ou ações que podem ser
referidos por meio destas duas palavras, que se revelaram como uma linguagem
utilizada no dia a dia para falar explícita ou implicitamente de vodu. Desta maneira, o
uso dos termos maji e mistike sugere a existência de todo um universo vodu que não
necessariamente se restringe aos tópicos estabelecidos pela literatura acadêmica, se
mostrando mais amplo e mais poroso na vida social cotidiana.
A opção por uma grafia diferenciada para me referir ao Vodu, tal como foi visto
por esta literatura e ao vodu, que fazia parte do cotidiano das pessoas em Jacmel, surgiu
justamente como um modo de colocar em evidência os distanciamentos, os
deslocamentos de sentidos e os diversos matizes existentes entre um e outro e que
puderam ser trazidos à superfície a partir do trabalho de campo.
Outras nuanças e complexidades vêm à tona quando consideramos as
interpretações que as pessoas fazem de suas práticas relacionadas a magia e ao vodu.
Neste sentido, vimos situações, como no caso da experiência mística de Bayar, em que
uma ação certamente seria considerada como maji por todos aqueles que conheci, mas
que na opinião de alguns não estaria ligada ao vodu. Assim, ao mesmo tempo em que as
descrições etnográficas revelam um universo vodu, em certa medida elas também
permitem que a magia seja vista como algo que pode ser maior que este universo. Isso
permite que enxerguemos nela um mundo de possibilidades que talvez possam ir além
daquilo que é entendido como vodu.
104
Anexo
105
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