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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERDISCIPLINAR DE
LINGÜÍSTICA APLICADA
BRUNO CARDOSO LAGES
A LITERATURA COMO JOGO:
POR UMA CURADORIA PEDAGÓGICA DA LEITURA
RIO DE JANEIRO
2008
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Bruno Cardoso Lages
A LITERATURA COMO JOGO: POR UMA CURADORIA PEDAGÓGICA DA LEITURA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação Interdisciplinar de Lingüística Aplicada,
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Lingüística Aplicada.
Orientador: Roberto Ferreira da Rocha
Rio de Janeiro
2008
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Bruno Cardoso Lages
A LITERATURA COMO JOGO: POR UMA CURADORIA PEDAGÓGICA DA LEITURA
Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2008.
_______________________________________
Prof. Dr. Roberto Ferreira da Rocha, UFRJ
_______________________________________
Profa. Dra. Myriam Brito Corrêa Nunes, UFRJ
_______________________________________
Profa. Dra. Solange Vereza, UFF
Dedico este trabalho à Cacau, minha guerreira, uma mãe e tanto, e ao
meu pai, Jorge, por ter me escolhido como filho e me dado seu nome.
AGRADECIMENTOS
À professora Solange Vereza, pela inspiração.
A Sueli Mizubuti Büsmayer, um estímulo constante para encarar o desafio.
À professora Myriam Brito Corrêa Nunes, a voz generosa que me deu a boa notícia e nunca
deixou de torcer por mim.
Aos professores e colegas do programa Interdisciplinar de Lingüística Aplicada, por tudo que
me ensinaram.
A Ana Lúcia Zulo, pelo olhar de compaixão, pela amizade.
Aos meus amigos, em especial Suli, Denise Rocha, Marco Antônio Santos, Daniel Gomes,
Camila Silveira e Silva, Carolina Spiegel, Luciana Hungria, Vanessa Calfa, Sandra Helena
Figueiredo e Julio França.
A Roberto Ferreira da Rocha, meu orientador, pela paciência e por nunca ter deixado de
acreditar em mim.
RESUMO
LAGES, Bruno Cardoso. A Literatura como Jogo: Por uma Curadoria Pedagógica da
Leitura. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em Língüística Aplicada) - Faculdade
de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
O presente trabalho tem como objetivo fazer uma reflexão sobre o ato de ler. Inspira-
se na experiência de museus do mundo inteiro no que se convencionou chamar de
curadoria pedagógica. Nela, recursos humanos e tecnológicos são empregados a fim
de tornar a visita ao museu uma experiência mais dialógica e interativa, na medida
em que convida o visitante a negociar sentidos o tempo todo: com as obras, com um
arte-educador, entre si. O fio condutor dessa reflexão é o mito de Perseu e Medusa.
Perseu só consegue matar a Górgona porque usa um escudo de bronze como
espelho e, ao se aproximar do monstro olhando para o seu reflexo na superfície
metálica do instrumento, escapa de virar estátua de si mesmo. Que paralelos podem-
se traçar entre a experiência do visitante de museus e a do leitor de textos strictu
sensu? Se a obra de arte é Medusa, Atena é o curador e Perseu, o visitante, como
poderiam esses elementos aparecer no processo de leitura? O que é ser um leitor-
Perseu? Como entender um texto-Medusa? De quem é o papel de Atena e como
exercê-lo?
.
PALAVRAS-CHAVE: LEITURA COMO EVENTO SOCIAL, FORMAÇÃO DE LEITORES,
LETRAMENTO LITERÁRIO, ENSINO DE LITERATURA, JOGOS DE LINGUAGEM,
DIALOGISMO
ABSTRACT
LAGES, Bruno Cardoso. A Literatura como Jogo: Por uma Curadoria Pedagógica da Leitura.
Rio de Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em Língüística Aplicada) - Faculdade de Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
The present work aims at reflecting upon the act of reading. It is partly inspired by an
approach called pedagogical curatorship, which has been adopted in various museums all
over the world. According to this approach, innumerable human and technological resources
are employed in order to make the visitor’s experience more interactive and dialogical, since
it invites him or her to negotiate meaning all the time: with the works, with an art educator,
with each other. The myth of Perseus and Medusa is a common thread running through the
present dissertation. The only reason why Perseus manages to kill Medusa is the fact that he
uses a bronze shield as a mirror and avoids becoming a statue by looking at the monster
through its reflections on the metallic surface. What parallels could be drawn between the
visitor’s experience and that of a reader? If the work of art were the Medusa, Athena were the
curator and Perseus, the visitor, how would they appear in the process of reading? What is it
like to be a Perseus-reader? How to understand a Medusa-text? Whose role is Athena’s and
how to play it?
KEY WORDS: READING AS A SOCIAL EVENT, READER EDUCATION, LITERARY
LITERACY, LITERATURE TEACHING, LANGUAGE GAMES, DIALOGISM
LISTA DE ABREVIATURAS
CPL Curadoria pedagógica da leitura
SUMÁRIO
Prefácio
11
Introdução
16
Capítulo 1: A pesquisa
24
1.1 Metodologia 24
1.2 Contexto 29
1.3 Considerações finais sobre a pesquisa interpretativista 29
Capítulo 2: O Mito da Medusa como Metáfora da Leitura Literária –
Fundamentação Teórica
32
2.1 A Metáfora de Perseu e Medusa 32
2.1.1 A Perspectiva da Lingüística Aplicada 32
2.1.2 A Leitura como gesto 37
2.1.3 A metáfora como modelo 45
2.2 Letramento e interpretação: o escudo de Perseu como peça do jogo de leitura 47
2.2.1 Letramento e leitura 47
2.2.2 Os limites da interpretação e do texto “literário” 55
2.2.3 Por uma pedagogia da leitura literária a partir de Bakhtin e Vygotsky 82
Capítulo 3: A Curadoria em ação – duas demonstrações
103
3.1 Metacuradoria 104
3.2 Curadoria de um conto 110
3.2.1 Feira de histórias 111
3.2.2 Tempestade de Gelo 115
3.2.3 Roda de leitura 118
3.2.4 Matando a Medusa 123
3.2.4.1 A influência dos pais 123
3.2.4.2 A natureza processual do sujeito 127
3.2.4.3 A humanização do pai 132
Considerações Finais
137
Referências
148
Anexos
155
I. Poster 155
II. A Shocking Accident 156
III. Um Acidente Chocante 162
IV. Metacuradoria 166
V. Curadoria de um conto 169
Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação. Questão
do grande tempo.
Mikhail Bakhtin (1895-1975)
11
Prefácio
Há duas maneiras distintas de se ler a presente dissertação. A primeira delas, mais
tradicional, pode ser descrita como uma revisão de uma bibliografia clássica sobre leitura,
teoria literária e lingüística aplicada, com o fim de sugerir uma abordagem de leitura do texto
literário que, apesar de nova na forma, não traz muitas novidades no conteúdo. Muitos
professores com os quais conversei ao longo do processo de escrever esse texto disseram
soar muito familiares as características do que eu estou chamando de Curadoria
Pedagógica da Leitura (CPL). Não foram poucos os que reagiram dizendo: “Eu faço mais ou
menos isso com meus alunos”. Em defesa do meu trabalho, posso dizer que o fato de
muitas pessoas adotarem determinadas práticas intuitivamente não significa que estejam
preparadas para descrevê-las de maneira mais formal, apresentando bases teóricas sólidas
que justifiquem sua prática. Nesse sentido, é sempre bom pararmos para refletir a respeito
de nossa atuação. Muitos e proveitosos insights podem surgir do exercício de investigação
do óbvio, do familiar e do conhecido, que escondem, no seio da familiaridade mesma que
ostentam, inúmeros questionamentos capazes de desafiar nossas crenças, obrigando-nos a
um movimento quase sempre enriquecedor de auto-crítica. Esse movimento, por sua vez,
pode resultar numa confirmação das práticas segundo as quais já atuávamos, só que agora
melhor informadas, ou numa transformação das mesmas. Em ambos os casos, ganhamos
em autonomia, uma vez que agir adequadamente não é necessariamente o mais
importante. Agir consciente do porquê se age de uma tal forma é mais desejável do que
apenas agir “certo”, pois que estar ciente a respeito dos porquês da nossa ação permite
uma flexibilidade essencial para qualquer um que lide com o ser humano. É como um
cozinheiro que seja um ótimo executor de receitas, mas que se perde quando algo o impede
de seguir os procedimentos descritos e um outro, que além de saber seguir uma instrução, é
capaz de improvisar na falta desta.
Paulo Freire (1996/1998) faz uma interessante reflexão a respeito do par “fazer” e
“pensar sobre o fazer”. Por mais que o fazer seja fonte de conhecimento, esse saber pode
12
ser descrito como um saber ingênuo, porque ele não necessariamente implica a mudança
da prática. Já a prática docente crítica denota um rigor metodológico que demanda um
investimento diferenciado do mero fazer. O saber certo não é um dado pronto que se
encontra em manuais, tampouco na experiência pura e simples. O saber certo é fruto de um
processo dialético entre teoria e prática reflexiva. A CPL se propõe, ao mesmo tempo, como
um saber e como uma prática. A princípio, como disse antes, não há muita novidade na
teoria que se apresenta como base para esse projeto. Contudo, na medida em que se
desenha uma nova forma de vivenciar os conhecimentos até agora estabelecidos, pode-se
alterar a teoria, caso em que a forma influencia o conteúdo, gerando novos conhecimentos.
Ao argumento acima, pode-se acrescentar o fato de que não é muito freqüente
vermos as pessoas unindo forças entre estudos lingüísticos e literários. Comum tanto na
Europa quanto nos EUA, a interação entre os estudos de Língua e Literatura não é prática
corrente no Brasil. Vejo a tentativa em si como fator positivo a pesar na justificativa do
presente trabalho.
Existe ainda uma segunda maneira de se ler a presente dissertação. E é essa que
está por trás da estrutura dos capítulos. Há muito que me interesso por leitura e leitores, e
por isso estou sempre atento a imagens, metáforas que me ajudem a entender esse
fenômeno hiper complexo. Há alguns anos já que uma imagem não me sai da cabeça e
quanto mais eu penso sobre ela, mais ela me parece adequada para descrever um pouco
do que acontece quando se lê. É a imagem de Perseu segurando a cabeça decapitada da
Medusa. A primeira vez que me ocorreu que essa história pudesse ser metáfora de leitura
foi lendo Ítalo Calvino. Num texto seu do livro Seis Propostas Para o Próximo Milênio (1998),
ele discorre sobre a importância da leveza e usa as sandálias aladas de Perseu como
exemplo. Eu achei curiosa a associação entre o mito e a proposta de leveza e, sem que me
desse conta, guardei essa história na memória até que me ocorreu que havia mais do que
leveza nela.
O mito de Perseu e Medusa foi contado por Ovídio (1983), em suas Metamorfoses e
por Apolodoro (1999). É a versão desse segundo que tentarei resumir. Diz a história que o
13
rei Acrísio, de Argos tinha apenas uma filha, a bela Dânae. Mas o rei queria ter um filho e,
para certificar-se de que isso um dia aconteceria, resolveu fazer uma consulta aos deuses
no oráculo de Delfos. As notícias não foram boas. O rei não teria mais filhos e seu neto, filho
de Dânae, seria também seu assassino. Para evitar que isso acontecesse o rei teria que
matar a filha ele mesmo, garantindo que não haveria nenhum imprevisto. Acrísio, porém,
embora não tivesse instintos paternais que lhe impedissem de levar a cabo a vida de Dânae,
temia a fúria dos deuses, pois que esses costumavam punir duramente os que derramavam
sangue do seu próprio sangue.
Acrísio decide, assim, construir uma casa subterrânea de bronze onde pretendia
manter a filha prisioneira até o fim da vida. A prisão tinha apenas um acesso pelo telhado,
por onde entravam ar e luz. Zeus, porém, afeito a jovens belas, foi procurá-la sob a forma de
chuva e, sem entender ao certo como aquilo tinha ocorrido, Dânae deu à luz um menino a
quem chamou Perseu. Quando Acrísio descobriu a presença do menino junto a Dânae,
mandou construir uma arca de madeira onde prendeu a filha e o neto, e os lançou ao mar.
Depois de sobreviver a uma noite tempestuosa à deriva, Dânae e Perseu vão parar numa
ilha, onde são acolhidos por um humilde pescador chamado Díctis e sua mulher, que os
adotam como filhos. Dânae viveu ali por muitos anos e Perseu se tornou um jovem
pescador.
Um dia o rei da pequena ilha, Polidéctis, irmão de Díctis, apaixona-se por Dânae e
trama para casar-se com ela e livrar-se de Perseu, de quem não gostava. Dá entender ao
jovem que uma das coisas de que mais gostaria de possuir na vida é a cabeça da Medusa,
uma das três Górgonas, monstros marinhos cobertos de duras escamas, com serpentes no
lugar de cabelos, e que transformavam em pedra todo aquele que olhasse para elas
diretamente. Resolve dar uma festa para comemorar o noivado com Dânae, onde recebe
vários presentes. Perseu, que não havia podido dar nada para os noivos, tem o orgulho
ferido e, na frente dos convidados, anuncia que vai dar para o rei o melhor presente de
todos: a cabeça da Medusa. Era exatamente o que Polidéctis desejava. Dificilmente Perseu,
ou qualquer outro, sobreviveria à tarefa.
14
Perseu, todavia, não estava só. Contava com a ajuda de dois deuses: Hermes e Pala
Atena. O primeiro serviu-lhe de guia até o lugar onde as Górgonas se encontravam, deu
para Perseu uma espada capaz de cortar as escamas do monstro e o ajudou a obter um par
de sandálias aladas para que pudesse aproximar-se da Górgona rapidamente bem como
um capacete que o tornaria invisível. Já Pala Atena deu para o jovem herói um escudo de
bronze e explicou que olhando para a Medusa através de seu reflexo no escudo metálico,
ele não se transformaria numa estátua de pedra. E assim foi que Perseu voou até a ilha
onde as Górgonas repousavam. Antes de desfechar o golpe fatal sobre a cabeça de uma
delas, porém, foi preciso que Hermes e Atena o ajudassem mais uma vez, dizendo qual das
três era a Medusa, única das três irmãs que não era imortal. A história não pára por aqui,
mas a parte do mito que considero relevante para a pesquisa culmina com a morte da
Medusa.
Ao longo dissertação as imagens dessa história surgirão como importantes
ferramentas na elaboração dessa forma de ler, a qual estou chamando CPL. Tentarei
argumentar que Perseu é um modelo de leitor e que a Medusa é uma boa representação do
texto a ser lido. Dentro do contexto da CPL, a leitura é eminentemente gestual – quem lê
está fazendo alguma coisa – e social – quem lê está fazendo alguma coisa com alguém, em
algum lugar, num momento específico. O texto (e sua interpretação) tem uma natureza
monstruosa – é fruto de um amálgama de fatores, é um emaranhado complexo de sub-
textos que, à semelhança da criatura do Dr. Frankenstein, estão costurados num corpo
instável, mutante. E, assim como o objetivo de Perseu é matar a Medusa, o objetivo do leitor
é “resolver” o texto, “matando” as perguntas, as ambigüidades, os conflitos que possam
surgir do seu encontro com esse “ser monstruoso”(o texto). Se Perseu corre o risco de se
tornar pedra ao encarar o monstro de frente, ao leitor seria aconselhável olhar para o texto
através de seus reflexos em outros textos, de modo a não se paralisar em interpretações
literais. Perseu recebe a ajuda de um “par mais competente” (Vygotsky, 2003): Atena lhe
sugere que use o escudo, um instrumento de guerra, como espelho. Ou seja, a leitura do
herói mitológico foi influenciada, em primeiro lugar, por uma conversa sobre o ato de ler; em
15
segundo, pelo modo como leu, olhando para o reflexo do texto em outros textos. O curador
é como Atena – o par mais competente cuja interferência faz parte da leitura.
Ao longo do presente trabalho, os paralelos entre os elementos do mito e os fatores
que fazem parte do ato de ler serão discutidos com detalhes, numa tentativa de pensar a
leitura novamente, dessa vez sob a ótica da Curadoria Pedagógica da Leitura, cujos
princípios pretendo descrever, bem como sugerir como uma possível estratégia de leitura.
16
Introdução
Em julho de 2004, visitando a Estação Pinacoteca, em São Paulo, uma feliz
coincidência deu origem a meu projeto de mestrado. Cheguei, sem saber, no
momento exato em que um grupo se preparava para iniciar uma visita monitorada na
companhia de uma arte-educadora. A mostra intitulava-se “Encontros com o
Modernismo”, com 75 obras do museu Stedelijk, de Amsterdã, e 20 trabalhos do
acervo da Pinacoteca. O objetivo da mostra era colocar lado a lado um artista
europeu consagrado e um brasileiro, de modo a iluminar características do trabalho
de ambos que talvez passassem despercebidas fora dessa “interação”, dessa mútua
reflexão. Combinei comigo mesmo que me juntaria ao grupo por alguns minutos e
depois decidiria se continuaria ou não com eles.
Da porta de entrada da primeira sala, uma das primeiras coisas que
chamaram minha atenção foi um quadro do pintor holandês Piet Mondrian (1872-
1944), exposto na parede oposta, como que dando as boas vindas a todos. Meu
primeiro impulso foi caminhar em direção ao quadro, uma vez que morando no
Brasil, não é sempre que se tem a oportunidade de ver um Mondrian de perto. Para
minha frustração, porém, havia no chão um obstáculo que me impedia de seguir
meu desejo inicial: uma estrutura em madeira que lembrava enormes peças de
dominó dispostas longitudinalmente sobre o lado mais estreito. As peças estavam
arrumadas como se, ao empurrar a primeira, fôssemos derrubar as outras. Os
blocos de madeira rústica e maciça serpenteavam em S bem no meio da sala,
obrigando-nos a contorná-los se quiséssemos chegar ao Mondrian. Confesso que
por um momento passou pela minha cabeça pular a estrutura, que a princípio me
pareceu uma espécie de banco onde os visitantes poderiam sentar-se a fim de
admirar as obras, como é comum em museus e galerias de arte.
17
Por sorte, antes que eu tivesse tempo de colocar minha idéia em prática, a
voz da arte-educadora foi chamando a minha atenção para outra obra e, quando dei
por mim, estava envolvido pela fala da moça, assim como todos no grupo de
visitantes que a cercavam. Seus gestos apontavam para outro quadro e eram
seguidos pelos olhos atentos das pessoas que, em respeitoso silêncio, pareciam
muito interessadas no que a jovem arte-educadora dizia. O quadro era feito de
figuras geométricas, como peças de um quebra-cabeça, e revelava ao olhar
observador uma cena familiar, ainda que recortada. Era uma catedral gótica, cujas
partes encontravam-se recolocadas em lugares improváveis: abóbadas ogivadas no
lugar de janelas; vitrais onde deveria estar o chão; colunas saindo das paredes.
Tinha-se a impressão de se estar olhando dentro de um caleidoscópio. A educadora
fazia perguntas:
- “O que vocês estão vendo?”
- “Parece uma igreja, respondia um visitante.”
- “É uma igreja comum?, voltava a perguntar.”
- “Está recortada, dizia uma outra pessoa.”
- “Concordo. Como vocês entendem a obra?”
- “Como um questionamento”, uma jovem senhora que parecia estar gostando
muito do quadro respondeu.
- “E o que está sendo questionado?”
- “Coisas clássicas... a arquitetura clássica talvez”, respondeu a jovem
senhora.
- “Talvez. Vocês vêem alguma relação entre esse quadro e a obra que está
no meio da sala?”
18
Nesse momento fui tomado por um sentimento, misto de surpresa e alívio,
pois só então compreendi que o “banco” que tinha me atrapalhado a chegar perto do
quadro do Mondrian era, na verdade, uma instalação na qual, por muito pouco, eu
não havia literalmente pisado. A arte-educadora, entre perguntas e comentários, foi
construindo um sentido possível para a instalação, usando o quadro como
contraponto (ou seria o contrário?): assim como o quadro, as peças de madeira
tinham algo a dizer sobre nossa relação com o conceito de espaço. O quadro
desconstruía uma imagem que simbolizava um momento de gênio arquitetônico. As
catedrais góticas são representantes da harmonia da forma, da leveza e da simetria
na idade média. Já a instalação provocava a reflexão a partir de uma experiência
mais imediata. Sua presença transformava nossa exploração do espaço da sala,
chamando nossa atenção para si mesma e para os quadros ao mesmo tempo, uma
vez que ao contorná-la, ficávamos estrategicamente colocados em relação a eles.
Durante a visita, tive oportunidade de viver outros momentos como esse, em
que não só a intervenção da monitora enriquecia minha percepção das obras, mas
também a interação com as pessoas do grupo que, animadas, faziam perguntas e
comentários. Foi uma tarde imensamente agradável, marcada pelo prazer da
descoberta compartilhada com outras pessoas.
Dias depois, ainda carregava comigo as impressões daquela visita. Junto da
lembrança boa, porém, trazia um incômodo: a sensação de que se eu não tivesse
chegado no momento em que uma visita monitorada começaria, minha experiência
não teria sido tão enriquecedora. E comecei a pensar mais demoradamente sobre o
que de fato havia acontecido naquele dia. Dei-me conta de que cada quadro,
instalação, escultura, fotografia estava onde estava por um motivo; que havia uma
sintaxe das obras, que nenhuma era vizinha da outra por acaso; que elas
19
dialogavam entre si e que, no fim de todas as contas, a mostra se fazia gesto e
mensagem (O’Doherty, 1996). Entendi, por fim, que havia uma curadoria por trás da
exibição. Na verdade, há sempre um curador por trás de toda mostra.
A palavra curador é um capítulo à parte nessa história. Ela vem do latim cura,
que por sua vez, originou as palavras “cura”, “cuidado” (tanto daquele que toma
conta, quanto daquele que ama), “culto” (aos deuses). Atualmente, na língua
portuguesa, ela designa apenas uma de duas coisas: ou aquele que cura, sara um
doente; ou alguém que está juridicamente “incumbido de cuidar dos interesses e
bens dos que sejam ou estejam impossibilitados de fazê-lo, como os órfãos
menores, os doentes mentais, toxicômanos, inválidos” (Dicionário eletrônico Houaiss
da língua portuguesa 1.0). O sentido que atribuímos ao curador associado a museus
é considerado um neologismo e vem, na realidade, da acepção dada à palavra
curator na língua inglesa. Mesmo esse sentido “novo” tem pequenas variações.
Pode designar o sujeito especialista, capaz de cuidar de um acervo, certificando-se
de que as obras sejam preservadas contra a ação do tempo e do manuseio
inadequado. É o “curador-cuidador”. Acontece que, quando as obras estão expostas,
elas contam uma história, apresentam visões de mundo, sentidos, conceitos. Tudo
porque alguém as leu de determinada forma e resolveu apresentar para o público a
sua leitura. O curador se apresenta, assim, como “curador-leitor”, um sujeito que
detém um grande poder. A presença do curador-leitor tampouco é novidade e é
graças ao seu trabalho que as exposições e mostras têm a cara que têm.
A grande novidade nesse caso, pelo menos se pudermos considerar os
últimos vinte anos como uma época bem recente na história, é o fato de haver uma
preocupação com o visitante no sentido de instrumentalizá-lo para perceber o que
nunca foi óbvio: alguém decidiu onde cada obra de arte estaria; estabeleceu
20
relações entre as obras presentes numa mesma parede, sala, mostra; determinou ou
ajudou a determinar como essas obras seriam apresentadas – com que suportes,
com que iluminação; influenciou decisivamente, enfim, na recepção das mesmas,
podendo até ser considerado, num grau qualquer, um co-autor. Pela primeira vez ao
público visitante se tem dito, de forma mais ou menos direta, o seguinte: “a
exposição que você está vendo não é apenas fruto do trabalho dos artistas cujos
nomes se lêem nas placas indicativas, mas também de uma ou de algumas poucas
pessoas (os curadores) que resolveram, por algum motivo, apresentar esses
trabalhos da forma como você os está vendo agora.” Em outras palavras, a
curadoria, até então muitas vezes hermética, “invisível” como a fiação e o
encanamento embutidos nas paredes, tem sido revelada ao visitante com o auxílio
de diferentes recursos pedagógicos: textos explicativos, vídeos, atividades
interativas, tocadores portáteis de CD que podem ser acionados diante de
determinadas obras oferecendo mais informações sobre a mesma, visitas guiadas,
entre outras atividades. Esses recursos fazem parte da estratégia do que se tem
chamado de curadoria pedagógica (Grinspum, 2000).
A partir de uma exposição pedagogicamente curada, o visitante poderá ainda
inferir outra coisa óbvia, mas nem sempre percebida. A existência dessa pessoa – o
curador-leitor – implica uma premissa muito importante: os objetos de arte podem
ser lidos de formas variadas, relações diversas podem ser estabelecidas entre
subconjuntos de trabalhos dentro de uma mesma exposição. Ou seja, dificilmente as
obras de uma mesma sala estarão ali por mero acaso. Assim, o visitante tem acesso
não apenas a um “quê”, mas também a um “como”, um modus operandi específico
do qual poderá lançar mão em outros contextos. Tem oportunidade de apreender,
além de um conteúdo, uma prática.
21
Poder-se-ia dizer, assim, que a consciência de que existe uma gramática da
exposição e de que é possível buscar relações entre as obras faz parte, como
veremos adiante, de um tipo de letramento (“conhecendo museus”). Ou seja, não é
um dado automático, natural, mas um conhecimento que é socialmente construído e
usado. Espera-se que tal conhecimento seja compartilhado pelo visitante, sob pena
de se ter a relação do público com a exposição reduzida a uma produção de
significados bem menos expressiva do que poderia ser, caso esse mesmo público
estivesse a par das possibilidades de interação à disposição de quem possui o
letramento específico.
Não é que a vivência do público no museu precise ser validada pela sua
percepção da leitura que o curador fez dos trabalhos expostos. Nem sempre isso
será possível, ou mesmo desejável. Mas saber, mesmo que não se saiba
exatamente qual, que existe uma leitura por trás da exibição já é o suficiente para
que o visitante se lance em uma busca por sentido, por diálogo, por intertextualidade
que em si mesma constitui o letramento mencionado anteriormente e que pode
tornar toda a experiência muito mais produtiva.
Nesse ponto, uma questão se colocou para mim de forma muito clara e a
vontade de respondê-la transformou-se em projeto: pode existir uma Curadoria
Pedagógica da Leitura (CPL) do texto literário? Em caso afirmativo, em que consiste
tal curadoria e como implementá-la? Uma outra questão se impõe e o presente
trabalho contém (cf cap. 2) um esforço por respondê-la: em que consiste a
literariedade de um texto?
O fato é que a “literatura” também é considerada arte e, como tal, vem de um
processo de elitização do seu acesso semelhante ao que ocorria com a arte em
museus. Esses últimos, sendo fruto de um movimento de democratização dos bens
22
de cultura, antes acessíveis apenas a um pequeno grupo de pessoas, tiveram que
se adaptar para não falhar num de seus objetivos precípuos: não deixar que os
objetos de seu acervo caíssem no esquecimento. Vale dizer que os museus
enquanto instituições perceberam que para que houvesse real democratização de
seu acervo, não bastaria abrir as portas a todos, seria necessário educar o olhar. Na
verdade, como pretendo explicitar no capítulo 2, dependendo de onde se parta para
definir literatura e interpretação, a parte pedagógica da CPL traduzir-se-á mais em
um processo de deseducação do olhar do que o contrário.
O casamento da pedagogia com a arte e as mudanças que tal união
acarretou na maneira como a arte é exposta tiveram como uma de suas mais
notórias conseqüências o aumento da freqüência aos museus, bem como uma lenta,
porém constante, transformação do status do museu na sociedade: mais e mais as
pessoas percebem esses espaços como lugares onde se pode atuar
significativamente, e não redomas esotéricas onde se vai para acompanhar alguém
que entende dos mistérios ali expostos ou quando se é criança, carregado pela
escola.
A grande questão da presente pesquisa é partir do fato de que, assim como
espera-se do público que vai aos museus que transcendam o nível sensorial
(Martins, 1994) de sua experiência (não basta ver, ouvir, sentir as obras) e atinjam
um patamar reflexivo, promotor de diálogos entre obras e visitantes, visitantes e
visitantes, obras e obras, espera-se que o leitor do texto literário também possa se
beneficiar de uma abordagem “curada” da leitura.
Até que ponto o letramento “ler literatura” não se parece com “visitando
museus” e, assim, pode, como no caso desse último, se beneficiar de uma curadoria
que vise a ensinar não o significado atribuído a um determinado texto por um crítico
23
literário ou professor (curadores?), mas dizer ao leitor que existem intertextualidades
a serem construídas que poderão transformar toda a experiência em uma vivência
mais interessante e rica? Na tentativa de descrever algumas características da
Curadoria da Leitura do Texto Literário, o presente trabalho pretende cumprir alguns
objetivos, quais sejam:
1. Apresentar visões/definições de leitura e literatura que se coadunem com a idéia
de uma curadoria pedagógica. Para tanto, pretende-se partir de uma revisão do
fenômeno da leitura tal como compreendida pela Lingüística Aplicada para se
chegar a uma visão pedagógica crítica que busca descrever o mesmo fenômeno a
partir de uma visão não-imanentista do significado, ou seja, o texto não contém o
significado; este é gerado pelos sujeitos no momento em que interagem nos
eventos de curadoria.
2. Aprofundar a visão de leitor como membro de uma comunidade discursiva
(Swales, 1990) ou ainda uma comunidade interpretativa (Fish, 1982) específica.
Analisar as ferramentas de que o leitor terá que dispor – que tipo de letramento – a
fim de ter papel ativo nos eventos de leitura de que participe.
3. Investigar as contribuições Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895 - 1975), Lev
Semionovitch Vygotsky (1896-1934)
e Ludwig Joseph Johann Wittgenstein (1889-
1951) em dois momentos: A. Na fundamentação teórica da leitura como gesto e
como ferramenta no que Wittgenstein chamou de jogos de linguagem (1999); B.
Na descrição de uma possível pedagogia da leitura, na articulação de termos
como “dialogismo” (Bakhtin, 1927/99) e “zona de desenvolvimento proximal”
(Vygostky, 2003).
4. Descrever eventos de leitura projetados de acordo com as premissas
estabelecidas acima e analisar a viabilidade do trabalho de curadoria da leitura nos
moldes da que se encontra em museus de arte.
24
Capítulo 1 – Metodologia e contexto de pesquisa
1.1 Metodologia
O presente trabalho pretende ser um estudo de caso de cunho etnográfico
crítico. Um estudo de caso, nas palavras de McDonough & McDonough (1997,
p.203) “(...) não é, em si, um método de pesquisa, nem o equivalente de um: ele
emprega métodos e técnicas na investigação de um objeto de interesse.” Um estudo
de caso não é, necessariamente, de natureza qualitativa. No caso da CPL, porém,
faz-se necessária uma abordagem qualitativa tendo em vista que o objeto de
pesquisa tem alto grau de subjetividade. Os sujeitos-participantes, nos quais me
incluo, responderão juntos às perguntas de pesquisa. Além disso, o fato de o
pesquisador ser também um participante cria a necessidade de se levar a cabo uma
abordagem etnográfica. McDonough & McDonough (1997, p.205) definem estudo de
caso dando-lhe cinco características fundamentais.
1. Um estudo de caso é um sistema relativamente fechado, que
obedece a uma coerência interna em que há uma conjugação de
“jogadores-chave”, “situações-chave” e “incidentes críticos”
(Hitchcock and Hughes, 1995 apud McDonough & McDonough,
1997).
2. Um estudo de caso, se levado a cabo num contexto naturalista,
seguirá alguns dos princípios mais caros à pesquisa qualitativa
etnográfica, que são os fatores êmico (relacionados à dinâmica do
grupo visto por dentro) e holístico (o grupo inserido no contexto
maior).
3. Embora o caso possa ser tido como objeto de pesquisa, ele não é
propriamente um objeto no sentido estrito do termo, uma vez que
lida com pessoas e suas respectivas visões de mundo. Essa terceira
característica faz lembrar a distinção que McDough & McDonough
fazem entre ‘comportamento” e “ação”. Eles dizem que enquanto
uma bola de bilhar pode se comportar de forma previsível e
25
sistemática, uma pessoa age sobre um contexto, que reage sobre
ela, criando-se uma rede de interações bastante intricada. Se no
caso do comportamento da bola de bilhar pode-se admitir variações
do contexto que influenciam o seu comportamento, no caso da CPL,
entende-se que o contexto vai além do ambiente físico em que os
sujeitos se encontram. Outras pessoas (e suas histórias, repertórios
e bagagem sócio-cultural) fazem parte desse contexto, tornando a
rede de interações bastante intricada e complexa. Não foi por outro
motivo que Erickson & Shultz (1977) escreveram que “People in
interaction become environments for each other.” (p.134)
4. O estudo de caso é adequado para lidar com tal situação pela
flexibilidade com que se pode articular diferentes métodos de
pesquisa em seu âmbito.
5. Como os dados de pesquisa estão sempre emergindo, a pergunta de
pesquisa se mantém aberta a atualizações, ao invés de se fechar
aprioristicamente.
Ainda segundo McDonough & McDonough (1997, p.206-207) os estudos de
caso foram classificados em tipos por mais de um pesquisador. No caso da presente
pesquisa, pode-se dizer que se trata de um estudo de caso que transita em mais de
um tipo, uma vez que as tipologias não são necessariamente excludentes, podendo
ocorrer de forma simultânea. Ele é, em primeiro lugar, um estudo exploratório, que
segundo Hughes (1995, apud McDnough & McDonough, 1997) se assemelha a um
estudo piloto. De fato, está tudo sendo pilotado, já que é relativamente nova, se não
inédita, a articulação entre um arcabouço teórico da arte-educação, conceitos de
lingüística aplicada e teoria literária. Não deixa de ser, por outro lado, explanatório,
uma vez que pelas mesmas razões apresentadas acima, busca testar e gerar teoria
(Hughes, 1995, apud McDnough & McDonough, 1997). De acordo com outra
tipologia (Merriam apud McDnough & McDonough, 1997), o presente estudo de caso
também é interpretativo, porque se propõe refinar conceitos existentes,
26
desenvolvendo-os para melhor entender o que se está chamando de Curadoria
Pedagógica da Leitura.
Outra característica importante de um estudo de caso, e que se faz essencial
para o presente estudo, é a possibilidade de ele se desenvolver num caráter
indutivo. Em se tratando de uma situação relativamente desconhecida, é importante
que o fenômeno tenha “voz”.
Mikhail Bakhtin (2003), ao discorrer sobre a metodologia das ciências
humanas, fez uma distinção importante entre a pesquisa em ciências naturais e em
ciências humanas. Segundo o filósofo russo,
O objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante.
(...) O ser que se auto-revela não pode ser forçado e tolhido.
Ele é livre e por essa razão não apresenta nenhuma garantia.
(...) As ciências exatas são uma forma monológica do saber: o
intelecto contempla uma coisa e emite enunciado sobre ela. Aí
há só um sujeito: o cognoscente (contemplador) e falante
(enunciador). A ele só se contrapõe a coisa muda. Qualquer
objeto do saber (incluindo o homem) pode ser percebido e
estudado como coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser
percebido e estudado como coisa porque, como sujeito e
permanecendo sujeito, não pode tornar-se mudo;
conseqüentemente, o conhecimento que se tem dele só pode
ser dialógico. (op. cit. p. 400)
Em se tratando de uma pesquisa onde os sujeitos são convidados a lidar com
interpretações e significados construídos socialmente, é importante que se tenha
uma visão do objeto de pesquisa como um elemento falante, produtor de significado,
imprevisível, o qual, para poder ser melhor percebido e estudado, deverá ser
entendido menos como coisa e mais como elemento dotado de iniciativa. O
pesquisador, por poder assumir uma postura indutiva, terá oportunidade de deixar o
caso falar por si mesmo. Aqui, igualmente, a relevância de uma abordagem
etnográfica se faz evidente, pois, nas palavras de Erickson (1984, p.51) “O trabalho
de campo é altamente indutivo.” Ou seja, a partir das amostras produzidas pelo
27
elemento falante (no caso, o próprio objeto de pesquisa) o pesquisador poderá inferir
algumas conclusões, ainda que temporárias e incompletas. O que não quer dizer,
segundo o mesmo autor, que o pesquisador não possa trazer para o campo de
trabalho um ponto de vista teórico, bem como questões previamente formuladas.
Erickson define etnografia como “o processo de questionamento deliberado e
guiado por um ponto de vista, mais do que uma técnica padrão ou um conjunto de
técnicas ou um processo totalmente intuitivo que não envolva a reflexão.” (op.cit., p.
51).
A palavra “etnografia” em si quer dizer “escrever sobre nações”, do grego
graphy, escrever, e ethnos, nação, povo, tribo. Apesar de ainda guardar relação com
seu sentido etimológico, a palavra ganhou novas dimensões, podendo estar
relacionada à escrita sobre outros tipos de grupamentos de pessoas. Assim é que o
objeto de estudos do etnógrafo pode ser “uma família, uma sala de aula, uma escola
inteira, um grupo de trabalho numa fábrica, uma fábrica inteira(...)” (Erickson,
1984:52). As técnicas e os instrumentos de pesquisa utilizados em campo são
determinados pelo processo de questionamento implícito e explícito do etnógrafo
que, por sua vez, será informado tanto pelas experiências vividas no campo, quanto
por conhecimento previamente adquirido (op. cit. p.51).
A pesquisa etnográfica, como a descrição de uma cultura (Cumming, 1994)
acontece na articulação do que se convencionou chamar valor êmico e valor
holístico. O valor êmico refere-se à tentativa por parte do etnógrafo de inferir um
ponto de vista “nativo”: descrever uma cultura como ela é percebida por seus
membros. O valor se dá no potencial para que o novo, o inesperado e o imprevisível
surjam. Já o valor holístico oferece uma visão ampla de uma cultura específica. Uma
visão que leve cada aspecto de uma determinada comunidade em consideração,
28
revelando as inter-relações de suas componentes. Ele permite comparar o que as
pessoas dizem com o que elas fazem. A partir de múltiplas comparações, uma visão
multidimensional do problema surge.
A partir das tensões entre os valores êmico e holístico, o etnógrafo é capaz de
construir e inferir lentes culturais diversas a partir das quais os participantes
percebem a comunidade e os fenômenos que se passam em seu âmbito. (Erickson,
1984:55). Ele será também capaz de construir um retrato do fenômeno, produzindo
uma descrição clara daquilo que ele percebe serem as principais características do
grupo estudado, abstração feita de inúmeros detalhes que tornariam o trabalho do
etnógrafo virtualmente impossível.
A pesquisa etnográfica, apesar de altamente subjetiva, deve seguir regras
claras, a fim de se proteger contra as críticas positivistas que poderiam acusá-la de
subjetivismo, descrição jornalística, ideologia pura. Para assegurar a seriedade da
pesquisa é preciso que o etnógrafo se questione de maneira sistemática a respeito
dos seguintes pontos (Erickson, 1984:58 e 59):
Como cheguei ao meu ponto de vista?
O que escolhi omitir e o que decidi incluir e por quê?
Quanto do universo disponível foi por mim monitorado?
Porque monitorei em determinadas situações e não em outras?
Em que base posso determinar significado a partir do ponto de vista dos
outros participantes?
Essas questões são de suma importância para a seleção do material gerado.
Tudo o que acontece numa determinada comunidade tem importância potencial,
mas dependendo das perguntas que se fizer, essa importância se relativiza e certos
29
dados se tornam mais importantes que outros. Não se trata de se buscar uma
suposta objetividade, mas uma “subjetividade disciplinada” (Erickson, 1984:61).
A seguir, tento fazer uma descrição do contexto de pesquisa, dos
participantes da pesquisa, bem como dos materiais utilizados na mesma.
1.2 Contexto
A pesquisa se realizou ao longo de 2006-2007 com um turma da graduação
do curso de letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e com um grupo de
estudos de filosofia e literatura que se reúne semanalmente na casa de um de seus
membros. No trabalho de pesquisa são analisadas duas curadorias. A primeira, com
a turma da UFRJ, é uma meta-curadoria, pois, ao ler o poema “The Wish” (Wilmot,
2002) de John Wilmot, Duque de Rochester (1647-1680), faço também uma
demonstração dos princípios da CPL. Na segunda, coordeno um evento de leitura
em que o grupo de estudos acima citado lê o conto A Shocking Accident do escritor
inglês Graham Greene.
Para uma descrição detalhada, tanto da minha introdução à CPL, quanto das
curadorias realizadas pelos alunos, vide capítulo 2.
1.3 Considerações finais sobre a pesquisa interpretativista
Muitos são os críticos de abordagens que levam em conta a experiência
subjetiva como dado de pesquisa, desconfiando de sua validade para a produção de
conhecimento relevante.
Essa desconfiança da capacidade do indivíduo de ser fonte segura sobre a
realidade advém de uma equivocada dicotomia entre o que as pessoas falam e o
que elas fazem. O que se fala é muitas vezes diferente do que se faz, logo é falso,
incongruente ou, no mínimo, duvidoso. O cientista tem que ter fontes mais confiáveis
30
de dados, sob pena de produzir um conhecimento tão impressionista que não vai
servir para nada nem para ninguém.
No entanto, uma pesquisa que se queira “culturalmente sensível”,
(...) deve ser embasada não apenas no que as pessoas realmente
fazem, mas no que elas dizem que fazem e no que elas dizem
que as fez fazer o que elas fizeram. Ela também está interessada
no que as pessoas dizem que os outros fizeram e porquê. E,
acima de tudo, ela está interessada em como as pessoas dizem
que seus mundos são.” (Bruner, 1997, p.25)
Não há, segundo Bruner, motivo para se banir a introspecção e o relato
pessoal da pesquisa séria. É equivocada a idéia segundo a qual a fala, para ser
válida como fonte de pesquisa, tem que ser uma perfeita representação dos atos de
uma pessoa.
Está na nossa vida cotidiana a prova de que por mais que o falar e o agir
sigam por caminhos diferentes, eles não podem ser classificados em categorias
ontológicas diferentes. Ou seja, o falar e o agir compartilham uma mesma natureza
transformadora, agente. Falar é fazer. Ou ainda, segundo o autor:
Para aqueles que desejam dedicar-se a saber se o que as
pessoas dizem prevê o que elas farão, a única resposta
adequada que podemos dar é que separar deste modo “o que
se diz” do “que se fala” é fazer má filosofia, má antropologia,
má psicologia e leis impossíveis. Em uma psicologia de
orientação cultural, dizer e fazer representam uma unidade
funcionalmente inseparável. (Bruner, 1997, p.27).
Em relação ao trabalho que pretendo desenvolver, é de suma importância que
o falar seja visto como fonte válida de pesquisa. Minha principal questão de
pesquisa: “Quais as características de uma leitura ‘curada’ pedagogicamente?”,
passa pela descrição de comunidade interpretativa e de sujeito. Não há como não
contar com o relato dos participantes, com um grau de introspecção e de
subjetividade. Ainda que os sujeitos afirmem que ler é bom, que gostam de literatura,
31
o que vemos “na prática” é uma leitura (no caso da presente pesquisa, do texto
literário) em muito pequena escala, quando existe. Essa incongruência entre o que
se diz: “ler e literatura são coisas boas” e o que se faz, ou melhor, não se faz,
deveria ser fonte de grandes questionamentos e motivo de muita reflexão.
Seria redundante dizer que responder as questões acima de forma cabal,
final, definitiva não está entre os objetivos desse trabalho. Acredito, no entanto, que
uma revisão dos conceitos de leitura, tanto a partir da Lingüística Aplicada, quanto
sob o ponto de vista da História, somada à uma proposta de transposição de
técnicas típicas da Arte-Educação, pode trazer alguns insights importantes para que
essa prática – ler – aconteça de forma mais produtiva. Ou seja, de modo a dar ao
leitor a consciência de que pertence a uma Comunidade Interpretativa (Fish, 1983)
dando-lhe a possibilidade de transitar entre mais de uma dessas Comunidades e,
por que não, a fim de torná-la mais prazerosa.
No próximo capítulo, pretendo fazer a revisão citada com a ajuda do mito de
Perseu e Medusa, fio condutor dessa dissertação.
32
Capítulo 2 – O Mito da Medusa como Metáfora de Leitura Literária –
Fundamentação Teórica
2.1 Perseu e Medusa – Leitura, leitor e texto
2.1.1 A Perspectiva da Lingüística Aplicada
Segundo Leffa (1999, p.13) existem três grandes abordagens do fenômeno da
leitura: a. Ascendentes; b. Descendentes e c. Conciliadoras. Tais abordagens
partem de variadas concepções do ato de ler, bem como reservam diferentes papéis
ao leitor. Outros autores, como Carrel & Eisterhold (1988) e Nuttall (1996) trabalham
a teoria dos esquemas e estudam as relações entre os conteúdos construídos pelo
leitor em suas vivências e o texto. As diferentes abordagens da leitura sob a
perspectiva da Lingüística Aplicada são, em grande medida, variações de um
mesmo tema: o papel que o texto, o leitor e a interação texto-leitor desempenham no
processo de leitura.
A. Abordagens ascendentes – a perspectiva do texto
As abordagens ascendentes encaram a leitura tendo o texto como elemento
central, o que contém o sentido. A leitura é feita de baixo para cima (bottom-up, em
inglês), ou seja, do texto para a mente de quem o lê. O papel do leitor é de extrator,
mero receptáculo passivo do sentido, que é derramado (Nutall, 1996) em sua cabeça
sem que ele não tenha nenhuma participação que não seja a de decodificar a
mensagem. Do texto espera-se que seja processado na sua totalidade. Cada frase,
cada palavra, cada vírgula ganham igual importância. Uma boa leitura é aquela que
consegue extrair o máximo do conteúdo do texto, que por sua vez é invariável:
comparando-se o que está no texto com o que o leitor conseguiu extrair, pode-se
33
aferir o grau de proficiência da leitura realizada. Não há conflito: a palavra do texto é
soberana e o leitor obtém mais sucesso quanto mais disposto estiver a se sujeitar ao
texto. O texto é tido como um objeto transparente: não há mistério ou entrelinhas.
Tudo o que se espera do leitor é que ele olhe o texto e decifre a mensagem, num
gesto quase automático que se torna mais fluente com a prática.
Essa suposta transparência do texto implica que não há lugar para
negociação de sentidos. Um mesmo texto deve produzir sempre as mesmas leituras.
Leitores mais competentes devem treinar os menos competentes na extração de
sentidos do texto. Um risco que se corre nesse contexto é o professor assumir o
papel do texto e requerer do aluno uma submissão ao seu olhar, com pouco ou
nenhum espaço para diálogo ou conflito.
Das críticas que Leffa (1999, p. 20) faz à perspectiva do texto, duas são
especialmente relevantes. A primeira delas diz respeito à ênfase que se dá a um
processamento linear da leitura, ou seja, da esquerda para a direita, de cima para
baixo, página a página. Tal processamento é ingênuo na medida em que ignora as
diferentes estratégias de leitura exigidas por diferentes gêneros textuais. Não se lê
um romance como se lê um cartão postal, uma lista de compras ou um site de
notícias na internet. A navegação na rede mundial de computadores é um bom
exemplo para a idéia de que pode haver muitos caminhos a tomar na leitura de
textos variados. Mesmo quando se trata de um mesmo texto, pode ser que o leitor
tenha objetivos diferentes a cada leitura, o que redundará em estratégias e
resultados distintos.
Leffa também critica a abordagem ascendente por valorizar o que ele chama
de “habilidades de baixo nível, como o reconhecimento de letras e palavras” (p.20).
Quando o foco é o texto, pode-se incorrer na crença de que um domínio do
34
vocabulário por si só seria responsável pelo bom desempenho do leitor. É coerente
com a abordagem: se o sentido está todo nas palavras do texto, quanto mais
palavras o leitor tiver no seu repertório lexical mais produtiva a leitura. No entanto,
algumas pesquisas (Andreson & Davidson, 1986 apud Leffa, 1999) já mostraram
que essa não é uma relação necessária. Sabe-se que há outras habilidades
envolvidas no processo de leitura e que várias delas são convocadas pelo leitor, ao
mesmo tempo, no ato da leitura. Ao ler, o sujeito não só lança mão do léxico, mas
também da “capacidade de identificar contextos, acionar o conhecimento de mundo
relevante, estabelecer conexões com diferentes partes do texto.” (Leffa, 1999, p. 23)
B. Abordagens descendentes – a perspectiva do leitor
Nas abordagens descendentes a construção de sentido não está mais na
dependência do texto, passando a ser acionada pelos conceitos que perfazem o
conhecimento prévio do leitor, de cima para baixo (top-down, em inglês). Esse
conhecimento prévio, também chamado de conhecimento esquemático (Goodman,
1982; Carrel & Eisterhold, 1983; Nunan, 1998) é sistematizado pela teoria dos
esquemas, segundo a qual o leitor faz uso de conhecimentos anteriormente
adquiridos na construção de significados. Para Carrel & Esterhold, a bagagem de
conhecimentos que o leitor traz consigo pode ser dividida em esquemas de
conteúdo (o que o leitor já sabe sobre o tópico do texto) e esquemas formais (o
conhecimento que os leitores têm das diferentes estratégias de leitura que gêneros
textuais distintos demandam). Já Leffa (1999, p. 24) descreve o conhecimento prévio
do leitor em três categorias:
Lingüístico: envolve conhecimentos ditos de baixo nível, tais como
conhecimento dos sons da língua, da ortografia, da sintaxe e da
semântica. O conhecimento em nível lingüístico é mais importante nas
35
abordagens ascendentes do que nas descendentes, pois que, em
verdade, existem muito em função do texto.
Textual: Implica um conhecimento que transcende a estrutura básica
do texto para contemplar sua macro organização. Depende da vivência
do sujeito na família e na sociedade, ao ouvir e ler histórias, que lhe
dará a capacidade de reconhecer traços que vão além de um texto
específico. Por exemplo, frases como “Era uma vez...” e “Foram felizes
para sempre”, ao aparecerem em diversas histórias, sensibilizam a
criança para a estrutura esquemática da narrativa antes que ela saiba
ler, no sentido de decodificar o texto lingüisticamente.
Enciclopédico: Aqui é a experiência de vida do leitor que vai contar. É
preciso mais uma vez fazer referência à teoria dos esquemas (Carrel &
Eisterhold, 1988) segundo a qual o que o leitor lê é processado em
contraste com um conhecimento de mundo previamente organizado e
hierarquizado em esquemas. Ao ler um texto sobre uma festa, a
experiência do leitor do que seja uma festa será fundamental na
maneira como ele vai produzir sentidos a partir da história que lê.
Quanto mais rica for a experiência prévia do leitor, mais produtiva a
leitura.
A perspectiva do leitor, ou abordagem descendente, se enquadra no âmbito
dos estudos cognitivistas, segundo os quais o papel do leitor é preponderante,
quase soberano. A visão de sujeito dessa abordagem é, assim, eminentemente
psicológica, com ênfase nos processos mentais que ocorrem no ato da leitura.
Apesar de não deixar de ser um avanço em relação à abordagem anterior, que
focava um produto e não um processo, o ponto de vista cognitivo também tem
36
limitações, sendo que a principal delas é não dar a devida importância ao fato de
que esse sujeito leitor é, antes de mais nada, um sujeito social, influenciado por uma
gama quase infinita de fatores externos a ele mesmo. Onde e quando nasceu e
cresceu; onde, quando e com quem mora; como vive; a que gênero pertence; com
que raça ou etnia se identifica; sua idade; a que classe social pertence, entre outros
inúmeros fatores, devem ser levados em conta na hora de entender como a leitura
de fato ocorre. Ao partir de um sujeito psicologicamente considerado, pode-se criar a
ilusão de que ele é mais sujeito do que realmente é, quando, em verdade, sabemos
que mais freqüentemente do que os cognitivistas gostariam de admitir, o sujeito é
mais assujeitado do que sujeito propriamente. Quantas das nossas escolhas e
opiniões são mais fruto de um conhecimento compartilhado socialmente do que
meramente da nossa vontade, como se existíssemos a priori?
C. Abordagens conciliadoras – A perspectiva interacional
Uma abordagem conciliadora prevê que o fluxo de informação segue uma via
de mão dupla. Parte do princípio de que ambos, leitor e texto, são transformados no
ato da leitura. Leffa (1999, p. 29) coloca em seu texto que a interação pode ser
entendida a partir de dois paradigmas distintos, um psicolingüístico e um social.
O paradigma psicolingüístico engloba duas propostas que têm em comum
uma visão cognitivista da leitura. A primeira delas é a abordagem transacional,
segundo a qual “não só o conhecedor, mas também o conhecido se transformam
durante o processo do conhecimento”. (Leffa, 1999, p. 29) O processo de leitura
ocorre num contexto amplo em que os elementos envolvidos se transformam na
medida em que interagem – transacionam – entre si. Leffa (1999) mais uma vez
resume muito bem esse processo através do qual os elementos envolvidos no ato de
ler se modificam:
37
Muda o autor na medida em que vai escrevendo o texto, muda o
leitor na medida em que o vai lendo e muda também o texto, tanto
durante a escrita como durante a leitura. O texto, em outras palavras,
é construído não só pelo autor ao produzi-lo, mas também pelo leitor
ao lê-lo. (ibid. p. 29)
A segunda proposta a ser mencionada dentro do paradigma psicolingüístico é
a teoria da compensação (Stanovich, 1980, apud Leffa, 1999). Parte-se da premissa
de que existem diferentes categorias de conhecimento dos quais o leitor pode lançar
mão, e que esses conhecimentos interagem entre si no processo de construção de
significado. Quando o leitor apresenta uma deficiência em uma ou mais fontes de
conhecimento, pode compensar usando conhecimentos de uma outra categoria para
inferir o sentido do texto.
Ainda dentro da perspectiva interacional, existe o paradigma social, que pode
ser entendido como uma ampliação das abordagens ascendente e descendente,
com um acréscimo: a realidade socioeconômica e cultural do leitor. Ao
considerarmos o leitor como um sujeito social, e não uma mente isolada,
acrescentamos à equação da leitura a presença do outro. O indivíduo deixa de ser
soberano para se inserir em relações sociais complexas que trazem em seu bojo
não só regras de atuação, mas também ingredientes fundamentais na constituição
do olhar que se lança sobre o texto.
2.1.2 A leitura como gesto
Os historiadores Roger Chartier e Guglielmo Cavallo (1997/2002: p.5,6)
apresentam dois aspectos do fenômeno da leitura que considero fundamentais para
descrever a CPL. São eles:
1. “A leitura é sempre uma prática encarnada por gestos, espaços e
hábitos.” (grifos meus)
38
2. “A leitura não está inscrita no texto. (...) O texto apenas existe porque há
um leitor para dar-lhe significação.”
No presente capítulo pretendo utilizar esses dois aspectos para me aproximar
de uma possível e transitória definição do ato de ler histórica e socialmente situado.
Tendo em vista que uma definição cabal do fenômeno (por motivos que ficarão mais
claros no capítulo 3) não é nem factível, nem desejável, creio que ao trazer
diferentes abordagens (da história, da lingüística aplicada, nesse capítulo; da
pedagogia crítica, da teoria literária e da filosofia no próximo) poderei contribuir para
o entendimento da leitura assim como alguém que, ao construir uma rede, almeja
pescar alguns peixes, mas nunca todos.
Com relação ao primeiro aspecto apresentado por Chartier e Cavallo, vale
dizer que, ao falar da questão da leitura como gesto, eles claramente separam a
leitura da técnica (Op. Cit, pag. 27). A primeira está ligada à relação do leitor com o
texto. A segunda tem a ver com as transformações do suporte, com o livro como
objeto, e com sua produção. Existe uma relação de causalidade dialética entre
esses dois fatores: ao mudar-se o gesto, muda-se o suporte, assim como alterações
no objeto interferem na leitura. Como é mais viável pesquisar a trajetória do objeto
na história do que relatos de leitores sobre como liam (cuja documentação é mais
rara), Chartier e Cavallo baseiam sua construção de histórias da leitura na
materialidade do livro ao longo do tempo. A partir dela, podem-se inferir protocolos
de leitura e, ainda que parcialmente, reconstituir a malha de causalidades que vai do
livro à leitura, e vice-versa:
[...] é preciso considerar que as formas produzem sentido e que um
texto se reveste de uma significação e de um estatuto inéditos
quando mudam os suportes que o propõem à leitura. Toda história
das práticas de leitura é, portanto, uma história dos objetos escritos e
das palavras leitoras. (Cavallo & Chartier, 2002, p. 6)
39
Um exemplo da relevância de uma perspectiva pragmática no entendimento
da leitura historicamente considerada está na passagem da leitura oral para a
silenciosa. Pode-se dizer que o ato de ler silenciosamente (e não mais em voz alta)
teve um impacto no livro como objeto muito maior do que a invenção da imprensa,
que só fez reproduzir em grande escala um artefato que, na suas características
mais importantes, já existia.
Jesper Svenbro (2002), em brilhante artigo sobre o surgimento da leitura
silenciosa, lembra-nos de que quando a escrita alfabética surge na Grécia do século
VIII a.C., aquela era uma cultura dominada pela oralidade. A palavra falada e
cantada era não só o veículo da tradição como do poder. O historiador faz referência
ao conceito de kléos, “fama” ou “glória” (Svenbro, 2002, p.41), que, para os gregos,
era um valor fundamental, uma verdadeira obsessão. Essa fama era conferida aos
heróis épicos pelos cantores que repetiam seus feitos e era ela que fazia valer a
pena morrer em combate, garantindo uma imortalidade que atravessava gerações
através dos sons da epopéia.
De fato, diz-nos o autor, a palavra kléos, originalmente, significava “som”. A
valorização dos sons na cultura grega pode ser ainda reconhecida pela mudança
que os gregos implementam no alfabeto consonântico que herdam dos semitas,
introduzindo uma novidade: o som vocálico. Justifica-se, assim, o aparente paradoxo
da adoção de um alfabeto por uma sociedade que acredita poder sobreviver apenas
com a memória e a voz dos homens: o objetivo precípuo dessa escrita (à qual, com
as vogais, eles conferem um caráter de oralidade inédito) era a produção de mais
kléos – tanto som quanto fama. Uma prova disso são as inscrições funerárias que,
ao serem lidas em voz alta, homenageiam o morto com uma valiosa quota de glória.
40
Svenbro comenta (pag. 42) o fato de que por volta de 500 a.C. o grego
possuía mais de dez verbos que significavam “ler”. Segundo o historiador, ao
estudarmos a natureza desses verbos poderemos ter uma idéia da lógica de leitura
utilizada pela comunidade dos falantes de grego – esses verbos ganham força de
testemunho que extrapola a dimensão individual e dá conta de um povo e de uma
época. Um desses verbos é némein, que, literalmente, significa distribuir. Ele cita um
exemplo em que, antes de partir para Tróia, um chefe grego passa sua tropa em
revista e pede a um soldado para ler (nemein) uma lista de pessoas que haviam se
comprometido a lutar. Trata-se de uma leitura em voz alta em que o conteúdo da
lista é distribuído oralmente para os presentes. Svenbro analisa ainda formas
variantes desse verbo: ananémein e ananémesthai, mais freqüentemente
encontradas do que a primeira. Ananémesthai tinha um sentido ligeiramente
diferente das duas primeiras, pois que incluía o leitor na distribuição. Esse sentido
dá margem para que se pense que tal leitura oral poderia acontecer mesmo quando
o leitor encontrava-se só, como se para que ele compreendesse o sentido do escrito
precisasse ouvir a mensagem lida em voz alta, ainda que a sua própria voz. Na
verdade, a leitura era uma atividade trabalhosa, dado que à época se utilizava
scriptuo continua, ou seja, não havia praticamente separação entre as palavras.
Se némein está no centro de uma família verbos que expressavam a leitura,
poder-se-ia afirmar que nómos (que se traduz normalmente por “lei”) teria o sentido
fundamental de leitura? Para Svenbro, “não há obstáculos para tal hipótese” (Pag.
44). O autor lança mão de uma variante de nómosnómoi – que também significava
o canto dos pássaros, dizendo que as duas acepções tinham mais em comum do
que se pode imaginar à primeira vista. Acontece que os nómoi (leis) de Charondas,
um legislador grego, eram cantados. Ou seja, “a distribuição da lei pode assumir
41
uma forma cantada” (pag. 45). Mesmo o termo latino “lego” (eu leio) pode ter sua
origem não na palavra legere (colher), mas em légein que, “embora isso seja
ignorado pelos dicionários, pode ter o sentido de ‘ler’.” (p.45) O autor cita passagem
do Teeteto de Platão: “Muito bem escravo, pega o livro e lê, lége!” Assume-se que
do escravo esperava-se que lesse o texto em voz alta. Ainda com relação a legéin,
ele também possui uma forma média, epilégesthai, que significa, literalmente,
“acrescentar um dizer a” (pag. 45). Em outras palavras, o leitor soma algo ao escrito,
por sua vez incompleto. “Considera-se que a escrita necessita do légein ou do lógos
que o leitor lhe acrescenta: sem leitor, ela ficará letra morta. A leitura acrescenta-se,
portanto, como um epílogo ao escrito.” (pag. 45)
Por fim, Svenbro analisa um último verbo: anaginoskein. Diz que no que tange
à leitura, ananémein era o principal verbo do dórico e epilegesthai o mais importante
verbo do jônico. Mas ao questionar-se como o sujeito de Atenas se referia ao ato de
“ler”, é necessário recorrer ao verbo anaginoskein. Literalmente, esse último verbo
significa reconhecer. Mas mesmo os gregos não esperavam que esse
reconhecimento fosse sinônimo de decifração:
O reconhecimento ao qual esse verbo faz referência não é o do sinal
alfabético individual, designado em grego pela palavra gramma.
Sabemos todos que a leitura não se resume à simples identificação
das letras do alfabeto. Podemos “conhecer suas letras”, “
grammata epistasthai”, sem estar em condições de ler. (Svenbro,
2002, pag. 47)
Como a escrita era contínua, sem espaço e sem pontuação, era necessária a
intervenção do leitor e sua voz, sua entonação, sua produção sonora, a fim de que a
leitura produzisse significado.
O estudo dos verbos gregos nos permite tirar três conclusões:
1. O caráter instrumental da voz do leitor.
42
2. A incompletude da escrita à espera da sonorização do leitor. Nesse caso, a
palavra “texto”, etimologicamente considerada – “tecido” – ganha uma dimensão
bastante interessante, pois “tudo se passa aqui como se o texto fosse feito de uma
série escrita e uma trama vocal, que se unem na leitura e se desfazem depois” (pag.
49). O texto passa a ser, na experiência grega de ler, não um objeto estático, mas o
nome da relação dinâmica entre o escrito e a voz, entre o escritor e o leitor.
3. O fato de os leitores serem também, na sua maioria, “ouvintes” do texto, à
exceção dos poucos que efetivamente têm o trabalho de sonorizar o texto. Uma
conseqüência natural da primeira conclusão (quanto à natureza meramente
instrumental do leitor, ou melhor, da sua voz) é o papel submisso reservado ao leitor
na antiguidade. Ainda que o ato da leitura fosse já encarado como um processo
dinâmico, ele reservava na leitura oral, um papel de passividade que não condizia
com o ideal de cidadão construído pelo povo grego. Não é por outro motivo que
tanto os cidadãos de Esparta quanto os de Atenas eram desencorajados do
aprendizado e da prática da leitura a fim de manterem seu status de citadinos livres.
A leitura era, assim, comumente relegada a escravos.
Foram necessárias mudanças culturais significativas para que a leitura
sofresse, como gesto, as transformações que a fizeram parecer-se com a leitura
como é entendida atualmente. Foi uma dupla transformação: a necessidade de ler
quantidades cada vez maiores de texto (o historiador Heródoto é tido como um dos
primeiros a desenvolver a técnica da leitura silenciosa, provavelmente em função da
natureza de seu trabalho) e o conseqüente desenvolvimento (ainda que séculos
mais tarde) de uma divisão entre palavras que torna a leitura silenciosa mais fácil e
mais fluente. Svenbro argumenta ainda que apenas a crescente necessidade de
leituras extensivas não explica todo o processo pelo qual a leitura silenciosa torna-se
43
prática comum. Ele especula que além desses elementos, uma teatralização da
leitura teve papel fundamental nessa história (pag. 58).
Tome-se como ponto de partida desse raciocínio a etimologia da palavra
“teatro”. O verbo grego théâsthai queria dizer “contemplar”, referindo-se à impotência
do espectador da tragédia que não podia interferir no destino dos personagens a
caminho da destruição. Ao público cabe apenas olhar e escutar um texto que,
memorizado pelos atores, é re-apresentado no palco, mas não é visível no momento
em que é dito. Não se pode dizer que os atores estejam lendo, mas somente
produzindo uma cópia vocal do que já leram. Essa é uma relação com o escrito
diferente daquela em que o leitor, com o texto à sua frente, comporta-se como uma
extensão imediata do objeto ao qual empresta sua voz. Svenbro chama essa nova
forma de produção de um texto que foi memorizado de “escrita vocal”:
A separação entre o palco, onde essa escrita vocal acontece, e o
público, que a escuta, é provavelmente bastante clara para ter
podido sugerir aos gregos uma separação análoga entre o escrito e o
leitor. Ou melhor: ter-lhes aberto a possibilidade de uma nova atitude
em relação ao escrito. (Svenbro, 2002, pag.58)
Para que essa metáfora da teatralização da leitura fique mais clara, é preciso
recorrer a uma última imagem: a de uma estatueta do século VI onde se podia ler a
seguinte inscrição: “A todo homem que pergunta eu respondo identicamente que
Andron, filho de Antífanes, me dedicou como dízimo.” Ao antecipar a pergunta do
leitor, a voz metafórica da estatueta economiza a voz de quem lê, inaugurando uma
leitura silenciosa inédita. Um século depois, essa imagem do objeto que toma a
iniciativa da palavra, poupando seu interlocutor de abrir a boca, deixa de ser
raríssima a passa a tornar-se quase comum, graças à experiência do teatro. Em
outras palavras: o contato do leitor com a escrita vocal do teatro, em que o texto se
apresenta em si ao invés de ser distribuído oralmente como numa leitura comum, em
que um sujeito passivo empresta a voz e o corpo para que o processo de escritura
44
seja finalizado, muda a natureza mesma do texto. O que antes era uma trama
engendrada pelo escrito e pela voz, passa a ter vida própria. O ator, que repete o
que leu sem ler (a leitura como era entendida até então) prova para o sujeito que o
assiste que o texto pode existir fora da trama escritura-vocalização. A partir daí, o
ato de ler, ainda que fora do teatro e distante da experiência dramática imediata,
passa a ser uma encenação interiorizada pelo leitor que “assiste” ao texto-ator, da
mesma forma que, no teatro, assiste ao ator-texto.
“[...] o escrito e o ator são análogos, intercambiáveis. O ator substitui
o escrito no palco, o escrito substitui o ator na inscrição de Andron.
Produzindo aquilo que chamo de uma “escrita vocal”, o ator abre a
possibilidade de uma nova atitude em relação ao escrito, a
possibilidade de uma leitura silenciosa. De fato, a estatueta com a
inscrição dedicada por Andron, defini-se como “ator”, hupokrites, o
que pressupõe essa nova atitude. O espaço escrito é um “palco” que
toma emprestada sua lógica ao espetáculo teatral, atribuindo o papel
do espectador ao leitor. Ele interioriza o teatro.” (Svenbro, 2002, pag.
62)
Nenhuma imagem poderia ser mais adequada do que a encenação teatral
para ilustrar a premissa de que leitura é gesto. Vale ressaltar que o papel do leitor,
ainda que seja, por questões esquemáticas da metáfora, o de espectador, está
longe de ser passivo. O espaço escrito, ao qual Svenbro se refere como sendo o
palco, ao ser interiorizado pelo leitor ganha uma plasticidade que requer um grau de
complexidade sócio-cognitiva bastante trabalhosa.
Vinte séculos depois, Mikhail Bakhtin, ao falar de um suposto autor ideal que
pressupõe, ao escrever, um leitor igualmente ideal, sua imagem especular, seu
dublê perfeito, usa imagens que, em certa medida, vão ao encontro da metáfora da
teatralização da leitura:
“Entre o autor e tal ouvinte não pode haver nenhuma interação,
nenhuma relação dramática ativa, pois eles não são vozes, mas
conceitos abstratos iguais a si mesmos e entre si. Aí só são
possíveis abstrações tautológicas vazias, mecanicistas ou
matematizadas. Aí não há um grão de personificação.” (Bakhtin,
2002, pag. 405 – grifos meus)
45
Tanto os leitores, como o autor (e o texto) são entidades reais, complexas,
situadas sócio-historicamente. São seres marcados por profunda incompletude, mas
que se encontram em constante movimento de mudança, de renascimento, a partir
das múltiplas encenações das quais participam ativamente. Não só nos interessa o
gestual do leitor, que desempenhará diversos papéis na “montagem” da encenação-
leitura, mas o contexto sócio-histórico-político-econômico onde esse gestual é
gerado. Todas essas variáveis poderão ser levadas em consideração para uma
tentativa de compreensão do ato da leitura.
Na próxima seção, faço uma tentativa de apresentar um modelo de leitura que
se coadune com as idéias apresentadas até agora. Não gostaria que as reflexões
feitas a partir do mito de Medusa e Perseu fossem encaradas como uma definição
de leitura, mas como uma sugestão de encenação, onde Medusa, Perseu e Atena
são papéis possíveis. Talvez mais do que possíveis, pedagogicamente desejáveis,
porque estão alinhados com a crença de que através da leitura nos tornamos mais
poderosos, mais conscientes, mais sujeitos.
2.1.3 A metáfora como modelo
No caso específico do mito que norteia o presente trabalho, vejo Perseu como
um modelo de leitor que merece ser estudado, ao passo que a Medusa representa o
próprio texto vivo e monstruoso. Cohen (2000) desenvolve um conjunto de teses
sobre a natureza dos monstros que funcionam como ferramentas valiosas no
entendimento de fenômenos culturais. Como a leitura está entre tais fenômenos,
vejo a figura do monstro como fundamental para uma boa articulação das bases
sobre as quais o ato leitor acontece. Pretendo desenvolver essa questão de forma
detalhada mais adiante. Um de seus aspectos deve, porém, ser apresentado agora:
o monstro não é uniforme, mas sim, via de regra, um amálgama de corpos
costurados de forma irregular. A criação do dr. Frankenstein, por exemplo, é fruto de
46
suas peregrinações ao cemitério, nas quais coletava partes de diferentes corpos e
literalmente as costurava numa tentativa de recriar um homem. A quimera,
conhecida figura mitológica, como se não bastasse ter cabeça de leão, corpo de
cabra e cauda de serpente, ainda tinha o poder de lançar fogo pelas narinas como
se fosse um dragão. A lista de criaturas híbridas, múltiplos de combinações diversas,
é interminável. E a Medusa se insere nela, com seu corpo de mulher, escamas de
peixe e serpentes no lugar de cabelos. Vale notar ainda a etimologia da palavra
monstro: do latim monstrum, aquele que revela. A imagem da Medusa nos ajuda a
encarar o texto como esse conjunto de elementos heterogêneos “frouxamente
integrados” (ibid., pag. 26) através de cujas costuras é possível negociar sentidos.
A Medusa-texto é perigosa e promissora ao mesmo tempo. Perigosa porque
ameaça aquele que dela se aproxima com a morte paralisante da literalidade.
Promissora porque aquele que dela consegue se aproximar, transformando-a
(decapitando-a), transforma-se igualmente, obtendo poder. A encenação da leitura
na história de Perseu mostra que ler é esse gesto no qual leitor e texto passam por
um processo de renascimento. O Perseu-leitor foge do sentido literal, entende que
precisa olhar o monstro-texto através de seus reflexos no escudo a fim de cortar sua
cabeça, a fim de lê-lo. É importante, como veremos nas descrições de curadorias,
perceber a natureza especular da leitura. O leitor deveria ser capaz de posicionar
espelhos-escudos a fim de perceber o texto-monstro a partir de ângulos diversos,
fugindo da literalidade entendida como a existência de um sentido único e pré-
existente. O texto vai ser ao mesmo tempo anteparo e projetor dos reflexos de
outros textos. Cabe ao leitor fazer uso desses textos-escudos na criação de sentido,
na criação, de certa forma, do próprio texto, que passa a ser mais do que as
palavras impressas na página, mas toda a rede de reflexos que se cria a partir da
47
interação entre textos e leitores diversos. É papel do leitor dar luz ao texto, assim
como matá-lo. A morte do texto não seria a sua aniquilação, mas sua transformação.
Nesse processo, o leitor também sofre uma morte, uma transmutação. A Górgona,
ao ser morta, de certa forma continua viva, uma vez que seu membro decapitado
não perde suas temíveis propriedades e é usado como arma. A cabeça cortada do
monstro modifica Perseu, confere-lhe poder. Na representação de leitura que o mito
nos oferece, ler é, ao mesmo tempo, fazer e sofrer; transformar e ser transformado.
2.2 Letramento e interpretação: o escudo de Perseu como peça do jogo da
leitura
2.2.1 – Letramento e Leitura
Não é o conhecimento do vocabulário que melhora a compreensão,
mas uma outra ou outras variáveis associadas ao vocabulário.
Essas variáveis associadas podem ser, por exemplo, a capacidade
de identificar o contexto, acionar o conhecimento de mundo
relevante, estabelecer conexões com diferentes partes do texto.
(Leffa, 1999, p.23)
A citação de Leffa tem implicações que merecem ser consideradas. Voltando
ao mito da Medusa, vemos que Perseu-leitor não vai encarar o texto-Medusa de
mãos vazias. Leva consigo um instrumento, uma tecnologia. O gesto leitor de cuja
encenação participa não prescinde de um aparato específico e de um conhecimento
de seu modo de uso que vai além do óbvio. A princípio, um escudo serve como
carapaça, como uma segunda pele, um amortecedor de impactos mortais. O uso
que Perseu dá à sua ferramenta de bronze, porém, é, digamos, um uso
desnaturado, na medida em que emprega um escudo como espelho. Não bastaria
para o personagem mitológico ter aprendido como manejar um escudo. Foi-lhe
necessário um outro conhecimento, um domínio de um modo de uso mais
importante até do que a destreza que poderia ter tido na utilização do objeto como
48
anteparo de golpes. Essa imagem se aplica à leitura quando percebemos que o
leitor competente não é o sujeito alfabetizado apenas, o indivíduo que consegue
juntar letras e formar palavras.
Soares (1999), ao explicar as origens do termo letramento, fala de um
fenômeno que ilustra bem a situação de Perseu e seu escudo. Ela observa que
quando se diz que o indivíduo foi alfabetizado, esse termo não dá conta do impacto
social que a condição de saber ler e escrever tem sobre o sujeito. Até porque o fato
de saber o alfabeto e de saber juntar letras para formar palavras não
necessariamente levará uma pessoa a efetivamente ler, ou seja, a fazer uso de
diferentes textos de forma efetiva. Saber juntar letras – ser alfabetizado – não
implica necessariamente saber ler um mapa, um editorial, comparar textos, inferir
intenções, detectar ironia, entre outras formas de leitura que fazem parte de práticas
correntes entre pessoas que receberam letramento. Saber ler e escrever deve ser
considerado como algo que vai além de um saber isolado, é um estado, uma
condição. A autora diz que para conceitos novos é preciso que se busque termos
novos, daí letramento, que vem do inglês literacy. Literacy, por sua vez, vem do latim
littera (letra) – ao qual se adiciona o sufixo –cy – que denota qualidade, condição. É
particularmente interessante, sob o ponto de vista de quem tenta fazer a associação
entre o termo letramento e a história de Perseu, reparar no uso que Soares (1999,
pp. 17 e 18) faz da palavra “tecnologia” num dos momentos em que tenta definir
letramento:
Ou seja: literacy é o estado ou condição que assume aquele que
aprende a ler e escrever. Implícita nesse conceito está a idéia de que
a escrita traz conseqüências sociais, culturais, políticas, econômicas,
cognitivas, lingüísticas, quer para o grupo social em que seja
introduzida, quer para o indivíduo que aprenda a usá-la. Em outras
palavras, do ponto de vista individual, o aprender a ler e escrever –
alfabetizar-se, deixar de ser analfabeto, tornar-se alfabetizado,
adquirir a tecnologia do ler e escrever e envolver-se nas práticas
sociais de leitura e de escrita – tem conseqüências sobre o indivíduo,
49
e altera seu estado ou condição em aspectos sociais, psíquicos,
culturais, políticos, cognitivos, lingüísticos e até mesmo econômicos.
(...) Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou aprender
a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social
ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita.
O conceito de letramento dá melhor conta do tipo de leitura que se espera
que ocorra num evento de curadoria pedagógica do que o de alfabetização pura e
simples. Saber para que serve um escudo é tão insuficiente quanto saber juntar
letras. É preciso que se saiba como usar o escudo em contextos específicos. A
implicação disso é que não se pode verdadeiramente responder a pergunta “para
que serve um escudo?” simplesmente porque existe um número imprevisível de
contextos e situações em que um escudo pode ser usado.
O conceito de alfabetização parte do princípio segundo o qual se se sabe
juntar letras, conseguir-se-á entender as palavras em qualquer contexto. Isso, no
entanto, não é verdade. As palavras estão inseridas na vida e suas práticas.
Entendê-las, as palavras, requer um conhecimento dessas práticas e dos valores
que as sustentam. Isso fica bem claro quando se está aprendendo uma língua
estrangeira. Qualquer estudante em nível iniciante do idioma inglês, por exemplo,
saberia juntar as letras “g”, “o” e “d” e formar a palavra “god”, “deus”. Poucos, porém,
teriam, apenas na operação de tradução direta, noção do valor dessa palavra nas
culturas anglo-saxônicas, valor ainda de tabu entre gerações mais velhas, que não
veriam com bons olhos o uso dessa palavra em público. Para saber que “g” + “o” +
“d” = god = deus basta alfabetização. Para saber como, com quem e com que
intenção usar essa palavra, é necessário letramento. Voltando ao escudo de Perseu,
a depender apenas de sua “alfabetização” como guerreiro, ele teria visto o escudo
como um instrumento de defesa apenas. O contato com Atena é providencial para
que o herói se aproprie de um outro uso para escudo: espelho.
50
Esse processo de apropriação do uso do escudo é um exemplo de letramento
e ocorre independente da alfabetização. Mesmo que Perseu nunca tivesse visto um
escudo na vida (não tivesse sido “alfabetizado”), mas, ainda assim, conseguisse se
apropriar de um uso específico desse objeto (espelho, por exemplo) demonstraria ter
um letramento bem sucedido para essa situação, ao passo que não é inverossímil
que alguém que possua grande destreza no uso do escudo como arma de defesa
(uma pessoa “alfabetizada”) tivesse ficado totalmente indefeso diante da Medusa,
pelo simples fato de não lhe ocorrer que escudo pode ser espelho – teria lhe faltado
letramento. Um exemplo fora do mito é novamente dado por Soares (op.cit., p.24):
Uma inferência que se pode tirar do conceito de letramento é que um
indivíduo pode não saber ler e escrever, isto é, ser analfabeto, mas
ser, de certa forma, letrado (atribuindo a este adjetivo sentido
vinculado a letramento). Assim, um adulto pode ser analfabeto,
porque marginalizado social e economicamente, mas, se vive em um
meio em que a leitura e a escrita têm presença forte, se se interessa
em ouvir a leitura de jornais feita por um alfabetizado, se recebe
cartas que outros lêem para ele, se dita cartas para que um
alfabetizado as escreva (e é significativo que, em geral, dita usando
vocabulário e estruturas próprios da língua escrita), se pede a
alguém que lhe leia avisos ou indicações afixados em algum lugar,
esse analfabeto é, de certa forma, letrado, porque faz uso da escrita,
envolve-se em práticas sociais de leitura e de escrita.
O letramento não é, assim, simplesmente um conjunto de conhecimentos,
mas um modo sócio-historicamente situado de lidar com textos diversos. Primeiro
porque esses “modos de uso” são construídos através dos tempos. Segundo porque
tal construção é obra de uma dada comunidade. Barton e Hamiton (1998, p.3)
colocam que
Literacy is primarily something people do; it is an activity, located in
the space between thought and text. Literacy does not just reside on
paper, captured as texts to be analysed. Like all human activity,
literacy is essentially social, and it is located in the interaction
between people.
51
O historiador Carlo Ginsburg desenvolveu uma pesquisa que poderia muito
bem ser considerada um estudo de caso para o estudo dos fenômenos de
letramento. Os resultados dessa pesquisa estão no livro O queijo e os vermes
(Ginsburg, 1976/2005), o qual acredito ser de grande interesse para o
desenvolvimento do modelo de leitura proposto pela CPL.
Menocchio, o “personagem-biografado” da interessante pesquisa de Ginsburg
(1976/2005) ilustra bem o fato de que o letramento é algo que se faz, é uma
atividade situada num tempo, num lugar e numa comunidade. Ele atuava como
moleiro na região do Friul na Itália e foi julgado duas vezes pela inquisição (na
segunda foi, finalmente, condenado e morto) não exatamente pelos textos que lia,
muito menos pelo fato de saber ler, mas pela interpretação que fazia do que lia e,
acima de tudo, pela maneira como contribuía para o letramento de quem com ele
convivia, ao transformar as suas leituras em eventos de letramento em que
convidava seus interlocutores a rever suas visões de mundo. Menocchio não
reconhecia nenhuma autoridade religiosa e formulava sua própria cosmogonia,
citando sem receio os livros no quais dizia se basear (quando não falava que tirava
suas idéias de sua própria cabeça) desafiando os dogmas da igreja católica e
irritando sacerdotes ciosos da doutrina. Dizia, entre outras coisas, que Deus era
tudo, que o céu, a terra, o mar, o ar, o abismo e o inferno, tudo era Deus. Que não
acreditava em nenhum dos sacramentos, não acreditava no casamento, que a uma
mulher e a um homem bastaria a própria palavra para que houvesse entre ambos
um compromisso. Que havia um queijo primordial do qual nasciam vermes, que
eram anjos – daí o título do livro de Ginsburg, O queijo e os vermes.
O uso que Menocchio fazia dos textos, ou seja, a maneira como manejava o
escudo, fazia dele um leitor-ator, alguém que ao ler, fazia alguma coisa e interferia
52
concretamente na vida ao redor. E, como na citação de Barton e Hamilton acima, o
gesto de Menocchio estava localizado num tempo e num lugar específicos. Saber
disso é importante na descrição da leitura, uma vez que o manejo que o moleiro
fazia dos textos talvez não tivesse sido possível não fosse por ele estar vivendo sob
a influência de dois fatos históricos fundamentais: a invenção da prensa mecânica e
a reforma protestante. O objeto livro deixava de ser raro e exclusivo. É bem verdade
que Menocchio, efetivamente, só comprou um livro em toda a sua vida – Fioretto
della Bibbia (Ginsburg, 1976/2005, p. 76). No entanto, com a crescente banalização
do objeto livro, criara-se um tipo de letramento (entendido como uma atividade, um
modo de fazer) na localidade (Udine) onde Menocchio habitava, que permitiu que ele
tivesse acesso a bem mais do que uma única obra.
Uma larga rede de circulação que envolve não só padres (como seria
previsível) mas até mulheres. Sabe-se que em Udine, desde o início
do século XVI, havia sido aberta uma escola (...) “para ler e ensinar,
sem exceção, filhos de cidadãos, assim como de artesãos e
populares, grandes ou pequenos, sem nenhum tipo de pagamento.
Existiam, além dessas, escolas de nível elementar em centros não
muito distantes de Montereale, como Aviano e Pordenone.
Surpreendente, no entanto, que numa aldeia tão pequena de colina
se lesse tanto. (...) Fica claro (...) que para essas pessoas o livro
fazia parte da experiência comum: era um objeto de uso, tratado sem
muitos cuidados, exposto ao risco de se molhar e se desfazer. (Op.
Cit., p. 77).
É sabido, igualmente, que a população desse e de outros vilarejos era
herdeira de uma vasta e rica tradição oral que há muito vinha sendo reprimida pelas
narrativas católicas. Pode-se dizer que essa tradição oral era não só uma fonte de
inúmeras histórias (outros escudos) que davam conta da realidade do mundo, mas
também um lembrete sutil, mas de importância crucial, da própria possibilidade de
narrar o mundo, ao invés de esperar que se contem as histórias que explicam tudo,
como se elas tivessem sempre existido ou fossem as únicas possíveis. Com a
Reforma Protestante, esse substrato que muitos acreditavam estar enterrado e
53
esquecido, veio à tona, como um tesouro que brota à superfície depois de um
terremoto.
Falar de Menocchio como leitor é falar desse sujeito situado num contexto
muito específico, que, ao ler, articulava escudos diferentes: os livros que, depois da
invenção de Gutenberg, atingiam um inédito grau de acessibilidade, bem como uma
fonte riquíssima de narrativas e modos de organizar a realidade que herdava graças
ao momento histórico em que vivia. A igreja católica, preocupada com as mudanças
trazidas pela Reforma, principalmente o acesso aos textos agora traduzidos do latim
para o vernáculo, vigiava de perto a interpretação que se dava aos textos bíblicos,
impondo uma versão oficial e reprimindo violentamente qualquer variante. Ler,
dependendo do papel de leitor que se estivesse disposto a encenar, era um ato
político revolucionário, corajoso e arriscado. Ser Perseu nesse contexto (e
Menocchio parecia estar disposto a tal) era, como o foi para nosso personagem,
assinar a sentença que o levaria à morte.
Não tem como separar as leituras que Menocchio fazia dos livros que lhe
caíam nas mãos desse contexto sócio-histórico no qual estava inserido. Quando
Ginsburg compara as supostas “fontes” nas quais Menocchio aparentemente se
inspirava para expressar suas idéias sobre o mundo, com o que ele de fato falava,
dá-se conta de que entre o livro e a fala, a informação era filtrada, remodelada,
hibridizada com outros livros, com as histórias ancestrais que vinham passando
através das gerações, para formar um amálgama único.
Confrontando, uma por uma, as passagens dos textos por ele citados
com as conclusões às quais chegava (ou até mesmo com seu modo
de referi-las aos juízes), nos vemos às voltas, invariavelmente, com
lacunas e deformações, às vezes profundas. Qualquer tentativa de
considerar esses livros “fontes” no sentido mecânico do termo cai
ante a agressiva originalidade da leitura de Menocchio. Mais do que
o texto, portanto, parece-nos importante a chave de sua leitura, a
rede que Menocchio de maneira inconsciente interpunha entre ele e
a página impressa – um filtro que fazia enfatizar certas passagens
54
enquanto ocultava outras, que exagerava o significado de uma
palavra, isolando-a do contexto, que agia sobre a memória de
Menocchio deformando a sua leitura. Essa rede, essa chave de
leitura, remete continuamente a uma cultura diversa da registrada na
página impressa: uma cultura oral. (Op. Cit., p. 80)
O uso dessa “chave” à qual se refere Ginsburg (uma outra metáfora para o
que se tem chamado de “escudo” até agora) é um tipo de letramento, é um gesto, é
uma atividade que se aprende vivendo numa dada coletividade, num dado tempo.
Muitos autores (Bloome, 1983, 1992, 1993; Lemke, 1989; Maybin & Moss,
1993; Heath, 1994; Street, 1995; Moita Lopes, 1996; Green et alii, 1994; Barton &
Hamilton, 1998; Batista & Galvão, 2007; entre outros) vêm redefinindo letramento em
geral e leitura, em particular, indicando que ela faz parte de práticas sociais situadas
num tempo e num lugar específicos. Para Green et alii práticas de letramento vão
além de ler e escrever. Elas tem a ver com a vida cotidiana e com os Discursos com
“D” maiúscula aos quais Gee (2000) se refere, querendo falar de como as palavras
estão carregadas de ideologia que nem sempre vai ao encontro do sujeito, mas está
a serviço de uma ordem maior (o capitalismo das grandes empresas, por exemplo).
(...) literacy (...) is generally viewed as the study of reading and
writing processes that individuals use as they engaged in interpreting
or producing text. Recently, however, other views of literacy have
been proposed in which literacy is conceptualized as a social
accomplishment of a group. (…) Viewed in this way, literacy is a
socially constructed phenomenon that is situationally defined and
redefined within and across differing groups, including reading
groups, classrooms, schools, communities, and professional groups
(e.g., educators, lawyers, doctors, administrators, and plumbers).
What counts as literacy in any group is visible in the actions members
take, what they orient to, what they hold each other accountable for,
what they accept or reject as preferred responses of others, and how
they engage with text. (Green et alii, 1994: 124, 125)
Em outras palavras, para os autores, letramento tem a ver com os
conhecimentos que orientam a ação dos indivíduos em sociedade. Uma das
55
atividades de letramento possível é a leitura, a qual, sob essa perspectiva é vista
como um ato sócio-historicamente situado. Moita Lopes (1996) diz, por exemplo, que
A leitura pode ser também entendida como um modo de estar no
mundo social. (...) A leitura é um ato social, i.e., uma forma de agir
no mundo social através da linguagem. (grifos meus).
Ou seja, há uma mudança de foco no estudo da leitura: daquilo que ela é,
para aquilo que ela faz e que se pode fazer com ela.
A prática social que ler implica se deve ao fato de, na leitura de um texto,
expressarmos mais do que o conteúdo supostamente extraído das palavras ou
imagens que estamos lendo. Nossa leitura é fruto, em grande parte, da situação
social em que estamos inseridos.
No caso específico da leitura do texto literário, algumas questões importantes
se colocam nesse momento. Existiria um limite para o uso do escudo de Perseu?
Até onde o leitor pode ir? Até que ponto a “deformação” do texto feita por
Mennochio é possível ou desejável do ponto de vista da qualidade da leitura que se
faz? Qual, em outras palavras, o limite da interpretação? Ou ainda, voltando uma
questão cara à leitura: quais são os fatores que permitem a construção de sentidos?
A próxima seção do trabalho é uma tentativa de responder essas perguntas.
2.2.2 Os limites da interpretação e do texto “literário”
No livro Interpretação e Superinterpretação (1997) encontra-se um debate
muito interessante sobre questões relativas aos limites da interpretação. A obra é a
reunião de três conferências proferidas pelo romancista, medievalista e filósofo
Umberto Eco na universidade de Cambridge em 1990. Às conferências, seguem três
56
réplicas que dialogam com Eco e entre si e foram escritas por três intelectuais
dispostos a pôr em xeque a argumentação do romancista italiano.
Eco esquematiza o processo de leitura criando para isso categorias que
tentam organizar as três peças-chaves do jogo da leitura – autor, obra, leitor – em
dois momentos: primeiro fala do autor e do leitor dividindo ambos em duas
categorias: empírico e modelo. Depois fala sobre três intenções que podem ou não
coincidir: intentio auctoris (a intenção do autor), intentio operis (a intenção da obra) e
intentio lectoris (a intenção do leitor).
Tipos de autor e leitor
Autor-empírico Leitor-empírico
Autor-modelo Leitor-modelo
Intenções
Intentio auctoris – intenção do autor
Intentio operis – intenção da obra
Intentio lectoris – intenção do leitor
Para Eco, existe um autor empírico que é o sujeito que escreve a obra, mas
que, a partir do momento em que a libera para leitura, perde controle sobre ela e
sobre as interpretações que ela vai gerar. Esse autor empírico, todavia, procura
deixar em sua obra pistas que indicariam interpretações mais desejáveis porque
mais de acordo com uma suposta coerência interna. Esse conjunto de pistas pode
ser descrito como uma “estratégia textual” que Eco (1997, p.77) denomina “autor-
modelo”. De forma simétrica, existe um sujeito que lê o texto (leitor-empírico) que
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pode ou não vir a se transformar num leitor-modelo, ou seja, alguém que lê usando
as estratégias previstas pelo autor-modelo. Existiria assim uma constante
negociação de termos entre o autor-empírico e o leitor-empírico. Idealmente, para o
intelectual italiano, ambos chegariam a um consenso, que nada mais seria do que as
duas faces da mesma moeda: “o(s) sentido(s) verdadeiro(s) do texto”, situação em
que, para usar os termos do próprio teórico, o “autor-modelo” se encontra com o
“leitor-modelo”.
Com relação às intenções do autor e do leitor, segundo Eco não é difícil tentar
descobrir as intenções do leitor empírico ao ler um texto, ao passo que determinar a
intenção do autor-empírico ao escrevê-lo pode ser tarefa literalmente impossível.
Acontece que entre a intenção do autor-empírico e do leitor-empírico existe uma
terceira intenção, essa sim possível de ser determinada: a intenção da obra.
Bastaria, para provar uma conjetura sobre a intentio operis, checá-la com o texto
enquanto um todo coerente. Segundo Eco (1997, pp. 75, 76):
Assim, é possível falar da intenção do texto apenas em decorrência
de uma leitura por parte do leitor. A iniciativa do leitor consiste
basicamente em fazer uma conjetura sobre a intenção do texto.
Um texto é um dispositivo concebido para produzir seu leitor-modelo.
Repito que esse leitor não é o que faz a “única” conjetura “certa”. Um
texto pode prever um leitor-modelo com o direito de fazer infinitas
conjeturas. O leitor-empírico é apenas um agente que faz conjeturas
sobre o tipo de leitor-modelo postulado pelo texto. Como a intenção
do texto é basicamente a de produzir um leitor-modelo capaz de
fazer conjeturas sobre ele, a iniciativa do leitor modelo consiste em
imaginar uma autor-modelo que não é o empírico e que, no fim,
coincide com a intenção do texto. Desse modo, mais do que um
parâmetro a ser utilizado com a finalidade de validar a interpretação,
o texto é um objeto que a interpretação constrói no decorrer do
esforço circular de validar-se com base no que acaba sendo seu
resultado.
O romancista italiano reconhece que, nesse esquema, a figura do autor-
empírico perde muito da sua força, se não toda ela, tornando-se quase irrelevante. O
que, à luz da idéia de letramento como um processo sócio-historicamante situado,
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pode-se inferir (e que o autor não coloca), é que a figura do leitor empírico também
sai enfraquecida desse esquema. Ao construir um modelo de leitura que leva em
consideração a intenção da obra, Eco está, ao mesmo tempo, afirmando que existe
uma obra com um sentido que, em alguma medida, independe do leitor e do
contexto no qual é lida. Sob esse ponto de vista, ele está expressando uma idéia
essencialista, imanentista: existe um significado essencial, imanente, necessário e,
sob pena de não deixar de ser apenas um leitor-empírico, nunca atingindo o status
de leitor-modelo, seria bom que se lesse a obra buscando esse sentido essencial
que, se formos suficientemente perspicazes, seremos capazes de encontrar.
Eco não deixa, porém, de tentar redimir o autor-empírico, numa tentativa de
enumerar situações em que uma consulta à intentio auctoris poderia ser de grande
ajuda na tarefa de interpretar um texto. Para tanto, enumera uma série de situações
em que confronta leituras de seus próprios romances (O Nome da Rosa, 2006 e O
Pêndulo de Foucault, 1997b), concordando com algumas e tentando refutar outras.
O autor diz que muito embora não deseje se aventurar a dizer o que seria uma boa
interpretação, acha ser possível descrever uma interpretação ruim com base em
critério de “economia ou simplicidade” (Eco, 1997, pp. 61 e 84). Um outro critério que
fica implícito na exposição do autor é o da relevância, que se pode inferir das suas
palavras quando diz que (ibid, p. 74) “Uma analogia entre Aquiles e um relógio
baseada no fato de ambas serem objetos físicos não tem absolutamente nenhum
interesse.” Para um leitor que se baseasse na idéia wittgensteiniana de jogo de
linguagem (Wittgenstein, 1999) e na premissa de que o sentido é situacional, não-
imanente, construído no ato de se usar diferentes textos, o critério da relevância
perde a força pelo fato de não ser possível prever todos os possíveis contextos de
leitura de um dado texto. Da mesma forma, seria arriscado (e talvez ingênuo) supor
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que todos os possíveis contextos nos quais um texto pode ser lido não vai haver
nenhum no qual a comparação entre Aquiles e um relógio seja relevante.
A defesa que Eco faz do autor-empírico pode gerar uma discussão bastante
frutífera sobre a construção de sentido, ilustrando de forma brilhante seus conceitos
de leitor, autor e intenção. Interessante que a clareza mesma com que esses
conceitos são exemplificados torna possível uma refutação de suas premissas, como
pretendo detalhar mais adiante.
Eco conta (ibid, p. 96) como em seu livro O Pêndulo de Foucault ele chama o
personagem principal de Casaubon, inspirado em Isaac Casaubon, filólogo italiano
do século XVI cujas conclusões sobre hermenêutica informam as conclusões a que
Casaubon (personagem) chega no final do romance. Diz que sua expectativa era a
de que poucos leitores seriam capazes de fazer a ligação entre o Casaubon histórico
e o fictício, mas que, em termos de estratégia textual isso não se configuraria num
problema para o leitor – era mais uma questão de deixar pistas para “leitores
argutos” (p.97). O romancista diz ainda que se dá conta, por acaso, de que existe
um personagem chamado Casaubon em Middlemarch (1872/2000), romance de
George Eliot. Por causa disso, o escritor acrescenta um diálogo para não deixar
dúvidas em relação a que Casaubon estava se referindo. O personagem pergunta a
Casaubon como se chama e, ao ouvir a resposta, fica intrigado e pergunta:
“Casaubon. Não é um personagem de Middlemarch?” A que Casaubon responde:
“Não sei. Houve também um filólogo renascentista com este nome, mas não somos
parentes.” (Eco, 1992, p. 97). Para Umberto Eco, isso era uma pista bastante boa
não só para evitar referências ao romance de Eliot, como para chamar a atenção do
leitor atento para a ligação entre o personagem de O Pêndulo de Foucault e o
Casaubon histórico. Ou seja, o autor-empírico se esforça para atuar como autor-
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modelo e construir um texto cuja estratégia de leitura não tivesse “furos”. Mesmo
assim, um leitor notou que o Casaubon de Middlemarch estava escrevendo um livro
chamado Uma chave para todas as mitologias, o que torna quase inevitável a
ligação com o Casaubon de Eco, que se envolve com a interpretação de símbolos
de sociedades secretas. Eco, escritor-empírico, tem que concordar que,
diferentemente do que ele achava que o autor-modelo havia escrito, a interpretação
que liga Umberto Eco a George Eliot não só não pode ser desautorizada, como pode
ser considerada a leitura que um leitor-modelo faria.
Enquanto leitor-modelo, sinto-me obrigado a aceitar aquela
insinuação. O texto, somado ao conhecimento enciclopédico padrão,
autoriza qualquer leitor culto a fazer esta ligação. Ela faz sentido.
Péssimo para o autor empírico, que não foi tão hábil quanto seu
leitor. (ibid, p.97)
Eco admite não ter, nem como autor-empírico, nem como autor-modelo, todo
o controle sobre sua obra. Insiste, porém, em dizer que, apesar de reconhecer a
irrelevância do autor-empírico, não abre mão da crença de que o texto tem “direitos”
(ibid, p. 100), ou seja, o texto tem uma essência que deve ser respeitada e a
interpretação, ainda que fuja do controle do autor, tem limites. No entanto, se
nenhum dos autores do texto (modelo e empírico) foram capazes de prever uma
interpretação que depois recebe a aprovação dos autores e dos leitores, com que
base se pode afirmar que vai haver interpretações impossíveis? Eco poderia
argumentar que o fato de os autores não saberem o que estão escrevendo não
muda o fato de que estão escrevendo algo e que esse algo tem uma essência. Mas
essa afirmação também é problemática, pois os contextos nos quais esse algo pode
ser lido são tantos (talvez infinitos), e tornam essa essência tão aberta, tão
imprevisível, tão passível de ser relacionada com um número também infinito de
coisas, que nos obriga a especular sobre a natureza do texto num conjunto de
61
hipóteses que retomam as visões de texto da lingüística aplicada apresentadas no
começo do capítulo, radicalizando-as:
1. Esse algo (o texto, que deve ser diferente de nada) é o recipiente de um
universo de coisas infinitas e lê-lo é retirar dele uma ou mais dessas
coisas. A cada leitura, o(s) leitor(es) vão “enfiar a mão na cartola” do texto
e fazer mágicas de sentidos diferentes (Perspectiva ascendente de
leitura);
2. O texto é um vazio infinito no qual gerações de leitores poderão projetar
seus sonhos, suas angústias, suas experiências de vida. (Perspectiva
descendente da leitura);
3. O texto é uma casa não totalmente construída para cuja obra o leitor é
chamado a colaborar, acrescentando alguns tijolos, derrubando algumas
paredes, pintando outras. (Perspectiva conciliadora da leitura).
Ainda que as três descrições do algo feitas acima dêem margem a diferentes
estratégias de leitura, elas falam coisas parecidas a respeito da natureza do texto.
No primeiro e no segundo casos, não faz muita diferença prática dizer que o texto
contém tudo ou nada. Em ambas as situações, não se sabe nada sobre a essência
do algo, pelo simples fato de que, por um lado, o nada, por definição, não tem
essência e por outro, para se dizer que ali está algo, espera-se que se possa dizer o
que esse algo é. No entanto, se o algo é tudo (como na perspectiva ascendente) e
não se pode conhecer tudo, o tudo acaba não diferindo muito do nada no sentido de
que não se pode dizer o que ele é. Em outras palavras, dizer que a essência do
texto é variada, complexa, flexível e aberta a ponto de não se poder prever que
interpretações sairão dali é como dizer, para efeitos práticos, que esse texto não tem
essência ou ainda, que não tem uma essência. Por “efeitos práticos” entendo a
62
possibilidade de se predizer que leituras estarão de acordo ou contra a estratégia de
leitura prevista pelo autor/leitor modelo. Quanto ao terceiro caso, a incompletude do
algo gera o mesmo efeito das duas situações anteriores: o da imprevisibilidade e
abertura que impossibilitam antecipar ou prescrever estratégias de leitura melhores
ou piores.
A natureza de um texto é, assim, relacional. Um texto não existe em si, mas
no processo de o ler num lugar, num tempo, com determinadas pessoas (e suas
variáveis, tais como: sexo, idade, bagagem cultural, interesses, classe social,
etnia,etc.) com algum objetivo. Mais interessante do que tentar descrever uma
estratégia de leitura que dependa de se conhecer a essência do texto, seria tentar
entender o que acontece quando lemos como indivíduos situados em um
determinado contexto.
Em resposta ao postulado de Eco de que devem existir limites para a
interpretação, há três autores que têm muito a dizer sobre a leitura como fenômeno
sócio-historicamente situado, cuja interpretação depende mais do contexto em que é
produzida do que de um sentido intrínseco ao texto – o qual, quando não negam,
questionam. São eles Stanley Fish (1982), Ludwig Wittgenstein (1953/1999) e
Jonathan Culler (1997).
Stanley Fish, ao descrever o que entende por Comunidade Interpretativa, dá
um exemplo radical da idéia de que interpretação depende de contexto. Em seu livro
Is there a text in this class (1992) há duas histórias fascinantes sobre o ato
interpretativo e, por trás delas, uma única idéia central: os sentidos são construídos
socialmente. Fish nega tanto a idéia relativista segunda a qual vale tudo e toda
interpretação é possível, quanto o ponto de vista objetivista (do qual Eco partilha)
que diz que o sentido está contido no mesmo.
63
A primeira anedota que o autor norte-americano conta é sobre uma pergunta
feita por uma aluna numa aula de literatura na Universidade Estadual de Nova
Iorque. Logo na primeira aula do período letivo a aluna dirige-se ao professor (que
não é Fish) e pergunta: “Is there a text in this class?” (Há um texto nessa aula?). A
que o professor responde: “Sim, é a Norton Anthology de Literatura.” Acontece que a
aluna tinha outro sentido para o texto em mente e tenta esclarecer: “Não, não, quero
dizer se nessa aula nós acreditamos em poemas e as coisas ou se somos só nós.”
(Fish, 1980, p.305).
Só então o professor percebeu que a definição de “texto” da aluna e a sua
própria definição eram bem diferentes. Enquanto ele tinha entendido “livro texto”ela
tinha intencionado dizer “texto” como um objeto autônomo, que traz seu significado
nas palavras impressas em suas páginas. Ou seja, ela perguntava como devia
encarar o texto: sob uma perspectiva objetivista (o sentido está impresso nas
páginas) ou relativista (o sentido do texto está onde o leitor quiser que esteja).
Fish então, pergunta: qual interpretação de texto (a da aluna ou a do
professor) é a mais apropriada? (1982, p. 305). Fish tenta escapar da dicotomia
objetivismo-relativismo e afirma que ambas as interpretações eram literais e
inescapáveis. Ou seja, existem regras claras determinando tanto uma quanto outra
interpretação. No entanto, essas regras não são dadas pelo texto, mas pelas regras
sociais que governam a instituição que a interação em questão aconteceu.
Para alguém que não tivesse nunca visto uma escola, nem estudado em uma
ou pelo menos ouvido dizer como é a rotina lá, ambas as interpretações seriam
igualmente inacessíveis. O professor e a aluna foram capazes de conversar porque
ambos pertenciam a mesma instituição e, por isso, compartilhavam as mesmas
regras interpretativas. Fish conta que o professor, ao descrever como foi interpretar
64
a pergunta da aluna, sentiu-se andando para uma “armadilha” (ibid., p. 305). Para o
autor, essa imagem não poderia ser mais adequada: estamos todos, segundo ele,
constantemente emaranhados em redes de significado que por vezes são tão sutis
que nem chegamos a percebê-las. Assim é que ao interpretar, ainda que de formas
diversas, a palavras “texto”, tanto o professor quanto a aluna estavam apenas
seguindo os fios invisíveis de regras socialmente construídas antes mesmo que se
dessem ao trabalho de interpretar o que o outro estava dizendo.
Uma implicação importante dessa primeira idéia é a noção de sujeito.
Interessante que, na língua inglesa, “subject” pode querer dizer tanto “o autor da
ação” quanto “súdito” (ainda que não muito comum, a palavra “sujeito”, em língua
portuguesa, se presta à mesma ambigüidade). Assim, longe de ser sujeito (autor) da
interpretação, o indivíduo é, via de regra, súdito da Comunidade Interpretativa (CI) a
que pertence. A idéia de uma CI é usada por Fish para se defender das acusações
de ser radicalmente relativista. Seu ataque ao texto não corresponde a um
empowerment do leitor, nem dá margem a que se pense que qualquer interpretação
é viável.
“An infinite plurality of meanings would be a fear only if sentences
existed in a state in which they were not already embedded in (…)
But there is not such state; sentences emerge only in situations, and
within those situations, the normative meaning of an utterance will
always be obvious, or at least accessible (…)”(Fish, 1980, p.307)
O autor, no entanto, reconhece que “Há um texto nessa aula?”
1
(interpretação
do professor) é mais “norma” (para usar as palavras do próprio Fish) do que “Há um
texto nessa aula?”
2
(interpretação da aluna). Isso acontece porque a probabilidade
de alguém saber o que está implicado no contexto “primeiro dia de aula” é maior do
que a de estar familiarizado com as teorias literárias que põem em xeque a
existência autônoma do texto.
65
Poder-se-ia pensar, como na história em análise, que existe certa liberdade
de interpretação na medida em que o professor teve que negociar com a aluna o
sentido de texto. Fish, no entanto, diz que nós sempre construímos suposições
sobre os textos e tais suposições são dadas previamente pelo contexto em que
estamos inseridos. No caso em questão, o que estava inadequado não era a leitura
do professor, mas sua pré-leitura, ou as regras que a informaram:
He [the teacher] has not misread the text (his is not an error in
calculation) but mispreread the text, and if he is to correct himself, he
must make another pre-determination of the structure of interests
from which her question issues. (Fish, 1980:311)
Ao explicar como ocorre tal pré-determinação, diz que, em primeiro lugar, o
professor reviu sua pré-leitura da palavra “texto”por um motivo muito simples: “ele
podia fazê-lo”(ibid., p. 313). Caso o professor não estivesse familiarizado com o
sentido dado por sua aluna à palavra “texto”, ele teria que expandir o que o autor
chama de “repertório” (ibid., p. 313). De um ponto de vista pedagógico, pode-se sim
perceber a questão do repertório como uma instância na qual é possível ter alguma
liberdade interpretativa.
Em outro texto do mesmo livro, “How to recognise a poem when you see one”
(Fish, 1982) o autor conta outra história extraordinária. Nessa época, ele ministrava
dois cursos na Universidade Estadual de Nova Iorque, um às 09h30min e outro às
11:00h, no mesmo dia e na mesma sala. Ao final da primeira aula para uma turma
de estilística, Fish passa uma tarefa no quadro escrevendo o sobrenome dos autores
cujos textos espera que os alunos leiam até o próximo encontro.
Jacobs-Rosenbaum
Levin
Thorne
66
Hayes
Ohman (?)
A turma seguinte fazia um curso sobre poesia religiosa inglesa do século XVII,
assunto no qual Fish é especialista. Treinavam o reconhecimento de símbolos
cristãos e de uma suposta intenção poética por trás deles. Fish deixara a lista de
nomes no quadro e, sem maiores explicações, disse para seus alunos que se tratava
de um poema religioso e que gostaria que eles o interpretassem. O que se seguiu foi
uma sucessão de atos interpretativos aparentemente brilhantes. A começar pela
forma dos versos no quadro, que por acaso estavam dispostos em T, que tanto
poderia ser, segundo os alunos, uma cruz como uma árvore, ambas as imagens
servindo para confirmar a natureza religiosa do poema. A seguir, buscaram na
etimologia dos nomes significados que ora eram relacionados com a forma do
poema, ora com um sentido religioso. Por fim, um dos alunos chegou ao extremo de
contar as letras mais freqüentes e concluir que essas eram S, O e N, que formam a
palavra “filho”, em inglês, numa clara referência a Jesus Cristo. Para Fish, porém, os
sentidos construídos pelos alunos eram, no mínimo, previsíveis. Não porque
estivessem no texto para serem inequivocamente extraídos. Afinal, se os alunos não
estivessem habituados a lidar com simbologia religiosa, talvez não tivessem sido
capazes de ver tanto. Por outro lado, também não se pode dizer que o sentido
estivesse nos alunos, sujeitos livres a autônomos. O contexto em que os alunos
estavam inseridos, um curso de poesia religiosa, num momento em que a autoridade
máxima – o professor – aponta para um texto e diz: “eis um poema, vamos
interpretá-lo” – tornava os sentidos por eles construídos virtualmente inescapáveis.
O sentido havia sido ditado pela comunidade interpretativa da qual faziam parte.
67
O “experimento” de Fish parece colocar em questão a própria definição de
literatura, e perguntar se existe alguma característica intrínseca ao texto literário, em
oposição a que se poderia chamar texto não-literário. De acordo com o autor, a
única característica relevante não estava no texto, mas no contexto, na CI:
In other words, acts of recognition, rather than being triggered by
formal characteristics, are their source. It is not that the presence of
poetic qualities compels a certain kind of attention but that the paying
of a certain kind of attention results in the emergence of poetic
qualities. As soon as my students were aware that it was poetry they
were seeing, they began to look with poetry-seeing eyes, that is, with
eyes that saw everything in relation to the properties they poems
possess. (Fish, 1982, p.326)
Em outras palavras, o ato de reconhecer um texto como literário não é uma
reação a uma especificidade do que está impresso na obra, mas um gesto fundador
da suposta literariedade da mesma. O leitor, ou melhor, a CI a qual pertence, funda
o caráter literário de um poema.
Essa visão parece estar de acordo com algumas idéias do filósofo e crítico
literário inglês Terry Eagleton (1985/2001). Numa busca pela definição de literatura,
Eagleton descarta algumas possibilidades. Existe um número de coisas, diz ele, que
a literatura não poderia ser:
1. Ficção: textos factuais, como os dos folhetins ingleses do século XIX não
eram e nem almejavam ser representações da verdade, a notícia tinha
elementos inventados pelo repórter, que não escondia e não se importava
com esse fato, que também não era uma preocupação dos leitores.
Também não são ficcionais os sermões de Padre Vieira, ou as cartas de
Clarice Lispector para Fernando Sabino, e nem por isso esses textos
deixam de ter um caráter “literário”.
2. Violência organizada contra a fala comum: está na dependência de um
consenso sobre o que seja “fala comum”.. Além disso, não é raro que
68
falantes individuais produzam frases que a princípio iriam de encontro ao
que se poderia convencionar chamar de “fala comum” e, nem por isso, as
pessoas estão dispostas a chamar essas frases desobedientes de
literatura. O autor dá o exemplo de uma frase que viu numa estação de
metrô que lhe causou estranheza: “cachorros devem ser carregados na
escada rolante” (Eagleton, 1985/2001, p.9)
3. Linguagem auto-referente, que não tem a utilidade de, por exemplo, um
bilhete ou um artigo científico: quanto a isso, Eagleton diz que “Em grande
parte daquilo que é classificado como literatura, o valor verídico e a
relevância prática do que é dito é considerado importante para o efeito
geral.”(ibid, p. 11)
Em suma, Egleton parece concluir, como Fish, que não existe valor intrínseco
ao texto que o permita ser classificado como literatura. A qualidade “literária”de uma
obra é dada de forma relacional:
Nesse sentido, podemos pensar na literatura menos como uma
qualidade inerente, ou como um conjunto de qualidades
evidenciadas por certos tipos de escritos que vão desde Beowulf até
Virginia Woolf, do que como as várias maneiras pelas quais as
pessoas se relacionam com a escrita. (...) Não existe uma essência
da literatura. ‘Literatura’ é, nesse sentido, uma definição puramente
formal, vazia. (ibid, p. 12)
Fish iria mais longe e diria que não só não existe uma essência da literatura,
como em nenhuma das categorias textuais que se convencionou chamar de gênero.
Em resposta a alguns críticos que argumentaram que o efeito “poético” da leitura dos
alunos (tarefa = poema) não teria existido se o professor não tivesse manipulado o
grupo de leitores de sua classe no sentido de ver um poema numa simples tarefa
para casa, Fish diz que o poder da CI de informar seus leitores é maior ainda do que
esses críticos parecem estar dispostos a admitir: para ele, não é apenas o poema
que carece da nossa interpretação fundadora, mas também o texto o qual
69
poderíamos chamar de “tarefa”. A diferença entre poema e tarefa não se dá nesses
textos, não está numa suposta essência que ambos carregariam. A tarefa, tanto
quanto o poema, é construída pelos leitores. No caso da tarefa, porém, não mais se
vê o trabalho interpretativo em ação. Mas não se pode negar que, para que alguém
entenda o que é uma tarefa como aquela (uma lista de sobrenomes que remetia aos
autores dos textos a serem lidos pelos alunos para a próxima aula), essa pessoa
precisa estar familiarizada com o que é uma escola e suas regras, papéis e
contextos. As pessoas se familiarizaram com a vida acadêmica de forma tão gradual
e ao longo de tanto tempo que uma “tarefa”, aos seus olhos, é um dado do mundo,
um fato natural incontestável, sólido, estável.
(…) poems and assignments are different, but my point is that the
differences are a result of the different interpretive operations we
perform and not of something inherent in one or the other. (…) The
ability to see, and therefore to make, an assignement is no less a
learned ability than the ability to and see, and therefore to make, a
poem. Both are constructed artefacts, the products and not the
producers of interpretation, an while the differences between them
are real, they are interpretive and do not have their source in some
bedrock level of objectivity. (Fish, 1982, pp.330, 331)
O autor termina dizendo que ainda que o quadro estivesse vazio os alunos
seriam capazes de, naquele contexto, naquela situação social específica, interpretar
o vazio como uma poema – o nada do qual Deus cria os seres ou o abismo para o
qual se dirigem aqueles que não crêem, ou ambos. Argumenta que a dualidade
objetivismo-relativismo é enganosa porque lida com a possibilidade de autonomia
tanto do texto quanto do leitor, o que não corresponderia ao processo de construção
que faz com que uma tarefa seja lida como poema por leitores que, por sua vez, não
estavam propriamente escolhendo ver a tarefa como poema, mas seguindo as
orientações da CI a que pertencem. Assim, se por um lado os leitores constroem
sentido (por pertencerem a uma dada CI e contribuírem para ela), eles são também,
70
por sua vez, construídos por sentidos (influências da CI a que pertencem) (Fish,
1982, p. 336).
Uma segunda resposta que se poderia dar para a afirmação de Umberto Eco
sobre a existência de limites para a interpretação poderia ser dada pelo filósofo da
linguagem austríaco Ludwig Wittgenstein (1953/1999). Ele diria que não existe uma
leitura, mas leituras e que cada uma delas será sempre única, porque mesmo que se
leia o mesmo texto, no mesmo lugar, com as mesmas pessoas, dizer que os
elementos citados são os mesmos é incorrer numa ilusão: o tempo terá passado,
mesmo que alguns minutos, e tudo será já diferente. Para Wittgenstein, conhecer
algo não é saber se esse algo é falso ou verdadeiro; conhecer algo é fazer algo. Isso
porque para ele o ato de conhecer qualquer coisa implica dizer que essa coisa tem
uma natureza intrínseca, o que ele nega. Isso é particularmente relevante quando se
fala de interpretação. Enquanto para um essencialista interpretar vai ter a ver com
prospectar os sentidos ocultos do texto, retirar camadas e avançar para dentro
descobrindo mensagens cada vez mais profundas, para o filósofo alemão interpretar
é olhar para a superfície. “Não pense, mas veja!” (Wittgenstein, 1999, p. 52). O
Wittgenstein das Investigações Filosóficas (1953/1999) é avesso a definições e
conceituações, justamente porque acredita que os conceitos só são válidos num
determinado contexto, e contextos são efêmeros. Para escapar do paradoxo de ter
que conceituar a impossibilidade de conceituar, usa uma linguagem que se aproxima
muitas vezes da poesia:
18. (...) pergunte-se se nossa linguagem é completa; - se o foi antes
que lhe fossem incorporados o simbolismo crítico e a notação
infinitesimal, pois estes são, por assim dizer, os subúrbios de nossa
linguagem. (E com quantas casas ou ruas uma cidade começa a ser
cidade?). Nossa linguagem pode ser considerada como uma velha
cidade: uma rede de ruelas e praças, casas novas e velhas, e casas
construídas em diferentes épocas; e isso tudo cercado por uma
quantidade de novos subúrbios com ruas retas e regulares e com
casas uniformes
71
19. (...) representar uma linguagem significa representar uma forma
de vida. (ibid, p.32)
Assim, com a linguagem – uma forma de vida – fazemos coisas. Se
começarmos a pensar e não olhar e não participar do que Wittgenstein chama de
“jogos de linguagem”, a linguagem entra em ponto morto. Agimos no mundo através
desses jogos de linguagem: “o conjunto da linguagem e das atividades com as
quais está interligada. (idid, p. 30. Grifo meu). É impossível não traçar um paralelo
entre o filósofo e Alberto Caeiro (1998):
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol,
E a pensar em muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais do que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa. (Caeiro, 1998)
Também é possível estabelecer uma conexão com uma assertiva de Wilde
(1994): “Apenas pessoas superficiais não julgam pelas aparências. O verdadeiro
mistério do mundo é o visível, não o invisível.” (op.cit., p.31). Para o filósofo
austríaco, não faz sentido especular sobre sentido das palavras fora dos jogos de
linguagem. “O que designam, pois, as palavras dessa linguagem? – O que elas
designam, como posso mostrar isso a não ser na maneira do seu uso?” (ibid, p.30).
Segundo Moreno (2000, p. 55) a pergunta: “o que significa uma palavra” está, para
Wittgenstein, mal formulada. É preciso perguntar: como esta palavra esta sendo
usada nesse contexto, ou melhor, nesse jogo?”. É uma visão pragmática da
linguagem, contexto-dependente, que se coaduna com a definição de letramento
apresentada anteriormente: não basta saber o alfabeto e a maneira como a
72
combinação de diferentes letras gera palavras. É preciso estar a par das regras dos
jogos de linguagem que a comunidade da qual se faz parte joga. É preciso se
apropriar mais do que de uma coleção de rótulos, mas de uma forma de vida, de
uma maneira de estar no mundo e de enxergá-lo que vai muito além da mera
capacidade cognitiva de reconhecer termos. É preciso saber abarcar o conjunto de
valores e posturas que regem o peso das palavras e seu uso. Palavras, assim, não
obedeceriam ao princípio platônico segundo o qual seriam variações imperfeitas de
conceitos perfeitos. Não há razão para buscar no âmago de cada palavra o conceito
primeiro, original, definitivo. Para Wittgenstein a arqueologia do sentido essencial de
cada palavra seria só mais um jogo de linguagem, e não a única maneira de se
conhecer o sentido das coisas. Ao invés de definir jogos de linguagem, ilustra o
termo com alguns exemplos:
O termo “jogo de linguagem” deve aqui salientar que o falar da
linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida.
Imagine a multiplicidade dos jogos de linguagem por meio destes
exemplos e outros:
Comandar, e agir segundo comandos –
Descrever um objeto conforme a aparência ou conforme medidas –
Produzir um objeto segundo uma descrição (desenho) –
Relatar um acontecimento –
Conjeturar sobre o acontecimento –
Expor uma hipótese e prová-la –
Apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e
diagramas –
Inventar uma história; ler –
Representar teatro – (ibid, p.35. Grifos meus)
Palavras são ferramentas e, assim como, por exemplo, uma chave de fenda
tem diversos usos – aparafusar e desparafusar, testar corrente elétrica, abrir latas de
tinta, para citar apenas alguns dos empregos mais comuns – as palavras serão
invocadas pelos usuários-jogadores para desempenhar diferentes e imprevisíveis
papéis. Sentido é uso e será definido no ato de jogar os jogos de linguagem.
73
Nos jogos de linguagem wittgensteinianos não existe âncora para estabilizar o
barco das significações: os sentidos estão à deriva no oceano dos jogos de
linguagem, cujo horizonte se afasta à medida que dele se tenta aproximar.
Diferentemente do navegador, no entanto, não importa o quanto o usuário da
linguagem tente achar um continente e desembarcar – tudo o que ele vai achar
serão ilhas de sentido sujeitas a serem rapidamente submergidas pelas ondas
provocadas por outros navegadores-jogadores e seus jogos. Um pouco como Sísifo
e sua sina de empurrar uma pedra montanha acima só para vê-la rolar de volta à
base, o usuário da língua estaria condenado a jogar jogos de linguagem
indefinidamente, tentando encapsular sentidos que vão sempre escapar no final.
Moreno (2000, p. 60) diz que Wittgenstein substitui a estabilidade pela noção de
semelhanças de família, um outro conceito central na teoria dos jogos de linguagem:
Considere, por exemplo, os processos que chamamos de “jogos”.
Refiro-me a jogos de tabuleiro, de cartas, de bola, torneios
esportivos, etc. O que é comum a todos eles?(...) se você os
contempla, não verá na verdade algo que fosse comum a todos, mas
verá semelhanças, parentescos, e até toda uma série deles. (...) São
todos recreativos? (…) Ou há em todos um ganhar e um perder, ou
uma concorrência entre os jogadores? (…) Veja que papéis
desempenham a habilidade e a sorte.(...)
E tal é o resultado desta consideração: vemos uma rede complicada
de semelhanças, que se envolvem e se cruzam mutuamente.
Semelhanças de conjunto e de pormenor.
Não posso caracterizar melhor essas semelhanças do que com a
expressão semelhanças de família; pois assim se envolvem e se
cruzam as diferentes semelhanças que existem entre os membros de
uma família: estatura, traços fisionômicos, cor dos olhos, o andar, o
temperamento etc., etc. – E digo: os jogos formam uma família
(Wittgenstein, 1999, p. 52).
Consciente da impossibilidade de sistematização de definição, o filósofo
recorre a metáforas e analogias para expressar algumas características dos jogos de
linguagem. É importante ressaltar que o uso de metáforas não implica o uso de
ferramentas imprecisas para lidar com objetos imprecisos. Ao contrário, espera-se
que a imagem evocada funcione como uma ferramenta precisa para manipular
74
objetos imprecisos. A imagem de um jogo é, de certa forma, bastante vaga e, por
isso mesmo, apropriada para lidar com as incertezas e flexibilidade da linguagem.
Se Wittgenstein não tivesse aposto o termo “jogo” à linguagem, teria arriscado
produzir uma imagem por demais estática de algo que está em constante
movimento. Uma foto, nesse caso, teria melhor utilidade se estivesse fora de foco. O
fato de a imagem estar borrada não seria um problema. Ao contrário, fotos
desfocadas pode bem ser o de que se precisa para descrever um jogo de
linguagem:
Pode-se dizer que o conceito de jogo é um conceito com contornos
imprecisos. – “Mas, um conceito impreciso é realmente um
conceito?” – Uma fotografia pouco nítida é realmente a imagem de
uma pessoa? Sim, pode-se substituir com vantagem uma imagem
pouco nítida por uma nítida? Não é a imagem pouco nítida
justamente aquela de que, com freqüência, precisamos?
(Wittgenstein, 1999, p.54)
A imagem pouco nítida talvez fosse um problema se quiséssemos que ela
fosse definitiva. Vale a pena chamar atenção para o fato de que apesar de o filósofo
vienense postular a falta de essência, de um sentido íntimo, intrínseco, isso não quer
dizer que esteja defendendo a confusão. Uma descrição da linguagem que pretenda
ser exata, precisa, definitiva muito provavelmente acabará colocando imagens
defeituosas no altar da verdade. Já um conjunto aberto e mutante de ferramentas,
mesmo que não capte a essência do fenômeno (não existe o fim da linha da jornada
hermenêutica que nos permita afirmar tal coisa: essência) será capaz de produzir
uma série de imagens borradas e temporárias de um determinado fenômeno. A
articulação de imagens precárias, borradas, que começam a desbotar poucos
momentos após terem sido reveladas podem gerar a projeção de uma seqüência
bastante iluminadora, ainda que fora de foco, não numa tela estática, mas numa tela
em movimento, ela mesma precária e mutante, como uma nuvem. De muitas
75
maneiras, seguindo a escolha wittgensteiniana por metáforas e analogias, a
linguagem está mais para uma pintura impressionista do que para uma fotografia.
Mas se o conceito de ‘jogo’ é deste modo não delimitado, então você
não sabe propriamente o que você quer dizer com ‘jogo’.” – Se eu
der a descrição: “O solo estava inteiramente coberto de plantas”, -
você dirá que eu não sei do que falo enquanto eu não puder dar uma
definição de planta?
Uma explicação daquilo que eu quero dizer seria talvez um desenho
e as palavras “O solo tinha mais ou menos essa aparência”. – Pois
bem, estavam lá exatamente esta grama e estas folhas, nesta
posição? Não, não é assim. E neste sentido eu não identificaria
nenhuma imagem como sendo exata. (Wittgenstein, 1999, p.53)
A imprecisão faz parte do jogo.
Ora, inexato não significa ‘inútil’ (...) ‘Inexato é propriamente uma
repreensão e ‘exato’, um elogio. E isto significa: o inexato não
alcança seu objetivo tão perfeitamente como o mais exato. Isto
depende daquilo que chamamos ‘objetivo’. É inexato se eu não
indicar a distância que nos separa do sol até, exatamente, 1 m? E se
eu não indicar ao marceneiro a largura da mesa até 0,001mm? (ibid,
p. 60)
Wittgenstein não postulou um sistema, mas uma metodologia do impreciso.
Segundo Oliveira (2001, p.135) essa imprecisão implica uma dependência do
contexto que vai além do elemento lingüístico e que torna necessária a inclusão dos
elementos sociais, históricos, culturais, desautorizando, desta forma, qualquer
pretensão objetivista, imanentista, essencialista na descrição da linguagem e seu
uso. O filósofo austríaco chega a dizer que não se deve tentar “curar” a ambigüidade
da linguagem, como se essa imprecisão dos sentidos fosse um problema. Uma
característica importante dos jogos de linguagem e sua flexibilidade seria a de,
aceitando a ambigüidade da linguagem, colocá-la para trabalhar
Isto está ligado à concepção do demonstrar como, por assim dizer,
um processo oculto. O denominar aparece como uma ligação
estranha de uma palavra com um objeto. E assim, uma ligação
estranha ocorre quando o filósofo, a fim de ressaltar o que é a
relação entre nome e denominado, fixa-se num objeto diante de si e
repete então inúmeras vezes um nome, ou também a palavra “este”.
Pois os problemas filosóficos nascem quando a linguagem entra em
76
férias. E então podemos, com efeito, imaginar que o denominar é um
notável ato anímico, quase um batismo do objeto. E assim podemos
dizer também a palavra “este” como que para o objeto, dirigir-se a ele
por meio dela – um ato singular desse palavra que certamente
acontece somente ao filosofar. (Wittgenstein, 1999, p.42)
Impossível não citar Iser (2002) em seu artigo “O Jogo do Texto”, onde ele
desenvolve o conceito de espaço vazio que parece confirmar as analogias texto-
Medusa e leitor-Perseu e traz à tona algumas características importantes dos jogos
em geral que podem ser usadas para entender o processo de leitura.
Não é difícil tampouco estabelecer um paralelo entre as idéias de Iser e a
natureza gestual da leitura proposta por Svenbro (1997/2002). O autor alemão inicia
seu ensaio opondo duas perspectivas as partir das quais o texto pode ser
concebido. A primeira liga o texto ao leitor e ao autor e defende que entre esses três
elementos existe uma relação processual, produtora de “algo que antes inexistia”
(2002, p. 105) – algo que se aproximaria do jogo de linguagem wittgensteiniano na
medida em que dá conta da imprevisibilidade da leitura como evento, já que o
sentido estará sempre em função das interações entre os elementos (autor, texto,
leitor) e não em nenhum deles exclusivamente. A segunda se filia à visão tradicional
de arte como imitação, referindo-se a uma realidade que já existia e que passa a ser
representada agora pelo texto. A primeira perspectiva, que o autor acredita ser a
mais adequada, vê o texto como performance, a segunda, como representação.
Desde o modernismo, a primeira perspectiva tem prevalecido sobre a
segunda, o que se pode explicar a partir de razões históricas, da mudança de foco
na percepção do mundo. Vive-se não mais num mundo cósmico (cosmos=beleza,
harmonia), um sistema fechado onde o sentido está pré-dado, mas num mundo
caótico, um sistema aberto onde o sentido pode e deve ser construído. O texto é
encarado como uma forma de evento, cujo desenrolar não pode ser previamente
definido e, portanto, não cabe numa representação.
77
O conceito de jogo é apresentado como sendo capaz de dar conta da
natureza performativa do texto e duas vantagens heurísticas são citadas: 1. “o jogo
não se ocupa com o que poderia significar” e 2. “o jogo não tem de retratar nada fora
de si mesmo” (Iser, 2002, p.107). Pode-se dizer que o autor e o leitor jogam no texto,
sendo esse último a arena onde o sentido é construído, um mundo por ser
identificado, imaginado e interpretado.
O fato de, no jogo, o texto estar sujeito à imaginação e à interpretação implica
que as imagens por ele sugeridas, ainda que originárias de um mundo real, formarão
um mundo novo, que muito dificilmente será uma cópia de um mundo pré-existente.
Em outras palavras, o mundo referencial é sempre transgredido. Esse processo de
quebra de referência é, de acordo com Iser, cláusula conhecida do contrato
estabelecido entre autor e leitor no que se convencionou chamar de ficção. Ou
ainda, uma regra do jogo segundo a qual o texto não pretende denotar o “mundo
real”, mas se comportar como se o fosse, e às vezes de forma totalmente diferente.
O texto é diferente do mundo extra-textual porque “nenhuma descrição pode
ser aquilo que descreve” (ibid, p.107). A partir dessa diferença fundamental, o autor
passa a enumerar níveis de diferença que ocorrem no texto 1. extratextualmente
(autor x mundo / texto x mundo / texto x outros textos); 2. intratextualmente (entre
constelações semânticas contidas no próprio texto) e 3. (uma focalização na primeira
diferença, já que se pode dizer que o leitor faz parte do mundo) entre texto e leitor
(atitudes naturais do leitor x atitudes que deve tomar / denotação x transgressão).
Os três níveis de diferença apresentados constituem o que Iser vem a chamar
de “espaço vazio do texto” (ibid., p. 110. Grifo meu), onde segmentos de sentido
podem ser articulados pelos leitores, pondo o texto em movimento. Em outras
palavras, a existência mesma de pares que se diferenciam entre si, ora se opondo,
78
ora se complementando, cria um espaço que é preenchido apenas pela tensão entre
esses elementos, um ambiente muito propício à negociação. Entre o que traz o leitor
e o que o texto supostamente “oferece” (Wittgenstein talvez preferisse dizer “o uso
que o leitor dá para o texto”) existe uma arena de luta onde as contribuições de um e
de outro sofrerão um embate. Ambos o leitor e o texto sairão do combate diferentes
de quando entraram, criando uma realidade nova e única. Abre-se, assim, para a
leitura-combate, pelo menos duas possibilidades de atuação: 1. A tentativa de
reduzir ou até mesmo eliminar a tensão, criando um sentido supostamente final e
assim finalizando o jogo ou 2. manter a diferença na medida em que diferentes
leitores (chame-os de jogadores, lutadores ou perseus) estabelecerão movimentos
diferentes que, ao contrário de produzir um suplemento (“o” sentido do texto)
produzirão vários, deixando o texto aberto e o jogo, livre. Nos dois casos constata-se
um fato que parece corroborar as idéias de Wittgenstein: o sentido não existe antes
do jogo, mas é construído ao longo deste. Vale a pena notar que a situação de
suposta finalização da primeira atuação é ilusória, uma vez que o jogo pode sempre
recomeçar, ainda que se pensasse que um sentido final tivesse sido atingido.
O texto como espaço entre autor e leitor pode ser descrito em três níveis:
estrutural (mapeia o espaço), funcional (explica a meta do texto) e interpretativo
(pergunta por que jogamos e por que precisamos jogar). Qualquer tentativa de
definição a priori e definitiva de qualquer um dos três níveis, diria Wittgenstein,
estaria fadada ao fracasso, uma vez que dado o caráter relacional desses elementos
(e não essencial ou imanente) tais níveis só podem surgir ao longo do ato de jogar.
Mas Iser, ao falar da “dimensão estrutural do texto”, fala dos espaços do
mesmo e acaba tocando num ponto que parece estar de acordo com as idéias de
Wittgenstein. Um primeiro espaço seria o que surge com o que Iser chama de
79
“significante fraturado” (p.110), que seria o fato de um significante denotar algo que,
por ser tratar de ficção, pretende ser não a imitação do real, mas um elemento
figurativo, que se comporta como se fosse, mas que se sabe não ser o real. O real,
no entanto, não é totalmente abandonado, permanecendo como um ruído de fundo.
Abre-se a possibilidade para duplos sentidos de todo tipo.
Um outro espaço dentro da dimensão estrutural é o “esquema”, com base em
Piaget (Piaget apud Iser, 1999), segundo o qual um esquema “é o produto de nosso
constante empenho em nos adaptarmos ao mundo em que estamos” (p.111). Os
esquemas também possibilitam que os objetos sejam assimilados de diferentes
modos, de acordo com nossa inclinação. Quando isso acontece, abre-se o que Iser
chama de “espaço do jogo” (p.111). Existem, assim, dois tipos distintos de esquema:
esquema de acomodação e esquema de assimilação. Enquanto o primeiro faz com
que nos acomodemos ao mundo, o segundo modela o mundo de acordo com as
necessidades do leitor. O uso simultâneo desses dois esquemas é responsável por
criar movimento no texto. O leitor passa a utilizar um esquema de assimilação sem
nunca deixar totalmente de lado o esquema de acomodação, criando uma dinâmica
de ida e vinda entre acomodação e assimilação parecido com o movimento de ida e
vinda entre denotação e figuração criado pelo significante fraturado. Esses
movimentos de ida e vinda, ou oscilações, são fundamentais para o jogo do texto.
Iser apresenta quatro estratégias de jogo possíveis:
1. Agon: luta ou debate. O texto centra-se em normas e valores
conflitivos, o leitor toma uma decisão em relação a esses valores.
2. Alea: sorte, imprevisibilidade. Desfamiliarização. O texto frustra as
expectativas guiadas pelas convenções do leitor.
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3. Mimicry: ilusão. Se o texto é denunciado como “falso” em relação ao
real que supostamente imita, torna-se, nesse momento, em espelho
através do qual o mundo referencial pode ser observado.
4. Ilinx: subverte, recorta, cancela, carnavaliza posições do jogo.
Ressalta os pontos de vista do fundo.
Pode-se combinar as quatro estratégias de jogo de diferentes maneiras,
segundo regras reguladoras (de acordo com convenções correntes) ou aleatórias
(quebrando convenções) (p.114). A tônica dos diferentes jogos está nas mudanças
de posições que eles proporcionam. Através delas, da mesma maneira que o leitor
joga o texto, é por ele jogado. O jogo é performance na qual o leitor é convidado a
encenar diferentes papéis, e onde ele é, ao mesmo tempo, ator e platéia.
O leitor/jogador pode jogar o texto tendo uma meta a cumprir. O autor
apresenta três possíveis metas para o jogo do texto: 1. semântica (busca de
significado); 2. obtenção de experiência (colocamos nossos valores em jogo, abrimo-
nos para a mudança, dispomo-nos a lidar com o não familiar); 3. prazer (“o deleite de
nos tornarmos presentes a nós mesmos pelo exercício incomum de nossas
faculdades”) (p.117). A princípio seria possível para o leitor tentar e conseguir
cumprir mais de uma meta no mesmo jogo: pode-se ler para obter experiência,
encontrando sentidos de maneira prazerosa.
Iser termina suas reflexões acerca do jogo do texto lançando uma última
questão: por que jogamos? Divide a resposta em duas partes, filogenética e
ontogênica. A primeira diz que jogamos para ampliarmos o espaço em que atuamos,
por uma questão de sobrevivência. A segunda fala de nossa capacidade de separar
percepção de significado. O que percebemos pode assumir significados distintos do
objeto percebido. Em ambos os casos há uma encenação onde o ausente se torna
81
presente e um limite é transposto. Em ambos os casos, e aqui fica clara a ligação
entre o pensamento de Iser e o de Wittgenstein, a performance do leitor se dá num
espaço vazio que é construído socialmente no ato da leitura.
Uma terceira maneira de responder às colocações de Umberto Eco é
reavaliar os próprios termos que ele usa para falar dos limites da interpretação. Eco
(1997) fala em “interpretação” e em “superinterpretação”. No original inglês, tem-se
“interpretation” e “overinterpretation”. Essa oposição, que foi o tema escolhido por
Eco para as conferências que viraram o livro em questão, é tendenciosa, acusa
Jonathan Culler em réplica no mesmo livro (1997, p.132). O prefixo “over” denota, de
forma pejorativa, excesso. Culler refuta a idéia de um excesso por dois motivos.
Primeiro porque alguns dos casos que Eco usa para ilustrar uma suposta
“overinterpretation” seriam, para Culler, casos de “subinterpretation”, uma vez que o
leitor poderia ser acusado de não ter utilizado elementos suficientes do texto para
interpretá-lo. Geoffrey Hartman seria um desses casos, ao interpretar o poema
“Lucy”, de Wordsworth, em que o poeta fala da morte de uma menina:
I had no human fears:
She seemed a thing that could not feel
The touch of earthly years.
No motion has she now, no force;
She neither hears nor sees,
Rolled round in earth’s diurnal course
With rocks and stones and trees.
Hartman vê uma palavra-chave ser pronunciada sem ter sido escrita: tears,
que rimaria com “fears”, “years” e “hears”. “Tears”estaria contida na última palavra
da segunda estrofe, “trees”, como uma metáfora cósmica, em que a menina é
82
tornada viva através da imagem da árvore e seu lamento, suas lágrimas, ecoarão
através da natureza.
Onde Eco vê “over”, Culler vê “sub” e diz que, nesse caso, teria sido bom se
Hartman tivesse incorrido numa “overinterpretation”, falando coisas ainda mais
radicais que, mesmo que não fossem adequadas, fariam bem ao exercício
interpretativo ao provocar um debate mais intenso sobre o poema. Em outras
palavras, aquilo que Eco chama pejorativamente de “overinterpretation” pode, para
Culler, ser uma estratégia de leitura possível. Diria Wittgenstein, um jogo possível,
em que a regra seria a extrapolação com o intuito de provocar mais reflexão sobre o
texto.
2.3 Por uma pedagogia da leitura literária a partir de Bakhtin e Vygotsky
Dos três termos presentes na expressão Curadoria Pedagógica da Leitura,
discutiu-se principalmente um deles até a agora: a leitura e seus elementos, o texto
e o leitor. Faltou o exame dos termos “curadoria” e “pedagógica” e suas implicações
para a CPL.
A curadoria em si nada mais é do que uma leitura e o curador, um leitor,
acrescido de uma dose explícita de poder. O gesto de curar objetos, decidindo em
que ordem e posição aparecerão, ao lado de que outros objetos, sob que luz, etc.,
implica uma leitura feita pelo curador dos objetos em questão. Só que uma leitura
com prestígio, no mínimo pelo fato de ter o privilégio de ocupar o espaço de uma
galeria ou museu.
A curadoria como leitura traz à tona, de maneira bem concreta, a natureza
social e dialógica do ato de ler. O curador é um leitor que, ainda que essa não seja a
sua intenção, expõe não só os objetos que cura/lê, mas a sua própria leitura desses
83
objetos ao olhar do público que, por sua vez, tem a oportunidade de ler duas coisas:
a mostra em si e a leitura que o curador fez, negociando com ambas. Claro que essa
segunda leitura, a leitura da leitura feita pelo curador (que é uma meta-leitura),
acontece de forma mais concreta quando se têm curadorias pedagógicas, que mais
não são do que a revelação do fato de que existe uma curadoria por trás de uma
exposição e das escolhas (leituras) feitas pelo curador. A curadoria pedagógica
também traz, de forma mais ou menos explícita, um convite para a discussão, para o
diálogo acerca dessas escolhas mesmas, não tendo o visitante que
necessariamente concordar com elas.
Esse caráter marcadamente dialógico de que uma curadoria pedagógica traz
para exposição nos leva de volta à questão do letramento e um de seus aspectos
mais importantes: a marca da oralidade. Vale a pena retomar a narrativa de Fish
(1982) como um bom exemplo disso: apesar de estarem na universidade, que para
muitos está associada a um lugar onde letramento é sinônimo de palavra escrita, o
que o grupo de estudantes faz o tempo inteiro é conversar sobre o texto. Essa
constatação vai ao encontro das observações feitas por Street (1995) sobre a
impossibilidade de se separar letramento de oralidade. Street vai além, dizendo que,
do ponto de vista teórico, letramento pode ser relacionado tanto à oralidade (em
oposição aos que querem crer que se trata de um fenômeno autônomo, abstrato,
restrito à escrita) como a outras formas textuais, advindas de mídias diferentes, tais
como cinema, televisão, música, quadrinhos, etc.
Nesse ponto seria interessante estabelecer uma diferença entre diálogo e
oralidade. Mesmo numa exibição em que a curadoria não tem um elemento
pedagógico existe diálogo. O diálogo prescinde da conversa em voz alta. Ele se dá
naturalmente no fato de a obra ter uma “voz” que dialoga com o visitante, que por
84
sua vez também “fala” com as obras que observa. E mais, as vozes da obra e do
visitante reproduzem os ecos de outras vozes que fazem parte da história de ambos.
O simples fato de o leitor fazer parte de uma comunidade interpretativa faz com que
ele carregue várias outras vozes além da sua própria ao interagir com uma
determinada obra. Esta, por sua vez, guardará relações de semelhança e diferença
com outras obras que em si mesmas são relações dialógicas. Já o termo oralidade
vai ser empregado na CPL para descrever o que Maybin & Moss (1993) chamam de
“conversa sobre o texto”. É a ocasião em que leitores levantam a voz e falam sobre
o texto em conversas mais ou menos formais. Essas conversas em voz alta fazem
parte da leitura dos textos e constituem um tipo de letramento. A relação entre
diálogo e oralidade é uma das pontes que ligam os pensadores russos Mikhail
Bakhtin e Lev Vygotsky. O primeiro fala sobre o diálogo como sendo a característica
primordial da linguagem, a coisa mesma que a constitui. E deixa claro que o que ele
chama de diálogo vai além da oralidade, antecedendo-a e sucedendo-a no tempo e
no espaço:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema
abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica
isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo
fenômeno social da interação verbal, realizada através da
enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a
realidade fundamental da língua.
O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão
uma das formas, é verdade das mais importantes, da interação
verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido
amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de
pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de
qualquer tipo que seja. (Bakhtin, 1929/97, p. 123)
Já Vygotsky fala da natureza social do homem e de como este é fundado na
relação com o outro através da linguagem. Estudando o desenvolvimento da
inteligência humana em contraste com animais superiores, Vygotsky nos lembra
85
que, a princípio a fala e a inteligência prática não teriam ligação específica e
seguiriam caminhos paralelos de desenvolvimento, uma vez que macacos
antropóides usados em experimentos não são capazes de falar e, nem por isso, são
desprovidos de inteligência prática. No entanto, quando se trata de tarefas mais
complexas, onde o uso de instrumentos na resolução de problemas se torna
indispensável, a oralidade e a inteligência prática se unem para fundar uma
inteligência que Vygotsky diz ser atributo exclusivo do homem. Em outras palavras, é
com o surgimento e uso da oralidade que o ser humano se desenvolve a um nível
que o distingue dos macacos antropóides:
(...) o momento de maior significado no curso do desenvolvimento
intelectual, que dá origem às formas puramente humanas de
inteligência prática e abstrata, acontece quando a fala e a atividade
prática, então duas linhas completamente independentes de
desenvolvimento, convergem. (Vygotsky, 2003, p.33).
É como se a oralidade, a conversa em voz alta potencializasse o diálogo
bakhtiniano. O diálogo é o tecido onde o conhecimento existe latente, em potencial.
A oralidade é o diálogo tornado agudo na fala, na conversa sobre textos (livros,
filmes, músicas, quadros, objetos, etc). Tanto a idéia bakhtiniana de que estamos
inseridos num universo dialógico, quanto a contribuição vygotskiana ao nos mostrar
que através da oralidade nos constituímos como seres humanos, são pilares nos
quais a curadoria pedagógica da leitura se apóia, principalmente no que diz respeito
aos elementos “curadoria” e “pedagógica”. Passemos a um exame um pouco mais
detalhado da contribuição desses dois pensadores a fim de delinear melhor as
bases teóricas da CPL.
Para entender o que exatamente Bakhtin chama de linguagem e diálogo é
preciso, antes de mais nada, ter em mente que para ele não havia como falar nesses
elementos sem que se pensasse na cultura, no contexto sócio-histórico em que
estão inseridos. Essa inserção da dimensão social nos problemas lingüísticos
86
significou ao mesmo tempo uma crítica e um acréscimo às idéias de Saussure, que
embora tenha sido capaz de reconhecer a natureza heterogênea da linguagem
(langage) e até mesmo a possibilidade de uma lingüística da fala (parole), preferiu
tomar como base um sistema fechado, sincrônico (e, portanto, a-histórico) que ele
chamou de língua (langue) e que, para Bakhtin, é apenas uma ficção:
Para o observador que enfoque a língua de cima, o lapso de tempo
em cujos limites é possível construir um sistema sincrônico não
passa de uma ficção. (Bakhtin, 1929/97, p.90)
Bakhtin postula que se encare a língua como uma “prática viva” (op. cit. p. 95)
que nada tem a ver com um sistema abstrato, cheio de regras imutáveis que não
dão conta da dinâmica muito complexa da língua como ela é experienciada pelos
membros de uma dada comunidade lingüística. Na realidade, o falante pouca ou
nenhuma consciência tem dos signos lingüísticos ou das palavras dicionarizadas, a
não ser em casos muito raros e geralmente quando precisa lidar com a palavra
escrita (op. cit. p. 95).
Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos,
mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou
triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre
carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial.
(Bakhtin, 2004:95. Grifos do original)
O pensador russo prenunciava, com dois anos de antecedência em relação ao
filósofo alemão, os jogos de linguagem wittgensteinianos.
As portas dos fenômenos lingüísticos se abrem para a história, para ideologia,
para a cultura, para a diversidade das vozes e olhares que constroem as sociedades
ao longo do tempo. A língua deixa de ser um sistema ascético para ser maculado
pelas idiossincrasias dos homens e mulheres sem os quais ela não existiria. Mas
essa relação é, citando Brait (1997, p.91) “constitutivamente dialógica”: se, por um
lado, a língua é obra coletiva dos indivíduos que dela participam, por outro ela ganha
87
um caráter constitutivo, ou seja, nós fazemos a língua e somos, em contrapartida,
formados por ela.
Fica claro que a visão que Bakhtin tem da língua é eminentemente
processual, o que implica dizer que ao afirmar que a linguagem tem um caráter
dialógico, afirma igualmente que uma de suas marcas principais é o inacabamento, a
incompletude, a impermanência.
Qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja,
constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal
ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à literatura, ao
conhecimento, à política, etc.) (...) O processo da fala, compreendida
no sentido amplo como processo de atividade de linguagem tanto
exterior como interior, é ininterrupto, não tem começo nem fim.
(Bakhtin, 1929/97, p. 125)
A concepção bakhtiniana de língua viva, processual e inacabada, tem muito a
dizer sobre o ato interpretativo como jogo (social) de linguagem, que é o foco da
CPL. Segundo o autor russo, o texto – poema, conto, crônica, romance, carta,
fotografia, gesto, etc. – não passa de uma enunciação e, como tal, é uma resposta a
alguma coisa e deve provocar respostas por sua vez, num ecoar sem fim.
Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma
resposta a alguma coisa e construída como tal. Não passa de um elo
da cadeia dos atos de fala. (Bakhtin, op.cit., p.98)
A CPl nada mais é do que uma situação de letramento em que, através da
oralidade, a natureza dialógica da interpretação é trazida à tona nas múltiplas
interações dos sujeitos participantes, entre si e com os textos.
Na CPL o inacabamento dos textos e das interpretações cria uma diferença
de potencial – entre o que pode ser e o que é – que é o combustível da atividade, o
modus operandi da conversa sobre o texto. Essa diferença de potencial nunca é de
fato superada, uma vez que a interpretação que transporta um texto de seu potencial
para um sentido concreto é provisória. Ela atualiza um texto apenas até o momento
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em que outro participante dê a sua contribuição, seja ampliando a interpretação
anterior, seja desafiando-a. Para Bakhtin, a expressão do autor do texto tem duas
facetas. Uma interior (pela qual o autor é responsável) e uma exterior (voltada para o
outro, que pode até ser o próprio autor, caso ele se ponha numa posição de receptor
da própria obra). Assim, o autor é apenas meio autor do que produz e sua sina é
nunca concluir nada. O privilégio da conclusão, contudo, não pertence a ninguém,
pois por mais que um receptor produza a segunda face da expressão, ela não se
torna una jamais. Isso se dá porque o receptor, ao se tornar autor, ainda que da
segunda faceta da expressão, produz uma nova expressão incompleta à espera de
um outro participante que lhe dê uma nova (e temporária) faceta. Em última análise,
pode-se dizer que as expressões são sempre amálgamas de “facetas de segunda
mão”, pois seria, além de quase impossível, inútil procurar a autoria original:
estamos sempre, ao nos expressar, respondendo a alguma coisa, que por sua vez é
uma enunciado incompleto chamando por uma resposta, num continuum dialógico
infinito.
Pode-se dizer que eventos em que se conversa sobre textos como os que se
pretendem organizar sob o nome de CPL são multifacetadores das obras em foco.
Sob um ponto de vista bakhtiniano, um evento de CPL, onde o diálogo sobre textos
é deliberadamente estimulado, pode ser representado com a imagem de um grande
caleidoscópio multiplicador, processador, transformador de significados. Os sujeitos
dialogantes são, para aproveitar a imagem do caleidoscópio, espelhos com
propriedades únicas que, ao mesmo tempo em que refletem o texto, refletem sobre
ele modificando sua forma, sua cor, seu sentido. Isso dá uma dimensão extra ao
papel que o escudo-espelho mitológico de Perseu desempenha no ato interpretativo.
O escudo-espelho é, a princípio, metáfora dos textos com os quais o leitor-Perseu
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refletirá o texto “principal”, aproximando-se dele de forma “segura”, lendo um conto,
romance ou quadro através de seus reflexos em outros contos, romances, quadros,
filmes, músicas, etc. Mas o escudo-espelho também será metáfora do outro cuja
voz, idéias, presença também terão propriedade reflexiva, mediadora do texto
“principal”. Os escudos são os textos “auxiliares”, mas nós, seres históricos,
portadores de voz e vórtices do grande diálogo, também somos textos. Logo, somos
escudos e espelhos, além de sermos Perseus. A CPL coloca seus participantes num
jogo carnavalesco bem ao gosto de Bakhtin: ao longo da fala sobre o texto,
trocamos de máscaras incessantemente, de acordo com o papel que
desempenhamos. Além de Perseu e escudo, seremos também Atena, como ficará
claro mais adiante, quando focarmos a contribuição de Vygotsky.
Se pudermos entender a imagem do caleidoscópio como a situação social
imediata a partir da qual o texto será (re)lido, perceberemos um dos sentidos
possíveis da seguinte afirmação de Bakhtin:
Qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado,
ele será determinado pelas condições reais da enunciação em
questão, isto é, antes de tudo pela situação social imediata. (Bakhtin,
1929/97, p. 112)
Assim, é provável que os arranjos feitos com base na CPL influam
decisivamente na produção de sentido que ocorre na leitura, intensificando-a. O
autor russo poderia estar falando de um evento de curadoria ao afirmar que
O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um
elemento de comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas
sob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de
maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado no
quadro do discurso interior, sem contar as reações impressas,
institucionalizadas, que se encontram nas diferentes esferas da
comunicação verbal (...). Assim, o discurso escrito é de certa maneira
parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele
responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e
objeções potenciais, procura apoio, etc. (Bakhtin, 1929/97, p.123)
90
Por fim, Bakhtin aborda a questão da identidade do sujeito dialogante. Para o
autor russo a idade, o estrato social, a história, os anseios, os medos, o gênero, o
lugar de origem, etc., dos sujeitos influirão na maneira como esses sujeitos se
relacionam e dialogam e, portanto, devem ser levados em consideração. Em
Marxismo e a Filosofia da Linguagem, Bakhtin analisa dois sistemas de idéias que
dão papéis diferentes ao sujeito e aos quais ele chama de “objetivismo abstrato” e
“subjetivismo idealista” (Bakhtin, 1929/97, p.72). O maior representante do primeiro,
Saussure, foi duramente criticado pelo pensador russo, como mencionado acima,
em função de sua visão a-histórica do processo de geração de sentidos. Saussure
estava mais preocupado em estudar as abstrações da langue do que as sinuosas e
caóticas manifestações da parole e as inúmeras idiossincrasias que traz de roldão.
Não há espaço para o sujeito portador de história, passado, ideologia. Quanto ao
subjetivismo idealista, Bakhtin diz concordar com a assertiva segundo a qual não se
pode isolar a dimensão ideológica de nenhuma forma lingüística. Isso não é difícil de
entender, uma vez que os sujeitos estão imersos em cultura. O autor russo afirma,
porém, que, ao contrário do que o subjetivismo idealista postula, o caráter ideológico
que permeia os enunciados não tem sua origem no indivíduo, mas na sociedade à
qual ele pertence (Bakhtin, 1929/97, p.122). Aqui, Fish (1983) e seu construto de
“Comunidade Interpretativa” parece se aproximar do autor russo.
Não vou me furtar a dizer, ainda que para isso tenha que pagar o preço do
descrédito dos que virem na minha afirmação tons de ingenuidade ou mesmo
pieguice, que par e passo com a questão filosófica sobre a identidade do sujeito
existe uma questão moral. Assim como Bakhtin, Fish critica tanto o que ele chama
de objetivismo quanto a corrente relativista, para abraçar a idéia de Comunidade
91
Interpretativa como sendo a origem da identidade do sujeito interpretante. Ao
contrário de Bakhtin, todavia, Fish parece nos colocar num beco sem saída. Por um
lado, ele discorda com as idéias subjetivistas segundo as quais o sujeito é livre para
interpretar. Ele diz que suposto sujeito de uma dada comunidade interpretativa é
muito menos sujeito propriamente dito do que assujeitado pela força das idéias
comunitárias. Fish tampouco concorda com os objetivistas, segundo os quais o
sentido de um texto é imanente: se o sentido é dado pela comunidade, ele está nela,
e não no texto. Levadas ao pé da letra, as conclusões que se podem tirar a partir de
tal análise são as mais pessimistas. Resta muito pouco ou mesmo nada a fazer sob
o ponto de vista pedagógico. O sujeito está inacessível, preso à comunidade assim
como uma gota d’água ao oceano.
Bakhtin oferece uma saída que me parece não só mais otimista (embora
otimismo não seja indicador de eficácia ou relevância), mas também mais ética, pois
oferece ao sujeito saídas do beco assujeitador da comunidade interpretativa. A
solução do autor pode ser resumida em uma palavra: conflito. Para ele, o leitor vai
sempre abordar um texto a partir de seu lugar, entendendo-se por “lugar” a
dimensão sócio-histórica do leitor no momento da leitura. Por isso é importante que
se consiga abrir um pouco mão das próprias visões para que se possa
verdadeiramente travar um contato com o novo. Bakhtin diz que isso é possível
através de uma “concordância-discordância ativa”:
Compreender o texto tal como o autor de dado texto o compreendeu.
Mas a compreensão pode e deve ser melhor. (...) Assim, a
compreensão completa o texto: ela é ativa e criadora. (...) O sujeito
da compreensão não pode excluir a possibilidade de mudança e até
de renúncia aos seus pontos de vista e posições já prontos. No ato
da compreensão se desenvolve uma luta cujo resultado é a mudança
mútua e o enriquecimento. (...) A concordância-discordância ativa
(quando não resolvida dogmaticamente de antemão) estimula e
aprofunda a compreensão, torna a palavra do outro mais elástica e
mais pessoal, não admite dissolução mútua e mescla. Separação
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precisa de duas consciências, da sua contraposição e da sua inter-
relação. (Bakhtin, 2003, p.377-378)
O que Fish não menciona e que parece claro para Bakhtin é o fato de que
não participamos de uma só Comunidade Interpretativa, pois o contato com o outro,
bem como o exercício de papéis sociais distintos (na escola, no trabalho, com
amigos, etc.) nos filia a diferentes grupos sociais e nos possibilita desobedecer às
regras interpretativas de uma comunidade, não a fim de que sejamos sujeitos
individuais livres, mas no intuito de obedecer às regras de outra comunidade. A
obediência a um senhor implica, muitas vezes, a desobediência a outro. Se o
curador-professor-leitor tiver em mente a importância da pluralidade dos textos e
abordagens, pode ajudar a criar, nos eventos de leitura que construir, ambientes que
emulem comunidades interpretativas distintas do universo ao qual os participantes
estão acostumados, permitindo que se filiem, ainda que momentaneamente, a
comunidades interpretativas novas para eles. Um curador pedagogicamente
comprometido tem a oportunidade de usar a curadoria para desestabilizar o
aparente equilíbrio previsto por Fish.
Uma curadoria desafiadora, se for capaz de convencer o participante a adotar
uma nova perspectiva, informada não pela comunidade interpretativa de onde veio
antes do evento, mas pela comunidade que se está construindo durante o evento de
leitura, pode criar um interessante paradoxo: quanto mais obediente o participante
for, aceitando as propostas surgidas na nova comunidade, mais desobediente ele
estará sendo da antiga comunidade interpretativa a que pertencia antes do evento.
Cria-se a possibilidade de trânsito, de movimento para o participante, que é, de certa
forma, uma maneira de ser livre. Daí a importância do conflito, pois é no atrito entre
93
comunidades interpretativas diferentes que o leitor tem uma chance de liberdade,
ainda que limitada.
Nesse sentido, a CPL será um caleidoscópio também em função de poder
deformar as imagens identitárias que os sujeitos tenham de si mesmos e uns dos
outros. O movimento e a mudança podem ser regras desse jogo. No calor do diálogo
sobre o texto, serão muitas as lutas que acarretarão em modificações de variada
ordem. A primeira delas é o confronto interno que cada sujeito travará consigo
mesmo para manter as opiniões já estabelecidas, ou abandoná-las. Em seguida,
cada pessoa, texto, obra, será um outro em cujas fronteiras o sujeito se chocará com
maior ou menor energia, desestabilizando a si mesmo e aos outros.
O grau de consciência do indivíduo no momento do embate será fundamental
para que ele possa tirar o máximo do conflito. Saber que se faz parte de uma
comunidade interpretativa que fala através de nós pode nos dar a motivação para
buscar outras ideologias que nos ajudem a ter, senão a liberdade total,
aparentemente impossível de se obter, uma gama tão grande quanto possível de
escolhas em nosso repertório interpretativo.
É na ampliação do repertório interpretativo do sujeito que se encontra a
questão moral mencionada anteriormente. É função precípua de o educador
possibilitar autonomia ao educando. Bakhtin diz que o grau de lucidez com o qual
um leitor estará habilitado a encarar uma obra depende do repertório ideológico a
que esse sujeito tenha acesso. Por grau de lucidez não se deve entender uma
pretensão de se estar com a verdade, mas a capacidade de se reavaliar o valor de
qualquer texto a partir da premissa de que verdades são feitas de idéias
temporárias, falíveis, incompletas.
94
A atividade mental do nós não é uma atividade de caráter primitivo,
gregário: é uma atividade diferenciada. Melhor ainda, a diferenciação
ideológica, o crescimento do grau de consciência são diretamente
proporcionais à firmeza e à estabilidade da orientação social. Quanto
mais forte, mais bem organizada e diferenciada for a coletividade no
interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e complexo será
seu mundo interior. A atividade mental do nós permite diferentes
graus e diferentes tipos de modelagem ideológica. (Bakhtin,
2004:115)
A polifonia bakhtiniana é dialética porque ao mesmo tempo em que convida
vozes de diferentes naturezas para se harmonizarem, não prescinde de uma dose
de conflito para que essas vozes não percam sua força. No embate de idéias, o
sujeito tem oportunidade de transitar entre comunidades interpretativas distintas e
travar contato com outras vozes com as quais poderá dialogar e debater, concordar-
discordar e, por que não, crescer.
A idéia de conflito, tão cara para Bakhtin, aparece com muita força em
Vygotsky. O conflito vygotskiano é fundamental para a CPL por dois motivos:
primeiro porque é nesse conflito que reside o elemento “pedagógico” da curadoria;
segundo, em função de ser a partir desse conflito que a figura mitológica de Atena
ganha seu papel nos jogos de leitura que a CPL propõe. Para entender a visão
vigotskiana de conflito, contudo, é necessário refazer um trecho do percurso
percorrido por ele para chegar até esse conceito.
O psicólogo russo discute de forma brilhante a relação entre desenvolvimento
e aprendizado (Vygotsky, 20003, cap.6). Ele começa por analisar três grandes
posições teóricas acerca do problema. A primeira delas diz que aprendizado e
desenvolvimento são processos distintos. O aprendizado seria um processo externo
que faria uso dos avanços do desenvolvimento, mas sem ter nenhuma influência
sobre ele. Segundo essa posição, “o aprendizado segue a trilha do desenvolvimento
e o desenvolvimento sempre se adianta ao aprendizado” (op. cit, p.104). O
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desenvolvimento é pré-condição para o aprendizado, a infra-estrutura sobre a qual o
aprendizado (super-estrutura) pode, ou não, acontecer.
A segunda posição diz que aprendizado é desenvolvimento. Não existe
precedência temporal de um sobre o outro ou relação de causa e efeito entre os dois
processos, mas uma perfeita identidade e simultaneidade entre eles.
A terceira posição teórica tenta conciliar as duas primeiras através do
conceito de maturação. O desenvolvimento seria a resultante tanto da maturação do
sistema nervoso como de processos de aprendizagem, de forma dialética: o sistema
biológico amadurece e possibilita que o aprendizado de um ponto específico tenha
lugar. Esse aprendizado, por sua vez, influencia na maturação que vai permitir um
novo aprendizado e assim por diante. Acontece que, ainda segundo a terceira
posição teórica, quando se amadurece o sistema nervoso, tal maturação possibilita
que ocorram aprendizados múltiplos, decorrendo daí que, como coloca Vygostky, a
esfera do desenvolvimento será sempre maior que a do aprendizado, contendo-a:
Esquematicamente, a relação entre os dois processos poderia ser
representada por dois círculos concêntricos, o menor simbolizando o
processo de aprendizado e o maior, o processo de desenvolvimento
evocado pelo aprendizado. (...) Conseqüentemente, ao dar um passo
no aprendizado, a criança dá dois no desenvolvimento (...) (Vygotsky,
2003, p.109)
Vygotstky diz rejeitar as três posições teóricas. Para isso, refuta um fato tido
como inquestionável: que o aprendizado escolar tenha que ser combinado com o
grau de desenvolvimento da criança e diz que o critério do desenvolvimento é
limitador dos potenciais da criança. Segundo Vygotsky, existem pelo menos dois
tipos de desenvolvimento: o real e o proximal (potencial ou prospectivo).
O desenvolvimento real é dado por ciclos já completados de desenvolvimento.
Ele se refere ao passado. Mede-se o desenvolvimento real pela capacidade que a
96
criança demonstre em resolver problemas sem nenhum tipo de assistência ou
interferência exterior. Se a criança recebe qualquer sorte de pista ou a co-
participação de um colega ou professor para realizar uma tarefa, tal realização não
será indício de desenvolvimento.
Vygotsky diz que a negação do auxílio de um outro na realização da tarefa
como indício de desenvolvimento é fruto do senso comum e propõe que se reflita
que duas crianças com idade mental, ou seja, o nível de desenvolvimento real, de
oito anos, podem ter performances distintas quando em contato com um parceiro de
atividade ou quando auxiliadas por pistas. Pode ser que nesse novo contexto uma
criança atue como se tivesse idade mental de nove anos e outra de doze. Além
disso, é possível que depois de experienciar tal situação de auxílio, as crianças
passem a ser capazes de fazer sozinhas o que antes da experiência só poderiam
fazer com ajuda de outras pessoa: “Aquilo que uma criança pode fazer com
assistência hoje, ela será capaz de fazer sozinha amanhã.” (Vygotsky, 2003, p. 113)
Vygotsky argumenta que existe uma capacidade específica de ir mais ou
menos longe a partir do desenvolvimento real da criança que não tem a ver com a
idade mental dos indivíduos. Para explicar essa capacidade ele introduz o conceito
de “Zona de Desenvolvimento Proximal” (ZDP):
Essa diferença entre doze e oito ou nove e oito, é o que nós
chamamos de zona de desenvolvimento proximal. Ela é a distância
entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar
através da solução independente de problemas, e o nível de
desenvolvimento potencial, determinado através da solução de
problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com
companheiros mais capazes. (Vygotsky, 2003, p.112)
O conceito de ZDP inverte a relação desenvolvimento-aprendizado como
havia sido estabelecido antes de Vygotsky. Pare ele, o “bom aprendizado” é aquele
que “se adianta ao desenvolvimento” (op. cit. p.117). Ou seja, é preciso que o sujeito
97
aprendiz tenha que ir além do seu desenvolvimento já “completado” a fim de superar
a si mesmo. Assim, o processo de aprendizado, ao invés de depender do nível de
desenvolvimento real do sujeito para acontecer, provoca, pelo seu grau de
dificuldade acima do que já foi conquistado pelo indivíduo, um aumento no
desenvolvimento real. A questão crucial, no entanto, não é a inversão da ordem
desenvolvimento-aprendizagem em si, mas o fato de que, para ela ocorrer, há a
necessidade de um Outro, que tanto pode ser um colega, um professor, como, para
voltar para noção de CPL, um texto auxiliar, um filme, uma música, que forneça
pistas, rotas a partir das quais o aprendiz possa ir além de si mesmo no diálogo com
o texto. A relação eu-outro, nesse caso, funciona como os pólos de uma bateria cuja
diferença de potencial gera energia, podendo gerar movimento.
O aprendizado humano pressupõe uma natureza social específica e
um processo através do qual as crianças penetram na vida
intelectual daquelas que as cercam (...) Propomos que um aspecto
essencial do aprendizado é o fato de ele criar a zona de
desenvolvimento proximal; ou seja, o aprendizado desperta vários
processos internos de desenvolvimento, que são capazes de operar
somente quando a criança interage com pessoas em seu ambiente e
quando em cooperação com seus companheiros. (...) Desse ponto
de vista, aprendizado não é desenvolvimento; entretanto, o
aprendizado adequadamente organizado resulta em
desenvolvimento mental e põe em movimento vários processos de
desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossíveis de
acontecer. Assim o processo de aprendizado é um aspecto
necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções
psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas.
(Vygotsky, 2003, p.115-118).
Acredito que uma das propriedades de um evento de curadoria pedagógica
da leitura se insere no que Vygotsky chama de “aprendizado adequadamente
organizado” por dois motivos: primeiro por causa da natureza social do evento. A
leitura se dá, preferencialmente, em meio ao diálogo em grupo, onde o
conhecimento é compartilhado e reconstruído a todo instante, onde os participantes
são convidados a falar do lugar social que ocupam, onde suas histórias e
98
experiências são bem-vindas. Em segundo lugar, por que, como diz Tudge (2002,
p.152), a ZDP se instaura ao redor do sujeito, podendo levá-lo até a regredir para um
estágio anterior ao que estava antes da interação. Para mim, isto é indício de que a
ZDP é uma área de grande instabilidade, onde os conhecimentos são
desequilibrados a fim de que possam se reacomodar, podendo gerar aprendizado.
A imagem que me ocorre é a da necessidade de desconforto e quebradeira
que uma reforma traz. Para mudar uma parede de lugar, uma parede pequena que
seja, o barulho, a poeira, o incômodo, especialmente se se continua habitando o
espaço onde a reforma acontece, são inevitáveis. A tendência dos conhecimentos
adquiridos é a cristalização, como se paredes sólidas estivessem sendo erguidas no
repertório de conhecimentos do sujeito. A ZDP é a disposição para reforma, é o
martelo que se choca com a parede, desestabilizando-a, destruindo-a se necessário,
a fim de colocar uma nova (ou nenhuma) no lugar.
Eventos de CPL acontecem em meio a indagações cuja função é provocar
ora desconforto, ora incerteza, no intuito de desestabilizar os conhecimentos
estabelecidos e criar condições para que o aprendizado ocorra. Eu ousaria sugerir,
tendo em mente a discussão de Tudge sobre como parceiros mais competentes
podem desistir de um conhecimento mais adequado em troca de um menos
adequado, que ZDP também pode significar “zona de desequilíbrio potencial” a partir
do qual um movimento qualquer pode ocorrer. É como o chão que treme fazendo
com que o sujeito, desequilibrado caia, para trás ou para frente, onde se espera que
outro sujeito mais competente seja capaz de lhe estender a mão e ajudá-lo a dar um
passo, evitando a queda. Em outras palavras, o ato de caminhar parece ser uma
boa ilustração para a ZDP: quando caminhamos, estamos, na verdade, caindo. Ao
99
tirar o primeiro pé do chão estamos, deliberadamente, provocando nosso próprio
desequilíbrio, pois é unicamente a partir dele que poderemos alcançar movimento.
Assim, parece haver uma interessante ponte entre Bakhtin e Vygotsky: o
diálogo, que é a base da nossa existência, tem como característica gerar conflito, em
função do atrito de vozes diversas na negociação incessante de sentido. Esse
conflito, por sua vez, parece ser ingrediente fundamental no estabelecimento da
instabilidade necessária para que haja movimento. Por fim, movimento é justamente
o que se espera que ocorre num evento de CPL, já que, para um participante ser
capaz de incorporar novos elementos ao seu repertório interpretativo, ele terá que
ser capaz de movimentar-se um pouco além dos limites da comunidade
interpretativa onde se encontra.
Como foi dito antes, para Tudge esse movimento pode querer dizer regresso,
no sentido de que um sujeito mais competente pode ser levado a abrir mão de um
conhecimento mais “verdadeiro” por outro menos “verdadeiro” quando em contato
com pares menos competentes, sendo que seu conhecimento ainda não se
consolidou apropriadamente. Acredito que para CPL, nos moldes em que vem sendo
discutida no presente trabalho, esse temor acerca da regressão não proceda. Assim,
num evento de CPL, o foco não está numa transferência de habilidades, mas na
criação conjunta de significados, donde se pode concluir que a noção de progresso
e regresso não parecem ser relevantes. A noção de movimento, independente de
seu sentido, é mais importante. Moll fala sobre o conceito de ZDP a partir dessa
nova perspectiva:
(...) quero sugerir uma nova perspectiva para o conceito de mudança
na zona de desenvolvimento proximal. Nesse ponto de vista, o foco
de interesse seria dirigido para a apropriação e o domínio de
recursos mediadores (...) reconhecidos não apenas – ou não
necessariamente – pelos desempenhos independentes após uma
prática dirigida, mas por meio da habilidade de participar de
100
atividades qualitativamente novas realizadas pelas crianças em
colaboração. O foco, conseqüentemente, não está na transferência
de habilidades como, por exemplo, daqueles que sabem mais para
os que sabem menos, mas no uso em colaboração de recursos
mediadores para criar, obter e comunicar o significado. (Moll, 2002,
p.14)
Um dos objetivos da CPL, desta forma, é colocar o leitor numa situação em
que ele tenha que ser mediador de sentidos junto a outros mediadores. Isso quer
dizer, em outras palavras, saber administrar as pontes bakhtinianas, as ligações
entre textos, os conteúdos que estão sempre no meio: entre leitores, entre textos,
entre leitores e textos. Administrar o que está “entre”. Segundo Christiansen (apud
Vygotsky, 2004, p.333) “o principal na música é o que não se ouve, nas artes
plásticas o que não se vê nem se apalpa.” Espera-se que a figura do curador não
seja propriamente a de alguém que vai transferir habilidades, mas de um individuo
habituado a jogar o jogo da leitura dessa forma: tentando explicitar o diálogo eterno
entre o texto em questão e outros muitos textos.
Na curadoria pedagógica, esse gesto explicitador na rede dialógica e
polifônica onde se encontra a obra a ser analisada acontece, entre outras formas,
através da oralidade. A oralidade é, segundo Vygotsky, um poderoso instrumento
gerador de zonas de instabilidade. Um evento de CPL nada mais é do que a criação
dessa zona de instabilidade onde o participante é convidado a se desequilibrar para
poder melhor enxergar os diálogos entre o texto principal e os textos auxiliares.
Chegamos, finalmente, à figura de Atena. Ela desempenha o papel de par
mais competente de Perseu, levando-o a ir além do que seria capaz da fazer se
estivesse sozinho. A principal contribuição da deusa da sabedoria na saga de
Perseu não está na doação do escudo de bronze que aquele usou para se
aproximar do monstro, mas sim na conversa que tiveram sobre o escudo, sem a qual
a Perseu talvez nunca ocorresse usar o escudo como outra coisa além de sua
101
função protetora. É no diálogo sobre o escudo e sobre as características da Medusa
que o escudo se deforma, ganhando novo significado, ou ainda, como Wittgenstein
diria, novo uso. Esse novo uso é exemplo do invisível tornado visível no ambiente da
oralidade em que um par mais competente interage com um menos competente.
No caso da CPL, a instabilidade, como dito acima, é também de nossas
identidades, pois ora seremos Perseu-leitor, ora seremos escudo-espelho e ora
seremos Atena-curadores uns dos outros na tentativa de nos movimentar em relação
ao texto para dele termos novas visões, ampliando nosso repertório interpretativa e
tornando o ato de ler mais produtivo e, porque não dizer, prazeroso.
Vygotsky (2004) fala que “educar esteticamente” alguém é justamente permitir
que o invisível seja objeto de estudo. A mera presença de sujeitos interessados em
interagir buscando sentido para uma obra de arte com a ajuda de outros textos e de
outras pessoas simboliza uma rede tecida nas conexões entre pessoas e textos,
pessoas-textos. Tais redes, cujos nós, tecidos nas múltiplas interações, na polifonia,
no conflito, na instabilidade que alavanca, também são invisíveis e são capazes de
lidar com os conteúdos que estão no meio, as “massas imensas e ilimitadas de
sentidos esquecidos, como coloca Bakhtin:
Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o
contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao
futuro sem limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no
diálogo dos séculos passados, podem jamais ser estáveis
(concluídos, acabados de uma vez por todas) eles irão sempre
mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento
subseqüente, futuro do diálogo. Em qualquer momento do
desenvolvimento do diálogo existem massas imensas e ilimitadas de
sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo
desenvolvimento do diálogo, em seu curso, tais sentidos serão
relembrados e reviverão em forma renovada (em novo contexto).
Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de
renovação. Questão do grande tempo. (Bakhtin, 2004, p. 410)
102
Essa parece ser uma boa definição de curadoria pedagógica da leitura: uma
festa de renovação, um grande útero onde textos e leitores poderão sempre
renascer, criando, no diálogo e na oralidade, sentidos novos.
No próximo capítulo, tento, através da análise de dois eventos de leitura,
investigar a possibilidade de realização de uma leitura pedagogicamente “curada” de
dois textos tidos como “literários”.
103
Capítulo 3: Curadoria em ação – duas demonstrações
Nesse capítulo, pretendo descrever dois eventos de curadoria e, a partir da
análise dos acontecimentos, fazer uma reflexão acerca da viabilidade da CPL.
O primeiro evento é também uma ocasião para se pensar a leitura de forma
explícita, ou ainda, uma metacuradoria. Explico: embora o texto-medusa em questão
seja um poema de John Wilmot, o meu objetivo como curador era fazer uma
demonstração da curadoria pedagógica como estratégia de leitura. O objeto de
leitura em questão era não só o ato de ler, como o ato de ler a partir das premissas
do que chamei de CPL (cf. cap. 2). Esse evento de leitura tem uma história própria.
Nasceu como um pôster a ser apresentado como parte do trabalho final de um curso
sobre Bakhtin e Vygotsky dentro do programa de mestrado em Lingüística Aplicada
da UFRJ, e depois foi adaptado a fim de ser utilizado com alunos do curso de
graduação em letras da mesma universidade.
O segundo evento de curadoria se dá num grupo de estudos sobre filosofia e
literatura que se reúne semanalmente há três anos na casa de dois dos membros
desse grupo (cf. cap. 1). Nele, lemos o conto A Shocking Accident do escritor inglês
Graham Green traduzido por mim com título de Um Acidente Chocante.
A escolha desses dois eventos tem a intenção de experimentar a CPL em
contextos distintos, de modo a obter uma heterogeneidade que, acredito, seja
interessante para refletir sobre o alcance dessa forma de ler. O primeiro grupo era
constituído por 20 jovens adultos universitários do curso de letras da UFRJ,
cursando o quinto período. O curso era sobre literatura inglesa e a ementa previa a
leitura de poesia romântica inglesa. O segundo grupo consistia de adultos de
formação diferenciada (um historiador, uma advogada, um engenheiro naval e uma
administradora) em idades que variaram de 26 a 39 anos.
104
3.1 Metacuradoria
O objetivo desse evento era ler e, ao mesmo tempo, introduzir a idéia de
curadoria para um grupo de alunos universitários. Minha intenção era que, ao longo
do semestre, eles tivessem a oportunidade de usar as idéias debatidas nesse evento
nos seus trabalhos em grupo. Ou seja, eles podiam, ao falar de um dos autores que
estivéssemos lendo no semestre, preparar uma curadoria dos poemas desse autor,
ao invés de apresentar um seminário nos moldes mais tradicionais. Dessa forma, era
importante que os conceitos fossem discutidos em detalhe e que falássemos, em
algum momento, a respeito do processo vivido pelo grupo. A seguir, tento fazer um
resumo do que aconteceu, com suas possíveis implicações teóricas.
A classe de vinte alunos presentes no dia foi dividida em cinco grupos de
quatro e para cada grupo foi dada uma atividade, que consistia no seguinte: uma
folha de papel A4 (anexo 1) onde se viam, no rodapé do documento (orientado como
paisagem) sete imagens: uma fênix, uma borboleta, o cientista francês Antoine
Lavoisier, um bebê no útero, uma mulher com as mãos sobre o rosto, lápides num
cemitério gramado e uma hidra (cnidário, popularmente chamado de medusa, da
ordem dos hidróides cujo corpo, geralmente menor do que um centímetro tem a
propriedade de se regenerar quando mutilado). Acima dessas imagens, ocupando,
respectivamente, o lado esquerdo e direito da página, um pedaço de papel branco
que cobria o poema (o qual deveria permanecer coberto até que eu pedisse aos
alunos que o descobrissem e lessem) e um bolso de plástico transparente dentro do
qual se encontravam pedaços de papel celofane de várias cores. Além disso, cada
grupo recebeu um conjunto de canetas coloridas.
Uma vez divididos e devidamente equipados, os grupos teriam dez minutos
para estabelecer relações entre as figuras no pôster. Isso deveria ser feito ligando
105
duas ou mais figuras com caneta e justificando a relação estabelecida para o grupo.
Findo o tempo que tinham para estabelecer relações entre as figuras, pedi que os
grupos, em qualquer ordem, reportassem suas conclusões para todos. Aqui cabe
uma observação: embora toda a discussão tenha transcorrido em inglês, achei por
bem traduzi-las para o português no intuito de facilitar a fluência do texto e sua
acessibilidade por parte de leitores que porventura não dominem o idioma inglês.
As primeiras relações estabelecidas ficaram num nível bastante explícito. O
primeiro grupo, por exemplo, começou dizendo que fazia uma relação entre a fênix e
a borboleta porque ambas voam (anexo 2). Um segundo grupo ligou a borboleta e a
hidra porque nenhuma das duas possuía ossos. Um membro do terceiro grupo disse
que ligava a borboleta e a hidra porque ambas sofriam uma mutação. À medida que
mais conexões iam sendo feitas, iam também ficando menos óbvias, mais
elaboradas. Por “mais elaboradas” quero dizer, contando com mais conhecimentos
prévios por parte de quem estabelecia a ligação. É mais provável que se reconheça
o fato de que tanto a fênix quanto a borboleta podem voar do que o fato de que
sofrem transformações. Mesmo quem nunca tenha visto uma fênix ou ouvido falar
sobre uma, basta olhar para a imagem alada para inferir que voa. Na proporção que
as ligações se complexificam, vão também dando margem a mais controvérsias,
discordâncias e debate. A partir dessa última ligação, perguntei aos alunos se o que
ocorria com a hidra poderia ser chamado de “mutação”, mobilizando o grupo.
Professor A mutação é a mesma? A hidra sofre uma mutação? Ela se transforma
em algo diferente?
Aluna 1 Não, mas ela se transforma nela mesma.
Professor A borboleta vem de uma lagarta, que vira um casulo e então a
borboleta. Mas a hidra...
Aluna 1 Uma hidra cortada se transforma numa hidra inteira...
Aluna 2 A gente ligou o bebê e o cemitério porque são o começo e o fim da
vida.
106
Professor Sim... Mas depende de quem, das suas crenças... algumas pessoas
acreditam que há vida após a morte...
Aluno 3 Lavoisier, o bebê a mulher... são os representantes humanos no pôster.
Aluno 4 O bebê, o cemitério e a fênix...O começo da vida, o fim da vida e
imortalidade...renascimento.
Aluna 5 O bebê e a hidra. Na hidra, ela se regenera quando uma parte dela é cortada.
Já no caso do bebê, ele em si é a parte cortada.
Professor Cortada da mãe?
Aluna 5 É... só que nesse caso é a parte cortada que se regenera, quer dizer, o bebê
cresce...
Aluna 6 A gente também ligou a hidra e a mulher. A mulher representa as pessoas em
geral. E a gente está sempre sendo cortado pela vida, está sempre sofrendo
e tendo que se regenerar para continuar vivendo.
Através do diálogo travado entre os leitores, algumas palavras foram sendo
recontextualizadas. O verbo cortar adquire dois sentidos distintos, um literal e um
não-literal. A aluna 1 o usa de forma concreta, ao se referir à hidra. A aluna 5 se
apropria do verbo e o usa para estabelecer um paralelo entre o corte da hidra e o
corte do cordão umbilical; entre o não-humano e o humano. Uma vez cruzada a
fronteira em direção ao ser humano, a aluna 6 pôde, por sua vez, tomar as rédeas
do mesmo verbo, “cortar”, e utilizá-lo de forma não-literal, tecendo um comentário
sobre a condição humana no mundo, segunda ela, marcada pela dor.
Em seguida ao relato das conexões entre as imagens feito pelos alunos, pedi-
lhes que descobrissem o poema, retirando o papel branco de sobre o texto e o
lessem.
Oh, that I could by any
chemic art
to sperm convert my spirit and
my heart,
That at one thrust I might my soul translate
And in the womb myself regenerate!
There steeped in lust nine months I would remain,
Then boldly fuck my passage back again. (Wilmot, 2002)
107
Após cinco minutos de leitura silenciosa, pedi que escolhessem palavras que
considerassem importantes, relevantes, interessantes. Chamei-lhes a atenção para
o bolso de plástico contendo pedaços de papel celofane de diversas cores e falei
que, sobre as palavras escolhidas, deveriam colocar um pedaço de celofane e se
preparar para justificar sua escolha. Dei-lhes dez minutos para que executassem
essa tarefa e depois abri novamente a discussão para que pudessem compartilhar
as palavras escolhidas e suas justificativas.
Os alunos iniciaram o debate no nível em que a conversa anterior tinha
parado, ou seja, com elementos de ambigüidade:
Professor (10
minutos depois)
Agora eu quero ouvir vocês!
Aluno 8 Eu escolhi “womb” (útero) e “regenerate” (regenerar) porque o autor parece
querer voltar para o começo da vida e fazer coisas... e fazer as coisas que ele
não fez e gostaria de ter feito.
Aluno 4 Acho “thrust” (estocada) interessante...
Professor Por que?
Aluno 4 Porque ao mesmo tempo que tem a ver com... com o ato sexual, com a
penetração, tem a ver com golpe... com morte. Tipo quando alguém vai
esfaquear alguém... Tem um duplo sentido... Vida e morte...
Aluno 8 Eu escolhi “womb” e “regenerate” porque o autor parece querer voltar para o
começo da vida e fazer coisas... e fazer as coisas que ele não fez e gostaria
de ter feito.
Curioso notar que a ambigüidade em questão se refere ao ciclo de vida e
morte, que foi bastante discutido na primeira atividade, dando margem a que se faça
alusão à existência de uma comunidade interpretativa em que uma linguagem
própria começava a se delinear. Ou seja, o próprio conceito de comunidade
interpretativa parece ganhar uma dimensão processual. A comunidade não seria
apenas uma função da identidade de seus membros, um amálgama relativamente
estável de seus gêneros, classes sociais, históricos familiares, conhecimentos
prévios, etc., mas algo que, como as identidades de seus membros, está em
processo, em construção.
108
O breve diálogo que se seguiu manteve o mesmo padrão de interferência de
uma voz sobre outra, de uma construção de sentidos baseada na visão não apenas
da pessoa que se pronunciava, mas também nas falas de seus pares. O diálogo
constante, no qual cabiam concordâncias e discordâncias, começa a funcionar como
um processador de sentidos, transformando e informando o olhar dos leitores na
medida em que mais elementos interpretativos eram trazidos a público. No diálogo,
não eram só os sentidos que eram processados, mas os papéis exercidos pelos
leitores. Não se pode dizer que a atuação dos leitores num evento de leitura
conjunta se limite ao papel de Perseus. Suas falas atuam de formas variadas no
processo interpretativo. Um leitor pode também exercer o papel de Curador-Atena
em relação a outro leitor, quando se apropria dos instrumentos e os dá um novo uso.
Quando eu pergunto sobre o impacto que as atividades que acompanharam a leitura
tiveram sobre as coisas que foram ditas, um dos alunos (aluna 9) parece, ao
questionar a validade desse instrumental, mudar a natureza mesma do instrumento:
Professor A gente não vive sem desejo, não é isso? Bom, agora eu queria que vocês
pensassem em tudo o que fizemos desde o começo até agora. De que forma
essas atividades que precederam a leitura do poema, o modo como pedi que
lessem podem ter ou não interferido na leitura de vocês?
Aluno 8 A gente talvez não tivesse dito as mesmas coisas...Talvez a gente não
tivesse tido tantas idéias...
Aluna 9 Talvez essas imagens tenham restringido nossa leitura, nos guiado...
Professor Talvez sim... Mas eu me pergunto se, caso não houvesse as imagens
impressas no papel, se a gente não ia recorrer a outras imagens que fazem
parte do nosso repertório de imagens e que estão guardadas na nossa
memória...
O questionamento da aluna é muito importante e gera uma pergunta para a
qual eu penso não haver respostas conclusivas: até que ponto o fato de uma leitura
ser curada interfere de forma negativa no processo de leitura, tirando, ao invés de
ajudar a construir, a liberdade do leitor? Penso que a pergunta em si é mais
interessante do que as respostas que possa gerar. Em primeiro lugar, em função de
109
a liberdade do sujeito ser, no mínimo, relativa, como discutido no capítulo 2. Em
segundo lugar, acredito que o fato de a aluna estar fazendo a pergunta é positivo em
si mesmo, porque denota uma reflexão sobre o ato de ler e a construção de
significado que, se não liberta o sujeito (em paradoxo com a crítica feita) dá-lhe mais
poder, porque o torna consciente de que existem mais forças em jogo no gesto
interpretativo do que apenas o leitor e o texto. E se a curadoria pedagógica, nesse
caso, serviu para provocar esse questionamento, ela já cumpriu o seu papel de
escudo (cf. discussão sobre ZDP, p.82 e seguintes)
Voltando, aliás, ao esquema da CPL, vemos os personagens do mito da
Medusa tomar vida no breve momento descrito acima. Como sugerido no capítulo 2,
os leitores podem ser comparados a Perseu em sua tarefa de decapitar a Medusa.
Esta é a personificação do texto, em sua natureza monstruosa, isto é, polissêmica
em seu hibridismo: assim como a Medusa é composta de partes de mulher,
serpentes, peixe e pássaro, o texto é atravessado por sentidos variados que podem
ser costurados pelos leitores. Para que essa produção de sentidos seja possível,
porém, é necessário que haja um par mais competente, representado no mito por
Atena. No caso em questão, o papel de Atena é exercido, a princípio, pelo professor.
Não é difícil reconhecer o paralelo: Atena quer ajudar Perseu a escapar da
petrificação e, para tanto, lhe dá um escudo. Mais do que isso, conversa com o
herói sobre como usar o instrumento, dizendo-lhe que o use de forma subversiva,
isto é, não como escudo, mas como espelho. O professor tem a intenção de catalisar
a produção de sentidos a partir de um texto. Para tanto, idealiza escudos. No caso
do evento descrito, o escudo é plural em si mesmo, constituído de várias facetas: as
imagens, as canetas coloridas, o bolso de plástico transparente com pedaços
coloridos de papel celofane dentro. Assim como Atena, o professor conversa com os
110
leitores sobre o uso que espera que seja dado aos elementos-escudo com os quais
devem tentar ler o poema.
3.2 Curadoria de um conto
O evento de curadoria descrito a seguir se deu com um grupo de seis
pessoas (incluindo a mim, que fiz o papel de curador). Dois membros estavam
ausentes. O evento ter duração de aproximadamente três horas. Participaram do
grupo as seguintes pessoas (os nomes foram alterados):
Carlos, 32 anos, professor de história e diretor de uma escola particular
em Niterói. Carlos casou-se recentemente com Joana;
Joana, 27 anos, administradora de empresas;
Felipe, 39, engenheiro naval de uma multinacional, casado com Marta,
com quem tem dois filhos, Breno e Hugo, de 4 e 6 anos
respectivamente;
Marta, 34 anos, advogada;
Ana, 33 anos, formada em marketing e atualmente desempregada.
Esse grupo se reúne semanalmente na casa de Felipe e Marta para estudar
filosofia e literatura. Os encontros acontecem às segundas-feiras a partir das 21:00.
A dinâmica do grupo é, porém, diferente da curadoria por mim coordenada. Não
costuma haver uma pessoa responsável pela condução do debate, papel exercido
por mim no evento descrito a seguir. Embora eu tenha tentado me colocar à margem
dos acontecimentos, em alguns momentos exerci certa autoridade sobre os rumos
das atividades que o grupo acatou, em função de saberem que se tratava de
geração de dados para uma pesquisa de mestrado.
O evento pode ser dividido em quatro momentos que chamei de:
111
1. Feira de histórias
2. “Tempestade de Gelo”
3. Roda de Leitura
4. Matando a Medusa
3.2.1 Feira de Histórias
Ao convidar o grupo para participar do evento de curadoria, pedi que
trouxessem uma ou mais fotos de família e que estivessem prontos para contar uma
história sobre essa(s) foto(s). Quando chegaram, sentamos à mesa da sala e dei
para cada membro do grupo uma folha de papel A4 colorida, bem como canetas
hidrográficas de diversas cores. Pedi-lhes que montassem uma espécie de pôster
com a foto, ou fotos, que haviam trazido, pensassem em uma ou mais histórias que
poderiam ser ilustradas pelas imagens e, partir da história, pensassem em palavras-
chave que pudessem, de certa maneira, resumir o conteúdo das histórias por trás
das fotos de família. Eles deveriam arrumar as fotos sobre o papel colorido e, em
seguida, escrever as palavras-chave no espaço que restasse, tendo um pôster como
resultado final.
Num grupo maior, eu pediria aos alunos que pregassem seus pôsteres nas
paredes da sala. Depois, dividi-los-ia em “A”s e “B”s. Num primeiro momento, pediria
que os alunos “A” ficassem fixos perto de seus trabalhos e que os alunos “B” se
movimentassem pela sala, conversando com os donos dos pôsteres em “exposição”
seguindo algumas instruções. O alunos “visitantes” deveriam se aproximar de um
pôster de cada vez e tentar adivinhar a história de família que o dono do trabalho
tem a contar olhando tanto para as fotos, quanto para as palavras que as rodeiam. O
dono do trabalho deveria ouvir a tentativa do visitante e confirmar, negar e corrigir
112
quando necessário. Eu daria de quinze a vinte minutos para que os alunos “B”
pudessem interagir com o maior número de histórias possível. Em seguida, eu
repetiria o processo, mas dessa vez os alunos “B” estariam parados junto a seus
pôsteres, enquanto os alunos A circulassem pela sala ouvindo histórias de família.
Como esse era um grupo pequeno, assim que eles terminaram a tarefa que
lhes havia dado, pedi que trocassem os pôsteres e os deixassem sobre a mesa onde
todos podiam vê-lo. A partir de então, estabeleci uma rotina: primeiro o indivíduo
tentava adivinhar a história do pôster que tinha diante de si e depois o dono da
história confirmava, negava ou corrigia, se necessário.
A atividade durou bastante tempo, quase uma hora. No início, as pessoas se
detiveram mais nas palavras e não contaram histórias. Mas eu fiz algumas
intervenções, pedindo que tentassem contar uma história a partir da foto, algo que
tenham ouvido falar ou que viveram com as pessoas das imagens e não demorou
para que cada pessoa lembrasse de pelo menos uma história que considerasse
importante envolvendo os familiares das fotos. Por exemplo, ao falar de suas
próprias fotos, Joana faz um comentário que me dá uma oportunidade de pedir que
conte uma história:
Joana A foto do meio também, tudo a ver como que você falou... Essa foto foi de
uma viagem que a gente fez pra...
Curador Isso, conta essa história, dessa viagem...
Em outro momento, Carlos estava falando de seus avós, e pedi que contasse
uma história qualquer. Não foi difícil para ele lembrar de mais de uma história
rapidamente.
Curador Conta uma história aí...
Carlos Uma história deles? Dos dois?
Curador É.
Carlos Ah, eu lembro um tio meu que levou a vida toda como um “bom vivant”,
gastou muito dinheiro, teve grana e perdeu tudo... e meu avô nunca teve
grana e... por conta disso internou minha mãe, minha mãe ficou internada
113
numa escola não sei por quantos anos e tal... E aí esse meu tio, que era o tio
que eu... até hoje, tenho dois tios por parte de mãe...Esse tio eu nunca tive
afeto nenhum em funcão das histórias que minha mãe contava. E, aí eu
lembro que ele ficou num perrengue danado, ninguém da família queria
ajudar... e eu lembro do meu avô batendo na mesa, nos encontros de família,
meu avô batendo na mesa dizendo que ele ia ajudar o filho dele,
independente do que tinha feito, independente do que tinha acontecido e que
se ninguém queria ajudar, que ele amanhã, no dia seguinte da história, ele
estaria arregaçando as mangas pra poder construir a casa do meu tio no
quintal da casa dele. Foi uma força, assim, sabe? Foi uma liderança que
mobilizou a família toda pra... quem podia comprar um tijolo comprou, quem
podia... eu achei... isso me marcou bastante, por exemplo. Ele tinha todos os
motivos do mundo para não ajudar esse filho, todos os motivos. Racionais,
emocionais...mas mesmo assim ajudou.
Em seguida, enquanto Felipe falava sobre suas fotos, fiz a mesma proposta –
perguntar se havia ali alguma história – e ele prontamente começou a contar
histórias.
Curador Você vê alguma história aí?
Joana Não. Não vejo uma história não... mas eu acho que aqui era um momento
bem legal... assim...algum lugar que eles estavam, em algum momento ou...
não sei... de férias... ou final de semana... um gramado aqui, você que é um
lugar arborizado, é um lugar diferente da onde a gente vive no dia a dia da
cidade, é um lugar diferente daqui – todo de mundo de camisa... – já aqui eles
estão bem...os três totalmente descontraídos. É isso...
Felipe É... essa é a história até agora dos meus últimos seis anos de vida. Eu acho
que com a chegada do Hugo, do Breno... é uma história nossa... é uma
história minha enquanto pai que estou tendo a oportunidade de viver... Os
dois me dando a oportunidade de ser o pai deles... É uma história que eu
gostaria de contar de uma maneira diferente daquela que eu tenho contado
na minha vida... enquanto meu pai... da maneira que era a relação do meu pai
comigo. É... que de certa forma hoje eu lamento ter sido algo um pouco mais
frio, um pouco mais distante... que eu não gostaria que fosse com os dois...
com Hugo, com Breno... Então eu acho que essa é uma história que a gente
tá construindo junto. A gente tá construindo nos momentos em que a gente
brinca, nos momentos que eu jogo bola com eles, nos momentos em que a
gente faz tantas outras coisas... que eu estou construindo também nos
momentos em que eu não faço e que são oportunidades que às vezes eu
penso... poxa, deixei passar aquele momento e podia ter sido bom, podia ter
sido bom, podia ter sido melhor e eu podia ter dado um pouco mais de mim...
Enfim, mas é uma história que tem sido muito legal para mim, muito
prazerosa... Uma conquista de uma família. É... uma saudade que eu sinto
deles quando eles se separam... quando eles se separam de mim... Eu fico
quieto, eu não falo mas eu sinto falta. Na ausência deles, da bagunça. Nesse
momento essas tarefas todas... eu queria realmente que a gente fosse muito
unido. Que eu acho que essas fotos representam muito bem isso... essa
história que eu gostaria de contar, que eu venho tentando contar... que é
exatamente da gente junto, da gente perto um do outro...
114
Ao final de suas histórias, Felipe fala de um pensamento recorrente para ele,
que é a recente consciência de que deve aproveitar seus filhos enquanto são
pequenos e dão a ele uma grande importância, já que, segundo ele, isso é uma fase
que vai ser logo substituída pela vida social dos meninos, onde os pais já não
costumam ser uma prioridade. Nesse momento se emociona e surpreende a todos,
pois é tido pelo grupo como uma pessoa que não costuma falar muito de si.
Carlos Eu muito interessante você falar isso... Eu já ouvi você falando uma meia
dúzia de vezes que eles vão alçar vôo... Eles muito pequeninhos... você já de
certa forma angustiado...
Felipe É, não chega a ser uma angústia, Carlos,
Joana É uma separação...
Felipe É, não chega a ser uma angústia... eu não fico angustiado. Mas...é...é muito
curioso porque esses dias a gente ficou esse tempinho agora com Hugo e
Breno na casa dos avós lá em São Fidélis. E a casa fica uma paz, né Marta?
A gente sente falta desse... o fato dos dois estarem em casa é... sinônimo
de... a casa vai estar desarrumada, vai estar tudo uma bagunça, é gritaria, é a
gente se descabelando, é a hora do banho, é a hora do almoço, é um que
não come, o outro que não quer tomar banho... é um que cai e se machuca,
correndo pela casa...mas é alegria, é alegria...a gente entende realmente os
pais que depois de anos e anos nesse movimento e os filhos vão embora... e
aí... caramba... o que é que eu faço?
Joana Cai a ficha né...
Felipe Cai a ficha... o que é que você faz? Porque eles vão alçar vôo, eles vão...
sem dúvida alguma vai chegar o dia em que eles vão querer ter a casa deles,
não vão querer mais morar com os pais, o pai vai ser um inconveniente...pô
pai, não quero que você controle a hora que eu vou chegar em casa, não tô
mais na idade de ficar dando esse tipo de satisfação... e a gente fica vendo,
olhando para os nossos pais... tem hora que eu olho para os meus pais e eu
digo assim, é... a música “Como os Nossos Pais”... ela é... como os nossos
pais mesmo...tem tudo a ver. Porque a gente vai cobrar as mesmas coisas, a
gente vai falar as mesmas coisas, a gente vai repetir as mesmas coisas. Mas
vai chegar em que eles não vão mais estar aqui com a gente num convívio
diário... vão estar por telefone, vão estar na casa deles, ou não vão estar, a
gente não sabe. Mas eu queria nessa história deixar marcado. Queria que...
[se emociona, faz longa pausa]
Carlos Fala...
Marta Tá tentando...
Felipe ...que lá no futuro, quando eles já estivessem adultos, né, com a minha
idade... [se emociona, outra pausa]... bom... que eles olhassem para essas
fotos e...e pensassem... que tiveram um pai legal...
Joana também surpreendeu ao falar de seu pai. Ela é, como Felipe, uma
pessoa bastante reservada e ouve mais do que fala. Além disso, seu pai separou-se
de sua mãe quando ela ainda era uma criança e, até onde se sabia, a relação deles
115
baseava-se em encontros esporádicos, e, embora ela mesma nunca tenha
reclamado de não ver tanto o pai quanto gostaria, sabemos através de Carlos que
ela se ressente da ausência do pai em sua vida.
Aos poucos, o grupo foi entrando no “jogo” e a atividade se transformou
verdadeiramente numa feira de histórias. Interessante notar que três dos membros
trouxeram a questão da paternidade para o centro do debate, tema esse que foi
muito bem recebido pelo grupo e que veio a calhar para o objetivo da atividade, que
era justamente sensibilizar e equipar o grupo para falar da relação entre pai e filhos.
3.2.2 Tempestade de Gelo
Em seguida à “feira de histórias”, mostrei para o grupo uma ilustração dos
super-heróis conhecidos como “Quarteto Fantástico” e perguntei o que sabiam sobre
esses personagens. Embora a maioria não fosse propriamente fã nem dos
quadrinhos, nem da série de TV, nem do filme lançado em 2005, o grupo sabia o
básico sobre o time de heróis: que eram um grupo de cientistas que ganharam
super-poderes num acidente enquanto estavam realizando experimentos no espaço
e foram expostos a uma quantidade muito acima do normal de raios cósmicos. Havia
dois motivos pelos quais eu quis trazer a imagem desses heróis para o evento de
leitura em questão.
Em primeiro lugar, trata-se de uma família. Reed Richards, o Homem Elástico
e líder do grupo, é caso com Sue Storm, a Mulher Invisível cujo irmão, Johnny
Storm, também é pesquisador do grupo de Richards e de transforma no Tocha
Humana após o acidente. Até quem não tem laços consangüíneos cumpre o seu
papel de agregado, que muitas famílias possuem. É o caso de Ben Grim, o amigo
rabugento da família e que passa a ter a identidade de Coisa. Além disso, a figura
116
paterna, que é um dos temas centrais do conto e foi um tópico muito presente na
discussão inicial, tem uma marca heróica muito forte. Para meninos e meninas de
muitas culturas, a figura do pai é também a figura de um modelo, de um ídolo. A
ponte com uma família de heróis que tem um quê de pessoas comuns (eles não
adotam identidade secreta, o que, em parte, se deve ao fato de não se considerarem
tão especiais que precisem de uma) ajuda a construir um paradoxo que mais tarde
pode ser usado pelo curador para problematizar a identidade heróica do pai: ao
mesmo tempo em que reforça esse arquétipo do herói por razões óbvias – trata-se
de super-heróis, afinal – também ajuda a desconstruir essa mesma idéia, uma vez
que eles brigam, têm ciúmes, são, às vezes, pouco altruístas, têm inúmeras
fraquezas, ou seja, contradizem o típico estereótipo de heróis à la Super Homem.
Em segundo lugar, a imagem do Quarteto Fantástico era, por sua vez, uma
introdução à cena de dez minutos do filme “Tempestade de Gelo” que seria
mostrada logo em seguida.
O filme, uma produção norte americana de 1997, é baseado no romance
homônimo do escritor Rick Moody, publicado em 1994, e dirigido por Ang Lee. Nele,
uma família disfuncional de classe média alta de New Canaan, Connecticut, lida com
turbulências internas – frieza, distanciamento, traição, adolescência – e externas, já
que a ação se dá no feriado de ação de graças de 1973, quando os Estados Unidos
estão sendo chacoalhados pelo escândalo do Watergate. O filme se desenrola não
só em torno da reunião da família, o que nem sempre acontece porque o filho mais
velho estuda em Nova Iorque, mas também de uma grande tempestade de gelo, a
maior dos últimos anos, cuja força, ao mesmo tempo bonita e assustadora, serve de
cenário físico e psicológico para a trama.
117
A cena mostrada transcorre nos dez minutos iniciais do filme. Embora a
grande tempestade ainda não tenha ocorrido, a temperatura está baixíssima. Paul, o
filho mais velho está a bordo do trem que o leva de volta para casa a fim de passar o
feriado prolongado com a família. A história começa em meio a um corte de energia.
A primeira tomada mostra as rodas congeladas de um trem apagado. De repente, as
luzes voltam e o trem, muito lentamente, começa a se mover. Ouve-se, a princípio, o
barulho do gelo quebrando sobre as rodas de ferro e as faíscas de eletricidade
produzida pelos contatos dos vagões com os fios que os abastecem de energia.
A câmera focaliza o interior vazio do vagão onde se vê Paul, segurando um
exemplar de uma revista em quadrinhos. Trata-se do Quarteto Fantástico. A voz de
Paul em off narra a situação difícil pela qual o grupo de heróis está passando e tece
um comentário sobre o fato de se não se tratar de heróis como os outros, mas de
uma família.
Paul [Voz em off] No número 141 da revista do Quarteto Fantástico
publicado em novembro de 1973, Reed Richards teve que usar a arma
de antimatéria em seu filho, a quem Annihulus tranformara numa
bomba humana. É uma situação típica para o Quarteto Fantástico
porque eles não se pareciam tanto com os outros super-heróis... eles
se assemelhavam mais a uma família. Quanto mais poder adquirem,
mais podem causar danos uns aos outros sem nem mesmo se dar
conta disso. Esse é o significado do Quarteto Fantástico. A família é
uma espécie de antimatéria pessoal. A família é o vácuo do qual você
emerge e o lugar para onde volta quando morre. Aí está o paradoxo:
quanto mais ela te atrai, mais fundo você afunda no vácuo.
A metáfora da antimatéria é um ponto crucial no filme e, entre outras
possíveis interpretações, parece estar falando de identidade e subjetividade, duas
questões que, como ficará mais claro adiante, ganharam destaque na hora de
discutir o conto de Greene e as possíveis relações entre o texto do escritor inglês e
as atividades que precederam a leitura. A análise do filme e de suas possíveis
relações com o conto serão tratadas mais adiante.
118
3.2.3 Roda de leitura
Em seguida ao filme, o qual não foi imediatamente comentado, sentamo-nos
novamente à mesa e, cada um com sua cópia, lemos o conto em voz alta.
Trata-se da história de Jerome, um menino de oito anos que idolatrava o
próprio pai, um escritor de livros de viagem que levava uma vida bastante comum,
quase sem graça. Jerome, no entanto, fantasiava a respeito das possíveis
atribuições do pai, imaginando-o um espião, praticamente um herói, que levava uma
vida cheia de aventura e risco. Até que Jerome, ainda criança, recebe a notícia de
que seu pai havia morrido num acidente de rua em Nápoles. Jerome imagina que o
pai deve ter morrido num tiroteio e dado trabalho antes de ser finalmente abatido
pelo “inimigo”. Na verdade, a história foi bem menos lisonjeira: enquanto andava
pelas ruas da cidade italiana, o pai de Jerome foi atingido por um porco habitante de
uma sacada do quinto andar de um edifício. Aparentemente, o porco engordou
demais e a sacada cedeu sob o peso do animal. Para espanto do diretor, a primeira
reação de Jerome ao saber que acabara de ficar órfão foi perguntar o que tinha
acontecido com o porco.
Jerome havia não só perdido o pai, como este havia falecido de forma
absolutamente ridícula. Jerome logo descobriu que a história do falecimento do pai
não podia ser contada para qualquer pessoa, nem de qualquer forma – ninguém que
a ouvisse conseguia disfarçar a vontade de rir, o que tornava o luto de Jerome ainda
mais duro. O rapaz desenvolve, com o tempo, métodos de contar como o pai
morreu. Narra o evento de forma prolixa a fim de que o ouvinte fique tão entediado
que, no momento crucial da história, já não está mais prestando atenção em nada,
ou de forma tão sucinta que a pessoa não chega a entender o que realmente
aconteceu.
119
O tempo passa e Jerome, agora um homem, perito contador, cuja vida talvez
se assemelhe ao do finado pai na regularidade, rotina e previsibilidade, está noivo.
Não está particularmente apaixonado por Sally, é um amor, se é que é amor,
tranqüilo. O problema é que ela não sabe a história de como o pai de seu noivo
morreu e Jerome teme que, ao saber, caso ela ria de como tudo aconteceu, ele
simplesmente não queira mais casar-se. Dentro de alguns dias, Sally seria
apresentada à tia de Jerome, que sempre acabava contando a história da morte do
irmão da pior forma possível, abrupta, sem nenhum tipo de floreio que tornasse a
coisa toda um pouco menos patética. Para alegria de Jerome, no entanto, Sally não
acha nenhuma graça na história – ela talvez seja a única pessoa até aquele dia que
nem sequer esboçou um sorriso ao entrar em contato com a história do porco. No
carro de volta para casa, Sally está pensativa, aparentemente bastante abalada com
a história que tinha ouvido da tia de seu noivo. Jerome diz que gostaria de saber o
que passa pela cabeça dela, ao que ela responde que se perguntava o que tinha
acontecido com o porco... Jerome sorri e responde que provavelmente foi devorado
no jantar.
Como curador desse conto, fui, em primeiro lugar, seu leitor. Baseado na
multiplicidade de fatores que me constituem como um ser biológico, histórico, social,
cultural, fiz escolhas de temas que considerei importantes no universo da narrativa
de Greene.
O primeiro deles é a questão paterna e sua influência sobre a formação da
identidade do sujeito. No conto, a figura do pai é tão central que dispensa um nome,
ele é simplesmente “o pai”. Essa presença parece estar sublinhada pela ausência de
qualquer referência a respeito da mãe, que simplesmente não existe no conto, é
120
como se Jerome tivesse sido gerado apenas por seu pai, por reprodução
assexuada. Metaforicamente, parece ser bem esse o caso.
O processo de “gestação” paterna no conto, e esse é outro tema escolhido
por mim, parece acontecer através das histórias que se contam a respeito dele. Esse
tema se desdobra para o fato de que somos todos narrativas que se acumulam com
o tempo e deitam suas camadas sobre nós dando-nos os contornos que nos
definem. A história do pai de Jerome, como bem colocou Marta, é a história de
Jerome. Enquanto a última história do pai, a da sua morte, se parecesse mais com
uma piada do que com uma tragédia, enquanto a história do porco o transformasse
em bufão mais do que herói, a identidade de seu unigênito, Jerome, também se
apequenava.
A dupla morte do sujeito, dessa forma, é conseqüência do fato se sermos
narrativas – a morte física e a morte da possibilidade de se contar histórias sobre a
pessoa. Enquanto piada, o pai de Jerome era para ele não só uma pessoa morta,
mas uma memória morta, uma história que não valia a pena ser contada. A trajetória
do pai no conto de Greene, a meu ver, sofre um processo de intermitente
humanização e desumanização – e aí o tema do herói aparece com força total.
Explico: etimologicamente, “humanidade” vem de húmus, terra. “Terra”, por sua vez,
remete à processo, à agricultura, ao tempo da semeadura, do crescimento, da
colheita. Ser humano tem a ver tanto com o mito bíblico da gênese, no qual o criador
sopra vida na terra, quanto com o fato do homem-húmus ser um processo, uma
criatura histórica. Dessa maneira, tudo o que nos tira da história, do processo, pode
ser considerado um processo de desumanização. Isso pode ser dar tanto por uma
super-humanização, quanto por uma sub-humanização.
121
O pai começa desumanizado através de um processo de super-humanização
que o transforma em herói, mas o afasta do próprio filho que, em verdade, não o
conhece. A partir do encontro fatal (para ambos) entre o porco e o pai, esse último
continua desumanizado, mas dessa vez por um processo de sub-humanização.
Existe uma identificação entre o porco e o pai, que vira uma piada, uma história
menor. Somente quando Sally pergunta o que aconteceu com o porco, ela libera
Jerome para conhecer o próprio pai, ressuscita o pai enquanto memória e humaniza-
o: Jerome pode até rir agora, pode até ser espirituoso, existe uma leveza. Na piada,
havia a gargalhada e o fim. A piada como jogo segue a uma regra segundo a qual
depois do ápice, vem a gargalhada e depois o fim. A regra não prevê continuidade
na história. Na ironia, que Jerome aparentemente recupera, há o riso, mas há outras
coisas também. O pai recupera sua humanidade, e, por contigüidade, Jerome
também. Esse é um outro tema cuja a abordagem eu tentei facilitar através das
atividades que propus no papel de curador.
Fosse eu outra pessoa, provavelmente teria feito escolhas mais ou menos
diferentes. Mas creio ser importante explicitar essas escolhas de aspectos do conto
que, do meu ponto de vista, mereciam atenção porque foram elas que guiaram
minha curadoria. Pensar essas questões, falar sobre elas, era o objetivo do evento
de leitura. Não falar sobre elas, aos meus olhos de curador, era “perder” para o
conto-Medusa, como se tivéssemos entrado numa sala cheia de brinquedos sem
brincar com nenhum deles, sem tocar em nada. A imagem da sala de brinquedos
parece dar conta de dois aspectos do ato de ler que não deixam o leitor perder uma
necessária humildade em relação a esse processo tão complexo. Se o leitor tem
algum tipo de poder a mais do que um leitor comum – sendo ele um professor, um
122
idealizador de currículos, um crítico literário, enfim, um curador – então essa
humildade é ainda mais bem-vinda.
O primeiro desses aspectos tem a ver com uma questão abordada ao longo
de todo o trabalho: assim como os brinquedos (palavra que, em português, é, de
forma curiosa, um quase que particípio do verbo brincar) existem em função das
pessoas que com eles interagem, o conto é algo com o qual faremos alguma coisa.
Ou seja, como curador, pretendo ser apenas um organizador de possíveis jogos de
leitura (cf. cap.2) mais do que alguém que diga pretenda enumerar, a partir da
definição do que cada brinquedo é, uma lista finita de formas de se usar cada um
deles. O segundo aspecto da metáfora do brinquedo é uma conseqüência natural do
primeiro: por mais criativo que o curador seja na hora de propor formas de brincar,
por mais mirabolantes, divertidas, encantadoras sejam as regras por ele elaboradas
para que os brincantes usufruam ao máximo as potencialidades dos brinquedos,
ainda assim e sempre, haverá sempre a possibilidade de brincar diferente. Alguém
pode muito bem argumentar: não brincar pode ser um jogo em si; olhar diretamente
para a Medusa e virar pedra é uma possibilidade. É verdade. Porém, como curador-
educador, num mundo onde forças cada vez mais poderosas pressionam o sujeito a
fim de que esse participe cada vez menos das decisões que definem o estado das
coisas, estou inclinado a acreditar que não brincar, permitir-se petrificar em inação,
não parece ser uma opção adequada para pessoas que almejam ter alguma, ainda
que mínima, ingerência sobre a própria vida e sobre o estado das coisas.
Assim, as atividades que precederam a leitura do conto foram uma forma de
propor maneiras de ler o conto, sugestões de regras para usar o conto, e nada mais.
Deve haver muitas outras formas de usar esse conto, sem dúvida alguma melhores
do que as que idealizei. Em defesa das minhas propostas só tenho a dizer que, por
123
piores que sejam, elas tratam o encontro do leitor com o texto como um manancial
inesgotável de realizações e prestam uma homenagem ao herói que não teme o
encontro com o monstro, mas também ao monstro, que nunca se rende totalmente
aos ataques do herói. A análise de como os Perseus do evento de leitura de Um
Acidente Chocante usaram os escudos para se aproximar do texto será feita na
próxima seção.
3.2.4 Matando a Medusa
A análise do evento de leitura do conto do Greene consiste na tentativa de
identificar de que maneira os três temas pensados por mim como os alvos da
curadoria aparecem na interação entre os leitores. Ou seja, se os tópicos cujo
aparecimento tentei provocar através das atividades anteriores à leitura (os
“escudos”de Perseu) retornam durante a conversa sobre o conto. Os temas são os
acima citados, quais sejam:
1. A figura dos pais, em especial a paterna, e o papel que desempenham na
formação do sujeito.
2. A natureza processual, narrativa do sujeito. A dupla morte do pai no conto:
como pessoa e como memória, história.
3. O processo de humanização do pai e, por conseqüência, de Jerome, no
conto.
3.2.4.1 A influência dos pais
A figura paterna começa a ser discutida desde muito cedo no evento de
leitura em questão. Logo no começo, quando Joana está falando sobre suas fotos,
ela diz:
124
E a última foto, que você falou de quem para quem, eu pensei do
meu pai para mim e, na verdade assim, não tem aquela parte da
continuidade porque eu pensei mais na fase da infância.
A figura do pai, dentro do universo de personagens mostradas pelas fotos,
aparece como uma marca da infância, uma memória que a participante credita como
estando isolada no período infantil, sem grandes ligações com o presente, o que tem
um valor paradoxal. Por um lado, o fato de essa imagem não estar inserida numa
linha de continuidade com o presente parece dar a ela uma importância menor do
que as outras que estão vivas na atualidade. Por outro, essa separação inscreve
essa memória num contexto à parte, leia-se, especial – uma imagem que foi retirada
do cotidiano, do concerto de coisas mundanas e corriqueiras, e alçadas ao status de
valioso souvenir, sem “valor prático”, mas com altíssimo valor afetivo.
Vale lembrar que a categoria “continuidade” da memória, quer dizer, até que
ponto uma imagem do passado tem ligações explícitas com o presente, foi uma
colocação de Marta ao analisar o pôster da Joana e, partir dessa menção, continuou
presente nas discussões até o fim da atividade, num claro exemplo de polifonia
bakhtiniana, quando ele diz: “As palavras do outro assimiladas (‘minhas-alheias) que
têm eternamente, renovam-se criativamente em novos contextos...” (Bakhtin, 2003,
p. 408). Tanto que quando ela própria, Joana, está analisando o pôster do Felipe,
volta a usar o mesmo termo que, para ela, era novidade: “também pensei nesse ciclo
de dar continuidade...também pensei no uniforme do Fluminense, de dar
continuidade ao pai (risos).”
Esse tema também aparece com bastante freqüência na fala do Felipe,
apenas com um acréscimo de perspectiva e uma mudança de ênfase: além de falar
do próprio pai, ele fala dos filhos e do seu papel na vida deles.
É uma história que eu gostaria de contar de uma maneira diferente
daquela que eu tenho contado na minha vida... enquanto meu pai...
da maneira que era a relação do meu pai comigo. É... que de certa
125
forma hoje eu lamento ter sido algo um pouco mais frio, um pouco
mais distante... que eu não gostaria que fosse com os dois... com
Hugo, com Breno... (...) Eu acho muito legal porque eles se
identificam comigo, eu sinto que eles querem, almejam ser um pouco
do que eu sou, da maneira que eu sou... Então nessas simbologias
de ser Fluminense e também vestir a roupa do Fluminense e falar
que está igual...
Existe nessa fala uma prefiguração da relação de Jerome com o pai. Talvez
por também querer parecer-se com pai, Jerome tenha desistido de contar a história
do pai, que via como sua. Logo, se o pai tinha se transformado num personagem
risível, esse traço respingava no próprio Jerome, na concepção que esse último fazia
de si mesmo. Ou seja, esse “almejar” ser como o pai é um traço identificado por
Felipe nos filhos que vai depois aparecer na conversa sobre o texto para descrever
um de seus personagens centrais. Essa idéia da figura do pai entrando como
importante ingrediente na construção do sujeito aparece mas tarde na fala da Marta,
referindo-se ao conto de Greene: “a vida dele passou a ser o evento ‘morte do pai’. A
morte do pai dele era a história dele...”
Até que ponto a participação do Felipe foi determinante para isso não há
como saber. Ainda que seja uma coincidência, é provável que a fala do Felipe tenha
servido de contexto para o conto de Greene. Não é difícil, mais uma vez, fazer a
ponte com Bakhtin:
O texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no
ponto desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva
prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo. (Bakhtin, 2003, p.
401)
É particularmente interessante a idéia de que o encontro entre textos – e,
para deixar claro, estou entendendo as falas dos participantes como textos – pode
gerar sentido através do tempo. Quero dizer, as interpretações que daí surgirem
podem informar a visão do leitor no passado e no futuro. Se, por um lado, o
126
momento em que Felipe fala sobre a influência que tem sobre a formação da
identidade dos filhos e a hora em que Marta diz que, para Jerome, a história do pai
era a história dele, estão separados no tempo, por outro, isso não quer dizer que
não possam agir um sobre o outro.
Há outras duas referências ao papel fundador do pai, talvez provocadas pelas
atividades-escudos. A primeira está também numa participação da Marta,
comentando sobre os personagens do Quarteto Fantástico:
Curador Ele é o adotado, o agregado... Dentro desse estereótipo, dessa palavra que o
Felipe trouxe, que é “família”, dá pra entender porque que o...
Marta ...Homem Elástico é líder? Ele é o chefe de família...
Curador Uma família patriarcal...digamos assim.
A associação tripla de herói, pai e chefe ilumina um outro aspecto da relação
entre Jerome e seu pai: o da adoração. E aí temos a segunda referência, numa
outra intervenção da Marta:
No final do conto, quando eu li... ele verdadeiramente demonstra
estar apaixonado por alguém que revelou ter uma sintonia com ele,
mais ou menos o mesmo modo de pensar. E no conto todo ele
sempre pareceu meio que um peixe fora d’água, as coisas que ele
pensava... É... a distância da convivência familiar... Quer dizer, ele
nunca teve um dia a dia com o pai. E, ao mesmo tempo, ele
admirava o pai, ele idolatrava o pai, imaginava determinadas coisas
que pai fazia. O pai sempre foi uma referência boa para ele. Tanto
que tem aqui “Jerome idolatrava seu pai.”
Há aqui tanto a menção direta da idolatria de Jerome, quanto uma indireta
referência ao fato de a falta do pai significar também para ele um vazio identitário:
como o pai havia se transformado em tabu enquanto história, era como se faltasse a
Jerome uma parte de si mesmo, o que talvez explicasse o fato de sentir-se um
“peixe fora d’água” na interpretação de Marta.
127
3.2.4.2 A Natureza Processual do Sujeito
Tanto a feira de histórias quanto a referência ao Quarteto Fantástico, que se
estende ao filme Tempestade de Gelo, têm uma idéia central que os permeia: a
noção de que o sujeito é uma construção narrativa. Existimos graças às histórias
que contamos sobre nós mesmos e que contam sobre nós. Somos como uma colcha
de retalhos (voltando à idéia do monstro), que são, esses pedaços de tecido, por sua
vez, os vários aspectos de nossa identidade: filhos, irmãos, cônjuges, homens,
mulheres, brasileiros, etc. Em torno de cada um desses papéis de nossas
fragmentadas identidades, existem um sem número de experiências passíveis de
serem narradas que, ao serem de fato contadas, fixam aspectos do “eu” dando-lhe
contornos mais ou menos nítidos.
O conto, ao tratar de um personagem (o pai) cujas histórias estão canceladas,
torna-se, de certa forma, uma metáfora dessa idéia do sujeito-narrativa. É tão
verdade que somos feito de uma malha de anedotas que, na situação hipotética de
ficarmos impossibilitados de contar a nós mesmos (perdemos a voz, morremos
fisicamente) e de sermos contados pelos outros (que, como Jerome, se recusassem
a falar sobre nós), deixamos de existir. É o que se pode entender por a morte dupla
do pai no conto: morre como pessoa e morre como história.
Essa idéia da narratividade aparece no evento de formas variadas. Primeiro
na intervenção do curador que pede, repetidas vezes, que os participantes tentem
ver histórias nas fotos de família. Em seguida nos outros textos, cuja natureza
narrativa é ainda mais explícita do que a das fotos: uma história em quadrinhos e um
filme. Talvez como influência desses fatores – as vozes do curador, dos quadrinhos
e do filme – essa narratividade do eu aparece também nas falas dos participantes.
128
Felipe fala disso ao dizer que gostaria de construir uma “história legal” com os
próprios filhos:
Então eu acho que essa é uma história que a gente tá construindo
junto. A gente tá construindo nos momentos em que a gente brinca,
nos momentos que eu jogo bola com eles, nos momentos em que a
gente faz tantas outras coisas... que eu estou construindo também
nos momentos em que eu não faço e que são oportunidades que às
vezes eu penso... poxa, deixei passar aquele momento e podia ter
sido bom, podia ter sido bom, podia ter sido melhor e eu podia ter
dado um pouco mais de mim... Enfim, mas é uma história que tem
sido muito legal para mim, muito prazerosa...
O uso do verbo “construir” e a noção de que a construção é uma constante,
mesmo quando não se “faz nada” seria um “escudo-espelho” possível para o
momento em que esse mesmo tema fica mais explícito na discussão sobre o que
levou Jerome a perguntar sobre o porco ao saber da morte do pai.
Felipe A reação dele me parece muito estranha porque se alguém diz que aconteceu
isso com alguém que você ama... diz que seu pai morreu e tudo o mais, quais
foram as circunstâncias, etc. Ele foi perguntar sobre o porco, o que aconteceu
com o porco...Sei lá, acho que se fosse comigo a última coisa que eu ia
querer saber era do porco...
Curador Tanto que diretor chegou a achar que ele era o quê?
Felipe Sei lá, doido...
Curador Insensível.
Felipe Insensível, né...Uma situação dessa, vai perguntar do porco! Eu não
perguntaria do porco...
Curador Por que que ele pergunta do porco?
Essa é uma questão... Eu pensei o seguinte... Bom, se o porco sobreviveu,
ainda tenho chance de matar ele...
Todos [risos]
Felipe É um pensamento... a pessoa ficou com raiva da situação...
Curador Mas ele não foi o único a ter essa reação, não é?
Felipe Não, ela também. Foi a única pessoa que teve a mesma reação...
Curador Inclusive fez a mesma pergunta...
Felipe “E o porco? O que que aconteceu com o porco”
Curador E ainda inclui um adjetivo para o porco na hora em que pergunta...
Felipe “O que aconteceu com o pobre do porco” Pois é, enfim, é estranha, né, a
preocupação com o momento ecológico...
Marta Nesse enfoque a gente até pensa se ele amava mesmo o pai...Porque na
verdade era uma idolatria, mas era uma coisa distante...Alguém que se tornou
um perito contador, foi calculista também... a pergunta dele...e ela também,
quer dizer, de repente ele descobriu a, entre aspas, alma gêmea dele...
Felipe Acho que essa é a pergunta desse conto: “O que aconteceu com o porco”?
129
Até que ponto Felipe estava sendo informado pelas atividades anteriores à
discussão do conto ao dizer que “a pergunta desse conto” diz respeito ao que
aconteceu com o porco? O fato é que ele, Felipe, e não o curador, quem introduz
essa questão no debate, e o faz, como bem se vê na transcrição da conversa, de
forma a deixar bastante clara a importância desse dado na interpretação do conto.
De fato, como se vê mais adiante na discussão, o questionamento de Jerome, que
será repetido por Sally no final da história, pode remeter o leitor à conclusão de que,
se somos narrativas, como tal podemos transitar entre gêneros distintos (mais uma
vez a questão da narratividade relacionada à questões de identidade). Se isso é
verdade, a que gênero pertencia o pai enquanto narrativa e que conseqüências isso
teria para Jerome, uma vez que a construção de sua identidade calcava-se na
imagem que fazia do pai.
A busca do grupo por responder essa questão gerou um dos momentos mais
ricos do debate, em termos de ser possível fazer uma clara correspondência entre
os objetivos da curadoria e a produção de sentidos por parte dos participantes.
Primeiro, Carlos, o historiador, entra com sua perspectiva e traz à tona a questão da
historicidade das coisas e das pessoas, fazendo um link entre todas as atividades do
evento:
Joana Um interpretou a história do outro.
Marta É... um considerou também a história do outro, leu...
Carlos Contamos, contamos a história. Tudo tem uma história... se pegar esse
bagulhinho aqui... como é que foi comprado, não sei o que...Tudo, todos os
objetos têm história...pessoas, lugares, tudo tem história...
Aproveitando a deixa, o curador usou esse novo “escudo-espelho” produzido
pelos participantes para tentar responder a pergunta original, sobre Jerome e o
porco:
Curador Tá bom... Se tudo é história, segundo nosso historiador de plantão, que
história que o pai dele era desde o começo...? Que tipo de história é essa?
130
Ele começava contando “meu pai estava em Nápoles...”
Felipe Andando pela rua...
Marta É uma narrativa, né?
Curador Que narrativa é essa? “Meu pai estava em Nápoles andando pela rua... aí um
porco caiu da sacada em cima dele.”
Carlos É uma história cômica.
Curador Uma histórica cômica que tem um nome...é uma história curta, longa,
média...?
Felipe Curta.
Marta É curta.
Curador E tem um nome para história cômica curta?
Marta Piada.
Curador Como é uma piada? Pensa...
Joana A piada você já está esperando que vai ser uma coisa engraçada...
Curador Depende da pessoa. Tem gente que vai contando e quando você vê é uma
piada... Como se conta uma piada?
Marta É surpreender com uma coisa...
Carlos Engraçada
Curador Tem uma supresa...
Marta Tem uma supresa.
Curador Tem um desfecho surpreendente que te faz rir...e depois faz sentido
continuar?
Carlos Não.
Marta Não.
Ana Acabou ali.
Marta Então “e o porco”é uma maneira de tentar continuar a história... não é?
Curador Mas faz sentido continuar uma piada?
Marta Não. Não faz sentido...
Curador Então por que que ele queria perguntar “o porco?”
Carlos Pra não ser uma piada.
Curador Pra humanizar...
Marta Pra dar um sentido...
Curador Pra dar um sentido... Quer dizer, a piada é uma narrativa curta, diferente da
narrativa que vocês fizeram aqui no começo... Compara a piada com a tarefa
de vocês de contar uma história sobre as fotos de vocês...
Felipe É diferente. A piada é, sei lá, é curta, rápida, objetiva. Aqui as nossas
histórias deram volta...foram, voltaram, passearam pelos nossos sonhos...
Carlos A piada tem compromisso com o cômico...
Curador E as histórias que a gente contou não têm compromisso com nada...
Carlos Não.
Voltamos nossa atenção para a natureza narrativa no sujeito e tentamos
estabelecer a que gênero pertencia a história mais importante dentro do conto, a
história da morte do pai. Daí para tecermos um possível explicação sobre a
insistência de Jerome em saber o que acontece, afinal, com o porco, foi um passo
relativamente lógico:
131
Curador A sensação que me deu é que essa história vai continuar, como um bobeirol...
comeram o porco no jantar, o porco deu indigestão, sabe? Mas a história
deixa de ser piada só... não é nem porque ela deixa de ser engraçada, mas
porque ela passa a não ter um fim...
Marta Dá uma continuidade...
Curador Acabou, não é mais uma piada. Pode ser engraçadíssima, pode ser o que for,
que agora a gente...
Marta Agora a gente vai dar um outro rumo para essa história aqui...
Curador E aí pensa na morte do pai dele...Uma coisa que eu penso é o seguinte:
quando o pai dele morreu, ele morreu duas vezes... Tinha alguém morto aqui
nessas fotos, ou está todo mundo vivo?
Carlos Meu avô...
Curador Mas você está contando história dele...
Carlos Estou.
Curador Então ele morreu de uma maneira, mas não morreu de outra..
Marta Mas tá vivo de outra...
Curador Está vivo na história... Agora se a morte do seu avô é uma piada que você
não quer abrir a boca para falar dele...
Marta Ele morre duas vezes.
Curador Morre duas vezes. Como pessoa, como presença e morre nas histórias...
Ana Como memória...
Felipe E pior ainda é você matar um herói...
Curador Ainda é um herói... tem um luto ainda maior...
Felipe Matar um herói é algo muito difícil, algo muito...teoricamente eles são...
imortais. Então você crê que eles vão estar sempre ali, fazendo alguma coisa,
têm o poder de ressuscitar, etc. Então você matar o herói é uma edição
histórica, que nem a morte do Super-Homem...que você nunca acredita muito,
ele vai voltar...Isso tem tudo a ver com o que Marta estava falando a respeito
de terapizar a mãe dela... na verdade são os heróis... durante muitos anos a
mãe da Marta foi para ela um herói, até hoje ainda é...Então você reconhecer
que o herói tem suas fraquezas e enfim, o seu calcanhar de Aquiles, a sua
kriptonita, fraquezas morais, é complicado...
Curador Então Jerome tem ou não tem motivo para se apaixonar por essa mulher?
Felipe Agora ele tem motivo para se apaixonar...
Curador Porque ela devolve para ele o pai dele... enquanto história. A hora em que ela
fala “mas o que aconteceu com o porco?” Ela está dizendo para ele: “vamos
contar o seu pai. Agora a gente pode contar o seu pai. Agora o seu pai pode
ressuscitar, senão corporalmente, porque já entra no fantástico, que não é o
caso, como história ele pode voltar...
Chama atenção a iniciativa da Marta, ao ser a primeira a falar na dupla morte
do pai, bem como a espontaneidade com que os participantes estabeleceram
ligações entre o conto de Greene e as atividades-escudo das quais participaram ao
longo do evento de leitura, especialmente quando citam que, para Jerome, o “luto
duplo” que teve que enfrentar foi agravado ainda mais pelo fato de se tratar, para
ele, de um herói. Um herói é alguém não só muito querido, mas também de quem se
132
espera uma força que não condiz com a morte fácil, sem luta, sem sacrifício. O vôo
involuntário de um animal inocente, que em nada se assemelha a um mortal vilão, é
uma forma bastante eficaz de transformar o falecimento do pai-herói num evento
insuportável para o filho.
3.2.4.3 A Humanização do Pai
Ao longo da conversa sobre o conto, a figura do porco vai se tornando central.
A princípio, é o curador quem introduz o tema, seguido por Felipe, que faz uma
pergunta mais relevante e interessante, por libertar o leitor da intenção do autor (cf.
cap. 2), transformando-se, desta forma, no verdadeiro curador desse trecho:
Curador Por que vocês acham que o autor escolheu um porco?
Felipe Faria diferença se fosse um outro animal qualquer?
Marta Faria! Eu acho... acho que o porco ali dá um ar de... uma situação esdrúxula,
bizarra... Um animal que às vezes é... tem o estereótipo de ser sujo, anti-
higiênico... Um animal que não é... tipicamente não vive nas alturas...Uma
situação atípica também...Um animal que você não cria dentro de casa
normalmente... a não ser naquelas circunstâncias...
Em seguida, Marta traz à tona um questionamento interessante, que pode se
entendido como uma sugestão de desumanização por super-humanização. Ou seja,
como dito anteriormente, há duas maneiras de desumanizar alguém: subestimando-
o e superestimando-o. Marta questiona se Jerome não superestimava o pai a ponto
de o idolatrar, ao invés de verdadeiramente amar.
Marta Nesse enfoque a gente até pensa se ele amava mesmo o pai...Porque na
verdade era uma idolatria, mas era uma coisa distante...Alguém que se tornou
um perito contador, foi calculista também... a pergunta dele...e ela também,
quer dizer, de repente ele descobriu a, entre aspas, alma gêmea dele...
Pode-se entender a diferença entre idolatria e amor na fala da Marta de mais
de um ângulo. Em primeiro lugar porque ao idolatrar alguém, tornamos essa pessoa
distante, vendo apenas suas qualidades exageradas por nós mesmos. Uma forma
133
de entender a fala dela é nos remetermos ao começo do evento, quando ela cita as
relações com os pais e diz estar relativizando a forma de os encarar, humanizando-
os. Para ela, o pai era o eterno vilão e a mãe a heroína – dentro da perspectiva que
estamos discutindo, pode-se dizer que Marta desumanizava ambos. Agora, mais
velha, via-se capaz de enxergar defeitos na mãe e qualidades no pai.
Marta Mas enfim, assim... quando eu trabalhava família na terapia, a figura principal
sempre foi meu pai. A coisa com que eu batia mais de frente, a coisa mais... e
uma vez Maria [a terapeuta] muito sabiamente falou assim, eu tinha falado
alguma coisa da minha mãe e ela “com a sua mãe não dá pra competir...sua
mãe é a coisa mais perfeita que tem.” E o tempo passou, algumas coisas eu
resolvi com meu pai, outras ainda não... enfim... mas hoje quando eu voltei a
fazer terapia num momento diferente... o foco principal é minha mãe...
Carlos Por quê?
Marta É como se eu tivesse... agora é como se eu tivesse pronta pra trabalhar essa
figura... Precisou de um amadurecimento, de um tempo, de um
reconhecimento de várias imperfeições da minha vida...uma outra leitura...é
uma outra leitura.
Na análise do conto, vimos que ao perguntar sobre o porco, Jerome estava,
na verdade, tentando humanizar o pai, tirando-o, enquanto narrativa, do gênero
piada. Sally o ajuda a fazer isso ao não rir da história e ao perguntar sobre o porco.
Ou seja, ao contrário da piada que tem um clímax e um fim, a história agora podia
continuar indefinidamente. Humaniza-se o pai, e, por contigüidade, o próprio Jerome.
Com Marta, curiosamente, parece acontecer algo semelhante, pois ela diz que ele
só conseguiu relativizar a figura da mãe, deixando de vê-la como heroína
(desumanizada ao ser superestimada) a partir do momento em que pôde reconhecer
imperfeições nela mesma, Marta, humanizando-se ao humanizar a mãe, e vice-
versa.
Talvez não por acaso é a Marta que detona esse debate, ao ser a curadora
da palavra humanidade (sendo a primeira a usá-la durante o evento) e ao sugerir
que perguntar sobre o porco é “uma maneira de continuar a história”:
134
Carlos Toda vez que ele fosse apresentado ou fosse se apresentar...”Esse é o
Jerome porco” “Por que Porco?” ah porque o pai do cara morreu com uma
porcada na cabeça...”
Marta Ela, de repente, deu uma nova perspectiva...
Curador Fala nisso. Que nova perspectiva?
Marta Nova perspectiva dele não ser mais uma pessoa estereotipada, é...um bobo
da corte, um palhaço, um porco...
Carlos Ele não deixou de ser mais ele mudou de status...
Curador Que status? Ele foi de que para quê?
Marta Surgiu uma humanidade, ele ficou humanizado...
Curador E o que tem a atividade que a gente fez com isso?
Marta Foi contar a nossa história, dar valor à nossa história, é... colocar aquilo que a
gente achou... acho que todos nós colocamos coisas, os nossos valores, as
nossas raízes, os nossos desejos...
Curador Como é uma piada? Pensa...
Joana A piada você já está esperando que vai ser uma coisa engraçada...
Curador Depende da pessoa. Tem gente que vai contando e quando você vê é uma
piada... Como se conta uma piada?
Marta É surpreender com uma coisa...
Carlos Engraçada
Curador Tem uma supresa...
Marta Tem uma supresa.
Curador Tem um desfecho surpreendente que te faz rir...e depois faz sentido
continuar?
Carlos Não.
Marta Não.
Ana Acabou ali.
Marta Então “e o porco”é uma maneira de tentar continuar a história... não é?
Por fim, vale a pena citar um aspecto desse debate sobre a humanização do
sujeito introduzido por Carlos – a questão de uma dualidade entre o extraordinário e
o ordinário.
Carlos Eu fiquei pensando... a foto, ela é importante para a gente, as palavras que a
gente colocou, a gente que deu destaque, então é importante pra gente,
depois fomos pro Quarteto Fantástico, que é fantástico para todo mundo
porque, afinal de contas, é uma coisa excepcional, então existe uma
dualidade ai do comum e do especial...Quando é que alguma coisa é comum,
quando é uma coisa é especial, é especial para quem...? É especial por
quê...? É comum por quê...? Aí o filme que o Bruno colocou, a parte que o
Bruno colocou do Tempestade de Gelo que, a princípio não tem nada
excepcional... Começa com o rapaz lendo o próprio Quarteto Fantástico, num
trem que está se movimentando, congelado, ele indo pra uma faculdade?
Curador Voltando da faculdade...
Carlos Voltando da faculdade para casa na ação de graça...Coisa mais comum do
mundo...
Curador Para passar o feriado com a família...
Carlos Mas deve ter alguma coisa excepcional ali...
135
Felipe Aquele meio de caminho ali deve ter muita coisa...
Carlos Há uma história... então, vc está andando no meio da rua e de repente cai um
porco na sua cabeça e você morre... então... é comum...? Todo mundo vai
morrer...? É, mas tem uma excepcionalidade, uma questão especial nessa
história aí... Fiquei pensando nessa dualidade...
Curador Do comum e do fantástico....
Carlos Isso...
Curador Do ordinário e do extraordinário... De uma vida sem graça, sem sal e de uma
história maneira pra contar...
Carlos E pra quem... quem é que está ouvindo essa história?
Curador Então você vê a história das fotos, a figura e o filme criando essa dualidade
extraordinário x ordinário...?
Carlos Isso... essa família [apontando para a figura do Quarteto Fantástico] é
extraordinária porque ela tem super-poderes... a nossa família é ordinária
porque é nossa família, corriqueira e por isso também ela é especial, é a
nossa família...
Curador E o conto...Existe essa dualidade no conto?
Carlos O conto... morreu o pai, mas morreu de uma forma especial...
extraordinariamente cômica.
Felipe Eu só não encaixei o filme ainda...
Curador O filme, Carlos?
Carlos Família, alguém contando...
Curador A dualidade no filme, isso que ele quer saber eu acho...
Carlos Não deu para perceber porque a gente não viu o filme todo...
Curador Eu até vejo... eu nunca tinha pensado nesse aspecto que você está
levantando mas eu não consigo deixar de ver dualidade no filme também...
Porque ele é um menino ordinário, numa família ordinária, mas nas mãos dele
tem o Quarteto Fantástico...que é extraordinário... e ele faz uma reflexão no
começo do filme traçando um paralelo entre o Quarteto Fantástico e todas as
famílias. Então ele faz uma ponte entre uma família extraordinária e a família
dele e de todos nós que, a princípio seriam ordinárias porque são muito
parecidas, cheias de rotinas, cheia de cotidiano... Faz mais paralelos... Carlos
fez um...Ou Carlos mesmo, faz outro... Vamos falar mais... O que que as fotos
e a atividade inicial têm a ver com o conto?
Carlos Segredos revelados?
Marta Como as histórias familiares também podem ir definindo o rumo das nossas
vidas, dos nossos valores, aquilo que se torna ou não importante, aquilo que
se torna passível de ser a maior história sua...
Mais uma vez, poder-se-ia argumentar que, talvez, haja uma profunda rede
de influências entre as atividades da curadoria e a leitura do texto, uma vez que, de
novo, na transcrição acima, o participantes lançaram mão das vivências do dia para
ler o conto de Greene. Talvez seja impossível comprovar de forma inequívoca uma
relação causal direta entre os escudos-espelho da curadoria e a leitura do texto-
medusa. No entanto, o uso que os participantes parecem fazer de tais espelhos,
patente na presença espontânea dos mesmos em suas falas – parece ser um forte
136
indicador de que existe mais do que mera coincidência nas referências cruzadas que
os ajudam a tecer uma verdadeira rede interpretativa em torno do conto.
A leitura parece, afinal, ser uma atividade social complexa regida por fatores
que vão muito além de um modelo no qual atuam um leitor a-histórico e um livro,
apenas. Vê-se que são muitas as forças presentes no ato interpretativo, a maioria
das quais, talvez, estejam fora do controle do leitor considerado isoladamente, ou
mesmo do curador. As regras desse jogo parecem ser, como o ato de jogar,
dinâmicas, maleáveis e altamente suscetíveis a influências nem todas conhecidas.
Mas do que uma tentativa de catalogar e “domar” essas influências, a presente
investigação teve como objetivo buscar a possibilidade de afirmar a incerteza, bem
como as múltiplas influências que, convidadas a atuar ou não no ato interpretativo,
estarão lá, tornando literalmente imprevisíveis os caminhos a serem percorridos
pelos leitores envolvidos na tarefa de construir sentidos e serem construídos por
eles.
137
Capítulo 4: Considerações Finais
Do caminho que se percorreu até agora, pode-se desde já concluir algumas
coisas:
1. A natureza do texto é relacional. O texto não contém uma essência
imutável cuja descrição seja o objetivo da leitura. O texto é como a
Medusa: um monstro mutante que apenas revela alguns sentidos através
das costuras que frouxamente unem as partes diversas das quais é feito.
2. Com base na primeira conclusão sobre a natureza do texto, pode-se dizer
que o texto literário existe mais como uma estratégia de leitura, um jogo,
do que propriamente por características intrínsecas a partir de cuja
presença ou ausência poder-se-ia aferir seu nível de literariedade. Assim,
literatura parece ser mais um “como” do que um “o que”. Uma maneira
possível de definir literatura seria dizer que se trata de um jogo, com seu
protocolo de leitura, com suas regras, quais sejam, entre outras: a busca
pela polissemia; a tentativa de se estabelecer ligações intra e inter textuais
ousadas; a investigação de rima, métrica, tema, composição; a
“descoberta” de “verdades” que se “escondem” nas “entrelinhas”; etc. Tais
regras e protocolos dizem muito da maneira como o texto é lido e muito
pouco da natureza do texto propriamente dito, uma vez que não
dependem do texto para serem aplicadas, mas de uma combinação da
inclinação do leitor e dos limites impostos pela comunidade interpretativa a
que pertence. O leitor não é nem um receptor passivo do texto (entendido
como entidade autônoma que contém sentidos verdadeiros a serem
descobertos pelo leitor), nem tampouco senhor absoluto a subjugar o texto
(entendido como tela onde o leitor projetaria sentidos a seu bel prazer). O
138
leitor é alguém que usa o texto, joga, com o outros leitores (que podem
estar presentes ou não no evento de leitura) o jogo de leitura daquele
texto. As regras do jogo são negociadas no ato de jogar entre os leitores
(que por sua vez são sujeitos históricos, membros de comunidades
interpretativas que os informam, ainda que disso não tenham plena
consciência) e os elementos trazidos pelo texto. Note-se que os elementos
textuais são tanto as palavras propriamente ditas (marcadas no papel, na
tela do cinema, na voz de um interlocutor) quanto pelos vazios, as coisas
que o texto não diz e que se transformam em pontos de articulação da
leitura na medida em que fazem o papel de palco onde a encenação da
leitura ocorre.
A partir dessas conclusões, é importante dizer que a dissertação se baseou
numa visão da leitura como evento social e tentou pensar em estratégias de leitura
que dêem conta dessa visão, que explorem uma fração dos gestos leitores
possíveis. O conjunto dinâmico (porque nunca fechado) desses gestos leitores (e
seu aprendizado) é que se pode chamar de letramento literário, que vai muito além
de saber juntar as letras do alfabeto e formar palavras. O texto é algo com que se
faz alguma coisa, várias coisas. Os princípios da CPL postulam que quanto mais o
leitor for capaz de articular múltiplos textos, fazendo com que um reflita sobre o
outro, mais produtiva será a leitura, tanto quantitativa quanto qualitativamente. A
possibilidade de se apropriar de múltiplos textos, no entanto, passa por práticas
sociais específicas que terão a ver com a comunidade da qual o leitor faça parte. A
CPL é uma sugestão que contempla a facilitação do encontro do leitor com outros
leitores e com outros textos de modo a, como Perseu, poder se defender contra
leituras prontas que poderiam “petrificá-lo” num senso comum quando o que ele
139
precisa saber fazer, muitas vezes, é desafiar a leitura dada na tentativa de construir
leituras, no plural e, a partir daí, quem sabe, transitar entre comunidades
interpretativas diferentes e tirar delas o que cada um tiver de interessante para
oferecer.
Na construção de uma sugestão de estratégia de leitura que contemple as
conclusões sobre o processo de leitura como descrito acima, foi usada a metáfora
do museu e da curadoria pedagógica. Esta sendo a estratégia a partir da qual
diferentes mídias são colocadas à disposição do visitante a fim de servirem de
textos-espelhos através dos quais possa olhar os trabalhos expostos. Idealmente, os
textos-espelhos e as obras da exibição poderão travar um diálogo de modo que seja
possível para o leitor-visitante produzir mais sentidos, bem como sentidos que
estejam entre os dois textos, extrapolando a ambos. Na curadoria pedagógica em
museus existe um outro elemento importante, que é a fala sobre o texto, a interação
entre visitantes e deles com um “par mais competente” (Vygotsky, 2005). Tudo isso
nos remete às perguntas de pesquisa feitas no capítulo 1, as quais devemos agora
tentar responder: Até que ponto o letramento “ler literatura” não se parece com
“visitando museus” e, assim, pode, como no caso desse último, se beneficiar de uma
curadoria que vise a ensinar não o significado atribuído a um determinado texto por
um crítico literário ou professor (curadores?), mas dizer ao leitor que existem
intertextualidades a serem construídas que poderão transformar toda a experiência
em uma vivência mais interessante e rica?
O primeiro passo para responder essa pergunta é retomar a dimensão do que
estou chamando de “visitando museus”, o que isso implica, para então poder tentar
estabelecer uma comparação com a leitura de textos literários. No livro “Thinking
About Exhibitions” (Greenberg, R. et alii, 1996/2004), uma coletânea de textos
140
multidisciplinares que tratam de curadorias, museus, práticas de exibição, sociologia
e história da arte, entre outros temas afins, existe um texto que tem muito a dizer
sobre a Curadoria Pedagógica. Escrito a quatro mãos por Ivan Karp, curador Museu
Nacional de História Natural, nos EUA, e Fred Wilson, artista plástico e curador
convidado em diversos museus dos EUA, o texto Constructing the Spectacle of
Culture in Museums (Construindo o Espetáculo da Cultura em Museus) (Karp e
Wilson in: Greenberg et alii, 1996/2004) traz descrições de letramentos de arte que
eu acredito que podem ser muito inspiradores para a elaboração de curadorias de
textos literários em função dos princípios que ilustram.
Wilson fala do tempo em que era funcionário do departamento educacional de
três museus ao mesmo tempo, em Nova Iorque –o American Museum of Natural
History, o Metropolitan Museum of Art e o American Crafts Museum. Segundo ele,
essa experiência fez com que começasse a se questionar sobre como ambiente
onde a produção cultural é exibida afeta a maneira como o visitante encara os
trabalhos expostos e como se posiciona em relação ao artista autor daquelas obras.
Nessa mesma época, Wilson começou a trabalhar em espaços alternativos,
entre eles uma pequena galeria no Bronx, onde realizou, ao curar mostras de arte,
pequenas experiências com o intuito de testar suas hipóteses acerca da influência
da curadoria sobre a relação visitante-obra.
Numa dessas experimentações, ele organizou uma exibição a qual chamou
Rooms With a View: The Struggle Between Cultural Content and the Context of Art.
Foram utilizadas três salas: a primeira se parecia com uma galeria de arte
contemporânea, o chamado cubo branco; a segunda sofreu adaptações de modo a
se parecer com um museu etnográfico, não muito atrativo; a terceira estava
decorada como um salão do final do século XIX. Em seguida, pediu a trinta artistas
141
para fazerem parte dessa experiência. Os trinta tinham trabalhos expostos no cubo
branco, quinze tinham trabalhos no espaço etnográfico e quinze no salão do século
XIX.
Segundo Wilson, muitos curadores, ao olharem os trabalhos expostos no
espaço etnográfico, exclamavam: “Ora, você tem uma coleção de arte primitiva!”
Para uma curadora, segundo o artista, ele teve que responder: “Não Valerie, o
trabalho para o qual você está olhando estava exposto na sua galeria mês passado.”
Aparentemente, ele provou o que queria: o ambiente, o contexto onde o trabalho
está exposto tem enorme influência sobre como esse trabalho é percebido. Nas
palavras dele:
So I use the museum as my palette. Curators, whether they
think about it or not, really create how you are to view and think
about these objects, so I figured, ‘If they can do it, I can do it
too’. (Wilson & Karp, in: Greenberg, R. et alii, 1996/2004, p.
253)
Existe uma questão de poder importante nesse argumento. O poder de ter a
“palheta” na mão é o poder de poder influenciar a verdade, que o curador tem, que o
crítico de arte tem, que o professor tem, que a mídia tem.
Num outro experimento, o artista, que é negro, fala de como é comum em
museus norte-americanos, haver uma organização padrão para os trabalhos
exibidos: começa-se com reproduções de gesso de obras gregas clássicas,
seguidas por trabalhos europeus, depois arte moderna e, finalmente, arte
contemporânea. Segundo Wilson, essa organização está em si mesma contando
uma história que tenta lançar suas bases na cultura grega antiga, numa tentativa de
estabelecer um paralelo entre a cultura clássica e a cultura norte-americana. A
mesma estratégia, diz Wilson, foi utilizada por Hitler para criar um mito de
superioridade alemã. O artista-curador, pesquisando sobre mitologia grega, se deu
142
conta de que vários dos deuses gregos eram, na verdade, releituras de deuses
egípcios negros, e que houve um grande intercâmbio entre as duas culturas. Assim,
montou uma exibição em que devolvia às esculturas de deuses gregos seus nomes
egípcios: Hermes era Anubis, Dionísio era Osíris, Artêmis era Bast. Além disso, o
artista interferiu diretamente na obra: com a estátua de gesso branco de Artêmis ele
fez o seguinte: tirou-lhe a cabeça, como se tivesse sido explodida para fora do corpo
e colocou-a no chão, aos pés da estátua. No lugar da cabeça “explodida” colocou a
cabeça negra de Bast. No chão, viam-se estilhaços de gesso branco e negro,
denunciando a explosão e a miscigenação dos deuses e das culturas. O comentário
do curador sobre suas escolhas nesse caso é de enorme relevância:
In addition to combining objects by smashing them, I like to
place things side by side, because the objects speak to one
another and speak to you abou their relation to one another just
by placing them next to one another. ((Wilson & Karp, in:
Greenberg, R. et alii, 1996/2004, p. 254)
Um último experimento realizado por Wilson aconteceu quando um Museu de
Maryland pediu-lhe que olhasse o acervo do porão e organizasse uma mostra com
as obras que encontrasse. O artista encontrou várias estátuas de nativos que se
pareciam muito com os índios de madeira que se vêem freqüentemente em
tabacarias. Wilson, que tem entre seus ancestrais negros e índios, se deu conta de
que essas estátuas são muito mais a representação que europeus fazem dos
nativos do que propriamente um retrato que dê conta das características físicas de
um deles. O curador resolver expressar sua leitura crítica das estátuas na maneira
de as expor: foi às ruas de Maryland, onde, segundo ele, é possível encontrar várias
pessoas com ascendência indígena e pediu-lhes permissão para tirar fotos e expô-
las no museu. Em seguida, revelou essas fotografias, emoldurou-as e as pendurou
numa parede de uma das salas do museu. Finalmente, posicionou as estátuas de
143
costas para o público, encarando as fotografias dos descendentes dos nativos norte-
americanos, pessoas comuns, contemporâneos que podem ser avistados a qualquer
momento nas ruas da cidade, como se estivessem de “castigo”, a fim de revelar que,
ao reproduzirem uma visão européia da identidade indígena, estão prestando um
desserviço à população que precisa aprender a gostar de si a partir de uma visão
interna, local, que não contenha uma pressão para se parecer com os colonizadores
que os oprimiram e mataram.
Assim, fica a sugestão de que o trabalho do curador tem uma importante
dimensão política, ainda mais quando ele conta com a força de uma instituição –
museu, escola, universidade - para outorgar-lhe um verniz de verdade. O mesmo
pode se dizer do curador de um evento de leitura literária, que pode ter papel
fundamental na construção de um tipo de letramento que confere poder a quem o
domine – o poder de produzir significados, do qual não se pode abrir mão, sob pena
de se estar à mercê de forças que vão de encontro aos interesses do indivíduo que
buscam influenciar.
O poder de interpretar tem a ver, inclusive, com construção de identidade.
Vejamos: como ficou sugerido no capítulo 3, o ser humano se constrói num processo
que remete ao ato de narrar. Narrativas, por sua vez, são possíveis objetos do ato
de interpretação. Também se viu que o objeto a ser interpretado não contém
significados – esses são negociados no ato mesmo da interpretação que, de certa
forma, funda, ainda que em versão provisória, o objeto que analisa, ou com o qual
interage. Ora, se o sujeito é narrativa, e essa é fundada no ato de interpretar, ao se
apropriar de estratégias de construção de sentidos o sujeito está igualmente se
equipando para, se quiser, re-fundar a si mesmo. Em última análise, a curadoria
144
pedagógica da leitura pode ser aplicada ao texto que nunca paramos de ler-escrever
– nós mesmos.
Moita Lopes (2007, p.5) fala sobre isso de forma bastante interessante:
A situacionalidade da linguagem e a alteridade são, portanto,
duas categorias centrais nesta visão constitutiva do discurso
por que inclui a dimensão de que os significados que
construímos estão localizados em contextos específicos no
momento de fazer o outro nos entender ou no momento de
compreendê-lo na co-construção do significado. (...) A
relevância das narrativas como forma de organização do
discurso tem um papel crucial no modo como aprendemos a
nos constituir como seres sociais. As narrativas podem ser
entendidas então como ‘pacotes de conhecimento
situado’(Jordan, 1989), conhecimentos que construímos sobre
modos possíveis de estar e agir em contextos culturais no
sentido de que contar histórias é um modo de fazer coisas com
os outros: as pessoas estão agindo no mundo quando contam
histórias e, portanto, estão fazendo coisas umas com as outras
por meio das histórias que contam ou ouvem.
Nos dois eventos de curadoria descritos, houve semelhanças com eventos de
curadoria como os descritos por Wilson e Karp que justificam, ao meu ver, a
viabilidade da CPL como uma possível forma de fazer coisas com textos através da
leitura. Assim como o ambiente do museu interfere sobre como se interpretam as
obras ali expostas, a leitura de um poema, conto, romance, etc. vai sofrer influência
do ambiente onde se dá. Por ambiente, no caso da leitura, deve-se entender não só
o lugar onde os leitores se encontram, mas também os outros textos que estejam
sendo usados como escudos-espelhos, bem como os participantes do evento de
leitura – tudo isso parece ter alguma influência sobre a produção de sentidos feita
pelos leitores no ato da leitura.
Da mesma maneira que a decoração das salas, como no primeiro evento
curado por Wilson, influenciou a maneira como os visitantes olhavam as obras ali
expostas, houve influência do contexto nos dois eventos de CPL relatados no
145
capítulo 3. Sem dúvida, as figuras, as palavras, a atividade de colocar pedaços
coloridos de papel celofane sobre palavras-chave do poema foram em si mesmos
um ambiente para a leitura do poema no primeiro evento de CPL relatado. Já o fato
de que esses mesmos elementos apareceram nas falas dos participantes na
conversa sobre o poema que se seguiu apenas confirma, como na curadoria de
Wilson, que o “ambiente” tem influência sobre a leitura.
No segundo evento, tanto a feira de histórias, na qual os participantes
comentavam fotos de família, quanto a figura do grupo de heróis Quarteto Fantástico
e a cena do filme “Tempestade de Gelo” apareceram na fala dos participantes ao
conversarem sobre o conto A Shocking Accident, de Graham Greene, mostrando
que talvez a leitura tivesse sido outra, com uma produção de sentidos
completamente diferente, caso as atividades da curadoria não tivessem sido
executadas. Também ficou claro o papel exercido pelos participantes que ora eram
Perseus, fazendo uso dos “escudos” – representados pelas atividades da curadora –
ora eram Atena, ao sugerir caminhos e mudarem os rumos da leitura e ora eram
texto eles mesmos, como no caso de Marta, que se colocou um pouco no papel do
personagem sobre qual acabara de ler e, como ele, foi objeto de leitura e
transformação.
O mito da Medusa também pareceu ser uma imagem feliz para ilustrar os
princípios da CPL. Obviamente, ela não se pretende definitiva, mas apenas mais
uma sugestão de estratégia de leitura. Voltando a Calvino (1998), porém, vê-se que
até para dizer-se provisória a metáfora é eficiente:
A relação entre Perseu e a Górgona é complexa: não termina
com a decapitação do monstro. Do sangue da Medusa nasce
um cavalo alado, Pégaso; o peso da pedra pode reverter em
seu contrário; de uma patada, Pégaso faz jorrar do monte
Hélicon a fonte em que as Musas irão beber. (Calvino, 1998, p.
17).
146
É como se ele, caso soubesse da tentativa de apropriação do mito para
descrever uma maneira de ler, estivesse dizendo que com a morte da Medusa-texto
no ato da interpretação, não se está produzindo uma leitura final, já que a Medusa,
na condição de monstro, cumpre seu papel de sempre retornar, mesmo quando
acreditava-se que estava morta. Não poderia deixar de ser assim, pois se o texto é
fundado no ato de o ler e este, por sua vez, é contexto dependente, mudando-se o
contexto, muda-se o texto – renasce a Medusa.
Vale lembrar que o texto do Calvino ele está fazendo uma apologia à leveza e
que, por isso, dá bastante importância ao fato de Perseu ter sandálias aladas e, por
isso, poder voar. Acredito que até isso tenha eco no ato de ler:
Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao
peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia
voar para o espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o
sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto
de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra
ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle.
As imagens de leveza que busco não devem, em contato com
a realidade presente e futura, dissolver-se em sonhos...
(Calvino, 1998, p. 19).
Espera-se que a CPL seja capaz de fazer a mesma coisa. Ao colocar o leitor
em contato com outros textos e estimular que estabeleça relações entre o texto-
Medusa e estes outros textos de suporte, ela poderá estar ajudando-o a alçar vôo no
sentido de permitir-lhe novos pontos de apoio – como se os textos de apoio fossem
plataformas – a partir dos quais poderá enxergar as coisas sob uma nova
perspectiva. Poder-se-ia entender a leveza de Perseu ainda como a possibilidade de
o leitor transpor as fronteiras entre comunidades interpretativas, vencendo a
gravidade que naturalmente o atrai dificultando o trânsito.
Apesar de vivermos num mundo onde os convites para o peso, para a
paralisia e imobilidade são muitos, principalmente num país como o Brasil, em que
147
os incentivos para a educação continuada do indivíduo são muito poucos, existe,
paradoxalmente, um universo de coisas sutis à espera de Perseus que tenham
também a delicadeza de os manipular sem destruir, de, a partir dessas coisas sutis,
quase inefáveis, ser capaz de produzir sentidos novos para a vida e para o mundo:
Cada ramo da ciência, em nossa época, parece querer nos demonstrar que o
mundo repousa sobre entidades sutilíssimas – tais as mensagens do A.D.N. (DNA
em inglês), os impulsos neurônicos, os quarks, os neutrinos errando pelo espaço
desde o começo dos tempos...
Em seguida vem a informática. É verdade que o software não
poderia exercer seu poder de leveza senão mediante o peso do
hardware; mas é o software que comanda, que age sobre o
mundo exterior e sobre as máquinas, as quais existem apenas
em função do software, desenvolvendo-se de modo a elaborar
programas de complexidade cada vez mais crescente. A
segunda revolução industrial, diferentemente da primeira, não
oferece imagens esmagadoras como prensas de laminadores
ou corridas de aço, mas se apresenta como bits de um fluxo de
informação que corre pelos circuitos sob a forma de impulsos
eletrônicos. As máquinas de metal continuam a existir, mas
obedientes aos bits sem peso. (Calvino, 1998, p. 20 e 21)
Idealmente, a Curadoria Pedagógica da Leitura seria capaz de, como fala
Vygotsky, informar o sujeito leitor que “O principal da música é o que não se ouve, o
das artes plásticas o que não se vê, nem se apalpa.” (Vygotsky, 2004, p. 333). Isso
porque o principal está sempre em potencial, sutil como um fluido leve e
transparente, mas que, a um estímulo pequeno, uma faísca que seja, pode explodir
significados e “eclodir luz” (Bakhtin, 2003). O principal está para ser fundado na
interação entre leitores e textos, nos vazios entre textos e pessoas, que, como
palcos, estão à espera que se montem novas encenações, nas quais faremos coisas
com os textos e conosco mesmos, nunca mais sendo, nem os textos, nem nós, os
mesmos.
148
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155
ANEXOS
ANEXO I – Poster
156
ANEXO II – A Shocking Accident (Graham Greene) In: GREENE, G. Complete
Short Stories. Londres: Penguin, 2005.
Jerome was called into his housemaster’s room in the break between the
second and the third class on a Thursday morning. He had no fear of trouble, for he
was a warden – the name that the proprietor and headmaster of a rather expensive
preparatory school had chosen to give to approved, reliable boys in the lower forms
(from a warden one became a guardian and finally before leaving, it
was hoped for Marlborough or Rugby, a crusader). The housemaster, Mr
Wordsworth, sat behind his desk with an appearance of perplexity and apprehension.
Jerome had the odd impression when he entered that he was a cause of fear.
“Sit down, Jerome,” Mr Wordsworth said. “All going well
with the trigonometry?”
“Yes, sir.”
“I’ve had a telephone call, Jerome. From your aunt. I’m afraid I have bad news
for you.”
“Yes, sir?”
“Your father has had an accident.”
“Oh.”
Mr Wordsworth looked at him with some surprise.
“A serious accident.”
“Yes, sir?”
Jerome worshipped his father: the verb is exact. As man re-creates God, so
Jerome re-created his father – from a restless widowed author into a mysterious
adventurer who travelled in far places – ice, Beirut, Majorca, even the Canaries. The
time had arrived about his eighth birthday when Jerome believed that his father either
“ran guns” or was a member of the British Secret Service. Now it occurred to him that
his father might have been wounded in “a hail of machine-gun bullets”.
Mr Wordsworth played with the ruler on his desk. He seemed at a loss how to
continue. He said,
“You know your father was in Naples?”
“Yes, sir.”
“Your aunt heard from the hospital today.”
“Oh.”
157
Mr Wordsworth said with desperation, “It was a street accident.”
“Yes, sir?” It seemed quite likely to Jerome that they would call it a street
accident. The police of course had fired first; his father would not take human life
except as a last resort.
“I’m afraid your father was very seriously hurt indeed.”
“Oh.”
“In fact, Jerome, he died yesterday. Quite without pain.”
“Did they shoot him through the heart?”
“I beg your pardon. What did you say, Jerome?”
“Did they shoot him through the heart?”
“Nobody shot him, Jerome. A pig fell on him.” An inexplicable convulsion took
place in the nerves of Mr Wordsworth’s face; it really looked for a moment as though
he were going to laugh. He closed his eyes, composed his features and said rapidly
as though it were necessary to expel the story as rapidly as possible. “Your father
was walking along a street in Naples when a pig fell on him. A shocking accident.
Apparently in the poorer quarters of Naples they keep pigs on their balconies. This
one was on the fifth floor. It had grown too fat. The balcony broke. The pig fell on
your father.”
Mr Wordsworth left his desk rapidly and went to the window, turning his back
on Jerome. He shook a little with emotion.
Jerome said, “What happened to the pig?”
This was not callousness on the part of Jerome, as it was interpreted by Mr
Wordsworth to his colleagues (he even discussed with them whether, perhaps,
Jerome was yet fitted to be a warden). Jerome was only attempting to visualize the
strange scene to get the details right. Nor was Jerome a boy who cried; he was a boy
who brooded, and it never occurred to him at his preparatory school that the
circumstances of his father’s death were comic – they were still part of the mystery of
life. It was later, in his first term at his public school, when he told the story to his best
friend, that he began to
realize how it affected others. Naturally after that disclosure he was known,
rather unreasonably, as Pig.
Unfortunately his aunt had no sense of humour. There was an enlarged
snapshot of his father on the piano; a large sad man in an unsuitable dark suit posed
in Capri with an umbrella (to guard him against sunstroke), the Faraglione rocks
158
forming the background. By the age of sixteen Jerome was well aware that the
portrait looked more like the author of Sunshine and Shade and Rambles in the
Balearics than an agent of the Secret Service. All the same he loved the memory of
his father: he still possessed an album fitted with picturepostcards (the stamps had
been soaked off long ago for his other collection), and it pained him when his aunt
embarked with strangers on the story of his father’s death.
“A shocking accident,” she would begin, and the stranger would compose his
or her features into the correct shape for interest and commiseration. Both reactions,
of course, were false, but it was terrible for Jerome to see how suddenly, midway in
her rambling discourse, the interest would become genuine. “I can’t think how such
things can be allowed in a civilized country,” his aunt would say. “I suppose one has
to regard Italy as civilized. One is prepared for all kinds of things abroad, of course,
and my brother was a great traveller. He always carried a water-filter with him. It was
far less expensive, you know, than buying all those bottles of mineral water. My
brother always said that his filter paid for his dinner wine. You can see from that what
a careful man he was, but who could possibly have expected when he was walking
along the Via Dottore Manuele Panucci on his way to the Hydrographic Museum that
a pig would fall on him?” That was the moment when the interest became genuine.
Jerome’s father had not been a very distinguished writer, but the time always
seems to come, after an author’s death, when somebody thinks it worth his while to
write a letter to the Times Literary Supplement announcing the preparation of a
biography and asking to see any letters or documents or receive any anecdotes from
friends of the dead man. Most of the biographies, of course, never appear – one
wonders whether the whole thing may not be an obscure form of blackmail and
whether many a potential writer of a biography or thesis finds the means in this way
to finish his education at Kansas or Nottingham. Jerome, however, as a chartered
accountant, lived far from the literary world. He did not realize how small the menace
really was, or that the danger period for someone of his father’s obscurity had long
passed. Sometimes he rehearsed the method of recounting his father’s death so as
to reduce the comic element to its smallest dimensions – it would be of no use to
refuse information, for in that case the biographer would undoubtedly visit his aunt
who was living to a great old age with no sign of flagging.
It seemed to Jerome that there were two possible methods – the first led
gently up to the accident, so that by the time it was described the listener was so well
159
prepared that the death came really as an anticlimax. The chief danger of laughter in
such a story was always surprise. When he rehearsed this method Jerome began
boringly enough.
“You know Naples and those high tenement buildings? Somebody once told
me that the Neapolitan always feels at home in New York just as the man from Turin
feels at home in London because the river runs in much the same way in both cities.
Where was I? Oh, yes. Naples, of course. You’d be surprised in the poorer quarters
what things they keep on the balconies of those sky-scraping tenements – not
washing, you know, or bedding, but things like livestock, chickens or even pigs. Of
course the pigs get no exercise whatever and fatten all the quicker.” He could
imagine how his hearer’s eyes would have glazed by this time. “I’ve no idea, have
you, how heavy a pig can be, but these old buildings are all badly in need of repair. A
balcony on the fifth floor gave way under one of those pigs. It struck the third floor
balcony on its way down and sort of ricocheted into the street. My father was on the
way to the Hydrographic Museum when the pig hit him. Coming from that height and
that angle it broke his neck.” This was really a masterly attempt to make an
intrinsically interesting subject boring.
The other method Jerome rehearsed had the virtue of brevity.
“My father was killed by a pig.”
“Really? In India?”
“No, in Italy.”
“How interesting. I never realized there was pig-sticking in Italy. Was your
father keen on polo?”
In course of time, neither too early nor too late, rather as though, in his
capacity as a chartered accountant, Jerome had studied the statistics and taken the
average, he became engaged to be married: to a pleasant fresh-faced girl of twenty-
five whose father was a doctor in Pinner. Her name was Sally, her favourite author
was still Hugh Walpole, and she had adored babies ever since she had been given a
doll at the age of five which moved its eyes and made water. Their relationship was
contented rather than exciting, as became the love affair of a chartered accountant; it
would never have done if it had interfered with the figures.
One thought worried Jerome, however. Now that within a year he might
himself become a father, his love for the dead man increased; he realized what
affection had gone into the picture-postcards. He felt a longing to protect his memory,
160
and uncertain whether this quiet love of his would survive if Sally were so insensitive
as to laugh when she heard the story of his father’s death. Inevitably she would hear
it when Jerome brought her to dinner with his aunt. Several times he tried to tell her
himself, as she was naturally anxious to know all she could that concerned him.
“You were very small when your father died?”
“Just nine.”
“Poor little boy,” she said.
“I was at school. They broke the news to me.”
“Did you take it very hard?”
“I can’t remember.”
“You never told me how it happened.”
“It was very sudden. A street accident.”
“You’ll never drive fast, will you, Jemmy?” (She had begun to call him
“Jemmy”.) It was too late then to try the second method – the one he thought of as
the pig-sticking one.
They were going to marry quietly in a registry office and have their honeymoon
at Torquay. He avoided taking her to see his aunt until a week before the wedding,
but then the night came, and he could not have told himself whether his
apprehension was more for his father’s memory or the security of his own love.
The moment came all too soon. “Is that Jemmy’s father?” Sally asked, picking
up the portrait of the man with the umbrella.
“Yes, dear. How did you guess?”
“He has Jemmy’s eyes and brow, hasn’t he?”
“Has Jerome lent you his books?”
“No.”
“I will give you a set for your wedding. He wrote so tenderly about his travels.
My own favourite is Nooks and Crannies. He would have had a great future. It made
that shocking accident all the worse.”
“Yes?”
Jerome longed to leave the room and not see that loved face crinkle with
irresistible amusement.
“I had so many letters from his readers after the pig fell on him.” She had
never been so abrupt before.
161
And then the miracle happened. Sally did not laugh. Sally sat with open eyes
of horror while his aunt told her the story, and at the end, “How horrible,” Sally said.
“It makes you think, doesn’t it? Happening like that. Out of a clear sky.”
Jerome’s heart sang with joy. It was as though she had appeased his fear for
ever. In the taxi going home he kissed her with more passion than he had ever
shown and she returned it. There were babies in her pale blue pupils, babies that
rolled their eyes and made water.
“A week today,” Jerome said, and she squeezed his hand.
“Penny for your thoughts, my darling.”
“I was wondering,” Sally said, “what happened to the poor pig?”
“They almost certainly had it for dinner,” Jerome said happily and kissed the
dear child again.
162
ANEXO III – Um Acidente Chocante
Um acidente chocante
Graham Greene
Jerome foi chamado à sala do
diretor no intervalo entre a segunda e a
terceira aula numa manhã de quinta-
feira. Ele não tinha medo de que
estivesse encrencado, pois era um
“inspetor” - o nome que o proprietário e
diretor de uma escola primária um tanto
cara tinha inventado para denominar os
escolhidos para serem aprovados,
garotos confiáveis das séries mais
baixas (de “inspetor” podia-se ser
promovido para “guardião” e, finalmente,
antes de deixar a escola para seguir os
estudos, esperava-se, em Marlborough
ou Rugby, para “crusado”). O diretor, Sr.
Wordsworth, sentou-se atrás de sua
mesa aparentando perplexidade e
apreensão. Jerome teve a estranha
sensação de que estava causando medo
no diretor quando entrou.
- Sente-se, Jerome, o sr.
Wordsworth disse. Está tudo bem com a
trigonometria?
- Sim, senhor.
- Recebi um telefonema, Jerome.
Da sua tia. Temo dizer que tenho más
notícias para você.
- Senhor?
- Seu pai sofreu um acidente.
- Oh.
O sr. Wordsworth olhou para ele
com surpresa.
- Um acidente sério.
- Senhor?
Jerome idolatrava seu pai: o
verbo é esse mesmo. Da mesma forma
que o homem recria Deus, Jerome
recriava seu pai – transformava-o de um
autor viúvo inquieto em um aventureiro
que viajava para lugares distantes –
Nice, Beirute, Maiorca, até mesmo as
Canárias. Chegou ao ponto de, no seu
aniversário de oito anos, acreditar que
seu pai contrabandeava armas ou então
era membro do Serviço Secreto
Britânico. Agora ocorria a ele que seu pai
pudesse ter sido ferido por uma
“saraivada de balas de metralhadora”.
O sr. Wordsworth brincava com uma
régua em sua mesa. Ele parecia perdido
sem saber como continuar. Então disse:
- Você sabia que seu pai estava
Nápoles?
- Sim, senhor.
- Sua tia teve notícias do hospital
hoje.
- Oh.
O Sr. Wordsworth disse em agonia,
- Foi um acidente de rua.
- Senhor?
Parecia bastante natural para
Jerome o fato de usarem a expressão
“acidente de rua”. Claro que a polícia havia
atirado primeiro, seu pai nunca tiraria uma
vida humana a não ser como último
recurso.
- Sinto dizer que seu pai foi
gravemente ferido.
- Oh.
- Na verdade, Jerome, ele morreu
ontem. Uma morte praticamente indolor.
- Atiraram no coração dele?
- Perdão, o que você disse, Jerome?
- Atiraram no coração dele?
- Ninguém atirou nele, Jerome. Um
porco caiu em cima dele.
Uma convulsão inexplicável se
apossou dos nervos do rosto do sr.
Wordsworth. Parecia, por um momento,
que ele ia rir, realmente. Ele fechou os
olhos, recompôs seu semblante e disse
sem demora, como se fosse essencial que
cuspisse a história o mais rapidamente
possível.
- Seu pai estava andando numa rua
de Nápoles quando um porco caiu sobre
ele. Um acidente chocante. Parece que nas
regiões mais pobres de Nápoles eles criam
os porcos nas sacadas. Esse estava no
quinto andar. Tinha ficado gordo demais. A
sacada quebrou. O porco caiu no seu pai.
O sr. Wordsworth levantou-se
rapidamente e foi até a janela, dando as
costas para Jerome. Ele sacudia um pouco
com a emoção.
Jerome disse:
- O que aconteceu com o porco?
163
Não era insensibilidade da parte
de Jerome, como foi interpretado pelo sr.
Wordsworth ao falar com seus colegas
sobre o caso (ele chegou a discutir com
eles se, talvez, Jerome ainda servia para
ser inspetor). Jerome estava apenas
tentando visualizar a cena estranha para
entender os detalhes direito. Nem
Jerome era um garoto que chorasse, ele
era um garoto que ruminava as coisas, e
nunca lhe ocorrera no tempo da escola
primária que as circunstâncias da morte
de seu pai fossem cômicas – elas eram
parte do mistério da vida. Foi mais tarde,
no primeiro ano do ensino médio,
quando ele contou a história para seu
melhor amigo, que ele começou a se dar
conta de como a história afetava os
outros. Naturalmente, depois dessa
abertura de sua intimidade, ele passou a
ser conhecido, de modo nada razoável,
como Porco.
Infelizmente sua tia não tinha
nenhum senso de humor. Havia uma
fotografia ampliada de seu pai sobre o
piano; um homem grande e triste num
terno escuro impróprio, posando em
Capri com um guarda-chuva (para
protegê-lo contra uma insolação), as
pedras Faglione ao fundo. Aos dezesseis
anos de idade, Jerome sabia bem que o
retrato estava mais para o autor de Sol e
Sombra e Caminhada nas Ilhas Baleares
do que para um agente do Serviço
Secreto. Mesmo assim, ele amava a
memória do pai: ele ainda possuía um
álbum de cartões postais (os selos
haviam há muito sido retirados para
juntar-se à sua outra coleção) e lhe doía
quando sua tia embarcava com
estranhos na história da morte de seu
pai.
- Um acidente chocante, ela
começava.
O estranho tratava de arrumar a
cara de modo a transparecer interesse e
comiseração. Ambas as reações,
obviamente, eram falsas, mas era
terrível para Jerome ver o quão
repentinamente, no meio da fala
interminável, o interesse se tornava
genuíno.
- Não consigo conceber como
essas coisas podem ser permitidas num
país civilizado, sua tia costumava dizer.
Suponho que se possa considerar a Itália
civilizada. A gente se prepara para todo tipo
de coisas no exterior, claro, e meu irmão
era um grande viajante. Ele sempre
carregava um filtro d’água consigo. Era
bem menos caro, sabe, do que comprar
todas aquelas garrafas de água mineral.
Meu irmão sempre dizia que seu filtro
pagava pelo vinho do jantar. Você pode ver
daí que homem cuidadoso ele era, mas
quem poderia dizer que, quando ele
estivesse caminhando ao longo da Via
Dottore Manuele Panucci, a caminho do
Museu Hidrográfico, um porco cairia sobre
ele?
Esse era o momento em que o
interesse se tornava genuíno.
O pai de Jerome não tinha sido um
escritor importante, mas sempre parece
chegar o tempo, depois da morte de um
autor, em que alguém pensa que vale a
pena escrever uma carta para o
Suplemento Literário do Times anunciando
a preparação de uma biografia e pedindo
para consultar cartas e documentos ou
receber quaisquer histórias dos amigos do
homem morto. A maioria das biografias,
claro, nunca aparecem – pode-se perguntar
se tudo não passou de uma forma obscura
de chantagem e se muitos biógrafos em
potencial não fazem uso dessa estratégia
para poder terminar sua formação em
Kansas ou Nottingham. Jerome, no entanto,
como perito-contador, vivia muito distante
do mundo literário. Ele não se dava conta
do quão pequena a ameaça era de fato, ou
que a fase perigosa para um escritor
obscuro como seu pai tinha passado há
muito tempo. Às vezes, ele ensaiava
maneiras de recontar a morte de seu pai de
modo a reduzir o elemento cômico às mais
ínfimas proporções – não adiantaria nada
sonegar informação, pois nesse caso o
biógrafo indubitavelmente visitaria sua tia,
que estava alcançando uma idade muito
avançada, mas sem sinal de
esmorecimento.
Parecia a Jerome que havia dois
métodos possíveis – o primeiro conduzia
sutilmente ao acidente, de modo que,
quando ele era finalmente descrito, o
ouvinte estava tão preparado que a morte
chegava como um verdadeiro anti-clímax.
O maior perigo de riso de uma história
assim era sempre a surpresa. Quando
164
Jerome ensaiava esse método ele
sempre começava suficientemente
chato.
- Você conhece Nápoles e
aqueles conjuntos habitacionais bem
altos? Uma vez alguém me contou que o
napolitano sempre se sente em casa em
Nova Iorque, assim como um homem de
Turim se sente em casa em Londres,
porque o rio corre de modo semelhante
em ambas as cidades. Onde eu estava?
Ah, sim. Nápoles, claro. Você se
surpreenderia nas regiões mais pobres
com as coisas que eles têm nas sacadas
daqueles conjuntos habitacionais que
mais parecem arranha-céus – não uma
lavanderia, sabe, ou camas, mas coisas
como gado, galinhas ou até mesmo
porcos. Claro que os porcos nunca se
exercitam e engordam ainda mais
rapidamente.
Ele podia imaginar como os olhos
de seu ouvinte já teriam embaçado
nesse hora.
- Eu não tenho a menor idéia,
você tem, de quão pesados esses
porcos podem ser, mas esses edifícios
velhos estão todos muito necessitados
de reparos. Uma sacada no quinto andar
cedeu sob o peso de um desses porcos.
Ela bateu na sacada do terceiro andar
enquanto caía e ricocheteou na direção
da rua. Meu pai estava a caminho do
Museu Hidrográfico quando o porco o
atingiu. Vindo daquela altura, naquele
ângulo, quebrou o pescoço do meu pai.
Essa era uma magistral tentativa
de fazer uma história intrinsecamente
interessante ficar chata.
O outro método que Jerome
ensaiava tinha a virtude da brevidade.
- Meu pai foi morto por um porco.
- É mesmo? Na Índia?
- Não, na Itália.
- Que interessante. Nunca
imaginei que havia caçada de porcos na
Itália. Seu pai gostava de pólo?
A seu tempo, nem cedo demais,
nem tarde demais, na sua capacidade de
perito-contador, Jerome havia estudado
as estatísticas e tirado a média, ele se
ficou noivo e pretendia se casar: era uma
agradável jovem de vinte e cinco anos
cujo pai era médico em Pinner. Seu
nome era Sally, seu autor preferido ainda
era Hugh Walpole, e ela adorava bebês
desde quando tinha ganhado uma boneca,
aos cinco, que movia os olhos e fazia xixi.
O relacionamento deles os satisfazia mais
do que apaixonava, como era de se esperar
de um perito-contador; nunca teria dado
certo se tivesse interferido com os
números.
Um pensamento preocupava
Jerome, porém. Agora que dentro de um
ano ele poderia tornar-se ele mesmo um
pai, seu amor por seu pai tornara-se ainda
maior e ele se dava conta do quanto de
afeto havia investido nos cartões-postais.
Sentia uma ânsia por proteger sua
memória, bem como não sabia se esse
amor tranqüilo dele pela noiva sobreviveria
se Sally fosse insensível ao ponto de rir
quando ouvisse a história da morte de seu
pai. Inevitavelmente ela a escutaria quando
Jerome a levasse para jantar com sua tia.
Várias vezes ele tentou contar ele mesmo,
como ela estava naturalmente ansiosa para
saber tudo o que dizia respeito a ele.
- Você era muito pequeno quando
seu pai morreu?
- Tinha só nove anos.
- Pobre garotinho, ela disse.
- Eu estava na escola, eles me
deram a notícia.
- Você ficou muito mal?
- Não me lembro.
- Você nunca me disse como
aconteceu.
- Foi de repente. Um acidente de
rua.
- Você nunca vai dirigir rápido, vai,
Jemmy? (Ela tinha começado a chamá-lo
de Jemmy).
Era tarde demais para tentar o
segundo método – o da caça aos porcos.
Eles iriam se casar sossegadamente
num cartório e teriam sua lua de mel em
Torquay. Ele evitou levá-la para ver sua tia
até uma semana antes do casamento, mas
então a noite chegou, ele não podia
responder a si mesmo se sua apreensão
era mais pela memória de seu pai ou pela
segurança de seu amor.
O momento chegou rápido demais.
- Esse é o pai do Jemmy? Sally
perguntou, apanhando o retrato do homem
com o guarda-chuva.
- Sim, querida, como sabia?
165
- Ele tem os olhos e as
sobrancelhas do Jemmy, não tem?
- O Jerome mostrou os livros
dele?
- Não.
- Eu vou te dar um conjunto deles
de casamento. Ele escreveu tão
ternamente sobre suas viagens. Meu
preferido é “Lugares Escondidos”. Ele
teria tido um grande futuro. Isso faz com
que aquele acidente chocante fique
ainda pior.
- É mesmo?
Jerome desejou sair da sala para
não ver aquele rosto adorável enrugar
com um riso irresistível.
- Eu recebi tantas cartas de seus
leitores depois que o porco caiu sobre
ele. Ela nunca tinha sido tão abrupta
antes.
E então o milagre aconteceu.
Sally não riu. Sally sentou-se com olhos
arregalados de horror enquanto a tia lhe
contava a história e, no final:
- Que horror, Sally disse. Faz
pensar, não faz. Acontecer assim.
Diretamente do céu.
O coração de Jerome cantava de
alegria. Foi como se ela tivesse
apaziguado seu medo para sempre. No
táxi, indo para casa, ele a beijou com
mais paixão do que ele jamais tinha
mostrado e ela correspondeu. Havia
bebês nas suas pupilas azuis pálidas,
bebês que mexiam os olhos e faziam
xixi.
- É daqui a uma semana, Jerome
disse e ela apertou sua mão.
- Um centavo pelos seus
pensamentos, querida.
- Eu estava pensando, disse ela,
o que aconteceu ao pobre porco.
- É quase certo que eles o
comeram no jantar, Jerome disse feliz e
beijou sua querida garota novamente.
Tradução de Bruno Cardoso Lages
166
ANEXO IV - METACURADORIA
Professor A mutação é a mesma? A hidra sofre uma mutação? Ela se transforma em
algo diferente?
Aluna 1 Não, mas ela se transforma nela mesma.
Professor A borboleta vem de uma lagarta, que vira um casulo e então a borboleta. Mas
a hidra...
Aluna 1 Uma hidra cortada se transforma numa hidra inteira...
Aluna 2 A gente ligou o bebê e o cemitério porque são o começo e o fim da vida.
Sim... Mas depende de quem, das suas crenças... algumas pessoas
acreditam que há vida após a morte...
Aluno 3 Lavoisier, o bebê a mulher são os representantes humanos no pôster.
Aluno 4 O bebê, o cemitério e a fênix...O começo da vida, o fim da vida e
imortalidade...renascimento.
Aluna 5 O bebê e a hidra. Na hidra, ela se regenera quando uma parte dela é cortada.
Já no caso do bebê, ele em si é a parte cortada.
Professor Cortada da mãe?
Aluna 5 É... só que nesse caso é a parte cortada que se regenera, quer dizer, o bebê
cresce...
Aluna 6 A gente também ligou a hidra e a mulher. A mulher representa as pessoas em
geral. E a gente está sempre sendo cortado pela vida, está sempre sofrendo
e tendo que se regenerar para continuar vivendo.
Professor Acho que o grupo lá de trás fez uma conexão com todas as figuras entre si...
Aluna 7 OK. Primeiro a gente pensou no bebê... Ele vira um adulto e a gente ligou
com a mulher...depois ele fica velho – Lavoisier – e então...com o cemitério,
porque ele vai morrer... e então com a fênix, por causa do ciclo da vida. A
gente colocou a borboleta fora desse ciclo, como que simbolizando o ciclo em
si mesmo – todas as mudanças que acontecem na nossa vida. E também
colocamos a hidra de fora, porque a gente nunca pode ser como a hidra, a
gente nunca pode voltar atrás...
Hum... essa é uma interpretação diferente para hidra... bom. Por que
Lavoisier tem um nome e a mulher não?
Alunos
(indistintamente)
Porque ele disse coisas importantes...
Professor O que ele disse?
Aluna 7 Nada se perde, tudo se transforma.
Aluno 4 Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma.
Professor OK. Lavoisier tem um nome por causa do que ele falou? E a mulher? Por que
uma mulher estaria no pôster? Como uma mulher se encaixaria nesse grupo?
É possível estabelecer uma relação entre todas as figuras?
Aluno 4 A mulher gera vida...
OK. E ao gerar vida ela também está transformando coisas, não é? De um
ovo até um ser humano.
Aluna 7 A idéia de um ciclo. A borboleta, da lagarta ao bicho que voa... O bebê se
desenvolvendo, a hidra se regenerando... O bebê quando morre e vai para o
cemitério... seu corpo vai fazer parte da terra... não vai acabar, acabar...
Como Lavoisier disse... não vai se perder... vai continuar no ciclo... Tudo
muda...
Professor Tem um ciclo por toda parte então... Algo mais? Alguém mais gostaria de
falar? OK, agora eu gostaria que vocês lessem o poema que está coberto no
pôster...
Professor (5
minutos depois)
Agora eu queria que vocês olhassem para o pequeno compartimento ao lado
do poema. Eu gostaria que vocês, individualmente, pegassem um ou mais
desses pequenos papéis coloridos, pelo menos um, e os colocassem sobre
167
uma palavra do poema que vocês considerem importante... e gostaria que
vocês fossem capazes de justificar essa escolha...
Professor (10
minutos depois)
Agora eu quero ouvir vocês!
Aluno 8 Eu escolhi “womb” e “regenerate” porque o autor parece querer voltar para o
começo da vida e fazer coisas... e fazer as coisas que ele não fez e gostaria
de ter feito.
Aluno 4 Acho “thrust” interessante...
Professor Por que?
Aluno 4 Porque ao mesmo tempo que tem a ver com... com o ato sexual, com a
penetração, tem a ver com golpe... com morte. Tipo quando alguém vai
esfaquear alguém... Tem um duplo sentido... Vida e morte...
Aluna 9 Eu escolhi “could”, “convert”e “passage back”.
Professor Por quê?
Aluna 9 Acho que essas palavras mostram que ele não é capaz de fazer o que
gostaria. Ele quer mudar, voltar...
Professor Como você vê a palavra “convert” no poema? O que ele quer converter em
quê?
Aluno 8 Ele mesmo?
Professor Ele mesmo em que?
Aluno 8 Em esperma... para poder voltar...para o útero da mãe...
Professor Mas as palavras “passage back” se referem a um movimento em que sentido?
Para dentro do útero?
Alunos
(indistinto)
Não... Acho que não...
Professor Para onde então?
Aluna 7 Para fora do útero...
Aluno 8 É... a palavra “fuck” está em sentido contrário... Ele quer “fuck” para fora do
útero, na direção do mundo...
Aluno 7 Eu concordo com isso...
Aluno 10 Eu destaquei “fuck”. Eu acho que essa palavra se relaciona com morte... O
fato dele conseguir “fuck his passage back again” não quer dizer que ele vai
renascer... não quer dizer que ele vai ser uma nova pessoa, uma pessoa
diferente... não quer dizer que ele vai conseguir fazer as coisas que não
conseguiu fazer antes... Acho que tem um jogo de palavras. Ele vai voltar
para uma vida que é “fucking difficult” e ficar “fucked up” de novo...Uma vida
nova, mas difícil como a anterior...de novo... eu também escolhi “again”
porque acho que ele está ironizando o ciclo da vida e dizendo que não tem
jeito... você pode até se converter em esperma e voltar para o útero e
renascer... mas só para encontrar as mesmas dificuldades...
Professor É interessante essa conotação sexual do poema. Se você pensar no deus
grego Eros, ou Cupido para os romanos, da onde vem a palavra “erótico”,
você vai ver que ele não era só o deus do amor...Depois que ele se separa de
Psiquê, ele vai resgatá-la do reino dos mortos... Ele tem uma função de vida
também...
Aluna 11 Por isso que eu escolhi “wish”, porque mesmo que fosse para ele voltar a ter
uma vida ruim, ele quer viver de novo... ele quer viver mais...
Professor A gente não vive sem desejo, não é isso? Bom, agora eu queria que vocês
pensassem em tudo o que fizemos desde o começo até agora. De que forma
essas atividades que precederam a leitura do poema, o modo como pedi que
lessem podem ter ou não interferido na leitura de vocês?
Aluno 8 A gente talvez não tivesse dito as mesmas coisas...Talvez a gente não
tivesse todo tantas idéias...
Aluna 9 Talvez essas imagens tenham restringido nossa leitura, nos guiado...
168
Professor Talvez sim... Mas eu me pergunto se, caso não houvesse as imagens
impressas no papel, se a gente não ia recorrer a outras imagens que fazem
parte do nosso repertório de imagens e que estão guardadas na nossa
memória...
169
ANEXO V – CURADORIA DE UM CONTO
Curador Quero que vocês olhem para as pessoas das fotos ou para uma das pessoas
das fotos, vocês que vão decidir, e eu quero que vcs pensem numa história
com essa pessoa ou com essas pessoas. Uma história com começo, meio e
fim.
Joana Pode ser mais de uma história?
Curador Pode ser mais de uma história... Você vai pensar nessa história e depois que
ela estiver bem clara na sua cabeça, você vai escrever palavras-chave
ligadas a essa história ou histórias.
Marta Pode ser criada?
Curador Uma coisa que você viveu. Uma história vivida.
Carlos Ah, então tem que ter sido vivida?
Curador Tem.
Joana Tem que ser uma história ou um momento?
Curador Uma história que se conte...
Joana Não escreve a história.
Curador Não. A história na cabeça e palavras para te ajudarem a lembrar...
Marta Depois eu vou contar essa história?
Curador Você vai contar essa história.
Os participantes montam suas histórias.
Curador Tá. Agora a gente vai trocar de pôster e eu vou dar um tempo para vocês
observarem as fotos e as palavras e tentarem imaginar que história é essa
que está por trás dessa foto.
Carlos Tipo escravos de Jó?
Curador Como vocês quiserem, desde que você não fique com sua própria foto.
Os participantes trabalham em silêncio.
Curador Vai ser assim agora: vocês vão dizer o que vocês acham que vocês viram,
que história é essa... depois o dono da história conta a história. Pode ser?
Carlos É... a foto é a celebração de um aniversário e... as legendas... as legendas
têm a ver com aniversário mas me parece que não estão exatamente na foto.
Por trás da foto... Eu fiquei em dúvida se esse aniversário realmente era do
Breno [filho da Marta]...
Marta É... de um ano.
Carlos De um ano? Me pareceu, em função da legenda, que esse aniversário foi
mais importante do que essa foto revela. Tem aqui “perdas e ganhos”,
“alegrias e tristezas”, tem muitas dualidades... “Medo”, “solidão”... Porque,
aparentemente, numa foto de aniversário, não teriam essas legendas. Me
pareceu que o bolo de aniversário estava ali... é... estabelecendo uma nova
relação com essas pessoas que estão aqui.
Marta Na verdade o foco daí... do pôster... não foi aniversário. A figura central do
pôster sou eu mesma. Eu tô no meio da foto. E essa foto representa hoje a
configuração atual dos meus dois núcleos familiares. De pai, mãe, irmãs e
sobrinhos... porque o filho da Larissa [irmã da Marta] ainda não nasceu; e de
Felipe [marido de Marta] e meus filhos. É... essas palavras são a
representação das minhas... da minha vida. É... e eu escolhi esse lugar
porque esse lugar é o quintal da minha casa em São Fidelis, que é a cidade
em que eu nasci... então é uma origem assim de lugar, de identidade. A
dualidade é exatamente o que eu sou. Porque isso aí é uma foto de
resultado... a foto está no meio da folha porque eu já andei uma parte e tem
um futuro aí. Ela não é a finalização de nada, ela também não é começo. Já
uma história começada ai... eu já tô adulta, continuo filha mas eu sou mãe, eu
sou esposa. Tem um “parabéns” atrás... no pôster do aniversário, que eu
olhei e é como se eu tivesse me dando esse parabéns, assim, porque nesse
170
momento eu já passei por momentos de solidão, de tristeza, de ganhos, de
descobertas, de dificuldades, de facilidades, de trabalho, de aprendizado, de
um monte de conquista, assim... Um processo que eu queria que tivesse
envolvido tudo. Aí estão os meus afetos, tão as minhas dificuldades, tão
faixas etárias diversas, tem três gerações aí... presentes na foto. É uma
celebração e ao mesmo tempo um retrato mais atual que eu tinha impresso
do que é hoje a minha vida.
Curador [Olhando para Carlos] Quer falar?
Carlos [Para Marta] Por que você sublinhou “questionamento”?
Porque questionamento... depois eu queria colocar perguntas, respostas... aí
eu enfatizei a palavra “questionamento” para englobar isso. Questionamento
é uma coisa que tá presente na minha vida desde quando eu me entendo por
gente. Eu tenho lembrança de mim, no jardim da infância, com três anos de
idade, em cima de um escorrega, fazendo a seguinte pergunta: “quem sou
eu?”. No recreio do jardim de infância... Então eu sou uma pessoa
questionadora integralmente... o tempo todo que quero saber porque que tá
ventando, eu quero saber porque que o computador não funciona, eu quero
saber quem sou eu, eu quero saber porque que eu não sei as coisas, eu
quero saber porque que eu sei... então... é um fermento. Eu coloquei “apoio”
e “suporte” numa linha ligada à outra como se uma base da fotografia
também... eu coloquei “conjunto x indivíduo” porque eu tenho apoio desse
grupo mas eu também tenho momentos que eles não podem interferir... as
dificuldades da convivência, as facilidades da convivência... e é a referência
mais forte, assim, da minha vida, né?
Curador Fala do seu pôster... o que que você viu?
Marta Aqui é o pôster da Joana e Joana selecionou três fotos... e posicionou uma
coluna de palavras para cada fotografia. Na foto que ela tá entre o irmão e a
mãe ela coloca “aprendizagem”, “humanidade”, “doação”, “força” e
“crescimento”. Na coluna do meio que tem ela e Carlos abraçados, tem
“realização”, “desejo”, “sonho”, “viagem”. Na foto dela de formatura com o pai
tem “dedicação”, “empenho”, “alegria”, “disposição” e entre parênteses “ajuda”
e “carinho”. Aí eu li o seguinte. Eu achei interessante... é... tem uma
separação do núcleo familiar dela... na área da folha... ela e Carlos estão no
meio disso assim... Todas as palavras que ela colocou na folha são palavras
positivas... não tem nenhuma palavra negativa, não tem aqui “tristeza”, não
tem “medo” como tem a minha... não tem “solidão”, não tem “saudade”, não
tem nada disso... É como se ela tivesse feito... colocado três seguimentos que
são a força dela. “aprendizagem, doação, força e crescimento”é a coluna de
um processo... onde a raiz deve ter sido o lar, assim... a mãe, a presença da
mãe, do irmão... a referência dela... Na última coluna, “dedicação, alegria,
empenho, disposição, ajuda e carinho”eu fiquei na dúvida quem pra quem... é
a foto dela com o pai dela... dedicação de quem para quem aqui? Ela tá de
beca... então é um momento de conquista dela, de término de uma fase, de
início de outra, e o pai está aqui presente. E na coluna do meio tem toda uma
estesia de alguém... “realização” tá na coluna do meio. “Humanidade” tá com
a mãe e com o irmão... “doação, força, crescimento”, “alegria” tá ali no
momento da formatura dela... mas “sonho” que é o fomento de vida,
“desejo”... “realização”... quer dizer “sonho” e “realização” tá ali com Carlos...
De repente é o momento de maior autonomia dela, de maior transparência...
foi uma coisa que ela colocou central, assim... As outras colunas periféricas e
essa central.
Curador Você uma história aí? Se você tivesse que contar uma história, o que que
você contaria?
Marta Não vejo uma história com começo, meio e fim nessa sequüência não... não
foi uma coisa que eu pensei não...
171
Curador Tá. Joana?
Joana Eu acho engraçado, assim... muita coisa que ela falou teve realmente a ver
como que eu pensei... mas muita coisa também... quer dizer muita não...
algumas coisas... não teve nada proposital e acabou sendo a interpretação da
pessoa... Por exemplo aquela foto estar no meio foi totalmente por acaso... e,
realmente você fez uma interpretação que até tem a ver o porquê de estar no
meio. A foto da formatura também foi... é que eu queria só uma foto com meu
pai que não necessariamente tivesse separado, poderia até estar os três
juntos... mas já tinha escolhido aquela com minha mãe e meu irmão... aí eu
pensei, ah, só uma com meu pai e eu peguei essa... Mas por acaso também
foi um momento importante da formatura... só que o que eu escrevi eu não
estava nem pensando na formatura... Achei interessante essas interpretações
que você fez que eu, realmente...nem tinha pensado... e a pessoa que pega
sem saber de nada, né, vai pensando na histórias. Mas, assim, o... em
relação às coisas que eu escrevi tudo teve a ver realmente com o que você
interpretou, assim... mas naquela parte que eu coloquei com meu irmão e
com minha mãe... do, da unidade, crescimento, do núcleo familiar eu botei
exatamente pensando nisso, a intenção era essa, de demonstrar essa... a
pessoa que eu sou hoje, assim, que tem muito deles. A foto do meio também,
tudo a ver como que você falou... Essa foto foi de uma viagem que a gente
fez pra...
Curador Isso, conta essa história, dessa viagem...
Joana E eu coloquei... escolhi de caso pensado quando estava vindo para cá, que
foi a primeira viagem que a gente fez depois de muito tempo, né, da gente
estar juntos, foi a primeira vez que a gente andou de avião juntos. Era uma
viagem que eu queria muito fazer porque era pra Bahia... uma coisa que eu
gostava muito, eu gosto, né, de música baiana, uma coisa que eu queria
conhecer, ter contato. E ele também, por outro lado, que é praia, estava uma
época boa... então acabou dando tudo certo, foi muito legal. Então eu
coloquei essa parte de sonho, realização porque foi uma realização para mim,
uma coisa que eu queria muito fazer, enfim, a continuidade assim, realização
depois de muito tempo de uma coisa que a gente tinha planejado. E a última
foto, que você falou de quem para quem, eu pensei do meu pai para mim e,
na verdade assim, não tem aquela parte da continuidade porque eu pensei
mais na fase da infância. Por isso que não tem muito daquela coisa, aquela
linha primeira, da construção, do até hoje, assim, dando continuidade. Tem
palavras assim que eu pensei não tão substanciais, uma coisa mais que você
vive, é, um momento que você mais sente do que vive na verdade. Não é que
nem aquele dali que você constrói. Aquele dali eu coloquei palavras que me
lembram assim, vamos supor, é, uma, esse negócio que o Felipe estava
falando, de criança... os dois têm criança em casa... uma coisa que eu me
lembro muito de quando eu era pequena, meu pai sempre fazia questão de
levar a gente nas festinhas, de criancinha, mas era sempre todo mundo... Não
tem aquele pai que leva a criançada toda, que enche o carro? Era sempre o
meu pai que ia. E aí eu lembro uma vez, é...o carro lotado, assim, tinha sei lá
quantas cabeças... e ele era sempre assim. Ele levava, “ah, vou te buscar que
horas?” “Tal hora.” Se ele chegasse, “pai, tá muito bom. Volta daqui a duas
horas.” “Tá... tudo bem! Se você quiser daqui a três horas também tá ótimo!”
E se ele voltasse daqui a duas horas “não, posso ficar mais meia?” “Pode!”
Sabe, assim... e todo mundo curtia muito isso, as minhas amigas. Todo
mundo queria que ele fosse levar, que ele fosse buscar, porque tinha essa
questão assim de deixar a gente bem à vontade... Por outro lado, o dele era
sempre o carro mais velho, mais ferrado de toda a galera, todos os pais. E
uma vez a gente foi numa festa não sei onde e ele colocou mil pessoas
dentro do carro e na hora que a gente tava voltando de madrugada o carro
172
parou. O carro do meu pai sempre acontecia isso... de vez em quando ele
parava e tinha que empurrar, aquela coisa... e aí o carro parou e ele, assim,
eu senti que ele ficou meio preocupado, tenso né? Imagina, você com várias
crianças dentro do carro, sei lá, era meia noite, meia noite e pouco, e o carro
parar! Aí ele conseguiu um posto e a gente saiu do carro, dentro do posto,
criança, né, como se nada tivesse acontecido, na maior animação, a festa! E
ele, assim, meio preocupado, mas brincando, rindo, sabe? “E você, fulana, a
festa, ficou olhando para não sei quem?” E o carro parado, nada tinha o que
fazer, e ele não perdia o clima, assim de ficar, de brincar, de falar... Até que
ele conseguiu lá... Então é isso que eu lembro assim dessa fase... uma coisa
mais descontraída assim... Eu não acho que seja muito aprofundada como
aquela, mas é uma coisa que marcou também.
Curador OK. Fala Felipe, o que você viu na história do Carlos?
Felipe Eu fiquei para essa fotografia em que tem um casal aí que, poderia dizer, já
de idosos. Eu imagino que esse casal seja os avós dele. Eu fiquei olhando as
palavras aqui... “exemplo”, “liderança”, “dedicação”, “responsabilidade”,
“sabedoria”, “bondade”, “respeito”, “fidelidade”, “realização”, “verdade”,
“desafio”, “vitórias”, “saudade”... e eu fiquei pensando que nessas palavras
que aqui estão, nenhuma delas tem uma conotação negativa, alguma coisa
que represente tristeza, que represente alguma coisa negativa para esse
casal... Aí eu pensei que talvez tenha um pouco do lado apaixonado do
Carlos por esse casal...os avós do lado do neto que sente saudade, que ama,
que respeita, que via neles, ou ainda vê, neles um exemplo de vida, aquilo
que ele gostaria de ser, aquilo que ele gostaria que a vida dele fosse no
sentido de valores de uma maneira geral. Foi isso que eu pensei
inicialmente... Por outro lado eu fiquei pensando que a gente sabe que a vida
de todo mundo não é uma vida... cada um com as suas dificuldades... então
não obstante tenha tudo isso aqui, existam todas essas palavras em relação
ao casal, quantos talvez não tenham sido os momentos de dificuldade
durante a vida deles, durante o período em que estiveram juntos, o período
até se encontrarem, construir, de formar uma família, de formar os filhos, de
se manter no trabalho, tudo isso que são coisas pertinentes da vida que
geram preocupações... Eu fiquei imaginando como era bonita aqui essa
história porque tem muita gente que passa por essas dificuldades e não
consegue passar esses exemplos e como é bonito você ver pessoas que não
obstante a dificuldade que ela tenha na vida, ela ainda assim consegue
passar exemplo, valores, né, de conquistas, que marcam as pessoas que se
encontram a sua volta. E quanto que a história deles não marcou talvez só o
Carlos, mas talvez tenha marcado a tantas outras pessoas... O curioso é que
essa história não é necessariamente uma história que a gente imagina que é
uma história que foi contada no passado onde a gente não pode mais tocar...
mas ela é uma história que em verdade ela continua. Ela é uma história que
tem continuidade nos valores que Carlos preza e que outras pessoas prezam.
Eu acho isso muito legal.
Curador Fala Carlos
Carlos É isso aí mesmo que o Felipe colocou... E eu quis, embora eu saiba algumas
histórias difíceis, tristes, melancólicas, uma novela mexicana que os dois
passaram... eu fiz questão de ressaltar essas palavras porque eu já
presenciei... eu tive a oportunidade ou infelicidade... o fato é que eu cheguei a
registrar os dois passando por dificuldades muito significativas... Eu criança e
mesmo os dois passando por coisas muito complicadas, histórias muito
cabeludas, os dois estavam juntos, é tinha uma...
Curador Conta uma história aí...
Carlos Uma história deles? Dos dois?
Curador É.
173
Carlos Ah, eu lembro um tio meu que levou a vida toda como um “bom vivant”,
gastou muito dinheiro, teve grana e perdeu tudo... e meu avô nunca teve
grana e... por conta disso internou minha mãe, minha mãe ficou internada
numa escola não sei por quantos anos e tal... E aí esse meu tio, que era o tio
que eu... até hoje, tenho dois tios por parte de mãe...Esse tio eu nunca tive
afeto nenhum em funcão das histórias que minha mãe contava. E, aí eu
lembro que ele ficou num perrengue danado, ninguém da família queria
ajudar... e eu lembro do meu avô batendo na mesa, nos encontros de família,
meu avô batendo na mesa dizendo que ele ia ajudar o filho dele,
independente do que tinha feito, independente do que tinha acontecido e que
se ninguém queria ajudar, que ele amanhã, no dia seguinte da história, ele
estaria arregaçando as mangas pra poder construir a casa do meu tio no
quintal da casa dele. Foi uma força, assim, sabe? Foi uma liderança que
mobilizou a família toda pra... quem podia comprar um tijolo comprou, quem
podia... eu achei... isso me marcou bastante, por exemplo. Ele tinha todos os
motivos do mundo para não ajudar esse filho, todos os motivos. Racionais,
emocionais...mas mesmo assim ajudou.
Curador Joana...
Joana Bom...esse pôster que eu peguei eu não sabia se era da Marta ou se era do
Felipe...É... achei as fotos e as palavras tudo a ver... assim... com o que eu
pensei das fotos. A palavra “conquista” junto com “família” foi uma coisa eu
me impressionou bastante. Felipe com os meninos... “Saudade” eu pensei
também... porque são momentos diferentes... você que aqui eles estão bem
mais novinhos, bem mais crianças do que nessa foto... então eu pensei
“saudade” de um tempo que não vai voltar. Breno aqui de fralda ainda e agora
aqui já maiorzinho... E aí essa “saudade” eu liguei com “separação” no
sentido de que como essas fases não vão retroagir eles vão crescendo e uma
hora cada um vai cuidar da sua vida... eu pensei dessa separação nesse
sentido... que não vai ter mais morar na mesma casa, essa coisa de
criancinha que é muito legal, muito gostoso. “Amizade”, “amor”, “união”,
“continuidade”... também pensei nesse ciclo de dar continuidade...também
pensei no uniforme do fluminense, de dar continuidade ao pai (risos).
Curador Você vê alguma história aí?
Joana Não. Não vejo uma história não... mas eu acho que aqui era um momento
bem legal... assim...algum lugar que eles estavam, em algum momento ou...
não sei... de férias... ou final de semana... um gramado aqui, você que é um
lugar arborizado, é um lugar diferente da onde a gente vive no dia a dia da
cidade, é um lugar diferente daqui – todo de mundo de camisa... – já aqui eles
estão bem...os três totalmente descontraídos. É isso...
Felipe É... essa é a história até agora dos meus últimos seis anos de vida. Eu acho
que com a chegada do Hugo, do Breno... é uma história nossa... é uma
história minha enquanto pai que estou tendo a oportunidade de viver... Os
dois me dando a oportunidade de ser o pai deles... É uma história que eu
gostaria de contar de uma maneira diferente daquela que eu tenho contado
na minha vida... enquanto meu pai... da maneira que era a relação do meu
pão comigo. É... que de certa forma hoje eu lamento ter sido algo um pouco
mais frio, um pouco mais distante... que eu não gostaria que fosse com os
dois... com Hugo, com Breno... Então eu acho que essa é uma história que a
gente tá construindo junto. A gente tá construindo nos momentos em que a
gente brinca, nos momentos que eu jogo bola com eles, nos momentos em
que a gente faz tantas outras coisas... que eu estou construindo também nos
momentos em que eu não faço e que são oportunidades que às vezes eu
penso... poxa, deixei passar aquele momento e podia ter sido bom, podia ter
sido bom, podia ter sido melhor e eu podia ter dado um pouco mais de mim...
Enfim, mas é uma história que tem sido muito legal para mim, muito
174
prazerosa... Uma conquista de uma família. É... uma saudade que eu sinto
deles quando eles se separam... quando eles se separam de mim... Eu fico
quieto, eu não falo mas eu sinto falta. Na ausência deles, da bagunça. Nesse
momento essas tarefas todas... eu queria realmente que a gente fosse muito
unido. Que eu acho que essas fotos representam muito bem isso... essa
história que eu gostaria de contar, que eu venho tentando contar... que é
exatamente da gente junto, da gente perto um do outro... eu do lado deles,
ali... uma delas ali é uma foto que... é...Se eu não me engano foi no dia das
crianças e os meus pais deram de presente para os dois uma bicicleta...
Então Breno está sentado na bicicleta e tá o Hugo do lado, estou eu e eles
estavam super felizes porque tinham ganho um uniforme do fluminense...
estavam todos vestidos do uniforme do fluminense. Eu acho muito legal
porque eles se identificam comigo, eu sinto que eles querem, almejam ser um
pouco do que eu sou, da maneira que eu sou... Então nessas simbologias de
ser fluminense e também vestir a roupa do fluminense e falar que está igual...
e tudo mais... é uma representação assim de união, o quanto a gente talvez
esteja perto um do outro... Naquele outro momento ali no sítio a gente estava
ali saído da piscina... Breno ainda pequeninho.... Hugo com toda a sua
“gordura” ali em volta (risos). O quanto eles não gostam quando a gente vai
pra lá pro sítio... Quando eu vou pro sítio e eles ficam me pedindo... é... “pai,
entra na piscina” Querem que eu entre porque eu entrar na piscina significa
eles entrarem na piscina, não é? E eles entrarem na piscina é muito legal
porque eles gostam de brincar comigo na piscina. É claro que eles gostam de
brincar com outras pessoas... mas é tão assim representativo o fato de gostar
de brincar comigo, de estar comigo. E... o quanto é legal assim, se você se
disponibiliza a estar com eles, eles se disponibilizam a estar contigo. Se não
se disponibiliza a estar com eles, eles acabam abrindo a opção de estar com
outras pessoas naquele momento. Eu acho que essa história foi diferente na
minha infância, de presença do pai, de ter talvez um pouco mais disso que eu
sinto falta, eu não queria que eles tivessem. Queria que eles tivessem essa
presença. Eu acho que essa é a história que eu venho contando nos últimos
seis anos... é muito legal. E eu fiquei imaginando que naquela palavrinha ali
“separação”... que vai chegar um dia que...eles vão alçar vôo. Vão bater asas,
vão ser pais, vão ter a família deles...
Carlos Eu muito interessante você falar isso... Eu já ouvi você falando uma meia
dúzia de vezes que eles vão alçar vôo... Eles muito pequeninhos... você já de
certa forma angustiado...
Felipe É, não chega a ser uma angústia, Carlos,
Joana É uma separação...
Felipe É, não chega a ser uma angústia... eu não fico angustiado. Mas...é...é muito
curioso porque esses dias a gente ficou esse tempinho agora com Hugo e
Breno na casa dos avós lá em São Fidélis. E a casa fica uma paz, né Marta?
A gente sente falta desse... o fato dos dois estarem em casa é... sinônimo
de... a casa vai estar desarrumada, vai estar tudo uma bagunça, é gritaria, é a
gente se descabelando, é a hora do banho, é a hora do almoço, é um que
não come, o outro que não quer tomar banho... é um que cai e se machuca,
correndo pela casa...mas é alegria, é alegria...a gente entende realmente os
pais que depois de anos e anos nesse movimento e os filhos vão embora... e
aí... caramba... o que é que eu faço?
Joana Cai a ficha né...
Felipe Cai a ficha... o que é que você faz? Porque eles vão alçar vôo, eles vão...
sem dúvida alguma vai chegar o dia em que eles vão querer ter a casa deles,
não vão querer mais morar com os pais, o pai vai ser um inconveniente...pô
pai, não quero que você controle a hora que eu vou chegar em casa, não tô
mais na idade de ficar dando esse tipo de satisfação... e a gente fica vendo,
175
olhando para os nossos pais... tem hora que eu olho para os meus pais e eu
digo assim, é... a música Como os Nossos Pais... ela é... como os nossos
pais mesmo...tem tudo a ver. Porque a gente vai cobrar as mesmas coisas, a
gente vai falar as mesmas coisas, a gente vai repetir as mesmas coisas. Mas
vai chegar em que eles não vão mais estar aqui com a gente num convívio
diário... vão estar por telefone, vão estar na casa deles, ou não vão estar, a
gente não sabe. Mas eu queria nessa história deixar marcado. Queria que...
[se emociona, faz longa pausa]
Carlos Fala...
Marta Tá tentando...
Felipe ...que lá no futuro, quando eles já estivessem adultos, né, com a minha
idade... [se emociona, outra pausa]... bom... que eles olhassem para essas
fotos e...e pensassem... que tiveram um pai legal...
Curador Olha essa figura aqui... vocês conhecem?
Carlos Sim.
Marta Quarteto Fantástico...
Curador O que vocês sabem deles?
Marta Uma história.
Carlos Um grupo de cientistas que, em função de uma experiência sofreram uma
mutação e adquiriram poderes especiais.
Curador Então eles são o que mais?
Marta Super-heróis.
Curador O que vocês sabem dos poderes deles?
Marta Um diferente do outro, cada um com um poder. Eu sei que ela fica invisível.
Ele é o elástico.
Felipe Mulher Invisível e Homem Elástico
Marta Qual o nome?
Felipe É... o nome dele é...
Curador Reed Richards...
Felipe É, exatamente.
Carlos O Coisa.
Marta O Coisa e o Homem Tocha, Tocha Humana...
Felipe Irmão da Mulher Elástica...Da Mulher Invisível!
Curador Então eles são só mais um grupo de super heróis ou tem alguma coisa neles
que os distingue dos outros?
Carlos Trabalham geralmente em equipe.
Marta São amigos?
Carlos São amigos...
Felipe Formam um grupo...
Curador Alguma outra característica que os distingue dos outros?
Marta Dos outros quem?
Curador Dos outros heróis.
Marta Eles existem juntos, né?
Curador Como?
Marta Eles são um grupo... Quarteto... Não é o super-homem que é um herói
autônomo... como o Batman, que até tem o Robin lá como coadjuvante, mas
eles atuam, vivem, existem... não foi uma criação estanque, um em cada
momento, não... eles se tornaram super-heróis juntos... existem juntos como
super-heróis...
Curador Hum, hum... Que mais? Eles enquanto grupo. Tem alguma dinâmica que os
distingue de outros grupos? Tipo Liga da Justiça, por exemplo...é um grupo.
Carlos Pois é... mas a Liga da Justiça tem episódios que sobressaem um super-herói
ou outro. Nesse aí...esses super-heróis, pelo menos os episódios que eu
176
assisti, ou que eu já li, eles estão sempre trabalhando em conjunto...
Curador Teria alguma outra característica que os classificasse como grupo? Se você
pensar nas relações intra-grupo...
Felipe É...
Carlos Acho interessante como o Homem Elástico acaba se tornando a liderança... É
uma coisa que me intriga. A questão da liderança.
Felipe Ah mas ele está na liderança porque ele é o intelectual do grupo... Na
verdade ele já era até, segundo a história, ele já era...
Carlos Não, mas a força dele não era a mais..., né...se você pensar bem...
Felipe Não é mais?
Carlos É, porque na hora de executar as coisas, ele era um intelectual, ele era o
chefe da equipe, se não me engano, não era?
Felipe Era e continua sendo...
Carlos Pois é, mas na hora de executar não é ele que é o estrategista...não
necessariamente...
Felipe Tá, é... ele continua sendo líder do grupo...
Carlos Não tem aquela coisa de comandar...
Felipe Ah tem sim.
Curador Eu acho legal esse questionamento do Carlos porque a resposta para este
questionamento tem um pouco a ver com a pergunta que eu estou fazendo...
O que distingue esse grupo de heróis dos outros grupos e você, para
responder essa pergunta, tem que partir das relações intra grupo...Isso talvez
explicaria um pouco o porquê do Homem Elástico ser líder desse grupo... Se
vocês tivessem que definir esse grupo com uma palavra, que palavra você
definiria?
Marta Não sei... quando você falou... eu não estou respondendo a sua pergunta
diretamente...
Felipe Eu diria que é um grupo unido.
Marta Assim, essa metáfora dele ser elástico, a liderança, talvez... para ele
conseguir conjugar coisas tão distintas – invisibilidade, força bruta, fogo, né,
que um estado diferenciado, é... é calor, é poder também... ele tem que ter
uma flexibilidade... Toda pessoa que é líder, ele tem que ser político, ele tem
que ser diplomático, ele tem que ser flexível... para ele poder manter essas
diferenças unidas.
Curador Hum, hum... fala um pouco mais das relações intra-grupo. O que que eles são
entre si?
Marta Ele não tem um afeto pela, pela Mulher Invisível?
Felipe Tem.
Curador É só um afeto?
Felipe Não... rola um...
Marta Uma relação?
Carlos Se “pegam”.
Felipe São casados!
Marta Ah não sabia!
Felipe É, é quase que uma família, né? Porque na realidade eles são casados, o
Tocha Humana lá é irmão dela, é cunhado e...
Marta E o coitado do Coisa?
Carlos É o vizinho...
Felipe É um agregado, gente! Uma coisa agregada!
Todos [Risos]
Felipe Ele é o coisa!
Marta Que é por sinal o que tem auto-estima baixa!
Curador Ele é o adotado, o agregado... Dentro desse estereótipo, dessa palavra que o
177
Felipe trouxe, que é “família”, dá pra entender porque que o...
Marta ...Homem Elástico é líder? Ele é o chefe de família...
Curador Uma família patriarcal...digamos assim.
Engraçado que é uma coisa assim, é uma história americana isso, não é?
Felipe É.
Marta E... me lembra assim, que o Maurício de Souza ganhou um prêmio há um
tempo atrás, que entre os desenhos animados, ele era na época o único que
apresentava um conjunto familiar tradicional de pai, mãe e filho. E aí nas
histórias americanas não se encontrou...as princesas todas eram órfãs, é... os
pais morriam nas histórias, as madrastas ficavam, elas eram pobres coitadas
e que a salvação e a felicidade estava num , no novo núcleo que o príncipe
que salvava. E quando eles pegavam lá a formação da Disney, por exemplo,
o Tio Patinhas não tinha uma esposa, o Pato Donald não tinha filho, eram
simples sobrinhos, o Mickey nunca casava com a Minnie... Então, nessas
relações não se formava essa configuração de pai, mãe e filho, uma casa, um
lar, entendeu? É uma coisa que me chamou a atenção e ele ganhou um
prêmio por isso.
Curador OK. Vamos ver um filme agora. É uma cena de dez minutos...
A cena é mostrada para o grupo. Imediatamente após o filme, o grupo lê o
conto em voz alta.
Curador Então agora a gente vai para um outro momento... A gente leu o conto e eu
queria que vocês dissessem o que vocês viram no conto, que símbolos que
vocês destacariam, que temas vocês vêem no conto, uma conversa...
Marta Eu vejo vários temas aqui...eu vejo o tema que a gente está falando
reiteradamente, que é família; eu vejo as pessoas atrelando sensibilidade a
questão dramática... Por exemplo, a tia, que sempre se referia à morte do pai
como um acidente chocante, sempre começava por esse impacto e o
contrário... Jerome foi questionado se ele merecia ou não a confiança da
escola pelo fato dele ter perguntado sobre o outro ângulo da questão. É...
essa coisa de ser mal entendido... No final do conto, quando eu li... ele
verdadeiramente demonstra estar apaixonado por alguém que revelou ter
uma sintonia com ele, mais ou menos o mesmo modo de pensar. E no conto
todo ele sempre pareceu meio que um peixe fora d’água, as coisas que ele
pensava... É... a distância da convivência familiar... Quer dizer, ele nunca teve
um dia a dia com o pai. E, ao mesmo tempo, ele admirava o pai, ele
idolatrava o pai, imaginava determinadas coisas que pai fazia. O pai sempre
foi uma referência boa para ele. Tanto que tem aqui “Jerome idolatrava seu
pai.”
Carlos Eu posso estar completamente equivocado, mas me pareceu uma viagem
dele mesmo... que ele imaginava várias coisas aqui do pai... e lá pelas tantas
apresenta a versão da morte como a versão oficial. E, por alguns minutos, por
alguns momentos, assim, na verdade até agora, eu ainda levanto a
possibilidade de ser mais uma viagem dele. Talvez o pai nunca... o pai
desapareceu, não morreu nada e ele criou essa história fantástica sobre a
morte do pai. Como tantas outras histórias que ele inventava sobre o pai.
Curador Você acha que o fato de a voz que conta a história não ser a voz dele... Ele
não é um narrador onisciente, um narrador que sabe tudo. Existe um outro
narrador que fala “Jerome foi chamado a sala do diretor no intervalo entre a
segunda e a terceira aula numa manhã de quinta-feira.” Esse sim sabe. O que
que você acha disso?
Carlos Não podia ser ele inventando esse homem não?
Joana Poderia falar que antes também ele estava inventando, como se ele estivesse
inventando outras coisas mas... mas na verdade não é. Quando ele pergunta,
“ah, atiraram no meu pai? Atiraram no coração dele”, é natural, ele queria, ele
178
achava que fosse natural, uma morte na rua. Ou você bateu com o carro, ou
foi um acidente... mas ninguém vai imaginar que um porco... né?
Carlos Hum, hum...
Joana Ele achava que fosse uma coisa mais normal.
Curador Até porque era uma história da qual ele se envergonhava...
Joana É... ele estava mais para pensar “por que logo meu pai ia morrer dessa
maneira?”
Marta É... como se fosse uma morte indigna, né? Na verdade não é... A coisa mais
surreal é você ter um animal... assim... que cai do quinto andar em cima de
alguém!
Ana É, e parece que a vida inteira dele foi um tormento, esse pai idolatrado teve
essa morte que... era quase impossível das pessoas não rirem...
Marta Arrasou com a imagem do pai...
Ana Com a imagem do pai...”Pô, por que que o porco tinha que cair em cima do
meu pai idolatrado?!” De tantas formas de morrer, tinha que ser essa?
Marta Exatamente, exatamente...
Ana “Como que eu vou mudar, contar de uma forma diferente?” Não tem! A
história é essa! “O porco caiu em cima do meu pai e matou.” Não tem como
florear, como ser diferente, não tem...
Felipe Então aí talvez, não sei, pensando assim pelo lado do Jerome, imagina qual
seria a relação de uma pessoa que, ao morrer... porque a morte é um
momento triste, um momento de separação de entes queridos, de pessoas
que você gosta... então, é um momento de...talvez na nossa cultura, um
momento de introspecção, de seriedade, etc. Então, há um confrotamento
entre um momento de tristeza com uma situação cômica. Então, sei lá... o riso
me lembra, me leva sempre ao lado da alegria, da felicidade, de uma coisa
assim... Enquanto que era exatamente o lado contrário, né? Era o momento
de tristeza dele, sendo sempre colocado como um lado cômico. Como se a
vida de uma maneira geral não respeitasse a dor dele naquela hora.
Joana E quão significativo era isso para ele, né? A ponto dele depositar todas as
fichas dele na reação da pessoa... depende disso
Felipe O pai era tido por ele, pelo Jerome, como um grande ídolo dele, que ele
imaginava como sendo um herói... É, sei lá... qual criança que não vê o seu
pai meio que como um herói? Tem esse olhar apaixonado pro pai... Claro que
com o tempo isso vai sendo modificado, mas tem aquele olhar apaixonado
que era um herói para ele, um herói que não morre...
Marta Até mesmo o fato dele perguntar o que aconteceu com o porco e a noiva
também perguntar também... talvez uma maneira de dignificar um pouco essa
morte. “O pobre o porco.” Mitiga um pouco essa coisa cômica, chula, que
empobrecia o desfecho da vida do pai dele, que era o ídolo dele. O diretor
teve que fazer uma ginástica para não gargalhar... ele “o que que aconteceu
com o porco?” Sei lá, foi uma maneira de engrandecer aquele momento ali...
Joana Ou talvez até tentar dar uma disfarçada também... eu vou perguntar por esse
lado...
Marta Mudar o foco.
Joana É, mudar o foco, exatamente...
Curador Por que vocês acham que o autor escolheu um porco?
Felipe Faria diferença se fosse um outro animal qualquer?
Marta Faria! Eu acho... acho que o porco ali dá um ar de... uma situação esdrúxula,
bizarra... Um animal que às vezes é... tem o estereótipo de ser sujo, anti-
higiênico... Um animal que não é... tipicamente não vive nas alturas...Uma
situação atípica também...Um animal que você não cria dentro de casa
normalmente... a não ser naquelas circunstâncias...
Curador Que efeito que isso tem, vocês acham? O fato de ser um porco criado numa
179
situação atípica.
Marta Fica fantasioso também.
Felipe Torna a história fantasiosa... Torna a história uma ficção. Assim, ele estava
passando e de repente cai um vaso de flores da varanda e ele morreu...uma
coisa factível, real, fica mais próxima dentro de uma realidade concreta
daquilo que a gente vive...
Curador Você chegaria a dizer “inverossímil”?
Felipe Chegaria a dizer inverossímil. É difícil de acreditar.
Curador Ficção para você é algo difícil de acreditar?
Felipe É...é algo...ficção para mim é algo que você sabe que ele tem um lugar de
algo que não é concreto. De uma história que você já parte do princípio que
ela não é verídica. Ela não é real, ela não é concreta, ela não pode acontecer.
É o caso que a gente estava falando antes do super-herói. A gente idolatra o
super-herói, a gente sonha em ser, a gente vibra... mas a gente sabe que
efetivamente aquilo... não pode acontecer, dentro de um outro contexto.
Curador Mas uma história numa cidade real, com personagens concretos, um
advogado, um engenheiro... isso é ficção?
Felipe Pode ser...
Curador E é verossímil? Um escritor que escreva história de pessoas comuns,
acontece?
Felipe Acontece. Mas...
Curador Porque tem uma ficção fantástica e outra de situações verossímeis.
Felipe É.
Curador E essa ficção do conto que a gente leu você põe em que grupo?
Felipe Eu ponho dentro da “ficção super-heróis”. Por que eu ponho dentro da “ficção
super-heróis”? Porque...eu não conheço ninguém que cria um porco dentro
de um apartamento, no terceiro, quarto, quinto andar...
Curador Mas é possível alguém voar e se transformar numa tocha humana? Hoje?
Felipe Não.
Curador E é possível criar um porco numa sacada de apartamento?
Felipe É... possível. Mas eu não conheço ninguém.
Curador E mesmo assim você coloca a história do porco como uma história de super-
heróis?
Felipe Coloco. Como ficção fantástica.
Curador [Dirigindo-se a Carlos] Quer falar?
Carlos Tô pensando aqui...
Felipe São coisas distintas... mas me parece surreal. Talvez a palavra “surreal”fosse
melhor. Acima do real...
Curador A palavra “surreal”tira a história do porco do grupo dos heróis que voam e
pegam fogo ou mantém ela lá?
Felipe Tira. Acho que tira, porque seriam coisas distintas.
Curador Por que que é distinto?
Felipe Porque a questão do super-herói que voa e etc. é uma coisa que não existe
efetivamente... já uma pessoa criar um porco dentro de uma varanda pode
acontecer, de fato. Só que não está dentro de uma realidade comum...
Curador Não é corriqueiro...
Felipe Exatamente.
Curador Mas é possível?
Felipe É possível, é possível... concordo que seja possível.
Curador Voar ainda não é...
Felipe Ainda não é... exatamente.
Curador Então que efeito que o porco cria se ele não cria propriamente um efeito de
coisas fantásticas?
180
Marta De ridículo.
Carlos Uma situação vexatória. Alguém morrer numa situação dessas... ainda mais
quem era... Eu ainda acho que é verossímil sim. Entendendo um pouquinho
culturas diferentes da nossa, pessoas que comem...
Ana Cachorro...
Carlos Cachorro... [risos] [olhando para o curador] Pode fugir? [do assunto] Porque
um amigo meu chinês que foi na minha casa... ele tinha acabado de chegar
da China. A gente desceu o elevador, olhou prum cachorro e fez um
comentário...”esse cachorro dá um bom ensopado!”[risos] E eu meu pai
caímos na gargalhada. E era um cachorro de madame, sabe? Um membro da
família? Que nem chegar aqui, olhar para o Hugo e dizer: “Eu acho que dá
um assado!” Pra gente é surreal, a gente ri...Mas é possível e existe... Agora,
uma outra coisa que me chamou atenção... ele se interessou pela menina e
tal...
Ana Ficou noivo.
Carlos Ficou noivo dela e não tinha contado a história, não é isso?
Joana Hum, hum.
Marta Ele estava temendo a reação dela...
Carlos Pois é... eu achei isso interessante... Os segredos que a gente tem e a gente
vai revelando aos poucos... Quando a gente vai dividir uma história como
essa, a reação da pessoa é uma coisa muito importante e quando ela
corresponde às expectativas que a gente faz da maneira que a gente entende
que alguém que a gente ama deveria reagir, ou que a gente respeita... Aí eu
fiquei fazendo um paralelo com os encontros que a gente tem, as escolhas
que a gente faz... Eu tenho uma amiga que acredita convictamente que a
gente escolhe se apaixonar. Tá doido que a gente escolhe se apaixonar!
Curador Mas ele era apaixonado por ela, o Jerome?
Carlos Pois é! Eu acho que isso talvez tenha sido mais uma...
Joana Tem uma parte que fala...
Felipe Que ele era apaixonado por ela?
Carlos Se não estava apaixonado eu acho que ali teve o “feeling”. Mas... não sei... ali
eu me apaixonaria por ela se eu fosse ele...O respeito que ela teve pela
história...
Marta Ah, eu também...
Carlos Alguém que ele imaginava que deveria estar ao lado dele para sempre teria
que ter esse respeito.
Curador Vamos na última página...no parágrafo que começa com “A seu tempo...” “A
seu tempo, nem cedo demais, nem tarde demais, na sua capacidade de
perito-contador, Jerome havia estudado as estatísticas e tirado a média, ele
ficou noivo e pretendia se casar: era uma agradável jovem de vinte e cinco
anos cujo pai era médico em Pinner. Seu nome era Sally, seu autor preferido
ainda era Hugh Walpole, e ela adorava bebês desde quando tinha ganhado
uma boneca, aos cinco, que movia os olhos e fazia xixi. O relacionamento
deles os satisfazia mais do que apaixonava, como era de se esperar de um
perito-contador; nunca teria dado certo se tivesse interferido com os números.
Um pensamento preocupava Jerome, porém. Agora que dentro de um ano ele
poderia tornar-se ele mesmo um pai, seu amor por seu pai tornara-se ainda
maior e ele se dava conta do quanto de afeto havia investido nos cartões-
postais. Sentia uma ânsia por proteger sua memória, bem como não sabia se
esse amor tranqüilo dele pela noiva sobreviveria, esse amor tranqüilo dele!,
se Sally fosse insensível ao ponto de rir quando ouvisse a história da morte
de seu pai.”
Carlos Então não era qualquer coisa, né?
Curador Ele não sabe se o amor dele sobreviveria se ela risse...
181
Carlos Então! Se ela risse ele não ia gostar mais dela!
Marta É como se ele estivesse procurando uma estabilidade contábil ali da vida
dele.
Ana É... é matemático...
Curador Talvez ele não fosse apaixonado por ela a ponto de fazer qualquer sacrifício...
se ela risse do pai dele... tchau! O que vocês pensam disso?
Felipe É... na realidade o amor dele pelo pai era maior...
Marta Eu não entendi esse último pedaço “nunca teria dado certo se tivesse
interferido com os números.” Não entendi isso... Acho um contra-senso aqui
quando ele fala é...
Ana “Tirando a média”...
Marta Ele tirou a média, “estudou as estatísticas, tirou a média, ficou noivo e
pretendia casar.”
Curador O processo dele se apaixonar...
Marta Isso, aí “era uma agradável jovem”... quer dizer, tudo o que anunciava uma
vida de estabilidade, padrão... quer dizer, uma coisa fria, calculista...
Curador Racional.
Marta Racional. “agradável jovem de vinte e cinco anos” quer dizer, o padrão
feminino de juventude e vigor. Ela adorava bebê, queria ser mãe, formar um
núcleo familiar... e tal... sem estresse, sem altos e baixos...
Curador Tudo se encaixando.
Marta Tudo se encaixando, sem dar muito trabalho, sem preocupar muito. E aí por
isso que eu não entendi “nunca teria dado certo se tivesse interferido com os
números”.
Curador Alguém entendeu isso?
Joana Não...
Carlos “Se tivesse interferido com os números”...
Ana Eu acho que está faltando um “não” aqui. “Nunca teria dado certo se não
tivesse interferido com os números...” Faria sentido, se ele não tivesse feito a
matemáticas das coisas...
Marta É... ele tinha que manter o controle, aqui é uma situação de manter o
controle, “como é que eu vou manter o controle do futuro?” Aí ele encontrou a
pessoa perfeita, que correspondia... “O relacionamento deles o satisfazia
mais do que apaixonava”, aí lá embaixo confirma isso “O amor tranqüilo...”
Carlos Não, mas aí olha só: “nunca teria dado certo se tivesse interferido com os
números” se tivesse numa média...
Marta Se tivesse o quê? Ido de encontro com os números?
Carlos Isso.
Marta Ah tá, entendi...
Ana Eu não entendi...
Marta Se tivesse conflitado com os números não teria equação... Interferir no
sentido de ir de encontro a, de confrontar...uma situação arrebatadora que o
tirasse da situação de controle...Porque aqui é uma coisa controlada, um
perito contábil...o resultado tem que bater... então ele não permitia uma
relação arrebatadora... Isso só aconteceu quando ela correspondeu a coisa
mais secreta dele porque...a vida dele passou a ser o evento “morte do pai”. A
morte do pai dele era a história dele...
Curador E aí Carlos? Alguma coisa te afetou dessa conversa?
Carlos Não, não... continuo na mesma lógica...
Curador Fala sua lógica de novo para a gente retomar o fio da sua meada...
Carlos Que a relação com ela, embora estivesse dentro de um padrão aceitável, que
a grande questão era a maneira como ela ia corresponder à expectativa que
ele tinha em relação à revelação da história do pai, da morte do pai, que eu
interpreto, faço uma ponte, com as histórias, os segredos que a gente tem,
182
que a gente vai revelando na medida em que a gente vai tendo intimidade
com o outro, com o nosso parceiro, com a nossa parceira... e que faz toda a
diferença quando a gente vai conviver com uma pessoa por um tempo, um
compromisso de casamento, morar junto, seja lá o que for... Quando o
parceiro ou a parceira corresponde da maneira que a gente entende que a
pessoa deve corresponder. Então, no final das contas, a pessoa que se
encaixa mesmo. Ela pode surpreender até para melhor, mas eu acho que tem
um nível, um padrão ali de expectativa, que uma vez correspondida... então
quando ele fica feliz, quando ele beija e tal... tem uma parte que é quase que
um alivío né, cadê? “...cantava de alegria. Foi como se ela tivesse apaziguado
seu medo para sempre. No táxi, indo para casa, ele a beijou com mais paixão
do que ele jamais tinha mostrado e ela correspondeu.”
Curador “Que ele jamais tinha mostrado”
Carlos Então! Que até então, aquele momento, tinha... “e aí? Como é que ela vai
reagir?”
Marta Tanto que ele não contou logo no relacionamento, ele falou que tentou...
Joana Tentou mas não conseguiu...
Marta Deixou para a tia e aí? “Desejou sair da sala para não ver aquele rosto
adorável enrugar-se...”
Carlos Então...Por mais que a gente esteja convivendo com uma pessoa, a gente
não revela... e nem deve... não sei, na minha opinião... Tem coisas que...
intimidades como essas histórias, segredos como essas histórias que... a
pessoa tem que descobrir... eu acho. A gente dá até algumas instruções...
Marta Ou não também... a qualquer momento você pode contar, qualquer
circunstância...Se você quiser contar. Porque, na verdade, ele não podia
banalizar... foi uma coisa, assim, que se tornou conhecida, várias pessoas
queriam saber o que que aconteceu... doía mas não ia doer tanto... doeria
mais com ela, porque apesar de não ser uma coisa arrebatadora, era alguém
com quem ele queria construir a vida dele. Apesar de ser um amor tranqüilo, a
coisa estável, ele tentou falar mas não conseguiu. Ela não era uma indiferente
para ele. Tudo bem , desde que se mantivesse todo o controle. E engraçado
que por pior que ele fizesse, ele deixou pra tia falar, que era a pior versão da
história...quer dizer... ele delegou, preferiu que ela falasse...
Carlos Mas o fato dele estar vivendo isso com ela, convivendo a ponto de ficar noivo
e de pensar em casar e não ter revelado nada, eu acho que tem aí uma outra
perspectiva dessa história, que a perspectiva de você aguardar, você criar de
fato uma... acho que é uma questão de sonho assim... de alguém estar
fazendo aquilo que você imagina que deve ser feito. Entendeu?
Marta Não.
Carlos Eu acho que acabou convivendo com ela a ponto de pensar em casar e não
ter revelado a morte do próprio pai e a circunstâncias da morte do pai, e
aguardar até esse momento em que ela faz as perguntas e meio que
descobre sozinha... eu acho que é uma faceta dessa história de que essa
história, além de ser importante para ele, de como ela vai reagir a essa
história, é a sensibilidade de alguém... pensa bem, você está convivendo com
alguém durante um bom tempo, aqui não fala quanto que é esse processo
todo, mas enfim, para casar, ficar noivo e tal, um período relativamente
longo... e... na relação, na medida em que você vai construindo a relação,
existem segredos muito bem guardados pela gente, e guardados de propósito
e que a gente vai esperando a pessoa ter a sensibilidade de perceber o
momento disso ser revelado. Então, alguém que está do lado dele durante
tanto tempo e não ter feito nenhuma pergunta... e na hora que ele responde
as perguntas que ela fez e ela ter reagido da maneira que ele sempre
imaginou que alguém deveria ter, ou seja, teve a sensibilidade de não rir... Eu
183
acho que ali foi o momento em que ele verdadeiramente se permitiu. “Agora
eu posso mergulhar de cabeça.”
Curador Então antes...?
Carlos Antes havia uma promessa.
Felipe A reação dele me parece muito estranha porque se alguém diz que aconteceu
isso com alguém que você ama... diz que seu pai morreu e tudo o mais, quais
foram as circunstâncias, etc. Ele foi perguntar sobre o porco, o que aconteceu
com o porco...Sei lá, acho que se fosse comigo a última coisa que eu ia
querer saber era do porco...
Curador Tanto que diretor chegou a achar que ele era o quê?
Felipe Sei lá, doido...
Curador Insensível.
Felipe Insensível, né...Uma situação dessa, vai perguntar do porco! Eu não
perguntaria do porco...
Curador Por que que ele pergunta do porco?
Essa é uma questão... Eu pensei o seguinte... Bom, se o porco sobreviveu,
ainda tenho chance de matar ele...
Todos [risos]
Felipe É um pensamento... a pessoa ficou com raiva da situação...
Curador Mas ele não foi o único a ter essa reação, não é?
Felipe Não, ela também. Foi a única pessoa que teve a mesma reação...
Curador Inclusive fez a mesma pergunta...
Felipe “E o porco? O que que aconteceu com o porco”
Curador E ainda inclui um adjetivo para o porco na hora em que pergunta...
Felipe “O que que aconteceu com o pobre do porco.” Pois é, enfim, é estranha, né,
a preocupação com o momento ecológico...
Marta Nesse enfoque a gente até pensa se ele amava mesmo o pai...Porque na
verdade era uma idolatria, mas era uma coisa distante...Alguém que se tornou
um perito contador, foi calculista também... a pergunta dele...e ela também,
quer dizer, de repente ele descobriu a, entre aspas, alma gêmea dele...
Felipe Acho que essa é a pergunta desse conto: “O que aconteceu com o porco”
Carlos Mas o que eu acho mais maneiro dessa história, desse fato aí, é as diferentes
reações que as pessoas têm... e a dificuldade que a gente tem em função da
diferença do outro, do tempo do outro... então, eu que trabalho com
adolescentes...
Curador Mas as pessoas tinham muitas reações com a história do porco...diferentes?
Carlos Não.
Joana Não.
Felipe Basicamente riam, né?
Curador A não ser quando ele fazia ela ficar...
Felipe Exatamente, chata...
Curador Ou então ele contava tão rápido que a pessoa achava que era outra coisa e
ele omitia.
Felipe Exatamente...
Curador Mas quando ele contava a história...
Felipe Ele queria sair do teor cômico da história... ele contava de uma outra
maneira...
Joana Ele sabia que o natural era as pessoas rirem...
Curador Vocês não riram quando a gente estava lendo...
Felipe Eu não ri em respeito ao conto. Situação inusitada... [risos]
Curador É um humor tipicamente inglês...Você está rindo da morte de alguém...Você
se pega meio culpado... Olha aqui... faz agora uma ponte entre a atividade
das fotos, a figura do quarteto fantástico, o filme e o conto. Não
184
necessariamente tudo ao mesmo tempo. Faz os paralelos que vocês
conseguirem...entre uma coisa e outra, duas coisas e outra...
Marta Ah, eu acho que a ponte comum, o denominador comum... família.
Joana Às vezes na nossa família acontece aquela pessoa da sua família em quem
você vê mil e um defeitos mas se outra pessoa vier falar... aí não, não pode.
De jeito nenhum... Você vai ficar com ódio mortal da pessoa, por mais que o
que você esteja falando até seja verdade... Engraçado porque eu pensei
nessa parte do conto... ele sabia que era engraçado, óbvio que as pessoas
vão rir... mas afinal de contas era o pai dele, era a dor dele, então vou tentar
fazer de tudo para que as pessoas não achem graça, né? Tentar encontrar
uma pessoa que pensasse como ele...
Curador Mais pontes...
Marta Lembranças...
Felipe Acho que tem tudo a ver com família, as coisas que marcam a gente dentro
da família. Não sei, tem muito...
Carlos Eu fiquei pensando... a foto, ela é importante para a gente, as palavras que a
gente colocou, a gente que deu destaque, então é importante pra gente,
depois fomos pro Quarteto Fantástico, que é fantástico para todo mundo
porque, afinal de contas, é uma coisa excepcional, então existe uma
dualidade ai do comum e do especial...Quando é que alguma coisa é comum,
quando é uma coisa é especial, é especial para quem...? É especial por
quê...? É comum por quê...? Aí o filme que o Bruno colocou, a parte que o
Bruno colocou do Tempestade de Gelo que, a princípio não tem nada
excepcional... Começa com o rapaz lendo o próprio Quarteto Fantástico, num
trem que está se movimentando, congelado, ele indo pra uma faculdade?
Curador Voltando da faculdade...
Carlos Voltando da faculdade para casa na ação de graça...Coisa mais comum do
mundo...
Curador Para passar o feriado com a família...
Carlos Mas deve ter alguma coisa excepcional ali...
Felipe Aquele meio de caminho ali deve ter muita coisa...
Carlos Há uma história... então, vc está andando no meio da rua e de repente cai um
porco na sua cabeça e você morre... então... é comum...? Todo mundo vai
morrer...? É, mas tem uma excepcionalidade, uma questão especial nessa
história aí... Fiquei pensando nessa dualidade...
Curador Do comum e do fantástico....
Carlos Isso...
Curador Do ordinário e do extraordinário... De uma vida sem graça, sem sal e de uma
história maneira pra contar...
Carlos E pra quem... quem é que está ouvindo essa história?
Curador Então você vê a história das fotos, a figura e o filme criando essa dualidade
extraordinário x ordinário...?
Carlos Isso... essa família [apontando para a figura do Quarteto Fantástico] é
extraordinária porque ela tem super-poderes... a nossa família é ordinária
porque é nossa família, corriqueira e por isso também ela é especial, é a
nossa família...
Curador E o conto...Existe essa dualidade no conto?
Carlos O conto... morreu o pai, mas morreu de uma forma especial...
extraordinariamente cômica.
Felipe Eu só não encaixei o filme ainda...
Curador O filme, Carlos?
Carlos Família, alguém contando...
Curador A dualidade no filme, isso que ele quer saber eu acho...
Carlos Não deu para perceber porque a gente não viu o filme todo...
185
Curador Eu até vejo... eu nunca tinha pensado nesse aspecto que você está
levantando mas eu não consigo deixar de ver dualidade no filme também...
Porque ele é um menino ordinário, numa família ordinária, mas nas mãos dele
tem o Quarteto Fantástico...que é extraordinário... e ele faz uma reflexão no
começo do filme traçando um paralelo entre o Quarteto Fantástico e todas as
famílias. Então ele faz uma ponte entre uma família extraordinária e a família
dele e de todos nós que, a princípio seriam ordinárias porque são muito
parecidas, cheias de rotinas, cheia de cotidiano... Faz mais paralelos... Carlos
fez um...Ou Carlos mesmo, faz outro... Vamos falar mais... O que que as fotos
e a atividade inicial têm a ver com o conto?
Carlos Segredos revelados?
Marta Como as histórias familiares também podem ir definindo o rumo das nossas
vidas, dos nossos valores, aquilo que se torna ou não importante, aquilo que
se torna passível de ser a maior história sua...
Carlos Vocês estava falando que estava pela primeira vez abordando a sua mãe em
terapia e que você nunca imaginou que isso fosse ser uma questão...Nesses
poucos meses que eu estou convivendo com Joana, eu tenho percebido o
quanto das nossas atitudes estão impregnadas das nossas mães... é muita
coisa, chega a dar raiva...
Curador É, porque até hoje vocês moraram com elas.
Carlos A minha maneira de estender a toalha não é a minha maneira de estender a
toalha, é a maneira que a minha mãe faz isso. A maneira dela de estender a
toalha, é a mãe dela estendendo a toalha...
Marta São duas peças de engrenagem que vieram prontinhas de fábrica que vão
começar...
Carlos Cara, e é muito interessante... é muito legal... se dar ao trabalho de pensar
sobre isso e perceber essas histórias ordinárias... por exemplo, eu tenho o
hábito de estar indo para casa e tirar a chave do bolso antes de me dirigir à
porta e... sabe...uma preocupação que eu tenho com violência e tal... Joana...
ela chega, aí ela olha para mim...se a chave estive só com ela... “a sim, a
chave!”Aí vai procurar a chave na bolsa... Cara, isso é extremamente irritante
pra mim!
Joana Porque eu chegando na casa que eu morava com a minha mãe a primeira
coisa que eu fazia era ir no interfone porque no interfone era como se você
estivesse avisando “já estou chegando”.
Carlos E eu tenho que me convencer que isso não está errado, ela é assim... Aí, eu
vou tomar banho, ela tá tomando banho, há anos já que eu vejo ela vai tomar
banho, aí daqui a pouco ela... você só vê a cabecinha dela “mãe, pega a
toalha pra mim?” Isso anos... Aí, ela vai e eu “Ó, sua toalha está no varal”.
Porque quando ela esquece “pega a toalha pra mim?” Umas bobagens, umas
coisas ordinárias...
Marta Mas que fazem toda a diferença! Esse negócio de você ter falado do meu
comentário... eu fiz oito anos de terapia...
Carlos Tem alta dessa m...?
Marta Tem, tem!
Carlos Não quero nem começar a fazer isso!
Marta Mas enfim, assim... quando eu trabalhava família na terapia, a figura principal
sempre foi meu pai. A coisa com que eu batia mais de frente, a coisa mais... e
uma vez Maria [a terapeuta] muito sabiamente falou assim, eu tinha falado
alguma coisa da minha mãe e ela “com a sua mãe não dá pra competir...sua
mãe é a coisa mais perfeita que tem.” E o tempo passou, algumas coisas eu
resolvi com meu pai, outras ainda não... enfim... mas hoje quando eu voltei a
fazer terapia num momento diferente... o foco principal é minha mãe...
Carlos Por quê?
186
Marta É como se eu tivesse... agora é como se eu tivesse pronta pra trabalhar essa
figura... Precisou de um amadurecimento, de um tempo, de um
reconhecimento de várias imperfeições da minha vida...uma outra leitura...é
uma outra leitura.
Carlos Me faz entender... você encarou seu pai...
Marta Encarei meu pai na terapia, trabalhei várias coisas que eram mágoas mais
objetivas...
Carlos Mais difíceis...
Marta Talvez nem fossem mais difíceis não...
Carlos É...? Sua mãe é mais difícil?
Marta Por que é que eu custei tanto pra enxergá-la como uma questão? Talvez
fosse mais difícil, muito mais difícil de enxergar... Não era o que doía, de
repente, na superfície, vamos supor...
Curador De repente era um problema tão maior que ela não quis nem ver...
Marta Tão maior, tão mais profundo... Como meu pai sempre foi o lobo mau da
história, era muito mais fácil falar dele... Hoje, até em termos de
relacionamento conjugal, de algumas posturas do meu pai... como eu entendo
meu pai! Porque na infantilidade dele, na imaturidade emocional dele, que eu
acho, deve ter sido muito difícil aturar minha mãe em muitos momentos... Só
que... se minha irmã estivesse ouvindo isso, ia entrar em trabalho de parto
agora...Porque a leitura que ela faz da minha mãe ainda é a perfeição. Mas
hoje... eu estou... sabe...
Carlos Relativizando...
Marta Na visão do meu pai, que não é obrigado a pensar como eu penso, a sentir
como eu sinto, que nasceu numa época diferente, tem uma outra formação,
uma outra cabeça, como deve ter sido difícil agüentar as chatices da minha
mãe, os conceitos prontos dela, que na doçura dela, que no temperamento,
entre aspas, fácil dela, ela foi impondo aos poucos... Se submete a uma série
de coisas, vai fazer trinta e seis anos de casada e pega a toalha para ele até
hoje para ele tomar banho... ela aceita isso, mas em contrapartida ela cobra
um preço alto por isso, que ele não sabe mas que ele paga, ele paga. Então
ela resolveu fazer uma reforma no banheiro da casa, é o ponto atual... pediu
um arquiteto, fez um projeto... Realmente o banheiro é grande, precisa de
uma reforma, é mal aproveitado, a casa tem pouco banheiro, foi construída há
trinta anos... ela não se programou e não programou nada... contratou um
pedreiro, viu um orçamento... o cara pediu preço fechado de mil e quinhentos
reais... aí o outro cobrava por dia setenta... Aí ela achou que obra fosse durar
dez dias, viu vantagem, contratou o segundo, e ia pagar setecentos... Já deve
ir pro décimo quinto dia e nada de ficar pronto... vinha feriado e ela não
comprou o material pro pedreiro trabalhar... ela pagou dois dias e ele não
trabalhou porque não tinha como comprar...e aí... se você estivesse no lugar
do meu pai, você ia dar razão ao estresse? Claro! Sabe? E aí ele solta todas
as cobras e lagartos...
Felipe A diferença é que ele não se faz de bonzinho...se ele tiver que soltar os
cachorros...
Marta Principalmente com ela... na frente de estranhos não, mas com ela ele
“arrebenta”... Mas aí o comentário é “Alberto é muito difícil”. E eu fico
pensando que difícil é quem inventou uma obra e não se preparou...
Ana Essa parte da história ela não me contou não...
Marta Pois é! Eu estava lá, eu vi, eu presenciei... Isso eu estou falando de uma
coisa cotidiana, corriqueira, e tal, entendeu? Tem umas coisas que... eu não
via isso, eu tinha essa leitura... Pra mim, como ele é grosseiro com ela... ela
não é grosseira com ele porque ela não sabe ser, ela não é uma pessoa que
reage como ele reage... mas em contrapartida também só ele também para
187
agüentar, entendeu? As teimosias, tem mil maneiras de ser difícil...
Carlos Deve ser muito difícil, fazendo uma viagem completa, você... pegando os
super-heróis, os incríveis...
Felipe O Quarteto Fantástico...
Carlos Isso... você ter que estar disponível vinte e quatro horas por dia, os doze
meses do ano... O outro tem que ser tocha, o outro tem que ser elástico, o
outro tem que ser... então, é muito complicado, mesmo você tendo uma certa
qualidade dentro da família, habilidade, por exemplo... na minha família,
conflitos quando acontecem... é o “padre”que é chamado mas tem vezes que
eu não estou a fim...
Marta O “padre”é você...
Carlos É... não estou a fim de ouvir ninguém, de ouvir confidências, de ouvir
intimidades, não estou a fim, não estou a fim de bancar esse super-herói,
embora isso me faça bem...
Curador Até porque quem construiu esse papel foi você...
Carlos E não é só uma questão de construção... eu sou assim... é meu...
Curador Tá. Ok. Agora volta para o conto...
Carlos Pro conto?
Curador Leva isso pro conto.
Carlos Levar isso pro conto...Difícil... levar o que pro conto?
Curador Tudo isso...
Marta Cada um ali...cada um não... existia algumas poucas versões para a morte do
pai... ele encontrou alguém que pensava como. Ou como ele gostaria de
pensar... Isso na vida é muito difícil...Então assim, estou retornando lá na
minha dinâmica para voltar para o conto... Quando eu coloquei “perdas e
ganhos”, eu coloquei no meu painel assim... “inflexibilidade” e eu me sinto
muito diferente... na maneira de pensar da grande maioria das pessoas que
estão na minha foto... essa sensação de ser um peixe fora d’água que eu
acho que Jerome era totalmente também...peixe fora da d’água buscando um
outro final, buscando mudar o rumo da história...
Curador Que história?
Marta História que...era a referência que ele tinha... Não existe mãe na história dele.
Ele tem uma tia e um pai.
Curador Isso é uma ponte...? Com a primeira atividade?
Marta Não existir mãe?
Curador Não, história.
Marta É!
Felipe É.
Curador Por que?
Marta Eu acho que de uma maneira geral todo mundo retratou ali uma história que
viveu, que vive, ou que pretende viver.
Curador E no conto?
Marta No conto é a história da relação dele com o pai e a história da morte do pai.
Curador A morte do pai também é uma história, né?
Marta É. A morte do pai é uma história.
Curador E o que a gente fez no começo...
Carlos Foi contar uma história...
Curador Que tipo de história é a morte do pai?
Carlos Que tipo o que? Gênero?
Curador É.
Carlos Tragédia.... ou comédia...
Curador Na primeira intervenção do Felipe ele falou que existia um estranhamento no
conto porque...
188
Felipe Tratava de um momento que era teoricamente trágico de uma maneira
cômica.
Curador OK. Não tem espaço para a alegria na hora de você lembrar os seus mortos
queridos? Você não pode lembrar histórias cômicas sem isso ser um
problema?
Felipe Pode, mas no momento da morte?
Carlos A maneira como foi
Joana É, a maneira...
Curador O problema é a morte ser engraçada? Em algum momento do conto, o fato da
morte do pai ser engraçada deixou de ser um problema?
Carlos Quando...
Marta Como assim? Quando ela deixou de ser engraçada?
Curador Não. Quando ela deixou de ser um problema.
Felipe Não... ela não deixou de ser um problema...
Curador Ela deixou de ser engraçada?
Felipe Também não.
Curador E ela deixou de ser um problema?
Felipe Não.
Curador Hora nenhuma?
Felipe Não.
Curador Tem certeza?
Marta Não... deixou... quando ela...
Carlos Quando ela reagiu da maneira que ele imaginava...
Joana Pelo menos para ele...
Felipe Mas não no contexto geral...
Curador Mas porque que deixou de ser um problema para aquela pessoa? Porque
deixou de ser engraçada?
Joana Não. Porque ela reagiu como ele esperava...
Curador Então ser engraçada deixou de ser um problema?
Joana Não. Ela não achou engraçado...
Curador Hora nenhuma ela achou engraçado?
Joana A menina?
Curador É.
Joana Não.
Curador E a história? Deixou de ser engraçada?
Marta Não.
Joana Não.
Felipe Não.
Curador Então a história ser engraçada deixou de ser um problema...
Carlos Pra ela, pra ele...
Curador Não importa pra quem... deixou de ser um problema, ou não?
Marta Deixou
Carlos Deixou.
Curador Então qual era o problema para ele? A história ser engraçada?
Marta O problema não era a história ser engraçada. O problema era a maneira
como ele encara aquilo...
Curador Como que ele encara?
Marta De acordo com a reação das pessoas.
Curador Então a reação das pessoas é rir.
Marta E isso influencia ele...
Curador Porque a história é engraçada... Mas a história com a noiva não deixou de ser
engraçada mas deixou de ser um problema.
Marta Hum, hum.
189
Curador Então o problema não é a história ser engraçada...
Ana O problema é a reação das pessoas.
Carlos O problema é a leitura que você faz da reação das pessoas.
Felipe Eu acho que eu não concordo com essa sua colocação... Eu acho que não
deixou de ser um problema por isso... pra mim continuou sendo um problema
para ele.
Curador Então a história não deixou de ser um problema.
Felipe Não deixou de ser um problema. Continua sendo um problema...
Curador Vocês concordam com o Felipe?
Felipe Eu acho que continua sendo um problema. Num contexto da relação dele
com a noiva já não é mais tão relevante...
Curador Então vamos reler o final da história, que começa com “o coração de Jerome
cantava...”
Marta Hum, hum. “O coração de Jerome cantava de alegria. Foi como se ela tivesse
apaziguado seu medo para sempre. No táxi, indo para casa, ele a beijou com
mais paixão do que ele jamais tinha mostrado e ela correspondeu. Havia
bebês nas suas pupilas azuis pálidas, bebês que mexiam os olhos e faziam
xixi.
- É daqui a uma semana, Jerome disse e ela apertou sua mão.
- Um centavo pelos seus pensamentos, querida.
- Eu estava pensando, disse ela, o que aconteceu ao pobre porco.
- É quase certo que eles o comeram no jantar, Jerome disse feliz e beijou sua
querida garota novamente.”
Carlos Eu acho que a gente não tem elementos para dizer se ele ficou bem resolvido
com essa história. Mas acho que a gente tem elementos para dizer que ele
ficou bem resolvido com essa história em relação a essa mulher.
Curador Porque a história deixou de ser engraçada?
Marta “Foi como se ela tivesse apaziguado seu medo para sempre” Medo de quê?
Medo de uma rejeição?
Curador Medo de quê?
Marta Medo de quê?
Joana De que ela reagisse de uma forma engraçada.
Marta Medo de rirem dele?
Joana Ele teria que terminar tudo...
Curador Vocês não acham esse “para sempre”estranho?
Marta Não é? Foi como ela tivesse apaziguado... aquilo foi um alívio imenso para
ele...
Carlos O mais importante... e se ela risse da história?
Felipe O medo dele era de que a pessoa risse... Parece que o problema está em rir
da história dele...Ela rir...
Marta É a história dele...
Carlos Ela reagir mal a isso...
Marta Não era a história do pai dele... era a história dele.
Carlos A primeira reação para ele era mais importante...
Marta Isso foi uma coisa tão marcante na vida dele que não era a história do pai, era
simplesmente a história dele. E ele não queria ser uma pessoa risível... Aqui:
“Naturalmente, depois dessa abertura de sua intimidade, ele passou a ser
conhecido, de modo nada razoável, como Porco.” O pai simplesmente estava
transformando... a morte do pai transformando a vida dele... em algo risível,
indigno, talvez... passível de ser chamado de porco porque o pai....
Carlos Toda vez que ele fosse apresentado ou fosse se apresentar...”Esse é o
Jerome porco” “Por que Porco?” ah porque o pai do cara morreu com uma
porcada na cabeça...”
Marta Ela, de repente, deu uma nova perspectiva...
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Curador Fala nisso. Que nova perspectiva?
Marta Nova perspectiva dele não ser mais uma pessoa estereotipada, é...um bobo
da corte, um palhaço, um porco...
Carlos Ele não deixou de ser mais ele mudou de status...
Curador Que status? Ele foi de que para quê?
Marta Surgiu uma humanidade, ele ficou humanizado...
Curador E o que tem a atividade que a gente fez com isso?
Marta Foi contar a nossa história, dar valor à nossa história, é... colocar aquilo que a
gente achou... acho que todos nós colocamos coisas, os nossos valores, as
nossas raízes, os nossos desejos...
Joana Um interpretou a história do outro.
Marta É... um considerou também a história do outro, leu...
Carlos Contamos, contamos a história. Tudo tem uma história... se pegar esse
bagulhinho aqui... como é que foi comprado, não sei o que...Tudo, todos os
objetos têm história...pessoas, lugares, tudo tem história...
Felipe Eu acho que faz toda diferença realmente essa questão pensando sobre o
enfoque dele. Qualquer um de nós que pegasse uma dessas fotos aqui, das
pessoas queridas que estão com a gente, se eu pego uma fotografia dessa
daqui... dos, sei lá, dos avós do Carlos e digamos que eu não soubesse nada
e começasse a tecer comentários assim... poucos honrosos, jocosos, de falta
de respeito com relação a essas pessoas aqui que são tão importantes para o
Carlos, sem dúvida nenhuma isso marcaria muito...
Marta É, tem uma coisa que foi concreta daqui de hoje... O pai da Joana foi meu
professor na faculdade... Foi a primeira vez que eu ouvi falar dele... “meu pai
era uma pessoa que levava a gente nas festas... todo mundo queria, né...?
Curador Que fosse o pai da Joana...
Marta Que fosse o pai dela... É uma história de alguém que eu conheço, mas que
eu não conhecia aquela história...
Curador Tá bom... Se tudo é história, segundo nosso historiador de plantão, que
história que o pai dele era desde o começo...? Que tipo de história é essa?
Ele começava contando “meu pai estava em Nápoles...”
Felipe Andando pela rua...
Marta É uma narrativa, né?
Curador Que narrativa é essa? “Meu pai estava em Nápoles andando pela rua... aí um
porco caiu da sacada em cima dele.”
Carlos É uma história cômica.
Curador Uma histórica cômica que tem um nome...é uma história curta, longa,
média...?
Felipe Curta.
Marta É curta.
Curador E tem um nome para história cômica curta?
Marta Piada.
Curador Como é uma piada? Pensa...
Joana A piada você já está esperando que vai ser uma coisa engraçada...
Curador Depende da pessoa. Tem gente que vai contando e quando você vê é uma
piada... Como se conta uma piada?
Marta É surpreender com uma coisa...
Carlos Engraçada
Curador Tem uma supresa...
Marta Tem uma supresa.
Curador Tem um desfecho surpreendente que te faz rir...e depois faz sentido
continuar?
Carlos Não.
191
Marta Não.
Ana Acabou ali.
Marta Então “e o porco”é uma maneira de tentar continuar a história... não é?
Curador Mas faz sentido continuar uma piada?
Marta Não. Não faz sentido...
Curador Então por que que ele queria perguntar “o porco?”
Carlos Pra não ser uma piada.
Curador Pra humanizar...
Marta Pra dar um sentido...
Curador Pra dar um sentido... Quer dizer, a piada é uma narrativa curta, diferente da
narrativa que vocês fizeram aqui no começo... Compara a piada com a tarefa
de vocês de contar uma história sobre as fotos de vocês...
Felipe É diferente. A piada é, sei lá, é curta, rápida, objetiva. Aqui as nossas
histórias deram volta...foram, voltaram, passearam pelos nossos sonhos...
Carlos A piada tem compromisso com o cômico...
Curador E as histórias que a gente contou não têm compromisso com nada...
Carlos Não.
Curador Nem com a tristeza, nem com a alegria... Pode ter tudo ao mesmo
tempo...Então o problema não é a graça, a alegria... Você pode lembrar, você
até contar a história do pai morrendo com um porco de uma maneira jocosa,
desde que aquilo...
Marta O pai era uma pessoa tão interessante, tão diferente, a morte dele...
Curador Quando eu li o final – “- Eu estava pensando, disse ela, o que aconteceu ao
pobre porco.
- É quase certo que eles o comeram no jantar, Jerome disse feliz e beijou sua
querida garota novamente.” Essa resposta dele me soa meio gaiata...
Felipe Essa resposta foi dele ou foi dela?
Marta Foi dele. “Um centavo pelos seus pensamentos querida...” É dele, é ele
querendo saber o que ela estava pensando... aí ela fala
Curador Essa resposta dele “É quase certo que eles o comeram no jantar” me soa um
pouco gaiata...
Marta É...
Curador É engraçado. Comeram o porco que matou meu pai no jantar. É quase
desrespeitoso...
Marta Comeram no jantar...
Curador Tá entre uma linha tênue entre a piada e uma história meramente
engraçada...
Marta Outra coisa “Jerome disse feliz”
Curador Tem uma leveza.
Marta É...
Curador A sensação que me deu é que essa história vai continuar, como um bobeirol...
comeram o porco no jantar, o porco deu indigestão, sabe? Mas a história
deixa de ser piada só... não é nem porque ela deixa de ser engraçada, mas
porque ela passa a não ter um fim...
Marta Dá uma continuidade...
Curador Acabou, não é mais uma piada. Pode ser engraçadíssima, pode ser o que for,
que agora a gente...
Marta Agora a gente vai dar um outro rumo para essa história aqui...
Curador E aí pensa na morte do pai dele...Uma coisa que eu penso é o seguinte:
quando o pai dele morreu, ele morreu duas vezes... Tinha alguém morto aqui
nessas fotos, ou está todo mundo vivo?
Carlos Meu avô...
Curador Mas você está contando história dele...
192
Carlos Estou.
Curador Então ele morreu de uma maneira, mas não morreu de outra..
Marta Mas ta vivo de outra...
Curador Está vivo na história... Agora se a morte do seu avô é uma piada que você
não quer abrir a boca para falar dele...
Marta Ele morre duas vezes.
Curador Morre duas vezes. Como pessoa, como presença e morre nas histórias...
Ana Como memória...
Felipe E pior ainda é você matar um herói...
Curador Ainda é um herói... tem um luto ainda maior...
Felipe Matar um herói é algo muito difícil, algo muito...teoricamente eles são...
imortais. Então você crê que eles vão estar sempre ali, fazendo alguma coisa,
têm o poder de ressuscitar, etc. Então você matar o herói é uma edição
histórica, que nem a morte do Super-Homem...que você nunca acredita muito,
ele vai voltar...Isso tem tudo a ver com o que Marta estava falando a respeito
de terapizar a mãe dela... na verdade são os heróis... durante muitos anos a
mãe da Marta foi para ela um herói, até hoje ainda é...Então você reconhecer
que o herói tem suas fraquezas e enfim, o seu calcanhar de Aquiles, a sua
kriptonita, fraquezas morais, é complicado...
Curador Então Jerome tem ou não tem motivo para se apaixonar por essa mulher?
Felipe Agora ele tem motivo para se apaixonar...
Curador Porque ela devolve para ele o pai dele... enquanto história. A hora em que ela
fala “mas o que aconteceu com o porco?” Ela está dizendo para ele: “vamos
contar o seu pai. Agora a gente pode contar o seu pai. Agora o seu pai pode
ressuscitar, senão corporalmente, porque já entra no fantástico, que não é o
caso, como história ele pode voltar...