Download PDF
ads:
Eduardo Horta Nassif Veras
O ORATÓRIO POÉTICO DE ALPHONSUS DE
GUIMARAENS: UMA LEITURA DO SETENÁRIO DAS
DORES DE NOSSA SENHORA
Belo Horizonte
fevereiro de 2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Eduardo Horta Nassif Veras
O ORATÓRIO POÉTICO DE ALPHONSUS DE
GUIMARAENS: UMA LEITURA DO
SETENÁRIO DAS DORES DE NOSSA
SENHORA
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Letras Estudos Literários da
Faculdade de Letras da Universidade Federal
de Minas Gerais, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Estudos
Literários.
Área de concentração: Literatura Brasileira.
Linha de Pesquisa: Poéticas da Modernidade.
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Alves Peixoto.
Belo Horizonte
Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais
2009
ads:
A minha mãe
AGRADECIMENTOS
Nestes dois anos de trabalho, pude contar com o apoio de familiares, amigos,
professores, colegas e alunos. À sua maneira, cada uma das pessoas que conviveram
comigo nesse tempo contribuiu para que esta dissertação fosse finalizada. Durante o
processo de pesquisa e escrita, lembrei-me de pessoas que ficaram para trás: professores
da época do colégio, colegas de sala, vizinhos, primos e tios. Ocorreu-me, certa vez,
lembrar uma professora que tive nos idos de 1991. No meio de tantas lembranças, pude
reconhecer, acho que pela primeira vez na vida, o quão importante foi a influência da
minha família sobre mim, no que diz respeito a esse sentimento que nos impulsiona a
dedicar boa parte da vida à produção de conhecimento. Acho difícil que alguém possa
se dedicar à pesquisa e obter sucesso sem uma boa dose de amor ao conhecimento em si
mesmo. Como professor, percebo a cada dia que o caminho é justamente este: a
valorização do conhecimento, antes de tudo, pelo conhecimento. E é muito bom poder
enxergar, hoje, compreendendo um pouquinho mais da vida, a importância que o
conhecimento sempre teve para os meus avós, para os meus tios, para a minha mãe.
Hoje, agradeço ao meu avô, que declamava Augusto dos Anjos em plena ceia de natal.
Agradeço à minha avó, que deu origem a uma família inteira de professores, pelas lições
rígidas de gramática e pedagogia. Agradeço aos meus tios, filósofos e artistas, por não
me excluir dos debates mais áridos, quando eu ainda era uma criança. E agradeço,
sobretudo, à minha mãe: a maior referência moral e intelectual que tive até hoje.
Quero, entretanto, lembrar-me aqui daqueles que exerceram influência direta sobre este
trabalho, que é filho da Faculdade de Letras da UFMG, que se transformou, ao longo
destes seis anos, entre graduação e pós-graduação, na minha segunda casa. Quero
lembrar também as pessoas que me “suportaram” nos dias difíceis e nos dias eufóricos,
em casa e no Colégio Padre Machado. Assim, agradeço
Ao professor Sérgio Alves Peixoto, pela amizade e pela paciente orientação;
À Bárbara, pelo amor, pela companhia, pela compreensão, pelos conselhos, pelas fotos,
pelo carinho, pelo cuidado, pela felicidade que me proporciona todos os dias;
Ao meu irmão, Marcelo, pelas conversas sobre Psicanálise;
Ao amigo e primo César Nassif, com quem compartilho o amor pela filosofia;
Ao amigo Thiago Saltarelli, pela inestimável lição de alegria, pelo exemplo de
intelectual, pelas viagens, pela parceria musical;
Ao amigo Gustavo Silveira, pela solicitude, pelas sugestões, pelas conversas, pelo
incentivo, pela leitura atenta do texto;
Ao amigo Adriano Drummond, pela convivência, pelos debates e pela revisão
cuidadosa do texto;
Aos amigos Fábio Feldman, Rafael Soares e Camila Reis, pela convivência agradável,
pelos debates, pelas sugestões;
À professora Dra. Francine Fernandes Weiss Ricieri (UNIP), pelas sugestões, pelos
textos e pela presença na banca examinadora;
Ao professor Dr. Marcus Vinicius de Freitas (FALE/UFMG), pelas aulas, pelas dicas e
pela presença na banca examinadora;
Ao professor Dr. Luciano Cortez e Silva (PUC-MG), pela leitura do projeto de
pesquisa;
Aos professores Andréa Sirihal Werkema, Antônio Orlando O. Dourado Lopes,
Constança Lima Duarte, Emília Mendes Lopes, Georg Otte, Jacyntho José Lins
Brandão, José Américo de Miranda Barros, Maria Cecília Bruzzi Boechat, da
FALE/UFMG, pela excelência, pelas aulas, pelo exemplo, pelas sugestões, pelo
incentivo, pela solicitude;
Aos meus colegas do Colégio Padre Machado, pela convivência diária, pelo incentivo e
pelo apoio;
E aos meus alunos, pelo respeito e pela esperança.
RESUMO
Este trabalho propõe uma associação entre a arquitetura de Setenário das Dores de
Nossa Senhora, de Alphonsus de Guimaraens, e a forma do oratório musical. Mais que
uma coleção de poemas, essa obra apresenta uma estrutura significativa. Dessa forma,
tanto a estruturação das partes sete capítulos emoldurados por duas composições: uma
de abertura e outra de encerramento quanto a configuração discursiva dos poemas são
analisados na dissertação. Marcado pela ânsia mística de vivenciar as Dores de Maria e
pelo reconhecimento da insuficiência da linguagem, o comportamento do sujeito
poético ora se identifica ao gênero recitativo, ora ao gênero ária. Em alguns momentos,
o foco se desliga da narrativa bíblica e se volta para o próprio sujeito poético, que,
então, reconhece-se incapaz de vivenciar poeticamente as Dores de Nossa Senhora. Essa
situação ambivalente empresta à obra um caráter melancólico, que é pensado, neste
trabalho, à luz das reflexões de Sigmund Freud e Giorgio Agamben. A estrutura da obra
e o comportamento da voz poética são, finalmente, interpretados como um retrato da
condição do poeta simbolista, caracterizada pelo conflito insolúvel entre a busca pela
vivência poética do Mistério e o reconhecimento da precariedade da linguagem.
ABSTRACT
This paper proposes an association between the architecture of the Setenário das Dores
de Nossa Senhora, by Alphonsus de Guimaraens and the music oratorium form. More
than a poem collection, this work presents a significant structure. In this way, both the
structuring of the poems seven chapters framed by two compositions: one as the
opening section and the other one as the closing section and the discursive
configuration of the poems that compose the work are analyzed in the dissertation.
Marked by the mystical eagerness to experience the Sorrows of Mary and by the
acknowledgement of the language scarcity, from time to time the poetic subject’s
behavior is identified as either the recitative genre, or the aria genre. Sometimes, the
focus is disconnected of the biblical narrative being replaced by this poetic subject that
subsequently recognizes itself as unable to experience the Sorrows of Mary poetically.
This ambivalent situation lends a melancholic character to the poems, which is studied
especially on the work, taking into account Sigmund Freud and Giorgio Agamben’s
previous reflections on melancholy. The work structure and the poetic voice’s behavior
are finally interpreted as being a portrait of the symbolist poet’s condition, characterized
by the insoluble conflict between the search for the Mystery’s poetical experience and
the acknowledgement of the poverty of the language.
Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,
Soluçando nas trevas entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.
(Cruz e Sousa)
Impotência cruel, ó vã tortura!
Ó Força inútil, ansiedade humana!
Ó círculos dantescos da loucura!
Ó luta, ó luta secular, insana!
(Cruz e Sousa)
Je me souviens! J’ai vu tout, fleur, source, sillon,
Se pâmer sous son oeil comme un coeur qui palpite…
- Courons vers l’horizon, il est tard, courons vite,
Por attraper au moins un oblique rayon!
Mais je poursuis en vain le Dieu qui se retire;
L’irrésistible Nuit établit son empire,
Noire, humide, funeste et pleine de frisson
(Baudelaire)
Mas eu, a poeira que o vento espalha,
O homem de carne vil, cheio de assombros,
O esqueleto que busca uma mortalha,
Pedir o manto que te envolve os ombros!
(Alphonsus de Guimaraens)
SUMÁRIO
Introdução ...................................................................................................................... 11
1 O misticismo em Alphonsus de Guimaraens ........................................................... 17
2 O oratório poético de Alphonsus de Guimaraens ................................................... 40
3 Metalinguagem e melancolia em Setenário das Dores de Nossa Senhora ............. 65
Conclusão ....................................................................................................................... 85
Bibliografia ..................................................................................................................... 95
INTRODUÇÃO
12
O estado místico é geralmente definido na tradição filosófica ocidental como uma
experiência de superação dos limites da consciência individual capaz de proporcionar a
união do ser com uma instância transcendente, totalizante e inefável. Para Plotino, essa
instância identifica-se com o Uno; para Santo Agostinho, com o Deus cristão; para
Schopenhauer, com o Nada. Na história da literatura moderna, o problema do
misticismo tem um importante capítulo na passagem do século XVIII para o XIX, com
“a sede de infinito, o afã de integridade e de totalidade, que alentou a disposição
religiosa dos [poetas] românticos
1
”. Mais tarde, a busca incansável dos simbolistas
franceses, especialmente de um Mallarmé, pelo Absoluto
2
, pela transcendência da
história, pela abolição do acaso, aparece, talvez, como o melhor exemplo da influência
da filosofia mística sobre a poesia moderna. Em alguns desses poetas, a superação do
particular abre espaço para o que Hugo Friedrich
3
chamou de “idealidade vazia”,
conceito que identifica o mundo das essências ao Nada. Se em Baudelaire e Rimbaud, a
experiência de transcendência vazia apresenta-se ainda com a função purificadora de
libertar o homem da realidade opressiva, é em Mallarmé que ela assume de vez caráter
ontológico. Mediante o total afastamento do particular, aniquilando pouco a pouco a
dimensão referencial da linguagem, o projeto literário do autor de Un coup de dés
perseguiu insistentemente a realização poética de uma experiência semelhante em
diversos aspectos àquela que se conhece como mística
4
.
O fracasso de Mallarmé, após a experiência radical de seu último poema, Un coup de
dés jamais n’abolira Le hasard, coincide com os limites do Simbolismo. Até encontrar
1
NUNES, A visão romântica, p.65.
2
Grafada com inicial maiúscula, essa palavra deve ser entendida, ao longo desta dissertação, à luz das
concepções românticas de Homem e de Mundo, que exercem influência direta sobre a poesia moderna,
especialmente sobre o Decadentismo e o Simbolismo franceses. O termo refere-se, para nós, à ânsia
romântica pela unidade e pela totalidade. Mais propriamente, refere-se ao seu ponto final, que pressupõe
sempre o problema da superação do abismo sujeito-objeto, bem aos moldes da experiência mística. No
contexto do pensamento romântico, a noção de Absoluto apareceu sob o influxo, principalmente, das
filosofias de Fichte e Schelling, ora apontando para a preeminência do Eu (sujeito) ora para a da Natureza
(objeto). Mas, a despeito de suas variantes filosóficas, a noção está sempre ligada à superação idealista da
dualidade, à instância da unidade transcendente e primordial do universo. Como fundamento dessa
questão, é central para o ideário do Romantismo, tão afeito à tradição cristã, a “imagem de uma plenitude
originária perdida”. (Cf. NUNES, A visão romântica e BORNHEIM, A filosofia do Romantismo.)
Evidentemente, para os poetas simbolistas, principalmente para Mallarmé, a questão do Absoluto assume
forma diferente da que assumiu para os românticos; passa a ser um problema de linguagem e acaba por
assumir uma feição esvaziada, niilista.
3
Cf. FRIEDRICH, A estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX.
4
Para FRIEDRICH, a experiência poética de Mallarmé associa-se a “uma mística do Nada”. Cf. Op. Cit,
p.118.
13
sua extenuação na obra do poeta francês, a poesia simbolista mirou-se sempre nessa
busca pelo Absoluto. Esse ideal totalizante, que está presente na filosofia, de lastro
romântico, que fundamenta a escola, foi, portanto, motivo de existência e fracasso dessa
poesia. A agonia diante do inefável levou muitos poetas a reconhecerem a insuficiência
da linguagem, abrindo espaço para outra dimensão da poesia simbolista: o pessimismo
melancólico. Essa questão da impotência da linguagem foi amplamente abordada em
diversos poemas, atestando a tendência da poética simbolista para a reflexão
metalingüística. Isso ocorre, entretanto, quase sempre em poemas isolados. O número
de obras que, em sua totalidade, buscaram representar ou até reconstituir a experiência
poética do simbolismo em seu duplo movimento de ascensão e queda diante do inefável
é bem menor. O poema final de Mallarmé é novamente um ótimo exemplo, pois
experimenta ao mesmo tempo a busca pela transcendência e a consciência de seu
fracasso, num movimento de tensão e arrefecimento.
No Brasil, foi Cruz e Sousa quem aderiu ao Simbolismo com mais radicalidade. Sua
poesia, que alcançou por diversas vezes aquele estado de dissolução da referência tão
almejado por Mallarmé, é considerada por parte da crítica como uma das mais
importantes do movimento simbolista mundial
5
. A questão da impotência verbal
também está presente em Cruz e Sousa, que dedicou parte considerável de sua obra a
considerações metalingüísticas. Porém, é em outro poeta brasileiro que encontramos a
experiência simbolista de ascensão e queda como foco da representação de uma única
obra. Trata-se de um poeta que alcançou menos sucesso em sua empreitada mística e
que, por isso mesmo, vivenciou mais profundamente a melancolia decadentista:
Alphonsus de Guimaraens.
Alphonsus é, com efeito, antes de tudo, um místico frustrado. Sua poesia realiza-se no
espaço agônico da ânsia, sempre insatisfeita, de transcendência, oscilando entre a
tentativa fervorosa de superação da imanência e a consciência melancólica do insucesso
eterno. Em outras palavras, o conjunto de sua obra revela, de um lado, a tentativa de
sondar o Inefável, de tocar o Universo das Formas; e de outro, a triste constatação da
incapacidade humana, representada pela insuficiência da linguagem. Este último
aspecto não se resolve na confortável segurança da fé. Em Alphonsus de Guimaraens,
5
O crítico Roger Bastide, em seus Quatro estudos sobre Cruz e Sousa, situa o poeta entre os três
principais do simbolismo, formando uma “tríade harmoniosa” com Stefan Georg e Mallarmé.
14
não há momentos de verdadeira resignação. Em sua poesia, a serenidade, quando
aparece, é reflexo da frustração. Sua experiência poética, ocorrendo na tensão desse
espaço agônico, é a convergência entre ansiedade mística e melancolia.
Primeira obra publicada pelo poeta mineiro, Setenário das Dores de Nossa Senhora é a
materialização poética dessa experiência agônica e o retrato perfeito do sujeito que a
protagoniza. A obra nunca obteve da crítica a atenção que merece. A complexidade de
sua arquitetura e seu potencial metapoético foram subestimados por alguns críticos, que
preferiram tomá-la como uma confissão da religiosidade mariana de Alphonsus de
Guimaraens. Já os poucos críticos que a entenderam para além da explicação biográfica,
vislumbrando sua importância para a compreensão global da poética alphonsina, não
ultrapassaram, infelizmente, os limites do comentário. Para Manuel Bandeira
6
, o livro é
um dos mais originais da literatura brasileira; para o jornalista Tácito Pace, ele contém
“os mais belos sonetos da língua portuguesa, no gênero
7
”; e para a pesquisadora
Francine Ricieri, é uma obra capaz de abrigar uma “intelecção do poético que remete
diretamente a concepções que começam a ser concretizadas em obras poéticas como a
de Charles Baudelaire e escritores afins
8
”.
Com efeito, a configuração de Setenário das Dores de Nossa Senhora a destaca do
resto da obra de Alphonsus de Guimaraens. O livro se estrutura em sete capítulos,
contendo cada um sete sonetos. A composição se orienta por algumas passagens do
Evangelho para narrar e meditar sobre as Dores de Maria, numa imitação poética da
tradicional celebração litúrgica das Dores de Nossa Senhora. Cada capítulo do livro se
propõe a refletir sobre uma Dor, partindo sempre da recuperação da narrativa dos
Evangelhos. Assim, temos um livro que faz convergir vozes narrativas e líricas. Essa
estrutura discursiva pode ser comparada à forma dos oratórios musicais, nos quais se
tem o recitativo, recuperando a narrativa bíblica, e as árias e corais, tecendo comentários
e apresentando as impressões poéticas do autor acerca da história sagrada, num ato de
celebração dessa história. Eis uma primeira visão da complexidade arquitetônica dessa
obra de Alphonsus de Guimaraens: na base da composição está uma estrutura que
proporciona a convergência de vozes que recuperam diretamente a narrativa bíblica
6
Cf. BANDEIRA. Apresentação da poesia brasileira – seguida de uma antologia de versos.
7
PACE, O simbolismo em Alphonsus de Guimaraens, p 97.
8
RICIERI, A imagem poética em Alphonsus de Guimaraens: espelhamentos e tensões, p.36.
15
(vozes com função narrativa) e vozes que meditam sobre seus episódios e,
principalmente, sobre a impotência de vivenciá-los via linguagem
9
(vozes associáveis à
lírica). Temos, assim, uma espécie de oratório poético que enfoca a condição de um
sujeito poético marcado pela tentativa de comunhão mística com as Dores de Maria e
pela consciência de seu próprio fracasso. Dessa forma, Setenário das Dores de Nossa
Senhora permite que sejam compreendidos diversos aspectos da poética alphonsina,
podendo ser considerada por isso uma obra metapoética.
A fim de evidenciar essa imagem, este trabalho pretende analisar a obra Setenário das
Dores de Nossa Senhora, de Alphonsus de Guimaraens, considerando a modernidade
de sua arquitetura litúrgica e seu caráter metapoético. O percurso pretende imitar o
movimento pendular sugerido acima, tomando a obra como centro irradiador das duas
experiências típicas do sujeito poético simbolista. Tentaremos fazê-lo em três capítulos.
Iniciaremos dedicando o primeiro deles a breves considerações acerca do tratamento
dado pela crítica à poesia “mística” de Alphonsus de Guimaraens, tendo em vista
algumas definições clássicas de misticismo, encontradas no âmbito da Filosofia e dos
Estudos Literários. No capítulo central da dissertação, tentaremos associar a obra
analisada à forma musical do oratório, que servirá de metáfora crítica para a sua
compreensão global, em contraste com a definição clássica de misticismo trazida no
capítulo anterior. Esse segundo capítulo pretende evidenciar a tentativa e o fracasso da
experiência mística, representados nessa obra através da arquitetura em forma de
oratório. Oprimido entre a sede de infinito e a melancólica consciência do fracasso, o
sujeito poético parece se fragmentar - à semelhança do que ocorre na forma musical -
numa perfeita imagem da cisão que define, para os simbolistas, a condição humana. A
uma voz cabe a busca pela comunhão com as Dores de Nossa Senhora, na
reconstituição épica dos passos da Virgem. À outra, cabe o lamento pelo fracasso da
tentativa, pela insuficiência de sua linguagem, pela impossibilidade de superação do
abismo que separa o Homem de Deus.
Finalmente, à luz dessa breve discussão teórica acerca do misticismo, e da análise dos
poemas, tentaremos evidenciar o caráter melancólico que perpassa boa parte da
9
É nesse aspecto que o oratório poético de Alphonsus de Guimaraens se diferencia do oratório musical.
Ao contrário deste último, o oratório alphonsino é, na verdade, uma obra sobre os limites da linguagem
humana. Apesar de seu aparente confessionalismo, Setenário das Dores de Nossa Senhora é, segundo
nossa leitura, um poema sobre a condição do sujeito poético na lírica moderna.
16
experiência poético-religiosa em Alphonsus de Guimaraens, tendo como referência os
estudos de Sigmund Freud e Giorgio Agamben
10
sobre o tema. Conforme este último
teórico, a melancolia se associa sempre ao inapreensível, à constatação da
impossibilidade de acesso ao objeto e à “capacidade fantasmática” de fazê-lo aparecer
como um objeto perdido. Dessa forma, o terceiro capítulo apenas evidenciará
conceitualmente o que fora extraído da análise do poema, feita no capítulo anterior.
Percorrendo esse caminho, pretendemos surpreender, em Setenário das Dores de Nossa
Senhora, o sujeito poético alphonsino no instante de sua experiência poético-religiosa
fundamental, marcada pela tensão entre misticismo e melancolia. Trazendo a poesia de
Alphonsus de Guimaraens novamente para o foco dos debates acadêmicos, esta
dissertação terá cumprido seu papel. Se nos é permitido vislumbrar vôos ainda mais
pretensiosos, será muito bom também se este trabalho puder contribuir efetivamente
para a modernização da crítica desse poeta fascinante e tão pouco explorado.
10
Cf. AGAMBEN, Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental, p.45.
CAPÍTULO I
O MISTICISMO EM ALPHONSUS DE GUIMARAENS
18
A crítica tem observado nos mais diversos termos, que Alphonsus de Guimaraens é um
poeta de poucos temas. Para Andrade Muricy, a sua temática é repetida, monótona e
monocrômica
11
”. Massaud Moisés destaca “o caráter monofônico de sua poesia
12
”.
A religiosidade mariana, o amor e a presença constante da morte são os temas mais
insistentemente destacados pela crítica, desde os seus primeiros passos, no final do
século XIX. Grande parte desses textos críticos preocupou-se, até pouco tempo atrás,
em perseguir as motivações que explicariam a presença desses temas na poesia de
Alphonsus. E na esteira dessa busca, a crítica optou prioritariamente pela perspectiva
biográfica.
Uma mudança de tom
13
, entretanto, já pode ser vislumbrada na crítica alphonsina.
Embora muito recente, uma nova abordagem se faz presente em trabalhos como o de
Ângela Maria Salgueiro Marques. Sua dissertação de mestrado intitulada O sublime na
Poesia de Alphonsus de Guimaraens: presença da morte se propõe a trilhar esses novos
caminhos. Nas palavras da autora, sua dissertação pretendeu: “estudar as formas que
encontrou a morte para se manifestar na poesia de Alphonsus de Guimaraens, sem a
preocupação de relacionar tal presença à vida do poeta
14
”.
E a mudança de tom foi nítida. Preocupada em refletir sobre a presença da morte na
poesia de Alphonsus de Guimaraens, Ângela Marques concentra-se não mais nas
motivações que levaram esse tema aos versos de Alphonsus, mas nos procedimentos
empregados pelo poeta para dar forma ao tema em sua linguagem poética. A questão,
assim, deixa de ser biográfica e passa a ser, antes de tudo, um problema poético, um
problema de linguagem.
Essa mudança de tom abre caminho para a revisão de temas antigos e acaba por levantar
problemas novos para a crítica alphonsina. Na conclusão de sua dissertação de
mestrado, dedicada ao estudo da fortuna crítica de Alphonsus de Guimaraens, a
professora Francine Fernandes Weiss Ricieri destaca cinco aspectos da obra do poeta
11
MURICY, Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro. V1, p.448.
12
MOISÉS, História da literatura brasileira. V2, p. 285.
13
Essa expressão se encontra no trecho final da conclusão da dissertação supracitada de Francine
Fernandes Weiss Ricieri.
14
MARQUES, O sublime na Poesia de Alphonsus de Guimaraens: presença da morte, p.12.
19
“não abordados, abordados apenas de passagem ou equivocadamente
15
pela crítica. À
constatação da pesquisadora correspondem cinco demandas dos estudos da obra de
Alphonsus de Guimaraens contemporâneos, a saber: 1) o estudo descritivo e analítico
das antologias, a fim de contribuir para com a compreensão mais lúcida dos lugares-
comuns no estudo do escritor; 2) o estudo de suas obras em prosa; 3) o estudo das
relações do simbolismo com o modernismo e da recepção da poesia de Alphonsus por
alguns poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mário de
Andrade, Oswald de Andrade e Murilo Mendes; 4) a revisão crítica da presença do
catolicismo na obra do poeta, a fim de, nas palavras da pesquisadora, “entendê-lo não
em termos confessionais, mas em termos de representação estética”; 5) e, para finalizar,
Ricieri sugere ainda como demanda de estudo a tradução da tese da pesquisadora
francesa Arline Anglade-Aurand, que reflete sobre as influências francesas sobre a obra
de Alphonsus de Guimaraens. Como se vê, o diagnóstico de Ricieri aponta, tanto para a
revisão de temas consolidados na crítica alphonsina, quanto para a abertura de novos
caminhos de leitura. Dentre os cinco pontos destacados, a pesquisadora parece enfatizar
a importância do quarto, segundo ela:
Mais importante, ainda, seria rever criticamente o catolicismo tal
como se configura esteticamente em versos do escritor para procurar
entendê-lo não em termos confessionais, mas em termos de
representação estética. Não se fez, ainda, uma articulação do poeta
contraditório e modernamente cindido – pleno de negatividade – que,
em conjunto, sua obra configura. Durante a pesquisa realizada,
descobriram-se poemas de Alphonsus conhecidos pelos filhos e que
foram omitidos da Obra completa. Tais poemas, ao lado de obras
como Kiriale, Salmos da noite, Escada de Jacó e Pulvis revelam
com clareza aspectos não muito católicos, nada pios,
existencialmente pessimistas do escritor. A exegese desta poética
com vistas a expor a face do poeta que ainda não se revelou com
precisão seria outro dos aspectos que se abririam à análise após o
presente estudo
16
.
Com efeito, e apesar de ser um tema recorrente na fortuna crítica do poeta, a questão da
religiosidade na obra de Alphonsus de Guimaraens raramente transcendeu a explicação
biográfica. As relações de sua poesia com a liturgia, por exemplo, são abordadas quase
sempre em função da católica do poeta e de seu contato com as “leituras místicas”.
Além disso, percebe-se que expressões como ‘misticismo’, ‘poesia mística’ e ‘poesia
15
RICIERI, Alphonsus de Guimaraens (1870 – 1921): Bibliografia comentada. V.2, p.212.
16
RICIERI, Alphonsus de Guimaraens (1870 – 1921): Bibliografia comentada. V.2, p.214.
20
religiosa’, empregadas pela crítica para dar conta do diálogo da poesia de Alphonsus
com o fenômeno religioso, carecem quase sempre de rigor conceitual.
A presença do cristianismo na obra do poeta mineiro é explícita e sua demonstração não
constitui um problema em si para a crítica. Relevante para os estudos literários é refletir
sobre as dimensões do diálogo poesia/cristianismo em sua obra, uma vez que a
complexidade desse diálogo é um dos elementos centrais de sua poética.
A presença da tradição litúrgica cristã/católica na poética de Alphonsus de Guimaraens
se em três níveis. Na camada superficial de sua poesia, identificam-se as evocações
diretas à liturgia e aos mbolos do cristianismo. Esse primeiro nível do diálogo se
expressa na dimensão lexical de sua poesia. A presença de palavras do campo semântico
da religião católica é marcante nos onze livros que compõem sua obra completa. Outra
marca explícita dessa presença que se expressa na seleção lexical pode ser identificada
nos poemas de louvor mariano, que é uma das mais fortes características da obra do
poeta mineiro. Ainda nesse primeiro nível, é importante ressaltar a marcante presença
de expressões litúrgicas em latim, bem como de citações da Vulgata ao longo de toda a
obra. São muitos os poemas que poderiam servir de exemplo para esse primeiro nível de
diálogo com o cristianismo. Dentre tantos outros, o poema “Ladainha dos quatro
santos” apresenta um campo semântico reconhecidamente católico, incluindo a presença
de Maria e de expressões litúrgicas. Deste poema, transcrevemos a primeira estrofe:
Santa Maria, Mãe de Jesus,
Que com as asas protetoras cobres
Os que têm frio, rotos e nus,
Ora pro nobis.
17
Num segundo nível, destaca-se a presença da mentalidade cristã. Aqui, o diálogo passa
a ser de ordem filosófica. A dicotomia corpo X alma; a ojeriza às coisas da carne,
acompanhada da tentação que leva ao pecado; a concepção de vida e de morte,
fundamentada no Mito da Queda; a questão do inefável, problema fundamental dos
17
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.136.
21
poetas místicos, especialmente os simbolistas, e a imagem da mulher amada como ser
imaterial e santificado, são algumas marcas da mentalidade cristã presentes na obra de
Alphonsus de Guimaraens. Aqui, serve-nos de exemplo o mais conhecido poema de
Alphonsus, Ismália”, cuja concepção dicotômica de Homem como um ser
constituído de corpo e alma, sendo esta destinada à ascensão ao céu e aquela ao
aniquilamento na terra após a morte – aparece explicitada na última estrofe:
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...
18
O último dos três níveis de contato de sua poesia com o cristianismo é o que representa
o interesse central desta pesquisa. A nosso ver, trata-se da dimensão mais profunda,
menos explícita e menos abordada desse contato. Na falta de termo melhor, diremos que
esse último nível se expressa nos aspectos estruturais
19
da poesia alphonsina.
O diálogo com as formas da liturgia está presente em toda a obra do poeta. Mas é em
Setenário das Dores de Nossa Senhora, como pretendemos demonstrar no segundo
capítulo, que ele se torna elemento central. O que aproxima essa obra de Alphonsus de
Guimaraens da tradição litúrgica do cristianismo é, como veremos, o seu caráter
híbrido, marcado pela presença de diferentes tipos discursivos emaranhados em seus
capítulos.
Esses três níveis de contato da poesia de Alphonsus com a tradição cristã foram
reconhecidos e abordados esporadicamente pela crítica, embora quase sempre sem
muito rigor. A preocupação central dos principais estudiosos quase sempre se voltou
para a explicação das causas externas da obra do poeta mineiro, confirmando, como
sugerimos acima, a força da abordagem biográfica nessa tradição crítica, que
18
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p. 313.
19
Por aspectos estruturais entendemos o modo de organização da obra nos níveis das partes, dos capítulos
e dos poemas que a compõem. A presença de sete capítulos emoldurados por duas composições
intituladas “Antífona” e “Epífona”; a presença de epígrafes retiradas da Vulgata; e a coexistência de
vozes narrativas e vozes líricas nos capítulos e até no interior dos sonetos, são elementos que compõem,
segundo minha leitura, a estrutura significativa, por exemplo, de
Setenário das Dores de Nossa
Senhora.
22
geralmente negligenciou uma abordagem mais intrínseca dessa poesia, ou seja, uma
abordagem que se voltasse para a explicação não de suas causas e motivações, mas de
seu modo de configuração.
Seguindo essa tendência de explicação das causas externas da obra de Alphonsus de
Guimaraens, o diálogo entre sua poesia e a religiosidade cristã
20
é abordado
primeiramente na história da crítica alphonsina à luz de elementos da vida do poeta.
Sobressai nos primeiros estudos críticos a idéia de que as cidades onde o poeta viveu
teriam exercido influência marcante sobre sua obra. Nesse sentido, explica-se a
religiosidade da poesia pela religiosidade do homem Alphonsus de Guimaraens. Para
dar conta da experiência religiosa em sua poesia, os críticos empregaram
indistintamente expressões como “poeta místico”, “poesia religiosa”, “poeta mariano” e
“poeta cristão”, o que, segundo nossa leitura, é mais uma confirmação de que o
interesse desses críticos pouco tinha a ver com questões de linguagem e forma poética.
O primeiro grande estudo sobre a obra de Alphonsus de Guimaraens foi produzido em
1938. Antes disso, sua poesia “ou estava totalmente esquecida”, escreve Massaud
Moisés, “ou dava a impressão, de resto falsa, de girar em torno dos mesmos motivos
condutores
21
”. Trata-se do belo trabalho de Henriqueta Lisboa: Alphonsus de
Guimaraens.
O título sugere a amplitude da abordagem, que extrapola a análise lingüística em
proveito de comentários impressionistas mas não menos sagazes por isso e do
tradicional cotejo vida e obra. O percurso feito por Henriqueta Lisboa estabeleceu-se
como modelo e se repetiu em diversas análises posteriores da poesia de Alphonsus.
Partindo de considerações sobre o Movimento Simbolista na França e no Brasil,
Henriqueta aborda, em seguida, a biografia do poeta, a relação vida e obra, as
influências de Verlaine para, finalmente, chegar aos livros publicados pelo poeta,
ficando clara a preeminência dos fatores externos à poesia na análise da escritora.
20
A expressão pretende ser a mais genérica possível, abarcando indistintamente as noções de misticismo
cristão e catolicismo, até que se alcance a devida definição conceitual dos termos.
21
MOISÉS, História da literatura brasileira. V2, p.283.
23
Na seção intitulada “A vida e a obra”, Lisboa destaca três elementos que teriam
exercido influência sobre a poesia de Alphonsus: 1) “a sugestão do ambiente”; 2) “a
impressão causada pela morte da noiva” e 3) “as leituras místicas
22
”. Como se nota, três
elementos ligados à vida do poeta. E é sob essa perspectiva que Lisboa explica a
presença da religiosidade cristã na poesia de Alphonsus:
Estas circunstâncias introduziram-no a um caminho que realmente
deveria ser o seu, pois, conservando a originalidade imanente ao
artista, valorizou as influxos exteriores, não adaptando-se, mas
adaptando-os ao próprio temperamento, numa coincidência
felicíssima. Nenhuma desarmonia em sua obra. A cidade, aí, é
personagem essencial como Bruges-La-Morte para Rondenbach,
associada aos estados d’alma, numa permuta íntima de sentimentos e
de sensações. Desde a significação de sua poesia, feita de unção
religiosa, de abandono e renúncia, de crença em Deus e descrença no
mundo, até a forma de que se reveste, coloridos tênues, música
expressional de plangência de sinos, música de violinos e órgãos sob
as arcadas das igrejas, imagens, vocabulário, ritual, até o seu próprio
nome, acrescido de melodias místicas, tudo recorda Ouro Preto e
Mariana. Pelo desencanto das coisas terrenas, pela resignação na
amargura, pela humildade do coração, pela simplicidade diante do
mistério, pela confiança na Providência, pelos sentimentos de e
caridade, foi cristão. Todavia, um cristão um tanto fatalista, como que
curvado ao peso do cansaço da vida, constrangido pelo sofrimento
prematuro que o feriu duplamente: por vir em um momento de
formação e pela delicadeza da sua constituição anímica
23
.
A sugestão do ambiente, somada ou não à morte da amada, serviu de fundamento para
o misticismo alphonsino também na leitura de outros críticos. Andrade Muricy é um
que assume a mesma opinião de Henriqueta Lisboa, no tocante a tal influência do
ambiente mineiro sobre a obra do poeta. Para o autor do Panorama, a poesia alphonsina
é objeto de um implacável determinismo mesológico:
Alphonsus de Guimaraens, vivendo a alma das cidades mortas de
Minas, ao pé das velhas igrejas e dos venerandos cemitérios “em
sagrado”, foi talvez o único que não “escolheu” aqueles temas, por
que eles lhe eram impostos pela sua vida e pela paisagem em que
transcorreu a sua existência meditativa
24
.
Outro que insistiu na associação vida e obra na análise da poesia mística de Alphonsus
foi Wilson Melo da Silva, para quem
22
LISBOA, Alphonsus de Guimaraens, p.34.
23
LISBOA, Alphonsus de Guimaraens, p.34.
24
MURICY, Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, p.448.
24
Alphonsus de Guimaraens provavelmente não teria sido o poeta
simbolista e místico que foi se não tivesse morado em velhas cidades
mineiras, repletas de igrejas e impregnadas de religiosidade, como
Ouro Preto, Conceição do Serro e Mariana
25
.
Seguindo percurso semelhante, Tácito Pace entende, também, que “é necessário estudar,
biografar e analisar o homem, sua obra e as inter-relações de ambos com o meio em
geral e o meio regional ou provincial em que se originaram e plasmaram
26
”. Aqui, o
tratamento proposto aos dados biográficos tem matizes diferenciados, pois destaca mais
enfaticamente o papel da transfiguração da realidade vivenciada pelo homem na obra do
poeta
27
. Realizado em 1970 e publicado apenas em 1984, o bom estudo do jornalista
Tácito Pace sobre o Simbolismo na poesia de Alphonsus é um dos primeiros a discutir
mais detida e analiticamente a questão do misticismo na obra do poeta. Em consonância
com Heriqueta Lisboa, Pace acredita, inicialmente, que a experiência poético-religiosa
de Alphonsus se explique em função de um dado biográfico extremamente marcante: a
morte da noiva Constança. Para ele, o misticismo de Alphonsus é uma tentativa de
superação do sentimento de exílio decorrente da frustração amorosa. Diante da perda do
sentido da vida, o sujeito, então cindido, exilado na dor da perda, busca a satisfação na
absoluta transcendência que é Deus. Pela primeira vez, ao que tudo indica, a noção de
misticismo é tratada com algum rigor conceitual por um crítico da poesia de Alphonsus
de Guimaraens.
Na linha desse raciocínio, Pace explica a presença do culto mariano na obra do poeta
mineiro. Segundo o crítico, a Virgem representa “a salvação
28
”, um “alento para as
dores existenciais de Alphonsus de Guimaraens
29
”, um caminho, enfim, de re-união
com o absoluto, a instância da unidade e da estabilidade. Refletindo sobre o assunto,
Pace escreve:
Sua obsessão levou-o ao misticismo, e na mística religiosa encontrou
o símbolo da sua dominante obsessiva, através da imagem
pulquérrima da Virgem Maria, a Virgem das Virgens, que na sua
indiscutível dogmática atraía o poeta, como se em adorá-la pudesse
consolar o amor perdido e encontrasse o refrigério, a paz, a doce
calma, o bálsamo celestial
30
.
25
SILVA, Wilson Melo. O simbolismo e Alphonsus de Guimaraens. p.236.
26
PACE, O simbolismo na poesia de Alphonsus de Guimaraens.
27
Embora essa consideração já estivesse implícita no trabalho de Henriqueta Lisboa.
28
PACE, O simbolismo em Alphonsus de Guimaraens, p.99.
29
PACE, O simbolismo em Alphonsus de Guimaraens, p.121.
30
PACE, O simbolismo em Alphonsus de Guimaraens, p.104.
25
Estamos ainda no terreno da abordagem biográfica. A opinião de Tacito Pace, expressa
na citação acima, sofre, no entanto, uma ligeira modificação quando se trata da primeira
publicação do poeta mineiro, O Setenário das Dores de Nossa Senhora, obra que
parece ter em mais alta conta. Em aparente contramão do biografismo reinante na crítica
alphonsina e presente também em sua pesquisa, Pace entende que essa obra escapa à
influência direta das experiências vividas pelo homem Alphonsus de Guimaraens,
propondo uma leitura bastante moderna dos sonetos que compõem a obra, assunto que
merecerá nossa atenção mais adiante.
Outra preocupação recorrente nos estudiosos da poesia alphonsina refere-se à questão
das influencias literárias do poeta mineiro. O problema foi discutido por praticamente
todos os trabalhos de maior fôlego sobre sua poesia. Mas o que se percebe com
facilidade, ao se analisar a maioria desses estudos, é a persistência da perspectiva
biográfica, ainda que implicitamente.
Houve quem assumisse claramente sua dívida para com essa perspectiva, optando por
uma abordagem relativizada das influências literárias recebidas por Alphonsus de
Guimaraens. Esse é o caso do mencionado estudo de Tácito Pace, que,
provavelmente contaminado pelo mal-estar da tão discutida influência da poesia
francesa sobre o poeta mineiro, buscou a todo custo ressaltar a originalidade da
experiência poética de Alphonsus, remetendo-a constantemente a fatos da vida do
poeta. No capítulo de seu trabalho dedicado à discussão de alguns diálogos literários
presentes na poesia alphonsina, Pace defende que
(...) esses pontos de contato poético, às vezes tão forçados, não são
convincentes ao extremo de aceitarmos que a simples leitura do livro
de autor estrangeiro venha a decidir das diretrizes artísticas de um
poeta que já possua as tendências imanentes encarceradas na mente e
ferventes na inspiração. Essa leitura acordaria o fluxo das idéias, mas
não seria suficiente para abrir os caminhos do pensamento à estética e
ao impulso criador, por onde eles passariam para alcançar o ritmo e o
sentimento da poesia, a forma e o estilo do verso e, afinal, a
musicalidade e o espírito da mensagem contida na expressão e na
essência da poesia em si. É assim que pretendemos ver Alphonsus de
Guimaraens: sem qualquer vínculo subordinativo a sistemas, sem
raízes ancestrais avitas, sem elos com o formalismo literário das
idéias, que o tornariam autômato e descolorido
31
.
31
PACE, O simbolismo em Alphonsus de Guimaraens, p.39.
26
O simples emprego de expressões como “tendências imanentes” mostra como Pace,
apesar de abordar a questão dos diálogos literários, está distante de considerar seu
objeto de estudo como um fenômeno antes de tudo poético. Visto dessa forma, o poema
parece estar a serviço da vida do poeta, que contém em si toda a matéria prima à qual os
versos dão apenas forma externa.
O misticismo da poética alphonsina foi explicado também por outros críticos em função
do contato de Alphonsus com escritores e obras que versaram tradicionalmente sobre o
tema. A preocupação em oferecer esse tipo de explicação consta do mencionado ensaio
de Henriqueta Lisboa, provavelmente o primeiro a se debruçar mais detidamente sobre
o assunto. Além das já destacadas influências do ambiente e da tragédia afetiva
vivenciada por Alphonsus, Henriqueta destaca a importância das “leituras místicas”
feitas pelo poeta na constituição de sua obra. Três obras compõem esse conjunto de
leituras destacado pela escritora: a Bíblia; a Imitação de Cristo e a poesia de Verlaine,
com a qual ela identifica em Alphonsus vagas afinidades, especialmente no que se
refere ao misticismo de ambos:
E não dúvida de que amava extraordinariamente a Verlaine, com
que tem mais de uma afinidade, mas de cujo satanismo decadente se
afastou por completo, conservando sempre em toda sua obra um
cunho de rara dignidade, mesmo aquela que mai fala do ardor de sua
mocidade: Kiriale. Fora o de Sagesse, Amour e La bonne Chanson,
talvez desconhecesse o seu Verlaine, que era o das suavidades líricas...
A nota melancólica, a intimidade, o acabrunhamento da alma, a
esquivança a inércia, que são as notas características da poesia do
príncipe do simbolismo francês, são também as do nosso bardo. O
misticismo de ambos é humildemente sentimental, sem complicações
de pensamento metafísico, tecido de ingênua delicadeza. Sente-se em
ambos o influxo da graça santificante que se resolve em atração pelas
imagens da liturgia católica. Têm, um como o outro, versos
imponderáveis que despertam a emoção quase que por encanto, por
meio de uma palavra singela, de uma nota mais branda, de uma
pequena pausa nos versos. Nem um nem outro observa a natureza pelo
lado exterior. Evocam ambos o sentimento que lhe causa a paisagem
de um modo impreciso, que no entanto atinge os nossos sentimentos.
Como Verlaine, Alphonsus prefere a melodia à sinfonia. A devoção de
um – Maria – foi também a do outro
32
.
As afinidades com Verlaine são identificadas por Henriqueta Lisboa na epiderme da
poesia de Alphonsus. São os vagos sentimentos de origem religiosa, acompanhados do
32
LISBOA, Alphonsus de Guimaraens, p.36.
27
emprego poético de imagens litúrgicas e da devoção mariana, que, para a escritora,
aproximam o poeta mineiro do autor de Sagesse. É notória, mais uma vez, a inexistência
de uma demonstração empírica dos elementos de comparação elencados pela autora do
estudo. E ainda que houvesse essa preocupação, Lisboa não ultrapassaria a identificação
de afinidades lexicais nas duas obras, acabando por reduzir o cotejo delas mais uma vez
a um fato biográfico: o catolicismo de Alphonsus de Guimaraens
33
e Paul Verlaine.
Houve também quem relativizasse a experiência religiosa do homem em proveito de
uma leitura esteticizante da religiosidade do poeta. É o caso de Murilo Mendes, para
quem o liturgicismo do poeta mineiro tem pouco a ver com a religiosidade de Mariana e
Ouro Preto. Para Murilo, é inclusive questionável que Alphonsus tenha sido de fato
católico: “Apesar de seus temas preferidos serem religiosos, ou ao menos para
religiosos e das diversas transcrições e epígrafes do Missal e Ritual romanos, que fazia
nos seus livros, não me parece que o autor de “Kiriale” fosse católico
34
”. Sua
religiosidade explicar-se-ia como um fenômeno genuinamente literário, em função das
leituras e influências recebidas pelo poeta mineiro.
A religiosidade cristã de Alphonsus se materializa principalmente através do diálogo
com a tradição litúrgica. A tese segundo a qual esse diálogo expressa a vivência do
homem, que esteve, durante toda a vida, submetido ao universo religioso das cidades
mineiras, reinou na tradição crítica do poeta, como tentamos demonstrar nos parágrafos
acima. Outro grupo de críticos, dentre o qual está novamente o poeta Murilo Mendes,
procurou no leitor de poesia a explicação para a presença de elementos litúrgicos na
obra de Alphonsus de Guimaraens. Nas palavras de Mendes:
Acredito que a simpatia de Alphonsus pela liturgia tenha sua origem
na leitura de seus autores prediletos. Ele lia constantemente Villiers de
L’Isle Adam, Amigo de Dom Guéranger, restaurador do canto
gregoriano em Solesmes. Villiers conta num de seus livros as suas
visitas ao famoso Abade e sua admiração pela liturgia. Alphonsus
vivia também às voltas com Huysmans, Verlaine e Mallarmé. É
sabido que Mallarmé, num magnífico capítulo do livro “Divagations”,
33
Questionável para alguns críticos, como se verá adiante.
34
MENDES, Alphonsus de Guimaraens.
28
teve a intuição profética da renovação litúrgica, exaltando a Missa
como supremo ato artístico
35
.
O mérito de leituras como a de Murilo Mendes
36
está no destaque dado ao fator estético,
na lembrança de que Alphonsus de Guimaraens é, antes de tudo, um poeta, inserido
numa tradição e no exercício do fazer artístico. A desconstrução da imagem pia e pudica
do poeta dogmático também é um mérito que cabe a Mendes. O deslocamento do
interesse da crítica da vida para a prática literária de Alphonsus de Guimaraens foi, sem
dúvida, um primeiro passo para a sua renovação. A religiosidade do poeta mineiro deixa
de ser pensada como um canal de expressão direta do dogma católico ao qual o homem
esteve submetido durante a vida e passa a ser visto como discurso, como imagem, como
poesia.
Ainda segundo Murilo Mendes, Alphonsus viveu numa “época de profunda decadência
religiosa” e “era ainda dos fragmentos da religião que vivia espiritualmente
37
”. Vista
dessa maneira, a espiritualidade de Alphonsus não é nada dogmática, nada resolvida, ao
contrário, se mostra agônica e desesperada. Na esteira dessa linha de raciocínio, vemos
um Alphonsus mais maldito que casto, um poeta da resistência - no sentido que Alfredo
Bosi
38
deu à noção de poesia-resistência, mais revolucionário que conservador. E essa
visão, diga-se de passagem, é capaz de justificar com mais eficiência a presença da voz
de Alphonsus entre aquelas do Decadentismo, que, segundo Verlaine é
uma literatura que resplandece em templo de decadência, não para
seguir os passos de sua época, mas exatamente ‘às avessas’ para
insurgir-se contra, para reagir pela delicadeza, pela elevação, pelo
refinamento, se quisermos, de suas tendências, contra a insipidez e as
torpezas, literárias e outras ambientais
(...)
39
.
A mudança de tom, apesar de tudo, ainda é bastante tímida, não apenas porque o texto
de Murilo Mendes é quase um fato isolado, mas também porque suas palavras parecem
35
MENDES, Alphonsus de Guimaraens.
36
Mais tarde, Jamil Almansur Haddad falaria num “catolicismo a serviço da arte”. Cf. HADDAD, Jamil
Almansur. Essência e forma do simbolismo. Revista do arquivo municipa, São Paulo, ano XII, vol. 104,
p. 7-28, ago-set, 1945.
37
MENDES, Alphonsus de Guimaraens
38
BOSI, Poesia-resistência.
39
“Carta ao Decadente” IN: MORETTO, Caminhos do Decadentismo francês, p.115.
29
reduzir o contato de Alphonsus com a liturgia a um contato em segundo grau, deixando
no ar uma incômoda idéia de imitação poética e negligenciando a especificidade de sua
criação artística. Ademais, subjaz a essa discussão acerca das influências literárias do
poeta a mesma preocupação da abordagem biográfica: explicar as causas, o porquê dos
temas e imagens de sua poesia. Acreditamos, assim, que a verdadeira mudança de tom é
menos temática que metodológica. Diante do esgotamento da reflexão acerca das
motivações externas de Alphonsus, é mister que se reflita, então, acerca da estruturação
de sua poesia, deixando de lado o porquê em proveito do como. Dessa forma, a questão
passa ser: independentemente de sua origem, como se configuram na poesia alphonsina
a experiência religiosa e o diálogo com a tradição litúrgica?
Como tentamos demonstrar, muito se falou em misticismo na tradição crítica de
Alphonsus de Guimaraens. Resta saber se essa noção é adequada a sua poesia,
começando por esclarecer-lhe o conceito. Em sua tentativa de compreender a
experiência religiosa, o filósofo William James dedicou duas conferências de seu livro
As variedades da experiência religiosa: um estudo sobre a Natureza Humana ao
problema do misticismo. A fim de isolar o conceito contido na expressão “estados
místicos de consciência”, o filósofo propõe quatro marcas caracterizadoras da
experiência mística, a saber: sua inefabilidade; sua qualidade noética; seu caráter
transitório e passivo.
Enquanto experiência inefável, a experiência mística não se deixa comunicar por
palavras. A tentativa de representá-la é, portanto, uma queda, significando sempre o seu
esgotamento. A fim de esclarecer o conceito, James compara a experiência mística a
outras também incomunicáveis:
Ninguém pode explicar a outra pessoa, que nunca conheceu
determinado sentimento, o em que consistem a qualidade ou valor
dele. Precisamos ter ouvidos musicais para julgar do valor de uma
sinfonia; precisamos termo-nos apaixonado para compreender o
estado de espírito de um apaixonado
40
.
40
JAMES, As variedades da experiência religiosa: um estudo sobre a Natureza Humana, p.238.
30
O problema da comunicação, ou ainda, da representação da experiência mística explica-
se em função da relação sujeito-objeto. O estado místico pressupõe a superação das
barreiras entre essas duas instâncias fundamentais do pensamento. Refletindo sobre a
experiência mística como forma máxima de conhecimento na obra do filósofo
neoplatônico Plotino, o historiador da Filosofia David E. Cooper escreve:
Trata-se de uma questão difícil, mas interessante: quando
contemplamos o reino das Formas, estamos fadados, pela própria
estrutura sujeito-objeto do pensamento, “a vê-lo do lado de fora”,
como se uma coisa estivesse vendo outra. É, evidentemente, uma
ilusão, pois, como sabemos, “intelecto e ser são idênticos”. Mas é uma
ilusão da qual não temos como escapar quando envolvidos no
pensamento. Portanto, a dualidade se superada quando nos
“elevarmos” acima de qualquer processo de tipo intelectual e
entrarmos em união mística com o Uno mediante uma visão em que
todo sentido de diferença entre sujeito e objeto se evapora
41
.
Plotino entende que a experiência mística – como forma de superação da dualidade e do
conseqüente abismo entre sujeito e objeto é uma forma superior de visão, ou seja, de
conhecimento. É o que James reconhece como qualidade noética. Essa segunda marca
da experiência mística está em completa consonância com caráter epifânico e profético
reconhecido tradicionalmente no êxtase religioso.
James destaca ainda duas marcas “menos nítidas, mas geralmente encontradas
42
também no estado místico de consciência. A experiência mística tende a ser transitória e
passiva. Raramente se sustentam por muito tempo, quando muito, por uma ou duas
horas, segundo o filósofo.
Outra característica marcante desse tipo de experiência, que aparece implícita na análise
de James, é a anulação momentânea da individualidade, o que leva o místico a ter a
impressão “de que a sua vontade está adormecida e, às vezes, de que ele está sendo
agarrado e seguro por uma força superior
43
”. Essa última peculiaridade associaria, ainda
segundo o mesmo filósofo, os estados místicos a alguns “fenômenos definidos de
personalidade secundários ou alternativos”, dentre os quais, alguns de ordem lingüística,
41
COOPER, As filosofias do mundo.
42
JAMES, As variedades da experiência religiosa: um estudo sobre a Natureza Humana, p. 238.
43
JAMES, As variedades da experiência religiosa: um estudo sobre a Natureza Humana, p. 238.
31
como o discurso profético e a Escrita Automática
44
, procedimento empregado pelo
Surrealismo e que mantém relações de parentesco com a poética simbolista.
O problema do misticismo ocupa lugar central na poética simbolista, herdeira que é da
visão romântica de mundo. O caráter místico da escola foi atestado por diversos
estudiosos do movimento. Embora alguns tenham confundido misticismo com
dogmatismo ou atribuído o epíteto místico a poetas que não transcenderam a dimensão
lexical no contato com o universo religioso, alguns críticos penetraram fundo as
relações entre poesia e misticismo, percebendo o quanto a questão é, sobretudo, um
problema de linguagem. É o caso do crítico francês Roger Bastide, um dos maiores
intérpretes da poesia de Cruz e Sousa.
Partindo de uma reflexão genealógica sobre o Movimento Simbolista, cujas origens
remontariam ao misticismo medieval, Bastide procura diferenciar, em seus “Quatro
estudos sobre Cruz e Sousa”, a experiência literária do poeta catarinense da de seus
contemporâneos, a partir de uma noção de mbolo importada dos estudos de M. Baruzi
sobre o misticismo poético de São João da Cruz: trata-se do conceito de símbolo
experiência:
Em São João da Cruz, que foi admiravelmente estudado deste ponto
de vista por M. Baruzi, o símbolo não é uma imagem tomada
voluntariamente pelo escritor para descrever sua própria experiência,
mas é um criação estética que é experiência ao mesmo tempo que
explicação dessa experiência, é um produto da vida mística e não uma
imagem dessa vida: “Haveria” diz M. Baruzi “uma tão íntima
fusão da imagem e da experiência que não podemos falar de esforço
para figurar plasticamente um drama interior... Não haveria mais
tradução por um símbolo de uma experiência: haveria, no sentido
estrito da palavra, experiência simbólica” Assim, o misticismo termina
forçosamente em poesia ou música; quando São João volta de sua
aventura espiritual, ainda deslumbrado de Deus, quando a iluminação
e o êxtase terminam, não acha que as palavras sejam capazes de dizer
o inefável, porque as pobres palavras de que nos servimos são as
palavras da “tribo”, como diz F. Bacon, desvalorizadas por terem
rolado através dos séculos em tantas bocas profanas, e ele é obrigado a
recorrer a imagens, mas a imagens vividas, que ainda guardam em si
um pouco do fogo divino, como aquela da Noite escura
45
.
44
Sobre a relação entre a Escrita Automática e a experiência mística remeto o leitor a um recente artigo
que dediquei ao tema: VERAS, E. H. N. A Escrita Automática em Água Viva, de Clarice Lispector.
45
BASTIDE, Quatro estudos sobre Cruz e Sousa, p 175-176
32
Essa busca pela “tradução verbal do inefável
46
é o drama comum aos poetas
simbolistas. O emprego do símbolo experiência, procedimento que atualiza o estado
místico, diferenciaria, entretanto, a poesia de Cruz e Sousa no contexto da escola
simbolista. A prática dessa forma simbólica seria, segundo Roger Bastide, “para a
poesia o que o misticismo é para a religião
47
”. Esse caráter místico, que se realiza
linguisticamente no emprego do símbolo experiência, emprestaria a Cruz e Sousa um
lugar de destaque na “tríade harmoniosa” do simbolismo, formada por ele, Stefan Georg
e Mallarmé. A superioridade do autor de Broquéis foi dessa maneira explicada pelo
crítico francês:
Mallarmé continua contemplativo, ao passo que o que domina em
Cruz e Sousa é a viagem e a subida, é o dinamismo do arremesso, e
isso porque ele era brasileiro, do país da saudade, e de origem
africana, de uma raça essencialmente sentimental. Eis por que, em
rigor, menos experiência em Mallarmé que visão platônica, que se
preocupou principalmente com a tradução poética de sua visão, que
fica sempre no terreno da pesquisa técnica, do trabalho voluntário e da
arte, enquanto Cruz e Sousa, mais atormentado, vive a experiência
simbólica, acha seus símbolos não por mecanismo da vontade, e sim
na espontaneidade da busca; experimenta-se no interior de sua
saudade, como criação imprevisível e que se lhe impõe
48
.
A partir das contribuições de Roger Bastide, David Cooper e William James, é possível
estabelecer uma noção de misticismo como referência para se pensar a poesia de
Alphonsus de Guimaraens. A experiência mística seria, num amálgama das noções
acima apresentadas, uma experiência de ascensão rumo à superação dos limites entre
sujeito e objeto. Sua implicação poética, conforme sugere Roger Bastide, incide sobre a
constituição do signo, que deixa de ser imagem e passa a ser produto mesmo dessa
experiência. A sede de transcendência, impulso inicial da experiência mística, que
caracteriza os poetas simbolistas, é plenamente identificável em Alphonsus de
Guimaraens. Embora ela não se realize poeticamente na radicalidade de Cruz e Sousa,
ela é capaz de emprestar à obra do poeta mineiro, conforme acreditamos, o seu centro
impulsionador: a tensão entre essa ânsia de transcendência e a desilusão decadente,
46
BASTIDE, Quatro estudos sobre Cruz e Sousa, p178
47
BASTIDE, Quatro estudos sobre Cruz e Sousa, p 187
48
BASTIDE, Quatro estudos sobre Cruz e Sousa, p 187
33
entre a busca pelo Absoluto e a consciência melancólica de sua inacessibilidade. Seja
como for, essa sondagem - nunca satisfeita - do Absoluto define, para muitos críticos e,
de certa forma para este trabalho, a poesia mística de Alphonsus de Guimaraens. Para
Massaud Moisés, “a poesia mística de Alphonsus de Guimaraens, intimamente
relacionada com a poesia lírico-amorosa, é a de um crente em transe de fé, de alguém
medularmente religioso, mas que não aceita a religião como uma soma de dogmas
petrificados
49
”.
Justamente por obedecer a um impulso místico, a experiência religiosa em Alphonsus
não se reduz ao dogma. Tampouco sua religiosidade poética se esgota no emprego de
termos litúrgicos em seus versos. E, nesse aspecto, o poeta mineiro transcende qualquer
definição superficial de misticismo, baseada no emprego superficial de termos do
campo semântico místico-religioso. Para Jamil Almansur Haddad:
É preciso distinguir de início o verdadeiro misticismo que pelo menos
na sua acepção religiosa, levando ao êxtase, é um meio de
comunicação com a divindade, um meio de integração nela, do
pseudo-misticismo posto muito em voga pelo simbolismo, que longe
desta comunicação ou desta integração, satisfazia-se meramente com
o apreço das exterioridades do ritual
50
.
Alphonsus de Guimaraens, definitivamente, não se “satisfaz (...) com as exterioridades
do ritual”, seu liturgicismo não é puramente referencial, é a vivência poético-religiosa
da busca pelo Mistério. A experiência religiosa que se extrai de seus versos é de uma
inquietude tal que não se resolve no dogma católico, que não encontra porto seguro no
mundo dos homens. Por outro lado, sua poesia desconhece o ponto final da experiência
mística, que é a estaticidade e o silêncio do êxtase religioso. Sua poesia melancólica se
debate entre o niilismo e o êxtase impossíveis, como pretendemos demonstrar no
decorrer deste trabalho. Nesse aspecto, Alphonsus de Guimaraens demonstra sua
filiação romântica, expressa, senão em sua prática poética, pelo menos em sua visão de
mundo. A sede de transcendência, a busca, sempre insatisfeita, pelo Absoluto e o
pessimismo melancólico que lhe tingem a poesia estão em completa consonância com a
filosofia do Romantismo, pois
49
MOISÉS, História da literatura brasileira. V2, p.287.
50
HADDAD, Essência e forma do simbolismo, p.13.
34
A obsessão do romântico é sempre o absoluto, a totalidade. E por isso
o sentimento romântico adquire uma coloração religiosa que lhe é
própria, e que se traduz, em sua forma mais típica, na nostalgia, quer
dizer, na impossibilidade de integrar-se plenamente no Absoluto. (...)
Os românticos comprazem-se em sua insatisfação; podemos dizer que
a satisfação consiste em permanecer insatisfeito e, portanto,
nostálgico, eternamente saudoso
51
.
Uma rápida análise de mais alguns aspectos da poética simbolista pode ajudar nessa
tentativa de situar a poesia alphonsina no âmbito do misticismo. Partindo da própria
noção de símbolo, especialmente aquela pensada por Mallarmé, percebe-se facilmente
que essa poética é deveras avessa ao dogmatismo religioso. Segundo Umberto Eco, que
dedicou um ensaio à questão, o símbolo é o signo do inefável, é o signo que nunca se
reduz à significação totalizante, em oposição total ao dogma. A noção de símbolo,
desligada do comprometimento das religiões e da teologia com a defesa de um sentido
unívoco para a vida, radicaliza-se ainda mais na modernidade, quando não consignada
“por uma tradição cristã (ou pagã)
52
”. O símbolo moderno teria, assim, alcançado o
estado de plena insondabilidade, não como símbolo religioso, mas como símbolo
poético. Ainda segundo Eco, “a nossa noção [moderna] do simbólico radicaliza-se
apenas em um universo laico, no qual o símbolo não deve mais revelar e esconder o
absoluto das religiões, mas o absoluto da poesia
53
.”
Essa noção de símbolo corresponde ao que Mallarmé, na França, e Cruz e Sousa, no
Brasil, perseguiram intensamente. Alphonsus de Guimaraens, por outro lado, está, como
já sugerimos, aquém dessa radicalização poética do símbolo moderno. Sua poesia está a
meio caminho dela. Seus versos são a materialização de uma ânsia que nunca se
satisfaz, impedida pela lucidez de uma consciência que parece não querer ou não poder
se entregar por completo à dissolução mística. A vontade de união permanece, mas está
sempre assombrada pela dúvida, pelo niilismo, pela consciência da cisão insuperável
entre o Homem e Deus.
51
BORNHEIM, Filosofia do Romantismo, p.95. No terceiro capítulo desta dissertação, tentaremos
associar esse sentimento romântico de nostalgia diante do inacessível ao conceito de melancolia, que será
extraído das obras de Freud e de Giorgio Agamben.
52
ECO, sobre o símbolo, p. 140
53
ECO, sobre o símbolo, p. 142.
35
A esta altura deve estar claro que à poesia stica não basta o mero emprego de um
“idioma litúrgico
54
”, não basta a mera transcrição poética dos dogmas. A poesia mística
se realiza quando a linguagem poética se deixa moldar pela experiência de busca pelo
inefável, de contato com o Mistério. Num ensaio pouco divulgado, publicado em 1972,
Henriqueta Lisboa procurou distinguir as noções de poesia mística e poesia religiosa
para aplicá-las à análise de dois poetas: Alphonsus de Guimaraens e Severiano de
Resende. Segundo esse ensaio,
Será talvez oscilatória uma raia a separar a poesia religiosa da poesia
mística, embora possamos distingui-las em tese. De acordo com a
etimologia da palavra, mística supõe mistério; de acordo com o
fenômeno poético, este mistério tem caráter dual subjetivo-objetivo.
Assim, prevalece na poesia mística a susceptibilidade individual
elevada a um grau de extrema tensão, em que a lucidez do intelecto
(ou a revelação mesma) surge com o deslumbramento de determinada
visão em meio a trevas. (...) Entretanto, na poesia religiosa
predominam os sentimentos de confiança e amor, junto à intuição de
que a beleza e o bem são uma entidade em harmonia específica, daí
resultando limpidez e fluidez assim como de águas a caminho do
estuário
55
.
Para Henriqueta Lisboa, portanto, a poesia mística explicar-se-ia nos termos do mistério
e da “susceptibilidade individual elevada a um grau de extrema tensão”, ou seja, da
experiência de anulação da individualidade através da abertura máxima do sujeito para o
objeto. Lisboa associa essa noção à poesia de Severiano. À poesia de Alphonsus, a
analista aplica seu conceito de poesia religiosa, que explicar-se-ia nos termos da
confiança, do amor e da intuição de que o bem e o belo coincidem numa entidade
harmoniosa. A poesia de Alphonsus, segundo uma análise de Lisboa, seria religiosa em
função de sua atmosfera “triste, porém banhada de mansuetude, como se tivesse
estabilidade própria e segurança perene”. Nesses termos, sua poesia aparece como triste
e conformada, num decadentismo resolvido na fé desprovida de tensão.
Mas é difícil pensar num Alphonsus plenamente conformado no alento do dogma ou da
tradicional. É impossível desconsiderar a inquietude, a dúvida religiosa, e a tensão
que muitas vezes marcam sua poesia. O provável equívoco de Lisboa talvez esteja na
universalização de uma dimensão poética de fato caracterizadora do poeta mineiro: a
54
MURICY, Panorama do Movimento Simbolista brasileiro. V2 p.448.
55
LISBOA, Alphonsus e Severiano, p.29.
36
mansuetude
56
. Lisboa traduz em eufemismos como “mansuetude”, “estabilidade
própria” e “segurança perene” o que de humildade poética e serenidade em
Alphonsus de Guimaraens. Achamos, entretanto, que a serenidade, o conformismo e a
humildade de sua poesia não são características do fiel, do crente em Deus, mas do
decadente absorto na melancolia da impossibilidade de transcendência. Essa melancolia
é fruto de uma necessidade que Henriqueta Lisboa parece não considerar em Alphonsus:
a necessidade de transcendência poética, a busca angustiada pela tradução do inefável.
Não cremos haver num verso sequer do poeta mineiro uma manifestação segura de fé,
pelo menos numa análise global de sua obra. “Vivendo a agonia cristã de que fala
Miguel de Unamuno, seu sentimento religioso desconhece a imobilidade e a verdade-
feita
57
”. Por tudo isso, preferiremos, neste trabalho, melancolia à ‘mansuetude’, e
desilusão à segurança perene, na busca de compreender os momentos esvaziados de
desespero religioso, como nos versos que Lisboa toma como exemplo em seu ensaio.
Essa imagem conformada e pia do autor de Setenário das Dores de Nossa Senhora não
condiz também com sua filiação literária. Se religiosidade nos poetas decadentistas,
ela assume quase sempre um caráter negativo. Sua presença na poesia do século XIX
marca a “exasperação de idealistas em meio da sociedade utilitarista
58
e deve ser
entendida como forma de resistência, na esteira das palavras de Alfredo Bosi, que
“em toda grande poesia moderna, a partir do Pré-romantismo, uma forma de resistência
simbólica aos discursos dominantes
59
”.
Tudo isso aproxima, segundo nossa leitura, a poesia de Alphonsus de Guimaraens da de
Charles Baudelaire, que também vivenciou a desilusão metafísica e praticou uma poesia
de resistência. No ensaio citado acima, Alfredo Bosi destaca alguns caminhos de
resistência trilhados pela poesia moderna, dentre os quais estão, além do combate direto
às forças de dominação: a tentativa de recomposição dos tempos mágicos, da “grandeza
56
Acreditamos que Lisboa tenha captado, nessa análise, um pouco da atmosfera de resignação
melancólica que, também, como veremos no capítulo três desta dissertação, é definidor da poesia de
Alphonsus de Guimaraens. A estudiosa, entretanto, prefere conferir a este atmosfera uma conotação
positiva, ao associá-la à mansuetude e à serenidade.
57
MOISÉS, História da literatura brasileira. V2, p.287.
58
PEREIRA, Decadentismo e simbolismo na poesia portuguesa, p.27.
59
BOSI, Poesia e resistência, p.164.
37
heróica e sagrada dos tempos originários”
60
e a busca pela “ressacralização da memória
mais profunda da comunidade
61
”. Em Alphonsus de Guimaraens, a resistência se
justamente na tentativa sempre fracassada de restauração da unidade perdida, de re-
união mística com o Absoluto e naqueles momentos mais cáusticos de sua poesia
satânica, como em Kiriale. Discutindo com bastante minúcia a questão, a pesquisadora
Francine Fernandes Weiss Ricieri, dessa vez em sua tese de doutorado, escreve:
Em Alphonsus de Guimaraens, a resistência, no sentido que Bosi
atribui ao termo, teria seu momento em um espaço apertado. Seus
versos parecem erguer-se em um território impreciso entre a tentativa
(fadada ao fracasso) de recuperação de uma vivência mística não
cindida e a confissão de uma fissura agônica
62
.
Acreditamos que esse espaço apertado” pode ser definido nos seguintes limites: o
fervor agônico da busca corresponde aos momentos de maior tensão em Alphonsus de
Guimaraens; tal subida, entretanto, jamais encontra satisfação na revelação mística e o
fervor se torna desilusão; à margem dessa experiência fracassada e como seu resultado
direto, paira a melancolia, que está sempre associada ao inapreensível, à impossibilidade
de acesso ao objeto
63
, o que será tema do terceiro capítulo desta dissertação.
Acreditamos que um livro, em especial, pode nos oferecer um retrato privilegiado dessa
posição ocupada pelo sujeito poético alphonsino perante a transcendência, a
modernidade e a própria poesia: trata-se do Setenário das Dores de Nossa Senhora,
primeira publicação do poeta mineiro, que apareceu em 1899. Entendido
tradicionalmente pela crítica como um mero livro “de orações
64
”, em que o poeta
expressa “fervor angelical e graça lírica
65
”, Setenário é a manifestação de uma
consciência marcada pela cisão, pela fratura sujeito-objeto. De sua constituição formal,
como pretendemos demonstrar aqui, extrai-se uma profunda reflexão acerca da
condição do poeta moderno diante da perda do sentido imanente e da falência das vias
de contato com o Absoluto. Aparentemente um oratório de consagração e louvor às
Dores de Nossa Senhora, Setenário configura-se como uma experiência poética de
60
BOSI, Poesia e resistência, p.173.
61
BOSI, Poesia e resistência, p.174.
62
RICIERI, A imagem poética em Alphonsus de Guimaraens: espelhamentos e tensões, p.40.
63
Cf. AGAMBEN, Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental.
64
LISBOA, Alphonsus de Guimaraens, p.40.
65
LISBOA, Alphonsus de Guimaraens, p.40.
38
vontade mística seguida de fracasso metafísico e melancolia. Nos sonetos que compõem
essa obra, encontra-se talvez um elemento modelar para a poética de Alphonsus de
Guimaraens: um eu lírico marcado pela tensão, pelo fracasso e pela melancolia. É nesse
sentido que poderemos entendê-la como reflexão poética despersonalizada, no sentido
que Hugo Friedrich ao termo, em sua análise de Baudelaire. Para o crítico, com o
poeta de Les Fleur Du Mal,
começa a despersonalização da lírica moderna, pelo menos no sentido
que a palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa
empírica, como haviam pretendido os românticos, em contraste com a
lírica de muitos séculos anteriores
66
.
Com efeito, é possível falar, a partir da análise de Setenário, numa experiência poética
guiada pelo intelecto em Alphonsus de Guimaraens. Da arquitetura dessa obra
aparentemente confessional extrai-se uma espécie de cogito poético capaz de orientar
toda uma reflexão acerca da modernidade do poeta mineiro. Tácito Pace, no citado
trabalho sobre Alphonsus de Guimaraens, já havia intuído algo acerca do caráter
suprapersonal do sujeito poético de Setenário das Dores de Nossa Senhora. Segundo
ele,
A intencionalidade da escolha do tema, a arquitetura de sua
estruturação, o lirismo litúrgico e a apoteose à Virgem Maria excluem
qualquer devaneio relacionado com os problemas sentimentais do
poeta e mesmo com seu comportamento emocional, derivado de seu
noivado
67
.
Seria forçado associar essas palavras de Pace diretamente ao conceito de Friedrich.
Parece-nos que o crítico brasileiro vislumbra nos versos da obra em questão apenas um
arrefecimento do determinismo biográfico, uma vez que, apesar de excluir a influência
da morte de Constança, não toca na questão do catolicismo do poeta. De qualquer
modo, em Pace ao menos a sinalização de uma mudança de tom, especialmente
quando se constata que em Setenário das Dores de Nossa Senhora a crítica biográfica
pôde encontrar, numa análise superficial, um de seus melhores exemplos. Francine
Ricieri, entretanto, vai bem mais além. Segundo ela,
66
FRIEDRICH, A estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX, p.36.
67
PACE, O simbolismo na poesia de Alphonsus de Guimaraens, p.97.
39
O Setenário mais que um livro de horas” abriga em seu aparente
confessionalismo anacrônico uma intelecção do poético que remete
diretamente a concepções que começam a ser concretizadas em obras
poéticas como a de Charles Baudelaire e escritores afins
68
.
Tal intelecção do poético deve ser entendida, na nossa visão, como uma experiência
universal bem aos moldes do conceito de despersonalização cunhado por Friedrich.
Universal, entretanto, não aponta para uma alienação histórica, pois a condição do poeta
diante do inefável se agrava na modernidade do século XIX. Bebendo na fonte da
tradição, através de seu contato com o misticismo e com a liturgia cristã/católica,
Setenário das Dores de Nossa Senhora fixa suas raízes na modernidade, plasmando em
sua constituição arquitetônica a experiência típica do homem moderno e do sujeito
poético alphonsino: a cisão com o mundo. Por tudo isso, essa obra deve ser examinada,
primeiramente, em seus aspectos estruturais, o que será feito no segundo capítulo desta
dissertação.
68
RICIERI, A imagem poética em Alphonsus de Guimaraens: espelhamentos e tensões, p.36.
CAPÍTULO II
O ORATÓRIO POÉTICO DE ALPHONSUS DE
GUIMARAENS
41
Setenário das Dores de Nossa Senhora pode ser considerado uma representação
poética de uma das mais importantes e tradicionais celebrações litúrgicas do
catolicismo. A complexidade estrutural do rito que celebra as Dores de Nossa Senhora
foi em parte absorvida pela obra de Alphonsus de Guimaraens, dando origem a uma
composição literária que demanda uma reflexão acerca de suas relações com algumas
formas e procedimentos litúrgicos. A devoção às Dores de Maria data do século XIV
69
.
Inicialmente, as meditações sobre as Dores, que eram cinco, concentravam-se na cena
do Calvário. Posteriormente, estenderam-se, compreendendo, também, os outros
episódios da Paixão e dando origem ao esquema sétuplo tradicional. Ainda no século
XIV, desenvolveu-se uma tradição paralela, que considerava que as Dores de Maria não
se restringiam aos limites da Paixão de Cristo, mas são marcas de toda a trajetória de
vida da Santa. Este último esquema o de sete Dores compreendendo toda a Narrativa
Sagrada foi o que prevaleceu na tradição litúrgica, e acabou servindo de referência
para Alphonsus de Guimaraens compor seu Setenário das Dores de Nossa Senhora.
Seguindo, portanto, esse esquema, as sete Dores nas quais se baseou o poeta foram as
seguintes:
1- A profecia de Simeão;
2- A matança dos Inocentes e a fuga para o Egito;
3- Perda de Jesus em Jerusalém;
4- Jesus é preso e julgado;
5- Jesus é crucificado e morre;
6- Jesus é descido da cruz;
7- Jesus é sepultado.
69
Cf. CAZELLES et alli, Dicionário mariano
42
Setenário das Dores de Nossa Senhora se estrutura em sete capítulos, contendo cada
um sete sonetos. Seguindo o modelo predominante nas festas das Sete Dores de Maria,
a composição se orienta por algumas passagens do Evangelho, definidas pela tradição
católica, para recontar e meditar sobre o martírio da santa. Cada capítulo do livro se
propõe a refletir sobre uma Dor. Essa meditação é feita a partir da recuperação da
narrativa dos Evangelhos, donde se extraem, ainda em conformidade com a tradição, os
trechos que servem de epígrafe para cada capítulo/Dor. Dessa forma, temos um livro
que faz convergir narração e meditação, num amálgama dos gêneros narrativo e rico.
Considere-se, à guisa de exemplo, primeiramente, este trecho, predominantemente
narrativo, do soneto I da Primeira Dor:
Entram no Templo. Um hino do Céu tomba.
Sobre eles paira o Espírito celeste
Na Forma etérea de invisível Pomba.
Diz-lhe o velho Simeão: “Por uma Espada,
Já que Ele te foi dado e que O quiseste,
A Alma terás, Senhora, traspassada...”
70
O “fluir da temporalidade, em que se inserem as personagens e os acontecimentos
71
é
claramente perceptível nesses versos. Através deles, o poeta introduz uma das cenas
iniciais da narrativa das Dores: a entrada de Maria, José e Jesus no Templo, onde a santa
ouve as palavras proféticas de Simeão
72
, episódio que consiste na primeira das sete
Dores.
Exemplos de trechos predominantemente ricos não faltam no Setenário das Dores de
Nossa Senhora. Ainda no capítulo inicial, o poeta dedica o soneto VI à descida do
Espírito Santo sobre a Mãe do Cristo. Ao contrário do trecho citado anteriormente, esse
soneto caracteriza-se pela estaticidade, pela ausência quase completa do fluir temporal.
70
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.216.
71
SILVA, Teoria da Literatura, p.232.
72
Lc. II, 35.
43
De luar vestido, o fúlgido semblante
Entre bastos cabelos irisados,
E sobre o flanco a túnica irradiante
Que eram nesgas de céus nunca sonhados:
Os seus olhos de poente e de levante
Em silêncios de luz ilimitados;
Era o celeste Cavaleiro andante,
Anunciador de místicos Noivados...
E que Noivado o seu! Nuvens radiosas
Cercando o Mensageiro altivo e doce,
Debaixo de amplo céu de seda e rosas...
E dentro das olheiras cor-de-goivo,
O olhar da Virgem santa eternizou-se:
O Espírito de Deus era o seu Noivo...
73
Assim, o poema se destaca do conjunto da Primeira Dor por seu lirismo imagético e
celebrativo na abordagem da cena. Embora se enquadre no todo narrativo, esse soneto
tem uma função mais lírica que narrativa. Se, à luz do contexto narrativo criado pelos
outros poemas, identificamos no soneto VI alguns dados narrativos, esses devem ser
entendidos como elementos subordinados à intenção lírica dos versos, pois “o dado
narrativo, que pode fazer parte da estrutura de um poema rico, tem como função única
evocar uma situação íntima, revelar o conteúdo de uma subjetividade
74
”.
Essa estrutura discursiva mista, presente em Setenário das Dores de Nossa Senhora,
pode ser comparada a diversos gêneros da tradição litúrgica cristã. Desde os primórdios
do culto cristão, podemos verificar a presença de formas litúrgicas baseadas na
polifonia
75
, ou seja, no emprego de duas ou mais vozes numa mesma celebração. Nos
73
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.218.
74
SILVA, Teoria da Literatura, p.230.
75
Empregamos essa palavra no sentido literal, sem qualquer pretensão conceitual e prescindindo da
repercussão ideológica que a ela empresta Mikhail Bakhtin. Acrescente-se, ademais, que, em relação a
Setenário das Dores de Nossa Senhora, o termo polifonia nem é o mais adequado. O fenômeno poético
presente nessa obra mais se aproxima de uma espécie de modulação, para usar outra metáfora musical. Na
modulação uma mesma voz assume tonalidades diferentes ao longo do discurso. Mais à frente,
voltaremos a tocar nessa questão.
44
capítulos da história da liturgia, encontramos alguns gêneros capazes de ilustrar bem
essa tendência cristã às formas dialogadas.
A inserção de formas dialogadas na liturgia cristã data provavelmente do século IX. A
intenção era proporcionar aos fiéis uma participação mais direta nos mistérios cristãos,
o que, antes, era inviável, em função da total centralização do culto na figura do
sacerdote. Essa participação direta passou, então, a ocorrer através de curtas cenas
dialogadas introduzidas em momentos determinados da liturgia
76
. no século X,
provavelmente em Saint-Martial de Limoges, o Intróito de Páscoa apresentava uma
introdução em fórmula de diálogo, um “tropo dialogado”, nas palavras do musicólogo
Roland de Candé
77
, que permitia a presença de outras vozes, que não a do Padre, na
celebração da Páscoa. Segundo alguns musicólogos, esses diálogos podem ser
considerados a origem de um gênero que trouxe repercussões imensas para a história da
arte, por estar na base de grande parte do teatro europeu, da ópera e dos oratórios. Trata-
se do Drama Litúrgico. O gênero apresenta grande complexidade cênica, comparado-se
aos primeiros diálogos encenados. Os dramas contavam com um número bastante
ampliado de personagens e episódios e acabaram por consolidar uma tradição formal
que, como dissemos, repercutiu com muita força nos séculos posteriores.
A tradição do Drama Litúrgico consolidou-se e alcançou um sucesso popular
extraordinário. No início do século XVII, as representações sacras, outro gênero filiado
àquela tradição, eram bastante difundidas na Europa. Sua evolução, entretanto, foi
interrompida graças ao puritanismo da Contra-Reforma, que, através da Inquisição,
condenou o que considerava uma “profanação dos mistérios cristãos e da História
santa
78
”. Esse vácuo deixado pelas representações é logo preenchido por outro gênero, a
lauda. O canto das laudas mantém os diálogos, extraídos sempre dos Evangelhos, e
elimina a expressão corporal. Em pouco tempo, o esvaziamento da encenação e a
manutenção da forma dialogada dão origem a mais outra forma litúrgico-musical
bastante tradicional, o oratório. Segundo o musicólogo Roland de Candé,
76
Cf. CANDÉ, História universal da música.
77
CANDÉ, História universal da música.
78
CANDÉ, História universal da música, p 487.
45
A obrigação de renunciar ao jogo cênico tornava necessário o relato
da ação pelo coro ou por um narrador, que será chamado historicus,
storico, testo ou, mais tarde, “recitante” (o evangelista das Paixões). A
importância dessas funções é uma das características distintivas do
oratório
79
.
O conceito de oratório aparece diversas vezes confundido com o de cantata. De fato, a
distinção entre esses dois gêneros de composição vocal não cênica e de mesma
descendência não é nada fácil. Teoricamente, costuma-se identificar no oratório um
caráter mais narrativo e dramático, e, na cantata, um aspecto essencialmente lírico.
Ocorre, entretanto, que a evolução histórica dos dois gêneros os aproximou mais que os
distinguiu, de modo que a presença de elementos narrativos, dramáticos e líricos é
perfeitamente identificável tanto num quanto noutro. Num recente artigo dedicado à
análise de um dos oratórios mais conhecidos da história da música, a Paixão Segundo
São João, de Johann Sebastian Bach, Thiago Saltarelli destaca, no gênero em questão, a
coexistência de elementos narrativos, ricos e dramáticos. Em sua tentativa de associar
o fenômeno musical do oratório a elementos retirados do campo dos estudos literários, o
autor escreve:
O que interessa a nosso estudo (...) é perceber que o gênero oratório é
constituído normalmente por uma dimensão épica, uma lírica e ainda
uma dramática. No caso de Paixão Segundo São João isso pode ser
facilmente percebido: a dimensão épica está contida na narração de
trechos do Evangelho de João e eventualmente alguns trechos do de
Mateus – pelo evangelista, por meio dos recitativos narrativos. A
dimensão dramática consiste, ainda no texto do Evangelho, nas
passagens em que os personagens da história bíblica participam
diretamente das cenas e tomam a palavra. Em termos textuais, ocorre
a transformação do discurso indireto do evangelista no discurso direto
dos personagens. Essas passagens são postas em música nos
recitativos expressivos e nos coros estes últimos representando a
turba, a multidão de judeus disposta a condenar Jesus. A dimensão
lírica é dada em dois momentos do texto poético: nas árias e nos
ariosos
80
. O compositor esboça uma meditação pessoal ou emite um
comentário sobre a cena ou a narrativa que acaba de suceder
81
.
79
CANDÉ, História universal da música, p.488.
80
Segundo o autor, trata-se de uma forma menos rígida a meio caminho do recitativo e da ária.
81
SALTARELLI, A Paixão Segundo São João: uma retórica intermidiática. IN: Aletria: revista de
estudos literários, n. 14, jul.-dez. 2006, p.135.
46
Essa tradição formal que deságua no oratório, cuja estrutura discursiva se caracteriza,
conforme tentamos demonstrar acima, pela convergência dos gêneros dramático, lírico e
épico/narrativo, parece ter influenciado a composição do Setenário das Dores de Nossa
Senhora. Além do emprego consciente das vozes narrativa e lírica no interior dos
capítulos e sonetos que compõem a obra, outro aspecto aproxima essa obra de
Alphonsus Guimaraens ao gênero oratório, sua arquitetura geral. Assim como no gênero
musical, a narrativa, em Alphonsus de Guimaraens, é precedida de uma peça de
abertura, que anuncia as pretensões da obra, e é concluída com outra peça, também de
cunho lírico, que funciona como uma espécie de oração final. Em Setenário das Dores
de Nossa Senhora, essas peças correspondem, respectivamente, à “Antífona” e à
“Epífona”. A análise da “Antífona” nos permitirá aprofundar em algumas das questões
levantadas no primeiro capítulo desta dissertação, pois é exatamente nesse poema de
abertura que temos a manifestação das intenções místicas da obra, bem como da
consciência prévia de seu fracasso, decorrente do caráter melancólico do eu lírico
alphonsino. Nas sete estrofes do poema, o poeta se dirige a Nossa Senhora, anunciando
a pretensão de cantar e vivenciar as dores da mãe de Cristo. Ao mesmo tempo, delineia-
se uma imagem cindida do eu lírico, que aparece, então, em sua infimidade diante da
Virgem, como um ser indigno de experimentar a dor da Santa. Desse modo, a
“Antífona” é um prenúncio da tensão entre desejo de fusão mística e fracasso poético
que marcará toda a obra.
ANTÍFONA
Volvo o rosto para o teu afago.
Vendo o consolo dos teus olhares...
Sê propícia para mim que trago
Os olhos mortos de chorar pesares.
A minha alma, pobre ave que se assusta,
Veio encontrar o derradeiro asilo
No teu olhar de Imperatriz augusta,
Cheio de mar e de céu tranqüilo.
Olhos piedosos, palmas de exílios,
Vasos de goivos, macerados vasos!
Venho pousar à sombra dos teus cílios,
Que se fecham sobre dois ocasos.
Volvo o peito para as tuas Dores
47
E o coração para as Sete Espadas...
Dá-me, Senhora, para os teus louvores,
A paz das almas bem-aventuradas.
Dá-me, Senhora, a unção que nunca morre
Nos pobres lábios de quem espera:
Sê propícia para mim, socorre,
Quem te adorara, se adorar pudera!
Mas eu, a poeira que o vento espalha,
O homem de carne vil, cheio de assombros,
O esqueleto que busca uma mortalha,
Pedir o manto que te envolve os ombros!
Adorar-te, Senhora, se eu pudesse
Subir tão alto na hora da agonia!
Sê propícia para a minha prece.
Mãe dos aflitos...
Ave, Maria...
82
Esse poema pode ser dividido em quatro etapas. Nas primeiras estrofes, temos a
exortação à Virgem, que aparece como uma espécie de bálsamo para o poeta sofredor.
Este se desenha como uma “pobre ave que se assusta”, mas que pôde encontrar repouso
nos olhos da Santa, comparados à infinitude e à serenidade do mar e do céu. Na terceira
estrofe, essa exortação abre espaço para o trecho mais tenso do poema, o momento que
o fervor do poeta se materializa na tentativa de definir poeticamente a figura da Virgem.
Segue-se, então, uma seqüência reiterativa de epítetos que se estende por dois versos:
“Olhos piedosos, palmas de exílios!/Vasos de goivos, macerados vasos!”. A estrofe se
encerra com uma bela imagem para a Totalidade “Venho pousar à sombra dos teus
cílios/Que se fecham sobre dois ocasos” ansiada pelo poeta, que enxerga na e de
Cristo o ponto final dos conflitos da existência, numa espécie de comunhão com o
Absoluto. A intensificação da súplica e da vontade de comunhão mística acaba
desaguando na intenção sacrificial, que se expressa nos seguintes versos, em que o
poeta manifesta o desejo de vivenciar as dores de Maria: “Volvo o peito para as tuas
Dores/E o coração para as Sete Espadas...”. Trata-se do momento mais tenso desse
poema suplicatório. Ao fervor desses versos, entretanto, sucede-se o arrefecimento da
intenção mística que se dá através da autoconsciência do poeta, que, então, reconhece a
própria infimidade perante a Virgem, cujas dores, em verdade, são inatingíveis à vileza
82
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.215.
48
humana que o caracteriza. A quarta etapa corresponde ao retorno da súplica, agora
humilhada pela consciência do fracasso inevitável, pela cisão insuperável entre o poeta
e Nossa Senhora.
Essa peça de abertura do oratório poético de Alphonsus de Guimaraens pode ser
tomada, portanto, como uma amostra prévia da experiência poética que marcará todos
os capítulos do Setenário das Dores de Nossa Senhora. Como dissemos, no capítulo
anterior desta dissertação, essa obra configura-se como uma experiência poética de
vontade mística seguida de fracasso metafísico e melancolia. Numa espécie de parábola,
seus versos seguem sempre o movimento de ascendência mística e arrefecimento
consciente, de tensão religiosa e distensão crítica, de desejo e fracasso metafísico. Por
um lado, a obra dialoga com a tradição mística do culto mariano; por outro, mostra-se
contaminada pela tradição crítica da modernidade.
A celebração das Dores de Maria é um ritual de grande vocação mística, desde seus
primórdios.
Já nos tempos dos primeiros ‘Padres do deserto (séc. IV-V), Abba
Poemen, interrogado ao sair de um êxtase, respondia constrangido: “o
meu pensamento estava onde se encontra Maria, Mãe de Deus, que
chorava ao pé da Cruz do Salvador. E eu, eu queria chorar todo o tempo
assim”
83
Mas em Alphonsus de Guimaraens, essa subida extática é assombrada pelo peso da
consciência, que nunca se deixa dissolver. Aos momentos de auto-humilhação presentes
na “Antífona” corresponderão os muitos poemas metalingüísticos do Setenário das
Dores de Nossa Senhora, nos quais o poeta, sempre num momento de arrefecimento
após o fervor extático de um trecho lírico, emerge como consciência do fracasso místico
diante da inacessibilidade do Mistério das Dores de Maria. Nos versos analisados da
“Antífona”, percebe-se que o eu lírico pretende vestir o manto de Maria, experimentar,
através da poesia mística, o sofrimento da Mãe de Cristo. Porém, a empreitada aparece,
para o poeta, como algo inatingível, uma vez que sua humanidade está aquém da
santidade da Virgem. Esse reconhecimento da incapacidade humana do poeta é, em
83
CAZELLES, Dicionário mariano, p.54.
49
grande parte, o reconhecimento da insuficiência da linguagem. E a dimensão
metalingüística do Setenário denuncia justamente essa consciência. Os tercetos do
soneto VII da Sexta Dor, por exemplo, dizem o seguinte:
Nem pretendo, Senhora, (fora um sonho)
Dizer toda a agonia que sofrestes
Nos versos que ante vós, humilde, ponho.
Por mais nobre que seja, é sempre tosco,
Tem sempre versos pálidos como estes
O poeta que quiser chorar convosco.
84
Esses versos pertencem a um dos muitos poemas metalingüísticos da obra. Nesses
poemas, o poeta toma distância do Mistério, admitindo sua plena incapacidade de
vivenciá-lo e, com isso, arrefecendo a tensão mística que marca os trechos de fervor,
nos quais o poeta procura contar e cantar a trajetória dolorosa de Maria. Considerando o
todo da narrativa, experimentamos, sem muita dificuldade, esse movimento de tensão e
arrefecimento. As Dores Quarta e Quinta parecem, nessa perspectiva, ocuparem o ápice
dessa curva, pois se referem, de fato, aos momentos mais tensos da narrativa: a Paixão e
a Morte de Cristo. Após a narrativa dessas Dores, o tom de lamento e desilusão toma
conta dos versos, que passam a expressar com mais freqüência e intensidade a sensação
de fracasso do poeta. Nesse oratório poético de Alphonsus de Guimaraens, a
intensidade dos trechos narrativos, presos aos fatos bíblicos, e dos trechos líricos, que
expressam a emoção do poeta cantor dos sofrimentos da Virgem, cede espaço,
praticamente a cada final de capítulo, à desolação da voz poética, que, fracassada em
sua empreitada, se vê distante, cindida e incapaz de tocar e vivenciar, com seus versos,
as Dores inefáveis da Mãe de Cristo. Essa desolação coloca em evidência a condição do
poeta, que aparece, então, não mais como o cantor apenas, mas como o problema central
da própria poesia. Em outras palavras, temos a emersão do sujeito enunciador como
herói do próprio poema
85
. Dessa forma, Setenário das Dores de Nossa Senhora se
apresenta como uma obra metapóetica, que, em verdade, reflete sobre a condição do
poeta e da própria poesia na modernidade. Escrevendo sobre o poema religioso no
84
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.215.
85
Cf. PAZ, Contar e Cantar, p.14.
50
contexto do cristianismo, num texto intitulado “Contar e cantar”, Octávio Paz nos
oferece alguns elementos válidos para a interpretação dessa obra de Alphonsus de
Guimaraens. Segundo o autor mexicano,
O ocidente cristão introduz uma dupla e grande novidade. O poema
longo da Antiguidade greco-romana seja épico, filosófico ou
religioso – é sempre objetivo e nele não aparece o autor. (...) Na
poesia Cristã aparece um elemento novo: o próprio poeta como herói.
A Divina Comédia é um poema no qual se reúnem todos os gêneros
anteriores épicos, místicos, filosóficos e no qual se conta uma
história. O tema da história não é o regresso de Ulisses a Ítaca ou as
aventuras de Enéias: relata a história da viagem de um homem ao
outro mundo. Esse homem o é um herói, como Gilgamesh, e sim
um pecador e mais: esse pecador é o próprio poeta, o florentino
Dante. O poema antigo era impessoal; com Dante aparece o eu
86
.
Conforme tentamos demonstrar, essa “emersão do sujeito enunciador” é plenamente
identificável na narrativa das Dores de Maria empreendida por Alphonsus de
Guimaraens. Esse sujeito, conforme explica Octávio Paz, é um pecador, um homem
que, desde o princípio da enunciação, manifesta sua infimidade diante de Deus. O
aparecimento do eu, com a poesia de Dante, intensifica-se com o advento da
modernidade e, especialmente, com o Romantismo. Segundo Paz, é com o poema
romântico e, mais tarde, com o simbolista que o próprio cantar se torna tema do canto
87
e que a questão da insuficiência da linguagem se torna problemática. A grande
ocorrência de poemas metalingüísticos nas poéticas romântica e, principalmente,
simbolista atesta a importância dessa questão para os poetas daquela época. A nosso
ver, Setenário das Dores de Nossa Senhora, de Alphonsus de Guimaraens, representa a
plena consciência dessa condição problemática do poeta e da própria poesia na
modernidade. Sua arquitetura, pensada por nós a partir da associação com o gênero
oratório, é, conforme pensamos, o elemento através do qual se manifesta essa
consciência. O movimento de aproximação e distanciamento da voz poética diante do
Mistério das Dores de Maria atesta a todo o momento, conforme comprovam os poemas
metalingüísticos, o fracasso do poeta, o fracasso da linguagem, o fracasso da poesia no
mundo moderno.
86
PAZ, Contar e Cantar, p.14.
87
Cf. PAZ, Contar e Cantar.
51
Os momentos de maior fervor e de maior tensão mística da narrativa de Alphonsus de
Guimaraens são, sem dúvida, aqueles em que a voz poética se mistura aos fatos
narrados, aproximando-se deles, a fim de vivenciá-los via linguagem. Dentre os sete
capítulos, nenhum é mais intenso do que aquele que narra o auge das Dores de Maria,
nos episódios da prisão, do martírio e da crucificação de Jesus Cristo. A análise desse
capítulo deverá ser capaz de explicitar a estrutura em forma de oratório e o caráter
místico de Setenário das Dores de Nossa Senhora. Posteriormente, a análise de trechos
dos capítulos finais evidenciará a intensificação dos momentos de arrefecimento místico
e fracasso poético da obra. O recorte de nossa análise incide, portanto, sobre a curva
descendente que se estabelece após o ápice da narrativa, quando a tensão mística, após
atingir seu estado máximo, começa a se extinguir, abrindo espaço para os sentimentos
de desolação e melancolia.
O sofrimento de Cristo é contado e cantado por Alphonsus de Guimaraens a partir da
“Quarta Dor” e se estende até o último soneto da “Quinta Dor”. O episódio é
apresentado sob a perspectiva do Evangelho de João, donde se extraem as epígrafes que
introduzem os dois capítulos. Os versículos citados foram retirados da Vulgata, a versão
latina da Bíblia preparada por São Jerônimo.
A Quarta Dor é introduzida pelo versículo 17 do capítulo XIX: “Et bajulans sibi
crucem, exivit in eum qui dicitur Calvarioe locum.” O capítulo enfoca, prioritariamente,
a cena da crucificação. O primeiro soneto, entretanto, tem a função de retomar um
importante episódio da Paixão de Cristo: a entrevista com Pilatos. Bastante fiel aos
dados da narrativa bíblica, esse soneto pode ser considerado um recitativo, pois sua
função narrativa é claramente reconhecida no todo do capítulo. Em nenhum de seus
versos, emerge explicitamente a voz do sujeito enunciador, mostrando-se sempre presa
aos fatos da Bíblia. Já no primeiro verso, o clima de tensão que marca o episódio da
Paixão ganha uma perfeita expressão poética. Pilatos, num gesto ambíguo e que rendeu,
ao longo da história, diferentes interpretações, encara o Cristo:
52
Pontius Pilatus Olha-O. Quieto e fundo
88
O corte brusco no meio verso, ocasionado pela presença do ponto final após a sétima
sílaba poética, estabelecendo sua divisão em hemistíquios praticamente idênticos é o
recurso responsável pela representação do clima de tensão que marca a cena. Colocado
no fim desse primeiro hemistíquio, o ponto final provoca uma pausa brusca no fluxo do
verso, sugerindo uma espécie de tensão no silêncio, exatamente a experiência definidora
daquele encontro entre Pilatus e Jesus. A voz poética, no decorrer da estrofe, arrisca
uma leitura para o olhar do representante de Roma, que aparece, então, não como um
ser maligno, mas como um homem atormentado pela dúvida.
Pontius Pilatus olha-O. Quieto e fundo
Olhar mau que talvez de ódio não fosse;
De ódio, não, mas de dúvidas fecundo...
E Cristo era de pé, sereno e doce.
89
Ainda nesses versos, merece atenção a imagem de Cristo apresentada pelo poeta. Em
total contraste com a dúvida de Pilatus, o Filho do Homem é apresentado no estado de
serenidade e doçura. A postura de Pilatus, entretanto, se modifica. E é neste momento
que sua voz se intromete na narrativa, que, então, abre espaço para o discurso direto. No
mesmo poema, ganham voz, também, Jesus e a turba. As palavras que compõem esses
diálogos foram extraídas de João (18: 33 - 37) e aparecem, na voz dos próprios
personagens, até o fim da narrativa, quando a turba condena definitivamente Jesus à
morte
.
Depois, aquele olhar, que de profundo
Se fizera de escárnio, iluminou-se:
– “És o Rei dos Judeus?” Que deste mundo
O seu reino não era. E a voz calou-se.
– “És Rei?” – “Disseste-o”. E a multidão oprime
A Pilatus. No entanto para a turba
Ele fala: – “Não lhe acho nenhum crime.
“Ei-los, Jesus e Barabás precito:
Qual à morte votais?” (A dor perturba
O céu de amplo clamor...) – “Jesus”! foi dito.
90
88
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.228.
89
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.228.
90
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.228
53
O poema é marcado pela intromissão de vozes, que se juntam à do narrador, para
representar a balbúrdia da ocasião que condenou Jesus à morte. Os versos desse soneto,
sempre entrecortados pelo revezamento das vozes e pela sintaxe que essa estrutura
implica, apresentam-se quebrados, expressando, através dessas frequentes interrupções
na esperada fluência rítmica, o caráter tenso e problemático da cena representada.
O verso inicial do soneto II parece seguir um modelo sintático semelhante ao do verso
inicial do soneto anterior. O verso é praticamente uma transcrição de João (18:40).
Antes de Analisá-lo, vale a pena observar que esse versículo foi empregado por Johann
Sebastian Bach, em seu oratório Paixão Segundo São João
91
, numa circunstância
bastante parecida da que foi usado por Alphonsus de Guimaraens. Na organização do
oratório do compositor alemão, o versículo aparece entoado pelo Evangelista,
imediatamente após o coro da turba, que anuncia a condenação de cristo. O enunciado
aparece, então, na voz do recitador, como uma assertiva simples, seca e direta. Vejamos
como o versículo aparece na versão de Alphonsus de Guimaraens:
E Barabás era um ladrão
92
. Perdoado
Foi da morte naquela Páscoa, e o Justo
Sofreu o atroz suplício inolvidado,
Braços abertos no Madeiro augusto.
Esse primeiro verso, bem como toda a estrofe, tem a função de expressar o contraste
entre a justeza de Cristo e a abjeção de Barabás. E é através da representação poética
desse contraste, que o recitador do oratório poético de Alphonsus de Guimaraens é
capaz de ressaltar o caráter absurdo da decisão da turba. A transição para a segunda
estrofe se a partir de uma elipse na narrativa. Do julgamento, o foco desloca-se para
o Gólgota, sem passar pelas agruras da crucificação, que serão abordadas, entretanto,
em poemas subseqüentes. O caráter narrativo do recitativo vai, a cada verso, cedendo
lugar ao lirismo da ária. A cena do Cristo pregado na Cruz, representada como num
quadro, estática, alheia ao movimento narrativo, torna-se, nesse momento, motivo de
91
BACH, Johann Sebastian, Johannes-Passion.
92
Grifo Nosso.
54
meditação e louvor para o poeta. Os versos ganham tonalidade lírica e a vivência das
Dores de Cristo e Maria parece, então, bem mais próxima.
Na solidão do Monte descalvado
O vento ulula, trêmulo de susto:
No Céu, que lança à terra o olhar magoado,
É o sangue o luar, é sangue o sol adusto.
Soa dorida a Hora marcada. Círios
Em pranto, além, no Céu. Que negras noites
Estendem véus de luto aos seus Martírios...
Que Alma de penha quem não soluçasse
Ao ver impressa ao sangue dos açoites
A Verônica real da sua Face!
93
Como dissemos, esse soneto é marcadamente lírico. Na perspectiva de nossa análise,
que procura associar Setenário das Dores de Nossa Senhora, concomitantemente, à
forma do oratório e a uma experiência mística frustrada, esse lirismo deve ser entendido
como uma experiência de verticalização no contexto da narrativa. Em outras palavras,
esse poema empreende o congelamento de uma cena recortada do fluxo da narrativa
para consagrá-la e vivenciá-la pela palavra poética. Trata-se de um procedimento
idêntico àquele que define o gênero oratório. Após a narrativa do Evangelista, as árias
se apresentam como uma forma de meditação e vivência religiosa do trecho
anteriormente narrado. Esses momentos de intensificação do lirismo religioso
correspondem aos momentos de maior tensão mística, uma vez que, através da poesia
lírica, o poeta busca tocar o Mistério que lhe transcende, para vivenciá-lo, idealmente,
na plena fusão com o Outro. De volta ao soneto II, chama atenção, nessa meditação
sobre a crucificação de Cristo, o caráter romântico da representação do espaço do
Gólgota na ocasião do ápice do martírio de Cristo. A natureza se espiritualiza, ganha
alma, para lamentar o sofrimento do Salvador. O vento ulula, trêmulo de susto; o céu
lança à terra o olhar magoado; o luar e o sol se convertem em sangue; negras noites
estendem véus de luto aos seus Martírios. A Natureza em luto está espelhada na alma
do poeta e em todos os elementos da natureza física. Já no soneto III, que continua a
reflexão do anterior,
93
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.229.
55
Densas nuvens sem luz, como flabelos,
Velando o sol, que de pesar se ofusca,
Surgem por entre os límpidos castelos,
Numa dolência desolada e fusca.
(...)
E começa o martírio dos flagelos...
A tarde faz-se parda, a noite brusca.
94
E é nessa circunstância que Maria encontra o filho. estamos no soneto IV, quando o
fluxo da narrativa é retomado e a aura de puro lirismo se dissipa. Temos, outra vez, um
recitativo, que assume, nesse momento, a dupla função de narrar a chegada de Nossa
Senhora ao Calvário, descrevendo com detalhes a cena que ali se configura.
O soneto V representa a primeira emersão do eu lírico, nessa Quarta Dor. O foco, dessa
forma, afasta-se da História Sagrada, ressaltando, então, através da reflexão
metalingüística, a distância que separa o enunciador do enunciado, conforme
comprovam os versos dos tercetos:
Oh Porta celestial do Paraíso
Ante a esperança dos teus olhos venho
Mover-te à compaixão de que preciso.
Possa eu, Poeta da morte, Alma de assombros,
Um dia carregar o santo Lenho
Sobre o esqueleto dos meus frágeis ombros!
95
A emersão do eu lírico, preocupado com sua condição de Poeta da morte diante da
magnanimidade da Virgem, chamada Porta celestial do Paraíso, faz arrefecer a tensão
poética, pois estabelece uma rígida divisão, de todo contrária a qualquer pretensão
mística, entre o sujeito enunciador e seu objeto, a narrativa da trajetória dolorosa da
Mãe de Cristo. Nesse oratório poético, os recitativos e as árias não metalingüísticas,
dedicadas ao louvor dos Mistérios, correspondem aos momentos de maior tensão
mística. A emersão do sujeito poético, contudo, marca, através dos versos
94
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.229.
95
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.230.
56
metalingüísticos, a dimensão propriamente decadente da obra, quando o poeta
reconhece e lamenta sua impotência, que é, ao mesmo tempo, religiosa e poética, diante
das Dores de Nossa Senhora. Segundo o professor Sérgio Alves Peixoto,
A impotência do verbo poético, legado trágico do Romantismo à
poesia moderna, aparece em Alphonsus na medida em que cantar a
dor divina é o mesmo que sonhar, e traduzi-la em versos é poetar
palidamente, tão distante está a obra do tema, tão aquém se encontra a
humana linguagem do sofrimento divino
96
.
A consciência plena do fracasso stico e poético, entretanto, não se deu ainda. Será
preciso experimentar, antes, o contato com um dos momentos mais tensos e dolorosos
da narrativa: a Morte de Cristo, que ocorrerá na Quinta Dor. De volta à Quarta Dor,
teremos ainda um belo hino construído a partir de trechos extraídos do Magnificat.
Trata-se do soneto VI, que, abordando de passagem o episódio da Anunciação, mantém
a interrupção do fluxo da narrativa. Essa retrospecção ao episódio da Anunciação tem
função lírica e retoma, de certa forma, o fervor e a ascensão mística do poema. Marcado
pela presença do discurso direto, o soneto estabelece uma interlocução direta com
Maria, além de ceder a voz, na terceira estrofe, a Santa Isabel.
Feliz, bem sei, pois és quem Deus mais ama...
“Donde me vem que a Mãe do Verbo eterno
Me venha a mim?” Santa Isabel exclama.
97
O fluxo da narrativa, interrompido após o soneto IV, não será mais retomado nessa
Quarta Dor. Seu poema derradeiro, o soneto VII, abre espaço, novamente, para a
emersão do sujeito poético. Dessa vez, entretanto, a tonalidade da ária metalingüística é
de lamento, com o receio expresso, por parte do poeta, de não estar à altura para
cantar/chorar as Dores de Nossa Senhora.
96
PEIXOTO, A consciência criadora na poesia brasileira, p. 224.
97
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.231.
57
Se a Alma que aos pés vós tendes, vos parece
Indigna de chorar as vossas Dores,
Por não poder a fervorosa prece
De um pecador subir a tais louvores:
Se a Alma que esta Coroa astral vos tece
Humildemente, com tão pobres flores,
Não devera ascender a quem não desce
De um sólio de celestes resplendores:
Se por dizer o que vos digo, e creio,
Ponho o meu triste coração aberto
Ao desamor do Imaculado Seio:
Perdoai-me o zelo fiel que me consome,
Que estes meus versos valerão por certo,
Porque neles fulgura o vosso Nome...
98
Dirigindo-se, outra vez, a Nossa Senhora, o poeta, reconhecendo as dificuldades de sua
empreitada mística, admite, explicitamente, a possibilidade do fracasso. Como fizera na
Antífona, o poeta desenha-se, nesse último soneto da Quarta Dor, como um ser indigno
das Dores da Virgem. Seus versos, associados a uma coroa com pobres flores,
refletem, nesse momento, a hesitação que faz estacar a ascensão mística rumo à
vivência poética do Mistério das Dores de Nossa Senhora. O perdão, pedido à Virgem
na última estrofe, é sucedido pela certeza de que os versos valerão, senão pelo sucesso
da empresa mística, ao menos pela presença do Nome de Nossa Senhora.
Interrompida na cena do Gólgota, abordada no soneto IV da Quarta Dor, a narrativa dos
passos de Maria só será retomada efetivamente no soneto IV da Quinta Dor. A
suspensão da narrativa prolonga-se, portanto, por oito sonetos, que foram dedicados ora
ao louvor às Dores de Maria, ora à reflexão metalingüística. Essa longa suspensão da
narrativa, interrompida bruscamente em seu fluxo na cena da crucificação, tem como
efeito uma grande expectativa. Até que a cena da Cruz seja retomada, vivenciamos,
junto ao poeta, momentos de e de dúvida. À sua frente encontra-se o maior dos
desafios: narrar e vivenciar poeticamente o ápice das Dores de Nossa Senhora: a agonia
e a morte de Jesus Cristo.
98
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.231.
58
Por tudo isso, a Quinta Dor é um capítulo marcado por uma tensão crescente. Os três
primeiros sonetos expressam as súplicas do poeta que se prepara para encarar o desafio
de narrar a agonia do Filho de Deus. O soneto I estabelece uma interlocução direta com
Jesus, a quem o poeta pede amparo e proteção. Nesse soneto, temos o anúncio da morte
de Cristo, que será abordada pelo poeta a partir do soneto IV. A iminência desse
momento dramático desperta o lirismo religioso do poeta, expresso numa bela ária, ao
mesmo tempo suplicante e metalingüística:
Senhor Jesus, que sois toda a bondade,
Muitas vezes faz frio e a mágoa é intensa
Na minha Alma, e esta angústia que me invade
Clama só pela vossa real Presença...
Amparai-me com a vossa caridade:
Vindo, como virá, da luz imensa
Da vossa Mão (de toda a eternidade),
Há de ser grande sempre a recompensa.
Seja um sinal apenas de conforto,
Um gesto simples que, tombando do Alto,
Possa animar-me o coração já morto.
Fujam de mim as tentações do Inferno:
Que é momento de contemplar o assalto
Contra a glória do vosso Corpo eterno.
99
Mesmo se apresentando com o coração já morto, o poeta ainda busca transcender sua
condição humana para vivenciar o Mistério da Santidade de Maria e de Cristo. A
intenção mística está, mais uma vez, expressa nesse poema, em que o poeta clama pela
real presença de Deus.
O soneto II estabelece uma interlocução com Maria. A Santa é evocada em versos que,
em contraste com o primeiro soneto, não fazem qualquer menção metalingüística. O
foco recai sobre o caráter vivificante de Nossa Senhora, que aparece como a ermida
sagrada onde o poeta se exila, longe da fome, e sede, e guerra e peste.
99
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.232.
59
Síntese dos poemas anteriores, o soneto III expressa a súplica do poeta agora dirigida,
no plural, a Cristo e a Maria. Mantendo sempre a tensão entre o reconhecimento de sua
humanidade e a ânsia pela transcendência, o poeta, antes de contemplar o auge das
Dores de Nossa Senhora, pede piedade e promete chorar também as Dores da Sagrada
Família:
De mim piedade vós tereis. Bem ledes
Que espero o que jamais me será dado...
Mas a minha Alma é um templo sem paredes
Em que penetra o sol de cada lado.
(...)
Mas com que amor cheio de unção e glória
Convosco chorarei as vossas Dores
Na outra vida e na transitória...
100
Com o soneto IV, o foco retorna, finalmente, à cena do Gólgota. O recitador, dessa vez,
aproxima-se de Maria, elegendo-a como interlocutora. Dessa forma, a sequência
narrativa vai se desdobrando no diálogo do poeta com a Virgem. O primeiro verso, uma
reescrita do versículo 28 de João (19), situa o foco da narrativa no momento em que
Jesus pede água
101
:
Pois teve sede o vosso Filho na hora
Em que Vós, e Elas, a seus Pés vos Vistes,
Certo coroadas por suprema aurora,
Mas todas três tão pálidas, tão tristes...
O seu Olhar, cheio de dor, não chora,
Resignado ante as Dores que sentistes,
Vós, torre de marfim, santa Senhora,
Alma que em pranto astral vos diluíste!
E então secos os Lábios, a Garganta
Em fogo, é o instante de cruel martírio:
“Sede”! geme-lhe a Voz que se quebranta.
Na ponta de uma lança ergue-se a Esponja:
Mais se enlanguesce a vossa cor de lírio,
E esse perfil que predizia a monja...
102
100
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.233.
101
Todo o poema se constrói a partir da narrativa de João (19: 28 – 29).
102
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.233.
60
A interlocução com Maria permite ao poeta acompanhar, em paralelo, a cena do
martírio na cruz e as reações da Santa diante do sofrimento do filho. Essa estrutura
discursiva contribui para o aumento da tensão na narrativa, pois reforça a dolorosa
imagem da mãe condenada a contemplar, impotente, a agonia do filho, torturado,
crucificado e abandonado à morte lenta.
Para se referir aos ladrões crucificados ao lado de Jesus, Alphonsus de Guimaraens
promove, com o soneto V, uma digressão brusca na narrativa. O deslocamento, que se
estabelece rumo ao passado, direciona o foco para o episódio da fuga para o Egito, que
fora abordado no capítulo da Segunda Dor. No soneto, convergem a infância e os
momentos derradeiros de Jesus, o que, mais uma vez, contribui para aumentar a tensão.
A digressão, embora capaz de evocar outro importante elemento do episódio do
Gólgota, funciona como uma espécie de adiamento do momento derradeiro. Após a
retrospecção, os versos retomam o diálogo entre Dimas, o bom ladrão, e Jesus:
DEle se lembra Dimas, indeciso:
- “Vós, Senhor!” e Jesus: (...Lábios sagrados!)
- “Serás hoje comigo em Paraíso.”
103
O soneto VI retoma a presença do discípulo João ao da cruz. A cena, reconstituída a
partir do Evangelho de João (19: 26 e 27), compreende as palavras que Cristo dirigiu a
sua mãe e ao discípulo amado. Ao abordar essa cena, o soneto se divide. Nos quartetos,
o poeta retoma a narrativa do Evangelho e o diálogo nela compreendido
104
:
Junto da Cruz, em pé, Maria estava,
E perto dela, João. Jesus, que os via,
Para os dois entes celestiais olhava,
Olhos saudosos de melancolia.
- “Eis teu filho, Mulher.” E João Chorava.
E a mesma Voz dulcíssima dizia
Ao discípulo que Jesus amava:
- “Eis tua mãe.” Pouco depois, morria.
105
103
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.234.
104
O trecho é mais uma comprovação da funcionalidade da comparação com o oratório. Assim como
ocorre com o gênero musical, temos, em Setenário das Dores de Nossa Senhora, inúmeros exemplos de
transformação do discurso indireto do narrador no discurso direto dos personagens.
105
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.234/35.
61
Os tercetos cedem lugar aos comentários do poeta acerca da cena narrada. Temos,
portanto, nesses seis versos, uma ária, dedicada à figura do discípulo João:
Sobre-humanas delícias nunca vistas
Vieram, brancas, beijar a Alma tão pura
Do mais suave dos Quatro Evangelistas
106
.
Meigo S. João! fado de glórias pôs-te
A mão de Deus: que é a maior ventura
Ser amado de Cristo como foste.
107
O oitavo verso do soneto VI constitui-se na única referência direta à morte de Cristo
feita na Quinta Dor. O fato será retomado apenas retrospectivamente, no contexto dos
capítulos finais do Setenário. Como não poderia ser diferente, o momento de maior
tensão da obra se expressa num poema dedicado à reflexão acerca da experiência
dolorosa de Maria diante do martírio de Jesus. O soneto VII cumpre essa função.
Tomando, outra vez, Maria como interlocutora, o poeta reflete sobre o auge das Dores
da Santa e se aproxima, como em nenhum outro soneto, da vivência poética das Dores
de Cristo e de Nossa Senhora.
Vê-Lo não vos bastava, doce Dama,
Longe dos vossos maternais carinhos;
Sentir que a plebe vil, que ruge e clama,
Viesse em fúria assaltá-Lo nos caminhos:
Escarros que tombavam como lama
Sobre Quem é mais alvo que os arminhos:
E a Fronte real, em radiações de flama,
Cingida pelas pontas dos Espinhos:
Açoites, bofetadas, Cravos, Chagas,
E a Esponja, e a Lança, e o Fel, e a Sede estranha,
E o Sangue santo que corria em bagas:
Tudo era pouco para as vossas Dores...
Que ainda havíeis de vê-Lo na Montanha,
Expirando entre dois salteadores!
108
106
Conforme dissemos anteriormente, por conter elementos narrativos, os versos do primeiro terceto
podem ser associados a um arioso, que, no contexto do oratório musical, caracteriza um nero
discursivo a meio caminho do recitativo e da ária. (cf. nota 12).
107
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.235.
108
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.235.
62
Esse soneto pode ser considerado o mais importante do capítulo, pois é a partir dele que
o poeta-celebrante mergulha de vez, como dissemos, nas Dores de Maria, afasta-se do
lamento e da metalinguagem, para se aproximar dos fatos, buscando tocá-los do modo
mais substancial possível. O sofrimento de Jesus Crucificado é destacado, como
veremos, através de contrastes metafóricos e através da exploração do ritmo dos versos.
Aqui, fica claro como os elementos poéticos, com suas especificidades
109
, realiza a
mesma função que a música desempenha nos oratórios, para retomar a comparação
proposta neste trabalho: potencializar os efeitos do texto bíblico, proporcionando, assim,
uma experiência religiosa da narrativa-celebração.
Cristo está morto. O poeta se dirige a Maria a fim de recordar os sentimentos da Mãe de
Jesus no Gólgota. O poema ressalta a pureza de Cristo, que aparece em explícito
contraste com a vileza dos soldados e da turba. Esse contraste é resultado de uma
seleção poética dos vocábulos empregados, o que interessa é o poder da palavra de
evocar determinada idéia ou sensação, o poder de se fazer imagem
110
: “Escarros que
tombavam como lama/Sobre Quem é mais alvo que os arminhos”. O contraste entre a
pureza (alvura) do Cristo e a vileza (escarro/lama) dos agressores não é explicitado por
meio de uma linguagem direta, ele é evocado, sugerido pelas palavras escolhidas pelo
poeta para compor a cena – uma prática poética bastante típica do Simbolismo. Mais um
exemplo de poeticidade é a exploração do extrato fônico do texto. Vejamos como se
compõe o primeiro terceto do soneto:
Açoites, bofetadas, Cravos, Chagas,
E a Esponja, e a Lança, e o Fel, e a Sede estranha,
E o sangue santo que corria em bagas.
111
Essa estrofe é capaz de reproduzir, a partir do seu ritmo e da sua sintaxe, a caminhada
de Jesus pela Via-Crúcis e sua posterior crucificação. A sucessão de palavras sem
conjunção coordenativa assíndeto (Verso 1), bem como a repetição sistemática da
109
Lembrando que tais especificidades são determinadas, sobretudo, pela poética do autor.
110
Cf. PAZ, a imagem.
111
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.235.
63
conjunção “e” – polissíndeto – e do artigo definido (verso 2), são capazes de representar
a insistência, a repetição e a duração das Dores de Cristo ao longo de toda sua Paixão.
A disposição dos acentos no segundo verso também tem papel de suma importância no
processo de significação do poema. Temos um verso acentuado em todas as sílabas
pares, originando uma estrutura rítmica de alternância binária
112
, na qual se revezam
tempo forte e tempo fraco
113
:
E a Esponja, e a Lança, e o Fel, e a Sede estranha,
114
Essa construção rítmica também é capaz de reproduzir os passos de Cristo, a seqüência
de sofrimentos aos quais ele esteve submetido e, acima de tudo, conforme nossa leitura,
é capaz de lembra o ritmo dos açoites que o acompanharam em sua caminhada rumo ao
Gólgota. Para o poeta, não basta apenas recordar os sofrimentos de Cristo com palavras
referenciais, é preciso torná-los presentes, concretos, é preciso reproduzi-los através da
linguagem. Não basta apenas dizer que o Messias fora açoitado, é necessário reproduzir,
através do ritmo do verso e da sintaxe, a insistência e a intensidade das chicotadas. E a
essa busca corresponde a dimensão mística de Setenário das Dores de Nossa Senhora.
O ritmo desse segundo verso acaba por estabelecer uma relação metafórica entre os
açoites e os episódios, metonimicamente evocados, da “Esponja”, da Lança”, do “Fel”
e da “Sede”. Ao se referir a estes episódios, fazendo uso do ritmo binário descrito
acima, o poema estabelece uma analogia entre eles e os açoites, evocados por imitação
sonora. Por fim, tem-se uma espécie de síntese do sofrimento de Cristo, representado
em sua plenitude através dos recursos poéticos empregados. Nesse caso, o estrato fônico
do poema assume importância cabal. A exploração dos recursos fônicos, no verso em
questão, é responsável pelo aumento considerável da tensão poética, além de contribuir
para a sensível aproximação das dimensões do significante e do significado. Por tudo
isso, quer nos parecer que esse verso constitui-se no ápice da experiência místico-
poética do Setenário das Dores de Nossa Senhora. Nesse verso, linguagem e matéria
narrada se aproximam, proporcionando ao poeta, que praticamente se apaga enquanto
sujeito distanciado dos eventos abordados, uma experiência de comunhão semelhante
112
Cf. CHOCIAY, Teoria do verso, p.6.
113
Na terminologia da versificação qualitativa, esse esquema rítmico corresponde a um pentâmetro
jâmbico.
114
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.235.
64
àquela almejada pelos místicos. Como ponto mais alto do quinto capítulo e, em última
instância, de toda a obra, esse verso marca o momento em que a linguagem mais se
deixa afetar pela realidade representada.
Conforme tentamos demonstrar, Setenário das Dores de Nossa Senhora assemelha-se a
formas tradicionais da liturgia. Comparando-o ao oratório musical, observam-se
semelhanças estruturais. A voz enunciadora ora produz um lamento distanciado da
matéria narrada, especialmente nos momentos metalingüísticos, permitindo-se
diferenciar plenamente enquanto sujeito, ora observa e vivencia de perto o sofrimento
de Maria e de Cristo, quando a narrativa ganha feições místicas. Nestes momentos,
observa-se na linguagem o esforço em busca da expressão perfeita, em busca da
vivência poética do martírio de Nossa Senhora. É possível dizer que, na busca pela
essência da experiência de Maria, a linguagem poética se adéqua, molda-se, deixa-se
afetar pela realidade, numa espécie de comunhão com a matéria narrada. Os recursos
propriamente poéticos empregados na narrativa são os responsáveis por essa abertura da
linguagem à realidade. Como ocorre com a música no oratório, os recursos poéticos são
uma tentativa de potencializar o sentido das palavras e aproximar a narrativa da máxima
realidade da coisa narrada. Aliás, essa é a grande preocupação da poesia simbolista, dar
conta, a partir da linguagem, daquilo que é transcendente, indizível, inefável. E
Inefáveis eram as Dores de Maria, para Alphonsus de Guimaraens.
Os capítulos sexto e sétimo assistirão ao arrefecimento do impulso lírico. A consciência
da inefabilidade das Dores de Nossa Senhora proporcionará a ocorrência, novamente, de
trechos metalingüísticos, que praticamente não apareceram na Quinta Dor. Serão
abordados, ainda, os episódios da descida da cruz e do sepultamento de Cristo. A tensão
cede espaço ao luto. E uma nova emersão do sujeito poético trará novamente à tona o
sentimento de melancolia, resultado da frustração do poeta, condenado, por sua
condição humana, ao cárcere da imanência. Passemos, então, à curva inferior dessa
freqüência de ondas de que se constitui, em seu duplo movimento de ascensão e queda,
o oratório poético de Alphonsus de Guimaraens
CAPÍTULO III
METALINGUAGEM E MELANCOLIA EM SETENÁRIO
DAS DORES DE NOSSA SENHORA
66
Cristo está morto. A Sexta Dor focalizará o episódio da descida da cruz, e a Sétima, o
do sepultamento, sem o fervor que marca os capítulos mais tensos do Setenário das
Dores de Nossa Senhora. Os versos desses poemas finais se tingem, inicialmente, de
luto. Por fim, são capazes de ressaltar o caráter melancólico que perpassa toda a obra. A
frustração do eu lírico, que lamenta sua condição humana, vem, mais uma vez, à tona.
Após o ápice da tensão mística, vivenciada pelo poeta nos versos dos dois capítulos
anteriores, o universo aparece esvaziado, marcado por uma ausência essencial. Após a
ascensão mística, o poeta experimenta em seus versos a queda, o arrefecimento.
Os três primeiros sonetos da Sexta Dor são dedicados à louvação de Nossa Senhora.
Neles, entretanto, percebemos claramente a voz do poeta, distanciado de seu objeto de
culto. O contraste entre a santidade de Maria e a infimidade humana do poeta é, outra
vez, ratificado. No primeiro soneto, ouvimos o poeta se definir como “o Poeta
miserando”. No terceiro soneto, o poeta reafirma sua incapacidade poética diante da
magnitude de Nossa Senhora. Na primeira estrofe, lemos:
Ela é o asilo da mendicidade:
Ei-los que vêm, os míseros pedintes...
(Musa, não lhe dirás a suavidade,
Por mais suaves as cores com que a pintes!)
115
Após reafirmar sua incapacidade poética, marcando sua distinção ontológica em relação
à Santa, numa atitude antimística
116
, o poeta renova sua intenção mística, noutra súplica
à Mãe de Cristo:
Reza por mim, Senhora! Ah quem me dera
Sentir no peito, agora, a mesma Espada
Aguda e funda que te dilacera...
117
115
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.237.
116
O termo antimístico se justifica, evidentemente, em relação ao conceito de mística com o qual
trabalhamos nesta dissertação, qual seja, uma experiência marcada pela dissolução dos limites entre
sujeito e objeto, que, em poesia, corresponde ao esmaecimento da presença do eu lírico em proveito de
uma linguagem que se deixa afetar concretamente pelo objeto.
117
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.237.
67
Afirma-se, desse modo, nos versos acima, uma das principais características do
Setenário das Dores de Nossa Senhora: seu caráter ambivalente. Nessa obra, conforme
esta dissertação vem tentando demonstrar, convivem dois sentimentos contraditórios.
Por um lado, observamos a ânsia do eu lírico em presentificar as Dores de Nossa
Senhora, numa tentativa de vivenciá-las poeticamente. Por outro lado, percebemos, em
toda a obra, as marcas do fracasso poético. Como quem perde o fôlego num mergulho, o
poeta se vê, a todo momento, obrigado a interromper sua experiência mística, para
lamentar a insuficiência de sua poesia diante das Dores inefáveis de Nossa Senhora.
Esse embate entre o impulso místico e a autoconsciência do poeta parece ser, conforme
pensamos, o centro irradiador da obra. Com efeito, os momentos metalingüísticos, ou
seja, aqueles que tematizam o código ou o próprio fazer poético, estão disseminados por
toda a obra e, portanto, convivem com os momentos mais tensos da subida mística do
poeta. Em praticamente todas as partes da obra, podemos identificar elementos
metalingüísticos. É interessante observar, entretanto, que os momentos metalingüísticos
se concentram, em sua maioria, no início e no fim da narrativa, estando praticamente
ausentes
118
dos capítulos que marcam o ápice místico da obra. Na Quinta Dor, por
exemplo, assistimos à emersão do eu lírico nos sonetos iniciais, porém não
identificamos qualquer reflexão de cunho metalingüístico em seus versos. Embora o
poeta se refira à narrativa da morte de Cristo, demonstrando ter consciência de sua
condição de narrador, não se repete, na Quinta Dor, a reflexão acerca da linguagem e do
fazer poéticos, que aparece em todos os capítulos da obra.
Na Sexta Dor, ao contrário, assistimos não só à emersão do sujeito poético, mas,
também, à tematização, de cunho metalingüístico, da linguagem poética. Nesse quesito,
o soneto VII se destaca como um dos mais significativos de toda a obra, podendo ser
tomado como referência para uma reflexão sobre a presença da metalinguagem no
Setenário das Dores de Nossa Senhora:
Eu sei cantar o sofrimento: basta,
Para Cantá-lo bem, já ter sofrido...
Pois a musa que pelo chão se arrasta
Sobe às vezes ao Céu como um balido.
118
Exceção feita a alguns versos do soneto V e ao soneto VII da Quarta Dor, que apresentam,
explicitamente, elementos metalingüísticos.
68
Mas canto a sempre-humana dor. A vasta
Dolência angelical, o almo gemido
Que vem pungir-vos a Alma pura e casta,
Oh! Não... Que para tal não fui nascido.
Nem pretendo, Senhora, (fora um sonho)
Dizer toda a agonia que sofrestes
Nos versos que ante vós, humilde, ponho.
Por mais nobre que seja, é sempre tosco,
Tem sempre versos pálidos como estes
O Poeta que quiser chorar convosco.
119
Nesse poema, reaparece uma dicotomia presente em toda a obra. A “sempre-humana
dor” não se iguala à “Dolência angelical” da Santa. Mais uma vez, o Homem é
representado em sua infimidade, em sua condição de inferioridade diante de Nossa
Senhora. Como dissemos nos capítulos anteriores, essa reflexão de cunho ontológico,
que visa a diferenciar a condição humana daquela que define a essência de Cristo e
Maria, aparece sempre associada a uma reflexão acerca da linguagem. Em Alphonsus de
Guimaraens, a condição humana é marcada, principalmente, pela insuficiência da
linguagem diante do inefável e, portanto, pela impossibilidade de transcendência, e é
nesse sentido que o poeta assume, nos tercetos do poema em questão, o fracasso de sua
pretensão poética. Toda a agonia sofrida pela Mãe de Cristo é inefável e, por isso, para
o poeta, a busca pela vivência poética das Dores de Nossa Senhora não passou de “um
sonho”. Esses versos metalingüísticos apresentam, ainda, uma imagem da própria
poesia, que, “por mais nobre que seja”, estará sempre aquém do Mistério, aquém do
Absoluto.
Na esteira dessas idéias, identifica-se outro procedimento bastante comum no Setenário
das Dores de Nossa Senhora: a autodepreciação do poeta. Ao longo de toda a narrativa,
deparamo-nos com uma imagem degradada e mundana do eu lírico, que, diante de
Deus, mostra-se sempre inferiorizado e fracassado. Essa imagem corrobora com aquela
associação entre o poeta e o Homem, discutida acima. Decaído e condenado à
imanência, o Homem define-se pela dupla condição de sonhador encarcerado. Também
o poeta decadente experimentará esse martírio
120
. Oprimido entre o desejo de fusão
119
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.239.
120
Num de seus sonetos mais conhecidos, Cruz e Sousa foi capaz de representar com perfeição essa
condição dual do Homem, que também é a do poeta decadente. Na primeira estrofe de “Cárcere das
69
mística e os limites da própria linguagem, ao poeta restará lamentar a queda, a perda, a
ausência eterna de um objeto amado, bem ao gosto da poesia decadentista. A questão da
metalinguagem e do procedimento de autodepreciação do poeta na obra de Alphonsus
de Guimaraens foi dessa forma comentada pelo professor Sérgio Peixoto, que, neste
trecho, analisa o soneto VII, da Sexta Dor, transcrito acima:
Em meio ao cabalisticamente arquitetado plano de poetizar as sete
dores de Nossa Senhora em sete sonetos cada uma, poemas de cunho
metalingüísticos, como este, se destacam. Na verdade, praticamente ao
final de cada grupo de sete poemas há um que tematiza o fazer
poético. Mas este tem grande importância porque retoma, com a
poesia, a sempiterna dor humana como tema decadente por
excelência. O recurso da modéstia afetada, que Alphonsus utiliza,
perde inteiramente seu caráter mecânico e artificial, porque o poeta
soube envolvê-lo na melodia serena do verso e no clima místico-
religioso que conseguiu tão bem captar, ao pôr em contraste a
condição submissa do homem em face do divino, e a do poeta em face
de sua linguagem. A alma humana não se compara à da Mater
Dolorosa”, assim como o sofrimento do homem (e o verso do poeta)
não chegam aos pés da Grande Dor da Mãe de Cristo.
121
Na linha desse raciocínio, voltamos a identificar, na obra de Alphonsus de Guimaraens,
aquela experiência de cisão com o Absoluto, sobre a qual falamos na primeira parte
desta dissertação. Esse abismo que se abre entre a poesia (poeta) e o objeto, aqui
associado ao Absoluto e ao Mistério, pode ser entendido, também, como um legado
cultural do século XIX e do Romantismo. O poder de nomear e de se integrar ao
universo não mais pertence ao poeta, que, então, torna-se marginal, decadente e maldito.
“A poesia não coincide com o rito e as palavras sagradas que abriam o mundo ao
homem e o homem a si mesmo
122
”. Segundo Alfredo Bosi, no século XIX:
Furtou-se à vontade mitopoética aquele poder originário de nomear,
de com-preender a natureza e os homens, poder de suplência e de
união. As almas e os objetos foram assumidos e guiados, no agir
cotidiano, pelos mecanismos do interesse, da produtividade; e o seu
valor foi se medindo quase automaticamente pela posição que ocupam
almas”, lê-se: Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,/Soluçando nas trevas, entre as grades/Do
calabouço olhando imensidades,/Mares, estrelas, tardes, natureza. CRUZ e SOUSA, João da. Obra
completa, p. 188.
121
PEIXOTO, A poética simbolista, p.224.
122
BOSI, Poesia-resistência, p. 164.
70
na hierarquia de classe ou de status. Os tempos foram ficando como
já deplorava Leopardi – egoístas e abstratos.
123
Para Alfredo Bosi, esse ostracismo a que foram condenados o poeta e a própria poesia
no mundo moderno está na base do autocentramento que caracteriza a lírica moderna.
Nesse sentido, explica-se historicamente a marcante presença da metalinguagem na
literatura do período. “A poesia moderna foi compelida à estranheza e ao silêncio. Pior,
foi condenada a tirar de si a substancia vital. Ó indigência extrema, canto ao avesso,
metalinguagem!
124
” Na esteira desse processo, desenvolve-se o poema crítico, que,
contendo sua própria negação, afirma-se como busca eterna diante do caráter
inapreensível do Absoluto. Num de seus ensaios mais potentes, Octávio Paz, que
dedicou diversos trabalhos à reflexão sobre a poesia moderna, escreveu:
Poema crítico: se não me engano, a união destas duas palavras
contraditórias quer dizer: aquele poema que contém sua própria
negação e que faz dessa negação o ponto de partida do canto, a igual
distância da afirmação e da negação. A poesia, concebida por
Mallarmé como a única possibilidade de identificação da linguagem
com o absoluto, nega-se a si mesma cada vez que se realiza em poema
(nenhum ato, inclusive um ato puro e hipotético: sem autor, tempo ou
espaço, abolirá o acaso) salvo se o poema é simultaneamente crítica
dessa tentativa
125
.
A dimensão metalingüística da obra de Alphonsus de Guimaraens pode ser entendida à
luz desse contexto literário. Os poemas metalingüísticos de Setenário das Dores de
Nossa Senhora funcionam como uma espécie de agente crítico
126
, cindindo a voz
poética, que passa a se ter como objeto de crítica, e interrompendo a ascensão mística
em direção ao Absoluto. Nesse processo, a questão da insuficiência da linguagem
poética vem à tona como foco principal da obra e o poeta, que, então, emerge de sua
empreitada mística, torna-se tema de seu próprio canto. Esse não é um fato isolado na
história da literatura, ao contrário, é fruto de paulatinas transformações, desde o
surgimento da poesia cristã, passando por Dante, o introdutor do eu na poesia
123
BOSI, Poesia-resistência, p. 164.
124
BOSI, Poesia-resistência, p. 165.
125
PAZ, signos em rotação, p. 111.
126
O termo é emprestado da reflexão de Freud sobre a melancolia. Cf. Luto e melancolia.
71
ocidental
127
, até o advento do poema romântico, que “teve como tema o próprio canto
ou o seu cantor: poema da poesia ou poema do poeta
128
.”
A intervenção do agente crítico, que acaba por enfocar o poema e o próprio poeta como
temas da poesia, ocorre, na poesia de Alphonsus de Guimaraens, de um modo peculiar.
Podemos dizer que ela funciona como um elemento atravancador da energia mística,
desencadeando um sentimento de frustração e paralisia que pode ser associado à
experiência melancólica, sobre a qual falaremos adiante. Seja como for, a ocorrência, na
mesma obra, dessas duas experiências a energia ascensional da empreitada mística e o
seu arrefecimento, graças à emersão de um agente crítico autodepreciador pode ser
tomada como um elemento diferenciador da poética de Alphonsus de Guimaraens no
contexto do Simbolismo brasileiro. Para comprovar essa afirmação, é o bastante
recorrer ao caso Cruz e Sousa. Na obra do poeta catarinense, é fácil encontrar poemas
que tematizam a insuficiência da linguagem. No entanto, geralmente, esse tema é
abordado isoladamente em poemas dedicados especialmente a ele. Ao contrário do que
ocorre em Alphonsus de Guimaraens, os poemas místicos de Cruz e Sousa nunca se
negam, senão pelo seu próprio esgotamento. Uma das principais características de sua
linguagem poética está diretamente associada a essa busca incessante pelo Absoluto: o
procedimento reiterativo, que se explica pela “desenfreada enumeração dos adjetivos,
presentes em quase todos os poemas” de Broquéis
129
. As extraordinárias seqüências de
adjetivos nos versos do autor de Broquéis atestam, ao mesmo tempo, a manutenção da
energia mística e sua insuficiência. Em Cruz e Sousa, a energia mística fracassa pelo seu
esgotamento
130
. Em Alphonsus de Guimaraens, ao contrário, a energia mística é
atravancada pelo agente crítico, antes mesmo de se extenuar pela insistência. Em sua
poesia, especialmente em Setenário das Dores de Nossa Senhora, a consciência do
inacessível se expressa textualmente e é capaz de absorver quase toda a energia
essencial à experiência mística.
127
Cf. PAZ, Contar e cantar.
128
PAZ, Contar e cantar, p.28.
129
Cf. TEIXEIRA, Cem anos de simbolismo: Broquéis e alguns fatores de sua modernidade, p.16.
130
Esse fato pode ser observado em suas diversas etapas no poema “Regina Coeli”, de Broquéis. O
procedimento reiterativo, que caracteriza a primeira parte desse poema, denuncia a impossibilidade da
expressão. Os adjetivos e epítetos que se substituem “branca”, “Estrela dos altares”, “Rosa pulcra dos
Rosais polares”, “Branca, do alvor das âmbulas sagradas” não dizem nada sobre a Virgem, são, em si, a
vivência poética de Sua inefabilidade. Por mais que a imagem da “Virgem branca” possa sugerir, de
imediato, pureza e santidade, a ânsia por mergulhar na exacerbação de Sua brancura faz o poema
transcender a mera adjetivação e se aproximar da prece, do transe religioso.
72
Graças a sua arquitetura discursiva, analisada no capítulo dois desta dissertação,
Setenário das Dores de Nossa Senhora é capaz de representar a experiência poético-
existencial típica do Simbolismo: o embate entre o desejo de tocar o Inefável e os
limites da linguagem. Além disso, é capaz, também, de anunciar, lembrando que se trata
da primeira obra publicada por Alphonsus de Guimaraens, os principais elementos da
poética do autor. A maneira como a questão fundamental do Simbolismo é representada
nesse oratório poético aponta, de modo consciente, para uma das principais marcas da
obra do poeta mineiro: o seu caráter melancólico.
Toda a poesia de Alphonsus de Guimaraens será contaminada pelo estado de melancolia
que decorre da experiência poético-existencial encenada em Setenário das Dores de
Nossa Senhora. As sensações de perda, frustração e desconsolo metafísico, que levam
o poeta a se lamentar, pintando-se como um ser deslocado e incapaz diante do Inefável,
o auto-envilecimento do poeta, que decorre da experiência metalingüística da
autocrítica, tão freqüente na poesia alphonsina, além da experiência da perda
irreversível, que marca a poesia decadentista, constituem, de fato, alguns dos traços
distintivos dessa experiência melancólica.
Em Luto e melancolia
131
, publicado em 1917, Sigmund Freud se dedicou a refletir, a
partir do cotejo com a experiência do luto, sobre os principais elementos que compõem
a melancolia, analisada por ele como uma provável disposição patológica. Segundo
Freud,
Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo
profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a
perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade,
e a diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar
expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando
numa expectativa delirante de punição
132
.
131
O interesse de Freud pelo estado melancólico restringe-se à observação clínica. Conforme destacou
Susana Kampff Lages, em seu livro Walter Benjamin: Tradução e Melancolia, “o clássico ensaio de
Freud, publicado em 1917, (...) não faz nenhuma referência, nem a tradição médica anterior, nem à forte
tradição pictória e literária que tematizou inúmeras vezes o assunto.”(p.58). Dessa forma, a aplicação das
observações freudianas sobre a melancolia à leitura de um texto literário se por analogia. Sendo assim,
buscamos identificar na realidade literária da obra de Alphonsus aspectos que se assemelham a dados do
fenômeno psíquico anotados por Freud. Por tudo isso, nossa associação entre a obra de Alphonsus de
Guimaraens e o estado melancólico deverá considerar outros momentos da história da representação e da
reflexão sobre a melancolia, antes e depois da Psicanálise.
132
FREUD, Luto e melancolia, p.276.
73
Essa tendência à autodepreciação constitui, para Freud, “a característica mais marcante”
do quadro clínico da melancolia. Esse procedimento pode ser melhor compreendido,
quando entendemos que, para Freud, a melancolia está associada a uma experiência de
perda, mantendo, assim, algumas semelhanças com o luto. Entretanto, ao contrário do
que ocorre com o luto, que é passageiro e permite que a pessoa redirecione sua energia
amorosa para outro objeto, a melancolia é um distúrbio que impede esse
redirecionamento, proporcionando a manutenção do sentimento de perda por mais
tempo que o natural. Outra característica peculiar à melancolia consiste no caráter
enigmático do objeto perdido. O paciente lamenta uma ausência, sofre com uma perda,
mas não pode identificá-la com clareza. Para Freud,
No luto, verificamos que a inibição e a perda de interesse são
plenamente explicadas pelo trabalho do luto no qual o ego é
absorvido. Na melancolia, a perda desconhecida resultará num
trabalho semelhante, e será, portanto, responsável pela inibição
melancólica. A diferença consiste em que a inibição do melancólico
nos parece enigmática porque não podemos ver o que é que o está
absorvendo tão completamente. O melancólico exibe ainda uma outra
coisa que está ausente no luto uma diminuição extraordinária de sua
auto-estima, um empobrecimento de seu ego em grande escala. No
luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio
ego
133
.
Cotejando os traços distintivos do quadro clínico da melancolia, identificados por
Freud, com os elementos que identificamos na obra de Alphonsus de Guimaraens,
observamos algumas semelhanças. Em sua poesia, verificamos o freqüente
arrefecimento da energia mística diante do fracasso da empreitada religiosa do poeta. É
importante lembrar que, ao contrário do que ocorre, por exemplo, na poesia de Cruz e
Sousa, esse fracasso não se dá, em Alphonsus de Guimaraens, com a extenuação, mas
com o atravancamento da força poética. Esse atravancamento, acreditamos, pode ser
associado à inibição melancólica. Além desta, outra marca identificada por Freud no
estado melancólico se faz presente no poeta alphonsino: a auto-depreciação. Como
vimos, diante do fracasso místico e da irreversibilidade da perda objetal, uma vez que o
133
FREUD, Luto e melancolia, p.278
74
Mistério mantém-se inapreensível (inefável), o eu lírico experimenta aquela sensação de
esvaziamento que detona o processo de auto-envilecimento, que se expressa tantas
vezes ao longo do Setenário das Dores de Nossa Senhora. A tonalidade melancólica
pode ser identificada a partir do contraste com os momentos mais fervorosos da obra.
Conforme vimos anteriormente nesta dissertação, o oratório poético de Alphonsus de
Guimaraens se desenha numa espécie de oscilação entre os momentos de abordagem
fervorosa, muitas vezes marcadamente místicos, da História de Maria, e os momentos
de arrefecimento dessa emoção religiosa, quando ocorre a emersão plena do sujeito
poético. Nestes momentos, o poeta, quase sempre, lamenta sua condição humana, que,
como vimos, associa-se, no contexto poético, à insuficiência da linguagem.
A questão nos leva a propor uma associação entre as reflexões metalingüísticas do poeta
em Setenário das Dores de Nossa Senhora e o conceito de melancolia delineado por
Freud. Para isso, precisamos compreender outro traço caracterizador da melancolia: a
regressão da libido ao ego. A fim de explicar por que, no quadro clínico da melancolia,
a insatisfação com o ego constitui a característica mais marcante, Freud direciona suas
atenções para os elementos narcisistas do melancólico. Freud percebe, então, que “as
auto-recriminações [do melancólico] são recriminações feitas a um objeto amado, que
foram deslocadas desse objeto para o ego do próprio paciente
134
.” Isso explica o
surgimento daquilo que Freud chama de agente crítico, que consiste na subdivisão do
ego responsável pela autodepreciação. Dessa forma, no melancólico, “uma parte do ego
se coloca contra a outra, julga-a criticamente, e, por assim dizer, toma-a como seu
objeto
135
.” A nosso ver, também essa característica da melancolia, identificada na
análise freudiana, pode ser associada a um procedimento poético presente em Setenário
das Dores de Nossa Senhora. Ora, nos momentos metalingüísticos da obra assistimos
exatamente à regressão da energia, antes voltada para a empreitada mística da narrativa
das Dores de Maria, para o próprio eu lírico, que, então, reflete e lamenta sua
incapacidade de cantar/vivenciar o Mistério.
O estudo de Freud sobre a melancolia é apenas um episódio da enorme gama de estudos
dedicados ao tema ao longo da história da cultura ocidental. Em seu livro, Estâncias: a
palavra e o fantasma na cultura ocidental, o filósofo italiano Giorgio Agamben analisa
134
FREUD, Luto e melancolia, p. 280.
135
FREUD, Luto e melancolia, p. 280.
75
alguns desses estudos, começando pelas reflexões da psicologia medieval sobre a acídia.
Preocupados com o mal que assolava a vida espiritual dos religiosos, os Padres da Igreja
Medieval dedicam-se a compreender o estado de abatimento, conhecido como acídia,
que muitas vezes contaminava os religiosos das mais diversas ordens. Um dos
principais efeitos desse mal é a retração dos religiosos frente às possibilidades
espirituais. Essa retração, no entanto, não representa o fim do desejo, mas a fixação
mental do objeto desejado como um objeto inatingível. Segundo Agamben,
O fato do acidioso retrair-se diante do seu fim divino não equivale,
realmente, a que ele consiga esquecê-lo ou que deixe de o desejar. Se,
em termos teológicos, o que deixa de alcançar não é a salvação, e sim
o caminho que leva à mesma, em termos psicológicos, a retração do
acidioso não delata um eclipse do desejo, mas sim o fato de tornar-se
inatingível o seu objeto: trata-se da perversão de uma vontade que
quer o objeto, mas não quer o caminho que a ele conduz e ao mesmo
tempo deseja e obstrui a estrada ao próprio desejo
136
.
O problema fundamental do acidioso, conforme demonstra a análise de Agamben,
relaciona-se com o caminho e não com a finalidade de seu desejo. O problema está no
canal e não no objeto a que se quer atingir. Nesse sentido, uma analogia com o dilema
simbolista da inefabilidade do Mistério é perfeitamente possível. Como mostram os
poemas metalingüísticos de Setenário das Dores de Nossa Senhora, o abismo que
separa o Homem de Deus se explica pela insuficiência da linguagem humana, que não
constitui um caminho eficaz rumo ao objeto. A despeito da inefabilidade das Dores de
Maria, reconhecida desde o início da narrativa, o desejo de ascensão mística e,
principalmente, de louvar Nossa Senhora não cessa. Assim como ocorre com o
melancólico, segundo as reflexões dos padres, o desejo do poeta não é eclipsado pela
imagem do objeto inatingível. E aqui reside um elemento melancólico central em
Setenário das Dores de Nossa Senhora: o embate entre o desejo místico e o caráter
inapreensível do objeto desejado. Trata-se de uma situação que parece aproximar as
experiências religiosas de Alphonsus de Guimaraens e do acidioso. Segundo Agamben,
Preso à escandalosa contemplação de uma meta que se manifesta a ele
no próprio ato em que é vedada e que é tanto mais obsessiva quanto
mais se torna inatingível para ele, o acidioso encontra-se em uma
136
AGAMBEN, Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental, p.29.
76
situação paradoxal: assim como acontece no aforismo de Kafka,
“existe um ponto de chegada, mas nenhum caminho”, e da qual não há
escapatória, porque não se pode fugir daquilo que nem sequer se pode
alcançar
137
.
Esse paradoxo constitui, como dissemos nesta dissertação, o centro irradiador do
Setenário das Dores de Nossa Senhora e, conforme acreditamos, da poética simbolista
de Alphonsus de Guimaraens. A este último ponto retornaremos no decorrer deste
capítulo.
As reflexões de Agamben, à medida que vão mapeando os principais estudos acerca do
caráter melancólico ao longo da história, são capazes de identificar elementos
recorrentes nas diversas caracterizações da melancolia feitas até hoje. Após discutir as
contribuições da patrística, na Idade Média, e antes de se dedicar à análise do ensaio de
Freud, Agamben comenta a teoria da Medicina Humoral e a associação, estabelecida
por uma tradição antiga, entre o humor melancólico e o exercício da poesia, da filosofia
e das artes. Se por um lado a Medicina Humoral apresenta o temperamento melancólico
associado-o à tristeza, à inveja, à maldade, à avidez, à fraudulência e à temeridade, uma
antiga tradição, que teria partido das reflexões de Aristóteles, está na base da associação
entre a melancolia e o fazer artístico. A partir das reflexões do filósofo grego, que chega
a citar uma pequena lista de ilustres melancólicos, Agamben se propõe a enxergar na era
cristã três idades da melancolia. Segundo ele:
Após um primeiro reaparecimento entre os poetas de amor do século
XIII, o grande retorno da melancolia inicia-se a partir do Humanismo.
Entre os artistas, são exemplares os casos de Miguel Ângelo, Dürer,
Pontorno. Uma segunda epidemia acontece na Inglaterra elisabetiana:
exemplar é o caso de J. Donne. A terceira idade da melancolia
acontece no século XIX. Entre as vitimas aparecem Baudelaire,
Nerval, De Quincey, Coleridge, Strindberg, Huysmans. Em todas as
três épocas, a melancolia, com uma polarização audaz, foi interpretada
como algo ao mesmo tempo positivo e negativo
138
.
137
AGAMBEN, Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental, p.30.
138
AGAMBEN, Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental, p.35 - nota 17.
77
A referência a Charles Baudelaire e a outros nomes do decadentismo, como Nerval e
Huysmans, coloca em destaque o caráter melancólico de todo o movimento ao qual
também se filiou Alphonsus de Guimaraens. Críticos do movimento são unânimes em
destacá-lo. Para José Carlos Seabra Pereira, “o que parece caracterizar primariamente o
Decadentismo é um estado de sensibilidade. Este é, em simultâneo, o próprio do homem
finissecular desgastado de si mesmo e de uma civilização em crise aberta.
139
Críticos
da poesia de Alphonsus de Guimaraens também reconhecem essa sensibilidade
desgastada na obra do poeta mineiro, associando-a diretamente ao estado de melancolia.
Para Emílio Moura,
De todos os simbolistas, foi, pois, Alphonsus, como acentuamos,
justamente o que mais de perto refletiu o estado de espírito que foi o
dos decadentes, e que fixava exatamente tudo aquilo que iria marcar
de modo característico a obra do poeta ouro-pretano: o desgosto pela
ação, o esplim, a melancolia; junte-se a isso o pessimismo, sempre
exacerbado, e certo ar a um tempo de cansaço intelectual e de
pendor místico – e temos aí o que está bem refletido na obra de
Alphonsus de Guimaraens e o que caracterizou a poesia dos principais
líricos franceses da fase propriamente decadente
140
.
Mais que uma opção estética, a presença da melancolia na arte decadentista é fruto de
uma experiência existencial. Trata-se de uma presença que deve ser entendida em
função da condição do poeta na segunda metade do século XIX, condição à qual o
movimento simbolista se liga indissociavelmente. A experiência existencial que está na
base da poética simbolista está reproduzida, conforme acreditamos, na arquitetura
discursiva do Setenário das Dores de Nossa Senhora. A ambivalência dessa obra,
representada através do comportamento da voz poética diante de seu objeto de culto,
deve ser entendida como uma espécie de radiografia do processo que fundamenta a
visão de mundo inerente à poesia do Simbolismo. A manutenção do desejo e as
iniciativas de cunho místico, por um lado, associadas à constatação da inefabilidade do
mistério e da insuficiência da linguagem, por outro, são capazes de demonstrar o que
está por trás da condição do poeta simbolista, que busca fervorosamente alcançar algo
139
PEREIRA, Decadentismo e simbolismo na poesia portuguesa, p.20.
140
Apud MURICY, Panorama do movimento simbolista brasileiro. V.1 p.450
78
que ele próprio reconhece inalcançável
141
. Ao associar essa experiência de anseio
místico ao reconhecimento, expresso metalinguisticamente, da insuficiência da
linguagem poética, Setenário das Dores de Nossa Senhora é capaz de dar forma
literária a uma reflexão universal acerca da poesia. Nesse sentido, justificam-se,
segundo nossa leitura, aquelas afirmações de Francine Ricieri, que, em sua já
comentada tese de doutorado, escreveu:
O Setenário mais que um livro de horas” – abriga em seu aparente
confessionalismo anacrônico uma intelecção do poético que remete
diretamente a concepções que começam a ser concretizadas em obras
poéticas como a de Charles Baudelaire e escritores afins. O problema
não pode ser totalmente examinado aqui, mas a organização do livro
(concebido não enquanto recolha de textos, mas enquanto uma
conjunção significante de poemas) impõe-se à reflexão ainda que
desconsideremos cartas e declarações do autor que corroborariam
aquele “parentesco” intelectual. A complexidade da organização
suplanta em muito evidências primárias (como a divisão dos 49
poemas em sete grupos de “Dores” ou referências intertextuais
estrategicamente inseridas aqui e ali) e em escala menor faz-se
sentir também em Câmara ardente.
142
Nesse trecho de sua tese, Ricieri aponta para uma questão que, para esta dissertação, é
fundamental: as implicações poéticas da arquitetura do Setenário das Dores de Nossa
Senhora. Tentamos evidenciar essa questão ao cotejar a estrutura discursiva da obra
com a forma do oratório musical. Nesse sentido, as análises feitas no segundo capítulo
buscaram demonstrar as semelhanças que aproximam o comportamento da voz poética
no texto alphonsino do comportamento da voz poética no gênero musical. Noutro ponto
importante do trecho citado, Ricieri destaca alguns possíveis pontos de contato dessa
obra de Alphonsus de Guimaraens com algumas concepções poéticas extraídas da obra
141
Ao longo dessa dissertação, referimo-nos a esse procedimento ambivalente, fazendo uso de metáforas
como “fervor místico” e “arrefecimento”. Com efeito, a variação da intensidade poética é um dos efeitos
mais explícitos desse processo antitético. Essa oscilação entre os momentos intensos, cuja energia poética
se volta para a tentativa de vivenciar poeticamente as Dores de Maria, e os momentos de distensão,
representados pela imagem do arrefecimento, também é identificada por alguns estudiosos no estado
melancólico. Segundo Susana K. Lages, “Nos estudos mais atuais de orientação psicanalítica, o termo
melancolia (...) designa um estado psíquico, tendencialmente patológico, que tende a alterar momentos de
profunda tristeza, em que um enorme empobrecimento do ego (fase ou posição depressiva/ ou
melancólica propriamente dita), com momentos de grande entusiasmo, nos quais o ego recompõe sua
imagem, apresentando um excesso triunfalista de autoconfiança (fase ou posição maníaca). Essas fases
tendem a se suceder no tempo, constituído a afecção geral da melancolia como ciclo que alterna estados
psíquicos antitéticos.” LAGES, Walter Benjamin: tradução e melancolia, p.65.
142
RICIERI, A imagem poética em Alphonsus de Guimaraens: espelhamentos e tensões, p.36.
79
de Charles Baudelaire. A nosso ver, o que aproxima Setenário das Dores de Nossa
Senhora da poética baudelairiana é a preocupação em dar voz a um intelecto poetizante,
marcado pela superação do confessionalismo romântico e pela tentativa de sintetizar a
condição do poetar na modernidade. Em As flores do mal, Baudelaire buscou
representar as experiências mais marcantes do poeta moderno. “Com uma solidez
metódica e tenaz mede em si mesmo todas as fases que surgem sob a coação da
modernidade: a angústia, a impossibilidade de evasão, o ruir frente à idealidade
ardentemente querida, mas que se recolhe ao vazio.
143
Além da preocupação
metapoética, que se evidencia na elaboração arquitetônica em Setenário das Dores de
Nossa Senhora e em As flores do mal, percebe-se, também, uma enorme afinidade
filosófica entre os dois livros. Ambos se fundamentam na problemática simbolista do
poeta/homem distanciado de Deus. Nos dois casos, o embate entre desejo idealista e
queda se faz presente. Acreditamos que os seguintes comentários, feitos por Hugo
Friedrich, sobre os seis grupos que compõem As flores do mal podem nos ajudar a
enxergar melhor as afinidades entre as duas obras:
Após uma poesia introdutória antecipando o todo da obra, o primeiro
grupo, “Spleen et ideal”, oferece o contraste entre vôo e queda. O
grupo seguinte, “Tableaux parisiens” mostra a tentativa de evasão no
mundo externo de uma metrópole; o terceiro, “Le vin”, a evasão
tentada no paraíso da arte. Também esta não traz tranqüilidade. Daí
resulta o abandono à fascinação do destrutivo: este é o conteúdo do
quarto grupo, que leva o mesmo título de toda a obra (Les fleurs du
mal). A dedução de tudo isto é a escarnecedora revolta contra Deus no
quinto grupo “Révolte”. Como última tentativa, resta encontrar a
tranqüilidade na morte, no absolutamente desconhecido: assim
termina a obra no sexto e último grupo, “La mort”. Todavia, o plano
arquitetônico manifesta-se também no âmbito dos grupos isolados,
como uma espécie de seqüência dialética das poesias. (...) Trata-se de
uma tessitura ordenada, mas movimentada, cujas linhas alternam-se
entre si, formando, na evolução total, uma parábola de cima para
baixo. O fim é o ponto mais profundo e se chama “abismo”, pois só no
abismo ainda existe a esperança de ver o “novo”. Que novo? A
esperança do abismo não encontra palavras para expressá-lo. O fato de
Baudelaire ter disposto Les fleurs du mal como construção
arquitetônica, comprova a distância que o separa do Romantismo,
cujos livros líricos são simples coleções e repetem, quanto ao aspecto
formal, na arbitrariedade da disposição, a casualidade da
inspiração
.
144
143
FRIEDRICH, Estrutura da lírica moderna, p.38.
144
FRIEDRICH, Estrutura da lírica moderna, p.40.
80
Aproveitando-nos da metáfora cunhada por Hugo Friedrich, também
associaremos Setenário das Dores de Nossa Senhora a uma parábola, cujo vértice,
entretanto, coincide com os trechos mais místicos da obra, conforme tentamos
demonstrar no capítulo anterior desta dissertação. O desenho do oratório poético de
Alphonsus de Guimaraens, ainda que bem menos radical, aponta para a mesma
experiência da qual parte o livro de Baudelaire: a tensão entre o anseio pelo ideal e sua
inatingibilidade
145
. Também a despersonalização é uma característica do Setenário das
Dores de Nossa Senhora, conforme observaram alguns críticos
146
. Esse fato,
associado à construção arquitetônica da obra, ajuda a distanciar Alphonsus de
Guimaraens, ainda que pelo breve instante inicial de sua carreira poética, do
Romantismo, cuja poesia se caracterizou, entre outras coisas, pela forte carga
confessional que expressava.
A parábola que se extrai da arquitetura de Setenário das Dores de Nossa Senhora é,
como dissemos, bem menos radical do que aquela que se extrai da obra prima de
Charles Baudelaire. Em verdade, o ponto final da parábola alphonsina encontra-se na
mesma latitude de seu ponto de partida. Após as investidas sticas, o poeta retorna ao
seu estado inicial, caracterizado pela inatividade e pela permanência do desejo. Falta à
experiência existencial de Alphonsus de Guimaraens, em cotejo com a de Baudelaire, o
mergulho no abismo
147
, na verdade, falta-lhe a energia necessária a essa viagem. E é
justamente esse conflito entre o desejo e a debilidade da energia que está na base da
associação do seu oratório poético ao estado melancólico, conforme definido por Freud
e por outros momentos da tradição, evocados a partir dos estudos de Giorgio Agamben.
145
Embora a parábola d’As flores do mal esteja “virada para baixo”, fazendo com que a parte final da
obra seja representada por um movimento de ascensão, ao contrário do que ocorre em Setenário das
Dores de Nossa Senhora, cujo movimento é de ascensão e queda.
146
Dentre eles, o já citado Tácito Pace. Não custa citar novamente as palavras do crítico sobre o
Setenário das Dores de Nossa Senhora: “A intencionalidade da escolha do tema, a arquitetura de sua
estruturação, o lirismo litúrgico e a apoteose à Virgem Maria excluem qualquer devaneio relacionado com
os problemas sentimentais do poeta e mesmo com seu comportamento emocional, derivado de seu
noivado” (PACE, O simbolismo na poesia de Alphonsus de Guimaraens, p.97)
147
Seus poemas satânicos demonstram, entretanto, que essa tendência foi desenvolvida em sua obra,
embora com bem menos intensidade que na de Baudelaire. Acreditamos que, apesar de algumas
experiências extremas, a poesia de Alphonsus de Guimaraens se caracteriza, principalmente, pela
inatividade melancólica.
81
Os poemas iniciais da Sétima Dor conciliam a dinamicidade da narrativa, que avança no
episódio do sepultamento de Cristo, e o lirismo grave, que parece refrear o movimento
épico. Os três primeiros sonetos se desenvolvem a partir do tema da solidão de Maria.
Se a lamentação desses primeiros sonetos se dirige à Maria, personagem da narrativa
evocada pela voz poética, o soneto IV, ao contrário, representa uma intervenção no
fluxo narrativo a que, de certa forma, esses primeiros poemas estão ligados. Nele, o
poeta emerge para suplicar pelo contato com a divindade, demarcando, como em toda a
obra, a distância que o separa dela:
Portas do Céu que dais para a outra vida
Diante de mim, de par em par, abri-vos...
E a oblação da minha Alma entristecida
Chegue ao limiar dos tronos primitivos.
Ermitão que procura a quieta ermida,
Isolada dos mortos e dos vivos,
Evoco a luz da terra prometida...
Falazes sonhos meus contemplativos!
Vagueando pela vastidão cerúlea,
Minha Alma é como um hino que se expanda
Em louvores de sempiterna dúlia...
Exaude, Virgem branca, intemerata,
A fervorosa prece miseranda,
- Rosário que entre os astros de desata..
.
148
A empreitada poética de Setenário das Dores de Nossa Senhora termina com a
constatação da impossibilidade de se vivenciar poeticamente as Dores de Maria. Resta
ao poeta, entretanto, a possibilidade de, ao menos, louvar a mãe de Cristo. E ainda em
relação a esse quesito, o agente crítico do poeta se mostra implacável. Após um último
suspiro, quando conclui sua prece poética suplicando pelos cuidados da santa (soneto
VI), o poeta encerra seu oratório com uma reflexão metalingüística que aponta para o
seu ideal poético: o simbolismo de Paul Verlaine:
148
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.241.
82
Doce Mãe de Jesus, se vos não pude
Engrandecer por toda a eternidade,
Se o meu estilo, à vezes, fraco e rude,
Bem longe está da vossa ideal bondade:
Se a minha musa edênica se ilude,
Quando julga rezar com suavidade,
Quando cheia de zelo e de virtude
Vem falar-vos com tal saudade:
Perdoai-me, vós que engrinaldais com flores
Castas as liras, feitas para prece,
De tantos macerados trovadores...
Estes versos são como um lausperene:
Mais fizera, Senhora, se eu pudesse
Oficiar no Mosteiro de Verlaine.
149
Esse poema nos permite discutir uma última questão acerca do oratório poético de
Alphonsus de Guimaraens: a concepção de reza que permeia a obra. Em verdade,
podemos identificar duas noções de oração nos poemas de Setenário das Dores de
Nossa Senhora. Apesar de, ao longo desta dissertação, termos enfatizado a intenção
mística do livro de Alphonsus, entendendo por misticismo aquela ânsia pela superação
do abismo sujeito-objeto a que nos referimos no primeiro capítulo, é possível perceber
uma outra dimensão religiosa desse oratório. Trata-se da busca pela mera louvação de
Maria. A questão, pois, se distancia da busca pela dissolução do sujeito poético no canto
das Dores e se aproxima da poesia encomiástica, aos moldes da poesia trovadoresca.
Aliás, diga-se de passagem, este aspecto tem sido preferencialmente discutido pelos
críticos quando se trata da análise do Setenário das Dores de Nossa Senhora. No
soneto VII da Sétima Dor, transcrito acima, o problema é abordado pelo poeta, que fale
em “estilo fraco e rude”, “Bem longe da ideal bondade” de Nossa Senhora. Todo o
poema se desenvolve ao redor de uma problemática estilística. Ao final, num dos seus
versos mais famosos, o poeta mineiro expressa seu ideal poético, ao afirmar: “Mais
fizera, Senhora, se eu pudesse/Oficiar no Mosteiro de Verlaine”. Achamos, entretanto,
que este verso não pode ser tomado como um resumo da obra. O Mosteiro de Verlaine
não é, ao contrário do que parece, a solução para o problema que perpassa o Setenário
das Dores de Nossa Senhora, simplesmente porque esse problema não se reduz a uma
questão de estilo. É interessante observar que, apesar da presença literal de Verlaine na
149
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.243.
83
obra, é com Baudelaire e, algumas vezes, com Mallarmé, que o sujeito poético desse
oratório, cuja complexa arquitetura sugere uma preocupação que ultrapassa a questão
estilística, parece se identificar em sua ânsia pela transcendência. Ainda que a
preocupação com o estilo esteja presente na obra, que, afinal de contas, busca, também,
louvar a figura de Maria, é impossível negligenciar nela a presença de um procedimento
bem mais agudo. Sua complexa arquitetura, que buscamos elucidar a partir da
associação com a forma do oratório, aliada à tensão poética que marca muitos poemas,
nos leva a afirmar que, em Setenário das Dores de Nossa Senhora, Alphonsus de
Guimaraens concebe um projeto poético que vai muito além do mero culto de Maria. A
insistência na questão do estilo, no último soneto da obra, ressalta, a nosso ver, o caráter
melancólico de toda a obra, pois constitui mais um tema metalingüístico capaz de
reafirmar a cisão entre o poeta e o Mistério das Dores, noutro momento de
autodepreciação. Por fim, a moldura desse oratório se fecha com a “Epífona”, numa
oração que confirma o distanciamento do poeta em relação a Nossa Senhora:
Epífona
Nossa-Senhora, quando os meus olhos
Semicerrados, já na agonia,
Não mais louvarem os vossos olhos...
Valei-me, Virgem Maria.
Por entre escolhos, por entre sirtes,
Consolai os meus olhos tristes.
Nossa-Senhora, quando os meus braços
Não mais se erguerem, já na agonia,
Oh! dai-me o auxílio dos vossos braços...
Velai-me, Virgem Maria.
Por entre escolhos, por entre sirtes,
Auxiliai os meus braços tristes.
Nossa-Senhora, quando os meus lábios
Não mais falarem, já na agonia,
Desça o consolo dos vossos lábios...
Valei-me, Virgem Maria.
Por entre escolhos, por entre sirtes,
Consolai os meus lábios tristes.
84
Nossa-Senhora, quando os meus passos
Se transviarem, já na agonia,
Vinde guiar-me com os vossos passos...
Valei-me, Virgem Maria.
Por entre escolhos, por entre sirtes,
Sede guia aos meus passos tristes.
150
Nesse poema suplicante, a melancolia, expressa na ambivalência do desejo e da
inatingibilidade do objeto, que aparece como uma sombra em toda a obra, mostra-se
triunfante. Nessa súplica, o poeta parece adiar para o momento da morte o seu encontro
com Maria. Na vida, resta ao poeta homenagear a Virgem, o que é muito pouco, se
comparado aos momentos de fervor místico com os quais nos deparamos nos capítulos
anteriores. É na morte, entretanto, que o encontro tão desejado promete se realizar. Por
fim, tudo aponta para uma visão bastante pessimista da existência, quando o corpo,
verdadeiro cárcere, constitui o abismo que se interpõe no caminho da alma rumo ao
infinito.
150
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.244.
CONCLUSÃO
86
Esta dissertação partiu do reconhecimento de alguns elementos que permitem a
aproximação da obra Setenário das Dores de Nossa Senhora, de Alphonsus de
Guimaraens, ao gênero musical do oratório. Estruturada em sete capítulos, contendo,
cada um, sete sonetos, e tendo como moldura duas composições, uma de abertura, outra
de encerramento, essa obra foi pensada pela crítica como um conjunto de poemas
confessionais que evidenciam uma característica tradicionalmente atribuída à poesia de
Alphonsus de Guimaraens: a presença da devoção mariana. Sem descartar essa leitura,
propusemo-nos a identificar, na complexa arquitetura da obra, outras explicações, que
não apenas a de cunho biográfico.
Iniciamos com uma breve revisão da fortuna crítica do poeta, o que nos permitiu
reconhecer, nos mais diversos estudos, diferenças e afinidades em relação à nossa
perspectiva. No que concerne ao problema da religiosidade na obra de Alphonsus de
Guimaraens, a grande maioria dos críticos optou por uma interpretação de cunho
biográfico. De fato, os elementos que envolvem a vida do poeta, marcada pela tragédia
familiar e pelo isolamento nas cidades centenárias e católicas de Minas Gerais,
encontram-se, em alguma medida, refletidos em sua obra poética. A nosso ver, a morte
de Constança e o contato vivo com a religiosidade que se respirava em Minas naquele
tempo são chaves de leitura possíveis para se entender muitos aspectos da obra poética
do “solitário de Mariana”. Nosso trabalho, portanto, não partiu de uma crítica à
perspectiva biográfica em si mesma. O ponto do qual partiu este trabalho é a
constatação do caráter quase monocromático da fortuna crítica do poeta mineiro.
Embora acreditemos na viabilidade de uma crítica biográfica, parece-nos que a
complexidade da poesia de Alphonsus de Guimaraens é negligenciada quando
iluminada pelo viés único da leitura biográfica. Evidentemente, não somos os primeiros
a reconhecer essa deficiência na fortuna crítica alphonsina, conforme tentamos mostrar
na breve revisão que empreendemos no primeiro capítulo. As pesquisas sobre obra de
Alphonsus de Guimaraens têm trilhado, nos últimos anos, outros caminhos de leitura,
contribuindo para o enriquecimento da fortuna crítica do poeta.
Nosso trabalho mobilizou uma gama restrita de textos sobre o poeta, se comparado, por
exemplo, à dissertação de mestrado de Francine Fernandes Weiss Ricieri, dedicada ao
estudo da bibliografia do poeta mineiro. Registre-se, aliás, a importância do trabalho
dessa pesquisadora que contribuiu para o alargamento da fortuna crítica alphonsina e
87
foi, justamente, quem identificou aquelas falhas acima referidas. De qualquer modo,
nossa dissertação procurou dialogar com diversos textos. Merecem destaque, nesse
momento, os trabalhos de Henriqueta Lisboa, que, a despeito do viés biográfico,
continua sendo uma referência quando se trata de Alphonsus de Guimaraens. Também
merecem destaque as contribuições de Tácito Pace para a tradição crítica alphonsina,
embora se trate de um autor pouco conhecido. Nossa leitura da obra Setenário das
Dores de Nossa Senhora encontrou respaldo e fundamentação, também, na excelente
tese de doutorado de Francine Fernandes Weiss Ricieri. De certa forma, tentamos
desenvolver algumas questões levantadas por ela ou inspiradas em sua pesquisa. Sua
intuição de que Setenário das Dores de Nossa Senhora “abriga em seu aparente
confessionalismo anacrônico uma intelecção do poético que remete diretamente a
concepções que começam a ser concretizadas em obras poéticas como a de Charles
Baudelaire e escritores afins
151
é uma dessas questões que se associam diretamente à
nossa pesquisa. Outra importante contribuição dessa tese de doutorado é a aplicação da
noção de poesia-resistência, de Alfredo Bosi, à interpretação da obra de Alphonsus de
Guimaraens. Partindo daí, Ricieri evidencia uma das principais características do poeta
mineiro, que é, também, elemento da maior importância em nossa reflexão. Segundo a
pesquisadora:
Em Alphonsus de Guimaraens, a resistência, no sentido que Bosi
atribui ao termo, teria seu momento em um espaço apertado. Seus
versos parecem erguer-se em um território impreciso entre a tentativa
(fadada ao fracasso) de recuperação de uma vivência mística não
cindida e a confissão de uma fissura agônica
152
.
Nossa análise de Setenário das Dores de Nossa Senhora buscou evidenciar justamente
esse “espaço apertado” no qual se realiza a poesia de Alphonsus de Guimaraens. Nesse
sentido, propusemos, ao longo da dissertação, uma leitura metapoética da obra. Para
tanto, antes, foi necessário retornar a duas questões essenciais à sua compreensão, a
saber: a questão de sua complexidade arquitetônica e a questão do misticismo, tão
presente nos poemas que a compõem.
151
RICIERI, A imagem poética em Alphonsus de Guimaraens:espelhamentos e tensões, p.36.
152
RICIERI, A imagem poética em Alphonsus de Guimaraens:espelhamentos e tensões, p.40. Optamos
por citar novamente o trecho de Ricieri, que já havia sido transcrito no primeiro capítulo, uma vez que ele
contribui efetivamente para a compreensão de um dos principais tópicos desta conclusão.
88
A maneira como se encontram dispostos na obra os cinqüenta e um poemas foi
analisada, nesta dissertação, como um elemento significativo. Antes deste trabalho,
alguns críticos haviam observado que a constituição formal é um dos elementos que
mais se destacam em Setenário das Dores de Nossa Senhora. Henriqueta Lisboa, em
seu livro de 1945, havia associado essa obra de Alphonsus a um “livro de horas
153
”,
mas sem desenvolver a analogia. Como dissemos, nos trechos inicias desta dissertação,
apesar da constatação de que a arquitetura do Setenário é um elemento da maior
relevância para os estudos críticos sobre a obra, não houve, até onde conhecemos da
fortuna crítica do poeta mineiro, quem se detivesse nessa questão a ponto de extrair dela
uma interpretação para a obra. Nosso trabalho pretendeu inserir-se, de alguma forma,
nessa lacuna.
A análise da estrutura da obra, pensada em dois níveis, no plano da organização dos
poemas no corpo da obra e no plano do comportamento da voz poética no interior dos
textos, exigiu-nos o emprego de uma imagem que fosse capaz de explicitar nosso objeto
de estudo em sua complexidade. A presença de dois poemas emoldurando a narrativa
das Dores de Nossa Senhora, e a ocorrência sistemática de poemas e trechos líricos, nos
quais o sujeito poético aparece com sua individualidade demarcada em relação aos
personagens bíblicos, no decorrer da narrativa lembrou-nos um dos gêneros mais
tradicionais da liturgia e da música cristãs: o oratório.
As pesquisas, então empreendidas sobre o gênero oratório, levaram-nos a consolidar a
analogia com a arquitetura do Setenário das Dores de Nossa Senhora. Também o
oratório se configura a partir da convergência de trechos narrativos, líricos e
dramáticos
154
. Também o oratório se estrutura em torno da dialética instituída pela
retomada da narrativa bíblica e pelos comentários da voz poética. Também o oratório
conta com duas composições nos papéis de prelúdio e poslúdio. Nossa intenção,
contudo, não foi estabelecer uma rígida comparação entre as duas formas, aos moldes
de um estudo intersemiótico. Nesta dissertação, o oratório funciona mais como uma
metáfora crítica, a partir da qual se desenvolveu uma interpretação de caráter mais geral
acerca do Setenário das Dores de Nossa Senhora.
153
LISBOA, Alphonsus de Guimaraens, p. 40.
154
Em Setenário das Dores de Nossa Senhora, os trechos dramáticos não aparecem com tanta
freqüência.
89
Ainda no terreno da análise, anotamos a presença de, ao menos, uma composição de
cunho metalingüístico em cada um dos sete capítulos do Setenário. Em verdade, a
metalinguagem é uma figura presente em praticamente toda a obra. no poema
introdutório, o poeta refletia sobre sua incapacidade de chorar as Dores de Maria, num
tópico que repetir-se-ia ao longo de todos os capítulos. Esses momentos
metalingüísticos, embora ausentes no gênero musical, aparecem em Setenário das
Dores de Nossa Senhora como uma das marcas de separação entre a voz poética e a
matéria narrada e, por isso, podem ser associados, formalmente, ao gênero lírico e,
portanto, às árias do oratório. Já os trechos de maior fidelidade à história bíblica
associam-se, por seu caráter marcadamente narrativo, segundo nossa leitura, aos
recitativos, também presentes no oratório. Essa associação, entretanto, não negligencia,
evidentemente, a presença de lirismo nos trechos narrativos da obra. Apesar de estarem
ligados à narrativa blica, os trechos narrativos apresentam todo o fervor poético do eu
lírico, que busca, dessa forma, vivenciar poeticamente o Mistério das Dores de Maria.
Aliás, é o que ocorre também nos oratórios, uma vez que o papel da música é,
justamente, potencializar a expressividade dos trechos bíblicos. Por isso, não se pode
falar em impessoalidade narrativa, nem no oratório, nem no Setenário. Para este
trabalho, o gênero lírico se associa à demarcação de fronteira entre sujeito e objeto,
tendendo para um isolamento do primeiro, que, então, sobressai-se absolutamente. Já o
gênero narrativo se associa ao isolamento do objeto e ao apagamento, até onde isso é
possível, das marcas de subjetividade.
O problema dos trechos narrativos de Setenário das Dores de Nossa Senhora e dos
recitativos do oratório musical extrapola os limites das categorias abstratas acima
referidas. A nosso ver, ocorre, nos dois casos, uma perfeita mistura de lirismo e
narratividade. Trata-se de um momento em que a voz narrativa se contamina com a
subjetividade do eu lírico, havendo uma perfeita fusão entre elas. Ao contrário dos
trechos associados ao gênero lírico, puro e simples, os trechos recitativos apresentam
uma perfeita fusão entre sujeito e objeto. Se podemos identificar marcas de lirismo
nesses trechos narrativos, não podemos, por outro lado, reconhecer os limites entre o eu
e o objeto, entre o poeta e as Dores de Nossa Senhora. Nesse sentido, a sutil
diferenciação entre os termos ‘lírico’ e “lirismo’, sugerida em nossa reflexão, explica-se
por sua funcionalidade crítica.
90
A presença do lirismo nos trecho narrativos do Setenário das Dores de Nossa Senhora
nos permitiu identificar na obra uma forte carga de misticismo. Para ser mais exato,
encontramos na obra uma forte carga de tensão mística, que consiste mais no embate
entre o sujeito e os limites da subjetividade do que propriamente na realização plena da
dissolução mítica.
Misticismo é uma palavra bastante recorrente na fortuna crítica de Alphonsus de
Guimaraens. É possível que todos os analistas da obra do poeta mineiro tenham tocado
na questão de sua religiosidade stica. Ocorre, entretanto, conforme buscamos
demonstrar no primeiro capítulo desta dissertação, que a palavra raramente foi
empregada com rigor conceitual. Diante disso, bem como da necessidade de
compreender o fenômeno religioso em Setenário das Dores de Nossa Senhora, fez-se
necessário empreender uma breve discussão teórica acerca da experiência mística.
Mais que o mero emprego de um “idioma litúrgico
155
”, mais que a presença de
referências religiosas nos poemas, o misticismo, em Setenário das Dores de Nossa
Senhora, se configura como uma experiência poético-religiosa capaz de afetar
substancialmente a constituição da linguagem. Partindo das reflexões de William James
acerca da experiência religiosa, definimos o estado místico como um estado de
integração entre sujeito e objeto, no qual toda referência se trona impossível, uma vez
que não é possível falar em representação. O estado místico é um estado de vivência do
Mistério, caracterizado, entre outras coisas, pela diluição dos limites da individualidade.
Conforme buscamos demonstrar no primeiro capítulo desta dissertação, o anseio pela
vivência stica das Dores de Nossa Senhora é diversas vezes manifestado no
Setenário. no prelúdio de seu oratório, Alphonsus de Guimaraens afirma sua
intenção mística:
Volvo o peito para as tuas Dores
E o coração para as Sete Espadas...
156
A fim de discutir as relações entre misticismo e linguagem, evocamos a diferenciação
entre experiência simbólica e mbolo experiência, com a qual trabalha Roger Bastide,
155
MURICY, Panorama do Movimento Simbolista brasileiro. V2, p.448.
156
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.215.
91
num de seus estudos sobre a poesia de Cruz e Sousa. Para Bastide, experiência
simbólica quando “o mbolo não é uma imagem tomada voluntariamente pelo escritor
para descrever sua própria experiência
157
, mas é um criação estética que é experiência
ao mesmo tempo que explicação dessa experiência, é um produto da vida mística e não
uma imagem dessa vida
158
.” Nesse sentido, mais que representação, a linguagem se
configura como uma espécie de vivência do Mistério.
Essa prática poética, conforme afirmamos no primeiro capítulo, é bem mais freqüente
na obra de Cruz e Sousa. Essa noção de poesia mística, entretanto, quando tomada como
ideal poético, é bastante funcional para se pensar a obra de Alphonsus de Guimaraens.
Com efeito, segundo nossa leitura, a obra do poeta mineiro se caracteriza pela tendência
mística, no sentido em que expressa e, em alguns momentos, experimenta uma espécie
de impulso rumo à transcendência da individualidade. Nesse sentido, o conceito de
misticismo construído, principalmente, a partir das obras do filósofo William James, do
crítico Roger Bastide e do poeta Cruz e Sousa foi tomado como modelo e cotejado com
Setenário das Dores de Nossa Senhora. Em seu oratório poético, conforme tentamos
demonstrar, Alphonsus de Guimaraens jamais alcança o estado de plena dissolução
mística. Isso porque sua ascensão rumo à transcendência enfrenta a inexorável sombra
dos limites da condição humana e da linguagem.
Setenário das Dores de Nossa Senhora caracteriza-se, também, por uma intensa
reflexão acerca dos limites do Homem. Associada à questão do impulso místico, essa
característica empresta à obra um caráter dual e extremamente tenso. Em seus versos,
ocorre o embate entre desejo stico de se vivenciar poeticamente as Dores de Nossa
Senhora e a consciência dos limites da linguagem, que aparece sempre como um canal
insuficiente de ligação entre o sujeito poético e o Mistério. A tensão entre essas duas
experiências está presente no poema introdutório da obra. Após afirmar suas intenções
místicas, conforme vimos acima, o poeta lamenta a enorme distância que o separa da
Mãe de Cristo, dando voz à consciência de que sua empreitada poética é, de todo,
impossível:
157
Como ocorre no símbolo experiência
158
BASTIDE, Quatro estudos sobre Cruz e Sousa, p.175. Mais uma vez, optamos por transcrever,
novamente, uma citação que havia aparecido em outro momento desta dissertação. Acreditamos que,
dessa forma, contribuímos para que se explicite melhor a articulação entre os conceitos e as interpretações
propostos neste trabalho.
92
Mas eu, a poeira que o vento espalha,
O homem de carne vil, cheio de assombros,
O esqueleto que busca uma mortalha,
Pedir o manto que te envolve os ombros!
159
Nossa leitura buscou demonstrar que essa tensão entre o desejo místico e a
autoconsciência do poeta, que se reconhece limitado e distante do Mistério, funciona
como centro irradiador de Setenário das Dores de Nossa Senhora. Trata-se de uma
chave de leitura para a compreensão do oratório poético de Alphonsus de Guimaraens,
que, conforme nossa leitura, caracteriza-se pelo equilíbrio tenso dessas duas
experiências.
A manutenção do desejo místico, mesmo diante da consciência da impossibilidade de
realizá-lo, levou-nos a identificar na obra um caráter melancólico. Conforme fizemos
com os conceitos de misticismo e de oratório, buscamos identificar, em estudos de
pensadores diversos, algumas características gerais do estado melancólico. Sem querer
discutir o conceito de melancolia em si, nem contrastar as diversas teorias que se
desenvolveram em torno dessa experiência psíquica, encontramos, principalmente, em
Giorgio Agamben e Sigmund Freud as referências de que precisávamos. Em sua obra
Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental, o filósofo italiano, para
desenvolver sua reflexão sobre o assunto, retomou diversas teorias produzidas sobre a
melancolia ao longo da história, inclusive a de Freud, publicada, especialmente, no
ensaio Luto e melancolia, de 1917. A partir desses textos, encontramos diversas
analogias entre o comportamento da voz poética no oratório de Alphonsus de
Guimaraens e o estado melancólico. As três pré-condições da melancolia, apontadas por
Freud, por exemplo, podem ser associadas à tensão experimentada pelo sujeito poético
em Setenário das Dores de Nossa Senhora. Segundo o autor de “Luto e melancolia”, o
estado melancólico se caracteriza 1) pela perda do objeto, 2) pela ambivalência e 3) pela
regressão da libido ao ego. Este último ponto explica, no desenvolvimento da analogia
proposta, umas das práticas mais freqüentes na obra: o auto-envilecimento do poeta, que
está diretamente associado aos momentos metalingüísticos do nosso oratório. Tentamos
159
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa, p.215.
93
identificar outras possíveis analogias entre o Setenário e o estado melancólico. À guisa
de outro exemplo, buscamos a associação entre a tensão poética presente na obra e a
idéia de Giorgio Agamben segundo a qual encontra-se na raiz do temperamento
melancólico a “íntima contradição de um gesto que pretende abraçar o inapreensível.
160
Identificadas as faces complementares do oratório poético de Alphonsus de Guimaraens
– o impulso místico e a recessão melancólica – podemos propor uma interpretação geral
para a obra. A arquitetura poética de Setenário das Dores de Nossa Senhora,
caracterizada pelo duplo movimento de ascensão e arrefecimento místicos pode ser
tomada como uma imagem da condição da voz poética alphonsina, em particular, e do
poeta simbolista, em geral. Essa idéia nos permite enxergar nessa obra de Alphonsus de
Guimaraens, em conformidade com a visão de Francine Weiss Ricieri
161
, uma
preocupação metapoética. Mais ainda, permite-nos identificar nela a presença de um
cogito poético, superando a tradicional leitura biografista, que entendeu Setenário das
Dores de Nossa Senhora unicamente como uma manifestação do louvor do poeta à
figura de Nossa Senhora. É nesse sentido que empregamos o conceito de
“despersonalização”, cunhado por Hugo Friedrich, em nossa interpretação. Esse
conceito permite-nos aproximar Alphonsus de Charles Baudelaire, um dos fundadores
da poética simbolista, pois, conforme afirma Friedrich: Les fleurs du mal (1957) não
são uma lírica de confissão, um diário de situações particulares, por mais que haja
penetrado nelas o sofrimento de um homem solitário, infeliz e doente.
162
Acreditamos
que essa afirmação pode ser aplicada, também, ao Setenário das Dores de Nossa
Senhora. E não estamos sozinhos. Em 1970, Tácito Pace, em seu livro “O simbolismo
em Alphonsus de Guimaraens”, havia observado que essa obra não pode ser
explicada por fatos da vida do poeta
163
.
Uma pesquisa posterior poderá demonstrar o que foi apenas sugerido nesta dissertação:
toda a obra de Alphonsus de Guimaraens realiza, de alguma maneira, as proposições de
Setenário das Dores de Nossa Senhora. Ora cáusticos e fervorosos, ora melancólicos,
os poemas de Alphonsus, se pensados em conjunto, parecem reproduzir aquele duplo
160
AGAMBEN, Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental, p.42.
161
Cf. RICIERI, A imagem poética em Alphonsus de Guimaraens: espelhamentos e tensões, p.36.
162
FRIEDRICH, Estrutura da lírica moderna, p.36.
163
Cf. PACE, O simbolismo na poesia de Alphonsus de Guimaraens, p.97.
94
movimento de ascensão e queda, de fervor e arrefecimento, de aproximação e
distanciamento em relação ao Mistério.
O oratório poético de Alphonsus de Guimaraens pode ser lido, também, como uma
espécie de imagem da condição do poeta simbolista. Tentamos demonstrar que o caráter
tensional de Setenário das Dores de Nossa Senhora pode ser associado à concepção de
mundo e de poesia do Simbolismo. Como se sabe, para os simbolistas, o Homem,
encarcerado nos limites do corpo, está impedido de acessar a verdade das Formas e, por
isso, vivencia a agonia de vislumbrar uma realidade tragicamente inacessível. Essa
visão, de cunho platônico, está perfeitamente traduzida no famoso soneto “Cárcere das
almas”, de Cruz e Sousa, conforme tentamos demonstrar no terceiro capítulo. Diante
desse abismo, que se abre entre o Homem e o Absoluto, a poesia, pensada conforme o
preceito simbolista de associação com a música, aparece como um forma de contato,
como uma espécie de canal capaz de unir, ainda que precariamente, esses dois mundos.
E é por isso que a poesia simbolista caracteriza-se pela tensão insolúvel entre a
esperança de alcançar o universo das Formas, e a consciência, de todo moderna, da
insuficiência da linguagem. Para além dessa tensão, a poesia moderna aceitará a história
como única realidade ou emergirá, ela própria, como um universo autocentrado e
absoluto, já nos primeiros anos do século XX.
Na fronteira dessa transformação, encontra-se o Simbolismo, cujo caráter tensional foi
herdado por poetas, não da França, mas de diversas partes do mundo. Assim como
Baudelaire, Mallarmé, George e Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens não esteve
alheio, como algumas vezes foi sugerido, a toda essa problemática que envolve os
poetas do fin du siècle. Sua obra, bem mais que a mera reprodução de traços estilísticos
da escola francesa, é a vivência particular e incomparável da agonia que caracteriza a
poesia de seu tempo, conforme tentamos demonstrar nesta leitura do Setenário das
Dores de Nossa Senhora.
BIBLIOGRAFIA
96
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2007.
AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulus, 1984.
ALONSO, Damaso. Poesía española: ensayo de métodos y limites estilísticos. Madrid:
Gredos, 1950.
ANGLADE-AURAND, Arline. Les influences française sur Alphonsus de Guimaraens.
Toulouse, 1970. Thèse présentée devant l’université de Toulouse pour le Doctorat de
3e. cycle 2v.
BACH, Johann Sebastian. Johannes-Passion. Freiburg: Deutsche Harmonia Mundi,
1990. 2 CDs. BWV 245. Acompanha libretto.
BALAKIAN, Anna. O simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 1985.
BANDEIRA, Manuel. Apresentação da poesia brasileira seguida de uma antologia
de versos. Rio de Janeiro: Livraria – Editora da Casa do Estudante do Brasil, s/d.
BASTIDE, Roger. Quatro estudos sobre Cruz e Sousa. IN: COUTINHO, Afrânio
(org.). Cruz e Sousa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. (Coleção Fortuna
crítica)
BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa: Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo:
Brasiliense, 1989. (Obras Escolhidas Volume III)
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa
Oficial Do Estado de São Paulo, 2006.
97
BÍBLIA: mensagem de Deus. São Paulo: Edições Loyola, 1989.
BORNHEIM, Gerd. Filosofia do Romantismo. IN: GUINSBURG, J. (org.) O
Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
BOSI, Alfredo. Poesia-resistência. IN: O ser e o tempo da poesia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
BREMOND, Henri. La poésie pure. IN: La poésie pure. Avec un debat sur la poésie par
Robert de Souza. Paris: Bernard Grasset, 1926.
CANDÉ, Roland de. História universal da música. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
2v.
CAZELLES, H. et alli. Dicionário mariano. Aparecida: Editora Santuário, s/d.
CHARAUDEAU, Patrick. Langage et Discours: elements de sémiolinguistique (théorie
et pratique). Paris: Classiques Hachette, 1983.
CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do
discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
CHOCIAY, Rogério. Teoria do verso. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974.
COOPER, D. E. As filosofias do mundo. São Paulo: Loyola, 2002.
CRUZ e SOUSA, João da. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
CRUZ e SOUSA, João da. Missal e Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
(Coleção poetas do Brasil)
98
ECO, Umberto. Sobre o símbolo. IN: Sobre a Literatura. São Paulo: Record, 2003.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados
do século XX São Paulo: Duas Cidades, 1978.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Rio de Janeiro: Imago, 1974. Edição Standard
Brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Volume XIV.
FRYE, Northrop. O código dos códigos: a Bíblia e a Literatura. São Paulo: Boitempo,
2004.
GOMES, Álvaro Cardoso. A estética simbolista: textos doutrinários comentados. São
Paulo: Atlas, 1994.
GROVE Dictionary of Music. Oxford: Oxford University Press, 2003. 1 CD-ROM.
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1976.
GUIMARAENS, Alphonsus de. Obra Completa. Rio de Janeiro. José Aguilar, 1960.
GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. Alphonsus de Guimaraens no seu ambiente.
Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1995.
GUINSBURG, J. (org.). O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.
HADDAD, Jamil Almansur. Essência e forma do simbolismo. Revista do arquivo
municipa, São Paulo, ano XII, vol. 104, p. 7-28, ago-set, 1945.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de estética. São Paulo: EDUSP, 2004.
Volume IV.
99
JAMES, William. As variedades da experiência religiosa: um estudo sobre a Natureza
Humana. São Paulo: Cultrix, 1991.
LAGES, Susana Kempff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2002.
LISBOA, Henriqueta. Alphonsus de Guimaraens. Rio de Janeiro: Agir, 1945.
LISBOA, Henriqueta. Alphonsus e Severiano. Colóquio Letras. Lisboa: n.6, p. 27-34,
março 1972.
LISBOA, Henriqueta. A poesia de Alphonsus de Guimaraens. Minas Gerais, Belo
Horizonte, 02 jan. 1971. Suplemento Literário, p. 10-11.
MARQUES, Ângela Maria Salgueiro. O sublime na poesia de Alphonsus de
Guimaraens: presença da morte. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: Faculdade
de Letras, UFMG, 1998.
MARTIMORT, A. G. A Igreja em oração: introdução à liturgia. Barcelos: Ora &
labora, 1965.
MASSIN, Jean et Brigitte. História da música ocidental. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997.
MENDES, Alphonsus de Guimaraens. Folha de Minas, Belo Horizonte, 3 jul. 1937.
MEGALE, Nilza Botelho. Cento e sete invocações da Virgem Maria no Brasil: história,
folclore e iconografia. Petrópolis: Vozes, 1980.
MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2001. Volume
II.
MOISÉS, Massaud. O simbolismo. São Paulo: Cultrix, 1966.
100
MORESCHINI, Cláudio & NORELLI, Enrico. História da literatura cristã antiga
grega e latina. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
MORETTO, Fulvia, M. L. (org.) Caminhos do Decadentismo francês. São Paulo:
Perspectiva, 1989.
MURICY, Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro. São Paulo:
Perspectiva, 1987. 2v.
NUNES, Benedito. A visão romântica. IN: GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. São
Paulo: Perspectiva, 1978.
OLIVEIRA, Bernardo Barros Coelho de. Baudelaire, Benjamin e a arquitetura das
Flores do Mal. IN: Alea: Estudos Neolatinos. Vol. 9, 2. Rio de Janeiro.
Julho/dezembro 2007.
PAIS, Waldemar Tavares. Nossa Senhora nas lendas e na poesia. Belo Horizonte:
Promoção da família, 1972.
PACE, Tácito. O simbolismo na poesia de Alphonsus de Guimaraens. Belo Horizonte:
Comunicação, 1984.
PAZ, Octávio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2003.
PAZ, Octávio. A imagem. IN: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2003.
PAZ, Octávio. Os filhos do barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
PAZ, Octávio. Contar e cantar. IN: A outra voz. São Paulo: Siciliano, 1993.
PEIXOTO, Sérgio Alves. A poética simbolista. IN: A consciência criadora na poesia
brasileira. São Paulo: Annablume, 1999.
101
PEREIRA, Decadentismo e simbolismo na poesia portuguesa. Coimbra: Centro de
Estudos Românticos, 1975.
QUEIROZ, Maria José de. Verlaine e Alphonsus no mosteiro simbolista. Kriterion.
Belo Horizonte, nº71, p. 165-200, 1978.
RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologia da obra literária. São Paulo: Forense, 1969.
RICIERI, Francine Fernandes Weiss. Alphonsus de Guimaraens (1870-1921)
Bibliografia comentada. Dissertação de Mestrado. Assis: Faculdade de Ciências e
Letras, UNESP, 1996. 2v. 453p.
RICIERI, Francine Fernndes Weiss. A imagem poética em Alphonsus de Guimaraens:
espelhamentos e tensões. Tese de Doutorado. Campinas: Instituto de estudos da
linguagem, UNICAMP, 2001. 247 p.
SALTARELLI, Thiago César Viana Lopes. A Paixão Segundo São João: uma retórica
intermidiática. ALETRIA: irevista de estudos da literatura, v.14, 2006 Belo
Horizonte: POSLIT, Faculdade de Letras da UFMG.
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes,
1976.
SILVA, Wilson Melo da. O simbolismo e Alphonsus de Guimaraens. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1971.
STEPHAN, Rudolf. IN: Enciclopédia Meridiano Fischer. Lisboa: Ed. Meridiano, 1968.
v. 7 (Música). p. 31-35, 105-121, 371-378, 384-389.
TEIXEIRA, Ivan. Cem anos de Simbolismo: Broquéis e alguns fatores de sua
modernidade. IN: CRUZ e SOUSA, João da. Missal e Broquéis. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
102
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. Petrópolis:
Vozes, 1976.
VERAS, E. H. N. A Escrita Automática em Água Viva, de Clarice Lispector. Revista
eletrônica INTERDISCIPLINAR, v. 5, p. 181-187, 2008
http://www.posgrap.ufs.br/periodicos/interdisciplinar
WILSON, Edmund. O Castelo de Axel. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo