Download PDF
ads:
1
Silvana Pitombo Bixilia
Como se configura o PORTAL “INSTANTE”?
Universidade São Judas Tadeu
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
Filosofia
São Paulo
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
Universidade São Judas Tadeu
Silvana Pitombo Bixilia
Como se configura o PORTAL “INSTANTE”?
O portal na seção “Da visão e enigma”
de Assim falou Zaratustra de Nietzsche
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora do Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu como
exigência final para obtensão de título
de Mestrado em Filosofia.
Sob orientação da Professora
Dra. Yolanda Glória Gamboa Muñoz
São Paulo
2008
ads:
3
Bixilia, Silvana Pitombo
Como se configura o PORTAL "INSTANTE"? / Silvana Pitombo Bixilia. -
São Paulo, 2008.
107 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo,
2008.
Orientador: Dra. Yolanda Glória Gamboa Muñoz.
1. Espaço e tempo. 2. Linguagem. 3. Mito. I. Título
Ficha catalográfica: Elizangela L. de Almeida Ribeiro - CRB 8/6878
4
Banca examinadora
Dr. Ivo da Silva Junior
Dr. Hélio Salles Gentil
Dra. Yolanda Glória Gamboa Muñoz
5
Minha homenagem
A Léon, meu pai (in memoriam)
À Luiza, minha mãe.
Dedico
ao meu marido Sidney
aos meus filhos Marina, Marília, Mírian e Miguel
e ao meu neto Victor Léon
ao nosso porvir.
6
Agradecimentos
À Universidade São Judas Tadeu, que mantém este Programa de Pós-Graduação e,
particularmente por ter fornecido bolsa parcial de estudo, que viabilizaram esta dissertação.
À professora Glória sua orientação, apoio e incentivo
À amiga Glória que, após ter “escolhido a montanha”, conduziu-me por caminhos
nietzscheanos, alertando-me quanto aos perigos, obstáculos e desvios. E, indo além,
mostrando-me os mais altos cumes e mais profundos abismos. Olhamos nossas estrelas.
Ao professor e amigo Hélio sua colaboração precisa e atenciosa.
À amiga Cristina sua inestimável colaboração e cumplicidade. De longe e de perto, sempre
estivemos próximas.
Ao amigo Daniel sua revisão cuidadosa e gentil.
7
Resumo
Esta dissertação examina a configuração do PORTAL “INSTANTE” do capítulo
“Da visão e enigma”, de Assim falou Zaratustra. Considera-se a possibilidade de destacar
dois modos de desenvolvimento do texto de Zaratustra: “discurso” e “vivência”. Ambos os
aspectos entrecruzam-se na preparação de Zaratustra para sua tarefa. Zaratustra (seu corpo)
realiza uma viagem por montanhas e abismos com destino ao mar. Através desse percurso,
ele alcança, em seu último cume, o PORTAL “INSTANTE”, esta é a imagem da visão e
enigma a ser decifrada. As “transmutações do espírito” (primeiro capítulo) podem ser
apreendidas, ouvindo-as por meio dos discursos e olhando-as através da jornada de
Zaratustra. O PORTAL “INSTANTE” apresenta-se como um ponto crítico desse percurso.
O percurso, em sua característica espaço-temporal, é interrompido pelo instante; ele
apresenta-se como um limite que se aplica ao tempo, mas sem fazer parte dele. Nesse
sentido, pode ser considerado como um artifício não temporal, capaz de capturar a
eternidade. Desde outra perspectiva, esse artifício constituiria um recurso de linguagem
capaz de apresentar a imagem da visão e enigma. Em se tratando da linguagem, observa-se
como esta se insere no pensamento nietzscheano, tanto na forma da materialização escrita,
como na efetivação do pensamento filosófico. Segue-se uma referência à escrita
propriamente dita, aos estilos, à leitura, à relação com o leitor e à cultura. Considera-se que
a linguagem para Nietzsche constitui um instrumento de crítica à cultura moderna e à
tradição filosófica, além de ser reguladora do pensamento, permitindo-lhe desconstruir
dogmas e pressupostos filosóficos. Em “um diálogo” com Platão, registra-se um dos
distanciamentos de Nietzsche ao rejeitar, mediante a valorização da origem metafórica da
linguagem, a possibilidade de um conhecimento verdadeiro. A partir do caráter de tropus
da palavra, Nietzsche faz uso das figuras e, num âmbito mais geral, da retórica como
expressão e persuasão. Ao atribuir um novo poder à linguagem, utiliza-se também da
imagem e do mito.
8
Abstract
This dissertation seeks to examine the configuration of the PORTAL “INSTANT”
in the chapter “Of the vision and enigma” of Nietzsche’s Thus Spoke Zarathustra. It is
considered the possibility to detach two ways of development of the text of Zarathustra,
which is: “speech” and “experience”. These two aspects are intercrossed in the preparation
of Zarathustra for his task. Zarathustra (his body) carries through a trip beyond mountains
and abysses, to the sea. Through this passage he reaches in its last top the PORTAL
“INSTANT”. This is the image of the vision and the enigma to be deciphered. The
“transmutation of the spirit” (first chapter) can be apprehended, hearing them through the
speeches and looking at them through the journey of Zarathustra. The PORTAL
“INSTANT” is presented as a critical point of this passage. The passage in its characteristic
space-time is interrupted by the instant. The instant is a limit applied to the time, but is not
part of it. It is an artifice not secular, capable to capture the eternity. As another perspective,
this artifice consists in a resource of language, capable to present the image of the vision
and enigma. Being about language, it is observed as it is inserted in the nietzschean
thought, as much in the forms of the written materialization, as in the accomplishment of
the philosophical thought. Refer it the writing properly said, the styles, the reading and the
relation with the reader and the culture. The language for Nietzsche, is an instrument to
criticize the modern culture and the philosophical tradition. By means of the language, that
Nietzsche considers to be regulating of the thought, he disassembles the dogmas and the
philosophical estimated. In “a dialogue” with Plato the removal of Nietzsche is registered,
rejecting, since the metaphoric origin of the language, the possibility of a true knowledge.
From the character of tropos of the word, Nietzsche makes use of the figures and in a more
general scope, of the rhetoric as expression and persuasion. Attributing a new power to the
language, he also uses the image and the myth.
9
Sumário
Introdução 10
Das transmutações do espírito ao PORTAL “INSTANTE”
Uma noção espaço-temporal 16
O PORTAL “INSTANTE” Um recurso de linguagem, imagem e mito 49
Considerações finais 93
Anexo: NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra III “Da visão e enigma” 98
Bibliografia 104
10
Introdução
Como uma perspectiva possível da composição de Zaratustra, pode-se observar
como a trama do texto se desenvolve sobre duas vertentes que, concomitantemente,
dinamizam as “transmutações do espírito”. Desde o primeiro capítulo dos “Discursos” de
Zaratustra, pode ser avaliado o “discurso” de quem anuncia um presente para os homens,
assim como a “vivência” daquele portador do presente: Zaratustra, o antecessor do além-
do-homem. Notadamente, Assim falou Zaratustra é narrado como uma saga de Zaratustra;
seu percurso acontece no espaço-tempo e seu corpo efetiva, como uma experiência
antecipada, a preparação para a tarefa que tem de cumprir, não importando qual seja ou
quando ocorra. Zaratustra ouve uma voz interior e a segue.
Essa óptica nos conduz por um percurso interno ao texto, até um ponto crítico,
limite, ou até o “meio dia”. Trata-se do capítulo “Da visão e enigma”, no qual Zaratustra se
depara com o
PORTAL “INSTANTE”. “Da visão e enigma” pode ser considerado, assim, a
narrativa dessa experiência que ele conta a ouvidos seletos, materializados como “audazes
buscadores e indagadores” decifradores de enigmas. O
PORTAL “INSTANTE” seria a
imagem da visão e enigma a ser decifrada.
Ao realizarmos uma leitura ou, mais apropriadamente, ao ouvirmos o texto,
encontramos neste ponto a revelação de uma visão e enigma que deverá ser ouvida e vista.
Dessa maneira, ao concentrar nossa atenção nessa nova solicitação do texto, seguimos, a
partir desse momento, buscando como se configura a imagem e como a fala de Zaratustra é
espacializada. Isso considerando - consciente e “exteriormente” – que por intermédio da
valorização do instante, talvez ocorra uma ruptura no tempo na medida em que é dada uma
duração.
11
Além disso, podemos observar a situação vivenciada por Zaratustra diante do
PORTAL “INSTANTE” em relação aos outros textos de Nietzsche, em especial à sua própria
vivência relatada em Ecce Homo. Isto se torna possível a partir da seleção de determinados
elementos constitutivos de Zaratustra e de Nietzsche, materializados em seus textos. Nessa
perspectiva seletiva, podemos indicar a criação de “espíritos livres” em Humano demasiado
humano, a problemática das forças e a própria “vontade de potência” como elementos
privilegiados que perpassam seus escritos.
À medida que se torna possível esclarecer o instante como um limite que se aplica
ao tempo, que não faz parte dele e que, de alguma maneira, está fora dele, nossa perspectiva
se abre para uma outra possibilidade. A partir dela, o nome
“INSTANTE” dado ao PORTAL
constitui-se, para o Nietzsche de Zaratustra, em um recurso de linguagem.
Sob esse novo aspecto, torna-se necessário “ruminar” a problemática da linguagem
em Nietzsche, desde as nuances de sua conformação com a escrita, seus diversos estilos, a
leitura e a relação com o leitor e, mais incisivamente, sobre como o poder da linguagem é
efetivado no pensamento filosófico. A nosso ver, a linguagem constitui, em grande medida
para Nietzsche, o “martelo” com que se faz filosofia.
Nesse sentido, é possível dizer que Nietzsche, por meio da linguagem, transgride as
regras e o modo pelo qual o conhecimento se expressa por meio de sistemas e de conceitos.
Ao abrir suas proposições às diversas interpretações, Nietzsche estaria eliminando a
possibilidade de alcançar o pretenso conhecimento verdadeiro.
Refinando ainda mais nosso olhar sobre a linguagem em Nietzsche, teríamos então,
como ponto axial, o caráter trópico da palavra. Para isso, recolhemos a palavra entendida
em Verdade e mentira no sentido extramoral como a “figuração de estímulo nervoso em
sons”. Tratando-se de transposições de estímulo nervoso em imagem e de imagens em
sons, lidaríamos com metáforas, jamais com a essência das coisas. Em síntese, a verdade
seria uma multidão de metáforas, metonímias e antropomorfismos.
Nesta perspectiva, uma investigação a respeito da linguagem em Nietzsche não se
configura mais como realizável se restrita exclusivamente ao percurso interno de seus
escritos. Dessa forma, no âmbito dos escritos de Nietzsche, além de uma compreensão
preliminar dessas figuras de linguagem já citadas, e em especial da retórica, tornou-se de
12
grande valia, para nós, estabelecer uma leitura relacional com Platão. Nesse aspecto,
acompanhamos como, por meio da própria linguagem em seu caráter mais abrangente de
regulador do pensamento, Nietzsche se distancia de Platão ao desconstruir determinados
dogmas e pressupostos filosóficos a ele devidos, como também determinadas
conseqüências de seu legado. A nosso ver, esses procedimentos também abrangem os casos
específicos da imagem e do mito.
No que diz respeito ao mito, Nietzsche considera, por exemplo, que este estaria
subjacente a todo movimento cultural, sustentando sua força natural, sadia e criadora e
conformando-o como unidade. Assim, teria ocorrido com os gregos que, intimamente
vinculados ao mito, o consideravam como imagem concentrada do mundo, tornando
possível, por seu intermédio, compreender o que vivenciavam. De modo contrário, na
cultura moderna, perpassada pela febre histórica e destituída de seus mitos, o homem
somente interpretaria sua vida e lutas operando por abstrações mediadoras.
Neste sentido, de acordo com uma leitura própria de Nietzsche, a partir do
Nascimento da Tragédia, encontraríamos como são apropriados, recriados ou reinventados,
os mitos de Apolo e Dionísio. Mesmo que, ao chegarmos aos últimos escritos, encontremos
os mitos transformados, por exemplo, na forma de “Dionísio contra o Crucificado” (Ecce
Homo), a nosso ver, não se trata de uma surpresa, se consideramos a tensão permanente do
devir e das transmutações do espírito, sob as quais certamente encontra-se Nietzsche.
Tendo delineado aqui nossa leitura como linha de pensamento e pesquisa que
objetiva compreender como se Configura o PORTAL “INSTANTE”?, apresentamos -
para dizê-lo “nietzscheanamente” - o percurso que se realiza nesta pesquisa como uma
maneira de “pensar com Nietzsche”
1
. Assim, nossa empreita resulta de uma escolha pelo
pensamento plural e perspectivo. É com Nietzsche que se tornaria possível abordar uma
temática percorrendo diversos ângulos de visão e escutando diversos tons.
Inicialmente eleito o aspecto espaço-temporal como perspectiva, desenvolvemos
para discutí-lo, o primeiro capítulo “Das transmutações do espírito ao PORTAL

1
LEBRUN, Por que ler Nietzsche hoje?
13
“INSTANTE”: Uma noção espaço-temporal”. Neste, ainda que com respaldo das noções
conceituais da ciência, nossa ênfase recai sobre seu caráter subjetivo, tendo principalmente
como pressuposto o “grande acontecimento” da morte de Deus, pois, com Nietzsche,
configurar-se-ia, a partir desse acontecimento, uma nova perspectiva no que diz respeito ao
sentido do homem e da terra.
Essa nova condição significa para o homem a superação de si, que lhe seria
apresentada por intermédio de Zaratustra, observadas as “transmutações do espírito”, quer
pelos ensinamentos de seus discursos, quer por seu exemplo de “vivência”, a experiência
antecipada que estabelece seu percurso até o
PORTAL “INSTANTE”. Em torno desse eixo e,
desde a perspectiva espaço-tempo, seria possível encontrar, nos próprios textos de
Nietzsche, “O Homem louco” em A Gaia Ciência §125, Os “Espíritos livres” em Humano
demasiado humano, “O primeiro cristão” (Paulo) em Aurora §68 e o mesmo processo em
Nietzsche do Ecce Homo.
O que nos leva a observar não só que há o caráter cosmológico do eterno retorno,
expresso em “Da visão e enigma”, mas especialmente que Zaratustra se transmuta em leão
diante do
PORTAL “INSTANTE”, o que corresponderia ao “acontecimento de livramento”,
como momento de decisão lançado ao porvir. Isso devido ao artifício do instante, um
instrumento não temporal com que se intervém no tempo, de modo a interromper sua
fluidez contínua, mas configurando o momento de criação e o ato livre para o homem.
Consideramos que o
PORTAL “INSTANTE” configura-se, para além de seu
significado espaço-temporal e, alertando para a problemática da linguagem, no detalhe da
expressão da alegoria apresentada em “Da visão e enigma”. Cabe lembrar que não se trata
da forma reduzida do “Portal do Instante” como inadvertidamente é mencionado, mas do
PORTAL cujo nome é “INSTANTE”. Dessa forma, analisaremos o instante como artifício de
linguagem. Um recurso que em Nietzsche adquire uma outra conotação ou um outro poder;
trata-se de uma renovada efetivação de forças sobre seus escritos que, diríamos, tornam-se
mais fortes por se sobreporem ao aspecto espaço-temporal.
14
Partindo dessas considerações, elaboramos o segundo capítulo “O PORTAL
“INSTANTE”: Um recurso de linguagem, imagem e mito” equipando-nos de
instrumentos. Teríamos então, já de início, “um diálogo” com Platão, por meio do qual
seria possível marcar os afastamentos de Nietzsche com relação ao pensamento platônico.
Enfatizamos nele a substituição realizada por Nietzsche, da pergunta filosófica o que é?
pela indagação como? Isto porque nossa pesquisa se desenvolve, precisamente, a partir da
perspectiva como? Assim, por exemplo, como se configura do
PORTAL “INSTANTE”?
Seguem-se outros distanciamentos marcados da mesma forma, como os que se
referem ao discípulo-leitor, à leitura e à escrita, ou mesmo aos estilos. Adquirem
relevância, também, para uma abordagem sobre a linguagem em Nietzsche, a cultura
moderna alemã, em geral, e com ela o romantismo alemão, submetidos à contundente
crítica nietzscheana que os caracteriza, assim como ao platonismo, de decadents.
A importância e o problema da linguagem para a filosofia, segundo o Nietzsche de
Verdade e mentira no sentido extramoral, remonta à sua origem como metáfora, a partir da
necessidade de o homem viver em sociedade e, desde então, tornar-se inteligível e
comunicar-se. Em seguida, estabelecer-se-ia a linguagem como legisladora da verdade, por
meio de conceitos e sistemas lógicos. Em contrapartida, apresentar-se-ia, como alternativa
nietzscheana, a retórica, por seu caráter de persuasão e, mais que isso, por se tratar de um
poder da linguagem.
De outra forma, o mito também se constitui como poder da linguagem, pois antes
disso este já teria seu poder unificador subjacente à cultura de modo geral, constituindo um
meio para o homem compreender sua vivência. Assim sendo, torna-se possível, em nossa
abordagem, assinalar sua presença ainda que não nomeada. Primeiramente, realizamos uma
aproximação ao mito pela problemática da interpretação do leitor, como mediação ao
entendimento da narrativa, ou mesmo como tentativa de decifração do enigma. Entretanto,
em meio a nossa temática, um outro aspecto impõe-se à leitura, mais propriamente o papel
dos mitos nietzscheanos, Apolo e Dionísio.
15
Complementando nossa análise, e principalmente por buscarmos pontualmente a
configuração do PORTAL “INSTANTE”, abordamos a problemática da imagem, conforme
podemos depreender sua participação na formação da linguagem e do conhecimento. “A
imagem no olho é determinante para nosso conhecimento, em seguida o ritmo em nosso
ouvido”
2
Observação
A elaboração desta pesquisa procurou - nas traduções utilizadas dos escritos de
Nietzsche – privilegiar, sempre que possível a edição, NIETZSCHE, Obras Incompletas,
trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo, Abril Cultural, Os Pensadores, 3ª ed.
1983.
Especificamente nos aforismos do texto Assim falou Zaratustra, que não constavam
na tradução acima citada, nossa leitura utilizou: NIETZSCHE, Así habló Zaratustra: un
libro para todos y para nadie, introd., trad. e notas Andrés Sanchez Pascual, Madrid,
Alianza Ed, 2003. (El libro de bolsillo/Biblioteca de autor).
Para os demais textos, aplicamos a mesma prioridade, consultando, na sua falta,
outras traduções para o português, francês, inglês e espanhol que foram devidamente
assinaladas no pé de página. A consulta ao original limitou-se aos termos considerados
chaves no aforismo sobre “Da visão e enigma” utilizando a edição bilíngüe Ainsi parlait
Zarathoustra / Also sprach Zarathustra. Trad. de Geneviève Bianquis. Paris, Aubier-
Flammarion, 1969, 2 vols.
As notas referentes às fontes citadas ou comentadas em português conterão as
seguintes abreviaturas:
[R p - -] para as traduções de Rubens Rodrigues Torres Filho
[S p - -] para as traduções de Andrés Sanchez Pascual
[P p - -] para as traduções de Paulo Cesar de Souza

2
NIETZSCHE, Fragmento póstumo, 7, 19[217] in Escritos sobre Retórica. p 219
16
Das transmutações do espírito ao PORTAL “INSTANTE”
Uma noção espaço-temporal
“Três transmutações vos cito do espírito: como o espírito se torna em
camelo e em leão o camelo, e em criança, por fim, o leão.”
3
Com essa metáfora, Nietzsche inicia os “Discursos de Zaratustra”, incitando seus
leitores a acompanhar seu personagem em sua vivência, ou, para utilizar a linguagem de
Nietzsche em Ecce Homo, acompanhar Zaratustra nos percursos de seu tornar-se.
O espírito forte, que suporta carga e quer ser bem carregado, toma
sobre si o que há de mais pesado e alegra-se com sua força. “O que é
pesadíssimo, ó heróis? Assim pergunta o espírito de carga, para que eu o
tome sobre mim e me alegre de minha força.” Como o camelo, o espírito
forte corre para o deserto. “Mas no mais solitário deserto ocorre a segunda
transmutação: em leão se torna o espírito, liberdade quer ele conquistar, e
ser senhor de seu próprio deserto.” Tornar-se inimigo de seu último senhor
e último deus, pela vitória quer lutar com o grande dragão “Tu deves!”.
“Mas o espírito do leão diz ‘eu quero’” Somente com a potência de leão
poderá criar liberdade para a criação de novos valores e um sagrado Não
diante do dever.
4
A terceira transmutação será tornar-se criança, “Inocência
é a criança, e esquecimento, um começar de novo, um jogo, uma roda
rodando por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer sim.”
Agora seu espírito quer sua vontade e seu mundo ganha para si o perdido do
mundo.
5

3
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, I, Das três transmutações, [R p 229] [S p 53]
4
Referências diretas à libertação do gregarismo e a moral de escravos, liberdade para ser senhor de si –
transvaloração dos valores e à morte de Deus.
5
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, I, Das três transmutações, [R pp 229-230] [S pp 53-55]
17
Num âmbito mais abrangente, podemos dizer que os discursos de Zaratustra são
possíveis a partir de sua vivência. Eles se encontram alternados pela narrativa de uma
experimentação própria e antecipada. Será a partir dela que Zaratustra “ensina” ou traz a
“boa nova” aos homens. Nietzsche descreve como Zaratustra se torna cada vez mais ele
mesmo, assinalando erros, tentações e experiências. De outra forma, o percurso expõe o
que o motiva, ou seja, o que ele tem que superar. Compõe-no como modelo e como
exemplo de coragem, uma coragem necessária para sustentar e mesmo derrubar suas
próprias opiniões.
6
Neste sentido, a interpretação de Salaquarda
7
diante da pergunta “Quem
é Zaratustra?” - considera que Nietzsche fornece uma série de indicações compondo um
mosaico.
“Zaratustra visa à probidade (Redlichkeit), ao tornar-se si-mesmo
(Selbst-werdung) e à auto-suficiência (Eigenständigkeit), à síntese, ao futuro
do indivíduo como humanidade. Em tudo isso, visa à superação”
8
.
Seja acompanhando esta interpretação, ou outra, como Salaquarda também nomeia
Zaratustra “- o sem-Deus, - o porta-voz da vida, - o porta-voz do sofrimento, - o porta-voz
do círculo.”
9
; podemos dizer que Nietzsche retoma para Zaratustra, ao longo do
desenvolvimento das quatros partes da obra, os grandes temas, como a morte de Deus,
transvaloração de todos os valores, o além-do-homem e o eterno retorno, temáticas já
anunciadas no Prólogo. No momento em que Zaratustra inicia seus discursos falando ao
povo da cidade, lemos, por exemplo:
“- Eu vos ensino o além-do-homem. O homem é algo que deve ser
superado. Que haveis feito para superá-lo?”
10
Mais adiante, no “tornar-se” de seu discurso, sua fala já diz respeito a um novo
sentido para a vivência dos homens:

6
SALAQUARDA, J, A concepção básica de Zaratustra, in Cadernos Nietzsche, 2, 1976. p 17-39
7
Jörg Salaquarda é professor na Universidade de Viena
8
Idem, p 19 Cf. Os capítulos “Das três transmutações, “Dos mil e um alvos” e “Da superação de si”
9
Idem, p 24
10
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, Prologo §3, [S p 36]
18
“Em outro tempo o delito contra Deus era o maior delito, porém
Deus está morto e com Ele estão mortos também esses delinquentes. Agora o
mais terrível é delinqüir contra a terra e apreciar as entranhas do
inescrutável mais que o sentido da terra!”
11
Além disso:
“Qual é a máxima vivência que vós podeis ter? A hora do grande
desprezo. A hora em que incluso vossa felicidade se vos converta em náusea
e o mesmo ocorra com vossa razão e com vossa virtude.”
12
É importante ressaltar esse procedimento, pois, para Nietzsche, conforme o jogo de
forças que se efetivam, conforme o jogo do querer e da interpretação da “vontade de
potência”,
“Somos apenas nós que criamos as causas, a sucessão, a
reciprocidade, a relatividade, a coação, o número, a lei, a liberdade, o
motivo, a finalidade [...] na vida real há apenas vontades fortes e fracas.”
13
Por outra parte, o pensamento de Nietzsche trabalha a partir de diferentes
perspectivas, possibilitando uma experimentação antecipada, conforme nos aponta em um
fragmento póstumo que aqui retomamos:
“Uma filosofia experimental, tal como eu a vivo, antecipa
experimentalmente até mesmo as possibilidades do niilismo radical; sem
querer dizer com isso que ela se detenha em uma negação, no não, em uma
vontade de não. Ela quer, em vez disso, atravessar até ao inverso – até a um
dionisíaco dizer-sim ao mundo, tal como é, sem desconto, sem exceção e
seleção”.
14

11
Idem, [S p 37]
12
Idem, ibdem
13
NIETZSCHE, Além do bem e do mal, §21,[P p 27].
14
NIETZSCHE, Fragmento póstumo 16 [32] primavera/verão de 1888. O Eterno Retorno §1041, [R p 392]
19
Sob esse aspecto, Nietzsche também proporcionaria essa possibilidade, a Zaratustra,
aquele que anteciparia experimentalmente seu futuro próximo.
Retomando como síntese dos próprios percursos de Zaratustra as já
mencionadas transmutações do espírito, podemos ler o que segue:
Zaratustra, o espírito forte, como camelo deve dirigir-se ao seu
deserto, “obediente a contragosto” deve voltar à sua solidão; assim lhe fala,
sem voz, a temível senhora sua hora mais silenciosa: como uma voz interior
que exprime aquilo que há tempos, vem sendo preparado, pelo jogo de
forças da “vontade de potência”. “_ És alguém que desaprendeu a obedecer;
cumpre-te agora, dar ordens! O que todos mais necessitam é daquele que
ordena alguma coisa grande. Tens o poder e não queres dominar, é
imperdoável”. Ao que Zaratustra responde: “_ Para ordenar falta-me a voz
de leão.” E novamente a “senhora”: “_ São as palavras mais silenciosas as
que trazem a tempestade. Pensamentos que chegam com pés de pomba
dirigem o mundo. Ó Zaratustra, cumpre-te caminhar como sombra daquilo
que deve vir: assim darás ordens e ao dá-las, marcharás à frente de
todos.”
15
Zaratustra empreende, então, uma viagem que considera seu caminho
mais árduo e solitário, mas não se furta a isso. Por volta de meia noite,
Zaratustra inicia sua caminhada, e neste momento é importante assinalar que
a marcação de um horário, mais precisamente a hora em que se encerra um
dia e inicia-se outro, refere-se ao término de uma condição em sua vida e ao
início de uma nova que está por vir. Como viajante e escalador sobe o mais
alto de seus montes, “Sobe por cima de tua cabeça e mais além de teu
próprio coração!”
16
; será seu último cume e, depois de atingi-lo, olha do
alto para si mesmo e para suas estrelas, reconhecendo seu destino. Para isso,
será necessário aprender a afastar o olhar de si para ver muitas outras coisas.

15
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, II, A hora mais silenciosa [S p 219]
16
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, III, § O viajante, [S p 224]
20
Nesse sentido, devemos lembrar que nem mesmo os olhos inoportunos do
homem do conhecimento conseguem ver senão as superfícies das coisas.
Zaratustra, que pode ser caracterizado como aquele que quis ver fundo, para
ver a profundidade de todas as coisas, deve subir alto “até que vejas
inclusive tuas estrelas por debaixo de ti”.
17
Na continuação de seus percursos, a ascensão tem seu aspecto
complementar, o de seguir para sua última solidão e descer o mais fundo
abismo que algum dia já desceu, assemelhando-se a uma árvore solitária:
“quanto mais quer elevar-se às alturas e à luz, tão mais fortemente tendem
suas raízes à terra, para baixo, ao escuro e ao profundo, até o mal.”
18
Ao
procurar a liberdade nas alturas e olhar as estrelas, experimenta também que
os maus impulsos têm sede de liberdade. Desse modo, ainda é um
prisioneiro do perigo: a alma tornar-se ardilosa e má; necessita purificar-se, e
seu olho deve tornar-se puro.
Seria possível avaliar essa purificação assinalando o destino de
Zaratustra. Para ele, seu destino é o mar, de onde os cumes são mais altos e
os abismos mais profundos; parece-lhe sombrio e angustiante, mas sem
dúvida, seu mar é seu grande horizonte. “Somente agora percorres o teu
caminho de grandeza! Cume e abismo – resolveram-se numa única coisa!”
19
Dentre as diversas transfigurações que supõem esta última ligação entre cume e
abismo, podemos dizer que a superação de Zaratustra inclui a transmutação do olhar. A
esse respeito, apoiamo-nos em Gérard Lebrun
20
. Ele encerra seu artigo “Luz e Sombra em
Platão”, observando a permanência, dentro da filosofia, da pergunta sobre “se a visão é
realmente o emblema do pensamento e se filosofar não consistiria em saber ouvir - ouvir
discursos, ouvir os textos - mais que olhar alhures ou até mesmo mais do que ver

17
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, III, § O viajante, [S p 224]
18
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, I, Da Árvore da Montanha, [S p.76]
19
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, III, § O viajante, [S p 224]
20
Gerard Lebrun (1930-1999) professor das Universidades de São Paulo e Aix-en-Provence. Autor de O
aveso da dialética: Hegel à luz de Nietzsche (1988), Passeios ao léu, (1983).
21
melhor.”
21
Lebrun se refere às características do olhar, por intermédio da análise que
elabora sobre as interpretações de visão em Platão e Descartes, ressaltando as distâncias e
diferenças entre eles. Destacamos que, para ambos os autores, o olhar e suas equivalências
com o espírito, conhecimento e intuição, enfim, que os olhos, devem estar bem expostos à
luz.
Contra a visão pontual, “O único paradigma (do saber) é a luz.”
22
A partir dessa
afirmação de Lebrun, teríamos, como um aspecto do olhar, sua relação com o Sol, visto
como iluminação ideal. Para Platão, o olhar do filósofo se dirigiria ao mundo suprasensível,
ao encontro das idéias ou formas aí iluminadas pelo Sol. Ou, por analogia, o Bem como
maior virtude. Somente após isso, o filósofo poderia, ao retornar, reconhecer as aparências
ou coisas deste mundo sensível; um processo que, em última instância, se constitui numa
educação transformadora (paidéia). Entretanto, para Platão não há certeza, e o olhar
inteligível somente será possível para alguns, não para todos. Para Descartes é o sol
epistêmico que, com o auxílio do Método, conduz o olhar a conhecer o objeto de maneira
clara e distinta.
Encontramos ainda, na observação final de Lebrun, que a alternativa ouvir parece
ecoar do pensamento nietzscheano privilegiando os ouvidos em relação aos olhos.
Privilégio recolhido talvez, já em Heráclito. Trata-se de uma desvalorização em marcha
desde Platão que, em certa medida, coincide com a mesma noção de fragilidade do olhar.
Este é, assim, um sentido que depende de um fator externo que lhe proporcione alguma
certeza – a luz. Em Zaratustra, Nietzsche equipara olhar e sol, tornando-os independentes.
Zaratustra e o sol, cada um deles deve seguir seu caminho, no sentido de cima para baixo,
presenteando os homens com aquilo que carregam em si, em “sobreabundância”
23
. Nessa
medida, configuram-se iguais em transbordamento para descer ao mais profundo, ao ocaso.
Zaratustra traduz essa equiparação em sua fala matutina de invocação ao sol,
constituindo um exemplo de reciprocidade:

21
LEBRUN, G, Sombra e Luz em Platão, in O Olhar, org. Adauto Novaes, São Paulo, Cia das Letras, 2006,
pp 21-30
22
Idem, p 30
23
Para o termo “sobreabundância” de significação especial no pensamento nietzscheano, encontramos nas
palavras de Zaratustra: “Insaciável anseia vossa alma tesouros e jóias, porque vossa virtude é insaciável em
sua vontade de presentear.” NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra I, Da virtude que dá, [S p 123]
22
“- e uma manhã, levantando-se com a aurora, colocou-se diante do sol e lhe
falou assim:
Tu grande astro! Que seria de tua felicidade se não tivesses àqueles que
iluminas!
24
E logo de retribuição:
“Durante dez anos vens subindo até minha caverna: sem mim, minha águia
e minha serpente haverias te saturado de tua luz e deste caminho.
Porém nós te aguardávamos a cada manhã, te liberávamos de tua
sobreabunância e te bendizíamos por isso. ”
25
A seguir, podemos ler como iguais em transbordamento e movimento:
“Vê! Aborreci-me de minha sabedoria como a abelha que recolheu
demasiado mel, tenho necessidade de mãos que se estendam.
Desejaria presentear e repartir até que os sábios entre os homens voltem a
regosijar-se com a loucura, e os pobres com sua riqueza,
Para isso tenho que descer à profundidade: como fazes tu ao entardecer,
quando transpões o mar levando luz inclusive ao submundo, astro
imensamente rico!
Eu, igual que ti, tenho que fundir-me em meu ocaso, como dizem os homens
a quem quero baixar. ”
26
Nesse seu descer à profundeza, transpondo o mar, o destino de Zaratustra é o mar,
pois o mar é para ele a possibilidade de atravessar o niilismo. Mar, no entanto, oposto aos
rasos pântanos onde se encontra um de seus fortes adversários, o adivinho com seus
vaticínios
“Todas as fontes se nos secaram; até o mar recuou. Todo solo quer
fender-se, mas a profundeza não nos quer tragar! Ah! Onde há ainda um

24
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, Prólogo §1, [S p 33]. A mesma invocação se repete ao final da obra
em Assim falou Zaratustra, IV § O sinal, [S p 438] “...e saiu de sua caverna, ardente e forte como um sol
matinal que vem de escuras montanhas. Tu grande astro, digo como havia dito em outro tempo, profundo
olho de felicidade, que seria de toda tua felicidade se não tivesses àqueles a quem iluminas...”
25
Idem, [S p 33]
26
Idem, [S p 34]
23
mar, em que se possa afogar-se! Assim soa nosso lamento _ através dos
pântanos.”
27
Vaticínio reverso ao movimento de Zaratustra que, da mesma forma que o sol, quer
ir à profundeza e retornar fortalecido. O adivinho deixa-se afundar em seu grande
cansaço.
28
Notadamente, a viagem de Zaratustra caracteriza-se também como sendo o
afastamento de um lugar comum aos homens, “abandonou sua pátria e o lago de sua
pátria”
29
. Sómente então, como solitário, poderá percorrer a terra rumo aos extremos do
homem e do mundo, no que se refere à finitude tanto temporal como espacial de cada um.
O que nos remete a ressaltar a condição em que se encontra um outro personagem
nietzscheano; o “Homem louco”
30
, (aforismo 125 da Gaia Ciência), com o qual
pretendemos enfatizar o aspecto espaço-temporal com que Nietzsche desenvolve os
detalhes da situação peculiar protagonizada nesse texto.
Trata-se de um homem que, por sua condição, é segregado em seu
meio, seu pensamento não é mais gregário, mas ainda é limitado a esse lugar
comum. A crise e a prisão desse homem louco residem no fato de ele ter
ouvido falar da morte de Deus. Ainda a notícia que antecede esse grande
acontecimento é desconhecida também do eremita que Zaratustra encontra
no bosque próximo à sua montanha, do mesmo modo que ocorre,
propriamente, na cidade em que vive o homem louco.
Como se fosse uma “fábula”, Nietzsche conta que o homem louco
acendeu uma lanterna em plena manhã e correu ao mercado à procura de
Deus. Mas não O encontrou no lugar que é dos homens. Lançou-se em meio
aos homens na praça pública com sua lanterna e seus gritos “–Procuro

27
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, II, § O adivinho, [S p 202].
28
Também Nietzsche confronta-se com seus contemporâneos. “Onde há um mar, em que possa ainda afogar-
se? mesmo um homem! _ esse grito atravessa nosso tempo” Fragmento póstumo 3[1]234 verão/outono de
1882
29
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, Prólogo §1, [S p 33].
30
NIETZSCHE, A Gaia Ciência §125 (1881-1882) [P p 147]
24
Deus!”, trespassando-os com seu olhar, com o intuito de estabelecer um
domínio visual e de preencher aquele lugar com alguma luz e com o som de
seus gritos. Configura-se uma luta de forças nesse campo específico – o
lugar político, cívico, urbano. Deus já não está entre os que não crêem, não
se apresenta mais no lugar dos incrédulos. Vencido em sua luta, seus gritos
ecoaram em gargalhadas.
E ainda, mais ao final dessa “fábula”, destacamos: ouviu-se falar
também que nesse mesmo dia o homem frenético adentrou em várias igrejas
e em sua luta tentou preenchê-las entoando seu Réquiem aeternam deo.
Desses lugares religiosos foi expulso, vencido, e seu canto não ecoou.
Mesmo no lugar dos homens crédulos, Deus já não está, esses lugares
tornaram-se monumentos fúnebres, estão vazios.
Nesses dois recortes, podemos observar que o homem frenético procurou por Deus
no mundo sensível, mundo no qual o homem estabelece o seu domínio e exerce seus
valores. Até então os valores humanos, corpóreos, psíquicos e terrenos encontravam-se
legitimados pelo mundo supra-sensível. Entretanto, o lugar de ligação entre esses dois
mundos, as igrejas, conforme estabelecido pela cultura judaico–cristã, encontra-se
esvaziado por ter sido desacorrentada a terra de seu sol
31
. Seria então o caso de procurar
por Deus em seu “lugar”, no mundo supra-sensível, onde essa noção de lugar delimitado,
mensurável, tridimensional, concreto, é sobrepujada pela noção abstrata de espaço, na qual
o espaço idealizado conteria os fundamentos deste mundo sensível, as Idéias ou Formas,
em Platão e, no platonismo, Deus. Por isso, podemos dizer que, se a busca por Deus ainda
fosse possível, far-se-ia então lançando-se ao mar? ultrapassando o horizonte? rompendo
o limite entre esses dois mundos? e assim alcançaria o espaço absoluto desejado?
32
Essa
noção de espaço absoluto proveniente já de um conhecimento científico, teria conseguido
ultrapassar os limites do céu e da terra, contemplando ambas as noções em sua totalidade.

31
NIETZSCHE, A Gaia Ciência §125 [P p 148]. Dentre as indagações do Homem louco consta: “Que
fizemos nós, ao desacorrentar a terra de seu sol?”
32
NIETZSCHE, A Gaia Ciência § 343 [R p 206-7] Estas seriam possibilidades para quem não mais procura
por Deus, mas para quem procura atravessar o niilismo.
25
Não se trata mais de ouvir falar de tais ou quais lugares, mas, de certo modo,
“saber” a respeito do espaço absoluto. Nesse sentido, convém lembrar que a ciência
clássica considera o espaço um meio homogêneo e incorpóreo que existe objetiva e
independentemente de seu conteúdo físico. Possui imutabilidade em sentido pleno e
absoluto, contrastando com a matéria variável, definida como plenum ou espaço ocupado.
Assim, o vazio
33
distingue-se como espaço desocupado.
De maneira que, a forma como o homem louco pergunta aos homens: “- Como
matamos Deus?” parece dizer que é o “saber” da ciência e sua crença na verdade que
desacorrenta a terra de seu sol em nome da própria verdade. Por isso, esse “saber” seria a
ferramenta ou “esponja que apaga o horizonte”
34
e esvazia o mar. Será o próprio Nietzsche
quem alertará e recomendará cautela quando “deixamos a terra firme” e lançamo-nos ao
mar. Já que, com isso, percebemos sua infinitude, confunde-nos a sensação de liberdade,
amedronta-nos a livre mobilidade, “- e já não existe mais ‘terra’!”
35
A partir de nossa perspectiva, podemos dizer que no espaço sem limite e
qualitativamente indiferenciado não existem lugares ou direções privilegiados,
consequentemente não há fundamento para o dualismo “terra e céu”, nem para os
elementos qualitativamente distintos que residem em suas próprias regiões. Em outras
palavras, não há nem Deus nem deuses, nem Idéias e nem sequer mundo supra-sensível;
qualquer limite de espaço tornou-se, para nossa imaginação, arbitrário, pois sempre será
devido à presença de alguma barreira material. À medida que a barreira ou o limite é posto
no espaço, este não poderá ser termo do espaço.

33
O espaço vazio e independente foi denominado desde a antiguidade de Não Ser por Demócrito, inane por
Lucrécio ou nihil por William Gilbert; o que levou a confundir sua anterioridade lógica com a anterioridade
ontológica ou temporal, haja visto que os atributos do espaço são os mesmos com os quais os escolásticos
designavam o Ser Supremo: um [uno], simples, imóvel, eterno, completo, onipresente, incorpóreo, incriado,
incircunscrito, incompreensível, Ser por essência, Ser em ato, Ato puro. Assim é que, conforme observou
Henry Moore (Londres, 1671) o espaço é considerado como atributo de Deus, a própria extensão de Deus, a
própria condição de sua ação no mundo; torna possível a onipresença divina, assim como o conhecimento
divino da totalidade das coisas. A incorporeidade do espaço facilmente cedeu à sua divinização (Burnet e
Bailey); e ainda em seu sentido atual mais amplo a relação entre o Ser e o Não Ser seguiu sendo basicamente
a mesma que a relação entre matéria e vazio. O mesmo que o vazio parece preceder a matéria que o preenche,
o Não Ser parece ser logicamente anterior ao Ser.
34
NIETZSCHE, A Gaia Ciência §125 [P p 148]
35
Idem, §124 [P p 147]
26
Por isso, no aforismo do “Homem louco”, ao reconhecer o “novo” espaço vazio, o
homem fez desaparecer o lugar de Deus a partir do qual emanava sua autoridade. Rompeu-
se, assim, a relação do homem-criatura com seu Criador. Foi minado o solo sede e origem
dos valores humanos, ou o lugar a partir do qual os valores instituídos foram engendrados.
Nos termos da “História de um erro”
36
, desfez-se o dualismo de mundos até então imposto
pela interpretação dada pela metafísica e pela religião cristã. A primeira, postulando o
mundo supra-sensível, verdadeiro, imutável, essencial e eterno; e a religiosa, como
“platonismo para o povo”
37
, propondo a vida após a morte e atribuindo ao mundo supra-
sensível o lugar do reino de Deus.
Desde outra perspectiva, podemos dizer que a possibilidade de libertar-se, no caso
específico do “Homem louco”, refere-se ao vivenciar um tempo necessário para que os
homens se dêem conta dos grandes acontecimentos:
“Relâmpago e trovão precisam de tempo, a luz dos astros precisa de
tempo, feitos precisam de tempo, mesmo depois de consumados, para serem
vistos e ouvidos.”
38
Da mesma forma, Nietzsche dirá:
Os maiores acontecimentos e pensamentos _ mas os maiores
pensamentos são os maiores acontecimentos _ são os últimos a serem
compreendidos: as gerações que vivenciam tais acontecimentos _ passam ao
largo deles.”
39
No entanto, outro problema se avizinha: “Quem terá vontade de divinizar logo a
seguir, de novo, à antiga moda esse monstro de mundo desconhecido?”
40
Consiste nisso o
novo alerta de Nietzsche, ao considerar que temos demasiadas possibilidades de interpretar
esse desconhecido sem deus. O mundo para nós voltou a tornar-se infinito, no sentido em
que não podemos recusar a possibilidade de se prestar a incontáveis interpretações.

36
NIETZSCHE, Crepúsculo dos Ídolos, Como o “verdadeiro mundo” acabou por se tornar em fábula,
História de um erro. [R p 332-333].
37
NIETZSCHE, Além do bem e do mal, Prólogo, [P p 8]
38
NIETZSCHE, A Gaia Ciência § 125, [P p 147-148]
39
NIETZSCHE, Alem do Bem e do Mal § 285, [P p 191]
40
NIETZSCHE, A Gaia Ciência § 374, [R p 211-212]
27
A morte de Deus, que torna possível um processo de libertação, ao mesmo tempo
exige do homem a superação de si, a transvaloração de todos os valores, uma vez que “o
peso de todas as coisas precisam ser novamente determinados.”
41
As conseqüências dessa
morte, Nietzsche as apresenta como uma nova espécie de luz, o horizonte aparece
novamente livre, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento,
talvez nunca tivesse havido “tanto mar aberto”.
42
Parece-nos possível agora restabelecer a análise da possibilidade de novos lugares.
Depreendemos que o propósito de Nietzsche é atribuir à existência humana um novo
sentido e efetividade, recuperando a Terra como o único “mundo verdadeiro”. Ao tornar-se
criatura e criador de si mesmo, o homem pode superar-se como ponte para o além-do-
homem, que prezará os novos valores em consonância com a Terra e a vida.
“Mil veredas há, que nunca foram andadas ainda, mil saúdes e mil
ilhas escondidas da vida. Inesgotados e inexplorados estão ainda o homem e
a terra do homem”.
43
E mais, já no Prólogo, Zaratustra diz:
“Amo aqueles que não procuram atrás das estrelas uma razão para
sucumbir e serem sacrificados: mas que se sacrificam à terra, para que a
terra um dia se torne do além-do-homem.”
44
Esta é a nova perspectiva de Zaratustra. O homem sem deus não teme a falta de
sentido que a morte de Deus acarreta, porque ensina aos homens ou os presenteia com o
além-do-homem, para que este seja o sentido da Terra.
“Zaratustra, o negador de Deus e da teleologia, sabe e reconhece
que só a vontade criadora produz deuses e os que são o além-do-homem”
45
.

41
Idem § 269, [R p 186]
42
Idem § 343, [R pp 206 ss].
43
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, I, Da virtude que se dá §2, [R pp122ss]
44
Idem, Prólogo §4,[R p 227]
45
SALAQUARDA, A Concepção básica de Zaratustra, p 30
28
Afinal, nos parece que o presente de Zaratustra contém reunidos e interligados o
além-do-homem e o sentido da Terra. O homem que se tornou criador e criatura de si
mesmo lança-se ao porvir.
A dádiva de Zaratustra contituir-se-ia, de uma parte, em dirigir-se aos homens
ensinando-os e, de outra parte, percorrer a Terra como modo de vivenciar seu sentido.
Desse modo, seguimos nossa leitura:
Zaratustra, o caminhante segue sua viagem, embarca em um navio
que vem de longe e ruma para ainda mais longe e reúne-se por um período
da viagem a “audazes buscadores e indagadores”
46
de um mundo por
descobrir. Inicialmente calado, frio, e surdo de tristeza. Após dois dias, abre
seus ouvidos e pela força de escutar, solta-se sua língua e o gelo de seu
coração se rompe; então Zaratustra começou a falar._ “É necessário falar,
calar é pior, verdades silenciadas tornam-se venenosas.”
47
_ Fala-lhes para
que ouçam e “vejam”: “o enigma que eu vi... - a visão do ser mais
solitário.”
48
.
Segue-se a história “Da visão e enigma”
49
dentro da história de
Zaratustra: _ Subindo a senda má, carregando o espírito de gravidade, meio
anão meio toupeira, ou de outra maneira, sozinho consigo mesmo, o esforço
de subir resulta em descer, compadecer-se. Carrega sobre si o espírito de
peso, como um anão assentado sobre seus ombros, sussurrando palavras de
chumbo: “Tu (Zaratustra), pedra de sabedoria, hás lançado a ti mesmo,
para cima, mas como pedra atirada tens que cair!”
50
. Essa fala do anão
seria então superada pelo próprio pensamento de Zaratustra “Todo
prisioneiro e toda vontade prisioneira carrega a pedra que não pode
remover ‘O que foi, foi’”. Para isso, Zaratustra esboça a solução “Todo foi é

46
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, III, Da visão e enigma §1 [S p 227]
47
Idem, II, Da superação de si [S p 177.]
48
Idem, III, Da visão e enigma §1 [S p 227ss]
49
Segue em anexo a transcrição integral do capítulo “Da visão e enigma” de Assim falou Zaratustra.
50
Idem, III, Da visão e enigma §2 [R p 244] [S p 230]
29
um fragmento, um enigma, um espantoso acaso – até que a vontade criadora
diga ‘Porém, eu quis assim’”.
51
Em Zaratustra irrompe a coragem que o faz
parar, falar e reverter essa condição “Alto, anão!, falei eu. Ou eu ou tu! Mas
eu sou o mais forte de nós dois _: tu não conheces o meu pensamento
abissal! Esse _ tu não poderias carregar!”
52
. Trata-se de uma coragem que
mata a vertigem ante os abismos, mata a compaixão, mata a morte e diz sim
à vida. Sente-se mais leve. Nesse momento, o anão salta de seus ombros e
agacha-se sobre uma pedra que está no caminho diante deles. Zaratustra
desvencilha-se do anão ao mesmo tempo em que sua “pedra” torna-se mais
leve.
53
Zaratustra está diante do PORTAL “INSTANTE” (AUGENBLICK) ,
esse portal corta a eternidade.
Esclarecendo de partida, diríamos que, segundo determinadas interpretações, como
veremos a seguir, o instante é um limite. Ele não é parte do tempo, mas aplica-se a ele
como “corte”, demarcando o anterior e o posterior. Compara-se ao ponto de uma linha
(geometria euclidiana), enquanto o ponto dá continuidade às partes da linha, o ponto é um e
o mesmo; da mesma forma, o instante em relação ao tempo: por um lado divide o tempo em
potência, de outro é limite comum de dois tempos, unindo-os e continuando-os. Ambos
constituem-se uma abstração. Ao instante não se pode atribuir realidade, senão seria uma
realidade indivisível do tempo ou uma realidade divisível ao infinito; em ambos os casos
cairíamos no paradoxo de Zenão.
Destaquemos, por exemplo, a interpretação de Humberto Giannini
54
que, realizando
uma análise do instante desde a noção do nada e da criação, dirá que “O instante é uma

51
Idem, II, Da Redenção [R p 241] [S p 211]
52
Idem, III, Da visão e enigma §2 [R p 243] [S p 229]
53
A pedra de Zaratustra, a nosso ver, encontra na pedra de Sísifo seu mito correspondente; tema este que
trataremos em conjunto com a questão da linguagem
54
Humberto Giannini é professor de Filosofia Medieval nas Universidade de Chile e Católica de Chile, autor
de El pasar del tiempo y su medida.
30
categoria religiosa.”
55
Parte da idéia de que antes da criação Deus é. Nada é senão Deus. O
nada tampouco é, mas precede o momento da criação quando é dito que Deus cria a partir
do nada. Não existe uma predisponibilidade neste caso, ao contrário do que diz Platão, não
há o receptáculo (jora) ou a matéria prima de Aristóteles.
56
O nada como distinto de Deus,
como “fora” Dele, é um vazio que não chega a ser no tempo, porque Deus já teria criado o
universo. Dessa forma, o nada surge no horizonte da criação, embora à margem do tempo,
no instante, justamente quando é sufocado pela criação. Conforme Giannini, o nada surge
“como condição sagrada e ontológica para que algo possa ser fora de Deus.”
57
Assim,
tanto o nada primordial que antecede à criação, como aquele que espreita a cada momento o
ser de cada coisa, jamais alcança ser, só existe fora do tempo, no instante. O que pertence à
ordem natural do acontecer, como engrenagem causal, é medida pelo tempo. Nesse sentido,
tudo que pertence à ordem da liberdade e à criação, cada ato livre do homem ao qual não se
imputa causalidade, não pode ser ligado ao tempo, mas ao instante. Desse modo, a criação
divina, a criação humana e todo ato livre, surge no instante.
Neste sentido e tendo como referência a filosofia “antiga”, segundo Aristóteles
58
,
“O tempo é o número do movimento”
59
, além disso é medida fixada pelo espírito humano
com base no movimento astronômico. Entretanto, a medida do tempo é o intervalo que
separa o começo e o fim do movimento, determinando o que é anterior e o que é posterior
em relação ao momento escolhido. Essa medida pontual suprime o tempo e seu
escoamento, restabelecendo o espaço, matematizado ou geometrizado. O tempo não é mais
apreendido em sua realidade temporal efetiva orientada a um futuro ainda desconhecido.
Ele é colocado dentro do espaço, diante de nós, onde passado e futuro tornam-se presentes
à consciência. Para Plotino
60
, “não é necessário que se meça o tempo para que ele exista,

55
GIANNINI, H, Vida inautentica y curiosidad, in Escritos Breves, 3, Departamento de Filosofia Universidad
de Chile, Santiago, 1971, pp 7-31
56
PLATÃO, Timeu XVII,48. ARISTÓTELES, Da geracão e corrupção L II 1,2,3.
57
GIANNINI, H, Vida inautentica y curiosidad, p 11
58
ARISTÓTELES (384aC-322aC) O Estagirita, fundou o Lykeion (liceu). Sua obra é um sistema conhecido
como corpus aristotelicum : Organon, Parva Naturalia, Escritos Físicos e científicos, metafísicos, éticos,
estéticos e outros
59
ARISTÓTELES, Física IV, 11 218b
60
PLOTINO (205-270) Figura das mais importantes do movimento neoplatônico. Autor de As Eneadas.
31
tudo tem sua duração, mesmo que ela não seja medida”
61
Desse modo, Plotino considera
que o universo material e visível, imperfeito e inacabado, aspira ao futuro. Também para
nossa experiência de seres “incompletos”, tentar suprir essa carência resume-se em uma
experiência de tempo. Em compensação, desprendendo nossa alma e nossa inteligência
(individual) do mundo sensível e elevando-a à Inteligência, nos afastamos da roda do tempo
para contemplar as Formas eternas que dão a este mundo a estabilidade e ordem possíveis.
Nestas referências à antiguidade clássica, é possível estabelecer, também, uma
relação entre o instante e o modo de conhecimento centelhante, como faz Platão
62
na Carta
VII
63
, Segundo Platão, a respeito do conhecimento das coisas sublimes:
“Não existe qualquer meio de reduzir a fórmulas, como se fez nas
outras ciências, mas é só depois de longamente se ter convivido com estes
problemas que, de repente, a verdade brilha e cresce na alma, tal como a
luz brilha em centelhas e cresce de si própria.”
64
Aristóteles, em De Anima, dirá que os princípios indivisíveis que acolhem a alma
não mudam enquanto mudam as coisas, nem são temporais, justamente por serem o
fundamento do que é móvel e temporal. Em ambos os casos, é importante ressaltar que se
trata de um tipo de conhecimento que não pode ser captado através de um processo
discursivo e divisível no tempo, senão “em um ato também indivisível da alma”
65
. O que
nos conduz ao que é fora do tempo. É, no instante. Mesmo considerando os contextos e
cenários diferenciais, o que ocorre no instante para Nietzsche, refere-se àquilo que os
poetas de épocas fortes chamavam de “inspiração” como noção de revelação:
A noção de revelação, no sentido de que subitamente, com inefável
certeza e sutileza, algo se torna visível, audível, algo que comove e
transtorna no mais fundo, descreve simplesmente o estado de fato.”
66
.

61
PLOTINO, Eneadas III 7 § 9, 80
62
PLATÃO (428aC-348aC) Filósofo e prosador grego. Fundou a Academia. O autor dos “diálogos”.
63
PLATÃO, Cartas, trad. Conceição Gomes da Silva e Maria Adozinda Melo. Ed Estampa, Lisboa, 1980,
2ªed, Carta VII, pp 47-93
64
PLATÃO Carta VII, in Cartas, p 73. grifo nosso
65
ARISTÓTELES De Anima L III 430b 14
66
NIETZSCHE, Ecce Homo, como alguém se torna o que é, Assim falou Zaratustra §3. p 85/86
32
Voltando ao percurso de Zaratustra, podemos dizer que é desde o momento que dá
inicio à viagem, que ele se preparou para fazê-lo. Superando abismos, cumes e profundezas
do mesmo modo que se enfrenta um antagonista interior, não é só seu pensamento, mas seu
corpo, a grande razão, que realiza uma peregrinação que em última instância destina-se ao
portal. Nesse momento, Zaratustra já estaria pronto para o confronto de forças que se
efetivam em sua visão e enigma.
A nosso ver o portal nos indica atenção e prontidão, e permite-nos vislumbrar a
confluência de forças. No dizer de Santo Agostinho
67
, a medida do tempo nos dá uma certa
duração vivida pela consciência. A partir daí, sua análise chega à constatação de que
existem três tempos encontrados unicamente em nosso espírito: o presente do passado, que
é a memória; o presente do presente, a atenção; o presente do futuro, a espectação.
68
Partindo dessa leitura, podemos dizer que é com o PORTAL “INSTANTE” que se promove
o corte na continuidade infinita do espaço, cindindo a via do tempo, tornando possível unir
os dois percursos aí criados para trás e para frente, no tempo passado e futuro, atribuindo,
portanto, espaço e tempo para o presente.
Complementando essa problemática, encontramos em Kierkegaard
69
:
“A síntese de tempo e eternidade não é outra síntese, senão a
expressão daquela, segundo a qual, o homem é uma síntese de alma e corpo
regida pelo espírito. Apenas posto o espírito, o instante é. [...] Assim o
instante é aquela ambigüidade em que tempo e eternidade se tocam; com
isto constrói-se o conceito de temporalidade na qual o tempo corta
continuamente a eternidade e a eternidade penetra continuamente no
tempo.”
70

67
AGOSTINHO (354-430) Santo Agostinho na Igreja Católica. Teólogo e filósofo. Autor entre outras obras,
de A cidade de Deus e Confissões.
68
AGOSTINHO, Confissões XI §XX Paul Ricoeur observa que a oposição entre a concepção agostiniana
(fenomenológica) e a concepção aristotélica (cósmica) do tempo é irredutível e não será jamais cosiderada na
filosofia ocidental. (Tempo e narrativa,t 3 cap 1 pp 19-39). Nossa atenção privilegia aqui o caráter subjetivo
da noção de tempo.
69
Soren Kierkegaard (1813-1855) Teólogo e filósofo dinamarquês. Autor entre outras obras, de Temor e
Tremor e O Desespero humano.
70
KIERKEGAARD, O conceito de angustia, cap III.
33
Em nosso entendimento, o portal seria a imagem do ponto fronteiriço para o
homem em sua relação finita com o infinito; através dele a vida se expandiria para além dos
limites do ser-para-si, até a ilimitação do vir-a-ser. É um limite que o homem põe para si e
que tem como característica a mobilidade, apresentando a possibilidade de ser ultrapassada
sempre que o homem queira. Da mesma forma que o espaço, o tempo está vazio, é só uma
via acessória e contingente; as mudanças estão no tempo e não são o tempo em si. A partir
de Nietzsche, ou já com ele, observamos que desse modo, no
PORTAL “INSTANTE”
efetiva-se a força que age sobre outras e resiste a outras mais, irradia-se em “vontade de
potência” e manifesta-se em um querer-vir-a-ser-mais-forte. Eis, a nosso ver, o momento da
efetivação da vontade que cria; lembrando o escrito de Giannini, o momento de criação
como ato livre do homem.
Concomitantemente à ação do indivíduo, o mundo mostra-se, dá forma ao tempo,
tornando-o visível como um caminho. A interação homem-mundo é reforçada através da
imagem. Podemos dizer, metaforicamente, que Nietzsche “espacializa” o tempo,
utilizando-se e lançando além, conceitos de tempo e espaço fundamentais da física clássica,
vigentes em sua época.
71
Como passo adiante, capturando o presente eterno, e rompendo com a
temporalidade linear, Nietzsche teria utilizado do artifício do nome
“INSTANTE” para
restituir à Terra suas possibilidades. Terra agora sem Deus, sem meta, sem angústia. Desse
modo, cabe-nos acrescentar que o
PORTAL “INSTANTE” indica também, além de atenção e
prontidão, decisão. Para Nietzsche, não se trata mais da espectação agostiniana ao futuro,
mas de uma transvalorada decisão lançada ao devir.

71
Resumidamente encontramos que no século XIX definia-se o espaço como agregado tridimensional de
termos homogêneos coexistentes, cuja relação básica é a justaposição. Considerava-se o tempo como
agregado de uma só dimensão de termos sucessivos, cuja relação seria a sucessão. Para ambos, os atributos
básicos deduziam-se da propriedade de ser homogêneos, tais como: independência, ausência de conteúdo
físico, infinidade, continuidade e uniformidade, de maneira mais expressiva: fluidez uniforme. O tempo
absoluto também era chamado duração, o tempo relativo aparente e sensível era dado por uma medida externa
a ele estimada pelo movimento dos corpos, tais como hora, dia, etc. Dessa maneira o tempo fluiria
independentemente de que ocorra alguma alteração.
34
“E quando vi meu demônio o encontrei sério, grave, profundo,
solene: era o espírito de peso, _ ele faz cair a todas as coisas. Não com
cólera, senão com o riso se mata. Avante, matemos o espírito de peso!”
72
Será precisamente no portal que Zaratustra mostrará o vazio do tempo, no qual se dá
a mudança do homem. Isso se efetivaria ao transformar o instante em eternidade para que o
homem se liberte em seu destino. Não se trata, assim, de uma aceitação resignada das
coisas como são, mas da possibilidade de uma força que deseja e cria. O instante teria,
então, a duração necessária para a efetivação das forças da “vontade de potência”.
A mudança no indivíduo e a mudança no mundo, conforme a manifestação no
tempo, só seriam possíveis porque, segundo a perspectiva de Nietzsche, tudo o que existe é
constituído por forças, uma pluralidade de forças existentes em toda parte, que não é em si,
mas na relação com outras. As forças não são algo, mas um agir sobre; a elas não se atribui
causalidade ou intencionalidade, mas simplesmente efetivação inevitável. A cada momento
elas se relacionam de modo diferente, dispõem-se de outra maneira; a todo instante, o
combate entre elas faz surgir novas formas, outras configurações. É mediante o
perspectivismo que “cada centro de forças – e não unicamente o homem – constrói a partir
de si mesmo todo o resto do mundo, isto é, mede segundo sua força, tateia, dá forma...”
73
.
Desde sua perspectiva, a força organiza o mundo. Já com respeito à consideração
nietzscheana de mundo, retomamos seu próprio questionamento:
“E sabeis o que é para mim o “mundo”? Devo mostrá-lo a vós em meu
espelho? Este mundo: uma monstruosidade de forças, que não se torna
maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuta,
inalterável grande em seu todo, uma economia sem despesas e perdas [...],
mas como jogo de forças e ondas de forças ao mesmo tempo um múltiplo,
aqui se acumulando e ao mesmo tempo ali minguando [...], mas
contraditório consigo mesmo, e depois outra vez voltando da plenitude ao
simples, do jogo de contradições de volta ao prazer da consonância [...].

72
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra,I, Do ler e escrever, [S p.73]
73
NIETZSCHE, Fragmento póstumo 14 [186] da primavera de 1888, cit MARTON, Extravagâncias. p 103
35
Esse mundo é a vontade de potência – e nada além disso! E também vós
próprios sois essa vontade de potência - e nada além disso!”
74
Deixando, como horizonte, o mundo no espelho de Nietzsche, voltemos aos
espelhos de Zaratustra. Primeiramente deparou com um deles através de um sonho em “O
menino e o espelho”
75
. Após superar o susto de sua visão, compreende o signo e a
advertência que lhe é transmitida: “Meus inimigos tornaram-se poderosos e deformaram a
imagem de minha doutrina...”. Posteriormente, em “Da superação de si”, terá em mãos um
espelho de cem faces:
“Ao vivente eu persegui, segui os maiores e os menores dos caminhos, para
conhecer seu modo.
Com espelho de cem faces captei ainda seu olhar, quando sua boca fechada:
para que seu olho falasse. E seu olho me falou,”
76
Persiste em ambos os casos, a nosso ver, o espelho. Como instrumento reflete a
imagem em suas dimensões, que mostra o tempo passado e futuro unidos no presente,
assim como mostra caminhos, que em última instância seria o espaço. Isso é possível
ilustrar em outra perspectiva recolhendo um trecho da crônica de Clarice Lispector
77
“Os
Espelhos”:
“... _O que é um espelho? Como bola de cristal dos videntes, ele me
arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e em mim o
campo dos silêncios e silêncios. _ Esse vazio cristalizado que tem dentro de
si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois espelho é o
espaço mais fundo que existe”
78

74
NIETZSCHE, Fragmento póstumo (XI 38[12]). Cit. JULIÃO, O mundo sem fundo de Zaratustra, in
Cadernos Nietzsche, 15, p59
75
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, II, § O menino e o espelho. [S p 131-134].
76
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, II, Da superação de si, [R p 238] [S p 175]
77
Clarice Lispector (1925-1977) Brasileira judia nascida na Ucrânia. Estreou na literatura aos dezessete anos.
Começou a colaborar na imprensa em 1942.
78
LISPECTOR, Clarice, Para não esquecer, Rio de Janeiro, Rocco, 1999, p 12
36
Seguindo essa reflexão, mediante nosso próprio espelho, retomemos a leitura de
nosso ponto de apoio, o PORTAL “INSTANTE”.
No tempo em que Zaratustra permanece diante do PORTAL
“INSTANTE”, atua como a lenta aranha que, preservando sua teia intacta,
mostra, diante do tempo, a imobilidade no espaço à sua volta. “E esta lenta
aranha, que rasteja ao luar, e este próprio luar...”
79
Nesse sentido, o tempo,
nesse instante, também pára. Visão e enigma mostram-se novamente, visão e
antevisão em forma de alegoria. Alegoria que talvez guarde seu sentido de
imobilidade, conforme a definição de Frutiger
80
, “A alegoria é como um
quadro, neste nada acontece, visto que tudo é dado de antemão”
81
Entretanto, mesmo que na narrativa, não possamos encontrar com
clareza uma mudança de tempo ou espaço, sem que se interrompa o instante
que Zaratustra vivencia nesta ocasião, uma outra cena se desenvolve no
mesmo lugar. Há um novo apelo repentino, já não visual, mas direcionado
aos ouvidos de Zaratustra. Ele ouve o uivo de um cão.
“E subitamente ouvi ali perto um cão uivar. Ouvi alguma vez um cão
uivar assim? Meu pensamento correu para trás. Sim! Quando eu era
criança, na mais longínqua infância.”
82
O uivo de um cão chama a atenção de Zaratustra indicando uma
experiência presente. No entanto, a partir dessa vivência, se indica ao mesmo
tempo uma experiência anterior: o uivo redireciona seu pensamento para
trás. Nesse sentido. podemos dizer, na mesma via do tempo que ele vê diante
de si através do portal. Assinala-se o instante em que algo se imprimiu a
fogo e permaneceu, até o presente, na memória de Zaratustra. Em sua

79
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, III, Da visão e enigma §2 [R p 244] [SP p 229]
80
Perceval Frutiger é autor de Volonté et conscience. Essai de monisme spiritualiste (1920) e Les mytthes de
Platon. Ètude philosophique et litteraire (1930)
81
FRUTIGER, P, Les mythes de Platon. Apud. MATTEI, Platon et le mirroir du mythe, Paris, Quadrige/
PUF, 2002, p 116
82
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, III, Da visão e enigma §2 [R p 244] [S p 229].
37
infância ouviu e viu um cão uivar do mesmo modo, e apiedou-se do animal.
Agora, novamente apieda-se.
“Mas ali jazia um homem! E eis! O cão, saltando, eriçado, ganindo _
agora ele me viu chegar _ e recomeçou a uivar, e gritou: _ ouvi alguma vez
um cão gritar assim por socorro? E, em verdade, o que eu vi, coisa igual
nunca vi.”
83
Podemos dizer que o grito do cão põe Zaratustra em prontidão para
que ajude um jovem pastor, que se encontra sufocado por uma negra e
pesada cobra. Zaratustra grita para que ele morda a cabeça da cobra, e ao
fazê-lo, o pastor livra-se dela e levanta-se como um ser transformado que ri.
Para Zaratustra, esse seu grito vem de seu interior e por meio dele expurga
seu horror, seu ódio, seu asco, sua compaixão, todo bem e mal. Esvazia-se e
ri. Agora, Zaratustra pode efetivar seu anseio pelo riso.
A partir dessa descrição, nosso espelho reflete as formas e as ações
da narrativa “Da visão e enigma”, cofigura-se, assim, como sendo um e o
mesmo enigma, no qual se correspondem boca e portal, serpente e caminhos
eternos.
De acordo com outras leituras, o modo como Nietzsche trabalha espaço-tempo em
Zaratustra, mais especificamente em “Da visão e enigma”, é considerado um esforço
artístico para pensar a estrutura artística do mundo. Segundo Danko Grlik, por exemplo, o
citado aforismo:
“... abole a oposição entre o passado e o futuro, ou mais exatamente,
ao conferir ao passado a marca de um porvir aberto, potencial, dá,
simultaneamente, ao futuro a permanência, a solidez, a imutabilidade do
passado... Toda coisa é e não é nesse lugar, todo lugar desaparece e

83
Idem, ibdem
38
reaparece de novo, a alma supera e nega toda limitação espacial assim
como a temporalidade ordinária.
84
Danko Grlik conclui citando um outro aforismo de Zaratustra:
“Ó minha alma, ensinei-te a dizer ‘hoje’ como ‘outrora’ e
‘antigamente’ e sobre todo Aqui, Ali e Acolá, dançar tua roda.”.
85
Sobre o aspecto espaço-tempo, também Gianni Vattimo
86
realiza uma interpretação
direcionada até o eterno retorno. Como hipótese ética, este somente seria aceito por um ser
totalmente feliz. Vattimo ressalta “_só em um mundo que já não pensa no marco de uma
temporalidade linear, seria possível tão plena felicidade.”
87
Porém, um homem
totalmente feliz só poderia ser encontrado em um mundo totalmente diferente deste, no qual
seja possível suprimir o que ele denomina “estrutura edípica de tempo.” Nela “cada
instante é um filho que devora seu pai, o momento que o precede”.
88
Acompanhemos Zaratustra, após ocorridos visão e enigma. Constataremos
que Zaratustra segue sua viagem por mar com o coração repleto de enigmas
e tristezas. E será somente após quatro dias de distância das ilhas bem-
aventuradas e dos amigos, que superará toda a sua dor: “vitorioso e com
passo firme, estava novamente em pé no seu domínio”.
89
A partir da
avaliação realizada textualmente, encontramos Zaratustra: “Assim estou em
meio de minha obra, indo para meus filhos e deles voltando: por amor a
seus filhos deve Zaratustra completar-se a si mesmo.”
90
E a seguir, confirma a completude de seu percurso, até este ponto:

84
GRLIK, Danko, “Nietzsche e o eterno retorno do mesmo ou o retorno de essência artística na arte”. Trad.
Sônia Salzstein Goldberg. In MARTON org., Nietzsche hoje? Colóquio de Cerisy, São Paulo, Brasiliense,
1985. p 32
85
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, III, Da Grande Nostalgia. [S p 310]
86
Gianni Vattimo (1936- ) Filósofo e político italiano.Autor de A sociedade transparente, O fim da
modernidade
87
VATTIMO, Gianni, Introdución a Nietzsche. p 103
88
Da mitologia, Cronos, senhor do tempo, castra seu pai e devora seus filhos. NIETZSCHE, Assim falou
Zaratustra, Nota do tradutor Andrés Sánches Pascual nº 260 e GUIMARÃES, Ruth, Dicionário de Mitologia
Grega, São Paulo, Cultrix, s/d.
89
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, III, Da bem-aventurança a contragosto, [S p. 233]
90
Idem, [S p 234]
39
“E na verdade, era chegado o tempo de ir embora; e a sombra do
viandante e o instante mais longo e a hora mais silenciosa, tudo dizia-me:
‘Já é mais que chegado o tempo!’
O vento soprava pelo buraco da fechadura e dizia: ‘Vem!’ A porta se
me abria arteiramente e dizia: ‘Vê!’”
91
Concluindo com os parágrafos acima citados, podemos dizer que se
aplicadas as divisões das metamorfoses de que partimos em “As Três
transmutações”:
No PORTAL “INSTANTE”, Zaratustra transmuta-se em leão.
Após acompanhar o caminho de Zaratustra, passaremos agora a ouvir os discursos
de Zaratustra a respeito daquele, ou para aquele que quer refugiar-se na solidão, procurando
o caminho de si mesmo. Zaratustra alerta precisamente para que se detenha e escute.
Propõe em primeiro lugar, verificar as condições sob as quais alguém quer se dirigir ao seu
deserto, avaliando se está realmente apto para o que está por vir, pois “Quem procura,
facilmente se perde a si mesmo”.
92
Assim se considera aquele que agora quer se refugiar na
solidão, após sua longa pertença ao rebanho. Nesse sentido a voz do rebanho ainda ecoará
em si: “Todo isolar-se é culpa”
93
. Mesmo já sendo capaz de dizer que não possui a mesma
consciência de rebanho, seu dizer ressoa como lamento e mágoa que ainda arde em sua
angústia. “Aquela consciência única deu a luz também essa dor: e o último resplendor
daquela consciência continua brilhando sobre tua tribulação.”
94
Dessa forma, pensa-se a
angústia gerada por aquela consciência gregária. Nesse ponto, podemos esboçar um novo
paralelo com o que ocorre ao “Homem louco” do aforismo 125 de A Gaia Ciência, na
medida em que reconhece sua extemporaneidade:

91
Idem, [S p 235]
92
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, I, Do caminho do criador, [S p.105]
93
Idem, ibdem
94
Idem, ibdem
40
“‘Eu venho cedo demais’, disse então, ‘não é ainda meu tempo. Esse
acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos
ouvidos dos homens’”
95
Pertinente ou não o paralelo, permanece a indicação para aquele que quer seguir o
caminho de sua angústia que seria o caminho rumo a si mesmo. Como movimento inicial,
teria que mostrar direito e força novos. Entretanto há exclusões. Para ter direito e força no
caminho rumo a si mesmo não poderá direcionar-se em função da cobiça ou ambição,
tampouco o motivo poderá ser escapar de um jugo. Por isso, não basta poder dizer-se livre
em termos de pensamentos dominantes. É seu olho que deve mostrá-lo. Mais importante
que ser “livre de quê”, será ser “livre para quê”. Pois é necessário observar entre outros
aspectos que:
“Há sentimentos que querem matar o solitário; se não o conseguem,
então eles mesmos têm que morrer! Mas, tu és capaz de ser assassino?”
96
É terrível estar só, pois significa ser capaz de dar a si próprio seu bem e seu mal,
suspender sua vontade por cima de si como uma lei. E neste sentido, ser juiz e vingador de
sua própria lei. Por isso, um criador terá que conhecer o desprezo e o tormento de sua
justiça. No entanto, implica em ser justo com aqueles que o desprezam. Para o rebanho,
quem se sobreexcede, quanto mais alto subir, tanto menor será visto pelo olho da inveja. É
odiado pelo rebanho quem voa.
Assim, uma estrela é arremessada no espaço vazio e no gélido
respiro da solidão [...] Mas se queres ser uma estrela, nem por isso deverás
brilhar menos para eles!”
97
Mas o pior inimigo que o criador poderá encontrar será ele mesmo, estará à sua
espreita em cavernas e florestas. Seu caminho passa por ele e por seus sete demônios. Será
para si mesmo herege, feiticeiro, vidente, doido, céptico, ímpio e celerado. Dessa forma,

95
NIETZSCHE, A Gaia ciência, §125, [P p148]
96
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, I, Do caminho do criador, [S p.106]
97
Idem, ibdem
41
deverá querer arder em sua própria chama para que possa se renovar. Solitário, ele quer
criar para si seu deus extraído de seus demônios. Ama a si mesmo, e por isso mesmo se
despreza.
Por isso, Zaratustra poderá concluir com respeito ao criador:
“Vá para sua solidão com seu amor e com sua atividade criadora; e
somente mais tarde a justiça o seguirá capengando [...] Amo aquele que
quer criar para além de si e, destarte, perece.”
98
Podemos observar, conforme a leitura dos discursos de Zaratustra, que até aqui
realizamos, que ele se dirige ao espírito forte. Em outras palavras, dirige-se aos ouvidos de
um indivíduo privilegiado ou em condição privilegiada, como seria o seu próprio caso. Não
se trata, portanto, de um discurso para aquele “indivíduo” de consciência gregária que quer
ou procura o próprio caminho de si mesmo. Esse “um” ainda sofre dos muitos.
Se Zaratustra se constitui um espírito forte capaz de vivenciar sua transmutação em
leão, podemos supô-lo agora um “espírito livre”. Isso uma vez que “O espírito livre vive
para o ensaio, antecipa experimentalmente sua aventura, é arbítrio e gosto pelo
arbítrio.”
99
. Dobrando as características que possui o espírito livre, segundo Nietzsche no
Prefácio de 1886 de Humano Demasiado Humano, podemos destacar que Zaratustra teve
seu acontecimento decisivo em um grande livramento. Teve sua alma jovem, mesmo sem
saber, arrebatada por um impulso e ímpeto que despertaram uma vontade de ir avante. Seu
direcionar-se para onde for, a qualquer preço, supõe uma impetuosa e perigosa curiosidade
por um mundo inexplorado. Arrebata-lhe ao mesmo tempo o pavor e a premonição contra
tudo aquilo que ama, desprezo ao “dever”, desejo tumultuoso e arbitrário, estranhamento,
vergonha e regozijo pelo que tem feito até então. Seu júbilo denuncia uma vitória que não
sabe sobre que ou quem. Ao mesmo tempo, acomete-o uma doença que exigirá uma longa
convalescença, para a qual se receitará saúde em pequenas doses. Será experimento de uma
cura radical contra todo pessimismo. Talvez, antes mesmo de alcançada a “grande
saúde”
100
, uma saúde ainda impetuosa possa desvendar o enigma daquele “grande

98
Idem, p 108
99
NIETZSCHE, Humano Demasiado Humano Prefácio§3, [R p 87]
100
Sobre esse tema, NIETZSCHE, A Gaia ciência, § 382. Destacamos aqui: “Nós, os novos, os sem nome, os
difíceis de entender, nós, os nascidos cedo de um futuro ainda indemonstrado _ nós precisamos, para um
42
livramento”. Assim é com ousadia que pergunta sobre o porquê de tanta solidão e renúncia;
pergunta em voz alta – fala – e já ouve algo como resposta.
“Devias tornar-te senhor de ti [...] devias tantas ou quantas coisas
que somente agora já sabes a que devias obedecer, somente agora o espírito
livre pode, somente agora lhe é permitido...”
101
A descrição do livramento, conforme ocorre com o “espírito livre” e que
recolhemos acima, é, como já dissemos, apresentada no Prefácio de 1886 de Humano
Demasiado Humano. É possível de ser relacionada a Zaratustra à medida que Nietzsche
dirá que “o autor de Humano demasiado humano é o visionário de Zaratustra”
102
.Aliás, o
referido prefácio é imediatamente posterior a Assim falou Zaratustra: Um livro para todos
e para ninguém (1883-1885). Por outra parte, mesmo adotando diferentes estilos nestes
dois textos, Nietzsche mantém uma linguagem criativa e forte que se dobra sobre o texto já
escrito. No Zaratustra, o livramento do espírito forte de Zaratustra em sua própria saga, e
logo no Prefácio, quando o “espírito livre” decifra o enigma de seu livramento e
universaliza seu caso.
Nesse mesmo Prefácio de 1886, Nietzsche expõe a condição de seus escritos diante
de seus contemporâneos: “uma escola de suspeita, mais ainda, de desprezo, mas felizmente
também de coragem e mesmo de temeridade.”
103
. A incompreensão e solidão são,
precisamente, aquelas que lhe impõem uma necessidade premente: “a crença de não ser o
único a ser assim, o único a ver assim _ uma mágica premonição de parentesco e
igualdade de olho e de desejo...” Relata então seu momento de criação e descanso:
“E quem adivinha algo das conseqüências que se alojam em toda
suspeita profunda, algo dos calafrios e angustias do isolamento aos quais,
toda incondicional diferença de olhar condena os que são acometidos dela,
[...] para descansar de mim, como que para um temporário auto-

novo fim, também de um novo meio, ou seja, de uma nova saúde, de uma saúde mais forte, mais engenhosa,
mais temerária, mais alegre, do que todas as saúdes que houve até agora.” [R p 222]
101
NIETZSCHE, Humano demasiado humano, I, Prefácio §6, [R p 89].
102
NIETZSCHE, Ecce Homo, Porque sou tão sábio, §4, [P p 43]
103
NIETZSCHE, Humano demasiado humano, I, Prefácio §1, [R p 85].
43
esquecimento, procurei abrigar-me em alguma parte [...] onde não
encontrei aquilo que precisava, tive que conquistá-lo artificialmente,
falsificá-lo, criá-lo ficticiamente para mim (... e que outra coisa fizeram
jamais os poetas? E para que existiria toda arte no mundo?)”
104
Foi assim que Nietzsche descreveu sua necessidade de criação fictícia, poética e
artística ao mesmo tempo. Assim podemos dizer:
Nietzsche criou “espíritos livres”, criou Zaratustra.
Já em seu escrito autobiográfico de 1888, Ecce Homo: como alguém se torna o que
é, Nietzsche, assim como Zaratustra, aparece como um homem privilegiado em uma
situação privilegiada. Nesta situação, descreve a inspiração como uma revelação que ocorre
no instante. Tal como acontece, a visão-e-enigma no
PORTAL “INSTANTE”,
(AUGENBLICK)
tratar-se-ia de um piscar de olhos, como também seria o ponto crítico nos
caminhos de Zaratustra. Este momento mais longo, ou melhor, mais intenso, indica um
corte no tempo relativamente curto, qualquer que seja sua duração, que incide com
necessidade e forma próprias. Constituiria um momento de atenção no qual se aplicam o
entendimento e os sentidos:
A noção de revelação, no sentido de que subitamente, com inefável
certeza e sutileza, algo se torna visível, audível, algo que comove e
transtorna no mais fundo, descreve simplesmente o estado de fato. Ouve-se,
não se procura; toma-se, não se pergunta quem dá; um pensamento reluz
como relâmpago, com necessidade, sem hesitação na forma _ jamais tive
opção. Um arrebatamento, um abismo de felicidade, onde o que é mais
doloroso e sombrio não atua como contrário, mas como condicionado,
exigido, como uma cor necessária em meio a tal profusão de luz; um instinto

104
Idem, ibdem
44
para relações rítmicas que abarca imensos espaços de formas _ a longitude,
a necessidade de um ritmo amplo é quase a medida para a potência da
inspiração, uma espécie de compensação para a pressão e tensão... Tudo
ocorre de modo sumamente involuntário, mas como que em um turbilhão de
sensações de liberdade, de incondicionalidade, de poder, de divindade...”
105
.
Podemos repetir com relação a Zaratustra, que de algum modo ele se prepara para
esse momento, porém acrescentando que ele não sabe realmente para que ou por que ele se
prepara até que aquilo ocorra.
Neste sentido, a reflexão de Nietzsche em Ecce Homo pode nos auxiliar. Segundo o
aforismo 9 de “Porque sou tão esperto”
106
, “Que alguém se torne o que é pressupõe que
não suspeite se quer remotamente o que é.”
107
Nesse caso, trata-se do amor de si, como
arte de preservação, cuidado e cultivo de si. Seria segundo essa perspectiva que, de certo
modo, justificam-se os desacertos da vida, desvios, adiamentos, modéstias, desperdícios,
também os impulsos “desinteressados”. Por isso, Nietzsche poderá considerar que o amor
ao próximo, como prudência e proteção, trabalham a serviço do amor de si. “Não suspeitar
o que se é” é uma proteção no caso em que a tarefa e seu destino possam ultrapassar a
medida ordinária; o maior perigo seria perceber-se com a tarefa. Há o perigo do instinto “se
entender” cedo demais, pois é necessário que como uma precondição, uma longa e secreta
lavra e arte do instinto, faça crescer, na profundeza, a “idéia” organizadora. Ela estaria
destinada a dominar, mas começa por ordenar e preparar qualidades e capacidades
singulares que se mostrarão indispensáveis ao todo. Por isso, na descrição nietzscheana, a
“idéia” organizadora constrói faculdades e antíteses de faculdades, hierarquizando-as,
distanciando-as, separando-as sem incompatibilizá-las. Não mistura, não concilia, um jogo
de forças possibilita a coexistência de uma multiplicidade não caótica. Conforme o que

105
NIETZSCHE, Ecce Homo, Assim falou Zaratustra §3. [P p 85/86]
106
NIETZSCHE, Ecce Homo, Por que sou tão esperto, nome dado ao capítulo na tradução de Rubens
Rodrigues Torres Filho. Entretanto, o §9 não se encontra nessa publicação, por isso a citação seguinte tem
referência conforme indicamos na nota seguinte.
107
NIETZSCHE, Ecce Homo, Por que sou tão inteligente §9 [P pp 48/49]
45
ocorre com Zaratustra, e voltando essa experiência como dobra sobre o próprio “caso
Nietzsche”, podemos dizer que seu destino, cuja tarefa é a de transvaloração dos valores,
revelou-se de tal maneira forte que, ele próprio, não a pressentiu. Simplesmente todas as
suas capacidades brotaram um dia, subitamente maduras e em sua perfeição última.
Como um testemunho próprio de Nietsche, paralelamente ao desconhecimento
anterior à revelação da tarefa de Zaratustra, ele poderá afirmar: “‘Querer’ algo, ‘empenhar-
se’ por algo , ter em vista um ‘fim’, um desejo – nada disso conheço por experiência
própria.”
108
Encontramos assim, em ambos os escritos acima citados aquilo que de outra
forma já havia sido posto por Humano Demasiado Humano : “Nossa destinação dispõe
sobre nós, mesmo quando ainda não conhecemos: é o futuro que dita a regra de nosso
hoje.”
109
O “acontecimento de livramento” pode ser encontrado em um outro texto de
Nietzsche, que recolhemos aqui de modo a complementar esse aspecto de nossa leitura.
Trata-se do aforismo 68 de Aurora
110
(1880-1881), no qual Nietzsche
conta a história de uma alma, Paulo, o Apóstolo do cristianismo,
constituindo uma interpretação que transforma Paulo no “primeiro cristão, o
inventor do cristianismo!”. Paulo, um homem ambicioso, ardoroso guardião
da lei judaica, perseguidor e combatente de seus transgressores, teria
experimentado em si que ele próprio era incapaz de cumpri-la.
Possivelmente a incapacidade de cumprimento devia-se à “carnalidade” que
lhe pesava em sua consciência e à sua sede de dominação. Mais do que isso,
existe a possibilidade que sua transgressão proviesse da lei mesma que se
fazia impossível de cumprir e o induzia de modo irresistível. O aforismo nos
diz que, com respeito à lei, ele a odiava e procurava, sem saber, não mais
cumpri-la, aniquilá-la. Nessas condições, “com seu íntimo mortalmente
cansado” da lei, em um momento de solidão, e através de uma iluminação
do pensamento, Paulo teria experimentado a visão de Cristo e da luz divina,

108
Idem, [P p 49]
109
NIETZSCHE, Humano demasiado humano, Prefácio §7 [R p 90]
110
NIETZSCHE, Aurora, § 68, O primeiro cristão. [R p165-6] [P p 52-55].
46
ouvindo a pergunta: Por que me persegues? Paulo teria obtido sua resposta.
Sua vingança encontrou o aniquilador da lei e com ele, tornando-se um com
Cristo, tornar-se-ia também aniquilador da lei. Venceria a culpa e também a
carnalidade estaria morta, ou se encontraria “à morte como que em
decomposição”. Para Paulo, agora o mais feliz dos homens, essa inspiração
e solução de enigma teria como conseqüência “descomunal” o destino dos
homens. A partir daí, giraria em torno dele a história, tornar-se-ia um com
Cristo, tomaria parte com Ele dos resplendores divinos.
Dessa narrativa, podemos destacar daquele
INSTANTE de inspiração de Paulo os
mesmos elementos dos
INSTANTES já assinalados em Zaratustra e em Nietzsche. Em todos
os casos, o ponto crítico de movimentação de forças é um fator opressor externo. De um
modo geral, há a solidão e o abandono
111
; a rejeição; a transgressão da lei, lei essa que
pressupõe valores relativos à moral, à religião, ao estado ou até mesmo à linguagem.
Mesmo diferencialmente existe a formação interior de um complexo organizador gerado
por um jogo de forças múltiplas que se hierarquizam. Temos também o desconhecimento
desse processo até que se revele como inspiração, solução de enigma e libertação. O riso e a
felicidade que advém após a vivência do INSTANTE são comuns aos casos elencados. O
acontecimento que ocorre a um homem e seu destino e, a partir dele, à história de um povo
e à humanidade, também seria um elemento relacional desses casos.
Porém, é importante ressaltar o que nos parece ser um ponto diferencial desses
acontecimentos. A diferença diz respeito à vontade. Segundo Nietzsche, aquela vontade que
liberta teria que ter a mesma configuração que se efetivará através da vontade criadora,
caso contrário o libertador converte-se em um malfeitor, e a vontade torna-se vingança e
castigo. Podemos dizer que, será só com Zaratustra e seus ensinamentos que se tornará
possível outra perspectiva:

111
Em Zaratustra III, “Do regresso à casa”, em um diálogo com Zaratustra, a solidão mostra como se
diferencia do abandono vivenciado por ele: “Uma coisa é abandono, e outra coisa distinta, solidão. Isto hás
aprendido agora! E que entre os homens serás tu sempre selvagem e extranho: _selvagem e extranho ainda
quando te amem pois o que eles querem é que os trate com indulgência!” [S p 261]
47
“Pois que o homem seja redimido da vingança: esta é para mim a
ponte para a mais alta esperança e um arco-íris depois de longas
intempéries.”
112
Zaratustra poderá então falar de um novo céu:
“Essa liberdade e serenidade celeste pus eu, igual a uma campânula
de azul, sobre todas as coisas, quando ensinei que sobre elas e através delas
nenhuma “vontade eterna” _ quer.”
113
Essa “vontade eterna”, possível agora de ser vislumbrada como aquela que não pode
querer advém, segundo nossa leitura, do “grande acontecimento”que começa a lançar suas
sombras: a morte de Deus. Isso ainda seria para poucos cujos olhos, cuja suspeita nos
olhos é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, parece justamente que algum sol
se pôs”
114
. Muitos já sabiam que a queda na crença do Deus cristão fez que caísse tudo o
que estava edificado sobre ela. Para os profetas do ensombrecimento, ela se apresenta como
ruptura, destruição, declínio e subversão. Inversamente, só para aqueles decifradores de
enigmas, postados entre o hoje e o amanhã e sua contradição, para os primogênitos e
prematuros do século vindouro, será possível dizer, como também para Nietzsche, as
conseqüências desse acontecimento:
“... são como uma nova espécie, difícil de descrever, de luz,
felicidade, necessidade, encorajamento, aurora... De fato, nós filósofos (do
porvir) e ‘espíritos livres’ sentimo-nos, à notícia de que ‘o velho Deus está
morto’, como que iluminados pelos raios de uma nova aurora; _ eis que
enfim podemos lançar outra vez [...] o mar, nosso mar, está outra vez
aberto, talvez nunca dantes houve tanto ‘mar aberto’.”
115
Dessa maneira, é o “grande acontecimento” que possibilita a grande libertação.
Libertação que teria que ser entendida como restabelecer a inocência do vir-a-ser. Ao negar

112
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, II, Das tarântulas, [R p. 236] [S p 155]
113
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, II, Antes do nascer do sol, [S p 239]; [cit R nota 7 p. 211]
114
NIETZSCHE, Gaia Ciência, §343, [R p.211-212]
115
Idem, ibdem
48
Deus, negou-se a responsabilidade em Deus; assim não há que responsabilizar quem ou o
que quer que seja. Resta talvez um único ensinamento:
“É-se necessariamente, é-se um pedaço de fatalidade,pertence-se ao
todo, é-se no todo. – não há nada que pudesse julgar, medir, comparar,
condenar nosso ser, pois isso significaria julgar, medir, comparar, condenar
o todo....Mas não existe nada fora do todo!”
116
Por isso, Nietzsche considera que não há como querer arremessar a um fim, nem
tampouco reconduzir a uma causa prima.
117
O que restou? O homem que se tornou livre, o espírito que se tornou livre. Mas o
homem livre é um guerreiro, e necessariamente forte. Liberdade significará para ele ter
vontade de responsabilidade própria. Como um compromisso ao porvir, o homem tornado
livre terá domínio sobre outros instintos, até mesmo sobre a liberdade, constituir-se-á em
exemplo da hierarquia dos instintos. Acrescente-se que essa liberdade será medida segundo
a resistência a ser superada e segundo o esforço que custe permanecer acima. Dessa
maneira, o tipo mais alto de homem livre será o guerreiro de uma guerra de alto nível.
Guerra do novo valor que ele mesmo cria e opõe aos velhos valores ainda vigentes.
Segundo as palavras de Nietzsche, a liberdade encontra-se onde “constantemente é
superada a mais alta resistência: a cinco passos da tirania, rente ao limiar do perigo da
servidão”.
118
. Em suma, entende-se liberdade como “algo que se tem e não se tem, que se
quer, e que se conquista”.
119

116
NIETZSCHE, Crepúsculo dos Ídolos §8. [R p.335]
117
Idem, ibdem
118
Idem, §38. [R p 340-341]
119
Idem, ibdem
49
O PORTAL “INSTANTE”
Um recurso de linguagem, imagem e mito
Para desenvolver o aspecto da linguagem no PORTAL INSTANTE, faz-se necessário,
preliminarmente, obtermos uma compreensão, ainda que geral, da linguagem em Nietzsche.
Observaremos como a linguagem se configura em seus escritos e a relevância que ela
adquire como tema e instrumento na elaboração da “filosofia nietzscheana”. Nesse sentido,
relacionaremos determinados aspectos do problema da linguagem em Nietzsche e da
linguagem em Platão como indícios materiais da presença desses pensadores no cenário
filosófico. A nosso ver, Platão e Nietzsche constituem, eles próprios, “acontecimentos”.
Platão marcando o início de um modo de pensamento e formação de uma tradição filosófica
e, Nietzsche assinalando o rompimento dessa tradição mediante a transmutação de seus
critérios, idéias e valores.
Não por acaso, assinala-se o nascimento da filosofia ocidental a partir do
ensinamento socrático em grande parte registrado e preservado nos diálogos platônicos,
ainda que se observe a distinção feita por estudos históricos e filológicos. De modo geral,
são delimitados como “socráticos” os “diálogos de juventude” de Platão, cujas idéias são de
Sócrates. Denominam-se “clássicos” aqueles da maturidade e da velhice, os quais seriam
propriamente de Platão, mesmo que Sócrates apareça como personagem porta-voz de
Platão. Optamos aqui por não considerar a polêmica distinção entre Sócrates e Platão
presente nas indicações de Nietzsche. Isto se constituiria em outro complexo estudo que, no
entanto, nos afastaria do presente trabalho, e tal precisão não seria necessária. Nesse
sentido, adotaremos o conjunto da obra que reúne os diálogos platônicos como contraponto
de “um diálogo”, que observamos presente no pensamento de Nietzsche.
Os diálogos apresentam-se como a forma literária que melhor expõe a dialética
como método de conhecimento, no qual o pensamento filosófico é elaborado por meio do
embate de opiniões contrárias; a discussão opera, assim, uma purificação dos conceitos para
50
a construção do conhecimento verdadeiro. No “diálogo”, o papel do filósofo seria
“orientar” seu interlocutor, elaborando perguntas que levem o pensamento ao encontro da
verdade. Para o Platão do Menon, por exemplo, Sócrates, após ter conseguido que o escravo
acompanhasse a demonstração do teorema, dirige-se ao seu interlocutor:
“Ora, se antes e durante sua vida este escravo nada aprendeu, é
porque nele há conhecimentos que despertos pela interrogação, se
transformam em conhecimentos científicos. É certo, pois, que sua alma
sempre os possuiu. (86a)”
120
Dessa maneira, mesmo nesse diálogo aporético, Platão estaria afirmando a eficácia
do diálogo e também a possibilidade de alcançar o conhecimento verdadeiro.
Dentre os critérios de desenvolvimento da dialética platônica, destacamos a
pergunta pelo “o que é?” como preocupação primeira para a obtenção do conhecimento da
essência das coisas. No próprio Menon, Platão afirma “Antes de saber como algo é,
devemos saber o que é”.(70a–71d). Ficariam assim eliminadas as investigações
aproximativas que conduziriam a uma definição pela diferença ou por uma enumeração. É
em relação à pergunta filosófica “o que é?” que encontramos um forte distanciamento de
Nietzsche. Isso no sentido de que a perspectiva nietzscheana estaria direcionada a
transvalorar temáticas e critérios platônicos, trabalhando-os diferencialmente a partir do
critério do “como?”. Conforme observa Muñoz
121
, seria por intermédio deste último
critério que se mostraria o “funcionamento”, afastando-se da procura da essência e
aproximando o pensar filosófico da efetividade. Nietzsche estaria assim realizando um
caminho inverso à aproximação da Idéia como essência.
122
Além de utilizar diretamente a pergunta “o que é?”, Platão recorreria ao mito e à
alegoria, adaptados ou inventados, como reforço de sua busca racional da verdade. Ao
mesmo tempo que utiliza uma linguagem mais familiar e acessível a seus interlocutores,

120
PLATÃO, Menon, (86a) Registre-se a primeira exposição da teoria da reminiscência.
121
Yolanda Glória Gamboa Muñoz, Professora do Depto. De Filosofia da PUC/SP. Autora de Escolher a
montanha. Os curiosos percursos de Paul Veyne. Orientadora da presente dissertação
122
MUÑOZ, Y G G, Transvalorar Critérios Platônicos? Margem (PUC/SP) São Paulo, v 16 pp 261-267,
2003
51
Platão critica os poetas por tomarem, equivocadamente, a narrativa do mito como
exposição da verdade, reportando-se então ao verossímil.
Jean-François Mattei
123
em Platon
et le miroir du mythe observa que, nos diálogos de Platão, é o mito que une inicialmente e
de modo inextrincável, a palavra e a escritura, o olhar e o escutar. Na República (596c), ele
destaca que na forma de um espelho, o mito produz “tudo aquilo que existe no céu e ao
mesmo tempo as realidades do mundo subterrâneo.” Como um espelho, o mito revela a
estrutura mimética a partir da qual se elabora a teoria platônica do conhecimento.
124
Giles Deleuze
125
por sua vez, em “Platão e o Simulacro”, reporta-se ao método da
divisão platônica dos últimos diálogos (Sofista, Político). Para ele, é a divisão que
efetivamente mostraria o projeto platônico, como um distinguir a “coisa” mesma de suas
imagens, pois é realizada em profundidade, como semelhança interna, que permite a
seleção eliminatória. Por outra parte,
“É próprio da divisão ultrapassar a dualidade entre o mito e a
dialética e reunir em si a potência dialética e a potência mítica. O mito com
sua estrutura sempre circular é realmente a narrativa de uma fundação.”.
126
Dessa maneira, para Deleuze, o mito erige o modelo.
Na República, além do mito do anel de Giges, encontramos, entre outros, a alegoria
da caverna e o mito de Er. Na alegoria da caverna,situa o filósofo como aquele que sai e
retorna à caverna tendo contemplado a luz. Em seu mito, Er retorna do Hades não-
esquecido (alethéia). De maneira que, aquele cuja alma teve a visão inteligível da verdade,
na volta ao mundo sensível sabe que o único caminho do filósofo e da filosofia é o percurso
da transfiguração que vai da sombra à luz. A sombra que aqui designa certo grau de
ignorância refere-se, mais especificamente em Platão, à ingenuidade, devida ao fato dos
homens não pensarem a distinção aparência / realidade oriunda da separação de mundo

123
Jean-François Mattei (1941- ) filosofo membro do Institut Universitaire de France, professor de filosofia
na Universidade de Nice Sofia-Antipolis, Cavaleiro da Legião de Honra. Autor de L’order du monde: Platon,
Nietzsche, Heidegger
124
MATTEI, J-F, Platon et le miroir du mythe, Paris, Quadrige/PUF, 2002. contracapa
125
Gilles Deleuze (Paris, 1925) Crítico, filósofo e autor, dentre outras obras, de Nietzsche e a filosofia,
Nietzsche e Foucault.
126
DELEUZE, A lógica dos sentidos, “Platão e o Simulacro”, p 259ss.
52
sensível / inteligível (supra-sensível).
127
Nesses mundos respectivamente, no primeiro
(sensível e aparente) vive o homem, seu corpo; do segundo (inteligível e verdadeiro)
participa sua alma imortal, ainda que presa ao corpo. Lembremo-nos aqui da perspectiva
diferencial de Nietzsche nos “Depreciadores do corpo”, cuja contrapartida como
valorização do corpo, seria considerá-lo a grande razão
“... corpo sou eu integralmente, e nenhuma outra coisa; e alma é só uma
palavra para designar algo no corpo. [...] O corpo é uma grande razão,
uma pluralidade dotada de um único sentido, uma guerra e uma paz, um
rebanho e um pastor.”
128
Limitando-nos ao âmbito da linguagem, a respeito do diferencial entre Platão e
Nietzsche, poderíamos destacar a noção citada de “verossímil”, que em Platão constitui um
fator de condenação da retórica. Sua filosofia estabeleceria uma luta contundente contra a
sofística, a poesia, a arte e a eloqüência. Para Platão, a retórica, mais do que fútil, tornara-se
perigosa (giro socrático). Entretanto, de acordo com Paul Ricoeur
129
, em A metáfora viva, a
filosofia jamais teria estado em condições de destruir ou mesmo absorver a retórica, uma
vez que o discurso filosófico, ao pretender a verdade, ficava excluído da esfera do poder -
tribunais, assembléias e jogos públicos - que seriam lugares próprios ao exercício da
retórica. Em certa medida, caberia à filosofia desmontar a relação entre discurso e poder.
Permanecendo, em todo caso, a possibilidade de delimitar os usos da palavra de
poder, seria somente com a Retórica que Aristóteles lograria um modo de legitimá-la a
partir da filosofia. Ainda segundo Ricoeur, Aristóteles elabora o vínculo entre o conceito
retórico de persuasão e o conceito lógico de verossímil, construindo, sobre essa relação,
uma retórica filosófica. Cabe destacar que nesta retórica filosófica a teoria do verossímil
seria a reguladora contra os abusos da retórica; abusos que ela realiza em suas deliberações

127
LEBRUN, Gerard, “Sombra e Luz em Platão”, in NOVAES, Adauto org, O Olhar São Paulo, Cia. das
Letras, 2006. pp 21-30, p 27
128
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, I Dos deprecíadores do corpo, [S p 64-66].
129
Paul Ricoeur (1973-2005) Acadêmico na Universidade de Sorbonne, professor nas universidades de
Louvaina (Belgica) e Yale (EUA). Entre suas obras: Histoire et verité. Soi-même comme un autre.
L’hermenéutique biblique.
53
sobre as coisas humanas ou particulares que não são suscetíveis à necessidade ou ao
universal.
130
A partir das questões referentes à retórica acima mencionadas, observamos que se
produz um novo distanciamento de Nietzsche com relação aos diálogos platônicos. Este
distanciamento viria somar-se à já referida substituição das indagações filosóficas “o que
é?” por “como?”. Para Nietzsche, em seu processo de busca de uma explicação
genealógica da filosofia, o problema da linguagem teria se mostrado como um polarizador
das questões gerais. A nosso ver, isso teria resultado afinal para além de um
distanciamento, em uma ruptura dentro da história da filosofia. A perspectiva de Nietzsche
compreende o desenvolvimento da filosofia como determinado, em grande medida, pela
linguagem em seus aspectos de origem, fundamento inconsciente, valor artístico, força
instintiva, caráter figurativo e trópico e, sobretudo em sua força e poder. Dessa form,a
configurar-se-ia um “giro retórico” no pensamento nietzscheano; giro que posteriormente
se refletiria no campo da filosofia quando o problema da linguagem passa a ser mais
centralizado, marcando um “giro lingüístico”
131
. Sobre esse aspecto também a leitura de
Foucault
132
viria afirmar que “Nietzsche foi o primeiro em concertar a tarefa filosófica com
sua reflexão radical sobre a linguagem.”
133
Se o nome Platão suscita uma referência obrigatória à fundação da Academia e aos
“Diálogos”, é porque na Academia, como lugar da filosofia, Platão formava seus
discípulos. Formação realizada por intermédio da tradição oral, dirigida a seletos
discípulos-interlocutores, que presenciavam diretamente seus diálogos. Quanto ao seu
legado escrito, este será destinado aos discípulos-leitores que acabarão sendo conduzidos à
distância e passivamente pela dialética platônica. O próprio Nietzsche, em seu curso de

130
RICOEUR, P. A metáfora viva, Estudos I, pp17 ss.
131
Guervós considera que existe maior dinamismo desse processo nietzscheano entre os anos de 1869 com As
origens da linguagem e 1873 com Verdade e mentira no sentido extramoral. NIETZSCHE, Escritos sobre
Retórica. Edición y traducción de Luis Enrique de Santiago Guervós. Madrid, Editorial Trotta, 2000.p 11
132
Michel Foucault (1926-1984) Filósofo. Professor no Collège de France. Autor entre muitos outros de:
História da sexualidade. A ordem do discurso. Microfísica do poder
133
FOUCAULT, As palavras e as coisas, p 297. trad Salma Tannus Muchail. São Paulo, Martins Fontes,
1955
54
1881
134
, sublinha o papel da Academia e estuda a filosofia de Platão como a expressão do
“homem Platão”. Com relação à formação de discípulos, Nietzsche dirá pela boca de
Zaratustra, que não os deseja:
“Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa Zaratustra!
Sois os meus crentes, mas que importam todos os crentes! Ainda não vos
havíeis encontrado a vós mesmos: então, me achastes. Assim fazem todos os
crentes; por isso, valem tão pouco todas as crenças”
135
.
Com relação aos seus leitores, diversamente, o Nietzsche dos primeiros textos
pretenderia um leitor atento e não um entusiasta
136
.
Em escritos posteriores, Nietzsche irá desejar que o leitor seja ativo frente a uma
nova modalidade de texto propiciada por um estilo, do qual passa a se utilizar com grande
freqüência, o estilo aforístico. Nesse sentido, é pertinente assinalar que o aforismo, como
determinação escrita, carrega certo grau de “violência”. Veladamente ele se distribui num
leque de ações, de naturezas várias: contém poderes de sedução, distanciamento, agressão,
conquista, se impõe e subjuga; como uma partitura varia os tempos, acelera e retarda;
produzindo uma gama de tonalidades no leitor. O tom dessa agressividade faz ressoar uma
“natureza forte”.
137
Nietzsche efetiva essa natureza forte, por exemplo, em sua “prática de
guerra”, na qual preza seu inimigo em sua capacidade de oferecer resistências fortes e
hábeis. Dessa forma, o inimigo constitui uma espécie de medida. Também pode se situar,
neste sentido, autor e leitor em condições de igualdade, formando partes de um duelo
honesto.
138
É precisamente essa postura que inscreve o afastamento de Nietzsche da
dialética platônica. Segundo a perspectiva de “O Problema de Sócrates”, em que o filósofo
dialético despotencializa o interlocutor:

134
NIETZSCHE, Introducion a l’étude des dialogues de Platon, trad e apres. Olivier Berrichon-Sedeyn,
Polemos, 1998.
135
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, §I, Da virtude que dá, [S p 126]
136
LEBRUN, Por que ler Nietzsche hoje?, in Passeios ao léu, p 40
137
No original: “eine starke Natur”, Ecce Homo, Frankfurt, Inseltaschenbuch, Inselverlag, 1977, Warum Ich
so Weise bin §7, p 50
138
NIETZSCHE, Ecce Homo, Porque sou tão sábio §7, p 31.
55
“O dialético deixa para seu adversário o ônus de provar que não é
um idiota: enfurece, e ao mesmo tempo desampara.”
139
A dificuldade na aceitação dos escritos de Nietzsche, em que predomina a forma
aforística, está ligada em parte a uma maneira preconceituosa de estabelecer a aproximação
com seus textos. Talvez o maior obstáculo seja sua forma fragmentária que é associada à
idéia de uma multiplicidade de “máscaras”, capaz de dissolver sua identidade. Assim, o
leitor desconsidera a possibilidade de constituir uma unidade capaz de abraçar a pluralidade
que exibem estilos e pensamentos de Nietzsche. A esse respeito podemos obter
contestações diretas em seus próprios escritos. Primeiramente é possível recolher de
Humano Demasiado Humano a expressão: “Crês que deve ser obra fragmentária porque
se oferece (e se deve oferecer) em pedaços?”
140
Num segundo momento, e já em outro
nível, é pertinente destacar a seguinte consideração da Genealogia da Moral:
“Bem cunhado e modelado, um aforismo não foi ainda decifrado, ao
ser apenas lido: deve ter início então, a sua interpretação, o que requer uma
arte de interpretação.”
141
Além disso, no Prefácio de Humano Demasiado Humano, ou seja, em outra
circunstância e de maneira mais incisiva, Nietzsche dirá que seus textos conteriam
“laços e redes para pássaros incautos, e quase que um constante e
desapercebido incitamento à inversão de estimativas habituais de valor e de
hábitos estimados”.
142
Diante de tais colocações, esboça-se, como uma possibilidade de compreender
Nietzsche, refutar impressões sucessivas de leitura, desemaranhar o falso sentido sugerido
ao leitor apressado, arrancar a máscara que ainda se oculta por debaixo daquela que se fez
cair a um instante. Se de um aforismo se recolhem somente uma ou duas “verdades”, é

139
NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, O problema de Sócrates §7, [R p 329]
140
NIETZSCHE, Humano Demasiado Humano, II Miscelâneas de opiniões §128. p 243
141
NIETZSCHE, Genealogia da Moral, Prefácio,§8 [P p.14]
142
NIETZSCHE, Humano Demasiado Humano, Prefácio, [R p 85]
56
porque se “negligencia o fragor das idéias e as miríades de centelhas que elas
deixam...”.
143
Daí que o Nietzsche dos primeiros textos dirija-se ao homem que
compreende o segredo de ler as entrelinhas e reflete sobre aquilo que foi lido mesmo depois
de terminada a leitura:
“Você é meu leitor, pois será calmo o suficiente para seguir um
longo caminho com o autor, cujas metas não pode ver, nas quais deve
acreditar honrosamente.”
144
A criação da leitura e da escritura nietzscheana, a nosso ver, tem já em seus vários
estilos um componente diferencial que constitui a especificidade de sua “obra”
145
, de modo
que ela pode ser considerada o fator diferencial do cenário nietzscheano.
Torna-se necessário assinalar a seguir o modo como Nietzsche elabora seus
escritos. Para isso, nossa escolha, a título de exemplo, recairá sobre os Escritos sobre
Retórica (1872-1875). Segundo nossa leitura, Nietzsche trataria nesse trabalho de descrever
rigorosamente uma teoria que pertence aos antigos gregos e romanos. Ele o faz como bom
filólogo clássico, com reconhecido domínio da análise de suas fontes, ao mesmo tempo em
que por meio de uma “apropriação”, possibilita novos “modelos” de interpretação. Essa
apropriação se expressaria mediante um exercício hermenêutico, no qual Nietzsche deixa
falar a tradição e entra em diálogo com ela, considerando a situação e o horizonte em que
ela se encontra. Some-se a esse processo, uma extraordinária capacidade de Nietzsche para
assimilar e “ruminar”
146
conceitos e idéias de outros pensadores. A partir de sua leitura,

143
LEBRUN, Gerard, Por que ler Nietzsche, hoje? , in Passeios ao léu. p 34
144
NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, II Prefácio pp 46/47.
145
Ao nos referirmos a “obra” de Nietzsche consideramos não só os escritos publicados por ele, mas também
os fragmentos póstumos e a correspondência, por acreditarmos serem caminhos válidos para desvendar suas
idéias. Partilhamos do pensamento de Müller Lauter para quem a filosofia de Nietzsche “dá-se ao leitor
enquanto reflexão incessante em permanente mudança” e mais ainda, “põe-se como vir-a-ser”. [ cit in.
SCARLLET, Extravagâncias, “A terceira margem da interpretação”, p 251].
146
No ruminar e no afastamento do sistematizar, já encontraríamos o diferencial do pensamento nietzscheano
frente à filologia e à filosofia, materializado em sua escrita. Desde sua própria leitura dessa escrita, caberia ao
leitor de Nietzsche: ruminar (GM Prólogo, p 15) (desmontar, dissolver, reunir, rearranjar...). Em Ecce Homo,
Nietzsche diz conhecer em alguma medida suas prerrogativas como escritor. De outra forma teria dito em
uma outra versão do mesmo capítulo: “Meus escritos dão trabalho [...] Para se compreender a linguagem
mais concisa jamais falada por um filósofo _ e além disso a mais pobre em cliches, a mais viva, a mais
artística _ é preciso seguir o procedimento oposto.” [Ecce Homo, Porque escrevo tão bons livros, p 55, nota
do tradutor 36, p 125]
57
elabora, transforma e leva até as últimas conseqüências as informações contidas em suas
fontes, convertendo distintas apropriações em “idéias novas”. Proporciona-lhes, assim, uma
estampagem original configurando uma nova forma para as referidas informações. A partir
desse ponto de vista, é possível dizer que Nietzsche “controla” e seleciona suas fontes
constituindo um mosaico e acrescentando o crivo do oportuno para criar seu próprio texto.
De outro modo, pode-se dizer que recorre à “intertextualidade” como modo de criar novas e
surpreendentes significações, a partir da apropriação seletiva de textos consagrados pela
tradição, ou até mesmo de argumentos de adversários, destacando-lhes o sentido original.
147
A partir deste mesmo exemplo, cabe destacar que o material recolhido de suas
fontes sobre a retórica será utilizado por Nietzsche com fins nitidamente filosóficos, por um
lado, constituindo um instrumento para desconstruir as pretensões da teoria do
conhecimento tradicional sobre a qual se fundamenta a metafísica; e por outro, para
potencializar o sentimento artístico da linguagem, mediante o processo de sua
metaforização.
Na produção de seus escritos, Nietzsche considera que “Bom é todo estilo que
realmente comunica um estado interior, que não se equivoca nos signos, no tempo dos
signos, nos gestos”.
148
Nietzsche encontra, em si mesmo, uma extraordinária multiplicidade
de estados interiores como possibilidades diversas de estilo. Seu estilo mutante permite, por
exemplo, que sua preocupação com o leitor passe a ser cada vez mais sutil, como se
percebesse que o leitor se encontra preso nas armadilhas da linguagem. Também o estilo
indica como o leitor não mais se vincula a Nietzsche como discípulo. O estilo, a arte de
tempo, gestos e ritmos entendidos mesmo como andamento musical, pressupõe ouvidos
prontos para escutar essa música. Zaratustra a princípio os procura, pois traz uma nova
mensagem. Trata-se do início de Zaratustra e não de Nietzsche. Nietzsche sabe que não
está no tempo de encontrar bons ouvidos. Para ele, o estilo alemão não se liga ao som ou à
preparação dos ouvidos, muito menos à música; o alemão não lê em voz alta, somente com
os olhos; ele perde os crescendos, inflexões, mudanças de tom e variações de ritmo; perde a
arte e a intenção da linguagem, diferente da “Antiguidade”, em que as leis do estilo escrito

147
GIACOIA JR., Oswaldo, Nietzsche, p 54.
148
NIETZSCHE, Ecce Homo, Porque sou tão sábio, §4, p 57.
58
eram as mesmas que as do estilo falado, dependendo de um lado do desenvolvimento das
refinadas exigências do ouvido e da laringe, e de outro parte da força, da duração e da
potência dos pulmões antigos.
149
De acordo com Nietzsche, tampouco Maquiavel
150
poderia
ser imitado pela língua alemã:
Maquiavel “expõe o assunto mais sério num indomável allegrissimo
– talvez com maliciosa percepção artística do contraste que ousa: os
pensamentos difíceis, prolongados, duros, perigosos, e um tempo de galope
e de bom humor mais caprichoso”
151
.
Para Nietzsche, a língua alemã é praticamente incapaz do presto e em decorrência o
alemão também seria incapaz de muitas das nuances mais temerárias e deliciosas do
pensamento livre, próprias de espíritos livres. Para Nietzsche, antes dele não se sabia o que
podia ser feito com a língua alemã.
“A arte do grande ritmo o grande estilo dos períodos para expressar
o imenso fluir e refluir da paixão sublime, sobre-humana, foi descoberto
somente por mim.”
152
A leitura de seu texto encontra, assim, a produtividade de um teatro; Nietzsche
confere o poder de transfiguração ao leitor, suscita estados estéticos que levam o leitor ao
pathos, pretende, no limite, elevar a leitura à arte. Para além dos aforismos, cabe ressaltar a
linguagem utilizada por Nietzsche em Zaratustra, texto considerado por ele mesmo sua
“obra prima”, com uma interpretação das mais complexas e de maior dificuldade, sobre a
qual o próprio Nietzsche adverte:
“O leitor de Zaratustra só poderá compreendê-lo se tiver em algum
determinado momento ficado profundamente impressionado ou, em outro,
profundamente entusiasmado com cada uma de suas palavras; gozará do

149
NIETZSCHE, Além do bem e do Mal, §247 [P p 156].
150
Nicolau Maquiavel (1496-1527) Escritor e político italiano, autor de O Príncipe
151
NIETZSCHE, Além do bem e do Mal, §28 [P p 36]
152
NIETZSCHE, Ecce Homo, Porque escrevo tão bons livros, §4, p.57.
59
elemento alciônico que lhe deu origem, se sentirá tocado por sua claridade,
amplitude e certeza transparente.”
153
Em Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém, combinam-se os
mais variados elementos estéticos de gênero, forma e estilo; Nietzsche explora a rítmica, a
sonoridade e os matizes da língua alemã, ao mesmo tempo em que recorre à encenação
teatral e às diversas formas de narração, além da poesia, do canto, da dança, da sátira e da
paródia.
Em geral, Nietzsche também renova nos seus diversos escritos, abrangendo os
aspectos da linguagem mais próximos e, ao mesmo tempo, mais intangíveis entre si:
literatura e filosofia. A esse respeito, Nietzsche manifesta sua satisfação e reconhecimento
efetivo, pois seria como filósofo que ele se utilizaria de uma linguagem diferencial da
filosofia tradicional. Em carta de 04 de maio de 1888 a Georg Brandes diz: “Nada nos
alegra tanto a nós filósofos, como que as pessoas se equivoquem e nos tomem por
artistas.”
154
Mesmo considerando tênue o limite que separa o artista do pensador,
Nietzsche tem claro, já em 1878, o que os distancia. O artista apropria-se dos meios mais
eficazes para sua arte, utiliza-se, por exemplo do fantástico, do mítico, do incerto, de
extremos ou do sentido para o simbólico.
155
Por sua vez, o pensador terá seu caráter
intelectual posto à prova à medida que os mais altos efeitos da arte sejam capazes de
seduzi-lo.
156
A esse respeito observa Paul Valery:
“não sei que íntima aliança do lírico e do analítico, que ninguém
tinha deliberadamente consumado [...] No jogo dessa ideologia alimentada
pela música, eu muito apreciava a mistura e o uso muito feliz e os dados de
origem erudita.”
157

153
NIETZSCHE, Genealogia da Moral, Prefácio, §8 [P p 14]
154
BRANDES, Georg, Nietzsche: un ensaio sobre el radicalismo aristocrático, Editorial Sexto Peso, México,
2004. p 120.
155
NIETZSCHE, Humano demasiado humano, § 146, [P p 107]
156
Idem, § 153, [P p 110]
157
VALERY, Paul, Nota escrita em 1927 quando da publicação das quatro cartas à Henri Albert. Cit E. Gaèd,
Nietzsche et Valery..., NRF, Gallimard, 1962. Apud. Herber-Suffrin, P, O “Zaratustra” de Nietzsche, trad
Lucy Magalhães, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1999. p 39. Paul Valery _ um ouríves em matéria de aliança
entre rigor e poesia _ segundo Heber-Suffrin.
60
Uma vez que em Nietzsche “filosofa-se com o martelo”, não podemos acusá-lo de
contradição ao se utilizar de um modo racional de discurso para experimentar sua
inadequação. Caberia dizer que Nietzsche toma muitas vezes como ferramenta as “mesmas
armas” daquilo ou quem irá criticar. Assim, por exemplo, para combater o cristianismo por
intermédio de Zaratustra, produz um “novo evangelho”
158
. Ao condenar a filosofia por
subsumir-se à legislação da linguagem, Nietzsche não deixa de fazer uma filosofia com e
contra a própria linguagem. Assim acontece desde O Nascimento da Tragédia, (1872), em
que Nietzsche, utilizando-se de métodos “epistemologicamente rigorosos”, como único
meio possível de refletir sobre as limitações desse método, deixa transparecer a
complexidade da relação ciência-arte. Essa posição é reiterada por um fragmento da mesma
época:
“Controle sobre o mundo por meio de uma ação positiva: primeiro
pela ciência, como destruidora de ilusão, depois pela arte, como o único
modo de existência que sobra, porque não pode ser dissolvida pela
lógica.”
159
Desde outra perspectiva, podemos dizer que, através da história literária,
encontramos o século XIX inserido no Romantismo, geralmente entendido como a
passagem de um modelo mimético da ordem transcendental da Natureza ou de Deus, (do
modelo platônico), para um conceito genético da arte e da literatura e de universo em que
tudo caminha para um fim teleológico (no modelo hegeliano): “O resultado é igual ao
início, porque o começo é um fim.”
160
. Em contraposição à estrutura genética dessa
historiografia, uma visão orgânica da história literária, trata o Romantismo sob dois
aspectos distintos; primeiramente, como ápice e esplendor e, inversamente, como um
momento de grande ilusão e decadência, só possível de ser libertado por meio de uma nova
modernidade. Esta última perspectiva seria a que Nietzsche adota ao tornar-se

158
O mesmo processo ocorre em Aurora §68 – O Primeiro Cristão.
159
NIETZSCHE, Fragmento póstumo,Musarion, 3:212; 44
160
HEGEL, Fenomenologia do Espírito, Prefácio, p 20.
61
“violentamente anti-romântico” quando escreve a história monumental ou orgânica
161
. De
acordo com Paul de Man
162
, sua desconstrução crítica do modelo orgânico cria
descontinuidades radicais e quebra a linearidade do processo temporal a tal ponto que
nenhum evento ou sujeito particular jamais poderia adquirir, por si, um significado
histórico total. Todos se transformam como partes de um processo que não os contém nem
os refletem, mas do qual configuram-se como um momento situado na diacronia do
movimento.
163
Teríamos ainda hoje, como herança do Romantismo, de acordo com Rudolf
Arnheim
164
, a divisão entre intuição e intelecto que gerou uma grave controvérsia entre os
adeptos dessas duas concepções unilaterais da cognição humana: os primeiros encaravam
com desdém as disciplinas intelectuais dos lógicos e cientistas, os segundos condenavam
como irracional o caráter da intuição. Em decorrência, a linguagem proposicional, que
consiste em cadeias lineares de unidades padronizadas, como produto do intelecto, adequa-
se perfeitamente às suas necessidades. Em contrapartida, essa mesma linguagem possui
sérias dificuldades para lidar com os processos de campo, as imagens, as constelações
físicas ou sociais, com a personalidade humana, com as obras de arte, a poesia e a música.
A impossibilidade que a linguagem verbal tem em lidar com estruturas sinóticas num meio
linear reside no fato de que, embora verbalmente linear, ela evoca referenciais que podem
ser imagens e estão sujeitas à síntese intuitiva. Por intermédio da tradução das palavras em
imagens, a cadeia intelectual de itens é revertida à concepção intuitiva que inspirou,
inicialmente, a afirmação verbal. As palavras fazem o melhor que podem para fornecer as
peças de uma imagem adequada, e a imagem proporciona uma sinopse intuitiva da estrutura
global.
165
Especificamente sobre o Romantismo, Nietzsche apresentará finalmente uma crítica
em a Gaia Ciência §370 (1881-1882)
partindo da noção de que

161
NIETZSCHE, Considerações extemporâneas II, Da utilidade e desvantagem da história para a vida.
162
Paul de Man (1919-1983). Autor de: Blindness and Insight. Alegories of Reading e obras póstumas: The
resistence to Theory. The Rhetoric of Romanticism.
163
MAN, Paul de, Alegorias da Leitura. p 101.
164
Rudolf Arnheim (1904-2007) Autor de A Psycology of the Creative Eye. Visual Thinking.
165
ARNHEIM, Rudolf, Intuição e intelecto na arte, , p 13-30
62
“Toda arte, toda filosofia, pode ser considerada meio de cura e de
auxílio a serviço da vida que cresce, que combate: pressupõe sempre
sofrimento e sofredores”.
166
De acordo com o referido aforismo, Nietzsche distingue dentre os sofredores duas
espécies: os que sofrem por abundância de vida, que querem uma arte dionisíaca e uma
visão e compreensão trágicas da vida, e aqueles que sofrem por empobrecimento de vida,
aos quais corresponde todo romantismo em artes e conhecimentos. É pertinente neste ponto
marcar que a expressão visão e compreensão
167
, no original Ansicht und Einsicht, recebeu
essa tradução face aos recursos de nossa língua, conforme a nota do tradutor Rubens
Rodrigues Torres Filho. Considerando seu entendimento “diante de si e dentro de si”, ou de
modo mais próximo a Nietzsche “uma visão trágica da vida em superfície e em
profundidade”, notemos que, além do jogo de palavras (para ser ouvido) sempre presente
nos textos nietzscheanos, existe a presença do modo de efetivação da vontade de potência
de acordo com o jogo de forças (forte ou fraco, por abundância ou empobrecimento). Trata-
se em parte da expressão do pessimismo filosófico e da música alemã, de seu romantismo.
Em todo caso os sofredores apresentam uma dupla necessidade: por um lado
repouso, quietude e redução de si ou, por outro lado, embriaguez, espasmo,
ensurdecimento, delírio (dentre eles Schopenhauer e Richard Wagner). Nietzsche aguça o
olhar numa inferência regressiva da obra ao criador. Em todo modo de pensar e valorar
haveria uma necessidade anterior que o comanda, um desejo a ser distinguido.
“Em vista de todos os valores estéticos sirvo-me agora desta
distinção capital: em cada caso pergunto: ‘aqui foi a fome ou o supérfluo
que se tornou criativo?’”
168
Nietzshe faz a distinção entre o desejo de tornar rígido e de eternizar, do desejo de
destruição por mudança e vir-a-ser, ou mesmo por necessidade e revolta. A vontade de
eternizar tanto provém de gratidão e amor (destacando Rubens, Hatis e Goethe), como

166
NIETZSCHE, Gaia Ciência §370. O que é romantismo?, [R p 220]
167
, NIETZSCHE, Obras incompletas, col. Os Pensadores, 3ª ed, São Paulo, Abril Cultural, 1983, p 220.
168
NIETZSCHE, Gaia Ciência §370. O que é romantismo?, [R p 221]
63
provém de tirânica vontade de um sofredor que quer imprimir em todas as coisas sua
imagem de tortura.
“Este último é o pessimismo romântico em sua forma mais
expressiva [...] o último grande acontecimento no destino de nossa
civilização”
169
.
Em contrapartida, Nietzsche aponta para um outro pessimismo. Um pessimismo
clássico, cuja denominação rejeita por ter sido desgastada e tornada irreconhecível; chama-
o pessimismo dionisíaco. Esse pessimismo do futuro que ele “vê vindo” é um
pressentimento próprio de Nietzsche como “proprium e ipsissimo”
170
.
A questão cultural do Romantismo acima explicitada remete-nos à noção de
cenários com que iniciamos este capítulo. Trata-se agora do cenário cultural e político, que
segundo interpretações habituais, é caracterizado pelas sombras. É o caso de Atenas no
tempo de Platão: a cidade imperial em expansão, inovadora, aquela do século de Péricles,
encontra-se então vencida, exausta e decadente, a polis democrática terminou, e como ela, a
cultura tornou-se tagarelice e saudosismo. Essa mesma situação decadente, guardadas as
distâncias e diferenças espaços-temporais, encontramos na denúncia de Nietzsche ao seu
tempo e à Alemanha. Assim, em Considerações extemporâneas (1873/1874), Nietzsche diz
que a cultura teria sido transformada em ornamento da vida, tornou-se um hábito repetir,
aprender e imitar, mas não há uma cultura efetiva. Constitui-se um saber em torno da
cultura, um pensamento e um sentimento de cultura, faltando, porém, a decisão-de-cultura.
Nietzsche denuncia dessa forma o esvaziamento do que seria próprio dos alemães
modernos. A absorção “desmedida, sem fome, e contra a necessidade”
171
de tempos,
costumes, artes, filosofias e religiões alheios, teria ocultado qualquer emergência de
decisões-de-cultura. Nietzsche faz essa crítica como filólogo, entendendo que a filologia só
tem sentido se

169
Idem, p 222.
170
Idem, ibdem.
171
NIETZSCHE, Considerações Extemporâneas II, Da Utilidade e desvantagem da história para a vida, §4,
[R p 63]
64
“Lançar uma ação intempestiva contra e sobre esta (sua) época e,
em benefício de um tempo que há de vir”.
172
Já no cenário helênico, o Nietzsche filólogo toma distância e reconhece Sócrates e
Platão como sintomas e instrumentos da dissolução grega, como anti-gregos. Eles são
também caracterizados como decadents ao diagnosticarem por toda parte os instintos em
anarquia, tendo que adotar uma mesma atitude frente à vida, contra esta vida e este mundo
aparente, idealizando uma “outra vida melhor”, convertido em um “mundo verdadeiro”.
Diante dos impulsos que querem fazer-se tiranos, o remédio é inventar um contratirano
mais forte, surgindo, assim, a “absurda racionalidade”, caracterizada como uma reação
decadente que concebe o pensamento sob o signo da imobilidade. Em O Problema de
Sócrates explicita-se:
“A luz do dia mais crua, a racionalidade a todo preço, a vida clara,
fria, cautelosa, consciente, sem instinto, oferecendo resistência aos instintos
era ela mesma, apenas uma doença, uma outra doença”.
173
Nesse texto, a atitude socrática procede de sua equação razão = virtude = felicidade.
Segundo Nietzsche, trata-se da fórmula para a decadence, que tem contra si todos os
instintos do heleno antigo. Diferencialmente, Nietzsche elege outra equação em
contrapartida, “enquanto a vida se intensifica, felicidade = instinto.”
174
E mais ainda,
Sócrates e seus “doentes” viveram o auto–engano, o mal entendido: fazer guerra à
decadence não basta para sair dela, o remediá-la não a elimina, somente altera sua
expressão. Nesse caso, não se oferece nenhuma garantia para um caminho de retorno à
“virtude”, à “saúde”, à felicidade. Sócrates guerreou tendo em mãos a dialética, fez-se
tirano, despotencializou o intelecto de seus adversários e, possivelmente, realizou sua
vingança.

172
NIETZSCHE, Untimely Meditations, On the Uses and Disadvantages of History for Life, Foreword. p 60
173
NIETZSCHE, Crepúsculo dos Ídolos, O Problema de Sócrates, §11 [R p 330].
174
NIETZSCHE, Crepúsculo dos Ídolos, O Problema de Sócrates, §11 [R p 330].
65
Nesse mesmo “escrito de decisões”, Crepúsculo dos Ídolos (1888), Nietzsche,
transgride e conta como se tornou em fábula o “verdadeiro mundo” de Platão. O percurso
auto-eliminatório do “verdadeiro mundo” situa um possível novo como. Com o fim da
História de um erro teríamos: “(Meio dia, instante da mais curta sombra; fim do mais
longo erro, ponto alto da humanidade, INCIPIT ZARATUSTRA)”
175
É a hora da força máxima da luz solar, mas também o ponto crítico, como o
momento em que essa força passa a se declinar e, inversamente, a sombra que até então
tendeu à sua menor expressão passa a se ampliar. É nesse instante de mutação que a figura
de Zaratustra, como mensageiro e anunciador do além-do-homem, assinala uma
possibilidade de sair da decadance. Não se trata agora de salvação por intermédio de um
remédio contra – contratirano, mas de efetivar a sobreabundância de forças, unindo-se à
sombra que resiste, reage e se revigora. Uma nova hierarquização de forças, um novo jogo
de ordenações torna-se possível. Nem sombra nem luz, ambas perspectivamente avaliadas
recolhem-se privilegiando o movimento de gradação dos matizes e nuances.
A nova perspectiva seria diferencial a Platão. Podemos pensar que Platão tendo que
privilegiar a “força apolínea”, descartou a “força dionisíaca”
176
expulsando-a do mundo
aparente, por exemplo, ao expulsar, o artista da cidade (República X). Dessa forma,
protege-se a racionalidade e trilha-se sem perigo o caminho do mundo verdadeiro. Para
Nietzsche entretanto, o artista estima a aparência, à medida que ela é selecionada e
fortalecida.
“O artista trágico não é um pessimista _ diz precisamente sim, até
mesmo a todo problemático e terrível, é dionisíaco”.
177
Até agora temos abordado a questão da linguagem a partir das perspectivas e
referências ao leitor, à forma e ao estilo, ao romantismo e ao enfoque do cenário filosófico.
Recolheremos a seguir a linguagem no próprio pensamento nietzscheano em seus primeiros

175
NIETZSCHE, Crepúsculo dos Ídolos, Como o verdadeiro mundo acabou por se tornar em fábula, História
de um erro, [R pp 332- 333].
176
Forças apolíneas e dionisíacas, expressões nietzscheanas de referência mítica, que serão abordadas
oportunamente.
177
NIETZSCHE, Crepúsculo dos Ídolos, A “razão”na filosofia §6, [R p 332]
66
escritos. Em Verdade e Mentira no Sentido Extramoral (1873), Nietzsche estabelece uma
relação direta entre linguagem, consciência e gregariedade. O tratado de paz, necessário
para viver em sociedade e no rebanho, traz consigo o primeiro passo com vistas a alcançar
o impulso à verdade. No referido escrito, Nietzsche considera que verdade e mentira são
construções decorrentes da necessidade do homem de viver em sociedade e no rebanho.
Isso está estreitamente ligado à linguagem correspondente. Mediante a linguagem, é dada,
por exemplo, uma designação uniformemente válida e obrigatória às coisas. A linguagem, e
mais especificamente a gramática, fornecerá também as primeiras leis da verdade, pois,
nesta ocasião e pela primeira vez, aparece uma oposição entre verdade e mentira.
A “coisa em si” (tal seria justamente a verdade pura sem conseqüência
178
)
considerada como objeto para aquele que cria uma linguagem, permanece totalmente
incompreensível e absolutamente indigna de seus esforços. O formador de linguagem
designa somente as relações entre os homens e as coisas e para exprimi-las auxilia-se das
metáforas mais audaciosas. Uma palavra é para Nietzsche “a figuração de um estímulo
nervoso em sons”. Na gênese da linguagem e na certeza das designações, e à medida que a
palavra provém de uma estimulação inteiramente subjetiva, torna-se impeditivo obter a
verdade de modo decisivo.
Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem!
Primeira metáfora. A imagem por sua vez modelada em um som! Segunda
metáfora. E a cada vez completa mudança de esfera, passagem para uma
esfera inteiramente outra e nova”
179
.
Quando falamos de coisas como árvores, cores, neve ou flores, acreditamos possuir
algum saber sobre elas; entretanto, temos somente metáforas, as quais não correspondem
absolutamente às entidades originais. A gênese da linguagem não segue em todos os casos
uma via lógica. Além disso, o conjunto de materiais sobre os quais o homem da verdade, o
pesquisador, o filósofo, trabalha e constrói, jamais provém da essência das coisas.

178
NIETZSCHE, Verdade e Mentira no Sentido Extramoral, [R p 47]
179
Idem, ibdem.
67
Particularmente, no que diz respeito à formação de conceitos, Nietzsche considera
que “Todo conceito nasce por igualação do não-igual”.
180
Cada palavra torna-se conceito
sempre que é necessário aplicá-la simultaneamente a um sem-número de casos mais ou
menos semelhantes, jamais idênticos. O conceito seria formado pelo abandono “arbitrário”
das características particulares e do esquecimento daquilo que é distintivo. A omissão do
particular e do real nos dá o conceito, assim como nos dá a forma, contrariamente ao que
revela a natureza, que não conhece formas ou conceitos e, em decorrência, nenhuma
espécie ou gênero, mas somente uma incógnita, para nós inacessível e indefinível.
A formação de conceitos, segundo Nietzsche, foi possível somente pelo
esquecimento de que a verdade, como uma designação uniformemente válida e obrigatória
das coisas, foi fixada a partir do momento que se tornou necessário ao homem viver em
sociedade. Ainda esqueceu que a verdade, assim fixada para a “socialização”, provém de
metáforas gastas que perderam sua força sensível, metáforas originais da intuição que,
inadvertidamente, são tomadas pelas coisas mesmas.
O saber de si e a necessidade de tornar-se inteligível são então conseqüências dessa
necessidade do homem de unir-se ao seu semelhante, como proteção e ajuda mútua para a
sobrevivência. Dessa forma, a consciência de si e a comunicação - expressão, linguagem,
ou tornar comum - têm seus inícios e desenvolvimentos concomitantes. Entretanto, o
pensamento que se torna consciência, aquele que ocorre em palavras, é o mais superficial.
Assim também o mundo de que podemos tomar consciência é apenas o mundo de
superfícies e signos.
181
Enquanto cada metáfora intuitiva é individual e sem igual e, por isso, sabe escapar a
toda rubricação, o grande edifício dos conceitos ostenta a regularidade rígida de um
columbário romano e respirando na lógica, aquele rigor e frieza que são próprios da
matemática. Embaralha continuamente as rubricas e os escaninhos dos conceitos ao
estabelecer novas transposições, novas metáforas e novas metonímias.

180
Idem, [R p 48].
181
NIETZSCHE, A Gaia Ciência § 354. [R p 216].
68
“Esse edifício (dos conceitos) é com efeito uma réplica sobre a base
das metáforas, das relações de tempo, espaço e número.”
182
E mais ainda, vive-se pelo esquecimento de que foi construído sobre a base de
metáforas que, mesmo cristalizadas, não possuem garantia quanto à sua necessidade ou
legitimidade. Foi pelo fato de que o homem esqueceu que ele próprio é um sujeito e
certamente um sujeito atuante, criador e artista, que lhe foi permitido viver beneficiado com
alguma paz, com alguma segurança e com alguma lógica.
Na construção dos conceitos seria trabalhada originariamente pela linguagem, mais
tarde pela ciência. No que diz respeito às leis da natureza, elas somente seriam conhecidas
por seus efeitos, ou seja, por suas relações com outras leis. Há uma remissão contínua de
umas às outras. No limite, só conheceríamos as leis da natureza através daquilo que
aportamos a elas, o tempo, o espaço, portanto, as relações de sucessão e de número. Noções
que produzimos em nós e a partir de nós mesmos. Assim, toda lei se apresentaria sob
formas e regularidades que aparentemente encontramos na natureza. No fundo, as leis
coincidiriam com as propriedades que nós colocamos nas coisas, do mesmo modo que
atribuímos a nós mesmos. Com efeito, a produção artística de metáforas por meio da qual
começa em nós toda percepção, pressupõe as formas nas quais ela se efetua.
A partir da perspectiva desse escrito, a verdade seria uma multidão de metáforas,
metonímias e antropomorfismos; uma soma de relações humanas que foram realçadas,
transpostas e ornamentadas pela poesia e pela retórica e que, depois de um longo uso,
pareceram estáveis, canônicas e obrigatórias aos olhos de um povo. Entretanto, a criação de
metáforas é compelida por um instinto fundamental no homem do qual não pode prescindir.
Esse instinto não está submetido à verdade, apenas encontra-se disciplinado à medida que,
mediante as produções evanescentes, que são os conceitos, edificou-se um novo mundo
regular e resistente que se ergue diante dele como uma fortaleza. Assim, o homem procura
um novo domínio e um outro canal para essa atividade e o encontra no mito e, de maneira
geral, na arte.

182
NIETZSCHE, Sobre Verdade y Mentira en Sentido Extramoral, Trad Luis M.Valdés. p 33
69
Acompanhamos como em Verdade e Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche
refere-se às noções de linguagem em relação à consciência e à gregariedade. Mais que isso,
ele estabelece relações entre essas noções já citadas com aquela que as antecede, a verdade
e o conhecimento verdadeiro. É dessa forma que realiza sua crítica tanto à filosofia quanto
à metafísica vigentes. Procuraremos a seguir uma leitura da metáfora em análises internas
à linguagem, quer dizer, explicitando algumas indicações sobre a forma com que se
apresenta uma teoria da metáfora e como se insere na teoria semântica.
Recorremos inicialmente a Paul Ricoeur que, em seu livro Metáfora Viva, parte das
definições aristotélicas de metáfora e de suas demais implicações para desenvolver seus
estudos. Esse legado o conduz a afirmar que: “a metáfora é o processo retórico pelo qual o
discurso libera o poder que algumas ficções têm de redescrever a realidade”.
183
Temos em Aristóteles a referência inicial. Definição bem conhecida encontrada na
Poética (1457 b 6-9).
A metáfora é a transferência para uma coisa do nome de outra, ou
do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero de outra, ou por
analogia
184
,
Ricoeur destaca a definição aristotélica do “semelhante” como o “mesmo”: ver o
mesmo no diferente seria ver o semelhante. A estrutura lógica do “semelhante” revela-se no
enunciado metafórico à medida que a semelhança é percebida apesar da diferença, de modo
que a contradição literal mantém a diferença, sendo que o “mesmo” e o “diferente” não são
simplesmente misturados, mas permanecem opostos. A semelhança é a categoria lógica
correspondente à operação predicativa na qual o “tornar próximo” encontra a resistência do
“estar afastado”. Na metáfora, o “mesmo” opera apesar do “diferente”.
A teoria semântica encontra na teoria da metáfora sua fronteira comum na qual
realiza-se, de maneira singular, a ligação entre um momento lógico e um momento sensível,
ou um momento verbal e um momento não-verbal. É a essa ligação que a metáfora deve a
concretude que parece pertencer-lhe por essência. O momento sensível da metáfora é

183
RICOEUR, Paul, A Metáfora Viva, p 14.
184
ARISTÓTELES, Poética (1457 b 6-9) e RICOEUR, A Metáfora Viva, p 24.
70
segundo Aristóteles designado pelo caráter de sua vivacidade, por seu poder de pôr sob os
olhos. De outra maneira surge em Fontanier
185
para quem esse poder é implícito à própria
definição da metáfora que apresenta uma idéia sob o signo de outra mais conhecida. Por
outra parte Richards
186
dela se aproxima igualmente através da relação “veículo-conteúdo”;
o veículo é à semelhança do conteúdo, não como uma idéia o é de outra idéia, mas como
uma imagem o é de uma significação abstrata.
Ricoeur aborda a teoria de Marcus B. Hester
187
, cuja concepção original de leitura
pode ser aplicada tanto ao poema em seu conjunto, como em parte à metáfora. Segundo
Hester “O poema é um objeto de leitura”; ao comparar a leitura à epokhé husserliana, ele
dirá que, ao suspender toda posição de realidade natural, a leitura libera o direito original
de todos os data, sendo também uma suspensão de todo real e uma abertura ativa ao texto.
O ato de ler atesta assim que o traço essencial da linguagem poética não é a fusão do
sentido com o som, mas a fusão do sentido com o fluxo de imagens evocadas ou ativadas; é
essa fusão que constituiria a verdadeira “iconicidade do sentido”. Não só o sentido e o som
funcionam iconicamente um em relação ao outro, mas o próprio sentido é icônico pelo
poder de desenvolver imagens. Esta iconicidade apresenta justamente os dois traços do ato
de ler: suspensão e abertura. Por um lado, a imagem é, por excelência, obra de
mentalização da realidade natural; por outro, o desdobramento da imagem é algo que
“acontece” e para o qual o sentido se abre indefinidamente, dando à interpretação um
campo ilimitado.
188
A introdução da imagem ou do imaginário em uma teoria da metáfora concerne ao
estatuto de um fator sensível, não-verbal, no interior de uma teoria semântica. Assim,
Ricoeur recorre a iconicidade do sentido que, diferentemente da simples associação,
implica o controle da imagem pelo sentido. Em outros termos, para Ricoeur há um
imaginário implicado na própria linguagem, que faz parte do jogo da linguagem. O ícone
verbal, no sentido de Hester, é também um método para construir imagens. O poeta, com

185
Pierre Fontanier (1765-1844) Autor de Études de la langue française chez Racine. Les figures de discours
186
Ivor A. Richards (1893-1979) autor de The Philosophy of Rhetoric. The Meaning of Meaning.
187
Marcus Hester, Professor Emérito da Wake Forest University. Autor de: The Meaning of Poetic Metaphor.
Faith, Reason, and Skepticism.
188
HESTER, Marcus The Meaning of Poetic Metaphor, La Haye, Mouton, 1967, cit RICOEUR, A Metáfora
Viva, p 319 ss.
71
efeito, é o artesão que suscita e modela o imaginário pelo simples jogo de linguagem. Ao
tipo de imagens que pertencem à produção de sentido, Hester chama de imagens
“interligadas”. Elas pertencem a um nível intermediário da escala (entre imagens selvagens
e a esquematização) e são representações concretas provocadas pelo elemento verbal e
controladas por ele. Com essas imagens, a linguagem além de fundir sentido e som, funde
sentido e sentidos; repara-se no modo de fluir das imagens expostas pelo sentido. Isto
corresponderá ao que Bachelard
189
chama reverberação (retentissement). Quando na leitura
há o significado verbal, ele geraria imagens que rejuvenescem e restabelecem os traços da
experiência sensorial. Essas imagens trazem uma complementação concreta do processo
metafórico. O significado é representado sob as características da elipse, mediante a qual é
possível ler o significado sobre a imagem em que ele está invertido. O sentido metafórico é
assim gerado pela densidade da cena imaginada e retratado pela estrutura verbal.
Ricoeur ressalta a contribuição de Hester como positiva para a teoria icônica da
metáfora, pois vincula a noção do “ver como” como uma explicação mais satisfatória e
talvez única. De origem wittgensteiniana (uma transposição pelo lado imaginativo), o “ver
como” seria metade pensamento e metade experiência. Não se trataria de interpretar através
de hipótese e verificação, mas diretamente “ver isto como” é “ter esta imagem”. O “ver
como” seria um fator revelado pelo ato de ler, na medida em que este é o modo pelo qual o
imaginário é realizado. O “ver como” seria a relação intuitiva que mantém juntos sentido e
imagem; como elo necessário através, essencialmente, de seu caráter seletivo. O “ver
como” seria um ato-experiência de caráter intuitivo, pelo qual se escolhem, no fluxo quase
sensorial do imaginário que se tem ao ler, a metáfora e os aspectos apropriados desse
imaginário. Ordena-se, assim, o fluxo e regula-se o desdobramento icônico. Como
experiência-ato, assegura-se a implicação do imaginário na significação metafórica. O “ver
como” assegura, dessa forma, a junção entre o sentido verbal e a plenitude imaginária;
junção pensada como relação de semelhança. Porém, o “ver como” antecede à semelhança,
definindo-a como maneira própria do jogo da linguagem, no qual o sentido funciona de
maneira icônica. Ele agrega a luz do sentido à plenitude da imagem; une dessa forma, como

189
Gaston Bachelard (1884-1962) Membro da Academia de Ciências Morais e Políticas da França. Autor de:
A Terra e os Devaneios da Vontade. A Poética do Espaço. A Poética do Devaneio.
72
ponte, o não-verbal ao verbal. Inversamente, o pensamento em poesia seria, segundo a
expressão de Aldrich
190
, a picture thinking. Ora, este poder pictórico da linguagem consiste
também em “ver um aspecto”. No caso da metáfora, representar x sob os traços de y é ver x
como y; é o que fazemos quando lemos a metáfora, pois ler é estabelecer uma relação tal
que x seja como y em alguns sentidos, não em todos.
Além disso, cabe ao “ver como” outra mediação: a teoria semântica põe a ênfase
sobre a tensão entre os termos do enunciado, tensão cultivada pela contradição no plano
literal. Para o caso da metáfora viva, esta tensão é essencial, o leitor saberá que no dizer do
autor, o “não é” literal acompanha o “é” metafórico. Ver algo como outro implica saber que
um não é o outro, de maneira que as fronteiras do sentido são transgredidas mas não
abolidas. Hester diz que o “ver como” permite harmonizar uma teoria da tensão e uma
teoria da fusão; ao que Ricoeur acrescenta que a fusão do sentido e do imaginário,
característico do sentido iconizado, é a contrapartida necessária de uma teoria de interação.
Esta leitura do funcionamento da metáfora nos leva a considerá-la como a figura de
linguagem que possibilitaria a Nietzsche, de maneira forte, efetivar sua filosofia.
Notadamente, podem ser destacadas desta aproximação possível, as noções da construção
da metáfora como instintiva e intuitiva que, estabelecendo a fusão do sentido com as
imagens evocadas, levariam à abertura dos sentidos. Isso, considerando que o campo de
interpretação se amplia, mas contudo, permanece “regulado” pelo jogo da linguagem. Além
disso, ao ser acrescida a noção do “ver como” à teoria icônica da metáfora, sobressaem-se
as características de união de pensamento e experiência que, a partir dessa união, tornam a
interpretação mais direta. A fusão do sentido com a imagem tem caráter seletivo ordenando
o fluxo e o desdobramento icônico em perspectivas possíveis. Por outro lado, é resgatável
para nossa aproximação, o mantenimento da tensão que conservaria a contradição do plano
literal com o plano metafórico. Tudo isso sem abolir as fronteiras do sentido, apenas
transgredindo-as. A nosso ver, já se configura em Nietzsche, uma forma de teoria das
forças no âmbito da linguagem. A metáfora , nesse caso, fortaleceria no interior da
linguagem, as noções filosóficas de interpretação, perspectiva, seleção, e outras afins.

190
Virgil Aldrich (1903-1998) PhD University of California Berkeley. Autor de Language and philosophy.
Philosophy of Art. The body of a person
73
Voltando à leitura dos próprios escritos de Nietzsche, encontramos ainda em
Verdade e mentira no sentido extramoral, a caracterização do impulso à formação de
metáforas como “fundamental” no homem. Ele mal poderia ser subjugado ou refreado pela
regularidade e rigidez dos conceitos. De modo que, “ele procura um novo território para
sua atuação e um outro leito de rio, e o encontra no mito e, em geral na arte.”
191
Dessa maneira, recolheremos a seguir o mito considerando-o como um novo
domínio para a criação. Inicialmente, é preciso constatar que o modo de compreendê-lo
reencontra vários de seus aspectos, presentes em o Nascimento da Tragédia (1871)
192
.
Refletindo sobre o caráter do povo grego de outrora sobre a cultura helênica em
comparação à cultura moderna, Nietzsche observa o estreito entrelaçamento que existe em
seus fundamentos, entre a arte e o povo, o mito e o costume, a tragédia e o Estado. Os
gregos sentiam-se, segundo Nietzsche, involuntária e diretamente ligados ao mito e
somente por meio dessa vinculação, era possível compreender tudo que vivenciavam.
Considerando uma relação temporal, intermediada pelo mito, o presente mais próximo
apresentava-se-lhes sub specie aeterni (sob o aspecto eterno) como intemporal _
“um povo, mesmo um homem, vale precisamente tanto quanto é
capaz de imprimir em suas vivências o selo do eterno: pois com isso fica
como que desmundanizado e mostra sua convicção íntima e inconsciente
acerca da relatividade do tempo e do significado verdadeiro, isto é,
metafísico da vida”
193
.
Em outra direção, um povo que passa a conceber-se de um modo histórico e a
destituir-se de seus mitos, comumente se liga a uma decidida mundanização, uma ruptura
com a metafísica inconsciente de sua existência anterior, com todas as conseqüências éticas
ali enoveladas. Assim, a compreensão do mito na forma de imagem concentrada do mundo
e como abreviatura da aparência, somente se tornaria possível para o espírito histórico-
crítico da cultura moderna, apenas quando operada por abstrações mediadoras. Do mesmo

191
NIETZSCHE, Verdade e mentira no sentido extramoral §2. [R p 50].
192
NIETZSCHE, O Nascimento daTragédia, §23,[P p.134ss]
193
Idem, [P p 138]
74
modo para essa nossa cultura moderna, já a partir do século XV, tem-se a transformação da
relação temporal. Por isso, ela se refere ao presente sob um frívolo endeusamento ou
afastamento obtuso e atordoado, tudo aparece sub specie saeculi (sob o aspecto do século)
no “tempo de agora” (Jetztzeit). Ainda de acordo com Nietzsche, sem o mito, toda a cultura
perde sua força natural, sadia e criadora, considerando que um movimento cultural tem sua
unidade conformada pelos mitos.
“As imagens do mito têm que ser onipresentes e desapercebidos
guardiões demoníacos (daimon), sob cuja custódia cresce a alma jovem e
com cujos signos o homem dá a si mesmo uma interpretação de sua vida e
de suas lutas.”
194
Com esses destaques torna-se possível realizar uma aproximação que conduza a
perceber a presença do mito na obra de Nietzsche, para além daqueles itens que são nela
diretamente nomeados. Sob esta abordagem faz-se pertinente assinalar que, já retomando o
foco de nosso trabalho, no capítulo Da visão e enigma do Zaratustra
195
, é desse modo
“mítico” que podemos compreender a pedra no caminho de Zaratustra, utilizando-nos
dessa mediação constituída pelo mito de Sísifo. O herói mítico Sísifo foi condenado pelos
deuses a empurrar uma grande pedra eternamente, sem descanso, para o cume de uma
montanha, de onde, por peso e gravidade, a pedra rolava de volta ao ponto de partida. Esse
castigo terrível tinha esse caráter, à medida que se tratava de executar um trabalho
repetitivo, inútil e sem esperança. Se acrescentarmos à leitura desse mito a interpretação de
Camus
196
encontraremos Sísifo ao pé da montanha com seu fardo. Também Sísifo está no
cume, mas ao ter realizado sua tarefa “nega os deuses e levanta os rochedos”
197
e, por isso,
podemos imaginá-lo feliz. De modo análogo, em sua narrativa,
Zaratustra encontra-se diante do PORTAL “INSTANTE”.

194
Idem, [P p 135]
195
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, III, Da visão e enigma. [R pp 243-245] [S p227-232]
196
.Albert Camus (1913-1960) Premio Nobel de Literatura em 1957
197
CAMUS, Albert, O mito de Sísifo, pp 137-141
75
“Então aconteceu que me tornei mais leve: pois o anão saltou-me do
ombro, o curioso! E agachou-se sobre uma pedra diante de mim. Mas havia
um portal, precisamente ali onde fizemos alto.”
198
Teriam sido reunidos nesse momento e lugar a pedra e o anão. Correspondendo à
pedra de Sísifo, tratar-se-ia do “espírito de peso” que Zaratustra havia carregado até o ápice
de sua caminhada. Postando-o diante do portal, sobre a pedra, Zaratustra transmuta o peso
que o sobrecarrega. Torna-se leve. Já não seria o “mais pesado dos pesos”, mas afirmação
para vida a decifrar o enigma que se apresenta com o
PORTAL “INSTANTE”.
Considerando ser esse o momento em que Zaratustra trava sua luta de vida ou
morte, decifrar o enigma, sob esse aspecto, poderia corresponder tamm ao mito de Édipo
ao derrotar a Esfinge. Essa será a leitura realizada, por exemplo, por Salaquarda.
199
Ele
também encontrará outra aproximação, desta vez, entre o espírito de peso-anão e o conto de
Rumpelstilzchen
200
.
É possível observar que as aproximações ao mito, neste caso, caracterizam-se muito
mais pela interpretação do leitor que propriamente pela materialidade textual. O leitor é
conduzido a identificar a “grande luta” de Zaratustra, e recorrendo ao próprio cabedal de
mitos, apropria-se de cada elemento da narrativa como peças de um mosaico capazes de
fornecer “pistas” para a solução do enigma que aí se oferece. Justificadamente, devemos
lembrar a quem Zaratustra revela sua visão e enigma.
“A vós, os audazes buscadores e indagadores, e quem quer que
alguma vez tenha se lançado com astutas velas a mares terríveis.
A vós os ébrios de enigmas, que gozais com a luz do crepúsculo,
cujas almas são atraídas com flautas a todos os abismos labirínticos.
_ pois não quereis com mãos covardes, seguir cuidadosamente um
fio; e ali onde podeis adivinhar, odiais deduzir _.

198
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, III, Da visão e enigma §2, [R p 243] [S p 229]
199
SALAQUARDA,J, A concepção básica de Zaratustra, in Cadernos Nietzsche 2 p, 17-39
200
Rumpelstilzchen é o nome do anão, personagem central de um conto da antiga mitologia germânica. Ele
ajuda uma jovem donzela a tecer ouro a partir da linha ou da palha. Em retribuição ela terá que lhe dar seu
filho no caso de não adivinhar seu nome num tempo determinado.
76
Somente a vós conto o enigma que eu vi _ a visão do mais
solitário_”
201
Persistindo na configuração de mosaico, torna-se possível escolher algumas peças
que o compõem, mantendo-as, todavia, como indagações gerais. O PORTAL
“INSTANTE” trata-se de uma alegoria ou de um mito? Esta pergunta talvez seja herdada
daquela mesma feita por estudiosos de Platão, com relação à alegoria ou mito da caverna.
Transposição possível, na medida em que seguimos mantendo “um diálogo” entre Platão e
Nietzsche neste trabalho.
Encontraríamos de fato certa polêmica sobre essa mesma questão. Porém, segundo a
leitura de Mattei, esse debate estaria suprimido pelos comentadores modernos de Platão,
muito provavelmente pela colaboração de Perceval Frutiger
202
. Este autor dissipa a
confusão entre narrativas alegóricas e narrativas míticas, opondo-as através de três critérios:
1- “A alegoria é como um quadro, neste nada acontece, visto que tudo é dado de
antemão.”
203
, o mito, ao contrário, possui uma dimensão dinâmica e, longe de se contentar
em expor um “estado”, descreve uma “ação”. É uma história que comporta uma sucessão
de eventos. 2- Ainda que a alegoria, como a parábola, tenha um valor muito geral, o mito,
como a lenda, põe em cena personagens reais em circunstâncias históricas determinadas. 3-
Enfim, a alegoria indica de maneira explicita sua significação verdadeira, enquanto o mito
protege, de maneira implícita, o sentido de seu ensinamento.
204
Mesmo considerando o caráter elucidativo da proposição de Frutiger, Mattei segue
sua explanação revendo, por meio desses critérios, uma melhor adequação à complexa
narrativa da caverna. Contudo, para ele, se formos fiéis a Platão, não se aplicaria nem mito
nem alegoria. Seria mais pertinente falar de imagem da caverna, desde que se entenda, para
além da palavra mesma, a caverna como possuidora de imagens e máquinas de imagens. A
caverna seria assim o santuário secreto, subterrâneo, onde a máquina imaginária da

201
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, III, Da visão e enigma §1, [S p 227]
202
Perceval Frutiger: autor de Volonté et Conscience: Essai de monisme spiritualiste. Les mythes de Platon
203
FRUTIGER, Les mythes de Platon, Paris, Alcan, 1930, reprint New York, Arno Press, 1976, apud
MATTEI, J-F, Platon e le mirroir du mythe, Paris, Quadrige/ PUF, 2002 p 116
204
MATTEI, J-F, Platon et le mirroir du mythe, p 116
77
linguagem aprisionaria em seguida uma produção diferenciada de discursos qualificados de
símbolos, de alegorias e de mitos. Nessa medida, a narrativa da caverna contaria uma
história (mythos) cujos elementos seriam indiferentemente qualificados, segundo o
contexto, como alegóricos ou simbólicos, não havendo, portanto, inconveniente em falar do
mito da caverna.
205
Relendo “Da visão e enigma”, agora nos guiando pelos critérios de Frutiger acima
recolhidos, verificamos que o aforismo se constitui como uma narrativa que se insere em
meio aos percursos e discursos de Zaratustra, conforme apontávamos anteriormente, ou
seja, como o ponto crítico de sua trajetória. Encontramos nesse capítulo um primeiro
momento de descrição da ação efetiva de Zaratustra até que alcance o portal. No momento
seguinte, ocorre a apresentação do enigma como a imagem do
PORTAL “INSTANTE”,
proporcionando uma possível interpretação em duas vertentes: ao mesmo tempo em que o
anão precipita-se para adivinhar o enigma, deixa escapar o sentido: “‘Tudo o que é reto
mente’, murmurou desdenhosamente o anão. ‘Toda verdade é curva, o próprio tempo é um
círculo’.”
206
Zaratustra, por sua vez, mantém-se imóvel diante do portal, faz sua leitura,
mas não o ultrapassa. Zaratustra permanece como “esta lenta aranha que rasteja ao luar, e
este próprio luar...”. E, pouco a pouco silenciando, Zaratustra prossegue: “Assim falava eu,
e cada vez mais baixo: pois tinha medo de meus próprios pensamentos e dos pensamentos
que se escondiam por detrás deles.”.
207
Salta aos olhos, neste momento, a imobilidade da
cena que em sua totalidade cumpre retratar a proposição do enigma, sua visão. A nosso ver,
fez-se necessária uma renovação do “instante” no qual foi trocada a imagem visual pela
imagem sonora - o uivo de um cão, ou qualquer que fosse o “apelo”, um piscar de olhos ou
um grito. “Então, subitamente, ouvi ali perto um cão uivar.” A partir daí, temos como
outro momento, uma nova dinâmica, em que se encontra como personagem um pastor -
trata-se do próprio Zaratustra como ele reconhecerá adiante - e de um novo símbolo, a
negra cobra que rasteja para dentro da garganta do pastor.

205
Idem, p 118
206
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, III, Da visão e enigma §2, [R p 244] [S p 230]
207
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, III, Da visão e enigma §1, [R p 244] [S p 231],
78
Encontramos na leitura dessa narrativa tanta complexidade quanto poderíamos
encontrar efetuando uma leitura mais apurada da narrativa da caverna. Porém, haveria que
ressaltar, diferencialmente, que a narrativa “Da visão e enigma” realiza-se como uma
história experimentada e contada pelo próprio Zaratustra. Essa característica parece, levar-
nos ao encontro do mito de Er (República X (614 b)) como outra maneira possível de
manter o diálogo entre Nietzsche e Platão. Trata-se da narrativa de Er, o Armênio, morto
em uma batalha, mas enviado pelos deuses para ser mensageiro, tal como Hermes, para
trazer aos homens notícias de outro mundo.
Em ambas as narrativas (Mito de Er e Zaratustra) encontramos o mensageiro, ou
“ângelus”. Zaratustra e Er portam uma “boa nova”, aquela com a qual poderão presentear
os homens. Entretanto, mesmo indicando outras similaridades dentre os elementos que
compõem as narrativas, nossa aproximação revelaria uma diferença de sentido, em função
da qual, obrigatoriamente, voltamos a ressaltar o forte distanciamento de Nietzsche com
relação a Platão. Por exemplo, na República a estrutura mítica encontra-se fundada na
figura pentagonal do Céu, da Terra, dos Deuses, dos Homens e da Justiça, esta última como
ponto nodal das quatro instâncias. Já o
PORTAL “INSTANTE” concentra-se nos elementos
Homem e Terra, que passarão a se movimentar em uma estrutura espaço-temporal circular,
cujo ponto nodal (ou cujo motor) seria a transmutação do espírito e com ele a transmutação
de todos os valores.
Resta-nos desta indicação aproximativa com o mito de Er indagar se Zaratustra
constitui-se, efetivamente, em um mensageiro?
A noção de mensageiro envia-nos a Hermes, o deus das encruzilhadas que a cada
encontro de caminhos é o autor e protetor de tudo o que acontece ao homem. Guia dos
viventes e dos mortos e protetor das almas. Ele se apresenta nas encruzilhadas com sua
quádrupla cara de pedra, Hermaios tetrakephalos, marco e limite, aberto a quatro direções,
de quem depende a mobilidade dos seres e das coisas. Ele é mensageiro divino, cujas idas e
vindas secretas, geralmente invisíveis, asseguram a mediação do mundo superior e do
mundo inferior. O Hino à Hestia (I,v8) o nomeia por essa razão, “anjo” ou “mensageiro da
bem-aventurança”, pois como mestre de todas as formas de mudança ele dá seu impulso à
79
palavra dos mortais e dos imortais.
208
A respeito do nome Hermes, que no Crátilo (407 e 6)
inscreve-se como esse nome, “relaciona-se com o discurso: é interprete, ou mensageiro, e
também trapaceiro, fértil em discursos e comerciante labioso, qualidades essas que
assentam-se exclusivamente no poder da palavra.” Dessa forma, e ligando-se ao poder da
linguagem e da arte de interpretar, Platão, no Político (260 d 11), o chamará precisamente
de “hermenêutico”.
Como já nos referimos anteriormente, segundo nossa leitura, é o pensamento
efetivado em termos da linguagem que se configura no Zaratustra como dobra. Agora
teríamos que acrescentar que é na possibilidade de considerarmos Zaratustra um
mensageiro, que efetivamente encontraríamos, por intermédio da “boca de Zaratustra”, as
noções nietzscheanas de maior complexidade e “grandeza”. O caráter de mensageiro ou
portador se enfatiza na relação Nietzsche e Zaratustra. A esse respeito, recorremos ao
Professor Antonio Cândido
209
que denomina Nietzsche – “um portador”:
“Como poucos, em nosso tempo, é um portador de valores, graças
ao qual o conhecimento se encarna e flui no gesto da vida.
Há, com efeito, seres portadores, que podemos ou não encontrar, na
existência cotidiana e nas leituras que subjugam o espírito. Quando isto se
dá, sentimos que eles iluminam bruscamente os cantos escuros do
entendimento e, unificando os sentimentos desaparelhados, revelam
possibilidades de uma existência mais real.”
210
Antonio Cândido refletindo assim sobre a vida e o pensamento, fala da oportunidade
de encontrar tais portadores que eletrizaram um instante. Mais adiante complementará:
“Na vida , só sentimos a realidade dos valores a que tendemos, ou
que pressentimos, quando nos pomos em contato com certos intermediários,
cuja função é encará-los, como portadores que são. A abstração e o

208
MATTEI, Platon et le mirroir du mythe, pp 156-7
209
Antonio Cândido de Mello e Souza (1918- ) Poeta, ensaista, um dos principais críticos literários brasileiro,
professor emérito USP e UNESP e professor honoris causa UNICAMP. Autor dentre outros de Parceiros do
Rio Bonito e O Discurso e a Cidade.
210
CÂNDIDO, O Portador, reeditado in NIETZSCHE Obras Incompletas, pp 409 ss
80
sentimento adquirem vida (la connaissance a trouvé son acte, diria Valery) e
somos capazes de sentir plenamente, viver os valores. Ao contrário da vida
que dispersa, os portadores condensam e unificam extraordinariamente; daí
se imporem como um bloco e fazerem ver a vida como um bloco, que nos
afasta por um momento da mediania e impõe uma necessidade quase
desesperada de vida autêntica.”
211
Permaneceria, entretanto, uma outra via aberta. Já não mais se trataria da cultura
mítica possível de ser resgatada por trás de cada leitor-intérprete, mas da necessidade de
verificarmos em que medida há, na cena narrada em “Da visão e enigma”, a presença de
símbolos e mitos nietzscheanos. De maneira mais aproximada a Nietzsche, teríamos que
nos referir aos “onipresentes e desapercebidos guardiões demoníacos”, Apolo e Dionísio.
Pois, enquanto configuração, “Da visão e enigma” insere-se no jogo imagem-ação, estático-
dinâmico como observamos acima. Nesse sentido, a visão e enigma seria um eco no qual,
em grande medida, repercute a leitura que Nietzsche faz dessas divindades, já presente nos
escritos de juventude como A visão Dionisíaca do Mundo (1870) e o Nascimento da
Tragédia no Espírito da Música (1871).
Nietzsche considerava então que a visão de mundo (Weltanschaung) dos gregos era
expressa por meio de seus deuses. Os gregos teriam estabelecido como dupla fonte de sua
arte, duas divindades, Apolo e Dionísio. A partir daí, os gregos e sua necessidade de “arte”
tornar-se-iam as “cismas e enigmas” de Nietzsche, para quem, nessa ocasião, era preciso
esclarecer o fenômeno dionisíaco. Acompanhando determinadas leituras posteriores desse
fenômeno, podemos dizer que o que Nietzsche fez foi “tentar adivinhar, porque o
apolinismo grego teve que se manifestar sob um horizonte dionisíaco”
212
.
Esses dois deuses representariam na arte uma contraposição quanto à origem e
objetivos. Haveria uma diferença entre a arte do figurador-plástico (Bildner) apolínea e a
arte não-figurada (unbildlichen) da música, a de Dionísio. Seriam manifestações de
impulsos no domínio da arte, cuja correspondência fisiológica encontraria a mesma

211
Idem, p 416
212
NIETZSCHE, Fragmento póstumo,VP nº 1050, cit LEBRUN, Quem era Dioniso? p 44
81
separação do sonho e da embriaguez. Por isso, a experiência onírica da bela aparência é
expressa em Apolo pela qualidade de seus poderes configuradores e aptidão divinatória.
Diante da figuração a compreensão é imediata, “todas as formas nos falam, nada há de
indiferente e desnecessário”
213
. Desse modo, Apolo poderia ser caracterizado como a
“explendida imagem divina do principium individuationis, a partir
de cujos gestos e olhares nos falam todo o prazer e toda a sabedoria da
‘aparência’ com sua beleza.”
214
A bela aparência de um mundo de imaginação e sonho deve ser contemplada como
superfície; afigura-se passiva, de formas coloridas, luminosas e solares. Situa-se aquém da
ação, como um modo de nos libertar do devir. Da mesma maneira, se a música fosse uma
arte apolínea, ela o seria somente pelo ritmo, cuja força imagética foi desenvolvida para
apresentação dos estados apolíneos; seria a “arquitetura dos sons apenas aludidos tais
como são próprios da cítara.”
215
Quanto ao diálogo, como parte apolínea da tragédia, este
chega à superfície aparentemente simples, transparente e belo.
“A linguagem dos heróis sofoclianos nos surpreende tanto por sua
apolínea precisão e clareza que temos a impressão de mirar o fundo mais
íntimo de seu ser, com certo espanto pelo fato de ser tão curto o caminho a
esse fundo.”
216
Dessa maneira, Nietzsche quer penetrar bem mais fundo no mito que se projeta
nesse espelhamento luminescente. Encontrar-se-iam as luminosas aparições dos heróis de
Sófocles como recurso apolíneo da máscara, seriam produtos necessários a um olhar para o
que há de mais íntimo e horroroso na natureza. O grego conhecia os terrores e horrores da
existência, mas os encobria para poder ver.

213
NIETZSCHE, A visão dionisíaca do mundo, p 15
214
NIETZSCHE, Nascimento da Tragédia, p 30
215
NIETZSCHE, A visão dionisíaca do mundo, p 12
216
NIETZSCHE, Nascimento da Tragédia, p 63
82
“Ver sua existência, tal como ela é inelutavelmente, em um espelho
transfigurador e proteger-se com esse espelho dos medos - essa foi a genial
estratégia da “Vontade” helênica para poder viver.”
217
É de outro modo que a embriaguez dionisíaca provém; quer da beberagem
narcótica, quer da pulsão da primavera (Frühlingstrieb), em que a força gerativa da
natureza se efetiva em sua forma mais elevada. Embriaguez e arrebatamento seriam os
poderes capazes de romper o princípio de individuação, reunindo os seres isolados e
deixando-os sentirem-se como um único. Sob o encanto dionisíaco, selar-se-ia não apenas a
ligação entre homem e homem, mas também com a natureza, antes tornada estranha, hostil
ou subjugada. A natureza volta a celebrar a festa de reconciliação com seu filho pródigo e,
espontaneamente, a terra oferece suas dádivas.
“Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma
comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de
dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento. O
homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a força artística de toda a
natureza, para a deliciosa satisfação do ‘Uno - primordial’, revela-se aqui
sob o frêmito da embriaguez.”
218
Na embriaguez dionisíaca, no impetuoso percorrer de todas as escaladas da alma, é
a arte ativa do criador que afirma o devir no seu duplo movimento: criação e destruição.
219
,
pois somente o dionisíaco é afirmativo, é na dissolução das formas que se obtém a
transfiguração, preside-se o universo das metamorfoses e concebe-se ativamente o devir.
Uma vez que a embriaguez é o jogo da natureza com o homem, também é o jogo
com o criar artístico. Dessa maneira, o servidor de Dionísio precisa estar embriagado e ao

217
NIETZSCHE, A visão dionisíaca do mundo, p 16
218
NIETZSCHE, Nascimento da Tragédia, p 31
219
KOSSOVITCH, Leon, (1942- ) Signos e poderes em Nietzsche, São Paulo, Ática, 1979, (Ensaios 60). p
124
83
mesmo tempo ficar à espreita atrás de si, como observador. O caráter artístico não se
mostra na alternância de lucidez e embriaguez, mas sim em sua conjugação.
220
A música, como arte dionisíaca, tem um caráter e uma origem diversos de todas as
outras artes, porque ela não é, como todas as demais, reflexo (Abbild) do fenômeno, mas
reflexo imediato da ‘Vontade’ mesma e, portanto, representa para “tudo o que é físico no
mundo, o metafísico, e para todo o fenômeno, a coisa em si.”
221
Com essa afirmação,
Nietzsche teria tomado para si o pensamento de Schopenhauer (O mundo como vontade e
representação I) no sentido de perceber a diferença de natureza que separa a música de
outras artes, seja por originalidade, seja por superioridade.
A música dionisíaca constitui-se do poder de comover através do som e do
incomparável mundo da harmonia. Na melodia, a ‘Vontade’ se revela imediatamente, antes
de se ter imiscuído em um fenômeno. O artista dionisíaco apresentará de modo
inevitavelmente inteligível a essência do fenômeno. Ele tem o domínio sobre o caos da
‘Vontade’ ainda não conformada e pode, a partir dela, em cada instante criador engendrar
um novo mundo.
222
Tendo recolhido, sob traços gerais, alguns aspectos de Apolo e de Dionísio,
acompanhando o pensamento inicial de Nietzsche, a seguir teríamos que ressaltar que o
caráter da oposição entre os deuses, chegaria a termo sobre um “compromisso”, em que a
arte necessitaria da presença de ambos. Mais que isso, trata-se do mundo para o qual
Nietzsche recusa toda a divisão ser/aparência, ainda que o artista demonstre preferir a
aparência, de modo que, para ele, existe somente um mundo, falso, cruel, contraditório,
enganador, vazio de sentido e de onde a aparência passaria a significar a realidade repetida,
porém selecionada, reforçada e corrigida.
223
Então, “criar aparências” não será mais, para o artista, evadir-se num sonho
apolíneo, mas será retomar, por sua própria conta, a operação própria de Dionísio. Seria em
certo sentido idealizar, de forma a “colocar violentamente em relevo os traços principais,
de maneira que os outros se esfumem”. Revisando a relação Apolo – Dionísio, Nietzsche

220
NIETZSCHE, A visão dionisíaca do mundo, p 10.
221
NIETZSCHE, Nascimento da Tragédia, p 97.
222
NIETZSCHE, A visão dionisíaca do mundo, p 12
223
LEBRUN, Quem era Dioniso? p 48
84
dirá que se trata de um conceito-oposição (Gegensatzs-Begriff) que expressa duas
variedades de embriaguez que, como condição fisiológica, tornou-se indispensável à toda
arte. Assim, Apolo e Dionísio nascem da mesma pulsão.
224
Considera-se então a origem comum desses deuses numa mesma pulsão
225
. A nosso
ver, essa nova perspectiva reúne os aspectos de delírio e de medida sob a ordenação das
intensidades de forças. Mais adiante, abrir-se-ia para Nietzsche a possibilidade de promover
Dionísio em detrimento de Apolo (como de fato o fez). Mas também abre-se a
possibilidade de mantê-los ocultos por detrás de sua escrita e de seus estilos, conservando
assim uma permanente tensão.
Tal como acontece com o mito, como aponta Humberto Giannini
226
, também com a
linguagem e por meio dela ocorre uma transferência de pensamentos e de “mundo” através
de gerações. Ao efetuar-se de maneira tranqüila e sem sobressaltos, essa transferência
produz-se uma tradição ou uma experiência comum que capacitaria subentender as mesmas
coisas a partir dos mesmos signos. Entretanto, ocorrem com freqüência inúmeras
incidências e perturbações estranhas, tanto sobre os falantes como sobre o próprio sistema.
São elas que afetam diretamente o signo, de modo que ele passa a atrair conotações alheias
ou, de outro modo, passa a perder suas conotações próprias. Desse processo resulta que
sobre um mesmo signo, em épocas distintas, podem ser associados os mais diversos
pensamentos. Essa prática torna difícil, senão impossível, o denominado “diálogo
geracional”
227
. O signo assim entendido seria o ponto de partida, momento privilegiado e
originante com relação a todos os outros que possa reconduzir-nos à primeira apreensão da
coisa nomeada. Tratar-se-ia, nesse caso, de “uma dação sem história”? Ora, se para o
etnólogo o nome diz a coisa, e o diz de maneira objetiva em sua própria estrutura, então o
nome não funciona como um mero indicador, senão como um dizer, como um significado.

224
LEBRUN, Quem era Dioniso? pp 45-49
225
“Nietzsche considera pulsão (Trieb) e ou instinto (Instinkt), como Triebkraft,e que, por conseguinte tais
noções se vinculam intimamentecom a teorização nietzscheana de forças [...]Estas por sua vez, são da ordem
do múltiplo, da pluralidade das forças em oposição, que não se deixa recolher como síntese totalizadora num
movimento dialético de conciliação.” GIACÓIA, O Conceito de Pulsão em Nietzsche, in MOURA, org. As
Pulsões, São Paulo, Escuta, EDUC, 1995. pp 79ss
226
Humberto Giannini, é professor das Universidades de Chile e Católica de Chile. Autor dentre outros de El
pasar del tiempo y su medida.
227
GIANNINI, Humberto, El demonio del mediodia, in Teoria 5-6, Universidad de Chile, 1975. p 104
85
Nesse sentido, conforme entende Giannini, é o discurso que constitui a substância do nome,
e não ao contrário. O nome se reintegra, em algum ponto de sua história, a um dizer a coisa.
O discurso está constantemente se remetendo a si mesmo para dar nascimento às suas
próprias partes constitutivas, os nomes. De outro modo, o nome é um discurso já feito.
228
Retomemos o pensamento de Nietzsche a esse respeito:
“Outrora a palavra já passava por um conhecimento da coisa, e
ainda hoje as funções gramaticais são as coisas que mais se crê e contra as
quais nenhuma precaução seria excessiva. É possível que a mesma raça de
homens que inventou, mais tarde, os sistemas filosóficos dos vedantas, tenha
inventado, milhares de anos antes uma linguagem que não era, como
acreditavam, uma linguagem cifrada, mas o próprio conhecimento do
universo. Mas cada vez, até o presente, que se declarou: “Isto é”, achou-se
uma época ulterior mais penetrante para que essas palavras só tenham um
sentido possível: “Isto significa”.”
229
Encontraríamos então, segundo Nietzsche, esse momento primeiro, privilegiado e
único, no qual as palavras corresponderiam às coisas, após o que, por esquecimento ou
fossilização da metáfora inicial,
“as palavras da linguagem humana pareceram durante muito tempo
[...] não serem signos, mas verdades relativas às coisas que elas
designam.”
230
Já o pensamento de Platão, no que diz respeito ao conhecimento, estabelece uma
outra ordem. Platão movimenta-se na relação Idéia – simulacro, na qual a imagem ocupará
o final de uma hierarquia ontológica. Assim, na Carta VII, distinguirá finalmente cinco
níveis para o conhecimento das coisas mais sublimes; destacamos aqui os três primeiros

228
GIANNINI, Humberto, Acerca de la rectitud de los nombres, in Teoria 2, Universidad de Chile, 1974. p
47
229
NIETZSCHE, VP verão 1885/ inverno 1885-86. Liv.I, t. I, §99. Cit, KOSSOVITCH, p 59.
230
NIETZSCHE, VP verão 1885 LivI, tI, §112, Cit, KOSSOVITCH, p 70
86
elementos comuns a todos os seres, e que levam à aquisição da ciência como quarto
elemento:
“O primeiro elemento é o nome; o segundo a definição, o terceiro a
imagem. Um exemplo: o círculo – eis uma coisa expressa, cujo nome foi
proferido; sua definição: o que tem as extremidades a uma distância
perfeitamente igual do centro; sua imagem: o desenho que se traça e se
apaga, a forma que se molda no torno e se acaba.”
231
.
Com relação ao nome e mais precisamente ao nomear, Platão no Crátilo, diz que as
coisas tem um modo natural de serem nomeadas. Cada coisa “diz”, nomeia seu próprio ser.
Assim, o nomear corresponde a um declarar-se da coisa na alma; de onde conhecer uma
coisa é “apreender sua essência”, capturar seu nome verdadeiro. Nomear para Platão jamais
seria um “cego” designar. A esse respeito destacamos no Crátilo (399c):
“O nome Anthropos significa que, ao contrário dos outros animais
que não examinam o que vêem, nem o analisam nem contemplam, o homem,
ao mesmo tempo em que vê _ pois é isso, justamente, que quer dizer opôpe
contempla e analisa o que viu. Por isso, dentre todos os animais é o homem
o único justamente denominado Anthropos, ou seja, anathrôn ha ópôpe, o
que contempla o que vê.”
232
Em contrapartida, para Heráclito, cujo pensamento é confrontado no Crátilo, a coisa
“dizer de si” refere-se precisamente à preponderância do ouvir em detrimento da visão.
Dessa maneira, a coisa diz seu ser não como substância, mas como um discurso, ou uma
estrutura gramatical móvel. No instante em que o homem escuta e compreende, tem início a
história da linguagem e do homem como decadência, pois, acreditando poder apoiar-se na
fixidez e estabilidade de um nome, o homem imagina poder ocultar-se do movimento e do
devir.
233

231
PLATÃO, Cartas, Carta VII, p 74
232
PLATÃO, Crátilo, (399c) p 140
233
GIANNINI, Humberto, Acerca de la rectitud de los nombres, p 49
87
Dentre outros estudos atuais, destacaremos a seguir o de Suzanne Langer
234
em
Especulações sobre as Origens da Linguagem e sua Função Comunicativa
235
. Ao abordar o
problema de como as palavras se vinculam aos objetos como nomes distintivos e como se
generalizaram de modo a denotar espécies de coisas antes que indivíduos, a autora
considera que deve ser abandonada a noção de que o homem inventou a linguagem,
estabeleceu nomes para as coisas e outras convenções básicas. A autora reforça que nomear
é um processo que pressupõe a linguagem.
Esse processo teria início com a imagem visual. Ela constitui um paradigma da
imaginação e também a matéria de que se fazem os sonhos. Por suas diversas
características, a imagem assume naturalmente o caráter de símbolo, tais como “produção
espontânea”, tendência ao enredamento e fusão no processo de formação. São também
salientadas sua origem na percepção, sua relação com a “representação”, e mais, o fato de
que uma vez formada, uma imagem pode ser reativada de muitas formas, através de
estímulos quer externos quer internos e sua ligação com as emoções. Nesse processo, a
imagem liberta-se da percepção e torna-se geral, podendo representar alguma outra coisa
que não seu próprio estímulo original. Similaridades esquemáticas de imagens distintas, em
outros aspectos, possibilitariam recordar um objeto por meio de outro, de maneira que
qualquer comparação reforçaria a percepção da forma. Nisto consistindo o processo natural
da abstração.
236
Há, além disso, um mecanismo de conexão da imagética com as emoções;
no complexo de imagens, a mais carregada de emoção torna-se dominante, as demais
imagens limitam-se a repetir, reforçar e representar no próprio cérebro, mesmo abaixo do
nível da consciência.
Ainda segundo a interpretação de Suzanne Langer, é provável que todo mecanismo
de simbolização tenha sido elaborado no sistema visual antes que sua força pudesse ser
transferida ao domínio vocal – auditivo. Assim, desde a dança tribal, os sons vocais, os

234
Suzanne Langer, (1895-1985) Autora de Philosophy in a new key. Mind: an essay on human feelings.
Traduziu do alemão Language and Myth de Ernest Cassirer
235
LANGER, Suzanne, Ensaios Filosóficos : pp 33-56.
236
ARHEIN, Rudolf, Art and Visual Perseption, apud Suzanne Langer, p 49: O autor aprofunda as distinções
entre percepção e representação. No que diz respeito à faculdade do pensamento simbólico abstrato, de grande
papel na mentalidade humana mais avançada, esta apoiar-se-ia em um talento de visão abstrativa
relativamente primitiva que surgiria com a natureza da imagem visual.
88
passos e os gestos evocariam imagens nos cérebros ultra-excitados dos celebrantes. O
ingrediente vocal atuaria como facilitador, diminuindo a necessidade de esforço e tempo. A
seguir, as pessoas poderiam reativar suas imagens simbólicas emocionais a partir de um
fragmento das canções festivas. Nesse aspecto, a imagem seria o efeito mágico do padrão
sonoro quando este é entoado fora da dança. A imagem assim caracterizada seria uma
concepção pura, que não assinala nem requer seu objeto, mas denota-o.
Complementarmente, é pertinente neste panorama pontual sobre a imagem,
incluirmos uma nota de Paul Veyne
237
, que em seus escritos sobre o Império Romano
refere-se às imagens báquicas. O pensador ressalta a importância teórica de uma idéia do
sociólogo Passeron, segundo o qual a linguagem das imagens não é assertiva, pois o que
uma imagem apresenta aos olhos ela não pode afirmar nem negar. Dessa forma, as imagens
báquicas
são sedutoras proposições que não exigem resposta e deixam na
indecisão o peso de sua realidade. [...] A imagem, estando aquém da
afirmação, não toma partido e não exige que se tome partido. Mas não ser
assertiva não significa que uma imagem seja apenas decorativa.”
238
Quanto ao salto imagem – linguagem, o grande passo teria sido dado quando o
homem movimentou seus órgãos vocais para registrar uma imagem e suscitou uma
ocorrência equivalente em outro cérebro, e ambos se referiram à mesma coisa. Conclui-se
que visão e audição são ambas necessárias para produzir linguagem, mostrando a descrição
desta capacidade humana: suscitar idéias nas mentes uns dos outros. Isso não ocorreria no
curso da noção, mas no campo da emoção e da memória, em reflexão. Tornar as imagens
comuns equivale a comunicá-las.
Nietzsche delineará muitos desses aspectos presentes na composição da linguagem
pois constituiriam a transposição da imagem, acrescida do som, para a linguagem. Valoriza,
para essa transposição, o exercício de memória e identificação de semelhanças.

237
Paul Veyne(1930- ),Pensador e historiador francês, professor emérito do Collège de France. Autor de
Como se escreve a história e Acreditaram os gregos em seus deuses?
238
VEYNE, Paul, História da Vida Privada, “O Império Romano”, nota 3 p 223.
89
“Nossas percepções sensoriais não se baseiam em ordenações
inconscientes senão em tropos. O processo original consiste em identificar o
semelhante com o semelhante entre uma coisa e outra. A memória vive essa
atividade e se exercita continuamente. O fenômeno original é o caos. Isto
pressupõe a visão de formas. A imagem no olho é determinante para nosso
conhecimento, em seguida o ritmo em nosso ouvido.”
239
Acrescente-se ainda que a linguagem, como principal instrumento de expressão
conceitual, antes de comunicar idéias, lhes dá forma. É ela que as torna claras e as faz ser o
que são. Tudo o que tenha nome constitui um objeto para o pensamento. Entretanto, mesmo
que a linguagem confira forma à experiência exterior, a experiência interior, a vida dos
sentimentos e da emoção permanece inacessível à sua influência formativa. Em A Filosofia
na Idade Trágica dos Gregos, Nietzsche diz que o verso e o pensamento dialético, aos
quais se agarram o poeta e o filósofo, respectivamente, para fixar seu encantamento, não
passam de um “balbuciar em língua estrangeira”, como transposições de metáforas. A
palavra falha quando o poeta quer dizer o que viveu e o que viu. Ele só poderia traduzi-lo
diretamente através dos gestos e da música; assim seria também para a expressão de toda
intuição filosófica profunda: “Foi assim que Tales vislumbrou a unidade do ente; e quando
quis comunicar, falou da água!”
240
Sem dúvida, mesmo ressaltando a importância do pensamento de Tales, Nietzsche
assinala o caráter metafórico de sua expressão, referindo-se à transposição (Übertragung)
como recurso de linguagem. Para designá-la os gregos primeiramente (Isócrates e
Aristóteles) teriam utilizado a palavra metáfora. No século I, Hermógenes diz que, entre os
gramáticos, ainda chamam de metáfora o que os retóricos denominam tropos. Entre os
romanos se adota tropus. Cícero, por sua vez, fala de translatio ou immutatio.
241

239
NIETZSCHE, Escritos sobre Retórica, “Notas sobre retórica”, Fragmento póstumo, 7,19[217]. p 219.
240
NIETZSCHE, A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos,Trad. Maria Inês Madeira de Andrade, rev Artur
Mourão. Rio de Janeiro, Elfos Ed, Lisboa, Ed 70, 1995 p 31-2. [R pp 10-12 in Os Pré-socráticos, São Paulo,
Abril Cultural, 1978].
241
NIETZSCHE, Escritos sobre Retórica, p 107
90
Em ligação com a filosofia de Schopenhauer e com as reflexões sobre a linguagem
de Gustav Gerber
242
, Nietzsche considera que a “essência” das coisas só emerge como
representações. Isso de tal modo que, tanto o mundo como nós mesmos, não seríamos mais
que imagens indecifráveis. Dessa maneira, ter-se-ia tornado possível para Nietzsche
inscrever a metáfora em uma situação privilegiada. A partir dessa localização, seria
possível articular, de uma forma ordenada, a crítica à metafísica, ao conhecimento e à
linguagem conceitual. Em suma, para Nietzsche a linguagem é retórica, e as palavras não
seriam mais que tropos. São os tropos que apresentam uma imagem sonora que se evanesce
com o tempo. Movimento contrário daquilo que se tem como verdadeiro.
Por outra parte, a linguagem nunca expressa algo de modo completo, senão que
exibe somente um sinal que lhe parece predominante.
“Não são as coisas que penetram na consciência, senão a maneira
que nós estamos diante delas, o poder de persuasão. Nunca se capta a
essência plena das coisas. Nossas expressões verbais nunca esperam que
nossa percepção e nossa experiência nos tenham procurado um
conhecimento exaustivo, e de qualquer modo respeitável, sobre a coisa.
Produzem-se imediatamente quando a excitação é percebida. Em vez da
coisa, a sensação só capta um sinal (Merkmal). Este é o primeiro ponto de
vista: a linguagem é retórica, pois só pretende transmitir (übertragen) uma
doxa, e não uma episteme.”
243
Se levarmos até as suas conseqüências relacionais essa afirmação de Nietzsche,
estaria aparentemente de acordo com Platão, para quem, de modo valorativo excludente a
retórica era simples doxa. Entretanto, Nietzsche viria aderir a essa condenação platônica
somente com o sentido de transvalorá-la. Trata-se de fato de uma posição antagônica, pois

242
Santiago Guervós na introdução aos Escritos sobre retórica de Nietzsche, observa que estudos paralelos
mais recentes vêm confirmando a influência das reflexões sobre a linguagem de Gustav Gerber sobre o
pensamento nietzscheano. Gerber, aliás, constituiria com relação a Nietzsche o elo de ligação com Humboldt.
Isso ocorre, diz Guervós, apesar de Nietzsche mencionar Gerber apenas uma vez em seus escritos sobre
linguagem (nota de pé de página nos Escritos sobre retórica §3). Ao contrário existiria uma presença explícita
de outros pensadores, além de Kant, Schopenhauer ou Wagner, como por exemplo Lange ou Hartmann, com
os quais Nietzsche polemiza diretamente. NIETZSCHE, Escritos sobre retórica, Introducción, p 18.
243
NIETZSCHE, Escritos sobre Retórica, p 91
91
Platão coloca a retórica como arte de ilusão e engano, em relação à linguagem
“matemática” da lógica demonstrativa, no limite, epistemológica (Górgias 465 b-c).
Nietzsche, na sua efetivação da “inversão do platonismo”, recolhe a retórica e destaca suas
raízes em um povo “que ainda vive entre imagens míticas e não conhece ainda a
necessidade absoluta da fé histórica; eles preferem ser persuadidos a serem instruídos”
244
.
A linguagem mítica, que predispõe para a retórica, conteria a “verossimilhança”. No
entanto, se mantém, em ambas, seu caráter de persuasão, no sentido de que sua finalidade
seria precisamente suscitar uma doxa.
A partir da definição aristotélica : “Retórica é a faculdade (dynamis) de observar
todos os possíveis de persuasão sobre cada coisa” (Retórica 1,2.) Nietzsche adiciona a
essa definição tida por ele como puramente formal “Tudo aquilo que é possivelmente
verossímil e convincente”. Além disso, Aristóteles utiliza o termo “dynamis” que também
usa para falar da “potência” frente ao ato. Nietzsche o traduz por força, “Kraft”. Com essas
considerações, Nietzsche faz que a retórica, como um poder próprio do discurso, possa
tornar-se uma força, e conseqüentemente possa tornar-se a força da linguagem em geral.
Com isso, Nietzsche dirá:
“O poder de descobrir e fazer valer para cada coisa o que atua e
impressiona, essa força que Aristóteles chama “retórica”, é ao mesmo
tempo a essência da linguagem: esta, o mesmo que a retórica, tem uma
relação mínima com o verdadeiro, com a essência das coisas; a linguagem
não quer instruir senão transmitir (übertragen) a outro uma emoção e uma
apreensão subjetivas.”
245
Nietzsche via, efetivamente, na retórica um verdadeiro poder. Tratava-se do poder
da palavra que entre os gregos constituía-se como a mais alta prerrogativa. Como
encontramos em Górgias:
“A palavra é um poderoso soberano que com um couro
pequeníssimo e imperceptível pode levar a cabo obras divinas, já que pode

244
NIETZSCHE, Escritos sobre Retórica, p 81.
245
NIETZSCHE, Escritos sobre Retórica, p 91.
92
fazer cessar todo medo, como quitar a pena, provocar o prazer e
acrescentar a paixão”.
246
Por isso, Nietzsche dirá dos antigos:
“Este mosaico de palavras, no qual cada palavra derrama sua força
e seu som, como lugar, como conceito, à direita e esquerda e pelo todo, esse
mínimo de signos, isto com o que se alcança um máximo da energia dos
signos”.
247
Nietzsche situa-se em um patamar diferencial ou em contraposição ao que na
atualidade depreciativamente denomina-se retórico por considerar o uso constante dos
artifícios dos discursos e, por ser a retórica, o meio de uma arte consciente. Originariamente
o retórico era ativo e meio de uma arte inconsciente e de desenvolvimento da linguagem.
Neste sentido podemos compreender a afirmação de Nietzsche:
“A retórica é um aperfeiçoamento dos artifícios presentes já na
linguagem.
248

246
PLATÃO, Gorgias, Elogio de Helena 9
247
NIETZSCHE, Escritos sobre Retórica, Introdução, nota 20 [KSA, 6,155]. p 15
248
NIETZSCHE, Escritos sobre Retórica, p 91
93
Considerações finais
Esta dissertação desenvolveu-se a partir da própria indagação que a nomeia: Como
se configura o PORTAL “INSTANTE”? Tal pergunta surgiu ao observarmos que, se por
um lado Nietzsche diz que seus textos devem ser ouvidos, por que então, no capítulo “Da
visão e enigma” de Assim falou Zaratustra, ele oferece uma imagem para ser vista e
decifrada?
Primeiramente, pudemos constatar que Zaratustra, ao mesmo tempo em que anuncia
o além-do-homem, ensina aos homens as “Três transmutações do espírito”, vivenciando-as.
Dessa forma, é a experimentação própria e antecipada de Zaratustra, mediante a qual se
torna cada vez mais si mesmo, que transmite junto aos seus discursos, a forma como
ocorrem as referidas transmutações. A nosso ver, efetiva-se, assim, que o homem seja ponte
para o além-do-homem e prepara-se Zaratustra para ser seu portador.
Para isso torna-se necessário que tais transmutações ocorram em sua totalidade, não
apenas racionalmente, mas no próprio corpo (grande razão) e em cada uma de suas partes.
Assim pudemos registrar, por exemplo, como se efetiva a transmutação do olhar, que tem
que purificar e ampliar a visão: ver do alto, ver de longe e ver em profundidade.
Se isso acontece para os homens, da mesma forma que para Zaratustra, podemos
depreender que teria de ocorrer no espaço-tempo? Zaratustra, seguindo sua voz interior,
realiza sua viagem percorrendo a Terra, por cumes e abismos, e tendo como destino o mar,
extremos do mundo que também são seus.
A nosso ver, Zaratustra transmuta-se em leão diante do PORTAL “INSTANTE”.
Este é o momento crítico do “tornar-se” de Zaratustra e, como ponto crítico espaço-
temporal, o instante é o limite que se impõe entre o antes e o depois. Enquanto que o portal
é o ponto fronteiriço que une duas direções, para trás e para frente, ele é a imagem do limite
que o homem estabelece para si, materializando a possibilidade de ultrapassá-lo. Devemos
enfatizar ainda que o instante também se caracteriza como uma condição para toda criação
94
e ato livre. Dessa maneira, como o leão em sua potência, Zaratustra poderá criar liberdade
para seu querer e seu criar.
É oportuno ressaltar que a saga de Zaratustra pressupõe a morte de Deus. Esse
“grande acontecimento” seria, segundo Nietzsche, aquele que propicia a libertação do
homem e exige sua superação. Isso posto, o presente de Zaratustra consiste em trazer um
novo sentido ao homem e também à Terra, considerada como único “mundo verdadeiro”,
pois não existe nada fora deste mundo.
As noções de tempo e de espaço, até então subsumidas ou até mesmo coincidentes
com a noção de Deus, possibilitaram ao homem vincular suas dimensões finitas à infinitude
espaço-temporal. Perdido esse vínculo, será através do PORTAL “INSTANTE” que se
torna possível vislumbrar uma outra noção, a do “eterno retorno”, que também seria
espaço-temporal.
Soma-se então à perspectiva de libertação do homem, possibilitada pela morte de
Deus, o instante, relacionado ao modo de conhecimento “centelhante” em Platão. Como
revelação decorrente de uma longa e secreta lavra, em Nietzsche, pode ser entendido
também, como o momento de efetivação das forças. Isso pode ser explicitado se
consideramos as diversas modalidades dessa efetivação, tais como são os “problemas” de
Zaratustra, do apóstolo Paulo, dos “espíritos livres” e, afinal, do próprio Nietzsche.
Assim, a libertação proporcionada no instante concorda com a noção de liberdade
nietzscheana, como “algo que se tem e não se tem, se quer, e que se conquista”
249
. Desse
modo consideramos que o instante não é único, mas um momento privilegiado que se
configura diferencialmente, cada vez que se conquista uma superação.
O instante, além de ser uma ferramenta de interferência no tempo, insere-se no
pensamento nietzscheano como um recurso de linguagem e, assim como a linguagem nas
mãos de Nietzsche, torna-se seu martelo de filosofar. Distingue-se, em seu funcionamento,
a efetivação e o distanciamento de Nietzsche em relação a Platão. Assim, Nietzsche, ao
narrar a “História de um erro” aponta-o, inclusive, como o ponto limite de sua “inversão do

249
NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, §38 [R p 340-341]
95
platonismo”: “(Meio dia, instante da mais curta sombra; fim do mais longo erro, ponto
alto da humanidade, INCIPIT ZARATUSTRA)”
250
No âmbito da linguagem, a transvalorização dos critérios platônicos efetiva-se em
Nietzsche por intermédio de várias perspectivas, configurando um percurso. Por um lado,
Platão desenvolve seus diálogos conduzindo seu interlocutor a indagar o que é?, ou seja,
pergunta pela essência das coisas, para obter o “conhecimento verdadeiro”. Por outro lado,
Nietzsche, sem fazer uso da dialética por entendê-la “tirânica”, substitui a pergunta o que
é? por como?, buscando o funcionamento e não a essência das coisas. Para ele, não há
“essência”, inclusive porque considera a origem da linguagem metafórica, como
transposição de um estímulo nervoso em som. No limiar, a palavra é um tropos e a
linguagem é retórica. Ao recolher a retórica como possibilidade de expressão, potencializa
a linguagem e privilegia seu poder de persuasão; pois, para Nietzsche, “Não são as coisas
que penetram na consciência, senão a maneira que nós estamos diante delas, o poder de
persuasão”
251
. Da mesma forma, a linguagem expressa somente aquilo que lhe parece
predominante.
Esse aspecto viria reforçar uma outra diferença entre Platão e Nietzsche. Trata-se
das relações diferenciais que ambos mantêm com o discípulo e o leitor. O estilo dialético
marcaria em Platão um trabalho de condução do interlocutor, ao passo que os textos
nietzscheanos requereriam uma “arte de interpretação”, proporcionando um incitamento à
inversão de estimativas de valor.
No âmbito da teoria semântica, pudemos encontrar a metáfora como outra
ferramenta forte da linguagem nitzscheana. Isso considerando seu caráter instintivo e
intuitivo, que possibilitaria a união de pensamento e experiência. Mantendo a tensão entre
os planos literal e metafórico e estabelecendo a fusão do sentido com as imagens evocadas,
tornaria mais direta e ampliada a interpretação que, contudo, permanece controlada pela
linguagem.

250
NIETZSCHE, Crepúsculo dos Ídolos, Como o verdadeiro mundo acabou por se tornar em fábula, História
de um erro, [R pp 332- 333].
251
NIETZSCHE, Escritos sobre Retórica, p 91
96
Tratando da introdução da imagem ou do imaginário em uma teoria da metáfora,
obteríamos na leitura o significado verbal gerando imagens, que estabelecem os traços da
experiência sensorial. Dessa forma, o sentido metafórico estaria formado pela intensidade
da cena imaginada e retratado pela estrutura verbal. Ressaltamos que, esse processo é dado
de forma imediata, conforme se depreende da noção do “ver como” vinculada por Hester à
teoria icônica da metáfora. O “ver como” seria um fator revelado no ato da leitura, “ver isto
como” ou “ter esta imagem” mantém juntos sentido e imagem, como elo seletivo sobre a
leitura da metáfora e os aspectos apropriados do imaginário.
Para Nietzsche, o impulso à formação de metáforas, fundamental no homem, resiste
à regularidade e rigidez dos conceitos. Conceitos esses que, de acordo com o próprio
Nietzsche, constituem um edifício contruído sobre a base de metáforas, das relações de
espaço, tempo e número. Dessa forma, esse impulso encontrará de modo alternativo, no
mito e na arte, um novo território para sua atuação.
Segundo Nietzsche, o mito, como imagem concentrada do mundo e, como novo
domínio de criação, estaria vinculado à visão de mundo (Weltanschaung), já entre o povo
grego antigo. Desse modo, o mito teria para uma cultura o papel de conformador de sua
unidade, sendo um substrato de sua força natural, sadia e criadora. Caberia ainda ao mito
intermediar a relação tempo-eternidade de uma “metafísica inconsciente”. Em
contrapartida, para a cultura moderna, que rompe com a referida metafísica e com seus
conseqüentes pressupostos éticos, efetua-se uma transformação da relação temporal, e tudo
aparece no “tempo de agora” (Jetztzeit). Dessa maneira, a visão de mundo seria mediada
por outras abstrações.
Assim, considerando o mito como mediador de uma leitura do PORTAL
“INSTANTE”, podemos assinalar sua presença com relação à interpretação do leitor. É o
leitor que o distingue em perspectivas, conforme sua visão de mundo, marcada com maior
ou menor intensidade por uma tradição de linguagem e cultura.
De outra perspectiva, poderíamos perceber os mitos de Apolo e Dionísio, no interior
do pensamento nietzscheano, segundo o modo que permeiam seus escritos. Seja
observando suas características de configuração plástica e de força imagética, ou
ressaltando o poder do som e harmonia. Em todo caso, trata-se da afirmação artística do
97
devir no seu duplo movimento: destruição e criação. A nosso ver, essa dupla presença
mítico-artística subjaz à escrita e aos estilos de Nietzsche, como tensão variável conforme a
ênfase e as nuances.
Podemos dizer que os mitos de Apolo e de Dionísio repercutem na escrita
nietzscheana de tal modo que, em sua abrangência geral, poderiam ser comparados à
imagem e ao som, na composição da linguagem “A imagem no olho é determinante para
nosso conhecimento, em seguida o ritmo em nosso ouvido”
252
. Neste sentido, pensamos as
transposições imagem e som, como metáforas que comporiam a linguagem em sua origem.
Além disso, nesse funcionamento originário da linguagem, mediante o qual
conhecemos as coisas pela maneira que estamos diante delas e, pelo poder de persuasão,
nossas expressões verbais se produziriam imediatamente à excitação percebida, conhecendo
o mundo e a nós mesmos como imagens indecifráveis. Sobre esse aspecto, Nietzsche dirá
que: “a linguagem é retórica, pois só pretende transmitir (übertragen) uma doxa, e não
uma episteme
253
.
Reunidas as considerações acima, podemos dizer que Nietzsche, utilizando-se da
imagem e do mito como recursos de uma linguagem persuasiva que lhe é própria, incita seu
leitor a seguir o percurso de Zaratustra, preparando-o para o momento de “Da visão e
enigma”. Nesse instante, apresenta a imagem do PORTAL “INSTANTE” para, nesse lapso
de tempo, mostrar integralmente o “eterno retorno” ao leitor que se transmuta, e, ao faze-
lo, abrir as perspectivas de pensamento, de interpretação e de sentido.
Registramos, como ressalva, que estas considerações finais não pretendem ser
conclusivas. Ao resumi-las recolhemos apenas determinados aspectos de uma leitura,
perdendo tanto nossos “desvios” como as nuances dos próprios textos de Nietzsche. Por
outra parte, pensamos que uma leitura de Nietzsche não poderia se fechar em uma
conclusão, mas lançar-se ao porvir como uma perspectiva e, nessa medida, querer se expor
ao “agón” de outras leituras possíveis.

252
NIETZSCHE, Escritos sobre Retórica, “Notas sobre retórica”, Fragmento póstumo, 7,19[217]. p 219.
253
NIETZSCHE, Escritos sobre Retórica, p 91
98
Anexo
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra III “Da visão e enigma
§1
254
Quando correu entre os marinheiros a voz de que Zaratustra se encontrava no barco,
- pois ao mesmo tempo em que ele havia subido a bordo um homem que vinha das ilhas
afortunadas – produziu uma grande curiosidade e expectativa. Mas Zaratustra esteve calado
durante dois dias, frio e surdo de tristeza, de modo que não respondia nem aos olhares,
nem às pergunta. Ao entardecer do segundo dia, contudo, ainda que guardasse silêncio,
voltou a abrir seus ouvidos: pois havia muitas coisas estranhas e perigosas a ouvir naquele
barco que vinha de longe e que queria ir ainda mais longe. Zaratustra era amigo, com
efeito, de todos aqueles que realizam grandes viagens e não gostam de viver e perigo. Eis
que, por fim, a força de escutar, sua própria língua se soltou e o gelo de seu coração se
quebrou: - então começou a falar assim:
A vós audazes buscadores e indagadores, e a quem quer que alguma vez se tenha
lançado com astutas velas a mares terríveis, -
A vós ébrios de enigmas, que gozais com a luz do crepúsculo, cujas almas são atraídas com
flautas a todos os abismos labirínticos:
-pois não quereis, com mão covarde, seguir tateando um fio; e ali onde podeis
adivinhar, odiais o deduzir -
a vós somente vos conto o enigma que tenho visto, - a visão do mais solitário –

254
Traduzido pelo Grupo Nietzsche e o Pensamento Atual. Do alemão baseado em Ainsi parlait Zarathoustra
/ Also sprach Zarathustra. Trad. de Geneviève Bianquis. Paris, Aubier-Flammarion, 1969, 2 vols. (éd.
bilingüe). Com apoio de NIETZSCHE, Así habló Zaratustra: un libro para todos y para nadie, intr., trad. e
notas, Andrés Sanchez Pascual, Madrid, Alianza Ed, 2003. (El libro de bolsillo/Biblioteca de autor). pp227-
229.
99
Sombrio caminhava eu há pouco através do crepúsculo de cor de cadáver, - sombrio
e duro, com os lábios apertados. Pois mais de um sol havia se afundado em seu ocaso para
mim.
Um sendeiro que ascendia obstinado através de pedregulhos, um sendeiro malígno,
solitário, ao qual já não alentam nem ervas, nem arbustos: um sendeiro de montanha rugia
sob a obstinação de meu pé.
Avançando mudo sobre o rangido zombeteiro dos pedregulhos, calcando a pedra
que o fazia escorregar: assim abria passo meu pé para cima.
Para cima: - apesar do espírito que dele atirava para baixo, para o abismo, o espírito
de peso, meu demônio e inimigo capital.
Para cima: - ainda que sobre mim estivesse sentado este espírito, metade anão,
metade toupeira; paralítico, paralisante; desejando deixando cair chumbo em meu ouvido,
pensamentos-gotas de chumbo em meu cérebro.
“Oh Zaratustra, me sussurrava zombeteiramente, soletrando as palavras, tu, pedra de
sabedoria! Lançaste a ti mesmo par cima, mas toda pedra lançada – tem que cair!
Oh Zaratustra, tu, pedra da sabedoria; tu, pedra de estilingue; tu, destruidor de
estrelas! Lançaste a ti mesmo muito alto, - mas toda pedra lançada – tem que cair!
Condenado a ti mesmo e à tua própria lapidação: oh Zaratustra, sim, longe lançaste
a pedra, - mas sobre ti cairá de novo!”
Calou-se aqui o anão; e isto durou um longo tempo. Mas seu silêncio me oprimia; e
quando se está assim entre dois, se está, em verdade, mais solitário do que quando está só!
Eu subia, subia, sonhava, pensava, - mas tudo me oprimia. Assemelhava-me a um
enfermo ao qual seu terrível tormento o deixa rendido, e a quem um sonho mais terrível
volta, a despertá-lo quando acaba de dormir, -
Mas há algo em mim que eu chamo coragem: até agora, esta tem matado em mim
todo o desânimo. Essa coragem me levou por fim a deter-me e dizer: “Anão! Tu! Ou eu!”
A coragem é, com efeito o melhor matador,- a coragem que ataca: pois todo ataque
se faz ao tambor batendo.
100
Mas o homem é o animal mais corajoso: por ela tem vencido a todos os animais. O
tambor batendo tem vencido inclusive todas as dores; mas a dor mais profunda.
A coragem mata inclusive a vertigem junto a abismos: e em que lugar não estaria o
homem junto a abismos! O simples olhar não é – olhar abismos?
A coragem é o melhor matador: a coragem mata inclusive a compaixão. Mas a
compaixão é o abismo mais profundo: quando o homem afunda seu olhar na vida, outro
tanto a afunda no sofrimento.
Mas a coragem é o melhor matador, a coragem que ataca: esta mata a morte mesma,
pois diz: “era isto a vida? Bem! Outra vez!
Nestas palavras, contudo, há muito som de tambor batendo. Quem tem ouvidos,
ouça. -
§2
255
“Alto, anão!”, falei eu. “Ou eu ou tu! Mas eu sou o mais forte de nós dois _ : tu não
conheces meu pensamento abissal! Esse _ tu não poderias carregar!” _
Então aconteceu que me torneie mais leve: pois o anão saltou-me do ombro, o
curioso! E agachou-se sobre uma pedra diante de mim. Mas havia um portal, precisamente
ali onde fizemos alto.
“Vê este portal, anão!”, continuei a falar: “ele tem duas faces. Dois caminhos se
juntam aqui: ninguém ainda os seguiu até o fim.
Este longo corredor para trás: ele dura uma eternidade. E aquele longo corredor para
adiante _ é uma outra eternidade.

255
Transcrição do texto NIETZSCHE, Obras Incompletas, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo,
Abril Cultural, Os Pensadores, 3ª ed. 1983. pp 243-245
101
Eles se contradizem, esses caminhos; eles se chocam frontalmente: e aqui neste
portal é onde eles se juntam. O nome do portal está escrito ali em cima: “Instante”.
Mas se alguém seguisse adiante por um deles _ e cada vez mais adiante e cada vez
mais longe: acreditas, anão, que esses caminhos se contradizem eternamente?”_
“Tudo o que é reto mente”, murmurou desdenhosamente o anão. “Toda verdade é
curva, o próprio tempo é um círculo.”
“Tu, espírito do peso!”, falei, irado, “não tornes tudo tão leve para ti! Ou te deixo
agachado aí onde estás agachado, pé coxo _ e olha que eu te trouxe bem alto!
Vê, continuei a falar, vê este instante! Deste portal Instante corre um longo, eterno
corredor para trás: atrás de nós há uma eternidade.
Não é preciso que, de todas as coisas, aquilo que pode correr já tenha percorrido
uma vez esse corredor? Não é preciso que, de todas as coisas, aquilo que pode acontecer já
tenha uma vez acontecido, já esteja feito, transcorrido?
E, se tudo já esteve aí: o que achas tu, anão, deste Instante? Não é preciso que
também este portal _ já tenha estado aí?
E não estão firmemente amarradas todas as coisas, que este Instante puxa atrás de si
todas as coisas vindouras? E assim _ a si próprio também?
Pois, de todas as coisas, aquilo que pode correr: também por este longo corredor
para adiante _ é preciso que corra uma vez ainda! _
E esta lenta aranha, que rasteja ao luar, e este próprio luar, e eu e tu no portal,
cochichando juntos, cochichando coisas eternas _ não é preciso que todos nós já tenhamos
estado aí?
_ e retornemos e que percorramos aquele outro corredor, para adiante, a nossa
frente, esse longo, arrepiante corredor _ não é preciso que retornemos eternamente? _ “
Assim falava eu, e cada vez mais baixo: pois tinha medo de meus próprios
pensamentos e dos pensamentos que se escondiam atrás deles. Então, subitamente, ouvi ali
perto um cão uivar.
Ouvi alguma vez um cão uivar assim? Meu pensamento correu para trás. Sim!
Quando era criança, na mais longínqua infância:
102
_ foi quando ouvi um cão uivar assim. E também o vi, eriçado, com a cabeça
voltada para cima, estremecendo, na mais silenciosa meia-noite, na hora em que também os
cães acreditam em fantasmas:
_ tanto que me apiedei. Acabava, com efeito, de aparecer a lua cheia, mortalmente
calada, sobre a casa, acabava de parar, uma brasa redonda _ parada sobre o teto raso, como
sobre propriedade alheia;_
_ com ela assustou-se aquela vez o cão: pois cães acreditam em ladrões e fantasmas.
E quando ouvi outra vez uivar assim, isso me apiedou mais uma vez.
Para onde teria ido agora o anão? E o portal? E a aranha? E todo o cochichar? Eu
estava sonhando? Acordei? Entre penhascos selvagens fiquei de repente sozinho, ermo, no
mais ermo dos luares.
Mas ali jazia um homem! E eis! O cão, saltando, eriçado, ganindo_ agora ele me viu
chegar _ e recomeçou a uivar, e gritou: _ ouvi alguma vez um cão gritar assim por socorro?
E, em verdade, o que eu vi, coisa igual nunca vi. Um jovem pastor eu vi,
retorcendo-se, engasgando, convulsionado, o rosto distorcido, com uma negra, pesada
serpente pendendo-lhe da boca.
Vi alguma vez tanto nojo e pálido horror em um rosto? Ele teria dormido? E então
rastejou a serpente para dentro de sua garganta _ e então se aferrou ali.
Minha mão puxou a serpente e puxou _ em vão! Não arrancou a serpente da
garganta. Então algo em mim gritou “Morde! Morde!
A cabeça fora! Morde!” _ assim algo em mim gritou, meu horror, meu ódio, meu
nojo, minha piedade, todo meu bom e ruim gritou em mim em um grito. _
Ó audazes que estais em torno de mim! Vós que buscais, que tentais, e quem dentre
vós com ardilosas velas navegou por mares inexplorados! Ó amantes de enigmas!
Decifrai-me pois o enigma, que eu vi aquela vez, interpretai-me pois a visão do mais
solitário dos solitários!
Pois uma visão era, e uma previsão _ o que vi eu aquela vez em alegoria? E quem é
aquele que um dia há de vir?
Quem é o pastor, a quem a serpente rastejou assim para dentro da garganta? Quem é
o homem, a quem todo o pesadíssimo, negríssimo, rastejará assim para dentro da garganta?
103
_ O pastor, porém, mordeu, como lhe aconselhava meu grito: mordeu uma boa
mordida! Bem longe cuspiu a cabeça da serpente _: e levantou-se de um salto._
Não mais o pastor, não mais homem _ um transfigurado, um iluminado, que ria!
Nunca ainda sobre a terra riu um homem, como ele ria!
Ó meus irmãos, eu ouvi um riso, que não era riso de nenhum homem _ e agora uma
sede me devora, uma aspiração, que nunca mais silenciará.
Minha aspiração por aquele riso me devora: oh, como suporto ainda viver! E como
suportaria, agora morrer! _
Assim falou Zaratustra.
104
Bibliografia
NIETZSCHE, Nietzsche: Obra Incompleta, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, São
Paulo, Abril Cultural, Os Pensadores, 3ª ed. 1983.
____________ Ainsi parlait Zarathoustra / Also sprach Zarathustra. Trad. de Geneviève
Bianquis. Paris, Aubier-Flammarion, 1969, 2 vols. (éd. bilingüe).
____________ Así habló Zaratustra: un libro para todos y para nadie, intr., trad. e notas,
Andrés Sanchez Pascual, Madrid, Alianza Ed, 2003. (El libro de bolsillo/Biblioteca de
autor).
____________ A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos,Trad. Maria Inês Madeira de
Andrade, rev Artur Mourão. Rio de Janeiro: Elfos Ed, Lisboa: Ed 70, 1995.
____________ A Gaia Ciência, trad., posfácio e notas: Paulo César de Souza, São Paulo,
Cia das Letras, 2004.
___________ Além do Bem e do Mal, trad. Paulo César de Souza, São Paulo, Cia das
Letras, 2004.
1
____________ A Visão Dionisíaca do Mundo. E outros textos de juventude, trad. Marcos
Sinesio Pereira Fernandes e Maria Critina dos Santos de Souza, rev. trad.Mario Casanova.
São Paulo, Martins Fontes. 2005
___________ Ecce Homo. trad., posfácio e notas: Paulo César de Souza, São Paulo, Cia
das Letras, 2001
___________ Ecce Homo, Frankfurt, Inseltaschenbuch, Inselverlag, 1977.
___________ Escritos sobre educação, trad., apres. e notas Noéli Correia de Melo
Sobrinho, Rio de Janeiro, Ed PUC-Rio, São Paulo, Loyola, 2003
___________ Escritos sobre Retórica. Edición y traducción de Luis Enrique de Santiago
Guervós. Madrid, Editorial Trotta, 2000.
___________ Genealogia da Moral, uma polêmica, trad., posfácio e notas: Paulo César de
Souza, São Paulo, Cia das Letras, 2002.
105
___________ Humano Demasiado Humano, trad., posfácio e notas: Paulo César de Souza,
São Paulo, Cia de Bolso, 2005
____________ Human, All Too Human, A book for free spirits, trad. R. J. Hollingdale, intr
Richard Schadt. Cambridge. (Cambridge texts in the history of philosophy), 2006.
___________ Introducion a l’étude des dialogues de Platon, trad e apres. Olivier
Berrichon-Sedeyn, Paris Polemos, 1998.
___________ O Nascimento da Tragédia ou helenismo e pessimismo. trad., posfácio e
notas: J Guinsburg, São Paulo, Cia das Letras,2005
___________ Untimely Meditations, trad. R. J. Hollingdale, Cambridge, Ed.Daniel
Breazeale, 2006,
___________ Verdade e Mentira no Sentido Extramoral, trad.e apres. Noéli Correia de
Melo Sobrinho, in 5 Comum, Rio de Janeiro, v 6, nº 17, pp 05-23, jul/dez. 2001.
___________ y VAIHINGER, Sobre Verdad y Mentira, trad. Luis M. Valdés y Teresa
Orduña, Madrid, 4ª ed. 2004.
___________ sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Ed G. Coli e M.
Montinari. München, de Gruyter/DTV, 1980.
AGOSTINHO, Confissões, trad.J. Oliveira santos, SJ e A. Ambrósio de Pina, SJ, São
Paulo, Nova Cultural, Os Pensadores, 1999.
ARISTÓTELES, Obras, trad. Francisco de P. Samaranch, Aguilar, Madrid, 1967
___________ Física , trad. Alejandro Vigo, Buenos Aires, Biblos,1995
ARNHEIM, Rudolf, Intuição e intelecto na arte, trad. Jefferson Luiz Camargo, rev. Trad.
Daniel Camarinha da Silva. São Paulo, Martis fontes,1989
BRANDES, Georg, Nietzsche: un ensaio sobre el radicalismo aristocrático, Editorial
Sexto Peso, México, 2004.
CAMUS, Albert, O Mito de Sísifo, trad. Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro,
Record, 2004
DELEUZE, A lógica do sentido, trad Luis Roberto Salinas Fortes. São Paulo, Perspectiva,
1982
FOUCAULT, As palavras e as coisas, trad Salma Tannus Muchail. São Paulo, Martins
Fontes, 1955
106
GIACOIA JR, Oswaldo, Nietzsche, São Paulo, Publifolha, 2000. (Folha explica)
___________ O Conceito de Pulsão em Nietzsche, in MOURA, org. As Pulsões, São Paulo,
Escuta, EDUC, 1995.
GIANNINI, Humberto, Acerca de la rectitud de los nombres. In Teoria 2, Universidad de
Chile, 1974
___________, El demonio del mediodia. In Teoria 5-6, Universidad de Chile, 1975
___________ Humberto, Vida inautentica y curiosidad, in Escritos Breves 3,
Departamento de Filosofia Universidad de Chile, Santiago, 1971, pp 7-31
GRLIK, Danko, “Nietzsche e o eterno retorno do mesmo ou o retorno de essência artística
na arte”. Trad. Sônia Salzstein Goldberg. In MARTON org., Nietzsche hoje? Colóquio de
Cerisy, São Paulo, brasiliense, 1985.
JULIÃO, J.N. O mundo sem fundo de Zaratustra, in Cadernos Nietzsche n 15. 2003
KIERKEGAARD, Conceito de angustia, trad Torrieri Guimarães. São Paulo, Hemus, 1968
KOSSOVITCH, Leon, Signos e poderes em Nietzsche, São Paulo, Ática, 1979.
LANGER, Suzanne K, Ensaios Filosóficos , trad. Jaime Martins, São Paulo, Cultrix,1971.
LEBRUN, Gerard, “Por que ler Nietzsche, hoje?” In Passeios ao léu. São Paulo,
Brasiliense, 1983.
___________, Quem era Dioniso? trad. Maria Heloisa Noronha Barros. In Revista
Kriterion, 74-75 Belo Horizonte, Dep. de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da UFMG, jan-dez, 1985
___________, “Sombra e Luz em Platão”, trad. Hélio Schwartsman, in, NOVAES,
Adauto, org, O Olhar, São Paulo, Cia. das Letras, 2006
LISPECTOR, Clarice, Para não esquecer, Rio de Janeiro, Rocco, 1999.
MAN, Paul de, Alegorias da Leitura, trad. Lenita R. Esteves, Rio de Janeiro, Imago, 1996.
MARTON, Scarlett, Extravagâncias,São Paulo, Discurso, UNIJUÍ, 2ª ed, 2001.
____________ org., Nietzsche hoje? Colóquio de Cerisy, São Paulo, Brasiliense, 1985.
MATTEI, J-F, org., Nietzsche et le temps des nihilismes, Paris, PUF, 2005
___________ Platon et le miroir du mythe, Paris, Quadrige/PUF, 2002
MOURA, org. As Pulsões, São Paulo, Escuta, EDUC, 1995.
MELÉNDES, G, Homem e estilo em Nietzsche, in Cadernos Nietzsche nº 11, 2001.
107
MUÑOZ, Y G G, Transvalorar Critérios Platônicos Margem (PUC/SP) São Paulo, v 16 pp
261-267, 2003
NEHAMAS, Alexander, Nietzsche, La vida como literatura, trad. Ramón J. Garcia, Turner
& FCE, Madri, 2002
NOVAES, Adauto, org, O Olhar, São Paulo, Cia. das Letras, 2006
Os Pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários, seleção de textos e supervisão
prof. José Cavalcante de Souza; dados biográficos Remberto Francisco Kuhnen; Trads.
José Cavalcante de Souza, et al. São Paulo. Abril Cultural, Os Pensadores 1978.
PIETTRE, Bernard, Filosofia do tempo. Trad, Maria Antonia Pires de Carvalho Figueiredo,
Bauru, SP EDUSC, 1997
PLATÃO, A República, intr., trad. e notas Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Fund.
Calouste Gulbenkian, 9ª ed.
___________ Cartas, trad. Conceição Gomes da Silva e Maria Adozinda Melo. Ed
Estampa, Lisboa, 1980, 2ªed,
___________ Diálogos: Menon, trad. Jorge Paleikat, Rio de Janeiro, Globo, 1952
___________ Diálogos: Timeu-Crítias-O Segundo Alcibíades- Hípias Menor. trad. Carlos
Alberto Nunes, Belém, Pará, EDUFPA, 2001, 3ª ed. rev.
___________ Oevres Completes: Gorgias-Menon trad. Alfred Croiset. Paris, Belles
Lettres, 1974. Tome III-2ª partie, 14ª ed
PLOTINUS, Enneades trad, Emile Brehier, Paris, Belle Lettres. 1976
RICOEUR, Paul, A Metáfora Viva, trad. Dion Davi Macedo, Loyola, São Paulo, 2000.
___________ Tempo e narrativa, trad. Roberto Leal Ferreira, rev. trad. Maria da Penha
Villela-Petit. Campinas, São Paulo. Papirus, 1997
SALAQUARDA, Jörg, A Concepção básica de Zaratustra, in Cadernos Nietzsche, nº 2, p.
17-39, 1997.
VATTIMO, Gianni, Introdución a Nietzsche, trad. Jorge Binaghi, Barcelona, Península,
1987.
VEYNE, Paul, “O Império Romano” in História da Vida Privada, , trad Hildegard Feist,
São Paulo, Cia das Letras, 1989.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo