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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Figuras do movimento: os Hupda na literatura
etnológica do Alto Rio Negro
Bruno Ribeiro Marques
Rio de Janeiro
2009
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i
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Figuras do movimento: os Hupda na literatura
etnológica do Alto Rio Negro
Bruno Ribeiro Marques
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do título de Mestre em
Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Viveiros de Castro
Rio de Janeiro
2009
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ii
FICHA CATALOGRÁFICA
Marques, Bruno Ribeiro.
Figuras do movimento: os Hupda na literatura etnológica do Alto Rio
Negro/Bruno Ribeiro Marques. Rio de Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2009.
192 pp., xiii pp.
Orientador: Eduardo Viveiros de Castro
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – UFRJ, Museu
Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2009.
1. Antropologia. 2. Etnologia Indígena. I. Viveiros de Castro, Eduardo
(Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional. III.
Título.
iii
Figuras do Movimento: os Hupda na literatura etnológica do Alto Rio Negro
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.
Aprovada por
_____________________________________
Prof. Dr. Eduardo Viveiros de Castro (Orientador)
_____________________________________
Profa. Dra. Aparecida Vilaça (PPGAS/MN/UFRJ)
______________________________________
Dr. José Antonio Kelly Luciani (Ministério de Salud y Desarrollo Social de Venezuela)
______________________________________
Prof. Dr. Marcio Goldman (PPGAS/MN/UFRJ - suplente)
______________________________________
Profa. Dra. Tânia Stolze Lima (UFF - suplente)
Rio de Janeiro
2 de março de 2009
iv
A Indira e sua paciência,
que é para poucos
v
AGRADECIMENTOS
A Eduardo Viveiros de Castro, pela orientação deste estudo e o apoio para a realização
do breve período de trabalho de campo. As conversas que tivemos foram um privilégio no
meu aprendizado de etnologia.
Aos membros da banca, por terem aceitado o convite.
Às professoras Aparecida Vilaça (Museu Nacional, UFRJ) e Tânia Stolze Lima (UFF)
e aos professores Carlos Fausto (Museu Nacional, UFRJ) e Sergio Baptista (UFRGS), pelo
estímulo ao estudo de etnologia indígena. Os professores Carlos Steil (UFRGS) e Marcio
Goldman (Museu Nacional, UFRJ) são, certamente, fundamentais em minha formação
acadêmica; apoiadores constantes.
Aos professores com os quais tive aulas no PPGAS, Museu Nacional: além dos
citados acima, Giralda Seyferth, Lygia Sigaud e Federico Neiburg.
A Kristine Stenzel, pela generosidade ao proporcionar material lingüístico
indispensável, além de informações importantes. Ao tukanólogo Pedro Rocha, pelas
informações e leitura de trechos da dissertação.
A Tânia, Bete, Marina e Leila (secretaria do PPGAS), a Carla e Alessandra (biblioteca
do PPGAS) e a Fabiano e Carmen (xérox), pelo apoio, compreensão e competência.
Aos colegas de mestrado: Antonia, Bia, Bete, Caco, Dullo, Fernanda, Gabriel, Isabel,
Laura, Mibielli, Nina, Vitor. Seria impossível listar aqui todos os colegas do PPGAS que
contribuíram de formas variadas nesses anos de Rio de Janeiro; seguem alguns nomes que
remetem a muitos outros: Nicolás, Virna, Salvador, Ana, Cecília, Suiá, Julieta, Flavio, Chico,
Consolação, Paula, Leonor, Felipe Sussekind, Lú, Marina mineira, Marina Vanzolini, Luiz
Felipe, Rogério Azize, Rogério Brites, Camila, Orlando, Felipe, Luana, Tonico e Mônica.
Não poderia me esquecer de Bernardo Curvelano, Leonardo Campoy e Chloe Nahum-
Claudel, aos quais agradeço pelo diálogo.
A Antonia Walford, um agradecimento especial pela amizade (inesperada) e
companheirismo nestes anos que se passaram. A Edgar e Bia, que são vizinhos, compadres e
padrinhos, agradeço a aliança formada. A Marta Cioccari, por muito incentivar a vinda ao Rio
e pelo apoio constante. A Alexandre Aquino e Flavio Gobbi, colegas da graduação em
Ciências Sociais da UFRGS que, bem antes de mim, versavam nos bares de Porto Alegre
algumas questões envolvidas nesta dissertação. A Mônica Arnt agradeço pela cumplicidade
ao longo dos anos. A Flavio Gordon e Francisco Araújo, pela recepção no Rio de Janeiro e
vi
apoio contínuo. À disposição de José Antonio Kelly para conversas variadas, pesquisador
com grande experiência entre outros “índios do mato”. A Sandra de Carneiro e Veriano
Terto Jr., pelo incentivo. A Luciana Schleder, que possivelmente foi a primeira pessoa a me
falar sobre antropologia e com quem tive o privilégio de vizinhar no Rio de Janeiro dez anos
depois. A esses devo inspiração e incentivo. Agradeço também a Magdalena Toledo,
Guilherme Heurich, Marcelo Mello e aos que estão por vir.
À CAPES, pela bolsa de mestrado, e ao PPGAS e ao NuTI/Pronex pelo financiamento
da viagem ao alto rio Negro. Ao ISA (Instituto Socioambiental) e à FOIRN (Federação das
Organizações Indígenas do Rio Negro), pelo apoio indispensável em São Gabriel da Cachoeira
e arredores. A Paulo Maia, Mauro Lopes, Marta Azevedo, Geraldo Andrello e Aloísio
Cabalzar, pelo apoio e pelas conversas em São Gabriel da Cachoeira. A Mauro Lopes e Marta
Azevedo agradeço, particularmente, as caronas entre São Gabriel da Cachoeira e Iauaretê. A
Pedro Lolli, pelas conversas. A Rogério Azize e família, pela estadia em Manaus. Aos Hupda,
um agradecimento especial pela generosidade em me receber em Fátima e pelo tempo de
convivência. Momentos preciosos.
A Fabio D’Ávila e Felipe Pimentel, amigos de constância admirável.
Por fim, agradeço a Gládis, Carlos Alberto, Luzia e Júlia, os que apóiam sempre. A
Indira, pela compreensão para com minhas ausências.
vii
RESUMO
O objeto desta dissertação é, basicamente, a literatura etnológica existente sobre os Hupda,
povo da família lingüística Maku que habita o interflúvio dos rios Tiquiê e Papuri, no alto rio
Negro, Noroeste amazônico. Em função deste objeto de pesquisa, realiza-se também uma
revisão parcial da literatura que trata dos demais povos da família lingüística Maku, bem
como dos povos da família lingüística Tukano, habitantes das margens dos rios que
circundam os Hupda. Nas descrições etnográficas, os Hupda são muitas vezes caracterizados
como “fluidos”, “ambíguos”, uma sociedade de estruturação frouxa. Este argumento é
fundado, primordialmente, na comparação com a organização social de seus vizinhos Tukano.
Partindo do tema da organização social dos Hupda, esta dissertação realiza um duplo
exercício: I retrospectiva dos dados etnográficos que levaram à conceituação dos Hupda
como “fluidos”; II conexão destes dados com a cosmologia hup e com a literatura
etnográfica sobre os Tukano. Deste modo, estabelecem-se as condições para outras formas de
conceituação do que caracteriza a labilidade da sociedade hup.
Palavras-chave: etnologia indígena; Hupda; Tukano; estrutura social; cosmologia.
viii
ABSTRACT
The subject of this dissertation is the existing ethnological literature on the Hupda, a people of
the Maku linguistic family who live on the intefluve of the rivers Tiquand Papuri, off the
Alto Rio Negro in Northwestern Amazonia. In light of this subject, this dissertation also seeks
to make a partial revision of the literature concerning other peoples of the Maku linguistic
family, such as the peoples of the Tukanoan linguistic family who live on the banks of the
rivers which encircle the Hupda. In the ethnographies written about them, the Hupda are
characterised as “fluid”, “ambiguous”, and evidencing a loosely structured society. This
argument is based primarily on a comparison with the social structure of their neighbours, the
Tukanoan. Taking the social organisation of the Hupda as its starting point, this dissertation
performs a double movement: firstly, it explores retrospectively the ethnographic data which
led to the Hupda being characterised as “fluid”; and secondly, it connects these data to hup
cosmology and ethnographic literature about the Tukanoan. In this way, it seeks to establish
the conditions which will allow for other forms of conceptualising what it is that characterises
the lability of hup society.
Keywords: ethnology; Hupda; Tukano; social structure; cosmology.
ix
CONVENÇÕES ORTOGRÁFICAS
A grafia dos etnônimos foi convencionada a partir da Enciclopédia dos Povos
Indígenas do ISA
1
(Instituto Socioambiental). Para a grafia dos termos da língua hup em geral
lanço mão do dicionário da língua hup produzido por Henri Ramirez (2006), exceto quando
alguns termos presentes nas etnografias não constam neste dicionário. Nestes casos, mantenho
a grafia originalmente proposta pelos antropólogos. Todos os termos da língua hup, salvo o
etnônimo, são colocados em itálico.
Conforme a grafia proposta por Henri Ramirez, o alfabeto hup tem 25 letras: a, ä, b, ç,
d, e, ë, g, h, i, i, j, k, m, n, o, ö, p, r, s, t, u, w, y e (oclusão glotal) (Ramirez 2006: 21). Para
uma descrição completa da pronúncia das grafias, bem como de sua acentuação, considerando
que a língua hup é tonal, pois diferencia o sentido das palavras conforme a melodia tonal
associada às vogais, conferir Ramirez (2006: 22-4).
Para a descrição das posições genealógicas, adotou-se a notação inglesa: F=pai,
M=mãe, B=irmão, Z=irmã, H=marido, W=esposa, S=filho, D=filha, e=mais velho(a), y=mais
novo(a), FF=pai do pai etc.
1
Disponível em: http://pib.socioambiental.org/.
x
...parece ser um paradoxal mas comum efeito do
refinamento das descrições etnográficas, qual
seja, o de que quanto mais se sabe sobre uma
sociedade, mais inexplicável menos traduzível
em termos dos modelos de explicação recebidos
ela parece.
Mas é de paradoxos como esses que se fazem
novos problemas...
(Marcela Coelho de Souza)
Um grande estabelecimento público, uma escola
do Governo, uma caserna, um mosteiro são como
pequenos Estados muito centralizados, muito
disciplinados, que confirmam essa maneira de ver.
Ao contrário, quando um ser organizado como o
líquen se apresenta excepcionalmente sob a forma
de uma fina camada de células largamente
espalhadas, é de notar que seus contornos o mal
definidos e assimétricos.
(Gabriel Tarde)
xi
SUMÁRIO
Prefácio 1
Introdução 3
1. Uma breve visita 6
2. Figuras do movimento 9
Capítulo 1 – O alto rio Negro e os Maku 28
1. O sistema regional do alto rio Negro 29
2. O modelo tukano de sociedade 39
3. A família lingüística Maku 46
Capítulo 2 – A alternação de modelos de sociedade
no Noroeste amazônico 62
1. O modelo guianês, os Maku e os Tukano 64
2. As estruturas elementares da reciprocidade e o contra-devir 69
3. O jurupari e o dabucuri 75
Capítulo 3 – Humanidade, pessoa e cosmos 83
1. A humanidade hup 84
2. Pessoa 93
3. Cosmos 103
Capítulo 4 – O próximo e o distante 113
1. A equação da distância ontológica 115
2. Grupos regionais e aglomerados 121
3. Grupos locais e grupos de fogo 131
xii
Capítulo 5 – O consangüíneo e o afim 141
1. O sistema clânico 143
2. O sistema de classificação de parentesco 151
3. O improviso da sociedade 164
Conclusão 176
1. Sócio-lógicas 176
2. O jogo das regras 181
Referências 184
xiii
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Mapa 1: Localização aproximada de povos Maku 55
Tabela 1: Dados populacionais de povos Maku 55
Diagrama 1: Cosmos hup 107
Mapa 2: Região de Ocupação Hupda-Maku 113
Tabela 2: Terminologia de parentesco hup para ego masculino 153
Tabela 3: Termos de parentesco hup, denotata
genealógicos imediatos e significação 153
1
PREFÁCIO
Nossa natureza reside no movimento; a calma completa
é a morte.
(Blaise Pascal, “Pensées”; apud Bruce Chatwin, “O
Rastro dos Cantos”)
Antes do jogo de futebol, Batista pediu-me para pegar a máquina fotográfica. Quando
voltei, os times estavam organizados ou quase isso. Adultos, adolescentes e crianças, todos
misturados, apenas homens. Batista tentou posicionar o pessoal de forma a compor uma foto
de time de futebol, uns agachados, outros em pé. Mas, não deu certo. Alguns timidamente,
outros nem tanto, um pouco agachados, um pouco em pé, nem todos olhando para a câmera.
Assim foram registrados os times hup escalados para jogar futebol no final da tarde de 23 de
março de 2007 na aldeia de Fátima, em Iauaretê. Estava entardecendo, o sol baixava rente a
um dos lados do campo que se estende por um declive de capim.
O estilo de futebol dos Hupda foi o primeiro aspecto que me saltou aos olhos na
realização do trabalho de campo. Seu estilo de jogo se assemelha ao que os brancos chamam
de “várzea”. É um aglomerado inconstante correndo atrás da bola, geralmente sem posições
fixas, dificultando a identificação da composição dos times. O próprio gol não parece ser o
objetivo principal, o resultado final do conjunto de movimentos integrados de um grupo de
jogadores. Parecia ser mais um dos pontos do jogo, nem sequer o mais interessante. O campo
está no topo de uma colina e é extremamente irregular, um areão cheio de buracos, rodeado de
capim alto, dificultando o rolar da bola, e cheio de cocô de cachorro, o que não parecia
incomodar ninguém.
A cobrança de lateral estava fadada a um tipo particular de negociação. A bem dizer,
raramente se cobrava uma lateral. Em geral, dois jogadores de times adversários
simplesmente despencavam ladeira abaixo correndo atrás da bola que rolava, com certa
2
dificuldade, em capim de até 20 centímetros de altura. embaixo eles poderiam ficar alguns
minutos se empurrando e dando gargalhadas enquanto o restante dos companheiros aguardava
o resultado do entrevero também aos risos, esperando a seqüência do jogo tranquilamente.
Então, um dos oponentes desistia e o outro simplesmente dava um chute em direção ao centro
do campo. O jogo assim seguia. Entenda-se, a lateral existe, mas sua margem estende-se até o
limite do cansaço dos corpos, dependendo mais da desistência de um dos jogadores do que de
algum tipo de acordo prévio que fixasse os limites do campo inequivocamente.
Nos jogos em que participei, não vi uma falta sequer, não que não houvesse contusões.
Na verdade, essas caracterizavam um dos momentos mais divertidos do jogo. O jogador
contundido se atira ao chão dando um grito efeminado acompanhado de uma cara de dor
enquanto os outros riem da cena. Esse estilo de jogo pode produzir eventos interessantes,
como, por exemplo, momentos, mais ou menos freqüentes, em que alguém toma a bola e
simplesmente sai driblando a tudo e a todos, sem direção aparente, dando rodopios para todos
os lados de forma a escapar dos adversários (e, eventualmente, de companheiros do próprio
time). Esse aparentava ser o momento mais excitante do jogo para eles marcado por um
aumento sutil da rotação dos movimentos.
A futebolística hup, ao enfraquecer as regras que param o jogo, me parece um
incentivo ao movimento contínuo, mas não frenético. Trata-se de um jogo leve, lúdico, sem
necessariamente grandes correrias. Inclusive, se assim quiser o jogador, pode passar o tempo
inteiro caminhando em campo sem fazer nada, ninguém irá lhe chamar a atenção, pelo
contrário. Ninguém diz o que o outro deve ou não fazer em campo. A figura do capitão, do
líder, seria um disparate em tal estilo de jogo. Um juiz, então, é inimaginável.
Fátima, Iauaretê, 23 de março de 2007
3
INTRODUÇÃO
Esta dissertação baseia-se em uma mirada sobre a literatura etnológica disponível a
respeito dos Hupda, bem como, e em função desse primeiro objeto de pesquisa, sobre parte da
bibliografia acerca da família lingüística Maku
2
e demais povos do Noroeste amazônico.
Através desse exercício pretendo delinear alguns temas preferencialmente desenvolvidos
pelos autores que estudaram este povo, traçando, assim, aspectos de sua cosmologia e
organização social. Este trabalho é, fundamentalmente, o relato de um conjunto de leituras,
certamente parcial, no qual a questão dos modelos descritivos da organização social dos
Hupda colocou-se de forma premente.
Em geral, a literatura etnográfica que trata dos “Maku do Uaupés
3
é pontuada, de
modo mais ou menos explícito, pela idéia de princípios contrastivos de organização social
ativos em uma mesma sociedade, desdobrando-se em dois modos de descrição dos grupos
sociais. Já na primeira monografia baseada em trabalho de campo intensivo com um povo
Maku da região do Uaupés, Peter Silverwood-Cope distinguia entre um modelo ideal de
sociedade, através do qual os Kakwa descreviam o sistema de parentesco e o sistema clânico
modelo esse partilhado com os demais povos da região —, e o comportamento real, que
diz respeito a distribuição socioespacial dos Kakwa, correspondendo a um modelo diferente
do ideal (Silverwood-Cope 1990 [1972]: 77). Esta percepção será levada adiante por Jorge
Pozzobon, que descreve a organização social dos Maku do Uaupés como uma variedade de
2
Como será desenvolvido no Capítulo 1, o nome e a composição da família lingüística passam por um momento
de revisão. Entretanto, como ainda não foi estabelecido nenhum consenso, nesta dissertação opto por fazer uso
do termo costumeiro através do qual é referida a família lingüística dos povos em questão, muito embora
reconheça os limites desta classificação, dado que sua terminologia baseia-se em uma palavra de conteúdo
eminentemente pejorativo no contexto rionegrino.
3
Conjunto formado pelos Hupda, Bara (Kakwa) e Yuhupde, povos da família lingüística Maku localizados nas
proximidades de tributários do rio Uaupés e que se caracterizam por uma relação mais próxima com índios de
fala Tukano e Arawak, compartilhando algumas de suas instituições.
4
combinações locais entre dois modelos de sociedade contrastantes, a saber, o modelo da
“patrilinearidade exogâmica” (ou “agnatismo hierárquico”) — que compartilham com os
demais povos do alto rio Negro e o modelo do “cognatismo minimalista” à semelhança
das sociedades da região da Guiana (Pozzobon 2000). Formalmente, o primeiro destes
modelos apresenta uma estrutura hierárquica, qualificando “sistemas complexos”, enquanto o
outro tende ao igualitarismo, caracterizado, via de regra, como a estrutura das “sociedades
fluidas” (ou “amorfas”) dentre os povos indígenas sul-americanos. Depreende-se que estamos
diante de um caso etnográfico que desafia de forma aguda alguns divisores que estruturam as
classificações das sociedades indígenas sul-americanas, considerando a necessidade de
convergir estes dois modelos para a descrição de uma mesma sociedade.
Ao fim deste mergulho bibliográfico, acredito ter voltado à tona com algumas
hipóteses. Mas, no momento, contento-me em descrever o caminho. E, neste sentido, cabe
agora apresentar algo que sirva propriamente de introdução: como cheguei aos Hupda e a que
isso me levou.
O primeiro contato que tive com “os Maku” unidade essa certamente discutível,
como será visto no Capítulo 1 foi através da leitura de “Vocês, brancos, não têm alma”
(2002), livro de Jorge Pozzobon. Trata-se de um livro de crônicas inspiradas principalmente
nas vivências do autor no Noroeste amazônico, mais especificamente em seu trabalho de
campo entre “os Maku”, agregando também elementos ficcionais à narrativa
4
. Deste momento
em diante, uma certa imagem destes povos começava a se perfilar nas linhas que Pozzobon
traçava em uma estranha mistura de quixotismo e ceticismo. Enfim, índios seminômades
4
Gutemberg Guerra, em sua resenha de “Vocês, brancos, não têm alma”, descreve de forma perspicaz o tom
geral do livro, considerando os aspectos afetivos e o criticismo envolvidos na escrita: Cet ouvrage se compose
de treize textes qui relatent son expérience professionnelle auprès des Indiens maku, objet de ses recherches et
de son affection. Rediges comme des chroniques, des histoires ou des scripts, ces écrits rendent l’anthropologue
plus humain que de coutume et rapprochent la science de ceux qui la dédaignent ou l’ignorent… Mais également
dans la mesure elles sont rédigées dans un langage libre, emprunt de rité, assumant et critiquant les
concepts et les préjugés.” (2003: 370).
5
caçadores-coletores, habitantes da divisa Brasil-Colômbia, vivendo na precariedade de
instalações fadadas ao abandono mais ou menos breve. Populações dispersas em aldeias que
concentram de 15 a 30 pessoas em estado de constante rearranjo pelo movimento qualificado
como o “duplo ritmo” da vida Maku: aglomeração em aldeias e dispersão na floresta.
Organização social sem centro, onde o líder da aldeia não passa de um anfitrião e de um
coordenador das caçadas coletivas, não tendo o poder de arbitrar os desentendimentos
freqüentes. Conforme os relatos das não raras brigas ocorridas durante as festas com consumo
de caxiri, a família de um dos envolvidos na briga simplesmente levanta acampamento e
segue floresta adentro para “deixar a raiva passar” ou vai se juntar a parentes em outras
aldeias. Não havendo Estado para arbitrar o conflito, os Maku simplesmente vão embora
5
.
Tal população apresenta um traço distintivo fundamental das demais presentes na
região do alto rio Negro, o fato de deslocar-se mais no interior da floresta, nos interflúvios,
que fixar-se ao longo dos grandes rios que cortam a região. Esta característica passou à
literatura etnológica do Noroeste amazônico como a distinção entre os “índios do rio”, de fala
Tukano e Arawak, e os “índios do mato”, de fala Maku (ISA, Enciclopédia dos Povos
Indígenas). Grosso modo, os primeiros seriam sedentários e teriam agricultura mais
desenvolvida, enquanto os Maku, por sua vez, se caracterizariam por uma mobilidade
relativamente intensa por terra, desenvolvendo uma sofisticação maior das técnicas de caça. A
essa relativamente intensa mobilidade espacial, agrega-se outra imagem marcante nas
descrições de Pozzobon em “Vocês, brancos, não têm alma”: os Maku como “servos” dos
índios do rio, freqüentemente relacionados a esses pela prestação de serviços variados. Ou, na
descrição de Silverwood-Cope, os Maku seriam “os empregados, os ciganos, os caçadores de
fundo de floresta” (Silverwood-Cope 1990: 28).
5
Horácio, um dos Hupda moradores de Nossa Senhora de Fátima, em Iauaretê, ao me relatar os lugares por onde
havia passado no transcorrer de sua vida, sentenciou: “com a gente é assim, quando alguém bagunça pra gente, a
gente vai embora.”
6
1. Uma breve visita
Baseado nesta imagem compósita de nomadismo e servidão, um ano depois desse
primeiro contato bibliográfico com estes povos do Noroeste amazônico escrevi um projeto
para obtenção de financiamento para realizar pesquisas preliminares na região do alto rio
Negro
6
. Inicialmente pretendia adentrar o rio Tiquiê, pensando em trabalhar com os Yuhupde
ou os Hupda. Cheguei em São Gabriel da Cachoeira em março de 2007, tempos de forte seca,
o que dificultava os deslocamentos fluviais devido aos grande bancos de areia que impediam
a passagem das embarcações. Instalei-me na sede do Instituto Socioambiental
7
(ISA), ONG
que atua na região.
A chegada em São Gabriel da Cachoeira coincidia com um movimento de abertura em
relação aos planos originais do projeto. A imagem dos Maku que levava na bagagem
começava a se diluir aos poucos através das conversas com os pesquisadores da região e do
breve contato com os Dow
8
, e, por questões circunstanciais, acabei não me dirigindo ao rio
Tiquiê e sim a Iauaretê, uma pequena concentração urbana no rio Uaupés, próximo à foz do
rio Papuri na divisa com a Colômbia
9
. Iauaeretê é também a sede de uma antiga missão
salesiana bastante atuante na região. Nesta pequena cidade amazônica, um dos bairros,
Fátima, é habitado exclusivamente por cerca de 100 Hupda, cujo agente indígena de saúde
6
Tratava-se de uma pesquisa exploratória com o intuito de averiguar o interesse e a disponibilidade de alguma
das populações da família lingüística Maku em ter uma pesquisa propriamente etnográfica realizada com eles no
futuro, posto que na dissertação de mestrado seria justamente o momento da revisão bibliográfica. A questão do
projeto articulava basicamente mobilidade espacial e organização social, com o objetivo de aprofundar a
compreensão das assim chamadas forças centrífugas (dispersão) e centrípetas (aglomeração) entre os Maku.
(Diga-se de passagem: esse objeto não era nada original de minha parte, caso se considere os estudos já
realizados sobre estas populações.)
7
O ISA está dividido em 6 programas atuantes em diferentes lugares do Brasil. O Programa Rio Negro é um
deles. Numa pareceria com a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (doravante FOIRN), teve
atuação marcante na demarcação de cinco terras indígenas contíguas na região, somando 10,6 milhões de
hectares.
8
Povo da família lingüística Maku que habita na beira do rio Negro, na margem oposta de São Gabriel da
Cachoeira.
9
Para maiores informações, conferir “Cidade de Índio” (2006), etnografia de Geraldo Andrello sobre a povoação
de Iauaretê.
7
conheci em São Gabriel da Cachoeira. Este jovem Hupda, chamado Batista, me estimulou
fortemente a visitar sua comunidade, revelando-se posteriormente um grande anfitrião.
Permaneci algumas semanas neste local, observando o intenso fluxo de visitações e de
partidas de famílias Hupda de aldeias vizinhas que vinham a Fátima por variados motivos,
alguns dos quais giravam em torno da relação com a cidade (benefícios do governo, escola,
tratamento de saúde etc.), outros mais voltados à visitação de parentes que ali residiam.
Imaginei este bairro/aldeia, ou “comunidade” no léxico local, como uma espécie de versão
citadina da vida hup, articulada na dupla orientação entre a cidade, por um lado, e a floresta e
a roça, por outro.
Quanto ao cotidiano, transcorria justamente nesta dupla orientação —dupla, ao menos
da perspectiva do pesquisador visitante, vale ressalvar. Em alguns dias, acompanhava os
Hupda nas suas atividades na parte urbana de Iauaretê, cruzando o rio Uaupés em sua
embarcação de estrutura consideravelmente precária se comparada com a de seus vizinhos
Tukano e Tariana que, em algumas situações que presenciei, ironizavam o veículo hup, algo
com o que os detratados pareciam não se importar, respondendo com silêncio numa atitude
blasée. Até onde pude perceber, a fila na agência de correios ocupava a maior parte de seu
tempo na cidade, ao menos na época em que estive entre eles, à exceção dos domingos em
que alguns freqüentavam a missa celebrada na Igreja dos salesianos. Em outros dias, os
acompanhava às suas roças, nas quais eram cultivadas principalmente mandioca e coca. As
roças distavam alguns minutos de caminhada nas trilhas que partiam de Fátima, ao longo das
quais cresciam frutos variados cuja coleta era realizada durante as caminhadas. Ao entardecer,
em geral jogávamos futebol e, à noite, os homens Hupda conversavam sentados em roda,
consumindo ipadu
10
e fumando cigarros coletivos de tabaco.
10
Composto à base de folha de coca (Erythroxylum coca var. ipadu).
8
Retornando ao Rio de Janeiro, comecei um trabalho de revisão bibliográfica que
desembocou na presente dissertação, cujo tema central, como referido acima, são os modelos
da organização social dos Hupda. O curto espaço de tempo que passei entre eles certamente
não é suficiente para a realização de uma etnografia própria, dentre outros motivos, pelo fato
de esta população, não obstante a proximidade com a cidade e a missão salesiana de Iauaretê,
manter o português como terceira ngua, sendo falantes, principalmente, da língua hup e, em
caráter subsidiário, da língua tukano. Colocadas essas observações introdutórias, cabem
algumas ressalvas. Não um censo recente da população hup, de forma que lanço mão de
dados presentes nas etnografias disponíveis, as quais se estendem, de forma descontínua,
desde a década de 1970 (Reid 1979) até a primeira metade dos anos 1990 (Athias 1995). Disto
se segue que entre os dados aqui apresentados e a atualidade estatística da população Hupda
podem haver variações consideráveis. Logo, reconstruo nesta dissertação um quadro de
tendências estruturais, baseado em algumas imagens etnográficas mais ou menos uniformes, e
não uma espécie de instantâneo (no sentido fotográfico) que represente a realidade
momentânea dos Hupda
11
. Além do mais, o processo de missionarização iniciado pelos
salesianos na década de 1950, tornando-se mais agudo no final da década de 1960,
desencadeou transformações no padrão de distribuição territorial da população, assim como
nas relações com os índios do rio e no sistema regional. Os esforços de sedentarização dos
Hupda, por parte dos missionários, resultaram em aldeias de maior concentração demográfica
11
Logo, incorporo o “presente etnográfico” das etnografias disponíveis nesta revisão bibliográfica. Sobre a
técnica descritiva do presente etnográfico: “...consiste em descrever o modo de vida de um grupo modo
tradicional ou passado utilizando o presente do indicativo. Esta convenção narrativa pode, deliberada ou
involuntariamente, induzir o leitor a pressupor que o objeto da descrição é contemporâneo, não apenas à
observação etnográfica, mas ao ato mesmo de sua leitura.” (nota do tradutor, Eduardo Viveiros de Castro, in:
Evans-Pritchard 2005). A avaliação da validade contemporânea dos dados apresentados nas etnografias —
exercício nada simples não é possível sem a realização de uma pesquisa etnográfica. A partir disso, haviam
duas opções: o “presente etnográfico” (com seus riscos mencionados acima) ou o “passado etnográfico”. Esse
último implicaria em um risco ainda mais acentuado, qual seja condenar os padrões tradicionais da vida dos
Hupda a um pretérito, desta forma, preterindo-os. Neste sentido, fiz a opção de incorporar na revisão
bibliográfica o “presente etnográfico” das monografias, de modo que a versão da vida dos Hupda descrita nesta
dissertação é uma espécie de versão sintética das outras etnografias, aliás, nem sempre congruentes entre si.
9
doravante, chamadas de “povoado-missão”, termo cunhado por Renato Athias (1995),
diferenciando-as das aldeias tradicionais.
Uma caracterização mais detalhada dos Hupda será apresentada nos capítulos 3, 4 e 5,
bem como sua localização na região do alto rio Negro, tema do Capítulo 1. Agora cabe
apresentar o problema que anima esta dissertação.
2. Figuras do movimento
A comparação com os dados etnográficos sobre os índios do rio, em particular, os
dados sobre os povos da família lingüística Tukano, é uma ferramenta descritiva generalizada
na makuologia, certamente inspirada na proximidade entre os povos e suas relações
hierárquicas e de troca. Freqüentemente um constitui-se como a imagem diametralmente
invertida do outro, operando uma série de contraposições, como por exemplo: cognatismo e
ambilocalidade dos arranjos locais maku versus unilocalismo agnático tukano; mobilidade
espacial versus sedentarismo; endogamia lingüística versus exogamia lingüística; habitat da
floresta versus habitat do rio.
No que concerne aos aspectos da estrutura social, tais operações de inversão são
incrementadas por um complicador, posto que os discursos nativos (as “estruturas
normativas”) dos Tukano e dos Maku do Uaupés sobre a constituição ideal da sociedade
apresentam relativa uniformidade. Como explicar, portanto, tamanha discrepância em suas
realizações na prática? E mais, neste ponto o tema da diferença entre esses dois conjuntos de
povos (índios do rio e índios do mato) replica-se no plano da relação entre ideal e prática
nativos, uma vez que a relativa coerência entre o discurso e a prática tukano opõe-se à notável
10
inconstância dos Maku em suas relações com as regras em geral
12
. Isso implica nas descrições
das populações Maku, via de regra, as imagens de “fluidas”, “flexíveis”, “ambíguas”,
“desviantes” no que toca à observância das regras que estruturam a sociedade. Enfim, para
usar uma metáfora ilustrativa, seriam eles “figuras do movimento” em contraste a um “fundo
de fixidez” estabelecido pelos demais povos da região.
Em meio à pesquisa bibliográfica, deparei-me com um livro de Jorge Pozzobon
intitulado “Sociedade e improviso: estudo sobre a (des)estrutura social dos índios Maku”
(2000). de se ressaltar, desde já, o caráter inacabado deste escrito inédito. Tive contato
com este trabalho pesquisando nos arquivos pessoais do antropólogo
13
. Chamou-me a atenção
como, neste manuscrito, o autor trabalhava de maneira relativamente distinta o tema da
organização social dos Maku do Uaupés, ainda que na linha de seus trabalhos anteriores,
propondo a articulação de dois modelos para a descrição de sua sociedade: o modelo da
patrilinearidade exogâmica — compartilhado com os demais povos do alto rio Negro — e um
modelo designado pelo autor como “cognático-minimalista” que aproxima os Maku às
sociedades da Guiana. Abstratamente, é como se os aspectos que anteriormente eram
imputados ao locus conceitual negativo do “desvio” fossem positivados como o
funcionamento de um outro modelo de sociedade articulado nos Maku do Uaupés; enfim,
como se à “fluidez” generalizada fosse atribuída uma forma particular; o “ambíguo” vira regra
alternativa. Uma duplicidade modelar, portanto, para a descrição de uma mesma sociedade e
suas contradições.
12
É válido destacar, desde agora, que não é raro nas etnografias sobre povos Tukano distinguir-se entre o ideal e
a prática nativos (exemplo, C. Hugh-Jones 1979: 13-4). Neste sentido, Jean Jackson (1983) disserta
aprofundadamente a respeito da “fluidez” dos Tukano. Logo, vê-se que esta caracterização dos Maku como
fluidos em contraste à relativa coerência tukano é uma operação que deve ser matizada e os contrastes atenuados.
13
Agradeço a Ingrid Schneider o acesso a este material e a permissão para citá-lo. “Sociedade e improviso:
estudo sobre a (des)estrutura social dos índios Maku” estava sendo escrito pouco antes do falecimento prematuro
do autor em 2002.
11
Tal proposição formalizava (no sentido de dar um molde a) um dos temas mais
comuns nas etnografias destes povos do Noroeste amazônico. na primeira monografia
baseada em trabalho de campo intensivo com um povo Maku da região do Uaupés, Peter
Silverwood-Cope distinguia entre um modelo ideal de sociedade, através do qual os Kakwa
descrevem “seu sistema de parentesco, regras de casamento e sistema de clãs” — modelo esse
compartilhado com os demais povos da região —, e o comportamento real, que diz respeito a
“agrupamentos significativos, grupos locais e regionais que freqüentemente cruzam a
organização social”, correspondendo a um modelo diferente do ideal (Silverwood-Cope 1990
[1972]: 77). Howard Reid (1979), em seu trabalho sobre os Hupda, é o primeiro autor a usar
abertamente a linguagem da “fluidez”
14
e da “ambigüidade”, sem, entretanto, avançar
teoricamente a respeito, embora deduza, a partir do discurso nativo, algumas regras operantes
em seu sistema de parentesco que não estão previstas no modelo da patrilinearidade
exogâmica. Já, Jorge Pozzobon, em sua tese de doutorado (1992), baseado em uma hipótese
demográfico-estrutural, como ele próprio nomeia, atribui a causa da desobediência à regra de
exogamia a desequilíbrios demográficos: os Maku do Uaupés, não tendo um isolado
matrimonial suficientemente numeroso, simplesmente não poderiam praticar suas regras de
casamento com precisão
15
. em “Sociedade e improviso”, como o próprio autor aponta, a
14
Reid utiliza mais especificamente o conceito de “flexibilidade” (flexibility) a partir do artigo de Turnbull
(1966) em Man the Hunter. Este conceito será tratado logo a seguir.
15
Renato Athias (1995, 2000, 2003), em seu trabalho sobre os Hupda, de certa forma, não se enquadra nesta
tendência de descrever as diferenças entre as organizações sociais dos Tukano e dos Hupda na chave da
“fluidez”, do “desvio”. Embora este desvio de Athias em relação ao tom geral da bibliografia deva ser matizado,
como se coloca abaixo, se considerarmos seu artigo que compara a territorialidade hup e a tukano (Athias 2003).
Essa diferença descritiva ocorre devido ao embasamento teórico do autor, fortemente inspirado na teoria da
hierarquia de Louis Dumont, e ao objeto etnográfico central ao qual devota seus trabalhos, que é a relação
hierárquica entre os Hupda e os Tukano. Athias, assim, tematiza as diferenças entre os índios do mato e os índios
do rio mais no sentido de explicar suas relações assimétricas, e não exatamente como base comparativa para a
descrição da organização social dos Hupda, como o faz Pozzobon. Acredito, contudo, que se trate antes de uma
questão de ênfase, de orientação, pois ambos trabalham sobre a relação empírica entre Maku e Tukano (as
assimetrias) e sobre a relação analítica entre os povos (comparações formais entre suas organizações sociais),
temas, no limite, inextricáveis. No sentido de tecer comparações entre os autores, Athias me parece mais voltado
ao aspecto ideal dos modelos de sociedade dos Hupda, considerando a separação que propõe entre um “nível
ideo-mitológico” e um “nível de ordem funcional”, sendo que “[o] nível ideo-mitológico precede e determina a
natureza da relação numa ordem funcional” (Athias, 2000). Pozzobon aplica uma abordagem mais praxiológica.
Todavia, Pozzobon a Athias aproximam-se em algumas formulações de seus trabalhos, e neste ponto a
12
“cômoda hipótese demográfico-estrutural” é falseada por algumas considerações que fogem
ao domínio das explicações demográficas, levando Pozzobon a pensar na
possibilidade de estarem em jogo, na sociedade Maku, duas formas diferentes de organização
social: uma calcada nos conceitos de unifiliação e exogamia; outra ancorada numa forma de
ordenamento social baseada na improvisação, onde os laços entre as pessoas se tornam estáveis na
medida em que se consegue por em prática um certo minimalismo cognático... (Pozzobon 2000: 8)
A partir disso o caráter fluido dos Maku em suas relações com as regras de casamento
enunciadas “adquire sentido diante da possibilidade que eles têm de escolher entre esses
modelos alternativos” (Pozzobon 2000: 9). No “Capítulo 4 O próximo e o distante” e,
principalmente, no “Capítulo 5 – O consangüíneo e o afim”, o caminho que leva à formulação
desta proposta da duplicidade modelar será traçado com mais detalhes, assim como as
descrições dos etnógrafos que trabalharam com o tema anteriormente. A título de introdução,
faz-se agora um breve panorama da questão dos “juízos da fluidez
16
” na etnologia sul-
americana, mais concentradamente em questões do Noroeste amazônico e da região da
Guiana, de modo a apresentar um fundo teórico a partir do qual pode ser lido o tema da
organização social dos Hupda.
Tânia Stolze Lima (2005), ao traçar as discussões sobre as formas de organização
social nas terras baixas sul-americanas realizadas nas décadas de 1970 e 1980, comenta acerca
caracterização da flexibilidade da estrutura social hup volta à cena. Athias (2003: 22-3), igualmente a Pozzobon
(1982: 183, 347-9), propõe a distinção vi-straussiana entre modelos mecânicos e modelos estatísticos para
captar as diferenças entre a regra (ideal) da patrilineal and patrilocal descente suas variações na prática, na
medida em que “[t]he rule of patrilocality is not so rigid” (Athias 2003: 23). Athias pontua ainda a possibilidade
de uma forma alternativa que escape from the mechanical pattern (and here the Hupd'äh's patrilineal and
patrilocal form of organization is included) and reach the statistical variant”, dando sentido à flexibility of
accepting an organizational form where the graduation from what is utterly forbidden goes through levels of
cultural rationalization to become general consensus” (Athias 2003: 23).
16
A idéia na qual consiste o que chamo aqui de “juízos da fluidez” é trazida da proposta por Goldman & Lima
(1999), em suma, a “fluidez” seria uma caracterização imputada a um povo invariavelmente como o resultado de
uma operação comparativa, não devendo nunca ser tomada como um “atributo do objeto”, sob o risco da
reificação da unidade descrita e da instituição de um grande divisor”: “A etnologia também oferece exemplos
de como a comparação entre dois ou mais grupos de sociedades engendra abstrações que, em seguida, podem ser
tomadas como atributos dessas sociedades. Comparadas com as sociedades jê, que são caracterizadas por
diversos veis de organização dualista, inúmeras sociedades amazônicas aparecem como amorfas, ou como
sociedades que expulsam a diferença para o exterior. Não é preciso mais do que um passo para tomar o
amorfismo como uma propriedade dessas sociedades, ou para conferir à expulsão da diferença o estatuto de
objeto etnográfico.” (Goldman & Lima 1999: 89). Este tema será retomado na Conclusão.
13
das linhas de argumentação que acarretaram na imagem da fluidez em relação a algumas
sociedades. Essas discussões partem do debate geral acerca da aplicabilidade dos conceitos de
estrutura social da antropologia social britânica baseada no material etnográfico dos povos
africanos. Uma dessas linhas de argumentação operava o contraste entre um conjunto de
sociedades fluidas ou amorfas dentre elas os Piaroa e Caribe da Guiana e os Tupi em geral
e um conjunto de sociedades fundadas em estruturas sociais complexas assim, os e
Bororo do planalto centro-brasileiro, bem como os Tukano do Noroeste amazônico (Lima
2005: 83-4). O primeiro conjunto de sociedades seria articulado em redes egocentradas
(kindred), dando uma feição instável às suas unidades sociais, enquanto o segundo conjunto
disporia de instituições sociocentradas, tais como clãs, metades etc., que permitiram uma
continuidade de grupos sociais no tempo. A outra linha de argumentação teria imputado o
mesmo juízo de fluidez e amorfia, agora projetado sobre as sociedades indígenas sul-
americanas em geral (incluindo aqui também as Jê, Bororo e Tukano), ao aplicar em seu
estudo o aporte conceitual africanista (Lima 2005: 85).
Deste jogo entre fundo e forma, teoria e etnografia, vertem as figuras conceituais que
inspiraram os etnógrafos em suas descrições dos Hupda. No caso específico do Noroeste
amazônico, pode-se afirmar que a imagem da fluidez e da amorfia projetada sobre os Hupda e
povos Maku em geral se em uma comparação direta com os Tukano e Arawak,
contrastando-os com esse fundo, revelando descompassos entre norma e ação observados,
principalmente, em relação aos padrões de casamento e moradia. A incorporação dessa
linguagem da “fluidez”, “flexibilidade”, “ambigüidade” poderia ser vista como um efeito da
aplicação do “modelo prototípico tukano” (expressão de Århem 1989) para a compreensão da
realidade dos Hupda
17
.
17
Como será descrito nos capítulos 1 e 2, a expressão “modelo prototípico tukano”, proposta por Kaj Århem
(1989), implica a existência de uma heterogeneidade interior aos povos Tukano, marcados também por suas
14
Há também outra inflexão teórica que contribui para a caracterização dos Hupda como
um sociedade de composição “flexível”, essa fortemente enfatizada no trabalho de Howard
Reid (1979) sob inspiração das discussões relativas à estrutura social dos povos caçadores-
coletores contidas em Man the Hunter(1966)
18
. O conceito de “flexibilidade” (flexibility)
ou “fluidez” (fluidity), tal qual proposto por Turnbull (1966), o principal referencial teórico de
Reid neste sentido, é usado to characterize social systems which incoporate such high level
of mobility within and between social groups” (Reid 1979: 96).
Segundo Turnbull, este conceito diz respeito tanto às constantes mudanças na
composição dos grupos locais (arranjos de seus membros) como aos deslocamentos
freqüentes dos acampamentos; este processo se daria justamente em um fluxo de fissões e
fusões recorrentes na formação dos grupos locais, traço comum a muitas sociedades de
caçadores-coletores (Turnbull 1966: 132). Trata-se de um mecanismo fortemente ligado à
resolução de conflitos sociais e à ausência de um poder centralizador em tais sociedades, cujas
fraturas tendem a resolver-se, dada sua condição política descentralizada, pela dissolução
espacial e não pelo arbítrio estatal. Não obstante a forte conexão deste sentido de “fluidez”
com a prática da mobilidade espacial, vale notar que Reid distingue entre sistemas “móveis” e
sistemas “fluidos”, na medida em que nem todos os povos móveis são necessariamente
fluidos, uma vez que a mobilidade espacial de um conjunto humano não necessariamente
implica a variabilidade da composição interna de seus membros os Guayaki, segundo o
autor, seriam um exemplo neste sentido. Entretanto, existem os povos fluidos e móveis, como
variações internas nem sempre condizentes com o discurso hegemônico da patrilinearidade linguisticamente
exogâmica, como no caso dos Cubeo e Makuna. Isso adianta um ponto que será desenvolvido mais adiante:
quiçá os Tukano não sejam tão fixos assim, de modo que o fundo do qual surge a figura dos Maku como fluidos
seja um pouco mais turvo do que certas vezes se supõe.
18
Neste sentido, Lee & DeVore, os organizadores de Man the Hunter”, sumarizam a respeito da fluidez
constitutiva dos caçadores-coletores: The analysis of the social structure of the hunting and gathering peoples,
proved to be a particularly difficult area of investigation because of the ambiguous conditions in which hunters
are currently found. Fluidity of band composition appeared to be the most characteristic feature of modern
hunters” (Lee & DeVore: 1966: 6).
15
os Kakwa e os Hupda e também povos africanos como os Pigmeu, os !Kung e os Hadza
(Reid 1979: 97).
Estamos diante de dois sentidos possíveis de “fluidez”, fortemente implicados no caso
da literatura etnográfica sobre os Hupda, e, como argumento a seguir, surgidos da
contraposição a um mesmo fundo teórico: a conceituação africanista de estrutura social
baseada nos grupos de descendência. A idéia comum da frouxidão estrutural pode desdobrar-
se em um sentido de “fluidez” relativo à discrepância entre regra e comportamento (“fluidez
como ambigüidade
19
) e um sentido de “fluidez” mais ligado à questão dos deslocamentos
espaciais e da variação na composição dos membros de um grupo local (“fluidez” como
mobilidade)
20
. “In seeking to define the political structure in a simple society, we have to look
for a territorial community which is united by the rule of law” (Radcliffe-Brown 1961 [1940]:
xviii). Se tomados esses critérios dos autores de African Political Systemspara a definição
de uma unidade social, os Hupda apresentam alguns problemas aos seus etnógrafos,
considerando sua relativa inconstância tanto em relação às regras como à permanência em um
dado território. E, neste ponto, deparamo-nos com o ponto nevrálgico dos “juízos da fluidez”,
válido para suas duas versões, e assinalado por Roy Wagner (1974) com perspicácia:
The problems of recruitment, participation, and corporateness (economics) are our problems, but
we take them with us when we visit other cultures, along with our tooth-brushes and favourite
novels. (Wagner 1974: 103)
These discrepancies are the direct result of a naive and literal-minded approach to phenomena that
are elicited indirectly by their creators. Although accurately documented, they suffer from a certain
misplaced focus; right answers to the wrong problem. If brought to the attention of a native they
certainly would not trouble him very much. (Wagner 1974: 118)
19
Ou, como bem caracterizam Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro (1987 [1979]), as noções de “flexibilidade”
e “fluidez” seriam “conceitos negativos, em relação a uma norma” (Seeger et alii 1987: 18, grifos dos autores).
20
Para que fique bem entendido, o que analiso aqui como dois sentidos de “fluidez” são, na verdade,
inextricáveis. É precisamente a ausência de instituições sociocêntricas eficazes (fluidez como ambigüidade), de
modo a garantir a permanência de grupos no tempo, que leva à sua dispersão no espaço (fluidez como
mobilidade).
16
É precisamente a na necessidade de “grupos”, de unidades sociais discretas,
estruturadas por um conjunto de regras e territorialmente circunscritas, que transforma a
“fluidez” “respostas certas para um problema equivocado” em algo etnograficamente
relevante
21
. Na etnologia das sociedades sul-americanas, quando do aprofundamento dos
trabalhos etnográficos em meados das décadas de 1960 e 1970, chegou-se a uma conclusão
similar a essa do antropólogo da Nova Guiné, postulando a necessidade de transpor-se dos
conceitos de estrutura social do paradigma da antropologia britânica embasada nas etnografias
do continente africano. Os princípios estruturais das sociedades indígenas sul-americanas
deveriam ser buscados em outros locais que não os grupos de descendência. No caso do
Noroeste amazônico, entretanto, este argumento exige algumas modulações.
O problema do estatuto das instituições de descendência dentre as populações
indígenas sul-americanas — descent or no descent”, nas palavras de Joanna Overing (1977a:
9) é um tema de considerável relevância analítica no Noroeste amazônico justamente por
figurar como uma região onde tais formas institucionais se esboçam. O Noroeste amazônico,
na produção da etnologia regional, surge com alguns traços diferenciados em relação ao
contexto mais amplo. Instituições como grupos de unifiliação, rituais de iniciação e relações
hierárquicas atribuídas pela ordem de nascimento tomam espaço nas etnografias. Trata-se de
uma paisagem em que a “descendência”, relação geralmente subordinada à “aliança” no
pensamento ameríndio, surge como elemento chave para a descrição do complexo de relações
21
Não darei seguimento à questão dafluidez” em Man the Hunter. Apenas para pontuar sua origem na
contraposição às conceituações dos africanistas britânicos, trago algumas colocação de Lee & DeVore. Os
autores advertem sobre os descaminhos implicados na aplicação mecânica do conjunto de conceitos
desenvolvidos a partir do estudo de “sociedades tribais”, as quais dispõem de uma série de instituições, tais como
cortes, conselhos e chefias, que não estão presentes em “sociedades de pequena escala” (Lee & DeVore 1966: 8).
Ainda, segundo os autores, as descrições dos caçadores-coletores agregadas em Man the Hunter make it clear
that the hunter-gatherer band is not a corporation of persons who are bound together by the necessity of
maintaining property”, o que não se conecta com Radcliffe-Brown’s well-known views on the universal
importance of lineal descent and corporation(Lee & DeVore 1966: 8). Em suma, as sociedades dos caçadores-
coletores não se enquadram nas condições da “corporação” (Lee & DeVore 1966: 8), primando pela
flexibilidade de sua estrutura grupal (Lee & DeVore 1966: 9).
17
intra e interpovos. Nas palavras de Renato Sztutman, referindo-se ao complexo
multilingüístico do rio Uaupés, constituiria-se um cenário
onde a guerra visível não mais figura como fonte principal de agências ou capacidades e os ritos
guerreiros o lugar a cultos seja de iniciação propriamente dita, seja de produção de aristocracias,
cultos que enfim alinhavam sistemas regionais integrados, no interior dos quais predomina uma
certa ética pacífica, que se exprime pela partilha de digos morais e mitologias de origem. (2005:
208)
Ainda, conforme Sztutman, em tais cenários o papel das contingências na atribuição
de lideranças conviveriam com “critérios mais rígidos” para a “constituição de
interioridades”. Desde um ponto de vista formal, se pensarmos na produção etnográfica do
Noroeste amazônico em relação à etnologia regional amazônica mais ampla, o princípio da
simetria da aliança concepção horizontal do socius —, fundamento próprio da literatura
americanista desde Lévi-Strauss, entretêm uma relação particular com a assimetria da
descendência — concepção vertical do socius. Como bem aponta Stephen Hugh-Jones (1993),
a recalcitrância ameríndia aos modelos africanistas aparentemente ganhava contornos mais
atenuados nas paisagens do Noroeste. Todavia, segundo o autor, mesmo neste caso a noção de
descendência apresenta problemas, considerando que atributos como o corporativismo e a
segmentação não fariam muito sentido para a compreensão da socialidade rio-negrina. Caráter
problemático esse incrementado pelo fato de a importância do que pode ser entendido como
“descendência” ser válido mais no domínio ritual que na vida cotidiana, onde as relações
seriam descritas de forma mais acurada pelo princípio da “consangüinidade”
22
(Hugh-Jones,
1993: 96).
22
Em relação a este aspecto, existe um paralelo interessante entre as etnografias realizadas nas terras altas da
Nova Guiné (e Melanésia em geral) e os problemas enfrentados na descrição dos grupos de descendência no
Noroeste amazônico, e, de forma mais aguda, nos clãs dos Maku. Se o problema geral dos americanistas, ao
basearem-se no aporte conceitual africanista, tratava da inexistência de instituições de unifiliação, para
etnógrafos da Nova Guiné e do Noroeste amazônico (principalmente os pesquisadores de povos Maku) o
problema girava em torno da discrepância entre o ideal agnático (sistema de clãs) e a prática cognática (grupo
local): The ethonographers working in the New Guinea Highlands pointed out that however much the the
ideology of patrilineal descent might have been normative there, the relation between the normative structure
and the actually observable behaviour was highly problematic (Holy 1996: 90). O problema tanto para os
melanesistas como para os makuólogos não seria o da inexistência de instituições de unifiliação, mas de sua
18
No XLII° Congresso Internacional de Americanistas (Paris, 1976), evento no qual se
colocou firmemente a necessidade da busca de um idioma conceitual próprio para a descrição
da organização social dos povos amazônicos, opondo-se às aplicações mecânicas dos modelos
da teoria da descendência baseados no material africano, são particularmente ilustrativos os
comentários de Joanna Overing sobre os trabalhos etnográficos de povos do Noroeste
amazônico (Goldman 1977, C. Hugh-Jones 1977, S. Hugh-Jones 1977). Suas colocações
dizem respeito precisamente à dificuldade em descrever a modalidade de “descendência”
praticada por estes povos. Assim, segundo Overing, na Amazônia é universal a ausência de
profundidade genealógica, e mesmo onde se faz presente uma “ideologia da ‘descendência’”,
como no Noroeste, essa generalização seria aplicável. O conceito de descendência seria in
general a more muddling than enlightening concept within the Tropical Forest context
(1977: 390). As unidades políticas amazônicas configuram-se como formações efêmeras,
estruturadas por princípios “não tão óbvios”
23
(1977: 391).
No sentido de caracterizar as modalidades propriamente ameríndias do que é referido
como “descendência” (bem como “afinidade”), Peter Rivière cunhou a expressão
relativa ineficácia na prática. Foi precisamente esta discrepância entre um ideal agnático e uma prática cognática
que fundamentou a difundida caracterização das sociedades da Nova Guiné como loosely structured
(“frouxamente estruturadas”) (Holy 1996: 91). O mesmo pode ser dito a respeito da makuologia. Vale adiantar
que os desenvolvimentos propostos por Roy Wagner (1972, 1974, 1981) a estas discussões acerca da fluidez nas
etnografias da Nova Guiné têm importância para as colocações feitas na Conclusão da dissertação.
23
Este apontamento refere-se à questão de qual princípio realiza a passagem entre os domínios doméstico e
político. Tal distinção entre domínio doméstico (cognático) e domínio político está fortemente marcada em
Meyer-Fortes (1970), na esteira da “teoria da descendência” de Radcliffe-Brown, desenvolvida com base em
etnografias realizadas no continente africano. Segundo essa teoria, a conexão entre os domínios da organização
social, doméstico e político-jural, se daria pelo princípio da descendência, visto em sociedades marcadas por
fortes relações de filiação e transmissões de direitos e deveres entre gerações. Interessante observar que numa
outra antropologia política, desenvolvida com base em etnografias na América do Sul —onde os princípios de
filiação e transmissão de direitos e deveres parecem estar em segundo plano diante do princípio da aliança, da
relação com a alteridade—, a passagem entre um e outro domínio se daria, conforme a argumentação de
Sztutman (2005), pela personificação de certos sujeitos. O processo de personificação se justamente através
do desprendimento desses personagens (guerreiros e xamãs) de suas redes de parentesco (consangüinidade),
estabelecendo relações com a alteridade, tanto na relação com a humanidade (inimizade na guerra) como com a
extra-humanidade (relação com agências sobrenaturais). Trata-se de uma dinâmica entre local e supralocal
transposta para a gramática da aliança, na qual a “transformação” (passagem) pela predação toma forma como
conector entre um e outro domínio. Transmissão e predação são, portanto, princípios de obtenção de prestígio
fortemente contrastantes. Sobre essas questões em geral, e mais especificamente sobre o processo de
“magnificação” de sujeitos nas relações políticas ameríndias, conferir Sztutman (2005).
19
amerindianization of descent and affinity (Rivière 1993). Ambos os conceitos são
abarcados no tema geral da organização social, o que, na Amazônia, ganha outras
implicações, dada a dificuldade em traçar uma linha divisória entre o cultural e o social no
pensamento ameríndio (Rivière 1993: 507). Nas palavras de Joanna Overing: the
cosmological and the social form one multi-dimensional system: society as social rules or
as social structure cannot be clearly distinguished from cosmological rules and
cosmological structure.” (Overing 1981: 164). Esse caráter das filosofias indígenas
amazônicas implica transformações nos conceitos usados para descrever suas sociedades
24
.
Conforme Seeger, DaMatta & Viveiros de Castro (1987 [1979]), a resistência
ameríndia à aplicação dos conceitos africanistas se daria justamente pela impossibilidade de
tratar o material etnográfico a partir da dicotomia entre “idéias nativas” (ideal) e “o que
realmente acontece” (prática) (1987: 16). Na esteira de Overing, os autores postulam que a
descrição da constituição social destes povos exige, sobretudo, criatividade da parte do
antropólogo. Vislumbra-se no horizonte antropológico que trata dessas sociedades outra
consistência do que seriam os princípios estruturadores do sistema. Não mais localizados no
domínio (africanista) dos grupos corporados como unidades discretas de reprodução social
que entretêm relações de afinidade entre si, esses princípios tomam formas eminentemente
simbólicas. Neste sentido, Seeger, DaMatta & Viveiros de Castro (1987) proporão a
centralidade da “visão de pessoa e uma consideração do lugar do corpo humano na visão que
as sociedades indígenas fazem de si mesmas” (1987: 12) como o caminho analítico adequado
para a compreensão da organização social e da cosmologia das sociedades sul-americanas
25
.
24
Daí a pecha de “idealistas” atribuída aos etnólogos das sociedades indígenas sul-americanas. Ao que Joanna
Overing responde: if we are so, it is only because the Amerindians with whom we are dealing are also idealists
when it comes to the ordering of their societies” (Overing 1977: 9-10).
25
Quanto ao alto rendimento simbólico dos idiomas corporais, vale citar a “hipótese propriamente etnológica de
que os ‘idiomas’ nativos referentes a domínios sensório-corporais e aos conceitos de alma, nome, substância,
morte, alteridade, são capazes de guiar a descrição de certos tipos de sociedade, onde outros princípios (como
corporação linhageira, regra de casamento, forma de propriedade) m fraco rendimento estrutural” (Viveiros de
20
Trata-se de um método baseado precisamente no recurso à dimensão categorial-simbólica
como formadora da práxis, anulando, assim, a ilusão de ótica na qual consiste a descrição das
sociedades sul-americanas como “fluidas, flexíveis, abertas à manipulação individual”
(Seeger et alii 1987: 18), juízo esse fundado na partição acima referida entre regra e
comportamento, ideal e prática, norma e ação.
Esta proposta dos autores busca radicalizar a positividade da constituição das
sociedades sul-americanas, evitando definições pela carência de instituições mais estáveis e
que levariam ao caráter fluido das constituições sociais. Trata-se de uma alternativa analítica
que se contrapõe, em algum grau, a outra tendência presente na etnologia regional amazônica,
mais acentuada na literatura da região das Guianas, e que nos reencaminha aos ditos “juízos
da fluidez”. Em “Individual and society in Guiana: A comparative study of Amerindian social
organization (1984), o autor, Peter Rivière, ao comentar as críticas de Seeger, DaMatta e
Viveiros de Castro (1987 [1979]) às caracterizações das sociedades sul-americanas como
flexíveis, reafirma a força do argumento dos autores, mas faz a ressalva que talvez haja
uma negligência relativa à conexão da construção da pessoa e do corpo com a reprodução das
formas sociais no tempo (Rivière 1984: 96).
Rivière tece comparações colocando, de um lado, as sociedades Tukano e e, de
outro, as sociedades da Guiana. As diferenças fundamentais entre esses dois conjuntos
organizam-se em torno do fato de que as estruturas sociais dos Tukano e teriam
mechanisms of their own reproduction”, de modo que é through the membership in social
groups that the individual obtains his social persona”, ao passo que, nas Guianas, esta sorte
de instituições sociais, que tendem à auto-reprodução no tempo, estaria ausente, levando ao
caráter fluido de seus coletivos desprovidos de critérios que os estabilizassem em determinada
Castro 1986b: 125). O autor, entretanto, faz a ressalva de que a “pessoa” não necessariamente seria uma chave-
mestra para o entendimento da totalidade das sociedades sul-americanas (1986b: 124).
21
identidade. Social groupings are only visible if we stop the time, but their illusory nature
becomes apparent once the clock starts again(Rivière 1984: 96), diz Rivière a respeito das
aldeias intensamente transitórias da região da Guiana. O caráter fluido das sociedades
guianesas se daria justamente devido à “absence of any social formations to hold them
together”, o que é consistente com uma failure to combine individual sets of dyadic
relationships [sogro-genro] into any higher and more enduring form of organization” (Rivière
1984: 97). Caracterização partida, como visto acima, de uma operação comparativa com os
povos Tukano e Jê.
Eduardo Viveiros de Castro (1986a) tece algumas críticas parciais às colocações de
Peter Rivière. Nesta resenha crítica de Individual and society in Guiana”, Viveiros de Castro
explora justamente a dimensão do trabalho de Rivière que não escapa à definição das
sociedades guianesas pela carência, embora reconheça os avanços apontados no trabalho de
Rivière na busca de invariantes estruturais, bem como na tematização das variações, no
triângulo formado pelas Guianas, Brasil Central (Jê e Bororo) e Noroeste amazônico
(Tukano). O ponto de divergência entre os dois autores estaria dado precisamente na
localização dos princípios estruturais comuns às sociedades indígenas sul-americanas. Peter
Rivière estabelece como tema comum a essas sociedades a “alocação de um recurso
crucialmente escasso o trabalho humano, logo sua reprodução, logo as mulheres”,
desenvolvendo uma “economia política do controle”, algo traduzível “numa estrutura
profunda de troca restrita (aliança simétrica prescritiva)” (Viveiros de Castro 1986a: 270).
Trata-se, portanto, da colocação em primeiro plano do recorte parentesco, ao passo que, para
Viveiros de Castro:
[...] as diferenças entre as figuras guianesa, Tukano e Jê-Bororo são propriamente cosmológicas, ou
antes, topológicas, e resultam de agenciamentos diferenciais globais, exprimindo diferentes formas
de articular o problema geral da diferença e da identidade, do "dentro" e do "fora", dentro dos quais
a dinâmica do parentesco e da residência se como resultante ou como parte --não pode ser
pensada como primeira ou como dominante. (Viveiros de Castro 1986a: 275)
22
Para este autor, em primeiro plano estaria dado um tema cosmológico geral (da
diferença e da identidade) atualizado diversamente no triângulo acima referido. Em suma,
uma multiplicidade de soluções sócio-lógicas para um mesmo problema cosmológico —
percepção que seria classificada posteriormente como a “economia simbólica da alteridade”
26
.
Rivière, ao estabelecer a anterioridade do domínio do parentesco, explicaria a constituição das
sociedades guianesas com base na variável fundamental da escassez de mulheres. A política
guianesa estaria, portanto, fundada no controle do genro pelo seu sogro (a relação diádica
acima referida), fragilizada pela ausência de instituições estabilizantes e de ordem mais
inclusiva, como as encontradas no Noroeste amazônico e no Brasil Central, confluindo
justamente para a constituição flexível dos assentamentos guianeses.
O “minimalismo” das sociedades da Guiana caracteriza essa “impossibilidade de
aceder a um patamar organizacional mais complexo” (Viveiros de Castro 1986a: 271-2, grifo
do autor), o que, de certa forma, aprofunda o fosso entre os dois conjuntos de sociedades: uma
“‘sociedade minimalista’ — pequena, dispersa, endogâmica, fechada e fluida ao mesmo
26
Viveiros de Castro afirma sua preferência pela leitura que Joanna Overing (1981, 2002) realiza deste mesmo
triângulo tematizado por Rivière (Viveiros de Castro 1986a: 176). Esses trabalhos de Joanna Overing serão
expostos no terceiro tópico do Capítulo 1, precisamente no sentido de estabelecer as conexões entre as propostas
de dois tukanólogos de diferentes orientações teóricas, Kaj Århem e Stephen Hugh-Jones, cujas oposições,
inclusive, assemelham-se, de certa forma, às existentes entre Rivière e Viveiros de Castro. Posteriormente, o
desenvolvimento desta percepção do tema cosmológico comum da diferença e da multiplicidade de atualizações
sócio-lógicas possíveis terá suas conseqüências teóricas levadas adiante no modelo da “afinidade potencial”
como “dimensão de virtualidade de que parentesco é o processo de atualização” (Viveiros de Castro 2002: 412).
Tais teorizações apontarão outra consistência para o conceito de “parentesco” em solo ameríndio, colocando-o
não mais na chave de um dado biológico de base, a partir do qual cada sociedade tece suas representações, mas
precisamente de um processo de consubstancialização gradual e instável. Como argumenta Marcela Coelho de
Souza, este modo de conceituação das socialidades ameríndias permite outro entendimento do que anteriormente
era caracterizado como flexibilidade, ou pouco apego às regras: “[e]ssa consubstancialização se acompanha do
relaxamento da evitação que caracteriza a etiqueta da afinidade, um relaxamento registrado praticamente por
todos os etnógrafos, mas que parece ter sido tomado, na maioria das vezes, como mera expressão do pouco
apego que os índios teriam a suas regras. Pode-se, todavia, interpretá-lo mais positivamente, tomando-o, a
exemplo de DaMatta, como expressão de uma conversão progressiva dos afins efetivos em ‘consangüíneos’, isto
é, parentes” (Coelho de Souza 2004: 30).
23
tempo —, a contrastar com as ‘sociedades dialética’ do Brasil Central e as ‘sociedades
metafísicas’ do Noroeste Amazônico” (Viveiros de Castro 1986a: 273).
O desafio de superar esses divisores da etnologia sul-americana integra o panorama no
qual pode ser lida a proposta da duplicidade de modelos de sociedade, tal qual encontrada em
“Sociedade e improviso” (Pozzobon 2000). Neste livro, os aspectos da sociedade hup (e dos
Maku do Uaupés em geral) que anteriormente eram caracterizados como “fluidos” ou
“desviantes”, em contraste com o modelo da patrilinearidade exogâmica, confluem para um
modelo alternativo de sociedade, dando mais um passo em direção a uma definição positiva
de sua sociedade. A articulação da proposta da combinação de dois modelos um tukano, o
outro guianês, um “complexo”, o outro “amorfo” com o panorama acima traçado sugere
que os Hupda estariam atualizando em sua sócio-lógica tanto a solução guianesa como a
solução tukano para o problema cosmológico da diferença e da identidade, estabelecendo uma
variedade de combinações locais. A partir deste problema apresentado de forma mais explícita
no trabalho de Pozzobon, mas que, vale ressaltar, remonta às demais monografias dos Maku,
esta dissertação faz um exercício duplo: retrospectiva e conexão.
Quanto ao primeiro aspecto, traça-se um retrospecto dos dados etnográficos e
descrições disponíveis que levaram à formulação desta proposta dos dois modelos. Com base
nisso, faz-se uma descrição dos traços gerais da organização social hup. Através do exercício
de conexão desenvolvido na dissertação, pretende-se pontuar aspectos da literatura etnológica
que não necessariamente foram levados em conta na formulação dos modelos, os quais,
acredito, podem complementá-los. De qualquer forma, este é o meio através do qual são
articulados, mesmo que em brevidade e em linhas hipotéticas, temas da cosmologia e da
organização social dos Hupda.
24
Howard Reid, em complementação às suas colocações relativas à flexibilidade da
estrutura social hup, ressalva que os Hupda não são purely anarchical”, pois ordenam sua
sociedade em, basicamente, dois modos de classificação distintos.
These classifications are based upon linguistic terms, and consist of analytically distinct but
pragmatically closely interrelated ways of looking at Hupdu society. The first of these
discriminates Maku social groups primarily according to linguistic affiliation and geographical
distribution; the second according to principle of descent. These classifications form the framework
through which the Hupdu move… (Reid 1979: 97)
Estas “classificações” (para usar a expressão de Reid, “modelos” como as chamaria
Silverwood-Cope) através das quais se movem os Hupda informam o padrão descritivo pelo
qual os etnógrafos fraseiam os grupos hup, o qual é dividido em dois modos: por um lado, a
descrição de grupos com base no recorte da distribuição espacial, por outro, a partir do
sistema clânico. Precisamente através da exposição destes dois modos de grupificação dos
Hupda que será tecido o conteúdo etnográfico dos modelos posteriormente propostos por
Pozzobon, os quais são constituídos a partir de uma linguagem conceitual voltada ao tema da
estrutura social e parentesco o “agnatismo hierárquico” (ou a “patrilinearidade
exogâmica”) e o “cognatismo minimalista” —, conseqüentemente estabelecendo uma
conexão frasal direta com o segundo modo de grupificação dos Hupda apontado acima.
Ao mesmo tempo, entretanto, a duplicidade modelar proposta por Pozzobon é
fortemente informada pela questão da distribuição espacial, com ênfase particular na
importância de um modelo (nominalmente, o cognático-minimalista) que conta dos
arranjos locais bilaterais das aldeais hup em contraste com as malocas tukano de composição
unilateral, dada a regra da patrilocalidade. Inclusive, arrisco dizer que a duplicidade modelar
proposta por Jorge Pozzobon, em sua dinâmica alternante entre princípios contrastivos de
organização social, é justamente a transposição para o plano único da estrutura social de um
cruzamento entre o que os etnógrafos anteriormente caracterizavam em dois planos analíticos;
espécie de síntese estrutural do que anteriormente era analisado em dois níveis descritivos.
25
Portanto, para efeitos esquemáticos, no “Capítulo 4 O próximo e o distante” e no “Capítulo
5 O consangüíneo e o afim” serão expostos, respectivamente, os modos de grupificação dos
Hupda da distribuição espacial e da estrutura social e parentesco. Ao fim do Capítulo 5,
apresentar-se-á a proposta de Jorge Pozzobon da duplicidade modelar para a descrição dos
Maku do Uaupés.
O panorama acima traçado da questão da “fluidez” na etnologia sul-americana
estabelece, introdutória e parcialmente, o conjunto de idéias que informaram a leitura
realizada nesta dissertação dos modelos de descrição da sociedade dos Hupda. Modelos esses
que procuram dar conta das “ambigüidades” dos Hupda, e que são, eles próprios, em certo
sentido, ambíguos, ora francamente atribuídos à pena dos antropólogos, pelos próprios
antropólogos, ora ao discurso nativo de alguma forma vertidos da relação na qual consiste
a antropologia (Viveiros de Castro 2002f). Embora muitas das idéias apresentadas acima
sejam abertamente críticas aos “juízos da fluidez”, fiz a opção, enquanto revisor bibliográfico,
de não tomar uma posição crítica de partida em relação às descrições dos etnógrafos.
Essa posição adotada baseia-se no que Roy Wagner coloca a respeito dos trabalhos
que tomam a questão da fluidez como um problema relevante. Repito a citação para
esclarecimento: “[a]lthough accurately documented, they suffer from a certain misplaced
focus; right answers to the wrong problem(Wagner 1974: 118). Portanto, é justamente no
caráter documental das etnografias que concentro as exposições, ou seja, no seu caráter
enquanto “respostas certas”. Quanto ao “problema equivocado” do qual partem, este inspira o
exercício paralelo realizado na dissertação, qual seja, o de conexão com aspectos da
bibliografia que não necessariamente foram levados em conta na formulação dos modelos de
organização social, os quais, acredito, podem complementar esses modelos, indicando outras
possibilidades de leitura, e evitar alguns descaminhos analíticos. Neste sentido, vale concluir
alguns pontos sobre os assim chamados “juízos da fluidez”.
26
Conforme a exposição das colocações de Wagner (1974), a condição geral da
enunciação da “fluidez” como um problema relevante é justamente a procura por “grupos”
onde, talvez, não existam da forma como os conceitos ocidentais os definem. Destacada esta
condição geral, pode-se, a partir do que foi exposto acima, abstrair duas operações conceituais
que articulam os “juízos da fluidez”:
I- atribuídos por um operação comparativa, exemplos: Maku versus Tukano, Guiana
versus Jê, sociedades sul-americanas versus sociedades africanas, ou ainda
sociedades tribais versus caçadores-coletores (cf. nota 21);
II- atribuídos pela aplicação de modelos inadequados, que freqüentemente não levam
em conta as cosmologias dos povos cujas organizações sociais estão sendo
descritas.
Essas operações correspondem a dois riscos:
I- os “juízos de relação” serem tomados como “atributos do objeto” (cf. nota 16);
II- a partição entre os domínios ideal e da práxis desdobrar-se na divisão entre um
modelo nativo (imaginário) e um modelo do antropólogo (real).
São precisamente essas operações e riscos que levaram à busca de conexões com a
literatura disponível sobre a cosmologia hup e sobre os povos Tukano, considerando que a
proposição dos dois modelos de sociedade articulados nos Hupda, mesmo colocando a
caracterização da fluidez em outro plano descritivo constituindo, portanto, um avanço na
definição dos Hupda em sua positividade — guarda, ainda assim, alguns dos riscos da
“fluidez” em potência. No “Capítulo 2 A alternação de modelos de sociedade no Noroeste
amazônico” são trazidos estudos de etnógrafos de povos Tukano que, à semelhança de Jorge
Pozzobon, propõem, para dar conta das variações das sociedades tukano, a articulação de dois
modelos de sociedade o da patrilinearidade exogâmica pan-uaupesiana e o do cognatismo
(ou “consangüinidade” como o chama S. Hugh-Jones) guianês. Kaj Århem (1989) e Stephen
Hugh-Jones (1993, 1995) são os autores mais relevantes neste ponto. E, no “Capítulo 3
27
Humanidade, cosmos e pessoa”, faz-se uma breve descrição de aspectos da cosmologia e da
constituição da pessoa hup apresentados, principalmente, na tese de Howard Reid (1979).
Este exame parcial da bibliografia etnográfica sobre os Tukano ressalta que esses
povos também apresentam suas “fluidades” próprias. Logo, depreende-se que o fundo do qual
emerge a figura dos Hupda como “fluidos” é um tanto turvo, e isso tem efeitos na relação
teórica entre Hupda e Tukano no sentido de matizar suas diferenças, relativizando os
contrastes. E o breve estudo da cosmologia hup destaca, principalmente, que o aspecto clânico
da pessoa, a “alma” (h
wäg), é fortemente relevante em seu esforço vital e no mundo pós-
morte, considerando, assim, outra consistência para o sistema clânico que não apenas
unidades exogâmicas voltadas para trocas matrimoniais. Somando o caráter retrospectivo da
descrição da organização social ao exercício de conexão com etnografias de povos Tukano e
temas cosmológicos hup, traçam-se algumas linhas hipotéticas (e parciais, no duplo sentido)
na Conclusão acerca das implicações para o estudo dos Hupda desta sua tematização em dois
modelos, apontando possíveis desdobramentos futuros.
28
CAPÍTULO 1
O alto rio Negro e os Maku
A área geográfica do Noroeste amazônico é limitada, ao sul, em terras brasileiras,
pelas margens do rio Japurá e, ao norte, pela margem direita do rio Negro, cujos afluentes de
seu médio curso traçam a margem da região a sudeste e, em solo colombiano, o alto
Guaviare faz os limites a noroeste (Pozzobon 1983: 27). As linhas formadas no mapa na
divisória entre Brasil, Colômbia e Venezuela renderam ao Noroeste a alcunha de “cabeça de
cachorro”, enquanto o multilingüismo característico da região inspira outra imagem
recorrentemente mencionada: “Babel”. O rio Negro é a espinha dorsal destas paisagens
formadas por ilhas, montanhas, cachoeiras, vegetação, pedras e praias de areias claras que
contrastam fortemente com o tom escuro dessas águas de elevada acidez, formando um
ecossistema de escassos recursos se comparado com as demais regiões amazônicas, devido à
baixa fertilidade de suas terras (FOIRN/ISA 2006: 6; Neves 2001: 268). As cabeceiras deste
grande rio localizam-se na Colômbia e sua foz deságua no rio Amazonas, próximo a Manaus.
Através do canal do Casiquiare, a bacia do rio Negro comunica-se com a do Orinoco (Galvão
1959: 2). No alto e médio curso do rio Negro forma-se um conjunto de vinte e dois povos
indígenas distribuídos em quatro famílias lingüísticas: Tukano, Maku, Arawak e Yanomami
(FOIRN/ISA 2006: 5), correspondendo, atualmente, a 90% do total da população da região no
lado brasileiro da fronteira
27
.
O objetivo deste Capítulo é, basicamente, contextualizar os povos agrupados sob o
signo “Makuno sistema regional do alto rio Negro, também referido como sistema regional
do Uaupés. Para tanto, primeiramente faz-se uma breve descrição deste sistema regional,
27
As cinco Terras Indígenas contíguas, homologadas em 1998, somam cerca de 106 km².
29
traçando, brevemente, as hipóteses históricas que tratam de sua formação e os princípios que
o estruturam, dando especial atenção ao lugar atribuído aos Maku. Essa abordagem diacrônica
faz par com o corte sincrônico realizado no Capítulo 5, que trata, basicamente, das formas de
combinação entre modelos de sociedade entre os Hupda: como esses povos de origem
nomádica, fortemente igualitários, de um “cognatismo latente” (na expressão de Pozzobon
2000), incorporam a estrutura social agnática e hierárquica deste sistema regional baseado no
princípio da patrilinearidade exogâmica
28
. No segundo tópico, descrevem-se os traços gerais
do modelo tukano de sociedade e algumas variações possíveis. E, por fim, no terceiro, faz-se
uma descrição sucinta da constituição da família lingüística Maku, que, no momento, passa
por um processo de revisão. Não serão discutidas as variações existentes entre os povos
Tukano e Arawak no plano da organização social (cf. Wright 1992: 260), tanto por questões
de economia textual como de carência de leitura a respeito do tema. Após a descrição de
algumas hipóteses de formação da área cultural” do alto rio Negro, nas quais é fundamental
o tema da aculturação mútua entre povos Tukano e Arawak, foca-se, basicamente, na
estrutura social dos Tukano e na relação desses com os Maku, considerando que os índios
ribeirinhos com os quais os Hupda interagem são precisamente os Tukano da região do
Uaupés, à exceção dos Tariana (povo de origem Arawak)
29
.
1. O sistema regional do alto rio Negro
No Noroeste amazônico, a região onde se concentra o presente estudo é o alto rio
Negro, mais especificamente no interflúvio entre dois grandes rios, o Papuri e o Tiquiê, que
28
Segue-se a perspectiva regional que trata das versões possíveis do sistema social do Uaupés, algo proposto no
estudo de povos Tukano por alguns autores como Christine Hugh-Jones (1979) e Jean Jackson (1983) e, nos
estudos sobre os povos Maku, por Jorge Pozzobon (1983, 1991) e Renato Athias (1995).
29
Para uma descrição mais completa do processo histórico de formação do sistema regional do alto rio Negro,
das diferentes contribuições dos Tukano e dos Arawak, destes últimos como l´élément moteur du système
culturel hiérarchisé”, bem como da posição que os Maku ocupam no sistema, conferir Renato Athias (1995).
30
afluem para o Uaupés, o qual, por sua vez, é um dos principais tributários do rio Negro em
seu alto curso, com destaque também para o Içana. Nesta região formada pelo rio Uaupés e
seus afluentes, a população indígena é composta majoritariamente pelas famílias lingüísticas
Maku (Hupda, Kakwa e Yuhupde) e Tukano (cerca de 16 grupos
30
), incluindo também os
Tariana, de origem Arawak, mas atualmente falantes, em sua maioria, da língua tukano, que
habitam o centro da bacia do Uaupés, entre Ipanoré e Iauaretê (Neves 2001: 277).
Estes povos estabelecem relações históricas complexas em um sistema regional cuja
estrutura é articulada, basicamente, pela regra de exogamia lingüística, que constitui um
sistema de troca de mulheres entre os diversos grupos lingüísticos do qual os povos Maku
não participam, sendo lingüisticamente endogâmicos e por um sistema de trocas no
qual os Maku destacam-se por sua especialidade na caça e na coleta de alguns produtos
silvestres, bem como, tradicionalmente, no artesanato de cestos (aturá).
Não obstante a origem variada das populações, a região destaca-se por uma notável
homogeneidade dos traços culturais e de organização social, o que é comumente referido
como a “área cultural do alto rio Negro” (para uma descrição mais completa dos traços
comuns nesta “área cultural”, conferir Galvão 1959: 16). A intensidade do sistema de relações
interétnicas neste contexto multilíngüe desdobra-se, na bibliografia, na tendência a não
encarar a aldeia (grupo local) como um microcosmo da sociedade em questão, privilegiando a
análise de sistemas regionais. Conforme Jean Jackson (1983), em seu trabalho sobre os povos
Tukano, os grupos locais são os nódulos de um sistema regional atualizado por casamentos
interlingüísticos, visitações constantes, relações de troca e a realização de rituais entre grupos
locais distintos, práticas que, a um mesmo tempo, contribuem para a formação dos grupos
locais e para a expansão das relações além dele (Jackson 1983: 5, 96). Segundo a autora, os
30
Dentre eles, os Tukano (grupo exogâmico que deu o nome à família lingüística), os Desana, Bará (não
confundir com os Bará Maku, também chamados de Kakwa), Tuyuca, Wanana, Kubeo, Pira-tapuya, Arapaso,
Makuna, Barasana etc.
31
próprios Tukano vêem o Uaupés como um sistema regional onde um mesmo conjunto de
regras, com algumas variações, estrutura os diversos grupos: Although structurally
differentiated along several dimensions, Tukanoan groups display a remarkable degree of
cultural homogeneity, using many of the same rules for conceptualizing and participating in a
single system” (Jackson 1983: 5).
Essa notável homogeneidade é mais acentuada, vale ressaltar, entre os povos Tukano e
Arawak (Pozzobon 1983). A distinção entre índios do rio e índios do mato, tratada na
Introdução, toma outro relevo em vista disto, uma vez que a relativa homogeneidade dos
Tukano e Arawak, se comparados aos Maku, desdobra-se em uma relativa hegemonia desde a
perspectiva do sistema regional, uma vez que os traços definidores do sistema uaupesino são,
via de regra, imputados às populações indígenas ribeirinhas, ao passo que os Maku, na
bibliografia, aparecem como figuras que se adaptam a este sistema do qual não participam
plenamente e no qual ocupam posição subalterna aos demais povos, entretendo com eles
relações que já foram descritas como escravidão, patronagem, simbiose etc.
No sentido de dar inteligibilidade histórica à formação deste sistema regional de
relativa homogeneidade, alguns autores debruçaram-se sobre o processo de contato entre
esses conjuntos humanos de origem heterogênea. Assim, Koch-Grünberg (1909) trata a
respeito do processo de “tukanização dos Arawak”. Kurt Nimuendaju (1927) propõe a
hipótese das “três camadas de civilização”, na qual os Maku seriam os autóctones
propriamente ditos, seguidos pela “segunda camada” que chegou à região em duas levas
migratórias, a primeira dos Arawak, a segunda dos Tukano. A “terceira camada” seria um
produto híbrido entre a segunda, em particular os Baré de origem arawak, e a civilização
européia. Mais recentemente, Wright (1992), criticando os dois autores anteriores, corrobora a
aceitação da ordem de ocupação Maku-Arawak/Tukano-brancos, mas questiona o processo de
“tukanização dos Arawak” proposto por Koch-Grunberg, trazendo aspectos que sugerem a
32
ordem inversa de aculturação, e alguns pontos da hipótese de Nimuendaju, dentre os quais,
com maior ênfase, o que toca a origem e a data das migração dos grupos Arawak no Noroeste
amazônico.
Stephen Hugh-Jones (1993, 1995) sugere que os traços hierárquicos do sistema
regional e os mitos de origem tukano seriam reminiscências de um “passado grandioso”, que
remonta às evidências arqueológicas de sistemas complexos encontradas em outras partes da
América do Sul, em referência aos trabalhos da arqueóloga Ana Roosevelt (S. Hugh-Jones
1993: 116; 1995: 252). Eduardo Neves (2001), por sua vez, estabelece matizes neste
argumento de uma diferença qualitativa fundamental entre o passado e o presente do sistema
regional rionegrino. Combinando pesquisa arqueológica, tradição oral dos povos indígenas e
evidências lingüísticas, Neves afirma que o sistema regional do alto rio Negro tem origem
pré-colonial (2001: 277): even in the face of the demographic, social and cultural changes
brought about by the conquest, the upper Rio Negro regional system is structurally similar to
what it was before the sixteenth century” (Neves 2001: 280).
Nesta época, segundo Neves, os padrões de organização social encontrados nos dias de
hoje estariam presentes, embora a guerra dos Tukano com os Baniwa do Içana
31
e o rapto
de mulheres seriam práticas comuns, bem como o princípio de exogamia não seria tão visível,
dada a tendência das relações de aliança em se concentrar localmente o que, se
considerarmos a descrição de C. Hugh-Jones (1979: 33) em relação à tendência dos
casamentos realizarem-se no interior dos “campos sociais”, ou seja, entre grupos exogâmicos
próximos espacialmente, não contraria exatamente o padrão atual. O mesmo padrão de
distribuição hierárquica ao longo dos rios estaria em vigor e as áreas interfluviais seriam
31
Sobre a importância das guerras e alianças militares no passado e seu legado no presente da região do Uaupés,
Jean Jackson (1983) comenta: In earlier periods na important aspecto f such interaction concerned feuding,
raiding, and the mainteance of military alliances. Although warfare s ceased, its legacy is still apparent in
settlement site, longohouse architecture, and the almost certainly marriage patterns” (Jackson 1983: 97).
33
ocupadas por povos Maku, que se relacionavam com os Tukano nos mesmos padrões de
“patronagem” observados mais recentemente. Alguns sibs tukano de baixa hierarquia seriam
o resultado de incorporações de grupos Maku por parte dos Tukano (Neves 2001: 281). Esta
hipótese da assimilação de contingentes Maku em sibs de baixa hierarquia tukano e arawak
está presente também em Nimuendaju
32
(1927), acrescentando que, mesmo os Maku não
assimilados, sofreram grande influência das culturas arawak e tukano, “ao ponto de certos
bandos deste [os Maku] não se distinguirem mais dos seus mestres senão pela língua e pela
sua inferioridade social” (Nimuendaju 1927: 165).
Se, por um lado, a bibliografia é relativamente controversa a respeito das relações
entre os povos Tukano e Arawak (seu processo de aculturação mútua), por outro, um tom
consensual em relação à posição de dominação cultural na qual se encontram os Maku. Como
argumenta Wright (1992), o problema fundamental dos estudos atuais é precisamente “o
processo de integração histórica do qual surgiu a configuração sociocultural predominante na
região” (Wright 1992: 257), configuração essa sintetizada justamente a partir de elementos
arawak e tukano. Existem, portanto, entre esses dois conjuntos, Maku, por um lado, e Tukano
e Arawak, por outro, fortes assimetrias no peso da contribuição para a formação do sistema
regional do alto rio Negro. Em suma, historicamente, no alto rio Negro, Tukano e Arawak
aculturam-se mutuamente, sintetizando os traços da “área cultural”, e ambos aculturam os
Maku, que, por sua vez, não aculturam ninguém
33
. Assim, em relação à bibliografia que versa
a respeito da formação histórica do sistema regional do alto rio Negro pode-se inferir que,
32
Segundo Nimuendaju, deste contato entre os antepassados dos Maku com os Arawak e Tukano, a segunda
camada formada por “estas tribus superiores”, originam-se algumas assimilações que produziram clãs como, por
exemplo, os Hohodene dos Baniwa, os quais teriam origem Maku segundo Nimuendaju. Robin Wright (1992)
tece algumas críticas a esta hipótese de Nimuendaju, afirmando, com base na tradição oral dos Hohodene, assim
como em dados lingüísticos, que eles seriam um dos povos Arawak mais antigos na região, o que, segundo
Wright, contraria a hipótese de Nimuendaju.
33
Numa rápida analogia com a teoria monadológica de Gabriel Tarde, uma vez que “[jque o ser é o haver,
segue-se que toda coisa deve ser ávida” (Tarde 2007: 123), depreende-se que a avidez das mônadas maku estão
em franco desequilíbrio em relação à avidez das mônadas tukano e arawak.
34
subjacente à diversidade de povos, articulam-se, basicamente, duas imagens sócio-
ecológicas
34
: de um lado caçadores-coletores nômades habitantes das regiões interfluviais,
caracterizados por uma organização social fortemente igualitária (Politis 2001: 26); e, de
outro, horticultores sedentários estabelecidos nas beiras dos rios estruturados
hierarquicamente
35
.
Jorge Pozzobon (1983), ao tratar a respeito do modo como os Maku se inserem no
sistema regional do alto rio Negro, ressalta as diferenças entre eles e os outros povos,
diferenças essas que lhes delegam a imagem de “antiexemplo de civilização para os outros
índios da área”
36
(Pozzobon 1983: 25). Interessante notar como a imagem que os Tukano
fazem dos Maku revela, às avessas, seu ideal de sociedade e de condição humana (Jackson
1983: 7). A endogamia lingüística dos povos Maku é um dos sinais diacríticos mais
determinantes da oposição entre eles e os índios ribeirinhos, sendo o leitmotiv da imagem de
34
As quais, no aprofundamento das descrições etnográficas, tanto de povos Tukano como de povos Maku,
certamente apresentam nuances.
35
Via de regra, as hipóteses históricas dizem respeito a uma população de caçadores-coletores autóctones, “os
primeiros habitantes”, de tendência igualitária e prática nomádica, cujo território recebe um fluxo populacional
de povos agricultores, culturas das “mais adiantadas... da mata tropical” (segundo Nimuendaju 1927), que
carregavam consigo um conjunto elaborado de rituais e uma estrutura social hierárquica, exercendo forte
influência cultural sobre os primeiros. Deparamo-nos, nesta descrição da formação do sistema regional do alto
rio Negro e do posicionamento subalterno dos Maku, com algo comum nas idéias sobre o passado e o presente
dos caçadores-coletores amazônicos: Typically it is infered that Amazonian foragers were circumscribed by the
advance of other more organized indigenous societies (pricipally riverine horticulturists) or by Western
colonists (at first Europeans, and subsequetly criollos) towards the interior of the rainforest(Politis 2001: 26).
Destarte, os caçadores-coletores viveriam em um ambiente hostil mais por uma imposição que por escolha. No
Handbook of South American Indians”, o trecho que trata dos Maku (Metráux 1948: 864-7) evoca sua
semelhança com povos como os Sirionó, Shirianá, Waica e Guayaki, todos tendendo a uma intensa mobilidade
espacial e estabelecendo relações próximas com populações indígenas de agricultores sedentários. Ainda,
segundo Metráux, os Maku seriam the last representatives of an ancient people who occupied vast areas of the
Amazon Basin before they were exterminated or assimilated by the Carib, Arawak, and Tucano, the carriers of a
more advanced culture based on farming (Metráux 1948: 865). Siilverwood-Cope (1990) qualifica tais
tratamentos teóricos sobre os Maku, às voltas com “generalizações relativas ao desenvolvimento dos índios sul-
americanos”, da seguinte forma: “São tipicamente considerados remanescentes de uma raça aborígene muito
primitiva de caçadores e coletores mades que foram escravizados ou assimilados pelas raças de invasores
agricultores” (1990: 73). Silverwood-Cope (1990: 74) faz críticas a respeito do legado destas generalizações,
destacando o caráter relativo das classificações dos Maku como “caçadores-coletores”, “nômades” e “escravos”
se contrastadas às descrições etnográficas.
36
Ou, conforme Athias (1995) é notável como neste contexto marcado pelo homogenenidade territorial, os
Hupda se distanciam dos Tukano: Particulièrement intrigant était le fait que les Hupdah-Maku,
géographiquement si proche des Tukano, en soient culturellement si éloignés. En effet, au-delà des différences
d´ordre purement physique entre ces deux communautés, on constate de fortes différences dans leur
organisation et dans leur mode d´occupation territoriale” (Athias 1995).
35
anti-humanidade atribuída aos habitantes do interior das florestas, convertendo-se num traço
incestuoso desde a perspectiva dos Tukano.
Os relatos que esses fazem dos Maku no mais das vezes giram em torno de figuras que
transitam no contínuo entre natureza e cultura: subumanos, canibais, incestuosos, índios
selvagens, sem conhecimentos rituais e mitológicos, enfim, fundamentalmente, sem cultura
(Århem 1989: 10). Portanto, o princípio da exogamia lingüística ao mesmo tempo articula as
relações entre os diversos grupos exogâmicos tukano da região do Uaupés em um sistema
regional baseado na troca de mulheres entre falantes de línguas diferenciadas e implica,
pela exclusão, a imagem de anti-humanidade dos Maku, desde a perspectiva tukano. Ademais,
o fato de os Maku viverem com os cunhados em uma mesma aldeia (composição bilateral dos
grupos locais) traça um corte decisivo entre a organização social dos povos Tukano e a dos
povos Maku. Aspecto que fornece matéria para a imagem de “anti-humanos” dos segundos
em relação aos primeiros, considerando a composição agnática das aldeias tukano, que
atualiza no espaço a importância dos grupos de descendência (Ramos et alii 1980: 150).
Tradicionalmente, a alocação do status de “patrãoao índio do Rio tinha sua base, não tanto na
desigualdade econômica entre os dois grupos, como na imagem que os índio do Rio tinham e
têm dos Maku como seres humanos. Em outras palavras, o Maku era o “cliente” porque era
socialmente “inferior” ao Índio do Rio: por seu nomadismo, pela fluidez de seus grupos locais, por
sua “promiscuidade” no casamento, por viver na floresta como os animais. Seriam esses atributos,
então o valor intrínseco dos bens trocados entre os dois grupos, que teriam levado à situação em
que os Maku, assumindo de certo modo essa imagem, se estabeleceram como os “clientes”, não
trocando bens, mas fornecendo serviços pagos por seus patrões Índios do Rio. (Ramos et alii 1980:
177)
Essa passagem sintetiza a conversão das imagens negativas dos Maku desde o ponto
de vista tukano, relativas ao seu modo nomádico de vida, sua organização social bagunçada,
suas práticas incestuosas, para as relações assimétricas no sistema regional. Adianto aqui,
simplificadamente, um ponto que será tratado no próximo tópico: em geral, as relações sociais
dos povos Tukano são descritas em uma oposição que cruza o princípio da hierarquia e o
princípio da igualdade com a dinâmica entre o interior e exterior dos grupos locais e dos
36
grupos exogâmicos (unidades lingüísticas que trocam mulheres), de modo que o interior dos
grupos é estruturado pelo princípio da hierarquia e as relações exteriores no sistema regional
de trocas pelo princípio da igualdade. Entretanto, no caso da relação entre Tukano e Maku, o
princípio da hierarquia estrutura também as relações de alteridade. Sobre esta oposição entre
hierarquia e igualdade e sua conexão com as relações entre Tukano e Maku:
A hierarquização [dos grupos Tukano] que é tão enfatizada, tanto em ideologia, como na prática, a
nível de organização de sibs, não chega a ter importância, nem de ordem econômica, nem de ordem
política, mas apenas em situações rituais... É nas relações dos Índios do Rio com os Maku que a
hierarquização econômica e política se manifesta... (Ramos et alii 1980: 162)
Exemplo desta distinção: as visitações freqüentes entre grupos locais tukano, nas quais
são realizadas trocas e rituais, são marcadas por diálogos formais entre anfitriões e visitantes,
os quais não se fazem presentes quando o visitante é Maku (Jackson 1983: 97-8).
Apresentadas as linhas gerais deste panorama, cabe dizer que, nas descrições etnográficas,
isso tudo se torna um tanto mais complicado
37
.
Neste ponto, vemos como as duas imagens sócio-ecológicas antes mencionadas
desdobram-se em uma relação complementar entre Tukano e Maku no sistema regional,
descrita como de “simbiose” (Ramos et alii 1980). A partição entre os dois modos de
37
O tema da hierarquia e do poder entre Tukano e Maku é certamente um desafio para a descrição antropológica
que intenta trabalhar a respeito das modalidades assimétricas de relação no Noroeste amazônico, articulando uma
linguagem que possa descrevê-las sem cair em uma visão ocidental da relação de dominação entre senhor e
escravo (fixação das hierarquias), mas também não reduzi-las a uma ideologia que não tem eficácia prática
(modelo imaginário). Ao que tudo indica, existem modalidades entre a hierarquia e igualdade que necessitam de
sofisticação e criatividade descritiva. Para mais detalhes sobre esta questão, conferir a tese de Renato Athias
(1995), que desenvolve este tema traçando um panorama das discussões anteriores em articulação com o
material etnográfico que trata da relação dos Hupda com seus vizinhos Tukano. Ao final, Athias propõe a
hipótese de um novo modelo para a compreensão dessas relações, baseado na teoria da hierarquia de Louis
Dumont, tomando o sistema do Uaupés como um Todo no qual cada grupo seria uma parte, cuja posição é
prescrita nos mitos. Os Hupda, assim, seriam englobados pelos Tukano (Athias 1995). Entretanto, penso,
hipoteticamente, que esta totalização hierárquica possa ser relativizada pelas disposições “contra-hierárquicas”
(Lima 2005) presentes no sistema, atualizadas, vale dizer, tanto por Maku como por Tukano, no sentido de não
converter estas relações assimétricas em uma Hierarquia propriamente dita. Dentre essas disposições, cito o
exemplo das “oscilações de atitude” dos Maku, algo que é onipresente nas etnografias dos Maku do Uaupés. A
oscilação de atitudes diz respeito à transição entre o ambiente do rio, quando os Maku estão em presença dos
Tukano, e o ambiente da floresta, quando estão entre si. A postura de deferência dos Maku perante os Tukano,
que é relacionada, pelos etnógrafos, com o fato de os Maku de certa forma assumirem sua posição subalterna no
sistema, incorporando, assim, a ideologia dos Tukano, contrasta com a jocosidade das relações no interior da
floresta, ambiente no qual os índios do rio tornam-se motivo de chacota e sua postura de superioridade é
ridicularizada. Quanto aos Tukano, a fixidez da hierarquia também deve ser matizada. Neste sentido, conferir as
colocações feitas a partir do trabalho de Jean Jackson (1983) ao final do segundo tópico do presente Capítulo.
37
ocupação da ecologia do Noroeste amazônico, os nichos do rio e da floresta, possibilita as
relações de reciprocidade em que os índios do rio provêem aos Maku produtos agrícolas,
assim como bens de origem não-índia, que são trocados, basicamente, por caça e produtos
silvestres
38
. Todavia, conforme as críticas de Ramos, Silverwood-Cope & Oliveira (1980), a
idéia de “simbiose” na relação entre índios do rio e Maku é comumente percebida na
oscilação entre dois extremos: por um lado, os Maku são escravos, por outro, são parasitas, ou
seja, mais dependentes dos Tukano que esses deles. Logo, a idéia de interdependência
subjacente à “simbiose” geralmente combina-se, nas descrições, a uma idéia de desequilíbrio
entre Tukano e Maku. Os autores, com base na etnografia de Silverwood-Cope, indicam,
entretanto, que as relações de interdependência seriam mais equilibradas do que essas
caracterizações permitem entrever, aproximando-se de “laços do tipo patrão/cliente”: “As
relações entre os dois parecem antes um ciclo cumulativo de tentativas mútuas de exploração,
o qual chega a um ponto de saturação tal, que provoca o rompimento de uma ou de ambas as
partes” (Ramos et alii 1980: 171).
Em oposição à caracterização das relações entre Tukano e Maku como de
“escravidão”, “parasitismo” ou ainda “servidão”, presentes nos primeiros relatos da região, as
etnografias indicam uma série de mecanismos que relativizam a posição subalterna dos Maku
no sistema regional. A oscilação de atitudes (cf. nota 37), a ausência de coerção, a mobilidade
espacial e a possibilidade de um Maku transitar entre vários “patrões”, deslocando-se sempre
que é de seu interesse, são alguns elementos apontados no sentido de uma não fixidez das
38
Os produtos mais valorizados pelos Maku são: “espingardas, fumo, farinha, pimenta, rede, panela e sal, além
dos instrumentos de metal como terçados, machados, facas e itens menores, como fósforos, anzóis”. Enquanto os
índios do rio obtém com os Maku: “frutas silvestres, folhas de palmeiras para telhado de casa, resinas de árvores,
canas para flautas-de-pã, cestas trançadas de cipó” (Ramoas et alii 1980: 172). Quanto aos trabalhos que os
Maku prestam para os índios do rio em suas aldeias, destacam-se o serviço na roça, preparo de mandioca e a
construção de casas.
38
relações assimétricas
39
(Silverwood-Cope 1990; Reid 1979; Ramos et alii 1980; Pozzobon
1983, 1991; Athias 1995). As etnografias baseadas em trabalho de campo intensivo com
povos Maku, assim, complexificam as possibilidades de entendimento das relações entre
diferentes povos no sistema regional, deslocando-se do que Howard Reid (1979) caracterizava
como o bias tukano” presente na bibliografia que tratava das relações entre Tukano e Maku,
de modo a multiplicar as perspectivas possíveis.
Por fim, traz-se a interessante contribuição de Jean Jackson (1983) para o tema das
relações entre Tukano e Maku. Nesta pesquisa sobre os Bará (família lingüística Tukano), a
autora aponta formas diferenciadas de tratar as relações entre Tukano e Maku, apresentando
novas possibilidades de análise. Jackson descreve as duas formas em que os Maku são
tratados como símbolo pelos Tukano: a primeira refere-se a uma distinção categorial, uma
oposição de natureza (as imagens de anti-humanidade acima referidas); a outra seria uma
questão de gradiente, relativa (os Maku como o protótipo dos sibs de baixa hierarquia tukano)
(Jackson 1983: 148). A primeira trata de uma diferença absoluta e intransponível; enquanto a
segunda diz respeito à forma pela qual os Tukano, em certo sentido, dobram os Maku para o
interior de sua sociedade por meio dos sibs de baixa hierarquia os “servos”, ou
“acendedores de cigarro” (Jackson 1983: 159-60). Assim, a autora possibilita tratar das
passagens entre Tukano e Maku, o que se relaciona com o processo histórico acima referido
da assimilação de grupos Maku por parte do Tukano.
A low-ranking sib’s origins can always be impugned by suggesting that it was originally a Makú
band. Unlike all true Tukanoan sibs, it did not emerge at rapids site but attached to a longhouse and
slowly learned the language of its adopted Tukanoan settlement and finally was assimilated.
(Jackson 1983: 159)
39
Viveiros de Castro (1983), em sua resenha crítica de “Hierarquia e Simbiose” (Ramos 1980), aponta algo que
contribui neste sentido: “Há um dado de extremo interesse: não apenas os Índios do Rio temem a magia negra
Maku (o que encaixa no esquema do poder dos fracos), mas os Maku também temem o contato com os Índios do
Rio por razões de perigo místico. A distribuição de poder místico, assim, indica uma inesperada
‘reciprocidade’...” (Viveiros de Castro 1983: 261).
39
Importante notar que, conforme a ressalva de Jackson, a caracterização de
determinado sib em proximidade aos Maku não necessariamente tem correspondência
histórica. Segundo a autora, este é um modo de desqualificação de membros de outros sibs, na
ocorrência de conflitos, ou ainda de acusação de determinado indivíduo ou grupo por
transgredir as regras nas quais se baseia a verdadeira condição humana (Jackson 1983: 159).
Trata-se, portanto, precisamente de passagens, dada a instabilidade da condição humana e
suas possibilidades de reversão. Desta forma, desde a perspectiva tukano, potencialmente,
tanto os Maku podem passar à condição verdadeiramente humana, uma vez adotando as
regras que a condicionam, como os Tukano podem decair.
Passa-se agora à caracterização de algumas das regras que estruturam a sociedade
tukano (conseqüentemente, a verdadeira humanidade tukano), bem como suas variações
possíveis.
2. O modelo tukano de sociedade
Descreve-se agora, de forma bastante simplificada, os traços gerais do que Århem
(1989) chamou de “modelo prototípico tukano”, a organização “ideal” da sociedade dos
índios ribeirinhos da região do Uaupés. Estes povos estão distribuídos em grupos exogâmicos
ao longo dos rios que cortam a região. A estrutura desses grupos é definida pela descendência
patrilinear e pela regra de exogamia lingüística, de modo que a unidade exogâmica coincide,
idealmente, com o grupo lingüístico, o que, conforme C. Hugh-Jones, leva os Tukano a
lançarem mão da língua como um modo de tratar da descendência. A terminologia de
parentesco é dravidiana (C. Hugh-Jones 1979: 76; Jackson 1983: 106), e a regra positiva de
casamento prescreve o matrimônio entre primos cruzados bilaterais de sexo oposto, baseando-
se na estrutura da aliança simétrica: It is always stated that a man must marry his tenyo and
40
that the correct form of marriage is sister-exchange. The ideal marriage occurs when two
men exchange two sisters within a single generation.” (C. Hugh-Jones 1979: 76, 84-5) .
O interior dos grupos exogâmicos estrutura-se por um conjunto de sibs
hierarquicamente ordenados
40
conforme a ordem de nascimento mítica que define a relação de
senioridade entre eles, de modo que a terminologia usada entre membros de diferentes sibs
não é recíproca, considerando que um sib posiciona-se em relação ao outro ou como “irmão
mais velho” ou como “irmão mais novo” (S. Hugh-Jones 1979: 25). A bem dizer, o princípio
da ordem de nascimento (senioridade) estrutura todos os níveis da organização social: each
individual, each sub-unite within each sib and each sib itself has a unique position in the
order composed of similar units(C. Hugh-Jones 1979: 19). Dentre as propriedades de um
sib, uma lista de nomes atribuídos conforme a ordem de nascimento define a posição de cada
indivíduo no sistema. Christine Hugh-Jones, em seu trabalho sobre os Barasana descreve a
ordenação dos sibs em uma série de “papéis especializados” (specialist roles): chefe
guerreiro – cantor – xamãs – servos (ou “acendedor de cigarros”). A importância deste
sistema é, sobretudo, ritual (S. Hugh-Jones 1979: 32), o que se expressa primordialmente nos
ritos iniciatórios masculinos (jurupari), onde os membros de um sib atualizam a potência
ancestral, e no direito a “propriedades rituais” (C. Hugh-Jones 1979: 30). Assim, a
hierarquização dos sibs não implica que o sib dos “chefes” tenha poder de mando sobre os
demais, ao contrário, como atestam os etnógrafos, o cotidiano destes povos é condicionado
por um ethos igualitário, da mesma forma a hierarquia não implica privilégios econômicos.
40
“Grupo exogâmico” é a expressão cunhada por Christine Hugh-Jones (1979) para unidades sociais de estrutura
patrilinear. Jean Jackson (1983) utiliza “grupos lingüísticos”, outro termo para a mesma unidade. Além dos
grupos exogâmicos, existem ainda as “fratrias”, que são as unidades sociais mais inclusivas, agregando grupos
exógamos que não ocupam áreas contínuas (C. Hugh-Jones 21), tendencialmente aos pares, como, por exemplo,
os Bará e os Tukano (Jackson 1983). Essas unidades são, assim como as demais, definidas pela exogamia, uma
vez que seus membros consideram-se irmãos, descendendo de um ancestral em comum (S. Hugh-Jones 1979:
24). A relação de senioridade e a linguagem não-recíproca do “irmão mais velho” em relação ao “irmão mais
novo” também opera neste nível. Entretanto, as fratrias têm importância consideravelmente menor à dos grupos
exogâmicos e sibs, variando em intensidade (C. Hugh-Jones 1979) Para uma discussão detalhada sobre o uso dos
conceitos de “tribo”, “fratria”, “grupo exogâmico”, “grupo lingüístico” e “sib” na literatura etnológica do
Noroeste amazônico, conferir C. Hugh-Jones (1979: 15-7).
41
Além da importância ritual, esta estrutura hierárquica tem relevância na distribuição
espacial dos sibs. A orientação espacial dos Tukano funda-se em um sentido oeste-leste,
seguindo o fluxo dos rios da região, distribuindo a hierarquia de sibs conforme o mito da
cobra-canoa que narra a formação da humanidade, a chegada dos Tukano na região do Uaupés
e a ordem de nascimento dos ancestrais dos sibs atuais. Cada um dos sibs corresponde a uma
parte da cobra-canoa, definindo a ordem hierárquica e a distribuição espacial dos mesmos, de
modo que os sibs de mais alta hierarquia localizam-se na foz dos rios e os de baixo status nas
cabeceiras. Oposições como natureza/cultura, não-humanidade/humanidade e espíritos
canibais/ancestrais distribuem-se espacialmente conforme a orientação cabeceiras-foz e rio
acima-rio abaixo. Os espíritos canibais, figuras que condensam mais fortemente a imagem de
anti-humanidade, vivem rio acima, próximos aos sibs de baixa hierarquia e aos Maku no
interior das florestas o que Jean Jackson (1983) relaciona ao gradiente da relação entre
Tukano e Maku acima mencionado. Já, no sentido a jusante, a leste, os sibs de mais alta
hierarquia aproximam-se do “Lago de Leite”, lugar mítico associado à origem da cultura e aos
ancestrais dos humanos (C. Hugh-Jones 1979: 239-41).
Tradicionalmente, os Tukano habitam em aldeias formadas por uma única maloca que
abrigam os membros de um sib, ou, em alguns casos, subunidades não nomeadas de um sib,
dando origem a um “grupo local de descendência”, o qual difere do “grupo exogâmico” por
coincidir descendência e residência (C. Hugh-Jones 1979: 22). O esteio da maloca é
estruturado por um grupo siblings masculinos hierarquicamente ordenados, cujos nomes,
como mencionado acima, remetem à sua ordem de nascimento. Em torno desse grupo de
irmãos (siblings), constituem-se as famílias nucleares formadas por seus filhos e mulheres
42
oriundas de outro grupo lingüístico. A composição da maloca (e, por conseqüência, do grupo
local) é, portanto, agnática, e a patrilocalidade define a regra de moradia pós-marital
41
.
As malocas próximas espacialmente constituem o que C. Hugh-Jones chama de
“campo social” (social field), cujos laços podem ser estabelecidos pela filiação a um mesmo
sib, diferentes sibs do mesmo grupo exogâmico ou entre sibs afins (C. Hugh-Jones 1979: 31).
É neste conjunto de malocas avizinhadas que se concentram as atividades rituais, tais como os
dabucuris, nos quais ocorrem trocas cerimoniais entre agrupamentos distintos. A exogamia
lingüística dos Tukano tende a se concentrar neste agrupamento de malocas vizinhas, as quais,
portanto, se consideradas em conjunto, apresentam um alto grau de endogamia.
Interessante notar um aspecto em comum entre as etnografias sobre os Tukano e sobre
os Maku o qual foi apresentado, na Introdução, na parte sobre os dois modos de
grupificação dos Hupda. Justamente quando se passa da descrição do ideal de estrutura social
dos Tukano (o “modelo tukano prototípico”) para sua distribuição espacial (grupos locais,
malocas, “campos sociais”), os etnógrafos deparam-se com uma dificuldade sintetizada por C.
Hugh-Jones (1979) e posteriormente aprofundada por Jean Jackson (1983).
Part of the conceptual difficulty in describing Vaupés social structure, at least as I found it in the
Pirá-paraná area, is the overlap of a comprehensive system based on descent and exogamy with a
practical local organisation into longhouse communities, each of which perceives other
communities as more-or-less distant outsiders. (C. Hugh-Jones 1979: 32)
A distribuição das relações de alteridade no gradiente da distância espacial articula um
modelo concêntrico (Jackson 1983: 103) de diferenciação desde o ponto de vista de um dado
grupo local tukano, o que também é válido para o grupo exogâmico, pois, desde seu ponto de
vista, the others [grupos exogâmicos] are note equal they range from close groups with
whom women are exchanged to very distant groups whose members are totally unknown(C.
41
A divisão interior da maloca define-se, basicamente, por critérios de gênero (porta dos homens voltada para o
rio/porta das mulheres voltada para a roça e a cozinha), senioridade dos siblings masculinos (a localização de
suas famílias nucleares é distribuída conforme a hierarquia) (S. HughJones 1979: 31).
43
Hugh-Jones 1979: 276). Isto posto, uma implicação a ser ressaltada: uma perspectiva que
veja a totalidade dos grupos do Uaupés em relação de equivalência tem como condição a
exterioridade em relação ao sistema (C. Hugh-Jones 1979: 276), pois, ocupar uma posição
nele, imediatamente remete a uma diferenciação entre próximos e distantes e, portanto, à não
equivalência.
Jean Jackson (1983) complementa estas colocações apresentando a trama entre
hierarquia e igualdade que está em jogo: o primeiro princípio estrutura a relação no interior
dos grupos exogâmicos, bem como suas unidades menos inclusivas (sibs); já a igualdade
estrutura a relação entre grupos exogâmicos e sibs distintos, com base na reciprocidade
engendrada na troca de mulheres conforme as regras de casamento e a estrutura da aliança
simétrica (Jackson 1983: 103). Porém, se projetado o modelo concêntrico
42
nestas relações
entre unidades distintas que trocam mulheres, ver-se-á que outra lógica hierárquica se institui:
Still, a kind of rank ordering occurs here, even though it is completely dependent on the
actor’s point of view. The ordering is hierarchical in the sense that groups with whom one
interacts a lot are differentiated from far-away groups… (Jackson 1983: 103). Não uma
hierarquia entre agnatos, portanto, mas uma distinção entre próximos e distantes.
42
Aloísio Cabalzar (2000), com base em sua pesquisa etnográfica com os Tuyuca do alto Tiquiê, propõe o
conceito de “nexo regional” em lugar de “território” para a descrição da distribuição socioespacial dos povos
desta região. Neste trabalho, consta uma descrição bastante reveledora do modo como os princípios da aliança e
da descendência articulam-se na sociedade tuyuca conectando-se com uma dinâmica entre centro e periferia. O
autor estabelece, portanto, uma descrição etnográfica dos aspectos concêntricos do sistema social tukano ao
colocar a distância espacial em relação com estes princípios. “Tendo em vista os dados sobre os Tuyuka... é
possível sugerir um modelo de representação da organização sócio-espacial do alto Tiquié, considerada a
concorrência entre os princípios da descendência e da aliança. Trata-se de um modelo concêntrico, baseado na
distinção entre grupos locais que formam um ambiente central e grupos locais situados em sua periferia.
Observam-se áreas em que predominam relações sociais estruturadas sobretudo no agnatismo e, à medida que
daí nos afastamos, encontramos situações cognáticas, nas quais ocorre a convergência entre vários grupos de
descendência, em geral afins entre si.” (Cabalzar 2000: 80-1). Cabalzar incorpora em sua análise tanto o caso dos
Tuyuca que casam em proximidade ao seu grupo local como os que buscam njuges distantes espacialmente,
apontando que o segundo modo de casar seria mais comum entre membros de sibs de alta hierarquia (centro),
enquanto o primeiro tende a ser praticado por indivíduos de hierarquia mais baixa (periferia) no sistema de sibs.
Destarte, o argumento de uma variação interna aos povos Tukano, bem como no interior de cada povo, é
incrementado, o que, futuramente, acredito que pode ser relacionado às idéias sobre o gradiente das diferenças
entre Tukano e Maku expostas na Conclusão desta dissertação.
44
It is true to say, however, that dyadic relations between these Exogamous Groups are based on the
principle of equality. The differentiation between outside groups from a given point of view is not
at all like the internal hierarchical differentiation of the group of reference. There is no finite set of
units bound in a fixed order so that (relatively speaking) each Exogamous Group of the centre of its
own social world. (C. Hugh-Jones 1979: 276)
Neste ponto, o tema da flexibilidade das estruturas sociais tukano passa a tomar espaço
na bibliografia, pois, conforme Jackson “[t]he issue of hierarchy versus equality is intimately
connected to the one of rigidity versus flexibility(Jackson 1983: 103). Esta oposição entre
princípios hierárquicos e igualitários nos Tukano é colocada desde uma das primeiras
etnografias na região: It should be said at once that while the honorific and less honorific
names suggests a structures system of social status, the social significance of status hierarchy
is not great. The Cubeo have the skeleton of an aristocratic system that is fleshed with an
egalitarian ethos” (Goldman 1963: 92). No “Capítulo 2 – A Alternação de modelos de
sociedade no noroeste amazônico” são expostas as contribuições de dois estudiosos das
sociedades tukano rhem 1989; S. Hugh-Jones 1993, 1995) para a compreensão destas
variações estruturais, ambos propõem a articulação de dois modelos de sociedade entre os
Tukano, o da patrilinearidade exogâmica e o “modelo da Guiana” (nos termos de Århem) ou
da “consangüinidade” (conforme a referência de S. Hugh-Jones), de modo a estabelecer as
condições conceituais para atenuar os contrastes das estruturas sociais dos Maku do Uaupés e
dos Tukano. Na Conclusão, a exposição de Jean Jackson (1983) sobre a flexibilidade da
organização social tukano é novamente trazida à tona. Por ora, finalizando este tópico, é
necessário apresentar algumas modulações do argumento apresentado acima.
As relações igualitárias estabelecidas entre os povos Tukano na região do Uaupés têm
como contrapartida esta tendência a macro-hierarquizações sujeitas à controvérsia, pois, como
colocam Meira & Pozzobon (1999):
Em termos sociológicos, a área cultural do Noroeste Amazônico se caracteriza, sobretudo, pela
generalidade das concepções hierárquicas de organização social... Deste modo, além da hierarquia
interna a cada etnia, macro-hierarquizações que colocam os Tukano (Dahséa e Pira-Tapuya
45
como superiores em relação às demais etnias. Porém, tais macro-hierarquizações não são unânimes,
sendo amiúde contestadas pelas demais etnias. (Meira & Pozzobon 1999: 327).
Além desse aspecto assimétrico das macro-hierarquizações, coloca-se também a
referida hierarquia entre Tukano e Maku. A modulação do argumento que se refere ao
princípio da igualdade como o estruturador das relações exteriores ao grupo exogâmico tem
como contrapartida a modulação do argumento que as relações interiores são estruturadas
pelo princípio da hierarquia, pois, como colocado acima, a estrutura hierárquica dos grupos
exogâmicos e sibs choca-se com o ethos igualitário da vida na maloca. Mais que cindir esta
dinâmica entre interior e exterior como a oposição exclusiva de dois princípios estruturais, ou
como uma distinção entre um ideal hierárquico e uma prática igualitária, estariam articuladas
justamente combinações variáveis entre os princípios da igualdade e da hierarquia tanto no
interior como no exterior. Ou, como coloca C. Hugh-Jones apresentando um modo alternativo
à relação entre hierarquia e igualdade como uma oposição entre ideal e prática:
…the set of specialist roles actually serves as an indigenous explanation of the relationship between
fixed hierarchy and the ever-changing patterns of interaction based on the principle of equality.
These two phenomena are treated as complementary aspects of the same structure — the set of five
specialist roles and thus appear as transformations of one another. The internal differentiation
can thus be turned outwards and deployed in the field of external relations to differentiate a field of
‘equal’ outside groups from a given point of reference. (C. Hugh-Jones 1979 105-6)
A fixidez da hierarquia e a fluidez das interações igualitárias seriam, assim, variações
de uma mesma estrutura. Mais uma vez deparamo-nos com a dificuldade em descrever as
modalidades de relação assimétrica (e simétrica) no Noroeste amazônico (cf. nota 37), pois
ora a hierarquia destas instituições sociocentradas parece muito fixa, estável, ora dilui-se em
dissensos entre uma multiplicidade de pontos de vista possíveis, egocentricamente instituídos.
Daí, por exemplo, como coloca S. Hugh-Jones (1979), a abertura à disputa da hierarquização
ideal dos sibs, envolvendo a recitação dos mitos de origem e interpretações variadas (S.
Hugh-Jones 1979: 26).
Esse aspecto foi descrito com perspicácia por Jean Jackson:
46
The social structure of the Vaupés at its most abstract so seemingly clear-cut and unambiguous… is
a dynamic system incorporating a lot of slippage, fluidity, and imprecision. We are not simply
dealing with a disparity between an idealized model and on-the-ground reality. Any Tukanoan can,
if so inclined, present a clear picture of the social categories in the Vaupés and their articulation
with one another. A clear picture of sibs and language groups will emerge, a picture involving
common ancestry, geographical location, linguistic indicators, and exogamy; variability emerges,
however, in the answers from different individuals (or even from the same individual over a period
of time), a variability built into the basic structure of the system. It is foolish to assume that one
version is right and one wrong. (Jackson 1983: 83)
What is real and correct is that different points of view produce different content, and yet they
nonetheless chare an underlying set of common propositions about the nature and meaning of the
world. With respect to the raison d’être behind the Vaupés arrangement, as I have indicated, I feel
that such flexibility is adaptative. (Jackson 1983: 102)
Conforme estas descrições de Jackson, a precisão da fala parece ser um valor no
discurso tukano do ideal de sociedade, mas a coincidência dos discursos não. A rigidez do
sociocentrismo tukano, pelo que a autora descreve, se no âmbito da perspectiva
egocêntrica, sugerindo uma estrutura sociocêntrica em variação perspectiva. Assim como no
final do tópico anterior, também a partir do trabalho de Jean Jackson (1983), foram
apresentadas duas formas de relação entre Tukano e Maku, uma que os distingue de maneira
categorial e absoluta, outra que aponta os gradientes e as possibilidades de passagem. A
suposta rigidez que caracteriza os Tukano em oposição à fluidez dos Maku pode, assim, ser
também matizada, de modo a compreender as passagens possíveis entre as estruturas sociais
de índios do rio e índios da floresta. Vislumbra-se um gradiente:
Although Tukanoans affiliate with groups and categories in less flexible ways that many hunter-
gatherers, and Tukanoan institutions appear to be less amorphous and malleable, they still preserve
considerable freedom within the framework of these more rigid institutions and their rules of
membership. (Jackson 1983: 7)
3. A família lingüística Maku
O termo “Maku” tem significados eminentemente pejorativos, sua origem é
comumente imputada às línguas arawak, nas quais significaria “aquele que não tem fala” ou
“aquele que não tem a nossa fala” [/ma-aku/ ma = prefixo privativo, aku = fala] (Athias
2006). Pozzobon indica que a expressão originalmente significa “escravo”, mas seu sentido
47
estende-se também à “selvagem” (1991: 10) ou, segundo Epps, “primitivo” (2005: 7),
provavelmente devido ao fato de as populações por ela designadas habitarem o interior da
floresta e não corresponderem ao ideal de humanidade dos índios dos rios
43
. A literatura
etnológica e lingüística incorporou esta classificação dos índios ribeirinhos referindo-se por
este termo aos povos de caçadores-coletores do Noroeste amazônico.
Despite affinities in certain aspects of their lifeways, and the fact that they belong to the same
language trunk, distinct linguistic/ethnic groups are encompassed by this term. Each has its own
historical trajectory and has suffered the effects of the Western society in variable and significantly
different ways at different times. (Politis 2007: 31)
Como será visto logo a seguir, atualmente inclusive o pertencimento a uma mesma
família lingüística está sendo questionado.
As informações disponíveis sobre as populações chamadas de “Maku”, até o fim da
década de 1960, quando do trabalho de campo de Peter Silverwood-Cope entre os Kakwa,
eram obtidas de maneira indireta. Observações superficiais de viajantes que visitaram a região
nos séculos XVIII e XIX e rápidos contatos de etnólogos no início do século XX delegaram
aos Maku imagens mediadas pela visão dos índios ribeirinhos. Resulta disso que a literatura
anterior à realização de pesquisas etnográficas com povos Maku desenvolveu-se a partir de
visões eminentemente exógenas a eles, corroborando a visão dos Maku na linha limítrofe da
humanidade a partir dos critérios centrais do sistema uaupesino
44
. Os Maku, correspondendo à
imagem de anti-humanidade na ideologia dos Tukano, passam à literatura da região como
povos imiscuídos na Natureza. A respeito dessa correspondência entre visão dos estudiosos e
dos índios do rio, Jorge Pozzobon afirma o seguinte:
43
Para histórico completo das acepções e usos do termo “Maku”, conferir Athias (1995), Becerra et alii (1999:
33-5) e Politis (2007: 31-2).
44
Dessa relação entre uma certa perspectiva indígena e uma certa perspectiva científica pode-se
apreender algo semelhante ao descrito por Combés e Villar (2007) em relação aos Chiriguano no
Chaco: “Os preconceitos indígenas e etnológicos reforçam-se mutuamente”.
48
... os Maku teriam aprendido apenas parte da Cultura, permanecendo ainda imersos na Natureza,
como os animais da floresta, onde, aliás, eles habitam. Nesse ponto, a semelhança entre ideologia
ribeirinha e os relatos dos primeiros exploradores da área é notável. (Pozzobon 1983: 51)
Neste sentido,
Em todos os seus contatos com brancos, os Maku têm sido abordados, de acordo com o papel que
lhes atribuem os Índios do Rio. Tanto seringalistas, seringueiros, como missionários e mesmo
etnógrafos, de diferentes maneiras, adotaram as atitudes dos Índios do Rio com relação aos Maku.
(Ramos et alii 1980: 139)
A unidade lingüística “Maku” agrega basicamente seis povos: Nukak e Kakwa, na
Colômbia, e Hupda, Yuhupde, Dow e Naböb no Brasil. uma tendência de divisão em
pares no interior da família lingüística, os quais compartilham cerca de 90% do léxico
(Martins 2004: 7). Desta forma, relativa inteligibilidade entre as línguas kakwa e nukak,
hup e yuhup (Mahecha et alii 2000: 132). Numerosos trabalhos dedicaram-se à classificação
genética das línguas destas populações, o que tem sido motivo de controvérsia considerando a
relativa escassez e pouca confiabilidade dos dados sobre algumas das línguas agrupadas na
família (Martins 2004: 5; Epps 2005: 3). Listo abaixo algumas das contribuições neste
sentido
45
:
- Koch-Grunberg (1906): aponta as semelhanças entre as línguas dos grupos referidos
como Maku pelos índios Tukano e Arawak, indica também alguma semelhança com a
língua puinave do rio Inirida;
- Rivet e Tastevin (1920) e Rivet, Koch e Tastevin (1925): dão seguimento ao postulado
por Koch-Grunberg e relacionam as línguas maku à língua puinave;
- Nimuendaju (1927): subscreve os trabalhos anteriores e afirma a diferença com as
línguas dos Tukano e Arawak;
- Loukotka (1968): classifica um “tronco Maku” dividido em dialetos, dentre eles o
puinave;
- Pottier (1983, citado em Becerra et alii 1999): a língua “macú” e a “puinave” fazem
parte de um conjunto maior, o “macro-tucano”;
- Henley, Mattei-Muller e Reid (1996): incluem os Hodï com base em evidências
etnográficas e na proximidade com os Nukak e Kakwa da Colômbia;
45
Para um histórico mais completo, conferir Epps (2005: 2-7).
49
- Martins e Martins (1999, citado em Martins 2004 e Epps 2005): agrupam as línguas
Naböb, Kuyawi
46
, Dow, Hupda e Yuhupde e indicam que os Nukak e os Kakwa formam
um grupo afastado deste primeiro conjunto na família lingüística, não incluem os
Puinave;
- Becerra et alii (1999): corroboram a existência de uma família lingüística “Maku-
puinave”.
Recentemente, algumas iniciativas têm se voltado para a mudança do nome da família
lingüística na busca de um substituto para o termo “Maku”, considerando seu conteúdo
pejorativo e o fato de não ter sua legitimidade reconhecida pelas populações agrupadas neste
termo. Henri Ramirez (2001, citado por Carvalho 2007) propôs a mudança para “família
lingüística Uaupés-Japurá”, incorporando na terminologia lingüística a área geográfica na
qual se distribuem as populações. E Patience Epps (2005) propõe o termo “Nadahup”, família
essa composta apenas dos Maku do lado brasileiro da fronteira, ou seja, os Nadöb, Dow,
Yuhupde e Hupda, considerando que, segundo Epps, não haveria evidências que
comprovassem o parentesco das nguas faladas no Brasil com a língua dos Kakwa e dos
Nukak. Além disso, segundo a autora, é ainda mais duvidosa a relação com a língua puinave
(Epps 2005: 5-6). Conforme Renato Athias (2008, comunicação pessoal), durante a realização
do Curso de Magistério Indígena Paah Sak Tëg
47
, essas propostas de modificação do nome da
família lingüística para “Uaupés-Japurá” e “Nadahup” foram levadas ao conhecimento dos
Hupda, Yuhupde, Dow e Naböb presentes, que não as aprovaram, não chegando, entretanto, a
um consenso sobre qual deveria ser, então, o termo de referência que os agrupasse. Athias
acrescenta que muitos dos cursistas presentes não viam muito sentido em subscrever uma
unidade que os englobasse.
46
Kuyawi é um grupo de aproximadamente 150 pessoas que habita em proximidade ao município de Santa
Isabel do Rio Negro, dos quais apenas os mais idosos falam a língua (Martins 2004: 6). Raramente são citados na
bibliografia. Gomes (2008) afirma que “Kuyawi” é a autodenominação dos Nadöb da comunidade de Boa Vista,
a qual teria sido incorporada do modo pelo qual os velhos Baré se referiam aos Nadöb do rio Negro (Gomes
2008: 76-7).
47
Vídeo disponível em: http://renatoathias.blogspot.com/.
50
Em sua pesquisa recente sobre a gramática da língua hup, Epps (2005) chama a
atenção para o fato de que o agrupamento de línguas tão distintas em uma mesma família teria
sua origem justamente na classificação que os índios de fala Tukano e Arawak fazem das
populações de tendência nômade que habitam o interior das florestas. Segundo a lingüista, o
termo Maku seria aplicado indiscriminadamente, sem considerar especificamente “as línguas
e a etnicidade” das populações (Epps 2005: 7). A adoção deste termo e o tratamento destes
povos como uma unidade na literatura lingüística e etnológica ocorreu em grande parte devido
ao caráter indireto das informações que os primeiros pesquisadores da região obtiveram sobre
estas populações. Por fim, Epps coloca: “The similarities in the culture and subsistence
patterns of these forest-dwellers and the use of the single name Maku’ to refer to them may
have encouraged Europeans to consider their languages more alike than they really were
(2005: 7).
Esses questionamentos da lingüista acerca de uma unidade da assim referida “família
lingüística Maku” apontam a possibilidade de que uma vulgata lingüística tenha se constituído
desde os primeiros estudos de Koch-Grünberg (1906) e Rivet & Tastevin (1920), a qual, por
falta de dados confiáveis, reproduziu-se nas pesquisas que se seguiram desde então, mais
interessadas em comprovar a existência da família lingüística que questioná-la (Epps 2005: 5).
A lingüista caracteriza este processo como umsnowball effect of citations”, cuja origem está
nas conclusões apressadas de Koch-Grünberg, Rivet e Tastevin, que trabalhavam com dados
não confiáveis: “extremely sketchy and poorly transcribed lexical data, from which they
identify a number of supposed look-alikes (Epps 2005: 6). Vale ressaltar, entretanto, que
Epps não nega completamente a possibilidade de parentesco lingüístico dos povos
comumente agrupados sob a alcunha Maku, o que a autora afirma é a inexistência de dados
51
lingüísticos que justifiquem esta unidade
48
. Essa possibilidade de uma vulgata lingüística,
todavia, não necessariamente caracteriza uma vulgata etnológica
49
, mas contribui para a
composição de uma imagem mais instável da unidade Maku. De qualquer forma, para os
presentes propósitos desta dissertação, é importante considerar a existência do que pode ser
referido como uma “makuologia”: um corpo de estudos constituídos a partir da comparação
do material etnográfico dos povos que habitam o interior das florestas do Noroeste amazônico
e que se diferenciam fortemente de seus vizinhos que habitam os rios.
A partir do que foi exposto acima, depreende-se o alto grau de controvérsia a respeito
do que, então, seriam “os Maku”, envolvendo diversos atores, como índios ribeirinhos,
viajantes, etnólogos, lingüistas e, é claro, os próprios. Disto tudo gostaria de ressaltar um
aspecto: “Maku” designa uma posição atribuída invariavelmente desde perspectiva alheia,
seja dos índios ribeirinhos, dos lingüistas ou dos etnólogos, e, freqüentemente, assimétrica,
dado seu conteúdo depreciativo. Em vista disto, Becerra, Calvo & Mahecha (1999) acusam a
negligência da literatura etnológica ao lançar mão do termo “Maku”, contribuindo para o
desconhecimento das especificidades histórico-culturais dos povos que designa. Os autores
propõem, assim, o abandono deste termo nos círculos acadêmicos e administrativos,
substituindo-o pelo uso dos etnônimos autoatribuídos, ou, como designação do conjunto
lingüístico dos povos, pelo termo “Makú-puinave” (Becerra et alii 1999: 45). O problema
localiza-se justamente na constituição e na designação do conjunto de povos, sendo que, a
48
Para uma comparação básica do vocabulário das línguas kakwa, nukak, hup, yuhup, dow e naböb, conferir
Epps (2005: 734, Anexo II). Com base nesta lista comparativa, a autora questiona a suposta unidade entre as
línguas dos Maku da Colômbia e do Brasil.
49
A ausência de parentesco lingüístico não anula aproximações de outras ordens que podem interessar aos
estudos etnológicos, como economia, organização social, cosmologia etc. Aliás, o contrário também pode ser
verdadeiro, pois, como aponta Jorge Pozzobon em uma ressalva sobre a família lingüística Maku, “sabe-se que
na Amazônia as proximidades lingüísticas não implicam necessariamente similitudes culturais” (Pozzobon 1991:
10). Complementando essas ressalvas, vale a observação de Viveiros de Castro: “O problema das relações entre
língua e cultura é dos mais espinhosos, na etnologia sul-americana.” (1986a: 268). Uma unidade Maku é
duvidosa, embora suas semelhanças, que os diferenciam dos outros povos do Noroeste, são decerto inegáveis.
52
meu ver, a alternativa de “Makú-puinave” não resolve o problema devido à evidente
homonímia entre o objeto do problema e a proposta de solução.
A questão central da controvérsia, penso, é apresentada pelos próprios Hupda, Dow,
Yuhupde e Nadöb presentes no Curso de Magistério Indígena Paah Sak Tëg, que, em seu
relativo desinteresse na definição de um termo que os englobe, apontam a implicação de
tomá-los em conjunto, como uma unidade, que é a de defini-los a partir dos contornos
assimétricos do sistema regional do rio Negro. Portanto, definindo-os não apenas desde
perspectiva alheia, mas desde uma perspectiva que se coloca como superior
50
. Lembrando
Pierre Clastres: “Nessa despreocupação lê-se, muito pelo contrário, a preocupação maior com
sua liberdade” (Clastres 2004: 183).
Todavia, considerando que o presente estudo realiza a revisão de uma bibliografia
eminentemente baseada no termo “Maku” e que não consenso a respeito do novo nome e
da constituição da família lingüística, nesta dissertação lanço mão do termo “Maku” da
mesma forma em que os etnógrafos o usam. No limite, o texto ficaria muito moroso se toda
vez que um dos etnógrafos enunciasse o termo “Maku” fossem colocados todos os etnônimos
aos quais o termo se refere para substituí-lo.
Na literatura etnológica da região, pode ser estabelecida uma linha de corte separando
a produção anterior à primeira monografia baseada em trabalho de campo intensivo com um
povo Maku e a posterior a tal trabalho, como mencionado acima, o de Peter Silverwood-Cope
entre os Kakwa, realizada entre 1968 e 1970. Somente a partir desta monografia de
Silverwood-Cope (1990 [1972]) que a incorporação de visões exógenas aos povos Maku,
marca da bibliografia anterior, começa a ser contraposta. A partir de então, a literatura
etnológica passou a tratar não apenas das perspectivas sobre os Maku como também as
50
Neste ponto, existem analogias entre a definição dos diversos povos de caçadores-coletores do Noroeste
amazônico como “Maku” e a definição da diversidade de povos originários das Américas como “índios”.
53
perspectivas deles, ou seja, dos Kakwa, dos Hupda, dos Yuhupde etc. Pois bem, o foco desta
dissertação são os trabalhos realizados com base em trabalho de campo intensivo entre esses
povos, principalmente entre os Hupda. Portanto, não é feita aqui uma revisão da bibliografia
anterior ao trabalho de campo de P. Silverwood-Cope. A respeito do histórico do registro
acadêmico dos “Maku”, existem trabalhos que sumarizam a bibliografia pré-1968 com uma
competência que eu não poderia reproduzir aqui neste espaço
51
.
Como referido no primeiro tópico deste capítulo, a realização destas etnografias
permitiu a complexificação das visões possíveis do Noroeste amazônico. Assim, por exemplo,
a ocupação dos interflúvios, a mobilidade espacial, a ênfase na caça e a baixa produtividade
agrícola são descritas como escolhas de um modo de vida por parte destes povos, e não como
imposições alheias ou como uma questão de desconhecimento, considerando que, se os Maku
plantam para os Tukano, eles sabem plantar, e, da mesma forma, se eles constroem malocas
para os Tukano, eles poderiam ter as suas próprias (Reid 1979; Pozzobon 1983; Politis 2001).
O tema das relações entre Tukano e Maku, a partir de então, teve o “bias tukano” (Reid 1979)
atenuado. Conforme os etnógrafos, em muitos aspectos a relação dos Maku com os Tukano é
extremamente vantajosa para os primeiros, inclusive porque, é justamente a relação com os
Tukano que possibilita o modo de vida nomádico dos Maku, uma vez que os índios
ribeirinhos absorvem o impacto da influência dos brancos, funcionando como um meio para
os Maku obterem os objetos industrializados sem a necessidade do contato direto e da
missionarização, permanecendo em relativo isolamento geográfico (Ramos et alii 1980: 139-
51
Caso seja do interesse do leitor, recomendo Silverwood-Cope (1990, em especial, Apêndice II),
Howard Reid (1979), Jorge Pozzobon (1983, 1991), Renato Athias (1995), Becerra et alii (1999) e
Politis (2007).
54
40; Pozzobon 1991). Em suma, o que de determinada perspectiva é imposição, de outra é
escolha
52
.
A seguir faz-se uma caracterização, em linhas gerais, dos seis povos tradicionalmente
agrupados sob o termo “Maku”. No sentido de pincelar sua presença na cartografia do
Noroeste amazônico, tratarei basicamente de sua distribuição geográfica, aspectos
demográficos e algumas variações que forem pertinentes para a ilustração da diversidade do
que é referido como “Maku”. Apontam-se também os principais trabalhos acadêmicos sobre
cada povo
53
. Os dados sobre os Hupda serão expostos com maior ênfase, os quais informam
um padrão que pode ser estendido aos demais Maku do Uaupés, isto é, aos Kakwa e aos
Yuhupde.
52
Para ilustrar este aspecto, cito uma passagem que coloca a questão da perspectiva nas relações assimétricas:
“Ainda que seja quase nada, é quase tudo que tenho ao alcance agora: as duas forças que Senhor e Escravo
significam, significam a mesma coisa para o Senhor e para o Escravo? Ou a diferença é também diferentemente
interpretada por cada força?” (Misse 1994).
53
Para uma lista mais completa, incluindo artigos, conferir as Referências desta dissertação.
55
Entre os rios Papuri e Tiquiê, no Brasil, na divisa com a Colômbia, vive um povo que
se convencionou chamar, na literatura etnológica, pelo etnônimo de “Hupda” (também Jupda,
Mapa 1: Localização aproximada de povos Maku
fonte: Politis, G. Nukak: Ethnoarcheology of an Amazonian People (2007)
ISA
1995
±
600
6.
Nad
ö
b
, Kabori
Assis (2006)
2005
±
103
5.
Dow
Pozzobon (1997)
1997
±
370
4.
Yuhupde
Athias (2006)
2006
±
1
500
3.
Hupda
Salamand
-
Kuan (1998
)
1996
±
147*
2.
Kakwa,
Bara
Mahecha, Franky e Becerra (2000)
2000
300
-
320
1.
Nukak
Fonte
Ano
Popula
çã
o
Autodenomina
çã
o
Tabela 1: Dados populacionais de povos Maku
(Tabela extraída da Enciclopédia de Povos Indígenas (ISA), adaptada com dados mais recentes)
* Baseados no trabalho de Salamand-Kuan (1998), Mahecha, Calvo & Becerra (2000) ressaltam a baixa
populacional dos Kakwa, considerando que dos 16 grupos locais em que viviam os 300 Kakwa registrados
por Silverwood-Cope (1990) entre 1968 e 1970, permanecem apenas 4 grupos locais e 147 habitantes,
incluindo neste número os Cubeo e os Hupda que residem nos povoados kakwa (Mahecha et alii 2000: 187).
56
Hupdah, Hupde, Hupd’h, Ubde, Hupd’äh, Hupdu, Hupdu), a partir do termo de auto-
referência pelo qual designam “gente”, “humano”. Certas vezes também referem a si mesmos
como S’ùg Hupd’äh (“gente da floresta”) (Reid 1978: 25; 1979: 21). Os Hupda estão
divididos basicamente em três grupos regionais com diferenças de dialeto e que tendem à
endogamia local, bem como a um relativo isolamento dos demais grupos. Ocupam as
proximidades dos igarapés afluentes meridionais do rio Papuri e setentrionais do rio Tiquiê e
entretêm relações de troca e serviços com seus vizinhos majoritariamente Tukano e Desana
(povos da família lingüística Tukano), habitantes das beiras desses dois grandes rios que
desembocam no Uaupés.
As principais monografias sobre os Hupda, e, conseqüentemente, a bibliografia base
para esta dissertação, são Reid (1979), Pozzobon (1983, 1991) e Athias (1995). Howard Reid
compôs uma descrição bastante completa dos Hupda, sendo a principal referência etnográfica.
Renato Athias concentra seu estudo nas relações entre os Hupda e os Tukano, refletindo sobre
a posição dos Hupda na hierarquia do sistema regional rionegrino (cf. notas 15 e 37). Jorge
Pozzobon realizou pesquisa de campo intensiva com os Hupda apenas em 1989, o que se
refletiu nos dados de sua tese de doutorado (1991). De qualquer forma, mesmo em sua
dissertação de mestrado (1983), realizou alguns levantamentos principalmente sobre
parentesco e demografia entre alguns povos Maku, dentre eles, os Hupda, de forma a
contribuir com dados importantes para o quadro geral da bibliografia.
Além desses pesquisadores, os Hupda receberam uma rápida visita de Kurt
Nimuendaju em maio de 1927
54
. Em 1960, Mario Terribilini e Michel Terribilini, dois primos
ligados à Société Suisse des Américanistes, realizaram uma visita aos Hupda, permanecendo
54
O etnólogo alemão não ficou muito impressionado com o que viu: “Pouco adiante estava uma maloca maior
com entrecasca de páu, igual as malocas mais desleixadas dos Tariána. Também os habitantes, uns 20 talvez não
tinham, afora de sua lingua, nada mais de civilisação primitiva dos Macús, nem siquer a fabricação de cestos de
cipó em technica espiral, tão característica para esta tribo...” (Nimuendaju 1927: 154).
57
cerca de três semanas em uma aldeia
55
. Publicaram um artigo no Bulletin de la Société Suisse
des Américanistes em março de 1961 e, mais recentemente, os diários de campo de Mario
Terribilini (2000) foram colocados à disposição do público. Como referências adicionais
existem também os trabalhos de Pedro Luz (1996) e Juan Peña Ruiz (2003), ambos baseiam-
se em um curto período de trabalho de campo, o primeiro disserta sobre o uso do carpi
(Banisteriopsis caapi) e o segundo trata da relação dos Hupda com a escola.
Conforme Athias (2006), estima-se que a população Hupda atualmente esteja em torno
de 1500 indivíduos (possivelmente mais), distribuídos em cerca de 35 aldeais (grupos locais),
embora, importante destacar que a quantidade de grupos locais tende a variar no tempo devido
aos deslocamentos espaciais. Além da distribuição espacial em grupos regionais e aldeias, os
Hupda estruturam-se em unidades exogâmicas, num mínimo de 25 clãs patrilineares (Athias
1995). Dentre os povos Maku, são os mais números e de concentração demográfica mais
elevada (Reid 1979: 104). Algumas aldeias hup localizam-se na Colômbia, como Caño Azul,
na bacia do rio Tiquiê, com 61 pessoas, e San Joaquin, mais ao norte, nas proximidades do rio
Inambu, com cerca de 50 pessoas (dados de 1996, publicados em Salamand-Kuan 1998).
Também na Colômbia, na margem esquerda do rio Papuri, na missão de Piracuara, vivem
cerca de 50 Hupda junto aos Kakwa (FOIRN/ISA 2006: 20).
O transcorrer da vida dos Hupda se distribui basicamente em três ambientes (ou “três
mundos”, conforme a conceituação de Howard Reid): as aldeias hup no interior das florestas,
as aldeias tukano na beira dos rios e os acampamentos de caça na floresta (Reid 1979: 33;
55
Inspirados pelos trabalhos de Theodor Koch-Grünberg e do padre Tastevin, bem como pela gramática da
língua hup desenvolvida pelo salesiano Antonio Giaccone (com quem tiveram contato em Iauaretê), decidiram
visitar “os Maku”, esses que poderiam ser “os verdadeiros autóctones da região”, pressionados para o fundo das
florestas pelas “sucessivas invasões dos Caribes, Arawaks e Tucanos” (Terribilini 2000: 5). Seguiram a
empreitada com o propósito de realizar uma descrição geral dos costumes, mitos e aspectos físicos dos Maku,
que, à época, eram indiferenciados na bibliografia. Permaneceram cerca de três semanas entre os Hupda da
região próxima a Iauaretê, nas imediações do igarapé Japu. A estadia foi interrompida pela hostilidade à
presença dos brancos revelada durante uma festa regada a caxiri.
58
Pozzobon 1983: 67; Athias 1995). O trânsito entre esses “mundos”, segundo os etnógrafos, se
em uma mescla de razões econômicas e sociais de variadas formas, caracterizando uma
mobilidade espacial relativamente intensa, mas circunscrita em um território. Processos de
fissão, dispersão e fusão de novos coletivos são a tônica de uma dinâmica em que forças
centrífugas e centrípetas entretêm combinações complexas. Às aldeias de seus vizinhos do rio
fazem visitas basicamente para troca de caça e frutos da floresta por produtos agrícolas e bens
materiais de origem não-índia, bem como para a realização de alguns trabalhos como limpeza
de roças e construção de casas. Já, no acampamento de caça, um ou mais grupos de fogo
próximos se dedicam exclusivamente à exploração dos recursos da floresta, atividades
geralmente descritas como de caça e coleta, proporcionando longos períodos de permanência
e mobilidade no interior da floresta, o que é considerado um modo de vida extremamente
prazeroso pelos Hupda.
Os Kakwa (“gente”), chamados também de Bara
56
, que é o termo de referência mais
comum (Silverwood-Cope 1990: 12), estão estabelecidos na Colômbia, ocupando as matas
entre os rios Papuri e Uaupés, mais precisamente os afluentes esquerdos e direitos do médio
rio Uaupés e os afluentes do rio Macuparaná (Pozzobon 1983: 38). Estão distribuídos em
grupos regionais, com diferenças culturais e lingüísticas (Silverwood-Cope 1990: 12),
portanto, em um padrão muito próximo ao dos Hupda, embora a concentração demográfica
seja consideravelmente menor, devido à maior extensão do território e ao menor número
populacional. O principal estudo realizado com os Kakwa é, como já referido, a pesquisa de
Peter Silverwood-Cope (1990 [1972]). O território dos Yuhupde (ou apenas Yuhup, “gente”)
fica ao sul dos Hupda, majoritariamente em terras brasileiras, estendendo-se por ampla área
entre os afluentes ao sul do rio Tiquiê, bem como no rio Apaporis e seu afluente, o rio Traíra
(Pozzobon 1983, 1991). Estão divididos em três grupos regionais e foram estudados por Jorge
56
Opto pelo uso do termo Kakwa para não confundir com os Bará, povo tukano do rio Papuri.
59
Pozzobon em três períodos: 1981-1982, 1989 e 1991. Alguns Yuhupde que vivem do lado
colombiano da fronteira foram estudados por Franky & Mahecha (1997). Tanto os Kakwa
como os Yuhupde estão divididos em clãs patrilineares. Como mencionado na Introdução, o
subconjunto dos três povos, Yuhupde, Hupda e Kakwa, forma os assim chamados “Maku do
Uaupés” na literatura etnológica, os quais apresentam um padrão bastante similar de vida e
têm relações intensas com os índios do rio.
A noroeste, localizam-se os Nukak, em território colombiano, entre o rio Guaviare e as
cabeceiras do rio Inírida. Os Nukak são, dentre os povos Maku, os mais intensamente móveis
e mais próximos da classificação de “caçador-coletor”, o que lhes rende a posição de “mais
tradicionais” na makuologia (Politis 2007). Inclusive, como argumenta Gustavo Politis,
“[t]hey probably represent one of the last opportunities to observe a hunter-gatherer society
that still lives in a traditional way (2007: 11). O contato relativamente recente com os
brancos tem sido drástico. Politis (2007) comenta a situação frágil deste povo de caçadores-
coletores no contexto sociopolítico dos conflitos envolvendo as FARC (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia). Da mesma forma que os demais Maku, estão divididos em
clãs patrilineares, embora as pesquisas não tenham se aprofundado neste sentido (Becerra et
alii 1999). Diferentemente dos povos Maku descritos acima, estabelecem contato mais
freqüente com colonos brancos e missionários da Asociación Nuevas Tribus, e não com índios
ribeirinhos. Os principais estudos sobre eles são Becerra, Calvo & Mahecha (1999) e Politis
(2007), além de uma variedade de artigos destes e de outros autores.
À beira do rio Negro, na margem oposta de São Gabriel da Cachoeira, vivem os Dow
(“gente”), em uma única comunidade. Também conhecidos como Kamã pela população local,
termo de conteúdo pejorativo, próximo ao sentido de “Maku” em geral. Segundo Pozzobon,
dentre os Maku, são os “mais aculturados”, considerando a proximidade com São Gabriel da
Cachoeira e a intensidade de seu engajamento em cadas anteriores com o comércio
60
extrativo da região (Pozzobon 1983: 38). Este processo quase dizimou sua população, que,
atualmente, está em recuperação demográfica. Destaca-se a presença de missionários
evangélicos entre eles, o que resultou em uma série de trabalhos lingüísticos (Martins &
Martins 1999; Martins 2004, dentre outros) e alguns trabalhos que descrevem sua história e
modo de vida (cf. C. Assis 2001; L. Assis 2006). Por fim, a sudoeste dos Dow, no divisor de
águas entre o médio rio Negro e o baixo Japurá (Pozzobon 1983: 39), vivem os Nadöb, termo
que designa um conjunto de populações dispersas em quatro grupos regionais com diferenças
de dialeto e, em alguns casos, com relações não amistosas entre si (Pozzobon 1983).
Diferentemente dos demais povos, estão estruturados em clãs matrilineares (Pozzobon 1983).
Mark Munzel (1969) e Harald Schultz (1959) publicaram algumas informações a respeito
deste povo. Recentemente, Gomes (2008) visitou algumas comunidades e publicou uma breve
historiografia dos Nadöb. Entretanto, não existem estudos mais aprofundados sobre eles.
* * *
Deste exercício de contextualização dos povos Maku no alto rio Negro neste capítulo
destaca-se o tema da diferença entre eles e os povos ribeirinhos, a qual tende a tomar
contornos assimétricos (mas não inequívocos) dadas as tendências hierárquicas do sistema
regional. Nos capítulos 4 e, principalmente, 5, realiza-se um exercício, em certo sentido,
inverso de contextualização, ou seja, contextualiza-se o alto rio Negro nos Hupda, de modo a
descrever a versão que os Hupda articulam deste conjunto de regras compartilhado pelos
povos da região. Importante notar um aspecto que percorre o presente capítulo, fortemente
inspirado no trabalho de Jean Jackson (1983): a chave dupla das diferenças entre Maku e
Tukano, podendo ser descritas como categoriais, absolutas e irreversíveis ou graduais,
relativas e reversíveis. Conforme a exposição do final do segundo tópico, esta caracterização é
fundamental para compreender as diferenças entre as organizações sociais dos povos
61
ribeirinhos e dos povos da floresta do Noroeste amazônico, apontando matizes entre a rigidez
e a fluidez das estruturas sociais. No próximo Capítulo, descrevem-se alguns desdobramentos
do tema da “fluidez” na literatura do Noroeste amazônico.
62
CAPÍTULO 2
A alternação de modelos de sociedade no Noroeste amazônico
O tema das variações no plano da organização social dos povos do Noroeste
amazônico apresenta algumas modulações na literatura etnológica da região. A questão da
articulação das três famílias lingüísticas, Maku, Tukano e Arawak, em um sistema regional
inspira, via de regra, uma perspectiva comparativa nestes estudos. Esta tendência à
comparação interna nesta região etnográfica tem como corolário a comparação mais ampla
com outras regiões da América do Sul. Como referido na Introdução, o triângulo formado
pelas regiões da Guiana, do Brasil Central e do Noroeste amazônico é fundamental no sentido
de estabelecer a variedade das estruturas sociais sul-americanas, cabendo o desafio analítico
de traçar suas transformações possíveis e invariantes estruturais. É importante ressaltar que o
tratamento das sociedades sul-americanas como “tipos” exemplo, as “amorfas” e as
“complexas” proposto pela etnologia amazônica entre as décadas de 1970 e 1980 é uma
operação que visa, no limite, justamente à dissolução das tipologias, no sentido de tratar as
sociedades sul-americanas como variações de um mesmo tema. As divergências entre as
abordagens surgem, portanto, na identificação deste tema, onde estaria localizado e como
operam suas variações.
Na literatura etnológica do Noroeste amazônico, vê-se que cada uma das demais
regiões do triângulo (Brasil Central e Guiana) reverberam de modo parcial com as imagens
etnográficas estabelecidas sobre os povos do Noroeste, desdobrando-se em aprofundamentos
63
diferenciados
57
. A descrição deste plano comparativo, que tende a multiplicar as visões
possíveis do Noroeste amazônico a partir de conexões variadas com outras regiões
etnográficas, é fundamental para compreender os estudos sobre os povos da família lingüística
Maku, em geral, bem como os Hupda especificamente. Tais movimentos teóricos que se
debruçam sobre facetas da variação estrutural do Noroeste, ao invés da univocidade modelar,
complexificam os modelos descritivos e suas relações possíveis, o que abre espaço para outras
formas de entendimento do lugar ocupado pelos Hupda no sistema, considerando a
parcialidade de sua participação em relação ao modelo uaupesino da patrilinearidade
exogâmica. Inclusive, vale dizer, o tema espinhoso das transformações estruturais entre
“índios do mato” e “índios do rio”, tão diversos em alguns aspectos de sua organização social
funcionando, muitas vezes, como imagens invertidas um do outro, o que é matéria
relevante para o discurso tukano sobre os Maku, como visto no tópico anterior —, encontra,
nestas discussões, linhas que apontam matizes.
Sem qualquer pretensão de exaurir a bibliografia a respeito, trazem-se, neste tópico,
como referências principais, as contribuições de Kaj Århem (1989) e de Stephen Hugh-Jones
(1993, 1995), articuladas também com alguns trabalhos de Joanna Overing (1981, 2002). O
trabalho destes estudiosos dos povos tukano, vistos no panorama acima referido da superação
das tipologias das sociedades sul-americanas, apresentam pontos de contato notáveis, mas
exploram diferencialmente o tema das invariantes estruturais, sua localização e variações
possíveis no Noroeste amazônico, uma vez que Århem (1989) teoriza a partir da estrutura
subjacente da aliança simétrica, enquanto S. Hugh-Jones (1993, 1995) parte do tema
57
Os trabalhos que serão descritos neste pico certamente derivam, com variações não negligenciáveis, do
projeto estruturalista. Para ilustrar este espírito que atravessa os diversos trabalhos, trago uma citação de Lévi-
Strauss: “Mas, de fato, nosso fim último não é tanto saber o que são, cada uma por si mesma, as sociedade que
constituem nosso objeto de estudo, como descobrir a maneira pela qual elas diferem umas das outras. Como em
lingüística, estes afastamentos diferenciais constituem o objeto próprio da etnologia.” (Lévi-Strauss 1996: 366,
grifos do autor). Desloca-se, assim, o projeto antropológico da busca por substâncias coletivas para a análise das
relações possíveis, os “afastamentos diferenciais” que conectam as sociedades; das essências às transformações.
64
cosmológico da diferença e suas atualizações possíveis através dos rituais tukano
diferenças teóricas essas que remontam às expostas nos trabalhos de Peter Rivière (1984) e
Eduardo Viveiros de Castro (1986), tratadas na Introdução.
1. O modelo guianês, os Maku e os Tukano
Kaj Århem, pesquisador que realizou trabalho de campo no início da década de 1970
entre os Makuna do rio Pira-paraná, povo da família lingüística Tukano, faz colocações que
podem iluminar o caso dos povos maku
58
. O estudo dos Makuna tem valor estratégico para o
entendimento das variações estruturais no Noroeste amazônico, uma vez que, segundo o
autor, sua organização social é, em alguns aspectos, desviante em relação ao “ideal
prototípico tukano” expressão pela qual o autor designa o modelo ideal da patrilinearidade
exogâmica dos grupos lingüisticamente diferenciados. A heterogeneidade da família
lingüística Tukano toma espaço na bibliografia, de forma a matizar a diferenciação radical
entre “índios do rio” e índios do mato”, na medida em que o plano analítico proposto por
Århem indica possibilidades intermediárias, aprofundando a ideai de um gradiente entre as
organizações sócias Tukano e Maku, conforme as descrições do Capítulo 1.
Voltando à região do Uaupés central, na metade dos anos 1980, 15 anos depois de seu
longo período de estadia em campo, Århem se depara com algumas mudanças sociais
ocorrendo entre os Makuna. Num esforço de entendê-las não somente por causas externas,
como mudanças nos ciclos econômicos ou, principalmente, a ação dos missionários na região,
Århem traça uma série de variações estruturais que se atualizam no espaço (ao mesmo tempo
em diferentes lugares) e no tempo (no mesmo lugar em diferentes tempos). O modelo
58
Århem cita como “povos maku” apenas os Maku do Uaupés, ou seja, os Kakwa, os Hupda e os Yuhupde
(Århem 1989: 9)
65
cunhado pelos etnógrafos da Guiana e o modelo baseado no material tukano predominante são
as matérias que constituem as polarizações do plano analítico proposto por Århem, o qual
conjuga esses modelos etnológicos construídos em regiões etnográficas distintas e teorias
nativas a respeito da alteridade as imagens de “anti-sociedade” que os Tukano articulam a
partir da vizinhança com os Maku. Dentro do “esquema comparativo”, os Makuna e os
“enigmáticos Maku” aparecem como casos de interesse particular: intermediários entre tipos
contrastantes de organização social, como dito acima, o modelo guianês e o tukano rhem
1989: 5-6).
Baseado fundamentalmente no trabalho de Peter Rivière (1984), Århem traça a
seguinte imagem dos coletivos guianeses: aldeias pequenas e impermanentes, de composição
fluida, fundadas em relações de parentesco próximo (incluindo afins e consangüíneos); dada a
ausência de instituições de unifiliação, compõem-se de kindreds bilaterais. Equacionando
parentesco com co-residência, as sociedades da Guiana compartilham um ideal de endogamia
local, além de a prescriptive two-line relationship terminology enconding an ideal of direct
marriage exchange (symetric alliance)(Århem 1989: 6-7). Essas sociedades extremamente
“atomísticas” e “informais” seriam a expressão mais elementar da estrutura social das
sociedades indígenas da América do Sul, contrastando fortemente com as formas de
organização social dos Tukano (Århem 1989: 8). Em meio aos contrastes, os dois sistemas
compartilham a terminologia de relação e a aliança simétrica codificada (Århem 1989: 8)
59
.
59
Seguindo os apontamentos sobre as bases estruturalistas destas propostas de estudo (cf. nota 57), destacam-se
algumas observações sobre a terminologia de parentesco, bem como a estrutura de aliança simétrica pressuposta
nela, e sua relação possível (mas, vale ressaltar, não necessária) com instituições de unifiliação nas sociedades
indígenas da América do Sul. Marcela Coelho de Souza, comentando os desenvolvimentos dos debates sobre
organização social na América do Sul realizados a partir da década de 1970, aponta seu aspecto fundamental: a
“demonstração de que a ‘aliança simétrica’ é independente da constituição de grupos unilineares, podendo
funcionar no contexto de parentelas bilaterais egocentradas através da aplicação de um sistema de classificação
dravidiano, expressão ele mesmo desta forma de aliança. Isso, por sua vez, sugere a hipótese de que a aliança
bilateral seria o substrato da organização social ameríndia” (Coelho de Souza 1995: 122-3). Dreyfus, na década
de 1970, apontava o caráter mistificador do conceito de unifiliação quando usado como parâmetro para a
tipologização de algumas sociedades sul-americanas em oposição a outras do mesmo continente (1977: 379). A
compreensão das variações na organização social das sociedades indígenas sul-americanas, segundo a autora,
66
Entretanto, conforme Århem,
…the Guiana system appears curiously familiar to the ethnographer of the Northwest Amazon,
for it is strikingly similar to the way the Tukano groups describe the non-Tukano speaking Makú,
inhabiting the interfluvial forests of the Northwest Amazon. In other words, the Guiana system
sounds very much as a Tukano characterization of the Makú society. (Århem 1989: 8-9)
Os atributos dos Maku que não correspondem ao ideal de humanidade tukano neste
sentido, seu caráter desviante são justamente os elementos que os aproximam da
organização social das sociedades da Guiana, postando-os entre os dois pólos que Århem
relaciona em sua análise.
[T]he Makú actually share features of both the Guiana and the Tukano systems of social
organization. With the former they share the tendency towards local endogamy and the emphasis of
the alliance bond in the formation of the settlements and local groups; with the later the categorical
division into patrilineal descent groups, and with both the prescriptive symmetric relationship
system. (Århem 1989: 11)
Os Makuna, por sua vez, fariam a mediação entre os Maku e os Tukano prototípicos
60
.
Diferentemente do padrão Tukano, os Makuna não praticam a exogamia lingüística
“anomalia Makuna”, no dizer de Århem —, segmentando-se em duas fratrias exogâmicas
estruturadas, cada qual, em sibs ordenados pela relação de irmão mais velho/irmão mais novo.
Um outro aspecto importante em relação aos desvios do ideal tukano refere-se ao fato de os
exigiria uma análise centrada na combinação de traços, cruzando os pares endogamia/exogamia e
parentela/instituições de unifiliação exercício através do qual traça as transformações estruturais das
organizações sociais matsiguenga, tatuyo, yanomami e piaroa (1977). O argumento central de Dreyfus vai ao
encontro de Coelho de Souza, uma vez que no caso ameríndio a filiação indiferenciada (cognática) e a filiação
unilinear ne caractérisent pas deux types différents de structures de parenté mais de variantes du me types
(Dreyfus 1977: 380). Essas colocações de Dreyfus e Coelho de Souza acerca da aliança simétrica como uma
estrutura de fundo, variando no plano de suas realizações possíveis, corroboram o plano analítico proposto por
Århem (1989), que proporciona, em grande medida, a inspiração geral da forma que trato a organização social
hup. Ainda neste sentido, explorando o potencial do paradigma dravidiano clássico, Eduardo Viveiros de Castro
argumenta a favor da modulação deste paradigma, não obstante as intensas variações das terminologias de
parentesco na Amazônia (1993: 164). Tal proposta de “amerindianizar” (para usar uma expressão de Rivière
1993) o sistema “dravidiano”, estendo-o ao continente (em busca de invariantes) e alterando-o (conforme as
variações) tem como objetivo colocar os diferentes sistemas de parentesco em relação estrutural.
60
Além dos Makuna, Århem cita os Cubeo, estudados por Goldman (1963), como um povo que desvia do
padrão ideal dos Tukano, uma vez que se divide em três fratrias exogâmicas que casam entre si, sendo, portanto,
lingüisticamente endogâmicos, embora, à semelhança do padrão Tukano, enfatizem a exogamia local (Århem
1989: 19, 20).
67
Makuna não articularem seu sistema de descendência espacialmente tal qual o padrão tukano,
uma vez que, mesmo mantendo a exogamia no plano das malocas, tende a uma endogamia
local no plano dos aglomerados de malocas adjacentes que abrigam sibs que trocam mulheres
entre si
61
. Além disso, um padrão de moradia pós-marital uxorilocal contrasta com o ideal de
virilocalidade dos Tukano (Århem 1989: 12).
Dadas estas diferenças no plano da organização social, Århem identifica uma quebra
entre ideal e práxis, um descompasso entre discurso e ação, da parte dos Makuna, pois estes
preconizam as mesmas regras que os povos que mais se aproximam do padrão Tukano:
ideals of language group exogamy and virilocal residence in the sense that they maintain
that these ideals should properly apply also to themselves” (Århem 1989: 12).
De imediato, pode-se afirmar que o que distingue os Makuna do padrão Tukano os
aproxima justamente dos Maku. Inclusive a proximidade terminológica entre os dois
etnônimos fornece material para algumas especulações deixadas em segundo plano por
Århem, que foca seu estudo em uma evidência a ser enfatizada: os Makuna reconhecem sua
proximidade com os Maku (Århem 1989: 13). Os Makuna estendem sua noção de
humanidade aos Maku, rejeitando a chave pejorativa e assimétrica que condiciona as relações
entre os Tukano em geral e os Maku. A isso corresponderia, inclusive, uma freqüência
considerável de casamentos entre homens Makuna e mulheres Maku. Os clãs maku
62
seriam
conjugados junto aos sibs Makuna de status mais baixo, de modo a não projetar sobre eles a
imagem de sub-humanidade, mas, diferentemente, introduzindo-os na ordenação da
humanidade alto rio-negrina (Århem 1989: 13).
61
Como visto no Capítulo 1, este atributo dos Makuna não seria necessariamente desviante, conforme a
descrição dos “campos sociais” de Christine Hugh-Jones (1979). Como será visto a seguir, Stephen Hugh-Jones
generaliza esta tendência para os Tukano orientais, o que se relacionae com as críticas que faz a Århem e sua
caracterização da “anomalia Makuna”.
62
“Clã” é o termo pelo qual os etnógrafos, desde a monografia de Silverwood-Cope (1990 [1972]), referem-se
aos grupos de unifiliação maku, operando uma diferenciação com os “sibs” tukano, cuja razão será exposta no
Capítulo 5.
68
Isto posto, cabe agora finalizar a exposição da lógica transformacional do plano
analítico de Århem. Para o autor, os Maku e os Makuna possibilitam a conexão entre o
sistema da Guiana e o dos Tukano, formando um transformational set defined by the
structure of direct exchange (symetric alliance) common to them all (Århem 1989: 14).
Variações de um mesmo tema, portanto; cortando o norte das terras baixas sul-americanas,
distribuindo no espaço realizações muito diversas, no plano da organização social, de
possibilidades lógicas de uma mesma estrutura subjacente. Assim, enquanto as sociedades da
Guiana optaram to stress the alliance bond and the unity of co-residential affines, resulting
in a cognatic, endogamous and uxorilocal system”, os Tukano, por sua vez, tomaram outra
direção: to emphasize unilineal affiliation and the unity of co-residential agnates, resulting
in a patrilineal, exogamous and virilocal system” (Århem 1989: 14).
Essas variações espaciais concomitantes remetem também a variações temporais: uma
mesma sociedade podendo sucessivamente passar por fases guianesa, maku, makuna e tukano
(Århem 1989: 14). E, o que é mais importante, a meu ver, para o estudo dos Hupda:
[…] different logical possibilities offered by the symmetric exchange structure may be realized, not
only in different societies, or in the same society over time, but in the same society at the same time
as parallel or alternative social models, consciously elaborated and operative in particular social
contexts. (Århem 1989: 14)
Århem abre a possibilidade analítica para o tratamento desses modelos sociais
alternativos, os quais podem ocorrer, portanto, não apenas sucessiva como também
concomitantemente em uma mesma sociedade.
69
2. As estruturas elementares da reciprocidade e o contra-devir
Na década de 1990, Stephen Hugh-Jones desenvolve uma abordagem analítica que
complexifica a descrição da socialidade tukano com base em seu trabalho etnográfico entre os
Barasana do rio Pirá-paraná e na literatura etnológica sobre os Tukano orientais em geral. Da
mesma forma que Århem (1989) o autor propõe a articulação de conceitualizações distintas de
sociedade para a descrição dos Tukano. Não obstante os pontos que aproximam as descrições
dos autores, existem divergências epistemológicas que devem ser ressaltadas. Enquanto
Århem, certamente partindo deMakuna Social Organization” (1981), coloca o tema da
estrutura social e parentesco em primeiro plano, S. Hugh-Jones descreve uma trama algo
diferente, dando seqüência ao seu estudo sobre os rituais barasana, os quais, segundo o autor,
fazem a mediação entre a mitologia e a organização social. As implicações desses
aprofundamentos distintos serão tratadas ao final do tópico a partir da crítica que Stephen
Hugh-Jones faz ao trabalho de Kaj Århem. Por ora, é necessário conectar os autores. Para
tanto, lanço mão de alguns trabalhos de Joanna Overing (1981, 2002), sendo aqui
particularmente relevante o conceito de “estruturas elementares de reciprocidade” e sua
potencialidade para a articulação das sociedades amazônicas como transformações umas das
outras.
Joanna Overing (1981, 2002), dando seqüência à sua percepção do idealismo marcante
do pensamento ameríndio (Overing 1977a), coloca de forma cabal a relativa indistinção das
ordens cosmológica e de estrutura social para a compreensão das relações transformacionais
entre as sociedades da Guiana, do Noroeste e do Brasil Central
63
. A autora estabelece, assim,
63
A incorporação de dados das sociedades centro-brasileiras, tanto no que tange a sua organização social como
as implicações cosmológicas, é, acredito, um exercício promissor para a sofisticação descritiva das socialidades
dos Maku do Uaupés. Principalmente no que se refere às relações entre instituições sociológicas, como as
metades exogâmicas, bem como os clãs, e os aspectos cosmológicos envolvidos, como os nomes, as almas etc.
As sociedades do Brasil Central poderiam funcionar como um parâmetro complementar ao modelo guianês,
permitindo um melhor traçado, através do exercício comparativo, de dimensões da socialidade dos povos da
floresta da região do Uaupés que não reverberam quando relacionadas às sociedades guianesas. Porém, devido à
70
os contornos metafísicos da estrutura que conforma a partitura amazônica, na qual o tema da
diferença e sua “mistura adequada” é a tônica que condiciona as variadas execuções possíveis.
Em suas palavras:
Em vez de “sistemas elementares de parentesco e casamento”, é possível remeter-se, de maneira
mais geral, a “estruturas elementares de reciprocidade” e, nesse sentido, tratar as sociedades
ameríndias das Guianas, do Noroeste Amazônico e do Brasil Central como alguns dos muitos
exemplos de uma estrutura básica. (Overing 2002: 136)
Overing aponta que, subjacente a essas sociedades tão distintas no plano da
organização social, estaria operando uma mesma teoria de sociedade, uma mesma filosofia, a
qual é vertida fundamentalmente a partir do problema da diferença. Desta forma, as
“estruturas elementares da reciprocidade”, descritas por Overing, estariam condicionando não
apenas a estrutura da troca direta tratada por Kaj Århem a respeito das organizações sociais,
mas também o ordenamento cosmológico do universo, num todo inextricável — lembrando as
colocações de Viveiros de Castro (1986a), tratadas na Introdução, o parentesco seria parte
desta ordem cosmológica geral.
A condição da existência do cosmos, da vida e da sociedade se daria justamente na
relação entre entidades ontologicamente diferentes, relação esta absolutamente necessária,
mas fundamentalmente arriscada. “Meu argumento é de que, sob tal contraste, reside um
princípio unitário de sociedade. O contraste na organização social reflete os vários modos
pelos quais uma filosofia da vida social semelhante pode expressar ‘estruturas elementares de
reciprocidade’”, diz a autora, complementando: as condições de existência destas sociedades
seriam justamente “o contato e a mistura apropriados entre entidades e forças, diferentes que
são umas das outras” (Overing 2002: 123).
lacuna pessoal de leituras referentes a esta região etnográfica, opto por conter o plano analítico desta dissertação
no que foi proposto por Kaj Århem, ou seja, na oscilação entre os modelos guianês e tukano prototípico.
Incorporar com competência os dados acerca das sociedades centro-brasileiras é uma tarefa que excede os
propósitos desta dissertação.
71
Buscando ferramentas descritivas que contemplassem a variação da organização social
ameríndia, Overing traça o conceito de “estruturas elementares da reciprocidade” a partir do
diálogo com a conceituação de Pierre Clastres da filosofia política ameríndia tal qual exposta
em “A Sociedade contra o Estado” (2003). Num movimento de concordância parcial com as
idéias deste autor, Overing mantém a premência do princípio da reciprocidade na
conformação do igualitarismo característico das formas sociais ameríndias em sua recusa ao
poder coercitivo (disposição “contra-Estado”), operando, entretanto, uma diferenciação
conceitual. Conforme Overing, a filosofia ameríndia não identificaria o poder à natureza,
como notava Clastres, mas à cultura.
Não é a natureza que a sociedade ameríndia rejeita, mas a posse das forças da cultura que
permitiria um uso coercitivo ou violento e poderia impor, entre outras coisas, um controle sobre a
atividade econômica e seus produtos. Quando uma sociedade ameríndia atinge o ápice de tamanha
rejeição, ela se torna uma sociedade sem economia política, em que não quem ocupe um papel
político dirigido a ordenar o trabalho alheio ou os frutos deste. (Overing 2002: 121)
Para Clastres o poder coercitivo (predominância do princípio da hierarquia) seria
recusado pela oposição da reciprocidade à natureza, diversamente, Overing contrapõe o
princípio da reciprocidade à concentração das forças da cultura. Assim, o problema da
filosofia ameríndia se daria em torno da partição cosmológica das forças da cultura, que, uma
vez descentralizadas, não poderiam atualizar-se em monopólios terrenos, em hierarquias
sociais, em desigualdade, em dominação. A filosofia política ameríndia seria um arranjo que
opera a não-coincidência das posses das forças culturais. “Como controlar a diferença, como
fazer para que ela não se transforme em desigualdade?”, conforme a sumarização de Caiuby
Novaes (2002: 118) das questões dos povos tratados por Overing. Dada a diferença como
relação basal do universo, o problema da sociedade torna-se precisamente o de modular as
relações possíveis (as “misturas adequadas”) entre as forças diversas, com vistas a obliterar os
riscos inerentes a estas relações, instituindo a segurança do social através da “reciprocidade
completa” (Overing 2002: 123). Uma vez que a existência social é eminentemente
72
identificada com a diferença, bem como com o perigo implicado nesta, “a existência a-social
(por exemplo, o mundo depois da morte)” seria identificado “com a identidade e a segurança”
(Overing 2002: 123). Esse ponto é fundamental para a compreensão da variação das formas
de organização social das sociedades indígenas sul-americanas em sua articulação com o
plano cosmológico.
As soluções para o problema da diferença encontradas na Guiana e no Noroeste
amazônico seriam fortemente contrastadas: “Os Piaroa e os índios das Guianas em geral
fazem o possível para que a organização do grupo local suprima as diferenças que compõem a
sociedade, ao passo que as culturas jê, bororo e do Noroeste Amazônico tendem a enfatizá-
las” (Overing 2002: 124). A “ficção endogâmica” característica das sociedades da Guiana,
empenhadas no exercício cotidiano de “mascaramento das diferenças”, contrasta fortemente
com a ênfase exogâmica do modelo da patrilinearidade do Noroeste amazônico, que
justamente enfatiza as diferenças, atualizando-as no espaço através da distribuição dos sibs
nos rios — “princípios de estrutura social... visíveis a olho nu” (Overing 2002: 122). A
oposição entre as sociedades guianesas e as do Noroeste (bem como as centro-brasileiras) tem
como implicação no plano da estrutura social uma oposição entre arranjos sociais
egocentrados e sócio-centrados.
Entre os Jê, os Bororo e os ameríndios do Noroeste Amazônico, as forças da cultura são
socialmente controladas, como evidenciado pelos princípios relativamente formais de organização
típicos dessas sociedades mencionados acima. Sugiro que as estruturas sociais atomizadas,
comumente encontradas nas Guianas, e os agrupamentos sociais guianeses são advindos de uma
filosofia individualista, fortemente veiculada por esses ameríndios, uma filosofia que contrasta os
habitantes das Guianas em geral com seus vizinhos mais “sócio-centrados” ao Sul, que destinam
certos tipos de controle ao jugo da sociedade. Nas Guianas, tal controle é responsabilidade do
indivíduo. (Overing 2002: 124)
Os Piaroa, sociedade da região da Guiana estudada por Joanna Overing, endogâmicos,
indiferenciados, estruturados em kindreds, fundam-se, entretanto, em uma cosmogonia que
versa sobre clãs patrilineares e metades, os quais ocupam o lugar cósmico de onde os Piaroa
73
surgiram como pessoas e para onde retornam após a morte (Overing 1975: 203-4). Neste
mundo, cada clã piaroa vive em um local separado, apenas entre os seus, separados dos afins,
animais etc. Atemporal e estéril, este mundo originou a sociedade atual piaroa por um
movimento de colapso em que os clãs e metades misturaram-se, casando-se entre si, a ponto
de anular suas distinções espaciais e sociais (Århem 1989: 15). A existência de conjuntos
unifiliados dentre os Piaroa, portanto, se apenas em um plano cosmológico, estabelecendo
a imagem inversa de sua sociedade atual, sendo negativamente valorada ao conjugar-se com a
morte e a esterilidade.
Conforme Århem, a imagem deste mundo formado exclusivamente de consangüíneos
tem, dentre os Piaroa, função análoga à imagem dos Maku para os Tukano. Neste ponto, a
imagem negativa dos Maku, desde a perspectiva tukano, ganha uma função positiva: espécie
de dispositivo que inibe o devir-maku e enfatiza a observância das regras tukano. Ambas
articulam the boundaries of the social universeao estabelecer modelos sociais negativos,
vertidos em um contraste patente entre o mundo atual e o cosmológico: both images one
associated with the super-human domain of the spirits and the afterlife, the other with the
sub-human margins of the inhabited world serve to affirm the normative order of the
societies which produce them” (Århem 1989: 15). Para Århem, essas imagens têm uma
função muito precisa, espécie de contra-imagens de sociedade, colocadas nos planos do além
e do aquém da humanidade justamente para fornecer a imagem do que não tornar-se
imagens de organização social inversas às realizadas pelos Piaroa e pelos Tukano (que, por
sinal, são inversões uma da outra), ambas possibilidades lógicas partidas da estrutura basal de
aliança simétrica que percorre essas sociedades.
They are conscious elaborations, at the level of ideology, of logical possibilities encoded in the
relationship system of the two societies. It is as if the Piaroa and the Tukano were aware of the
transformational set of logical possibilities defined by their symmetric alliance structure. By
choosing one possibility as the normative model, each society has relegated to the realm of
ideology and turned it into a highly negative charged counterpoint model, a model of non-human
society — indeed, of anti-society. (Århem 1989 15-6)
74
Essas contra-imagens das sociedades, expressando, fundamentalmente, ideais de não-
humanidade têm, portanto, a função de delimitar the practical impossibility of alternative
social models and the necessity of the existing normative orderrhem 1989: 16). Dada a
relação das imagens de anti-sociedade dos Piaroa e dos Tukano como inversões inversas,
Århem finaliza seu comentário: “[s]tretching this line of reasoning to its limit, one could say
that the Tukano image of the Makú is there to inhibit the Tukano system from changing into a
Guianese one, just as the mortuary homeland of the Piaroa prevents them, as it were, from
‘becoming Tukano’” (Århem 1989: 16).
Agora, entre os Makuna, enquanto figuras intermediárias na série transformacional,
Århem constata justamente a ausência de um modelo negativo de sociedade, não havendo
entre eles uma barreira ideológica que estancasse as possibilidades de transformação dadas
pela estrutura de troca simétrica (Århem 1989: 15). Faltam-lhes, portanto, imagens que se
contrapõem ao devir, inspirando-lhes, conseqüentemente, a inconstância. Com base neste
plano analítico, Århem explica as transformações no padrão de composição dos grupos locais
que estavam ocorrendo entre os Makuna no final da década de 1980, espécie de processo de
“makunização” (em certo sentido, “guianização”) dos Makuna envolto em uma trama
complexa entre causas exteriores e possibilidades de modelos alternativos, “the seeds of
change” contidas na sociedade Makuna, sugerindo uma sociedade “pós-Tukano” (Århem
1989: 18).
75
3. O jurupari e o dabucuri
Tudo se passa como se Stephen Hugh-Jones (1993, 1995) conjugasse, em sua proposta
de descrição da sociedade tukano, a possibilidade de oscilação estrutural em uma mesma
sociedade, tratada por Kaj Århem, com a premência da ordem cosmológica enfatizada por
Joanna Overing. Tal proposta do antropólogo britânico seqüência a um percurso cuja
partida se dá em The Palms and the Pleiades(1979), livro no qual aborda a ordem ritual
barasana como o meio de atualização sócio-lógica do plano mitológico
64
. De modo
importante, S. Hugh-Jones irá, na década de 1990, propor os rituais da “He Housee a “Food-
giving House(doravante traduzidos, respectivamente, como jurupari e dabucuri) como dois
modelos alternativos de sociedade articulados nos Tukano. Nos termos de Århem, o jurupari e
o dabucuri correspondem, respectivamente, ao sistema prototípico tukano e ao guianês. Ou,
na perspectiva de Overing, estão em jogo duas formas distintas de atualizar o tema geral da
diferença; dois modos de realizar as “misturas adequadas” entre as forças da cultura.
Nesta complexificação analítica, S. Hugh-Jones busca articular através da positividade
de dois modelos um aspecto que chama a atenção dos etnógrafos do Noroeste: a oposição
entre uma estrutura hierárquica e um ethos igualitário nas relações sociais nos termos do
autor, um “ethos de consangüinidade” —, da qual já tratamos no Capítulo 1.
64
O ritual para Stephen Hugh-Jones estaria situado justamente entre o mito e a organização social, mediando
estes dois níveis: “it appears to be through ritual that the elaborate mythological systems of these people acquire
their meaning as an active force and organizing principle in daily life(S. Hugh-Jones 1979: 3). Em The Palm
and the Pleiades(1979), o autor estende o método de análise estruturalista dos mitos aos rituais, colocando em
primeiro plano as relações entre diferentes rituais: I shall show that Barasana initiation rites must be
considered in relation to one another and in relation to other rites(1979: 16). Além disso, o antropólogo inglês
propõe que a interpretação dos rituais deve ser feita articulando-os com uma pluralidade de níveis de
interpretação sistematicamente relacionados (1979: 16). Entretanto, mesmo embasando-se fortemente na teoria
estruturalista, Stephen Hugh-Jones estabelece algumas diferenças em relação à teoria lévi-straussiana de ritual,
como observa Bruce Albert (1985) nesta passagem: Plutôt que de considérer le rite, tel Lévi-Strauss, comme
une sorte de rocher de Sisyphe intellectuel, comme un exercice maniaque et désespéré”, para Stephen Hugh-
Jones o ritual seria un dispositif culturel charnière entre organisation cognitive et pratique sociale (Albert
1985: 691). Em suma, “[m]yth may exhibit order in thought, but it is through ritual that this order is
manipulated to produce order in action and in society at large” (S. Hugh-Jones 1979: 260).
76
The notion of descent fits uneasily with native idioms and it comes complete with implications of
corporateness and segmentation which make little sense in this context. Furthermore, notions of
descent are relevant largely in ritual and mythological contexts and are not to be confused with an
ethos of consanguinity which is more pertinent to everyday life. (S. Hugh-Jones, 1993: 96)
Pois bem, desta citação destacam-se, além do relativo desencaixe do conceito de
descendência mencionado na Introdução, dois pontos: a relevância mitológica e ritual da
descendência e o “ethos de consangüinidade” preponderante na vida cotidiana dos
agrupamentos tukano (S. Hugh-Jones 1995: 238). O contraste entre esses dois aspectos da
sociedade tukano sugere nuances descritivas, pois
although the usual characterization of Tukanoan social structure in terms of unilineal descent,
hierarchy, exogamy, virilocality and agnatic residential groups reflects local views, it also
overshadows an equally important indigenous emphasis on equality, endogamy and on the
consanguineal character of residential and territorial groupings. (S. Hugh-Jones 1995: 237)
Para relacionar esses princípios de organização social contrastivos em um mesmo
conjunto social, S. Hugh-Jones lança mão do conceito de societés à maison(“sociedades de
casa” ou simplesmente “casa”) de Claude Lévi-Strauss. Conquanto o conceito de “Casa” em
Lévi-Strauss diga mais a respeito da constituição de grupos sociais que a algo propriamente
arquitetônico não havendo, necessariamente, relação entre os dois planos —, os reflexos
das instituições sociais na arquitetura tukano, em suma, na maloca, são aspectos fundamentais
na econômica geral do argumento de Stephen Hugh-Jones (1993: 97). Conectando temas
mitológicos à organização social, Hugh-Jones descreve os rituais como o meio pelo qual o
tempo atual, dos humanos, funde-se com o plano atemporal do mito, and the maloca
assumes the proportions and significance of the cosmos” (1995: 234).
Os mitos tukano que narram a formação da condição atual da humanidade oscilam
entre dois princípios, de um lado a hierarquia, estruturando as relações no interior dos sibs, de
outro a igualdade, quando os mitos concentram-se na narrativa das relações entre grupos
lingüísticos diferenciados. Na jornada da cobra-canoa, a qual é imageticamente relacionada ao
útero, ocorre a gestação dos humanos, que, ao chegarem à região do Uaupés, adquirem sua
77
condição atual. Assim, os ancestrais dos vários grupos tukano, separados por diferenças
lingüísticas, emergiram da cobra-canoa
65
, dispersando-se no território (S. Hugh-Jones 1995:
235), dando origem às suas relações atuais.
Told as an account of the origins of all Tukanoan groups, this myth downplays the potential
hierarchy implied by an order of emergence and stresses an equality of difference marked by each
group’s different, emblematic language. As we shall see, this contrasts with an emphasis on rank
and hierarchy when versions of the myth relate the origins of one specific group. (S. Hugh-Jones
1995: 235)
A dinâmica entre esses dois princípios, hierarquia/igualdade, que alternam em ênfase
na mitologia, estrutura dois modos diferenciados de conceituar a sociedade dos Tukano
traçados na oposição de uma série de outros pares conceituais, tais como
descendência/consangüinidade fortemente implicados no jurupari e no dabucuri ,
agnatismo/cognatismo modos de organização social —, masculino/feminino leituras
possíveis da maloca —, cobra/útero figura tica dual que engloba a humanidade como
um todo (consubstancialidade), mas a distribui diferencialmente no mundo pela ordem de
nascimento.
One, corresponding to the anthropologists’ descent, emphasises hierarchy and a general masculine
ethos and is most salient in the context of male initiation rites. The other conceptualisation is more
egalitarian, is associated with a more feminine ethos and emphasises notions of kinship and
consanguinity. (S. Hugh-Jones 1993: 97)
Tomando o Noroeste amazônico como eixo do plano transformacional articulado no
triângulo que estrutura os estudos comparativos de Århem, Overing e S. Hugh-Jones, vê-se
que cada uma dessas conceitualizações da sociedade tukano reverbera com um dos outros
vértices, infletindo no interior do socius tukano soluções diversas para o tema geral da
diferença, dois modos de expressão das “estruturas elementares da reciprocidade”: por um
lado, à semelhança do Brasil Central, os princípios da hierarquia e da descendência enfatizam
as diferenças cosmológicas articulando estratificações no plano da organização social
65
Esta passagem mítica trata da passagem da ordem cosmológica para a condição humana atual: This process,
called the ‘awakening up of the people’ (bãsa yuhi), depends on the establishment of an antithesis between life
and death and it marks the separation of people from animals, culture from nature, and the mundane from the
mytic” (S. Hugh-Jones 1988: 141).
78
(distribuição dos grupos no espaço, hierarquização dos sibs); por outro, a igualdade e a
consangüinidade operam a indiferenciação guianesa (ethos cotidiano). Estabelecidas as
relações míticas, passaremos agora à descrição dos rituais do dabucuri e do jurupari e suas
relações com a organização social tukano.
Nas festas com consumo de caxiri, os dabucuris (“Food-giving House”) ocorre a
reunião do aglomerado de malocas vizinhas sob um mesmo teto, colocando-se como uma
mesma comunidade, de modo que the house standing metonimically for the people inside
(S. Hugh-Jones 1993: 101). A progressão destas festas indica o ideal de integração entre os
grupos das diferentes malocas. No início do dabucuri, anfitriões e hóspedes permanecem
separados e suas relações são marcadas por cantos formais, enfatizando, sobretudo, as
diferenças entre eles. Esta formalidade é gradativamente diluída no decorrer da festa, ao passo
que, ao final, todos estão dançando juntos; a deferência que marca as atitudes iniciais é
substituída pela jocosidade entre os homens. O ápice da integração se na refeição comunal
que encerra a festa, momento máximo em que o grupo territorial formado pelo conjunto de
malocas coloca-se como “a single commensal family”, os visitantes provendo carne, os
anfitriões beiju e caxiri (S. Hugh-Jones 1993: 101). Assim, o princípio da reciprocidade
articula a relação entre anfitriões e visitantes, operando-se através de trocas que reflect the
opposed complementary and egalitarian relationship between affinaly-related groups
represented, in the context of the ritual, primarily by the men” (S. Hugh-Jones 1993: 101).
Conforme a breve descrição do modelo de sociedade dos Tukano feita no Capítulo 1, o
aglomerado de malocas, formado por dois ou três grupos exogâmicos em relação de afinidade,
make up a territorial group with fluid and shifting boundaries defined by density of kinship
ties, the frequency of visiting, reciprocal feasting and intermarriage, and by influence of
shamans and other important men(S. Hugh-Jones 1993: 100). Tais aglomerados de malocas
seriam territorialmente relatively endogamous”, dada a estrutura de aliança simétrica que
79
regula as relações de afinidade, bem como a preferência pelo casamento com afim próximo,
de forma que “[b]rothers and sisters tend to live in neighbouring houses linked by long-
standing ties of alliance so that their children marry each other(S. Hugh-Jones 1993: 100).
Em suma, “[i]f the maloca community is like a single family, de facto the territorial group is
an extended endogamous kindred, as arrangement not dissimilar to that found in the
Guianas”, respeitadas, é claro, as diferenças entre os princípios da endogamia ald das
sociedades da Guiana e da exogamia de maloca dos Tukano (S. Hugh-Jones 1993: 100-1).
O modelo de conceituação de sociedade atualizado pelo ritual do dabucuri articula-se
mais fortemente com a vida cotidiana da maloca e do aglomerado de malocas, considerando
que as diferenças de senioridade entre membros de um mesmo grupo exogâmico, e afinidade,
marcando relações entre grupos exogâmicos distintos, mas espacialmente próximos, são
englobadas pelo idioma do parentesco. Assim, hierarquia (no interior do grupo exogâmico) e
afinidade (entre grupos exogâmicos), princípios fundamentalmente diferenciantes, são
englobados pelo ideal da consangüinidade, de forma que as relações tendem a ser informais e
igualitárias dada a prevalência da ideologia do parentesco (Hugh-Jones 1993: 100).
Os rituais secretos de iniciação masculina, ou juruparis (“He House), aos quais estão
vetadas as mulheres e as crianças, funcionam como a antítese dos dabucuris (S. Hugh-Jones
1993: 111), atualizando as relações hierárquicas entre os sibs
66
. Oposto ao ethos da
comensalidade e da indiferenciação que marca as relações cotidianas e os rituais que
congregam os grupos territoriais, o jurupari is vertically oriented towards the ancestors and
also intrinsically hierarchical, employing a number of ritual devices to mark out the relative
standing of the people involved” (S. Hugh-Jones 1993: 111). Desta forma, envolve justamente
66
Sobre os sentidos de “he”: “he refers to the ancestral state and its powers; more specifically it refers to paired
flutes and trumpets, made from polished black palm-wood, which represent ancestral qualities in their most
condensed form(S. Hugh-Jones 1995: 243; para uma descrição completa deste ritual, conferir S. Hugh-Jones
1979).
80
a marcação das diferenças dadas na mitologia, ao invés de sua diluição gradativa, como no
dabucuri. Trata-se da atualização ritual da ordenação clânica: In one grand fusion body,
house and cosmos coincide, the present becomes the past, individuals become whole clans,
and the group becomes one with its ancestor” (1995: 244).
S. Hugh-Jones assim sintetiza os dois modelos condensados nos rituais tukano,
enfatizando sua relação complementar e correspondência com os modelos antropológicos da
“descendência” e da “consangüinidade”:
These two complementary models both receive expression at ritual gatherings known as ‘houses’.
The latter model is dominant at Food-giving House, a gathering which stresses the equal-but-
different status of affinally-related maloca communities and which presents the house as a
commensal, consanguineal group or extended family. The former model comes to the fore at He
House, a rite of clanhood which reaffirms ties to the group’s founding ancestor and presents an
image of the house as made up of ranked set of male siblings. (S. Hugh-Jones 1995: 237)
I have argued earlier that these two readings relate to two different conceptualisations of social
relations. One, setting individuals and groups apart, combines internal hierarchy with outwardly-
directed self-interest and represents the community as a male-dominated House. The other
integrates individuals and groups, combines equality with accomodation and mutual identification,
and represents the community as a nurturing womb-like family. The former corresponds to the
anthropologists’ descent, the latter to consanguinity. (S. Hugh-Jones 1995: 112)
uma diferença fundamental entre as abordagens de Stephen Hugh-Jones e de Kaj
Århem expostas neste Capítulo, a qual tem efeitos epistemológicos importantes no que toca a
compreensão da formas como os etnógrafos dos Maku do Uaupés descreveram a organização
social destes povos, como veremos no “Capítulo 5 O consangüíneo e o Afim”. S. Hugh-
Jones aponta que, não obstante suas conclusões e as de Kaj Århem serem congruentes quanto
à necessidade de articular uma duplicidade modelar para a descrição da sociedade tukano,
Århem acaba por diminuir a significância de um dos modelos justamente por entendê-los
como uma oposição entre ideal e prática. É justamente esta operação teórica que delega aos
Makuna a imagem de fluidos, ou, para usar a expressão de Århem, da “anomalia Makuna”,
fazendo-os uma espécie de exceção da regra tukano da patrilinearidade exogâmica (S. Hugh-
Jones 1995: 237). A articulação do plano mítico e ritual com a organização social, que é o
81
moto-contínuo do trabalho de Stephen Hugh-Jones, estabelece outro parâmetro descritivo, de
forma a borrar a distinção entre ideal e prática.
Far from being a deviation of some ideal, close marriage, local endogamy, a stress on
consanguinity and an ethos of family and kinship are themselves part of an alternative ideal. It is
this ideal which receives expression in the final feeding stage of Food-giving House. Affinity,
highlighted in the early stages of the feast, blurs into co-resident consanguinity in a meal which
represents the gathering as a single family and house. (S. Hugh-Jones 1993: 105)
Ambos os modelos têm correspondência ritual e mítica, bem como eficácia social, não
podendo o antropólogo, portanto, com base nas “ambigüidades” do discurso nativo, definir se
um é mais real (plano da práxis) e o outro meramente imaginário, de forma a instituir uma
quebra epistemológica entre o que é dito e o que é feito pelos nativos
67
. Fundamentalmente,
para S. Hugh-Jones, ambos os modelos são ideais e práticos a um mesmo tempo, logo, a
distinção, posta desta forma, torna-se inútil.
Kaj Århem (2001) ressalta os pontos em comum entre a proposta dele e a de S. Hugh-
Jones (1993, 1995). Ao final deste seu trabalho mais recente, o autor não associa diretamente
a relação dos modelos alternativos de sociedade no Noroeste amazônico com uma oposição
entre ideal e prática, entretanto, acentua um ponto fundamental em seu trabalho, que apresenta
relativa divergência com S. Hugh-Jones, remetendo às idéias acima expostas em relação às
imagens de anti-humanidade e sua função de contra-devir: o desequilíbrio que marca a relação
entre um dado modelo de sociedade e suas alternative visions and counter-models, variously
represented as repressed possibilities”.
The presence of alternatives and counter-models is a constant and fundamental feature of social
systems. However, it is also in the nature of culture to symbolically elaborate and socially stress
one model at the exclusion of others; to present one possibility as the right, sacred, and sanctioned
order while backgrounding, suppressing, or rejecting other options as wrong, sinful, or inhuman.
The sanctioned vision is presented as the only possible, even thinkable way of life. Yet, culture in
67
Ao incorporar, nos modelos antropológicos descendência/consangüinidade —, as contradições da
sociedade tukano, expressas em seus rituais vistos em complementaridade jurupari/dabucuri —, S. Hugh-
Jones aproxima-se da proposta de Roy Wagner (1984), no sentido que o antropólogo may use his creativity to
communicate something of the creativity of the ritual”, sendo este o único modo de conectar a criatividade
antropológica com o ritual visto como algo eminentemente transformativo, the production of a social status or
a cosmological state” (Wagner 1984: 154).
82
the sense of a hegemonic , condoned view of society, always fails to completely repress alternative
models for the very reason that social existence is inherently contradictory, ambiguous, and
perspectival. Social life continuously generates alternative visions and counter-models that are
responsive to these indeterminates, situated perspectives, and contrary tensions in human existence.
(Århem 2001: 152)
A abordagem de Århem deixa entrever uma relação assimétrica entre os modelos
alternativos que se articulam em uma sociedade, algo que não é enfatizado nos trabalhos de
Stephen Hugh-Jones, considerando sua ênfase na relação complementar entre os modelos.
Como se, para Århem, houvesse apenas um modelo alternativo, dada a padronização do outro
modelo, enquanto para S. Hugh-Jones os modelos fossem alternativos um ao outro,
complementares
68
.
* * *
Por fim, para a leitura do material etnográfico dos Hupda, é importante destacar as
contribuições desses pesquisadores de povos tukano. De Kaj Århem pode-se apreender a idéia
de oscilação estrutural, no tempo e no espaço, bem como esta noção de um desequilíbrio entre
os modelos, enquanto Stephen Hugh-Jones sugere mais firmemente a articulação dos modelos
alternativos com temas míticos e rituais, diluindo a distinção entre ideal e prática. Penso que
essas diferentes apreensões dos trabalhos sejam mesmo questões de ênfase, pois nem Kaj
Århem negligencia por completo a articulação da estrutura social com temas cosmológico
nem S. Hugh-Jones exclui a possibilidade de oscilação estrutural. Assim, considerando o que
divide os autores, pretende-se uma soma que estabelece as condições conceituais para a
leitura da proposta de duplicidade modelar de Jorge Pozzobon (2000), a ser realizada na
Conclusão.
68
Interessante notar que a idéia de um desequilíbrio entre os modelos do jurupari e do dabucuri será inserida na
leitura que Eduardo Viveiros de Castro (2001, 2002e) propõe do trabalho de S. Hugh-Jones, mesmo que em
outros termos que não os de Århem (1989). Nesta leitura, Viveiros de Castro articula o jurupari (“He House”) e o
dabucuri (Food-giving house”) ao diagrama do processo do parentesco articulado a partir do fundo da afinidade
potencial comum às cosmologias amazônicas.
83
CAPÍTULO 3
Humanidade, pessoa e cosmos
Faz-se a seguir uma descrição de alguns temas da cosmologia e da constituição da
pessoa hup no sentido de, conforme exposto na Introdução, complementar os modelos de
sociedade articulados na organização social hup. O tema principal a ser desenvolvido trata da
importância da alma (h
wäg) no esforço vital dos Hupda em oposição à sombra (b’atib’) e a
conexão deste processo com a estrutura do cosmos. Importante também ressaltar a inversão
operada entre a vida atual hup e o mundo pós-morte, no qual os Hupda adotam uma vida aos
moldes das malocas tukano. O primeiro tema possibilita a visualização da importância
metafísica do sistema clânico hup ao articulá-lo ao cosmos e à constituição da pessoa, o
segundo tema inspira pensarmos como, de alguma forma, os Hupda dobram os Tukano para o
seu interior.
Neste Capítulo não faço mais do que remontar a descrição da cosmologia hup a partir
da tese de Howard Reid (1979), que traz com maior riqueza de detalhes a estrutura do cosmos
hup. Alguns complementos são buscados nos trabalhos de Renato Athias (1998, 2006) e
Pedro Luz (1996). Como ressalva à sua descrição, Reid coloca que não há versão cosmológica
oficial entre os Hupda, tratando-se de um corpus mítico sujeito a um certo grau de
controvérsia, envolvendo variações individuais e regionais, a partir das quais elabora uma
84
versão standard
69
(Reid 1979: 218). No primeiro tópico, traça-se, a partir dos sentidos do
termo hupd’äh, as modulações possíveis do conceito de humanidade no estudo dos Hupda,
remontando aos mitos que tratam de sua criação e da partição da humanidade em diferentes
povos, bem como à questão da instabilidade da condição humana. O segundo tópico descreve
a constituição da pessoa hup e, no terceiro, aponta-se a relação da pessoa com a estrutura do
cosmos.
1. A humanidade hup
O termo hupd’äh, segundo a grafia proposta por Henri Ramirez (2006) que adoto
como convenção neste trabalho, é um composto de hup, que significa “pessoa” ou “ser
humano”, acrescentado de d’äh, sufixo marcador do plural ou coletivizador (Epps 2005: 2,7;
Ramirez 2006: 48)
70
. Reid (1979) destaca que na taxonomia dos Hupda este sufixo
pluralizador é usado para distinguir todos os fenômenos capazes de movimento por sua
própria volição dos que não têm esta capacidade (Reid 1979: 256). Assim, para os Hupda,
é plural aquilo que tem a capacidade de movimentar-se. Epps (2005) argumenta que esta
“sensibilidade para uma hierarquia de animação” é um traço comum da gramática hup em
geral, e especialmente visível no caso do sufixo “d’äh
71
(Epps 2005: ii).
69
Renato Athias coloca ressalva semelhante sobre a versão por ele apresentada do cosmos hup, inserindo a
variável clânica, pois, segundo o autor, os dados por ele apresentados seriam preponderantemente oriundos de
um dos clãs, a saber, o Sokw’ät-Noh-K’öd-Th (Athias 1998: 252). Isso é, vale ressaltar, inteiramente plausível,
posto que uma das matérias que definem minimamente um chup é justamente um corpo de conhecimentos
mitológicos e rituais próprios.
70
Ainda, segundo o dicionário da língua hup de Ramirez (2006), o termo hup teria mais três funções: 1) marca
do reflexivo, como na frase
h hup hom bí’íh (“eu me feri”); 2) marca do passivo, por exemplo, na frase s’ày
m’éhán hup wédéh (“a rã foi comida pela cobra”); e 3) marca da voz impessoal (Ramirez, 2006: 75).
71
Epps acrescenta que este aspecto da conexão do marcador do plural com a capacidade de movimento não é
algo incomum nas línguas humanas (Epps 2005: 164-5), porém os Hupda se destacam pelo tratamento dos seres
humanos em sua gramática, o qual opõe de forma relativamente intensa os humanos aos outros seres: Human
entities get special treatment in Hup grammar... Unlike most nouns referring to animals and inanimate objects,
generic human nouns are obligatorily bound when singular… and receive obligatory object and number
85
Howard Reid discrimina três sentidos para o termo hupd’äh baseado em uma lógica
que transita entre o geral e o estrito. Segundo o autor, no sentido mais abrangente possível,
hupd’äh significaria “humano”, opondo-se a h
’d’äh (animais de caça) e a b’atìb’d’äh
(espíritos) (Reid 1979: 99). Em sentido mais estrito, hupd’äh significa “pessoas”, abrangendo,
segundo Reid, as populações designadas como Maku, em oposição aos Wòhd’äh (os índios
Tukano) e aos Tëg-h
hĩhd’äh (não-índios, brancos)
72
. O terceiro sentido de hupd’äh
corresponde ao seu uso mais aproximado do que seria um etnônimo grafado neste trabalho
como “Hupda” designando: person who is not a river Indian or non-Indian, who lives
within the interfluvial area enclosed by the Rivers Papuri, Tiquiê and Vaupés, and speaks the
Hupdu language” (Reid 1979: 101).
Tomo a liberdade de enfatizar uma ressalva a partir das colocações de Reid quanto à
abrangência do termo hupd’äh. Conforme as descrições a seguir, o uso mais estrito do termo
hupd’äh (segundo sentido) acima mencionado o pode ser entendido como um rótulo que
encapsule uma totalidade, ou seja, não é necessária e imediatamente estendível a todas as
populações que os etnólogos designam como Maku, embora potencialmente o seja. Penso que
esse uso do termo denota mais uma relação entre modos de ser diferenciados opondo o
modo hup ao tukano e ao não-índio — que algo que pudesse ser entendido como uma
substância étnica, ou melhor, um conceito que englobasse a priori a totalidade das populações
marking in environments where these categories apply. The special place human nouns hold in Hup grammar
can be explained as manifesting a conceptualization of humans as maximally discrete entities, the most
significant participants in any event. Such a prioritization of human entities is to some degree cross-
linguistically common, reflected in the fact that many languages’ grammatical organization corresponds to an
animacy hierarchy (cf. Silverstein 1976); nevertheless, the split between humans and other entities seems to be
relatively strong in Hup.” (Epps 2005: 137).
72
No material lingüístico disponível não se encontra um termo para “inimigo”, designando a relação de
alteridade em geral, como é comum em línguas sul-americanas Excepcionalmente no dicionário organizado pelo
padre Antonio Giaccone (1955) consta a palavra Ëntáue, significando “inimigo”. Entretanto, nos materiais mais
recentes (e mais confiáveis), baseados inclusive em críticas ao trabalho de Giaccone, nada consta a respeito deste
termo.
86
Maku, o que nos remete às questões tratadas no Capítulo 1. Inclusive porque, como o próprio
Reid relata, segundo os Hupda, existem potencialmente hupd’äh fora do território dos Hupda
e que nada têm a ver diretamente com a família lingüística Maku.
A ilustração mais clara desse aspecto do termo hupd’äh consta em um relato
justamente de Reid. Ao tomarem contato com fotos dos Yanomami e ao ouvirem relatos de
suas práticas, os Hupda foram taxativos ao chamar-lhes de hupd’äh; tendo sido de primordial
importância os tipos de ponta de flecha dos Yanomami, sua baixa estatura, residência na
floresta e habilidade nas práticas da caça, justamente os traços que distinguem os Hupda dos
índios ribeirinhos (Reid 1979: 99). Talvez, nesse sentido, hupd’äh seja mais um caráter
Hupdu-ness”, nos termos de Reid (1979: 101), “hupduidade”, na tradução de Pozzobon
(1983: 145), hupd’ähidade”, na grafia adotada neste trabalho que uma essência ou uma
identidade que englobe a priori todos os coletivos Maku; termo, nesta chave, articulado mais
no plano da intensão que da extensão, do predicado que do substantivo
73
.
Com base no trabalho de Reid, para efeitos esquemáticos, pode-se abstrair, portanto,
três sentidos de hupd’äh: 1) hupd’äh no sentido de “humano”; 2) hupd’äh no sentido de um
modo de vida oposto ao dos índios ribeirinhos e ao dos não-índios; e 3) hupd’äh, ou melhor
“Hupda”, conforme a grafia convencionada para este sentido do termo, enquanto um conjunto
de pessoas que habitam o espaço entre os rios Papuri e Tiquiê ou que a ele estão ligadas por
73
Inadvertidamente, arrisco um paralelo com algo escrito por Maurice Bloch a respeito dos Zafimaniry, povo de
Madagascar, considerando que fornece uma imagem forte do aspecto que desejo ressaltar. Maurice Bloch coloca
que os Zafimaniry, povo que habita o leste de Madagascar, consideram que o clima e o meio ambiente afetam
diretamente as pessoas (Bloch 1995:75). Segundo o autor, os Zafimaniry conectam sua noção de “etnicidade”
mais ao tipo de vida que uma pessoa leva do que a quem são seus parentes. Neste sentido, as transformações em
seu modo de vida são colocadas como “processos étnicos” (1995:64), nos termos de Bloch. For them, people
who live an patrana that is, in the treeless land where irrigated rice cultivation is possible are Betsileo;
and, because their own land is becoming an patrana, they say they too are becoming Betsileo. Similarly they will
often say that the people who live to the west of them, in lands where the forest has practically disappeared,
were once Zafimaniry, but that they have, by now, become fully Betsileo as a result of the environmental change
(Bloch 1995: 64). O paralelo com os Zafimaniry deve ser entendido como uma alegoria desse sentido de
hupd’äh em sua conexão com um modo de ser; digo uma alegoria, pois, como será visto a seguir, acredito que
entre os Hupda existem mecanismos — principalmente de parentesco, em sua realização como endogamia
lingüística em relação ao sistema do alto rio Negro que dão aos coletivos uma configuração um tanto mais
estável.
87
alguma relação de origem, e coincidem em se autodenominar Hupda, não obstante diferenças
dialetais, estando ligadas por relações de parentesco. A despeito das variações de significado
em que rede de oposições o termo é enunciado —, o uso de hupd’äh tem um aspecto
invariável: hupd’äh é o marcador de uma posição, mais especificamente a posição de
humanidade, seja em relação aos animais e aos espíritos (não-humanos paradigmáticos) seja
em relação aos índios do rio e aos não-índios. A bem dizer, essas três modalidades de uso do
termo hupd’äh descritas por Reid parecem-me modulações do conceito de humanidade que
estabelecem correspondências míticas nas fases de criação da humanidade e da sociedade dos
Hupda.
Os Hupda chamam os mitos de Wäh
d íd ou Miníg íd, o primeiro termo significa
literalmente “a fala dos velhos”, o segundo fala reta”
74
(Reid 1979: 241). A estrutura interna
dos mitos é composta de início, meio e fim, nomeados conforme as partes da árvore e da
floresta. Assim, um mito é formado por chão” (súm), “médio dossel” (hak! t
g, composto
das grafias de Reid 1979 e Ramirez 2006) e alto dossel” (k’et d’öh), e a história completa é
um tít, “cipó”, conectando as três partes. Este sentido vertical dos mitos corresponde à
estrutura do cosmos, como será visto a seguir, e ao trajeto da alma hup em seu processo de
crescimento, sendo que o ato de contar e de ouvir um mito é parte importante neste processo
de desenvolvimento de um humano (Reid 1979: 243).
Conforme Reid, esta estrutura é particularmente visível no mito que narra as histórias
de K’èg-Th, o demiurgo criador dos humanos. O mito começa com a descida ao mundo
subterrâneo onde habita seu irmão menor, figura que ao longo da história funciona como uma
74
Existem basicamente três tipos de mito, os quais correspondem a diferentes aspectos da ordem atual: as
histórias de K’èg-Th, que narram à constituição do mundo e dos seres humanos; as histórias dos heróis
culturais, ligadas á ordem cultural e moral; e os mitos sobre os primeiros humanos, que narram os problemas e
soluções da vida atual (Reid 1979: 242). Como será descrito a seguir, esta divisão tripartite dos mitos
corresponde aos estratos do nível superior do cosmos.
88
espécie de deceptor, atrapalhando K’èg-Th em suas tentativas de instituir a ordem, operando,
portanto, o desequilíbrio. A parte média do mito, que transcorre no nível intermediário do
cosmos, começa com a derrubada da “árvore d’água”, uma árvore enorme que compreendia a
floresta entre os rios Papuri, Tiquiê e Uaupés, da qual vertia água e todos os tipos de peixe
que os alimentavam. Uma vez tombada a árvore d’água, ocorreu um grande dilúvio,
inundando todo o nível intermediário do cosmos. O irmão mais velho conseguiu se salvar, o
mais novo desapareceu nas águas. Depois de as águas baixarem, K’èg-Th reconstruiu seu
irmão a partir de seus dedos que haviam sobrado, fato que marca o fim da parte média do
mito. Deste tombamento da árvore d’água formou-se a estrutura do mundo atual: do tronco da
árvore surgiu o “rio de leite”, o Amazonas, dos grandes galhos formaram-se seus afluentes e,
dos galhos menores, os igarapés. O fim do mito começa com K’èg-Th de volta às bases de
terra firme deste mundo agora pleno de rios e igarapés onde, daí em diante, irá formar a
humanidade misturando barro e o poder de sua alma (Reid 1979: 243-4, 359-65).
K’èg-Th pegou uma cabaça e nela misturou barro, suco de cucura e soprou
encantamentos para que as pessoas crescessem. Desta mistura surgiu um bebê,
desenvolvendo-se lentamente, aprendendo a sentar, depois correr. A humanidade havia sido
criada e estavam todos juntos, Maku, índios do rio e brancos. Criada a humanidade genérica
(primeiro sentido de hupd’äh apresentado por Reid), o restante do mito trata justamente de
sua separação (segundo sentido de hupd’äh.
K’èg-Th had created the first people, men and women. We were all together . Maku, Whites and
River Indians, all together. The men fucked their sisters, for there no other people. Then K’èg-Th
brought us to the bubbling, boiling hole in the ground. It was a huge, steaming hole. You whites
jumped in, and the river Indians followed, but we were afraid, we Maku. It wasn’t boiling, it was
cool inside, but we were afraid of the bubbling cauldron. As the people emerged they were given
presents you whites got guns, achetes, axes, many things. The river Indians got canoes, dance
ornaments, manioc processing equipment, many things. We were given only the carrying basket,
blowpipe, and the bows and arrows. (Reid 1979: 364-5)
89
Apesar de não estar expresso nesta versão apresentada da narrativa mítica, Reid
comenta que os brancos teriam sido os últimos a saírem do Hib’áh Höd (“buraco de
nascimento”), sendo precedidos pelos índios ribeirinhos e esses pelos Hupda, os primeiros. A
seguir, considerando que a ordem de emergência no Hib’áh Höd define a relação de
senioridade entre as pessoas, Reid ressalta a ambigüidade da seqüência lógica hup: os Hupda
— irmão mais velho, menos poderoso — seguidos dos índios ribeirinhos — irmão mais novo,
mais poderoso — e esses seguidos pelos brancos — o mais novo dos irmãos, o mais poderoso
(Reid 1979: 289). Assim, este mito apresenta a inversão hierárquica que caracteriza a
passagem para a atual condição humana e suas diferenciações internas. Além disso, relaciona-
se à idéia da ancestralidade da ocupação dos Hupda na região do Uaupés, somando-se a outras
histórias contadas sobre a jornada de seus ancestrais rio Amazonas acima, no mesmo sentido
que a cobra-canoa dos Tukano, mas, diferentemente desta, realizada a através da floresta
(Reid 1979: 195). A versão kakwa da criação da humanidade, descrita por Silverwood-Cope,
contribui com mais elementos:
Quando Idn Kamni criou gente, os Makú eram os chefes, os irmãos mais velhos. Abaixo deles
vinham os Índios do Rio, os irmãos mais moços. Idn Kamni veio e ofereceu um ornamento de
dança ritual de conchas de caramujos ao irmão mais velho. O irmão mais velho estava segurando
sua zarabatana e seu estojo de setas. O irmão mais velho não quis deixá-los e não pegou o
ornamento ritual. Idn Kamni ofereceu o ornamento ao irmão mais moço que o aceitou. Idn Kamni
então revirou a língua do irmão mais velho e o fez falar outra língua, e lhe disse que ele passaria a
ser Makú e viveria na mata e que o irmão mais moço, o índio do Rio, possuiria os Makú como
servos. (Silverwood-Cope 1990: 73)
Este é o mito kakwa, apresentado por Peter Silverwood-Cope, que narra a origem das
relações entre os Maku e os índios ribeirinhos. Como o próprio autor aponta, os objetos
apresentados no mito têm forte relevância simbólica: a zarabatana sendo o “artefato de caça
mais típico”, justamente por aplicar-se à caça arbórea, a mais profusa na região; os
ornamentos cerimoniais são objetos centrais na cultura ribeirinha, usados em suas danças e
rituais em geral (Silverwood-Cope 1990: 73).
90
Nestes trechos míticos hup e kakwa, vistos em complementaridade, alguns aspectos
simbólicos tomam relevância. Primeiramente, destaca-se que aos objetos são imputadas
propriedades subjetivas através das quais as relações de alteridade no Uaupés são estruturadas
(Andrello 2006) — a oposição colocada no mito kakwa entre a zarabatana e os adornos rituais
epitomiza esta percepção. Em segundo lugar, de se destacar a operação mítica de inversão
hierárquica, através da qual a seqüência original de senioridade entre os Hupda, os Tukano e
os brancos é invertida
75
. Entretanto, vê-se que as questões da posse de determinados objetos e
da inversão hierárquica são, a bem dizer, conduzidas por um tema mais geral contido nestes
mitos, o da má escolha
76
.
Geraldo Andrello (2006) faz uma análise arguta dos objetos como “operadores de
perspectiva” e suas relações com a hierarquia uaupesina, concluindo que a diferença entre as
riquezas dos povos do Uaupés opera uma diferenciação perspectivista intra-humana.
Talvez esta seja, com efeito, a melhor maneira de definir o que é riqueza no Uaupés. Nesse sentido,
como aventamos acima, os objetos do mito Tukano, seriam operadores de perspectivas, tanto
quanto os inimigos, ou certas partes de seus corpos, o são entre os grupos canibais (ver Kelly,
2002). Essa parece ser a mensagem de fundo embutida no mito Tukano: a obtenção das flautas, dos
enfeites e dos demais operadores constitui uma forma de subjetivação. (Andrello 2006: 420)
... a relação entre humanidade e animalidade é claramente uma questão de perspectiva. Mas ao
constituir riqueza, os operadores de perspectivas passam também a definir os termos das relações
internas à própria humanidade. Aqui se trata de mensuração, antes que preensão, de perspectivas.
75
O tema da inversão mítica das relações hierárquicas não é um aspecto exclusivo às sociedades do Uaupés. Para
a exemplificação de outros povos indígenas sul-americanos que abordam o tema das inversões hierárquicas em
suas mitologias, trago alguns dados sobre os Kadiwéu e os Bororo. Conforme a descrição de Darcy Ribeiro
(1980) da mitologia kadiwéu, os Mbayá, que foram os últimos a serem criados, passado o tempo da distribuição
das riquezas, ficaram sem nada. Desprovidos de quaisquer posses, o criador “os recompensa com o direito de
fazer a guerra, saquear e dominar outros povos” (Ribeiro 1980: 57). entre os Bororo, Lévi-Strauss (1996a)
aponta, em relação ao seu sistema de metades, que atualmente a ordem de superioridade é inversa à ordem mítica
(1996 170-1), ao que J. Christopher Crocker (1976) complementa destrinchando a complexidade das inversões
hierárquicas existentes entre as metades: os direitos superiores da metade superior foram concedidos pela
inferior, que é, na língua nativa, chamada de “superior”, enquanto a superior é chamada de “inferior” (Crocker
1976: 180).
76
Neste ponto, interessante perceber um aspecto, que pode ser aprofundado em trabalhos posteriores, relativo às
notáveis homologias entre os mitos através dos quais os povos Maku narram a sua relação com os índios do rio e
os mitos pelos quais esses narram a origem de suas relações com os brancos (Viveiros de Castro 1983: 261;
2002b: 203-4), em particular nas versões dos mitos Tukano de origem dos brancos analisadas por S. Hugh-Jones
(1988) e Geraldo Andrello (2006), cujas conclusões, desde uma perspectiva comparativa, podem fornecer pistas
para a relação entre Maku e Tukano.
91
Isso é o que responde, a meu ver, pela pregnância da ideologia de hierarquia entre os grupos do
Uaupés. A hierarquia seria, assim, um modo particular pelo qual as pessoas podem oferecer
perspectivas umas sobre as outras. Isto é, o perspectivismo interiorizado no domínio propriamente
humano geraria aqui formações sociais verticalizadas, não igualitárias. (Andrello 2006: 421)
O segundo sentido de hupd’äh que Reid nos apresenta, marcando uma oposição em
relação aos índios do rio e aos brancos, toma, portanto, outro relevo em relação a esta partição
da humanidade através da distribuição das riquezas, da inversão hierárquica e da escolha
que as ocasiona. O tema da formação da humanidade e sua partição encaminha ao terceiro
sentido de hupd’äh, o qual Reid aproxima do uso como etnônimo, referindo-se à sociedade
dos Hupda (os mitos que narram a origem dos clãs serão expostos no Capítulo 5), mas que em
sua aplicação cotidiana, como veremos no Capítulo 4, refere-se às redes de parentesco, na
medida em que um Hupda de um dado grupo regional refere-se aos de outra região como
“outra gente”. Logo, quando um determinado Hupda enuncia hupd’ähnão necessariamente
refere-se à totalidade da população que habita entre os rios Papuri e Tiquiê. Neste ponto, o
conceito de humanidade passa do plano mítico de sua criação por K’èg-Th e sua partição
pela escolha e entra no domínio da construção cotidiana dos corpos, das pessoas, dos
humanos, cuja condição, após ser criada por K’èg-Th, não é perfeitamente estável, cabendo
aos vivos uma série de procedimentos no sentido de assegurar a condição humana. É
basicamente este processo de construção de um humano em articulação com o cosmos hup
que é descrito nos outros dois tópicos deste capítulo. Antes, porém, cabem algumas notas
introdutórias.
Deste terceiro sentido possível do termo hupd’äh, depreende-se uma equação em que a
humanidade é conjugada com o parentesco, aproximando-se justamente do que Marcela
Coelho de Souza descreveu como a “hipótese concernente ao significado do conceito de
parentesco ameríndio” (2004: 26). Dentre os argumentos que embasam esta hipótese, aponta-
se que “o campo do parentesco e o campo da humanidade são idealmente coextensivos”, o
92
que implica: “o verdadeiro humano é um parente”. O segundo argumento fundante desta
hipótese coloca que a fabricação do parentesco deve ser articulada “por meio de um esforço
deliberado de assemelhamento corporal(grifos da autora), voltado à “fabricação de pessoas
humanas” (2004: 26). Por fim, o terceiro argumento estabelece a condição deste processo de
construção do parentesco, o “fundo de socialidade virtual” a partir do qual o parentesco é
construído: a afinidade potencial.
Através do modelo da afinidade potencial e do processo de construção do parentesco,
proposto por Eduardo Viveiros de Castro (2001, 2002e), são tecidas as conexões deste
capítulo
77
. Sob inspiração de Roy Wagner e seu uso da dicotomia dado/construído, Viveiros
de Castro propõe um experimento com o par afinidade/consangüinidade, dicotomia fundante
da teoria antropológica do parentesco, no sentido de articular uma inflexão do pensamento
ameríndio nestes conceitos (2001: 19) — algo às voltas com o que Peter Rivière cunhou como
a “amerindianização dos conceitos” (Rivière 1993: 513; Viveiros de Castro 2001: 19). Um
dispositivo fundamental para a amerindianização dos conceitos de afinidade e
consangüinidade é precisamente a instituição de uma relação hierárquica entre eles, opondo o
dravidianato amazônico ao indiano, que estaria fundado justamente em uma relação de igual
status entre as duas categorias. No dravidianato amazônico haveria, diferencialmente, uma
relação de englobamento do princípio da consangüinidade pelo princípio da afinidade. A
afinidade potencial torna-se o princípio dominante, o dado, o fundo de socialidade cósmica a
partir do qual se constrói a consangüinidade.
A inspiração para este ordenamento hierárquico (mas, vale enfatizar, não totalizante)
entre afinidade e consangüinidade surge da inflexão do concentrismo que caracteriza as
classificações socioespaciais amazônicas (desenvolvido no Capítulo 4 em relação à
77
Aqui não é o espaço para expor toda a complexidade dessas discussões nem extrair todas as suas
conseqüências para o entendimento da socialidade hup, proponho apenas relacionar alguns dados presentes nas
etnografias com pontos desta discussão que julgo pertinentes para os temas da pessoa e do parentesco.
93
distribuição espacial dos Hupda) sobre o diametralismo da terminologia dravidiana
(desenvolvido no Capítulo 5), o que implica um desequilíbrio entre as categorias de
consangüinidade e afinidade
78
(2001: 20). Estas proposições teóricas relacionam-se à
descrição dos dados etnográficos disponíveis sobre os Hupda, distribuídos nos capítulos 3, 4 e
5, de modo a traçar, em linhas gerais, o processo de constituição da socialidade e da pessoa
hup.
A construção da pessoa é coextensiva à construção da socialidade; ambas se baseiam no mesmo
dualismo em desequilíbrio perpétuo entre os pólos da identidade consangüínea e da alteridade afim.
As relações intra- e interpessoais são, além disso, ‘co-intensivas’, visto que a pessoa não pode ser
tomada como parte de uma totalidade social, mas como versão singular de um coletivo o qual,
por sua vez, é uma amplificação da pessoa. É neste sentido que a estrutura acima é ‘fractal’: a
distinção entre parte e todo não é pertinente. (Viveiros de Castro 2002e: 439)
Por fim, gostaria de pontuar uma ressalva a respeito do caráter incipiente e um tanto
experimental das aproximações aqui propostas entre o material etnográfico sobre os Hupda e
a teoria da afinidade potencial e do processo do parentesco, as quais, para um melhor
rendimento, devem ser aprofundadas em trabalhos futuros.
2. Pessoa
Como foi colocado na Introdução, desde a década de 1970, a partir dos debates sobre
as aparentes inconsistências da organização social das sociedades ameríndias quando a elas
aplicadas mecanicamente o arcabouço conceitual africanista, Seeger, DaMatta e Viveiros de
78
Revela-se, assim, a contribuição direta dos temas desenvolvidos por Claude Lévi-Strauss em “As
Organizações Dualistas Existem?” (1996a), bem como suas transformações posteriores em “História de Lince”
(1993) que cunhou o conceito de “dualismo em perpétuo desequilíbrio”. Em “As Organizações Dualistas
Existem?” Claude Lévi-Strauss analisa o caráter duplo do próprio dualismo ameríndio: diametral (igualitário) e
concêntrico (hierárquico) (1996a: 163). Neste sentido, vale também citar um trecho de “Reciprocity and
Hierarchy” (1944), um breve texto no qual Lévi-Strauss trata do sistema de metades bororo, e no qual já se
vislumbrava alguns desenvolvimentos posteriores em sua obra: It is well to remember that the moiety system
can express, not only mechanisms of reciprocity but also relations of subordination. But, even, in these relations
of subordination, the principle of reciprocity is at work; for the subordination itself is reciprocal: the priority
which is gained by one moiety on one level is lost to the opposite moiety on the other(1944: 267-268). Nestas
colocações embrionárias de 1944 acerca do caráter recíproco envolvido nas “relações de subordinação” se
notam traços primordiais do perpétuo desequilíbrio dos dualismos sul-americanos, qual sejam: por um lado, a
fragilidade da simetria no pensamento ameríndio; por outro, a não-totalização hierárquica, o que implica a não-
fixação de posições assimétricas.
94
Castro (1987 [1979]) preconizavam a centralidade do idioma corporal na construção da
pessoa, bem como sua importância para a compreensão da organização social e da cosmologia
das sociedades amazônicas (1987: 12). Esse caminho seria a alternativa às insuficiências
decorrentes da incorporação de conceitos em grande parte alheios às sociedades indígenas sul-
americanas, como, apenas para citar alguns exemplos, “linhagem” e grupos corporados”.
Portanto, na busca de uma linguagem conceitual pertinente para a descrição dessas
sociedades, a centralidade do corpo e da construção da pessoa surge como uma alternativa
analítica à recalcitrância ameríndia aos conceitos que até então constituíam a pedra de toque
dos estudos etnológicos. Pois bem, considerando serem os Hupda um dos povos amazônicos
em que se encontram instituições de unifiliação, ao estilo alto-rionegrino, tal proposta auxilia,
acredito, no entendimento das estranhas feições que podem tomar essas instituições
relacionadas ao princípio da descendência nestas paisagens ameríndias.
A cosmologia hup gira em torno dos três componentes que constituem a pessoa: corpo
(sáp), alma (h
wäg) e sombra (b’atib’)
79
(Reid 1979: 219; Athias 1998: 252-3, 2006: 18-19).
Segundo Howard Reid, tais “noções” teriam “propriedades afetivas e dinâmicas”, ao mesmo
tempo sendo “simples unidades de composição humana” (Reid 1979: 224). Corpo, alma e
sombra seriam, portanto, propriedades da pessoa hup, não no sentido de posses, mas de
79
Algumas notas devem ser feitas a respeito da tradução do termo b’atib’. Reid traduz em geral como
“fantasma” (ghost), afirmando que é equacionado juntamente com a “sombra” (ním) (1979: 222), mas não
apresenta elementos para visualizarmos qual relação seria essa. Renato Athias também traduz como “fantasma”
ou “sombra” (1998). Existe ainda mais um elemento que complexifica a tradução deste termo, posto que b’atib’
é aplicado tanto a “sombra” ou “fantasma” (sempre em relação a uma pessoa, enquanto um de seus
componentes) como a “espíritos” em geral (os seres sobrenaturais da floresta). Trata-se de forças que tendem a
reverberar. Enquanto Reid traduz b’atib’ também como “escuridão, cegueira” (1979: 222), no dicionário da
língua hup de Henri Ramirez, consta que ním pode significar tanto “sombra de uma árvore” como “sombra da
pessoa, espírito do morto” (nesse caso, hup ním) (Ramirez 2006: 116). Existem, portanto, dois termos, b’atib e
ním, em relação sinérgica, coincidindo seus sentidos em parte, e divergindo em outros aspectos: se b’atib’ é
aplicado aos espíritos da floresta em geral e a um dos componentes da pessoa hup, m é aplicado às sombras
como fenômeno físico e também como componente da pessoa hup. Dito isso, para efeitos esquemáticos, opto,
neste trabalho, pela tradução “sombraquando b’ati
b’ é relacionado diretamente como um dos componentes da
pessoa, e “espíritoquando a mesma palavra se refere à miríade de seres imateriais da floresta que ocupam a
zona inferior do cosmos; ainda que, cabe enfatizar, os dois sentidos estejam em relação sinérgica, podendo ser
considerados, em alguma medida, a mesma coisa.
95
qualidades que a compõem, fazendo-a uma espécie de conector entre os diversos pontos do
cosmos, cujo movimento replica-se no ciclo de vida dos humanos. As proporções dos
componentes da pessoa hup variam no decorrer da vida conforme a ocorrência de doenças e
infortúnios e através da manipulação por meio de rituais (Reid 1979: 223).
Ser dotado de um sáp (corpo) é um atributo que faz o contraste entre os humanos e os
espíritos que habitam a floresta, pedras e rios (Reid 1979: 221; Athias 1998: 252, 2006: 18).
Todos os humanos têm uma h
wäg (alma), ao contrário dos animais, a qual se manifesta
fisicamente no coração, que é designado pelo mesmo termo. A h
wäg foi criada por um ser
mítico ligado ao herói cultural K’èg-Th, criador do mundo atual e que habita a zona superior
do cosmos. O ritual de nomeação, o bi’íd hàt, é o momento fundamental do processo de
assentamento da alma no corpo da criança, através do qual a pessoa recebe o nome clânico
80
,
dando partida a um processo que se distribui ao longo da vida e cujo propósito principal seria
“proteger, nutrir e fortalecer” a alma (Reid 1979: 221) em oposição ao b’atib’ (sombra).
Segundo Reid, a alma, para os Hupda, é tanto um aspecto vital, posto que perdê-la implica a
morte, como uma espécie de força benéfica que guia a pessoa por um caminho correto,
garantindo o crescimento físico e espiritual apropriado (Reid 1979: 221). Depois da morte, a
alma ascende à zona superior do cosmos para se juntar às almas dos outros mortos, ancestrais
e heróis míticos (Reid 1979: 222).
B’atib’, a sombra, é o componente da pessoa que apresenta características
eminentemente opostas às da alma, ligando-se às doenças e aos infortúnios, bem como à
feitiçaria em geral. Está presente e ativo desde o nascimento até a morte, sediado no antebraço
80
No Capítulo 5 são descritos mais aspectos deste ritual de nomeação. Este nome clânico recebido pelos Hupda,
assim como entre os Tukano, é parte de uma lista de nomes atribuídos conforme a ordem de nascimento e sua
importância para a formação da criança é muito semelhante ao que caracteriza Jean Jackson para os Tukano:
This sib-supplied name fosters growth, for it associates the newborn child with a nurturing group of agnatic
kinsmen. The infant becosmes more human upon receiving a name, for it is na explicit affirmation of membership
in the sib, entitling it to the Power and nurturanbce available from the ancestors” (Jackson 1983: 72).
96
esquerdo (alguns Hupda dizem que em ambos os antebraços), e presentificando-se em toda
sorte de excreções humanas, como suor, sangue, urina e fezes. Tal componente tem uma forte
conexão com os b’atib’d’äh, os espíritos da floresta em geral, alguns dos quais são mestres de
espécies de animais, habitando a zona inferior do cosmos; seres esses de hábitos noturnos e
particularmente daninhos aos seres humanos. A feitiçaria articula-se através deste meio, pelo
qual os feiticeiros podem manipular seus b’atib de modo a infligir doenças e infortúnios
variados em suas vítimas. A sombra, depois da morte, deixa o corpo e espalha-se nesta terra,
pelas roças e florestas, permanecendo algum tempo e depois descendo ao mundo subterrâneo
(Athias 1998: 253).
Nos mitos descritos nos anexos da tese de Reid, vê-se que os b’atib’d’äh estabelecem
relações de afinidade e de predação com os humanos. Tais aspectos estão particularmente
visíveis em um mito que consta nos anexos da tese de Patience Epps (2005), o qual relata a
história de um Hupda (humano) que casa com uma mulher espírito e vai visitar os seus
cunhados, participando de uma pescaria com esses. A posição de predador dos espíritos é
superlativizada, uma vez que, durante a pescaria, o que o Hupda (humano) via como grandes
jaguares, os espíritos viam como peixes. Nessa cadeia trófica perspectivista na qual se situa a
humanidade hup, os espíritos, em relação aos humanos, ocupam não apenas a posição de
predadores, como também de predadores dos predadores, dos jaguares.
Reid opõe a feitiçaria e o ritual como dois modos de atividade religiosa que revelam
propriedades diferenciadas da sombra e da alma, a primeira ativa, predadora, ameaçadora, a
segunda, passiva: Whereas the spell is a reaction to the willful intrusion of Baktup into the
patient, ceremonial exchanges are designed to induce Howugn into the participants through
97
their own actions during the ritual (Reid 1979: 279). A participação nos rituais é
fundamental neste processo de crescimento da alma
81
. Nestas ocasiões,
[t]he feathers, as well as the drugs, are said to lift the souls of the men up high, to the upper zone of
the cosmos, and they temporarily become the souls or the ancestors, the element missing from the
Jurupari trumpets…So while the performance consists of the transformation of the participants by
manipulating symbols from the below/ghost/hot etc., and from the above/soul/cool etc., in a more
general sense, each ritual represents a move up the vine of spiritual growth. (Reid 1979: 281-2).
O desequilíbrio na composição da pessoa é posto no idioma da doença, evento em que
ocorre uma interrupção do processo de crescimento da alma, uma vez que as influências da
sombra tornam-se mais fortes. Há uma idéia contida na etnografia de Bruce Albert (1985)
sobre os Yanomami que pode ser relacionada a este aspecto da cosmologia hup: um
continuum ontológico entre a morte e a vida, não caracterizando dois estados fechados em si
mesmos, au cours duquel se modifient des rapports de subordination au sein de la
‘géometrie variable’ des constituants de la personne” (Albert 1985: 175).
As noções de corpo e de pessoa em certo sentido se imbricam, uma vez que os
componentes da pessoa são em alguma medida coextensivos (e cointensivos) a partes do
corpo
82
. Disto destaco uma implicação: o que, por um lado, são partes do corpo (coração e
antebraço), por outro, não podem ser reduzidas à condição de partes de um todo, pois o
ultrapassam (enquanto alma e sombra) conectando-se ao cosmos
83
. Logo, a pessoa e o corpo
81
A descrição fornecida por Reid do ritual hup não apresenta a mesma distinção entre o dabucuri e o jurupari
que foi descrita no Capítulo 2 a partir do trabalho de S. Hugh-Jones. O ritual que Reid (1979) descreve como
dabucuri (p
) conta com a presença de afins e com as flautas de jurupari, igualmente proibidas para as mulheres
e crianças, mas não para os cunhados.
82
Essas relações guardam semelhança com o descrito por Eglée Lopez a respeito da corporalidade e da pessoa
Jodï: As noções de corporalidade e de pessoa Jodï estão intimamente relacionadas. Ambas atuam como
dobradiças, articulando idéias e práticas. São construtos que, com base em discursos e silêncios (mitológicos e
cotidianos), convertem-se a partir de práticas e costumes e da sinergia de diversas essências e substâncias”
(Lopez 2005: 379).
83
Algo especulativamente, aponto que essa concepção cosmológica do corpo e de suas partes pode ter relações
com alguns aspectos lingüísticos desenvolvidos por Epps (2005). Em especial o que a autora apontou como
particularmente puzzling: linguisticamente, as partes dos corpos dos animais são inalienáveis, enquanto as partes
dos corpos humanos são alienáveis, sujeitas a manipulações variadas (Epps 2005: 214-6). Sobre a alienabilidade
do componente da pessoa que Viveiros de Castro generaliza como “alma” na cosmologia ameríndia, que, como
será visto a seguir, no caso específico da cosmologia hup seria melhor conjugada à idéia de sombra (b’ati
b’) que
98
hup, em certa medida coextensivos, não são totalizáveis, não encerram seu conteúdo como um
continente fechado, remetendo à possibilidade de fluxos cósmicos que atravessam um corpo
constituído por uma complexidade de agências
84
.
A fabricação de um humano, de um parente no processo de crescimento da alma
cujo destino pós-morte, vale lembrar, é justamente um mundo de consangüíneos — em
oposição à sombra, à potência não-humana constituinte da pessoa, uma vez equacionada aos
espíritos antropófagos do mundo subterrâneo, pode ser relacionada à oposição
consangüinidade/afinidade tal qual descrita acima. Antes, porém, é mister melhor equacionar
a cosmologia hup com os termos e conceitos que embasam o modelo geral da afinidade
potencial e do processo de construção do parentesco. Segundo esse, o núcleo relacional da
pessoa é fundado na polaridade corpo/alma, o que de imediato contrasta com o ternarismo da
cosmologia hup: corpo, alma e sombra. Tal qual a dinâmica consangüinidade/afinidade, a
alma estaria dada e o corpo seria construído, consistindo exatamente nisso o processo de
construção do parentesco. A alma seria a condição universal contra a qual os humanos devem
produzir o parentesco: That means that the body must be produced out of the soul but also
against it, and this is what Amazonian kinship is ‘all about’: becoming a human body through
the differential bodily engagement of and/or with other bodies, human as well as non-human
(2001: 7, grifos do autor).
Entretanto, sobre essa dualidade basal do núcleo relacional da pessoa, Viveiros de
Castro faz uma nota:
Simplifico aqui, pois a etnografia amazônica conhece numerosos tipos de almas (e almas
múltiplas). Mas me parece que a distinção básica a fazer é entre um conceito de alma como
representação do corpo e um outro conceito de alma que o designa uma mera imagem do corpo,
mas o outro do corpo. Ambas as idéias existem e co-existem nas cosmologias indígenas, mas é à
à de alma (h
wäg): “A alma é a dimensão eminentemente alienável, porque eminentemente alheia da pessoa
amazônica” (Viveiros de Castro 2002e: 443).
84
Quanto ao caráter não-totalizável do corpo entre ameríndios, conferir Vilaça (2005: 458).
99
última que me refiro quando digo que a alma é dada, alheia e afim (Viveiros de Castro 2002e: 443,
grifos do autor).
Esta simplificação ilumina a complexidade dos dados acerca da pessoa hup, na medida
em que se pode estabelecer uma correspondência entre o que estou chamando de “sombra”
(dando seqüência às traduções usuais presentes na tradição etnográfica da família lingüística
Maku) e o que Viveiros de Castro chama de alma”, como o componente afim da pessoa
amazônica, o “outro do corpo”. Conseqüentemente, o que seria o “mundo das almas”
amazônico, tal qual descrito por Viveiros de Castro, soa mais o “mundo dos espíritos
(sombras)” (descrito a seguir) desde a perspectiva dos Hupda, uma vez que para esses o
mundo das pessoas-alma é habitado, justamente, pelos consangüíneos. Quanto ao estatuto
ontológico do que é traduzido pelos etnógrafos como “alma” (h
wäg), seria a alma-
representação referida por Viveiros de Castro. Na separação ocorrida na morte, ao invés do
corpo, o componente da pessoa enfatizado como princípio da identidade consangüínea é
precisamente a alma. Em contrapartida, a sinalização da afinidade, como potência inimiga, é
relegada à sombra enquanto meio de irrupção da feitiçaria. Assim, o caráter “dividual” da
pessoa ameríndia, composta de componentes consangüíneo e afim (eu/outro) (Kelly 2001: 97;
Viveiros de Castro 2002e) articula-se no caráter ternário da pessoa hup. A despeito das
diferenças etnográficas creio que o jogo de oposições é o mesmo: no caso dos Hupda, a alma
sendo conjugada com o corpo, e ambos conjurando a sombra.
mais um ponto a ser nuançado, relativo à importância das instituições de
descendência nesta trama da construção do parentesco, de modo a clarificar a terminologia
usada neste trabalho: consangüinidade, descendência, afinidade. A consangüinidade
construída tem por foco precisamente o corpo e seu processo de assemelhamento ao corpo dos
parentes, como colocado acima, enquanto a afinidade localiza-se na alma. Pois bem, no caso
dos Hupda, considerando a dinâmica entre sombra (b’ati
b’) e alma (h
wäg) acima descrita,
100
esta consangüinidade construída cotidiana e ritualmente entretêm relações não apenas com o
corpo, mas com esta alma-representação que é o aspecto clânico da pessoa, ligado, portanto,
ao princípio da descendência. Para esclarecimento, vale trazer a análise que Viveiros de
Castro (2002) propõe a partir dos trabalhos de S. Hugh Jones (1993, 1995), os quais foram
descritos no Capítulo 2, sobre as diferenças operantes no ritual Food-giving House (dabucuri),
bem como na prática cotidiana, que S. Hugh-Jones associa à “consangüinidade”, e o ritual He
House (jurupari), que o autor associa à “descendência”. Viveiros de Castro argumenta que a
afinidade estaria localizada nos dois pólos, assim como a consangüinidade, considerando que
a descendência para S. Hugh-Jones seria uma “consangüinidade pura”.
No sentido do jurupari (“linha ascendente”, conferir diagrama da “construção
amazônica do parentesco” em Viveiros de Castro 2002e: 433) e sua ênfase nos grupos de
descendência (consangüinidade pura) a afinidade está em potencialidade: “a afinidade
implicada na definição do grupo como entidade monolítica, separada de entidades análogas
por descendência diferencial, mas implicitamente ligada a estas por aliança matrimonial a
‘afinidade sem os afins’” (Viveiros de Castro 2002e: 450). Enquanto no sentido do dabucuri
(“linha que desce”) a afinidade “aparece como finalizada, isto é, efetiva, e portanto dissolvida
na cognação os ‘afins sem afinidade’”(Viveiros de Castro 2002e: 450, grifos do autor).
Viveiros de Castro destaca, por fim, a ambigüidade da vida cotidiana polarizada entre os
modelos do jurupari e do dabucuri, o primeiro diferenciante, voltado para a definição dos
grupos de descendência, o segundo indiferenciante, no sentido da dissolução das diferenças na
“cognação generalizada” (Viveiros de Castro 2002e: 450). Penso que é precisamente esta
ambigüidade da vida cotidiana que caracteriza a construção da pessoa hup, uma vez que, no
opondo-se à sombra, ao mesmo tempo em que se constrói um parente, um corpo semelhante
101
na cognação dos grupos locais hup, acrescenta-se sua alma, aspecto clânico, voltado para as
diferenças entre grupos de descendência
85
.
Isso posto, sigam-se as implicações analíticas. A dinâmica particularmente instável
dos corpos hup no seu continuum ontológico entre a vida e a morte, a alma e a sombra,
implica um processo que pode ser qualificado como de “fabricação contínua” de parentes
(Vilaça 2005: 460), uma vez que, dado o fundo infinito da afinidade potencial, em tais
cosmologias a consangüinidade precisa ser construída por uma série de operações cotidianas e
rituais no sentido do assemelhamento corporalao qual se refere Marcela Coelho de Souza
(2004). Ao nascer, a alma da criança hup, além de instável, é pequena tal qual seu recipiente
(Reid 1979: 223). Ao longo da vida a alma passa por um processo de “crescimento”, nas
palavras de Reid, que se estende para além dos limites do crescimento do corpo. Na
maturidade, a alma torna-se uma espécie de invólucro que engloba o corpo, protegendo-o.
Após a morte, a alma se separa do corpo, torna-se novamente pequena e início ao seu
deslocamento para os níveis superiores do cosmos em um processo de regeneração guiado por
K’èg-Th. Com a sombra ocorre uma progressão inversa à da alma, uma vez que a sombra dos
recém-nascidos é enorme, tendendo à diminuição, salvo no advento de doenças, no decorrer
da vida. No momento da morte, é pequena e nunca mais se regenera.
Assim, segundo Reid, os três componentes da pessoa podem ser relacionados aos três
momentos em que os Hupda dividem o ciclo da vida: infância, idade adulta e maturidade,
correspondendo, respectivamente, à sombra, ao corpo e à alma (Reid 1979: 223). Isso é
particularmente evidente quando se trata das crianças, às quais os mais velhos se referem
como “nossas sombras”, devido à sua maior propensão a serem atingidas por doenças,
característica essa creditada à predominância do b’atib’ em seus corpos. Se relacionada esta
85
Gostaria de enfatizar aqui uma ressalva feita no início do capítulo. Essas aproximações entre o material
etnográfico sobre os Hupda e a teoria da afinidade potencial e do processo do parentesco merecem refinamento
posterior, considerando que aqui foram colocadas apenas suas linhas mais gerais.
102
conexão das crianças com as “sombras” aos mitos sobre os b’atib’d’äh referidos acima,
principalmente ao modo como articulam o princípio da afinidade a esses seres, vê-se que nos
Hupda, em consonância com as socialidades ameríndias em geral: “...a criança precisa ser
desafinizada: ela é um estranho, um hóspede a ser transformado em consubstancial” (Viveiros
de Castro 2002e: 447).
A idade adulta é o momento, por excelência, de equilíbrio entre as potências da alma e
da sombra, bem como o momento da maior utilização do corpo, tanto sob o aspecto
econômico de obtenção de recursos como de reprodução das pessoas. Já os velhos seriam
voltados para o uso da potência da alma na proteção da comunidade sob basicamente três
aspectos: rituais pelos quais expurgam os excessos da força da sombra; papel preponderante
na educação das crianças em seus primeiros anos de vida; e o uso de sua experiência para
conduzir a comunidade nas questões “econômicas e sociais” (Reid 1979: 224).
Em suma, ao nascer, a criança é estrangeira: esse novo divíduo precisa ser feito
parente (Viveiros de Castro 2002e: 447). A criança hup, em franco desequilíbrio pendente à
afinidade, dado o grande volume de sua sombra e pequena dimensão de sua alma, opõe-se
diametralmente aos velhos, cuja alma engloba o corpo, garantindo-lhes poderes benéficos de
proteção xamânica. Os velhos (avós) dedicam grande parte de seu tempo ao cuidado com as
crianças, nutrindo-as, instituindo as condições de possibilidade para uma influência
particularmente consangüinizadora sobre esses pequenos humanos que contém grande
potência não-humana, volumosos b’atib’. Quanto à morte, conforme Viveiros de Castro:
a consangüinidade pura pode ser alcançada na morte: ela é conseqüência última do processo
vital do parentesco... A morte, assim, desfaz a tensão (a diferença de potencial) entre afinidade e
consangüinidade que move o processo do parentesco, completando o percurso da
consangüinização, isto é, de desafinização, visado por esse processo (2002e: 444-445).
103
Para os Hupda, a consangüinidade pura pode ser alcançada não exatamente na morte,
mas após a morte, no mundo das pessoas-alma, onde habitam apenas com seus ancestrais
clânicos, conforme a descrição do próximo tópico.
3. Cosmos
O cosmos dispõe-se verticalmente em uma série de planos justapostos e envoltos por
uma pele (Reid 1979: 226; Athias 1998: 252), dividindo-se basicamente em três mundos
habitados por seres distintos: o superior, morada dos heróis míticos e ancestrais mortos; o
intermediário, mundo atual onde habitam os vivos; e o subterrâneo, mundo dos espíritos.
Esses níveis são conectados por cipós, que funcionam como o meio de passagem de alguns
seres entre os mundos
86
. O movimento entre os mundos relaciona-se com as atividades
xamânicas, inclusive, o próprio cipó que conecta os níveis do cosmos tem relação direta com
o kapì’ (ayahuasca) e sua ingestão:
O cipó é associado ao conhecimento, à sabedoria, à essência vital, à força e à saúde. Pode-se dizer
que entre os Hupda o kapì’ é o veículo por excelência do saber tribal. Os Hupda acreditam que sob
o efeito do kapì’, este lhes fala, ensinando-os acerca do mundo e da criação. O kapì’ revela àquele
que o ingeriu ‘como move o mundo’, ou seja, o porquê da criação e seu funcionamento. (Luz 1996:
76)
As três zonas do universo são separadas por duas faixas sólidas, uma correspondente à
terra, h s’áh, “nossa terra” na língua hup, a outra a uma faixa de pedras que está logo acima
do céu, da lua e do sol, habitada por jaguares. A zona superior do cosmos é o mundo das
h
wägd’äh, pessoas-alma. Entre os habitantes do estrato superior estão K’èg-Th (o herói
cultural, criador da ordem atual do mundo), seu irmão mais novo e Py wäh
d (homem
trovão), figura mítica fortemente ligada ao xamanismo. Esses são os seres mais poderosos do
86
Howard Reid traduz cipó como tít, mas segundo Henri Ramirez, esse termo designaria “em forma de fio, de
corda” (2006: 173), sendo yúb o termo genérico para cipó. Mas, no caso, o sentido se aplica.
104
universo, não interferindo diretamente nos assuntos dos vivos, salvo em caso de auxílio
xamânico (Reid 1979: 227). Abaixo desses seres habitam uma série de heróis míticos, os
principais desse nível seriam as “crianças osso-de-sangue”, mas também figuras como Pëd
wäh
d (homem ou velho Cunuri), auxiliar mítico de K’èg-Th no processo de regeneração das
almas dos recém-mortos quando chegam ao nível abaixo dos heróis míticos
87
.
O nível mais baixo da zona superior do cosmos, acima da faixa de pedras, é habitado
pelos ancestrais clânicos (Hib’áh Thd’äh
) e pelas almas de todos os Hupda mortos. A
narrativa de Tsai, um dos informantes de Howard Reid, é particularmente clara a respeito da
passagem das almas dos Hupda a esse mundo das pessoas-alma. Segundo Tsai, quando se
morre a alma torna-se novamente diminuta, da mesma forma que no nascimento. Ao atingir as
pedras, K’èg-Th, na forma do velho cunuri (Pëd wäh
d), sopra encantos em uma cabaça para
que a alma cresça. As almas são devidamente nutridas por uma fungada de flores, de forma
que nunca mais sintam fome. Depois desta espécie de ritual, K’èg-Th alça as almas ao nível
superior, no qual se juntará aos seus consangüíneos, compreendendo seus pais, avós, irmãos e
filhos mortos, além de seus ancestrais mais longínquos. Os parentes preparam uma recepção
para a alma vindoura. As mulheres vêm caçar neste mundo, enquanto outras pessoas vão
colher frutos na enorme árvore dög (Iuapixuna), que contém todos os tipos de árvores
frutíferas. Prepara-se caxiri, canta-se e realizam-se trocas rituais, saudando a alma recém-
chegada numa espécie de grande dabucuri. A embriaguez toma conta desta região cósmica, e
as pessoas-alma permanecem dançando cobertas por pele de jaguar. Por meio deste grande
87
Há uma nuance importante a ser ressaltada, pois por um lado todas essas figuras míticas estão ao lado de K’èg-
Th, por outro seriam como manifestações deste herói criador diz-se que esses seres são do “clã” de K’èg-
Th, compartilham de sua substância, alguns imiscuindo-se com sua figura.
105
ritual, que é a vida pós-morte, a alma do morto seqüência ao seu processo de
crescimento
88
.
Reid, inspirado nas descrições da cosmologia kakwa de Silverwood-Cope (1990),
comenta que o mundo pós-morte das pessoas-alma opera uma série de inversões em relação à
vida terrena dos Hupda. Neste sentido, the soul people feels no hunger, soul women hunt,
they need only to consume tiny quantities of beer to be inebriated, all the scattered Dogn
fruits of the forest mature overnight, and are concentrated in one great tree, etc.(Reid 1979:
230). Segundo Reid, essas inversões operariam uma transformação dos entraves da vida
cotidiana em uma vivência idílica após a morte. No que toca à situação dos índios do rio neste
quadro cosmológico e de destino pós-morte, Reid destaca que, por um lado, os índios
ribeirinhos são equacionados com a zona inferior do cosmos, com os b’atìb’d’äh,
considerando seu destino pós-morte em oposição diametral ao dos Hupda (Reid 1979: 230);
mas, por outro, o mundo das pessoas-alma seria uma imagem bem próxima à vida social dos
Tukano
89
.
Assim, a morada pós-morte dos Hupda seria bastante semelhante ao céu piaroa
descrito no Capítulo 2, considerando que na zona superior do cosmos os Hupda mortos
misturam-se apenas aos seus parentes mais próximos e aos ancestrais de seu clã. E, da mesma
forma que entre os Piaroa, esta composição do mundo pós-morte em grupos isolados é
embaralhada na vida terrena dos Hupda pelos padrões de moradia bilateral e os constantes
88
Kaj Århem, comparando as estruturas sociais dos Tukano com a morada pós-morte dos Hupda, comenta que
uma seria a imagem da outra: a habitação das pessoas-alma hup funcionando conforme uma grande maloca
tukano (Århem 1989: 20).
89
A bem dizer, como coloca Reid, o mundo pós-morte dos Kakwa se encaixaria melhor nessa imagem da vida
terrena dos Tukano, uma vez que nesse consumiria-se apenas plantas cultivadas. o mundo das pessoas-alma
hup não pode ser visto como uma derivação direta das aldeias ribeirinhas: “the symbols with which it is
constructed are not derived exclusively from the ‘cultural’ world of the Tukanoans, as that of the Bara Maku
appears to be(Reid 1979: 231). Entretanto, vale ressaltar que a composição unilinear das malocas dos mortos
hup encaixe-se perfeitamente no padrão terreno dos índios do rio.
106
processos de fissão e fusão de coletivos, sugerindo um processo de “mascaramento das
diferenças”, embora, diferentemente dos Piaroa, as unidades exogâmicas hup tenham
importância na vida terrena, como será descrito no Capítulo 5. Um paralelo com a escatologia
yanomami pode também iluminar este aspecto inversor da cosmologia hup. No destino pós-
morte yanomami, a alma reagrupa-se com seus cognatos de origem, restabelecendo os laços
da comunidade de origem de uma pessoa, a qual foi fissionada durante sua vida (Albert 1985:
630-1). Esta operação que faz do mundo das almas yanomami um monde sociologiquement
‘à rebours’”, nas palavras de Albert, pode ser de alguma forma identificada na escatologia
hup, embora, neste caso, a comunidade de origem não tenha origem terrena, e sim celeste, e
os laços recompostos, diferentemente dos Yanomami, não são cognáticos, mas agnáticos.
Depreende-se, assim, a importância dos clãs tanto para a constituição da pessoa, dada a
oposição entre alma, ligada ao clã, e sombra, como na dimensão metafísica da vida dos Hupda
em geral, considerando seu destino pós-morte.
107
Cipós que conectam os
mundos
K’èg-Th
Heróis míticos
Almas dos mortos/ancestrais
(Mundo das pessoas-alma)
Oeste
Leste
Diagrama 1: Cosmos hup
(adaptado de Reid 1978 e 1979)
Zona
superior
Zona do
meio
Zona
inferior
Espíritos (b’atìb’d’äh )
(Mundo subterrâneo)
...floresta...
humanos, animais
e espíritos
(Mundo atual)
Hupda
Abutres
Gaviões-tesoura
humanos, animais
e espíritos
pedras
jaguares
jaguares
108
Na zona central do cosmos, o nível mais alto é ocupado por abutres, aos quais os
Hupda se referem como pessoas que comem carne podre, d’óh
90
. Esses seres são repugnantes
e incomestíveis. Também incomestíveis, abaixo dos abutres, estão os gaviões-tesoura
(pessoas-pássaro), figuras contrastivas aos primeiros, destacando-se nos mitos pela
benevolência, agindo freqüentemente como auxiliares dos humanos (Reid 1979: 234). No
estrato inferior da zona intermediária, está o plano sólido que forma a terra propriamente dita,
o mundo atual, Nìh s’áh, “nossa terra”. Os Hupda vivem no centro desse plano horizontal,
cuja orientação se preponderantemente no eixo leste (mer’ah) - oeste (pör’ah)
91
e que é
inteiramente tomado de floresta (Reid 1979: 235). A extremo leste, passando pelo rio Negro e
pelo Amazonas está um lago de águas espessas que despencam na beira da terra. Conforme
Renato Athias, a leste encontra-se a “casa do pai do sol e da lua” (weró ip móy) e a oeste está
o local onde nascem todos os rios (1998: 252). Sobre a composição da zona central do
cosmos, vale citar a nota final de Reid:
Three distinct levels therefore make up the central zone of the cosmos, each one occupied primarily
by some particular manifestation of Hupdu, or people. A few individuals would elaborate on this
basic structure, including one or more extra categories of bird-level, but when they did this they
would also point out that these birds, like the vultures and kites, were people when viewed with the
eye of the soul, though they appeared to be only birds to an insensitive observer. A degree of
contrast is attributed to these alter humans, just as contrasts exist between the real human of this
Earth. (Reid 1979: 235)
Se a zona superior do cosmos é habitada pelas pessoas-alma (h
wägd’äh), os estratos
superiores da zona intermediária são habitados por essas formas de animais-pessoas, ou
90
Este termo designaria, segundo Reid (1979: 233), também feitiçaria, bem como decadência e declínio. No
dicionário da língua hup, Henri Ramirez separa os verbetes: d
h, designando “assoprar veneno em...”, o que
remete à linguagem da feitiçaria na região, sendo, segundo o autor, um empréstimo tukano; e d’óh, termo com o
sentido de “apodrecer, podre”. no dicionário “Fala Tukano dos Ye’pâ-Masa” (1997), também organizado por
Henri Ramirez, o termo dohá, além de “assoprar veneno em...”, significaria o processo de transformação natural,
ligado à maturação dos compostos orgânicos; ligando-se também a do, verbo que designa a transformação
sobrenatural.
91
Quando estive entre os Hupda de Fátima (Iauaretê), as conversas que tive com os que falavam português
giravam em torno de aspectos geográficos. Todo o dia eles me perguntavam, aliás, freqüentemente a mesma
pessoa, de onde eu vinha e se era mesmo Brasil. Além disso, perguntas tais quais “como é o Rio de Janeiro?”,
“e o mar?”, além da algo enigmática “onde fica a América? pergunta, por sinal, de difícil resposta —,
faziam-se constantemente presentes. Ao final das conversas invariavelmente alguém finalizava com a afirmação
que, a despeito de todas as especulações, onde estávamos, a terra dos Hupda, era o centro.
109
melhor, animais que são pessoas aos olhos da alma da pessoa hup, a qual ocupa o centro do
cosmos. o plano inferior do cosmos, ao que tudo indica, apesar da raridade de informações
a respeito, é ocupado por outras formas de gente. Pouco se sabe sobre o mundo subterrâneo,
uma vez que os xamãs, especialistas na travessia aos pontos mais longínquos do cosmos,
alegam não ter interesse em visitar este local (Reid 1979: 236). De qualquer forma, o que se
sabe é que um grande rio que corre em direção oposta aos da terra (isto é, de leste para
oeste) sobre o qual viaja o sol durante a noite. vivem figuras como a “gente Umari”, que
não são humanos, e outras mais, dependendo da versão contada (Reid 1979: 236). Operando-
se uma série de inversões em relação ao mundo atual, quando é dia no mundo subterrâneo, é
noite na terra, e vice-versa.
Na topografia da floresta destacam-se alguns os de onde brota água, servindo de
passagem aos b’atìb’d’äh, nome dado aos “espíritos” em geral. Alguns desses são descritos
como mestres de animais de caça que habitam o mundo subterrâneo, mas via de regra este
termo designa os espíritos que se espalham pela floresta, dotados de potência negativa em
relação aos humanos. Cabe, entretanto, refinar a descrição, pois uma certa controvérsia no
que se refere ao lugar de habitação dos espíritos. Alguns dizem que está a meio caminho entre
a terra e o mundo subterrâneo propriamente dito, outros dizem que é mais precisamente no
mundo subterrâneo, de onde esses seres de hábito noturno sobem por cipós e ascendem à
terra, predando animais e humanos durante a noite. Essa oscilação em localizar a habitação e a
zona de influência dos b’atìb’d’äh inspira um tema importante a ser destacado: a
compreensão dos b’atìb’d’äh como figuras imanentes em relação ao mundo atual.
A separação do cosmos em planos dispostos em um eixo vertical é articulada através
de uma série de passagens e conexões possíveis. Além da conexão dos planos entretecida por
cipós, a própria composição ternária da pessoa hup sugere uma forma de síntese entre os três
planos do cosmos. A redistribuição dessas forças cósmicas que compõem a pessoa ocorre
110
mediante os processos pós-morte de ascendência da alma ao mundo superior e de
descendência da sombra ao mundo subterrâneo, operando a disjunção da síntese.
Howard Reid, ao tratar destas relações, coloca que o abaixo, o aqui e o acima, as três
zonas do cosmos, estabeleceriam uma relação metafórica com os componentes da pessoa hup,
respectivamente, sombra, corpo e alma (Reid 1979: 237)
92
. Tais relações podem ser
entendidas também como metonímicas, de reverberação ou continuidade entre as partes do
cosmos e da pessoa. O nascimento é o momento de uma síntese instável das partes do cosmos,
compondo uma pessoa que passa ao longo da vida por um processo de fabricação corporal
articulado ao crescimento da alma, seguindo as linhas de movimento do universo de baixo
para cima; diminuição da sombra/aumento da alma. Tal progressão evidencia-se também nos
mitos hup e sua estrutura vertical baseada nas partes da floresta. Assim como os Hupda
habitam o centro do cosmos e da terra, a pessoa hup é um centro conector do universo, sendo
composta por corpo afecções do mundo atual, zona central do cosmos —, alma —
afecções da zona superior, morada dos heróis culturais e dos ancestrais — e sombra —
afecções da zona inferior, espaço dos espíritos malfazejos. Pessoa e cosmos, compósitos das
mesmas matérias, em relação fractal, revelando a natureza dual da pessoa hup ao integrar
consangüinidade e afinidade
93
.
92
Explicitando o uso da idéia de metáfora em Reid: The essence of a metaphoric association is that it links two
symbols through shared qualities, aspects of their totality, and not by any direct, one-to-one correspondence.”
(Reid 1979: 238).
93
Sobre a fractalidade e o divíduo ameríndio, conferir José Kelly (2001).
111
Na figura ao lado aplica-se o modelo da
afinidade potencial à imagem do cosmos, articulando
o par consangüinidade/afinidade que venho
trabalhando. Nada melhor para justificar este
argumento que a descrição acima do grande esforço
vital que move a sociocosmologia hup: a construção
de parentes (humanos) por um processo de extração
da sombra, conectada ao nível inferior do cosmos, e
o conseqüente crescimento da alma, força ligada ao
nível superior, seu destino final. Na cosmologia hup, consangüinidade e afinidade são,
verdadeiramente, “zonas de intensidade”: This suggests that Amazonian consanguinity and
affinity are not so much taxonomically discontinuous categories, but, rather, zones of
intensity within a single scalar field (Viveiros de Castro 2001: 25). Em suma,
consangüinidade pura (superior); pessoa hup, composto de alma, sombra e corpo
(intermediário); afinidade pura (inferior). Ao que parece, o nível intermediário do cosmos faz
justamente compor as forças originárias dos dois pólos do universo: a pessoa é sombra
(afinidade) e alma (consangüinidade)
94
.
* * *
A “ambiguidade” da constituição da pessoa hup depara-se com os dois modos de
grupificação dos Hupda, colocados na Introdução, isto é, por um lado, grupos locais de laços
cognáticos, por outro, grupos de descendência agnaticamente constituídos. Em oposição à
94
Neste sentido, os estratos superiores deste nível são compostos por abutres (malevolência, sombra) e gaviões-
tesoura (benevolência, alma).
Pessoa hup
(alma/sombra, consangüinidade/afinidade)
Afinidade
pura
Consangüinidade
pura
112
sombra (b’atib’), ao mesmo tempo em que se constrói um corpo de um parente por
assemelhamento corporal nos grupos locais cognáticos, faz-se crescer a alma (h
wäg) da
pessoa, seu aspecto clânico, diferenciando os Hupda em grupos de descendência discretos. Ao
que parece, o perpétuo desequilíbrio do dualismo ameríndio (identidades que nunca se
fecham) é internalizado no processo do parentesco hup “atualização e contra-efetuação”,
para usar uma expressão de Viveiros de Castro (2002e) —, o qual, ao mesmo tempo em que
assemelha os corpos dos parentes nos círculos cognáticos terrenos dos grupos locais, os
diferencia cosmologicamente através do crescimento de suas almas clânicas.
Passa-se, nos próximos capítulos, justamente à descrição destes dois modos de
grupificação.
113
CAPÍTULO 4
O próximo e o distante
Nos capítulos anteriores, foram estabelecidas as condições para a função conectora da
dissertação, conforme proposta na Introdução, percorrendo temas da estrutura social tukano e
da cosmologia hup. Passa-se agora à sua função retrospectiva, de modo a traçar os modos
pelos quais os grupos hup são descritos e as caracterizações de “ambigüidade” e “fluidez”
neles projetadas.
Mapa 2: Região de Ocupação Hupda-Maku
Fonte: Mapa-livro Povos Indígenas do Rio Negro (FOIRN/ISA 2006)
114
Howard Reid atribui aos Hupda estes dois modos de “discriminar os segmentos da
sociedade”, em suas palavras. O sistema clânico seria o modelo ideal dos Hupda, colocado
nos mitos da criação de sua sociedade: based upon principles of descent, performs the
normal functions of transmiting group membership and esoteric knowledge from generation
to generation, strongly influencing the form of the kinship terminology, and regulating…
marriage patterns(Reid 1979: 273). As “irregularidades da vida social” levam os Hupda a
desviar deste ideal, daí o contraste com as “classificações socioespaciais”, que seriam uma
“percepção pragmática e sincrônica” da sociedade: not only residential arrangements, but
spheres of social interaction and exchange in the form of visiting , ritual and economic
exchanges; fighting and fissions etc. (Reid 1979: 274). Este modelo socioespacial da
sociedade hup reflete-se também nos padrões de casamento “na prática”, uma vez que os
Hupda em geral preferem casar-se localmente, embora não exista uma regra que prescreva a
endogamia local. Em suma, na ausência de regras que estruturem o sistema clânico, socio-
spatial classification reflects the situation as it exists on the ground at any one time(Reid
1979: 274). Por fim, o autor coloca que é precisamente a relação frouxa entre esses dois
modos de classificação da sociedade dos Hupda que possibilita sua notável fluidez:
Interstingly, it is the absence of any fixed relations between these two systems, any rule of
“residence dictated by descent”, that allows Hupdu social life to be as flexible and free of
constraints as it is” (Reid 1979: 274).
Como visto no segundo tópico do Capítulo 1, nas etnografias sobre os povos Tukano
ocorre algo semelhante ao colocado por Reid em relação aos Hupda, considerando que a
passagem da estrutura ideal da sociedade para sua distribuição espacial leva às caracterizações
de fluidez, embora esta passagem não opere exatamente da mesma forma nas etnografias dos
povos Tukano e dos povos Maku. Acima, Reid identifica um ponto preciso a respeito dos
Hupda: a ausência de uma regra que fixe os grupos de descendência em um determinado
115
local, como ocorre nos Tukano em suas malocas de composição agnática. Entretanto, como
colocado na Introdução, as definições antropológicas negativas, baseadas na ausência, na
falta, na carência de instituições trazem mais problemas, ao invés de resolvê-los. Logo, a
questão que surge é: o que estrutura, então, as relações socioespaciais dos Hupda?
Sem a pretensão de exaurir esta questão, neste capítulo, descrevo a relevância da
dinâmica entre próximos e distantes desde a perspectiva hup, a qual foi sintetizada por Jorge
Pozzobon (1991) na “equação da distância ontológica”. No primeiro tópico, descreve-se o
modo pelo qual os Hupda conceituam os povos que os circundam. Isso encaminha à descrição
de sua própria distribuição socioespacial, articulada, de certa forma, pelos mesmos conceitos
através dos quais os Hupda mapeiam seu “exterior”. No segundo e no terceiro tópicos são
descritas as “unidades socioespaciais” nas quais se distribuem os Hupda (grupo lingüístico,
grupo regional, aglomerados, grupos locais e grupos de fogo). Trabalham-se, basicamente,
dois tipos de dados, conforme a divisão que estrutura o trabalho dos etnógrafos: 1) as idéias
indígenas a respeito de sua divisão socioespacial; 2) as idéias etnológicas sobre a distribuição
socioespacial indígena (Pozzobon 1991). Esta divisão revela o duplo objetivo deste capítulo:
por um lado, descrever o modo como os Hupda foram grupificados pelos etnógrafos e, por
outro, o modo como os Hupda conceituam as relações de alteridade e de parentesco
distribuídas no espaço.
1. A equação da distância ontológica
Nìh s’áh, a terra, o mundo em que os Hupda habitam, é este plano horizontal povoado
por uma variedade de seres: povos distantes, povos próximos, índios ribeirinhos, animais,
b’atìb’d’äh (espíritos), dentre outros, incluindo, no centro, os Hupda. A descrição que os
Hupda fazem das gentes que os circundam inspirou Jorge Pozzobon a formular a seguinte
116
equação: “distância geográfica = distância ontológica” (Pozzobon 1991: 76), na medida em
que proporcionalmente à distância espacial os povos ganham atributos de não-humanidade
desde a perspectiva dos Hupda, que, como vimos, ocupa o centro da terra (Pozzobon 1991:
74-5). Estamos diante da dinâmica do dualismo concêntrico ameríndio, em que o interior é
associado à familiaridade, ao parentesco e à segurança e o exterior à alteridade e aos perigos
em geral (Rivière 1993: 511; sobre o “sistema de desconfiança preventiva generalizada”,
conferir Viveiros de Castro 1986a: 279; conferir também Viveiros de Castro 2001: 22),
cortando o sistema clânico patrilinear e a terminologia dravidiana de parentesco (temas do
Capítulo 5) que estruturam as relações de exogamia, desdobrando-se no que Jorge Pozzobon
nomeia como “esferas endogâmicas”. Uma equação propriamente espacial condiciona o
pensamento que classifica os próximos e os distantes (ontologicamente), sendo o compasso
pelo qual os Hupda mapeiam o espaço horizontal da terra em que vivem, condicionando
fortemente as relações de alteridade e de parentesco.
Howard Reid ressalta as relações entre o plano cosmológico-vertical, descrito no
Capítulo 3, e a distribuição de poder místico no plano horizontal do nível intermediário do
cosmos. À distância no espaço cósmico corresponde uma distância temporal (Reid 1979: 231-
2): K’èg-Th, o criador da terra, ser mais antigo, e suas variações habitam o ponto mais alto
do cosmos, enquanto as manifestações mais novas de sua força, as almas dos recém-mortos,
vivem mais abaixo. Essa relação entre a distância temporal e a distância espacial conecta-se
com um gradiente de potência mística em que as relações são diretamente proporcionais:
quanto mais longe no tempo e no espaço, mais poderoso
95
. Esse continuum que se estende no
espaço vertical encontra seu análogo no horizontal. A exemplo disso, Reid cita as atitudes dos
Hupda em relação aos Maku mais distantes (Reid 1979: 232), atribuindo-lhes grandes
95
Reid acrescenta ainda um gradiente de intensidade de relação com os humanos inversamente proporcional
quanto mais distante no tempo e no espaço, menos ingerência nos assuntos mundanos Neste gradiente de
agentividade das figuras cosmológicas em função da distância espacial, as pessoas-alma teriam mais agência nos
assuntos dos Hupda vivos que K’èg-Th e as figuras dos estratos mais elevados.
117
capacidades místicas. aqui uma relação estreita entre a progressão no espaço vertical e a
progressão no espaço horizontal, algo que está implicado também nos termos hup para as
direções espaciais, que relacionam consistentemente aspectos do espaço vertical e horizontal:
algo condizente com a proximidade dos termos que designam, por um lado, “rio abaixo”
(horizontal) e “para baixo” (vertical) por sinal, morada dos Tukano (horizontal) e dos
b’atìb’d’äh (vertical) e, por outro, “rio acima” e “para cima” — morada dos Hupda
(horizontal) e das pessoas-alma (vertical).
Os relatos que os Hupda fazem dos Maku distantes, aos quais geralmente nomeiam
por um qualificativo acrescido do termo hupd’äh, dizem respeito a figuras sinistras,
sintetizadas na seguinte passagem de Howard Reid: They are nocturnal, physically
anomalous, sleep on the ground or in trees (not in hammocks), eat human flesh and are
attributed with considerable negative supernatural power (Reid 1979: 203)
96
. Conforme
Jorge Pozzobon, nas descrições desses seres encontram-se temas mitológicos comuns no solo
conceitual ameríndio, tais como o canibalismo, o cru o cozido, a natureza e a cultura
(Pozzobon 1991: 76). Por exemplo, os Sib’íhd’äh (Gente Morcego), habitantes das cabeceiras
do rio Traíra, ao sul do território dos Hupda, vivem pendurados em cima de árvores, são altos,
têm pele branca e olhos azuis; caçadores noturnos, canibais, xamãs reconhecidamente
perigosos (Reid 1979: 202). Semelhantes a essas figuras, os Hupda também listam os Sab’àk
Hupd’äh (Gente Zarabatana), os Tùg Hupd’äh (Gente Guariba), os Yawàk Hupdäh (Gente do
Japurá), provavelmente uma referência aos Nadöb, considerando que os Hupda os localizam
entre o médio rio Negro e o baixo rio Japurá (Pozzobon 1983: 145; 1991: 76). Segundo um
dos informantes de Reid, a Gente Zarabatana não seria propriamente humana: canibais que
96
Segundo Pozzobon, a recíproca é verdadeira: “Os Nadöb, supostamente os personagens dessas estórias de
terror, concebem de maneira semelhante os Maku localizados a montante de seu território. Para eles, quanto mais
se sobem os rios, tanto mais se entra no território de pessoas cuja humanidade é duvidosa (Münzel, 1969: 173).
Assim, os Maku do alto Rio Negro (os Bara, Yuhup, Hupdu
e Kamã) seriam antropófagos, moradores do mato,
quase animais.” (Pozzobon 1983: 147).
118
vão à terra dos Hupda caçá-los nas noites de lua nova, deslocando-se rapidamente no breu da
floresta sem a necessidade de trilhas (Reid 1979: 203).
Como se pode inferir a partir das descrições do Capítulo 1, as imagens que os Hupda
fazem dos Maku distantes assemelham-se à imagem que os índios ribeirinhos fazem dos
próprios Maku (Pozzobon 1991: 76) e que os Hupda, por sua vez, fazem dos b’atìb’d’äh, os
espíritos que vivem na floresta e estão ligados ao mundo subterrâneo. Os Maku distantes, os
b’atìb’d’äh e também os índios ribeirinhos, como será visto a seguir, figuram o ideal de
humanidade dos Hupda pela negativa (Reid 1979: 203).
Os Maku do Uaupés, localizados em contigüidade à terra hup, e com os quais esses
entretêm algumas relações de casamento em função da proximidade (Pozzobon 1983: 147),
são nomeados a partir de um de seus clãs mais numerosos, cujo nome é traduzido para a
língua hup. Assim, os Kakwa, ao norte, são os Eu’däh, tradução do clã Yere’wa (os
“Pequenos Pássaros Verdes”, conforme Pozzobon 1983: 145), um dos maiores clãs kakwa,
tendo relação próxima aos Hupda em Piracuara, povoado no lado colombiano das margens do
rio Papuri (Reid 1979: 99-100). Os Yuhupde são os Nám Kóh-th’d’äh, “aqueles do Curare”
(conforme o dicionário de Ramirez 2006, acredito que em referência específica à substância
extraída de um certo tipo de jatobá) (Reid 1979: 100; Pozzobon 1991: 75). Por sua vez, os
Yuhupde e os Kakwa se referem aos Hupda a partir da classificação dos índios do rio,
chamando-os, respectivamente, de peona e anan, termos emprestados da língua tukano,
ambos, em algum grau, contendo sentido pejorativo (Pozzobon 1983: 143, 1991: 74).
Todavia, quando na presença dos Hupda, os Yuhupde os tratam respeitosamente referindo-se
através do padrão de tradução dos nomes de seus maiores clãs (Pozzobon 1991: 74).
Da relação com os Maku próximos, em terras próximas a dos Hupda, depreende-se
outra variável para o cálculo da distância ou proximidade ontológica: a relação de casamento.
119
Segundo Jorge Pozzobon, dentre os povos Maku, a classificação que os Hupda fazem dos
demais povos é a mais elaborada (Pozzobon 1983: 145), justamente devido à sua posição
entre dois povos com os quais podem estabelecer relações de matrimônio.
[...] isso explicaria a sofisticação dos métodos classificatórios Hupdu: tendo contato e troca de
mulheres com os Bara e Yuhup, eles desenvolveram um sistema classificatório capaz de levar em
conta a exogamia clânica de seus vizinhos. Estes, por sua vez, tendo contatos apenas com os
Hupdu, não teriam a necessidade de desenvolver um tal sistema. Mas à semelhança dos Hupdu,
eles estendem a humanidade para os Maku de sua vizinhança. À medida em que se distanciam,
impossibilitando, portanto, as trocas matrimoniais, os Maku passam a classificar os outros como
semi-humanos, cheios de atributos negativos.” (Pozzobon 1983: 148-49)
[...] chez les Maku, l’extension de l’identité à d’autres personnes dépend aussi des échanges
matromoniaux. On pourrait tenter une première généralisation sur leur système classificatoire: par
contraste avec les Tukano et les blancs, l’interlocuteur Maku considère les autres groupes Maku
comme des “gens”, auxquels il attribue des caractéristiques plus ou moins humaines selon la
distance géographique et la fréquence des intermarriages. (Pozzobon 1991 : 78)
Portanto, no cálculo da distância e da proximidade ontológica: distância geográfica e
freqüência de casamentos. Duas variáveis em relação sinérgica, pois os casamentos são
freqüentes apenas com os próximos e vice-versa. Mas, a proximidade não necessariamente
implica a realização de alianças matrimoniais, considerando a relação dos Hupda com índios
ribeirinhos que habitam nos limite da terra hup.
Algumas observações são necessárias a respeito das imagens que os Hupda têm dos
seus vizinhos Tukano. Neste ponto, o vetor da feitiçaria atualiza-se de forma algo diferente
em relação à equação de Pozzobon, inspirando-nos a inserir outras variáveis para o cálculo da
distância ontológica que não apenas a distância espacial, uma vez que aos índios do rio, por
mais próximos espacialmente que estejam dos Hupda, é invariavelmente atribuída a potência
da feitiçaria. Vale colocar que a distância entre os índios do rio e os Hupda é articulada por
uma série de procedimentos adotados por ambos os lados no sentido de estancar a construção
de intimidade e parentesco — contrariamente ao que se observa na relação com os Yuhupde e
os Kakwa. Não apenas a ausência de casamento entre eles, remetendo à exterioridade dos
120
Hupda em relação ao sistema de exogamia lingüística uaupesino, mas também modos de
deferência variados configuram as relações quando os Hupda estão nas aldeias tukano.
Uma série de imagens fazem dos Tukano uma das formas de ideal de humanidade às
avessas desde a perspectiva hup, colocando-os em posição análoga aos Maku distantes e aos
espíritos da floresta. Primeiramente, sua notória raiva, potência que é negativamente
valorizada pelos Hupda, ligada às influências da sombra. Como coloca Reid, em certas
ocasiões os Hupda inclusive se referem aos Tukano como b’atìb, termo esse que parece ser
um marcador dos perigos da alteridade, estreitamente ligado à predação e à feitiçaria. E,
ainda, nos sonhos, quando se deparam com os espíritos da floresta, é sinal da proximidade da
visita de algum índio ribeirinho (Reid 1978: 27; 1979: 179). Outro ponto importante, e que
diz respeito aos ideais de ação política nesta região amazônica, é uma acentuada diferença
entre a prática dos índios ribeirinhos de mandar, ordenar, enfim, em seu estilo de chefia, e a
valoração negativa que esta disposição tem para os Hupda.
A terra hup é circundada, portanto, por essas figuras autoritárias, raivosas e abusivas
que, desde a perspectiva hup, habitam no sentido espacial “rio abaixo”, considerando que os
igarapés na proximidade dos quais se localizam as aldeias hup correm em direção aos grandes
rios onde se distribuem os sibs dos povos Tukano. Não é fortuito que nesse mesmo sentido
espacial localizem-se os b’atìb’d’äh mencionados, estabelecendo entre esses seres (índios
do rio e b’atìb’d’äh) uma relação de proximidade não apenas metafórica, como propõe Reid
(1979: 179), mas também, acredito, metonímica. Ambos parâmetros de não-humanidade,
habitam proximamente e em alguma medida se confundem; as potências de feitiçaria
ribeirinha e da predação espiritual imiscuem-se. Além do mais, é importante considerar a
lógica da origem espacial das doenças que condiciona a relação dos Hupda com os grandes
rios: as doenças, infortúnios e males variados vêm dos rios em direção ao interior da floresta,
de fora para dentro da terra hup (Athias 1998).
121
A posição central da Nìh s’áh, da “nossa terra”, no mundo é bem definida, bem como
sua situação de paciente em relação a esses vetores da feitiçaria e de doenças que, por
definição, vêm “de fora”. Esta relação espacial entre um interior que ocupa a posição de
paciente em oposição a agentes exteriores nocivos implica que a h s’áh está para seu
exterior assim como a alma (h
wäg) está para a sombra (b’atib’), conforme vimos nas
descrições do Capítulo 3. E, assim como a pessoa hup dobra para seu interior ambas as forças,
estabelecendo uma relação fractal entre interior e exterior, a Nìh s’áh também o faz. Em
relação às diferenciações que recortam a distribuição socioespacial hup, vê-se que não um
centro unitário. O mesmo padrão de diferenciação que os Hupda estabelecem com os povos
que os circundam é articulado nas diferenciações internas. Destarte, -se na distribuição
socioespacial dos Hupda a atuação do mesmo vetor de distância/proximidade que em suas
relações com os outros povos, o que tem implicações desestabilizadoras de uma noção de
identidade mecanicamente aplicada a eles
97
.
2. Grupos regionais e aglomerados
Os etnógrafos costumam estruturar suas descrições através da análise de quatro
unidades socioespaciais que conformariam a morfologia social hup. Em ordem de
inclusividade decrescente: o grupo lingüístico (os Hupda em geral), os grupos regionais (ao
todo três), os grupos locais (de quantidade e qualidade variáveis) e o grupo de fogo (unidade
básica de “produção” e “reprodução” social) (Reid 1979: 101; Pozzobon 1983: 110, 2000: 69;
Athias 1995). Esse padrão foi instituído pela etnografia de Silverwood-Cope (1990 [1972])
entre os Kakwa, mostrando-se pertinente também para a descrição dos demais povos da
97
É precisamente por conta deste aspecto que, no primeiro tópico do Capítulo 3, propus algumas nuances em
relação ao “terceiro sentido de hupd’ähapresentado por Reid (1979) como um etnônimo e, neste sentido, não-
ambíguo. Lembrando que quem é hupd’ähpara um Hupda de determinado grupo regional pode não coincidir
com quem é “hupd’äh para um Hupda distante do primeiro, como será visto logo a seguir.
122
família lingüística Maku estabelecidos na região do Uaupés. Entretanto, Howard Reid (1979)
traça uma diferenciação importante, que se refere a uma particularidade dos Hupda, ao inserir
o aglomerado (cluster) de grupos locais como uma espécie de quinta unidade, disposto, na
ordem escalar de inclusividade acima exposta, entre os grupos regionais e os grupos locais
(Reid 1979: 101). De qualquer forma, o importante a ressaltar dessas unidades através das
quais os Hupda são descritos é que uma mesma tendência concêntrica as constitui.
Em conformidade ao padrão de diferenciação lingüística, variações dialetais fornecem
material para o traçado de algumas fronteiras entre os Hupda: os três grupos regionais
(conferir Mapa 2). O fluxo dos rios Papuri e Tiquiê (sentido oeste – leste) é a referência para a
nomeação que os Hupda estabelecem dos grupos regionais. Neste padrão, importante
ressaltar, não nome para o grupo regional do enunciador, apenas para os outros; não
estando em jogo, portanto, um ponto de vista global (Reid 1979: 102; Pozzobon 2000: 69).
Assim, do ponto de vista de um falante do grupo regional mais a leste, os outros dois são
designados como “os de rio acima” (pör
d’äh), já, do ponto de vista dos habitantes a extremo
oeste, as outras duas regiões são nomeadas de “os de rio abaixo” (mer’ahd’äh). E, por fim, o
grupo regional central designa os habitantes a leste de “os do rio abaixo” (mer’ahd’äh) e a
oeste de “os de rio acima” (pör
d’äh) (Reid 1979: 102; Athias 1995).
Como não foco a descrição em nenhum dos grupos regionais em específico, para
designar as três regiões faço uso da nomenclatura proposta por Pozzobon (1991): “Hupda
ocidentais”, sendo o grupo regional a montante, agrupamento mais a oeste; “Hupda centrais”;
e “Hupda orientais”, grupo regional a jusante, agrupamento mais a leste
98
. Antes da
98
Haveria ainda, conforme Pozzobon (1983: 117), um quarto grupo regional, localizado na margem colombiana
do rio Papuri, nas proximidades de Piracuara (Pozzobon 1983: 114, 117). As informações sobre este coletivo e
em que medida deveria ser caracterizado como um grupo regional são esparsas; ver-se-á no mapa do início do
capítulo que ainda hoje esta área no entorno de Piracuara é utilizada como zona de forrageio pelos Hupda do
123
exposição da constituição desses coletivos, cabe trazer a diferenciação que Pozzobon propõe
entre os dados disponíveis a respeito dos grupos regionais: a geografia (ponto de vista do
observador) e as idéias indígenas a respeito das relações entre próximos e distantes (Pozzobon
1991: 51). O primeiro conjunto de dados compreende a história específica de cada região e
dados demográficos, os quais permitem a visualização não apenas das diferenças regionais
como também do que Århem (1989) propõe a respeito da variação de modelos de organização
social em uma sociedade ao longo do tempo e do espaço (proposta que foi descrita no
Capítulo 2). Neste sentido, são particularmente ilustrativos os relatos sobre o conjunto de
malocas hup no grupo regional oriental em meados de 1960, aproximando-se, de certa forma,
ao padrão de organização social tukano, as quais, entretanto, alguns anos depois foram
abandonadas, tendo sido, ao que tudo indica, um experimento passageiro. O segundo conjunto
de dados aos quais Pozzobon se refere é fundamental para o argumento que se tem em vista,
abordando os conceitos com que os Hupda articulam o interior e o exterior de seu socius, em
geral colocados através das imagens da feitiçaria e do parentesco (Pozzobon 1991: 79).
Os grupos regionais hup tendem a um relativo isolamento, além de apresentarem
variações culturais. Suas fronteiras não são de todo rígidas, como enfatiza Athias (1995),
muito embora existam contrastes que perduram no tempo (Pozzobon 1991). Seguindo as
caracterizações de Pozzobon (1983, 1991), o grupo regional ocidental é o menos sujeito às
influências de não-índios, tendo alto grau de independência em relação à economia não-
indígena, permanecendo longas temporadas nos acampamentos de caça (Pozzobon 1991: 56).
grupo central. Sobre isso, Athias menciona o seguinte: “Dans la région interfluviale des fleuves Papuri et Tiquié,
on trouve trois groupes régionaux Hupdah, formant au total trente-cinq groupes locaux. Silverwood-Cope
(1972) mentionne l'existence d'un quatrième groupe régional sur la rive gauche du fleuve Papuri, sur un
territoire contigu à celui des Bará-Maku, en Colombie. Reid (1979) en parle comme d'un groupe local. En 1984,
lors du travail de terrain, nous avons eu confirmation de l'existence d'un groupe local Hupdah dans cette région.
On ne peut toutefois pas dire qu'il s'agisse d'un groupe régional et nous pensons qu'il s'agit du groupe local
Nenoyá.(Aathias 1995). Dada a escassez de informações a respeito deste conjunto, faço a opção de bastar a
análise nos três grupos regionais que se localizam entre os rios Papuri e Tiquiê.
124
Nesta região, a empresa missionária dos salesianos teve, até o final da década de 1980,
relativo insucesso. Os Tuyuca do alto Tiquiê propagandeavam negativamente os salesianos
(1983: 118). Quando da estadia de Jorge Pozzobon entre eles em 1989, somavam 258
indivíduos distribuídos em 12 aldeias, sendo que duas se localizavam em território
colombiano
99
. Os Hupda da região ocidental realizam trocas principalmente com os Tuyuca,
os Desana e os Tukano, falando também as suas línguas. Ademais, são os que praticam mais
intensamente a mobilidade espacial (Pozzobon 1991).
Por volta de 1989, o grupo regional central somava 524 indivíduos distribuídos em 12
aldeias (Pozzoon 1991: 56). Conforme Pozzobon, o número relativamente diminuto de aldeias
para esse montante populacional se deve certamente a aglomerações organizadas pelos
missionários salesianos, com destaque para Nova Fundação, Barreira e Taracuá, as quais
adquiriram certa estabilidade depois de muitos conflitos e mortes devido à junção de grupos
locais que outrora viviam separadamente (Pozzobon 1991 56-7). Até esse momento de
estabilização na virada da década de 1980 para 1990, este grupo foi alvo de algumas
investidas missionárias, incluindo uma estrada de 70 km, construída em 1954, ligando a
missão salesiana de Iauaretê a Boca da Estrada, no médio Tiquiê, cortando em parte o
território deste grupo. Vinte anos depois a floresta já havia retomado seus domínios,
engolindo a estrada. Na década de 1970 os salesianos empreenderam algumas tentativas
frustradas de missionarização, que no mais das vezes terminavam com a dispersão dos Hupda
na floresta. A relação dos salesianos com os Hupda dessa região era, na época, via de regra
mediada pelos Desana e Tukano, índios ribeirinhos com quem as relações de troca se
concentram nesta região (Pozzobon 1983).
Conforme censo da FUNAI de 1988 (cujos dados foram trabalhados por Pozzobon
1991), no final da década de 1980 os Hupda da região oriental (a jusante) somavam 428
99
Possivelmente as referidas no Capítulo 1.
125
indivíduos em 10 aldeias. Novamente, o descompasso entre o número reduzido de aldeias
para este volume populacional, se consideradas as dimensões das aldeias tradicionais, deve-se
à ação dos missionários. A bem dizer, nesta região a concentração populacional tem
implicações ainda mais radicais, uma vez que a aldeia de Santo Atanásio, em 1988,
concentrava 242 indivíduos, algo inédito até então para essas populações. Em 1991, o
contingente populacional de Santo Atanásio já havia retrocedido para 202 indivíduos. Essa
variação no número total de residentes ocorreu, segundo Pozzobon (1991), devido à dispersão
na floresta de muitos Hupda que perderam o interesse em viver neste lugar reputadamente
violento e sujeito a epidemias. Segundo Pozzobon (1983), a intensa e prolongada influência
salesiana sobre os Hupda desta região transformou de tal forma seu padrão de vida tradicional
que eles já não mais estabeleceriam relações de troca com os índios ribeirinhos.
A região oriental, se comparada às demais, tenderia a uma maior assimilação da
cultura dos índios ribeirinhos (Pozzobon 1983: 112), bem como está mais sujeita às
influências não-índias. Isso é firmemente sugerido pelos dados de Terribilini & Terribilini
(1961: 2-10, cf. também Terribilini 2000), que, em 1961, visitaram uma “maloca” hup situada
a 25 km a sudoeste de Iauaretê, nas imediações do igarapé Japu (acredito que na cabeceira)
100
.
A descrição dos primos Terribilini sobre a “família” e a “organização social” dos Hupda
indica que nesta região, por volta do início dos anos 1960, haveria um complexo de malocas a
algumas horas de caminhada umas das outras, conectadas por relações de casamento,
100
Segue abaixo a descrição completa desta construção arquitetônica que se assemelha muito ao estilo das
aldeias dos índios do rio: La maloca où nous avons séjourné se trouve à 25 km SSW de Jawarété (en ligne
droite), à la frontière Brésil-Colombie, dans la forêt qui se trouve entre le rio Uaupès et son affluant le Tiquié.
Les pentes en sont orientées plus ou moins E-W. Les voies d’accès sont des pistes de forêt (très difficiles). La
demeure est propriété commune du groupe. Les objets personnels se réduisent à peu de chose: armes et « boîte à
trésors ». Le matériau employé pour le recouvrement de l’armature de bois est la palme, qui résiste aux plus
forts orages tout en laissant passer la fumée. Le moyen de chauffage et de cuisson est le feu. Actuellement, on
utilise des allumettes échangées à la Mission, mais quand elles manquent, on emploie encore l’antique moyen
constitué par le frottement rotatif d’un bâtonnet de bois d’« urucu » placé perpendiculairement sur un autre
posé sur le sol, l’étincelle produite enflamme ensuite une fibre d’écorce. L’éclairage intérieur de la maloca est
réalisé uniquement par les deux portes (fermées la nuit). En règle nérale, la porte de devant est réservée aux
hommes et celle de derrière aux femmes et aux enfants. Les foyers sont disposés plus ou moins par famille. Le
feu est entretenu à tour de rôle pendant la nuit” (Terribilini & Terribilini 1961: 3; Terribilini 2000: 227-8).
126
sugerindo um sistema de exogamia local e endogamia regional (1961: 7; Terribilini 2000:
236-7), aproximando os Hupda do padrão de organização social tukano.
Depois da passagem dos Terribilini no início da década de 1960, não existem mais
notícias desta sorte de construção entre os Hupda. Renato Athias, em 1974, na realização de
seu trabalho de campo concentrado primordialmente na região oriental, encontrou vestígios de
uma maloca nas imediações do igarapé Japu (possivelmente neste complexo referido pelos
Terribilini), sobre a qual, entretanto, o informante que o acompanhava não soube indicar
muitas informações
101
(Athias 1995). Pozzobon comenta ainda que este estilo de habitação
bastante próximo ao dos índios ribeirinhos não teria sido incorporado pelos demais grupos
regionais, que habitam em precários tapiris — baseado nas descrições de Reid em seu
trabalho de campo (entre 1974 e 1976) e nas suas próprias descrições dos Hupda (quando de
suas passagens entre 1989 e 1996).
Como dito acima, aos Hupda, considerando que são os Maku mais populosos e de
maior densidade demográfica, Howard Reid identifica uma unidade socioespacial a mais,
diferencialmente dos outros Maku: o aglomerado (cluster) de grupos locais (Reid 1979: 104;
Pozzobon 1983: 168). Se considerada a quantidade média de indivíduos, essa formação hup se
assemelha aos grupos regionais dos demais Maku. Ou seja, enquanto a média populacional é
de 88,5 indivíduos por grupo regional, tal média aproxima-se do observado nos aglomerados
hup, variando de 50 a 75 pessoas (Pozzobon 1983: 170). Nas palavras de Pozzobon:
Os Hupdu se distribuem, portanto, em micro-regiões que, embora não sejam dialetalmente
distintas dentro de um grupo regional, apresentam características semelhantes a um grupo regional
com respeito à intensidade do convívio de seus membros face aos outsiders. (Pozzobon 1983:
136).
101
A maloca, não exatamente como construção arquitetônica, mas como elemento simbólico, tem importância
fundamental na teorização de Athias (1995, 2000) a respeito dos Hupda e de sua posição no sistema uaupesiano.
127
Os aglomerados são formados por duas ou três aldeias distantes cerca de uma hora de
caminhada, geralmente referenciados seguindo o mesmo padrão de nomeação em que
inexistem nomes para o local do enunciador (Pozzobon 1991: 79) — com base em um
acidente geográfico em torno do qual se distribuem as aldeias (Reid 1979: 104; Pozzobon
1983: 168). Tais formações têm composição relativamente estável se comparadas aos grupos
locais, considerando que as mudanças de moradia ocasionadas por casamentos, brigas ou
mortes tendem a se realizar por permutações interiores aos aglomerados (Reid 1979: 104).
Além do mais, é importante frisar o caráter endogâmico dos grupos regionais dos Maku do
Uaupés em geral e dos aglomerados hup, na medida em que as relações de parentesco tendem
fortemente a se concentrar nestas regiões. Assim, a relação entre os aglomerados é análoga à
relação entre grupos regionais distantes: o vetor da feitiçaria intensificando-se em proporção
direta à distância espacial, inversamente ao parentesco.
Segundo Pozzobon, essa sorte de “encolhimento da endogamia” (Pozzobon 1991: 86)
em aglomerados interiores aos grupos regionais, presente entre os Hupda das regiões central e
oriental, não se realiza na região ocidental. Durtante o trabalho de campo entre os Hupda
desta região, Pozzobon não observou a tendência à formação de tais aglomerados, diferença
que o autor especula com base no fato de os Hupda que vivem nesta região praticarem mais
intensamente a mobilidade espacial, tecendo uma rede de relações de matrimônio
relativamente ampla, compreendendo todo o espaço do grupo regional (conferir o mapa
“Conexões genealógicas entre as aldeias dos Hupda ocidentais” em Pozzobon 1991: 85). De
qualquer forma, seja nos limites dos aglomerados ou nos limites dos grupos regionais, a
mesma tendência concêntrica se observa.
Acusações mútuas de feitiçaria, bem como a qualificação de “gente que fala a outra
língua”, marca a relação entre os habitantes dos grupos regionais hup distantes, não obstante a
128
diferença dialetal mínima, aos olhos do observador
102
(Reid 1979, Pozzobon 1983: 313).
Tudo se passa como se os mesmos vetores que articulam as relações dos Hupda com os seus
distantes atuassem no interior de sua sociedade. A língua estabelece um sense of
incorporation”, nas palavras de Reid, frágil. Algumas vezes os Hupda estabelecem relações
mais intensas com os Yuhupde, vizinhos falantes de uma língua relativamente inteligível, e
com os Kakwa, falantes de uma língua ininteligível, que com os demais grupos regionais hup.
Analisando os casamentos interlingüísticos entre os Maku do Uaupés, Pozzobon propõe que a
“identidade” se dá em função das trocas matrimoniais, complexificando a equação que calcula
a distância ontológica ao levar em conta este mecanismo de despotencialização da afinidade
que é o casamento (Viveiros de Castro 2001: 26).
Nesse sentido, conforme Reid, os Hupda que estão mais próximos dos Yuhupde (ao
sul da região ocidental) vêem os Hupda distantes (região oriental) como falantes de “outra
língua”, tão distantes ou mais que os próprios Yuhupde seus vizinhos, atribuindo-lhes um
risco de feitiçaria maior que aos Yuhupde próximos, qualificando-os como “outra gente”
(Reid 1979: 103) o vetor da feitiçaria funcionando aqui como uma espécie de medida da
distância. Neste sentido, nos raros casos em que um Hupda originado em uma das regiões
migra para outra sua qualificação como “outra gente” é gradativamente enfraquecida: Ces
faits montrent que les différences linguistiques et les accusations de sorcellerie n’ont
d’importance que dans les occasions la proximité sociale est en discussion (Pozzobon
1991: 80, grifos do autor). Feiticeiro e parente são, portanto, posições reversíveis. Entretanto,
vale ressaltar que entre os grupos regionais hup não relações de hostilidade aberta como
guerras, saques ou raptos, como é o caso dos Nadöb e de alguns grupos regionais yuhupde
(Pozzobon 1991: 84). Nessa linha, Athias comenta:
102
Este padrão de caracterização como “outra gente” com base em diferenças dialetais pode ser estendido
também a outros povos Maku (Pozzobon 1983: 151).
129
Chez les membres d'un groupe régional donné, on perçoit l'existence d'une certaine peur ou tout du
moins d'une certaine méfiance par rapport aux membres des autres groupes régionaux. Celle-ci est
justifiée par l'existence de pajés/chamanes ayant de grands pouvoirs. Les Hupdah craignent donc
les pouvoirs des chamanes Hupdah d'autres groupes, ainsi que ceux des chamanes Tukano. (Athias
1995)
Na dimensão local, dos agrupamentos regionais e aglomerados, o contrário se observa.
Quando um Hupda enuncia hupd’äh”, sem nenhum qualificativo adicional, significando
apenas “gente”, está se referindo justamente a esse coletivo onde se concentram os parentes
próximos no que Reid inclui agnatos e afins próximos (Reid 1979: 104) —, e não à
totalidade da população dos Hupda, ao grupo lingüístico, conforme a divisão das unidades
socioespaciais.
Beyond his cluster of local groups, the nits of socio-spatial organisation become progressively less
significant to any Hup individual. (Reid 1979: 108)
Embora o termo “gente” seja estendido em princípio a todos os Maku (e negado aos índios do rio ou
aos brancos), é no grupo regional ou no grupo local que se pensa quando se emprega a expressão “a
gente” sem adendos e especificações. Para os Maku, os limites do sentimento de estar entre os seus
se confundem com os limites do dialeto e da região que ele ocupa. (Pozzobon 2000: 70)
As relações de sociabilidade tendem a bastar-se nessas regiões (grupos regionais ou
aglomerados), de modo que cada indivíduo adulto domina o mapa das relações. Trata-se, nas
palavras de Pozzobon, do “efetivo populacional que os adultos conseguem realmente guardar
na memória como membros da mesma comunidade de interesses e que constituem o isolado
endogâmico no qual a maior parte dos casamentos acontece” (Pozzobon 2000: 76). Nessa
esteira, segundo o mesmo autor, essas aglomerações constituem “um nexo espacial de pessoas
íntimas, entre as quais se está à vontade para as escolhas de coabitação e casamento.”
(Pozzobon 2000: 77).
Essas formações regionais dos Hupda e demais povos Maku são fundamentais para a
estruturação das descrições etnológicas, ocupando posição de relevo dentre os aspectos
morfológicos das sociedades Maku. Não retomarei toda a complexidade dessas discussões,
mas é importante ressaltar alguns pontos. Esse padrão de relações baseadas na proximidade
130
espacial inspirou Reid a formular uma hipótese a respeito da organização socioespacial,
potencialmente generalizável a todos os Maku do Noroeste.
From an observer’s point of view, it is therefore possible to conceive of Pan-Maku socio-spatial
organization in the North-West Amazon as a series of spatially discreet but socially over-lapping
regional or language groups, loosely held together at the borders of each group by sporadic but
significant fluidity between spatially contiguous settlements. (Reid 1979: 103)
Jorge Pozzobon, ao analisar os dados concernentes a cinco povos Maku Kakwa,
Hupda, Yuhupde, Dow e Nadöb — comprova a hipótese de Howard Reid sobre a distribuição
espacial pan-Maku: “...tudo indica que a divisão em grupos regionais dialetalmente distintos e
em relativo isolamento mútuo é uma característica intrínseca da organização social dos
Maku” (Pozzobon 1983: 134-35). No limite entre os grupos regionais podem ocorrer trocas
matrimoniais, mas a tendência geral ainda é a endogamia regional (Pozzobon 1983: 313).
Acerca da distribuição espacial destes grupos regionais, Pozzobon trabalha com a idéia
de “isolamento”, atributo relacionado fundamentalmente à endogamia destas formações
sociais (Pozzobon 1983: 22), que constituem “isolados matrimoniais”
103
. Ainda, “a distância
geográfica, as diferenças dialetais, as características do sistema classificatório e as diferenças
quanto ao grau de aculturação são aspectos secundários da autonomia dos grupos regionais”
(1983: 157-58). Por exames estatísticos através dos quais media a comunicação entre as
regiões com base nas trocas matrimoniais (troca de mulheres), Pozzobon formula uma
hipótese: o isolamento dos grupos regionais e sua relativa autonomia se daria em função de
uma forte tendência endogâmica, não obstante à ausência de prescrição desta nas regras de
aliança. Este seria o mecanismo básico de formação da “identidade” entre os povos Maku
(Pozzobon 1983: 167).
103
Para uma exposição mais detalhada das origens teóricas do conceito de “isolado matrimonial” relacionado à
genética e à demografia, conferir Pozzobon 1983 (305-8) e Pozzobon 1991. um aspecto a ser enfatizado em
relação aos fatores ecológicos. Mesmo no caso dos grupos regionais yuhupde e bara, separados por distâncias
consideráveis e dispersos em um território amplo, o isolamento não deve ser atribuído por pressões ecológicas,
mas por uma tendência intrínseca aos povos Maku (Pozzobon 1983: 153-4, 312). As variáveis ecológicas,
portanto, não bastam para explicar a distribuição espacial Maku (Pozzobon 1983: 157).
131
Essas discussões encaminham Pozzobon a nomear como esferas de endogamia” essa
“tendência, geral entre os Maku, de procurar seus cônjuges em espaços sociais cada vez
menos inclusivos”, tendo seu efeito mais intenso justamente nos Maku do Uaupés, onde, dada
a bilateralidade dos grupos locais, a concentração endogâmica não se basta apenas nos grupos
regionais ou aglomerados, mas no próprio grupo local muitas vezes (Pozzobon 1983: 15,
170). A busca por um cônjuge começa, portanto, pelo grupo local e a partir daí segue para as
unidades socioespaciais mais inclusivas (1983: 171), distribuindo a tendência à endogamia
numa série de círculos concêntricos.
3. Grupos locais e e grupos de fogo
[...] though all adult Hupdu know of the locations of all the local groups within their own regional
group, the names of most of the adults living there, and some aspects of their history, they tend to
suspect distant local groups of practicing sorcery against them if they have no close relative
resident there. (Reid 1979: 108)
Através desta lógica segundo a qual onde não parentes há feiticeiros, Howard Reid
descreve o “desinteresse progressivo” (Reid 1979: 108) dos Hupda à medida que suas
referências se distanciam do local de moradia. A ausência de parentes próximos residindo fora
desses círculos regionais implica a raridade (no limite, ausência) de visitas. Enfim, conforme
a conceituação proposta por Reid, a “fluidez” das aldeias hup no sentido de “mobilidade”,
conforme descrito na Introdução — é certamente intensa, mas contida na base local; o trânsito
entre grupos locais próximos tendendo fortemente à circunscrição territorial. Mesmo os
deslocamentos que ultrapassam os grupos regionais são realizados entre grupos locais
vizinhos, espécie de nebulosas formadas nas zonas limítrofes das regiões (Reid 1979: 108).
O grupo local é o “centro do sistema” (Reid 1979: 105), espaço de convivialidade
cotidiana em que uma série de atividades coletivas são contrabalanceadas com as familiares e
individuais (Reid 1979: 105; Athias 1995). Os critérios de nomeação desses coletivos em
132
geral leva em conta os igarapés da proximidade, bem como outros acidentes geográficos, e,
em alguns casos, o nome do homem de referência do grupo. Em ambos os casos compõe-se
com o termo hayám: “povoado, cidade” (Ramirez 2006). Essas possibilidades de nomeação, a
bem dizer, não são exclusivas, pelo contrário, somam-se enquanto alternativas.
Os grupos locais gravitam em alguma medida em torno de uma figura central, um
“líder”. Segundo Pozzobon, este é um homem em torno dos 40 anos que agrega no seu
entorno homens mais jovens com base na proximidade de parentesco (Pozzobon 2000: 57;
Athias 1995). Não cabe a essa figura o arbítrio dos conflitos internos, apenas a coordenação
dos afazeres coletivos e a realização de alguns rituais em seu espaço doméstico. O prestígio
entre os Hupda (e demais Maku) advém da capacidade de caçar destes homens, a qual é
consideravelmente mais elevada que a dos homens mais jovens. Essa capacidade lhe garante a
possibilidade de distribuição de seus rendimentos em um grupo local formado por vários
grupos de fogo, de forma que uma liderança não se constitui apenas em vista das relações de
parentesco, envolvendo também a generosidade (Pozzobon 2000: 65).
De qualquer forma, como salienta Pozzobon, o que “interessa registrar aqui é o viés
cognático do recrutamento de coabitantes pelo líder: reúne em torno de si, além dos agnatos
mais próximos, uma série de parentes por afinidade” (Pozzobon 2000: 57). A composição das
aldeias hup apresenta uma tendência fortemente bilateral, não obstante os Maku do Uaupés
declararem-se patrilocais, não seguindo, todavia, um padrão de residência rígido (Pozzobon
1983: 142, 183; 1991: 95).
Idealmente, portanto, os Yuhup, Hupdu e Bara se distribuem em grupos patrilocais que trocam
mulheres entre si. No entanto, tal não acontece na maioria das vezes: grande quantidade de seus
grupos locais tem uma composição bilateral, incluindo membros masculinos de clãs relacionados
tanto agnática quanto afinalmente. (Pozzoboon 1983: 183)
133
Segundo Pozzobon, a ideologia patrilocal seria a forma de resolver “a contradição
entre a patrilinearidade dos clãs e a bilateralidade dos grupos locais” (Pozzobon 1983: 183)
104
.
Os Hupda, ao seguir essa ideologia patrilocal, estariam, segundo Pozzobon, “adotando o
ponto de vista” dos índios ribeirinhos, num desejo de “fazer parte da comunidade humana
ideal” (Pozzobon 1983: 184). Em relação a este aspecto “ambíguo” dos Hupda, Reid relata
um diálogo no qual os questiona a respeito de suas regras de residência e dos desvios por ele
observados, ao que os Hupda respondem com uma série de explicações das quais o autor
deduz o seguinte: “... a rule that each co-resident hearth group was linked by close kin ties,
either through married males or females, and thus that the criterion for incorporation within
a local group was the presence of at least one other co-resident in that local group(Reid
1979: 124). Essa “regra” o próprio autor comenta que é duvidoso se isto que chamou de
uma regra não deveria ser visto como um fato garante certamente uma certa liberdade de
escolha de residência (Reid 1979: 124), desde que observe o padrão de co-residência com
todas as categorias de parentesco próximo, tanto afins como agnatos (Reid 1979: 126).
Há, basicamente, dois padrões de composição do grupo local: 1) um cerne de homens
casados agnaticamente relacionados ao qual se agrega uma variedade de homens afins (Reid
1979: 127-8) e; 2) dois grupos nucleares em posição de afinidade, trocando mulheres (Reid
1979: 128-9). Isso posto, cabe dizer que tal exposição dos dados se dá em um recorte
sincrônico, pois se levados em conta os processos de constituição dos grupos locais hup, vê-se
que passam por fases em que sua formação se aproxima do primeiro padrão e fases em que se
aproxima mais do segundo padrão, havendo passagens possíveis entre os dois (Reid 1979:
129-30), induzidas por processos de fissão e fusão freqüentes na dinâmica social dos Hupda.
A tendência mais marcada é, portanto, a de dois conjuntos de siblings masculinos afins
104
Para tanto, o autor faz uso da distinção que Lévi-Strauss propõe entre “modelo mecânico” e “modelo
estatístico” (Lévi-Strauss 1996b [1952]).
134
residirem no grupo local (Pozzobon 1983: 193). E mesmo as aldeias de composição
patrilateral são formadas mais pelo casamento entre agnatos, contradizendo as regras de
exogamia, que pela aplicação da ideologia ribeirinha
105
(Pozzobon 1991: 101). Este padrão
bilateral da composição das aldeias implica que os clãs dispersam-se nos grupos locais de um
aglomerado, embora haja a tendência dos clãs permanecerem em uma mesma região, de
forma que the boundaries of the clusters tend to coincide with the limits of those
genealogical relations within these larger clans” (Reid 1979: 131).
Uma variedade de “grupos de fogo” (tradução que Pozzobon 2000 cunhou para hearth
group) compõe os grupos locais tradicionais (de 1 a 8 famílias, conforme Reid 1979: 106).
Hup Kakaa, nome que os Hupda dão a esses pequenos coletivos, é o “centro correto da
pessoa”, composto de algumas redes dispostas em torno de uma fogueira (1979: 106;
Pozzobon 1983: 168, 1991: 25). Trata-se de uma família nuclear com algumas variações,
geralmente agregando parentes próximos (solteiro ou viúvo) do marido ou da mulher
(Pozzobon 1991: 88-9), mas sempre em torno de um único casal. A referência aos Hup Kakaa
é feita com base no nome do marido/pai acrescido de báb’d’äh, “parentes”, “familiares”
(Pozzobon 2000: 69). Um indicador importante da qualidade das relações entre dois grupos de
fogo hup é o fato de viverem sob o mesmo teto ou em proximidade em um mesmo grupo local
(Reid 1979: 137). Os membros de um grupo de fogo compartilham tudo, deliberando seu
destino e, principalmente, deslocando-se juntos, à exceção das caçadas single-sex, nas quais
apenas os homens de uma aldeia partem juntos. Considerando a pluralidade dos movimentos
espaciais hup, essa, portanto, é a unidade estável, cuja ruptura se dá somente na ocasião de
divórcios (Reid 1979: 107). Depois do casamento, o marido agrega-se brevemente ao grupo
105
Este padrão, conforme a descrição do Capítulo 1, difere fortemente dos grupos locais dos índios ribeirinhos,
de composição agnática. Entretanto, aos aglomerados hup, Reid aproxima o conceito de “campo social” (social
field), proposto por Christine Hugh-Jones (Reid 1979: 131-2), embora existam fortes contrastes na composição
interna dos aglomerados hup e dos campos sociais ribeirinhos, uma vez que a bilateralidade e a instabilidade
(“fluidez”) das aldeias hup difere de forma aguda da patrilocalidade e da estabilidade das aldeias dos índios
ribeirinhos (Reid 1979: 132).
135
de fogo da esposa e, a partir do nascimento do primeiro filho, têm a liberdade de escolher seu
local de moradia.
Vislumbra-se um potencial autárquico nessas coletividades, uma vez que podem se
desvencilhar dos grupos locais e viver independentemente, caso assim queiram ou caso sejam
impelidos a isso. Como exemplifica Reid, I knew of two single Hupdu hearth groups who
lived quite alone in their own base settlements and on occasions many other hearth groups I
knew spent periods alone in the forest, or in distant gardens of theirs (Reid 1979: 106).
Pozzobon comenta que, além de interesses econômicos, os movimentos dos grupos de fogo se
dão em função de seu ciclo de vida. Assim, dependendo do momento e de sua composição,
um grupo de fogo pode bem decidir formar um grupo local unifamiliar: “desde que haja mais
de um adulto economicamente produtivo de cada sexo ou desde que o casal tenha poucos
filhos pequenos, o grupo de fogueira constitui uma unidade econômica auto-suficiente”
(Pozzobon 1983: 231; cf. Pozzobon 1991: 110-11).
Trata-se das basic units of Hupdu socio-spatial organisation” — espécie de átomo da
sociedade hup —, cuja estabilidade e independência contrastam com a interdependência e a
instabilidade dos grupos locais (Reid 1979: 107). Athias (1995) atesta, da mesma forma, a
elementaridade do grupo de fogo, seu alto grau de independência, bem como sua mobilidade,
acrescentando que as relações de troca com os índios ribeirinhos são geralmente acordadas em
relação a um grupo de fogo.
Pozzobon (1983) coloca que a exploração dos três ambientes (aldeia hup, aldeia dos
índios ribeirinhos e acampamento de caça) pode ser feita por grupos locais inteiros, grupos de
fogo e indivíduos (Pozzobon 1983: 231), mas que os deslocamentos de grupos de fogo é
certamente o mais freqüente (Pozzobon 1983: 233-4, 1991: 88). Conflitos, acusações de
feitiçaria e envenenamento, brigas por mulheres, mortes, rixas variadas etc. podem tornar
136
insustentável a situação de um dado grupo local (Pozzobon 1983: 232). Essas ocasiões levam
a uma pluralidade de formas de dispersão (desde um período caçando na floresta, para “deixar
a raiva passar”, até fissões definitivas), mas sempre envolvendo o deslocamento dos grupos de
fogo (Pozzobon 1991: 109-10).
Pozzobon assim sumariza o potencial autárquico desses agrupamentos hup:
[...] les différents foyers d’un village peuvent être dispersés dans les trois [ambientes], sans qu’une
action coordonnée les rassemble: chaque foyer a ses propres jardins; chaque mère produit ses
propres pains plats, les randonnée jounalières dans la forêt impliquent plutôt la dispersion des
hommes que leur coopération. Le foyer peut devenir une équipe indépendante de production. Le
couple peut même décider de constituer un village autonome. (Pozzobon 1991 : 90)
Dentre os fatores que condicionam a “fluidez” entre os grupos locais hup, as visitas e
as brigas figuram entre os mais comuns, ambas as ocasiões gravitam em torno das festas
(Reid 1979: 132). Parentes próximos costumam se visitar com grande freqüência, em geral
um grupo de fogo vai ao encontro dos parentes do homem ou da mulher, podendo levar
consigo outro(s) grupo(s) de sua aldeia, o que o exclui a possibilidade, de rara ocorrência,
da totalidade de um grupo local visitar outro. O tempo de estadia varia desde poucos dias até
vários meses (Reid 1979: 132).
A aproximação entre visitantes e anfitriões é marcada por tensões, sendo mediada por
uma série de diálogos formalizados e trocas. Segue a descrição de Howard Reid:
They are also formally greeted by all the hosts in turn, who enquire of each visitor if he has
arrived, and are answered by “yes, I have arrived; are you here?” to which the host replies that he
or she is here. The guests are given stools and served with cassava and pimienta in silence. The
same procedure is followed when the women arrive, but they sit on the floor rather than on stools.
The tense silence is broken by an elderly woman guest delivering a loud, almost angry speech,
accompanied by arm-waving gestures and ended by the presentation of gifts of smoked fish or
game by the guests to the hosts. Sometimes the harangue of the old guest is answered by an
equally forceful speech from a senior female host. The formalities ended and guests begin to
mingle informally and to swap news and gossip. The atmosphere in the settlement remains excited
and slightly tense for another day or so, but within a couple of days all people present are acting
completely informally with one another, as though they had been living together for years. (Reid
1979: 133)
No decorrer das festas, com fartura de carne de caça, pesca, frutas silvestres, ipadu e
caxiri, os Hupda, sujeitos cotidianamente plácidos, se alteram, operando o que Stolze Lima
137
descreveu no caso dos Yudjá como a troca da discrição e do comedimento pelo riso e pela
desmedida” (2006: 219). Tais ocasiões serviriam como “emotional release”, no dizer de Reid,
das tensões cotidianas da vida em comunidade (Reid 1979: 135).
By midday the house is a bedlam of drunken people shouting, laughing, embracing each other,
falling about, vomiting, pissing and passing out. Occasionally an old man stands up and shrieks
ritual abuse at a sister or brother, and the latter replies equally forcefully, then the couple collapse
in giggles in a hammock together! Wives never dance with their husbands at parties, and the
women’s choice of partners seems to hint at a desire for a liaison. (Reid 1979: 135)
Um informante de Reid resumiu de maneira perspicaz: “at parties we dance, get
drunk, fuck other people’s wives, then fight to pay for the adultery(Reid 1979: 135). Por
vezes, brigas violentas podem surgir nessas ocasiões, já, em outras, as relações podem se
estabilizar de tal forma que levam à fusão de novos grupos de fogo ao coletivo local (Reid
1979 136-7). Reid coloca, assim, que as festas funcionam como uma espécie de barômetro das
relações entre os participantes (Reid 1979: 137). Na ocasião de conflitos, o resultado é a
mobilidade espacial. Foco, por excelência, das relações consangüíneas, é o grupo de fogo que
escoa para a floresta quando a potência da afinidade se atualiza no interior dos grupos locais,
marcando as cisões e conflitos: pondo os Hupda em movimento.
* * *
Entre os dois tipos de dados trabalhados neste capítulo, os conceitos dos Hupda e os
dos etnógrafos sobre a distribuição socioespacial dos Hupda, um cruzamento. Enquanto as
conceituações dos etnólogos têm como objetivo definir em que nível socioespacial os Hupda
podem ser considerados um grupo por exemplo, o grupo regional como a unidade de
análise, como o espaço de realização da identidade, do “isolado matrimonial”, tal qual propõe
Pozzobon —, depreendem-se das idéias indígenas os conceitos de feitiçaria e de parentesco
138
espacialmente equacionados
106
. Ao que parece, o dualismo concêntrico que caracteriza o
pensamento hup, epitomizado nas figuras do parente (próximo) e do feiticeiro (distante),
projeta-se em diferentes níveis de inclusividade das unidades socioespaciais definidas pelos
antropólogos. Assim, através da caracterização que um Hupda faz dos Maku distantes, dos
habitantes de um grupo regional distante, dos habitantes de um grupo local em que não tem
parentes e dos feiticeiros de seu próprio grupo local (o que leva a fissões, como descrito
acima), infere-se que:
parentes : feiticeiros :: Hupda : Maku distante
:: região oriental : região ocidental (grupo lingüístico)
:: grupo local x : grupo local y (grupo regional)
:: grupo de fogo x : grupo de fogo y (grupo local)
Entretanto, esta isomorfia da composição de parentes e feiticeiros nos diversos níveis
de organização socioespacial não pode subsumir uma questão de ênfase, de predominância.
Neste ponto, remete-se ao processo do parentesco que tem como condição a afinidade
potencial, descrito no Capítulo 3, na medida em que no interior do grupo local o princípio da
consangüinidade é dominante e no exterior a afinidade rege as relações (Viveiros de Castro
2001: 22-4). As relações com os Maku distantes (figuras não-humanas), os Tukano (patrões,
que por vezes tomam a forma de não-humanos, b’atìb’d’äh), os Hupda distantes (perigosos
feiticeiros) são regidas pelo princípio da afinidade, enquanto no domínio local os processos de
consangüinização eclipsam este potencial da afinidade, como visto no caso dos casamentos
interlingüísticos com os Yuhupde, fazendo-os mais próximos que os Hupda distantes.
Todavia, dada a relação hierárquica entre afinidade e consangüinidade que implica o
englobamento do interior pelo exterior, vê-se que esta interioridade nunca é terminada, a
106
Cabe um comentário a respeito de aspectos lingüísticos que podem guardar relação com estas observações.
Na língua hup, o termo tíhfunciona: 1) como pronome pessoal da pessoa do singular (ele, ela) e 2) como o
verbo intransitivo “mentir, fingir” (Ramirez 2006: 172). Disto se deduz, portanto, que se trata de uma língua na
qual falar de um terceiro (alguém que não está presente, neste sentido, distante) bem como a fala de um terceiro,
pressupõe mentira, fingimento. Trata-se, portanto, de uma língua estruturalmente fofoqueira e desconfiada em
relação à distância.
139
identidade nunca se fecha por inteiro, de modo que o exterior é imanente ao interior (Viveiros
de Castro 2001: 27). A afinidade pode, portanto, irromper no interior do grupo local, o que
ocorre, principalmente, nas festas com consumo de caxiri, os “barômetros” (para usar uma
expressão de Reid) da vida comunitária hup. O resultado destes momentos de manifestação
das fraturas dos grupos locais é, como visto acima, justamente a mobilidade espacial dos
grupos de fogo: bolsões de consangüinidade mais estáveis, que escoam para a floresta quando
a afinidade se atualiza no interior do grupo local para, como afirma Pozzobon, “deixar a
raiva passar”.
Em relação aos modos de grupificação dos Hupda propostos pelos etnógrafos, estes se
depararam com uma certa ineficácia das regras, das prescrições, na medida em que os Hupda
declaram-se patrilatlocars, mas praticam a bilateralidade na composição dos grupos locais. Os
etnógrafos, assim, passam a definir a estrutura da sociedade hup por tendências, dada a não
funcionalidade das prescrições. Diante da bilateralidade dos grupos locais hup, a despeito de
sua declaração como patrilocais, Howard Reid (1979) propõe uma regra alternativa, a qual, na
verdade, o autor define a meio caminho entre uma formulação de direito e de fato, enquanto
Pozzobon (1983) define a estrutura da sociedade hup, a partir da hipótese de Reid (1979)
sobre a organização social pan-Maku, como fundada em “isolados matrimoniais”, nos quais
uma tendência à endogamia (e não sua prescrição) estruturaria os Hupda e demais Maku do
Uaupés em “esferas endogâmicas”.
Nesta passagem da prescrição à tendência, a estrutura social é definida, assim, com
base no sistema de comportamento, abrindo espaço para as caracterizações dos Hupda como
“fluidos”, considerando que seu comportamento desvia do sistema de regras, opondo-os, de
certa forma, aos Tukano que apresentam, comparativamente aos Hupda, uma maior coerência
entre regras e comportamento. Conforme Hornborg (1986), tais distinções entre sociedades
mais e menos observantes de suas regras, sistemas prescritivos ou preferenciais, para colocar
140
em termos técnicos, são vertidas quando a discussão sobre a organização social e parentesco
dos “povos sem Estado passa do plano lógico dos sistemas de classificação questões
acerca da consistência interna dos sistemas para o plano sociológico do comportamento
problemas quanto à adesão estatística às regras (Hornborg 1986: 27-8).
Há, como pode se observar, um paralelismo na conclusão deste capítulo que apresenta
duas respostas possíveis à questão apresentada na introdução, lembrando: o que estrutura,
então, as relações socioespaciais dos Hupda? Por um lado, os etnógrafos, principalmente,
Jorge Pozzobon (1983, 1991), que partem da evidência da desconexão entre o sistema dos
grupos de descendência e o sistema da distribuição socioespacial e definem a estrutura social
dos Hupda colocando em primeiro plano o sistema de parentesco (“esferas endogâmicas”),
definindo-o por suas tendências à endogamia local. Por outro lado, seguindo as pistas
deixadas pelos próprios etnógrafos a progressão do poder místico no espaço horizontal
(Reid 1979) associada à equação da distância ontológica (Pozzobon 1991) —, uma
perspectiva que parte do dualismo concêntrico que caracteriza o pensamento hup e o associa à
teoria do processo do parentesco e da afinidade potencial, que, conforme argumentado na
Introdução da dissertação, coloca em primeiro plano o tema cosmológico da diferença e seus
modos de atualização possíveis.
141
CAPÍTULO 5
O consangüíneo e o afim
Finalizando a função retrospectiva desta dissertação, neste capítulo são descritos o
sistema clânico (primeiro tópico) e a terminologia de parentesco (segundo tópico) dos Hupda,
oscilando entre os conceitos de clã e de kindred na definição das estruturas sociais e de
parentesco, traçando, assim, o segundo modo de grupificação dos Hupda comentado na
Introdução e no Capítulo 4
107
. Mediante a realização da passagem conceitual descrita na
conclusão do capítulo anterior, das prescrições das regras às tendências comportamentais, o
tema da “fluidez” surge com força total nas discussões sobre o sistema de parentesco.
O autor que desenvolveu mais profundamente o tema do parentesco entre os povos
Maku, mais especificamente os Maku do Uaupés, e, conseqüentemente, os Hupda, desde uma
perspectiva comparativa, foi Jorge Pozzobon (1983, 1991 2000). A relativa ausência de dados
cosmológicos e mitológicos em sua obra à exceção dos mitos de criação dos clãs que são
fundamentais para seu argumento tem uma espécie de contrapartida nesta ênfase,
revelando desde a epistemologia que guiava seus trabalhos e que terá desdobramentos mais
agudos em seus últimos escritos. A trajetória intelectual de Jorge Pozzobon estabelece a linha
mestra através da qual examino as oscilações de conceituação da estrutura social hup,
variando desde conceitos sociocêntricos, como “clã”, até conceitos propriamente
egocêntricos, como o kindred”. Partindo, em sua dissertação de mestrado (1983), da
evidência das diferenças da estrutura social dos povos Maku do Uaupés quando comparados
107
Da mesma forma que os capítulos 3 e 4, este capítulo não poderia deixar de ser uma mera glosa do que foi
exposto de maneira mais complexa e aprofundada pelos etnógrafos em suas monografias. Para os que conhecem
a bibliografia, soará algo repetitivo, salvo, ao final, as descrições de um trabalho inédito de Jorge Pozzobon
(2000).
142
aos Tukano e Arawak da mesma região, a despeito de uma mesma teoria nativa de sociedade
pan-uaupesina, Pozzobon desenvolve sua trajetória acadêmica em busca de um modelo que
melhor informasse as particularidades dos Maku.
Em seu último trabalho, “Sociedade e improviso: estudo sobre a (des)estrutura social
dos índios Maku” (2000), Pozzobon chega a algumas conclusões a respeito da estrutura social
dos Maku que articula dois modelos de sociedade, os quais foram introduzidos no início da
dissertação e serão expostos com mais detalhe no terceiro tópico deste capítulo. Ressalto, de
antemão, as seguintes operações mediante as quais Pozzobon propõe o entendimento das
estruturas sociais destes povos: I- desqualificação da validade do sistema de exogamia
patrilinear baseado nos clãs, o qual seria fruto de uma ideologia alheia a esses povos que a
adotam por sua condição de inferioridade no sistema regional; II- conseqüentemente,
definindo-os, na prática, como sistemas cognáticos.
Se no capítulo anterior foi apresentada a questão do dualismo concêntrico, neste, o
dualismo diametral ocupa o centro das atenções. Nos dados a respeito da estrutura social dos
Hupda, é possível observar o cruzamento do dualismo diametral consangüíneo/afim, na
terminologia de parentesco; agnato/afim, no sistema clânico pelo dualismo concêntrico
próximo/distante. Este cruzamento é explicitado no termo que designa a proximidade de
parentesco entre os Hupda e refere-se primordialmente à preferência de casamento no interior
da parentela cognática. Tal cruzamento dos dualismos terá implicações na formulação da
dualidade de modelos de sociedade nos Maku do Uaupés proposta por Pozzobon (2000).
143
1. O sistema clânico
Convencionou-se, desde o trabalho de Silverwood-Cope sobre os Kakwa (1990
[1972]), em conceituar como “clã” as unidades exogâmicas básicas da estrutura social dos
Maku do Uaupés. Operando, desta forma, uma separação terminológica entre os “sibs”
Tukano, tal qual proposto pelos etnógrafos destas populações, conceito que teria pertinência
em relação ao ideal de fraternidade ligado ao padrão de residência dos povos do rio, e os
“clãs” dos povos da floresta, cujo padrão de distribuição territorial não marca tão fortemente a
coabitação dos germanos de sexo masculino (Reid 1979: 109; Pozzobon 1983: 243; Athias
1995), sendo essa uma das possibilidades, dentre outras, de configuração do grupo local
108
.
[...] the unilineal descent groups are called lineages and clans, the distinction between the two
being purely a formal one. A lineage is usually taken to be a group of people who trace descent
unilineally from a common ancestor through a series of links which can be enumerated; clan is a
group based on the same principle but its members only presume to be descended from a common
ancestor, whom they usually consider to be so remote that they are not able to stipulate the precise
genealogical links through which they are descended from him. (Holy 1996: 75)
Se levarmos em conta estes comentários de Holy (1996) sobre a distinção formal entre
“linhagem” e “clã”, o conceito de “clã”, no caso dos Hupda, soa mais pertinente devido ao
caráter mais mítico que genealógico de sua descendência. Destarte, a conexão dos vivos com
os Hib’áh Thd’äh não pode ser traçada genealogicamente; ademais a profundidade da
memória genealógica dos Hupda geralmente não ultrapassa duas gerações ascendentes
(Pozzobon 1983: 269; 1991: 119). Entre os Hupda não há termo especificamente para “clã”
(Pozzobon 1991: 119), de modo que essas instituições são designadas pela junção de um
substantivo com o termo Th (filho), exemplo: Mohòy-K’eg-Th ou Mohòy-K’eg-Thd’äh
(plural), que são os filhos (descendentes) do osso do veado.
108
Sobre estas convenções a respeito dos conceitos de “clã” e de “sibs”, Stephen Hugh-Jones nota o seguinte:
The terms clan or sib could be used interchangeably in this context. However, as sib has become deeply
embedded in the ethnographic literature on NW Amazonia. I use it in preference to clan” (1993: 117).
144
Conforme Howard Reid, ao todo existem mais de 25 clãs hup, os maiores dos quais
distribuídos entre os três grupos regionais, outros de menor porte concentrados em uma região
específica, numa média de 6 clãs por grupo regional, variando de 1 a 200 indivíduos por clã
(Pozzobon 1983: 120; Athias 1995 corrobora a estatística do mínimo de 25 clãs entre os
Hupda). Cada um desses grupos exogâmicos patrilineares está ligado a um ancestral mítico
fundador, os Hib’áh Thd’äh, “filhos do nascimento”, os quais foram criados por K’èg-Th e
habitam o mundo das pessoas-alma no nível superior do cosmos (Reid 1979: 109). Além
dessa ancestralidade mítica, um clã é definido também por um conjunto de mitos, cantos e
flautas de Jurupari, além de uma lista de nomes masculinos e femininos, os bi’íd hàt ou hup
hàt, os quais, segundo alguns etnógrafos, são atribuídos pela ordem de nascimento (Reid
1979; Athias 1995), embora, conforme a descrição de Pozzobon (2000) logo abaixo, a ordem
de nascimento não é o que define a atribuição do nome. A transmissão dessas propriedades
clânicas é realizada por meio de um ritual chamado Th bi’íd. Seguem as descrições de Athias
e Pozzobon desse ritual:
Avoir un [biin hat] c'est donc appartenir au clan, jouir de certains droits et avoir accès à l'ensemble
des connaissances propres à ce clan. Le nom, c'est le souffle de vie, le souffle de l'ancêtre commun,
de celui qui a fondé le clan. Lors de la cérémonie, l'enfant se tient au côté de l'homme de référence
le plus âgé du clan ou bien du grand-père paternel, quand celui-ci est encore en vie. Cet homme,
qui serre entre ses mains une sorte de petite calebasse (cuia) pleine d'eau, récite le mythe d'origine
du clan durant des heures. Quelques personnes assistent à la cérémonie et parlent entre elles. De
temps en temps, l'homme à la cuia arrête son récit pour le commenter ou bien annoncer où et de qui
il l'a appris. Lorsqu'un autre vieillard est présent, le conteur lui passe la cuia et, par la même
occasion, la parole. Le nouveau conteur peut continuer le récit du premier ou bien en commencer
un autre. La bouche du conteur est toujours dirigée vers la calebasse. (Athias 1995)
A exemplo dos clãs ribeirinhos, os clãs Maku reivindicam um corpo de mitos de origem e um
conjunto de nomes próprios. A incorporação formal de um recém nascido no clã de seu pai se opera
através da cerimônia teh mbiidn, escolha do nome (em Hupdu). Um membro mais velho do clã
toma o alucinógeno kahpi (banisteriopsis caapi) e vai ter com os hibah tehdu, os ancestrais, a fim
de encontrar um biidn hat, um nome, para a criança. Escolhido o nome no repertório de nomes
clânicos, o oficiante o “sopra” na criança. Tudo isso é bastante semelhante ao que ocorre entre os
Tukano, na cerimônia do bahsu kewamesopro do nome. Tal como os Tukano, os Maku declaram
que cada clã tem o seu próprio conjunto de nomes. Sendo assim, o simples enunciado do nome
deveria imediatamente identificar um indivíduo qualquer com o seu grupo de filiação, fornecendo
com isto seu status matrimonial (se afim ou agnato de ego). Porém, os nomes Maku flutuam entre
vários clãs: numa amostra de 84 nomes Hupdu, 55 eram exclusivos a determinados clãs e 25 eram
comuns a diversos clãs, inclusive aos ligados por laços de afinidade. (Pozzobon 2000: 42)
145
A descendência hup é, portanto, a traçada patrilinearmente e constitui-se
primordialmente de aspectos simbólicos. Conforme as descrições do Capítulo 3, os clãs são a
condição para a potência da alma e conectam-se com o nível superior do cosmos,
principalmente através da realização de rituais. Logo, suas propriedades são eminentemente
simbólicas, não dizendo respeito a territórios específicos, “de modo que não identificação
entre um clã e um grupo local” (Pozzobon 1983: 108; conferir Pozzobon 1991: 120; Reid
1979: 110; Athias 1995), o que remete ao padrão de dispersão clânica tratado no Capítulo 4,
embora haja a tendência (não a prescrição, mais uma vez) dos clãs menores de concentrarem-
se em um grupo regional. Os clãs hup, portanto, não têm relação mítica com algum lugar em
específico. Renato Athias (1995) comente que parte dos conhecimentos de cada clã é
justamente os mitos que transcorrem em espaços na terra hup, mas esse conhecimento
mitológico sobre espaços específicos não se converte na propriedade desses lugares.
Segundo Howard Reid, os Hupda contam dois mitos sobre a origem dos clãs. O
primeiro, à semelhança do mito da cobra-canoa comum a diversos povos do Uaupés, traz mais
explicitamente o princípio da descendência ao distribuir os clãs nas posições relativas de
“irmão mais velho” e “irmão mais novo
109
(Reid 1979: 111). Uma segunda versão mítica
coloca o princípio da aliança em primeiro plano, versando sobre dois casais de siblings de
sexo oposto criados por K’èg-Th, os quais, ao trocarem mulheres (irmãs), instituíram uma
relação de afinidade, originando os dois primeiros clãs (Reid 1979: 112). Por dedução,
imagina-se que a partir desta relação clânica originária segmentaram-se os múltiplos clãs
(Pozzobon 1983: 269-71, cf. Pozzobon 1991: 121-2).
A proposta de Howard Reid de cruzar esses temas míticos como chave para a
compreensão da estrutura social hup foi posteriormente aprofundada por Jorge Pozzobon
109
As relações hierárquicas entre os clãs hup (ou a ausência delas) serão expostas mais detalhadamente logo a
seguir.
146
(1983, 1991 e 2000), que generaliza suas conclusões aos povos Maku do Uaupés. Ambos os
autores encontram neste cruzamento mítico do princípio da aliança
110
com o princípio da
descendência presente no mito da cobra-canoa o caminho para o entendimento das
diferenças na estrutura social hup quando comparada a de seus vizinhos Tukano e Arawak.
Segundo Reid, é precisamente na conjunção desses dois princípios que se forma a estrutura
atual do sistema clânico hup (1979: 112). Uma série de desdobramentos parte daí, sendo os
mais importantes para as presentes considerações: a dispersão clânica (em oposição à
unilocalidade dos sibs Tukano) e a forte tendência igualitária (em oposição à hierarquia ritual
enfatizada pelos Tukano).
A totalidade dos clãs está distribuída em dois conjuntos exogâmicos aliança
dentro dos quais os clãs estão ordenados por relações agnáticas descendência —, de modo
que um membro de um clã deve casar com qualquer outro membro de um clã do lado
oposto
111
(Pozzobon 1983: 261). Conforme Pozzobon (1991), esses conjuntos recebem os
nomes de Sokwätd’äh e Wihahd’äh, que designam, na língua hup, dois grandes grupos de
índios do rio da região do Uaupés, respectivamente, os Tukano (o grupo exogâmico, e não a
família lingüística) e os Desana, entre os quais existe uma estreita relação de matrimônio
baseada no princípio da exogamia lingüística (Pozzobon 1991: 122). Formalmente, uma
dinâmica interessante entre dentro e fora que se coloca aqui. Considerando que os casamentos
entre os índios do rio na região, condizendo com o ideal de exogamia entre grupos
lingüisticamente diferenciados, são preponderantemente realizados entre Tukano e Desana, os
Hupda dobram esse sistema de exogamia lingüística para o interior de seu grupo lingüístico,
110
Pozzobon opõe o “princípio dualista” da mitologia dos Maku do Uaupés ao “princípio tripartido” presente na
narrativa dos Tukano sobre as três cobras. Pozzobon baseia-se nos relatos dos Barasana contidos em From the
Milk River” de C. Hugh-Jones (1979) (Pozzobon 1983: 270-1).
111
O mesmo arranjo de duas séries exogâmicas de clãs agnaticamente relacionados no interior de cada série é
constatado entre os Kakwa e os Yuhupde (Pozzobon 1983: 108, 259). Entretanto, conforme as análises de
Pozzobon, nesses dois povos, uma tendência à inoperância das “metades”, degenerando para um estado de
“pan-mixia” clânica.
147
de forma a distribuir-se em duas séries de clãs agnaticamente relacionados, sendo que cada
série de clãs está relacionada por afinidade à outra.
Os Hupda, assim, dobram uma diferença exterior a eles para o seu interior, fazendo a
passagem do sistema uaupesino de exogamia lingüística para o interior de seu sistema
linguisticamente endogâmico. O interessante é que esta passagem o é desprovida de
mediação, sendo alguns aspectos do sistema alterados, em particular seu caráter hierárquico.
Penso que, em relação ao sistema uaupesino, os Hupda guardam principalmente o caráter de
método de distribuição de pessoas em relação de matrimônio potencial
112
, deixando o
princípio hierárquico em segundo plano, uma vez que, como é consenso entre os etnógrafos,
não consenso entre os Hupda acerca da hierarquia clânica e nem sequer interesse em fixar
as relações desta forma. Os Hupda tendem a colocar a si e a seus vizinhos no topo, o que,
entretanto, não é um tema ao qual costumam dedicar suas energias
113
(Reid 1979: 112;
Pozzobon 1983: 272; 1991: 135-6; Athias 1995).
Diferentemente dos índios ribeirinhos, esse princípio hierárquico enfraquecido não é,
nas palavras de Pozzobon, “espacialmente legível: os clãs relacionados como seniors e juniors
no mesmo grupo exogâmico de clãs não ocupam, respectivamente, as áreas a jusante e a
montante dos riachos em cujas margens existem os grupos locais Maku” (Pozzobon 1983:
272). A dispersão clânica percorre os vários níveis de organização socioespacial (Pozzobon
1983: 265-6).
112
Nas palavras de Jorge Pozzobon: “a única função realmente observável da ‘estrutura social’ dos Maku é a de
distribuir mulheres segundo elas sejam casáveis ou não” (Pozzobon 1983: 298); “La seule fonction de la
dichotomie des clans chez les Maku semble être l’établissement d’une règle assez simple d’exogamie: les affins
des affins sont des agnats” (Pozzobon 1991: 127).
113
O que, por um lado, os aproxima dos Tukano, pois, como vimos no segundo pico do Capítulo 1, entre os
Tukano a ordem hierárquica dos sibs também é controversa, mas, por outro, os diferencia, justamente porque a
controvérsia sobre os ordenamentos hierárquicos parece render entre os Tukano, enquanto, entre os Hupda, não
desperta muita atenção.
148
... os grupos locais Maku freqüentemente são porções isomórficas ao ‘campo socialde que fazem
parte: dada a sua bilateralidade, clãs dos dois grupos exogâmicos em cada grupo local Maku.
(Pozzobon 1983: 267)
... os Maku da área do Uaupés se organizam segundo um sistema de metades exogâmicas
patrilineares não nomeadas cujos clãs são dispersos em todos os níveis sócio-espaciais, desde o
grupo local até o grupo lingüístico. (Pozzobon 1983: 269)
Esse caráter fractal da distribuição dos clãs hup no espaço, na medida em que
independentemente da escala (grupo local, grupo regional ou grupo lingüístico) a mesma
estrutura tende a se repetir, contrasta fortemente com o padrão de distribuição dos índios do
rio, no qual as unidades exogâmicas tendem a ocupar cada qual um ponto do território na
distribuição da série hierárquica ao longo dos rios (Pozzobon 1983: 267, 294-5).
Há, segundo os etnógrafos, uma certa “fluidez” neste modelo formal da sociedade hup
dividido em duas metades. Nas descrições de Reid (1979) e Pozzobon (1983), os Hupda, a
bem dizer, sequer teriam nomes para esses dois grandes grupos exógamos, os quais
apresentariam um grau baixíssimo de coesão, nos termos de Reid, não implicando, na prática,
qualquer importância na vida social (1979: 112). Pozzobon (1991) constrói um esquema mais
formal, baseado em dados de sua pesquisa de campo em 1989 com o grupo regional ocidental,
no qual os Hupda informam os nomes de Sokwätd’äh e Wihahd’äh para as séries exogâmicas
hup. Mas, em consonância com as descrições de Reid, Pozzobon corrobora a baixa
produtividade social desses grupos ao afirmar que não devem ser confundidos com as metades
que estruturam as sociedades dualistas do Brasil Central
114
:
Tais regras levam facilmente o observador a postular a existência de um modelo de duas seções
exogâmicas patrilineares intercasáveis. Porém, as expressões cosmológicas e morais de tal modelo,
tão comuns nas sociedades dualistas, não se encontram em parte alguma do discurso Maku.
(Pozzobon 2000: 8; cf. Pozzobon 1991: 125).
Nesta dissertação, faço um uso esquemático e um tanto arbitrário dessas descrições, no
sentido de compor um quadro geral da etnografia dos Hupda. Essa “fluidez e “falta de
114
Athias comenta algo neste sentido: Il existe une partition de l'ensemble des clans en deux groupes
exogamiques. Il n'existe pas de relation de moitiés, comme c'est le cas dans d'autres groupes” (Athias 1995).
149
preocupação” com que os Hupda e demais Maku do Uaupés estruturam suas hierarquias
interclânicas é, para Pozzobon, justamente sinal de que os povos da floresta haveriam tomado
estas instituições de empréstimo dos povos do rio: “Tendo tomado de empréstimo a idéia
dessa hierarquia, os Maku tentam efetivá-la em agrupamentos sociais de natureza diferente
dos grupos ribeirinhos para os quais ela é válida, daí a falta de acordo sobre a hierarquia”
(Pozzobon 1983: 273; 1991: 135). Essa observação de Pozzobon funda-se em uma dicotomia
entre infra- e superestrutura, opondo o estrutural-sociológico ao ideal-cosmológico, o que tem
fortes implicações epistemológicas em seus trabalhos posteriores.
A posição de um determinado clã e suas relações de agnatismo ou afinidade com os
demais podem se transformar. Conseqüentemente à migração de parte de um clã de um grupo
regional para outro (evento, por sinal, raro
115
) pode-se acarretar um processo de segmentação
em que a nova parte apenas muda de nome, mantendo, todavia, relação agnática com o clã
original. Em outros casos de migração do mesmo tipo, a possibilidade de que o novo clã
mude sua posição nas “metades” hup, tornando-se afim de seus antigos agnatos e agnato de
seus afins anteriores (Reid 1979: 113-115). Esse é o caso descrito por Howard Reid (1979)
sobre o clã Men, cujas conseqüências lógicas para o funcionamento da estrutura social dos
Maku do Uaupés foram aprofundadas por Pozzobon (1983 e 1991). Esse clã originou-se de
uma segmentação do clã Sokw’
ä
t-Noh-K’öd-Th, a qual migrou da região ocidental para a
região central (Reid 1979; Pozzobon 1983: 289; Pozzobon 1991: 137). Nesse deslocamento, o
novo clã (Men) transformou sua posição anterior na divisão clânica hup, tornando-se afim de
seus antigos agnatos e agnato de seus antigos afins, invertendo o estatuto matrimonial de
outrora.
115
Para que fique bem entendida essa forma de mobilidade espacial, cito Pozzobon: “[...] esses movimentos
inter-regionais são a exceção de uma regra [...] o fato de envolverem os membros de um clã não significa que o
clã tenha funcionado corporativamente quanto à mobilidade espacial, pois os clãs que se fissionam envolvem
várias patrilinhagens, sendo apenas umas poucas, quando não, apenas uma dessas patrilinhagens que se muda de
região e constitui um novo clã” (Pozzobon 1983: 263).
150
Quando do trabalho de campo de Reid, essa transformação havia se dado há um
tempo, de modo que os Hupda apenas especulavam o que poderia ter motivado essa troca de
posição no sistema de relações agnáticas e afins entre os clãs. Segundo a especulação de um
informante de Reid, a causa dessa transformação seria um excedente de mulheres casáveis em
um clã que anteriormente se relacionava por agnação aos recém-chegados na região central
(Reid 1979: 114). Pozzobon, retornando à região cerca de 15 anos depois de Reid, comenta
que os membros do clã Men optaram por retomar seu antigo nome clânico, Sokw’
ä
t-Noh-
K’öd-Th, sem, todavia, alterar sua nova posição no sistema de metades adotada depois da
migração para a região central (Pozzobon 1991: 137). Tal ocasião possibilita visualizar a
relativa independência dos grupos regionais tratada no Capítulo 4, uma vez que aponta a
possibilidade de arranjos locais do sistema de metades. Segundo Pozzobon: “[n]on seulement
les mariages, les déménagements de foyers et les déplacements de villages tendent à avoir
lieu dans les limites régionales, mais chaque région présente également sa version plus ou
moins modifiée du système de moitiés” (Pozzobon 1991: 139).
A partir destas especulações dos Hupda acerca dos motivos para a transformação da
posição do clã Men, depreende-se uma lógica em que o excedente de mulheres agnatas em
uma dada região faz com que uma parcela de um clã transforme-se em afim, mudando sua
posição no sistema global. Um pensamento através do qual as relações (de aliança)
constituem os termos e suas posições (de descendência). Além do mais, acredito que nesses
processos de deslocamento regional de parcelas clânicas e as transformações em sua posição
na estrutura social o que é descrito por Reid como a good example of the essencialy
flexible nature of the Hupdu social structure (1979: 114) estão relacionadas à dinâmica
do dualismo concêntrico ameríndio, em que a distância espacial é o meio por excelência da
performação e da articulação criativa das regras, na qual o “‘jogo’ das regras é parte das
151
regras do jogo” (Viveiros de Castro 1993: 170). Sobre essa transitoriedade das posições na
ordem global das duas séries exogâmicas, Reid conclui que a dinâmica prática do sistema
clânico hup tende a contrariar a formação de unidades políticas de grande escala, devido às
suas disposições recalcitrantes em relação a unidades sociais mais inclusivas (Reid 1979:
116).
2. O sistema de classificação de parentesco
Formalmente, a terminologia de parentesco hup é idêntica a dos demais povos do
Uaupés
116
. De tipo dravidiano, a terminologia estrutura-se por uma lógica de bipartição, ou
“bifurcação assimilante”, em que o conjunto de parentes divide-se em paralelos e cruzados,
tendo, no caso dos Hupda, a filiação patrilinear como o fio condutor desta divisão (Reid 1979:
117; Pozzobon 1991: 108, 127; Athias 1995). Como observa Reid, essa divisão terminológica
é consistente com o sistema de descendência clânica, fundado em uma lógica unilinear (Reid
1979: 117). Quanto às regras de casamento, considerando o sistema de exogamia clânica e
endogamia lingüística, os primos paralelos são classificados conjuntamente, não podendo
casar entre si (Pozzobon 1983: 108). Os indivíduos são distinguidos por geração, gênero e
relação de afinidade ou agnatismo em relação a ego (Reid 1979: 117. Algumas variações
importantes se fazem presentes, como na geração -2, na qual não distinção entre afins ou
agnatos e entre masculino ou feminino, enquanto na geração +2 não distinção entre afins e
agnatos, embora a terminologia diferencie quanto ao gênero (Reid 1979: 117). Nas gerações
imediatamente ascendente e descendente de ego, as diferenciações são feitas em relação ao
gênero e à posição de agnato ou afim.
116
Segundo Pozzobon, “[a]s únicas diferenças sensíveis com relação à terminologia Dahséa são: (1) a não
distinção de afinidade entre o pai do pai e o pai da mãe, que entre os Maku recebem apenas um termo, e (2) a
não distinção do gênero dos netos, que também recebem apenas um termo.” (Pozzobon 2000)
152
Na geração de ego são feitas distinções também de gênero, bem como quanto à relação
de agnatismo ou afinidade, acrescentando-se diferenciações relativas à ordem de nascimento
dos siblings, sejam homens ou mulheres (Reid 1979: 117). Dentre os siblings diferenciados
dessa forma, constam tanto siblings reais (B, Z) como os primos paralelos em primeiro grau
(FBS, FBD) (Reid 1979: 118). Além desse círculo mais próximo de parentesco, as distinções
de idade entre primos são estabelecidas com base na posição relativa de seus pais na ordem de
nascimento, e, em relação a membros de clãs diferentes, a terminologia, idealmente (como
frisa Reid), reflete a posição do clã na ordem hierárquica (Reid 1979: 117).
O termo báb’ designa a relação de parentesco em geral, significando, segundo
Ramirez, “parente (da mesma cultura)” ou “irmão” (Ramirez 2006: 33). Em relação a esse
segundo significado, Reid acrescenta que os irmãos podem também chamar-se de báb’,
designando os irmãos classificatórios, ou báb’ miníg, referindo-se aos irmãos reais
117
(Reid
1979: 117; cf. Pozzobon 1991: 133). O adjetivo miníg é o indicador da proximidade
genealógica de um parente, tanto agnato, como no caso dos irmãos que Reid comenta, como
afim, uma vez que os Hupda preferem casar com suas mehin miníg, as mulheres afins da sua
geração genealogicamente próximas (Pozzobon 1991: 133).
Para a geração de ego, portanto, soma-se um total de seis termos: um masculino para
homens agnatos mais velhos, um para os mais moços, um para as mulheres agnatas mais
velhas e um para as mais moças; e aos afins apenas dois termos, um para homem, outro para
mulher, considerando que não se diferenciam segundo a ordem de nascimento (Pozzobon
1983: 275). A abrangência destes termos se estende a todos os graus de primos paralelos
coclânicos, e, no limite, a todos os clãs agnaticamente relacionados ao de ego. O mesmo vale
para os afins, incluindo todos os graus de primos e primas cruzados bilaterais, bem como a
117
O sentido de miníg, já exposto no Capítulo 3 em relação aos mitos, significa “reto, direito” (Ramirez 2006:
107).
153
todos os clãs afins ao de ego (Pozzobon 1983: 276). A primeira geração descendente se
distribui em quatro termos, divididos pelos critérios de gênero e relação de agnatismo ou
afinidade. na segunda geração descendente não diferenciação terminológica, havendo
apenas um termo (Pozzobon 1983: 275).
Abaixo consta o quadro terminológico e a lista que indica a abrangência dos termos,
ambos extraídos dos trabalhos de Jorge Pozzobon (1991, 2000), alterados, sempre que
possível, com base na grafia da língua hup proposta por Henri Ramirez (2006).
GÊNERO
HOMEM
MULHER
AFINIDADE
AGNATO
AGNATA
IDADE
+
VELHO
+
MOÇO
AFIM
+
VELHA
+
MOÇA
AFIM
+2
ù óh
+1
(ip) p
ç
k’ót py’ (in) ináç
0
Sät yawám yòh
[in th]
sät ãy yawám ãy mehin
[in tög]
-1
(th) mèh sth tög stög’
G
E
R
A
Ç
Ã
O
-2
dö’
(x) termo não classificatório [x] termo aplicado apenas aos afins dos afins
Tabela 2: Terminologia de parentesco hup para ego masculino (adaptado de Pozzobon 1991 e 2000 a
partir da grafia da língua hup proposta por Henri Ramirez 2006)
ù FF, MF homem, 2
a
geração ascendente
óh FM, MM mulher, 2
a
geração ascendente
ip F
pai real ou p
ç que o substitui
p
ç
FB, MZH homem, agnato, 1
a
geração ascendente
k’ót MB, WF, FZH homem, afim, 1
a
geração ascendente
py FZ, WM, MBW mulher, agnata, 1
a
geração ascendente
in M mãe real ou ináç que a substitui
ináç
MZ, FBW mulher, afim, 1
a
geração ascendente
sät eB, FBeS, MZeS homem, agnato, mais velho, geração de ego
yawám yB, FByS, MZyS homem, agnato, mais moço, geração de ego
yòh MBS, FZS, ZH homem, afim, geração de ego, cunhado
in th MZS homem, afim de afins (afim ao clã da mãe)
sät ãy eZ, FBeD, MZeD mulher, agnata, mais velha, geração de ego
yawám ãy yZ, FByD, MZyD mulher, agnata, mais moça, geração de ego
mehin MBD, FZD, BW mulher, afim, geração de ego
154
in tög MZD mulher, afim de afins (afim ao clã da mãe)
th S filho real
mèh BS homem, agnato, 1
a
geração descendente
sth ZS, DH homem, afim, 1
a
geração descendente
tög D, BD mulher, agnata, 1
a
geração descendente
stög’ ZD, SW mulher, afim, 1
a
geração descendente
dö’
SS, SD, DS, DD criança, 2
a
geração descendente
Tabela 3: Termos de parentesco hup, denotata genealógicos imediatos e significação (adaptado de
Pozzobon 2000 a partir da grafia da língua hup proposta por Henri Ramirez 2006)
Essas tabelas não são exaustivas. Além do mais, existem diferenças entre as
apresentações do quadro terminológico em Reid (1979) e em Pozzobon (1991 e 2000),
somando-se a isso as discrepâncias entre o que os etnógrafos apresentam e os sentidos e usos
dos termos conforme a exposição do dicionário de Ramirez (2006). Não saberia afirmar em
que medida essas diferenças correspondem a variações dialetais ou a diferenças entre as
metodologias dos pesquisadores. Para não alongar em demasia a exposição dos termos de
parentesco, fiz a opção algo arbitrária de seguir ao máximo o quadro proposto por Pozzobon,
realizando alterações nimas
118
. Cabe destacar uma ressalva, não obstante as alterações
realizadas no quadro terminológico acima, não tratei de corrigir o erro apontado por Viveiros
de Castro (2002a: 127) na construção da “caixaterminológica dravidiana em sistemas em
que a terminologia se relaciona com instituições patrilineares, como é o caso dos Hupda e das
118
Sobre isso, seguem alguns comentários. Todos os termos de parentesco, à exceção dos que designam o pai
(ip), a mãe (in), o filho (th), o esposo e a esposa (te’ip e te’in, respectivamente, que não constam no quadro),
referem-se tanto a parentes reais quanto classificatórios (Reid 1979: 117). O termo mehin, “mulher afim da
geração de ego”, logo, esposa em potencial, não consta no dicionário da língua hup (Ramirez 2006), de forma
que a grafia do termo permanece como a proposta por Reid e seguida por Pozzobon. Quanto à distinção entre teh
(filho real) e meh (filho classificatório), acrescentei ao quadro de Pozzobon com base no quadro original de Reid
e algumas colocações de Ramirez, considerando que, segundo o próprio Pozzobon, uma das ínfimas diferenças
entre a terminologia de parentesco dos Maku do Uaupés e a dos índios do rio é justamente “um termo para
designar univocamente o próprio filho” (Pozzobon 1983: 276). Os termos variam em função do gênero de ego
apenas na geração de ego e na primeira geração descendente; para uma listagem também dos termos de ego
feminino, conferir Reid (1979: 394-5). Por fim, algo que Reid aponta como uma “curiosidade”: entre os termos
ù!, “homem, 2
a
geração ascendente”, e dö’, “criança, 2
a
geração descendente”, ocorrem inversões se levados em
conta seu uso como termo de referência ou vocativo. No quadro de Pozzobon, segundo a exposição de Reid,
constam os usos como vocativo desses termos, pois se forem usados como de referência, inverteriam-se os usos,
o “avô” seria referido como e o “neto” como ù (Reid 1979: 117, 394-5). No quadro proposto por Athias
(1995), constam algumas variações dos termos:
h, seria “o homem, agnato, mais velho, geração de ego”,
enquanto y’ seria o mais novo;
y, seria a “mulher, agnata, mais velha, geração de ego”, e méh, a mais moça
(Athias 1995).
155
sociedades do alto rio Negro em geral. Assim, o quadro acima apresenta uma confusão entre
distinções terminológicas (consangüíneos/afins) e sociológicas (agnatos/não-agnatos), por
exemplo, ao alinhar F e FZ sobre B e Z, respectivamente. Essa confusão deve ser sanada em
trabalhos posteriores.
A preocupação central desta terminologia é justamente “mapear a sociedade segundo
um princípio dual de possibilidades de casamento”, que ocorrem através da troca de irmãs
entre primos cruzados bilaterais (Pozzobon 1983: 279). A fórmula ideal do casamento dos
Maku do Uaupés observa, basicamente, duas variáveis: o cônjuge potencial deve ser da
mesma geração de ego e seu clã deve ter relação de afinidade com o de ego; ou seja,
endogamia de geração e exogamia de metade (Pozzobon 1991: 139). Logo, os primos
cruzados bilaterais, ao conjugarem os dois critérios, figuram como a possibilidade ideal de
casamento (Pozzobon 1991: 132-3).
Dada a consistência entre a terminologia de parentesco de bifurcação assimilante e o
sistema clânico dividido em duas metades, os termos de parentesco hup abarcam, no limite,
sua população inteira desde a perspectiva de um indivíduo (Pozzobon 1991: 135). Conforme
Pozzobon, exceto os cinco termos que designam pai, mãe, filho e os membros de um casal, os
termos de parentesco hup podem ser aplicados a indivíduos próximos genealogicamente,
distantes e até de parentesco indemonstrável (Pozzobon 1991: 131). Vale lembrar, entretanto,
a preferência em manter as relações de aliança no círculo de parentesco próximo, refletindo-se
no ideal, mencionado acima, de casar-se com as mehin miníg (FZD, MBD), distinguindo-as
das mehin em geral, termo que designa qualquer mulher afim da geração de ego
independentemente da distância genealógica (1991: 133).
O termo miníg, que expressa a proximidade de parentesco no círculo cognático local,
aplicando-se tanto a agnatos como a afins, é análogo ao que Albert (1985) expõe a respeito
156
dos qualificativos pelos quais os Yanomami distinguem o parentesco “verdadeiro”
(genealógico) do parentesco “simples” (classificatório). Sua conclusão a respeito destes
termos pode também ser aplicada à estrutura do parentesco hup: Faits qui soulignent encore
l’idéal matrimonial yanomami comme alliance de mariage au sein d’une parentèle
cognatique en ce qu’ils démontrent que quelque soit le type de mariage réalisé la parenté
respective des conjoints se voit ajustée au modèle d’une ‘intra-marrying kindred’” (Albert
1985: 223).
Este cálculo da distância espacial e sua projeção na terminologia de parentesco,
desdobrando-se em qualificativos que designam o caráter genealógico e/ou classificatório do
parentesco, desenvolve-se diferencialmente entre os Yanomami e os Hupda, considerando que
os segundos apresentam apenas o termo que designa a proximidade de parentesco e não um
termo que refira-se à distância, como ocorre nos Yanomami. Mas, o efeito dessas
qualificações nos dois sistemas tende a assemelhar-se, uma vez que refletem o ideal de
endogamia no interior da parentela cognática. Além disso, Pozzobon argumenta que esta
diferenciação terminológica entre próximos e distantes reflete-se também no sistema de
atitudes através de uma tendência a uma maior reserva nas relações entre agnatos
espacialmente distantes que entre afins co-residentes (Pozzobon 1991: 135). Essas atitudes
refletem a relação dos Hupda com os distantes em geral, versada no idioma da feitiçaria e da
desconfiança, como descrito no Capítulo 4.
As implicações desta “assimilação da distância genealógica à distância geográfico-
social”, resultado precisamente do cruzamento do dualismo diametral característico da
terminologia de parentesco dravidiana pelo dualismo concêntrico, foram apontadas por
Viveiros de Castro:
Tal regime lugar a funcionamentos mais “performativos” que “prescritivos”... assim, não basta
dizer que quanto mais prescritivo um sistema, tanto mais indeterminada será sua relação com a
157
realidade... dada a normalização retroativa das ficções prescritivas. O problema não é simplesmente
de indeterminação, mas o de uma interferência entre o diametralismo digital e “diatônico” da grade
terminológica e a estrutura analógico-escalar, “cromática” da oposição próximo/distante, de
disposição concêntrica. Tal interferência impede que se pense a pragmática social em termos de
uma subordinação simples à sintaxe terminológica. (Viveiros de Castro 1993: 165)
Estas considerações serão retomadas na conclusão do capítulo, pontuando um modo
alternativo de analisar a “fluidez” dos Hupda em relação às regras de exogamia. O
concentrismo que caracteriza as relações sociais amazônicas implica o ternarismo das
categorias, instituindo posições que não se enquadram no dualismo diametral da terminologia
de parentesco dravidiana dividida em consangüíneos e afins. Estas posições, as quais Viveiros
de Castro (1993: 177) relaciona como “terceiros incluídos”, “desempenham funções
mediadoras fundamentais”, dando “ao sistema seu dinamismo propriamente racional”
(Viveiros de Castro 1993: 178). Uma das várias manifestações possíveis desses “terceiros
incluídos”, nas sociedades amazônicas, é a categoria de “afim dos afins”, a qual, no caso dos
Hupda, é formalizada na categoria de “filhos de mãe”, que, como será descrita, é fortemente
relevante na dinâmica das relações de parentesco hup.
Em semelhança aos índios do rio, entre os Hupda também termos classificatórios
para os “filhos de mãe” (MC): in th, para homens, in tög, para mulheres (Reid 1979: 117;
Pozzobon 1991: 131). Entretanto, o funcionamento dessas categorias é precisamente o oposto
ao que ocorre entre os povos ribeirinhos: ao invés de impedir o casamento com os afins dos
afins, dentre os Hupda, eles são permitidos (Pozzobon 1983: 282). Fundamental para a
compreensão desta categoria no sistema de parentesco hup é visualizá-la como o único
aspecto do modelo que cruza a separação uniforme entre consangüíneos e afins (Reid 1979:
118), caracterizando precisamente o que foi colocado acima como os “terceiros incluídos”.
Tanto entre índios do rio como entre os Maku do Uaupés essa categoria seria “ambígua”, na
medida em que os por ela classificados não figuram nem como inteiramente agnatos nem
como inteiramente afins (Pozzobon 1983: 281), muito embora o que os índios do rio e os
158
índios das florestas da região do Uaupés operam com base nesta “ambigüidade” é
radicalmente oposto. Para os Tukano, a “ambigüidade da categoria é usada... no sentido de
tornar agnatos os afins dos afins, pois três grupos exogâmicos afins cujos membros devem
ser referidos por uma terminologia dualista” (Pozzobon 1983: 282). Nos Hupda, como
mencionado acima, constata-se o efeito oposto: o uso da categoria de “filhos de mãe” serve
para afinizar os afins dos afins, os quais, dada a diametralidade do sistema de divisão clânica
em duas metades, seriam agnatos. “Ora, na maior parte dos casos, estes ‘terceiros incluídos’,
que operam a mediação entre o mesmo e o outro, o interior e o exterior... estão associados de
modo privilegiado ao lugar simbólico da afinidade” (Viveiros de Castro 1993: 178). Esse
parece ser precisamente o caso dos “filhos de mãe” no sistema de parentesco hup se
considerarmos sua função de afinização dos agnatos. Entre os sentidos de “filhos de mãe” nos
Tukano e nos Maku do Uaupés opera-se, nos termos de Pozzobon, uma “troca de sinal”
(Pozzobon 1983: 301).
Os termos in th e in tög aplicam-se aos filhos das irmãs reais ou classificatórias da
mãe de ego, cujos pais pertencem a um clã diferente do de ego, de forma que os parentes
classificados nestas categorias são os primos e primas matrilaterais reais ou classificatórios
(Reid 1979: 118; Pozzobon 1983: 281). Pozzobon desenvolve alguns questionamentos sobre o
uso dessa categoria e sua possibilidade de manipulação e flexibilização do sistema de
parentesco (1983; 1991: 147). Em um sistema dividido em duas séries clânicas, guiado por
um princípio dualista, como afirma Pozzobon, não seria de se esperar a existência de tais
termos, pois logicamente o afim de um afim pode ser um consangüíneo. Assim, segundo o
autor, o uso dessa categoria está relacionado a toda uma sorte de “casamentos errados”, seja
na geração de ego seja na geração de seus pais. Os “filhos de mãe” entre os Hupda e os Maku
do Uaupés são a abertura lógica para a manipulação de um sistema que, de outro jeito, seria
159
perfeitamente recortado entre consangüíneos e afins, um diametralismo em equilíbrio. É
justamente essa categoria que vem desequilibrar o dualismo do parentesco hup.
A alta freqüência de “casamentos errados” é um aspecto fortemente enfatizado pelos
etnógrafos. Na ocorrência desses, a terminologia desvela sua elasticidade de modo a adaptar-
se aos casamentos que escapam ao previsto pela grade terminológica. Pozzobon cita, por
exemplo, casamentos intraclânicos em que uma variedade de soluções para os desencaixes
entre terminologia e relação de parentesco podem se colocar: troca de termos que designam
relações agnáticas por termos que designam afinidade; abandono do uso dos termos de
parentesco, nesse caso incorrendo, geralmente, em nomes cristãos; ou até a predominância de
termos agnatos a despeito das relações de parentesco entre afins (Pozzobon 1983: 284).
Os casamentos entre indivíduos de clãs diferentes em relação de agnatismo também
são considerados errados, embora, neste caso, o uso tático da categoria de “filhos de mãe”
possibilita a inversão das regras do sistema através sua gica própria (Pozzobon 1983: 285).
Entre os Kakwa e Yuhupde a categoria de “filhos de mãe” é mais difundida. Nestes povos, em
função da alta freqüência de relações matrimoniais baseadas nesta categoria, podem ocorrer,
no limite, estados que Pozzobon nomeia como “pan-mixia clânica”, resultando no
desmembramento das metades em que os clãs estavam originalmente organizados, de forma
que cada clã passa a atuar como uma unidade exogâmica autônoma (Pozzobon 1983: 285-
289). Segundo Pozzobon, esta composição de pan-mixia clânica é evidenciada entre os
Kakwa e os Yuhupde, enquanto entre os Hupda o casamento entre clãs agnaticamente
relacionados ocorreria de forma um pouco diferenciada.
Howard Reid (1979) propõe uma hipótese referente à possibilidade de transformação
da relação entre clãs (caso acima citado a respeito do clã Men): it may be that the ambiguity
of the relationship is used to facilitate the transition of a clan or sub-clan from the status of
160
an agnate vis-à-vis other neighbouring clans to that of an affine (Reid 1979: 118).
Depreende-se que, entre os Hupda, o uso tático da terminologia de “filhos de mãe” operaria
mais no sentido de inverter a relação entre os clãs no interior das metades que de autonomizá-
los, como se vislumbra no estado de pan-mixia clânica kakwa e yuhupde (Pozzobon 1983,
1991: 150)
119
.
Entretanto, não deve ser exagerada a distinção entre os efeitos dos usos da categoria
“filhos de mãe” nos sistemas clânicos dos Hupda em comparação com os outros Maku do
Uaupés. Considerando que, como argumenta Pozzobon, o sistema de metades clânicas tem
como única função a distribuição de mulheres, ele pode ser infringido com certa facilidade
(1983: 300). Pozzobon aponta a hipótese de que haveria dois sentidos implícitos para cada um
dos quatro termos que designam “irmãos” no sistema de classificação hup: um sentido forte
(membros de um mesmo clã), e um sentido fraco (membros de clãs diferentes). Desta forma,
mesmo não explicitado na terminologia, pode-se observar um gradiente de parentesco atuante
nas atitudes (Pozzobon 1983: 299-300).
Através dessa hipótese, Pozzobon explica as descrições de Howard Reid (1979) dos
Hupda, que diferenciam dois modos de “casamentos errados” observados entre eles: o
casamento entre membros de um mesmo clã, sim, seria técnica e realmente errado; o
casamento entre indivíduos de clãs agnaticamente relacionados seria apenas tecnicamente
errado (Pozzobon 1983: 300). Somente os indivíduos cujos interesses são contrariados na
ocorrência de “casamentos errados” manifestam-se nesse sentido, no mais das vezes durante
as festas em que brigas irrompem por esses motivos (Pozzobon 1991: 142).
119
Comparando os usos da categoria de “filhos de mãe” entre os índios do rio e os Maku do Uaupés, Pozzobon
abstrai três operações possíveis e suas conseqüências: I- índios ribeirinhos adaptam o triadismo de unidades
exogâmicas ao binarismo terminológico, transformando um dos grupos em agnato; II- os Hupda mantêm o
binarismo das unidades exogâmicas, transformando as relações de agnatismo e afinidade entre os clãs; III- os
Yuhupde e os Kakwa subvertem o binarismo de unidades exogâmicas, transfomando as relações entre os clãs
como afinidade generalizada, autonomizando-os (Pozzobon 1983: 290-1). Destarte, ao final das operações, o
estado dos índios ribeirinhos tende a se aproximar do estado Maku e vice-versa (Pozzobon 1983: 292).
161
De qualquer forma, nos Hupda, mesmo os casamentos intraclânicos são, geralmente,
apenas alvo de deboche, não resultando em acusações sérias, considerando que não são vistos
como desvios acentuados em contraste com um padrão moral forte e unívoco (Pozzobon
1983: 284). Roy Wagner (1972) faz considerações interessantes a respeito do incesto,
enquanto uma “infração cultural”, e a seriedade que lhe é atribuída nas diferentes sociedades
em função da variação da importância das unidades sociais exogâmicas.
As an infraction of cultural norm, such an act may or may not be considered serious; frequently it is
dismissed as a trivial matter. The ideological importance of the social unit and therefore of the
re-affirmation of one’s humanity through its particular symbols is likewise highly variable over
the range of human societies. The wide variety of attitudes and punishments involving the breach
of exogamy ranging from a strongly professed concern to almost complete indifference
would seem to reflect this variation. (Wagner 1972: 609)
Se consideradas as variações possíveis de atitudes em relação a não observância das
regras de exogamia, os Hupda certamente estão mais próximos da “quase completa
indiferença” descrita por Wagner, o que implicaria uma importância ideológica enfraquecida
das unidades sociais (no caso, clãs). Isso, de certa forma, os diferencia de seus vizinhos
Tukano, que, como vimos no Capítulo 1, enfatizam fortemente as regras de exogamia e
condenam o incesto de maneira aguda, o que é particularmente explícito nas imagens de anti-
humanidade que esses fazem dos Maku. Ao que parece, os Hupda, ao dobrarem para seu
interior o sistema exogâmico do Uaupés, enfraqueceram, além de seus aspectos hierárquicos,
as próprias regras que estruturam a estabilidade dos grupos exogâmicos.
Neste ponto, o tema da “frouxidão” na observância das regras surge nas descrições dos
Hupda. Jorge Pozzobon, em sua dissertação de mestrado (1993) e tese de doutorado (1991),
explica esses desvios em relação às regras por causas demográficas, baseando-se nas
explicações que os próprios Hupda e demais Maku propõem para as mudanças na posição de
clãs na divisão de metades, bem como para a ocorrência de “casamentos errados”. Quando
questionados, os Hupda invariavelmente respondem que a escassez ou a fartura de mulheres
disponíveis tende a sobredeterminar as regras, articulando, a partir deste fator, toda a sorte de
162
“uso tático”, “manipulação terminológica”, para usar algumas expressões das quais os
etnógrafos lançam mão. O tema da escassez de mulheres é algo que percorre a literatura
etnológica sobre os Hupda desde os seus primórdios. nos relatos dos primos Terribilini
consta que Casimir, o Hupda que mantinha relações mais próximas com a missão de Iauaretê
no início da década de 1960, ao relatar os motivos de uma série brigas entre o seu grupo local
e um coletivo vizinho, comenta: “Chez les Makús, les femmes sont rares
120
(Terribilini 2000:
119).
Destarte, a hipótese geral que guia os primeiros trabalhos de Pozzobon articula
aspectos demográfico-contingenciais e estruturais (regras), apontando a escassez de mulheres
no interior dos “isolados matrimoniais” (descritos no Capítulo 4) como a causa da “fluidez”,
da flexibilidade das estruturas sociais das sociedades dos Maku do Uaupés (Pozzobon 1983:
358). Em uma passagem de sua dissertação de mestrado (Pozzobon 1983: 148), há uma
oscilação que caracteriza o esforço de Pozzobon: ora a diferença entre os Tukano e os Maku é
colocada em um gradiente de intensidade relativo à adesão às mesmas regras ora suas
diferenças desdobram-se em oposições estruturais. Ou seja, em um modo de diferenciação, há
uma estrutura ideal e variações em sua atualização na prática, umas mais coerentes (Tukano),
outros menos (Maku); em outro modo de diferenciação, coloca-se o cruzamento de estruturas
sociais diferentes, no limite, opostas.
No primeiro modo de diferenciação, a diferença fundamental entre índios do rio e
Maku não se daria no plano da estrutura social, mas justamente da intensidade com que cada
um a segue, os Maku tendendo a um grau maior de fluidez que seus vizinhos do rio. Sob
inspiração na distinção que Lévi-Strauss (1996b [1952]) propõe entre modelos mecânicos e
modelos estatísticos, Pozzobon argumenta: “a ‘estrutura social’ ribeirinha seria o modelo
mecânico da sociedade Maku e sua efetivação entre os Maku consistiria nas variações
120
Sobre a escassez de mulheres, conferir Pozzobon (1991: 142, 185)
163
estatísticas desse modelo(1983: 347, grifos do autor). Porém, conforme Pozzobon, isso não
basta o que encaminha ao segundo modo de diferenciação —, pois haveria uma diferença
fundamental entre os “modelos mecânicos” de índios ribeirinhos e os dos Maku do Uaupés.
As diferenças estruturais entre Tukano e Maku colocam em contraste dois princípios de
origem das unidades exogâmicas: o triadismo fundante dos índios ribeirinhos (conferir nota
110) e o dualismo dos povos da floresta, explicitado nos mitos de criação dos clãs hup
(Pozzobon 1983: 348). Logo, “[p]or trás do modelo exogâmico ribeirinho, os Maku têm o seu
próprio modelo mecânico(Pozzobon 1983: 348, grifos do autor). No contraste entre esses
dois modos de diferenciação está o germe do que depois se desdobraria na proposta da
duplicidade modelar dos Maku do Uaupés (Pozzobon 2000), que será descrita no próximo
tópico.
A hipótese apontada no estudo comparativo da dissertação de mestrado (1983) levará
Pozzobon, em sua tese de doutorado (1991), à realização de uma extensa pesquisa quantitativa
sobre a endogamia dos Maku do Uaupés e suas condições demográficas, comparando a
freqüência de “casamentos errados” em função das contingências demográficas. Esse tema da
diferenciação entre os povos do rio e os povos da floresta na região do Uaupés, versado
através de modelos que se cruzam, de afrouxamentos, ajustes e imperfeições entre regra e
prática, do caráter implícito ou explícito de estruturas sociais, i ser posteriormente
radicalizado por Pozzobon.
164
3. O improviso da sociedade
O que os índios Maku afirmam sobre sua sociedade choca-se freqüentemente a uma prática que
escapa às previsões formuladas pelo observador a partir do modelo virtualmente contido nessas
afirmações. Trata-se de uma sociedade fluída e cambiante, que se diferencia das demais sociedades
indígenas do Noroeste Amazônico não apenas por uma economia centrada na caça e na coleta, mas
também pela mobilidade espacial e pela instabilidade na composição dos grupos locais. No que diz
respeito ao parentesco, esse caráter fluído e instável se exprime na ausência de julgamentos morais
coletivamente partilhados sobre os casos de desobediência evidente às regras enunciadas de
exogamia. (Pozzobon 2000: 8)
Em “Sociedade e improviso: estudo sobre a (des)estrutura social dos índios Maku”
(2000), Jorge Pozzobon propõe um caminho alternativo para a descrição da estrutura social
dos Maku do Uaupés. Ainda que derivado de seus trabalhos anteriores, esse ensaio extrapola
alguns limites para a compreensão do caráter supostamente desviante dos Maku, levando, a
meu ver, as implicações do que se entende como “fluidez” um pouco mais adiante. Pozzobon
assim se refere a esta virada em seu trabalho:
Seguiram-se outras oito estadias breves entre 1991 e 1999, somando um total de 15 meses.
Destinaram-se à identificação oficial de terras indígenas, à localização anteriormente mal
conhecida de grupos Maku, à demarcação de terras e outros levantamentos de caráter muito mais
prático do que acadêmico. Nestas últimas estadias, talvez porque já não estivesse mais preocupado
em demonstrar esta ou aquela hipótese, pude captar a melhor a essência da cultura Maku, que é a
do improviso em relação à maior parte das tarefas, concepções, rituais e crenças. Os dados
intensivos que eu havia colhido na época das teses adquiriram um novo sentido. (Pozzobon 2000:
14)
Este livro, portanto, surge dessa mudança de perspectiva, inspirada em uma
experiência de pesquisa na qual Pozzobon pôde captar a “essência” da cultura Maku que é,
conforme o próprio, o improviso. Como o autor aponta, tal movimento em sua obra corrige
alguns descaminhos tomados anteriormente, na medida em que proporciona minimante um
modelo alternativo para compreender as práticas nativas outrora vistas como desviantes, o
mais as reduzindo a imperfeições operacionais de um sistema sem uma base demográfica que
proporcionasse as condições de estabilidade. Netse processo, o que se toma por “fluidez
deixa de ser atribuído a causas externas, contigenciais, e passa gradativamente a tornar-se um
modelo alternativo para a descrição dos Maku do Uaupés.
165
Em “Sociedade e Improviso” a “fluidez” toma forma de um modelo cognático latente
nas sociedades dos Maku, que conviveria com o modelo compartilhado com os demais povos
do Uaupés, qual seja, o da descendência agnática patrilinear e hierarquizante, o modelo
expresso no discurso. Esta idéia da estrutura das sociedades dos Maku do Uaupés fundada na
articulação de dois modelos aproxima-se do que foi trabalhado no Capítulo 2 a partir dos
estudos de Kaj Århem (1989) e S. Hugh-Jones (1993, 1995) sobre os Tukano
121
.
Vale ressaltar que, no discurso nativo, a existência do modelo cognático não está
expressa tal qual o agnático, isto é, dito de maneira unificada e coerente. Ao que tudo indica,
Pozzobon o deduziu com base em uma série de indícios apreendidos ao longo do período de
trabalho de campo. O autor aponta basicamente três considerações que falseariam sua
“cômoda hipótese demográfico-estrutural” anteriormente levantada e desenvolvida: 1) os
Maku do Uaupés preferem os casamentos errados a buscar mulheres em isolados
matrimoniais vizinhos aspecto do concentrismo —; 2) quantitativamente, a freqüência de
casamentos errados é tão alta que dificulta o reconhecimento do sistema de duas metades
exogâmicas nas escolhas matrimoniais efetivas problemas de regra e prática —; e 3) o
“caráter fluído e cambiante” dos Maku é generalizado, uma falta de apego a formalidades é
algo que os caracteriza não apenas em relação a padrões de casamento e moradia, percorrendo
todos os aspectos de sua sociedade em uma nonchalance generalizada — questão ética
122
.
121
Entretanto, cabe a ressalva que esta correspondência é proposta nesta dissertação, não estando expressa no
trabalho de Pozzobon (2000).
122
Em relação a este ponto, é interessante notar como as descrições da nonchalance Maku, um dos tópicos
principais de “Vocês, brancos, não têm alma” (2002), livro de contos de Pozzobon referido na Introdução, torna-
se a base para o modelo de estrutura social maku em “Sociedade e improviso”. O que antes aparecia na obra
acadêmica de Pozzobon, digamos assim, como o “tom de vida” dos Hupda nas descrições de seu cotidiano
um certo desprendimento, gosto pela precariedade tem suas implicações levadas adiante, tornando-se a base
para o modelo de uma sociedade pouco afeita às regras, ou a“anárquica”, nas palavras do autor. Em “De que
riem os índios?” (2003b) Pierre Clastres nos ensinou a levar a sério o humor com que os índios relatam temas
solenes nos mitos. Da mesma forma, acredito que, em volta desta falta de seriedade com que os Maku se
relacionam com as regras em geral, algo muito sério está sendo colocado. Penso esse ethos que Pozzobon
descreve como nonchalance trata-se de um dispositivo contra-o-Estado, para usar um conceito clastreano,
166
Estes pontos conjugados levam-no a desacreditar da “vigência de um modelo
inconsciente” posto que não haveria “sanções coletivamente definidas” relativas aos desvios
do modelo alto-rionegrino da exogamia patrilinear (Pozzobon 2000).
Em vista dessas três considerações, passei a investigar a possibilidade de estarem em jogo, na
sociedade Maku, duas formas diferentes de organização social: uma calcada nos conceitos de
unifiliação e exogamia; outra ancorada numa forma de ordenamento social baseada na
improvisação, onde os laços entre as pessoas se tornam estáveis na medida em que se consegue pôr
em prática um certo minimalismo cognático escondido por detrás da unifiliação. (Pozzobon 2000:
9)
A suspeição sobre a eficácia do modelo de duas seções de clãs em relação de
afinidade, fortemente embasada em exames estatísticos, é levada ao ponto de Pozzobon
estabelecer, por contraste, a existência de um outro modelo de sociedade articulado entre os
Hupda e demais Maku do Uaupés.
As flutuações da afinidade expressas neste caso de troca de seções bem como nos casos de
panmixia clânica comentados acima colocam sérias dúvidas sobre a realidade do modelo de duas
seções ou melhor, sobre sua significação funcional para a sociedade Maku. Levam a suspeitar
que esta sociedade obedece a outros princípios. (Pozzobon 2000: 49)
O autor questiona se essas práticas configurariam “casamentos errados ou alguma
sorte de “pragmatismo cognático” (Pozzobon 2000: 50)
123
. Neste sentido, como “indícios de
cognatismo”, Pozzobon trabalha com as implicações do gradiente de parentesco referente ao
uso do termo miníg. A preferência pelo casamento com a mehin miníg (a “afim próxima”) é
uma dessas implicações, traçando um indício de “uma espécie de núcleo cognático nas
articulado nos povos da floresta do Noroeste amazônico. E foi justamente a essa intuição que Pozzobon dedicou
seus esforços, propondo avanços.
123
dados quantitativos relevantes através dos quais o autor compara os Maku do Uaupés entre si, colocando
os Hupda na posição de maiores perversores do sistema de patrilinearidade exogâmica do Uaupés. “No conjunto,
os casamentos conformes às regras são mais numerosos: 92 de 163, isto é, 56%, satisfazem as prescrições do
modelo. Porém a amostra Hupdu apresenta valores inversos aos do total: 56% dos casamentos não são
conformes. Existe alguma razão epistemológica plausível para se desconsiderar taxas tão altas de desobediência
a um modelo e seguir afirmando que este modelo é adotado pelos nativos? Argumentar que 44% de
desobediência às regras (56% no caso Hupdu) são aceitáveis seria uma forma de escamotear a questão, pois abre
espaço para perguntas tolas e sem resposta possível, do tipo: a partir de que taxa de desobediência um sistema de
regras não está mais funcionando? Dado que essa taxa varia no tempo e conforme os interesses dos agentes
sociais, não se trata de casamentos errados ou certos em sentido absoluto, e sim de excesso de confiança por
parte do observador, que terá escolhido o ponto de vista mais adequado à sua orientação teórica para transformá-
lo num sistema de regras. (Pozzobon 2000: 49-50)
167
concepções Maku de parentesco” (Pozzobon 2000: 51). Somado a isso, outra evidência pode
ser observada no tratamento dado aos casamentos que desviam das regras de exogamia, os
quais se relacionam com uma ausência de sanções morais de qualquer tipo, além de
articulados com toda sorte de manipulação terminológica.
Como visto acima, tal dado é fortemente inspirado na etnografia de Howard Reid com
os Hupda, os quais diferenciam casamentos tecnicamente errados — lembrando, entre clãs em
relação agnática e casamentos realmente errados os intraclânicos. Pozzobon
complementa: “como se apenas o clã, e não o modelo de duas seções, tivesse substância
suficiente para configurar os verdadeiros casos de incesto. Dá a impressão de que o modelo de
duas seções é um epifenômeno, uma idéia derivada e desimportante para os Maku” (Pozzobon
2000: 50). O gradiente do caráter incestuoso dos casamentos hup abarca ainda relações de
maior proximidade de parentesco, das quais as mais graves seriam entre primos paralelos,
irmão e irmã, pai e filha, as quais são mediadas por manipulações terminológicas, da mesma
forma que os casamentos desviantes menos graves (Pozzobon 2000: 51). Por fim, outro
indício deste cognatismo latente é justamente a liberdade de escolha entre vários modos de
classificação (modelo ribeirinho, modelo de duas seções e uso tático da terminologia de
parentesco)” (Pozzobon 2000: 51).
O modelo congnático-minimalista é, segundo Pozzobon, a “forma latente de
organização social Maku”, contrapondo-se ao modelo exogâmico, cuja adoção configuraria
nada mais que “uma estratégia para se adaptar a um contexto cultural dominado por idéias de
origem Arawak e Tukano” (Pozzobon 2000: 81). Deduz-se que, para Pozzobon, o modelo
cognático-minimalista seria o basal, e o exogâmico uma espécie de modelo ad hoc,
168
internalizado pelos Maku por sua posição subalterna no sistema regional do alto rio Negro
124
.
Estariam em jogo, portanto, dois modelos diferentes de organização social: um expresso,
outro latente; uma “sociedade imaginária” em oposição a um “pragmatismo cognático”; um
centrífugo, levando à procura de cônjuge fora do círculo de parentes agnáticos, outro
centrípeto, “que convida os indivíduos a buscarem afins num círculo minimalista e cognático
de relações sociais” (Pozzobon 2000: 9). Pozzobon propõe, assim, uma abordagem que tende
a complexificar a descrição dos povos Maku, uma vez que a multiplicação de modelos
permite traçar variações internas, ao invés de relegá-los à imagem meros desviantes do alto
rio Negro. O “comportamento fluído” dos Maku adquire sentido justamente pela possibilidade
de escolher entre modelos alternativos.
Em “Sociedade e improviso”, o conceito de kindred minimalista toma o lugar do
“isolado matrimonial” descrito no Capítulo 4, refletindo a passagem da hipótese demográfico-
estrutural para a duplicidade modelar. Propõe-se, destarte, uma outra forma de frasear os
grupos hup, agora com base em um conceito fundamentalmente egocentrado, opondo-se ao
sociocentrismo da estrutura dos clãs com referência em um ancestral mítico.
Kindred is an ego-centered kinship category. It may be visualized as a series of concentric circles
with ego in the middle, surrounded by members of her or his nuclear family and beyond them by
circles of more distant kinsmen, the knowledge of whom becomes less and less intimate the further
removed they are from ego, and the relationship with whom is seen as being progressively less
determined by the mutuality of kinship. (Holy 1996: 41-2)
Essa forma de distribuição escalar do parentesco desde a perspectiva de ego, do
próximo ao distante, possibilita que Pozzobon articule o conceito de kindred com a parentela
que cada indivíduo hup guarda na memória, a extensão do mapa de relações de parentesco
que cada um domina, o qual tende a coincidir com os grupos regionais ou aglomerados.
124
Nesta teorização de Pozzobon pressuposta a hipótese histórica tratada no Capítulo 1, segundo a qual os
Maku seriam uma população de ocupação mais antiga da região, que teriam sofrido um processo de tukanização
com a chegada das outras populações indígenas. Além dessa hipótese histórica, a questão sociológica das
assimetrias que condicionam as relações entre Maku e Tukano.
169
Enfim, dentre os Hupda e Maku do Uaupés em geral, a sobreposição de kindreds tende a
coincidir com essas unidades socioespaciais, dando um caráter minimamente estável a esses
agrupamentos. Os kindreds conteriam-se nesse “mínimo social”, nesses “isolados
endogâmicos” onde se concentram as relações de sociabilidade, os processos de fusão e fissão
de coletivos, bem como a maioria dos casamentos.
A freqüência de casamentos interdialetais, embora seja baixa, comprova que a endogamia e o
caráter de kindred dos dialetos é uma tendência, não uma regra. As escolhas individuais de
coabitação e cooperação engendram essa tendência na medida em que se orientam para uma
comunidade que se define pela intimidade entre seus membros. toda uma gradação de
intimidade que começa no grupo doméstico, o pólo mais íntimo, passa pelo grupo local e termina
no kindred, horizonte da sociabilidade Maku. (Pozzobon 2000: 79)
Esse concentrismo característico da sociedade hup coloca-se, portanto, no plano da
tendência, articulando kindreds e grupos regionais dentro dos quais se concentram as escolhas
matrimoniais de tendência cognática, o que se coaduna de forma mais afinada com o
“minimalismo social dos kindreds do que com o modelo exogâmico, que muitas vezes não é
levado em conta” (Pozzobon 2000: 79). A descrição dos Maku do Uaupés aproxima-se,
assim, do modelo guianense, descrito no Capítulo 2, cujo núcleo da organização social
manifesto por laços de parentesco é a kindred structure not held together by sibling bonds,
but by the affine relationship” (Overing 1977: 393).
A questão que surge diante disto diz respeito ao modo de convivência entre os dois
modelos:
[c]omo explicar a força deste viés cognático num contexto etnográfico onde predominam as idéias
patrilineares e patrilocais? A resposta não é simples. Envolve ao mesmo tempo a atitude
nonchalant dos Maku face à filiação unilinear, as possibilidades dadas pelo uso minimalista da
terminologia dravidiana de parentesco e sobretudo a mobilidade espacial necessária à economia de
caça e à continuidade do grupo local. (Pozzobon 2000: 66)
O esforço de Pozzobon é abrir espaço analítico para a agência dos atores que articulam
as regras em tramas locais, compondo arranjos variados com os dois modelos, o que se inspira
nas combinações locais variáveis do sistema clânico descritas no primeiro tópico deste
capítulo.
170
O caráter oblíquo ou horizontal dum casamento, assim como ser considerado errado ou certo
quanto ao sistema de filiação, depende de um ponto de vista local, cuja legitimidade é dada pelo
acordo entre as partes envolvidas e seus próximos. Para que isso aconteça, é preciso que o grupo
em questão seja um grupo local pequeno, bastante coeso e íntimo. Veremos adiante que o
minimalismo social é uma das condições do funcionamento dos sistemas cognáticos, baseados
apenas no uso da terminologia de parentesco, e que os Maku fornecem um exemplo interessante de
como o cognatismo pode ser latente numa organização social aparentemente baseada na regra de
exogamia do grupo de filiação. (Pozzobon 2000: 52)
A partir deste ponto, os dois modelos começam a se diluir em um “amálgama de
conceitos”, expressão que Pozzobon toma de Pierre Bourdieu no sentido de desviar do que
qualifica como os riscos de “codificação”, ou seja, de ontologizar o modelo ribeirinho para os
grupos Maku do Uaupés:
No caso deles, trata-se de um amálgama de conceitos exogâmicos de origem ribeirinha somados às
virtudes classificatórias inerentes à dicotomia contida num vocabulário de parentesco
essencialmente cognático e por isso mesmo muito maleável – daí facilidade com que ele expressa a
imaginária classificação dicotômica dos clãs, que logo se contradiz com o uso tático da categoria
“filhos de mãe.” Este amálgama pouco definido é usado segundo os interesses pragmáticos e
localistas dos Maku. Codificá-lo em modelos seria perda de informação e charme. Como escreve
Bourdieu (p. 99), ‘As sociedades muito pouco codificadas, onde o essencial é deixado ao senso do
jogo, à improvisação, são muito charmosas. Para sobreviver nelas, e sobretudo para se lhes
sobressair, é preciso ter o gênio das relações sociais, um senso de jogo absolutamente
extraordinário. É preciso sem dúvida ser bem mais safo do que nas nossas sociedades.’ (Pozzobon
2000: 52-3).
O livro é concluído com apontamentos acerca da “anarquia” termo que revela a
passagem da nonchalance como ethos para a um modo de filosofia política dos Maku e
seus desdobramentos na distribuição socioespacial nos interflúvios da região do Uaupés. Essa
informalidade dos Maku seria uma espécie de dado cultural que abre espaço para as
manipulações individuais do sistema.
A nonchalance não é um dado cultural cego: ela faz sentido no espaço que a sociedade Maku abre
para a iniciativa pessoal e as estratégias privadas, que se exprimem por exemplo na manipulação de
genealogias ou em interpretações localistas das regras matrimoniais. Para fazer jus a esta
complexidade e sobretudo à liberdade do objeto de estudo – ao improviso, em suma – a abordagem
não deve ser reducionista, mas holística. (Pozzobon 2000: 10)
Os Maku operariam uma abertura no sistema alto-rionegrino a partir de suas
disposições nonchalant. Se, por um lado, não se ontologizam os modelos de sociedade,
ontologiza-se precisamente a “falta de seriedade” dos Maku, transformando a “fluidez” em
relação às regras como uma espécie de modo de ser, o que, na análise de Pozzobon, os opõe
171
radicalmente aos índios ribeirinhos, instituindo, assim, um partilha: “sociedades do
improviso” versus “sociedades da regra”.
O experimento conceitual proposto por Pozzobon desenvolve alguns avanços no
sentido do entendimento das relações entre as estruturas sociais de índios ribeirinhos e dos
Maku na região do Uaupés. O grande mérito dessa abordagem proposta por Pozzobon,
devendo ser destacado, é justamente a possibilidade de trânsito entre dois modelos de
sociedade, algo que se conecta ao anteriormente proposto por Kaj Århem (1989) e Stephen
Hugh-Jones (1993, 1995). Tendo tomado a trajetória intelectual de Jorge Pozzobon como fio
condutor, figurou-se neste capítulo a oscilação conceitual que articula a literatura etnológica
dedicada ao tema da estrutura social dos Maku do Uaupés, com especial atenção aos dados
concernentes aos Hupda. Assim, a oscilação entre os conceitos de clã e kindred, mais do que o
reflexo de contradições internas à sociedade hup, nos fornece propriamente modelos, o
agnático-hierárquico e o cognático-minimalista. E, dada a possibilidade de combinações
locais, a versão hup do sistema alto-rionegrino abre a possibilidade para uma pluralidade de
versões internas.
Há de se ressaltar o caráter de work-in-progressde “Sociedade e Improviso”, estudo
inédito e não-publicado, como referido na Introdução, tratando-se de um argumento em
construção, o qual possibilita diferentes formas de leitura. Os eventuais problemas
epistemólogicos dos quais parte, a meu ver, não obscurecem a seriedade da busca de
Pozzobon das diferenças entre as estruturas sociais de índios do mato e índios ribeirinhos no
Noroeste amazônico, bem como a sagacidade de suas conclusões a respeito. E que as
discordâncias que pontuo a seguir e na Conclusão sejam lidas como modos de complementar
172
os modelos que Pozzobon propõe. De qualquer forma, as leituras aqui propostas são
eminentemente parciais e, em certo sentido, extrapolativas
125
.
Investi, neste último tópico, na descrição das linhas gerais do argumento de Pozzobon
em “Sociedade e improviso”, o qual oscila entre a convivência de dois modelos de
organização social nos Maku do Uaupés e sua dissolução em um amálgama de conceitos”,
abrindo espaço para toda sorte de manipulações individuais. Esta oscilação do argumento de
Pozzobon funda-se, penso, na dicotomia entre sociedade e indivíduo que se desdobra na
oposição entre regra e prática. Pozzobon, ao não encontrar a eficácia das regras do modelo
agnático-hierárquico, as institui em outro lugar, depreendendo deste esforço um modelo
alternativo, o cognático-minimalista, que tomou a posição de realidade, de eficácia, de
normatividade, enquanto o outro modelo foi relegado ao plano do imaginário. Pozzobon
desloca o eixo descritivo dos Maku do Uaupés do sociocentramento (clãs, domínio público,
instanciação da sociedade) para o egocentramento (kindreds, domínio privado, manipulação
dos indivíduos). A conclusão de Pozzobon é que os Maku, basicamente, obedecem à
desobediência, sua sociedade é anárquica, formada por regras que não a regulam, assim como
seus grupos são kindreds, “grupos que não são grupos” lembrando uma expressão de
Wagner (1974) a respeito dos kindreds como conceitos negativos de grupos. Todavia, acredito
que entre essas duas alternativas, a do sociocentramento e a do egocentramento, entre a
sociedade e o indivíduo, entre a regra e a prática, existe um caminho a ser percorrido
126
.
125
Em “Sociedade e improviso” passagens luminosas acerca da relação da improvisção das estruturas sociais
com a economia de caça e a mobilidade espacial dos Maku do Uaupés, conexão essa de fundamental importância
para uma compreensão mais global destes coletivos, mas que não é tratada nesta dissertação por questões de
recorte e de limitação de espaço. Logo, gostaria de enfatizar que nesta dissertação está exposta apenas uma parte
da argumentação de Pozzobon, a qual pode ser lida e aprofundada de outras formas em trabalhos posteriores.
126
Neste sentido, Tânia Stolze Lima descreve em sua etnografia sobre os Yudjá uma situação em que “não
para distinguir tão fortemente o social do pessoal” (2005: 82). O sistema yudjá não geraria a diferença entre ego
e grupo, ou melhor, um “Ego imaginário” (genealogicamente traçado) e um “Todo imaginário” (grupos
sociocêntricos). Lembrando a oscilação conceitual entre o sociocentramento e o egocentramento que estrutura os
modos de grupificação dos Hupda na literatura etnológica, vale citar o que Stolze Lima diz a respeito:
“[e]ncarando esse par como uma tradução das antinomias teóricas entre parentesco e sociedade, natureza e
173
* * *
Da mesma forma que no capítulo anterior, neste capítulo vê-se uma dinâmica entre as
teorias nativas e as teorias antropológicas. Na oscilação entre o conceito sociocêntrico de clã
agnatismo do sistema clânico e kindred cognatismo do sistema de parentesco
percebe-se a preocupação dos antropólogos em definir em qual nível se instanciam os grupos
dos Hupda. Interessante notar que a oscilação entre conceitos sociocêntricos e egocêntricos é
provocada pelas teorizações dos Hupda, as quais são acessíveis nos diálogos que os etnólogos
estabelecem com eles, de certa forma, sobre o tema da “fluidez”. As contribuições da
etnografia de Howard Reid são fundamentais neste sentido, quando descreve as conversas que
entretem com os Hupda sobre os desvios observados em relação às regras enunciadas. Destes
diálogos, destaca-se, primordialmente, a importância do gradiente de parentesco (e o
gradiente da gravidade do incesto implicado neste) para a variação de significados atribuídos
às regras de exogamia em sua pragmática social. É precisamente este gradiente das relações
de parentesco, explícito na categoria miníg (desígnio da proximidade de parentesco) e
implícito no sistema de atitudes, que levará Pozzobon a definir as sociedades dos Maku do
Uaupés como sistemas cognáticos-minimalista, aproximando os Maku do modelo guianense.
Nesta definição, vale ressaltar, o parentesco é colocado em primeiro plano, evidenciando a
epistemologia que guia os trabalhos de Pozzobon, da mesma forma que Peter Rivière (1984),
conforme exposto na Introdução, e Kaj Århem (1989), como visto no Capítulo 2. Por sinal, o
movimento teórico de articulação de dois modelos de sociedade, bem como a aproximação
dos Maku ao modelo guianense, é bastante semelhante ao proposto por Århem (1989).
Neste sentido, as mesmas críticas que S. Hugh-Jones (1993, 1995) faz ao trabalho de
Århem (1989) podem ser dirigidas a Pozzobon (2000), considerando a partição
cultura, as formações de grupos que pude perceber entre os Yudjá fazem soar arbitrária a distinção entre
egocentramento e sociocentramento” (Lima 2005: 83).
174
epistemológica entre um modelo da práxis maku e um modelo imaginário de sociedade. Se,
para S. Hugh-Jones, Århem não incorpora em sua análise a dimensão simbólica do modelo
cognático-minimalista atualizada no ritual dabucuri, pode-se dizer que Pozzobon não
incorpora em sua análise o simbolismo ligado ao modelo agnático nos Hupda, deixando de
lado o caráter fundamental que os clãs têm para a formação da pessoa hup e seu alto
rendimento cosmológico no mundo pós-morte. Ao levarmos em conta as descrições do
Capítulo 3 sobre a cosmologia e a constituição da pessoa hup, penso que o modelo agnático
não pode ser descartado como mero epifenômeno causado em um contexto de dominação
cultural. O baixo rendimento dos clãs hup como unidades exogâmicas terrenas, visto que os
Hupda são os “campeões do desvio” na região do Uaupés (cf. nota 123), tem como
contrapartida este alto rendimento simbólico, nem mais nem menos real (ou imaginário) que
as normas que regulam a exogamia clãnica. A passagem do plano das estruturas de
parentesco, que oscila na dinâmica entre a prescrição das regras e as tendências
comportamentais, para o plano cosmológico no qual o processo do parentesco é parte, implica
uma transformação da própria noção de “regra”, transpondo-a dos limites estritos da
observância e do desvio para as variações de significado, algo, aliás, que se articula às
teorizações hup descritas acima sobre seus “desvios”. Este ponto será aprofundado no
segundo tópico da Conclusão a partir dos trabalhos de Roy Wagner (1972) e Jean Jackson
(1983).
É precisamente o cruzamento do dualismo diametral (consangüíneo/afim) pelo
dualismo concêntrico (próximo/distante) que leva Pozzobon a formular o modelo alternativo
das sociedades dos Maku do Uaupés, considerando que o que embasa os “indícios de
cognatismo” é justamente a categoria que aponta a proximidade de parentesco (miníg). Assim,
Pozzobon modela a “fluidez” destes povos, abrindo a análise às possibilidades de
“manipulação individual” do sistema. Segundo Viveiros de Castro (1993), como visto acima,
175
nesta “interferência” entre os dualismos está implicado um funcionamento mais performativo
que prescritivo das estruturas sociais. Destarte, este funcionamento performativo seria menos
a prerrogativa de interesses individuais que da própria lógica do sistema, o que estabelece
outro modo de compreender o que seria a “flexibilidade” das sociedades sul-americanas.
Neste ponto, as críticas que Viveiros de Castro (1986a: 279-80; 1986b: 126-7) faz à Rivière
(1984) e sua concepção das sociedades guianesas como “um agregado de relações
individualmente negociadas” (Rivière 1984: 98) podem ser dirigidas também aos
apontamentos de Jorge Pozzobon ao final de “Sociedade e improviso” (2000), na medida em
que a “‘sociedade’ não está, nesses casos, onde se tem procurado; lá, de fato, aparecem
indivíduos” (Viveiros de Castro 1986b: 127).
Por fim, a meu ver, desta proposição analítica de Pozzobon o interessante a ressaltar é
menos a posição de cada modelo na economia geral de seu argumento um modelo latente-
pragmático versus um modelo ad hoc-imaginário que a própria existência de dois modelos
de sociedade em jogo nos Hupda, articulados em combinações locais. Nas palavras de
Pozzobon: “os Maku oscilam entre o extremo cognático cingalês e o extremo australiano das
seções isto é, entre o que chamamos... de modelo cognático e modelo exogâmico”
(Pozzobon 2000: 81). Além disso, a abertura às “manipulações individuais”, ao “improviso da
sociedade”, configura-se menos como uma propriedade intrínseca aos Maku a
ontologização da nonchalence e extrínseca aos Tukano considerando as descrições do
Capítulo 1 sobre a “fluidez” da estrutura social dos Tukano (Jackson 1983) — que o resultado
do cruzamento do dualismo diametral pelo concêntrico. Em suma, esta citação de Holy (1996)
traduz bem o que acredito ser o maior mérito do trabalho de Pozzobon (2000):
Once we started to pay due attention to how different peoples conceptualize their sociality instead of
interpretating in terms of our own analytical models, we became aware that the relationship between
any peoples’ ideology and their behavior need not be one of simple congruence, that they may hold
different models of their society which they may invoke in different contexts and for different
purposes, and they do not even have to have a concept analogous to our analytical concept of a group
when they draw boundaries and create contrasts between various collectivities. (Holy 1996: 101)
176
CONCLUSÃO
Esta breve conclusão deve ser vista como uma abertura para possibilidades futuras de
estudo. Na Introdução, foram apresentadas duas operações e dois riscos envolvidos nos
“juízos da fluidez”. A caracterização de uma sociedade como “fluida” é realizada com base
em uma comparação, um contraste entre sociedades em que uma figura como estruturalmente
estável, outra, instável. Além disso, tal juízo é condicionado pela aplicação de modelos
inadequados que no mais das vezes não incorporam a dimensão cosmológica das sociedades
julgadas como “fluidas”. Essas operações podem acarretar a reificação da amorfia dessas
sociedades, transformando os “juízos de relação” em “atributos do objeto” (Goldman & Lima
1999; cf. nota 16), bem como a partição entre um modelo mais real que outro, freqüentemente
o primeiro sendo o modelo do antropólogo e o segundo o do nativo. São precisamente essas
operações e riscos que inspiram os dois temas desenvolvidos abaixo: “sócio-lógicas” e “o
jogo das regras”. No primeiro tópico, propõem-se, experimentalmente, modos de tratar as
diferenças entre Maku e Tukano; no segundo, fazem-se alguns apontamentos sobre a
articulação entre a cosmologia e a estrutura social dos Hupda.
1. Sócio-lógicas
Tendo feito as ressalvas relativas ao trabalho de Pozzobon (2000) no final do Capítulo
5, proponho aqui uma leitura extrapolativa de sua proposta dos dois modelos de sociedade nos
Maku do Uaupés. Há, a meu ver, um efeito paradoxal nesta proposta de Pozzobon. Paradoxal,
pois foi elaborada para formalizar em modelos a diferença radical entre os Maku e seus
vizinhos ribeirinhos, mas que, porém, possibilita uma nova conexão entre estes povos se
177
levados em conta os trabalhos de Århem (1989) e S. Hugh-Jones (1993, 1995) descritos no
Capítulo 2. Com base nesta conexão, pode-se deslocar a imagem dos Maku e dos Tukano do
plano das naturezas intransponíveis “sociedades da regra” e “sociedades do improviso”
para a chave do gradiente: combinações diferenciadas das mesmas matérias sócio-lógicas, o
modelo agnático e o modelo cognático (ou consangüinidade”, conforme S. Hugh-Jones).
Considerando, como argumento no início do Capítulo 2, que um dos desafios da etnologia
sul-americana é precisamente diluir o divisor entre as estruturas sociais “complexas” e as
“amorfas”, o mesmo deve servir também para as relações entre os Tukano e os Maku na
etnologia do Noroeste amazônico. Neste sentido, equacionar a proposta de Pozzobon (2000)
aos planos analíticos propostos por Århem (1989) e S. Hugh-Jones (1993, 1995), parece-me o
caminho mais promissor, pois coloca esses povos em um gradiente entre os modelos agnático-
hierárquico e cognático-minimalista, ao invés de isolar suas estruturas sociais como
realizações unívocas e invariáveis de um ou outro modelo.
As descrições de Jean Jackson (1983), apresentadas no Capítulo 1, inspiram dois
modos de pensar a diferença entre Tukano e Maku: um categorial e absoluto, outro gradual.
Creio que ambos os modos de diferenciação são válidos: o primeiro diz respeito às imagens
de anti-humanidade que os Tukano atribuem aos Maku, o que, segundo Århem (1989),
funciona como uma espécie de dispositivo contra-devir, firmando as regras da verdadeira
humanidade tukano; o segundo estabelece passagens possíveis, o que tem implicações
históricas para a compreensão da assimilação de populações Maku por parte dos Tukano, bem
como potencializa a idéia de que Maku e Tukano combinam os mesmos modelos de
sociedade diferencialmente. No sentido de complementar estas idéias, trago a descrição que
Viveiros de Castro (2007) faz das dualidades deleuzianas:
As dualidades deleuzianas o construídas e transformadas segundo um padrão recorrente, que as
determina como multiplicidades mínimas como dualidades parciais, diria um leitor de
Strathern. Assim, toda distinção conceitual começa pelo estabelecimento de um lo atual-
178
extensivo e de um pólo virtual-intensivo. A análise subseqüente consiste em mostrar como a
dualidade muda de natureza conforme se a tome do ponto de vista de um pólo ou do outro. Do
ponto de vista do pólo extensivo (arborescente, molar, rígido, estriado etc.), a relação que o
distingue do segundo é tipicamente uma oposição: uma disjunção exclusiva e uma síntese
limitativa, isto é, uma relação ela própria extensiva, molar e atual. Da perspectiva do outro pólo
(intensivo, rizomático, molecular, dúctil, liso), porém, não oposição, mas diferença intensiva,
implicação ou inclusão disjuntiva do pólo extensivo pelo pólo intensivo ou virtual; a dualidade
posta pelo primeiro pólo é revelada como a face, a fase ou o eco molar de uma multiplicidade
molecular situada no outro pólo. É como se cada pólo “apreendesse” sua relação com o outro
segundo sua própria natureza; ou, dito de outro modo, como se a relação entre os pólos pertencesse
necessária e alternativamente ao regime de um ou de outro pólo, o regime da contradição ou o
regime da linha de fuga; ela não pode ser traçada de fora, a partir de um terceiro pólo englobante.
(Viveiros de Castro 2007: 104)
Os dois modos de traçar a diferença entre Maku e Tukano propostos por Jean Jackson
(1983), com base em sua etnografia entre os Tukano, podem ser pensados através desta
oposição entre diferenças extensivas e intensivas, molares e moleculares, o que permite
desviar de algumas armadilhas da metodologia comparativa, que está na base da produção
etnográfica sobre os povos Maku, a qual tende, via de regra, a bastar em uma diferenciação
molar e extensiva, caracterizando, como vimos, os Maku como “fluidos” e “ambíguos” em
comparação à coerência das estruturas sociais dos Tukano. A diferenciação molecular
possibilita a descrição da variação contínua entre eles, das transformações possíveis e das
gradações.
O movimento teórico, ensejado na makuologia por Pozzobon (2000), de deslocar os
Maku da imagem de meros desviantes de um modelo que lhes é alheio e imposto, colocando
suas ações na chave da escolha entre modelos alternativos, não deve, em contrapartida,
reificar os índios do rio na imagem de seguidores absolutos das regras. Assim como os Maku
“seguem” as regras ao seu modo inconstante, acredito que os Tukano “improvisem” suas
estruturas sociais ao seu próprio estilo, mais constante, se comparados às estatísticas Maku,
mas não em absoluto, como visto nas caracterizações da “fluidez” tukano no Capítulo 1.
Se considerarmos a idéia que Tukano e Maku combinam os mesmos modelos
localmente, as diferenças entre eles podem ser vistas como “singularidades”, no sentido
colocado por Marcio Goldman: “combinatórias locais (o que não significa diferença absoluta
179
e irredutível) de linhas de força difusas (o que não significa universalidade absoluta)”
(Goldman: 1999: 16). Não estariam em jogo, portanto, nem uma identidade absoluta
(redutibilidade dos Maku ao sistema uaupesino, figurando-os como desviantes) nem
relativismo generalizado (incomensurabilidade entre Maku e Tukano), mas combinatórias
locais dessas cio-lógicas que cruzam o sistema uaupesino, atualizando-se diferencialmente
entre os índios do rio e índios da floresta.
Como dito acima, as propostas de articulação de dois modelos de sociedade de
Stephen Hugh-Jones (1993, 1995) e Kaj Århem (1995) aproximam-se da proposta de
Pozzobon (2000). S. Hugh-Jones toma o plano mitológico e sua atualização nos rituais como
chave descritiva desses ideais alternativos de sociedade, ao passo que Jorge Pozzobon, assim
como Århem, descrevem-nos com base nas estruturas de parentesco. Além desta diferença
epistemológica, um aspecto a ser ressaltado: enquanto S. Hugh-Jones descreve que os
modelos alternativos nos Tukano seriam “distintos e complementares”, a descrição de
Pozzobon sugere uma relação de cruzamento, atravessamento e entropia entre os modelos,
dando a feição em constante rearranjo das sociedades dos Maku do Uaupés.
Lévi-Strauss also suggests that the House represents a form of social organisation which might be
described as standing halfway between lineal and cognatic principles of social organisation,
conflating and transcending principles which are normally taken to be mutually exclusive. This is
clearly consistent with the two different Tukanoan conceptualizations of social relationships, one
lineal, the other cognatic, projected in androgynous representations of the house (S. Hugh-Jones
1993: 98)
Se o conceito de “Casa” permite que Stephen Hugh-Jones descreva um “caminho do
meio” (halfway) entre os princípios linear e cognático articulados na sociedade tukano, as
descrições de Jorge Pozzobon sugerem que não haveria este caminho do meio”, enfim,
inexistiria algo análogo à “Casa” entre os Maku do Uaupés, um espaço físico e/ou conceitual
(considerando o caráter duplo da “Casa” nas descrições de S. Hugh-Jones, ou seja, como
construção arquitetônica e como modo de agrupamento social). A síntese entre os modelos, no
caso dos Maku do Uaupés, é uma imagem fugidia, borrada. Conforme a descrição de
180
Pozzobon, a relação entre os modelos é inconciliável, contrastiva, opositiva, contraditória, de
forma que o modelo cognático-minimalista opera a entropia do modelo agnático-hierárquico.
Há, portanto, na economia sócio-lógica maku, uma relação de desequilíbrio entre os modelos.
As formas de combinar essas “linhas de força difusas” divergem entre povos do rio e da
floresta. Esse é exatamente o ponto ao qual quero chegar: devem ser enfatizadas as
possibilidades de passagem, de transformação entre as estruturas sociais dos povos do rio e
dos povos da floresta no Noroeste, sem, entretanto, subsumir as formas diferenciadas de
atualização possível dos modelos.
Neste sentido, é no plano da distribuição socioespacial que as diferenças entre os
Maku e os Tukano se tornam mais agudas, configurando atualizações diferenciadas das
“estruturas elementares da reciprocidade” (Overing 1981, 2002). Enquanto os Tukano
distribuem suas instituições de unifiliação nos rios, atualizando no espaço as diferenças
hierárquicas dadas na mitologia (“estruturas a olho nu”, como qualifica Overing 2002), os
Maku do Uaupés operam uma sorte de embaralhamento dos clãs, compondo arranjos
bilaterais em seus círculos cognáticos, aproximando-se, assim, do “mascaramento das
diferenças” característico das sociedades da Guiana, como visto nos Capítulos 4 e 5. Portanto,
entre os Maku, ocorre uma perversão espacial das instituições de unifiliação que não mais
ocupam lugares discretos, como os sibs ribeirinhos, tendendo a uma mistura altamente volátil,
desdobrando-se nos processos recorrentes de fissão e fusão de novos coletivos.
Imageticamente, pode-se dizer que das linhas hierárquicas dos rios, os Maku tecem redes na
floresta. Essa caracterização encaminharia ao pólo molar, extensivo das diferenças entre
Maku e Tukano, o que levaria a opô-los radicalmente: um atualizando no espaço o modelo
agnático-hierárquico, o outro o cognático-minimalista. Entretanto, passando ao pólo
molecular, vale repetir uma citação (presente no Capítulo 2) de S. Hugh-Jones a respeito dos
“campos sociais” tukano: “[i]f the maloca community is like a single family, de facto the
181
territorial group is an extended endogamous kindred, as arrangement not dissimilar to that
found in the Guianas (S. Hugh-Jones 1993: 100-1). Destarte, a diferença entre Maku e
Tukano não deve implicar a fixação desses povos em um ou outro modelo; os contrastes entre
figura e fundo apresentados na Introdução são, assim, matizados.
2. O jogo das regras
No Capítulo 5, argumentou-se que a interferência entre o dualismo concêntrico e o
dualismo diametral, distribuindo o parentesco em função de uma ordem espacial escalar, torna
os coletivos ameríndios particularmente propícios à performance.
O gradiente da distância é o terreno por excelência da performação, da interação mutuamente
constitutiva entre norma e ação, estrutura e história. A simplicidade do modelo mecânico da aliança
simétrica amazônica impõe uma tradução estatística complexa (Taylor, 1983), que não pode ser
descartada pelo recurso usual à contingência demográfica: aqui, o “jogo” das regras é parte das
regras do jogo. (Viveiros de Castro 1993: 170)
Wagner (1972) comenta a respeito das diferenças entre o que são as “regras” ou “leis”
para ocidentais, que contam com os meios coercitivos para forçá-las (o Estado),
uniformizando sua aplicabilidade, e o que os antropólogos qualificam como “regras” em
sociedades não-ocidentais, sem Estado. Segundo Wagner, a teoria social baseada na idéia de
“regra” (em seu sentido estatal) tende a falhar ao esboçar uma cartografia antropológica.
The major failing of a theory of social action based on norm as ‘law’ is that it exaggerates and
emphasises the socially supportive aspects of human relations at the expense of their meaningful
content, that is, it ‘maps’ a broad spectrum of qualitatively different meanings on to the narrow
dimensions of conformity and deviance. (Wagner 1972: 605-6)
A força normativa deve, assim, ser entendida em sentido relativo in so far as they
ultimately derive from the contrastive, mutable relations that generate cultural meaning
(Wagner 1972: 607). Jean Jackson (1983), a partir de suas descrições da “fluidez” tukano,
propõe justamente o deslocamento de uma concepção de “regra” para as variações possíveis
de significado das estruturas no Uaupés: the structure has the capacity to take on different
182
meaning as we move across the Vaupés landscape seen in physical (geographical) or
social terms(Jackson 1983: 103). Assim, acredito que o problema central que se coloca não
é a “fluidez” dos Maku do Uaupés, mas a própria noção de “regra” que rege a epistemologia
dos antropólogos que os descreveram.
Ao longo desta dissertação observa-se uma dinâmica entre dois tipos de abordagem na
etnologia sul-americana, particularmente explícita nos debates entre Peter Rivière e Viveiros
de Castro (Introdução) e entre Kaj Århem e Stephen Hugh-Jones (Capítulo 2), as quais
apresentam dois modos diferenciados de conceituar as estruturas sociais. Por um lado, uma
abordagem que coloca em primeiro plano as relações de parentesco, por outro, a concepção
das diferenças na organização social das sociedades indígenas sul-americanas como modos de
agenciar o tema cosmológico da diferença, localizando seus princípios estruturantes.
Conforme Bruce Albert (1985),
C’est sans doute à ce déplacement du principe de structuration dominant du social du plan
juridico-économique de la parenté au plan rituel et métaphysique... qu’il convient en premier lieu
d’imputer le fait que bon mombre d’auteurs aient prêté à ces sociétés une sorte de flou
morphologique. (Albert 1985 : 677)
Ao final do Capítulo 5, foi colocado que a conceituação dos clãs hup exclusivamente
como instituições de unifiliação estruturadas pelas regras de exogamia é justamente a
condição para a caracterização dos Hupda como “fluidos”. Ao passo que, se considerarmos a
relevância simbólica dos clãs hup, a trama da sociedade hup ou melhor, neste ponto, da
socialidade hup toma outros contornos. Além de estratégias individuais, manipulações
genealógicas e interpretações localistas das regras de matrimônio, esta trama deve contemplar
também a agência de sombras (b’atib’) e almas (h
wäg), constituintes da pessoa que passam
ao largo da “consciência” individual, conectando-se ao cosmos, e que o, em grande parte,
focos das atenções dos Hupda no decorrer de suas vidas, como visto no Capítulo 3. Trata-se,
183
portanto, de uma trama propriamente cosmopolítica
127
, não apenas política — sociedade
reduzida a indivíduos em negociação — nem absolutamente cosmológica.
Nos Hupda, acredito que ocorre um englobamento das escolhas matrimoniais e das
regras de exogamia clânica pelo jogo de forças entre os distantes-feiticeiros (tanto afins como
agnatos) articulados ao aspecto afim da pessoa (b’atib’) e os próximos-parentes (tanto
agnatos como afins) voltados para o crescimento da h
wäg. No gradiente de diferenças
entre Hupda e Tukano, depreende-se que a perspectiva de humanidade dos Hupda afirma-se,
portanto, menos pela obediência às regras de exogamia clânica, como o fazem os Tukano com
base em sua forte crítica ao incesto (considerando as imagens de anti-humanidade dos Maku),
que pela circunscrição das relações no círculo de parentes próximos. Entretanto, nesta
dinâmica das diferenças, sempre que nos aproximamos de uma diferenciação molar, algo
escoa para o outro lado, os Hupda tomando formas tukano e vice-versa remeto aqui ao
paradoxo das descrições etnográficas sinalizado na epígrafe da dissertação, paradoxo esse do
qual nascem novos problemas, como nos lembra Marcela Coelho de Souza (1995).
Enfim, se essas sócio-lógicas comuns aos povos do Uaupés, diversamente
combinadas, são formalizadas em modelos manuseáveis pelos antropólogos, que nunca se
perca de vista seu caráter de fluxo: fluxo radical da criatividade humana, tanto dos Hupda e
dos Tukano como de seus antropólogos (Wagner 1981: 6).
127
Para esclarecimento, segue uma breve descrição do conceito de “cosmopolítica” feita por Bruno Latour a
partir do trabalho de Isabelle Stengers:
Stengers intends her use of cosmopolitics to alter what it means ‘to
belongor ‘to pertain’. She has reinvented the word by representing it as a composite of the strongest meaning
of cosmos and the strongest meaning of politics precisely because the usual meaning of the word cosmopolite
supposed a certain theory of science that is now disputed. For her, the strength of one element checks any
dulling in the strength of the other. The presence of cosmos in cosmopolitics resists the tendency of politics to
mean the give-and-take in an exclusive human club. The presence of politics in cosmopolitics resists the
tendency of cosmos to mean a finite list of entities that must be taken into account. Cosmos protects against the
premature closure of politics, and politics against the premature closure of cosmos” (Latour 2004: 3).
184
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