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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
IVANILDE FRACALOSSI
A UNIVERSALIDADE SUBJETIVA DO JUÍZO DE GOSTO
EM KANT
SÃO PAULO
2008
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IVANILDE FRACALOSSI
A UNIVERSALIDADE SUBJETIVA DO JUÍZO DE GOSTO
EM KANT
Dissertação apresentada no Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP para a obtenção do título
de Mestre em Filosofia, sob a orientação da Profª.
Drª. Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola.
SÃO PAULO
2008
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Para Ana Amélia
Agradecimentos
À Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola, quem orientou este trabalho levando
ao pé da letra o espírito das palavras de Torres Filho, de que rigor não significa rigidez.
Obrigada, professora, por tanta compreensão e pela generosidade intelectual, da qual
pude me servir desde os tempos de graduação, quando os pensamentos de Kant foram-me
apresentados.
Aos professores Márcio Suzuki e Pedro Paulo Pimenta, pela participação na
banca de qualificação e atenta leitura do texto, cujas valiosas sugestões procurei
incorporar ao meu trabalho à medida que me foi possível.
Aos colegas e amigos do grupo de estudos de filosofia clássica alemã, com
quem fiz a primeira leitura da Crítica do Juízo, e da qual surgiu o projeto desta
dissertação.
Aos professores e amigos Moacyr Novaes e Marisa Lopes, pela assistência no
começo de tudo.
Ao grupo de estudos de filosofia alemã, pelo incentivo com os colóquios anuais
e a dialética do esclarecimento.
Ao Departamento de Filosofia, pela minha formação em filosofia.
Aos amigos da Secretaria do Departamento de Filosofia, em especial à Marie e à
Maria Helena, pelo competente suporte técnico, sem o qual eu estaria em grandes apuros.
Aos meus pais, pelo amparo e aceitação incondicional da ausência que uma
pesquisa demanda.
Aos meus irmãos, pela amizade e confiança.
Ao José Luiz Fracalossi, meu marido, expresso meu profundo reconhecimento
pela paciência e pelo respeito aos meus direitos de ir e vir.
5
À Ana Amélia, minha filha, pelo abstract e revisão de texto; pelo apoio,
comprometimento e, sobretudo, pelo estímulo que sua própria existência proporciona.
Aos amigos Luís Nascimento e Bruno Nadai, pela leitura do texto e oportunos
questionamentos.
À Marilei Genther, por me deixar usufruir de seu talento poliglota e de sua
amizade constante.
À Ana Carolina Soliva, companheira de longa data.
À Profª e amiga Thelma Lessa, pelo crédito depositado.
À Sílvia Sophia, pela companhia nas altas horas e a disposição em ajudar,
sempre.
Aos amigos Eda Gamboa, Thana Mara, José Medeiros, Graziela Lima, Daniela
Wey, Jaci Miranda, meus sinceros agradecimentos pelo constante encorajamento.
À FAPESP, pelos dois anos de apoio financeiro.
Resumo
FRACALOSSI, Ivanilde Aparecida Vieira Cardoso. A universalidade subjetiva do
juízo de gosto em Kant, 2008, 136 pp. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
A universalidade do juízo de gosto não tem um princípio objetivo porque não pretende
determinar nenhum objeto. Mas para assegurar sua necessidade e escapar da contingência
da experiência, ela se ampara no princípio exemplar do senso comum (Gemeinsinn), ou
seja, num princípio subjetivo que determina apenas por sentimento, e não por conceito,
aquilo que apraz ou não apraz. No entanto, sob a pressuposição de um assentimento
universal a respeito do que é belo, a necessidade neste juízo adquire uma representação
objetiva baseada no fundamento de nosso sentimento. É na dedução deste fundamento do
sensus communis que se concentra nosso esforço nesta dissertação, pois tentaremos
mostrar que ela percorre toda a Crítica da Faculdade de Julgar Estética.
Palavras-chave: Juízo, subjetividade, reflexão, universalidade, senso comum, analogia.
Abstract
FRACALOSSI, Ivanilde Aparecida Vieira Cardoso. The subjectivity universality of
judgement of taste in Kant, 2008, 136 f. Thesis (Master Degree) Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
The universality of judgement of taste has none objective principle because does not
intend to determine any object. Nevertheless, in order to assure its necessity and to
escape from the experience’s contingency, this universality supports itself in exemplary
principle of common sense (Gemeinsinn), in other words, in a subjective principle which
determines what is pleasure or not, only by feeling and not by concept. Although, under
the presupposition of a universal agreement regarding what is beautiful, the necessity in
this judgement acquires an objective representation based on our feeling’s ground. It is
in this deduction of this ground of sensus communis that concentrates our effort in this
dissertation, because we will try to demonstrate that it courses through the entire Critique
of Aesthetic Judgement.
Keywords: Judgement, subjectivity, reflection, universality, common sense, analogy.
Índice
Introdução 9
Capítulo I – Juízo de gosto: estético ou lógico?
A especificidade do juízo de gosto: os quatro momentos lógicos
15
Capítulo II – São possíveis juízos de gosto?
Dedução dos juízos de gosto
49
Capítulo III – Há um fundamento supra-sensível para o
j
uízo
de gosto validar seu assentimento universal e necessário?
A dialética do gênio no juízo de gosto
82
Conclusão 125
Bibliografia 131
Introdução
Para cumprir nosso intuito de entender e mostrar como se fundamenta o
juízo de gosto, devemos analisar o trajeto que Kant faz para atribuir os conceitos
objetivos de universalidade e necessidade a um juízo que não tem pretensões de
objetividade teórica, é subjetivo, singular, desinteressado, dispensa os conceitos
lógicos e se ampara na aparente fragilidade de um novo princípio a priori para o juízo
compartilhado por sentimento denominado norma ideal do senso comum. Com isso, é
assegurada uma fundamentação transcendental para o juízo de gosto efetuar sua
subsunção. A validade subjetiva é condicionada pelo “alargamento do espírito” que
permite ao próprio pensamento considerar o pensamento dos outros, alargamento este
que, propiciado pela imaginação, se dá mais por meio de comparação dos nossos
juízos com os juízos possíveis, do que da comparação com os juízos reais dos outros
e, dessa forma, coloca-nos no lugar de qualquer outro homem numa condição de
dever estético.
Na Primeira Introdução, seção VIII, já encontramos um bom guia de
percurso na diferenciação estabelecida entre o modo-de-representação estético que
ocorre na estética transcendental, o modo-de-representação estético do Juízo estético
e, ainda, a diferenciação entre juízo de reflexão estético e juízo de sentidos estético. O
primeiro modo de representação diz respeito a uma estética da faculdade de
conhecimento e o segundo ao sentimento de prazer e desprazer, sendo que este é
também, por falta de expressão mais adequada, denominado sentido, já que ocorre
diante da representação do belo uma modificação em nosso estado da mente. No
entanto, este sentido nada tem a ver com a determinação do objeto, mas sim com a
determinação do juízo ou do sujeito que julga, pois a expressão estética nesse caso é
aplicada apenas às ações do Juízo e não à intuição empírica, muito menos às
10
representações do entendimento, tendo em vista que intuir ou conhecer com prazer ou
desprazer é uma receptividade do sujeito que nada contribui para a determinação do
objeto (se bem que contém as condições subjetivas para um conhecimento em geral),
logo, não se tratando, portanto, de uma representação objetiva. Assim, não pode haver
uma estética do sentimento como ciência, porque as determinações do sentimento têm
meramente significação subjetiva. Ao contrário, a estética transcendental, como teoria
da sensibilidade, pode falar de intuições sensíveis, mas nunca de juízos estéticos,
porque a representação refere-se aí ao objeto, para o conhecimento do mesmo, onde a
forma da sensibilidade, pela qual o sujeito é afetado, é transferida ao objeto como
fenômeno e, conseqüentemente, todos os juízos envolvidos nesta estética têm de ser
lógicos.
A confusão na expressão “modo de representação estético” é eliminada se
entendermos que a intuição sensível é condição de apreensão do objeto, como
fenômeno, para o conhecimento do mesmo, mas ela não tem a ver com as faculdades
na Crítica do Juízo, as quais excitam o sentimento de prazer e desprazer, sendo, pois,
apenas a intuição formal, como exposição (Darstellung) da imaginação, a operar
nesta relação. Nas duas faculdades da mente, tanto na do entendimento quanto na do
Juízo, as faculdades envolvidas são as mesmas, isto é, o entendimento e a
imaginação, só que o modo como elas operam é diferente porque elas têm intuitos
diferentes. O juízo estético é um discurso da própria reflexão, onde o jogo das
faculdades é voltado para elas mesmas, o que torna este juízo puramente formal e a
Crítica do Juízo abstraída de qualquer materialidade. Portanto, um Juízo estético
pode determinar o sentimento do sujeito diante de uma representação bela
(Erscheinung), e um Juízo lógico é aquele da analítica transcendental que determina
um objeto (Phänomen) cientificamente, ligando o predicado ao conceito desse objeto.
11
Para eliminar de vez o equívoco terminológico, se faz necessária a explicação da
sensação envolvida no sentimento, o que encontramos na mesma seção:
E, embora essa sensação não seja uma representação sensível de um objeto, no
entanto, como subjetivamente está vinculada com a sensibilização do conceito do
entendimento pelo Juízo, ela pode, como representação sensível do estado do sujeito
que é afetado por um ato daquela faculdade, ser atribuída à sensibilidade, e um juízo
pode ser denominado estético, isto é, sensível (segundo o efeito subjetivo, e não
segundo o fundamento-de-determinação), embora julgar (ou seja, objetivamente) seja
uma ação do entendimento (como faculdade-de-conhecimento superior em geral), e
não da sensibilidade
.
1
O que Kant quer dizer aqui, é que a imaginação, que é uma faculdade
sensível, está envolvida no livre jogo, e de um modo diferente daquele que operava
no esquematismo transcendental, onde era reprodutora e estava subordinada ao
entendimento. Aqui ela é livre e produtora, joga com o entendimento (que não tem
mais a função legisladora) numa proporção favorável que pode ser sentida. Mas é
preciso não confundir a sensação dos sentimentos dos juízos estéticos de reflexão
com aquela sensação que é imediatamente produzida pela intuição empírica do
objeto, como a que ocorre no juízo de sentidos estético ao apreciar um belo jardim,
por exemplo. Esta sensação é de agrado e não de sentimento de prazer ou desprazer,
nesta, a finalidade é formal, subjetiva, pois sua determinação está apenas no livre jogo
das faculdades, que é o exercício da consciência reflexionante anterior ao sentimento
de prazer; onde “a finalidade subjetiva é pensada antes de ser sentida”
2
. No juízo de
sentidos estético a finalidade é material (utilitária), isto é, “o predicado exprime a
referência de uma representação imediatamente ao sentimento de prazer [agrado], e
1
Kant, I. – Duas Introduções à Crítica do Juízo, organização de Ricardo R. Terra, p. 60.
2
Idem, Ibidem, p. 61.
12
não à faculdade-de-conhecimento”
3
. Por conseguinte, é de extrema importância nesta
diferenciação, enfatizar a anterioridade da reflexão em relação ao prazer, pois é isso
que faz com que o juízo estético pertença à faculdade de conhecimento superior
segundo seus próprios princípios, “sob cujas condições subjetivas, e no entanto
também universais, é subsumida a representação do objeto”.
4
Com a contemplação do
belo através de um juízo, Kant combate o hedonismo, como diz Lebrun, pois o prazer
desinteressado do juízo estético é o signo de uma pretensão à universalidade e
necessidade deste juízo, pois é “para a esfera dos sujeitos que julgam que a
universalidade estética estende o predicado”.
5
Posto isso, no entanto, para se ter uma compreensão deste empreendimento,
entramos na metodologia kantiana para verificar a especificidade deste juízo que,
diferentemente das funções que exercia nas duas primeiras Críticas, traz nesta
Terceira peculiaridades próprias. Assim, começamos por analisar os quatro momentos
lógicos expostos na “Analítica do Belo”
e, uma vez definido o traço próprio que cada
momento indica para o juízo de gosto, partimos para a sua Dedução, a qual é exigida
“não para mostrar a possibilidade de fato do juízo de gosto, mas para inscrevê-lo em
uma faculdade autônoma”
6
e mostrar a possibilidade da comunicação direta que o
juízo estético vai propiciar entre os homens sem precisar recorrer à mediação de
conceitos, como na Crítica da Razão Pura, ou da lei, como na Crítica da Razão
Prática.
Para analisar a dedução, achamos por bem, em primeiro lugar, fazer um
paralelo com as deduções das outras duas Críticas para, depois, partir do § 16 da
Crítica da Razão Pura, onde Kant deixara aberto o problema da comunicabilidade
3
Idem, Ibidem, p. 60.
4
Idem, Ibidem, p. 61.
5
Guillermit, L. – L’Élucidation Critique du Jugement de Goût selon Kant, p. 89.
6
Lebrun, G. –Kant e o Fim da Metafísica, p. 493.
13
intersubjetiva. A consciência transcendental do “eu penso”
7
, expressa na primeira
Crítica, por anteceder as categorias já que as sintetiza, coincide com aquele estado
pré-objetivo da mente, onde acontece o livre jogo das faculdades na terceira Crítica,
em que o juízo, diante de uma representação bela, suscita um sentimento de prazer
desinteressado válido universalmente.
Porém, a Analítica não é suficiente para a completa dedução desses juízos,
como defendem muitos comentadores de Kant, sendo também preciso abordar a
Dialética, porque o senso comum que caracteriza a universalidade do belo está na
convergência das três faculdades superiores da mente, razão, entendimento e Juízo.
Nossa leitura é também contrária às opiniões que afirmam que Kant, na Dialética,
tenta uma dedução adicional para favorecer quem ainda poderia estar insatisfeito com
aquela aplicada na Analítica. Ora, a vinculação entre as faculdades está pressuposta
desde o início com a instância subjetiva do livre jogo e a finalidade formal; a dedução
desse princípio de finalidade na Analítica (§§ 30-38) serve apenas como prolegômeno
para a dedução do juízo de gosto, como afirma Allison
8
com muita propriedade.
Afinal, porque Kant partiria de um substrato pré-lógico para determinar um juízo cujo
sentimento adquire estatuto transcendental? Como se explicaria a norma
indeterminada do senso comum tomada como fundamento do juízo de gosto, ou
ainda, por que afinal a linguagem formal da reflexão emitiria uma voz universal se
fosse para não ser ouvida? Se a filosofia transcendental é a essência da palavra, como
as entrelinhas kantianas revelam, é justamente na Dialética, com a solução da
antinomia, que pode ser encontrado um acordo entre as partes, bem como é ali que se
dá a desobstrução para o alcance do supra-sensível.
O livre jogo almeja uma proporção ideal das faculdades, e é o gênio que
fornece essa proporção, já que encontra na faculdade da imaginação, que aqui é
7
Segundo Allison, Kant’s Theory of Taste, p. 191, este é o lugar deixado no esquema kantiano para
intuições que não são trazidas sob categorias.
8
Allison, Ibidem, p. 64.
14
produtora, conseqüentemente, menos sob coação de regras, o seu terreno propício. O
gênio é um princípio formal e a expressão arrematada da ação do juízo reflexionante;
é ele que mantém e anima o jogo por meio das Idéias estéticas que produz e, por isso,
está na solução da antinomia como o conceito indeterminado que faz a passagem ao
supra-sensível simbolicamente, heuristicamente. É deste substrato mais profundo da
mente, onde ocorre o livre jogo das faculdades, que devemos partir para o
simbolismo, onde o gênio, através da arte, torna possível a passagem da natureza ao
supra-sensível, proporcionando a confluência das faculdades superiores, “pois não
resta nenhuma outra saída para fazer a razão concordar consigo mesma”.
9
E é aqui,
neste acordo livre e indeterminado das faculdades, que se poderá investigar o
problema do fundamento do senso comum e da universalidade do juízo de gosto.
9
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, tradução de Rohden e Marques, p. 186 (B 239).
Capítulo I
Juízo de gosto: estético ou lógico?
Pode-se dizer que é verdadeira arte
aquela que não parece ser arte.
*
Rafael de Urbino
A especificidade do juízo de gosto: os quatro momentos lógicos
**
Ao estudar a Crítica do Juízo, deparamo-nos com vários, à primeira vista,
“paradoxos”, os quais exigem explicação se quisermos continuar num caminho
seguro. Um deles já se faz claramente presente logo no primeiro passo que damos em
seu limiar: se o juízo de gosto é subjetivo e não de conhecimento, o que faz ele
inserido na tábua das funções lógicas dos juízos que se encontra no parágrafo 9 da
primeira Crítica, da qual o autor lança mão para conduzir os quatros momentos que
iniciam esta Crítica, justamente onde vai dar a definição dos juízos estéticos? Por que
usar como base essa tábua de funções lógicas para classificar este juízo se ele
praticamente se contrapõe àquele?
Kant, já no primeiro parágrafo da “Analítica do Belo”
1
oferece fortes
indícios para a resposta a esta pergunta. “Para distinguir se algo é belo ou não,
*
“Si po dir quella esser vera arte che non pare esser arte”.
**
Para ler a “Analítica do Belo”, usamos a tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho (§§ 1-22). Os
demais parágrafos mencionados foram baseados na tradução de Valerio Rohden e António Marques,
obras referenciadas na bibliografia deste trabalho. Em ambas as traduções a paginação das citações
vem acompanhada da original.
1
Guillermit, L. - L’Élucidation Critique du Jugement de Goût selon Kant, p. 85. Ali ele diz que a
Exposição de uma espécie estética dos juízos constitui o que Kant chama “A Estética transcendental da
faculdade de julgar”, sem portanto usar este título na Analítica para evitar prováveis confusões. Com
isso, Guillermit nos alerta sobre o papel fundamental que a lógica desempenha no sistema kantiano
apontando sua presença também na “Analítica do Belo”, mas com o cuidado devido para não confundi-
la com a lógica empregada na “Doutrina Transcendental dos Elementos”, onde Kant trata de um
16
referimos a representação, não pelo entendimento ao objeto, para o conhecimento,
mas pela imaginação (talvez vinculada com o entendimento)
2
ao sujeito e ao seu
sentimento de prazer ou desprazer”.
3
Naturalmente neste trecho Kant expressa apenas
uma possibilidade de vinculação do entendimento com a imaginação, mas um pouco
antes, em uma nota do próprio título deste primeiro momento, é convicto quando
afirma que “os momentos, a que esse Juízo atende em sua reflexão, eu os procurei
tomando por guia as funções lógicas de julgar (pois no juízo-de-gosto está sempre
contida ainda uma referência ao entendimento)”. Quer dizer, na relação com o juízo
de gosto, a simples subjacência do entendimento justifica a recorrência de Kant à
forma lógica. O juízo de gosto é um juízo estético, de reflexão, e, sendo um juízo, a
tábua dos juízos lógicos, já que contém os momentos que organizam todos os modos
possíveis de unir as representações em uma consciência, pode servir de guia confiável
para os juízos estéticos como se fossem lógicos. Nesse sentido, parece estar correta a
inferência de Guillermit de que a “Analítica” poderia ter como título: “A Estética
Transcendental da Faculdade de Julgar”, pois o juízo de gosto se ampara no que já
existe e acrescenta o que falta. Na primeira Crítica, a Doutrina Transcendental dos
Elementos revelou, com efeito, que a subsunção daquela faculdade se exerce na relação do
entendimento com a imaginação, que deve produzir um esquema para tornar os conceitos
conhecimento voltado à ciência. Para julgar o belo é preciso escapar tanto do que fez o proeminente
analista Baumgarten, ou seja, colocar regras de subsunção à estética dando a ela um estatuto teórico,
quanto de uma significação psico-antropologizante, o que pode acontecer se não for preservado o
caráter transcendental do juízo estético, ou seja, numa estética transcendental da faculdade de julgar
(Kant não usa este termo no título da Analítica, mas sim na “Observação Geral sobre a Exposição dos
Juízos Reflexionantes Estéticos” – B 118), deve-se levar em conta unicamente os juízos estéticos
puros [cf. nota na CRP, A 21, B 35 e a última alínea da seção XI da Primeira Introdução à Crítica do
Juízo, onde Kant parece esclarecer o que estava meio obscuro da nota da CRP]. Parece-nos que é isso
que Guillermit salienta quando escreve: “Mas os dois pontos [lógico e estético] aparecem, de imediato,
estreitamente ligados na medida em que o método e o objeto só podem coincidir ao mesmo tempo em
que eles começam por se dar como distintos. O signo exterior mais imediatamente manifesto dessa
distinção se indica nos títulos: uma Analytique cujo objeto próprio é o Belo se organiza segundo os
momentos que comporta o juízo de gosto”. Embora a estética aqui deva ser entendida em sentido
transcendental, as fontes principais do gosto não são a priori, mas empíricas, logo, como Kant
especifica na nota mencionada, não podem servir para leis determinadas a priori. Esta é uma questão
pertinente à gênese da Crítica do Juízo, para a qual sugerimos, entre outros, o texto de De
Vleeschauwer, La Déduction Transcendantale
dans L’Ouvre de Kant, tomo troisième, pp. 338ss; e
também o de Dumouchel, Kant et la Genèse de la Subjetivité Esthétique, p. 147.
2
Grifo nosso.
3
Kant, I. – “Analítica do Belo”, p. 303 (B 3-4).
17
aplicáveis aos fenômenos. Ou seja, são as mesmas faculdades que entram em jogo no juízo
de gosto, qualquer que seja a mudança que interceda em suas relações.
O caráter inteiramente formal do argumento de Kant, justifica suficientemente a sua
escolha deste método: por mais original que possa ser a especificidade de um juízo
de gosto, ele não permanece menos um juízo quanto à sua forma, pois, referir a
representação ao objeto por meio do entendimento como faz o juízo na lógica, ou
referi-la ao sujeito por meio da imaginação, é sempre referir, e este pôr em relação
constitui a forma do juízo, tomado em seu sentido mais amplo.
4
Na Primeira Introdução, Kant esclarecia os equívocos que poderiam causar
os juízos estéticos se não se considerar que pela expressão modo-de-representação
estético
se entende a referência da representação a um objeto, como fenômeno, para
conhecimento do mesmo; pois neste caso, a expressão estético significa que a uma
tal representação se prende necessariamente a forma da sensibilidade (como o
sujeito é afetado) e esta, por isso, é inevitavelmente transferida ao objeto (mas
apenas como fenômeno).
5
Assim, para evitar mal-entendidos, Kant sugere usar os termo estético apenas às ações
do Juízo e não à intuição [empírica] ou às representações do entendimento, porque o
próprio termo “juízo estéticose contradiz se pensado como determinação objetiva.
“Pois intuições podem, por certo, serem sensíveis, mas julgar pertence
exclusivamente ao entendimento (tomado em sentido mais amplo)”.
6
Com isso
percebemos que aqui os conceitos já mencionados nos Prolegômenos (§ 18), onde
4
Guillermit, op. cit. p. 87.
5
Kant, I. – Duas Introduções à Crítica do Juízo, organização de Ricardo R. Terra, p. 58.
6
Idem, Ibidem, p. 59.
18
Kant fazia a distinção entre juízo de experiência e juízo de percepção, estão
aprimorados.
E mais tarde, em sua Lógica, Kant deixa bem definidas, talvez até devido ao
trabalho que tivera na Crítica do Juízo, as especificidades da lógica e da estética:
Devendo ser considerada como uma ciência a priori, ou como uma doutrina para
um cânon do uso do entendimento e da razão, a Lógica distingue-se essencialmente
da Estética que, enquanto mera crítica do gosto, não tem cânon (lei), mas apenas
uma norma (um modelo ou prumo para a simples avaliação), que consiste no
assentimento universal. Pois a Estética contém as regras da concordância do
entendimento com as leis da sensibilidade; a Lógica, ao contrário, contém as regras
da concordância do conhecimento com as leis do entendimento e da razão.
7
A qualidade do juízo de gosto é tratada no primeiro momento da "Analítica
do Belo" e é estabelecido ali o primeiro modo do juízo de gosto, que é o de ser
estético, cujo prazer ou desprazer pelo belo está vinculado apenas com à forma da
representação do objeto, isto é, ele não é nem agradável nem bom, uma vez que o
agradável e o bom estão voltados à representação da existência do objeto e, sendo
assim, eles são condicionados a uma satisfação voltada a meios e fins. O juízo de
gosto, ao contrário, é livre, contemplativo, e sua satisfação não depende de qualquer
interesse. Com a noção de satisfação sem interesse, fica clara qual é aqui a
preocupação de Kant: precisa demarcar bem a diferença entre o juízo estético e o
juízo sobre o bom e o útil, conseqüentemente, faz também a separação entre o prazer
e a faculdade de desejar, seu principal objetivo agora. Escreve no § 5:
7
Kant, I. - Lógica, tradução de Guido de Almeida, pp. 32-33 ou A 8-9.
19
O agradável e o bom têm ambos uma referência à faculdade-de-desejar e nessa
medida trazem consigo, aquele uma satisfação patologicamente condicionada (por
estímulos, stimulus), este uma satisfação prática pura, que é determinada, não
meramente pela representação do objeto, mas ao mesmo tempo pela vinculação
representada do sujeito com a existência do mesmo. Não é meramente o objeto, mas
também a existência do mesmo que apraz. Por isso o juízo-de-gosto é meramente
contemplativo, isto é, um juízo que, indiferente à existência de seu objeto, apenas
mantém-juntos sua índole com o sentimento de prazer e desprazer
.
8
A contemplação do belo não é fundada em conceitos nem destinada a eles, porque o
juízo de gosto não é um juízo de conhecimento teórico, tampouco prático.
Lebrun nos ajuda
a entender o porquê de tal objetivo. Para realizar seu projeto crítico, Kant precisa
destruir a herança do postulado aristotélico, a qual destituía o prazer de qualquer
autonomia: “Vida e prazer parecem indissoluvelmente ligados e não admitem ser
separados: sem atividade não há prazer – sem prazer, nenhuma atividade que seja
perfeita”.
9
Entre os quatro momentos “lógicos” do juízo-de-gosto, Kant considerou a
qualidade em primeiro lugar porque precisava descartar a existência e, com ela,
afastar toda a propriedade empírica do objeto antes de se ocupar com a universalidade
inscrita no segundo momento, pois toda universalidade repousa sobre princípios a
priori. É na satisfação de cada sujeito afetado pela forma do objeto que ocorre a
universalidade do juízo estético, conseqüentemente, é para o sentimento de prazer, em
seu estado puro, que é preciso encontrar o novo princípio a priori exaustivamente
buscado por Kant.
Mas que universalidade Kant pleiteia aqui, se este juízo opera sem postular
regras, como no caso do juízo lógico? Já sabemos, diante do que vimos, que o prazer
8
Kant, – "Analítica do Belo", pp. 307-308 (B 16).
9
Aristóteles – Ética a Nicômaco, 1175a, 20. Apud Lebrun, Kant e o Fim da Metafísica, p. 422.
20
da "Analítica do Belo" não é nem moral, nem sensorial, senão seria interessado, e isso
comprometeria a autonomia do juízo. “Conseqüentemente, tem de prender-se ao
juízo-de-gosto, com a consciência da separação nele de todo interesse, uma pretensão
à validade para todos, sem universalidade colocada em objetos, isto é, deve estar
vinculada com ele uma pretensão à universalidade subjetiva”.
10
No que refere-se à quantidade, expressa no segundo momento, este juízo é
subjetivo, singular, pois nele não pode haver regras que ditam se uma coisa é bela ou
não; não há aqui uma quantidade objetiva do juízo, porque ele não repousa em
nenhum conceito, e a satisfação universal que é alcançada através do belo é apenas
sobre a proporção de sua representação ao sentimento de prazer e desprazer. Mas
ainda não está claro como se dá esta satisfação através do belo que difere daquela que
é alcançada pelos sentidos. Em que repousa, afinal, isso que Kant chama também de
validade comum (Gemeingültigkeit), se tal validação não pode contar com a ajuda de
conceitos lógicos?
Ainda neste momento da "Analítica do Belo", no § 9, Kant nos presenteia
com aquilo que ele mesmo afirma ser “a chave da crítica do gosto”, a saber, a
precedência do juízo em relação ao prazer
11
. E isso, por si só, já indica porque ele se
distingue do agradável, que repousa meramente na sensação e sua representação é
referida ao objeto, não ao sujeito. O belo o é na representação da representação do
objeto, de forma mediata, e não imediatamente pelos sentidos; por isso, se o prazer
precedesse o juízo, este juízo não seria estético, mas sensível, de agrado e não de
10
Kant, Ibidem, p. 309 (B 17-18).
11
Figueiredo, V. A. – “Kant e a mimese”, in Studia Kantiana ,vol. 3, nº 1, 2001, p. 226. Sobre este
ponto, a autora fala que “será essa precedência portanto que marcará a especificidade da estética
kantiana frente as demais Estéticas, quero dizer, o seu universalismo. O juízo de gosto só pode ser um
juízo universal porque ele justamente não está fundado numa sensação e sim numa reflexão....Ou seja,
não há, para Kant, qualquer possibilidade de uma imediaticidade do belo. Do ponto de vista formal, o
sujeito do gosto é qualquer um, mas, do ponto de vista material concreto (da experiência) ele será a
cada vez, um. Como é verdade que, não havendo objeto exterior a suscitar e provocar a experiência,
esta última não acontece, deve concluir que, a cada obra ou a cada reflexão, produz-se um sujeito
adequado a ela, diferente a cada vez”.
21
prazer. O sentimento de prazer deve ser o resultado da reflexão estética, do
julgamento do objeto dado e não o que suscita ou orienta o juízo. Mas ainda fica a
pergunta: se o juízo de gosto não é um juízo lógico, como vimos, como justificar essa
precedência do juízo em relação ao prazer? Essa antecedência não seria lógica?
No fundamento de determinação deste juízo, uma vez que ele é subjetivo,
não se pode encontrar um conceito do objeto e, sendo assim, só pode estar lá um
“estado da mente” (Gemütszustand) do sujeito na representação dada, para que ele
possa comunicá-la universalmente. É, entretanto, a harmonia de todas as faculdades
mentais
12
e, ao mesmo tempo, a mais pura forma da consciência, que tem uma íntima
relação com aquele estado elementar cujo conteúdo é indeterminado. Na seção VIII
da Primeira Introdução Kant define o sentimento de prazer e dor como a única forma
de sensação que nunca pode indicar uma qualidade nos objetos. A diferença entre este
sentimento e o de agrado é que o prazer ou desprazer é
apenas o índice qualitativo da consciência como uma sucessão, enquanto o outro
estado de sentimento é o sentido vago da duração e apenas significa que temos
consciência. Este último tem uma afinidade mais próxima com sensação do que
com aquela forma da sensação, cujo significado se esgota no simples sentimento de
prazer ou dor. Mas não é sensação. É o estado que existe antes de ter emergido a
distinção entre a consciência enquanto afetiva e enquanto afetante.
13
Kant admite que essa representação, embora não produza um conhecimento
determinado, já faz parte do processo do conhecimento e, por isso, tem de ser dada
12
Macmillan – The Crowning Phase of the Critical Philosophy, pp.181ss, onde o autor sustenta que
este estado da mente é a original harmonia de todas as faculdades e não somente das intelectuais, “a
original simplicidade delas, de intelecção, emoção e conação; o Gemütskräfte mais que o
Erkenntnisvermögen, e Kant caracteriza a consciência deste estado pelo sentimento de prazer e dor.
(...) prazer-dor não é psychosis, mas a ressonância dela, e não ilumina elementos explícitos na
consciência apenas indica a atitude prática da consciência para apresentações. (...) infelizmente não
temos nenhuma outra palavra para expressar este estado primordial da consciência exceto o termo
comum ‘sentimento’”.
13
Idem, Ibidem.
22
como condição para o conhecimento em geral
14
, ou seja, deve haver “um ponto de
referência universal com o qual o poder de representação de todos é obrigado a
concordar”. Assim, esse “estado da mente” é alcançado numa proporção adequada
dos poderes de representação (ou conhecimento) entre si. Kant diz:
Os poderes-de-conhecimento que são postos em jogo por essa representação estão
nesse caso em um livre jogo, pois nenhum conceito determinado os restringe a uma
regra particular de conhecimento. Portanto, o “estado da mente” nessa
representação tem de ser o de um sentimento do livre jogo dos poderes de
representação em uma dada representação, para o conhecimento em geral. Ora,
pertencem a uma representação, pela qual um objeto é dado, para que em geral haja
a partir disso conhecimento, imaginação para a composição do diverso da intuição e
entendimento para a unidade do conceito que unifica as representações.
15
É importante salientar o fato de que aqui o entendimento desempenha apenas
o papel de “uma faculdade de determinação do juízo e de sua representação (sem
conceitos)”, segundo sua proporção ao sujeito e a seu sentimento interno, e, aliás, na
medida em que esse juízo é possível segundo uma regra universal. Ou seja, o
entendimento determina o juízo, não o objeto, porque aqui ele não tem a função de
fornecedor de um conceito determinado, como tinha na primeira Crítica, aqui ele é
apenas uma simples faculdade de conceitos. Quer dizer, lembrando a alusão de
Guillermit ao regime monárquico, o entendimento não governa mais, mas ainda tem
um papel importante porque continua a reinar.
14
Lebrun, op. cit. p. 494: “A harmonia entre imaginação e entendimento cessa de ser um acaso
subjetivo e desvela a possibilidade última de conhecimento, a saber, ‘a relação recíproca das
faculdades representativas enquanto elas colocam uma representação dada em relação com o
conhecimento em geral’ (§ 9).”
15
Kant, Ibidem, p. 314 (B 29).
23
A faculdade de conceitos, quer sejam estes confusos ou claros, é o entendimento, e,
embora para o juízo de gosto, como juízo estético (como para todos os juízos),
também seja requerido entendimento, este não lhe pertence, no entanto, como
faculdade de conhecimento de um objeto.
16
Assim, não há passagem do juízo para a categoria do entendimento. “O juízo de
gosto consiste na subsunção da própria faculdade da imaginação à condição de que o
entendimento em geral chegue da intuição a conceitos”.
17
Na reflexão, é a satisfação,
e não a definição do propósito ou interesse que é essencial; o livre jogo das
faculdades é seu próprio fim, não tendo a mente qualquer interesse fora de seu
processo.
(....) este jogo livre das faculdades acontece quando a mente está passando por uma
experiência para a qual não há categoria adequada de conhecimento que lhe
corresponde, seja numa contemplação aparentemente passiva da percepção estética,
seja na atividade primitiva da criação artística. Tampouco precisamos saber o que
estamos querendo, mesmo depois que ele [o jogo] foi percebido.
18
A grande diferença, pois, que Kant estabelece entre os dois Juízos
(determinante e reflexionante) é que um é livre e funciona sob um princípio, enquanto
o outro não é livre e funciona sob uma regra fixa. O juízo reflexionante é uma
mera faculdade para refletir sobre uma representação dada em prol de uma idéia
problemática (Über Philosophie überhaupt, p. 589), isto é, uma idéia que pode ser
16
Idem, Ibidem, pp. 322-323 (B 48-49).
17
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, tradução de Valério Rohden e Antonio Marques, 2ª ed., p.
133 (B 146).
18
Macmillan, pp. 49-50. Lembra também uma ilustração interessante que Kant faz sobre esta
distinção, e sempre retirada do arcabouço jurídico: “o servente que é solicitado para obedecer uma
ordem definida, precisa apenas do entendimento; enquanto o oficial que recebe apenas uma comissão
geral a qual ele deve interpretar para ele mesmo em emergências especiais, precisa do Juízo”.
24
exatamente o que você quer, uma idéia que é percebida como o conceito definido de
uma representação dada, em cujo caso o juízo se tornaria determinante, estando a
parte e o todo à disposição.
19
Na faculdade de julgar, o juízo reflexionante sempre funciona com uma
expectativa para o determinante, como se um juízo determinante fosse realmente
possível. Sendo assim, percebemos sem esforço que o juízo reflexionante é a função
mais ampla da qual o determinante é somente um caso especial. “Todo pensamento é
a subsunção de um particular sob um universal, e a reflexão é uma subsunção em
geral, determinação é uma subsunção em particular”.
20
Dito de outro modo, o juízo
reflexionante, como não sofre coerção de regras, leva a reflexão às últimas
conseqüências.
Guillermit, faz um estudo baseado nas Reflexões 650ss, momento em que a
Crítica do gosto estava prestes a vir à luz e Kant buscava estabelecer o princípio a
priori para o sentimento de prazer e, com isso, alcançar uma universalidade e
necessidade livres de regras para poder diferenciar o juízo estético do juízo de mero
agrado. Com as Reflexões também estudou a famosa carta a Reinhold de dezembro
de 1787, e suas análises a respeito do Gemütszustand tiradas daí, pareceu-nos, tomam
direções semelhantes às de Macmillan.
(...) o juízo de gosto, cuja singularidade Kant já reconhecera nas Reflexões, se
efetua in concreto, ele visa, através do caráter privado do sentir um universal que
ele não dispõe in abstracto sob a forma do conceito. (...) a reflexão do juízo de
gosto é um tipo de reflexão que não chega ao fim, não acaba, (...) ela se nutre, se
19
Idem, Ibidem.
20
Idem, Ibidem.
25
fortifica e se auto reproduz, este estado de espírito é comparado àquele que
comporta passivo uma atenção amparada numa particularidade da representação.
21
Mas isso não pode levar à idéia de que o juízo de gosto é, em suma, um
juízo lógico detido antes do termo de seu processo? Lembremos o que Kant explica
sobre isso no início do § 35 da Crítica do Juízo:
O juízo de gosto distingue-se do juízo lógico no fato de que o último subsume uma
representação a conceitos do objeto, enquanto o primeiro não subsume
absolutamente a um conceito, porque do contrário a necessária aprovação universal
poderia ser imposta através de provas. Não obstante, ele é semelhante a um juízo
lógico no fato de que ele afirma uma universalidade e necessidade, mas não
segundo conceitos do objeto, conseqüentemente apenas subjetiva.
Mais uma vez deparamo-nos com a importância heurística na sistemática
kantiana: o método usado de fundamentar a tábua dos juízos lógicos no como se
permite mostrar as construções paradoxais de Kant para apresentar a natureza do
juízo estético. Ele é lógico e não é lógico, quer dizer, é lógico porque é um juízo, mas
não determina porque é estético. Tem uma forma lógica apenas porque precisa do
apriorismo para validar a universalidade subjetiva, mas ele não determina o objeto
como exige o conhecimento científico, não tem pretensões de conhecimento objetivo,
apenas proporciona a representação de um determinado objeto, ou seja, julga
esteticamente o objeto, “e este julgamento precede o prazer relativo a ele” e, ao
mesmo tempo, “é o fundamento desse prazer face à harmonia (Zusammenstimmung)
das faculdades de conhecimento”.
22
E aqui Kant faz uma advertência: “mas é
somente sobre aquela universalidade das condições subjetivas do julgamento do
21
Guillermit, op. cit. p. 44.
22
Kant, – "Analítica do Belo", p. 314 (B 29-30).
26
objeto que se funda essa validade subjetiva universal da satisfação que vinculamos
com a representação do objeto que denominamos belo”.
23
Essa advertência é
importante porque ela evita que se confunda o prazer alcançado na comunicação do
estado da mente com a tendência natural (empírica, psicológica, individual) do
homem à sociabilidade. Não é isto que acontece e nem poderia acontecer aqui.
Lebrun diz sobre isso:
Mesmo se um juízo de agrado obtém a unanimidade, ela sempre será considerada
como contingente; mesmo se, de fato, julgo em nome de todos os outros, de direito
profiro apenas para mim. Ao inverso, mesmo se ninguém assente ao meu juízo de
gosto, tenho o sentimento de julgar universalmente. (...)
o prazer desinteressado é
o signo de uma pretensão espontânea à universalidade.
24
E, outra vez, Kant nos lembra do método heurístico, quando sugere que
deixemos em suspenso essa questão para que se tenha a resposta de uma outra mais
urgente: Se e como são possíveis juízos estéticos a priori. O problema aqui é o
mesmo da Crítica da Razão Pura: Como são possíveis juízo sintéticos a priori?
Agora, as formas da experiência que constituem o sentimento estético são
combinações de elementos trazidos para uma relação inteiramente nova, algo
antecedente àquilo que nosso conhecimento concebe.
Não são representações no espaço como as que são simplesmente percebidas, mas
como as que são sentidas; e a questão é se há um novo tipo de a priori para validar
estas sínteses. (...) as formas da experiência não são análises óbvias, expressões
23
Idem, Ibidem.
24
Lebrun, – Kant e o Fim da Metafísica, pp. 485 e 492.
27
sinônimas para o que nós já sabemos, elas são uma nova linguagem com um
elemento sintético real que nos atinge forçosamente.
25
Ao interpretar como tomamos consciência da concordância do prazer, Kant
descarta a possibilidade de ser intelectualmente pela consciência de nossa atividade
intencional com que as pomos em jogo. Se a consciência dessa proporção fosse
intelectual, a representação dada que ocasiona o juízo de gosto, seria um conceito e,
num julgamento de um objeto qualquer a ser determinado, este conceito é que
unificaria as faculdades envolvidas, entendimento e imaginação, exatamente como
ocorre no esquematismo objetivo do Juízo na primeira Crítica, e por razões óbvias,
este juízo não seria um juízo de gosto, logo, “não seria emitido em referência a prazer
ou desprazer”. A unidade subjetiva da proporção só pode dar-se a conhecer
esteticamente pelo mero sentido interno e sensação, pois o juízo de gosto determina o
objeto quanto à satisfação e ao predicado da beleza, sem mediação de conceitos,
porque não tem o intuito de conhecer este objeto. A vivificação de ambas as
faculdades (imaginação e entendimento), para uma atividade indeterminada porém
unânime,
mediante a ocasião de uma representação dada, ou seja, aquela que pertence a um
conhecimento em geral, é a sensação, cuja comunicabilidade universal o juízo de
gosto postula (postuliert). Uma proporção objetiva só pode, decerto, ser pensada,
mas na medida em que, segundo suas condições, é subjetiva, ela é sentida no efeito
sobre a mente; e quando ocorre uma proporção que não põe em seu fundamento
nenhum conceito (como a dos poderes de representação para uma faculdade de
conhecimento em geral), também não é possível nenhuma outra consciência dela do
25
Macmillan, op. cit p. 108.
28
que por sensação do efeito que consiste no jogo facilitado de ambos os poderes da
mente (a imaginação e o entendimento) vivificados pela concordância recíproca.
26
A possibilidade de se anunciar um juízo de gosto implica as condições de
possibilidade do juízo. Tal afirmação tem causado objeções por ser considerada uma
interpretação superficial e sem conteúdo plausível. A regra imediata do “como se
fosse objetivo” dada ao juízo de gosto pelas faculdades envolvidas, gera a pretensão
universal subjetiva do acordo como se ela fosse uma universalidade objetiva e, dessa
forma, angaria-se uma pretensão à universalidade de direito. Por isso Kant recorre à
lógica transcendental e não à geral para cuidar deste juízo. O como se envolve uma
precedência lógica de fato (empírica) que o filósofo lógico não consegue perceber,
uma vez que para o matemático, quem julga não tem a menor importância. O filósofo
transcendental é o único que percebe a universalidade do belo, embora todos nós
tenhamos o pressuposto do que é belo, já que a consciência estética é emitida pelo
prazer que sentimos ao sermos afetados pela forma do objeto belo, e este prazer é
imputado a nós pela reflexão formal como necessário.
Kulenkampff, em seu artigo “A chave da Crítica do gosto”
27
, diz que esta
chave (Schlüssel), não apenas abre as perspectivas do julgamento do belo, mas
26
Kant, - "Analítica do Belo", p. 315 (B 32).
27
Kulenkampff, J. – “A chave da crítica do gosto”,in Studia kantiana, vol. 3, nº 1, 2001. Aponta várias
direções de leitura para este complicado parágrafo, e em uma delas, a adotada por nós como a mais
pertinente, nas pp.16-17, ele diz que o parágrafo 9 como “chave da crítica do gosto”, trabalha apenas
como o esboço de uma solução do problema e como a designação da direção em que a solução deve
ser encontrada. Ou seja, ele postula somente um ajuizamento deste objeto que antecede o prazer, e
fornece somente uma descrição abstrata desse julgamento. De acordo com esse postulado abstrato, é
válido – sem já aplicar conceitos – constatar se um objeto dado satisfaz a condição da intuição, de que
conceitos podem ser aplicados a ele. Mas visto que em princípios é sempre possível encontrar
conceitos para objetos dados, uma tal questão só pode ter sentido em relação a certos tipos de
conceitos. Se uma tal espécie de julgamento, em todo caso, efetivamente existe e que aspecto ela
concretamente possui, permanece ainda inteiramente em aberto. Portanto o § 9 é de fato somente a
“investigação da questão, se no juízo de gosto o sentimento de prazer precede o julgamento do objeto
ou se este julgamento precede o prazer (27/216), e é uma opção pelo segundo caso e, na verdade, a
partir da simples razão de que o resultado da Analítica (§§ 1-8) não pode explicar-se de outro modo.
Mas a descrição abstrata – fornecida no § 9 – de um julgamento ao qual o objeto de um juízo de gosto
é submetido, não especifica ainda de modo algum o ponto de vista de um tal julgamento. Só uma coisa
parece-me clara: o julgamento não consiste em nenhuma outra questão senão esta, se algo é belo ou
não. Fica em aberto somente sobre o que o judicante do belo concentra sua atenção e sobre o que não
29
também fecha (schliesst) conclusões efetivamente, ao mostrar que este julgamento
pode se dar de maneira diferente daquela do “meramente modus hipótese”. Essa
tarefa não é executada no § 9, é programa para “a parte do texto que se pode designar
como a teoria da forma bela”.
No terceiro momento da "Analítica do Belo", Kant trata do juízo de gosto
segundo a relação dos fins que é considerada neles. A tábua dos juízo lógicos, que
serve de fio condutor para guiar a análise do juízo de gosto, não traz a categoria da
finalidade, pois ela realmente não é uma categoria, mas como um fim sempre vem
acompanhado de uma causa, Kant utiliza a categoria de relação, por esta conter a de
causalidade, como um conceito correlato, e assim a finalidade passa a ser a forma de
relação que apresenta o juízo estético. Entretanto, já vimos que o juízo de gosto não
pode estar vinculado a nenhum interesse, pois julga o objeto sem conceito. Agora
Kant introduz o conceito de finalidade, o que, à primeira vista, parece paradoxal
porque toda finalidade implica um interesse envolvido e, conseqüentemente,
pressupõe um conceito. Logo, de que finalidade se trata aqui se ela não pode estar no
fundamento do juízo do gosto devido à sua especificidade de ser desinteressado? Só
pode ser uma finalidade sem fim
28
, ou seja, que não compreende o nexo causal, até
porque, a relação causal, compreendida em sua conexão com o efeito, tem de poder
ser aplicada na experiência, e sendo assim, não faz parte do julgamento do gosto.
De fato, estamos diante de uma finalidade que exclui a representação de um
fim determinado, logo, o prazer estético tem uma causa final nele mesmo “para
conservar o estado da própria representação e a ocupação dos poderes-de-
concentra, a condição de aplicação de que espécie de conceitos ele tem aí em vista e como ele constata
se ela é satisfeita ou não. A resposta a essas questões é fornecida pela teoria da forma bela”.
28
Kant, I. – Duas Introduções à Crítica da Faculdade do Juízo, p. 56, nota: “Introduzimos, diz-se,
causas finais nas coisas e não as extraímos, por assim dizer, de sua percepção”.
30
conhecimento”. A finalidade é, então, observada apenas segundo a forma, através da
reflexão, e
a consciência dessa finalidade no jogo dos poderes de conhecimento do
sujeito, no momento de uma representação pela qual é dado um objeto, é o
prazer mesmo, porque contém um fundamento de determinação da atividade
do sujeito quanto à vivificação dos poderes de conhecimento do mesmo,
portanto, uma causalidade interna (que é final) quanto ao conhecimento em
geral, mas sem ser limitada a um conhecimento determinado, portanto uma
mera forma da finalidade subjetiva de uma representação em um juízo
estético.
29
Na seção VII da Primeira Introdução Kant já deixa bem clara essa questão
quando afirma: “O conceito de finalidade não é de modo algum um conceito
constitutivo da experiência, não é a determinação de um fenômeno pertencente a um
conceito empírico do objeto; pois não é uma categoria”.
30
Numa representação,
aquele subjetivo que não pode de modo algum se tornar componente de
conhecimento, é o prazer ou desprazer a ela ligado, portanto, nada conheço do objeto
da representação através do prazer, mas ele pode ser o efeito de algum conhecimento.
Por isso, o objeto só é dito final porque sua representação está imediatamente ligada
ao sentimento de prazer; e essa própria representação é uma representação estética da
finalidade.
No § 12, Kant compara o sentimento estético com o de respeito para mostrar
que, embora esses sentimentos tenham características diferentes, ambos são a priori e
não admitem uma relação causal. O prazer estético tem uma causa nele mesmo, como
29
Kant, "Analítica do Belo", p. 317-318 (B 36-37).
30
Kant, I. – op. cit. p. 56.
31
já vimos, e isso o caracteriza como um juízo meramente contemplativo, sem
engendrar um interesse pelo objeto, enquanto o sentimento de respeito é moral,
portanto, prático, derivado de conceitos éticos universais e, se é derivado de
conceitos, é interessado.
O estado-da-mente, porém, de uma vontade determinada por algo qualquer, já é em
si um sentimento de prazer, e idêntico a ele, portanto, não se segue dele como
efeito: o que só teria de ser admitido se o conceito do ético como de um bem
precedesse a determinação da vontade pela lei: pois nesse caso o prazer que
estivesse vinculado com o conceito em vão seria derivado deste como de um mero
conhecimento.
31
Que há uma semelhança entre os dois sentimentos, Kant deixa claro no texto,
porque faz de um o modelo do outro, mas qual é exatamente o ponto que tangencia os
dois sentimentos? Logo adiante no mesmo § 12 encontramos a resposta:
A consciência da finalidade meramente formal no jogo dos poderes-de-
conhecimento do sujeito, quando de uma representação pela qual é dado um objeto,
é o prazer mesmo, portanto, uma causalidade interna (que é final) quanto ao
conhecimento em geral, mas sem ser limitada a um conhecimento determinado,
portanto uma mera forma da finalidade subjetiva de uma representação em um juízo
estético.
32
Então, o que é comum nos dois sentimentos, é a identidade do prazer com
um estado (Zustand) onde o espírito se põe, ele mesmo, pelo simples jogo de suas
faculdades. Dessa forma, Kant determina que o sentimento de prazer estético é
31
Kant, - "Analítica do Belo", p. 317 (B 36-37).
32
Idem, Ibidem, p. 317 (B 37).
32
anterior à razão, pois afirma que ele não é de modo algum prático, nem proveniente
do fundamento patológico do agrado, tampouco do fundamento intelectual do bem
representado. Vejamos o que Guillermit explica sobre isso, pois foi às Reflexões
buscar as informações para este estado pré-conceitual da consciência:
O que significa o sentir que surge do seio do próprio sentir? “O sentimento é a
intuição do que é uma fonte de princípios, ou um juízo segundo regras in concreto,
cujas regras in abstrato são os princípios” (Refl. 717, p. 317). Intuição ou juízo?
“Os termos se corrigem mutuamente. É preciso dizer: juízo porque não há abandono
à imediaticidade do sentir, como é o caso no simples sentimento de simpatia, porque
o pensamento toma a iniciativa de uma referência à regra, de modo tanto mais
manifesto quanto menos ela é dada. E, no entanto, o que funda o sentimento
espiritual é o fato de sentir (empfinden) nossa participação de um todo ideal: a
humanidade em nós.
33
É na originalidade de uma forma de juízo que Kant se detém, pois, segundo
Guillermit, ela não tem o caráter abstrato da subsunção lógica do caso particular sob
uma regra universal formulável in abstracto, uma vez que se trata de um tipo de
“leitura” direta do universal sobre o particular. “(...) conhecemos bem as coisas antes
de todo raciocínio formal e a razão apenas analisa o que pensamos no sentimento”.
34
E
se o juízo sobre o belo produz a interpretação e não surge dela, ele não reconhece a
razão como juiz,
mas como intérprete voltada àqueles que não entendem suficientemente a
linguagem dos sentidos” (Refl. 748, p. 328). (...) nas Reflexões o gosto aparece
como a ilustração privilegiada deste procedimento in concreto, por uma razão muito
33
Guillermit, op. cit., pp. 39-40.
34
Idem, Ibidem.
33
clara de que ele se manifesta num juízo que permanece essencialmente sensível: “É
preciso que a faculdade de julgar sensível seja constituída de tal modo que não
possa se exercer por meio de regras in abstrato
35
, mas na intuição, in concreto,
exatamente como o são entendimento em relação a tudo o que manifesta causas e
fins” (Refl. 819, p.365).
36
Com isso, Guillermit nos ajuda a entender o capital papel da imaginação,
agora como produtora, no livre jogo das faculdades e o que exatamente significa
“esquematizar sem conceitos”, uma vez que constata que, para Kant, esquemas não
precisam ser derivados de conceitos puros. Se o prazer estético tem causalidade nele
mesmo, esta categoria [a da causalidade] permanece um conceito esquemático porque
não especifica todas as diferentes conexões causais na experiência, visto que a
experiência sozinha pode relatar qual efeito particular seguirá de um antecedente
dado. Aqui a categoria apenas anuncia aquele mais elementar princípio de que toda
mudança deve ter uma causa; mas, o que uma determinada causa, ou efeito, deve ser,
isso quem decide é a natureza por si só.
Como o esquematismo kantiano é parte constituinte de seu sistema, devemos
entender que ele é tão essencial para a teoria estética quanto o é para a teoria do
entendimento. A diferença está no fato de que no conhecimento, a imaginação,
faculdade responsável pela produção de esquemas, é reprodutora, e na estética,
produtora. A imaginação, em sua função reprodutora, é submetida por uma regra fixa
do entendimento, sem o que,
35
Pois trata-se de um juízo reflexionante, que parte do caso e busca a regra. No § 16 da Lógica, Kant
explica que “todo conceito pode ser usado universalmente e particularmente (in abstracto e in
concreto). In abstracto, o conceito inferior é usado relativamente ao seu conceito superior, in concreto,
o conceito superior é usado relativamente ao seu inferior”. E também no item 4 do § 21: “Se as
proposições universais não podem ser discernidas em sua universalidade sem que se as conheça in
concreto, então elas não podem servir de norma e, por conseguinte, não podem assumir um valor
heurístico na aplicação, não passando de problemas para a investigação das razões universais daquilo
que foi conhecido primeiro em casos particulares”.
36
Idem, Ibidem.
34
os elementos associados nunca constituiriam um objeto ou uma síntese necessária.
Enquanto que na estética, a imaginação é tida para conformar-se ao entendimento
de um certo modo místico, não é subordinada ao entendimento, e parece que seus
elementos não estão associados em alguma ordem necessária. Há, então, dentro da
mesma média [médium] da imaginação, duas ordens distintas da consciência, uma,
a necessária consciência de nossa própria identidade na experiência sistemática, a
outra, um tipo místico de consciência ou sentido interno, no qual não somos
propriamente conscientes de nosso estado.
37
Assim, já podemos perceber pela menção ao sentido interno
38
, que a
propriedade fundamental de distinção e manutenção da fronteira entre as duas
atividades da imaginação na mente é o emprego do tempo. Sentido interno para Kant
é apenas a faculdade do tempo. “Kant tem uma dupla perspectiva do tempo. Por um
lado, há a representação empírica como uma sucessão de mudanças contínuas, e esta,
na opinião posterior de Kant, é a única percepção do tempo que podemos ter. Por
outro lado, há um tempo absoluto que ‘permanece e não muda’, um substrato
permanente.”
39
É este tempo absoluto que traz dificuldades e ocasiona mal-
entendidos, porque é difícil pensar uma sucessão de mudanças nele e, se não o
fizéssemos, o tempo se tornaria uma infinidade de momentos que se sucederiam até o
infinito. Macmillan é um autor que, parece-nos, entendeu muito bem isso ao perceber
que “toda sucessão e coexistência são apenas vários modos ou determinações no
tempo absoluto”. Como conciliar isso com a “Doutrina Transcendental dos
Elementos” onde a Estética Transcendental afirmava que tempo é um todo da
percepção em relação à percepção de um espaço vazio, e onde as Analogias reiteradas
37
Macmillan, op.cit. pp. 123-124.
38
Kant o mencionara no § 9 quando disse que é pelo mero sentido interno e sensação que tomamos
consciência de uma concordância recíproca subjetiva dos poderes da mente entre si.
39
Macmillan, op. cit. P. 137.
35
vezes afirmam que “tempo, nele mesmo, não pode ser objeto de percepção?” Segundo
Macmillan, a posição de Kant não mudou:
o que ele renuncia de seu ponto de vista anterior é a percepção do tempo enquanto
um todo quantitativo do qual os tempos sucessivos são limitações; por outro lado
ele afirma, como nas Analogias, uma original consciência do tempo como
“ilimitada” ou absoluta, e este tempo “não muda”.
40
O tempo, então, que nós percebemos sempre sob a forma de representação
no espaço, é apenas aparência, o real no tempo não é então percebido, mas sentido
como a consciência da absoluta duração
.41
Esta é a distinção dentro do sentido interno
que Kant deve ter feito, “e não a irreal oposição de uma sucessão determinada e uma
sucessão anômala que não é sucessão, na qual não podemos ter consciência autêntica
de nós mesmos”.
42
Esta absoluta duração, e não o falso fluxo do sentido interno, o
qual é mais conceitual que sensorial, é a média [médium] da imaginação produtiva
43
.
E agora, quando voltamos para a Crítica do Juízo, descobrimos que os fatores que
Kant emprega na estética não são de
uma imaginação eterna e um deserdado entendimento, mas as faculdades enquanto
elas existem em suas mais concretas formas. Assim, só o verdadeiro tempo existe;
enquanto a sucessão determinada é uma tradução fenomenal do tempo dentro da
linguagem do espaço, que nunca é, mas sempre está para ser.
44
40
Idem, Ibidem.
41
“Como o estado musical do qual Schiller nos fala”, lembra o autor.
42
Idem, Ibidem.
43
Optamos por traduzir o termo “medium” por média com base na autoridade de Lebrun. Ele o usa na
seção VI do capítulo XII de Kant e o Fim da Metafísica, quando escreve sobre a norma ideal que a
imaginação precisa produzir no livre jogo das faculdades. Acreditamos que as duas referências estejam
contextualizadas.
44
Idem, Ibidem, pp. 137-138.
36
Em seu argumento, o autor conclui que a faculdade de representação em
geral, enquanto distinguida das representações particulares, só pode significar um
esquema, e que a distinção entre o processo discursivo e o intuitivo ou elemento
dinâmico que não pode ele mesmo ser representação, é o ponto principal na
concepção de um esquema. “É o esquematismo o que está em jogo na estética, e esse
esquematismo existe na média [médium] do tempo qualitativo cuja faculdade é o
sentimento”.
45
Com isso podemos entender o final do § 12 quando Kant diz que o prazer
estético tem “causalidade em si para conservar o estado da própria representação e a
ocupação dos poderes-de-conhecimento, sem outro propósito”. O juízo de gosto é
puro, tem apenas a finalidade da forma como fundamento de determinação; é livre de
qualquer influência empírica como matéria do juízo estético e, por isso, seu tempo é
diferente do tempo lógico ou antropológico, ele contempla o belo sem pressa, “porque
essa contemplação fortalece e reproduz a si mesmo o que é análogo (mas não
idêntico) àquela demora em que um atrativo na representação do objeto desperta
repentinamente a atenção e na qual a mente é passiva”.
46
Mas é preciso cuidado para
não incorrer no erro de pensar que a contemplação é passiva. A mente é passiva, mas
a contemplação é ativa, ativamente livre. A passividade da mente se dá pelo fato de se
encontrar num momento equilibrado do tempo, que é o estético. Aqui o tempo é
vivido em sua plenitude, nele mesmo, pois não há necessidade fora dele, apenas a
necessidade de permanecer no estado presente da contemplação estética, porque ela
nos dá prazer. O jogo nos vivifica nele mesmo, e não no objeto. O § 60 da
Antropologia dá indicações bem precisas de como a consciência se comporta na
transição do sentimento de prazer e desprazer. Lá, Kant explica que o desprazer
sempre é o primeiro estado porque “é o aguilhão de atividade e somente nesta
45
Idem, Ibidem, p. 138.
46
Kant, "Analítica do Belo", p. 318 (B 38).
37
sentimos nossa vida, sem esta ocorreria uma ausência de vida”. O antagonismo entre
os dois estados deve ser um jogo contínuo, porque o prazer é a consciência de sair do
estado presente, que é de dor, ou a perspectiva de entrar num estado futuro, que pode
ser o de prazer. O tempo é unidirecional, vai sempre do presente para o futuro, e um
estado de prazer não pode seguir de outro sem que entre eles ocorra um momento de
desprazer. A tensão é vital, o prazer é o sentimento de promoção da vida, e a dor, de
um obstáculo para ela. Sempre ocorrerá a procura por um contentamento, e a
contemplação estética é o mais pleno, por isso “nos demoramos nela”, pois é aí que
sentimos positivamente a mais forte expressão da vida, o ponto mais essencial do ser.
Kant precisou estabelecer o tempo qualitativo da consciência para mostrar
que o sentimento de prazer ou desprazer é a única forma de sensação que jamais pode
indicar uma qualidade nos objetos, ele é apenas o sinal qualitativo da consciência
como uma sucessão, e isso o diferencia do juízo estético empírico, que é o sentido
vago da duração e apenas significa que temos consciência. Kant persiste na afirmação
de que juízos de gosto são apenas os formais, puros e simples, só eles anunciam a
beleza de um objeto porque é uma determinação que diz respeito à forma, e também
os únicos dessa representação que se deixam comunicar universalmente com certeza.
A beleza apraz pela forma e não pela sensação, pois a “forma é o que constitui o
fundamento de toda disposição para o gosto.”
47
Assim, se o prazer tem causalidade interna (no sujeito), como vimos, e o
julgamento do belo tem por fundamento uma finalidade sem fins (formal), apenas por
reflexão e não por conceitos, conclui-se que ele [o belo] não tem qualquer relação
com a representação do bem, já que o bem “pressupõe uma finalidade objetiva, isto é,
a referência do objeto a um fim determinado”.
48
Outra vez aqui Kant confronta-se
com o aspecto moralizante do belo e precisa fornecer esclarecimentos. Lembra, no
47
Kant, Ibidem, op. cit. p. 320 (B 42).
48
Idem, Ibidem, p. 321 (B 45).
38
§15, que a condição essencial do juízo sobre a beleza é que a satisfação sentida com o
objeto tido como belo deve ser imediata, ou seja, sem interesse. Com isso, descarta de
pronto a possibilidade de a satisfação se dar sobre a representação da utilidade de um
objeto (finalidade objetiva externa), mas detém-se perante a possibilidade de ela
ocorrer sobre a representação de perfeição de um objeto (finalidade objetiva interna),
“porque esta se aproxima mais do predicado de beleza, e por isso foi tida como o
mesmo que a beleza”. Mas, a finalidade objetiva, seja ela interna ou externa, está
ligada a um conceito de fim como fundamento da possibilidade do próprio objeto, e
isso nos indica que o conceito de perfeição é lógico, não estético, este tem seu
fundamento de determinação no “sentimento (sentido interno) daquela unanimidade
no jogo dos poderes-da-mente, na medida em que ela só pode ser sentida”.
49
A
perfeição refere-se à existência do objeto e é um juízo universal, não singular como o
juízo de gosto. “A origem deste último não é um conceito de perfeição e a beleza,
como finalidade formal subjetiva, é inteiramente independente da finalidade objetiva
e do conceito de perfeição moral da coisa”.
50
Porém, algumas afirmações do próprio Kant, se não houver a devida
precaução de interpretação, podem induzir ao erro de tomar um juízo estético, como o
da beleza, por um juízo intelectual, como o da perfeição. Por exemplo, o § 48 da
Crítica do Juízo:
Se, porém, o objeto é dado como um produto da arte e como tal deve ser declarado
belo, então tem que ser posto antes, como fundamento, um conceito daquilo que a
coisa deva ser, porque a arte sempre pressupõe um fim na causa (e na sua
causalidade); e visto que a consonância do múltiplo em uma coisa em vista de uma
destinação interna da mesma enquanto fim é a perfeição da coisa, que no
49
Idem, Ibidem, p.322 (B 48).
50
Vuillemin, J. – L’intuicionisme Kantien, p. 204.
39
ajuizamento de uma beleza da natureza (enquanto tal) absolutamente não entra em
questão.
51
E em algumas Reflexões
52
: “A perfeição dos objetos da experiência é uma
concordância com a lei dos sentidos e esta, enquanto aparência, chama-se beleza” (Rx
696). Lebrun nos alerta que o perigo se dá porque “o gosto é freqüentemente definido
como o reconhecimento da conformidade ou da concordância (Übereinstimmung)
entre a forma do objeto e “as leis universais da sensibilidade” (Rx 1791 a 1799).
Einstimmung”, “Übereinstimmung”: estas palavras retornam sempre quando se trata
da objetividade ou da quase-objetividade do juízo de gosto. Não apenas a beleza
supõe a “perfeição lógica” do conteúdo que ela apresenta, como ela mesma é o “lado
exterior da perfeição” (die Aussenseite der Vollkommenheit). Experimentar o
sentimento do belo é relacionar um fenômeno às condições do fenômeno em geral,
medir a conformidade daquela a estas. Certamente, “não é a coisa, mas o fenômeno
da coisa que agrada no gosto” (Rx 698), mas ainda é preciso, para que se possa falar
de “gosto”, que esse fenômeno seja vivido como universal. “O que agrada no gosto
não é o fato de que nossas intuições se tornem mais fáceis, mas sobretudo o fato de
que há (algo) de universalmente válido no fenômeno, de que nosso simples
sentimento-privado acomoda-se então ao intuicionar universal ou até mesmo às regras
gerais do sentimento” (Rx 653). Em que consiste essa “acomodação”? “Em tudo
aquilo que deve ser apreciado pelo gosto, deve haver algo que facilite o discernimento
do múltiplo (contraste) que favoreça a inteligibilidade (relações, proporções) – e
enfim que favoreça a distinção de todo possível (precisão)”. (Rx 625). Se essas
condições estão realizadas, falar-se-á menos da bela representação do que de
51
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, tradução de Valério Rohden e Antonio Marques, p. 157
(B 188).
52
Apud Lebrun, op. cit. p. 443.
40
representação de beleza – de uma beleza que se confunde com a ordem, tal como
Leibniz a tinha caracterizado.
53
Em suma, não é porque o entendimento participa do jogo das faculdades de
conhecimento, onde acorre a universalidade do belo, que ele deva ser tomado como
legislador. Ao contrário, neste juízo o entendimento se torna contemplativo e, como
já foi dito, seu papel aqui não é o de determinar o objeto, mas o juízo “e sua
representação (sem conceito), segundo sua proporção ao sujeito e a seu sentimento
interno, e aliás na medida em que esse juízo é possível segundo uma regra
universal”.
54
Ademais, Kant esclarece no § 16 que nem o juízo de perfeição acrescentaria
algo ao de beleza, nem este àquele, já que são juízos com “interesses” diferenciados.
De nada adiantaria para um botânico todo seu conhecimento sobre o órgão reprodutor
das plantas, se ele estiver olhando para elas apenas como um homem de gosto. Para
sentir mais agrado diante de uma flor perfeita do que de uma deformada, não é
preciso gosto, basta o entendimento. “Por essa distinção pode-se pôr de lado muita
querela dos juízos-de-gosto sobre a beleza, mostrando a eles que um deles se atém à
beleza livre, o outro à aderente, o primeiro emite um juízo-de-gosto puro, o outro um
juízo-de-gosto aplicado”.
55
No último parágrafo deste momento, Kant indaga de onde vem o ideal de
beleza aspirado por nós se não pode ser alcançado através de um critério determinado
do que possa ser gosto, tampouco através de exemplos, uma vez que o gosto tem de
ser uma faculdade própria. Para entender o que está proposto aqui, usaremos a
reflexão que fizemos anteriormente sobre a imaginação produtora e o esquematismo
sem conceito. Aqui ela se manifesta de forma clara e plena quando, “por um efeito
dinâmico, que provém da múltipla apreensão de tais figuras sobre o órgão do sentido
53
Cf. Lebrun, op. cit. pp. 442-443.
54
Kant, "Analítica do Belo", p. 323 (B 48-49).
55
Idem, Ibidem, p. 324 (B 53).
41
interno, sabe como fazer incidir uma imagem sobre a outra e, pela congruência de
vários da mesma espécie, obter um intermediário, que serve de medida comum para
todos”.
56
Este “protótipo” será então o ideal da imaginação, não aquela Idéia da razão
exacerbada pelo neoclassicismo. E por um motivo muito simples: Idéia é um conceito
da razão, universal, e, o “protótipo” do gosto, diz Kant, repousa sem dúvida sobre a
Idéia indeterminada da razão, de um maximum, mas que não pode ser representado
por conceitos, só pode sê-lo pela exposição singular da imaginação. No entanto, e
isso nos traz dificuldades, Kant afirma que é preciso
notar bem que a beleza, para a qual deve ser buscado um ideal, não deve ser uma
beleza vaga, mas tem de ser beleza fixada por um conceito de finalidade objetiva,
conseqüentemente não deve pertencer a um objeto de juízo-de-gosto puro, mas de
um juízo-de-gosto em parte intelectualizado. Isto é, seja qual for a espécie de
fundamento em que tenha lugar um ideal, ali tem de estar no fundamento alguma
Idéia da razão segundo conceitos determinados, que determine a priori o fim sobre
o qual repousa a possibilidade interna do gosto.
57
Dois elementos, então, são introduzidos e nos ajudam a entender como a
finalidade objetiva, inapropriada para o juízo de gosto, é requerida aqui. São eles:
Idéia-norma estética, que é uma intuição singular (da imaginação), e Idéia racional,
“que faz dos fins da humanidade, na medida em que não podem ser representados
sensivelmente, o princípio do julgamento de sua figura, pela qual, como seu efeito no
fenômeno, aquelas se manifestam”.
58
Conciliar assim, o particular e o universal, ou
melhor, as partes e o todo, e encontrar validação a priori para a síntese das formas da
experiência que constituem o sentimento estético, é a preocupação de Kant agora.
56
Idem, Ibidem, pp. 326-327 (B 57-58).
57
Idem, Ibidem, p. 325 (B 54-55).
58
Idem, Ibidem, p. 326 (B 57).
42
As partes são de ordem sensível, o todo é uma Idéia, então, como o particular pode
ser “sentido” como universal? (...) a unificação das partes no todo não poderia ser
da ordem da subordinação lógica, tanto porque as partes são de ordem sensível e,
desse fato, devendo ser coordenadas, até porque o todo não é um universal dado
num conceito, mas é pensado como ideal
.
59
A universalidade que a faculdade de julgar deve criar é uma totalidade que
deve permitir às partes conservar sua natureza sensível se coordenando, diz
Guillermit, e que numerosas Reflexões mostram que Kant recorre à noção de fim
precisamente para pensar esta articulação de partes sensíveis num todo ideal:
o todo deve ser tal que as partes possam aí se adequar uma às outras, em convívio.
(...) dessa convenientia que ele chama (Schicklichkeit) e define como “o acordo no
que está justaposto”, Kant faz a função própria da faculdade de julgar; ela é, diz ele:
‘a atividade do espírito que consiste em trazer o diverso de um objeto a seu fim’
(Refl. 813, p. 362).
60
Assim o autor das Críticas encontra no homem a solução para a unificação,
porque ele é o único objeto do mundo que tem o fim de sua existência em si mesmo e,
sendo assim, pode
ele mesmo se determinar por razão seus fins ou, onde tem de tirá-los da percepção
externa, pode mantê-los juntos com fins essenciais e universais e então julgar a
concordância com aqueles também esteticamente: só este homem, então, tem o ideal
59
Guillermit, op.cit, p. 47.
60
Idem, Ibidem.
43
de beleza, assim como a humanidade em sua pessoa, como inteligência, é o único
suscetível do ideal de perfeição
.
61
Sobre isso, Lebrun diz que o homem distingue-se de todos os outros seres
pelo fato de que ele é capaz de atribuir a todas as coisas os seus fins, submetendo-as
aos seus próprios.
62
Mas Kant adverte que a idéia-norma não é derivada de proporções tiradas da
natureza, como regras determinadas; mas somente segundo elas tornam-se possíveis
regras de julgamento para a espécie inteira, e por isso não podem conter nada de
especificamente característico, como por exemplo, pensar que cada povo, cada etnia
teria sua idéia-norma devido aos vários padrões de beleza; e em nenhum indivíduo o
protótipo parece ter alcançado plenamente somente a forma, que constitui a condição
imprescindível de toda beleza, portanto, meramente a correção na exposição do
gênero, embora o homem seja o mais belo animal, porque sua forma é a que mais se
aproxima da concordância com a Idéia de uma criatura viva. Lebrun conclui que aqui,
atinge-se o ponto onde não há mais compromisso possível entre a aparência e a
norma técnica: como a forma de um tal ser poderia transgredir a norma-fundamental
que por natureza ele é? Pretender que somente o homem pode ser idealizado é
reconhecer que nada, em sua aparência ou em seus atos, escapa à determinação pela
Idéia (Rx 945), que portanto ele pode sempre ser representado “como uma essência
singular adequada a uma idéia”
.
63
No entanto, a média da determinação humana construída pela imaginação,
mesmo que de modo mecânico, “é o signo de que não podemos deixar de referi-las a
61
Idem, Ibidem.
62
Lebrun, op. cit. p. 472.
63
Lebrun, op. cit. pp. 472-478.
44
uma norma, e de que essa norma é muito mais do que uma simples freqüência, assim
como o gênero e a espécie são muito mais do que rubricas convencionais. Se a média
resulta da experiência, a exigência do normativo que a precede é, ao contrário, um a
priori do pensamento antropológico”.
64
E não é à toa que Kant termina este parágrafo
da Crítica do Juízo avisando-nos que
a correção de um tal ideal da beleza demonstra-se nisto: que não permite misturar
nenhum atrativo-de-sentidos na satisfação com seu objeto, e contudo faz ter um
grande interesse por ele; o que demonstra, então, que o julgamento segundo um tal
critério nunca pode ser puramente estético, e o julgamento segundo um ideal da
beleza não é um mero juízo-de-gosto.
Ou seja, não se pode pensar o belo como verdadeiro, mas também pensar que
o juízo estético seja puramente reflexionante, é uma ilusão que devemos evitar. É
preciso, sobretudo, ter a dimensão exata da diferença.
O quarto momento da “Analítica do Belo” vem complementar o § 9 e
anuncia que a modalidade do juízo de gosto é necessária, e Kant enfatiza que esta
necessidade do belo, assim como a universalidade, é de espécie particular, e também
não pode, absolutamente, ser inferida da unanimidade da experiência, e pelos mesmos
motivos, isto é, não se pode fundar sobre juízos empíricos nenhum conceito de
necessidade desses juízos. Guillermit acrescenta sobre isso que “na Modalidade, já
que o real e o possível são afastados do necessário, deve-se explicar que esta
necessidade [a do belo] não poderia ser apodítica, porque ela não pode ser deduzida
de conceitos determinados”.
65
Assim, para preservar a especificidade do juízo de
gosto, que é a de não ter conceitos, cria-se o qualitativo de exemplar, já que esta não é
64
Idem, Ibidem.
65
Guillermit, op.cit. p. 89.
45
nem teórica e nem prática. A necessidade denominada exemplar é uma necessidade
da concordância de todos com um juízo que é considerado como exemplo de uma
regra universal que não se pode fornecer. Essa concordância com todos implica uma
condição de dever (sollen) estético: “Angaria-se o assentimento de todos os outros,
porque se tem para isso um fundamento que é comum a todos”.
66
No entanto, o dever-ser no juízo estético é enunciado apenas como
condicionado à idéia de um senso comum justamente porque a necessidade envolvida
aí não tem um princípio objetivo determinante (como os de conhecimento). Por outro
lado, nos diz Kant no § 20 da Crítica da Faculdade do juízo que, se ela fosse sem
nenhum princípio, seria contingente, e não necessária. Então tem que haver um
princípio, e ele deve ser subjetivo, determinando apenas por sentimento, e não por
conceitos, mas, no entanto, com validez universal, aquilo que apraz ou não apraz.
Um tal princípio só poderia ser um senso comum (Gemeinsinn). Mas não devemos
confundi-lo com entendimento comum, pois este julga segundo conceitos e aquele
julga segundo um sentimento. E também não devemos entender nenhum sentido
externo (finalidade prática de utilidade) no senso comum, apenas o efeito do livre
jogo
de nossas faculdades do conhecimento (imaginação e entendimento).
Assim, a necessidade do assentimento universal que é pensada neste juízo, é
uma necessidade subjetiva que, sob a pressuposição de um senso comum, é
representada como objetiva, como se fosse uma regra. Já que não permitimos opiniões
diferentes das nossas quando declaramos algo belo, o senso comum, baseado no
fundamento de nosso sentimento, não pode ser fundado sobre a experiência, pois quer
legitimar juízos que contêm um dever-ser: não diz que todos irão concordar com
nosso juízo, mas que devem concordar com ele. Todos os seres reacionais têm
condições lógico-transcendentais para entender o juízo estético.
66
Kant, "Analítica do Belo", p. 329 (B 63-64).
46
É em razão dessa Voraussetzung e da possibilidade que ela guarda que a pretensão
do sujeito do gosto não é insensata: eu subetendo sempre quando uso conceitos, que
os outros têm o poder de entender-me, pois sei que eles são meus semelhantes e que
nós intuicionamos da mesma maneira, portanto posso até imputar-lhes esse poder
como um dever
.
67
Por isso Kant diz que “o senso comum, de cujo juízo eu dou aqui juízo de
gosto como um exemplo e, em virtude disso, atribuo a este validade exemplar, é uma
mera norma ideal”.
68
Essa norma ideal
69
é aquele princípio subjetivo especificado no
§ 17 que, no entanto, como subjetivamente universal, (como uma idéia necessária a
todos), no tocante à unanimidade de diferentes julgadores, poderia exigir igualmente
uma concordância objetiva, universal, se simplesmente se tivesse certeza de ter
subsumido corretamente sob ele.
No § 21, retomamos as análises que fizemos no § 9 de que o conhecimento
geral precede o empírico. A reflexão estética no livre jogo das faculdades de
conhecimento “é ao mesmo tempo um princípio que desempenha um papel silencioso
no processo que resulta em conhecimento objetivo”.
70
Na atividade do juízo
reflexionante, a imaginação é uma instância pré-teórica antes que não-teórica, como
nos ensina Lebrun,
71
e, por isso, esquematiza sem regras; sendo assim, este juízo
alcança uma amplitude muito maior que a do entendimento no juízo determinante,
67
Lebrun, G. – Kant e o Fim da Metafísica, p. 495.
68
Kant, "Analítica do Belo", p. 331 (B 68).
69
Arendt, H. em Lições sobre a Filosofia Política de Kant, pp. 112-113, diz que Kant postula o senso
comum como uma “norma ideal”.
70
Fricke, C. – Esquematizar sem conceitos: a teoria kantiana da reflexão estética, p. 13.
71
Lebrun, G. op. cit. – p. 563. Lá ele diz também: “Se é verdade que o conteúdo da Idéia estética
extravasa sempre a expressão conceitual, isso não seria o sinal de que a imaginação poderia ter uma
outra destinação que o conhecimento?” E mais adiante, na p. 565: “(...) é preciso retornar à ontologia
subterrânea do kantismo.” E isso nos indica que a leitura de Lebrun também propõe uma anterioridade
da reflexão estética, onde a imaginação intui livremente, em relação ao conhecimento. Na reflexão
existe sempre uma aspiração para o conhecimento, o que pode não ocorrer, explica Guillermit.
Percebemos assim, uma convergência de opiniões entre os dois autores e também com Macmillan, cujo
pensamento expressamos acima.
47
pois o Gemüt, sem ter que se desgastar com a matéria do conceito, voa alto na forma,
fascinado pela atividade de suas faculdades, e só repousa quando encontra o prazer
proporcionado pelo objeto belo. E este prazer, por ser conseqüência da reflexão
transcendental, traz a intersubjetividade em seu bojo, pois o juízo estético só encontra
sentido entre os homens:
a sociabilidade não é contingente, ela está inscrita em nossa faculdade de conhecer,
mas não há por isso um Eu que seja um Nós; a presença dos outros não me reenvia
exclusivamente à minha subjetividade “patológica” (a reivindicação do sujeito
estético é a prova em contrário).
72
Ou seja, a sociabilidade não é empírica, não é inata: “o que Kant chama no §
9 de “julgamento meramente subjetivo do objeto” é uma atividade racional que
produz resultados intersubjetivos.
73
Kant explica no § 22 que pode ser uma exigência da razão, como reguladora,
que se produza uma unanimidade do modo de sentir, e o dever ser, isto é, a
necessidade subjetiva da confluência do sentimento de todos com o sentimento
particular de cada um significa somente a possibilidade dessa unanimidade, e o juízo
de gosto estabelece somente um exemplo da aplicação desse princípio.
A necessidade atribuída aos juízos estéticos situa-se num momento capital
da crítica da faculdade do juízo, nos lembra Kant no § 29, pois ela torna precisamente
conhecido neles um princípio a priori e eleva-os da psicologia empírica, onde do
contrário ficariam sepultados sob os sentimentos do deleite e da dor, para colocar
esses juízos, e mediante eles a faculdade do juízo, na classe dos que possuem como
72
Lebrun, Ibidem, p. 505.
73
Fricke, Ibidem, p. 13.
48
fundamento princípios a priori e, assim como tais, fazê-los passar para a filosofia
transcendental.
74
74
Cf. Kant, I. – Crítica do Juízo, B 113.
Capítulo II
São possíveis juízos de gosto?
Esta falta de prova não é uma carência, mas
uma perfeição.
Pascal, apud Lebrun, Kant e o Fim da
Metafísica.
Dedução dos juízos de gosto
Na análise da exposição do juízo de gosto vimos que o juízo reflexionante,
embora não tenha pretensões de determinação do objeto com vistas ao conhecimento,
ainda assim mantém um acento lógico em seu princípio de determinação, pois precisa
legitimar sua pretensão à universalidade e necessidade na comunidade do gosto.
Mesmo que o juízo de gosto seja baseado em um sentimento e não em conceitos, a
comunicabilidade desses sentimentos ligados a uma representação é uma faculdade de
julgar a priori. A universalidade deve ter um fundamento transcendental e, sendo
assim, é preciso legitimar seu princípio de subsunção, melhor dizendo, regularizar
suas normas através de uma dedução dos juízos puros de gosto e, então, estabelecer a
diferenciação entre os juízos práticos, os juízos estéticos dos sentidos e os juízos
estéticos de reflexão. É o caráter lógico desses juízos que possibilita a distinção entre
eles.
***
Na Crítica da Razão Pura, para tratar dos princípios do puro conhecimento
teórico e produzir um juízo de experiência, Kant mostrou que era preciso uma
dedução transcendental das categorias porque “à base deste juízo situam-se conceitos
a priori da unidade sintética do múltiplo da intuição para pensá-lo como
50
determinação de um objeto”
1
; e já sabemos que não podemos nos servir com
segurança de um conceito a priori se não tivermos efetuado a sua dedução
transcendental.
2
Dessa forma, os fenômenos, em conformidade com as leis
estabelecidas pelas categorias, podem ser conhecidos como objetos da experiência,
constituindo a experiência possível, a qual deve estar em conformidade com essas leis
em todo o seu campo. Com isso Kant resolveu o problema e deu resposta à pergunta:
como são possíveis juízos de conhecimento sintéticos a priori?
O difícil problema enfrentado aqui estende-se por todo o trajeto crítico
kantiano, pois trata-se de estabelecer uma unidade entre instâncias heterogêneas. Há
uma trincheira entre síntese sensível e material, e a síntese intelectual e formal, a qual
precisa ser resolvida para que se possa explicar o juízo sintético de conhecimento. É o
próprio juízo que vai transitar por esse intermédio inóspito, é ele que faz a subsunção
(subordinação) do conteúdo sensível às devidas categorias, ou seja, trata da relação de
pertinência entre sujeito e predicado para possibilitar a unidade sintética e, para dizer
em uma palavra: o conhecimento. Mas como se dá tal relação? Com a teoria do
esquematismo.
Os esquemas transcendentais, dos quais o juízo lança mão para a subsunção,
têm a prerrogativa ambivalente de possuir uma faceta sensível e outra intelectual, o
que possibilita a eles fazer a intermediação do acordo entre os dois opostos. Com isso
se dá a efetivação da representação; é o esquema, com sua dupla natureza, que
determina qual categoria usar em dada representação.
3
É fato que a representação se
dá no tempo, sentido interno, pois o acesso das percepções na consciência é
1
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, p. 134 (B 147). Nesta parte do trabalho foi usada a
tradução de Valério Rohden e António Marques. As citações vêm sempre com a referência também da
paginação original, entre parênteses.
2
Kant, I. - Crítica da Razão Pura, A 669, B 697.
3
Isso ofereceu aos oponentes de Kant uma oportunidade para contestar este ponto que, na verdade, é
bastante vulnerável; comporta uma certa obscuridade referente à adequação propiciada pelo esquema
entre as categorias e sensibilidade. De acordo com eles, quando a categoria é aplicada ao esquema, e
este, por sua vez, é aplicado ao conteúdo sensível, ocorre um afastamento da realidade, pois nesta
representação haveria apenas a forma do conteúdo sensível, e não ele mesmo; o que iria num sentido
contrário ao intento de Kant, que é a aproximação dos dois âmbitos: material e formal.
51
sucessivo, não simultâneo, logo, todos os esquemas, embora formais, estão ligados à
sucessão temporal, e assim, são também empíricos. Grosso modo, é dessa forma que
o entendimento realiza sua tarefa básica, que é a unificação (Verbindung ou
conjunctio) sintética do diverso, a qual promove no sujeito o conhecimento objetivo,
o valor objetivo dos conceitos sintéticos, que são as categorias.
4
E, como esclarece
De Vleeschauwer: “A dedução tende a mostrar como os conceitos puros
[entendimento] e a apercepção [imaginação] são as condições da experiência, sob a
reserva expressa a todos os momentos decisivos, que a experiência se limita a um
conhecimento de fenômenos”.
5
A unidade é central na dedução, a qual gravita em
torno da função de síntese (agora, função do ponto de vista lógico, não mais
psicológico), e atinge seu ápice nos §§ 16 e 17 da Crítica da Razão Pura, onde Kant
“põe a unidade suprema em toda sua generalidade: a da consciência, analiticamente
presente em todo conhecimento, porque ela contribuiu para a sua constituição
sintética”.
6
Na Crítica da Razão Prática, essa questão é, naturalmente, tratada de modo
que respeite as suas características peculiares que é de não ter como intuito
determinar objetos da experiência, pois aí o enfoque aponta para uma questão de
ordem diversa. Mas da mesma maneira, a dedução da lei moral se faz necessária, já
que a exposição do princípio supremo da razão prática mostrou que ele “existe
inteiramente a priori e por si mesmo independentemente dos princípios empíricos”
7
.
Mas como é possível a justificação da validade objetiva e universal, bem como a
apreensão de uma proposição sintética a priori de tal princípio, se ele é inteiramente
4
Manifestamos a consciência de que a teoria do esquematismo com todas as questões que a envolve
foi resumida de forma quase grosseira neste comentário. No entanto, tal propósito não foi o de reduzir
sua relevância, antes, de fazer um percurso rápido por ela apenas para compor o suporte necessário
para nosso trabalho.
5
De Vleeschauwer, H. J. - La Déduction Transcendantale dans L’Ouvre de kant, Tome Troisième, p.
15.
6
Idem, Ibidem, p. 18.
7
Kant, I. – Crítica da Razão Prática, tradução Artur Morão, Edições 70, p. 59 (A 80-81).
52
supra-sensível? Certamente, diz Kant, este caminho não será tão claramente
apreendido como o foi com os princípios do puro entendimento teórico, por isso
demanda uma postura diferente para o seu trajeto. A dedução da lei moral não diz
respeito ao conhecimento da natureza dos objetos, mas “a um conhecimento que pode
ser o fundamento da existência dos próprios objetos, e graças ao qual a razão tem
causalidade num ser racional, isto é, a razão pura, que pode ser considerada como
uma faculdade determinando imediatamente a vontade”.
8
Da mesma forma que a objetividade das categorias não se baseia na sua
origem a priori, mas na necessária relação ou aplicação delas na experiência, também
a objetividade da lei moral, ou a prova de sua realidade segundo o fundamento de sua
possibilidade, deve ser buscado nos princípios da experiência, o que por si demonstra
ser paradoxal dado o caráter específico da razão pura, e, principalmente, prática.
Diante desta perspectiva, então, Kant nos informa que é inútil tentar tal dedução
porque a lei moral não pode ser demonstrada; no entanto, temos consciência a priori
de que ela é um fato (Faktum) apoditicamente certo da razão pura, cuja realidade
objetiva mantém-se firme por si mesma.
Com isso, chegamos num ponto bastante problemático: a lei moral não se
funda sobre princípios empíricos, isso é certo para nós, porém, exige-se que ela tenha
um fundamento de legitimação. É neste momento que Kant lança mão do conceito-
chave de liberdade, pois ela é “a única entre todas as idéias da razão especulativa, da
qual sabemos (wissen) a possibilidade a priori sem, no entanto, a discernir
(einzusehen), porque ela é a condição da lei moral, que conhecemos”.
9
A liberdade,
então, em sua efetividade, fundamenta todas as leis morais.
10
8
Idem, Ibidem.
9
Idem, Ibidem, p. 12 (A 5, 6).
10
Kant esclarece em nota da Crítica da Razão Prática (A5, 6) que existe uma relação de
interdependência entre a liberdade e a lei moral: a liberdade é a ratio essendi da lei moral, mas a lei
moral constitui a ratio cognoscendi da liberdade.
53
Na terceira seção da Fundamentação, Kant diz que a vontade é uma espécie
de causalidade dos seres racionais e que a liberdade seria a propriedade dessa
causalidade. Podemos dizer, portanto, que, se a moralidade com o seu princípio é
extraída da liberdade da vontade por simples análise do conceito, este princípio
permanece como uma proposição sintética e, com isso,
esta espécie de carta de crédito da lei moral, visto que se propôs a si mesma como
um princípio da dedução da liberdade, como de uma causalidade da razão pura, é
inteiramente suficiente, sem outra justificação a priori, visto que a razão teórica era
obrigada a admitir pelo menos a possibilidade de uma liberdade, para satisfação de
uma necessidade sua. Com efeito, a lei moral demonstra a sua realidade,
satisfazendo assim a crítica da razão especulativa, ao acrescentar a uma causalidade
concebida como simplesmente negativa, cuja possibilidade era para ela
incompreensível e, no entanto, lhe era forçoso admitir, uma determinação positiva, a
saber, o conceito de uma razão que determina imediatamente a vontade.......; e assim
ela pode, pela primeira vez, dar uma realidade objetiva, se bem que apenas prática,
à razão que, ao querer proceder especulativamente com suas idéias, se tornava
sempre excessiva, e transforma o uso transcendente desta num uso imanente (de ser
ela própria, no campo da experiência, através das idéias, uma causa eficiente)
11
.
Podemos perceber, no entanto, com essa breve exposição da dedução
transcendental das duas primeiras Críticas, que há exigências para que se atribua
legalidade às regras dos juízos; não basta que eles estejam embasados num princípio
a priori, pois isso bastaria apenas à lógica geral; mas para que tenham um alcance
lógico transcendental e possam adquirir amplitude para a determinação dos limites do
entendimento puro, é preciso que sejam também sintéticos, sintéticos a priori, ou
seja: “todo o objeto está submetido às condições necessárias da unidade sintética do
11
Idem, Ibidem, p. 60 (A 82, 83).
54
diverso da intuição numa experiência possível”
12
, senão não haverá possibilidade de
uma consciência ligada universalmente. Kant expressa isso com clareza quando
afirma:
Embora possamos conhecer a priori, nos juízos sintéticos, tantas coisas acerca do
espaço em geral ou das figuras que nele recorta a imaginação produtiva, de tal modo
que, para isso, nem realmente precisamos de qualquer experiência, esse
conhecimento não seria absolutamente nada, seria ocuparmo-nos de simples
quimera, se não tivéssemos de considerar o espaço como condição dos fenômenos
que constituem a experiência externa; assim, esses juízos sintéticos puros referem-
se, embora mediatamente, a uma experiência possível, ou antes, à possibilidade
mesma dessa experiência e sobre ela assenta a validade objetiva da sua síntese
13
.
Isso quer dizer que os juízos puros de gosto precisam ser também sintéticos,
e, “fazer abstração da unidade sintética, seria fazer-me ‘animal em pensamento’”,
lembrando o que Kant escreveu a Herz na carta de 26 de maio de 1789.
14
Nesta carta,
Kant esclarece que sem a unidade sintética da apercepção, ou seja, sem a
espontaneidade do entendimento
15
para estabelecer a relação
16
entre as
representações efetuadas pela lei empírica da associação (síntese empírica), “eu nem
mesmo saberia que tenho esses data sensíveis; por conseguinte, eles não existiriam
absolutamente para mim enquanto ser cognoscente”. Dito em outras palavras, o jogo
das representações empíricas se exerceria regularmente, inclusive para os animais
12
Kant, I. – Crítica da Razão Pura, A 158, B 197.
13
Idem, Ibidem, A 157, B 197.
14
Apud Lebrun, Kant e o Fim da Metafísica, p. 461.
15
Vale lembrar que apenas o entendimento pode dar a lei porque é a única faculdade de conhecimento
autônoma; é ele que legisla e julga. Uma faculdade é autônoma quando tem uma forma superior pela
qual encontra nela mesma a lei de seu próprio exercício. Se a síntese é empírica, a faculdade de
conhecer aparece sob sua forma inferior, e isso significa que a sua lei não se encontra nela mesma, mas
na experiência. A síntese a priori, ao contrário, define uma faculdade de conhecer superior que legisla
sobre os objetos de conhecimento (cf. Deleuze, G. – La Philosophie critique de Kant, pp. 9 e 10).
16
Grifo nosso.
55
desprovidos de razão, entretanto, a beleza, só o homem pode apreciar, pois o seu
pensamento contém as “formas” a priori do entendimento puro. Porém, este fato pode
trazer algumas dificuldades se lembrarmos que nos acostumamos a pensar esses
juízos como singulares, subjetivos, desinteressados.
À primeira vista é espantosa tal idéia porque ela nos faz pensar em juízos de
conhecimento determinante, o que o juízo de gosto definitivamente não é. Mas um
pouco adiante no § 36 da Crítica do Juízo, Kant explica este movimento e
percebemos o alcance da “revolução copernicana” já esboçada da Analítica da
primeira Crítica:
O fato de que juízos de gosto são sintéticos pode descortinar-se facilmente (ist leicht
einzusehen), porque eles ultrapassam o conceito e mesmo a intuição do objeto e
acrescentam a esta, como predicado, algo que absolutamente nunca é conhecimento,
a saber, o sentimento de prazer (ou desprazer). Mas que, apesar de o predicado (do
prazer próprio ligado à representação) ser empírico, esses juízos, contudo, no que
concerne ao requerido assentimento de qualquer um, sejam a priori ou queiram ser
considerados como tais, já está igualmente contido nas expressões de uma
pretensão; e assim este problema da Crítica da faculdade do juízo pertence ao
problema geral da filosofia transcendental: como são possíveis juízo sintéticos a
priori?
17
.
O caráter transcendental
18
desses juízos é algo importante para Kant e,
parece-nos, sua busca incessante na Crítica do Juízo, a “Analítica do Belo” já o
17
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, p. 135 (B 148, 149).
18
Quem bem esclarece este assunto é Vinícius de Figueiredo em seu artigo “A natureza conivente: a
importância transcendental do gosto para o conhecimento em Kant”, in Studia kantiana, vol. 3, nº 1,
2001. Ali ele explica que: “(...) partindo da constatação de que a essência real exige a reflexão sobre o
material dado a partir da experiência, e de que a clarificação do conhecimento incorpora um
procedimento que se situa para além da análise da compatibilidade lógica das características de um
conceito, Kant permanecerá afirmando que as difereas entre representações são sujeitas a uma
antecipação capaz de fornecer o diagrama do sensível, mas sob a condição de conceber a matéria do
conhecimento como determinada pela atividade sintética da consciência, cuja espontaneidade, então,
56
mostrara, porque no cerne da faculdade do juízo está a finalidade subjetiva onde o
belo encontrará seu sentido e significação. E nos parece pertinente lembrar a
afirmação de Philonenko
19
de que a Crítica da faculdade da julgar é um esforço para
resolver o problema da intersubjetividade e do “eu penso” que se pronuncia desde a
primeira Crítica. O § 9 da “Analítica do Belo” deixou claro a anterioridade da
reflexão com o termo “conhecimento em geral (Erkenntnis überhaupt)”, o qual
expressa um primeiro grau na escala da atividade da mente, a identidade de uma
consciência puramente reflexionante; e que nos permite ir ao § 16 da Crítica da
Razão Pura para conferir o que Kant deixara pronto para ser retomado no momento
oportuno, pois lá já está afirmada a anterioridade e independência da forma do
conhecimento em relação à sensação. O eu penso é uma consciência transcendental,
que também é uma representação, e oferece as condições de possibilidade do
conhecimento a priori por sintetizar todas as categorias num sujeito. As categorias,
também chamadas funções de unificação, cuja formalização oferece a estrutura
transcendental do pensamento, são já de certa forma unificadoras, mas a unidade
funcional, o fio condutor da possibilidade do conhecimento se dará no sujeito, o qual
vai preceder as doze unidades setoriais. Este sujeito será a forma das formas, função
principal de todas as sínteses possíveis, mas não o sujeito metafísico cartesiano
20
,
unidade substancial, e sim a unidade originariamente sintética da apercepção, melhor,
a parte mais elevada da síntese:
Acontece que esta identidade total da apercepção de um diverso dado na intuição
contém uma síntese das representações e só é possível pela consciência desta
síntese. Com efeito, a consciência empírica que acompanha diferentes
passa responder por tudo que se encontra ligado no objeto. A unidade do objeto, assim, torna-se prova
da sinteticidade da consciência, visto repousar sobre a referência das representações parciais à
identidade do sujeito unificante”.
19
Philonenko, A. – Introdução de sua tradução da Crítica da faculdade da julgar, p. 12.
20
Embora Allison considere que não é possível descartar a hipótese metafísica quando afirma que a
consciência originária é mais transcendental que metafísica (cf. Kant’s Theory of Taste).
57
representações é em si mesma dispersa e sem referência à identidade do sujeito.
Não se estabelece, pois, essa referência só porque acompanho com a consciência
toda a representação, mas porque acrescento uma representação a outra e tenho
consciência da sua síntese. Só porque posso ligar numa consciência um diverso de
representações dadas, posso obter por mim próprio a representação da identidade da
consciência nestas representações; isto, é, a unidade analítica da apercepção só é
possível sob o pressuposto de qualquer unidade sintética.
21
Assim, a anterioridade da faculdade de julgar que anuncia o § 9 da Crítica
do Juízo, a causalidade reflexiva ou a parte mais profunda da consciência onde vai se
dar a necessidade do juízo de gosto, já estava anunciado na “Analítica dos Conceitos”
da primeira Crítica.
22
Mas ainda restam questões: se os juízos sintéticos a priori são
as verdadeiras formas do conhecimento e todas as sínteses intelectuais são realizadas
a partir de conceitos puros do entendimento, como se explica a especificidade do
juízo de gosto que é a de não ser subsumido sob conceitos? Mais até, como não cair
numa leitura solipsista uma vez que tudo está unido num sujeito?
Lebrun esclarece que a própria noção de intelectualismo torna contraditória
a possibilidade das Formen não-objetivas.
O ‘intelectualismo’ reenvia antes de tudo à solução de um problema preciso: como a
ligação do diverso não pode estar presente nele e ao mesmo tempo em que ele, deve-
se necessariamente atribuí-la a uma espontaneidade e fazer, desde então, uma
distinção entre entendimento e sensibilidade. Para que uma representação mereça
21
Kant, I. – Crítica da Razão Pura, § 16, p. B 133.
22
Sobre este assunto ver Béatrice Longuenesse, Kant and the Capacity to Judge, onde ela faz um
interessante estudo sobre a origem e falta de domínio dos juízos, bem como de juízos envolvendo
determinação e reflexão. Em seu texto, ela defende que o que se distingue na terceira Crítica, não é a
descoberta do juízo reflexionante, mas o fato de ele ser meramente reflexivo, e que determinação e
reflexão são aspectos complementares do juízo. Focaliza sua interpretação nas categorias como
produto da atividade reflexiva, já que são, elas mesmas, conceitos distintos. Com isso ela insiste que a
categoria opera em dois níveis: no pré-reflexivo, como funções lógicas do juízo, orientando a síntese
sensível da imaginação, e no pós-reflexivo, enquanto conceitos sob os quais objetos são subsumidos
em juízos de experiência válidos objetivamente (cf. pp. 163ss, 195 e 252ss).
58
esse nome e seja algo para mim, o diverso deve ter uma relação necessária sintética
da apercepção, relação que não pode pertencer aos sentidos.
23
E, embora o entendimento não exerça seu papel de faculdade superior na
Crítica do Juízo, Kant não pode prescindir dele devido à sua autonomia, o que o torna
capaz de dar a lei necessária para a legitimação do juízo de gosto. Ora,
(...) é importante não confundir o entendimento em geral e os conceitos que ele
torna possíveis: a referência àquele não implica ainda uma referência a estes. De
modo que a relação com o entendimento, por mais indispensável que ela seja para
toda a consciência (Bewusstheit), não significa de forma alguma que a unificação do
diverso na imaginação seja realizável apenas com o auxílio de conceitos de objetos.
(...) A Form é aquilo que se anuncia a um sujeito apenas consciente, e que lhe
permite orientar-se na desordem da pré-objetividade.
24
Assim, chegamos ao ponto de partida que Kant tomou para tratar dos juízos
de gosto de forma “objetiva”, ou seja, com necessidade e universalidade, uma vez que
já tinha deixado pendente na Dedução da primeira Crítica a necessidade de mostrar
uma consciência que não se admite absoluta, idealista. Foi preciso chegar à parte mais
fundamental, à parte pré-teórica da mente, onde há apenas as condições de
conhecimento
25
, para alcançar a legitimidade do juízo. É um princípio transcendental
pela origem, que não pode ser derivado da experiência porque não é mais o conceito
de objetos, e serve apenas para refletir e não para determinar; mas nem por isso essa
condição de possibilidade deixa de ter, como diz Kant na primeira nota da seção V da
Primeira Introdução à Crítica do Juízo, “uma aplicação da lógica à natureza”, porque
23
Lebrun, G. – Kant e o Fim da Metafísica, pp. 460-461.
24
Idem, Ibidem, p. 461.
25
Kant diz que só o que está relacionado ao conhecimento pode ser universalmente comunicável (§ 9).
59
do contrário, “todo refletir seria instaurado meramente ao acaso e às cegas, portanto,
sem expectativa fundada de sua concordância com a natureza”.
26
Se este princípio serve ao Juízo apenas para refletir e não para determinar
porque não efetua sua subsunção em conceitos, é delegada à faculdade de julgar uma
capacidade de “criar” uma lei para si mesma, tornando-se heautônoma, com um
princípio mais regulativo que constitutivo, pois, entre as três faculdades superiores da
mente, apenas o Juízo é subjetivo, “é o único que tem seu fundamento-de-
determinação no Juízo, sem mistura com outra faculdade de conhecimento”.
27
Torres
Filho explica que
com isso, a reflexão dá a conhecer sua originalidade como faculdade a priori de
formar conceitos em geral, e todas as suas funções podem ser unificadas em
continuidade com essa reflexão metodológica. Haveria outra razão para que uma
Crítica do Juízo se voltasse exclusivamente ao exame do Juízo reflexionante?
28
E também sugere que, com esta perspectiva, é possível uma interpretação que
apontaria como a questão da origem dos conceitos em Kant (que tanto incomodou os
idealistas que vieram depois dele), “deixada de lado pela Crítica da Razão Pura – que
tratava de fundamentar o pensamento objetivo (como é possível conhecer?) – passa
ao primeiro plano quando se trata de investigar a possibilidade do pensamento em
geral (como é possível refletir?)”.
29
Ainda que um juízo reflexionante estético, por seu caráter subjetivo e
particular, não forneça nenhuma doutrina objetiva à filosofia transcendental, ele
mantém um princípio a priori porque cada sujeito que julga o belo reivindica
universalidade e necessidade para o sentimento de prazer ou desprazer. É essa
26
Kant, I. – Duas Introduções à Crítica do Juízo, organização de Ricardo R. Terra, p. 48.
27
Idem, Ibidem, p. 82.
28
Torres Filho, R. – O Espírito e a Letra, p. 33.
29
Idem, Ibidem, pp. 33-34.
60
pretensão à validade universal e necessidade que coloca esses juízos, “e mediante
eles, a faculdade do juízo, na classe daqueles que possuem como fundamento
princípios a priori e, como tais, porém, fazê-los passar para a filosofia
transcendental”.
30
Mas para que seja admitido e tenha um lugar garantido no sistema
das faculdades superiores de conhecimento, é preciso passar pelo crivo da crítica
através de uma dedução, assim como se deu com o entendimento e a razão, se quiser
ser legitimado para ter validade universal. E, por não ter domínio próprio, já que
nada determina, torna-se o próprio princípio e a própria faculdade de criticar, ou seja,
é a ação mesma do juízo manifestando o exercício que lhe é próprio que constitui o
prazer sentido diante de um objeto belo. Então, o que a faculdade de julgar investiga,
sobretudo e principalmente, é o ato ou poder de julgar propriamente dito, já que foi
constatado o privilégio da reflexão estética em relação aos juízos lógicos
determinantes presentes nas outras duas faculdades superiores. “Enquanto a
determinação progride da Erscheinung ao Phenomenon, a reflexão regride às puras
condições de possibilidade do Erscheinung”
31
, numa instância tal que, como nos diz
Lebrun, “nela se possa distinguir o simples vivido e aquilo que se anuncia através
dele”.
32
***
No § 30 da Crítica do Juízo, onde expressamente inicia-se a dedução dos
juízos de gosto
33
, Kant nos dá a entender que tal “Dedução”, exigida para legitimar a
pretensão à universalidade e necessidade do sentimento de prazer (ou desprazer) em
relação à forma do objeto dos juízos de gosto, começara na exposição, onde todos os
30
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, p. 112 (B 113).
31
Guillermit, L. – L’Élucidation Critique du Jugement de Goût selon Kant, p. 101.
32
Lebrun, op. cit. p. 449.
33
Não trataremos aqui do Sublime; não só porque Kant nos previne que sua "Dedução" já ocorre na
exposição, mas principalmente porque, embora seja um juízo estético, não pertence à jurisdição do
gosto.
61
elementos de sua especificidade já estão delineados. O que ele acrescenta agora é que
a exposição não basta para os juízos sobre a beleza, ao contrário dos juízos sobre o
sublime, que a Analítica descobre de imediato a relação deste juízo estético com a
razão. Deixa claro que essa distinção entre os dois juízos reside na forma da
finalidade. Na seção XI da Primeira Introdução Kant afirma que “o juízo estético,
sem pressupor um conceito de seu objeto, atribui-lhe finalidade”
34
, o que não ocorre
nem com o juízo teleológico por pressupor um conceito de objeto, nem com o
sublime, pois este tem uma satisfação pura evidente em si, quer dizer, a apreensão do
sublime da natureza se dá conforme à razão, a única que pode apreender um objeto
sem forma e não conforme a fins. O sentimento do sublime não repousa no estado de
harmonia das faculdades ali envolvidas, imaginação e razão, mas sim no estado de
desarmonia, no disforme e, por isso, o prazer pelo sublime da natureza é o de uma
contemplação raciocinante (conceitos ou Idéias da razão). “O acordo entre
imaginação e razão não é simplesmente presumido: é verdadeiramente engendrado,
engendrado no desacordo”
35
, disso resulta que o prazer sentido, diferentemente do
prazer diante do belo, é negativo, indireto, pois a imaginação é instigada pela razão a
almejar o incondicionado, onde revela-se a total inadequação desta faculdade diante
das exigências da razão, surgindo, assim, a dor. A imaginação, por sua natureza
sensível, não pode compreender (abarcar) a totalidade que a Idéia a constrange;
entretanto, de certa forma, quando é posta diante de seu limite e o transgride, percebe
o infinito e sente a alma alargada e, neste sentido, o acordo se dá porque a imaginação
reconhece a conformidade a fins, melhor dizendo, o “acordo” entre as duas
faculdades desperta o sentimento, e o prazer, de nossa destinação supra-sensível. Não
é mais a razão a única destinada a ele, mas também a imaginação.
34
Kant, I. – Duas Introduções à Crítica do Juízo, org. Ricardo R. Terra, p. 82.
35
Deleuze, G. – La Philosophie Critique de Kant, p. 75.
62
A disposição de ânimo para o sentimento do sublime exige uma receptividade do
mesmo para idéias; pois precisamente na inadequação da natureza às últimas, por
conseguinte, só sobre a pressuposição das mesmas e do esforço da faculdade da
imaginação em tratar a natureza como um esquema para as idéias, consiste o
terrificante para a sensibilidade, o qual, contudo, é ao mesmo tempo atraente;
porque ele é uma violência que a razão exerce sobre a faculdade da imaginação
somente para ampliá-la convenientemente para o seu domínio próprio (o prático) e
propiciar-lhe uma perspectiva para o infinito, que para ela é um abismo.
36
O que está em questão aqui e requer a dedução do juízo de gosto é a causa da
conformidade a fins da forma do belo da natureza. E entendemos com isso que, ao se
perguntar pela causa da forma bela, está-se questionando o princípio no qual o juízo
de gosto fará sua subsunção, uma vez que a forma da finalidade de um objeto está
diretamente ligada à causa ou origem do juízo de gosto. O princípio do juízo de gosto
– ou seu fundamento - é a forma da finalidade de um modo de representação de um
objeto, o que a Primeira Introdução já expôs, mas falta ainda saber o que exatamente
isso significa.
O estado do sujeito na contemplação do belo é o de uma consciência isenta
de qualquer conteúdo
37
, mas, como já vimos, essa consciência é ela mesma uma
representação, uma auto-representação crítica do sujeito reflexionante, de finalidade
subjetiva; por isso, quando um objeto nos é dado, o prazer sentido é constituído
apenas pela forma da finalidade na sua representação, ou seja, a causa do juízo
estético é precisamente a representação da forma refletida pela imaginação, e sendo
assim, essa forma é o essencial da representação no juízo estético. “Eis portanto a
figura mais pobre da finalidade, sua instância mínima. Aquém dela, não se poderia
36
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, p. 111 (B 110).
37
Por isso Kant foi chamado de formalista. Crítica injusta, que não levou em consideração que, ao
contrário da lógica, a reflexão não pára, fica aberta, e sempre há uma constituição na própria ação do
juízo que, por ser juízo, sempre predica, mesmo que não exista um conceito para isso (o belo é
predicado dele mesmo).
63
nem mesmo falar de prazer; além dela, o ‘simples prazer’ forçosamente cede lugar a
um prazer de conhecimento ou de interesse”.
38
Assim, esse estado momentâneo do
sujeito, que é estético e dá prazer, é simplesmente o livre jogo das faculdades
envolvidas, que “não diz respeito a nenhum conceito da índole e da possibilidade
interna ou externa do objeto, por esta ou aquela causa, mas meramente à proporção
dos poderes-de-representação entre si, na medida em que são determinados por uma
representação”.
39
E mais adiante, no § 12 (B 37), Kant diz que o prazer estético tem
“causalidade em si para conservar o estado da própria representação e a ocupação dos
poderes-do-conhecimento, sem outro propósito. Em suma: a finalidade subjetiva, essa
forma cuja Erscheinung está separada dos conteúdos sensíveis da objetividade, é que
oferece sentido ao belo, e com isso, Kant mostra que há sentido e significação fora da
experiência, esta, pensada em sentido objetivo. Lebrun também nos informa de que
mais importante que a finalidade subjetiva (ou finalidade sem fim) é a “noção de uma
consciência anterior a todo conhecimento, o caráter essencialmente não-
representativo da consciência da beleza”.
40
Kant já tinha inferido do segundo momento da exposição que “belo, é aquilo
que, sem conceito, apraz universalmente”; e do quarto momento que “belo é aquilo
que, sem conceito, é conhecido como objeto de uma satisfação necessária”. Agora
revela, no § 31 da "Dedução", que é imprescindível validar tais conclusões.
Depois de indagar sobre a causa da forma bela e constatar que a forma da
finalidade de um objeto é percebida nele mesmo sem a representação de um fim, Kant
dá mais um passo e verifica agora a validade universal que pode ter este juízo
singular, cujo princípio manifesta a possibilidade de se comunicar universalmente o
estado-da-mente (Gemütszustant) do sujeito na harmonia das faculdades envolvidas
38
Lebrun, op. cit., p. 450.
39
Kant, I. – "Analítica do Belo", tradução de Torres Filho, p. 316 (B 34).
40
Lebrun, op. cit., p. 456.
64
no momento da apreensão de um objeto belo. Assim como nas duas primeiras
Críticas foi preciso a dedução transcendental para validar e legitimar o uso dos juízos
sintéticos a priori ali envolvidos, também na Crítica da Faculdade de Julgar
a dedução do princípio dos juízos de gosto será uma parte decisiva do projeto
crítico, pois, sem ela, mais uma vez, o filósofo, ao examinar agora as credenciais de
nossos juízos estéticos, não poderia se certificar do direito que teríamos, em
princípio, de distinguir os juízos sobre o belo dos juízos sobre o agradável,
atribuindo aos primeiros uma validade universal que negamos aos segundos,
embora ambos estejam fundados num estado subjetivo de nossa mente, que é o
sentimento de prazer.
41
Porém, aquelas tinham por fundamento o conceito de uma natureza em geral, no caso
do conhecimento teórico, e a idéia de liberdade como dada a priori pela razão, no
caso do conhecimento prático. Ambas trazem conceitos objetivos em seu interior
onde fazem a subsunção, e afirmam o que uma coisa é ou como se deve agir para
produzi-la, mas, o juízo de gosto não tem interesse em conhecer objetos, ele efetua
apenas juízos de prazer ou desprazer diante da representação de um objeto dado, cujo
interesse se funda unicamente na presunção ao assentimento de todos, sem exceção,
diante de uma forma bela, subjetiva, que não deve ter por base nenhum conceito da
coisa.
(....) assim, deve ser demonstrada para a faculdade-do-juízo em geral simplesmente
a validade universal de um juízo singular, que expressa a conformidade a fins
subjetiva de uma representação empírica da forma de um objeto, para explicar
como é possível que algo possa aprazer simplesmente no julgamento (sem
41
Almeida, G. A. – Crítica, Dedução e Facto da Razão, in, Analytica, p. 58.
65
sensação ou conceito) e – assim como o julgamento de um objeto em vista de um
conhecimento em geral tem regras universais – também a satisfação de cada um
possa ser proclamada como regra para todo outro.
42
Deste modo, Kant anuncia que este juízo, embora tenha suas particularidades
próprias por ser singular e desinteressado, enquanto juízo que é, no entanto, traz
também em seu bojo propriedades lógicas, e isso porque reivindica universalidade e
necessidade a priori para o sentimento, e são esses conceitos puros que garantem a
autonomia do sujeito judicativo, já que ele não pode fundamentar a comunicabilidade
na comparação de informações de outros sobre seu modo de sentir diante de uma
representação dada, nem sobre conceitos, mas sim sobre o seu próprio gosto.
Naturalmente, essas propriedades lógicas, diante de tudo que já vimos sobre
as características desses juízos, não podem, contudo, tratarem da universalidade
objetiva, mas sim da singular; bem como a necessidade, esta não depende de
argumentação probatória a priori, cuja representação possa forçar o assentimento que
o juízo de gosto supõe em cada um. É aí que se encontra a dificuldade do
empreendimento desta faculdade e, como diz Kant na última alínea do § 31, resolver
isso é a tarefa de uma dedução do gosto. Sua proposta é pelo método heurístico, como
era de se esperar: vai tomar os juízos estéticos como se (als ob) fossem lógicos, ou
melhor, vai abstrair tudo o que eles têm de diferente e conservar o que há em comum
entre os dois, a saber, apenas a forma lógica deles. E com isso fica claro o quanto a
logicidade do sentimento estético é condição necessária para sua comunicabilidade.
43
42
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, p. 127 (B 134, 135).
43
Acreditamos estar aqui o equívoco da leitura efetuada por Paul Guyer da Estética kantiana, a qual,
embora extremamente detalhista e trabalhada, é tomada pela maioria dos grandes intérpretes de Kant
como equivocada; um deles é Allison, que conserva grande espaço de seu livro Kant’s Theory of Taste
para analisar a interpretação deste autor. Em Kant and the Claims of Taste, Guyer confessa ter dado
um enfoque essencialmente epistemológico a esta obra de Kant (p. 312), a qual acaba acarretando que
o prazer no gosto está conectado ao alcance objetivo, logo levado à idéia absurda de que tudo na
natureza é belo, já que, perante tal leitura, é preciso conhecer o objeto belo para depois contemplá-lo.
Allison adverte que a conseqüência disso é o prejuízo da pretensão à universalidade subjetiva, tão cara
66
Em outras palavras, o que foi buscado e ao mesmo tempo importuna, parece
ser o fato de o sentimento de prazer ou desprazer deste juízo ter adquirido estatuto
transcendental, pois é para ele [sentimento] que Kant reivindica o assentimento
universal e necessário, para o estado produzido em todos os sujeitos pela harmonia da
imaginação e do entendimento, e não propriamente para o juízo sobre a beleza.
44
Mais ainda, nem tanto o prazer sentido diante do belo, mas o assentimento de todos
em prol de uma universalidade é que é o mais importante nesta investigação. Assim,
(...) o juízo de gosto pode legitimar sua pretensão à validade não porque tem a
concordância de todos (como num juízo universal lógico ou na universalização de
uma máxima), mas porque espera uma adesão ou assentimento (Beistimmung) de
todos àquilo que, fundado numa regra possível, o judicante anuncia.
45
Isso nos indica o quanto o interesse de Kant está voltado para a própria operação da
faculdade de julgar, para o ato de refletir, para a circularidade deste juízo que não tem
domínio e, como tal, não tem as categorias para se guiar.
“O juízo de gosto determina seu objeto com respeito à satisfação (como
beleza) com uma pretensão de assentimento de qualquer um, como se fosse
objetivo”.
46
Esta é a primeira peculiaridade “lógica” que Kant descreve do juízo de
gosto, e o que está manifestado aí é que este juízo a priori é contrário daquele do
agradável. Da beleza se diz: “esta flor é bela” e não “esta flor é bela para mim”; sobre
o agradável se diz: “isto é agradável para mim” e não “isto é agradável”. Dizer que
a Kant aqui, pois, uma leitura especulativa resulta no fato de que nem todos responderão para a mesma
unificação do mesmo modo, o que significa que o argumento da universalidade das condições de
cognição não pode fundar a universalidade da resposta estética. Guyer, então, parece não levar em
conta a tão importante heurística assumida por Kant na terceira Crítica em relação à lógica.
44
Cf. Basch, V. – Ensaio Crítico sobre a Estética de Kant, p. 316.
45
Suzuki, M. – O Gênio Romântico, p. 72.
46
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, p. 128 (B 136).
67
“cada um tem seu gosto” é emitir uma proposição estética dos sentidos, e não um
juízo de gosto, e muito menos um juízo universal. O que agrada pode até produzir
uma certa unanimidade, mas ela é produto de uma reunião de votos adquiridos por
meio de comparação, por meio de regras gerais e não universais. E é justamente isso
o que Kant quer evitar: não confundir generalidade com universalidade. “Essa
unanimidade, quando se produz, é um simples fato, e não é pensada como necessária.
Ao contrário, o juízo do belo, ao mesmo tempo que é válido para todos os homens
(universal), se impõe a cada um como uma norma (necessária)”.
47
Mas o juízo
estético não é uma doutrina, não tem regras que determinem o que é belo, é apenas
uma crítica, o exercício de uma instância a priori. Então, como saber se o juízo com o
qual declaramos algo belo e o impomos a qualquer um como necessário de provar tal
satisfação, é um juízo que traz tal qualidade?
É então que Kant lança mão de uma estratégia em voga no século XVIII
48
:
os modelos exemplares consagrados na história da humanidade. Porém, jamais esses
modelos poderão ser copiados, porque uma das exigências do gosto é a autonomia
deste juízo, ele não permite de modo algum que opiniões de outros ou quaisquer
preceitos forneçam alguma prova válida para o julgamento do belo. Os exemplos
(Muster) são um recurso justamente para resolver a falta de conceito desses juízos,
47
Khodoss, F. – Kant, Le Jugement Esthétique, p. 18.
48
Cassirer, E. – A Filosofia do Iluminismo, capítulo VII. Ali o autor expõe fatos importantes que nos
ajudam a entender a influência franco-anglicana da estética kantiana. O século XVIII encontrava-se
numa transição em relação à estética, já não mais satisfazia a idéia de beleza vinculada à perfeição,
mas também não se poderia aceitar simples descrições de fenômenos estéticos, ou seja, nem
racionalismo estético nem empirismo estético. Na doutrina de Diderot já se encontra o esboço de uma
teoria do gosto subjetiva/objetiva e a pretensão de vincular a beleza à finalidade. Mas coube a
Shaftesbury, por ser um pensador “que não se esforçaria nem por analisar teoricamente o belo nem por
reduzi-lo a regras, nem por descrevê-lo psicologicamente e explicá-lo geneticamente” [p. 411], fundar
a primeira filosofia autônoma de beleza, cujo desenvolvimento atingiu seu máximo com a Crítica da
Faculdade de Julgar de Kant. Cabe lembrar que a estética inglesa de Shaftesbury também considerava
os modelos, e “a arte não é, de maneira alguma, mimesis, no sentido em que se ateria ao aspecto
exterior das coisas, à sua simples aparência, procurando copiá-las tão fielmente quanto possível. A
forma de “imitação” que lhe é própria pertence a uma outra esfera e, por assim dizer, a uma outra
dimensão, porquanto não imita simplesmente o produto, mas o ato de produção, não o que é
engendrado mas a própria gênese” [pp. 417-418].
68
eles são regras que devem ser observadas.
49
Kant usa o termo sucessão (Nachfolge)
para designar que os clássicos devem ser seguidos, e não copiados (nicht
Nachahmung). Os caminhos que fizeram, e dos quais deve-se partir, ajudam a evitar
as grosserias das primeiras tentativas:
Não há absolutamente nenhum uso das nossas forças, por livre que ele possa ser, e
mesmo da razão (que tem de extrair todos os seus juízos da fonte comum
[gemeinschaftliche] a priori), que não incidiria em falsas tentativas se cada sujeito
sempre devesse começar totalmente da disposição bruta de sua índole, se outros não
tivessem precedido com as suas tentativas, não para fazer de seus sucessores
simples imitadores, mas para pôr outros a caminho pelo seu procedimento, a fim de
procurarem em si próprios os princípios e assim tomarem o seu caminho próprio e
freqüentemente melhor.
50
Existem modelos de beleza que chegam a ser quase imortais, e isso os
transforma em regras para seus sucessores. No entanto, esses modelos, por mais que
tragam adequação de proporção, ainda pedem complemento porque são vagos.
Vamos ver mais adiante - no § 49 - que é à liberdade da imaginação, imbuída de
gênio, que vai ser atribuída a tarefa de acrescentar esquemas para completar o
modelo. Seguir exemplos, explica Kant, significa apenas “haurir das mesmas fontes
49
Pimenta. P. P. G. – A linguagem das formas, p. 118: “Copiar é então legítimo, desde que esteja a
serviço de uma imitação, desde que opere no sentido de uma amplificação daquilo que se copia. O
retratista não pratica um gênero misto, cultiva uma perversão, por meio da qual a intenção de uma arte
(a imitação) degenera numa prática mecânica (a cópia). O copista detém-se naquilo que vê; o imitador
lê no objeto particular o código de uma ordem”. Sugerimos a leitura de todo o capítulo IV “Da cópia à
imitação), onde o autor nos fornece um bom material para entendermos esta questão.
50
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julga, p. 129-130 (B 138,139).
69
das quais aquele próprio hauriu e apreender imitativamente (ablernen)
51
de seu
predecessor somente a maneira de proceder no caso”.
52
Na segunda peculiaridade do gosto Kant acrescenta pouco em relação à
primeira, pois continua o enfoque na ausência de argumentos e provas, tanto
empíricas quanto a priori, para impor o juízo de gosto a alguém “como se ele fosse
simplesmente subjetivo”.
53
Com isso, Kant já adianta informações que serão usadas
no momento de tratar da antinomia do gosto.
Na primeira peculiaridade foi tratado de um juízo singular – esta flor é bela -
que, no entanto, é singular, mas não no sentido solipsista, como são os de agrado. Na
segunda, porém, é tratado de um juízo que também não é solipsista, mas, por outro
lado, também não é de gosto: “Todas as tulipas são belas”. Este juízo é universal
lógico e foge do intuito do gosto. O que é procurado então desde o § 8 da "Analítica
do Belo", é um juízo que seja singular, mas com validade universal subjetiva e não
objetiva, lógica, como os de conhecimento, mas que faça
da relação de um objeto ao gosto o predicado das coisas de uma certa espécie em
geral. Unicamente aquilo, porém, pelo qual considero uma dada tulipa singular bela,
isto é, considero minha satisfação nela válida universalmente, é um juízo de gosto.
Sua peculiaridade, porém, consiste em que, embora ele tenha validade meramente
subjetiva, ele contudo estende a sua pretensão a todos os sujeitos, como se ele
pudesse ocorrer sempre caso fosse um juízo objetivo, que se assenta sobre
fundamentos cognitivos, e pudesse ser imposto mediante uma prova.
54
51
Kant emprega no texto palavras como: Nachfolge, Nachahmung e ablernen que nem sempreo
adequadamente diferenciadas nas traduções, fato que nos leva ao erro de confundir os termos imitação
e cópia, dificultando, assim, sua compreensão. No contexto esses termos devem ser entendidos
respectivamente como significando: sucessão, cópia e aprender a partir de.
52
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, p. 130 (B 139).
53
Idem, Ibidem, p. 130 (B 140).
54
Idem, Ibidem, pp. 131-132 (B 142).
70
Melhor dizendo, a universalidade de um juízo de gosto não se funda sobre uma
objetividade - este juízo é particular -, tampouco na generalidade de um conceito, mas
sobre o próprio juízo, na sua própria subjetividade, na comunidade estabelecida no
Gemütszustand no momento em que as faculdades envolvidas alcançam uma
proporção harmoniosa no evento da representação do objeto. Ele até parece um juízo
lógico porque se supõe válido para qualquer um, mas como estético, exerce apenas a
relação da representação do objeto ao sujeito.
55
O problema que se coloca, então, é o do princípio do gosto e o da sua
subsunção. Já sabemos que não podemos nos valer para isso de regras objetivas
universalizantes como se fossem “uma premissa sob cuja condição se pudesse
subsumir o conceito de um objeto e, então, por uma inferência descobrir que ele é
belo”.
56
O prazer do belo é imediatamente sentido na representação do objeto, e não
inferido por cognição ou incutido por argumentos. O fundamento de determinação do
juízo de gosto vem “da reflexão do sujeito sobre seu próprio estado (de prazer ou
desprazer), com rejeição de todos os preceitos e regras”.
57
Este princípio, então, Kant vai buscar na investigação da faculdade de
conhecimento, é ali que a crítica pode ajustar a proporção adequada das faculdades
envolvidas e, conforme o caso, esta proporção se ajusta ao conhecimento
determinante ou ao reflexionante, ou seja, tudo vai depender da crítica em relação à
representação do objeto dado, já que é subjetiva. Ela [a crítica] é arte, se mostrar essa
proporção somente através de exemplos, e ciência, se deduzir “a possibilidade de um
tal julgamento da natureza desta faculdade [de conhecimento], como faculdade-de-
55
Sobre isso é indispensável ir ao livro de Lebrun, Kant e o Fim da Metafísica, para conferir na
primeira seção do capítulo XIII como ele trata da universalidade subjetiva que é alcançada no juízo de
gosto mesmo sem obter provas de sua legitimidade. Trata-se de uma pretensão à adesão de todos,
porém justificada e inserida na lógica, mas sem a certeza objetiva.
56
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, p. 132 (B 143).
57
Idem, Ibidem.
71
conhecimento em geral”. A única coisa comum entre as duas é a crítica
transcendental.
Ela [faculdade-de-conhecimento em geral] deve desenvolver e justificar o princípio
subjetivo do gosto como um princípio a priori da faculdade do juízo. A crítica como
arte procura meramente aplicar as regras fisiológicas (aqui psicológicas), por
conseguinte empíricas, segundo as quais o gosto efetivamente procede (sem refletir
sobre sua possibilidade), ao julgamento de seus objetos e critica os produtos da arte
bela, assim como aquela critica a própria faculdade de julgá-los.
58
Isso quer dizer que a crítica é a própria faculdade de julgar em seu pleno exercício de
reflexão, referindo a representação não ao objeto, pois isso teria o intuito de conhecê-
lo, mas ao sujeito,
cuja consciência também não tem outro objeto senão o estado em que se situa
dispondo-se a conhecer, ou seja, pondo a forma sensível e a forma intelectual de sua
capacidade de conhecer em geral (Verstand überhaupt) na relação requerida pelo
conhecimento em geral (Erkenntnis überhaupt).
59
Assim, o juízo de gosto se funda sobre a própria faculdade de julgar em geral
(Urteilskraft überhaupt), pois ela é a condição formal subjetiva de todos os juízos
(inclusive dos lógicos). É a faculdade de julgar, ou a crítica, como acabamos de ver,
que reivindica a concordância das duas faculdades envolvidas - imaginação e
entendimento – perante a representação de um objeto dado. E então acontece um
processo importante da relação das faculdades: como não há nenhum conceito do
58
Idem, Ibidem, pp. 132-133 (B 144).
59
Guillermit, L. – L’Élucidaction Critique du Jugement de Goût selon Kant, p. 101.
72
objeto embasando o juízo, sua subsunção consistirá na própria faculdade da
imaginação, e sob
“a condição de que o entendimento em geral
60
chegue da intuição a conceitos. Isto
é, visto que a liberdade da faculdade da imaginação consiste no fato de que esta
esquematiza sem conceitos, assim o juízo de gosto tem que assentar sobre uma
simples sensação [Empfindung] das faculdades reciprocamente vivificantes da
imaginação em sua liberdade e do entendimento com sua conformidade a leis,
portanto, sobre um sentimento [Gefühl] que permite julgar o objeto segundo a
conformidade final da representação (pela qual um objeto é dado) à promoção da
faculdade de conhecimento em seu livre jogo; e o gosto enquanto faculdade de juízo
subjetiva contém um princípio da subsunção, mas não das intuições sob conceitos e
sim da faculdade das intuições ou apresentações (isto é, da faculdade da
imaginação) sob a faculdade dos conceitos (isto é, do entendimento), na medida em
que a primeira em sua liberdade concorda com a segunda em sua conformidade a
leis.
61
Uma análise da operação das faculdades no livre jogo e do processo de
esquematização que ocorre no § 35 é fundamental para entendermos o caminho da
dedução e validação da universalidade dos juízos de gosto. Kant traz para os juízos
estéticos um esquema diferente daquele ocorrido na “Analítica dos conceitos”, onde o
entendimento produzia as categorias espontaneamente. Mas de que modo se dá esta
diferenciação e o que pode significar esquematizar sem conceitos?
Christel Fricke é uma autora que contribuiu bastante para o esclarecimento
dessa questão. A solução encontrada por ela foi a dupla significação do termo
“esquematizar”. Pode-se entender por esquematizar uma aplicação de esquemas ou
60
O grifo é nosso.
61
Kant, I. – op. cit., pp. 133-134 (B146).
73
também uma produção de esquemas. A primeira não pode ser pensada aqui porque
envolve um conceito, o que, sem polêmica, a torna inadequada; mas a segunda é
bastante plausível, desde que feita a devida distinção entre produção de esquemas
correspondentes a categorias, e a correspondente a conceitos empíricos. Quando ela
corresponde às categorias, o esquema “é um produto transcendental da imaginação,
referente à determinação do sentido interno em geral, segundo as condições de sua
forma (o tempo), em relação a todas as representações, na medida em estas devem
interconectar-se a priori num conceito conforme à unidade da apercepção”.
62
O
mesmo não acontece com a produção de esquemas referentes a conceitos empíricos
porque o entendimento não produz esses conceitos espontaneamente,
mas por meio da análise das representações sensíveis dadas. Portanto, não faz
sentido dizer que pode haver um conceito empírico anterior ao esquema que lhe
corresponde, dado que a formação de um conceito empírico como base das
representações dadas não é possível sem a formação do esquema que lhe
corresponde.
63
Assim, temos que pensar que a atividade da imaginação e da faculdade do
juízo, que atuam conjuntamente neste processo, têm em vista a “formação de um
conceito empírico e de seu esquema”
64
, pois o belo é percebido no sensível, na
percepção de uma forma, ele não é uma concepção intelectual, e com isso é possível
entender o que Kant significa quando fala em ‘esquematizar sem conceitos’; “pois a
esquematização que visa à formação de um conceito empírico e de seu esquema
procede sem regra de um conceito dado, e é isso que a distingue da esquematização
62
Kant, I. – Crítica da Razão Pura, A142, B 181.
63
Fricke, C. – “Esquematizar sem conceitos: a teoria kantiana da reflexão estética”, in Cadernos de
Filosofia Alemã, 7, p. 9.
64
Idem, Ibidem.
74
das categorias”.
65
Todo este processo envolvendo a reflexão estética tem por razão
os propósitos diferentes aqui buscados em relação à primeira Crítica, e uma das
primeiras coisas a se notar neste texto é que agora Kant põe feições nítidas à
embaçada noção de “conhecimento em geral” já anunciada no prestigiado § 9. Ele é
nada mais nada menos que o famigerado princípio do gosto, com um nome um pouco
alterado: “faculdade de julgar em geral”, já que ela é a condição formal de todos os
juízos, ou seja, sua forma lógica.
66
“O juízo de gosto tem que assentar-se sobre um sentimento que permite
julgar o objeto segundo a conformidade final da representação (pela qual um objeto é
dado) à promoção da faculdade de conhecimento
em seu livre jogo”.
67
Com isso
podemos entender que o que é buscado aqui para a subsunção do juízo de gosto, não é
mais o conceito do entendimento com suas regras, mas um sentimento que permite
julgar o objeto segundo a conformidade final da representação pela qual um objeto é
dado, e isso em prol da ascensão da faculdade de conhecimento a um posto superior,
na circunstância do livre jogo.
Tal é então o efeito decisivo da reflexão da faculdade de julgar: ela reconduz
(ramène) a faculdade de conhecer ao momento propriamente subjetivo de seu
exercício enquanto faculdade do espírito, o da faculdade de representação sensível:
a imaginação que compõe o diverso se ajusta à faculdade de representação
intelectual: o entendimento que unifica este diverso nos conceitos, segundo a
65
Idem, Ibidem.
66
Isso nos permite entender a conclusão tirada por Dumouchel quando ele afirmou que desde 1787, a
fundação do juízo de gosto não poderia ser senão cognitiva, como testemunhando as observações sobre
o “conhecimento em geral” (§ 9) ou a “faculdade de julgar em geral” (§ 35) e sobre as condições de
validade intersubjetiva do juízo de gosto. Certamente o autor não considerou que aqui apenas estão em
jogo as condições de possibilidade de um conhecimento em geral. (cf. Dumouchel, D. - La découvert
da la faculté de juger réfléchissant, p. 437).
67
Fragmento da citação 45.
75
relação recíproca de comunidade que torna possível o pôr em relação “de uma
representação dada com o conhecimento em geral.
68
O conhecimento em geral consiste na relação das faculdades envolvidas, e o
sentimento estético, sobre o qual assenta o juízo de gosto, funda-se nessa relação.
Logo, a conformidade final da representação, pela qual um objeto é julgado através
de sentimento e não por conceitos, é uma forma que constitui a condição fundamental
do gosto. E é por isso que Kant sugere, para descobrir o fundamento de direito (quid
juris) de um juízo de gosto, através de uma dedução, que seja mantida apenas a forma
lógica desses juízos, pois é ela que pode nos servir de fio condutor.
Diante de tudo o que foi visto é hora de perguntar: como são possíveis
juízos de gosto? Ou, o que dá no mesmo: como é possível refletir? Essa é a
pergunta que devemos fazer diante da Crítica do Juízo depois de constatar que o
princípio do juízo estético não é o conceito, mas o sentimento obtido na harmonia
do livre jogo das faculdades engajadas. Ou seja, o sentimento adquire estatuto
transcendental, é bem verdade, passa para o âmbito de faculdade, mas mesmo
assim, a referência é apenas ao sujeito, já que o prazer é sentido, ainda que não
seja uma sensação de agrado. A "Analítica do Belo" tateou bastante, mas só
conseguiu descobrir dentro dos quatro momentos o que o juízo de gosto não é; a
busca continua.
A questão do gosto é uma pergunta filosófica por fundamento, que ultrapassa a
estética em sentido estrito, e que só pode ser formulada em termos judicativos.
Crítica do Gosto ou Crítica da Faculdade do Juízo, a investigação dos princípios do
juízo do gosto interessa-se por gosto e por juízo visando a algo de problemático e
68
Guillermit, L. – op. cit. p. 84.
76
filosoficamente relevante, que a unanimidade reivindicada pelo gosto sugere e que a
universalidade indeterminada de um certo juízo sem objetividade pressupõe como
seu fundamento. Pergunta-se então: que algo é esse?
69
Naturalmente, a finalidade sem fim designa apenas que o julgamento do
belo é sem um fim deliberado, nada antecede a faculdade de julgar, pois Kant não
pode admitir que o juízo de gosto caia num fundamento de determinação por
conceitos, mas o critério do interesse não implica apenas uma negação, implica que o
juízo determinante é o juízo reflexionante que não chegou a se realizar inteiramente,
porque a forma do juízo existe independentemente do objeto e a faculdade de julgar
exerce seu papel porque é transcendental e pode ser elucidada a priori.
70
O que Kant enfoca no § 36 é que sempre que houver princípios a priori de
subsunção é preciso uma dedução porque ele sempre vai reivindicar necessidade,
mesmo que sejam juízos subjetivos. Este é um problema que envolve também a
autonomia da faculdade de julgar, pois, quando ela deixa de ser pura para tornar-se
estética – os juízos estéticos fornecem o paradigma do uso subjetivo da faculdade de
julgar – onde a faculdade não tem que subsumir sob conceitos objetivos do
entendimento e não estão sob uma lei, “ela é subjetivamente para si própria tanto
objeto como lei”.
71
Dá-se, com isso, uma descrição clara da origem da chamada
heautonomia da faculdade de julgar reflexionante, em que a faculdade produz uma lei
(ela a produz, não vem de fora), e é a condição formal subjetiva de seu próprio uso em
vista de um conhecimento em geral. Assim, o primeiro passo é produzir a lei, para,
em seguida, aplicá-la a si própria no seu uso estético, rigorosamente subjetivo, para
julgar partindo do estado das faculdades representativas no instante da uma
representação. Obviamente, tal lei só tem valor de um ponto de vista subjetivo e num
69
Costa Rego, P. – “O Gosto e a Fundação Estética dos Juízos na 3ª Crítica de Kant”, in studia
kantiana, vol. 3, nº 1, p. 145.
70
Cf. Leopoldo e Silva, F. – “Subjetividade e Juízo”, in Discurso, 19, 1992, pp. 32ss.
71
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, p. 134 (B 148).
77
uso específico da faculdade de julgar, a qual não leva a nenhuma determinação
objetiva e só tem poder de coação sobre si mesma.
Mas ainda pode-se indagar, dirá Kant, como é possível que um juízo julgue a
priori um prazer e, ao mesmo tempo, partindo apenas do sentimento próprio e sem
conceito, possa uni-lo universalmente à representação do mesmo objeto? O que é
propriamente afirmado a priori de um objeto em um juízo de gosto? Esta é a pergunta
do § 37. E para respondê-la, Kant retoma a importância da diferenciação entre os
juízos estéticos reflexionantes, juízos de sentidos estéticos e juízos determinantes.
O sentimento diante do belo é um estado da consciência, pois Kant diz que
só internamente é percebido que a representação de um objeto esteja ligada ao prazer,
senão seria um juízo empírico. Por outro lado, não pode haver com uma representação
uma ligação a priori de um conceito determinado de prazer ou desprazer, pois tratar-
se-ia de um prazer moral, onde o princípio a priori determinado da vontade encontra-
se como fundamento na razão. Kant diz:
o prazer moral é conseqüência da determinação de uma lei, enquanto o prazer do
gosto deve ser ligado imediatamente ao simples julgamento antes de todo o
conceito, e é por isso que todos os juízos de gosto são singulares, eles ligam seu
predicado da satisfação a uma representação empírica singular dada, não a um
conceito.
72
Com isso, conclui-se que não é o conceito do objeto a origem de determinação de um
juízo estético, mas o sentimento do sujeito, ou melhor, é o estado da mente, produzido
pela proporção transcendental da relação harmoniosa das faculdades representativas,
que atribui à representação do mesmo objeto a comunicabilidade universal. “Portanto,
não é o prazer, mas a validade universal deste prazer, que é percebida como ligada na
72
Idem, Ibidem, p. 135 (B 149, 150).
78
mente ao simples julgamento de um objeto, e que é representada a priori em um juízo
de gosto como regra universal para a faculdade do juízo e válida para qualquer um”.
73
Na Primeira Introdução, seção VIII, Kant menciona com todas as letras que
o que diferencia o juízo estético dos demais juízos é a sua pretensão à validade
universal e necessidade;
pois se o juízo estético traz consigo algo assim, ele também tem pretensão a que o
seu fundamento-de-determinação se encontre, não meramente no sentimento de
prazer e desprazer por si só, mas ao mesmo tempo em uma regra das faculdades-de-
conhecimento superiores, e aqui, especificamente, nas do Juízo, que, portanto,
quanto às condições da reflexão a priori, é legislador e demonstra autonomia
74
,
que no caso é uma heautonomia, como já vimos, onde o Juízo “não é uma faculdade
de produzir conceitos de objetos, mas somente de comparar, com os que lhes são
dados de outra parte, casos que aparecem, e de indicar a priori as condições
subjetivas da possibilidade dessa vinculação”.
75
Nesse sentido, podemos dizer que a possibilidade de se comunicar
universalmente o estado da mente é o real princípio do gosto, o qual requer uma
dedução, pois “é um juízo empírico o fato de que eu perceba e julgue um objeto com
prazer, é porém um juízo a priori que eu o considere belo, isto é, que eu deva imputar
aquela satisfação a qualquer um como necessária”.
76
Ao ler o § 38 entendemos o porquê de Kant ter dito, no § 9, que a
investigação sobre a anterioridade ou posteridade do julgamento do objeto em relação
73
Idem, Ibidem.
74
Idem, Duas Introduções à Crítica do Juízo, org. Ricardo Ribeiro Terra, p. 62.
75
Idem, Ibidem.
76
Idem, Crítica da Faculdade de Julgar, p. 135 (B 150).
79
ao prazer era a chave da crítica do gosto. Ao concluir esta etapa da "Dedução",
percebemos a importância dada para “as condições da faculdade de julgar”, a qual tem
que poder ser admitida a priori porque se pressupõe que todos nós as possuímos da
mesma maneira, e é ali que se dá a conformidade a fins subjetiva (prazer ou
desprazer) da representação no momento do julgamento de um objeto sensível em
geral. Esse julgamento, ao considerar uma finalidade sem fim, ou melhor, a
representação do belo, põe em jogo as faculdades representativas, cujo acordo ou
desacordo é imputado, com direito, a qualquer um. Fica claro, então, que a
legitimação – ou dedução – do princípio, consiste propriamente na pressuposição de
que as mesmas condições do juízo se aplicam a todos, “porque temos, junto às
estruturas transcendentais intersubjetivas envolvidas no processo de conhecimento,
um fundamento da possibilidade de um tal juízo”.
77
Trata-se de uma relação de
finalidade com o homem e com a organização de suas faculdades.
Nesse aspecto, concluímos que a necessidade imputada ao juízo de gosto está
condicionada à inferência de que todos temos as condições lógico-formais para a
satisfação diante de uma representação do objeto belo, logo, condicionada ao
sentimento comum. Kant já anuncia no quarto momento da exposição, precisamente
no § 20, que “somente sob a pressuposição de que haja um senso-comum (pelo que,
porém, não entendemos nenhum sentido externo, mas o efeito do livre jogo de nossos
poderes-de-conhecimento), somente sob a pressuposição, digo eu, de um tal senso-
comum pode o juízo-de-gosto ser emitido”.
78
O sentido interno (diferente do externo ao qual se refere no parêntese e que diz
respeito aos juízos dos sentidos e ao entendimento comum, que explica no § 40)
significa o estado em que o sujeito se encontra na ocasião da representação do objeto,
77
Costa Rego, P. – "A tarefa de uma dedução dos juízos estéticos puros na Terceira Crítica de Kant”,
in Discurso, 34, p. 242.
78
Kant,, I. – "Analítica do Belo", tradução de Torres Filho, p. 330 (B64, 65).
80
no qual a faculdade de julgar está ligada e onde ajusta a proporção das faculdades
envolvidas. Kant diz no § 38:
Se se admite que em um puro juízo de gosto a satisfação no objeto esteja ligada ao
simples julgamento de sua forma, então não resta senão a conformidade a fins
subjetiva desta com respeito à faculdade do juízo, que temos a sensação de estar na
mente [Gemüt] à representação do objeto.
79
Vimos nos §§ 30 e 34, onde Kant já esmiuçou bastante a questão, a conexão
entre finalidade subjetiva e as condições do constructo do juízo dentro da própria
definição de finalidade, o que indica que o caráter auto-referente desse juízo oferece-
lhe uma base para a dedução onde a “lei” dita apenas que: “se x é subjetivamente final
para mim, então tem de ser subjetivamente final para todos”.
80
Ou seja, a finalidade
subjetiva do juízo, que é válida para todos, é a condição do juízo
81
, como vimos no §
30, pois as regras formais do julgamento, sem qualquer matéria, dirige-se apenas às
condições subjetivas do uso da faculdade em geral. É um juízo que, em sua legalidade
livre, retorna sobre si mesmo e se garante sem qualquer norma exterior, obedecendo
apenas a autoridade inscrita em sua própria crítica.
Por paradoxal que possa parecer, o que vai fundamentar os juízos de gosto e
dar credibilidade a eles é justamente aquilo que parece ser mais paradoxal na estética
kantiana, ou seja, os chamados “absurdos” de que Kant se vale na Crítica do Juízo e
dos quais fala cada um de seus momentos, a saber: prazer desinteressado,
universalidade subjetiva, finalidade sem fim e legalidade sem lei, os quais
79
Idem, Crítica da Faculdade de Julgar, p. 136 (B 150).
80
Allison, H. - Kant’s Theory of Taste, p. 176.
81
A finalidade é mais pressuposta que encontrada, e o belo é a forma da adaptação a um fim sem a
representação de um tal fim, o que leva Weil a afirmar que a finalidade é, ou seja, é um fato [“o sentido
é um fato, fatos são um sentido” – atribui a Kant esta maneira de pensar], e não uma obra do espírito
ou resultado de uma ação, ela se reencontra e insufla as faculdades humanas ao jogo sentido. Cf. Weil,
E. – Problèmes Kantiens,capítulo II: “Sens et Fait”, pp. 57ss. A nosso ver, o autor foi além do
permitido ao definir a finalidade como um fato. Dizer que ela é pressuposta é bem diferente de dizer
que ela seja um fato.
81
correspondem respectivamente aos modos da quantidade, qualidade, relação e
modalidade. É bem verdade que a "Dedução" não prova nada; é baseada apenas em
indícios. Mas sempre haverá um defensor para lembrar que são os indícios a condição
da prova, não o contrário.
A faculdade de juízo estética subsume, diferentemente da lógica, numa
relação das duas faculdades reciprocamente concordantes na forma representada do
objeto, e nesta subsunção facilmente se pode enganar. Logo, o que garante que não
haverá erros nesta subsunção? Kant responderá: falar com voz universal é fazer um
puro juízo de gosto, logo um puro juízo de gosto não pode errar, porque o sentimento
se refere sempre a ele mesmo.
Capítulo III
Há um fundamento supra-sensível para o juízo de gosto validar seu
assentimento universal e necessário?
Pensamento e linguagem são para o artista
instrumentos de uma arte
.
Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray.
A dialética do gênio no juízo de gosto
No segundo capítulo trabalhamos com a hipótese de encontrar o final da
dedução do juízo de gosto nos parágrafos 30-38, como indicam muitos estudiosos de
Kant. Porém, contrariando a opinião dos que defendem que os parágrafos que
ultrapassam o 40 não tratam mais da Dedução dos juízos estéticos, embora estejam
sob rubrica dela. Acreditamos que ela não só avança toda a Analítica, mas também
adentra a Dialética e, na verdade, a nosso ver, ela percorre toda a primeira parte da
Crítica da Faculdade do Juízo, ou seja, toda a Crítica da Faculdade do Juízo
Estética, principalmente na solução da antinomia, crucial na economia da Crítica do
Juízo e do juízo estético.
Assim, nossas exigências ainda estão longe de serem atendidas, pois a
comunidade vai se efetuar na união de todas as faculdades, inclusive a da razão.
Portanto, a dedução continua, pois há um outro princípio a ser inferido. Até agora foi
deduzido apenas o princípio formal do juízo de gosto inserido na Analítica, o qual
deixa claro que o caráter transcendental alcançado no sentimento, o torna apto para
colocar o Juízo (Urteilskraft) lado a lado com as outras faculdades superiores da
mente, condição necessária para a comunidade universal se efetivar. Mas ainda é
83
preciso deduzir a necessidade exemplar exposta e deixada em suspenso no quarto
momento da "Analítica do Belo" que, como já vimos no primeiro capítulo, constitui
um momento essencial na Crítica do Juízo por tirar definitivamente o juízo de gosto
da instância psicológica do sujeito e colocá-lo no patamar das faculdades superiores
da mente. Há um “dever” colocado já na exposição que persiste e amarra a Dedução,
quando ela, em vez de se concluir no § 38, alarga-se consideravelmente no § 40,
quando o dever é retomado como se fosse um fio condutor.
É com o conceito de senso comum, esboçado anteriormente, que Kant
almeja um fundamento para estabelecer a intersubjetividade da disposição das
faculdades de conhecimento (o livre jogo), determinada pelo sentimento de prazer ou
desprazer na ocasião de uma representação dada. Sendo assim, o senso comum, como
condição necessária da comunicabilidade universal, “não pode ser fundado na
experiência, pois quer legitimar juízos que contêm um dever-ser: não diz que todos
irão concordar com nosso juízo, mas que devem (sollen) concordar com ele”.
1
Ora, o
assentimento universal não pode ser sustentado na experiência, senão seria
contingente e não necessário; também não pode contar com o apoio de proposições
lógicas, senão sua necessidade seria objetiva e não subjetiva; é estabelecida, então,
uma validade exemplar que Kant denomina como “mera norma ideal”, uma norma
indeterminada do senso comum que é efetivamente pressuposta por nós e que pode
oferecer ao juízo de gosto a possibilidade de passar por objetivo conservando sua
subjetividade de juízo estético. Entretanto, no fim do § 22, é levantada uma questão:
Se de fato há um tal senso comum, como princípio constitutivo da possibilidade da
experiência, ou é um princípio ainda superior da razão que faz dele, para nós,
somente um princípio regulativo para, só então, produzir em nós um senso comum
para fins superiores; se, portanto, gosto é uma faculdade originária e natural ou
1
Kant, I. – "Analítica do Belo", tradução Rubens Torres Filho, § 22, p. 331 (B 67).
84
somente a Idéia de uma faculdade ainda a ser adquirida e artificial, de tal modo que
um juízo-de-gosto, com sua presunção de um assentimento universal, de fato é
apenas uma exigência da razão, de que se produza uma tal unanimidade do modo-
de-sentir, e o dever-ser, isto é, a necessidade subjetiva da confluência do sentimento
de todos com o sentimento particular de cada um significa somente a possibilidade
de entrar em acordo sobre isso, e o juízo-de-gosto estabelece somente um exemplo
da aplicação desse princípio.
2
Neste contexto é importante salientar o questionamento de Guillermit. O
autor comenta que, diante da inserção de uma norma ideal do senso comum, não se
sabe se tal norma indeterminada existe de fato como princípio constitutivo da
possibilidade da experiência ou se é um princípio regulador da razão que nos impõe
produzir um senso comum para fins mais elevados. A indagação é digna de nota
porque diz respeito ao estatuto do juízo de gosto. Afinal, diante disso vale perguntar:
o gosto é dado ou está por fazer, ele é da ordem do fato ou da ordem do ideal, é uma
faculdade originária e natural, ou é somente a Idéia de uma faculdade artificial
(künstlich) a ser adquirida?
Neste segundo caso, o gosto seria uma exigência da Razão (eine
Vernunftforderung), uma exigência de produzir em nós uma unanimidade da
maneira de sentir, a obrigação (o Sollen), ou seja, a necessidade objetiva de uma
confluência (Zusammenfliessen) do sentimento de todos com o de cada um,
significando a possibilidade de realizar o consenso, o juízo de gosto se oferece no
exemplo da realização desse consenso na aplicação desse princípio.
3
2
Idem, Ibidem.
3
Guillermit, op. cit. pp. 162-163.
85
A resposta podemos encontrar no § 40, embora de modo indireto e
preliminar, onde Kant introduz a necessidade de um ponto de convergência
(Vereinigungspunkt) de todas as nossas faculdades a priori através das máximas do
entendimento humano comum, que, como faculdade de julgamento, precisa ter
capacidade para se expressar sobre regras universais, o que o obriga a abstrair-se de
toda sensação e comoção. Kant preocupa-se em definir muito bem os termos quando
fala em “entendimento humano comum” (der gemeine Menschenverstand). Isso
porque não devemos entender senso comum como o simples são-entendimento (als
bloβ gesunden Verstand)
4
, mas sim como um sensus communis, que é a idéia de um
senso comunitário (gemeinschaftlichen), isto é, de uma faculdade que, ao refletir,
considera “em seu pensamento (a priori), o modo de representação de qualquer outro
como que para ater o seu juízo à inteira razão humana e, assim, escapar à ilusão que, a
partir de condições privadas subjetivas teria influência prejudicial ao juízo”
5
, pois
considera apenas as “peculiaridades formais de sua representação ou de seu estado de
representação”. O são-entendimento, entendido também como o entendimento vulgar
(o homem não cultivado), ao contrário, é uma faculdade que não consegue fazer
abstração das limitações materiais do conceito e, por isso, a sua representação
estabelece uma comunicação de pensamentos, e não de sentimentos. Kant aqui, de um
modo diferente, ainda cuida da fundamental distinção entre juízo estético e juízo
lógico (ou intelectual, como agora escreve). Mas, porque a faculdade de juízo
estética e não a intelectual pode usar o nome de senso comunitário já que a meta é
atingir regras universais? Kant explica que é por causa do termo “sentido” contido na
expressão sensus communis. Entende-se por sentido o sentimento de prazer como o
4
Encontramos uma explicação do são-entendimento e da sã-razão na Logik Phillippi de Kant (312-
313), apud Daniel Dumouchel, Kant et la Gênese de la Subjectivité Esthétique, p. 119: “O são-
entendimento é uma faculdade de tirar numerosos conhecimentos empíricos comparados a um habitum
universal que lhe é conforme e, daí, tirar o analogon de uma regra universal. A sã-razão é uma
faculdade de tirar por meio de conceitos da razão in concreto um analogon de um axiomatis, ou seja,
de tirar uma disposição (Fertigkeit) a partir da qual um axioma pode ser derivado, mas cuja retidão só
pode ser provada pelo juízo in concreto” (XV, R. 432, cerca de 1769).
5
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, tradução de Rhoden e Marques, pp. 139-140 (B 157).
86
efeito da simples reflexão sobre a mente (Gemüt). Logo, o que é universal é o juízo, o
prazer
6
, não o objeto do gosto
7
. “Poder-se-ia até definir o gosto pela faculdade de
julgamento daquilo que torna o nosso sentimento universalmente comunicável em
uma representação dada, sem mediação de um conceito”.
8
Na verdade, o que está
sendo evidenciado é a diferença entre o senso comum estético e o senso comum
lógico: um expressa a comunicabilidade universal do sentimento de prazer ou
desprazer diante de uma representação bela, o outro, a universalidade do
conhecimento.
O que causa estranhamento neste parágrafo não é a introdução do senso
comum como sensus communis, que até agora aparecia na Crítica como Gemeinsinn.
Nada há de tão novo nas explicações desse novo conceito uma vez que já
conhecíamos as diferenças entre os juízos lógicos e estéticos, reiteradamente
explicados na Analítica da Crítica da Faculdade de Julgar Estética. O surpreendente
aí são as máximas do entendimento humano comum que, como o próprio Kant
escreve, não fazem parte da crítica do gosto, embora possam servir para elucidar seus
princípios. As máximas são:1. pensar por si; 2. pensar no lugar de qualquer outro; 3.
pensar sempre em acordo consigo próprio. E referem-se respectivamente às
faculdades superiores da mente: entendimento, Juízo (Urteilskraft) e razão. Na
primeira, Kant contrapõe justamente a superstição, que é a forma mais acabada de
preconceito ou razão passiva ao esclarecimento, que tem a função de libertar alguém
da cegueira e da dependência lançadas pela superstição. A segunda máxima pede uma
maneira mais ampla de pensar e, embora não trate do grau de potência intelectual do
homem, nem da faculdade de conhecimento, espera-se uma capacidade alargada de
6
Sentimento – prazer. Não há oposição entre sujeito e objeto. O sentimento de prazer ou desprazer
depende da proporção entre a imaginação e o entendimento. É no jogo regular entre a liberdade da
imaginação e o entendimento sem conceito (ou melhor, um conceito indeterminado) que a
representação comunica-se como sentimento interno de um estado da mente conforme a fins.
7
O gosto é o senso comum estético. Sua representação é auto-referente.
8
Idem, Ibidem, p. 141 (B 161).
87
pensar, para que se faça dela o uso conveniente de se colocar à parte das condições
privadas do juízo, e assim, poder se imaginar no lugar de qualquer outro para
determinar e poder “refletir sobre seu próprio juízo de um ponto de vista universal”
9
.
Na terceira máxima, ou no modo de pensar conseqüente, Kant nos alerta que, “além
de ser a mais difícil de se alcançar, ela só pode ser alcançada pela ligação das duas
primeiras e perante uma observância reiterada dessa ligação, convertida em
habilidade (Fertigkeit)”.
Logo, pela própria essência das máximas, é possível ver claramente a
preocupação do autor em evitar qualquer usurpação da liberdade de pensar, ou
refletir. O papel crítico da filosofia está muito bem desempenhado aqui e, ainda que
seja a razão que, de uma esfera mais ampla, comanda e assegura a conformidade entre
as proposições, ao estabelecer um diálogo entre as legislações (máximas) das
faculdades heterogêneas, Kant garante ao seu projeto crítico um alcance de unidade
sistemática entre teses antagônicas e permite, sem contradição, pensar por si e
considerar o pensamento dos outros
10
. Com o acréscimo da máxima da razão, ocorre
um passo bastante extenso e súbito aqui, o qual provoca um certo estranhamento e
suscita a questão de como a razão pode ajudar na elucidação do princípio do gosto.
Será que o gosto é uma exigência da razão como suspeitou Guillermit? Deleuze nos
oferece uma boa explicação para esta questão:
Poder-se-ia acreditar que o senso comum estético completa os dois precedentes: no
senso comum lógico e no senso comum moral, ora o entendimento ora a razão
legislam e determinam a função das outras faculdades; agora, seria a vez da
imaginação. Mas não pode ser assim. A faculdade de sentir não legisla sobre
objetos; não há, portanto, nela uma faculdade (no segundo sentido da palavra) que
9
Idem, Ibidem, p. 141, B159-160.
10
Lebrun, G. - Kant e o Fim da Metafísica, nota 21 do cap. XIII: sobre a máxima do “senso comum”
que nos ordena a “pensar substituindo-se pelo outro”, e a comparação com o juízo do outro como
“pedra de toque da verdade”.
88
seja legisladora. O senso comum estético não representa um acordo objetivo das
faculdades (isto é: uma submissão de objetos a uma faculdade dominante, a qual
determinaria ao mesmo tempo o papel das outras faculdades em relação a estes
objetos), mas uma pura harmonia subjetiva onde a imaginação e o entendimento se
exercem espontaneamente, cada qual por sua conta. Por conseguinte, o senso
comum estético não completa os outros dois; funda-os ou torna-os possíveis. Jamais
uma faculdade assumiria um papel legislador e determinante se, porventura, todas
as faculdades juntas não fossem primeiro capazes desta livre harmonia subjetiva.
11
Se nos remetermos aos nossos capítulos anteriores onde especificamos a
importância de considerar a antecedência do juízo em relação ao sentimento, e
lembrar que a raiz do acordo das faculdades fica naquela instância pré-lógica do
estado da mente, da filosofia transcendental, fica mais fácil entender esta questão.
Kant precisa fazer a vinculação das faculdades da mente em prol de sua
sistematização, o que denota neste § 40 a indicação da finalidade do gosto, ou seja,
sua conexão com o supra-sensível.
Ora, consegue-se por certo descobrir entre o sentimento de prazer e as duas outras
faculdades uma vinculação a priori e, se vinculamos um conhecimento a priori, ou
seja, o conceito racional da liberdade, como a faculdade-de-desejar como seu
fundamento-de-determinação, encontrar nessa determinação objetiva, ao mesmo
tempo, subjetivamente, um sentimento de prazer contido na determinação da
vontade. Mas desse modo não é por intermédio do prazer ou desprazer que a
faculdade de conhecimento está ligada com a faculdade-de-desejar; pois este não a
precede, mas, ou se segue diretamente à determinação desta última ou, talvez, nada
mais é do que a sensação dessa determinabilidade da vontade pela própria razão,
11
Deleuze, G. – La Philosophie Critique de Kant, p. 72
89
portanto absolutamente não é um sentimento particular e uma receptividade
peculiar, que exigisse, entre as propriedades da mente, uma divisão particular.
12
Isso, por sua vez, também esclarece a busca de Kant de um princípio a priori
para o sentimento e a preocupação de elevar o Juízo (Urteilskraft) à classe das
faculdades superiores da mente e colocá-lo no mesmo patamar que o entendimento e
a razão. É o a priori que estabelece a conexão entre elas:
Ora, a faculdade-de-conhecimento segundo conceitos tem seus princípios a priori
no entendimento puro (em seu conceito da natureza), a faculdade-de-desejar, na
razão pura (em seu conceito da liberdade), e assim resta ainda entre as propriedades
da mente em geral uma faculdade ou receptividade mediana, ou seja, o sentimento
de prazer e desprazer, assim como entre as faculdades superiores do conhecimento
uma faculdade mediana, o Juízo. O que é mais natural do que supor: que este último
conterá igualmente princípios a priori para aquele primeiro.
13
Assim, a norma ideal do senso comum é mesmo pressuposta como um ideal
a ser buscado infinitamente, mas “a Gemeinschaft kantiana, por ser um ideal, não é
uma noção puramente abstrata; ela não é um voto piedoso assim como as Idéias
reguladoras não eram ficções do cientista, (...) ela está inscrita em nossa faculdade de
conhecimento”
14
.
No entanto, ainda falta resolver a questão do dever (Sollen) que, parece
trazer para o juízo estético um aspecto moral. Kant dá uma boa sugestão no fim do §
40 quando diz que se pudéssemos admitir um interesse na comunicabilidade
12
Kant, I. – Duas Introduções à Crítica do Juízo, org. R. R. Terra, p. 42.
13
Idem, Ibidem.
14
Lebrun, op cit. pp. 504-505.
90
universal, o sentimento no juízo de gosto seria atribuído quase como um dever
15
(gleichsam als Pflicht) a qualquer um. Ou seja, o dever está vinculado a um interesse.
Mas uma das marcas essenciais do juízo de gosto não é justamente o desinteresse?
Esta pergunta por si só já contaminada pela suspeita de que ocorre nesses parágrafos
uma mudança em relação ao estatuto do gosto, ou melhor, senão uma mudança, pelo
menos um acréscimo àquele juízo de gosto que a exposição delineara: há um
interesse estético.
No § 41 é rejeitado o interesse empírico pelo belo porque ele é indireto e
mediato. A sociabilidade se dá mediante a inclinação ou propensão do homem para a
sociedade, e, por isso, como diz Lebrun, este parágrafo esboça uma interpretação do
gosto como transição entre natureza e cultura, o que acaba fazendo do gosto uma
figura da economia de mercado, uma mediação graças a qual, o sensível se torna
moeda, não dando conta, naturalmente, da significação profunda do juízo estético
enquanto faculdade a priori.
16
Em sociedade, vale para o gosto o mesmo que vale
para o juízo de conhecimento: a satisfação se dá pela existência do objeto, e à medida
que cresce na sociedade a satisfação do gozo de determinados objetos, aumenta
também o interesse sobre eles, numa relação diretamente proporcional. É a “idéia de
comunicabilidade universal desse objeto que aumenta quase que infinitamente o seu
valor”
17
. É nesse sentido que Kant diz que um homem isolado não teria interesse em
qualquer adorno para sua própria aparência, tampouco cuidaria de sua morada com
zelo, “pois só em sociedade ocorre-lhe ser não simplesmente homem, mas também
um homem fino à sua maneira”.
18
No final deste parágrafo Kant sugere que a
passagem do sensível ao bom pode ser encontrada não no juízo de gosto empírico,
15
O grifo é nosso.
16
Cf. Lebrun, op. cit. pp. 509 e 512.
17
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, p. 144 (B164).
18
Idem, Ibidem, p. 143 (B163).
91
como acabamos de conferir, mas no juízo de gosto puro. E é no § 42 que o interesse
descreve com precisão a contemplação estética e o sentimento moral.
O interesse habitual, indireto e imediato do simples prazer pela beleza da
natureza, ou melhor, pelas belas formas da natureza, “denota pelo menos uma
disposição da mente (Gemütsstimmung) favorável ao sentimento moral”
19
; mas este
interesse tem de ser desprovido de qualquer atrativo ligado às formas, pois ele nessas
condições é empírico, embora seja, no entanto, imediato também. É o interesse
imediato e intelectual, isto é, o pensamento acompanhado pela intuição e pela
reflexão de que a natureza produziu aquela beleza, que confere a quem a contempla
um sinal de boa alma, um indício de que esta é a maneira de pensar de todos os
homens que cultivam o sentimento moral. Ao contrário do interesse empírico, neste, o
solitário aprecia o belo pelo belo
enquanto tal e “não apenas o seu produto apraz a ele
segundo a forma, mas também a sua existência, sem que um atrativo sensorial tenha
participação nisso ou também ligue a isso qualquer fim”.
20
Para a sociedade como
inclinação do homem, “a ‘bela forma’ não era o mais requintado dos produtos de
consumo, mas o símbolo de uma comunidade universal possível – nela, a ausência de
fim não era sinônimo de gratuidade, mas o indício de que ela não servia mais para a
satisfação de alguém em particular”.
21
Kant faz um paralelo entre faculdade de julgar estética e faculdade de julgar
intelectual explicitando que, em ambas, o julgamento é sobre formas puras e a
satisfação não é fundada sobre um interesse. Tanto o prazer ou desprazer no gosto,
que julga sem conceitos e encontra a satisfação no mero ato de julgar tornando-a, ao
mesmo tempo, regra para qualquer um, como também a satisfação pelo sentimento
moral, cuja faculdade “determina a priori para simples formas de máximas práticas
(enquanto elas se qualificam espontaneamente para uma legislação universal) uma
19
Idem Ibidem, p. 145 (B 166).
20
Idem, Ibidem, p. 145 (B 167).
21
Lebrun, op. cit. p. 525.
92
satisfação que tornamos lei para qualquer um”.
22
Ambas as faculdades não se fundam
sobre um interesse, mas ocorre entre elas uma diferença importante: a primeira
[estética] também não produz um interesse, a segunda o produz. Isso porque interessa
também à razão que
as Idéias (pelas quais ela produz um interesse imediato no sentimento moral)
tenham por sua vez realidade objetiva, isto é, que a natureza pelo menos mostre um
vestígio ou avise-nos de que ela contém em si algum fundamento para admitir uma
concordância legal de seus produtos com a nossa satisfação independente de todo
interesse (a qual reconhecemos a priori como lei para qualquer um, sem poder
fundá-la em provas), assim a razão tem que tomar um interesse por toda
manifestação da natureza acerca de uma semelhante concordância, em conseqüência
disso, a mente [Gemüt] não pode refletir sobre a beleza da natureza sem se
encontrar ao mesmo tempo interessada por ela. Este interesse, porém, é, pela sua
afinidade, moral; e aquele que toma um tal interesse pelo belo da natureza somente
pode tomá-lo na medida em que já tenha fundado solidamente seu interesse no
moralmente-bom [Sittlichguten]. Portanto naquele a quem a beleza da natureza
interessa imediatamente temos motivo para supor pelo menos uma disposição para a
atitude moral boa”.
23
Ou seja, Kant faz a aproximação das duas instâncias, à primeira vista
intransponível, por analogia. É a atividade heurística mais uma vez que cuida de
preencher o vão existente entre a natureza e o supra-sensível através das belas formas
que a natureza oferece:
22
Idem, Ibidem, p. 146 (B 169).
23
Idem, Ibidem, pp. 146-147 (B 169-170).
93
o que é interessante na existência de uma bela forma da natureza, é que essa bela
forma, suscitando nosso julgamento estético desinteressado, revela que há nessa
natureza a mesma atitude para desinteressar nosso juízo estético que aquele que
manifesta a razão para desinteressar nosso juízo prático. Temos então um signo que
nos mostra uma atitude da natureza para fazer de algum modo o leito da
liberdade.
24
É importante esclarecer que não há qualquer afinidade entre o sentimento
estético e o moral, pois, no primeiro caso, trata-se de um juízo reflexionante,
subjetivo, que julga sem conceitos, ao contrário do moral, que é objetivo, fundado
sobre um conceito da razão (conceito da lei moral). O que é considerado no interesse
indireto, mas no entanto imediato, sobre o desinteresse de ambos os juízos, é a
expressão (Aüsserung) desse acordo pela natureza através das formas.
25
E Kant deixa
muito claro que o interesse imediato pelo belo da natureza não é comum, mas próprio
somente àqueles que já treinaram sua maneira de pensar em direção ao bem, ou que
têm a predisposição para serem treinados. Com isso, introduz algo novo em relação à
"Analítica do Belo": o conceito de bela-arte e, com ela, o de técnica da natureza ou
finalidade técnica. Portanto, diante da constatação de que existe um juízo de gosto
puro de direito (mesmo que não haja de fato) e que a “pretensão” inscrita nele revela
uma estrutura a priori, eis o momento de perguntar, como nos incita Lebrun: por que
existem juízos de gosto? Por que não haveria juízo de gosto sem um juízo
reflexionante, melhor dizendo, sem uma faculdade de julgar a priori?
26
E o que deve
ser o homem para que tenha uma tal faculdade de Julgar? Kant responde:
24
Guillermit, op. cit. p. 169.
25
Com isso Kant prenuncia o simbolismo como apresentação indireta que será enfocado no § 59.
26
Lebrun, op. cit. p. 515.
94
(...) a admiração da natureza, que se mostra em seus belos produtos como arte, não
simplesmente por acaso, mas por assim dizer intencionalmente, segundo uma
ordenação conforme a leis e como conformidade a fins sem fim; este, como não o
encontramos exteriormente em lugar nenhum, procuramo-lo naturalmente em nós
próprios e, em verdade, naquilo que constitui o fim último de nossa existência, a
saber, a destinação moral
27
(mas a investigação do fundamento da possibilidade de
uma tal conformidade a fins da natureza somente será tratada na Teleologia).
28
Ou seja, a questão está apenas anunciada. O que podemos concluir por
enquanto é que o interesse do sujeito inteligível se baseia, no fundo, em sua
autonomia, e não no arbítrio individual. Ao contrário do sujeito mercador que fazia
do gosto uma transição entre natureza e cultura, o sujeito inteligível, ao se colocar no
ponto de vista do sensus communis, considera-se como “sujeito contratante e se crê
liberto de qualquer querer egoísta, ou antes: ele acredita ter conciliado sua
singularidade e a universalidade que proclama, acredita permanecer ele mesmo
falando por todos”.
29
É a transição entre natureza e liberdade que interessa ao sujeito
do gosto, pois é a espécie, a humanidade, que Kant tem em vista e não o indivíduo, o
que faz com que a universalidade não possa surgir do interesse empírico pela
sociedade. A sociabilidade não é contingente, mas sim transcendental, a priori:
O interesse que espontaneamente tenho pelo prazer puro mostra com evidência que
ele não é um vivido arbitrariamente construído: esse prazer, que não é comandado
por nenhum interesse mundano, é conforme à minha destinação, já que a natureza
solitária é seu melhor revelador. (...) trata-se, portanto, de uma solidão onde se foge
da sociedade para entrever uma sociabilidade da qual esta sociedade nos mascarava
a idéia. E não é sarcasmo de forma alguma se, para Kant e Rousseau, o retiro longe
27
Grifos nossos.
28
Kant, op. cit. p. 147 (B 170-171).
29
Lebrun, op. cit. p. 509.
95
dos homens nos ensina a amar o gênero humano, nem acaso se Rousseau precisa
“embrenhar-se na floresta” (PL., I, 388) para desvelar a natureza do homem.
30
A dedução do § 42 é então a solidão estética da insociável sociabilidade? O
dever (Sollen, Pflicht) de que falava o § 40 seria mesmo no sentido moral? Afinal, se
pensarmos nas últimas palavras contidas na "Analítica do Belo" e na carta que Kant
escreveu a Reichardt em 15 de outubro de 1790, 228, teremos de esperar a análise dos
§§ 59 e 60 da Crítica do Juízo para nos certificarmos sobre isso. Numa das passagens
dessa carta Kant escreve:
Eu me contentei em mostrar que, sem o sentimento moral, não haveria para nós
nem belo nem sublime, que nisso se funda a pretensão por assim dizer legal à
aprovação, e que o subjetivo da moralidade em nosso ser – insondável sob o nome
de sentimento moral – é o próprio gosto, em relação ao qual nós não julgamos
segundo conceitos objetivos da razão, assim como é exigido no juízo segundo leis
morais; portanto, o gosto não repousa de forma alguma no contingente da sensação,
mas em um princípio a priori (não discursivo, certamente, mas intuitivo).
31
***
Mas antes de passar à leitura dos últimos parágrafos da primeira parte da
Crítica da Faculdade de Julgar, onde se trata do conhecimento intuitivo e onde
parece estar o acabamento da dedução da comunicabilidade necessária, que até agora
não ficou clara em seu trajeto, teremos que examinar os conceitos de bela-arte e
gênio, os quais vão reportar-se à natureza supra-sensível. Vimos nas passagens que
acabamos de analisar que Kant concentra sua atenção mais no belo do que no gosto
propriamente dito. E também que no § 42 já foram introduzidos os conceitos de bela-
30
Idem, Ibidem, p. 522-523.
31
Apud Lebrun, op. cit.pp. 523-524.
96
arte e de finalidade técnica, o que indica que este conceito acrescenta algo em relação
ao mero julgamento de gosto apresentado na exposição, a saber: a relação entre arte e
natureza, tão necessária para simbolizar as representações indiretas.
A noção de arte (e não apenas a de belas formas da natureza) é importante
agora devido à noção de liberdade arbitrária que vem com ela, ou seja, há agora uma
intenção envolvida que causa dificuldade de compreensão, pois mais uma vez
deparamo-nos com os famosos paradoxos kantianos. Por enquanto foi enfocado,
como condição necessária para o juízo estético, exatamente a ausência de
intencionalidade, a finalidade sem fim. O que motiva agora o acréscimo de uma
intenção que, à primeira vista, é contrária aos quatro momentos lógicos detalhados na
"Analítica do Belo"? Afinal, Kant reforça no fim do § 44 da Crítica do Juízo
32
que:
bela-arte é um modo de representação que por si mesmo é final, e embora sem fim,
no entanto propicia a cultura dos poderes da mente para a comunicação social. A
comunicabilidade universal de um prazer traz já consigo, em seu conceito, que este
não deve ser um prazer da fruição, por mera sensação, mas sim da reflexão; e assim
arte estética, como bela-arte, é uma arte tal que tem por justa-medida o Juízo
reflexionante e não a sensação-de-sentidos.
Em que medida então a arte é intencionada? Vamos ver o que a técnica da
natureza, expressa no § 45, traz de novo para nos ajudar. Logo no início do parágrafo
encontramos o familiar “como se” (als ob), cujo método indica a solução de muitos
problemas na filosofia kantiana, principalmente na Crítica do Juízo. Em outras
palavras, a técnica da natureza manifesta a autonomia do juízo de gosto, que se
exprime como heautonomia, cujo sujeito está submetido apenas às suas próprias leis,
pois é ele quem as cria. Sendo assim, diante da limitação do entendimento para lidar
32
(B 179) e p. 339 da tradução de Torres Filho.
97
com assuntos que fogem da circunscrição do conhecimento determinado, onde há um
conceito para ditar as regras, ele cria um “conceito” artisticamente para fazer as vezes
da lógica, sem comprometer a subjetividade e a finalidade sem fim, e, com isso, firma
sua pureza reflexiva que, ao julgar, a comunidade universal do prazer no livre jogo
das faculdades fica assegurada. Assim, sem mostrar o esforço requerido para a arte,
ela parece natural, e a natureza, de tão ordenada, parece arte, embora tenhamos, e
devemos ter, a consciência de que a arte não é natural. Pois vale para a arte o mesmo
que vale para a beleza natural: “belo é aquilo que apraz no mero julgamento (não na
sensação-de-sentidos, nem por um conceito)”.
33
E a intencionalidade da arte vem do
fato de ela ter sempre um propósito determinado que é o de produzir, “pois algo tem
de ser pensado nela como fim, senão não se pode atribuir seu produto a nenhuma arte;
seria um mero produto do acaso”.
34
No entanto, essa intencionalidade não pode
aparecer no produto, senão seria arte mecânica e não bela-arte. Ou seja, se a intenção
da arte
fosse uma mera sensação (algo meramente subjetivo), que devesse ser
acompanhada de prazer, esse produto, no julgamento, aprazeria somente mediante o
sentimento-de-sentidos. Se a intenção fosse dirigida à produção de um objeto
determinado, nesse caso, se fosse alcançada pela arte, o objeto aprazeria somente
por conceitos. Em ambos os casos, porém, a arte não aprazeria no mero julgamento,
isto é, não como bela-arte, mas como arte mecânica.
35
Porém, a pergunta que fica é: como posso julgar uma arte de ofício como se
ela fosse natural? A bela-arte é um produto do gênio, portanto, é o gênio que concilia
arte e natureza, dois elementos distintos e aparentemente irreconciliáveis, como
33
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, tradução de Torres Filho , p. 339 (B 180).
34
Idem, Ibidem, p. 342 (B 186).
35
Idem, Ibidem, pp. 339-340 (B 180).
98
apontou o § 43. Mas o gênio nada tem de demiurgo, de transcendente, ele é imanente,
é a natureza inteligível no homem.
Com a nova analogia, desaparece a necessidade de pressupor uma inteligência
exterior à ordenação atual do mundo, pois essa ordenação está no próprio mundo.
Não é preciso mais recorrer a um entendimento racional transcendente, pois basta o
gênio imanente, que, como o organismo, cresce por suas próprias forças. (...) A
comparação entre demiurgo e arquiteto divino é substituída por uma forma de
explicação que põe como fundamento da produção uma causalidade imanente,
embora indecifrável.
36
O gênio é o talento (dom natural), faculdade produtiva inata do artista, o que
faz que o trabalho artístico seja comandado pela natureza através das regras (sem
conceitos) fornecidas por ela, uma vez que, sendo arte, as regras estão pressupostas na
própria constituição artística. De certa forma, a natureza, pensada deste ponto de
vista, sobrepõe-se à arte, pois é ela que, através do gênio, faz do produto um jogo
desinteressado, pela qual “uma nova Idéia é expressa no conhecimento sensível e, por
conseqüência, é capaz de produzir uma animação regulada, mas livre, das forças da
alma.
37
É com o gênio que a bela-arte pode atender a exigência imposta pela
faculdade de julgar estética de só aprazer pelo mero julgamento, pois
a obra de arte apresenta-nos a forma da finalidade porque nela a realização
finalística está desvinculada do interesse sensível e do interesse teórico. A mediação
da imaginação no “livre jogo” das faculdades significa a liberdade de apreensão do
objeto, sob a forma da finalidade, mas sem que esta esteja submetida a qualquer
interesse. No entanto, o juízo de gosto é apresentado como necessário: assim a
36
Suzuki, M. – O Gênio Romântico, p. 60.
37
Dumouchel, op cit. p. 241.
99
necessidade e a liberdade se harmonizam na medida em que a forma é
necessariamente visada como bela, no entanto em si mesma, sem que nesta relação
sejamos movidos por qualquer motivação.
38
É por isso que Kant diz no § 46 que a bela arte só é possível como produto
do gênio, o qual apresenta três características indispensáveis para que seu produto
seja bela-arte: naturalidade, originalidade e exemplaridade. O talento permite ao
gênio produzir aquilo do qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada no
sentido da ciência, e é também por isso que o § 43 diz que a arte se diferencia da
ciência. O gênio não pode ensinar a ninguém sua arte porque não lhe é possível
descrever as regras, ele próprio não as conhece, ele próprio não sabe como as Idéias
surgem em sua cabeça, e vem daí que a originalidade deve ser sua primeira
propriedade. Mas já foi dito que ele dá à arte a regra; que regras então são essas?
Não pode, contida em nenhuma forma, servir de prescrição; pois senão o juízo
sobre o belo seria determinável segundo conceitos; mas a regra tem de ser abstraída
do fato, isto é, do produto, no qual outros podem provar seu próprio talento, para
fazê-la servir de modelo, não da contrafação [Nachmachung], mas da imitação
[Nachahmung].
39
Kant já mencionara esta propriedade do gênio no § 32, onde analisamos a
diferença entre cópia e imitação inscrita na exemplaridade. As regras são, então,
transmitidas a outros através do modelo deixado pelo gênio na tradição: único guia de
transmissão à posteridade. Os modelos originais evitam também os desatinos iniciais, pois
apresentam a proporção ajustada do julgamento. A natureza, afinal, não é tão pródiga em
produzir gênios capazes de criar sem modelos, partindo do nada, o que atribui uma
38
Leopoldo e Silva, F. - “Subjetividade e Juízo”, in Discurso (19), p. 38.
39
Kant, I. – Crítica da Faculdade de Julgar, tradução de Torres Filho, p. 342 (B185).
100
importância ainda maior aos exemplos. Entretanto, e Kant é preciso nisso: o discípulo que é
capaz de captar essa transmissão, só pode ser alguém dotado com uma proporção dos
poderes-da-mente semelhante a do gênio.
Agora, para usar a metáfora de Kant, é preciso mencionar que o gênio deve
ser “domado”, tal como se faz com um cavalo selvagem. Mas como domar um talento
inato? Incutindo-lhe escolaridade. “O gênio só pode fornecer rico material para
produtos da bela-arte; a elaboração do mesmo e a forma requerem um talento
formado pela escola, para fazer dele um uso que possa subsistir diante do Juízo”.
40
A
tensão entre o gosto e o gênio é tratada no § 48, em cujo início confrontamos já com a
perspectiva do espectador e com a do produtor da arte, uma universal e outra
particular. Nas suas primeiras linhas está escrito: “para o julgamento de belos objetos,
como tais, é requerido gosto; para a bela-arte mesma, porém, isto é, a produção de
tais objetos, é requerido gênio”. A "Analítica do Belo" deixou claro que todos podem
ter gosto, ou sentir prazer diante do belo, bastando para isso imaginação e
entendimento, o que todos os homens têm, e o que possibilita a comunicabilidade
universal desse sentimento. Ou seja, a obra de gênio suscita prazer na contemplação
de todos os que se propuserem a isso, porém, produzi-la só é dado àqueles que foram
agraciados com o dom natural, que nasceram com esse talento. E ainda mais, ao
homem de gênio não basta contemplar a beleza, também tem de produzi-la.
Kant já definiu que “uma beleza natural é uma bela coisa; a beleza artística é
a bela representação de uma coisa”.
41
O que está em jogo aqui, de fato, é a finalidade, conceito-chave nesta
Crítica. Kant precisa estabelecer bem a diferença, ou a semelhança, entre o juízo de
gosto e a bela-arte, pois isso será crucial na Dialética da faculdade de juízo estética.
No julgamento do belo, não é preciso conhecer seu fim material, apenas a forma, por
40
Idem, Ibidem, p. 343 (B 186-187).
41
Kant, Ibidem.
101
si mesma, agrada no julgamento, pois o prazer puro tem causalidade em si. O mesmo
não acontece com a bela-arte que, por ser um produto da arte, “como tal deve ser
declarado como belo, então, porque a arte sempre pressupõe um fim na causa (e em
sua causalidade), é preciso primeiramente ser tomado por fundamento um conceito
daquilo que a coisa deve ser”.
42
Tal afirmação traz complicações, principalmente se
pensarmos que a bela-arte já foi definida como técnica e não como mecânica.
Dumouchel
43
oferece uma interpretação convincente desta questão. Já nas
Reflexões em torno dos anos 70, Kant delineava o papel da faculdade de julgar
quando tentava atribuir a esta o estatuto de faculdade superior da mente, cuja tarefa
central era a de operar a passagem entre as regras gerais e o caso particular. Tal
faculdade se ocupa da forma intelectual das sensações e das imagens sensíveis ao
procurar aí a unidade delas, pois regula e modera através de conceitos o jogo das
sensações. Com isso, é responsável pela limitação do jogo do múltiplo sensível
adequando-o à forma universal de um conceito ou de uma idéia previamente
fornecidos e dos quais ela não é a fonte. Sua tarefa, de fato, é unicamente limitativa,
“pois suprime o que, na multiplicidade sensível, poderia obstar a correlação desse
múltiplo sob um fim”.
44
Ou seja, seu papel não é reportar o sensível a uma idéia com
o propósito de conhecer ou produzir um objeto, “mas simplesmente o de assegurar
que uma intuição possa concordar em geral com um tal conhecimento ou uma tal
produção”.
45
Assim, a faculdade de julgar, comparando a representação sensível à
idéia do que a coisa deve ser como a um tipo de “idéia-norma” à qual a representação,
pelo menos negativamente, deve sempre se conformar: “a faculdade de julgar
determina a idéia do que a coisa deve ser na realidade
46
. A figura, tal como ela
42
Idem, Ibidem, p. 343 (B 188).
43
Cf. Dumouchel, op. cit. pp. 227-228.
44
Idem, Ibidem.
45
Idem, Ibidem.
46
“Urteilskraft bezieht die Erscheinung oder Vorstellung der Sache auf das, was sie sein soll, d. i.
wesentliche Zwecke” (Cf. R. 752; 1772), apud Dumouchel pp. 227-228.
102
aparece, não deve entrar em contradição com a idéia. A faculdade de julgar, então,
liga o jogo das sensações e lhe põe limites, mas dá a ela a unidade verdadeira
reforçando, assim, a impressão”
47
. Nesse sentido, como não tem a intenção de
determinação, a faculdade de julgar concerne à “apreciação da conformidade negativa
do objeto da representação com sua perfeição interna, a qual exige sempre um
retorno à idéia como princípio de ordenamento e como ponto de referência não
empíricos”.
48
Com isso acreditamos ficar mais fácil entender quando Kant diz que a beleza
artística é a bela representação de uma coisa, como também a intencionalidade da
arte de sempre pressupor um fim na causa, o que requer que seja tomado um conceito
por fundamento, conceito do que a coisa deve ser, e, por conseguinte, a perfeição
(idéia) da coisa.
A pertinência dessa função no campo da produção artística é mais facilmente
compreensível se lembrarmos que nessa época, e aliás, também na Crítica da
Faculdade de Julgar, Kant considera que embora a “imitação da natureza”
(entendida aqui como conformidade à perfeição interna da coisa) não seja um fim
em si para a arte do gênio, o respeito da perfeição interna permanece, entretanto,
uma condição sine qua non de toda produção das belas-artes (§ 48). Em segundo
lugar, nos parece permitido ver naquela idéia previamente dada, a qual a faculdade
de julgar tenta tornar conforme as representações da imaginação, o próprio modelo
exemplar da obra original. A concepção kantiana de originalidade integra uma
relação produtiva orientada por um modelo (Muster) já dado.
49
47
R. 817; 1776-1778, apud Dumouchel.
48
Cf. a R. 813; 1776-1778: “Die Urteilskraft ist die Tätigkeit des Gemüts, das Mannigfaltige in einem
Gegenstande auf einem Zweck zu beziehen”, a a R. 814, ibid.: “Urteilskraft ist das Vermögen, die
Handlungen auf eine Idee als den Zweck zu beziehen. Das Produkt zeigt Urteilskraft, wenn es auf die
Idee führt und damit wohl zusammenstimmt. […] Onhe Idee ist keine Anordnung fasslich, folglich
fehlt es der Erscheinung an einem Beziehungspunkte”, apud Dumouchel, p. 228.
49
Idem, Ibidem, p. 228. .
103
Com isso, o texto reforça o fato que já vimos tanto no § 32 como no § 45 da
Crítica do Juízo, de que a bela-arte, deve “imitar” a natureza em suas formas, deve
parecer natureza, mas não cópia fiel dela, senão a natureza, em vez de aparecer como
arte, ela torna-se a própria arte e acarreta a entrada de um conceito em sua
representação “para que o objeto seja pensado de tal modo por um juízo estético
logicamente-condicionado”.
50
Isso escaparia totalmente do propósito da bela-arte, em
contrapartida, enfoca a fundamental importância da atividade heurística, ou seja, o
como se ou técnica da natureza.
Se a arte fosse a cópia fiel da natureza, não seria possível descrever ou
representar como belas através de pinturas, coisas que na natureza são realmente
feias, como as doenças, devastações de guerra ou qualquer tipo de tragédia. Tanto
que, o que não é possível representar sem que seja diferente do que o é na natureza,
não é belo. É o caso do nojo. E, por mais que a arte tente dissimular, o sentimento
diante de uma representação deste tipo nunca será o de uma satisfação estética, o que
certamente arruína a beleza artística. “Pois, porque nessa singular sensação, que
repousa sobre pura imaginação, o objeto é representado, por assim dizer, como se ele
se impusesse à fruição, contra a qual no entanto lutamos com violência”.
51
As
esculturas também não apresentam satisfação ao Juízo estético: como a arte em seus
produtos é quase natureza (e não parece natureza), a sua representação é indireta, mas
não imediata, pois o feio nelas resulta agradável mediante a razão, o que
descaracteriza o belo. Logo,
se o efeito de algo representado em uma obra for o mesmo que na natureza, então
não há aí beleza alguma. (....) A beleza artística presente na bela-arte se deve
justamente a essa diferença em relação ao que é belo na natureza; a obra de gênio,
50
Kant, op. cit. p. 344 (B189).
51
Idem, Ibidem, p. 344 (B 189-190).
104
como vimos, não pode ser um mero retrato, cópia, da natureza. Logo, a imitação
servil da natureza, não pode ser objeto do gosto. Para que uma obra humana seja
julgada pelo gosto, como faculdade que julga o belo, ela tem de ser muito mais que
uma mera cópia da natureza: ela tem de ser algo como um ideal da natureza.
52
Não é à toa que o montanhês perde toda a satisfação quando descobre que o
canto do pássaro que lhe parecia belo não passa de uma imitação, da fraude de um
garoto mal intencionado que tenta atrair o pássaro para caçá-lo.
Por conseguinte, encontra-se aqui um certo acordo, apesar de tenso, do gosto
em relação à arte, ou seja, da natureza e da bela-arte; o que é universalmente
comunicável na bela representação de um objeto, seja na obra do gênio (produção),
seja no mero julgamento do belo (gosto), é “apenas a forma da exposição de um
conceito”, forma esta que exige do artista muito exercício para sua adequação. Ele
tem de encontrar, através da natureza, ou dos modelos exemplares da arte, aquela
forma que provoca satisfação, “por isso, esta não é, por assim dizer, uma questão de
inspiração, ou de um livre arrojo dos poderes-da-mente, mas de um lento e mesmo
penoso aprimoramento, para torná-la adequada ao pensamento e, no entanto, não
prejudicar a liberdade no jogo dos mesmos”.
53
Por outro lado, o gosto, por ser uma
faculdade de julgar e não de produzir, se não se libertar das amarras que possam
prendê-lo a uma utilidade do objeto contemplado, ele será um juízo lógico, regulado
pelo conceito do objeto com o fim de conhecê-lo. Assim, o juízo de gosto deve julgar
a bela-arte pela forma aprazível que ela lhe comunica, como se fosse natural, e não
intencional, embora se tenha consciência de que a finalidade da arte está aí. Contudo,
o gosto deve domar o gênio para que ele não se perca no entusiasmo (Schwärmerei), e
52
Nascimento, L. F. S. – “Exposição e Gênio na Crítica do Juízo”, in Cadernos de Filosofia Alemã, 4,
p. 38.
53
Kant, op. cit. p. 344 (B 191).
105
o gênio deve incitar o gosto para que ele não acabe se tornando sem espírito (Geist),
que
no sentido estético, significa o princípio vivificador da mente. Mas aquilo através
do qual este princípio vivifica a alma, a matéria-prima que ele emprega para isso, é
o que põe as faculdades da mente, conforme a fins, em movimento, isto é, num jogo
tal que conserva por si e robustece por si mesmo as forças para isso.
54
Esse princípio vivificador da mente é a faculdade de exposição (Darstellung)
das Idéias estéticas, as quais, como representação da imaginação sem qualquer
conceito adequado, dão muito a pensar e, por isso, nenhuma linguagem alcança
totalmente para torná-las inteligíveis. Kant contrapõe a Idéia estética à Idéia racional:
a primeira é representação da imaginação sem conceito, a segunda, ao contrário,
aquela em que nenhuma intuição pode ser adequada ao conceito presente. Contrapõe-
as também porque de certa forma há um paralelo entre elas; afinal, por que Kant
denominaria representações da imaginação como Idéias? A resposta é logo
encontrada:
(...) em parte, porque pelo menos esforçam-se em direção a algo que se encontra
além dos limites da experiência, e assim procuram aproximar-se de uma exposição
dos conceitos racionais (das Idéias intelectuais), o que lhes dá a aparência de uma
realidade objetiva; por outro lado e aliás principalmente, porque a elas, como
intuições internas, nenhum conceito pode ser totalmente adequado.
55
A imaginação adquire, então, um poder bem maior daquele que exercia na
Crítica da Razão Pura face à lei da associação, como faculdade passiva. Agora ela é
54
Idem, Ibidem, p. 345 (B 192).
55
Idem, Ibidem, p. 345-346 (B 194).
106
uma faculdade de conhecimento produtiva, que ainda se vale da lei da associação para
“emprestar” matéria da natureza, só que agora não mais com o intuito de agregá-la a
conceitos do entendimento com o fim de determinação, mas sim para algo muito
diferente: algo que ultrapasse a natureza e os limites do conhecimento científico. A
imaginação usa agora sua liberdade de forma extrema na “criação como de uma outra
natureza”, embora segundo leis analógicas, “mas no entanto também segundo
princípios que estão mais altamente situados na razão”
56
, ou seja, princípios
inteligíveis, os quais, Kant nos avisa, são tão naturais [ao homem] quanto “aqueles
segundo os quais o entendimento apreende a natureza empírica”.
57
Ao transcender a natureza, a imaginação a recria e não a imita. A poesia é o
melhor exemplo para essa faculdade [imaginação] mostrar seu talento através das
Idéias estéticas. A arte poética atinge o máximo alcance, apresenta-se em toda a sua
medida naquilo que Kant chama de sensibilizar Idéias racionais de seres invisíveis
(como por exemplo o reino dos bem-aventurados, a eternidade) e mesmo tornar
sensível o que está na natureza de modo abstrato (como a fama, o amor, a inveja, a
morte), mediante uma imaginação que rivaliza com o modelo da razão (Vernunft-
Vorspiele) e atinge “uma completude para a qual na natureza não se encontra nenhum
exemplo”.
58
Dessa forma, a imaginação amplia o conceito esteticamente e de modo
ilimitado, pois põe a razão a pensar quando coloca sob ele [o conceito] uma
representação que pertence à sua exposição, e da qual nunca se poderia ter uma
compreensão se o conceito permanecesse dentro do campo do conhecimento
determinado, do entendimento. Kant fala em atributos estéticos de um objeto,
cujo conceito como Idéia racional, não pode ser exposto adequadamente, pois não
constituem a exposição de um conceito dado em si mesmo, mas apenas, como
56
Idem, Ibidem, p. 345 (B 193).
57
Idem, Ibidem.
58
Idem, Ibidem, p. 346 (B 194).
107
representações acessórias da imaginação, exprimem as conseqüências ligadas a ele e
seu parentesco com outros. Não representam aquilo que está contido em nossos
conceitos, assim como fazem os atributos lógicos, mas algo diferente que dá ensejo
à imaginação de estender-se sobre uma multidão de representações aparentadas, que
dão mais a pensar do que pode exprimir-se em um conceito determinado por
palavras; e dão uma Idéia estética, que, para aquela Idéia racional, faz as vezes da
exposição lógica, mas propriamente para vivificar a mente, ao abrir-lhe a visão de
um campo inabarcável de representações aparentadas.
59
Nesta longa passagem podemos entender que o papel do gênio na Crítica do
Juízo é o de possibilitar uma conexão entre a natureza e o supra-sensível. O exemplo
do poeta ilustra que não é porque algo é inapreensível, ou melhor, porque a limitação
da linguagem não consegue abarcar o estranho ou o incompreensível, que ele não
possa ser expresso de alguma maneira. E ainda, o juízo reflexionante mostra, de modo
ainda mais nítido através de gênio, que há coisas que, embora subjetivas e não
demonstráveis, existem. O espírito ou princípio vivificador da mente, que é a
faculdade de exposição das Idéias estéticas, é o produto de um trabalho reflexionante
e, a Idéia estética, ao fazer as vezes de exposição lógica para uma Idéia racional e
tentar exprimir o que não é possível através da lógica, “desafia a atividade reflexiva a
buscar uma unidade inteligível com a qual as possa abranger”.
60
Com efeito, é o
juízo reflexionante, ou a faculdade de julgar, que atende a demanda sistemática da
razão e faz a passagem (Übergang) por meio de uma atividade heurística, fazendo
valer sua autonomia, ou heautonomia. Na falta de um conceito para agregar a síntese
da diversidade empírica, cria um artisticamente, tecnicamente
61
.
59
Cf. Kant, Ibibem, p. 346 (B 195).
60
Suzuki, op. cit. P. 40.
61
Cf, Kant, I. – Duas Introduções à Crítica do Juízo, org. R. Terra, p. 49: “O juízo reflexionante
procede, pois, com fenômenos dados, para trazê-los sob conceitos empíricos de coisas naturais
determinadas, não esquematicamente, mas tecnicamente, não, por assim dizer, apenas mecanicamente,
como um instrumento, sob a direção do entendimento e dos sentidos, mas artisticamente, segundo o
108
Inteiramente indiferente e contingente do ponto de vista das leis universais da
natureza, uma diversidade empírica é um agregado que só se torna sistema por uma
exigência interna da razão: esta não pode suportar o acúmulo caótico de impressões
e idéias sem ser tentada a lhe dar uma forma e uma ordenação. E essa necessidade
interna (Bedürfnis), sem ser impelida externamente e sem nenhum conceito prévio,
estimula a atividade reflexionante a satisfazer sua vontade de sistematização.
62
No entanto, é preciso ter em mente que há um conceito intelectual
acompanhando as representações da imaginação e contribuindo para a animação delas
pela Idéia racional, sem o que as Idéias estéticas cairiam numa causalidade divina e o
juízo estético perderia sua autonomia. O juízo reflexionante tem liberdade justamente
para levar em conta e usar apenas o elemento estético da consciência supra-sensível.
A “eventualidade” da Idéia estética significa apenas que ela não está sob coação do
entendimento para determinar o objeto, já que ela não tem qualquer compromisso
com a existência dele, mas sim em alertar a mente para aquilo que foge do campo
científico.
A Idéia estética é uma representação da imaginação que acompanha um conceito
dado e que está vinculada a uma tal diversidade de representações parciais em seu
uso livre, que para ela não pode ser encontrada nenhuma expressão que designe um
conceito determinado, e que, portanto, permite acrescentar em pensamento a um
conceito muito de indizível, cujo sentimento vivifica a faculdade de conhecimento e
vincula à linguagem, como mera letra, um espírito.
63
princípio universal, mas ao mesmo tempo indeterminado, de uma ordenação final da natureza em um
sistema, como que em favor de nosso Juízo, na adequação de suas leis particulares (sobre as quais o
entendimento nada diz) à possibilidade da experiência como um sistema, pressuposição sem a qual não
poderíamos esperar orientar-nos em um labirinto da diversidade de leis particulares possíveis”.
62
Suzuki, op. cit. pp. 40-41.
63
Kant, Ibidem, p. 347 (B 197-198).
109
É aí que se encontra o gênio, na proporção feliz das faculdades da mente
(imaginação e entendimento), onde a imaginação é livre para "fornecer ao
entendimento uma matéria rica e não desenvolvida, que este em seu conceito não
tomou em consideração, mas que ele aplica, não tanto objetivamente para
conhecimentos, quanto subjetivamente para a vivificação dos poderes-do-
conhecimento, portanto indiretamente também para conhecimentos”.
64
O gênio,
imbuído de espírito, é responsável pela exposição e comunicação das Idéias estéticas,
o que requer “uma faculdade de apreender o jogo rapidamente transitório da
imaginação e unificá-lo em um conceito (que justamente por isso é original e
inaugura uma regra, que não pode ser inferida de nenhum princípio ou exemplo
precedente), que se deixa comunicar sem a coação de regras”.
65
Por isso que o gênio
é um talento para a arte e não para a ciência; não há uma proporção previamente
determinada por regras nem um procedimento que se possa seguir ou relatar, motivo
pelo qual não há imitação; a finalidade sem fim no livre acordo das faculdades
pressupõe uma disposição que só a “natureza do sujeito pode produzir”.
O gênio não é outra coisa que a expressão mais acabada do modo de proceder do
Juízo reflexionante, quando este compara a proporção entre as faculdades num
determinado estado empírico da mente com a proporção ideal em que deveriam
estar no desenvolvimento pleno, para ele inatingível, de todas elas.
66
O fim do § 50 diz que a imaginação, o entendimento, o espírito e o gosto são
requisitos para a bela-arte, e explica, o que tinha ficado pendente no § 48 sobre a
relação do gênio com o gosto. Lebrun comenta
67
que não há nada de divino na
genialidade porque a descoberta do gênio surge e desaparece com ele, permanecendo
64
Idem, Ibidem, p. 348 (B 198).
65
Idem, Ibidem.
66
Suzuki, op. cit. p. 68.
67
Cf. pp. 546-547 em Kant e o Fim da Metafísica.
110
sua propriedade e marcando seus limites porque a arte se detém em algum lugar.
Diferentemente da lógica, que se dá numa constância e deve elucidar todas as
proposições de um pensamento, sem perder nenhum dos elos que encadeiam as
mediações desse pensamento, a arte tem a subitaneidade como traço principal, o
imediato é a fonte onde ela se inspira e se renova incessantemente.
68
O gênio chega a
seu ápice na obra de arte impedindo o progresso porque ela não é cumulativa como a
ciência, por exemplo, tampouco é um instrumento cultural, uma vez que não há
prescrição de sua técnica, o que impede que ela se torne o bem de uma comunidade.
Nesse sentido, se diz que o “gênio paga muito caro seu privilégio: se ele economiza a
lentidão da maturação, gasta de uma só vez todos os seus recursos”.
69
É por isso que
o gosto precisa disciplinar o gênio e cuidar para que ele não se estenda além dos
limites do pensamento e produza apenas insensatez. O gosto, ou a faculdade de julgar
em geral, aponta o caminho ao gênio,
por onde e até onde ele deve estender-se, para permanecer conforme a fins; e, na
medida em que introduz clareza e ordem na plenitude de pensamento, torna as
Idéias estáveis, suscetíveis de uma aprovação duradoura e ao mesmo tempo também
universal, de serem seguidas por outros e de uma cultura sempre em progresso.
70
Tanto que, o Juízo, em sua autonomia, é bastante rigoroso com o gênio: se
houver conflito entre as propriedades de um produto que exija uma escolha, é o gênio
com toda a sua riqueza de Idéias que será sacrificado, não o entendimento. Todavia, é
importante mencionar o comentário de Lebrun de que não compreender isso é
incorrer no erro dos Stürmer und Dränger e dos românticos, que fizeram do gênio um
homem superior, condenado a viver entre os tolos, supondo que sua linguagem
68
Cf. Cassirer, E. – A Filosofia do Iluminismo, p. 398.
69
Idem.
70
Kant, op. cit. p. 350 (B 203).
111
deveria ser entendida por todos. No entanto, quando o gênio se curva às exigências do
gosto, ele não está preocupado com a moda em voga na época, mas sim em atestar
que “não existe bela-obra se ela não é limitada por uma exigência mínima de
comunicação, e que a expressão deve parecer tanto menos contingente quanto ela não
é a ilustração de um pensamento formulável. O gênio não é senão este ponto de
equilíbrio”.
71
***
A Idéia estética
72
, então, cujo conceito não olha o objeto como determinação
sensível, e, por exprimir o indizível, é transposta heuristicamente pelo gênio ao supra-
sensível, torna-se o símbolo da Idéia racional
73
, o que nos leva a concluir que
precisamos partir para a Dialética da faculdade de juízo estética para continuar a
dedução dos juízos de gosto, uma vez que ela não está “suficientemente clara em
todas as suas partes”,
74
e conferir a validade da universalidade subjetiva, pois, se a
faculdade de julgar é uma faculdade superior de conhecer, e há um princípio a priori
situado à base do juízo estético, então deve haver uma antinomia
75
, senão qualquer
reivindicação de necessidade de assentimento universal seria uma ilusão infundada e
vazia.
76
É a antinomia do gosto que legitima a integração da faculdade de julgar
superior à razão em geral, e, por conseguinte, à tarefa de uma crítica da razão em
geral.
71
Lebrun, op. cit., p. 557.
72
Intuição da faculdade da imaginação, também chamada de uma representação inexponível da
faculdade da imaginação, para a qual jamais se possa alcançar adequadamente um conceito, portanto,
não pode tornar-se um conhecimento. É um princípio subjetivo da razão. (Kant, Crítica da Faculdade
de Julgar (B 241).
73
Também chamada de um conceito indemonstrável da razão (transcendente e não transcendental-
imanente), não pode tornar-se conhecimento, porque contém um conceito (do supra-sensível) ao qual
uma intuição jamais pode ser convenientemente dada. É um princípio objetivo da razão. (Idem,
Ibidem).
74
Kant, op. cit., tradução de Rohden e Marques, p. 191 (B 245).
75
Conflito entre duas proposições igualmente necessárias, mas aparentemente contraditórias, cada uma
delas é uma conseqüência válida de um princípio geralmente aceito do juízo estético.
76
Cf. Kant, Ibidem, p. 190 (B 244-245).
112
Está aí a condição indispensável para que possa nascer a Idéia de uma “crítica da
faculdade de julgar”, além da simples “crítica do gosto”. Mas de qual natureza
exatamente é a relação específica ao supra-sensível graças ao qual a faculdade de
julgar consegue para si um lugar na “crítica da razão pura” em geral?
77
Os requisitos exigidos para que haja uma dialética estão especificados no §
55: primeiro, a faculdade do juízo tem de ser antes raciocinante (vernünftelnd,
ratiocinans), ou seja, seus juízos devem reivindicar universalidade a priori, o que,
por si só, já elimina os juízos estéticos de sentidos, uma vez que são de agrado e
solipsistas; segundo, só a crítica do gosto sobre os seus princípios pode conter uma
dialética, e não o próprio gosto. O primeiro requisito já indica que o conflito
particular que alega que cada um tem seu próprio gosto não faz sentido aqui, pois só
perante a inferência de regras predeterminadas se poderia decidir a disputa
(disputieren), exatamente o que o gosto não pode oferecer, então, só a crítica do gosto
pode nos levar a um consenso, e tal crítica é propiciada pela discussão (Streit), pela
dialética que consiste na contraposição dos juízos da faculdade de julgar. No § 33 da
Crítica do Juízo Kant já antecipou a solução da antinomia ao apresentar a segunda
peculiaridade do juízo de gosto, que diz que ele “não é absolutamente determinável
por argumentos como se fosse simplesmente subjetivo”. É o princípio do gosto e sua
subsunção que é investigado ali; e a crítica é a própria faculdade de julgar em ação,
ou seja, refletindo, e referindo a representação ao sujeito, não ao objeto, visto que o
juízo de gosto se funda sobre o próprio juízo, na sua própria subjetividade.
78
E assim, com a discussão, surge “uma antinomia dos princípios desta
faculdade que põe em dúvida a sua conformidade a leis, por conseguinte, a sua
77
Dumouchel, D. - La découverte de la faculté de juger réfléchissante, p. 434.
78
No segundo capítulo desta dissertação discorremos bastante sobre esta questão.
113
possibilidade interna”.
79
E a Dialética exige a solução da antinomia pela referência ao
substrato supra-sensível.
Vê-se, portanto, que a eliminação da antinomia da faculdade de juízo estética toma
um caminho semelhante ao que a Crítica seguiu na resolução das antinomias da
razão teórica pura; e que aqui, do mesmo modo como na Crítica da razão prática,
as antinomias coagem a contragosto a olhar para além do sensível e a procurar no
supra-sensível o ponto de convergência de todas as nossas faculdades a priori, pois
não resta nenhuma outra saída para fazer a razão concordar consigo mesma.
80
Com isso já podemos dizer que o conceito indeterminado
81
que acompanha a
Idéia estética é que está em jogo na antinomia e, por extensão, o próprio gênio. Na
antinomia do gosto, § 56, a tese diz: “o juízo de gosto não se funda sobre conceitos,
pois do contrário poderia-se disputar sobre ele (decidir mediante demonstrações)”. A
antítese: “o juízo de gosto funda-se sobre conceitos, pois do contrário não se poderia,
não obstante a diversidade do mesmo, discutir sequer uma vez sobre ele (pretender a
necessária concordância de outros com este juízo)”. Ou seja, a concordância
(Zusammenstimmung), uma das palavras essenciais da Crítica do Juízo, como diz
Lebrun, nos dá a dica de que devemos ir até a parte mais profunda, pré-conceitual do
estado da mente (Zustand des Gemüts), para que primeiro nos preparemos para
encontrar “as condições subjetivas sob as quais podemos chegar a conceitos”
82
, pois,
para reivindicar universalidade e necessidade, o conceito deve estar presente para
legalizar o juízo sobre o belo.
Certamente podemos descobrir um conceito existente por reflexão, no
entanto, o juízo reflexionante, ao refletir livremente sobre algo, será tanto mais puro
79
Kant, Ibidem, p. 182 (B 232).
80
Idem, Ibidem, p. 186 (B 239).
81
Não pode ser dado na experiência nada que lhe corresponda quanto à qualidade.
82
Suzuki, op. cit., p. 82. Trata-se de uma citação da Crítica da razão pura, B 316.
114
quanto mais alargado, ilimitado e indeterminado for o conceito. O Juízo é sempre
original e nunca consiste numa única faculdade, mas no seu acordo, “quer num
acordo já determinado por uma delas que desempenhe um papel legislador, quer mais
profundamente num livre acordo indeterminado, que constitui o objeto último de uma
‘crítica do juízo’ em geral”.
83
Dito isso fica dito também que o juízo de gosto se funda num conceito (de
conformidade a fins subjetiva), porém, num conceito indeterminado ou
indeterminável, pois, como a Analítica já mostrou de modo recorrente, este juízo não
tem interesse em conhecer o objeto, mas, ao mesmo tempo,
alcança justamente por esse conceito validade para qualquer um (em cada um na
verdade como juízo singular que acompanha imediatamente a intuição), porque o
seu princípio determinante talvez se situe no conceito daquilo que pode ser
considerado como o substrato supra-sensível da humanidade.
84
Observa-se, então, que as duas proposições, tanto a tese quanto a antítese,
são verdadeiras, mas no entanto, imprecisas. Bastaria que a tese afirmasse: “o juízo de
gosto não se funda sobre conceitos determinados....”; e a antítese: “o juízo de gosto
funda-se sobre conceitos indeterminados...”, o que significaria uma e mesma coisa, e,
embora com predicados opostos, elas podem coexistir lado a lado sem qualquer
contradição. Essas duas proposições, diz Kant, já estavam esboçadas nas duas
peculiaridades do gosto expostas nos §§ 32 e 33 da Analítica.
Um conceito que não se determina por predicados da intuição sensível que
lhe correspondem, não é um conceito do entendimento, mas um simples conceito
83
Deleuze, op. cit.,p. 86-87.
84
Kant, op. cit., p. 185 (B 236-237.
115
racional puro do supra-sensível que, absolutamente, não pode se determinar por
intuição; este conceito “se encontra como fundamento do objeto (e também do sujeito
que julga) enquanto objeto dos sentidos, por conseguinte enquanto fenômeno. Pois se
não se tomasse isso em consideração, a pretensão do juízo de gosto à validade
universal não se salvaria”.
85
E também ele não poderia se fundar sobre um conceito
intelectual confuso, como o de perfeição, sem cair na objetividade e permitindo, com
isso, fornecer provas ao juízo de gosto, coisa que a tese já afirmou ser impossível.
A resolução da antinomia apenas resolve o conflito das pretensões do gosto,
já que estamos falando de coisas que ultrapassam a nossa faculdade de conhecimento,
mas nada demonstra (ou exibe), apenas indica a direção, pois as proposições são
imediatamente certas, ou seja, incapazes de prova in concreto, apenas provam a partir
de fundamentos a priori, in abstracto, o que é perfeitamente permitido pela lógica,
desde que se mantenha a “significação do termo, segundo o qual demonstrar
(ostendere, exhibere) equivale a (quer no provar ou também simplesmente no definir)
apresentar ao mesmo tempo o seu conceito na intuição”.
86
O princípio subjetivo do
gosto, ou seja, “a idéia indeterminada do supra-sensível em nós somente pode ser-nos
indicada como a única chave para o deciframento desta faculdade oculta a nós
próprios em suas fontes, mas não pode ser tornada compreensível por nada
ulterior”.
87
O conceito racional do supra-sensível, ou idéia da razão, então, é o ponto de
convergência de todas as faculdades a priori, ou seja, da filosofia transcendental.
Contudo, a faculdade da imaginação não alcança com suas intuições (Anschauungen)
o conceito dado na idéia da razão, como também o entendimento não alcança através
de seus conceitos a inteira intuição interna da faculdade da imaginação em uma idéia
estética. Logo, a faculdade da imaginação, impedida de expor (exibir) em conceitos a
85
Idem, Ibidem, pp. 184-185 (B 236).
86
Idem, Ibidem, p. 188 (B 241).
87
Idem, Ibidem, p. 186 (B 238).
116
sua representação, torna a idéia estética, que constitui o gênio, uma representação
inexponível (indemonstrável) em seu livre jogo. Isso explica por que o gênio, em seus
produtos, dá a regra à arte. É a natureza do sujeito em sua disposição, e não através de
conceitos, que julga o belo, e o faz conforme a fins pelo livre jogo das faculdades
envolvidas, ou seja, subjetivamente, incondicionalmente. Como a bela-arte é julgada
como se fosse natural devido ao caráter (natural) do gênio, as regras
88
fornecidas por
ele são baseadas nas propriedades dele (originalidade, naturalidade e exemplaridade)
expressas nos modelos das obras-primas deixadas como exemplos, mas jamais regras
conceituais, a priori,
podem servir de padrão de medida subjetivo àquela conformidade a fins estética
porém incondicionada na bela-arte, que legitimamente deve reivindicar ter de
satisfazer a qualquer um, mas somente o pode aquilo que no sujeito é simples
natureza e não pode ser captado sob regras ou conceitos, isto, é, o substrato supra-
sensível de todas as suas faculdades (o qual nenhum conceito do entendimento
alcança), conseqüentemente, aquilo em referência ao qual o fim último dado pelo
inteligível à nossa natureza é tornar concordantes todas as nossas faculdades de
conhecimento. Somente assim é também possível que um princípio subjetivo e
contudo universalmente válido encontre-se como fundamento dessa conformidade a
fins, à qual não se pode prescrever nenhum princípio objetivo.
89
Melhor dizendo, o padrão de medida para julgar o belo nós procuramos a
priori, mas não por intermédio de prescrições, fórmulas prévias ou regras conceituais,
88
Dumouchel, D. – Kant et la Genèse da la Subjectivité Esthétique, p. 247, onde o autor explica que
“todas as ‘regras’ do belo artístico são tiradas a posteriori da observação das obras-primas do gênio”.
Achamos perigoso tal uso, ele pode confundir o leitor a tomar o belo artístico pela sensação e pensar
no exemplo como protótipo, o que seria um grande erro, embora o contexto não deixe dúvidas de que o
autor não quis dar este sentido com tal expressão. Além do mais, Kant diz no § 58 (B 253), que a
satisfação do belo artístico é mediante Idéias Estéticas, o que é mais um motivo para evitar o uso do
termo mencionado.
89
Kant , Ibidem, p. 186 (B 242-243)
117
mas em nós mesmos e pela nossa faculdade de julgar reflexionante, é esta que nos
indica se algo é belo ou não, e, nesse sentido, ela é legisladora, legisla sobre o juízo
do belo. A resolução da antinomia nos possibilita entender que não é porque o belo
não é plenamente inteligível que ele seja algo insensato. Isso deve desfazer a
confusão geralmente feita de que, ao se contemplar uma obra de arte, achar que o
artista tencionava, no momento de sua produção, nos dizer algo sobre ela para que a
entendêssemos. Ora, se fosse assim, a obra se tornaria ciência e não arte. E já que a
obra de arte propicia a discussão, é possível encontrar nela um sentido, uma
“compreensão”, embora jamais esta compreensão possa decidir sobre o seu sentido.
Mas o criador tem dificuldade em admitir que sua obra não passa de um pretexto
para “refletir” – e o apreciador desconcertado ignora que a Reflexão é por essência
interminável, sem nenhuma chance de se descobrir o conceito que ela busca, e que
uma obra, talvez, é tanto mais genial quanto, desde o início, ela decepciona essa
esperança.
90
Mediante a Idéia estética, que é o conceito alargado pela vivificação da
mente, faculdade da imaginação, adquirimos, então, autorização para concluir que o
gênio se refere à natureza supra-sensível do homem e, como indica a solução da
antinomia na Dialética do Juízo estético, ele favorece a passagem da natureza à
liberdade pelo pleno desenvolvimento do conceito indeterminado (Idéia da razão).
Com isso ele expressa seu papel no sistema crítico.
Kant diz que as antinomias servem como coagentes da razão, que teima em
seguir sua natureza, a saber, cair na ilusão metafísica e, com isso, “tomar os objetos
dos sentidos pelas coisas em si mesmas”
91
, para o que as antinomias cortam-lhe as
asas impondo-lhe um princípio inteligível, o qual faz dos objetos dos sentidos simples
90
Lebrun, op. cit., p. 558.
91
Kant, Ibidem, p. 189 (B 243).
118
fenômenos. O substrato inteligível é “algo supra-sensível, do qual o conceito é
somente Idéia e que não admite nenhum autêntico conhecimento”
92
. É por isso que há
três espécies de antinomias, uma para cada faculdade superior de conhecimento, as
quais devem, por isso, possuir princípios a priori que possibilitem o julgamento da
razão
93
, cujo uso deles “exige incessantemente para cada condicionado o
incondicionado”, possibilitando a série dos fenômenos.
94
Isso já estava anunciado na Crítica da Razão Pura, no “Apêndice à Dialética
Transcendental”, onde Kant ainda não podia resolver o conceito de finalidade sem
cair no dogmatismo. Mas lá ele já usa o elemento heurístico (als ob) do juízo
reflexionante para tratar da idéia reguladora.
No entanto, o encadeamento sistemático, que a razão pode dar ao uso empírico do
entendimento, não só promove a sua extensão, como também ao mesmo tempo
garante a sua correção, e o princípio de tal unidade sistemática também é objetivo,
de modo indeterminado (principium vagum); não é um princípio constitutivo, que
determine algo em relação ao seu objeto direto, mas tão só princípio simplesmente
regulador e máxima que serve para favorecer e consolidar até ao infinito
(indeterminado) o uso empírico da razão, abrindo-lhe novos caminhos, que o
entendimento não conhece, mas que no entanto não são contrários às leis do uso
empírico.
95
92
Idem, Ibidem.
93
A razão não tem acesso ao particular sensível, para isso, ou seja, para sistematizar, precisa do
intermédio do entendimento e, por conseguinte, de princípios a priori..
94
Suzuki, na obra mencionada, p. 66, fala que Kant (numa carta a Herder) omite o fato de que estava
preparando uma Terceira Crítica onde tentaria uma solução para a antinomia entre causalidade
eficiente (nexus effectivus) e causalidade final (nexus finalis). Kant não usa esses termos na obra, mas
certamente eles foram levados a cabo porque fazem sentido em seu contexto, e algumas passagens da
Dialética atestam isso, por exemplo: “(...) mas o juízo ao mesmo tempo alcança justamente por esse
conceito validade para qualquer um (em cada um na verdade como juízo singular que acompanha
imediatamente a intuição), porque o seu princípio determinante talvez se situe no conceito daquilo que
pode ser considerado como o substrato supra-sensível da humanidade” (B 236-237); e mais adiante
(B 243), fala em fim último dado pelo inteligível.
95
Kant, I. – Crítica da Razão Pura, A 680; B 708.
119
Portanto, tanto lá quanto aqui, cai-se na metafísica se não se atribuir aos
fenômenos, enquanto simples fenômenos, o substrato inteligível de natureza em nós e
fora de nós, ou seja, algo supra-sensível. Conseqüentemente, o princípio a priori que
está à base do juízo de gosto estético, e que faz a ligação ao supra-sensível, se
negado, toda a reivindicação de assentimento necessário e universal cai no vazio, pois
seria esquivar-se da antinomia no uso da faculdade do juízo conforme a exigência da
razão. E o juízo de gosto estaria condenado ou a um assentimento casual de sujeitos
organizados, ou a misturar as leis do gosto com os objetos dos sentidos, mas não
como fenômenos, e sim como coisas em si.
Com isso, Kant apresenta as Idéias que se evidenciam das três espécies de
antinomias quando solucionadas: do supra-sensível em geral, sem determinação
posterior, enquanto substrato da natureza, para o Juízo; do mesmo enquanto princípio
da conformidade a fins subjetiva da natureza para nossa faculdade de conhecimento,
para o entendimento; e do mesmo enquanto princípio dos fins da liberdade e do
princípio da concordância desses fins com a liberdade no campo moral, para a razão.
O § 58 apresenta definitivamente o único princípio da faculdade de julgar estética, o
idealismo da finalidade
96
, tanto da natureza quanto da arte, pois:
Assim como a idealidade dos objetos dos sentidos enquanto fenômenos é a única
maneira de explicar a possibilidade de que suas formas venham a ser determinadas
a priori, do mesmo modo também o idealismo da conformidade a fins no
96
Allison, H. E. – Kant’s Theory of Taste, p. 254: “Então, Kant pode legitimamente assumir que a
resolução da antinomia, como as das outras duas Críticas, acaba levando ao idealismo transcendental”
(Thus, Kant can legitimately claim that the resolution of the antinomy, like those of the other two
Critiques, leads ultimately to transcendental idealism). O autor, com esta afirmação, imprime um
sentido com o qual não concordamos: a resolução da antinomia não acaba no idealismo transcendental,
antes, o idealismo é buscado por Kant, pois este precisa escapar tanto do racionalismo quanto do
realismo para que o gosto possa satisfazer a todos necessariamente e sem normas conceituais. É a
autonomia do sujeito do gosto que é preservada nesta operação. O § 58 deixa muito claro isso com as
longas demonstrações que faz para justificar que a conformidade a fins da natureza é subjetiva, técnica,
e não mecânica e objetiva: “há um favor no modo pelo qual acolhemos a natureza e não um favor que
ela nos mostre”. O que importa ao juízo estético é saber como acolhemos a natureza, e não saber o que
ela é.
120
julgamento do belo da natureza e da arte é o único pressuposto sob o qual a crítica
pode explicar a possibilidade de um juízo de gosto, o qual exige a priori validade
para qualquer um (sem contudo fundar sobre conceitos a conformidade a fins que é
representação no objeto).
97
O conflito da antinomia do gosto foi eliminado com a proposição: “o juízo
de gosto funda-se sobre um conceito indeterminado”, e isso equilibra de certa
maneira o caráter do juízo de gosto entre sua compreensão e sua insensatez, ou seja,
cria um convívio entre o gosto e o gênio ao indicar que “pode-se exprimir sem nada
exprimir”, ou ainda “todos os fenômenos são esquemas, mas nem todos os esquemas
são fenômenos”.
98
É o que Kant faz no § 59 quando usa o símbolo para ampliar o
esquematismo e poder “expor” um conceito indemonstrável, afinal: “pensamentos
sem conteúdos são vazios e intuições sem conceitos são cegas”. É um momento que
explora bastante o potencial da faculdade reflexionante, pois é através da forma de
reflexão que entendemos que o déspota está para o povo, assim como o braço está
para o moinho.
99
É o que Kant chama de hipotipose (palavra grega que é sinônima da
alemã Darstellung e da latina exhibitio), termo que engloba tanto o símbolo quanto o
esquema; ou seja, a hipotipose simbólica, então, faz as vezes da intuição que falta ao
conceito da razão e preenche o referencial do substrato de determinação da regra
transcendental. Este procedimento é adotado por analogia ao que é feito no
esquematismo (onde a intuição correspondente a um conceito que o entendimento
capta é dada a priori), mas somente segundo a regra transcendental do juízo, “e não
da própria intuição, por conseguinte simplesmente segundo a forma da reflexão, não
do conteúdo”.
100
O artifício da analogia não é novo; no § 58 dos Prolegômenos, Kant
define analogia como “uma semelhança perfeita de duas relações entre coisas
97
Kant, Ibidem, p. 195 (B 254).
98
Lebrun, op. cit., p. 559 e 294.
99
Este desdobramento do exemplo kantiano tiramos de Guillermit, op. cit., p. 170.
100
Kant, Ibidem, p. 196 (B 255).
121
inteiramente dessemelhantes, graças a qual resta um conceito de ser supremo
suficientemente determinado para nós, embora tenhamos deixado de lado tudo o que
o poderia determinar absolutamente em si mesmo”. Essa explicação dos
Prolegômenos, por analogia, torna o significado da Crítica do Juízo bem mais claro
para nós.
A hipotipose serve aos signos sensíveis segundo a lei da associação
101
da
faculdade da imaginação, mas enquanto “simples expressão de conceitos”, ou seja,
subjetivamente.
O simbólico poderia então ser entendido como a exhibitio do signo, na
impossibilidade de haver a exhibitio na modalidade da intuição. A exhibitio do
signo se dá a partir da imaginação. Com isto tenho uma representação indireta do
conceito, também chamada apresentação simbólica. A noção de símbolo permite
que a subjetividade “julgadora” vise o natural como prático.
102
Nesse sentido, o “belo como símbolo do moralmente bom” deve ser
entendido como o “belo como símbolo do dizer indiretamente”. É uma outra forma
que Kant utiliza para expressar o que já vem fazendo desde a Analítica, ou seja,
usando a arte para simbolizar o sensível no supra-sensível, ou o belo no moral, pois o
“gosto tem em mira o inteligível”
103
, mas a relação simbólica ou analógica, expressa
apenas uma semelhança entre “as regras de refletir sobre ambos e sua causalidade”
104
,
uma identidade apenas de princípios, exatamente como um moinho e um Estado
despótico, e nada de semelhante em termos de conteúdo ou significação, a
101
A imaginação se vale da lei da associação no seu uso empírico como faculdade passiva no
esquematismo transcendental. Trata-se da intuição empírica da imaginação. Já tratamos disso
anteriormente neste mesmo capítulo.
102
Leopoldo e Silva, F. – “Subjetividade e Juízo”, in Discurso (19), p. 40.
103
Idem, Ibidem, p. 198 (B 258).
104
Kant, ibidem, p. 197 (B 256-257).
122
dessemelhança qualitativa deve ser levada em conta nesta analogia, como por
exemplo, na moral, o tempo é interrompido, enquanto o belo está no tempo.
No entanto, não se pode deixar de reconhecer a afinidade entre os dois
âmbitos, pois Kant fala que, somente sob o aspecto do moralmente bom, o belo apraz
com pretensão de assentimento universal, e esse prazer é exigido de qualquer outro
como um dever, “em cujo caso a mente [Gemüt] é ao mesmo tempo consciente de um
certo enobrecimento e elevação sobre a simples receptividade de um prazer através de
impressões dos sentidos e aprecia também o valor de outros segundo uma máxima
semelhante de sua faculdade do juízo”.
105
Kant já disse, no § 42, que o interesse intelectual do belo descreve com
precisão a contemplação estética e o sentimento moral, e que o juízo de gosto puro
pode fazer a passagem do sensível ao bom, pois um homem não adornaria a si nem a
sua morada se estivesse afastado da sociedade. Isso remete ao fato de que o interesse
indireto e imediato do simples prazer pelas belas formas (sem qualquer atrativo
empírico ligado a elas) da natureza “denota pelo menos uma disposição da mente
(Gemütsstimmung) favorável ao sentimento moral”
106
. Kant ali diz que o juízo
estético puro, no momento do prazer sem qualquer interesse diante do belo, confere
um sinal de alma boa a quem o produz, pois trata-se de um pensamento acompanhado
pela intuição e pela reflexão de que a natureza produziu aquela beleza, um indício de
que esta é a maneira de pensar de todos os homens que cultivam o sentimento moral.
Ou seja, é um interesse imediato e intelectual do juízo de gosto que, submetido à
forma universal, faz com que o juízo estético não seja um mero juízo dos sentidos.
Com a bela forma da natureza,
105
Idem, Ibidem, p. 197-198 (B 258).
106
Idem Ibidem, p. 145 (B 166).
123
temos então um signo que nos mostra uma atitude da natureza para fazer de
qualquer modo o leito da liberdade. (...) é muito importante que existam belas
formas produzidas pela natureza, porque essa produção é uma expressão. É um tipo
de linguagem (cifrada) na qual a natureza nos diz, nos significa que apesar de seu
mecanismo (que o entendimento lê como experiência ao soletrar os fenômenos) ela
não é refratária, nem inteiramente estranha a essa capacidade que mostra a razão
para exigir que fins da liberdade se realizem nessa natureza.
107
Kant diz que a passagem do sensível ao supra-sensível é sem salto brusco na
medida em que o gosto “representa a faculdade da imaginação como determinável
também em sua liberdade como conforme a fins para o entendimento e ensina a
encontrar uma satisfação livre”
108
. O jogo livre das faculdades expresso neste trecho é
o responsável para que a arte não se torne ciência e o juízo de gosto não seja
submetido a princípios, ele impede que o gênio, liberto pela faculdade da imaginação,
seja asfixiado por regras, como por exemplo, tomar os exemplos como protótipos da
bela-arte. O gênio, dotado de espírito (princípio vivificador da mente), em sua
liberdade, apresenta Idéias estéticas em sua produção que, como ideais, dão muito o
que pensar, pois visam as Idéias racionais, têm em vista o supra-sensível. Neste
sentido, podemos dizer que o gênio é quem faz a passagem para o supra-sensível
através da linguagem simbólica que ele produz ao expor as Idéias estéticas, e a qual
lhe fornece o princípio transcendental para dialogar com os outros dois
conhecimentos, ou com as outras duas faculdades da mente. E, embora a finalidade da
arte não seja moral, até porque ela perderia sua autonomia, o gênio propicia um
vínculo moralizante e promove a convergência das três faculdades do conhecimento
que, juntas, elas podem declarar o sensus communis como um dever. Assim, nesta
última etapa da dedução, verificamos que a passagem sem um salto demasiado
107
Guillermit, op. cit. p. 169-170.
108
Kant, Ibidem, p. 199 (B 260).
124
violento do sensível ao moral proposta pelo § 59, apresenta um duplo ganho, usando
as palavras de Guillermit
109
: do ponto de vista da aquitetônica sistemática das
faculdades, a faculdade de julgar será o elo intermediário entre o entendimento e a
razão; do ponto de vista filosófico, teremos descoberto a finalidade do gosto, sua
função natural, a de tornar possível a passagem do sensível para a moral, e isso por
duas razões: a) o gosto mostra que, mesmo quando a imaginação joga livremente, ela
é capaz de se harmonizar à legalidade do entendimento (está aí a manifestação do
supra-sensível em nós), b) ele permite encontrar, mesmo nos objetos dos sentidos e
mesmo quando esses não suscitam qualquer atrativo sensível em nós, um sentimento
de satisfação que é livre, pois está liberto do sensível e repousa sobre um livre jogo
das faculdades, sem conceito.
109
Cf. Guillermit, op. cit., p. 166.
Conclusão
A tarefa do primeiro capítulo, então, deteve-se num estudo pormenorizado
dos modos do juízo de gosto, cujo intuito foi a especificação deste juízo dentro da
crítica kantiana. Foi uma leitura obrigada a selecionar focos que propiciassem um fio
condutor para nosso objetivo final, que é o de entender como se dá e se fundamenta
efetivamente a universalidade nesse juízo, focos esses que habitam um campo minado
de aparentes paradoxos, propícios a desviar o pensamento. Sendo assim, fizemos uma
leitura norteada para o enfoque apriorístico deste juízo singular e sem regras, e nosso
esforço principal concentrou-se na identificação do que esses juízos trazem de
comum com os lógicos e no que eles se diferenciam destes últimos. Para se conceber
uma definição transcendental exigida pela universalidade e pela necessidade desses
juízos (já que não são lógicos), é preciso manter a faculdade do entendimento, pois é
ela que valida a síntese das formas da experiência numa reflexão estética. Só que esta
síntese não é construída sob regras, pois isso seria contrário a todo propósito do autor
nesta Crítica, a saber, o de estabelecer um juízo que seja particular, mas que tenha
autonomia de princípios. Assim, nesta relação, só os caracteres puros do
entendimento são retidos, os quais permanecem nas categorias mesmo quando estas
não têm qualquer uso fora de sensibilidade, ou seja, quando elas não são aplicáveis a
nenhum objeto com o intuito de determiná-lo. Mantém-se apenas o uso do conceito
dessa faculdade na sua especificidade, sem a material, o que mostrará porque uma
diversidade pode ser reunida na unidade de uma consciência.
No entanto, ao analisarmos a depuração que Kant fez ao estabelecer o juízo
de gosto, chegamos apenas ao estádio necessário de sua “pureza” para, em seguida,
analisar sua dedução, a qual, na verdade, já está subjacente na exposição. A dedução
é necessária porque foi constatado que o juízo estético é sintético a priori, o que o
coloca dentro dos limites da filosofia transcendental.
126
No segundo capítulo, encontramos na Dedução, ou melhor, na primeira etapa
dela (§§ 30-38), uma ligação necessária entre reflexão e finalidade, em que a
faculdade de julgar expressa com veemência sua função auto-referente, auto-crítica.
O juízo reflexionante tem seu fundamento de determinação no Juízo (faculdade de
julgar), sem mistura com outra faculdade de conhecimento, pois é ele que antecede
todo o conceito do objeto
1
; é um juízo desinteressado porque sua finalidade é sem
fim. A finalidade subjetiva torna-se aí o próprio princípio do juízo reflexionante, e o
livre jogo das faculdades, com sua busca pela proporção ideal, acaba alargando o
projeto crítico. Isto foi melhor explicitado no terceiro capítulo, quando mostramos
que a Crítica da Faculdade de Julgar ocupa uma posição intermediária no sistema
crítico, pois abre a passagem para o domínio prático, sempre por intermédio de um
conceito heurístico, que não determina, não é ostensivo, mas cujo valor é indubitável
na Crítica do Juízo. “O juízo estético concilia os dois mundos que a Crítica tinha
separado, e me torna beneficiário dos dois ao mesmo tempo”.
2
Com efeito, o juízo
manifesto na "Analítica do Belo" ainda não tem vestígios morais, ele está apenas
exercendo sua função de refletir, numa disposição da mente para examinar a si
mesma, e, assim, a possibilidade de se comunicar universalmente este estado da
mente é que pede uma dedução, pois este é o verdadeiro princípio do gosto. Portanto,
a dedução dos §§ 30-38 é só do princípio da finalidade subjetiva, e “repousa na
identidade das condições subjetivas em todos os homens para o uso do juízo em geral,
e na identidade do sentimento que acompanha este uso do juízo”.
3
Este é mais um
motivo para insistirmos que ela continua na Dialética, onde há ainda outro princípio
para deduzir no § 58, desde que para alcançar a universalidade do estado da mente, é
preciso buscar o ponto de convergência (Vereinigungspunkt) de todas as nossas
faculdades a priori. O valor do método dedutivo está justamente em combinar o
1
Cf. Kant, Duas Introduções à Crítica do Juízo, tradução mencionada, p. 82.
2
Lebrum, op. cit., p. 513.
3
Basch, V. – Essai critique sur l’esthétique de Kant, p. 329.
127
processo discursivo do entendimento com a intuição da razão, já que vai do particular
ao universal, ou das partes para a idéia do todo.
Na Lógica, Kant diz que a “tarefa suprema da Filosofia propriamente dita
não concerne de modo algum ao saber subjetivo, mas sim ao objetivo – não ao saber
idêntico, mas ao sintético”.
4
É isso o que se pretende com o fundamento ou norma do
senso comum que, embora subjetivo e crítico, adquire uma representação objetiva,
pois a razão, trabalhando de modo problemático e hipotético
5
, infere a arte
imediatamente, e a dedução recai sobre a regulação, e não sobre a determinação, pois
não há realidade objetiva no juízo estético e o belo repousa numa intuição formal e
não material.
No terceiro capítulo, pela análise que fizemos da Dialética, concluímos que a
passagem do sensível ao moral, ou melhor, o belo como símbolo do bem, não deve
ser tomada do ponto de vista do conteúdo, mas apenas da perspectiva daquilo que é
comum entre os dois juízos, a saber, as regras de reflexão. São essas regras, mediante
a simbolização, que permitem, como diz Kant, a sensificação (Versinnlichung) de
Idéias morais, isto é, que o sensível seja tomado do ponto de vista prático. Mas não se
trata aí do juízo estético de sentidos, que Kant distinguiu muito bem na Analítica, mas
do juízo estético de reflexão, que é desinteressado e formal.
Se a arte tem que ter em vista um certo ideal, que jamais será alcançado, mas
que sempre deve ser almejado, então é a vivificação do livre jogo e a universalidade
do sentimento que é preciso manter para que a incessante busca não se rompa. A
imaginação do discípulo precisa ser fomentada continuamente e, como não há um
princípio rígido que ele possa seguir, tampouco devendo tomar os modelos como
cópias, só o estímulo da imaginação para a conformidade com o conceito
4
Kant, I. – Lógica, tradução de Guido de Almeida, p. 24.
5
Na Lógica, § 75, Kant explica que as inferências hipotéticas da razão não têm termos médios, elas
consistem apenas de duas proposições: antecedente (hipotético) e conseqüente. Nessas inferências, a
conseqüência de uma proposição a partir da outra é apenas indicada.
128
indeterminado e a crítica contínua do juízo reflexionante podem proporcionar à
humanidade exemplos permanentes que lhe assegurem a liberdade e a unificação.
Essa vivificação permanente da imaginação, só o gênio pode fornecer através da Idéia
estética que produz, a qual, como símbolo da Idéia racional, adquire a mesma
receptividade para o sentimento universal do gosto que aquela para o sentimento
moral, pois é na humanidade (Menschheit) que se inscreve a luta pela sociedade legal
(gesetzlichen Geselligkeit), a difícil luta para conciliar liberdade e coerção que
consolidem uma coletividade duradoura, cujo propósito é alcançado mais por respeito
ao dever do que por medo, diz Kant:
Uma tal época e um tal povo teriam que inventar primeiro a arte da comunicação
recíproca das Idéias da parte mais culta com a mais inculta, o acordo da ampliação e
do refinamento da primeira com a natural simplicidade e originalidade da última e,
deste modo inventar primeiro aquele meio termo entre a cultura superior e a simples
natureza, o qual constitui também para o gosto, enquanto sentido humano universal,
o padrão de medida correto que não pode ser indicado por nenhuma regra
universal.
6
É neste sentido que o belo está vinculado ao bem, pois das Idéias estéticas,
em analogia com as morais (da razão), é que “deriva aquele prazer que o gosto
declara válido para a humanidade em geral”.
7
Da mesma forma que na Analítica Kant
recorreu heuristicamente ao quadro das funções lógicas para guiar os quatro
momentos do juízo de gosto - já que não havia categoria ali para isso -; na Dialética
recorre à razão para validar a necessidade do assentimento, uma vez que Idéia
estética, intuição ou representação inexponível da imaginação, é meramente um
princípio subjetivo da razão. Logo, como símbolo da Idéia racional, que, apesar de ser
6
Kant, Ibidem, p. 200 (B 263).
7
Idem, Ibidem, p. 200 (B 264).
129
um conceito indemonstrável por ser transcendente, é um princípio objetivo da razão, a
imaginação pode alcançar, por analogia, uma forma “objetiva” e estável para o gosto,
do mesmo modo que o é o sentimento moral. Assim, a passagem de um substrato ao
outro se dá sem salto brusco, ao contrário do que afirmam alguns comentadores ao
analisarem o § 60 da Crítica do Juízo.
8
O gênio (visto como a proporção ideal no
livre jogo) só se manterá vivo se considerar o desenvolvimento das Idéias morais e a
cultura do sentimento moral como propedêutica para a fundação do gosto, “já que
somente se a sensibilidade [imaginação] concordar com ele [sentimento moral] pode
o verdadeiro gosto (echte Geschmack) tomar uma forma determinada e imutável”.
9
Kant disse acima, neste mesmo § 60, que será difícil tornar os modelos
dispensáveis numa época posterior, pois esta estará a cada vez mais distante da
natureza [do gênio] e, “sem ter exemplos permanentes dela, não poderia estar em
condições de formar sequer um conceito da unificação feliz em um e mesmo povo”.
10
Ou seja, a satisfação do gosto só pode perdurar se tomar como exemplo, pelas regras
de reflexão que são comuns aos dois juízos, o sentimento moral. E a necessidade do
assentimento universal do prazer estético que é tomada como um dever (Sollen), e
este mencionado desde o quarto momento da Analítica percorrendo toda a Crítica do
gosto como um fio condutor, é deduzido e adquire clareza do que ele significa só no
fim do § 60, ou seja: a afinidade entre o sentimento estético e o moral delineia-se
justamente onde ambos lutam para conciliar liberdade
e coerção em favor de uma
8
Como por exemplo, Maria de Lourdes Borges, - “O belo como símbolo do bom ou a estetização da
moralidade”, in Studia kantiana, vol. 3, p. 130. Quando a autora afirma que há um salto violento entre
um domínio e outro e que a tese da analogia não permite tal transição, ou seja, tornar sensíveis as
Idéias morais, pensamos que ela não levou em conta que a universalidade está pressuposta desde o
começo no jogo das faculdades, e que só a forma dessa universalidade toma por base (ou modelo) o
sentimento moral, não tendo com isso, nenhum comprometimento de conteúdo entre os dois âmbitos.
Também não se lembrou da convergência entre as três faculdades da mente que o § 40 indica para o
sensus communis, como condição necessária para a comunicabilidade universal e que não pode ser
fundado na experiência, pois quer legitimar juízos que contêm um dever-ser.
9
Idem, Ibidem.
10
Idem, Ibidem, p. 200 (B 263).
130
sociabilidade legal (não empírica) e duradoura, onde tal luta se dá por respeito ao
dever, e não por medo.
Assim, não podemos dizer que a finalidade do gosto é moral, mas sim que
ele se baseia na mesma forma determinada e imutável da universalidade do
sentimento moral, pois o prazer que o gosto genuíno (echte Geschmack) declara
válido, “é para a humanidade em geral, e não para o sentimento privado de cada
um”.
11
Ao relacionar o juízo reflexionante com o conceito indeterminado da razão,
Kant amplia consideravelmente a problemática inicial do senso comum estético, cuja
voz universal, enunciada pelo juízo de gosto na proporção das faculdades, adquire
ainda mais força do que tinha na "Analítica do Belo", e consegue, depois de passar
para o lado ideal do senso comum através da Dialética, se fazer ouvir no substrato
supra-sensível da humanidade.
11
Idem, p. 200 (B 264).
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……….., - Os Progressos da Metafísica, Lisboa, Edições 70, ?
............., - Prolegómenos a Toda Metafísica Futura que queira apresentar-se como
ciência, trad. Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 19??
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introd. Emmanuel Carneiro Leão, 2
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