Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGÜÍSTICOS E
LITERÁRIOS EM INGLÊS
VERA LÚCIA RAMOS
A sivilização-civilização de Huckleberry Finn:
uma proposta de tradução
São Paulo
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
VERA LÚCIA RAMOS
A sivilização-civilização de Huckleberry Finn:
uma proposta de tradução
Dissertação apresentada à Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para obtenção
do título de Mestre em Estudos Lingüísticos
e Literários em Inglês.
Área de Concentração: Estudos
Lingüísticos e Literários em Inglês
Orientadora: Profa. Dra. Lenita Maria
Rimoli Esteves
São Paulo
2008
ads:
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
STAMIC
____________________________________________________________________________________________
Ramos, Vera Lúcia
A sivilização-civilização de Huckleberry Finn: uma proposta de tradução /
Vera Lúcia Ramos ; orientadora Lenita Maria Rimoli Esteves. -- São Paulo,
2008.
257 p.
Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Estudos
Linguísticos e Literários em Inglês – Departamento de Letras Modernas) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo.
1. Mark Twain 1835-1910 2. Racismo - Literatura. 3. Dialeto literário. 4.
Língua Culta. I. Título. II. Esteves, Lenita Maria Rimoli.
VERA LÚCIA RAMOS
A SIVILIZAÇÃO-CIVILIZAÇÃO DE HUCKLEBERRY FINN:
UMA PROPOSTA DE TRADUÇÃO
Dissertação apresentada à Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Mestre.
Área de Concentração: Estudos Lingüísticos e
Literários em Inglês
BANCA EXAMINADORA
Prof(a). Dr(a). _________________________________________________________
Instituição: _______ Assinatura: ___________________________________________
Prof(a). Dr(a). _________________________________________________________
Instituição: _______ Assinatura: ___________________________________________
Prof(a). Dr(a). _________________________________________________________
Instituição: _______ Assinatura: ___________________________________________
Ao meu pai Otávio (in memoriam), pelos sonhos, e
à minha mãe Ana, pela realidade.
Aos meus sobrinhos Fábio, Rejane, Carolina e Wagner,
pelas cores que trazem a minha vida.
Aos meus irmãos Malu e José, pelo bom humor.
Ao meu cunhado Ismael, pela fé em Deus.
AGRADECIMENTOS
À minha professora e orientadora Lenita Maria Rimoli Esteves, por ter
acreditado no meu projeto, incentivando-me a apresentar uma proposta de tradução e
acompanhando meus passos acadêmicos com rigor e carinho.
Aos meus amigos, por me ouvirem falar de Mark Twain e de Huckleberry Finn,
e aceitarem os meus ‘nãos’ aos seus convites na fase final da dissertação: Cecília
Vaisman, Célia Prado, Cláudia Santana Martins, Dircilene Gonçalves, Fulvio Torres
Flores, Gláucia R. Fernandes, Helena Omori, Jerusa Lopes, Kátia Hanna, Lajosy Silva,
Marly Tooge, Maria Elisa C. R. Bittencourt, Solange Peixe Pinheiro de Carvalho,
Telma de Lurdes São Bento Ferreira e Zsuzsanna Spiry.
Agradeço mais uma vez aos amigos Fulvio Torres Flores, pela leitura minuciosa,
Telma de Lurdes São Bento Ferreira, pelas ajudas valiosas especialmente na
diagramação, e Solange Pinheiro de Carvalho, por revisar a dissertação e partilhar
comigo a admiração por Mark Twain e seu trabalho.
Aos amigos e funcionários da Biblioteca Florestan Fernandes Antônio Carlos
Batista e Marinês de Souza Mendes, por auxiliarem-me inúmeras vezes na minha
pesquisa e estarem sempre bem humorados e solícitos.
Aos professores Viviane do Amaral Veras e Francis Henrik Aubert, pela
orientação preciosa e inestimável no Exame de Qualificação, e ainda ao último, pelas
sugestões de leitura no Primeiro Encontro de Pós-Graduandos da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (I EPOG).
À secretária do DLM Edite Mendez Pi, pela eficiência e prontidão.
À minha família, por entender minhas ausências e permanecer comigo
incondicionalmente.
“This is Huck Finn, a child of mine of shady reputation. Be good to him for his parent’s
sake”.
Mark Twain
RESUMO
RAMOS, V. L. A civilização-sivilização de Huckleberry Finn: uma proposta de tradução.
2008. 257f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
As Aventuras de Huckleberry Finn (1885), obra-prima de Mark Twain, apresenta uma narrativa
denunciadora do racismo de sua época e, para tanto, ele dá a suas personagens, e inclusive ao
narrador, uma voz até então não comum na literatura norte-americana: os dialetos literários
representantes da condição social, étnica e lingüística das personagens. Assim, todas elas de
alguma forma usam um dialeto desviado do culto, mostrando uma relação estreita entre não-
padrão e fuga da civilização. A recepção da obra causou muita polêmica tanto na época de sua
publicação quanto em outros períodos, sendo o livro por várias vezes proibido de estar nas
prateleiras de alguma biblioteca ou de fazer parte do currículo das escolas norte-americanas.
As edições em português do Brasil seguem a tradição da tradução de clássicos, isto é, de ignorar
os dialetos e usar em seus lugares a língua culta. No entanto, há um explanatório, no corpo do
texto, no qual Twain explica o porquê do uso dos sete dialetos criados. Dessa forma, os
tradutores têm tomado a posição de ignorar o explanatório juntamente com os dialetos, para não
expor aos leitores essa problemática do original, ou ainda a posição de traduzir o explanatório e
justificar-se com o leitor a respeito do uso de uma linguagem padrão. Este trabalho visa a
refletir acerca das implicações no uso dos dialetos literários no original e na tradução, assim
como da supressão deles em três traduções brasileiras. Além disso, propõe-se a não ‘sivilizar’
Huckleberry apresentando uma possível tradução com dialetos para cinco capítulos. Dessa
forma, julgou-se ter respeitado o texto de Twain, assim como um aspecto importante e
conhecido de seu pensamento: o repúdio à civilização e seus ‘benefícios’.
Palavras-chave: ‘sivilizar’; civilização; racismo; dialetos literários; língua-culta.
ABSTRACT
RAMOS, V. L. The civilization-sivilization of Huckleberry Finn: a translation proposal.
2008. 257p. Dissertation (Master´s degree) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
The Adventures of Huckleberry Finn (1885), Mark Twain’s masterpiece, presents a narrative
that denounces the racism of its era and, to that end, gives its characters – including its narrator
– a voice until then uncommon in North-American literature: a literary dialect representative of
the social, ethnic, and linguistic conditions of [each] character. As such, each in some manner
uses a dialect that diverges from the cultured norm, showing a close relationship between
nonconformity and a distancing from civilization. At the time of its publication and in other
eras, the book caused much controversy, often being banned from the library shelves or from
being included in North-American school curricula. Brazilian Portuguese editions follow the
tradition for classics, i.e., they ignore dialects and use refined language instead. However, the
body of the text contains an explanatory in which Twain explains the motive for the use of the
seven dialects he created in writing. As such, translators have taken the position of ignoring the
explanatory together with the dialects so as not to reveal this difficulty of the original to the
reader, or even of translating the explanatory and justifying themselves to the reader for the use
of standard language [in the translated version]. The present work seeks to reflect on the use of
literary dialects in the original and the translation, as well as on their suppression in three
Brazilian translations. Furthermore, it proposes not ‘sivilizing’ Huckleberry, offering a possible
translation with dialects for five chapters. In this manner it proposes to have respected Twain’s
text as well as an important and recognized aspect of his thinking: the repudiation of civilization
and its ‘benefits’.
Keywords:
‘sivilize’; civilization; racism; literary dialects; refined language.
LISTAS
Tabela 1 – Jim: características fonológicas.................................................................99
Tabela 2 – Jim: características gramaticais 1 (traços da comunidade afro-
americana)..................................................................................................................... 99
Tabela 3 – Jim: características gramaticais 2 (outros traços).................................100
Tabela 4 – Jim: características lexicais .....................................................................100
Tabela 5 – Jim: características mistas.......................................................................101
Tabela 6 – Huck: características fonológicas............................................................101
Tabela 7 – Huck: características gramaticais 1 (traços da comunidade afro-
americana)................................................................................................................... 102
Tabela 8 – Huck: características gramaticais 2 (outros traços)..............................102
Tabela 9 – Huck: características lexicais...................................................................103
Tabela 10 – Huck: características mistas ..................................................................103
Tabela 11 – Tom: características fonológicas ...........................................................103
Tabela 12 – Tom: características gramaticais 1 (traços da comunidade afro-
americana)................................................................................................................... 104
Tabela 13 – Tom: características gramaticais 2 (outros traços) .............................104
Tabela 14 – Tom: características lexicais..................................................................104
Tabela 15 – Ben Rogers (capítulo 2): características mistas ...................................104
Tabela 16 – Capitão (capítulo 8): características mistas .........................................105
Tabela 17 – Homem (capítulo 8): características mistas .........................................105
Tabela 18 – Monteiro Lobato e os tempos verbais...................................................114
Tabela 19 – Monteiro Lobato e os pronomes............................................................114
Tabela 20 – Monteiro Lobato e as conjunções..........................................................115
Tabela 21 – Monteiro Lobato e os advérbios............................................................115
Tabela 22 – Monteiro Lobato e as inversões.............................................................116
Tabela 23 – Monteiro Lobato e o léxico ‘formal’ .....................................................116
Tabela 24 – Monteiro Lobato e o léxico ‘informal’..................................................117
Tabela 25 – Monteiro Lobato e as repetições............................................................117
Tabela 26 – Monteiro Lobato e as exclamações........................................................118
Tabela 27 – Monteiro Lobato e as interjeições .........................................................118
Tabela 28 – Monteiro Lobato e a onomatopéia ........................................................118
Tabela 29 – Monteiro Lobato e o grau do substantivo.............................................119
Tabela 30 – Lobato e o Capítulo 1 .............................................................................119
Tabela 31 – Lobato e o Capítulo 2 .............................................................................120
Tabela 32 – Lobato e o Capítulo 8 .............................................................................121
Tabela 33 – Lobato e o Capítulo 14 ...........................................................................121
Tabela 34 – Lobato e o Capítulo 38 ...........................................................................122
Tabela 35 – Flaksman e o Capítulo 1.........................................................................128
Tabela 36 – Flaksman e o Capítulo 2.........................................................................128
Tabela 37 – Flaksman e o Capítulo 8.........................................................................129
Tabela 38 – Flaksman e o Capítulo 14.......................................................................130
Tabela 39 – Flaksman e o Capítulo 38.......................................................................130
Tabela 40 – Alex Marins e os verbos e pronomes.....................................................135
Tabela 41 – Alex Marins e o léxico 1..........................................................................136
Tabela 42 – Alex Marins e o léxico 2..........................................................................138
Tabela 43 – Alex Marins e o léxico 3..........................................................................139
Tabela 44 – Alex Marins e o Capítulo 1 ....................................................................139
Tabela 45 – Alex Marins e o Capítulo 2 ....................................................................140
Tabela 46 – Alex Marins e o Capítulo 8 ....................................................................140
Tabela 47 – Alex Marins e o Capítulo 14 ..................................................................141
Tabela 48 – Alex Marins e o Capítulo 38 ..................................................................142
Tabela 49 – Chester Himes e Celina Falk Cavalcante .............................................146
Tabela 50 – A tradução de Celina Flak Cavalcante.................................................147
Tabela 51 – A tradução de Millôr Fernandes ...........................................................152
Tabela 52 – Dino Preti e o ‘dialeto social popular’...................................................159
Tabela 53 – Dino Preti o dialeto social de maior e menor prestígio........................161
Tabela 54 – A oralidade e a repetição........................................................................167
Tabela 55 – A oralidade e os marcadores conversacionais......................................167
Tabela 56 – A oralidade e as frases simples ..............................................................168
Tabela 57 – A oralidade e as frases interrompidas ..................................................168
Tabela 58 – A oralidade e as frases coordenadas .....................................................168
Tabela 59 – Encontro vocálico com ‘para’................................................................170
Tabela 60 – Encontro vocálico com ‘que’..................................................................170
Tabela 61 – Encontro vocálico com ‘em’...................................................................170
Tabela 62 – A preposição ‘de’ mais vogais................................................................170
Tabela 63 – O ‘se’ pronominal ...................................................................................171
Tabela 64 – Jim e as características morfológicas....................................................171
Tabela 65 – Jim e as características morfossintáticas..............................................172
Tabela 66 – Huck e os apóstrofos...............................................................................173
Tabela 67 – Huck e as características morfológicas.................................................173
Tabela 68 – Huck e as características morfossintáticas...........................................173
Tabela 69 - Huck e alguns usos especiais ..................................................................174
Tabela 70 - Tom e as características morfológicas...................................................174
Tabela 71 - Tom e as características morfossintáticas.............................................175
Tabela 72 - As personagens e suas características gerais em inglês........................175
Tabela 73 - As personagens e suas características gerais em português ................176
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..........................................................................................................14
2 A SIVILIZAÇÃO-CIVILIZAÇÃO DE HUCKLEBERRY FINN..........................22
2.1 Mark Twain e o contexto histórico de Huckleberry Finn................................ 24
2.1.1 Um pouco mais de Mark Twain e da recepção de Huckleberry Finn........... 29
2.2 Jim, Tom e Huck e a ‘sivilização’ em As aventuras de Huckleberry Finn ..... 36
2.2.1 Jim e a civilização.......................................................................................... 38
2.2.2 Tom e a civilização........................................................................................ 44
2.2.3 Huck e a civilização....................................................................................... 48
2.3 O explanatório .................................................................................................... 54
2.4 Língua falada e língua escrita ........................................................................... 59
3 VARIEDADES LINGÜÍSTICAS, DIALETOS, DIALETOS LITERÁRIOS,
SOCIOLETOS, SOCIOLETOS LITERÁRIOS.........................................................66
3.1 Dialeto, dialeto literário, socioleto e socioleto literário: a perspectiva de
alguns pesquisadores................................................................................................ 73
3.1.1 Implicações no uso do dialeto literário.......................................................... 77
3.2 A opinião de três tradutores acerca da tradução dialetal............................... 84
3.3 A representação de Jim: Judith Lavoie e Lisa C. Minnick ............................ 88
3.3.1 Judith Lavoie: qual dialeto literário para Jim? .............................................. 89
3.3.2 Lisa Cohen Minnick: Jim estereotipado? ...................................................... 94
3.4 Apresentação das falas de Huck, Tom e Jim no texto de Twain.................... 97
4 MONTEIRO LOBATO, SERGIO FLAKSMAN E ALEX MARINS: SENHOR
HUCKLEBERRY FINN OU SEU HUCKLEBERRY FINN OU
EXCELENTÍSSIMO SENHOR HUCKLEBERRY FINN?.....................................106
4.1 Monteiro Lobato: algumas diferenças entre o escritor e o tradutor ........... 107
4.1.1 Um terno para Huck .................................................................................... 113
4.2 Sérgio Flaksman: o valor de Mark Twain e de Huckleberry Finn............... 124
4.2.1 Sergio Flaksman e sua estratégia tradutória ................................................ 126
4.3 Alex Marins e a Martin Claret........................................................................ 132
4.3.1 Alex Marins e a tradução de Huckleberry Finn .......................................... 134
4.4 Por que civilizaram Huck?: mais alguns esclarecimentos acerca da escolha
dos tradutores ......................................................................................................... 143
4.4.1 O Harlem é Escuro ...................................................................................... 147
4.4.2 Pigmaleão .................................................................................................... 151
5 A CONSTRUÇÃO DA ORALIDADE E DOS DIALETOS LITERÁRIOS DA
PROPOSTA DE TRADUÇÃO...................................................................................
156
5.1 Dino Preti e o dialeto social popular............................................................... 156
5.2 Lane-Mercier: responsabilidade e riscos assumidos pelo tradutor de dialetos
.................................................................................................................................. 162
5.3 A construção da oralidade na tradução.......................................................... 167
5.4 As personagens e seus dialetos literários........................................................ 168
5.4.1 As personagens e os dialetos em comum .................................................... 175
5.5 A proposta de tradução.................................................................................... 178
5.5.1 Proposta de tradução – Capítulo 1............................................................... 178
5.5.2 Proposta de tradução – Capítulo 2............................................................... 182
5.5.3 Proposta de tradução – Capítulo 8............................................................... 189
5.5.4 Proposta de tradução – Capítulo 14............................................................. 202
5.5.5 Proposta de tradução – Capítulo 38............................................................. 207
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................215
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................219
APÊNDICES................................................................................................................225
APÊNDICE A - Quadro-resumo do dialeto caipira de Amadeu Amaral ......... 226
APÊNDICE B - Tabela comparativa: Alex Marins e Miriam Marder Silva
Monteiro .................................................................................................................. 230
APÊNDICE C - Tabela dos dialetos mais comuns usados por Huck, Jim e Tom.
.................................................................................................................................. 237
ANEXOS ......................................................................................................................241
ANEXO A - Figuras ............................................................................................... 242
ANEXO B - Notícias a respeito da Martin Claret e do tradutor Alex Marins . 246
ANEXO C - Tabelas de Lisa Cohen Minnick das características lingüísticas de
Jim............................................................................................................................ 254
14
1 INTRODUÇÃO
A escolha de The Adventures of Huckleberry Finn (1885)
1
, obra-prima de Mark
Twain, como objeto desta pesquisa, surgiu como necessidade de entender a sua tradução
em português do Brasil. Embora o texto de Mark Twain tenha caracterizado as
personagens por meio de diferentes dialetos, as traduções homogeneízam a linguagem,
sendo que em duas das traduções usadas neste estudo o narrador Huck, assim como as
demais personagens, faz uso do português culto, a saber: as traduções de Monteiro
Lobato e Alex Marins. As obras escolhidas para este estudo são: As Aventuras de
Huckleberry Finn traduzidas por Monteiro Lobato
2
, editora Brasiliense, 1977, 9ª edição
(A 1ª edição data de 1934); Sergio Flaksman, editora Ática, 1997, 2ª edição (A 1ª edição
data de 1995); e Alex Marins, editora Martin Claret, 2003.
O fato de os tradutores ignorarem os dialetos foi a razão que norteou esta
pesquisa a procurar algumas respostas para o porquê do uso de uma linguagem
padronizada no texto de chegada, se no texto de partida, antes mesmo da narração das
aventuras, temos uma nota
3
de esclarecimento a respeito da distinção dos falares das
personagens.
Dois textos importantes na elucidação, assim como em novas indagações, acerca
desse questionamento foram O Clube do Livro, John Milton (2002), e Translating the
Untranslatable: The Translator’s Aesthetic, Ideological and Political Responsibility,
Gillian Lane-Mercier (1997). Estes dois textos, ao tratarem da tradução de dialetos,
1
A 1ª edição britânica de Huckleberry data de 10 de dezembro de 1884 e a da norte-americana é de 18 de
fevereiro de 1885. (INGE, M. Thomas. Huck Finn Among the Critics. 1984, p. vi). A edição usada neste
estudo é a de 1994 da Penguin. A tradução das notas foi feita pela autora do trabalho. Contudo, para os
trechos de As aventuras de Huckleberry Finn, foi usada a tradução de Sergio Flaksman (1997) e, para os
trechos de As aventuras de Tom Sawyer, foi usada a tradução de Monteiro Lobato (1978, 12ª edição).
2
O título da tradução de Monteiro Lobato é Aventuras de Huck.
3
A nota chama-se ‘explanatório’ e será explorada na seção 2.
15
asseguram que ao optar por tentar reproduzir qualquer dialeto, o tradutor terá seu texto
fadado a desacertos. Esse fato pode ser reconhecido nas afirmações de John Milton
(2002, p. 52)
A tradução de dialeto tem sido descrita como uma aporia em tradução
(Falkard apud Lane-Mercier, 1977, p.53). Seja qual for a decisão que
tome o tradutor, será sempre um desacerto, um disparate. O dialeto
escolhido, quer seja mimético, análogo, ou pertencente à norma culta,
nunca terá a autenticidade do original [...]
Também nas de Lane-Mercier (1997, p. 49):
It should therefore come as no surprise that for translators literary
sociolects represent, at worst, a well-defined zone of untranslatability
and, at best, an opaque, resistant textual component whose translation
is fraught with an inordinate number of meaning losses and gains – to
the extent that both the concept and the possibility of fidelity to the
source text are rendered null and void while the conditions of
possibility of the translation act are called into question.
4
Diante desse quadro de dificuldades quase intransponíveis para o tradutor,
ocorreu-nos investigar se o texto dialetal era de fato circundado por ‘armadilhas’
prontas a enredar o tradutor. E, para tanto, Huckleberry Finn passou a ser o condutor
principal do trabalho, pois as questões tratadas neste estudo convergem para uma
proposta de tradução, não se limitando apenas à análise de traduções publicadas.
O arcabouço teórico apresentado no trabalho está subordinado ao que a obra
original tem de mais significativo, ou seja, a oralidade transcrita na narrativa criada por
Mark Twain. Além disso, se faz necessário analisar como se dá essa oralidade e como
ela é representada nas traduções, assim como na proposta de tradução.
Mark Twain, ao retratar suas personagens por meio de uma linguagem que se
desvia da língua-padrão inglesa e com marcas que distinguem uma personagem da
outra, dá voz a pessoas até então não retratadas na literatura norte-americana, ou seja,
representantes de classes sociais menos privilegiadas. Carlos Eduardo Lins da Silva, no
4
“Desta maneira, não é surpreendente que, para os tradutores, os socioletos literários representem, na pior
das hipóteses, uma região bem definida de intraduzibilidade e, na melhor delas, um componente textual
opaco e resistente, cuja tradução está repleta de inúmeras perdas e ganhos de significado, a ponto de
invalidar tanto o conceito quanto a possibilidade de fidelidade ao texto fonte, enquanto as condições de
possibilidade do ato tradutório são postas em dúvida.”
16
artigo “Twain sem Censura”, afirma “[...]é o primeiro livro no vernáculo norte-
americano. Ou seja: Twain usou de ponta a ponta a linguagem que as pessoas comuns
falavam no Sul dos EUA no início do século 19, um verdadeiro dialeto.”
5
Críticos e estudiosos da literatura norte-americana viram nesse ‘verdadeiro
dialeto’ a inauguração de uma nova era na narrativa americana. Como pioneiro nessa
forma de narrar, Twain acaba inovando a literatura de sua época que se voltava para
imitações de obras inglesas, como podemos constatar nos dizeres de Jacques-Fernand
Cahen (1955, p. 52) a seguir:
Twain foi o primeiro que avançou contra as barreiras. Por isso cabe-
lhe, na história da literatura, um lugar privilegiado, como inovador e
pela influência que exerceu. Em primeiro lugar, influência pelo estilo
sem requintes, ornamentos ou arabescos, mas flexível, simples, de
fluente naturalidade e, no entanto, eminentemente correto e
expressivo; e através dos efeitos de colorido e atmosfera que extraiu,
com tanto tato, do emprêgo artístico do dialeto dos moleques da rua –
é Huck Finn, em pessoa, que conta sua história, com palavras de
todos os dias e, em acréscimo, um imenso talento de contador de
histórias e um senso inato do ritmo da frase.
Escritores como William Faulkner (1897-1962) e Ernest Hemingway (1899-
1961) estão entre os que consideram ter surgido com Twain uma narrativa
especificamente americana. Faulkner diz ser Twain “o pai do romance nos EUA” e
Hemingway afirma “toda a literatura moderna americana vem de um livro de Mark
Twain chamado ‘Huckleberry Finn’. ”
6
No entanto, essa nova forma de narrar se, por um lado, agradou uns, como a
apologia de Faulkner e Hemingway a Twain, por outro, desagradou profundamente
outros, como o Public Library Committee of Concord (Comitê da Biblioteca Pública de
Concord), Massachusetts, que publicou a seguinte decisão no Boston Transcript de 17
de março de 1885, ainda no primeiro mês do lançamento da edição norte-americana de
Huckleberry Finn:
5
SILVA, Eduardo Lins da. Twain sem Censura. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 set. 1995. Caderno
Mais, p. 4.
6
Ibidem.
17
The Concord (Mass.) Public Library Committee has decided to
exclude Mark Twain’s latest book from the library. One member of
the committee says that, while he does not wish to call it immoral, he
thinks it contains but little humor, and that of a very coarse type. He
regards it as the veriest trash. The librarian and the other members of
the committee entertain similar views, characterizing it as rough,
coarse and inelegant, dealing with a series of experiences not
elevating, the whole book being more suited to the slums than to
intelligent, respectable people. (INGE, 1984, p. vi)
7
A opinião de Concord é compartilhada por alguns grupos do final do século 19,
assim como do século 20. Os primeiros taxaram a obra de imoral e anti-religiosa, pois
viam o livro como má influência à juventude. Entre as causas de tais acusações estava o
questionamento de Huck quanto à tentativa de ajudar um escravo fugitivo a tornar-se
livre, atitude que não condizia com a moral do século 19, nos Estados Unidos. Além
disso, a inovação na linguagem proposta por Twain desagradou ou até mesmo ‘chocou’
os mais tradicionalistas. Os últimos – o grupo do politicamente correto – condenaram o
livro principalmente pelas inúmeras ocorrências do vocábulo ‘nigger’, considerado
inapropriado e ofensivo, pois tais grupos não levaram em consideração a época em que
o livro fora escrito. Vejamos na seguinte passagem alguns dos porquês da censura ao
livro de Twain:
Nas duas primeiras décadas do século 20, centenas de cidades dos
EUA proibiram que ‘Huckleberry Finn’ fosse lido por seus
estudantes de segundo grau, porque o consideravam imoral e
antireligioso.
Nas duas últimas décadas do século 20, de novo ‘Huck’ é censurado
pelos EUA afora por acharem que ele degrada e destrói a humanidade
dos negros. Do caro e sofisticado colégio St. Alban em Washington,
onde estudam os filhos do vice-presidente Al Gore e do pastor negro
Jesse Jackson, às escolas públicas de Winnetka, Illinois, Twain se
encontra sob censura. (SILVA, 1995, p. 4)
Por toda a polêmica gerada pela obra e por apresentar traduções que não tentam
7
“O Comitê da Biblioteca Pública de Concord (Massachusetts) decidiu excluir o último livro de Mark
Twain daquela biblioteca. Um membro do comitê diz que, apesar de ele não querer defini-lo como imoral,
o livro possui pouco humor e de um tipo muito grosseiro. Ele o classifica como um lixo completo. O
bibliotecário e outros membros do comitê concordam com ele mediante pontos de vista similares,
definindo-o como inculto, grosseiro e deselegante, descrevendo experiências decadentes, o livro todo
serve mais para pessoas de baixo nível cultural do que para pessoas cultas e respeitáveis.”
18
reproduzir marcas na linguagem tão evidenciadas por Twain, julgamos que, sem dúvida,
trabalhar com Huckleberry Finn poderia contribuir para os estudos da tradução dialetal,
assim como o fizeram os recentes trabalhos nessa área, aos quais recorremos: a proposta
de tradução de Kátia Hanna (2006) das falas da personagem Burma Jones no romance
de John Kennedy Toole A Confederacy of Dunces (1987); a proposta de tradução de
Solange Peixe Pinheiro de Carvalho (2006) para as falas de Joseph no romance de
Emile Brontë Wuthering Heights (1847), ambas apresentadas na Universidade de São
Paulo; a dissertação de Maristela Cury Sarian (2002), construindo um diálogo entre a
tradução e a sociolingüística, em um estudo sobre o romance de Alice Walker The
Color Purple (1982) e sua tradução, apresentada na Universidade Estadual de São José
do Rio Preto; e a dissertação de Michelangelo Di Vito (1997), apresentada na
Universidade de São Paulo, com o título de Proposta de Tradução de Huckleberry Finn.
Se já existe a dissertação de Di Vito, e além disso a obra conta com inúmeras
traduções e mesmo adaptações em português do Brasil, pode-se questionar o porquê de
mais uma tradução ou mais uma proposta de tradução. Acreditamos que a justificativa,
em termos acadêmicos, para mais um estudo com sugestão de tradução, pode ser dada
em função da diferença entre este estudo e o de Di Vito, assim como em função desta
tradução e as demais existentes.
Em primeiro lugar, a dissertação de Di Vito apresenta uma proposta apenas para
algumas falas de Huck, especificamente para o capítulo 5, enquanto a tradução neste
trabalho será para cinco capítulos, para as falas de Huck, Jim e Tom. Além disso, a
maior problemática da tradução ocorre na fala de Jim, por se tratar da representação do
Black English Vernacular (descrição de sociolinguistas como William Labov) ou
também chamado de African American English. Em segundo lugar, vemos a
necessidade de fazer uma nova tradução mais próxima ao projeto de criação de Mark
19
Twain explícito em seu ‘explanatório’. Dessa forma, não apenas esta proposta, mas
outras ainda poderiam contribuir para os estudos da tradução dialetal a partir dessa obra.
Huckleberry Finn oferece a vantagem de já estar em domínio público e de apresentar
dificuldades que não serão esgotadas nesta pesquisa
8
e provavelmente tampouco em
outra. E, exatamente, por se tratar de um clássico – uma obra canônica – que sugere
diferentes leituras pela sua riqueza, outras propostas de tradução só viriam a enriquecer
essa área carente de pesquisas.
A proposta de tradução aqui apresentada, especificamente na seção 4, não
pretende ser uma tradução conclusiva, mas sim uma possível leitura do texto que busca
mostrar ao leitor o fato de as personagens criadas por Mark Twain não dominarem a
norma culta da língua.
Com o intutito de apresentar uma proposta de tradução para as três personagens
citadas, voltamo-nos para questões que envolvem a discussão entre língua falada e
língua escrita; também fazemos um apanhado teórico acerca dos dialetos literários e
discutimos um aspecto da obra em relação ao termo ‘sivilizar’ usado por Twain.
Para tanto, este trabalho está dividido em cinco seções, sendo a 1 a introdução.
Iniciamos a seção 2 com o significado que o termo ‘sivilizar’ tem na obra, para
posteriormente apresentar o explanatório de Mark Twain, que se constitui em um
projeto estético, segundo Judith Lavoie
9
, o qual serve para justificar a distinção dos
falares das personagens. Como esse projeto refere-se à representação da língua falada na
escrita, na seqüência, abordamos as duas modalidades da língua, ou seja, fala e escrita,
discutindo alguns mitos e preconceitos entre elas. Na seção 3, apresentamos algumas
8
Twain afirma em seu explanatório ter usado sete dialetos. A nossa proposta de tradução limita-se a três
dialetos criados para Huck, Jim e Tom; no entanto, não consideramos que estes sejam os únicos dialetos
possíveis para representá-los.
9
Judith Lavoie analisa duas traduções de The Aventures of Huckleberry Finn para o francês, em seu
artigo intitulado Problèmes de traduction du vernaculaire noir américain: le cas de The Adventures of
Huckleberry Finn, que será discutido posteriormente.
20
concepções a respeito de diversidade lingüística, partindo da definição de variedade
lingüística, seguida de dialeto, dialeto literário, socioleto e socioleto literário, segundo
alguns pesquisadores. Começamos com Sumner Ives, por ser um dos primeiros
lingüistas a discorrer sobre o assunto em seu clássico ensaio intitulado A Theory of
Literary Dialect (1950); passamos aos artigos das pesquisadoras canadenses Judith
Lavoie (1994) e Françoise Brodosky (1996), em função do estudo que produziram a
respeito da tradução dialetal; e finalizamos a discussão teórica a cerca dos dialetos
literários com o trabalho da pesquisadora Lisa Cohen Minnick (2004) por seu estudo
pormenorizado das falas de Jim. Além disso, examinamos as falas de Huck, Jim e Tom,
mostrando suas principais características lingüísticas.
Na seção 4, analisamos as três traduções anteriormente citadas, seguindo sua
ordem cronológica. Assim, a primeira será a tradução de Monteiro Lobato (1977, 1ª
edição de 1934), seguida da de Sergio Flaksman (1997, 1ª edição de 1995) e a última de
Alex Marins (2003). Apresentamos os aspectos a respeito da tradição da oralidade na
literatura brasileira, assim como a tradição da tradução de clássicos abordada por John
Milton (2002). Além disso, exibimos trechos de traduções de O Harlem é Escuro,
tradução de Blind man with a pistol (1969), romance de Chester Himes (1909-1984),
traduzido por Celina Falk Cavalcante (2006); e de Pigmaleão (1913), peça de teatro do
escritor George Bernard Shaw (1856-1950), traduzida por Millôr Fernandes (2005), que
exemplificam traduções com uso de dialeto. E, finalmente, na seção 5, antes de
apresentarmos a proposta de tradução, discutimos a opinião de dois pesquisadores: Dino
Preti e Gillian Lane-Mercier. Quanto a Preti, exploramos suas considerações a respeito
do ‘dialeto social popular’. A contribuição de Lane-Mercier vem do fato de ela tratar da
responsabilidade do tradutor em relação às suas escolhas e os riscos corridos por ele na
tradução de dialetos. Demonstramos, por meio de tabelas, exemplos das variações mais
21
comuns nas falas de Huck, Jim e Tom e algumas personagens secundárias, que
aparecem nos capítulos escolhidos para a proposta de tradução, tanto em inglês quanto
em português. Finalmente, antes da conclusão, são apresentados cinco capítulos como
proposta de tradução.
22
2 A SIVILIZAÇÃO-CIVILIZAÇÃO DE HUCKLEBERRY FINN
Uma das melhores definições que encontramos a respeito do prolífico escritor
Samuel Langhorne Clemens (1835, Flórida, Missouri - 1910, Redding, Connecticut) ou
Mark Twain, pseudônimo adotado por ele quando entrou para a carreira literária nos
anos de 1860, foi dada por Maria Sílvia Betti (2003, p. 9), na obra Patriotas e Traidores:
antiimperialismo, política e crítica social, pois ela afirma que
Não há muitos outros escritores na literatura norte-americana a terem
alcançado a popularidade de Mark Twain, seja entre a crítica em
geral, seja no setor editorial e na indústria cultural. Homem de
múltiplos talentos, Twain foi humorista, ficcionista, jornalista,
conferencista, empreendedor comercial, contista e, acima de tudo,
crítico das mudanças sociais registradas nos Estados Unidos no
período compreendido entre o final da Guerra de Secessão, em 1865,
e o início do século XX.
Nesse mesmo livro, o termo civilização é recorrente nos textos antiimperialistas
de Mark Twain. Na leitura desses escritos, fica evidente o mal-estar de Twain em
relação à imposição da civilização, com suas regras e condutas, a outros povos. Esses
ensaios e artigos trazem um questionamento constante sobre os ‘benefícios’ da
humanidade, decorrentes da adoção de tais regras.
Na obra Huckleberry Finn, aparece o termo civilizar, porém grafado com ‘s’, ou
seja, ‘sivilizar’. Fica muito claro que o narrador-personagem Huck não se afina muito
com aquilo que a civilização representa: desde horários e rituais para as refeições
“When you got to the table you couldn’t go right to eating, but you had to wait for the
widow to tuck down her head and grumble a little over the victuals, though there warn’t
really anything the matter with them
10
(TWAIN, 1994a, p. 11) até a crença de que a
escravidão era um regime social justo e sagrado “I was a-trembling, because I’d got to
10
Quando sentava na mesa, não podia começar a comer direto; tinha que esperar a viúva abaixar a cabeça
e resmungar umas coisas por cima da comida, e sem razão, porque a comida não tinha problema nenhum.
(FLAKSMAN, 1997, p. 17-18)
23
decide, for ever, betwixt two things, and I knowed it. I studied a minute, sort of holding
my breath, and then says to myself: ‘All right, then, I’ll go to hell’ – and tore it up
11
(TWAIN, 1994a, p. 208, grifo do autor). Nesta última passagem, temos a conclusão a
que Huck chega depois de muito refletir sobre se ele deveria ou não ajudar um escravo
fugitivo a procurar a liberdade em um estado onde a escravidão já tinha sido abolida.
Diante desse quadro, com Twain e Huck querendo manter a sociedade à
distância, pareceu-nos viável olhar com mais atenção o ato de civilizar na obra
Huckleberry Finn. Vemos, assim, que a sua compreensão será a base para demonstrar a
importância de tentar traduzir Huckleberry usando dialetos, pois tanto a forma de as
personagens relacionarem-se com a civilização como a maneira de elas exprimirem-se
aponta para o não-padrão
12
. Para tanto, é preciso verificar como Huck, Jim e Tom
relacionam-se com a civilização ou mais propriamente com a sociedade de Saint
Petersburg, lugar onde ocorrem as aventuras de nossas personagens.
Dessa forma, com o intuito de entendermos essa relação, julgamos necessário
percorrer o seguinte caminho: em primeiro lugar, conhecer o contexto histórico em que
a obra se insere; em segundo, saber um pouco mais a respeito da recepção da obra e do
pensamento da figura ímpar, celebridade inegável e ícone da literatura norte-americana
que é Mark Twain; em terceiro, fazer uma breve ‘viagem’ pelas Aventuras de Tom
Sawyer e de Huckleberry Finn, para averiguarmos as diferenças na caracterização entre
Huck, Jim e Tom, aprofundando o entendimento do significado de civilizar em
Huckleberry; e, finalmente, verificar como a nota intitulada ‘explanatório’ justifica os
usos de dialetos por Mark Twain, além de discutir as diferenças entre língua falada e
11
Estava tremendo, porque tinha de tomar uma decisão de uma vez por todas, escolhendo entre duas
coisas, e sabia disso. Passei mais ou menos um minuto só pensando, quase sem respirar, e aí resolvi: ‘Se é
assim que tem que ser, prefiro ir para o inferno’ – e rasguei a carta. (FLAKSMAN, 1997, p. 235)
12
O ‘não-padrão’ na linguagem fica explícito pelo uso de dialetos e o ‘não-padrão’ no relacionamento
com a civilização fica claro na fuga de Saint Petersburg empreendida pelas personagens. Como veremos
posteriormente, essa fuga ocorrerá de três formas distintas, de acordo com as características de cada uma
delas.
24
escrita.
2.1 Mark Twain e o contexto histórico de Huckleberry Finn
Os primeiros pontos levantados neste trabalho são o contexto histórico e a
recepção da obra, assim como a forma de pensar de Twain, que encerram um quadro
para a nossa compreensão de alguns aspectos relativos à cultura norte-americana do
século 19.
O espaço da narrativa de Huckleberry está localizado em uma pequena cidade
provinciana do sul dos Estados Unidos, no livro identificada por Saint Petersburg, e o
tempo transcorrido é meados do século 19, embora Twain escreva a história no final
desse mesmo século. Ele retrata, nesse local e tempo, os problemas vividos por seu país
anteriores à guerra de Secessão, ocorrida no período de 1861 a 1865, entre os estados do
sul – pró-escravidão e os do norte – pró-abolição da escravatura.
De fato, as diversidades entre norte e sul datam desde a colonização, pois as
condições geográficas determinam o desenvolvimento de cada região de forma díspar.
Os estados do sul, com terras férteis, voltam-se para a agricultura; os estados do norte,
sem terras férteis, acabam desenvolvendo o comércio e a manufatura. Com o passar do
tempo, as diferenças vão tornando-se cada vez maiores, podendo ser sentidas em todas
as áreas: o sul passa a ter uma economia agropecuária, com base na mão-de-obra
escrava negra, com pensamento mais conservador e religioso; o norte desenvolve o
comércio e a manufatura, com mão-de-obra assalariada de imigrantes vindos da Europa,
com pensamento politizado e liberal. A culminação de pontos divergentes entre norte e
sul acaba concretizando-se na Guerra Civil Americana, ou Guerra de Secessão,
25
motivada pela abolição da escravatura. As idéias abolicionistas começam a aparecer no
norte e vários nortistas passam a ver a escravidão como desnecessária e imoral, assim
como alguns poucos sulistas, embora no sul a sua grande maioria fosse
antiabolicionista. Há várias tentativas de acordo entre norte e sul por parte do governo,
com o intuito de resolver a questão de onde poderia haver ou não escravidão.
As diferenças de ponto de vista quanto à escravidão também acabam dividindo o
partido democrata em pró-abolicionismo (norte) e pró-escravidão (sul), o que leva
Abraham Lincoln, republicano e abolicionista moderado, a vencer as eleições de 1860.
O sul, perdendo pouco a pouco o poder político, decide formar os Estados da
Confederação da América, portanto, independentes do norte, e elegem Jefferson Davis
como presidente. Lincoln não aceita essa divisão e, em 12 de abril de 1861, os sulistas
atacam o Forte Sumter, três dias depois o forte rende-se e Lincoln começa a juntar
tropas para recuperá-lo, o que é visto como uma declaração de guerra pelos estados do
sul. O maior interesse de Lincoln era manter a união dos Estados, mas não era assim
que o viam os latifundiários do sul. No ínicio da guerra, os soldados eram voluntários de
ambos os lados. Mark Twain participa dessa guerra por pouco tempo e narra sua
experiência em uma curta história de 1885 intitulada “A História Privada de uma
Campanha Fracassada” (apud BETTI, 2003, p. 346-365).
Twain define as tomadas de posição dos cidadãos para enfrentar a guerra da
seguinte forma: “No Oeste havia muita confusão na mente das pessoas durante os
primeiros meses da grande confusão; muita indecisão, inclinar-se para este lado, e
depois para o outro. Para nós, foi duro fincar os pés no chão” (apud BETTI, p. 346-
347). Ele trabalhava então como piloto no rio Mississipi e seu imediato era de Nova
York e favorável a União (estados do norte), como o próprio Twain relata “Mas ele [o
imediato] não tinha paciência para me ouvir; para ele, minha lealdade era manchada
26
porque meu pai fora dono de escravos” (apud BETTI, p. 347). Se logo no início da
guerra havia falta de clareza a respeito de qual lado tomar partido, depois de um mês a
situação ficou da seguinte forma: “[...] a atmosfera de secessão havia se agravado no
Baixo Mississipi e eu passei para o lado rebelde; ele também” (apud BETTI, p. 347).
Mas se antes o seu superior não o ouvia, depois, mesmo mudando de lado, o imediato
“Dizia que minhas origens não eram boas: um pai que queria libertar os escravos” (apud
BETTI, p. 147).
Assim, grupos de homens reuniam-se e formavam um ‘regimento’. O mesmo
ocorreu com Twain, como ele afirma: “Vários de nós nos reunimos à noite num lugar
secreto e formamos uma companhia militar. Um certo Tom Lyman, um rapaz corajoso
mas sem a mínima experiência militar, foi feito capitão; eu fui escolhido segundo-
tenente” (apud BETTI, p. 347-348). No entanto, nem todas as organizações
permaneceram até o fim da guerra. Sobre o seu grupo, Twain diz: “Ora, esse bando
partiu para a guerra. O que se poderia esperar deles? Fizeram o que podiam, mas o que
se poderia esperar deles? Nada, diria eu. E foi o que fizeram” (apud BETTI, p. 349).
Nem tudo teve esse clima meio divertido narrado por Twain, pois a guerra
findou com baixas de mais de seiscentos mil soldados, entre mortos e desaparecidos.
Porém, é importante entender essa mescla de humor-ironia/crítica de Twain nesse
contexto, pois ela faz parte de sua personalidade, assim como de seus inúmeros escritos.
Bernardo De Voto (1977, p. 5-13), em The Portable Mark Twain, especialista em
Twain, bem descreve o escritor “[…] why for two full generations literary critics
thought of Mark Twain as no more than a clow” (DE VOTO, 1977, p. 5).
13
e mais à
frente “[…] he could not write about even death or man’s depravity without infusing
13
“[...] ora, por duas gerações inteiras, críticos literários consideraram Mark Twain não mais que um
palhaço.”
27
them with the humor that kept him sane” (DE VOTO, 1977, p. 13).
14
Todo o trabalho de Twain é marcado por esse humor-ironia/crítica, e
Huckleberry Finn não foge à regra. No entanto, esse traço cômico acompanhado de
denúncia torna Huckleberry um vasto arsenal de discussões polêmicas, confirmando o
pouco já visto e o que ainda veremos a respeito de sua recepção. Para alguns leitores
esse livro é um manifesto contra o racismo, para outros, um livro com indícios racistas.
Mark Twain nasceu e cresceu em meio à escravidão e, em sua autobiografia, faz
menção a ela algumas vezes. Selecionamos sua primeira referência a ela, com a
finalidade de ilustrar o contexto em que Huck sofre com a dúvida de ajudar ou não um
escravo a buscar a liberdade em um estado onde a escravidão já havia sido abolida:
In my schoolboy days I had no aversion to slavery. I was not aware
that there was anything wrong about it. No one arraigned it in my
hearing; the local papers said nothing against it; the local pulpit
taught us that God approved it, that it was a holy thing and that the
doubter need only look in the Bible if he wished to settle his mind –
and then the texts were read aloud to us to make the matter sure; if
the slaves themselves had an aversion to slavery they were wise and
said nothing.
15
(TWAIN, 1990, p. 6)
A problemática da escravidão em Huckleberry questiona justamente esses
pontos relativos à sua aceitação, ela também canaliza preconceitos, expõe uma visão
religiosa deturpada e põe em xeque os valores e moral da sociedade do século 19. A
libertação dos escravos é decretada com o fim da guerra de Secessão; porém, o
sentimento de superioridade da raça branca sobre a negra não acaba aí, fato esse que
motiva a formação de sociedades como a Ku Klux Klan, fundada no ano de 1867, por
brancos reacionários, com a finalidade de ‘defender’ o direito dos brancos e perseguir os
14
“[...] e mesmo escrevendo sobre a morte ou a depravação humana, ele não conseguia fazê-lo sem
incutir em seus temas o humor que o mantinha lúcido.”
15
“Na época em que eu era garoto e freqüentava a escola, eu não tinha aversão à escravidão. Eu não tinha
consciência de que havia algo de errado nisso. Eu nunca tinha ouvido que alguém a considerasse errada;
os jornais locais não diziam nada sobre ela; o púlpito local ensinava-nos que Deus a aprovava, que a
escravidão era sagrada e que a pessoa que duvidasse disso teria apenas de ler a Bíblia para ficar com a
mente em paz – e, neste caso, os textos eram lidos em voz alta para que todos tivessem clareza sobre o
assunto; se os escravos tinham aversão à escravidão, eles eram sábios em não dizer nada.”
28
afro-americanos. É nesse contexto que podemos entender grande parte da narrativa de
Huckleberry e também a reação contrária ao livro; afinal, é por meio de Jim que Twain
apresenta o herói da história. Como veremos, essa é sem dúvida a personagem mais
complexa em termos lingüísticos e de caracterização psicológica, e a que provoca mais
divergências de opiniões a respeito de seu delineamento
16
.
Em termos literários, antes da guerra, em 1852, Harriet Beecher Stowe publica o
romance abolicionista A Cabana do pai Tomás. Alguns anos após o final da guerra
surge Huckleberry Finn, publicado nos Estados Unidos em 1885. Andrew Lang (In:
INGE, Huck Finn among the Critics, 1984, p. 40) cita os dois livros mencionados no
artigo The Art of Mark Twain, e afirma: “Already Huckleberry Finn is an historical
novel, and more valuable, perhaps, to the historian than Uncle Tom’s Cabin, for it was
written without partisanship, and without ‘a purpose’.”
17
Se Huckleberry apresenta ou não um propósito é o que veremos a seguir.
Sabemos, com certeza, da seriedade dos intentos de Twain em relação à guerra e às suas
críticas, e tais intenções vêm reveladas em seus escritos com um tempero especial.
Deixemos então Twain (apud BETTI, 2003, p. 355) narrar a respeito do final de sua
carreira militar e desse contexto histórico com a descrição de uma cena de guerra, na
qual sua tropa parte em retirada, fugindo do inimigo:
A rota era muito difícil, montanhosa e pedregosa, e logo a noite ficou
uma escuridão completa e começou a chover; foi uma retirada muito
difícil, lutando e rastejando pelas pedras no escuro; e logo alguém
escorregou e caiu, e logo quem vinha atrás tropeçou nele e também
caiu, e assim todo mundo; e então chegou Bowers carregando um
barril de pólvora, enquanto o comando tentava desembaraçar braços e
pernas na encosta coberta de lama; então ele caiu, com o barril, e todo
o destacamento escorregou pela encosta como um corpo único, até
parar amontoado no riacho que havia lá embaixo, e quem estava
embaixo arranhava e mordia, além de puxar o cabelo de quem estava
por cima; e os que estavam sendo arranhados e mordidos também
arranhavam e mordiam os outros, e todos gritavam que, se
16
Na seção 3, retornaremos às polêmicas a respeito do delineamento da personagem.
17
Huckleberry Finn já é um romance histórico e de maior valor que, talvez, o histórico A Cabana do Pai
Tomás, pois esse foi escrito sem partidarismo e sem ‘um propósito’.”
29
conseguissem sair do riacho, preferiam morrer a entrar noutra guerra,
que o invasor se lixasse, que o país também se lixasse, que eles não
dariam a mínima; era o que eles diziam, o que era muito triste ouvir,
e pior ainda ter de dizer, naquelas vozes abafadas e baixas, naquele
lugar escuro e molhado, onde o inimigo poderia surgir a qualquer
momento.
2.1.1 Um pouco mais de Mark Twain e da recepção de Huckleberry Finn
Partindo do nosso segundo passo, conhecer um pouco da recepção de
Huckleberry e do pensamento de seu criador, transcreveremos a seguinte máxima de
Mark Twain (apud BETTI, 2003, p. 307): “Aceito qualquer sociedade. Tudo o que me
interessa é saber que um homem é um ser humano, para mim é o bastante; é impossível
ser pior.”; o seguinte pensamento antiimperialista: “Parece-me que nosso prazer e dever
seria tornar livres aquelas pessoas e deixar que elas próprias resolvam sozinhas as suas
questões internas. E é por isso que sou antiimperialista. Eu me recuso a aceitar que a
águia crave suas garras em outras terras.” (apud BETTI, 2003, p. 4); a citação de sua
personagem Pudd’nhead Wilson (apud DE VOTO, 1977, p. 560): “If you pick up a
starving dog and make him prosperous, he will not bite you. This is the principal
difference between a dog and a man.”
18
; e a frase que escreveu a uma de suas filhas
quanto à morte de Jean, outra filha (apud INGE, 1984, p. 71): “I am so glad she is out of
it and safe – safe!”
19
Poderíamos mencionar inúmeros outros trechos ou frases, mas acreditamos que
18
“Se você pegar um cão faminto e torná-lo próspero, ele não irá mordê-lo. Esta é a principal diferença
entre um cachorro e um homem.”
19
“Eu estou tão contente que ela está fora disso e segura – segura!”
30
as citações acima são o suficiente para ilustrar e auxiliar a nossa compreensão da visão
pessimista de Twain a respeito da civilização. Essa aversão está em sintonia com alguns
temas desenvolvidos em sua obra literária, o que poderia parecer estranho, pois seu
nome está ligado à literatura infanto-juvenil.
Na verdade, por apresentar um texto cheio de acontecimentos inesperados,
situações cômicas e inusitadas, a indústria cultural insere as obras de Twain na faixa de
leitores próximos à adolescência.
De fato, as obras mais aclamadas de Twain, como, As aventuras de Tom Sawyer
(1876), O príncipe e o plebeu (1881), As aventuras de Huckleberry Finn (1885) e Um
ianque na corte do rei Artur (1889), corroboram a idéia de uma literatura voltada para a
ação; porém, mesmo repleto de reviravoltas, seu texto questiona os valores sociais de
sua época. As aventuras de Huckleberry Finn é um exemplo clássico de críticas ao
comportamento humano e tamm um dos mais polêmicos, como podemos constatar no
texto abaixo de Inge (1984, p. vi, grifo do autor) sobre essa obra.
Yet this same novel, so highly influential and much admired by
writer and reader alike, has been one of the most controversial and
frequently banned books of American literature. Controversy and
censure accompanied its birth. The first British edition appeared on
December 10, 1884, and the first American edition on February 18,
1885. Within a month of its American appearance, the Public Library
Committee of Concord, Massachusetts, met and decided to ban it
from their shelves. The decision was reported in the pages of the
Boston Transcript for March 17, 1885 […]
20
Seria possível um livro visando um público-alvo infanto-juvenil causar tanta
polêmica a ponto de ser proibido? Afinal, de que tratam As aventuras de Huckleberry
Finn? O que há de tão controverso na obra?
20
“Contudo, esse mesmo romance, de tão grande influência e muito admirado por escritores, assim como
por leitores, tem sido um dos livros mais controversos e freqüentemente banidos da literatura norte-
americana. Controvérsia e censura acompanharam-no desde o seu lançamento. A primeira edição
britânica apareceu em 10 de dezembro de 1884 e a primeira edição norte-americana em 18 de fevereiro de
1885. No primeiro mês da publicação norte-americana, o Public Library Committee of Concord (Comitê
da Biblioteca Pública de Concord), Massachusetts, reuniu-se e decidiu banir a obra de suas prateleiras. A
decisão foi publicada nas páginas do Boston Transcript em 17 de março de 1885 [...]”
31
Podemos considerar como tentativas de respostas às questões acima a introdução
do livro Huck Finn among the Critics (1984), uma seleção de artigos de várias épocas
em homenagem ao centenário de Huckleberry Finn, em que o editor M. Thomas Inge
(1984, p. v) faz a seguinte análise da criação de Twain:
By allowing an uneducated fourteen-year-old boy to tell his own
story in his own language, more directly attuned to the reality of
American life than any author before him had dared, Samuel Clemens
created an appropriate symbol for the new nation, then a little over
one hundred years old, in all its roughness, crudity, and moral
uncertainty. Huck’s language is purely American in a way no
previous author had written it for the printed page; Clemens thereby
set aside British English as the only appropriate idiom for serious
literature. Henry James had experimented with point of view in his
novels, but no one had allowed a character of Huck’s station in life to
serve as both the central character and consciousness for a novel. In
addressing the problem of freedom vs. social responsibility, public
character and private vice, and the institutionalization of racism,
Clemens was dealing with what would prove to be the central social
and political conflicts of twentieth century America.
21
Como Inge aponta, nenhuma obra até aquele momento dera voz a personagens
de posição social ‘inferior’, como um pária (Huck), um escravo (Jim), um bêbado (Pap
Finn), larápios (o duque e o rei), entre outros. Além disso, a verossimilhança na
narração de Huck é reforçada justamente por ele usar um linguajar condizente com o
conhecimento lingüístico de alguém que vive nas ruas e tem pouca instrução escolar.
Podemos dizer que tudo ao redor de Huck – o ambiente (Saint Petersburg e o rio
Mississipi), a criação (o abandono e crueldade do pai, Pap Finn) e a forma de expressão
(o dialeto) – forma um todo coeso e crível; isso ocorre também com as demais
21
“Ao permitir que um garoto inculto de quatorze anos contasse sua própria história, em sua própria
língua, revelando uma sintonia completa com a realidade de vida da sociedade norte-americana, mais do
que qualquer outro autor alguma vez tivesse ousado escrever previamente, Samuel Clemens criou um
símbolo apropriado para a nova nação, e depois de um pouco mais de um século de existência, com toda
sua rudeza, crueldade e moral incerta. A linguagem de Huck é puramente norte-americana, de uma forma
que nenhum autor anterior tinha escrito, dessa maneira, em páginas impressas; Clemens desse modo pôs
de lado o inglês britânico como o único idioma adequado para a literatura formal. Henry James havia
experimentado algo semelhante com pontos de vista diferentes em seus romances, mas ninguém teve a
coragem de criar uma personagem da posição social de Huck, que servisse tanto como personagem
central quanto consciência no romance. Ao tratar de problemas de liberdade vs. responsabilidade social,
caráter público e privado, e a institucionalização do racismo, Clemens estava lidando com o que provaria
ser a essência dos conflitos sociais e políticos da América do século 20.”
32
personagens. Portanto, vemos que a análise de Inge lança um pouco de luz sobre a
discussão levantada pela obra e também sobre o porquê da indignação de quem a julgou
inapropriada, como é o caso de Louisa May Alcott (1832-1888) (apud INGE, 1984, p.
vii), autora de Little Women (1868), que se pronunciou da seguinte forma: “If Mr.
Clemens cannot think of something better to tell our pure-minded lads and lassies, he
had best stop writing for them.”
22
O sr. Clemens não deu ouvidos a tais ‘conselhos’, para satisfação de seus
leitores, e também não se abalou com as efusivas expressões de desaprovação de seu
livro. Ao contrário, na primeira oportunidade que teve, respondeu aos ataques de forma
magistral e, evidentemente, irônica, como podemos atestar na carta ao Free Trade Club,
da mesma comunidade de Concord, em resposta ao convite que lhe fora oferecido de
membro honorário.
It does look as if Massachusetts were in a fair way to embarrass me
with kindnesses this year […] a committee of the public library of
your town has condemned and excommunicated my last book, and
doubled its sale. This generous action of theirs must necessarily
benefit me in one of two additional ways. For instance, it will deter
other libraries from buying the book; and you are doubtless aware
that one book in a public library prevents the sale of a sure ten and a
possible hundred of its mates. An secondly it will cause the
purchasers of the book to read it, out of curiosity, instead of merely
intending to do so after the usual way of the world and library
committees; and then they will discover, to my great advantage and
their own indignant disappointment, that there is nothing
objectionable in the book, after all. (TWAIN apud INGE, 1984, p.
vii)
23
Twain afirma não haver nada de objetável no livro; porém, os estudos e as
22
“Se o sr. Clemens não consegue pensar em algo melhor para contar a nossos rapazes e moças de mentes
puras, seria melhor que parasse de escrever para eles.”
23
“Realmente parece que Massachusetts conseguiu me encabular com tanta bondade neste ano [...] um
comitê da biblioteca pública de sua cidade condenou e excomungou meu último livro, e dobrou as suas
vendas. Esse ato generoso por parte deles vai necessariamente beneficiar-me em um de dois modos
adicionais. Por exemplo, ele vai impedir que outras bibliotecas comprem o livro; e vocês sem sombra de
dúvida sabem que um livro em uma biblioteca pública evita a venda de no mínimo dez e possivelmente
até cem cópias daquele exemplar. E em segundo lugar, isso fará com que os compradores desse livro o
leiam por curiosidade, em vez de meramente ter a intenção de fazê-lo pela reação provocada no mundo e
nos comitês de bibliotecas; e depois eles vão chegar à conclusão, para meu enorme benefício e para
indignação e decepção deles, de que não há nada objetável no livro, afinal de contas.”
33
críticas da obra apontam para temas que demonstram opiniões passíveis de discussão,
como visto acima. No decorrer desses mais de cem anos de Huckleberry, o que muda às
vezes é o objeto da crítica: a linguagem (os dialetos usados e o termo ‘nigger’ repetido
centenas de vezes); a moral duvidosa (os ‘empréstimos’ tomados por Huck de galinhas
e outros comestíveis, mostrando a leve sutileza de interpretação entre roubar e
emprestar, e a rixa entre as famílias aristocratas Grangerfords e Shepherdsons, tendo
comportamentos nada civilizados); a denúncia do linchamento (como forma de justiça);
as dúvidas de Huck (quanto a verdades religiosas e ajuda a Jim); e a constante discussão
entre estudiosos acerca da parte final do livro (capítulos 31 a 43) ser ou não coesa e
apropriada, dentre outras objeções.
De acordo com David E. E. Sloane (1988, p. 17), no livro Adventures of
Huckleberry Finn: American Comic Vision, a obra de Twain evoca tantas indignações
pelos seguintes motivos:
Modern sensibilities are certainly affronted by the author’s frequent
use of the racist epithet ‘nigger’, and the Concord Library Board was
angered by the low tone generally. […] The book is filled with
challenging social portraits and actions by low characters; it often
shows degraded and uncivilized behavior, frequently with the
approval of the narrator-hero Huckleberry Finn.
24
Mais à frente, na mesma obra, temos a seguinte explicação:
As the Great American Novel Adventures of Huckleberry Finn would
have to show evidence of the highest level of art as vision. The
Concord Public Library’s objection to the novel, along with critics
such as Robert Bridges, was based on its realism – a realism
repulsive to some Victorians by being developed in comic and
intellectual terms through the managed vulgar voice of Huck
speaking for Mark Twain. To them, Huck was a bad example because
he was vulgar, and because he was tarred by the depicted violence
and criminality surrounding him. The realist element in the book was
its source of trouble, not Huck’s position as a social outsider and
dissident. That position has precedents in moral philosophy as
24
“Sensibilidades modernas são certamente afrontadas pelo uso freqüente do autor do epíteto ‘negro’, e o
corpo diretivo da Biblioteca de Concord sentiu-se enraivecido pelo tom de baixo nível cultural em geral
[...] O livro é preenchido com retratos sociais desafiadores e atos protagonizados por personagens de
baixo nível; revela com freqüência um comportamento degradante e incivilizado, demonstrado muitas
vezes com a aprovação do narrador-herói Huckleberry Finn.”
34
reflected in The Royal Path of Life and in fiction as reflected in J. T.
Trowbridge’s stories. Concord’s dislike of the book derived from its
success in clothing Twain’s attack on inhumanity in a veneer of
reality. (SLOANE, 1988, p. 147)
25
Como visto nos trechos acima, Mark Twain exibe as imperfeições da sociedade
do século 19, provocando uma avalanche de indignações. Vários são os temas
apresentados no livro causadores de contendas: passagens recheadas de humor ou
narradas sem emoção mostram cenas disparatadas ou cruéis; o comportamento de quase
todas as personagens, aristocratas ou plebéias, é baseado em interesses pessoais; a
crença e os valores das personagens são apenas aparentes, elas facilmente abraçam
valores externos, ou seja, rituais vazios de significado. Como último exemplo deste
segmento retirado de Huckleberry, ilustraremos o modo de Twain retratar o
comportamento de duas famílias aristocratas, mas rivais, de Arkansas: os Shepherdsons
e os Grangerfords. Huck nos narra a seguinte ocorrência:
Next Sunday we all went to church, about three mile, everybody a-
horseback. The men took their guns along, so did Buck, and kept
them between their knees or stood them handy against the wall. The
Shepherdsons done the same. It was pretty ornery preaching – all
about brotherly love, and such tiresomeness; but everybody said it
was a good sermon, and they all talked it over going home, and had
such a powerful lot to say about faith, and good works, and free
grace, and prefore-ordestination, and I don’t know what all, that it
did seem to me to be one of the roughest Sundays I had run across
yet. (TWAIN, 1994a, p.112, grifo nosso)
26
25
“Como o grande romance norte-americano, As Aventuras de Huckleberry Finn teria de mostrar
evidência do nível mais alto de arte como visão. As objeções do Comitê da Biblioteca Pública de
Concord quanto à obra, assim como as críticas de Robert Bridges, têm por base o seu realismo – um
realismo repugnante para alguns vitorianos mediante desenvolvimento no cômico e em termos
intelectuais pela elaborada voz vulgar de Huck falando por Mark Twain. Para eles, Huck era um mau
exemplo, pois era vulgar e estava marcado pela violência e criminalidade descrita que o circundava. O
elemento realista no livro era sua fonte de problema, não a posição de Huck como um pária e dissidente
social. Essa posição tem precedentes na filosofia moral como refletida em The Royal Path of Life e na
ficção como revelada nas histórias de J. T. Trowbridge. A aversão de Concord em relação ao livro
derivou de seu êxito em cobrir os ataques de Twain contra a desumanidade com um verniz da realidade.”
26
No domingo seguinte, a gente foi para a igreja, uns cinco quilômetros, todo mundo a cavalo. Os
homens iam armados, e Buck também, e guardavam as espingardas no meio dos joelhos ou encostadas na
parede ao lado deles. Os Shepherdsons faziam a mesma coisa. Foi um sermão normal – o pastor falou que
somos todos irmãos, e devemos amar uns aos outros, essas coisas; mas todo mundo disse que tinha
achado o sermão uma beleza, e na volta foram conversando até em casa, falando da fé, e das boas ações,
da graça de Deus, da antipredestinação e não sei o que mais, só sei que eu achei um dos domingos mais
aborrecidos da minha vida. (FLAKSMAN,1997, p.128)
35
O absurdo inerente à cena é construído no plano espacial (local: igreja),
individual (atitude das famílias: seus interesses) e social (a comunidade: o significado
das armas e do sermão do pastor). O primeiro refere-se ao local onde as famílias estão: a
igreja, mas não apenas em nível concreto – o lugar físico – pois Twain poderia ter
escolhido outro ponto de encontro das famílias, sem causar porém o mesmo impacto.
Supostamente, a igreja é um lugar sagrado representando a casa de Deus, e, portanto,
estaria diametralmente oposto à representação da arma: violência ou morte, tanto para o
ataque quanto para a defesa. O segundo plano diz respeito à individualidade retratada
por um comportamento egocêntrico. Nesse caso, as famílias vão à igreja porque toda a
comunidade vai à igreja, por domingo ser o dia do Senhor e a sociedade cobrar esse
comportamento das famílias de ‘bem’. Imagina-se que as pessoas vão à igreja para ouvir
a palavra de Deus, a qual se acredita estar associada a conceitos abstratos como amor,
respeito, fraternidade, dentre outros. E o sermão serviria para exemplificar no concreto
tais abstrações, condenando sempre atos de violência. Assim, a presença das duas
famílias protagonistas de uma antiga rixa, que só acabará quando não sobrar vivente de
ambos os lados, acrescentada ao tema do sermão (terceiro plano) proferido pelo pastor,
demonstra a hipocrisia da sociedade. Para completar a falsidade do quadro, os
comentários dos Grangerfords revelam uma falsa devoção e um discurso vazio, além de
um comportamento incivilizado, por estarem sempre armados inclusive na igreja e
procurarem, sempre que possível, pôr-se em emboscada para atacar o inimigo. Dessa
forma a comunidade (plano três) não é transformada pela palavra de Deus, e as famílias
junto à comunidade continuarão com atitudes voltadas para interesses individuais. É
possível compreender como as pessoas, ao lerem Huckleberry, sentiram-se ultrajadas
com tais críticas. Essa passagem específica mostra que a comunidade apenas segue um
comportamento-padrão exigido pela sociedade e convive ‘harmoniosamente’ desde que
36
seus interesses pessoais não sejam violados, por isso, a presença das armas é necessária
para garantir tais interesses.
Este trabalho não discute as possíveis objeções inerentes às Aventuras de
Huckleberry Finn, no sentido de questionar a posição mostrada pelo autor em relação à
moral ou religião. No entanto, é impossível não perceber as críticas de Twain e deixá-
las passar em branco, pois muitas delas são atuais e fazem eco aos muitos absurdos da
nossa sociedade de hoje. Porém, pretendemos entender e elucidar uma vertente muito
clara no livro, que é o significado dado por Twain ao termo ‘sivilizar’ e suas
implicações, juntamente aos dialetos. Para o entendimento desse ponto é preciso
verificar o sentido de civilizar e dos dialetos, pois ele servirá de base para a
argumentação desta dissertação, que defende a posição de a tradução dessa obra levar
em conta ‘o que’ falam e ‘como’ falam as personagens. Para tanto, começaremos com a
descrição de Jim, passando à de Tom e finalizando com a de Huck, mostrando como
estas personagens relacionam-se com a sociedade de Saint Petersburg.
2.2 Jim, Tom e Huck e a ‘sivilização’ em As aventuras de Huckleberry Finn
Huck introduz e conclui a narração de suas aventuras com a idéia de fugir para
não ser civilizado. No segundo parágrafo do primeiro capítulo, ele nos conta que:
The Widow Douglas, she took me for her son, and allowed she would
sivilize me; but it was rough living in the house all the time,
considering how dismal regular and decent the widow was in all her
ways; and when I couldn’t stand it no longer, I lit out.
27
(TWAIN,
1994a, p. 11, grifo nosso)
27
A viúva Douglas me pegou para criar como filho dela, e resolveu que ia me sivilizar; mas era duro
morar naquela casa o tempo todo, porque a vida da viúva chegava a ser triste de tão decente e sempre
igual; aí chegou uma hora em que eu não agüentei mais, e dei o fora. (FLAKSMAN, 1997, p. 17)
37
Ele termina o último capítulo da seguinte forma:
But I reckon I got to light out for the Territory ahead of the rest,
because Aunt Sally she’s going to adopt me and sivilize me, and I
can’t stand it. I been there before.
THE END
YOURS TRULY,
HUCK FINN
28
(TWAIN, 1994a, p. 281, grifo nosso)
A fim de compreendermos essa abertura e encerramento em Huckleberry, será
útil recorrermos ao dicionário para verificar as acepções do termo ‘civilizar’. De acordo
com o Dicionário Eletrônico Aurélio da Língua Portuguesa – Século XXI
29
, ‘civilizar’
significa: “tornar civil; dar caráter civil a.; tirar do estado natural ou selvagem; adaptar
ou integrar à vida humana em sociedade, suas atividades, instituições, etc.; dar cultura
ou refinamento a; cultivar, educar; submeter ao processo de civilização [...]”.
Todas as definições do dicionário coadunam-se com aquilo que Huck rechaça;
porém, dentre elas ‘tirar do estado natural ou selvagem’ é a mais pertinente ao que a
sociedade de Saint Petersburg, representada pela viúva Douglas e a tia Sally, tenciona
fazer. Em As aventuras de Tom Sawyer, Twain usa o sintagma ‘romantic outcast’ –
pária romântico – para descrever Huck. Em Huckleberry, Twain introduz por meio de
Huck o primeiro dialeto visual
30
da obra, ao grafar o verbo civilizar com ‘s’, assim
realçando um termo central para a compreensão das características lingüísticas de Jim,
Tom e Huck. Se por um lado Huck não quer se submeter às normas sociais, como
veremos mais detalhadamente a seguir, por outro, Mark Twain também não se sujeita às
regras ortográficas e gramaticais. Ele subverte essas normas para levar a cabo a
28
Mas acho que vou ter que ir embora para o Território Índio antes dos outros, porque a tia Sally está
querendo me adotar e me sivilizar, e eu não agüento. Já passei por isso antes.
FIM
SEU CRIADO OBRIGADO,
HUCK FINN (FLAKSMAN, 1997, p. 316)
29
Todas as demais definições de importantes termos presentes nesta dissertação recorrerão ao dicionário
mencionado acima.
30
Dialeto visual, eye-dialect em inglês, é aquele em que o autor quer chamar a atenção do leitor para algo
que não está correto do ponto de vista ortográfico; então, ele escreve uma palavra modificando nela um
ou mais fonemas.
38
verossimilhança entre elementos lingüísticos e extralingüísticos, criando a obra que é
considerada um marco na literatura norte-americana. Afinal, Twain retrata em Huck,
Jim e Tom um pária, um escravo e um menino fantasioso, respectivamente. Não nos
parece cabível seus falares estarem em sintonia com a norma-padrão da língua quando
os seus delineamentos convergem para o não-padrão. Quanto a um garoto cheio de
imaginação, não há muito que questionar se seu falar for padrão ou não, mas soaria
dissonante um pária e um escravo falarem usando uma linguagem padrão.
2.2.1 Jim e a civilização
Quanto às características físicas de Jim, podemos dizer que Mark Twain foi
econômico, pois no sintagma nominal ‘Miss Watson’s big nigger’ temos o resumo de
seu aspecto físico, assim como de sua posição social ocupada na sociedade: escravo da
srta. Watson. Na seguinte passagem podemos ver como Jim nos é apresentado e
também sua atuação na cena do segundo capítulo:
Miss Watson’s big nigger, named Jim, was setting in the kitchen
door; we could see him pretty clear, because there was a light behind
him. He got up and stretched his neck out about a minute, listening.
Then he says:
‘Who dah?’
He listened some more; then he come tip-toeing down and stood right
between us; we could a touched him, nearly. Well, likely it was
minutes and minutes that there warn’t a sound, and we all there so
close together. […]
‘Say – who is you? Whar is you? Dog my cats ef I didn’ hear sumf’n.
Well, I knows what I’s gwyne to do. I’s gwyne to set down here and
listen tell I hears it agin.’
So he set down on the ground betwixt me and Tom. He leaned his
back up against a tree, and stretched his legs out till one of them
most touched one of mine. […] Just then Jim begun to breathe heavy;
next he begun to snore – and then I was pretty soon comfortable
39
again.
31
(TWAIN, 1994a, p. 14- 15, grifo nosso)
Para os leitores de Tom Sawyer, essa entrada de Jim pode causar surpresa por
dois motivos: o primeiro devido ao fato de o narrador descrever Jim com a palavra
antônima da que ele é descrito em Tom Sawyer, ou seja, ‘big’; e o segundo pelo fato de
Jim entrar em cena e atuar nela, sem ser pano de fundo para outra personagem. Jim era
então apenas um menino e quase sempre ocupava a cena em função da explicação ou
descrição de alguma peripécia de Tom. Sua presença justificava-se para que
pudéssemos entender mais das características de Tom, como podemos ver no seguinte
trecho de As aventuras de Tom Sawyer (TWAIN, 1994b, p. 8-9, grifo nosso):
Tom did play hookey, and he had a very good time. He got back
home barely in season to help Jim, the small coloured boy, saw next
day’s wood, and split the kindlings before supper – at least he was
there in time to tell his adventures to Jim while Jim did three-fourths
of the work.
32
Em Huckleberry, no entanto, essa personagem então obscura cresce não apenas
fisicamente de menino a homem, mas também de personagem secundária a principal.
Na primeira passagem transcrita acima em Huckleberry, vemos em Jim o senhor
do espaço por ele ocupado e a sua autoridade é respeitada por Tom e Huck. A
submissão dos dois meninos à autoridade de Jim ocorre para que a saída de Huck da
casa da viúva Douglas, onde este está morando, não seja relatada a ela. Embora Jim
tenha sido apresentado de forma atuante, ele desaparecerá momentaneamente e
31
O escravo alto da srta. Watson, chamado Jim, estava sentado na porta da cozinha; dava para ver
perfeitamente, porque tinha uma luz acesa por trás dele. Ele se levantou, esticou o pescoço e ficou um
minuto escutando. E depois falou:
‘Quem é que está aí?’
Ficou escutando mais um pouco; depois veio andando na ponta dos pés e parou bem no meio de nós dois;
quase que dava para a gente encostar a mão nele. Passou muito tempo sem nenhum barulho, com todo
mundo pertinho um do outro. [...]
‘Quem é que está aí? Onde é que está? Macacos me mordam se eu não escutei um barulho. E já sei o que
é que eu vou fazer. Vou ficar sentado bem aqui, até escutar de novo.
E aí sentou no chão, bem entre Tom e eu. Se encostou numa árvore e esticou as pernas. Uma delas quase
esbarrou na minha. [...] Aí Jim começou a respirar pesado; daí a pouco começou a roncar – e na mesma
hora a minha coceira parou. (FLAKSMAN,1997, p. 20-21)
32
Tom realmente gazeteou a escola e teve um dia regalado. Voltou tarde, quase sem tempo de ajudar Jim,
o negrinho, a serrar lenha para o dia seguinte e rachar alguma para aquela noite – mas ainda assim pôde
contar as aventuras do dia, enquanto o negrinho fazia três quartos do trabalho. (LOBATO, 1978, p. 8)
40
retornará apenas no capítulo 8.
Se as características físicas de Jim se resumem a ‘grande’ e ‘escravo’, Twain não
nos poupa de cenas para exibir a grandiosidade de Jim, quanto a suas características
psicológicas. Escolhemos dois trechos para exemplificá-las.
A primeira passagem ocorre no capítulo 15. Jim e Huck estão no rio Mississipi,
quando uma tempestade os atinge. Jim continua na jangada, enquanto Huck vai para
uma canoa, com o intuito de procurar um banco de areia ou uma praia, onde ele possa
prender a jangada; porém, devido à forte correnteza a jangada é arrastada rio abaixo.
Além da forte chuva, há um nevoeiro denso, o qual provoca a separação temporária das
duas personagens. Assim que Huck acha a jangada e encontra Jim dormindo, decide
pregar uma peça nele, ao estilo Tom Sawyer. Jim acorda e ao ver Huck tenta expressar
efusivamente a alegria pelo reencontro; porém, Huck procura convencê-lo de que esse
tivera um pesadelo até Jim ser finalmente persuadido. Ao perceber que Jim está
convencido, Huck vira-se para o companheiro e pergunta-lhe: o que são todas aquelas
folhas, galhos de árvore e lixo na jangada? Primeiramente, Jim fica confuso, mas após
conseguir colocar os pensamentos em ordem e juntar os fatos, ele compreende que foi
enganado e responde a Huck o que significa ‘lixo’. Embora sua fala seja curta, trata-se
de um dos discursos mais intensos da narrativa.
Jim looked at the trash, and then looked at me, and back at the trash
again. […] But when he did get the thing straightened around, he
looked at me steady, without ever smiling, and says:
‘What do dey stan’for? I’s gwyne to tell you. When I got all wore out
wid work, en wid de callin’ for you, en went to sleep, my heart wuz
mos’ broke bekase you wus los’, en I didn’ k’yer no mo’ what
become er me en de raf’. En when I wake up en fine you back agin,’
all safe en soun’, de tears come en I could a got down on my knees en
kiss’ yo’ foot I’s so thankful. En all you wuz thinkin’ ‘bout wuz how
you could make a fool uv ole Jim wid a lie. Dat truck dah is trash; en
trash is what people is dat puts dirt on de head er dey fren’s en
makes’em ashamed.’
33
(TWAIN, 1994a, p. 89-90, grifo do autor)
33
Jim ficou olhando para todo aquele lixo, depois olhou para mim e depois de novo para o lixo. [...] Mas
quando acabou entendendo a coisa toda, olhou firme para mim, sem nem sombra de um sorriso, e disse:
‘Você está me perguntando o que é que isso tudo quer dizer? Pois eu vou explicar. Quando eu fiquei
41
Outra passagem importante ocorre no capítulo 23. Percebemos na fala de Huck a
atitude protetora de Jim para com esse e uma demonstração de afeto. Também podemos
notar um discurso que se revela racista
34
, porém, com vislumbres de enxergar Jim como
um ser humano.
I went to sleep, and Jim didn’t call me when it was my turn. He often
done that. When I walked up, just at daybreak, he was setting there
with his head down betwixt his knees, moaning and mourning to
himself. I didn’t take notice, nor let on. I knowed what it was about.
He was thinking about his wife and his children, away up yonder, and
he was low and homesick; because he hadn’t ever been away from
home before in his life; and I do believe he cared just as much for his
people as white folks does for ther’n. It don’t seem natural, but I
reckon it’s so. He was often moaning and mourning that way, nights,
when he judged I was asleep, and saying, ‘Po’ little ‘Lizabeth! po’
little Johnny! it’s mighty hard; I spec’ I ain’t ever gwyne to see you
no mo’, no mo’!’ He was a mighty good nigger, Jim was. (TWAIN,
1994a, p. 154)
35
Twain constrói a narrativa entre caminhos pelo rio Mississipi e caminhos em
terra firme. Geralmente, nos capítulos em terra firme não há grande participação de Jim,
muitas vezes pelo motivo de ter havido algum extravio entre Jim e Huck, como vimos
em um dos exemplos acima.
esgotado de tanto batalhar e de tanto chamar por você, acabei dormindo, com o coração quase partido
porque não sabia de você, e nem dava mais importância para o que ainda podia acontecer comigo ou com
a jangada. Mas quando eu acordei e vi você de volta, são e salvo, fiquei com os olhos cheios d’água e tão
feliz que quase me ajoelhei no chão para beijar o seu pé. Você, não; só estava pensando num jeito de
fazer o velho Jim de bobo com as suas mentiras. Pois fica sabendo que essa tralha toda espalhada pela
jangada é lixo; e lixo também é a pessoa que conta mentiras para zombar do amigo e fazer ele passar
vergonha.’ (FLAKSMAN, 1997, p. 103-104)
34
M. Thomas Inge menciona a ‘institucionalização do racismo’ em Huckleberry. Ela está claramente
presente na fala de Pap Finn e em alguns comentários de Huck. Há coerência nessas falas racistas de
Huck, uma vez que seu pai não vê os escravos como seres humanos (sua posição fica evidente em seu
discurso no capítulo 6 do livro de Twain), assim como quase toda a sociedade da época em que Twain
escreveu o livro. Pouco a pouco, Huck aprende a ver em Jim um amigo, um companheiro, uma pessoa
que ele quer que deixe de ser escravo.
35
Eu fui dormir, e o Jim não me chamou quando chegou a minha vez de ficar de vigia. Ele fazia isso toda
hora. Quando eu acordei, na hora que o dia começou a clarear, dei com ele sentado lá, a cabeça enfiada no
meio dos joelhos, gemendo e chorando baixinho. Eu não disse nada, e nem deixei ele ver que eu tinha
reparado. Eu sabia qual era o problema. Ele estava pensando na mulher e nos filhos, lá longe, e estava
triste de saudades; porque ele nunca tinha passado muito tempo longe de casa antes; e acho que gostava
tanto da família dele quanto um branco gosta da família. Pode parecer que não, mas eu tenho certeza que
sim. Toda hora eu via o Jim gemendo e chorando daquele jeito, no meio da noite, quando ele achava que
eu estava dormindo, e murmurando: ‘Coitadinha da Elizabeth! Coitadinho do Johnny! É duro; acho que
eu nunca mais vou ver vocês, meus filhos, nunca mais!’ Ele era um negro muito bom, o velho Jim.
(FLAKSMAN, op. cit., p.175)
42
Os capítulos usados como exemplos para a compreensão do delineamento
psicológico de Jim mostram-nos a única personagem, além de Huck, que demonstra
sentimento e respeito pelo próximo. E são justamente essas duas personagens que
buscam se afastar da civilização. No caso de Jim, esse afastamento dá-se com a fuga de
Saint Petersburg.
A primeira passagem que nos revela a relação de Jim com essa sociedade
encontra-se no capítulo 8, como transcrita abaixo:
Well, you see, its ‘uz dis way. Ole Missus – dat’s Miss Watson – she
pecks on me all de time, en treats me pooty rough, but she awluz said
she wouldn’ sell me down to Orleans. But I noticed dey wuz a nigger
trader roun’ de place considable, lately, en I begin to git oneasy.
Well, one night I creeps to de do’, pooty late, en de do’ warn’t quite
shet, en I hear ole missus tell the widder she gwyne to sell me down
to Orleans, but she didn’t want to, but she could git eight hund’d
dollars for me, en it ‘uz sich a big stack o’ money she couldn’ resis’.
De wider she try to git her to say she wouldn’ do it, but I never
waited to hear de res’. I lit out mighty quick, I tell you. (TWAIN,
1994a, p. 50)
36
Diante do exposto sobre Jim, vemos em sua relação com Saint Petersburg uma
mudança tão radical quanto a anteriormente vista no seu crescimento do primeiro (Tom
Sawyer) para o segundo livro (Huckleberry): a mudança de menino a homem e a de
personagem secundária a principal. A fuga de Jim em busca da liberdade simboliza o
seu afastamento da civilização ou, pelo menos, daquela em que ele está inserido, onde o
escravo é apenas uma posse.
Após termos visto os aspectos físicos e psicológicos de Jim e sua relação com a
sociedade, resta-nos dar atenção a seu aspecto lingüístico. Mediante os excertos
apresentados, é possível notar alguns de seus traços lingüísticos. Das três personagens,
36
“Foi assim. A patroa – a srta. Watson – vive implicando comigo, e me trata muito mal, mas sempre
disse que nunca ia me vender para Nova Orleans. Mas eu reparei que tinha um mercador de escravos que
sempre aparecia lá em casa nos últimos tempos, e comecei a ficar desconfiado. Uma noite eu cheguei
perto da porta, bem tarde, e a porta não estava bem fechada. Aí eu ouvi a patroa dizer para a viúva que ela
tinha resolvido me vender para Nova Orleans, que na verdade ela não queria, mas que dava para
conseguir oitocentos dólares por mim, e era tanto dinheiro que ela não podia resistir. A viúva ainda tentou
fazer ela mudar de idéia, mas eu fui embora e não ouvi o resto da conversa. Fui embora bem depressa,
pode acreditar.” (FLAKSMAN, p. 58-59)
43
ele é a que apresenta o discurso mais trabalhado por Twain, o mais afastado da língua
padrão e, portanto, o que sofreu mais elaboração estética na criação de sua fala. A
criação de Twain, na representação da fala dos afro-americanos do século 19, é
construída por intermédio de uma série de combinações percebidas na sintaxe, na
morfologia, na fonologia e nos dialetos visuais. Nesta seção, apenas ilustraremos alguns
aspectos do falar de Jim, pois eles serão pormenorizados na seção 3.
Em nível morfossintático podemos citar as seguintes características com seus
respectivos exemplos:
O substantivo cujo plural é irregular tende a ficar no singular: I could a
got down on my knees em kiss’ yo’ foot I’ so thankful.
A flexão dos verbos no presente tende a permanecer na terceira pessoa
do singular, inclusive o verbo ‘be’: Well, I knows what I’s gwyne to do.
Uso freqüente do ‘ain’t’: I ain’t ever gwyne to see you no mo’, no mo’!
Dupla negativa: [...] en I didn’ k’yer no mo’ [...]
Quanto aos aspectos fonológicos podemos observar:
Supressão de sons consonantais: stan’ (stand), callin’ (calling), mos
(most)
Supressão de sons vocálicos: ‘bout
Transformação de sons vocálicos ou consonantais: sumf’n
Dialeto visual: set down (sat down)
Podemos concluir da apresentação de Jim que a relação entre aspectos físicos,
psicológicos, lingüísticos e sua posição social compõem um quadro harmônico, no qual
os elementos usados para sua caracterização caminham para o não-padrão.
44
2.2.2 Tom e a civilização
Tom Sawyer, por sua vez, no livro que leva o seu nome, é retratado mais por
suas ações que por uma descrição física. Esperteza e eloqüência são algumas de suas
características que se manifestam quase sempre na busca por aventuras associada à fuga
das obrigações impostas pelos adultos (tia Polly) e pela sociedade (a escola e a igreja).
David E. E. Sloane (1988, p.127) faz o seguinte retrato de Tom:
Readers of The Adventures of Tom Sawyer have already seen him
pretend death, distressing his family, not to mention humiliating
schoolmasters and fooling friends, but each of these egocentricities
allowed later forgiveness and social acceptance.
37
De fato, Twain retrata em Tom um individualismo também presente na atitude
de outras personagens de Saint Petersburg, o qual se manifesta na busca pela satisfação
pessoal em detrimento do outro e, conseqüentemente, da comunidade e da própria
sociedade. Esse individualismo de Tom, tentando sempre fazer só o que lhe agrada,
também se faz presente em Huckleberry e assume pelo menos duas facetas: o pregar
peças e o fantasiar. Do primeiro, temos um exemplo na apresentação e atuação de Tom,
no capítulo 2 de Huckleberry:
When we was ten foot off, Tom whispered to me and wanted to tie
Jim to the tree for fun; but I said no; he might wake and make a
disturbance, and then they’d find out I warn’t in. Then Tom said he
hadn’t got candles enough, and he would slip in the kitchen and get
some more. I didn’t want him to try. I said Jim might wake up and
come. But Tom wanted to resk it; so we slid in there and got three
candles, and Tom laid five cents on the table for pay. Then we got
out, and I was in a sweat to get away; but nothing would do Tom but
37
“Leitores de As aventuras de Tom Sawyer já o viram fingir que morreu, angustiar seus familiares, sem
mencionar o fato de humilhar professores da escola e fazer os amigos de bobo, mas cada uma dessas
atitudes egocêntricas permitiram perdão posterior e aceitação social.”
45
he must crawl to where Jim was, on his hands and knees, and play
something on him. I waited, and it seemed a good while, everything
was so still and lonesome. (TWAIN, 1994a, p. 15)
38
Esse é um exemplo clássico do comportamento de Tom e que parece ser uma
conduta comum na sociedade descrita por Twain; quanto a suas fantasias, destacamos
um trecho em que o contraste de suas atitudes com as de Huck torna mais fácil a
compreensão de sua personalidade. No tocante à imaginação, Tom para Huck é
mentiroso e Huck para Tom é ignorante, como podemos verificar na seguinte passagem
do capítulo 3:
One time Tom sent a boy to run about town with a blazing stick,
which he called a slogan (which was the sign for the Gang to get
together), and then he said he had got secret news by his spies that
next day a whole parcel of Spanish merchants and rich A-rabs was
going to camp in Cave Hollow with two hundred elephants, and six
hundred camels, and over a thousand ‘sumter’ mules, all loaded down
with di’monds, and they didn’t have only a guard of four hundred
soldiers, and so we would lay in ambuscade, as he called it, and kill
the lot and scoop the things. He said we must slick up our swords and
guns, and get ready. He never could go after even a turnip-cart but he
must have the swords and guns all scoured up for it; though they was
only lath and broom-sticks, and you might scour at them till you
rotted, and then they warn’t worth a mouthful of ashes more than
what they was before. I didn’t believe we could lick such a crowd of
Spaniards and A-rabs, but I wanted to see the camels and the
elephants, so I was on hand next day […] I didn’t see no di’monds,
and I told Tom Sawyer so. He said there was loads of them there,
anyway; and he said there was A-rabs there too, and elephants and
things. I said why couldn’t we see them, then? He said if I warn’t so
ignorant, but had read a book called Don Quixote, I would know
without asking. […] He said there was hundreds of soldiers there, and
elephants and treasure, and so on, but we had enemies which he
called magicians, and they had turned the whole thing into an infant
Sunday-school, just out of spite. I said all right, then the thing for us
to do was to go for the magicians. Tom Sawyer said I was a
numskull.
[…]
So then I judged that all that stuff was only just one of Tom Sawyer’s
lies. I reckoned he believed in the A-rabs and the elephants, but as for
38
Quando já tinha se afastado uns três metros, Tom me disse baixinho que tinha tido a idéia de amarrar
Jim na árvore, só para ver o que ele fazia; mas eu disse que não; ele podia acordar e começar a gritar, e aí
iam descobrir que eu não estava em casa. Aí Tom disse que só tinha uma vela, e que ia entrar na cozinha
para pegar mais. Eu não queria que ele fosse. Disse que Jim podia acordar e vir atrás da gente. Mas Tom
queria tentar; a gente entrou e pegou três velas, e Tom deixou cinco centavos em cima da mesa, como
pagamento. Aí a gente saiu, e eu queria ir embora logo; mas não houve jeito de impedir Tom de ir se
arrastando de quatro até o lugar onde Jim estava dormindo, e pregar alguma peça no escravo. Fiquei
esperando, e pareceu que foi muito tempo, no meio do silêncio e da solidão. (FLAKSMAN, 1997, p. 21)
46
me I think different. It had all the marks of a Sunday-school.
39
(TWAIN, 1994a, p. 21-22-23)
Esse excerto faz-nos perceber a lacuna existente entre Tom e Huck em relação
aos seus pontos de vista e suas formas de atuação na sociedade: o primeiro faz de tudo
para divertir-se, ora pregando peças, ora criando fantasias com base nos livros que lê; o
segundo é pragmático como resultado de sua criação: órfão de mãe e filho do bêbado
Pap Finn que o abandonou.
A presença e atuação de Tom em Huckleberry ocorrem no início e no final da
obra. Ele primeiramente é mencionado no fim do primeiro capítulo, mas atua, de fato,
nos capítulos 2 e 3 e, posteriormente, desaparece para retornar no capítulo 33,
permanecendo até o final.
Podemos chegar a algumas conclusões a respeito de Tom e de sua maneira de
atuação na sociedade. Como já vimos no primeiro excerto, Tom não perde a
oportunidade de pregar peças; e no segundo, leva os companheiros a viverem suas
mirabolantes fantasias a fim de realizar suas vontades. De Tom Sawyer, vimos a
passagem em que Tom transfere a Jim grande parte de seu trabalho também no intuito
39
Uma vez Tom mandou um menino sair correndo pela cidade com uma tocha, que era o sinal para a
quadrilha se reunir, e aí contou que os espiões dele tinham mandado dizer que uma enorme caravana de
mercadores espanhóis e árabes ricos ia acampar no dia seguinte no campo em frente da caverna com
duzentos elefantes, seiscentos camelos e mais de mil mulas, todas carregadas de diamantes, e que tinha
menos de quatrocentos soldados de guarda, e que era para a gente armar uma emboscada, como ele dizia,
matar todo mundo e roubar todo o tesouro. Disse que era para a gente limpar as espadas e as espingardas,
e ficar com tudo preparado. Ele nunca atacava nem mesmo uma carroça de nabos sem mandar a gente
limpar e preparar as espadas e as espingardas; só que elas eram varas e cabos de vassoura, e por mais que
a gente esfregasse até morrer elas não ficavam nada melhores do que antes. Eu achava que a gente nunca
ia conseguir ganhar de tantos espanhóis e árabes, mas eu queria ver os camelos e os elefantes, e aí, no dia
seguinte, um sábado, fui para a tal emboscada [...] Eu não vi diamante nenhum, e disse a Tom Sawyer.
Mas ele respondeu que nunca tinha visto tantos diamantes; e que tinha um monte de árabes também, com
elefantes e tudo. Aí eu perguntei por que é que ninguém tinha visto nada. E ele disse que se eu não fosse
tão ignorante, e tivesse lido um livro chamado Dom Quixote, eu ia entender. Era tudo encantamento.
Estavam todos lá, os soldados, os elefantes, o tesouro e tudo, mas acontece que nós tínhamos inimigos
que eram grandes magos, e eles transformaram tudo num bando de crianças da escola dominical só por
maldade. Então eu disse que era melhor a gente ir atrás dos tais magos. E Tom Sawyer disse que eu era
uma besta.
[...]
Aí eu entendi que tudo aquilo era só mais uma das mentiras de Tom Sawyer. Resolvi que ele podia
acreditar nos árabes e nos elefantes, mas que para mim era diferente. Por tudo que eu vi, tinha sido
mesmo um piquenique da escola dominical. (FLAKSMAN, 1997, p. 28-29-30)
47
de procurar satisfação pessoal. As fugas de Tom estão sempre na contramão das
obrigações sociais e, embora exista o escape, não podemos dizer que Tom relaciona-se
com a civilização de forma a romper com ela, comportamento exibido por Jim e Huck.
Tom não é a representação de um rebelde; muito pelo contrário, ele quer permanecer em
sintonia com a civilização; porém, muitas regras o entediam, daí sua necessidade de se
evadir daquilo que representa as obrigações para ele, como a tia Polly, a escola, a igreja.
No seguinte trecho, podemos ver como a fantasia e a civilização combinam-se:
[…] I lit out. I got into my old rags and sugar-hogshead again, and
was free and satisfied. But Tom Sawyer he hunted me up and said he
was going to start a band of robbers, and I might join if I would go
back to the widow and be respectable. (TWAIN, 1994a, p. 11)
40
Da leitura do trecho acima, podemos indagar: como é possível conciliar ‘ser
respeitável’ e ‘participar de uma quadrilha de assaltantes’? Para Tom Sawyer, essa
estranha combinação torna-se realizável desde que se tenha a imaginação dele.
Quanto aos traços lingüísticos de Tom, podemos dizer que, em Tom Sawyer,
Twain retrata em Tom um garoto órfão, criado por sua tia Polly, na casa onde vivem
também Sid, seu meio-irmão, e Mary, sua prima. Tom recebe uma educação rígida,
freqüenta a escola e, aos domingos, vai à escola dominical. Ele possui família e recebe
educação formal, por isso, percebemos nos falares dele uma aproximação maior da fala
normativa. Como nas transcrições acima, em Huckleberry, temos apenas a narração de
Huck a respeito de Tom, examinaremos um exemplo do capítulo 2, no qual Tom
responde a Ben Rogers qual será a linha seguida por sua quadrilha: “ ‘Stuff! Stealing
cattle and such things ain’t robbery, it’s burglary,’ says Tom Sawyer. ‘We ain’t
burglars. That ain’t no sort of style.’ [...]”
41
(TWAIN, 1994a, p. 18)
40
[...] e dei o fora. Vesti de novo as minhas roupas velhas e fui morar de novo no meu tonel, muito
satisfeito de voltar a viver livre. Mas Tom Sawyer resolveu vir me procurar, dizendo que ia formar uma
quadrilha de assaltantes e que eu só podia entrar se voltasse para a casa da viúva e tivesse uma vida
respeitável. Aí eu voltei. (FLAKSMAN, 1997, p. 17)
41
“Imagine! Roubar gado e coisas assim não é assalto, é só furto, coisa de ladrão comum”, disse Tom
Sawyer. “E a quadrilha da gente não vai ser um bando de ladrões comuns.[...]” (Ibidem, p. 24)
48
Dessa pequena fala, temos alguns dos desvios da norma no uso do ‘ain’t’ e da
dupla negativa. Tom não apresentará uma fala com desvios exclusivos, como Jim os
tem, mas um discurso marcado pelo afastamento da língua-padrão encontrado também
nas falas de Jim e Huck. Por ora, esses exemplos nos parecem suficientes, uma vez que
retornaremos às falas de Tom na seção 3, e passaremos agora a Huck.
2.2.3 Huck e a civilização
Se Twain é parcimonioso na descrição dos aspectos físicos de Jim, quanto a
Tom e Huck ele nem sequer nos apresenta um traço. Os motivos podem ser em função
de os leitores já conhecerem as personagens e de o livro conter ilustrações
42
.
Huck, como já observamos, inicia as suas aventuras fugindo da civilização. No
entanto, ele desiste facilmente de romper com a viúva Douglas mediante um pedido e
promessa de Tom Sawyer, como vimos na citação anterior.
O fato de Huck voltar para a casa da viúva tão prontamente por um simples
pedido de Tom dá-se por trata-se do pedido de um companheiro por quem Huck tem
grande admiração, a qual será reiterada em muitos trechos da narrativa, demonstrando
coerência nas atitudes de Huck; porém, não os transcreveremos por não fazerem parte
de nosso objetivo, que é compreender as rupturas de Huck com a civilização.
Embora Huck volte para a sociedade, sua volta é temporária. Do capítulo
primeiro ao quarto, há uma acomodação de Huck ao mundo civilizado, marcada por
certa tensão entre resistência e aceitação. No primeiro capítulo, Huck ainda sente
42
A primeira edição de As aventuras de Huckleberry Finn continha 174 ilustrações feitas por E. W.
Kemble, ilustrador escolhido por Twain. (INGE, 1984, p. 247)
49
dificuldade em se moldar e em aprender a ler e escrever.
[...] Miss Watson, a tolerable slim old maid, with goggles on, had just
come to live with her, and took a set at me now, with a spelling-book.
She worked me middling hard for an hour, and then the widow made
her easy up. I couldn’t stood it much longer. (TWAIN, 1994a, p.
12)
43
No entanto, no quarto capítulo, a escola não lhe parece tão abominável como
parecia a princípio.
Well, three or four months run along, and it was well into the winter,
now. I had been to school most all the time, and could spell, and read,
and write just a little, and could say the multiplication table up to six
times seven is thirty-five, and I don’t reckon I could ever get any
further than that if I was to live for ever. I don’t take no stock in
mathematics, anyway. (TWAIN, 1994a, p. 23-24)
44
Finalmente, no quinto capítulo, Huck demonstra indícios de gostar da nova vida:
At first I hated the school, but by and by I got so I could stand it.
Whenever I got uncommon tired I played hookey, and the hiding I
got next day done me good and cheered me up. So the longer I went
to school the easier it got to be. I was getting sort of used to the
widow’s way too, and they warn’t so raspy on me. Living in the
house, and sleeping in a bed, pulled on me pretty tight, mostly, but
before the cold weather I used to slide out and sleep in the woods,
sometimes, and so that was a rest to me. I liked the old ways best, but
I was getting so I liked the new ones too, a little bit. The widow said I
was coming along slow but sure, and doing very satisfactory. She
said she warn’t ashamed of me. (TWAIN, 1994a, p. 24)
45
A essa altura do romance, chegamos a acreditar que Huck vai ceder aos encantos
da civilização e aceitá-la para si. Contudo, no quinto capítulo, novos fatos colocam
Huck diante de sua origem, ou seja, de Pap Finn. Do capítulo quinto ao sétimo, Huck
43
[...] a srta. Watson, uma solteirona magra, de óculos, que tinha vindo morar com ela e aí resolveu me
dar aulas com uma cartilha. Me fez estudar mais ou menos uma hora, e aí a viúva disse para ela parar um
pouco. Eu já não agüentava mais. (FLAKSMAN,1997, p. 18)
44
Bem, três ou quatro meses se passaram, e o inverno ia bem adiantado. Fui à escola quase todo dia, e eu
já sabia ler, escrever um pouco e recitar a tabuada até seis-vez-sete-trinta-e-cinco. Acho que só ia
conseguir passar daquilo se ficasse lá pelo resto da vida. Eu não tenho o menor jeito para a matemática.
(Ibidem, p. 31)
45
No começo eu detestava a escola, mas depois acabei até achando que dava para agüentar. No dia que eu
ficava cansado demais matava aula, e a surra que eu levava no dia seguinte me fazia até bem e me
deixava mais animado. Quanto mais eu ia à escola, mas fácil a coisa ia ficando. Eu também já estava
achando que o modo de viver da viúva era mais normal; aquela vida já não me parecia tão insuportável.
Para mim, morar numa casa e dormir numa cama continuava a ser meio chato, mas antes do inverno
chegar eu às vezes saía de mansinho e ia dormir na mata, o que era sempre uma mudança. Eu ainda
gostava mais da minha vida antiga, mas aos poucos fui começando a gostar também da nova, pelo menos
um pouco. A viúva dizia que eu estava me acostumando devagar e sempre, e que cada dia eu melhorava
um pouco. E que não passava vergonha por minha causa. (Ibidem, p. 31)
50
vai questionar seu novo estilo de vida: o Huck civilizado versus o Huck não-civilizado.
Vamos nos deter um pouco mais no encontro de Huck com seu pai.
Pap Finn, um bêbado cruel, sabendo da nova situação do filho, rico e sendo
educado, vai visitá-lo. A idéia de ter um filho que freqüenta a escola e recebe educação
religiosa o horroriza. Ele zomba das transformações sofridas por Huck, no mesmo
capítulo 5:
‘Starchy clothes – very. You think you’re a good deal of a big-bug,
don’t you?’
‘Maybe I am, maybe I ain’t,’ I says.
‘Don’t you give me none o’your lip’, says he. ‘You’ve put on
considerble many frills since I been away. I’ll take you down a peg
before I get done with you. You’re educated, too, they say; can read
and write. You think you’re better’n your father, now, don’t you,
because he can’t? I’ll take it out of you. (TWAIN, 1994a, p. 27, grifo
do autor)
46
O desprezo de Pap Finn diz respeito ao histórico de sua família, ou seja, ele,
assim como seus familiares, nunca se deixou ‘contaminar’ completamente pela
civilização, como está acontecendo com Huck. Sua primeira reação é de dúvida, quanto
ao fato de Huck conseguir ou não ler, e posteriormente precisa de uma confirmação para
saber que atitude tomar em relação ao filho.
‘Well, I’ll learn her [the widow] how to meddle. And looky here –
you drop that school, you hear? I’ll learn people to bring up a boy to
put on airs over his own father and let on to better’n what he is. You
lemme catch you fooling around that school again, you hear? Your
mother couldn’t read, and she couldn’t write, nuther, before she died.
None of the family couldn’t, before they died. I can’t; and here you’re
a-swelling yourself up like this. I ain’t the man to stand it – you hear?
Say – lemme hear you read.’
47
(TWAIN, 1994a, p. 28, grifo do autor)
46
“Roupa engomadinha – muito bem. Quer dizer que agora você acha que é muito importante, não é?”
“Pode ser que sim, pode ser que não”, disse eu.
“Não me venha com essa conversa”, disse ele. “Você ficou todo cheio de histórias depois que eu fui
embora. Por mim, eu te dava uma surra agora mesmo, antes de mais nada. E dizem também que você foi
para a escola; que aprendeu a ler e escrever. Deve estar achando que é melhor que o seu pai, só porque ele
não sabe, não é? Pois eu vou tirar essa idéia da sua cabeça.” (FLAKSMAN, 1997, p. 35)
47
“Bom, pois eu vou ensinar ela [a viúva] a não se meter. E olhe aqui – você vai sair da escola, viu? Eu
vou ensinar essas pessoas que elas não podem meter na cabeça de um menino a idéia que ele é melhor
que o pai dele, e que pode ficar melhor ainda. Eu não quero te ver nunca mais naquela escola, ouviu? A
sua mãe morreu sem ter aprendido a ler e nem escrever. Ninguém da família aprendeu. Eu mesmo nunca
aprendi; e aí vem você e me aparece com o rei na barriga. Eu não vou deixar – ouviu bem? Mas primeiro
deixe eu ver você lendo.” (Ibidem, p. 35)
51
A confirmação das suspeitas de que Huck sabe mesmo ler começa a criar em
Pap Finn a certeza de afastá-lo da civilização:
‘It’s so. You can do it. I had my doubts when you told me. Now
looky here; you stop that putting on frills. I won’t have it. I’ll lay for
you, my smarty; and if I catch you about that school I’ll tan you
good. First you know you’ll get religion, too. I never see such a son.
(TWAIN, 1994a, p. 28)
48
Depois de entrar em conflito com a sociedade de Saint Petersburg, Pap Finn é
contundente quanto ao destino do filho, seqüestra-o e leva-o para um espaço não-
civilizado, no capítulo 6:
He said he would show who was Huck Finn’s boss. So he watched
out for me one day in the spring, and catched me, and took me up the
river about three mile, in a skiff, and crossed over to the Illinois shore
where it was woody and there warn’t no houses but an old log hut in
a place where the timber was so thick you couldn’t find it if you
didn’t know where it was. (TWAIN, 1994a, p. 31)
49
Huck volta ao seu primeiro estado natural e começa a refletir sobre o que viveu
até então no mundo civilizado, ainda no capítulo 6:
It was kind of lazy and jolly, laying off comfortable all day, smoking
and fishing, and no books nor study. Two months or more run along,
and my clothes got to be all rags and dirt, and I didn’t see how I’d
ever got to like it so well at the widow’s, where you had to wash, and
eat on a plate, and comb up, and go to bed up regular, and be for ever
bothering over a book and have old Miss Watson pecking at you all
the time. I didn’t want to go back no more. I had stopped cussing
because the widow didn’t like it; but now I took it again because pap
hadn’t no objections. It was pretty good times up in the woods, there,
take it all around. (TWAIN, 1994a, p. 32)
50
48
“É verdade. Você sabe ler mesmo. Eu não acreditei quando me contaram. Olhe aqui; pode parar com
essa história de ficar metido a besta. Eu não vou deixar. Vou ficar de olho em você, seu espertinho; e se
eu pegar você indo para essa escola vou te dar uma bela surra. Daqui a pouco vão querer te ensinar
religião também. Não quero que façam isso com o meu filho.” (FLAKSMAN, 1997, p. 35)
49
Disse que ia mostrar quem é que mandava em Huck Finn. Um dia de primavera, ele ficou me esperando
de tocaia, depois me agarrou e me levou com ele uns cinco quilômetros rio acima, num bote, e atravessou
para a outra margem, no estado do Illinois, que era coberta de árvores e onde não tinha nenhuma casa
além de uma velha cabana de troncos de madeira num lugar onde a mata era tão fechada que só quem
sabia onde ficava conseguia encontrar. (Ibidem, p. 39)
50
Era uma vida muito sossegada e confortável, o dia inteiro deitado, fumando e pescando, sem livros nem
estudo. Dois meses ou mais se passaram, minha roupa ficou toda suja e esfarrapada, e eu não conseguia
entender como é que tinha chegado a gostar de morar na casa da viúva, onde eu era obrigado a tomar
banho, comer no prato, me pentear, ir para a cama e acordar na hora certa e ainda aturar as implicâncias
da srta. Watson o tempo todo. Eu não queria mais voltar para lá. Eu tinha até parado de praguejar, porque
a viúva não gostava; mas agora eu comecei de novo, porque o meu pai não ligava. No fim das contas, a
vida ali na mata até que era boa. (Ibidem, p. 39)
52
Porém, após passar por maus-tratos em conseqüência das bebedeiras e do
‘delirium tremens’ do pai, Huck arquiteta um plano de fuga e vai para longe do pai e
também de Saint Petersburg.
I took the axe and smashed in the door. I beat it and hacked it
considerable, a-doing it. I fetched the pig in and took him back nearly
to the table and hacked into his throat with the axe, and laid him
down on the ground to bleed – I say ground, because it was ground –
hard packed, and no boards. Well, next I took and old sack and put a
lot of big rocks in it – all I could drag – and I started it from the pig
and dragged it to the door and through the woods down to the river
and dumped it in, and down it sunk, out of sight. You could easy see
that something had been dragged over the ground. I did wish Tom
Sawyer was there, I knowed he would take an interest in this kind of
business, and throw in the fancy touches. Nobody could spread
himself like Tom Sawyer in such a thing as that. (TWAIN, 1994a, p.
40, grifo do autor)
51
Após essa fuga, Huck deixa todos para trás, pois “They won’t ever hunt the river
for anything but my dead carcass. They’ll soon get tired of that, and won’t bother no
more about me”
52
(TWAIN, 1994a, p. 41), e a escolha pela ilha Jackson é a melhor
opção possível já que “Jackson’s Island is good enough for me; I know that island pretty
well, and nobody ever comes there.” (TWAIN, 1994a, p.41)
53
A partir do capítulo 8, Huck assume de vez seu caráter não-civilizado e fica
sujeito apenas às leis da natureza, representadas pelo rio Mississipi, o qual irá lhe
proporcionar tudo: o que comer, onde viver e como fugir dos inúmeros larápios do
mundo civilizado, e a convivência com o companheiro de viagem e aventuras, Jim.
Desse capítulo em diante, a cada aventura, Huck só faz confirmar seu espírito livre de
51
Peguei o machado e arrombei a porta. Dei várias machadadas, deixando a porta bem arrebentada.
Arrastei o porco para dentro da cabana até perto da mesa, cortei o pescoço dele com o machado e deixei
ele sangrar bastante no chão – que era de terra batida, sem assoalho de tábuas. Depois peguei um saco
velho e enchi de pedras grandes – todas que eu consegui carregar – e comecei a arrastar a partir de onde o
porco estava no chão, indo até a porta e, passando pelas árvores, até a beira do rio; aí joguei o saco na
água, e ele afundou na mesma hora. Era fácil ver que alguma coisa pesada tinha sido arrastada pelo chão.
Eu queria que Tom Sawyer estivesse ali, sabia que ele ia se interessar por aquele tipo de coisa e que ia ter
idéias diferentes. Ninguém melhor do que Tom Sawyer naquele tipo de situação. (FLAKSMAN, 1997, p.
47-48)
52
No rio, só iam procurar o meu corpo. Mas iam acabar se cansando logo, e aí me deixavam em paz.
(Ibidem, p. 48 e 50)
53
A ilha Jackson era um bom lugar; eu conheço bem a ilha, e ninguém nunca vai lá. (Ibidem, p. 50)
53
regras sociais em harmonia com o espírito sedento de liberdade do companheiro Jim.
Huck e Jim voltam a um estado que podemos chamar de primordial, claramente
manifesto no seguinte excerto:
Soon as it was night, out we shoved; when we got her out to about the
middle, we let her alone, and let her float wherever the current
wanted her to; then we lit the pipes, and dangled our legs in the water
and talked about all kinds of things – we was always naked, day and
night, whenever the mosquitoes would let us – the new clothes
Buck’s folks made for me was too good to be comfortable, and
besides, I didn’t go much on clothes, nohow.
54
(TWAIN, 1994a,
p.120, grifo nosso)
Quanto às características lingüísticas de Huck, pelas passagens vistas, podemos
fazer uma breve descrição desses aspectos, principalmente em nível morfossintático:
A flexão dos verbos no presente dá-se na terceira pessoa do singular: ‘Maybe I
am, maybe I ain’t,’ I says.
O passado de verbos irregulares torna-se regular: I knowed he would take [...],
[...] and catched me [...]
O verbo ‘be’ no passado negativo assume sempre a forma: warn’t, independente
da pessoa verbal: They warn’t raspy on me [...], she said she warn’t ashamed
of me.
Diante do exposto, podemos perceber que há distinção entre as três personagens,
nos três níveis de representação, assim como na forma com que elas se relacionam com
Saint Petersburg: Tom luta contra as normas impostas por meio da imaginação; Jim
foge para tentar viver em algum estado em que a escravidão já tenha sido abolida; e
Huck foge para não ser civilizado. Percebemos que entre Huck e Jim há uma grande
54
Assim que anoitecia, a gente se afastava da margem; quando a jangada chegava mais ou menos no meio
do rio, a gente deixava ela seguir sozinha, para onde a correnteza quisesse levar; aí a gente acendia os
cachimbos, enfiava as pernas na água e ficava conversando sobre tudo – a gente andava o tempo todo sem
roupa, dia e noite, sempre que os mosquitos deixavam – as roupas novas que os pais do Buck tinham
mandado fazer para mim eram boas demais para serem confortáveis, e além disso eu nunca fui muito de
gostar de roupa mesmo. (FLAKSMAN, 1997, p. 137)
54
harmonia e suas condutas estão em descompasso com as atitudes das outras
personagens. Em um plano mais amplo, podemos dizer que estão em desarmonia com a
sociedade. Assim, vemos no afastamento da civilização por parte das nossas
personagens, principalmente o de Huck e Jim, a representação do distanciamento de
todos os padrões, inclusive o das normas gramaticais, pois eles não servem às
personagens. De fato, todas as personagens do livro usam alguma forma de linguagem
não-padrão. Vemos, assim, no uso dos dialetos, um elemento de coesão lingüística
assim como o rio Mississipi é o elo entre as aventuras. Se não bastassem todos os
componentes analisados, Twain ainda nos oferece um explanatório para justificar a
criação dos dialetos usados pelas personagens, que será analisado a seguir.
2.3 O explanatório
Mark Twain inicia As aventuras de Huckleberry Finn com duas notas, sendo a
primeira delas uma ameaça a quem tentar encontrar tema, moral e enredo na história e a
segunda uma explicação do porquê dos dialetos usados na história.
NOTICE
Persons attempting to find a motive in this narrative will be
prosecuted; persons attempting to find a moral in it will be banished;
persons attempting to find a plot in it will be shot.
BY ORDER OF THE AUTHOR
per
G.G., CHIEF OF ORDNANCE
55
(TWAIN, 1994a, p. 5, grifo do
autor)
A primeira nota traz o tom burlesco próprio de Twain; contudo, não iremos nos
55
AVISO
Se alguém tentar encontrar um tema nesta narrativa, será processado; se tentar encontrar uma moral, será
banido; se tentar encontrar um enredo, será fuzilado.
POR ORDEM DO AUTOR
através de
G.G., CHEFE DA INTENDÊNCIA (FLAKSMAN, 1997, p. 16)
55
ater a ela, pelo fato de sua interpretação nos levar a indagações que não fazem parte do
foco deste trabalho, ou seja, o de usar os dialetos na tradução. Assim, seguiremos para a
próxima nota.
A segunda nota chamada ‘explanatório’ expõe ao leitor como os dialetos usados
pelo autor distinguem uma personagem da outra e, portanto, tornam-se essenciais para a
compreensão das personagens.
EXPLANATORY
In this book a number of dialects are used, to wit: the Missouri Negro
dialect; the extremest form of the backwoods South-Western dialect;
the ordinary ‘Pike-County’ dialect; and four modified varieties of this
last. The shadings have not been done in a haphazard fashion, or by
guess-work; but painstakingly, and with the trustworthy guidance and
support of personal familiarity with these several form of speech.
I make this explanation for the reason that without it many readers
would suppose that all these characters were trying to talk alike and
not succeeding.
56
THE AUTHOR
(TWAIN, 1994a, p. 6)
O simples fato de Mark Twain ter feito uma nota para explicar a função dos
diferentes dialetos usados por suas personagens – a comunicação efetiva entre elas –
esclarece-nos a respeito de sua relevância e da necessidade de entendê-la, assim com de
traduzi-la.
A importância do explanatório de Twain é explorada por Judith Lavoie (1994),
em seu artigo Problèmes de traduction du vernaculaire noir américain: le cas de The
Adventures of Huckleberry Finn. Lavoie vê o explanatório como um plano estético;
segundo ela, o plano descrito por Twain é mimético quando ele reescreve os dialetos.
56
“EXPLANATÓRIO
Neste livro são usados vários dialetos, a saber: o dialeto negro do Missouri; a versão mais extrema do
dialeto dos rincões distantes do Sudoeste; o dialeto corrente do ‘Pike-County’ [esta região, chamada
‘Terra de Pike’ em homenagem a um explorador americano do início do século XIX, corresponderia, em
termos grosseiros, à região ribeirinha do Mississipi a sudoeste de Saint Louis]; e quatro variedades
modificadas deste último. As diferentes nuances não foram reproduzidas ao acaso, ou na base do palpite;
mas à custa de muito trabalho e com o apoio e a orientação de uma familiaridade pessoal com essas várias
maneiras de falar.
Dou esta explicação porque, sem ela, muitos leitores poderiam supor que todos esses personagens só
estavam tentando falar da mesma forma, sem jamais conseguir.
O AUTOR.” (FLAKSMAN, 1997, p.11.)
56
Outro aspecto que chama a atenção da autora é a explicação contida no último
parágrafo, por tratar-se de uma estratégia voltada à recepção do texto para o leitor, que
nesse caso ela julga ser o tradutor.
Considerando a posição do tradutor, assumimos que a nota seja traduzida, sendo
ela um projeto estético ou não, pois a nota faz parte da ficção. Ao traduzi-la, o tradutor
compromete-se com o leitor, pois revela a este as intenções do autor. Dessa forma,
torna-se capital a tentativa de, pelo menos, passar a idéia do que o autor fez no texto
original, criando, assim, dialetos na língua de chegada, se o tradutor não estiver atrelado
a normas editorais que limitem sua ação na tradução.
Vejamos agora o tratamento dado ao explanatório em algumas das traduções
publicadas. Como ele representa uma dificuldade para o tradutor, este tem tomado as
seguintes posições: o de ignorá-lo ou de traduzi-lo. No primeiro caso, quando o tradutor
ignora o explanatório, ele faz uso da linguagem padrão sem ter de explicar essa escolha
ao leitor. Há alguns exemplos desse caso, como as traduções para o português do Brasil
dos seguintes tradutores: Monteiro Lobato, Alfredo Ferreira e Alex Marins, dentre
outros
57
, e de Suzanne Nétillard
58
para o francês. No caso da opção pela tradução, o
tradutor ou cria o dialeto literário para estar de acordo com a nota, ou tenta explicar a
estratégia que seguirá, como o fez Sergio Flaksman. Ainda uma combinação das duas
posições tomadas acima foi feita pelo tradutor francês André Bay, cuja tradução do
explanatório aparece em uma ‘nota sobre a tradução’; porém, Bay não coloca a nota em
primeira pessoa, como no original, mas em terceira. Assim, ele explica o que Twain fez
com a linguagem e diz que sua tradução vai sempre que possível usar as regras
57
Há também a tradução de Herberto Sales, analisada por Michelangelo Di Vito.
58
A análise da tradução de Suzanne Nétillard, assim como a de André Bay, é feita por Judith Lavoi no
artigo Problèmes de traduction du vernaculaire noir américain: le cas de The Adventures of Huckleberry
Finn, que aparece na seção 3 desta dissertação.
57
gramaticais do francês
59
.
Lavoie menciona David R. Swell, especialista na linguagem na obra de Mark
Twain, e apresenta a interpretação feita por ele dessa nota. Para Swell, o plano de Twain
é diferente de suas pretensões empíricas sugeridas e, além disso, a explicação do último
parágrafo dá-se para evitar críticas a uma má criação do dialeto literário (SWELL apud
LAVOIE, 1994, p. 119-120)
60
.
Em contrapartida, e também com respeito à criação dos dialetos de Twain, em
Dialect and Dichotomy: Literary Representations of African American Speech, Lisa
Cohen Minnick (2004, p. 66) que desenvolve um estudo usando a Lingüística de Corpus
para examinar as falas de Jim, especificamente no capítulo 4 de seu livro, em
comparação com falas da comunidade afro-americana usuária do ‘African American
English’ (AAE, doravante), afirma:
The consistency with which Twain incorporates dialectal features in
Jim’s speech throughout the novel, along with minimal examples of
stereotyped features, reveal that Twain was a sensitive (if not
flawless) interpreter of the phonology and grammar associated with
black speech.
61
Se as observações de Lavoie, Sewell ou Minnick estão corretas ou não, o que
fica evidente é a divergência de opiniões quanto às afirmações de Twain no
explanatório, assim como em relação à criação dos dialetos. Porém, temos de fato uma
nota que registra uma escolha do autor ao criar suas personagens e, por fazer parte da
obra, ela não deve ser ignorada.
59
“En employant systématiquement le style parlé, Mark Twain, en autodidacte conscient de ses limites, a
opéré une véritable révolution dans la littérature américaine, il lui a permis d’être enfin elle-même et non
plus une branche de la littérature anglaise. Dans la présente traduction, nous nous sommes efforcés [sic]
de conserver au récit son naturel un peu débraillé, familier, sans aller jusqu’à l’argot et en respectant
autant que possible les règles de la grammaire” (BAY apud LAVOIE, 1994, p. 121).
60
“Despite the apparent empirical pretensions of the ‘Explanatory’ note to Huckleberry Finn, Twain’s
project was different: he created a literary simulacrum of linguistic diversity that exaggerates and stylizes
the heteroglossic interweaving of speech types in real societies. (SEWELL apud LAVOIE, 1994, p. 119)
[…] [Sewell] affirme pour sa part qu’il [Twain] a ajouté cette note pour ne pas être accusé de mal
maîtriser les sociolectes littéraires ” (LAVOIE, 1994, p. 120).
61
“A consistência com que Twain incorpora características dialetais na fala de Jim no romance todo,
junto a exemplos mínimos de características estereotipadas, revela que Twain foi um interprete sensível
(senão perfeito) da fonologia e gramática associadas à fala negra. ”
58
Como anteriormente visto, ao fazer de Huck e Jim as personagens principais em
Huckleberry, Twain dá voz a um pária, filho do bêbado da aldeia (Huck) e a um escravo
(Jim). Por serem tais personagens representantes de uma classe social de menor
prestígio, torna-se coerente que suas falas representem igualmente variedades menos
prestigiadas da língua.
Em Estudos de Língua oral e escrita, Dino Preti (2004, p. 13, grifo do autor)
afirma:
Quando falamos em prestígio social, podemos lembrar que a língua
funciona, numa sociedade, como uma marca social de um grupo,
como um elemento identificador, à semelhança do que ocorre com o
vestuário. Há, inegavelmente, roupas que são índices de maior
prestígio social para seus usuários. Não se trata propriamente de
roupas ‘superiores’, mas que são julgadas como tal pela comunidade,
em razão de uma série de motivos, que vão desde o fato de serem
preferidas pelas pessoas de condição e status social mais elevado, até
o fato de estarem ligadas a uma elite social, assim considerada pela
própria sociedade.
Nesse paralelo feito por Preti entre linguagem e vestimenta, devemos
primeiramente compreender que aquilo que a sociedade julga de maior ou menor
prestígio geralmente está associado a fatores econômicos e não lingüísticos. Além disso,
a citação acima reforça a idéia de as personagens de Huckleberry terem sido
adequadamente representadas na obra original mediante os dialetos e, portanto,
acreditamos que o tradutor deva tentar criar, para as personagens, uma língua não-
padrão mais condizente com seu status social. Para tanto, serão discutidos os usos de
linguagem padrão, assim como de não-padrão na tradução, nas seções 3, 4 e 5. Por ora,
voltaremos à segunda nota de Twain.
Como o explanatório refere-se à representação da língua falada na escrita, em
primeiro lugar, vamos verificar como Twain constrói a oralidade na narração de Huck e
nos falares das outras personagens, para, posteriormente, na seção 3, discutirmos os
dialetos e suas implicações nessa obra.
59
Como vimos no primeiro parágrafo do explanatório, Twain focaliza a sua
criação de dialetos; no segundo, ele volta-se para o leitor e justifica o uso dos diferentes
dialetos mencionados anteriormente. Assim, ao lermos o segundo parágrafo, no papel
de leitores de literatura, aceitamos naturalmente o fato de as personagens falarem. E, se
aceitamos o fato de elas falarem, conseqüentemente significa que podemos ouvi-las.
Mas, afinal, trata-se de um texto escrito. O que ocorre para não questionarmos a
explicação de Twain é o fato de que, como leitores de literatura, estamos acostumados a
‘ouvir as personagens falarem’. Na verdade, aprendemos a ‘ouvir’ os textos literários
com os olhos, percebendo nas imagens lidas (palavras) os sons já conhecidos.
Twain, na verdade, faz uso da oralidade no texto literário, e para entendermos o
funcionamento dela e quais as estratégias usadas por ele, no intuito de conseguir na
escrita o efeito de um texto falado, faz-se necessário primeiramente entender algumas
diferenças básicas entre fala e escrita.
2.4 Língua falada e língua escrita
Aprendemos a falar ainda bebês com nossos pais e familiares. Na comunicação
com eles e, principalmente com a mãe, a criança adquire a fala, repetindo aquilo que
ouve; assim, aos poucos vai dominando a língua, essa aquisição ocorre em um contexto
informal. Aprendemos a escrever na escola com um professor, em um contexto formal,
e mesmo que aprendamos a escrever em casa, há uma técnica a ser passada pelo
professor e aprendida pelo aluno e esse processo não ocorre de forma natural como o da
fala.
Essa aquisição da fala (situação informal) versus a aprendizagem da escrita
60
(situação formal), acabou fazendo com que a escrita fosse vista como algo de maior
prestígio, pois nem todas as pessoas têm acesso à aprendizagem formal. Dessa forma, a
escrita acabou ganhando uma posição elevada na vida social; no entanto, esse valor não
vem da língua escrita em si, mas do domínio que ela representa para a sociedade, ou
seja, o papel de maior destaque nas sociedades letradas. A respeito da escrita, em Da
fala para a escrita: atividades de retextualização, Luiz Antônio Marcuschi (2001, p. 16-
17, grifo do autor)
afirma que:
[a escrita] [...] Não por virtudes que lhe são imanentes, mas pela
forma como se impôs e a violência com que penetrou nas sociedades
modernas e impregnou as culturas de um modo geral. Por isso, friso
que ela se tornou indispensável, ou seja, sua prática e avaliação social
a elevaram a um status mais alto, chegando a simbolizar educação,
desenvolvimento e poder.
Ainda seguindo o pensamento de Marcuschi, na comparação entre fala e escrita
não há primazia, nem a fala é superior à escrita e nem a escrita à fala, a não ser que
levemos em consideração o tempo de exisncia entre elas, no qual a fala antecede a
escrita. Além disso, existem, até hoje, povos com tradição essencialmente oral, mas não
existe nenhum povo cuja tradição seja exclusivamente escrita. Nosso interesse aqui é
deixar claro o fato de não haver hierarquia entre fala e escrita, assim como evidenciar
que não se trata de ser melhor ou pior, superior ou inferior; mas sim que fala e escrita
são apenas diferentes. Elas são manifestações de duas modalidades da língua: oralidade
(fala) e letramento (escrita). Hoje, com os avanços da lingüística, a fala tem sido
estudada com parâmetros diferentes dos até recentemente usados. Também é de nosso
interesse entender como cada uma funciona para posteriormente compreender como o
escritor constrói na escrita um texto próximo da oralidade.
Assim, além das diferenças vistas anteriormente, outra distinção entre a língua
falada e a língua escrita está não apenas nos elementos básicos que as constituem, ou
seja, o som relacionado à fala e a imagem ligada à escrita. Em Análise de Textos Orais,
61
de acordo com Ângela C. Souza Rodrigues (In: PRETI, 2003, p. 36) do projeto
NURC/SP
62
, as diversidades entre elas “resultam de diferenças entre processos de falar
e de escrever, ou entre condições de produção do texto falado e do escrito.”
Uma conversação, por exemplo, desenrola-se acerca de um assunto ou tópico
por dois ou mais interlocutores que se alternam nos papéis de ‘falante’ e ‘ouvinte’, em
um contexto extralingüístico, como: a situação do momento, as circunstâncias em que
ocorre o evento, além dos participantes com suas características (físicas, idade, sexo,
nível escolar, etc.). À medida que o tópico se desenvolve, há envolvimento e interação.
A situação da conversação pode ocorrer face a face ou não, como no caso da conversa
telefônica. Assim, o espaço ocupado pelos interlocutores não é condição essencial para
que aconteça a conversação, mas sim a condição temporal ou o tempo de realização da
conversação. O processo de interação da fala abrange outras informações além do ‘texto
falado’, como: gestos, expressões faciais ou atitudes corporais, pausas, hesitações,
traços prosódicos (variação na altura, intensidade, tom, duração e ritmo da fala), que,
“combinados com os dados verbalizados, completam o quadro da interação.”
(RODRIGUES, In: PRETI, 2003, p. 22). Como a fala do dia-a-dia ocorre em situações
informais, as pessoas tendem a desvalorizá-la quando comparam-na à escrita, pois
acreditam, de maneira equivocada, que a fala não possui gramática e nem planejamento.
Nesse tocante, podemos melhor compreender algumas de suas características lendo a
afirmação de Dino Preti (2004, p. 125):
Um consenso a que se chegou nesses estudos é que a língua falada
não é ‘desorganizada’ como se costumava afirmar e tem uma
gramática própria que os falantes aprendem no uso diário e cujas
categorias de análise diferem da gramática da língua escrita. Assim,
na organização textual e interacional da fala, temos marcadores
conversacionais, repetições e paráfrases, parentéticas, sobreposições,
anacolutos, hesitações, correções, freqüências de construções
impessoais de fundo atenuador, etc.
62
O projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta, conhecido como Projeto NURC, tem âmbito
nacional e realiza estudo lingüístico de língua falada.
62
A fala se organiza da maneira colocada acima, e a escrita, por sua vez, assume
algumas características similares e tamm distintas da fala. Tendo por base um texto
literário, por exemplo, este abordará um assunto, assim como foi visto na fala, porém,
além de o escritor construir seu texto sozinho, o contexto sobre o qual a história está
sendo escrita, assim como os elementos paralingüísticos, precisa ser explicitado pelo
escritor por meio de descrições. Dessa forma, a situação tem de ser fornecida pelo
contexto da obra, por isso não há interação entre escritor e leitor. Os traços prosódicos
na escrita limitam-se a sinais de pontuação, pois eles não dão conta das inúmeras
sutilezas que a fala produz. Além disso, o escritor pode reescrever seu texto quantas
vezes quiser até julgá-lo pronto para ser apresentado ao leitor, não revelando no texto
final as marcas de suas pesquisas e revisões. A escrita não é imediata, como a fala, por
isso o escritor não tem um retorno instantâneo a respeito de seu texto. O escritor e o
leitor não ocupam o mesmo espaço ao mesmo tempo. A não ser no caso dos bate-papos
por computador, tão comuns no nosso dia-a-dia, onde não ocorrer mais o ato solitário de
quem escreve e a não-interação com quem lê, pois eles são exemplos típicos da
interação da escrita entre duas pessoas que escrevem. Ainda citando Dino Preti (2004, p.
8), trata-se, na verdade, de “textos indecisos entre uma modalidade e outra”, ou seja,
entre a modalidade da escrita e da fala.
Como visto, fala e escrita sofrem processos diferentes para serem realizadas;
porém, essas diferenças não podem ser vistas de forma estanque. Marcuschi (2001, p.
46) escreve a respeito do assunto da seguinte maneira: “Fala e escrita são diferentes,
mas as diferenças não são polares e sim graduais e contínuas. São duas alternativas de
atualização da língua nas atividades sócio-interativas diárias.”. Segundo ele, teorias
lingüísticas mais recentes procuram ver as duas modalidades da língua, a fala e a escrita,
como um continuum, e não mais como dois pólos opostos, pois há textos falados
63
(conferências, por exemplo) que se aproximam da escrita, assim como textos escritos
que se aproximam da fala (cartas familiares). (MARCUSCHI, 2001, p. 35-43)
Uma vez que a fala e a escrita possuem características diferentes e são realizadas
de forma distinta, pode parecer estranho o fato de a fala estar presente na escrita.
A oralidade na língua escrita, e mais especificamente na escrita literária, é
realizada por intermédio de recursos usados pelo escritor para passar ao leitor a ilusão
de ele estar lendo ‘uma fala real’. Essa ilusão é construída por uma aproximação da
linguagem textual da realidade falada. O escritor vale-se de marcas da oralidade, como
repetições, frases coordenadas e curtas, marcadores conversacionais, digressões, dentre
outras, mas não faz uma ‘cópia’ da fala, como podemos constatar na afirmação de Preti
(2003, p. 249).
Como constitui uma manifestação escrita, a linguagem literária tem
afinidades maiores com essa modalidade de língua. Por mais que se
pretenda aproximá-la do fenômeno da oralidade, o escrito literário
pressupõe uma elaboração por parte do escritor, ainda mesmo quando
sua intenção seja a de aproximar o que escreve da naturalidade da fala.
Assim, podemos observar, na obra aqui estudada, que Mark Twain usa vários
recursos da língua falada na voz de Huck com o intuito de ‘conversar’ com o leitor. O
uso do ‘you’ e de verbos como ‘know’ e ‘say’ servem para chamar a atenção do leitor
em diferentes situações, como, por exemplo, para se apresentar
63
: “You don't know
about me [...]”; descrever lugares: “Well, as I was saying about the parlour [...]”; e
pessoas: “He was as kind as he could be - you could feel that, you know, and so you had
confidence.”; justificar ao leitor como ele memorizou um longo discurso: “This is the
speech - I learned it, easy enough, while he was learning it to the king […]”; confirmar
o que ele está dizendo sobre alguém, e nesse caso especifico o ‘rei’, e se justificar por
não saber imitá-lo: “he tried to talk like an Englishman; and he done it pretty well too,
63
Os exemplos apresentados da oralidade constrda por Twain não foram traduzidos pelo motivo de
estarmos usando as traduções de Huckleberry Finn do tradutor Sergio Flaksman, sendo que nem sempre
ele constrói a oralidade da mesma forma que Twain.
64
for a slouch. I can't imitate him, and so I ain't agoing to try to; but he really done it
pretty good.”
Todos os exemplos acima são ilustrativos de um ‘diálogo’ com o leitor. O
escritor usa marcadores conversacionais ‘you know’, ‘as I was saying’ para se
‘aproximar’ do leitor, num jogo de envolvimento.
Outro recurso da fala que Twain utiliza são as palavras onomatopaicas, como
podemos ver nos seguintes exemplos: “I hear an owl, away off, who-whooing [...]”
(C.1, p.13); “Well, after a long time I heard the clock away off in the town go boom -
boom - boom - twelve licks.” (C.1, p.13); “Directly, I could just barely hear a ‘me-yow!
me-yow!’ Down there.” (C.1, p.14); “[...] I would stay there all night, when I hear a
plunkety-plunk, plunkety-plunk [...]” (C.8, p.47); “[...] I hears a deep sound of ‘boom!’
away up in the river.” (C.8, p.44). Por meio dessas palavras, Mark Twain consegue um
efeito de sonoridade que parece ressoar nos nossos ouvidos de leitores.
Além disso, em nível morfossintático, Twain tende a usar orações coordenadas
em vez de subordinadas, além da repetição da conjunção aditiva ‘and’ ambas comuns na
fala. Nos seguintes trechos, selecionamos exemplos de orações coordenadas e da
conjunção ‘and’: “I was boss of it; it all belonged to me, so to say, and […]” (C. 8, p.
46); 4) “I slunk along another piece further, then listened again, and so on, and so on
[…]” (C.8, p.47); “[…] I fetched meal and bacon and coffee, and coffee-pot and frying-
pan, and sugar and tin cups, and the nigger was set back considerable, because he
reckoned it was all done with witchcraft.” (C. 8, p.49)
Quanto ao léxico informal, podemos notar o uso muito frequente de ‘phrasal
verbs’, vocabulário e expressões do dia-a-dia: “I lit out” (C.1, p.11); “but by-and-by she
let it out that Moses had been dead […]” (C.1, p.12); 3) “I don't take no stock in dead
people [...]” (C.1, p.12); 4) “[…] and I was in a sweat to get away […]” (C. 2, p.15);
65
“[…] and that nigger was corked up and had to take a back seat!” (C.2, p.16); “Then
when he had got pretty well stuffed, we laid off and lazied.” (C.8, p.49)
Além do que foi visto a respeito da oralidade, no explanatório temos a menção
do uso de sete dialetos, mostrando que tal oralidade foi criada tendo por núcleo
variedades lingüísticas da língua inglesa não-padrão. Nesse caso, a língua foi usada para
chamar a atenção do leitor na maneira de como as personagens exprimem-se, dando-lhe,
dessa forma, um papel de destaque. Podemos dizer que os dialetos assumem um papel
de protagonista na obra da mesma forma que Huck, Jim e Tom. Acreditamos também
terem eles um papel reivindicativo, a fim de mostrar aos leitores que a forma padrão da
língua não é a única existente, da mesma maneira que os falantes cultos não são os
únicos a fazerem parte da sociedade.
Mark Twain ao proferir acerca das diferenças entre o inglês da Inglaterra e o
inglês norte-americano demonstra o quanto a fala dos falantes incultos era importante
para ele e, portanto, deveria ser considerada. Podemos verificar a opinião de Twain na
seguinte apresentação de Frances Guthrie Emberson (apud TWAIN, 1935, p. 18), em
Mark Twain’s Vocabulary: a general survey:
Yes, that is true; but a nation’s language is a very large matter. It is
not simply a manner of speech obtaining among the educated
handful; the matter obtaining among the vast uneducated multitude
must be considered also. Your uneducated masses speak English, you
will not deny that; our uneducated masses speak American.
64
64
“Sim, isso é verdade; porém, a língua de uma nação é um assunto muito amplo. Não é simplesmente
uma forma de falar conseguida entre o punhado de pessoas cultas; a forma obtida entre a vasta multidão
de incultos também deve ser considerada. A sua maioria de incultos fala inglês, você não pode negar esse
fato; nossa maioria de incultos fala norte-americano.”
66
3 VARIEDADES LINGÜÍSTICAS, DIALETOS, DIALETOS LITERÁRIOS,
SOCIOLETOS, SOCIOLETOS LITERÁRIOS
Na seção anterior, vimos como as personagens Huck, Jim e Tom relacionam-se
com a civilização de modo a evitá-la, em maior ou menor grau, mostrando uma relação
não-padrão com a sociedade. Também vimos como a caracterização lingüística das
personagens por intermédio dos dialetos representa o não-padrão. Nesse paralelo entre
‘relação com a civilização’ e ‘uso de dialetos’, Twain expõe a coerência interna da
narrativa entre os papéis social e lingüístico desempenhados pelas personagens. Por
intermédio de algumas de suas declarações a respeito da gramática, assim como da
apreciação apresentada por estudiosos acerca dos dialetos falados por suas personagens,
vemos o quanto Twain não acredita em uma fala isenta de desvios das regras
gramáticas, assim como sua criação lingüística é respeitada.
Emberson (TWAIN apud EMBERSON, 1935, p. 12, grifo do autor) relata a opinião
de Mark Twain sobre a inexatidão gramatical que é exibida pela seguinte interpolação
na obra Life on the Mississippi (1883).
[...] I heard a Westerner, who would be accounted a highly educated
man in any country, say, ‘Never mind, it don’t make no difference,
anyway.’ A life-long resident who was present heard it, but it made
no impression upon her […] No one in the world speaks blemishless
grammar; no one has ever written it – no one, either in the world or
out of it (taking the Scriptures for evidence on a latter point);
therefore it would not be fair to exact grammatical perfection from
the people of the Valley; but they and all other people may justly be
required to refrain from knowingly and purposely debauching their
grammar.
65
65
“[...] Ouvi um residente do oeste dos EUA, que seria considerado um homem culto em qualquer país
que fosse, dizer ‘Não tem importância, isso num faiz diferença ninhuma.’ Uma residente, que sempre
morou no oeste e estava presente, ouviu o que ele disse, mas isso não surtiu nenhum efeito nela [...]
Ninguém no mundo fala uma gramática pura; ninguém jamais escreveu assim também – ninguém, seja
neste mundo ou fora dele (considerando as Escrituras como evidência sobre o segundo elemento);
portanto, não seria justo cobrar perfeição gramatical das pessoas do Vale; porém, pode-se justamente
solicitar delas e de todas as outras pessoas que se abstenham de forma inteligente e intencional de
debochar da sua gramática.”
67
Mais à frente Emberson (1935, p. 13-14, grifo nosso) transcreve o comentário
feito por Twain sobre tautologia e gramática.
I do not find that the repetition of an important word a few times –
say, three or four times – in a paragraph troubles my ear if clearness
of meaning is best secured thereby. But tautological repetition which
has no justifying object, but merely exposes the fact that the writer’s
balance at the vocabulary bank has run short and that he is too lazy to
replenish it from the thesaurus – that is another matter. It makes me
feel like calling the writer to account. […] I suppose we all have our
foibles. I like the exact word, and clarity of statement, and here and
there a touch of good grammar for picturesqueness.
66
Em relação à criação dos dialetos de Twain, De Voto (1977, p. 27) reconhece o
compromisso do autor em relação a essa criação anteriormente a Huckleberry:
Now, it is important that Mark made the American vernacular the
medium of a great novel. Even before that he had used local, class,
and racial dialects with immeasurably greater skill than anyone
before him in our literature.
67
Também Sloane (1988, p. 5), ao escrever sobre os dialetos usados em
Huckleberry, afirma:
The language pretends to be an accurate reflection of frontier
vernacular, and Twain’s dialectal accuracy has often been praised but
the language is actually a much more sophisticated tool. It raises the
novel beyond literary realism to a plane of natural idealism which
combines and embodies the higher forms of romanticism and realism
in literary humor.
68
A tessitura do texto de Mark Twain é construída mediante uma diversidade
lingüística, identificada por ele como os sete dialetos listados no explanatório, ou seja,
variedades do Sul dos Estados Unidos.
66
“Eu não acho que uma palavra importante repetida algumas vezes – digamos, três ou quatro vezes – em
um parágrafo doa os meus ouvidos, se uma maior clareza fica assegurada por meio desse procedimento.
Porém, a repetição redundante sem um objetivo que a justifique, senão meramente o fato de o saldo do
escritor no banco das palavras estar muito baixo e ele ser muito preguiçoso para completar o estoque com
elementos do dicionário de sinônimos – isso é outra história. Faz-me ter vontade de pedir explicações ao
escritor [...] Eu acredito que todos nós tenhamos nossas fraquezas. Eu gosto da palavra exata, e da clareza
de exposição e aqui e ali um toque de boa gramática para adicionar um toque pitoresco.”
67
“Agora, é importante que Mark tenha feito do vernáculo norte-americano o agente de um grande
romance. Mesmo antes disso, ele já tinha usado dialetos regionais, sociais e raciais com habilidade
imensuravelmente maior que qualquer outro antes dele na literatura norte-americana.”
68
“A língua simula ser um reflexo sagaz do vernáculo da fronteira, e a precisão dialetal de Twain sempre
foi elogiada, mas a língua é, na verdade, uma ferramenta muito mais sofisticada. Ela eleva o romance
além do realismo literário para um nível de idealismo natural, o qual combina e incorpora as formas mais
elevadas de romantismo e realismo no humor literário.”
68
Para melhor entender o significado de variedades lingüísticas, Evanildo Bechara,
citado por Dino Preti na obra Estudos de Língua Oral e Escrita (2004, p.16 ), estabelece
o ponto de partida para a discussão acerca de tais variedades de maneira sucinta com a
seguinte nota a respeito do falante culto, o qual deve ser “um poliglota da própria
língua”. Considerando ser um poliglota quem sabe ou fala muitas línguas, fica claro,
pela afirmativa, que existe uma variedade de ‘línguas’ dentro da mesma língua. Além
disso, Bechara refere-se ao falante culto, contrapondo, assim, a existência de um falante
inculto. Ainda seguindo esse pensamento, inferimos que a língua não é uniforme nem
homogênea, e o falante inculto não possui recursos para ser poliglota, pois está no pólo
oposto ao do falante culto. A distinção entre falante culto e inculto é estabelecida por
Dino Preti (2004, p. 15) da seguinte forma:
Teoricamente, poderíamos dizer que a grande diferença entre os
falantes cultos e os incultos está no fato de os últimos não disporem
de estratégias lingüísticas de variação, nos diálogos em que se
envolvem, não terem recursos para dialogar com interlocutores de
diferentes grupos sociais e se fazerem entender ou impor seus
argumentos, o que é o caso, também, das crianças.
Se já temos uma explicação a respeito de como os falantes culto e inculto
expressam-se, resta-nos ainda saber qual(is) variedade(s) lingüística(s) é(são) usada(s)
pelo falante inculto. Como o termo ‘dialeto’ é marcado na obra, por ter sido usado por
Twain no explanatório, e Twain cria sete variedades, sendo elas usadas por falantes
cultos e incultos, julgamos necessário compreender primeiro o significado de ‘dialeto’.
Para tanto, recorremos primeiramente ao dicionário Aurélio. A primeira acepção dada
ao termo ‘dialeto’ é a seguinte: “variedade subpadrão ou não-padrão de uma língua,
associada a grupos que ‘não contam com prestígio social’ ”.
69
[grifo nosso] O que nos
chama a atenção nesta definição é que na raiz da explicação da palavra existe
69
As outras acepções dadas ao termo dialeto são as seguintes: “2. variedade regional de uma língua que
conta com forte tradição literária. 3. variedade lingüística regional que não tem escrita; patoá. 4. cada uma
das subdivisões que se podem aplicar a determinada língua utilizando como critério básico a região
geográfica ou a camada social a que pertence o falante; variedade [v. falar (28)]”.
69
claramente uma referência a uma classificação de inferioridade atribuída aos grupos
falantes de dialeto. Como o dicionário não trás o porquê de tais grupos não contarem
com prestígio social, examinamos o livro Preconceito Lingüístico, de Marcos Bagno
70
(2007), pois como o título esclarece, seu texto trata daquilo que julgamos ser uma das
possíveis respostas a tal discriminação, ou seja, o preconceito. Esse espaço de pouco
prestígio ocupado pelos falantes de variedades não-padrão é tratado por Bagno de forma
a esclarecer, por meio de exemplos e tom jocoso, como as variedades lingüísticas, bem
como seus falantes, são desrespeitadas por aqueles que vêem uma única língua digna de
respeito – a padrão – ignorando e estigmatizando suas demais variedades. Também
discute como a gramática normativa e seus gramáticos abordam a língua falada no
Brasil de hoje usando instrumentos para análise da língua escrita. Demonstra, por meio
de exemplos, como alguns profissionais, (professores de português, gramáticos, autores
de livros didáticos) mediante livros do tipo ‘não erre mais’, artigos em revistas sobre
‘erros da língua portuguesa’, programas de TV propondo aulas com foco em ‘certo’ e
‘errado’, reforçam a lacuna existente entre língua padrão e não-padrão – tanto falada
como escrita. Fica evidente por meio de sua análise que esses profissionais não vêem a
língua como um sistema vivo e em constante transformação e enxergam na gramática
normativa o único meio para se atingir o bem falar e escrever. Bagno reflete sobre o
preconceito lingüístico desmontando mitos relacionados às variedades fora do âmbito
da língua padrão. Ele cita oito mitos
71
dentre os quais iremos resumidamente tratar de
três, pois são suficientes para ajudar a esclarecer o preconceito contra os falantes de
variedades não-padrão. Primeiro mito: “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta
70
A respeito de mitos lingüísticos, Milton Azevedo (2003, p. 39), em Vozes em Branco e Preto, sugere a
leitura de Marcos Bagno. Não encontramos o texto sugerido, mas sim o livro posterior à indicação.
71
Os oito mitos abordados por Marcos Bagno são: ‘A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma
unidade surpreendente’; ‘Brasileiro não sabe português/ Só em Portugal se fala bem português’;
‘Português é muito difícil’; ‘As pessoas sem instrução falam tudo errado’; ‘O lugar onde melhor se fala
português no Brasil é o Maranhão’; ‘O certo é falar assim porque se escreve assim’; ‘É preciso saber
gramática para falar e escrever bem’; e ‘O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social’.
70
uma unidade surpreendente”. Possivelmente já ouvimos esta afirmativa, e ela é danosa
na medida em que, ao acreditar na existência de ‘uma’ unidade lingüística falada no
Brasil, estamos ignorando ou rejeitando as variedades da língua. Segundo mito:
“Brasileiro não sabe português/ Só em Portugal se fala bem português”. O ‘interessante’
deste mito está no fato de a nossa origem lingüística ser apontada como a fonte do ‘falar
certo’, e ao voltar para essa origem, lembrando a nossa antiga posição de colônia,
assumimos a inferioridade de que somente a ‘metrópole’ sabe o ‘certo’. Este mito
transparece na definição dos objetivos da apresentação da Gramática da Língua
Portuguesa de Celso Cunha (1980, p. 5), para o estudo da língua escrita e falada, na
qual ele faz a seguinte afirmação:
Procuramos apresentar as características do português contemporâneo
em sua modalidade culta, isto é, a língua como a têm utilizado os
escritores brasileiros e portugueses do Romantismo para cá, dando
naturalmente uma situação privilegiada aos autores do século XX.
Uma vez que sabemos da existência das diferenças entre o português europeu
(de Portugal) e o português do Brasil, parece-nos um despropósito estudar a língua
portuguesa do Brasil tendo por modelo escritores portugueses; outra estranheza, com a
qual nos deparamos, está no fato de Cunha afirmar que iremos estudar a língua do
Brasil atual por meio de como os escritores do Romantismo (século 19) para cá
utilizaram a língua portuguesa. Naturalmente o uso do ‘para cá’ tenta resgatar o sentido
de atualidade, mas não deixa de ser surpreendente mencionar textos de escritores do
século 19 como modelo para o português de hoje. Além disso, como afirma Preti (2004,
p. 138), “É certo que ninguém estuda a língua oral por meio de documentos literários,
pelo menos a partir do momento histórico em que a ciência eletrônica criou os aparelhos
de gravação.” O terceiro mito que escolhemos resume os dois já citados e esclarece a
posição dos falantes incultos: “As pessoas sem instrução falam tudo errado”. Se
negamos a existência de outros falares além da norma-padrão (mito 1), consideramos o
71
português correto aquele falado em Portugal (mito 2), e a gramática nos traz modelo de
escritores brasileiros e portugueses para aprendermos as regras ‘certas’, evidentemente
as pessoas sem instrução sofrerão esse estigma; assim, a soma dos mitos 1 e 2 resulta no
3. Acreditamos que a base para tal juízo de valor a respeito do falante inculto tenha
raízes em causas político-econômicas, portanto, tais causas estão fora do âmbito
lingüístico, pois não há provas empíricas para justificar a posição de inferioridade
atribuída aos falantes incultos.
Como a gramática está centrada na modalidade culta ou língua padrão,
verificamos tratar-se da variedade que serve de modelo às demais. Se existem várias
‘línguas’ e a padrão é uma delas, podemos indagar então como uma dessas variedades
consegue atingir o status de padrão. Quanto a este aspecto, em Vozes em Branco e
Preto, Milton Azevedo (2003, p. 38) toca no cerne dessa questão, ao afirma que
Uma norma escrita, capaz de servir de padrão comum para todos os
usuários da língua, envolve um processo de planificação explícita da
ortografia, morfologia, sintaxe e léxico. Costuma ter como base uma
variedade regional de prestígio cultural e social, como o toscano, no
caso do italiano, o franciscano de Île-de-France (a região ao redor de
Paris), para o francês, ou o castelhano, dialeto da região de Castela,
para o espanhol peninsular (daí a sinonímia entre ‘espanhol’ e
‘castelhano’). No caso do português europeu, o ponto de referência é
a fala da região entre Lisboa e Coimbra, ao passo que no português
brasileiro, esse modelo seria, em teoria, a fala culta do chamado eixo
Rio-São Paulo. Trata-se de um modelo hipotético, porquanto a fala
culta brasileira ainda está em vias de ser analisada.
De acordo com Azevedo, a escolha da língua padrão obedece a critérios culturais
e sociais; porém, acreditamos que tais critérios tenham por base causas econômicas
também, pois no Brasil a língua ‘eleita’ como norma é a do eixo Rio-São Paulo, a
região de maior poder econômico do país. Assim, torna-se evidente que a seleção da
língua padrão não tem fundamento lingüístico. Portanto, a assimetria entre língua
padrão e demais variantes lingüísticas com a sua conseqüente estigmatização em relação
às variedades não-padrão baseia-se no preconceito.
72
No entanto, se, por um lado, temos os mitos e a gramática normativa que
intensificam os preconceitos, por outro, os ‘parâmetros curriculares nacionais’ para a
língua portuguesa, do ensino fundamental de 5ª a 8ª séries, abrem perspectivas de
mudanças futuras, como podemos verificar no texto abaixo:
A discriminação de algumas variedades lingüísticas, tratadas de
modo preconceituoso e anticientífico, expressa os próprios conflitos
existentes no interior da sociedade. Por isso mesmo, o preconceito
lingüístico, como qualquer outro preconceito, resulta de avaliações
subjuntivas dos grupos sociais e deve ser combatido com vigor e
energia. É importante que o aluno, ao aprender novas formas
lingüísticas, particularmente a escrita e o padrão de oralidade mais
formal orientado pela tradição gramatical, entenda que todas as
variedades lingüísticas são legítimas e próprias da história e da
cultura humana. (Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e
quarto ciclos do ensino fundamental, p. 82)
72
Esse documento data de 1998, período recente e relativamente curto se
compararmos o tempo em que os mitos, a gramática normativa, além de causas
políticas, econômicas e sociais têm influenciado a maneira distorcida de olhar para os
dialetos e seus falantes.
Na linha de pensamento na qual a diversidade lingüística é distinguida como um
fenômeno natural da língua, Dino Preti (2004, p. 15) entende que o processo de
democratização passado pelo nosso país nos últimos anos possibilitou maior aceitação
da cultura popular, o que, na linguagem jornalística, acabou resultando em “[...] maior
aceitabilidade das formas lingüísticas populares, dos coloquialismos sintáticos, do
vocabulário gírio”, aproximando fala e escrita. Como conseqüência, alguns tabus
lingüísticos estão sendo quebrados e a sociedade tem valorizado mais a linguagem
coloquial. É o que podemos verificar, ainda em Preti (2004, p.19), no seguinte trecho:
[...] se estão perdendo-se tabus lingüísticos, é porque antes já se
haviam perdido muitos dos tabus morais da sociedade
contemporânea; se houve valorização da linguagem coloquial, é
porque os movimentos democráticos têm valorizado a cultura
popular; se novas maneiras de dizer se constituíram, é porque se
alteraram profundamente os critérios de aceitabilidade social da
72
Disponível em <http://www.mec.gov.br/sef/estrut2/pcn/pcn5a8.asp> Acesso em: 27 de out. 2008.
73
linguagem.
Diante do exposto, podemos afirmar que estamos presenciando algumas
mudanças positivas descritas nos parâmetros curriculares, assim como a existência do
projeto NURC, que, como citado, faz pesquisa na área de língua falada, e também os
avanços da lingüística, pois ela deixou de estudar a língua falada com parâmetros da
escrita
73
. Acreditamos que as mudanças estejam apenas começando e irão ocorrer em
âmbito nacional; portanto, quando a escola começar a enxergar a língua como funcional,
ou seja, de acordo com as várias funções por ela exercidas em diferentes circunstâncias
e situações, ela ensinará que a língua não é apenas um amontoado de regras e exceções
a serem memorizadas. Muitas dessas inovações ainda estão apenas no papel, mas elas
buscam por meio de base científica – da lingüística, sociolingüística, dialetologia –
comprovar que o falante de uma variedade não-padrão se expressa por meio de uma
língua tão respeitável quanto o da norma-padrão. A escrita de Mark Twain, em
Huckleberry, com mais de cento e vinte anos de existência, vem mostrar-nos que isso é
possível, na medida em que personagens como Huck e Jim exibem sua dimensão
humana com ‘falhas’ de linguagem e de personalidade, sem deixar de mostrar o lado
humano e digno de consideração.
3.1 Dialeto, dialeto literário, socioleto e socioleto literário: a perspectiva de
alguns pesquisadores
Dialeto, dialeto literário, socioleto, socioleto literário: qual o melhor termo para
73
Segundo Dino Preti (2004, p. 15), “Os estudos de língua falada em todo o mundo estão transformando
completamente as perspectivas de análise lingüística. A língua falada está sendo estudada por parâmetros
diversos dos utilizados para análise da escrita. Não mais procuramos vê-la como uma ‘língua escrita cheia
de erros’, mas sim como uma modalidade de língua que tem seus próprios mecanismos de funcionamento
[...]”
74
designar as sete variedades criadas por Mark Twain? A terminologia adotada por alguns
estudiosos da área de sociolingüística (Dino Preti), de lingüística (Sumner Ives e Lisa
Cohen Minnick), de teoria da tradução dialetal (Gillian Lane-Mercier e Judith Lavoie) e
da lingüística literária
74
(Milton Azevedo) varia um pouco. Por isso, iremos detalhar a
acepção dos termos citados de acordo com os pesquisadores mencionados acima, no
intuito de entender e poder usar apropriadamente cada um deles.
Dino Preti (1982, p. 18-19) define dialeto da seguinte forma:
A designação de dialeto, hoje com o uso que se fez dela na
dialetologia (em especial nos Estados Unidos), alargou demais seu
campo semântico, para designar qualquer variação de grupo na
língua, de natureza geográfica ou cultural. [...]
Preferimos, no entanto, para as variedades horizontais da linguagem,
o termo falares. Assim, no Brasil, por exemplo, haveria os falares
amazônico, nordestino, baiano, fluminense, mineiro, sulino, segundo
a conhecida divisão de Serafim da Silva Neto, apoiado em Antenor
Nascentes.
Lane-Mercier (1997, p. 45) define ‘socioleto literário’ da seguinte forma:
The concept of literary sociolect is construed here as the textual
representation of ‘non-standard’ speech patterns that manifest both
the socio-cultural forces which have shaped the speaker’s linguistic
competence and the various socio-cultural groups to which the
speaker belongs or has belonged.
75
Milton Azevedo (2003, p. 28, grifo do autor) usa os termos ‘dialeto’, ‘socioleto’
e ‘dialeto literário’. Sua definição dos dois primeiros termos é a seguinte:
A variação no espaço geográfico – freqüentemente associada à idéia
de dialeto – reflete as maneiras com que distintas comunidades usam
uma mesma língua, e que podem vir a constituir línguas diferentes.
Dependendo de como se contem, existem hoje entre cinco mil e sete
mil idiomas, devendo-se a aparente discrepância a que nem sempre é
fácil decidir se determinada fala é uma língua ou um dialeto (termo
que, em lingüística, significa tão-somente variedade, sem qualquer
juízo de valor, positivo ou negativo). Desenvolvida a partir da
74
Milton Azevedo utiliza o termo ‘lingüística literária’ ao projeto que ele desenvolve no estudo da
representação da linguagem não-padrão na literatura. Segundo ele, “trata-se de um projeto de lingüística
literária – entendendo-se por este termo a interface entre os estudos de linguagem e os de literatura – cuja
perspectiva, essencialmente sociolingüística, é que a variação constitui uma característica fundamental da
linguagem, considerada como uma forma de comportamento social comunicativo. [...]” (2003, p. 19)
75
“O conceito de socioleto literário é construído aqui como a representação textual de modelos de fala
‘não-padrão’, os quais manifestam tanto as forças sócio-culturais que moldaram a competência lingüística
do falante e os diversos grupos sócio-culturais, aos quais o falante pertença ou tenha pertencido.”
75
segunda metade do século XIX, a dialetologia, entendida como o
estudo da variação regional, enfatiza critérios geográficos,
concentrando-se principalmente na pronúncia, na forma das palavras
e no léxico. Nas últimas quatro décadas, porém, o desenvolvimento
da sociolingüística, entendida como o estudo da variação relacionada
com fatores sociais, vem difundindo o conceito de dialeto social
(também chamado socioleto ou variedade diastrática). Aceitando-se
que uma língua é o conjunto de todas as variedades mediante as quais
se manifesta, resulta que todos falamos algum dialeto. Ou seja, a
oposição língua/dialeto é relativa: o inglês estadunidense, o
canadense e o britânico são três macrodialetos da língua inglesa, cada
um dos quais comporta uma norma culta, além de diversas
subnormas e variedades regionais ou sociais.
Ainda citando Azevedo (2003, p. 20), quanto a ‘socioleto’, há uma nota com a
seguinte explicação:
Adota-se a definição de socioleto, proposta por Peter Matthews
(1997:344), como sendo ‘uma modalidade de fala associada a uma
classe social ou outro grupo similar, dentro de uma sociedade, em
contraste com dialeto no sentido habitual, associado a um lugar ou
região geográfica.’
O ‘dialeto literário’ é descrito por Azevedo (2003, p. 21) da seguinte forma:
[...] o conceito de dialeto literário presta-se à análise de
representações de falas regionais e socioletos, e também, como se
argumentará mais adiante, de outras modalidades de linguagem não-
padrão, tais como a forasteira (Ferguson 1981, Sebba 1997: 74-81) ou
as falas híbridas (Romaine 1995: 68-82). Como artifício estilístico, o
dialeto literário opera sobre contrastes entre variedades não-padrão e
a linguagem normativa, que é essencialmente um código escrito
(Penny 2000: 194 ss.), tão estreitamente associado à literatura que os
termos ‘linguagem literária’ e ‘linguagem padrão/normativa’
costumam ser usados – nem sempre devidamente – como sinônimos.
Também segundo Azevedo, a representação da fala não-padrão na literatura
identificada como ‘dialeto literário’ é um conceito originalmente proposto por Sumner
Ives.
Sumner Ives (1950, p. 137) , em seu ensaio A Theory of Literary Dialect, datado
de 1950, define dialeto literário como “[…] an author’s attempt to represent in writing a
speech that is restricted regionally, socially, or both.”
76
Pelo exposto, vimos que embora os pesquisadores variem o uso da terminologia,
76
“[...] uma tentativa de o autor representar na escrita uma fala que é restrita de forma regional, social ou
ambas.”
76
as acepções dadas aos termos apresentam pontos em comum. Ao usar ‘dialeto’, Dino
Preti o faz de forma próxima a de Milton Azevedo. O primeiro vê no termo muitos
significados e o segundo enxerga a mesma ampliação semântica, pois julga que a
oposição língua/dialeto é relativa. Porém, Preti vê ‘falares’ e ‘dialetos’ como sinônimos,
embora prefira o primeiro termo, enquanto para Milton Azevedo, ‘variedade’ é similar a
‘dialeto’. Lane-Mercier só faz uso de ‘socioleto’ e ‘socioleto literário’ designando-os de
forma muito semelhante à de Sumner Ives com seu ‘dialeto literário’. Milton Azevedo
(2003, p. 135), por sua vez, de forma próxima a Lane-Mercier, ao definir os usos de
‘dialeto literário’ o faz da seguinte forma: “O objetivo desse artifício estilístico é
conseguir a verossimilhança não reproduzindo fielmente a fala, e sim evocando-a”.
Assim, acreditamos que tanto ‘socioleto literário’ quanto ‘dialeto literário’ seriam
adequadamente usados para nomear a criação dos dialetos de Twain; porém, ‘socioleto
literário’ pode dar a idéia de relacionar-se apenas aos aspectos sócio-culturais enquanto
‘dialeto literário’ pode sugerir tratar-se apenas de aspectos geográficos. Mark Twain
representa suas personagens mesclando características das variedades geográficas (Sul
dos Estados Unidos) e sócio-culturais (um pária e um escravo), empregando assim tanto
‘socioletos’ quanto ‘dialetos’. Escolher entre um dos dois termos parece-nos tarefa
árdua, pois a escolha resultará em ambigüidade. Mas faz-se necessária a seleção de um
deles; portanto, manteremos ‘dialeto’ e ‘dialeto literário’, como o fizemos até aqui no
intuito de usar o mesmo vocábulo empregado por Mark Twain e, ao tratar da citação de
trechos de Lane-Mercier, assim como de Judith Lavoie, conservaremos na tradução
‘socioleto’ e ‘socioleto literário’, por serem os termos empregados por elas.
77
3.1.1 Implicações no uso do dialeto literário
Por ter sido o criador do conceito ‘dialeto literário’, começaremos com Sumner
Ives e apresentaremos alguns pontos levantados quanto à sua definição, criação, uso e
implicações. Primeiramente, Ives faz uma descrição de dialetos literários, mostrando
como eles funcionam; assim, eles são uma tentativa de reprodução da fala na escrita que
pode ser distinguida pela região ou pela posição social ou por ambas. Para tal feito, o
autor vale-se de mudanças ortográficas, com o objetivo de criar uma representação
genuína, ou seja, o autor terá por base uma fala existente; porém, com compromisso
estilístico e não científico.
Outra observação de Sumner Ives referente ao ‘dialeto literário’ diz respeito à
forma como ele é criado. O autor parte de uma linguagem não-padrão e da experiência
de observações da fala de muitas pessoas, reconhecendo e selecionado traços comuns
para construir a fala de sua personagem. Mas ele não usa todos os traços de tal ‘dialeto’,
assim, sua criação é incompleta, peculiar e única, pois ela reflete a observação e escolha
do material lingüístico feita pelo autor. Portanto, há uma generalização no ‘dialeto’
criado se comparado à fala real e é provável que o ‘dialeto literário’ seja mais regular
que a fala por ele representada. Este fato é visível, pois como afirma Azevedo (2003, p.
138) “[...] nenhuma representação literária pode refletir todas as realizações de cada
fonema, posto que seu objetivo não é a precisão fonética e, sim, a evocação de certa
maneira de falar, ficando por conta do leitor a interpretação dos detalhes.” (2003, p.
138) O que também é confirmado por Ives (1950, p. 146):
From the total linguistic material available, he [the author] selects
those features that seem to be typical, to be most representative of the
sort of person he is portraying. These features he generalizes so that
the literary dialect is likely to be more regular in its variants than the
78
actual speech which it represents.
77
A não-existência de regras muito definidas dos dialetos literários diz respeito à
criação individual destes. Mark Twain tem as suas normas, que podem ou não coincidir
com os ‘dialetos literários’ criados por outro autor. Como os dialetos literários
apresentam aspectos diferentes da língua-padrão, no afastamento da norma e
conseqüente reconhecimento da região ou posição social que o autor quis representar, o
humor ou o estereótipo pode estar embutido neles.
Esse ponto levantado por Ives é essencial no entendimento do papel dos
‘dialetos literários’, pois dependendo da criação, em vez de o autor dar voz a
personagens regionais ou de classe social menos privilegiada, ele pode reforçar ou criar
preconceitos e, portanto, desrespeito por determinado grupo social, regional ou ambos.
Alguns pesquisadores, como Milton Azevedo e Antônio Cândido, mostram
opiniões diferentes quanto a essa possível comicidade no uso do dialeto literário, mas
ambos oferecem instrumentos para a análise de personagens representadas por língua
não-padrão. Vamos examinar a opinião de Milton Azevedo seguida da de Antonio
Cândido. Para o primeiro, além do dialeto literário, é preciso investigar de que forma a
personagem foi apresentada, ou seja, suas características psicológicas conduzem-nos a
qualificá-la como ‘tola’ pela falta de seriedade transparente no seu delineamento ou há
seriedade suficiente para suscitar respeito? É o que podemos ver no trecho abaixo de
Azevedo (2003, p. 139).
[o dialeto literário] Uma leitura superficial poderá limitar-se a
interpretá-lo como uma maneira de dar cor local à narrativa, ou como
um recurso cômico sem maior relevância. Note-se, porém, que a
maioria dos personagens mencionados neste estudo, como os de
Oswald de Andrade, de Gianfrancesco Guarnieri e de Mário de
Andrade, são apresentados com toda seriedade em um contexto de
crítica social, cujo impacto não é diminuído, senão reforçado, pelo
77
“Do total do material lingüístico disponível, ele [o autor] seleciona aquelas características que parecem
típicas, mais representativas do tipo da pessoa que ele está retratando. Ele generaliza estas características
para que o dialeto literário fique mais regular em suas variantes que a fala real a qual o dialeto
representa.”
79
fato de falarem em dialeto.
Segundo Antônio Cândido (1999), no artigo ‘A literatura e a formação do
homem’, a inferioridade das personagens se evidencia quando coexistem em um texto
fala padrão e não-padrão, principalmente em relação aos narradores de primeira e
terceira pessoas. Cândido confronta as formas pelas quais dois escritores brasileiros,
Coelho Neto (1864-1934) e Simão Lopes Neto (1865-1916), retratam suas personagens
regionais. No primeiro caso, temos um narrador em terceira pessoa, culto, que se afasta
da personagem rural, ou seja, trata-se de um narrador ‘neutro’. Nos dizeres de Antônio
Cândido (1999, p. 88), ao analisar o conto ‘Mandovi’ de Coelho Neto, no livro Sertão,
temos:
Com efeito, ao narrador ou personagem cultos, de classe superior, é
reservada a integridade do discurso, que se traduz pela grafia
convencional, indicadora da norma culta. Nos livros regionalistas, o
homem de posição social mais elevada nunca tem sotaque, não
apresenta peculiaridades de pronúncia, não deforma as palavras, que,
na sua boca, assumem o estado ideal de dicionário. Quando, ao
contrário, marca o desvio da norma no homem rural pobre, o escritor
dá ao nível fônico um aspecto quase teratológico, que contamina todo
o discurso e situa o emissor como um ser à parte, um espetáculo
pitoresco como as árvores e os bichos, feito para contemplação ou
divertimento do homem culto, que deste modo se sente confirmado
na sua superioridade. Em tais casos, o regionalismo é uma falsa
admissão do homem rural ao universo dos valores éticos e estéticos.
Já no caso de Simão Lopes Neto, no conto ‘Contrabando’, temos um narrador
em primeira pessoa que aproxima sua fala da das personagens do campo. Assim,
Antônio Cândido (1999, p. 89) afirma:
Para o seu narrador Blau Nunes, o autor tinha dois extremos
possíveis: ou deformar as palavras e grafar toda a narrativa segundo a
falsa convenção fonética usual em nosso Regionalismo, de que vimos
um exemplo em Coelho Neto; ou adotar um estilo castiço registrado
segundo as convenções da norma culta. Simão Lopes Neto rejeitou
totalmente o primeiro e adaptou sabiamente o segundo, conseguindo
um nível muito eficiente de estilização.
Diante do que foi apresentado, temos mais alguns dados a respeito de como
Huck, Jim e Tom foram caracterizados lingüisticamente, uma vez que a criação de
80
Twain se enquadra nos moldes apresentados: dialetos literários, humor e narrador de
primeira pessoa. Na primeira leitura de Huckleberry, o humor sobressai, marca
registrada de Twain, não pelo uso do dialeto literário em si, mas principalmente por
situações inusitadas; no entanto, como já mencionamos, a dignidade de Jim é exposta de
maneira a reconhecermos seu valor. Em uma das passagens do livro, por exemplo,
Twain contrasta o comportamento de Jim aos supostos ‘Rei’ e ‘Duque’, os quais não
passam de trapaceiros e, na opinião de Huck, estes dois são melhores do que os reis e
duques verdadeiros (capítulo 23). Além de tratar-se de narrador de primeira pessoa, não
havendo contrastes excessivos nas falas, uma leitura mais aprofundada da obra
evidencia uma crítica social amenizada pelo humor ou, dependendo da leitura,
aumentada devido à ironia em tom jocoso. Para exemplificar este humor com ironia,
transcreveremos um trecho do capítulo 12, em que dois bandidos, em um barco
naufragado que está para afundar em poucas horas, ameaçam com arma outro bandido
do grupo, o qual é mantido amarrado. Um dos bandidos chama o companheiro armado e
travam o seguinte diálogo:
Well, my idea is this; we’ll rustle around and gether up whatever
pickins we’ve overlooked in the staterooms, and shove for shore and
hide the truck. Then we’ll wait. Now I say it ain’t agoin’ to be more’n
two hours befo’ this wrack breaks up and washes off down the river.
See? He’ll be drownded, and won’t have nobody to blame for it but
his own self. I reckon that’s a considerable sight better’n killin’ of
him. I’m unfavourable to killin’ a man as long as you can git around
it; it ain’t good sense, it ain’t good morals. Ain’t I right?
78
(TWAIN,
1994a, p. 74, grifo nosso)
Não deixa de ser cômico um ladrão com padrões morais, relatando ser ‘imoral’
matar o companheiro já que este pode morrer afogado quando o barco afundar. Nesse
exemplo, temos o humor/crítica social de Twain percebido por meio do absurdo da
78
A minha idéia é a seguinte: a gente dá mais uma volta pelo navio, recolhendo tudo que tiver nos
camarotes, depois volta para a margem do rio e esconde tudo. Aí a gente fica só esperando. Daqui no
máximo a duas horas esse barco vai se partir e ser arrastado pela correnteza. Entendeu? Ele vai morrer
afogado, e aí não vai ser culpa de ninguém, só dele mesmo. Acho bem melhor do que dar um tiro nele. Eu
sou contra matar um homem quando dá para se livrar dele de outro jeito; não se justifica, é uma coisa
imoral. Você também não acha?” (FLAKSMAN, 1997, p. 86)
81
situação e não pelo uso do dialeto.
Um último ponto levantado por Ives e de relevância para este trabalho diz
respeito ao exagero na caracterização da personagem. Como exemplo do exagero, ele
cita o ‘eye-dialect’ ou dialeto visual, o qual não corresponde, necessariamente, a uma
ortografia ligada à fonética, mas sim a um sinal visual para o leitor perceber que o
falante do dialeto não é alfabetizado ou tem problemas de alfabetização. Quanto a esse
exagero, Ives (1950, p. 147, grifo do autor) afirma: “To the extent that an author relies
on this purely visual dialect, he can be said to be deliberately overstating the ignorance
or illiteracy of his characters.”
79
No entanto, complementando a questão do uso
exagerado de marcas na fala da personagem, Ives também aponta o papel limitador
desempenhado pelo leitor à criação do autor, pois este se encontra atrelado à
legibilidade do texto e considera o seu leitor na criação, assim, evitando representações
de pronúncias que cansem ou irritem o leitor (1950, p. 148).
Essas observações são de suma importância para este trabalho, uma vez que
Mark Twain faz utilização do dialeto visual na representação de todas as suas
personagens; porém, garante o entendimento do texto, sem cansar o leitor, ou melhor,
sem cansar o leitor familiarizado com o texto de Twain. Conforme Azevedo (2003, p.
137), “Deve-se recordar, porém, que uma obra de ficção é escrita com um determinado
tipo de leitor em mente, do qual se espera um mínimo de conhecimentos.” (2003, p.
137)
Mesmo com as qualidades positivas de caracterização de Jim, alguns estudiosos
acreditam que Twain usou demasiadamente o dialeto visual nas falas de Jim e que este é
representado de forma grotesca, inferior e cômica. Vejamos a opinião de alguns críticos.
Para James S. Leonard e Thomas A. Tenney (apud MINNICK, 2004, p. 69)
79
“Até certo ponto, um autor que confiar puramente no dialeto visual, pode-se dizer que ele
deliberadamente exagerou na ignorância e na falta de instrução de suas personagens.”
82
[...] The speech of Jim and other black characters in the novel is
marked by extreme forms of eye dialect, while that of whites usually
is not; the result exaggerates the ignorance and/ or deviance of black
speakers as compared to white.
80
No entanto, Minnick (2004, p. 69) compartilha da opinião dos que pensam de
forma diversa a essa possível representação grotesca.
A linguistic analysis of Jim’s speech both can and cannot challenge
such a view. It can answer the charge of Twain’s use of ‘eye dialect’:
most of Twain’s respellings for Jim, and also for Huck and the other
characters – nearly all of whom, regardless of race, are represented as
speaking something other than Standard American English (SAE) –
actually do in most cases indicate alternative pronunciations that have
been documented as regionally or socially distributed, including in
the speech of some African American speakers.
81
Além disso, Minnick (2004, p. 68) não acredita que Jim é retratado de forma
estereotipada, como podemos ver na seguinte afirmação: “Not every critic would agree
with my assertion that Jim is not negatively portrayed by his speech, nor with my
assessment of accuracy with which Twain represents Jim’s speech.”
82
De acordo com Lee A. Pederson, citado por Lavoie (1994, p. 124):
Lee A. Pederson fait remarquer que non seulement les personnages
noirs disent ‘awluz’, mais aussi un personnage blanc, appelé le
‘King’; de même por l’elision du ‘r’ qui est aussi partagée par un
personnage blanc, Boggs, ce représentant de l’
extremest [sic] from
of the backwoods South-Western dialect”. Nous avons constaté
également que ce meme Boggs disait ‘gwyne’ pour ‘going to’
(HF,115). De plus, Pederson (1965-1966, pp. 1-4) signale que seuls
les personages noirs remplacent le ‘d’ par le ‘th’ et disent ‘kase’ et
‘bekase’ pour ‘cause’ et ‘because’.
83
80
“[...]A fala de Jim e de outras personagens negras, no romance, é marcada mediante numerosas formas
de dialeto visual, sendo que isso não ocorre na fala das personagens brancas; o resultado acaba sendo uma
exageração da ignorância e/ou dos desvios das falas das personagens negras, em comparação com as das
personagens brancas.”
81
“Uma análise lingüística da fala de Jim consegue ou não desafiar tal visão. Pode ser uma resposta a
acusação do uso de ‘dialeto visual’ por Twain: a maior parte da mudança da ortografia aplicada na fala de
Jim, também na de Huck e na de outras personagens – em quase todas elas, sem levar em consideração a
raça, são representadas com falas diferentes do inglês norte-americano padrão – na verdade, na maior
parte dos casos, indica pronúncias alternativas que foram documentadas segundo a distribuição regional
ou social, incluídas na fala de alguns falantes afro-americanos.”
82
“Nem todos os críticos concordariam com a minha afirmação de que Jim não é retratado de forma
negativa por meio de sua fala, nem com a minha avaliação da exatidão com a qual Twain representou a
fala de Jim.”
83
“Lee A. Pederson faz uma observação de que não somente as personagens negras dizem ‘awluz’, mas
também a personagem branca chamada ‘Rei’; o mesmo ocorre com a ligação do ‘r’, a qual é
compartilhada com uma personagem branca, Boggs, cuja representação é a do ‘extremest [sic] backwoods
South-Western dialect’ [dialeto dos rincões distantes do Sudoeste]. Nós constatamos igualmente que esse
83
Podemos concluir que o uso de ‘dialeto literário’ não representa apenas um falar
‘diferente’, mas um falar sofisticado na medida em que ele passa por uma seleção e
lapidação ao gosto e estilo de seu autor. Assim, o ‘dialeto literário’ não representa uma
fala real, embora tenha se baseado nela, mas evoca tal fala e, nos dizeres de Azevedo
(2003, p. 138), ele “[...] enriquece o texto, projetando sobre este uma dimensão social”.
Além disso, a comicidade e o exagero empreendidos pelo autor no texto precisam ser
investigados ao lado de outras formas de caracterização, como particularidades
psicológicas, por exemplo, no intuito de entender a personagem como um todo. Dentro
desse quadro descrito sobre o ‘dialeto literário’, evidenciam-se algumas estratégias de
Twain como, por exemplo, uso do humor e exagero das marcas na fala de Jim, segundo
alguns críticos. No entanto, Twain consegue transmitir qualidades de Jim que
ultrapassam a mera condição humana em termos morais e o elevam ao herói da obra,
como podemos atestar na afirmação de De Voto (1977, p. 16):
Moreover at least Huckleberry Finn has a hero, the only heroic
character (apart from Joan of Arc, a debauch of gyneolatry) he ever
drew, and it is the essence of what Mark Twain had to say that the
hero is a Negro slave. It has also a vindication not only of freedom,
but of loyalty and decency, kindness and courage; and it is the
essence of Mark Twain that this vindication is made by means of a
boy who is a spokesman of the folk mind and whom [sic] experience
has taught wariness and skepticism. Like all great novels Huckleberry
Finn moves on many levels of significance, but it describes a fight
and struggle for freedom, and the question it turns on is a moral
question.
84
mesmo Boggs dizia ‘gwyne’ em vez de ‘going to’ (HF,115). Além disso, Pederson (1965-1966, pp.1-4)
indica que somente as personagens negras substituem o ‘d’ pelo ‘th’ e dizem ‘kase’ e ‘bekase’ em vez de
‘cause’ e ‘because’.”
84
“Mais do que isso, pelo menos, Huckleberry Finn tem um herói, a única personagem heróica (com
exceção de Joana D’Arc, um deboche da ginolatria [adoração ou veneração pelo feminino] ) que ele
criou, e essa é a essência daquilo que Mark Twain tinha a dizer sobre o escravo negro. Também tem uma
defesa não apenas de liberdade, mas de lealdade e decência, bondade e coragem; é a essência de Mark
Twain que essa defesa seja feita mediante um menino que é o porta-voz de uma mentalidade popular e a
quem a experiência ensinou cuidado e ceticismo. Como toda grande obra, Huckleberry permeia muitos
níveis de significado, mas ele descreve uma fuga e luta pela liberdade e a discussão que se revela é uma
questão moral.”
84
3.2 A opinião de três tradutores acerca da tradução dialetal
Sergio Flaksman, tradutor de Huckleberry, e Millôr Fernandes, tradutor de
Pigmaleão compartilham da opinião de que não há possibilidade de tradução dos
dialetos literários; contudo, ao traduzirem as obras mencionadas, tomam caminhos
diferentes. O primeiro opta pela linguagem coloquial, enquanto o segundo cria um
dialeto. Os dois evidenciam a estratégia de tradução que seguirão; Flaksman em uma
nota do tradutor e Millôr em uma das primeiras rubricas do texto.
Transcreveremos agora um trecho do comentário de Flaksman (1997, p. 11-12) a
esse respeito:
Nunca na minha vida, como diria Huck Finn, a tradução – que é
sempre pelo menos frustrante, e nunca deixa de trair o original – me
pareceu coisa mais traiçoeira ou tão frustrante. Talvez a explanação
do próprio Mark Twain já baste para dar ao leitor uma idéia do
extraordinário e variado colorido da linguagem que ele emprega em
seu texto – e não admira que tenha levado sete anos para escrever as
trezentas páginas deste romance.
Flaksman começa afirmando que Twain levou “sete anos para escrever as
trezentas páginas deste romance.” (1997, p. 12), vinculando o grau de dificuldade de
tamanha empreitada a dois fatores: tempo tomado e volume da obra. Quanto ao tamanho
da obra, não temos o que comentar; porém, quanto ao tempo temos alguns ajustes a
fazer. Segundo Bernard De Voto (1977, p. 18-19):
Few Americans have written as much as Mark Twain. His published
works are not much greater in bulk than his unpublished manuscripts,
the books he finished fewer than the ones he broke off and
abandoned. […] He interrupted his masterpiece before it was half-
finished, liking it so little that he threatened to burn it, and ignored it
for six years during which, though he wrote constantly, he wrote
nothing of importance. Then he finished it almost as casually as he
had begun it. There is no greater book in American literature, but
critics agree that the last quarter of it is impaired by the extravaganza
that begins when Huck gets to Uncle Silas’s farm. […].
85
85
“Poucos norte-americanos escreveram tanto quanto Mark Twain. Seus trabalhos publicados não são tão
volumosos quanto seus manuscritos não publicados, os livros que ele terminou são em menor quantidade
85
Como visto, Twain não levou sete anos para escrever Huckleberry, embora este
ponto não diminua a dificuldade com que o tradutor irá se deparar ao ter de traduzir um
dialeto literário e, nesse caso, aumentada pelo fato de serem sete dialetos. Se, por um
lado, Flaksman deixa transparecer a crença na impossibilidade da tradução dos dialetos,
por outro, o que fica subjacente às suas justificativas para o uso de uma linguagem
coloquial em vez de dialetal é o significado da obra e de Mark Twain na literatura norte-
americana. Por apresentar a tradução do explanatório em uma nota do tradutor,
Flaksman explana acerca de sua estratégia tradutória, mostrando o que ele acreditou ser
possível, em termos gramaticais e lexicais, realizar no texto de chegada
86
.
Quanto a Millôr, na tradução de Pigmaleão, da mesma forma que Flaksman, ele
afirma não haver “a possibilidade de adaptação da peça, pelo fato de que, no Brasil, não
existe nenhum problema lingüístico que se aproxime do criado por uma linguagem
dialetal” (MILLÔR, 2005, p. 17), referindo-se ao ‘cockney’. O mesmo, podemos dizer,
ocorre com o dialeto usado por Jim, assim como com os demais dialetos. A distinção
entre um falante de língua padrão em inglês e um de AAE está ligada a fatores étnicos e
sociais; contudo, a distinção entre um falante de língua padrão em português e um de
qualquer variedade em português do Brasil é apenas regional e social. Porém, isso não é
tudo, basta atentarmos para o fato de Twain afirmar ter criado sete dialetos porque eles
são diferentes entre si e podem ser percebidos como tal, isso significa que eles não são
intercambiáveis. Se em inglês eles não podem ser substituídos um pelo outro,
claramente o mesmo irá ocorrer na tradução para outra língua. Portanto, mesmo que
em relação aos que ele parou de escrever e abandonou. [...] Ele interrompeu sua obra-prima antes que ela
estivesse na metade, gostou tão pouco dela que ameaçou queimá-la e a ignorou por seis anos durante os
quais, embora tenha escrito constantemente, não escreveu nada de importante. Depois, ele a acabou de
forma quase tão casual quanto como a começou. Não há livro melhor na literatura norte-americana, mas
os críticos concordam com o fato de que a quarta parte final do livro é prejudicada pela dramaticidade e
complicação dos acontecimentos iniciadas quando Huck chega à fazenda do tio Silas.”
86
Voltaremos a Sergio Flaksman na seção 4, na análise de sua tradução.
86
houvesse um dialeto em português que distinguisse um falar étnico, as características
constitutivas deste seriam distintas daquelas do dialeto em inglês. Os dialetos são
elementos muito específicos e representam a cultura de uma comunidade, uma região,
um país e seus falantes. Não há como transpor suas peculiaridades para outra região ou
outra língua, mas há como tentar mostrar ao leitor de língua de chegada elementos da
língua de partida.
Os dois tradutores são da mesma opinião, e acreditam na impossibilidade da
tradução dos dialetos literários, mas resolvem a questão por recursos encontrados em
português: de um lado, linguagem coloquial, de outro, criação. Na verdade, eles não
acreditam na equivalência entre os dois textos (de partida e de chegada), mas as
soluções a que eles chegam, embora diferentes, tamm se chamam tradução. Porém, o
que fica pendente é a implicação no uso ou não-uso de uma linguagem dialetal na
tradução, ponto abordado na seção 5, tendo por base os riscos corridos pelo tradutor no
uso de uma língua dialetal discutidos por Lane-Mercier (1997).
Françoise Brodosky (1996), a terceira e última tradutora a opinar sobre a
tradução dialetal do ponto de vista do tradutor, no texto Traduction, Terminologie,
Rédaction: Études sur les texte et ses transformations, tem opinião diferente da de
Flaksman e Millôr. Ela afirma que a tradução dialetal não apresenta nenhuma
peculiaridade, ou seja, independente do texto a ser traduzido, as questões concernentes
ao tradutor, como suas escolhas estéticas, políticas, étnicas e estilísticas serão as
mesmas, quer se trate de um texto em língua padrão quer em língua não-padrão.
Assim, segundo Brodosky, em vez de esse tipo de tradução trazer um problema a
mais para o tradutor, ele dá a este uma grande liberdade de criação, pois o dialeto
literário não é uma língua codificada, ou seja, a sua criação vai variar de escritor para
escritor. Nesse tocante, verifica-se que sua posição está de acordo com as observações
87
de S. Ives quanto à incompletude e peculiaridade do dialeto literário, pois cada escritor
irá elaborar o seu, cada autor terá um sistema de transcrição particular, por isso, não é
possível normatizá-lo. Mark Twain, Alice Walker, Toni Morrison e outros, que também
fazem uso do dialeto literário, adotam estilos próprios para dar conta da representação
da realidade norte-americana de acordo com suas visões.
Nesse artigo, Brodosky trata de sua experiência com a tradução de duas obras de
Zora Neale Hurston,
87
Une Femme Noire e Spunk. A linguagem de Zora mescla o inglês
clássico, na narrativa, com o dialeto criado para representar o AAE, nos diálogos.
Brodosky não vê nesse aspecto de construção da linguagem uma lacuna entre os
discursos que, como visto anteriormente nas observações de Antônio Cândido, podem
sugerir uma representação grotesca. Para ela (
1996, p. 177):
The translator is not dealing with ‘correct’ English on one hand and a
dialect on the other, but rather with two different languages, both of
which are equally important: the narrative, although written in ‘good’
English, is informed by the African-American oral tradition; the
dialogues are in Black American, transliterated with such uncanny
precision that each character ‘speaks’ in a way that situates him or
her socially and/ or regionally.
88
Para traduzir essa representação do AAE, Brodosky (1996, p.177) afirma que o
tradutor deve demonstrar um espírito criativo e, portanto, ‘inventar’ uma nova língua:
“[…] a visual equivalent that will give the reader a feel of the rhythm, the accents and
the verbal invention that are so typical of Black English.”
89
Um aspecto lingüístico da representação do AAE observado por Brodosky é a
extensa utilização de apóstrofo, o qual não pôde ser empregado em sua tradução, com
exceção de seu uso no final de algumas palavras. O francês caribenho, para ela,
87
1891-1960. Escritora do Renascimento Harlem, folclorista e antropóloga.
88
“O tradutor não está lidando com inglês ‘correto’ de um lado e dialeto de outro, mas antes com duas
línguas diferentes, sendo ambas de igual importância: a narrativa, embora escrita em ‘bom’ inglês, é
informada por meio da tradição oral do afro-americano; os diálogos são em AAE, transliterados com
precisão tão assombrosa que cada personagem ‘fala’ de um modo que a situa de forma social e/ou
regional.”
89
“[...] um equivalente visual que dará ao leitor uma sensação do ritmo, do sotaque e da invenção verbal
que são tão típicos do AAE.”
88
apresenta alguns recursos similares aos do AAE, como: verbos derivados de
substantivos, palavras unidas por hífen que podem ser dois substantivos comuns, dois
verbos ou um advérbio e um substantivo comum.
Brodosky (1996, p. 169) faz algumas sugestões ao tradutor que irá trabalhar com
texto dialetal:
Il faut donc s’inspirer du texte original, se laisser guider par son
rythme et faire confiance à sa propre intuition, à son sens de la langue
pour se lancer dans um travail de re-création, un texte ‘à la manière
de ...’ où, par un système de compensation ou de déplacement, on
utilisera des allitérations, certes, mais pas nécessairement au même
endroit, on rythmera ses phrases mais en tenant compte des
contraintes de la langue française afin de restituer, si faire se peut, la
discrète mélodie du texte original.
90
Podemos dividir essas sugestões em dois grupos: as abstratas e, portanto, de
difícil aplicabilidade, e as concretas. O sistema de compensação e deslocamento por
meio de aliterações não necessariamente no mesmo lugar é uma sugestão palpável;
porém, ‘inspiração’, ‘deixar-se levar pelo ritmo’, ‘restituir a melodia do texto original’
são sugestões por demais vagas para serem consideradas estratégias de tradução. No
entanto, Brodosky tenta apontar, mesmo que às vezes por um caminho um tanto vago,
ao menos algumas perspectivas, sem fechar o texto composto por dialetos como algo
impenetrável.
3.3 A representação de Jim: Judith Lavoie e Lisa C. Minnick
Apresentaremos as opiniões das pesquisadoras Judith Lavoie e Lisa C. Minnick
90
“É necessário então inspirar-se no texto original, deixar-se guiar pelo seu ritmo e confiar na sua própria
intuição, na sua percepção de língua para lançar-se em um trabalho de re-criação, um texto ‘à moda de ...’
ou, por um sistema de compensação ou de deslocamento, utilizando aliterações, de fato, mas não
necessariamente no mesmo lugar, dando ritmo a essas frases mas levando em consideração as restrições
da língua francesa a fim de restituir, se possível, a melodia singular do texto original.”
89
a respeito da representação lingüística de Jim. Lavoie, em seu artigo Problème de
traduction du vernaculaire noir américain (1994), analisa duas traduções de
Huckleberry. Minnick, em seu livro Dialect and Dichotomy (2004), dedica um capítulo
ao estudo de Jim. Ambas confrontam alguns pontos de vista de autores que estudaram a
criação lingüística de Twain e mais especificamente para as falas de Jim.
3.3.1 Judith Lavoie: qual dialeto literário para Jim?
Judith Lavoie (1994) analisa as traduções de Huckleberry Finn para o francês de
Suzanne Nétillard, primeiramente publicada em 1948 e reeditada em 1985, e de André
Bay, publicada em 1961 e republicada em 1990.
Segundo Lavoie, Suzanne Nétillard não traduz a nota explicativa de Twain, o
que pode ser visto como estratégia para não chamar atenção a respeito de uma
dificuldade que a obra traz: a tradução dos dialetos literários. No entanto, a tradutora
procura marcar a fala de Jim por meio de um dialeto usado por camponeses franceses.
André Bay, ao contrário, traduz o explanatório, mas dentro de uma nota sobre a
tradução e, como visto na seção 2 deste trabalho, coloca a nota em terceira pessoa e não
em primeira como no original. Porém, deixa claro que usará tanto quanto possível as
regras gramaticais do francês. Lavoie vê nessa estratégia uma limitação da instituição
literária francesa ligada à tradição do bem escrever. Quanto ao apagamento dos
socioletos na tradução de Bay, Lavoie (1994, p.125) acrescenta:
Ce gommage presque systématique des sociolectes dans la traduction
de Bay relèverait de la tradition française du bien-écrire que
caractérise le polysystème littéraire auquel le traducteur appartient.
Ce polysystème impose, à lui seul, des normes du traduire auxquelles
90
le traducteur peut se soumettre sans même s’en apercevoir.
91
Para Lavoie, existem três funções da representação do AAE na obra de Twain: a
função estética que cria um efeito cômico; a função social que identifica o falante com o
meio, e a função ideológica que mostra a posição do autor em relação à escravidão e à
segregação. Vamos mostrar cada uma dessas funções, em suas palavras, para depois
examiná-las.
Quanto ao efeito cômico, Lavoie (1994, p. 127-128) afirma:
Twain a commencé son roman en ayant à l’idée de conter une histoire
pleine d’humour, les personages y étant innocents, bien que futés, et
leur sociolecte, en particulier le VNA, y créant un effet de comique. Il
faut toutefois noter que, les personages acquérant de plus en plus de
profondeur à mesure que progresse l’histoire, cet effet de comique ne
traverse pas toute l’œuvre.
92
Não vemos o efeito cômico na obra da mesma forma que Lavoie. Em primeiro
lugar porque não o percebemos nos dialetos, mas sim na atitude das personagens e nas
situações inusitadas, pois acreditamos que se houver comicidade na representação do
AAE, ela será difícil de ser captada pelo tradutor, que em geral é um estrangeiro. Além
do mais, o cômico para uma pessoa pode não ser para outra devido ao seu caráter
subjetivo. Em segundo lugar, se Lavoie percebe na representação do AAE um efeito
cômico e ele atravessa o livro, como tal efeito não permanece na obra toda? Para nós, o
cômico está presente na maior parte do tempo, mas ele é interrompido por situações que
nos levam a refletir sobre o absurdo de algumas atitudes humanas ou fazem-nos rir
ainda mais pela ironia embutida na cena. Dessa forma, não enxergamos nos dialetos um
tom burlesco.
91
“Esse apagamento quase sistemático dos socioletos na tradução de Bay ressalta a tradição francesa do
bem escrever que caracteriza o polissistema literário, do qual o tradutor faz parte. Este polissistema
impõe, a si mesmo exclusivamente, normas de tradução às quais o tradutor pode se submeter sem mesmo
perceber.”
92
“Twain começa o seu romance tendo a idéia de contar uma história muito engraçada, suas personagens
sendo inocentes, embora astutas, e seus socioletos, em particular o AAE, criando um efeito cômico. É
necessário notar que as personagens adquirem, aos poucos, profundidade à medida que a história
progride, esse efeito cômico não atravessa toda a obra.”
91
No que diz respeito à função social que identifica o falante, Lavoie (1994, p.
129) demonstra como no simples fato de Jim fazer uma pergunta corriqueira, Twain
consegue revela o grupo étnico ao qual Jim pertence, dispensando até sua apresentação
posterior feita por Huck.
Or, les toutes premières paroles de Jim, qui sont ‘Who dah?’,
marquent, à elles seules, son appartenance sociale. Même si le
narrateur Huck ne nous avait pas présenté Jim comme étant ‘Miss
Watson’s nigger’, l’absence de verbe, la nouvelle graphie du
morphème ‘there’ auraient suffi pour indiquer la parole noire […]
93
Assim, constatamos que Twain conseguiu representar adequadamente Jim. No
entanto, quanto às traduções analisadas por Lavoie, os tradutores, para ela, falham nessa
representação, pois tanto a tradução de Nétillard quanto a de Bay deixa uma lacuna em
relação à representação do AAE. A primeira pela inadequação da criação de um dialeto
que não representa negros. A segunda por não haver tentativa de tradução dialetal, mas
apenas alguns desvios gramaticais.
Em relação à função ideológica, Lavoie (1994, p. 135) esclarece-nos:
D’ailleurs l’ironie de Twain est partout présente dans ce texte. En
effet, c’est à travers un abject personnage, à la fois ivrogne et batteur
d’enfants, Pap Finn, le père de Huck, que Twain fait circuler un
ensemble de lieux communs sur les Noirs. Pourtant, sur le plan
implicite, ce personnage canalise à lui seul tout le sarcasme de Twain
à l’endroit des Blancs et de leur manière de penser. C’est d’ailleurs ce
qu’affirme un historien marxiste, Philip S. Foner (1958), pour qui
The Adventures of Huckleberry Finn ‘[…] is filled with devastating
thrusts at the whole idea of white supremacy’ (p. 208). Or, non
seulement Twain dénonce l’esclavage, et un de ses fondements, le
racisme, mais son œuvre critique aussi la période post-esclavagiste,
celle de la Reconstruction (Kaspi, 1986, p. 199). Cette période voit
l’affranchissement des Noirs, mais leur vie n’en est past pour autant
améliorée.
94
93
“Contudo, exatamente as primeiras palavras de Jim, que são ‘Who dah?’, marcam, por si só, sua
posição social. Mesmo se o narrador Huck não tivesse apresentado Jim como sendo ‘Miss Watson’s big
nigger’, a ausência de verbo, a nova forma de grafar o morfema ‘there’ seriam suficientes para indicar a
fala negra [...]
94
“Aliás, a ironia de Twain está presente em todo o texto. De fato, é por meio de uma personagem
desprezível, que ao mesmo tempo bebe e espanca crianças, Pap Finn, o pai de Huck, que Twain faz fluir
um conjunto de lugares-comuns a respeito dos negros. Contudo, no plano implícito, essa personagem
canaliza sozinha todo o sarcasmo de Twain em direção aos brancos e sua forma de pensar. É por isso que
o historiador marxista Philip S. Foner (1958) afirma que The Adventures of Huckleberry Finn[...] é
repleto de ataques devastadores à idéia da supremacia branca’ (p. 208). Twain não somente denuncia a
escravidão, e um de seus fundamentos, o racismo, mas sua obra critica também o período pós-escravidão,
92
Quanto à função ideológica, além do discurso de Pap Finn, exibindo o racismo
do século 19, algumas falas de Huck e de outras personagens brancas, bem como e da
aceitação por parte de Jim dos planos mirabolantes de Tom para libertá-lo também são
exemplos de demonstração de racismo na obra. Em relação a Jim, vemos que ele não é
revoltado e submete-se as regras dos brancos, como se estes fossem os ‘conhecedores’
das atitudes ‘corretas’. Para ilustrar, o racismo presente em outras personagens, Lavoie
cita o comentário feito por tia Sally, transcrito abaixo:
[Huck] [...] We blowed out a cylinder-head.
[Aunt Sally] Good gracious! Anybody hurt?
[Huck] No,’m. Killed a nigger.
[Aunt Sally] Well, it’s lucky; because sometimes people do get hurt.
(TWAIN, 1994, p. 215)
95
Lavoie faz menção ao comentário de tia Sally, mas esquece-se de que o ‘não’ de
Huck também é racista, pois ele não considera, da mesma forma que a tia Sally, que um
negro seja alguém.
Embora a tradução de Nétillard crie uma linguagem para Jim, Lavoie julga-a
inapropriada por representar camponeses franceses e não negros como no original. No
entanto, ela não menciona a possibilidade ou a existência de outro dialeto próximo ao
AAE. A única referência que temos de outros dialetos em francês está no texto de
Brodosky, discutido, em que a tradutora sugere para a tradução do texto de Zora Neale
Hurston o francês caribenho. Quando à tradução de Bay, não há dialeto, mas apenas
pequenos desvios gramaticais. Uma referência importante a essa tradução é o fato de, no
discurso de Pap Finn, Twain usar ‘white-shirted free nigger
96
’ e Bay traduzir por ‘d’un
aquele da Reconstrução (Kaspi, 1986, p.199). Este período testemunha a libertação dos negros, mas a
vida deles não melhorou.”
95
[Huck] [...] É que explodiu a cabeça de um cilindro. [tia Sally] Meu Deus, alguém se machucou?
[Huck] Não. Só matou um negro. [tia Sally] Que sorte! Porque às vezes tem gente que se machuca.
(FLASKMAN, 1997, p. 243-244)
96
O trecho completo do original é: “Here’s a govment that calls itself a govment, and lets on to be a
govment, and thinks it is a govment, and yet’s got to set stock-still for six whole months before it can take
ahold of a prowing, thieving, infernal, white-shirted free nigger, and […] (1994, p. 35)”. Sérgio Flaksman
93
vieux singe noir en chemise blanche
97
’, assim, além de não usar o adjetivo ‘livre’, ele
acrescenta um conceito preconceituoso ao fazer uma ligação entre ‘macaco’ e ‘negro’, o
que não aparece no texto de Twain. As duas traduções analisadas falham em relação à
representação do AAE que, segundo Lavoie, pode ser explicada por duas hipóteses. A
primeira está relacionada ao contexto sócio-histórico e às requisições das editoras. O
contexto sócio-histórico, no qual as traduções foram feitas em função das exigências
estéticas e literárias da época, acabou influenciando as escolhas dos tradutores, pois não
havia o hábito de representar o dialeto em um romance. As exigências das editoras
ditaram as regras do conteúdo, assim como da forma das traduções. No texto de
Nétillard, por dirigir-se a adolescentes, houve supressão de passagens julgadas não
interessantes para este público, assim como eliminação de expressões consideradas
grosseiras e racistas. No texto de Bay, os editores podem ter pedido um texto mais
curto, de acordo com as exigências da editora. Portanto, Lavoie (1994, p. 140) acredita
que as duas traduções não responderam ao projeto ideológico profundo da obra, que era
“donner une voix, une identité donc, à des êtres qui, jusque-là, en avaient été prives.”
98
Assim, fica claro que Lavoie não concorda com nenhum dos resultados
apresentados pelas traduções, sem, no entanto, mostrar qual caminho deveria ter sido
seguido. Ela apenas conclui que a ideologia presente no texto original diluiu-se ou foi
completamente perdida nas traduções. E, portanto, o seu texto não nos responde qual o
dialeto literário em francês para Jim.
respeitou os adjetivos escolhidos por Twain e não omitiu o fato de o escravo ser livre, ficando a tradução
em português da seguinte forma: “É governo isso? O governo diz que é governo, passa por governo, acha
que é governo, mas tem que ficar seis meses parado sem fazer nada, e só depois é que pode agarrar esse
negro de camisa branca, esse negro metido, ladrão, esse negro livre dos infernos, e [...] (FLAKSMAN,
1997, p. 42)”
97
“De um velho macaco negro de camisa branca.”
98
“Dar uma voz, uma identidade, assim, a pessoas que até aquele momento tinham sido privadas dela.”
94
3.3.2 Lisa Cohen Minnick: Jim estereotipado?
Embora Mark Twain tenha deixado escrito no explanatório que a distinção entre
os dialetos usados pelas personagens foi feita de forma intencional, esmerada e com
conhecimento, segundo Lisa C. Minnick, poucos críticos abordam a questão de como
Jim foi caracterizado por meio de uma investigação detalhada da representação de sua
fala.
No capítulo 4 do livro Dialect and Dichotomy: Literary Representations of
African American Speech, Minnick (2004, p. 59) afirma:
In response to the persuasive interpretations of Eric Lott, Toni
Morrison, Frederick Woodward and Donnarae MacCann, and others
who conclude that Jim is represented negatively and stereotypically,
this chapter explores the characterization of Jim through an analysis
of his speech as represented by Twain.
99
Ainda segundo Minnick, muitos desses mesmos críticos concordam com o fato
de Twain ter caracterizado Jim com superioridade moral a quase todas as outras
personagens. Ela afirma que quando os críticos recorrem ao aspecto lingüístico o fazem
exclusivamente para verificar se a afirmação do primeiro parágrafo do explanatório é
pertinente ou não.
De forma resumida, a metodologia usada por Minnick em sua pesquisa tem por
base a lingüística de corpus. Ela preparou seu corpus para o estudo das falas de Jim
100
apenas com discurso direto. Como encontrar exemplos de fala real produzida por afro-
americanos contemporâneos de Jim, ou seja, de meados do século 19, era quase
impossível, Minnick optou por uma fonte disponível de AAE mais antiga de dados de
99
“Em resposta às interpretações persuasivas de Eric Lott, Toni Morrison, Frederick Woodward e
Donnarae MacCann, entre outros que concluem que Jim é representado de forma negativa e estereotipada,
este capítulo explora a caracterização de Jim por intermédio da análise de sua fala como foi representada
por Twain.”
100
Minnick dedica o capítulo 4 de seu livro ao estudo da representação do AAE das falas de Jim; porém,
ela trabalha com outras obras além de Huckleberry Finn.
95
Atlas Lingüísticos
101
. A partir das falas de Jim, Minnick determinou o grau de exatidão
da fala da personagem, e observou aspectos gramaticais e fonológicos. De trinta e uma
características para investigação, ela selecionou as mais evidentes associadas ao AAE,
como: redução de agrupamento consonantal final e supressão de verbos auxiliares e de
ligação. A sua intenção era verificar as ocorrências de características do AAE em
comparação com a obra para tentar determinar se Twain representou ou não a fala de
Jim de forma autêntica. Ela constatou que, tanto na fonologia quanto na gramática,
Twain incorporou características possíveis de serem identificadas em falantes reais do
AAE. Minnick (2004, p. 67) também afirmou que “[...] he did so in a way that reveals
his understanding of how these features functioned in real speech.”
102
Embora ela tenha
chegado à conclusão de que lingüisticamente Jim não tenha sido caracterizado de forma
negativa nem estereotipada, ela não acredita que somente uma pesquisa lingüística
possa dar conta das opiniões controversas a respeito da caracterização dele. Minnick
considera importante a visão de que todas as variedades lingüísticas são regidas por
regras e são igualmente válidas como sistema de expressão. Sem esta visão, caso um
leitor acredite que o AAE não seja uma variante válida, ele poderá perceber em Jim um
retrato negativo pela sua forma de falar simplesmente porque ela contém características
associadas ao AAE.
Minnick faz menção a alguns críticos que não apresentam dados lingüísticos
para confrontar suas críticas, nem evidências para comprovar suas críticas, como é o
caso de Sewell, autor já mencionado na seção 2. Quanto a ele, a autora (2004, p. 69)
afirma:
101
Fonte e descrição completa da metodologia usada por Minnick encontram-se no capítulo três do livro
mencionado. Para as fontes, ela cita os dados de falante reais que incluem estudos com base em
comunidade e análises conduzidas por pesquisadores no uso da língua em comunidades afro-americanas e
também com corpora de dados de fala afro-americana, como os fornecidos por pesquisa em estudo,
especialmente dos projetos de Atlas Lingüísticos.
102
“[...] ele o fez de forma que revela seu entendimento de como as características funcionavam na fala
real.”
96
In attributing to critics a dependence on a questionable either/or
relationship between exaggerated speech and realistic speech, Sewell
asks for acceptance of an in-between interpretation of Jim’s language
without offering linguistic evidence, such as features analysis, and
ignores studies that produce such evidence, especially including the
linguistic surveys of older speakers in Missouri conducted by Lee
Pederson in the 1960s. And as I have tried to show, my analysis also
seriously challenges Sewell’s view that Jim’s speech is not
realistic.
103
Um último aspecto levantado por Minnick diz respeito a críticos que
argumentam haver na representação de Jim aspectos menestréis
104
, comuns a escritores
que representaram personagens falantes do AAE no século 19. Um dos aspectos dessa
representação negativa é o fato de Jim acreditar no sobrenatural que, segundo eles, era
matéria-prima do menestrel. Minnick diz haver uma possibilidade deste fato, mas, por
outro lado, apresenta alguns pontos do estudo de Shelley Fisher Fishkin (apud
MINNICK, 2004, p. 74), cuja análise de Huckleberry demonstra que a crença de Jim em
fantasmas e no sobrenatural “[...] may turn out to have their roots in his African and
African-American past”.
105
Outro ponto ainda referente ao menestrel, segundo os
críticos, seria a cena do capítulo 8 em que Jim encontra Huck e pensa que este está
morto. A descrição de Jim, para eles, é cômica. Porém, para os que não vêem nisso uma
diminuição de Jim, a cena em que Tom encontra Huck, no capítulo 33, mostra Tom da
mesma formamica que Jim. Também Tom domina as cenas finais do livro e é
caracterizado de forma nada positiva. Além disso, Minnick conclui que talvez Twain
tenha querido fazer caçoada de Jim, assim como de Tom, o que demonstra a tendência
de Twain a ridicularizar sem piedade qualquer um, independente de raça. Mas a
conclusão de Minnick (2004, p. 76) é a de que:
103
“Ao atribuir aos críticos uma dependência de uma questionável relação ‘ou um ou outro’ entre a fala
exagerada e a realista, Sewell pede a aceitação de uma interpretação no meio-termo da linguagem de Jim
sem oferecer evidência lingüística, tal como análise das características, e ignora estudos que podem
produzir tais evidências, especialmente incluindo pesquisas lingüísticas de falantes mais antigos no
Missouri conduzidas por Lee Pederson nos anos de 1960. Assim como eu tentei demonstrar, minha
análise desafia seriamente a visão de Sewell de que a fala de Jim não é realista.”
104
A quinta acepção do termo ‘menestrel’, no Dicionário Aurélio – Século XXI, é “Atualmente, nos EUA,
comediante negro ambulante.” As outras acepções referem-se a ‘cantor’ e ‘poeta’ medieval.
105
“[...] revela ter suas raízes no passado africano e afro-americano.”
97
Like everyone in America then and now, Twain struggled with and
against the influences of a racist society and, like most of us, did not
always prevail. The flaws in his art may simply represent the flaws in
his character, which are no less human than those of any of his
critics. Finally, I have to argue on behalf of the enormous artistic,
historical, and linguistic value of Twain’s greatest work. The
complexity of the art and politics of Adventures of Huckleberry Finn,
and its propensity for generating heated critical discourse as well as
deeply emotional human reactions, are simply products of the
greatness of the novel. As no human being is without complexity or
contradiction, neither is great art.
106
3.4 Apresentação das falas de Huck, Tom e Jim no texto de Twain
Como tratamos nesta seção do conceito, forma de construção e também das
implicações no uso do dialeto literário, com base em estudos a respeito de sua
representação, assim como a opinião de tradutores sobre seus usos na tradução, parece-
nos mais apropriado fazer a apresentação de como Twain usou-o para representar
lingüisticamente Huck, Jim e Tom, neste espaço. Assim, faremos um levantamento mais
detalhado dos elementos constitutivos das falas dessas três personagens. Com esse
intuito, retiramos o material relacionado aos dialetos literários pertencente aos mesmos
capítulos para a análise das três traduções (seção 4), assim como para a proposta de
tradução (seção 5), que são: capítulos 1, 2, 8, 14 e 38. O primeiro capítulo foi escolhido
por ser a abertura da obra. A seleção do segundo foi decorrente do fato de termos a
primeira atuação de Tom Sawyer e Jim. A opção pelo oitavo foi feita por ser o primeiro
capítulo em que ocorrem os diálogos entre Jim e Huck. Trata-se de um dos mais longos
106
“Como todos na América desde aquele momento, Twain lutou com e contra as influências de uma
sociedade racista e, como muitos de nós, nem sempre foi bem-sucedido. Os defeitos em sua arte podem
simplesmente representar as falhas em seu caráter, as quais não são menos humanas do que as de
qualquer um de seus críticos. Finalmente, eu tenho de argumentar em favor do enorme valor artístico,
histórico e lingüístico da obra-prima de Twain. A complexidade da arte e política de As aventuras de
Huckleberry Finn e sua propensão para gerar discussão crítica acalorada, assim como reações humanas
profundamente emocionais são simplesmente produtos da grandeza do romance. Assim como não há ser
humano sem complexidade nem contradição, o mesmo ocorre com a arte primorosa.”
98
do livro, oferecendo material suficiente para o delineamento das falas de Jim. O décimo
quarto capítulo foi escolhido muito por gosto pessoal, mas também porque ele contribui
para o aumento dos diálogos a serem trabalhados na proposta de tradução. Finalmente, o
trigésimo oitavo foi selecionado por haver o encontro de Huck, Jim e Tom, fornecendo
material lingüístico suficiente para comparar e balizar as falas de cada uma das três
personagens. Apresentaremos os elementos identificadores de dialetos em tabelas, com
o seguinte cabeçalho: características e exemplos. As falas das personagens serão
mostradas na seguinte ordem: Jim, Huck, Tom, Ben Rogers (C.2, p. 17-18-19), capitão
(C.8, p. 45) e um homem (C.8, p. 47).
Para as tabelas de Jim, tomamos por base as feitas por Minnick (2004), ou seja,
usamos as características determinadas por ela como de falantes da comunidade afro-
americana e, de acordo com nossa seleção, inserimos um exemplo para cada
característica. A análise de Minnick apresenta duas categorias: características
fonológicas e gramaticais. A nossa acrescenta um dado de característica lexical e mista.
Nesta última, encontram-se elementos cujos exemplos não se enquadram em nenhuma
categoria específica.
Para as falas de Jim e Huck apresentaremos tabelas com exemplos dos capítulos
selecionados, cujas características são: fonológicas, gramaticais 1 (adaptada do estudo
de Minnick [2004, p. 67]), gramaticais 2, lexicais e mistas. Para as falas de Tom,
apresentaremos as tabelas com as características acima, com exceção das mistas.
Também foram feitas tabelas, apenas com características mistas, para Ben Rogers, o
capitão e uma outra personagem sem nome, pois suas falas são representadas na
proposta de tradução.
Usamos em média cinco exemplos de características fonológicas, para Huck e
Tom, e para cada descrição de características gramaticais, um exemplo. Foram coletadas
99
várias falas dialetais dos capítulos mencionados, finalmente chegando à tabela que se
encontra no anexo B, e, posteriormente, as falas foram apresentadas por categorias nas
tabelas mencionadas acima.
Tabela 1 – Jim: características fonológicas
Nesta tabela podemos reconhecer elementos fonológicos determinados por
Minnick como próprios da comunidade afro-americana da época retratada em
Huckleberry. Embora alguns dos vocábulos sofram mais alterações que outros, é
possível lê-los sem muitas dificuldades.
Características Exemplos
1. Vocalização de /r/ pós-vocálico I come heah de night arter you’s killed...
(C.8)
2. Perda do /r/ após consoante She could git eight hund’d (C.8)
3. Perda intervocálica do /r/ com perda da
sílaba
... en it’s diffunt (C.14)
4. Interrupção de fricativas com sílaba
inicial
Dat’s good. (C.8)
5. Fricativas interdentais trocadas por
labiais
Bofe um you claims it. (C.14)
6. Redução do grupo consonantal - Dey ain’ no kings here, is dey, Huck?
(C.14)
7. Supressão da sílaba átona ...bout dat chile dat... (C.14)
8. /n/ em vez de /ŋ/ no particípio presente What’s de user er makin’ up (C.8)
9. Outras alterações do /n/ em vez de /ŋ/ ‘Long ‘bout six in the mawnin’ (C.8)
10. /t/ em posição final Dey started acrost, so by de talk... (C.8)
11. /j/ após interrupção velar de /k/ e /g/ ...a pack er k’yards (C.14)
12. Alteração do /aI/ por / I/ I see a light a-coming roun’ de pint, ...
(C.8)
13. Fusão do /ε/ por /I/ ...tell I hears it agin. (C.2)
Além dessas características fonológicas, Minnick apresenta mais quatorze
tabelas, as quais traduzimos e incluímos no anexo C deste trabalho.
Tabela 2 – Jim: características gramaticais 1 (traços da comunidade afro-
americana)
Características Exemplos
1. Supressão do verbo auxiliar What he gwyne to do? (C.14)
2. Dupla negativa* I couldn’t get nuffn else (C.8)
100
3. Supressão do ‘s’ da 3ª pessoa do plural How much do a king get? (C.14)
4. 1ª pessoa do singular/plural com ‘s’ Well, I knows what ...(C.14)
5. Passado não marcado I begin to get oneasy (C.8)
6. Passado do verbo irregular tornado
regular
I’uz hungrgy, but I warn’t afeared; bekase
I knowed ole missus ... (C.8)
7. Supressão do ‘s’ do plural ..., en went ‘bout two mile er more (C.8)
8. Prefixação com ‘a’ I see a light a-comin (C.8)
9. Nivelamento do ‘was’ …who wuz it dat uz killed in dat shanty?
(C.8)
10. Nivelamento do ‘weren’t’ He warn’t no wise man. (C.14)
* Minnick classifica essa categoria como ‘múltiplas negativas’
A tabela acima também foi baseada na de Minnick, mas apresentamos apenas as
características encontradas nos capítulos selecionados para análise e proposta de
tradução. Alguns desses elementos, como veremos posteriormente, aparecem nas falas
de Huck, Tom e também de Ben Rogers.
Tabela 3 – Jim: características gramaticais 2 (outros traços)
Características Exemplos
1. Verbo ‘be’no presente, na 3ª pessoa do
singular para todas as pessoas do verbo
... ‘bout yo’ pap come over to de town em
say you’s killed. (C.8)
2. Verbo ‘be’ no passado afirmativo I knowed dey was arter you. (C.8)
3. Uso do ‘ain’t’ para todas as pessoas do
verbo
But I ain’ gwyne to resk no mo’ money in
stock. (C.8)
4. Uso do ‘hain’t’ para todas as pessoas do
verbo
I hain’t ever done...
5. Forma do pronome indefinido
‘some/any’ + ‘s’
.. em ‘spec to steal a skift ‘long de sho’
som’ers ‘bove de town, … (C.8)
Tabela 4 – Jim: características lexicais
Características Exemplos
1. Phrasal verbs I lit out mighty quick, I tell you. (C.8)
..., en got busted out. (C.8)
2. Léxico informal I doan’ take no stock in dat. (C.8)
3. Termos recorrentes I see a light a-comin’ roun’ de p’int,
bymeby, ... (C.8)
Poderíamos incluir, na tabela acima, muitos outros exemplos, mas a intenção ao
apresentar as características lexicais é a de marcar alguns termos e expressões, cuja
ocorrência é recorrente. Assim, os ‘phrasal verbs’, que são muito comuns na linguagem
coloquial, são empregados em abundância no texto por todas as personagens. No caso
101
de ‘léxico informal’, escolhemos um exemplo que todas usam. Quanto ao ‘termos
recorrentes’, escolhemos o mais expressivo de cada personagem.
Tabela 5 – Jim: características mistas
Características Exemplos
1. Tautologia Ole Missus – dat’s Miss Watson – she
pecks on me all the time, … (C.8)
2. Dialeto visual I’s gwyne to set down here and listen tell I
hears it agin. (C.2)
A fim de distinguirmos o dialeto visual e dar, pelo menos, um exemplo dele,
tomamos por base sua descrição dada por Sumner Ives (1950, p. 147), como podemos
verificar:
A further type of exaggeration comes from the fact that all dialect
writers, so far as I know, sometimes use spellings that mean nothing
at all phonetically; they are merely a sort of visual signal to the reader
that the dialect speaker is not literate.
107
Portanto, julgamos interessante mencionar como dialeto visual ‘set’ no lugar de
‘sat’ ou ‘sit’, pois todas as personagens o usam. Além disso, Minnick não inclui esse
dialeto entre os elementos com características fonológicas, assim como também não
apresenta exemplos de dialetos visuais.
Tabela 6 – Huck: características fonológicas
Características Exemplos
1. Supressão vocálica e consonantal de
morfema ou sílaba átona
I reckoned I couldn’t stand it more’n a
minute longer, .... (C.2)
…, ‘stead of mister (C.14)
Sh! – d’ you hear a noise! (C.14)
…, Jim a-making his’n out of the brass
and I making mine out of the spoon. (C.
38)
107
“Um outro tipo de exagero ocorre pelo fato de os autores de dialetos, pelo que sei, às vezes usarem
uma ortografia que não tem significado em termos fonológicos; eles são apenas um tipo de sinal visual
para o leitor identificar o falante de dialeto como analfabeto.”
102
S’pose a man was to come to you and
say…
Uma observação relevante é a que as características fonológicas de Huck
começam a aparecer, com mais freqüência, nos capítulos em que há diálogos. As
narrações de Huck, principalmente as do primeiro capítulo não trazem exemplos de
características fonológicas.
Tabela 7 – Huck: características gramaticais 1 (traços da comunidade afro-
americana)
Características Exemplos
1. Supressão do verbo auxiliar I never seen anybody but lied,... (C.1)
2. Dupla negativa * …but she never meant no harm… (14)
3. 1ª pessoa do singular/plural com ‘s’ I hears it again ... (C.8)
4. Passado do verbo irregular tornado
regular
I knowed might well ... (C.8)
5. Prefixação com ‘a’**
1. Here she was a-bothering about ... (C.
1)
2. ... where you wouldn’t a noticed ...
(C.1)
3. I’m agoing to find out … (C.1)
6. ‘wasn’t’ e ‘weren’t’ tornados ‘warn’t’ Though there warn’t really … (C.1)
* Minnick classifica essa categoria como ‘múltiplas negativas’
** Minnick só exemplifica prefixação de ‘a’ antes de particípio presente, mas há exemplos de
particípio passado também. O exemplo de nº 3 refere-se apenas ao uso do ‘a’ sem hífen, que
também é comum.
Tabela 8 – Huck: características gramaticais 2 (outros traços)
Características Exemplos
1. Verbo ‘be’: presente: na 3ª pessoa do
singular para todas as pessoas do verbo
Niggers is always talking ... (C.2)
2. Uso do ‘ain’t’ para todas as pessoas do
verbo
... but that ain’t no matter ... (C.1)
3. Forma ‘there + be’ sempre na 3ª pessoa
do singular
There was things …
4. Forma do pronome indefinido
‘some/any’ + ‘s’
All I wanted was to go somewheres. (C.1)
Quanto às três últimas tabelas, podemos comentar que muitos dos traços da fala
de Jim, principalmente em termos gramaticais, ocorrem também na de Huck. A grande
diferença está, de fato, nas características fonológicas. Embora algumas delas, como
103
‘resk’ ‘risk’ e ‘git’ ‘get’ sejam usadas tanto por Huck quanto por Tom, além de
Jim.
Tabela 9 – Huck: características lexicais
Características Exemplos
1. Phrasal verbs I lit out. (C.1)
She let it out (C.1)
I couldn’t make out (C.1)
And I was giving it up (C.8)
2. Léxico informal I was in a sweat (C.2)
take no stock in … (C.1)
Quanto às características lexicais, procuramos registrar pelo menos exemplos
que ocorrem nas falas de outras personagens, como o ‘lit out’ e o ‘take no stock in’.
Tabela 10 – Huck: características mistas
Características Exemplos
1. Tautologia Tom’s Aunt Polly, she is … (C.1)
…because the widow she told me so …
(C.14)
2. Dialeto visual … she would sivilize me, … (C.1)
I set down … (em lugar de sat) (C.1)
3. Termo recorrente em toda a narrativa By-and-by (c.1)
Looky here, Jim ... (C.14)
É recorrente a tautologia, como exemplificada, nas falas de Huck assim com nas
de Jim. Podemos dizer que Huck apresenta muitos elementos similares aos de Jim.
Tabela 11 – Tom: características fonológicas
Características Exemplos
1. Supressão vocálica e consonantal de
morfema ou sílaba átona
But per’aps if we keep … (C.2)
… you can learn’em anything? (C.2)
Why, Huck s’pose it is … (C.38)
... what kind of music ’tis. (C.38)
... that’ll scoop a rat, quicker’n anything
(C. 38)
104
Tabela 12 – Tom: características gramaticais 1 (traços da comunidade afro-
americana)
Características Exemplos
1. Dupla negativa* … and there ain’t going to be no flaws in
… (C.38)
2. Passado do verbo irregular tornado
regular
I reckon I knowed that,... (C.38)
3. Prefixação com ‘a’: particípio presente Come to think, the logs ain’t agoing to
do... (C.38)
* Minnick classifica essa categoria como ‘múltiplas negativas’
Tabela 13 – Tom: características gramaticais 2 (outros traços)
Características Exemplos
1. Uso do ‘ain’t’ para todas as pessoas do
verbo
… and such things ain’t robbery, …(C.2)
2. Uso do ‘hain’t’ para todas as pessoas do
verbo
Well, hain’t he got a father?
Tabela 14 – Tom: características lexicais
Características Exemplos
1. Phrasal verbs Muddled up (C.2)
2. Dialeto visual You want to set on your bed, nights,
before you go to sleep, …(C.38)
3. Termo recorrente na narrativa By-and-by (C.2)
Como podemos ver, as características dialetais são menos freqüentes em outras
personagens quando comparadas às falas de Jim. Assim, das três personagens, Tom é o
menos representado em termos dialetais.
Tabela 15 – Ben Rogers (capítulo 2): características mistas
Características Exemplos
1. Presença do ‘hain’t’ ... he hain’t got no family - …(C.2, p. 17)
2. Presença do ‘ain’t’ But go ahead, I ain’t got nothing to say.
(C.2, p. 19)
3. Dupla negativa , but you can’t never find him, …(C.2, p.
17)
4. Supressão do verbo auxiliar - What you going to do ‘bout him? (C.2,
p. 17)
5. Léxico informal That’s the thing I want to get at. (C.2, p.
18)
- and a bothersome lot they’ll be, too, …
(C.8, p. 18)
, but I don’ take no stock in it. (C.2, p.
105
19)
6. Dialeto visual So somebody’s got to set up all night ….
(C.2, p. 18)
Na fala de Ben Rogers, temos exemplos de tudo o que já verificamos nas das
outras personagens, embora ele apareça apenas no capítulo 2.
Tabela 16 – Capitão (capítulo 8): características mistas
Característica Exemplo
1. ‘was’ marcado apenas com ‘s’ ...and maybe he’s washed ashore and got
tangled amongst the bush (C.8, p. 45)
Há apenas duas pequenas falas do capitão, sem exemplos significativos para
nosso levantamento.
Tabela 17 – Homem (capítulo 8): características mistas
Características Exemplos
1. Supressão do verbo auxiliar ‘We better camp here, if we can find a
good place; (C.8, p. 47)
2. Verdo ‘be’ (presente): na 3ª pessoa do
singular para a 3ª do plural
the horses is about beat out. Let’s look
around. (C.8, p. 47)
Embora só haja uma fala de tal personagem, há dois bons exemplos de
características gramaticais.
Podemos resumidamente observar que as três personagens principais apresentam
vários elementos semelhantes tanto em termos gramaticais quanto lexicais e mistos. A
diferença básica entre suas falas está na caracterização fonológica e também na
quantidade de uso dessa característica. Na fala de Jim há vários traços indicativos de
dialeto, enquanto nas de Huck alguns, e nas de Tom menos ainda. Portanto, em termos
lingüísticos, Jim é a personagem com a rede dialetal mais trabalhada e o mesmo deverá
ocorrer em português para que ele seja adequadamente representado. Dessa forma,
julgamos apropriado passar agora à análise das três traduções.
106
4 MONTEIRO LOBATO, SERGIO FLAKSMAN E ALEX MARINS: SENHOR
HUCKLEBERRY FINN OU SEU
108
HUCKLEBERRY FINN OU
EXCELENTÍSSIMO SENHOR HUCKLEBERRY FINN?
Nesta seção iremos delinear as características dos ‘Hucks’, ‘Jims’ e ‘Toms’ das
traduções de Monteiro Lobato, Sergio Flaksman e Alex Marins, no intuito de saber
como as personagens de Twain comportam-se em português do Brasil, visto que
acabamos de apresentar como elas o fazem em inglês. Para tanto, faz-se necessário
investigar dois aspectos: as datas de cada tradução, pois elas indicam o contexto
histórico em que essas obras se inserem, e a maneira pela qual os três tradutores vêem
Mark Twain, Huckleberry Finn ou ambos. Os indícios referentes a essa possível forma
de os tradutores enxergarem o autor e a obra ajudarão a melhor compreender se estamos
diante do ‘Senhor Huckleberry Finn’ ou de ‘Seu Huckleberry Finn’ ou, ainda, do
Excelentíssimo Senhor Huckleberry Finn’.
Dos três tradutores, Sergio Flaksman é o único a revelar na ‘nota do tradutor’
sua estratégia de tradução. Monteiro Lobato, por sua vez, como escritor e tradutor
mostra-nos uma linha de pensamento e de comprometimento com o texto, fato esse que
contribui para a investigação de sua postura diante de uma obra a ser traduzida. Alex
Marins não apresenta sua estratégia tampouco sinais de sua postura frente à tradução, no
entanto, para se ter uma idéia, sua lista de livros traduzidos conta com mais de trinta
títulos, dentre os quais: Leviatã (1651) de Thomas Hobbes, Assim falou Zaratustra
(1884) de Friedrich Nietzsche e Crime e Castigo (1866) de Fiódor Dostoievski.
Nenhuma tradução em língua portuguesa do Brasil
109
, até o momento, usa
linguagem dialetal como ‘sugestão’ expressa no explanatório de Mark Twain. Nós
escolhemos três, sendo que a de Flaksman optou por uma linguagem coloquial. Assim,
108
‘Seu’ refere-se à forma coloquial de ‘senhor’.
109
Além das três traduções usadas para análise nesta pesquisa, há as traduções de Alfredo Ferreira (1957),
Herberto Sales (1969) e a de José Maria Machado (1961). A menção a estas traduções aparece no estudo
de Michelangelo Di Vito (1997).
107
pode-se dizer que as três traduções embasaram seus trabalhos de acordo com a tradição
essencialista
110
, para a qual o que importa é ‘o que diz’ e não ‘como’ diz a personagem.
A análise procederá de forma geral, mostrando elementos básicos na composição
das traduções e, posteriormente, um cotejo de alguns trechos de Twain e do tradutor sob
análise. Começaremos por Monteiro Lobato, passando a Sergio Flaksman e, depois, a
Alex Marins.
4.1 Monteiro Lobato: algumas diferenças entre o escritor e o tradutor
Dentro do quadro de escolas da Literatura Brasileira, Monteiro Lobato (1882-
1948) pertence ao período denominado Pré-Modernismo (fim do século 19 e início do
20) e ocupa posição de destaque como escritor de livros infanto-juvenis, mas também
de literatura adulta. O Sítio do Pica-Pau Amarelo é o espaço usado para criar seu
universo literário com inúmeras aventuras de suas personagens. Entre as mais
conhecidas estão o Jeca Tatu, embora este não seja personagem do Sítio, e a boneca
Emília. Com a primeira, apresentada em seu livro Urupês (1918), Lobato mostrou a
realidade social e precária da vida do caboclo. Da última, fez uma boneca de pano cheia
de vida, espontânea e questionadora. É ela que, em Emília no país da gramática
(1934
111
, p. 105-106), apresenta as idéias de Lobato quanto à língua portuguesa falada e
escrita no Brasil, como podemos ver a seguir em uma conversa com a senhora
110
Um dos motivos dados por John Milton para textos em língua de partida com dialetos e em língua de
chegada com linguagem padrão relaciona-se ao que ele diz ser “[...] a razão ‘essencialista’, ‘platônica’,
para a qual o dialeto é de somenos importância, importando o que diz a personagem e não como diz.”
(2002, p. 55)
111
Sabemos que a data da 1ª edição de Emília no País da Gramática, assim como Emília no País da
Aritmética, é de 1934; porém, usamos a edição do Círculo do Livro, que não traz data nem número de
edição.
108
Etimologia.
[...] Uma língua não pára nunca. Evolui sempre, isto é, muda sempre.
Há certos gramáticos que querem fazer a língua parar num certo ponto,
e acham que é erro dizermos de modo diferente do que diziam os
clássicos.
[...]
[especificamente quanto ao Brasil e o português daqui] A língua desta
cidade está ficando um dialeto da língua velha. Com o correr dos
séculos é bem capaz de ficar tão diferente da língua velha como esta
ficou diferente do latim. Vocês vão ver. [grifo do autor]
Ainda nesse livro, Emília questiona a Senhora Sintaxe, na ala dos vícios de
linguagem, sobre o porquê da permanência de um pobre homem da roça estar na prisão,
e eis a resposta:
- Este é o PROVINCIANISMO, que faz muita gente usar termos só
conhecidos em certas partes do país, ou falar como só se fala em
certos lugares. Quem diz naviu, ménino, mecê, nhô, etc. está
cometendo Provincianismo.
Emília não achou que fosse caso de conservar na cadeia o pobre
matuto. Alegou que ele também estava trabalhando na evolução da
língua e soltou-o.
- Vá passear, seu Jeca. Muita coisa que hoje esta senhora condena vai
ser lei um dia. Foi você quem inventou o VOCÊ em vez do TU, e só
isso quanto não vale? Estamos livres da complicação do
TUTURUTUTU. (LOBATO, 1934, p. 124-125, grifo do autor)
Esse livro foi escrito por Lobato em 1934, ou seja, há mais de setenta anos, e,
ainda hoje, muito do que ele disse poderia ser repetido para as novas gerações e ainda
soar como novidade, pois a gramática continua ‘proibindo’ alguns falares e ‘ditando’
regras do ‘correto’. Essa posição de vanguardista, por intermédio da fala da velha Dona
Etimologia e da própria Emília, lembra a insubordinação de Twain quanto às regras
gramaticais, fazendo uso da ‘boa’ gramática pitorescamente em alguns trechos. Embora
Twain seja mais radical e inovador que Lobato
112
, este defendeu idéias nacionalistas
para ver o crescimento do país e também se empenhou no abrasileiramento da nossa
112
O uso dos termos ‘radical’ e ‘inovador’ para qualificar Twain em comparação a Lobato não tem
propriamente um sentido de valor positivo ou negativo, mas antes refere-se à posição de pioneirismo
ocupada por Twain na literatura norte-americana. Twain introduz uma nova maneira de escreve e é ponto
de referência para outros escritores, como Hemingway e Faulkner, entre outros. Lobato, com toda a
relevância na literatura infanto-juvenil que lhe é devida, foi um escritor combativo e, até certo ponto,
apresenta uma literatura militante; porém, não rompe padrões como o fez Twain.
109
língua, como nos confirma Edith Pimentel Pinto (1994, p. 60), em O Escritor Enfrenta
a Língua:
O abrasileiramento da linguagem de Lobato, especialmente notável
na literatura infantil – toda ela produzida na que consideramos sua
segunda fase – corresponde a um propósito claramente exposto na
primeira: a modelagem de uma expressão tão peculiar e tão potente,
no Brasil, quanto a de um Camilo Castelo Branco em Portugal.
Segundo Edith Pimentel Pinto (1994, p. 51), a obra de Monteiro Lobato pode ser
dividida em “três grupos de escritos: os da finalidade claramente literária; os de
finalidade pragmática, voltados para a defesa de idéias ou propostas; e os de finalidade
subjetiva – ou de expressão pessoal –, a sua riquíssima correspondência.”. Ela não
menciona as traduções de Lobato, mas como, em muitas delas, ele usa de tom didático
nas vozes de suas personagens para entremear idéias políticas, como as diferenças entre
Brasil e Inglaterra ou Estados Unidos, países que Lobato admirava, vemos suas
traduções entre as obras de finalidade pragmática. Quanto a este último ponto, John
Milton (2004, p. 217, grifo do autor) esclarece, em The Political Adaptations of
Monteiro Lobato:
Lobato’s work is overtly didactic as he is always placing his pet
themes in the middle of the story. One of the most prominent is that
of expanding the book market in Brazil. At the beginning of Peter
Pan, the children, Pedrinho and Narizinho, and the doll, Emília,
having heard about Peter Pan in As Reinações de Narizinho [The
Reigns [sic] of Narizinho], ask their grandmother, Dona Benta, who
Peter Pan is. As Dona Benta doesn’t know, she writes to a bookshop
in São Paulo, who send her Barrie’s work in English. Lobato thus
inserts an advertisement for mail orders for book shops, and then
Dona Benta retells the story to the children and dolls in Portuguese,
thus re-enacting in the book the situation of an oral retelling
113
.
Embora Lobato não utilize a voz de nenhuma de suas personagens, e sua
113
“A obra de Lobato é claramente didática, pois ele está sempre colocando seus temas favoritos em meio
às histórias. Uma das mais notórias é a da expansão do mercado de livros no Brasil. No começo de Peter
Pan, as crianças, Pedrinho, Narizinho e a boneca Emília, tendo ouvido a respeito de Peter Pan em As
Reinações de Narizinho, perguntam à avó, dona Benta, quem é Peter Pan. Como Dona Benta não sabe,
ela escreve para uma livraria em São Paulo, a qual lhe envia uma obra de Barrie em inglês. Lobato, assim,
insere uma propaganda de pedidos de livros às livrarias para serem entregues pelo correio e, depois, Dona
Benta reconta a história para as crianças e bonecos em português, dessa forma, desempenhando,
novamente no livro, a situação do recontar oral.”
110
didática seja mais sutil nas Aventuras de Huck, ela não passa desapercebida, como
podemos verificar em sua tradução dos seguintes trechos em inglês “Aunt Polly –
Tom’s Aunt Polly, she is – and Mary [...]” que ficou “... Tia Polly (tia de Tom, não
minha),...” (Capítulo 1, grifo nosso) e “Everybody said it was a real beautiful oath […]”
e sete parágrafos abaixo “Then they all stuck a pin in their fingers to get blood to sign
with, and I made my mark on the paper” com a seguinte tradução “Todos aplaudiram,
achando que o juramento estava muito bem pensado” e sete parágrafos abaixo “Depois
de acertado esse ponto, cada qual espetou o dedo com um alfinete para assinar a sangue
o juramento.” (Capítulo 2, grifo nosso). Podemos observar que Lobato insere pequenas
explicações para ‘ajudar’ o leitor.
Esse livro de Twain é trazido ao Brasil por Lobato em 1934, como podemos ver
na seguinte afirmação de Maria Sílvia Betti (2003, p. 420):
É pelas mãos de Monteiro Lobato que pela primeira vez um livro de
Mark Twain irá ter, em 1934, sua primeira tradução nacional. Trata-
se de As Aventuras de Huck. Monteiro Lobato havia sido adido
comercial em Nova York entre 1927 e 1931. O período de
permanência no país proporcionara-lhe amplo contato com a
literatura em língua inglesa em geral, e em particular com a norte-
americana, e Lobato, talentoso na arte da tradução-adaptação literária,
encontra em Twain pontos de afinidade com suas próprias convicções
de escritor. Posteriormente ele viria a traduzir e adaptar também As
aventuras de Tom Sawyer, em tradução adaptada que continua
encontrável, seja em catálogos de editoras atuais, seja nos acervos de
bibliotecas.
Monteiro Lobato introduz, com Huckleberry, uma literatura nova em nossa
cultura, pois, em 1934, a influência norte-americana não era grande como a francesa.
Vemos sua admiração pela cultura norte-americana e sua francofobia expressas na
seguinte fala de sua personagem em O Choque, em Mark Twain e Monteiro Lobato: um
estudo comparativo, no ensaio de Cassiano Nunes (LOBATO apud NUNES, 1960, p. 39):
Veja a França. Estude a Convenção Francesa. Sessão permanente de
utopismo furioso – e a resultar em que calamidades! Por que? Porque
irrealizável, contrário à natureza humana. Veja agora a América. Em
todos os grandes momentos da sua história, sempre vencedor o
idealismo orgânico, o idealismo pragmático, a programação das
111
possibilidades que se ajeitam dentro da natureza humana.
E a confirmação da antipatia em relação à França, agora nos dizeres de Milton
(2004, p. 214):
In ‘Traduções’ (Lobato 1964: 125-130) Lobato emphasizes the
spiritual enrichment which translations, and not only translations
from the French can provide, and mentions the scarcity of good
translations from languages other than French
114
.
Se até agora pôde ser observada certa semelhança entre o escritor e tradutor,
quanto à didática, o mesmo não se dá em relação à sua escrita literária e tradutória. O
prefácio escrito por Lobato em Éramos Seis (1943), da Sra. Leandro Dupré, traz a
distinção entre língua falada e escrita, e explícita o papel assumido pela última, de
acordo com Lobato (apud NUNES, 1960, p. 36):
Há duas línguas, a falada e a escrita. A falada é que é a grande coisa,
pois que é o meio de comunicação entre tôdas as criaturas humanas,
afora as mudas. A língua escrita veio depois, e é coisa restritíssima.
Tôdas as criaturas jogam com a língua falada, e quantas com a
escrita? Uma porcentagem insignificantíssima. Isso faz que a língua
falada resida permanentemente no apogeu da expressão e do
pitoresco, ao passo que a escrita se atrase a ponto de ficar uma coisa
exigidora de tradução. [grifo nosso]
Ao ver a língua escrita como ‘exigidora de tradução’, lembramo-nos da narração
de suas encantadoras histórias e comentários de Emília, como prova da ‘língua falada’
na escrita. Vamos ilustrar essa afirmação:
[...] Dona Benta voltou à costura. Pedrinho correu para o pomar, e o
grande sábio de sabugo foi dar começo à organização do circo. Só
ficaram na sala Narizinho e Emília.
- Por que razão, Emília, você tratou o Visconde de ‘maestro’? O
pobre Visconde dará para tudo, menos para música. Nem assobia.
- É porque ele teve uma idéia batuta – respondeu a boneca.
(LOBATO, Monteiro. Aritmética da Emília, 1934, p. 163, grifo do
autor)
Com períodos simples e orações coordenadas, Lobato faz fluir a narrativa como
na língua falada, evocando em nós uma oralidade conhecida. Porém, na tradução, parece
114
“Em ‘Traduções’ (Lobato 1964:125-130), Lobato enfatiza o enriquecimento espiritual trazido pelas
traduções, e não apenas pelas de língua francesa, e menciona a escassez de boas traduções em outras
línguas além da francesa.”
112
não ser essa a estratégia usada. Vamos verificar o que ele pensa sobre o ato de traduzir.
Conforme Milton (2004, p. 215):
Lobato was puzzled by the language used in Brazilian translations
published by the French –owned house, Garnier, and remarked
‘Temos que refazer tudo isso – abrasileirar a linguagem’ [‘We must
redo all of this – Brazilianize the language’] (Koshiyama 1982:88),
and he recommended that the translator Godofredo Rangel took the
liberty of improving the original where necessary. Thus Lobato’s
translation technique is one of adaptation, using a more simplified
and colloquial language, which could immediately be understood by
children, Lobato’s target audience.
115
A crença em melhorar o original, tomando a liberdade de mudá-lo, lembra-nos o
estilo de tradução das ‘belas infiéis’ comum no século 17, na França. Os tradutores de
então acrescentavam algo ao texto, alteravam-no e também omitiam trechos julgados
desnecessários
116
.
Comprovamos essa concepção de tradução de Lobato em Aventuras de Huck,
em algumas passagens, na comparação entre o texto em língua portuguesa com o de
inglesa, quando há omissões de mais de uma página. Uma das supressões mais
relevantes refere-se ao explanatório, além da poesia encontrada no capítulo 17 e do
solilóquio de Hamlet, no 21. Esses cortes podem ser explicados por aquilo que Lobato
julgava ser tradução, também pela preocupação didática sempre presente em seus
escritos e pela tradição em língua portuguesa de não usar dialetos na tradução de
clássicos
117
.
115
“Lobato ficou perplexo por causa da língua usada nas traduções brasileiras publicadas pela editora
francesa Garnier, e comentou ‘Temos que refazer tudo isso – abrasileirar a linguagem’ (Koshiyama
1982:88), e ele recomendou ao tradutor Godofredo Rangel que este tomasse a liberdade de melhorar o
original onde fosse necessário. Assim, a técnica de tradução de Lobato é a de adaptar, usando uma
linguagem mais simplificada e coloquial, a qual poderia ser imediatamente compreendida pelas crianças,
seu público-alvo.”
116
John Milton, em Tradução: teoria e prática (1998), aborda esse assunto no capítulo 3, intitulado Les
belles infidèles e a tradição alemã, no qual ele explora a distinção de postura dos tradutores franceses e
alemães quanto ao ato tradutório. Os primeiros, por julgarem sua cultura superior às demais, acreditam
que podem alterar o original, os últimos, ainda em estágio de unificação do país, vêem nas outras culturas
a possibilidade de contribuição para o enriquecimento da cultura alemã e, portanto, prendem-se mais ao
texto de língua de partida.
117
Quanto a essa tradição, voltaremos a ela no final da análise dos três textos traduzidos de Huckleberry.
113
Passaremos à análise que abrangerá os mesmos capítulos usados para o estudo
da criação dialetal de Twain, na seção 3 deste trabalho, ou seja, 1, 2, 8, 14 e 38. Para
isso, selecionamos alguns exemplos gramaticais (tempos verbais, conjunções,
advérbios, inversões), lexicais (vocábulos formais e informais) e elementos para
construção da oralidade (exclamações, repetições, interjeições e onomatopéias) para
ilustrar as escolhas de Lobato. Posteriormente, será apresentado um cotejo de trechos de
Twain e Lobato.
4.1.1 Um terno para Huck
Logo no primeiro capítulo, para a tradução do seguinte trecho “[the widow] She
put me in them new clothes again, and I couldn’t do nothing but sweat and sweat, and
feel all cramped up.” Lobato traduziu “[a viúva] Brindou-me depois com roupas novas –
e lá tive de suar em bicas dentro de ‘um terno engomado, de colarinho duro’.” [grifo
nosso]. Nesse pequeno trecho, Twain usa pelo menos três elementos importantes para o
conhecimento da personagem Huck, que são: ‘new clothes again’, ‘I couldn’t do
nothing’, ‘sweat and sweat’. O primeiro faz menção ao fato de Huck já ter passado por
essa situação, a de usar roupas novas, pelo uso do ‘again’, que Lobato ignora. O
segundo, além de trazer um afastamento da norma gramatical, liga-se ao primeiro com
um sentimento de impotência: Huck já experimentou roupas novas antes e agora ao
passar pela mesma experiência, sente que não há o que fazer, exceto ‘sweat and sweat’,
nosso terceiro elemento. Há uma consternação na voz da personagem, o que não ocorre
na tradução de Lobato. Em seu texto, temos ‘brindou-me’, cujo significado é muito
114
positivo e depois ‘suar’, talvez pelo fato de nunca ter usado um terno ou porque um
terno faz suar. O sentimento de impotência de Huck perde-se e acrescenta-se uma idéia
nova. Não temos simplesmente roupas novas, mas ‘um terno engomado, de colarinho
duro’. É justamente esse ‘almofadinha’ que, apesar de ‘suar e suar’, vai falar um
português ‘de terno e colarinho duro’, como veremos.
Quanto aos aspectos gramaticais, selecionamos de 2 a 7 exemplos para tempos
verbais, conjunções, advérbios e inversões; porém, nem sempre foi possível encontrar
falas das três personagens, havendo mais frases de Huck, pois as escolhas basearam-se
no discurso direto para Jim e Tom.
Lobato faz uso de tempos verbais preferivelmente usados na língua escrita.
Vejamos as três frases escolhidas:
Tabela 18 – Monteiro Lobato e os tempos verbais
1. O leitor não me conhece a não ser que haja lido ... [Huck] (C.1, p. 5) [Pretérito mais-
que-perfeito composto].
2. Se não fizermos como os livros dizem, sai tudo errado. [Tom] (C.2, p. 11) [Futuro do
subjuntivo]
3. E nas minhas mãos ele viera ter. [Huck] (C.8, p. 31) [Pretérito mais-que-perfeito
simples]
Nos três exemplos, temos o uso de tempos verbais normalmente mais comuns na
escrita. No primeiro, o ‘haver’ (haja lido) em vez do ‘ter’ (tinha lido) mostra a
formalidade de Huck. Os outros dois exemplos, o subjuntivo e, principlamente, o
pretérito mais-que-perfeito simples, são típicos de um português cerimonioso.
Em relação aos pronomes, veremos casos semelhantes aos tempos verbais, ou
seja, pronomes mais de uso da escrita que da fala. Vamos a eles:
Tabela 19 – Monteiro Lobato e os pronomes
1. Atirei-me à água, e nadei até essa balsa, à qual me agarrei. [Jim] (C.8, p. 36)
115
2. Sei disso, contraveio Tom. Tê-lo-á, porém, muito em breve. [Tom] (C.38, p. 183)
3. Ao cabo disse que lhe ocorreram tantos, que vacilava na escolha; um porém, lhe
parecia o mais adequado. E nô-lo descreveu. [Huck] (C.38, p. 183)
Se as personagens usam tempos verbais raros na fala, coerentemente, o mesmo
acontece com os pronomes, em que até a mesóclise é empregada.
Vejamos agora as conjunções escolhidas:
Tabela 20 – Monteiro Lobato e as conjunções
1. Eu não conseguia ver nenhuma vantagem em ir para onde ela queria ir, e portanto
nunca me esforcei para isso. [Huck] (C.1, p. 6)
2. Sei disso, contraveio Tom. Tê-lo-á, porém, muito em breve. [Tom] (C.38, p. 183)
Lobato também utiliza o ‘e’ e o ‘mas’, no entanto, as outras conjunções usadas
mostram mais uma vez sua preferência pelas formas mais raras na fala.
Os advérbios são encontrados com mais freqüência nas falas de Huck, visto ser
ele o narrador-personagem; portanto, dos capítulos selecionados, encontramos exemplos
apenas de Huck e Jim:
Tabela 21 – Monteiro Lobato e os advérbios
1. Se o tiro não fosse apenas de pólvora seca, por certo que teriam encontrado o cadáver
que tão afanosamente buscavam ... [Huck] (C.8, p. 32)
2. Indubitavelmente Jim possuía um cérebro nada comum em gente da sua raça.
[Huck] (C.14, p. 57)
3. - Então ela não tem obrigação de falar como gato, nem tampouco como nós. [Jim]
(C.14, p. 59)
Quanto à inversão, só temos exemplos de Huck. Afinal, ele narra os
acontecimentos, sendo as inversões mais apropriadas em sua fala, como podemos
116
atestar:
Tabela 22 – Monteiro Lobato e as inversões
1. Caudaloso e tranqüilo fluia o Mississipi sob o pálio das estrelas. [Huck] (C.2, p. 9)
2. Estava com fome, mas não seria eu quem fosse fazer fogo denunciador do meu
esconderijo. [Huck] (C.8, p. 31)
3. Tivesse eu um pedaço de pão e me seria agradável divertimento espiar aquela gente
em procura do meu cadáver. [Huck] (C.8, p. 31)
Observamos que as personagens utilizam os aspectos gramaticais mais formais
da língua, estando muito distantes de suas contrapartes em inglês. Porém, quanto ao
léxico, essa formalidade e distância diminuem um pouco, pois Lobato mescla termos
formais com informais. Evidentemente, por se tratar de uma tradução com mais de
setenta anos, torna-se difícil e até duvidosa a afirmação de ‘formal’ e ‘informal’. O que
vamos apresentar é uma possível formalidade e informalidade de alguns vocábulos
usados por ele. A classificação do léxico formal deu-se pelo uso de termos que não
usamos hoje; porém, não podemos afirmar que essas palavras também eram formais na
época da tradução. Assim, escolhemos as seguintes frases:
Tabela 23 – Monteiro Lobato e o léxico ‘formal’
1. Que satisfação quando de novo enverguei minha roupa velha e... [Huck] (C.1, p. 5)
2. ... eu não podia dar início ao bródio antes que ela acabasse de engrolar as palavras
da reza... [Huck] (C.1, p. 5)
3. O vento perpassante como que procurava dar-me a entender qualquer coisa... [Huck]
(C.1, p. 7)
4. Quando o despertaram prorrompeu em choro, amedrontado e a chamar pela mamãe.
[Huck] (C.2, p. 12)
5. As manchas de sol, tamisadas pela folhagem, bailavam no solo, sinal de brisa leve.
[Huck] (C.8, p. 30)
6. O pobre negro obtemperou que levaria um ano para com um prego insculpir tanta
117
coisa nas paredes de madeira ... [Huck] (C.38, p. 184)
7. Tom vaticinou que um de nós ia ser esmagado antes de atingida a cabana. [Huck]
(C.38, p. 184)
Em relação ao léxico informal, selecionamos expressões usadas ainda hoje e,
portanto, temos:
Tabela 24 – Monteiro Lobato e o léxico ‘informal’
1. Era dinheiro a rodo. [Huck] (C.1, p. 5)
2. No jardim voltou a insistir na idéia de pregar uma peça ao negro. [Huck] (C.2, p. 8)
3. Enquanto Tom Sawyer e Ben Rodgers acertavam esses pontos, o pequeno Tommy
Barnes ferrou no sono. [Huck] (C.2, p. 12)
4. Como os outros o troçassem, chamando-lhe manteiga derretida, ... [Huck] (C.2, p.
12)
5. Aquilo me deixou de orelha em pé. [Jim] (C.8, p. 35)
6. Como elas não hão de bater boca e brigar ... [Jim] (C.14, p. 57)
7. E vão me dar um trabalho dos diabos. [Jim] (C.38, p. 187)
Quando à construção da oralidade, temos as seguintes repetições:
Tabela 25 – Monteiro Lobato e as repetições
1. ... mas que tais sortes possam desmanchar o azar aranhático, não sei ... não sei ...
nem o ouvi dizer a ninguém. [Huck] (C.1, p. 7)
2. - e nós, onde nos alojaremos nós? Mas, continue, continue. [Ben Rodgers] (C.2, p.
12)
3. Não. Huck, dessas aventuras não quero saber, não ... Credo! [Jim] (C. 14, p. 57)
4. Vou e pego na nota e rasgo em dois pedaços e entrego um pedaço para cada mulher,
uma aí para você e outra para o pau. [Huck] (C.14, p. 58)
5. Que é que vale uma nota rasgada pelo meio? [Jim] (C.14, p. 58)
6. - Qual moral, qual nada! Sei o que estou dizendo. [Jim] (C.14, p. 58)
118
7. - Bem, bem, não se fará nada disso, já que você é cabeçudo. [Tom] (C.38, p. 186)
A respeito de exclamações:
Tabela 26 – Monteiro Lobato e as exclamações
1. Viva! – murmurei comigo – e respondi com outro miado bem baixinho. [Huck] (C.1,
p. 7)
2. Que martírio! [Huck] (C.2, p. 8)
3. - Parece incrível! Que boa vida, não? [Jim] (C.8, p. 57)
4. - Coitadinho! exclamou Jim condoído. [Jim] (C.14, p. 58)
E as interjeições:
Tabela 27 – Monteiro Lobato e as interjeições
1. Ui! Vida apertada, a dos bandidos... [Huck] (C.2, p. 12)
2. - Arre, também, Tom! [Huck] (C.38, p. 183)
3. - Virgem Santa me acuda! Se aparecesse um bicho desse aqui, eu seria capaz de
varar por essa parede a fora! Cruz! Credo! Canhoto! ... [Jim] (C.38, p. 185)
4. - Pelo amor de Deus, não fale assim, sinhô Tom! [Jim] (C.38, p. 185)
5. - Ai, sinhô Tom, dispenso essa glória! [Jim] (C. 38, p. 185)
E dois exemplos de onomatopéia:
Tabela 28 – Monteiro Lobato e a onomatopéia
1. Depois de algum tempo ouvi o relógio da cidade bater – bem, bem, bem – doze
pancadas ... [Huck] (C.1, p. 7)
2. - E a guarda, então, Senhor Ben Rodgers? À menor tentativa de fuga, bum! [Tom]
(C.2, p. 11)
Além disso, consideramos o uso do grau do substantivo, muito usado na língua
falada, como estratégia de oralidade.
119
Tabela 29 – Monteiro Lobato e o grau do substantivo
1. Viva! – murmurei comigo – e respondi com outro miado bem baixinho. [Huck] (C.1,
p. 7)
2. Jim, o negrão de Miss Watson, estava sentado à porta da cozinha. [Huck] (C.2, p. 7)
3. - Não faça isso, sinhozinho! Tenho medo de aranha que me pelo. [Jim] (C.38, p. 185)
Como podemos verificar, Lobato usa uma gramática ostensivamente dentro das
regras e um léxico mesclado de vocábulos com uma variação entre formal e informal.
As exclamações não são muito empregadas por Twain, porém, Lobato usa esse recurso
inúmeras vezes para chamar a atenção do leitor, assim como o faz com as interjeições.
No entanto, nas passagens em que Twain usa onomatopéias, facilmente associadas à
fala, Lobato as ignora, usando-as quando lhe apraz. Nos excertos a seguir, veremos a
estratégia de tradução usada por Lobato.
Tabela 30 – Lobato e o Capítulo 1
1.The Widow Douglas she
118
took me for
her son, and allowed she would sivilize
me […] (p. 11)
A viúva Douglas entendeu transformar-
me em seu filho adotivo. Queria civilizar-
me e […] (p. 5)
2.Well, after a long time I heard the clock
away off in the town go boom – boom –
boom – twelve licks – (p. 13)
Depois de algum tempo ouvi o relógio da
cidade bater – bem, bem, bem – doze
pancadas – (p. 7)
3.Directly I could just barely hear a ‘me-
yow! me-yow!’ down there. (p. 14)
Agora, um estalidar de galho seco, no
jardim. Apuro os ouvidos. Um gato miou.
(p. 7)
Nesses três exemplos, vemos algumas características da fala de Huck
desprezadas por Lobato, a tautologia presente na primeira frase, as onomatopéias
repetidas nas duas últimas, e o dialeto visual ‘sivilizar’. Essas particularidades de Huck
atravessam o livro, e são elementos de fácil utilização pelo tradutor, pois não há
dificuldades nas suas representações em português. Porém, Lobato apresenta outras
118
Nas tabelas não usamos a explicação ‘grifo nosso’ - no caso dos capítulos em comparação - mas
alguns termos ou trechos estão em negrito, porém, nem todos, pois a tradução de Lobato às vezes omite
trechos ou resume as idéias principais ou ainda acrescenta informações.
120
soluções.
Tabela 31 – Lobato e o Capítulo 2
1. [...] and rode him all over the State,
and then set him under the trees again and
hung his hat on a limb to show who done
it. [Huck] (p. 15)
[…] havia sido enfeitiçado pelas bruxas,
as quais o carregaram para não sabia
onde, e que quando o trouxeram de volta
o seu chapéu foi posto no alto da árvore
para que ele visse em que mão havia
andado [Huck] (p. 8)
2. Jim was most ruined, for a servant,
because he got so stuck up on account of
having seen the devil and been rode by
witches. [Huck] (p. 16)
A conseqüência foi que Jim, a partir do
dia do seu primeiro contacto com aquele
diabo sob forma de bruxa, passou de bom
rapaz que era, a um péssimo sujeito,
absolutamente imprestável. [Huck] (p. 9)
3. ‘Stuff! Stealing cattle and such things
ain’t robbery, it’s burglary,’ says Tom
Sawyer. ‘We ain’t burglars. That ain’t no
sort of style. [Tom] (p. 18)
- Bobo! Isso não é roubar. Isso é cometer
simples furtos, coisa de reles gatunos.
Não somos larápios, está ouvindo? [Tom]
(p. 11)
No capítulo 2, novamente há trechos em inglês que Lobato corta informações e
outros em que ele acrescenta, como no primeiro exemplo. Além disso, temos idéias
diferentes das sugeridas por Twain. No texto original, no segundo exemplo, Jim ficou
‘imprestável’ para trabalhar devido à experiência sofrida com as bruxas. Lobato faz um
paralelo entre o que Jim era e como ele está agora, reforçando a idéia da mudança de
bom para mau sujeito, ou seja, como ‘pessoa’ e não apenas como ‘trabalhador’. Reforça
ainda essa idéia do ‘mau sujeito’ com o advérbio ‘absolutamente’. Na terceira frase,
para o léxico empregado por Twain de ‘robbery’ e ‘burglary/burglars’, muito
provavelmente usados por meninos na língua falada, Lobato usa quatro termos em torno
do mesmo significado: ‘roubar’, ‘furtos’, ‘gatunos’ e ‘larápios’. As sutilezas de
significados sugeridas ficam pouco verossímeis na fala de garotos de treze ou quatorze
anos. E mesmo supondo ser Tom um menino com maior grau de escolaridade, se
comparado a Huck e Jim, o leque de palavras usadas por Tom inibe a naturalidade da
fala em português, naturalidade essa presente na repetição de ‘burglary/ burglars’, no
121
texto original.
Tabela 32 – Lobato e o Capítulo 8
1.‘Well, fust I tackled stock.’ [Jim] (p. 53) - Comprei uma vaca por dez dólares. [Jim]
(p. 37)
2. ‘No, I didn’ lose it all. I on’y los’ ‘bout
nine of it. I sole de hide en taller for a
dollar en ten cents.’ [Jim] (p. 53)
- Perdi só nove. Vendi o couro num
curtume por um dólar. [Jim] (p. 37)
3. [ primeiro trecho de três em que há as
explicações dos negócios feitos por Jim]
‘Yes. You know dat one-laigged nigger
dat b’longs to old Misto Bradish? well, he
sot up a bank, en say anybody dat put in a
dollar would git fo’ dollars mo’ at de en’
er de year. Well, all de niggers went in,
but dey didn’t have much. I wuz de on’y
one dat had much. So I stuck out for mo’
dan fo’ dollars, en I said ‘f I didn’ git it I’d
start a bank myself. Well, o’ course dat
nigger warn’ to keep me out er de
business, bekase he say dey warn’t
business ‘nough for two banks, so he say I
could put it in my five dollars en he pay
me thirty-five at de en’ er de year. [Jim]
(p. 53)
[resumo dos três trechos]
- Conhece aquele negro de perna de pau,
escravo do velho Mister Bradish? Pois
bem, ele abriu um banco e disse que quem
pusesse um dólar no negócio receberia
quatro no fim do ano. Todos os negros
acharam boa a idéia, mas o único que
possuía dinheiro era eu. Eu disse para o
banqueiro que se ele não me pagasse mais
de quatro dólares por ano eu abria um
banco por minha conta. Depois de alguma
discussão o raio do perneta ofereceu-me
dar trinta e cinco dólares de lucro no fim
do ano pelos meus cinco, pois se eu fosse
abrir um banco estragava o negócio dele.
Entramos no acordo, e eu já estava
pensando gastar os trinta e cinco dólares
numa casinha de madeira quando soube
que o banco tinha falido – quebrou um dia
depois de começar. Recebi só dez
centavos. [Jim] (p. 38)
Na seqüência desses diálogos, Lobato ignora logo no início a palavra ‘fust’ ou
‘first’, pois Jim vai relatar outros negócios feitos. Em seguida, despreza os ‘ten cents’
restantes naquele trecho e os coloca em outra passagem como solução para finalizar o
capítulo, pois há ainda um investimento com os dez centavos. O terceiro exemplo não é
muito claro, e não há como transcrever um trecho correspondente ao texto em inglês
porque de três longos parágrafos explicando os investimentos de Jim, Lobato resume-os
em um.
Tabela 33 – Lobato e o Capítulo 14
1.‘Dat’s good! But he’ll be pooty - Que bom! Mas vai levar uma vida muito
122
lonesome – dey ain’ no kings here, is dey,
Huck?’[Jim] ( p. 83)
triste, aqui, sem companheiros. Nós não
temos reis por aqui, não Huck? [Jim] (p.
58)
2.‘I don’t know; but it’s so. I got some of
their jabber out of a book. S’pose a man
was to come to you and say Polly-voo-
franzy – what would you think? [Huck]
(p. 83)
- Eu consegui aprender algumas frases
num livro que andei folheando. Suponha
que um francês chegasse para você e
dissesse: ‘Parlê vu francê?’ Que é que
você responderia? [Huck] (p. 58-59)
3.‘Why, he is a-saying it. That’s a
Frenchman’s way of saying it.’ [Huck] (p.
83)
- Mas é a língua deles. [Huck] (p. 59)
Nessas amostras, Lobato amplia as idéias de Twain. No segundo excerto, há uma
justificativa para o fato de Huck saber falar uma frase em francês. Essa explicação
mostra novamente o aspecto didático de Lobato. No texto original, Twain constrói a
linguagem de Huck tão alicerçada em uma estrutura não-padrão, e com elementos
coerentes e coesos, que não necessitamos de nenhuma prova para acreditar em qualquer
afirmação de Huck.
Tabela 34 – Lobato e o Capítulo 38
1. ‘Why, Mars Tom, I hain’t got no coat
o’ arms: I hain’t got nuffn but dish-yer ole
shirt, en you knows I got to keep de
journal on dat.’ [Jim] (p. 249)
- Mas, sinhô Tom, eu não tenho brasão,
protestava Jim humildemente. Só possuo
esta camisa velha e o sinhô já me disse
que escrevesse nela o meu diário. [Jim] (p.
183)
2. ‘I reckon I knowed that’, Tom says,
‘but you bet he’ll have one before he goes
out of this -… [Tom] (p. 249)
- Sei disso, contraveio Tom. Tê-lo-á,
porém, muito em breve. [Tom] (p. 183)
3. ‘We ain’t got no time to bother over
that’, he says, ‘we got to dig in like all git-
out.’ [Tom] (p. 249)
- Não tenho tempo para explicar tudo.
[Tom] (p. 183)
Novamente, no capítulo 38, Lobato retrata um Jim levemente diferente de
Twain, pois Jim não ‘protesta humildemente’. A posição assumida pela personagem ao
referir-se a Tom por ‘Mars Tom’ ou ‘sinhô Tom’ já demonstra a diferença de status
entre eles. Além disso, as mirabolantes idéias de Tom submetem Jim ao papel de servo
obediente, o que já é o suficiente para o leitor perceber a imposição dos interesses do
123
homem branco (Tom) ao escravo (Jim), sem necessidade do advérbio para reforçar esse
ponto.
Como nossa análise é parcial, ou seja, só foram selecionados pequenos trechos,
podemos afirmar, em relação a esses, que Lobato distancia-se de Twain não apenas por
não empregar uma linguagem dialetal em seu texto, ou ainda por cortar ou ampliar
algumas partes, mas principalmente quanto às mudanças nas características de Jim.
Vemos, assim, que não apenas Huck usa um ‘terno com colarinho duro’, mas a imagem
de Jim é construída com outros valores. A voz das três personagens, pelo uso do
português culto, é calada pela estratégia de ‘melhorar o texto quando for necessário’.
Embora John Milton (2004, p. 225) faça referência à opinião de Adriana Vieira quanto à
antropofagia de Lobato nas traduções, “Vieira believes that both Lobato and the
Campos brothers use the original text in an anthropophagic way, adapting the original
and putting their own characteristic Brazilian mark on it.”
119
, não acreditamos haver em
Huck, Tom nem Jim qualquer marca de brasilidade, pois, caso houvesse, talvez, Jim
pudesse ter sido representado de forma mais positiva. Nesses excertos, não conseguimos
detectar abrasileiramento na linguagem, a não ser o adjetivo usado por Huck para
descrever o azar que ele teria por ter matado a aranha, ou seja, ‘aranhático’.
Ainda resta-nos uma questão referente a como o tradutor vê a obra ou o autor ou
ambos. Acreditamos que Lobato veja Mark Twain como um igual, pois ambos são
escritores conhecidos, e a obra, por sua vez, como um texto a ser traduzido, sem
idealizações. No entanto, deixemos que o texto de Lobato nos responda de forma mais
convincente, por meio do Senhor Huckleberry Finn que afirma: “O leitor não me
conhece, a não ser que haja lido as ‘Aventuras de Tom Sawyer’, escritas por ‘um tal’
Mark Twain. (C. 1, p. 5, grifo nosso)
119
“Vieira acredita que Lobato, assim como os irmãos Campos, use o texto original de uma maneira
antropofágica, adaptando o original e inserindo nele suas próprias marcas com características brasileiras.”
124
4.2 Sérgio Flaksman: o valor de Mark Twain e de Huckleberry Finn
A tradução de Sérgio Flaksman é a única das três analisadas com um texto
integral. Como já explicado na segunda seção desta dissertação, a nota do tradutor, na
qual se insere o explanatório, diz muito sobre sua posição diante de Twain e sua obra-
prima.
Flaksman traduz o explanatório e explica que, como não acredita na
possibilidade de uma tradução com linguagem dialetal, fez uso da coloquial. Isso é o
que está explícito em seu texto; mas implicitamente está presente a admiração e respeito
por Twain, assim como por Huckleberry Finn.
Acreditamos que qualquer tradutor, ao ler Huckleberry, assim como algumas
críticas a respeito do mesmo, pensaria seriamente sobre ‘o que’ e ‘como’ fazer tal
tradução, além de considerar o peso da obra e o significado dela e de Twain na literatura
e cultura norte-americana. Para ilustramos esse nosso julgamento, recorremos a um
trecho do crítico Lionel Trilling (In: INGE, 1984, p. 82), que afirma:
When at last Huckleberry Finn was completed and published and
widely loved, Mark Twain became somewhat aware of what he had
accomplished with this book that had been begun as journeywork and
depreciated, postponed, threatened with destruction. It is his
masterpiece, and perhaps he learned to know that. But he could
scarcely have estimated it for what it is, one of the world’s great
books and one of the central documents of American culture.
120
Novamente vemos que Twain não levou tanto tempo para escrever Huckleberry,
120
“Quando por fim Huckleberry Finn foi concluído e publicado e extremamente apreciado, Mark Twain
tomou um pouco consciência daquilo que havia feito com esse livro começado como uma tarefa do dia-a-
dia sem muito valor, adiado e ameaçado de ser destruído. Esse livro é sua obra-prima, e talvez, Twain
tenha aprendido a reconhecê-lo como tal. Mas Twain mal poderia imaginar que Huckleberry representa
um dos principais livros da literatura mundial e um dos documentos centrais a respeito da cultura norte-
americana.”
125
mas, ao contrário, abandonou o livro e quase o destruiu por não tê-lo apreciado. Essa
postura de descaso talvez aumente a genialidade de Twain, pelo fato de ter composto o
livro de maneira meio casual, aumentando também o peso nos ombros do tradutor, que
se vê sem saída ao enfrentar “o extraordinário e variado colorido da linguagem”, como
afirma Flaksman (1997, p. 12).
O texto de Flaksman traz sublinearmente à importância de Huckleberry, assim
como a de seu autor, ao mesmo tempo em que avalia a sua tradução como algo muito
menor, pois a dimensão do texto de Twain não lhe possibilita muitas opções. Assim, ele
afirma: “traduzi ‘como pude’ o poema da página 121 [...]” (FLAKSMAN, 1997, p.13,
grifo nosso). Portanto, Flaksman reconhece a genialidade de Twain em conseguir fazer
de seu texto “uma incrível proeza de captura e reprodução da linguagem oral, temperada
em diferentes matizes que, como explica o autor, variam de acordo com a região e a
origem social de cada personagem” (FLAKSMAN, 1997, p. 12). Ao tradutor, no
entanto, o uso de dialetos “ [...] fica ‘totalmente impraticável’ numa tradução. Essa
variedade é um fenômeno local e específico da língua inglesa falada nos EUA do tempo
do autor, e ‘perde por completo o sentido’ se transposta para outra língua.”
(FLAKSMAN, 1997, p. 12, grifo nosso). Além desse quadro, Flaksman justificar-se
com o leitor e espera deste uma aprovação pelo uso da linguagem coloquial “espero
ainda que os leitores possam apreciar o resultado e compreender por que preferi os
riscos dessa procura à relativa insipidez de uma linguagem apenas correta.”, e desculpa-
se ainda algumas vezes “[...] julguei que os tempos me permitiam um ‘atrevimento’
maior [...]” e ainda “estou apenas apresentando aqui, depois de ‘derramar o leite’, uma
justificativa para esta ‘ousadia’ [...]” e mais à frente “traduzi [...] com ‘verso de pé
quebrado e rimas ainda piores’ [...]” (FLAKSMAN, p. 13, grifo nosso). As justificativas
de Flaksman demonstram sua submissão à grandiosidade de autor e obra, embora sua
126
tradução, com linguagem coloquial, apresente muitas qualidades, além de ele cumprir à
risca a estratégia apresentada.
O que podemos acrescentar à favor da tradução de Flaksman é o fato de
acreditarmos nos possíveis ‘pedidos’ da editora por um texto coloquial, mas não
totalmente fora da gramática normativa. Assim, passaremos à estratégia apresentada
pelo tradutor e à posterior análise de trechos dessa tradução.
4.2.1 Sergio Flaksman e sua estratégia tradutória
Sergio Flaksman (1997, p. 12) discorre sobre a estrutura textual de Huckleberry,
explicando ao leitor a complexidade da obra:
A grafia das palavras reproduz a forma como são pronunciadas; a
pontuação procura imitar o ritmo da língua falada; as orações são
quase sempre coordenadas, como na fala corrente, e mesmo quem
fala mais ‘certo’ sempre apresenta algum desvio da norma devido ao
sotaque, além de cacoetes de expressão regional que contrariam a
correção gramatical mais estrita. E não só nos diálogos: o narrador do
livro é um garoto de pouca instrução, escreve como fala – muitos
substantivos que deveriam aparecer flexionados não vão para o
plural, os verbos nem sempre concordam em número ou pessoa com
o sujeito, inúmeras palavras aparecem com grafia diferente da dos
dicionários
[...]
Conectadas a esses elementos estão as escolhas de Flaksman para passar pelo
menos a idéia de oralidade, uma vez que ele se profere não capaz de usar os mesmos
recursos de Twain na tradução. Para tanto, Flaksman (1997, p. 13) elenca uma série de
desvios, principalmente de ordem gramatical, a fim de compensar as perdas inevitáveis
em seu texto, como transcrevemos a seguir:
[...] empregando – certos desvios das regras gramaticais escritas que
são relativamente comuns no português falado no Brasil e poderiam,
127
a meu ver, refletir mais de perto a espontaneidade do texto original,
entre eles: empregar quase sempre ‘a gente’ em lugar de ‘nós’, para
evitar flexões de verbo menos comuns na linguagem falada; com a
mesma finalidade, trocar o futuro do pretérito pela forma analítica
popular, o imperfeito ‘ia’ + o infinitivo, e deixar de flexionar às vezes
o chamado infinitivo pessoal; admitir pronomes pessoais oblíquos no
início de orações e usar a repetição do sujeito ou as formas retas dos
pronomes com função objetiva, procurando evitar a todo custo as
formas enclíticas quase ausentes da fala cotidiana; misturar o
tratamento de terceira pessoa com oblíquos da segunda; reduzir a
‘que’ as formas ‘de que’, ‘para que’, ‘com que’; alterar a grafia de
algumas palavras, e etc. etc. (Ibidem, p. 13)
Flaksman
(1997, p. 13) ainda afirma:
[...] depois que os limites do desvio foram fixados – por tentativa e
erro – o emprego desses recursos foi sempre determinado pelo
ouvido. Daí ainda o risco inevitável de ter exagerado às vezes num
certo acariocamento anacrônico, pois não tinha como fugir da minha
própria memória auditiva.
Quanto a essa afirmação a respeito do acariocamento, parece-nos uma
justificativa um tanto infundada na medida em que o tradutor não emprega nenhuma
alteração fonológica no texto tampouco um léxico exclusivo do Rio de Janeiro. No
entanto, o anacronismo a que ele se refere é inevitável, pois para usar uma linguagem da
época em que Mark Twain escreveu o livro, uma pesquisa sobre a língua portuguesa do
início do século 19 teria de ser feita, o que entraria em contradição com sua afirmação
de que “Esta decisão, como já disse, foi consciente, mas não obedeceu a um sistema
teórico, como pode parecer [...]” (FLAKSMAN, 1997, p. 13).
Diante do exposto, podemos dizer que Flaksman permite aos leitores não-
falantes de inglês um colorido da região do Mississipi com um matiz brasileiro, apenas
pelo fato de estar em português, mas sem um possível reconhecimento de uma região
específica do Brasil.
Uma vez que Flaksman mostrou-nos suas escolhas, não há motivos para
buscarmos em seu texto elementos gramaticais e lexicais antes da análise dos capítulos,
como o fizemos no caso de Monteiro Lobato. Portanto, passaremos diretamente ao
exame dos mesmos trechos estudados anteriormente.
128
Tabela 35 – Flaksman e o Capítulo 1
1. The Widow Douglas she took me for
her son, and allowed she would sivilize
me […] (p. 11)
A viúva Douglas me pegou para criar
como filho dela, e resolveu que ia me
sivilizar [..] (p. 17)
2. Well, after a long time I heard the clock
away off in the town go boom – boom –
boom – twelve licks – (p. 13)
Depois de muito tempo, ouvi o relógio
bater longe, na cidade, bum – bum –
bum – dozes vezes – (p. 19)
3. Directly I could just barely hear a ‘me-
yow! me-yow!’ down there. (p. 14)
E quase deixei de ouvir um ‘miau! miau!’
vindo lá de baixo. (p. 20)
O primeiro mérito dessa tradução está no fato de o tradutor ter preservado a
forma de Twain grafar o ‘sivilize’ e colocar ‘sivilizar’. Como vimos na segunda seção
desta dissertação, o termo é central para a compreensão de Huck e das demais
personagens pelo que ele significa de forma semântica e também dialetal. Nas outras
duas amostras, vemos que Flaksman utiliza os mesmos recursos de Twain para evocar a
oralidade do original, pois eles não oferecem dificuldades em português, ou seja, as
repetições onomatopaicas.
Além disso, neste primeiro trecho, o tradutor não faz omissões, alterações ou
acréscimos ao texto e, nota-se que ele, de alguma forma, tenta compensar a perda da
linguagem dialetal, mediante a substituição do condicional ‘would’, em inglês, pelo
pretérito imperfeito ‘ia’, em português, e o emprego da próclise do pronome ‘me’ (‘me
sivilizar’).
Tabela 36 – Flaksman e o Capítulo 2
1. […] and rode him all over the State,
and then set him under the trees again and
hung his hat on a limb to show who done
it. [Huck] (p. 15)
[...] e saído montadas nele numa viagem
por todo o estado. Na volta, tinham
deitado ele de novo debaixo das árvores,
pendurando o chapéu num galho para
mostrar que tudo aquilo tinha sido coisa
delas. [Jim] (p. 21)
2. Jim was most ruined, for a servant,
because he got so stuck up on account of
having seen the devil and been rode by
witches. [Huck] (p. 16)
Jim já não prestava mais para trabalhar em
quase nada, de tão besta que ficou por ter
visto o diabo e servido de cavalo para as
bruxas. [Huck] (p. 22)
129
3. ‘Stuff! Stealing cattle and such things
ain’t robbery, it’s burglary,’ says Tom
Sawyer. ‘We ain’t burglars. That ain’t no
sort of style. [Tom] (p. 18)
“Imagine! Roubar gado e coisas assim
não é assalto, é só furto, coisa de ladrão
comum”, disse Tom Sawyer. “E a
quadrilha da gente não vai ser um bando
de ladrões comuns [...]” [Tom] (p. 24)
Vemos, nos dois primeiros exemplos, que a imagem da personagem Jim não é
alterada pelo tradutor, pois ele manteve o ‘ruined’ ligado ao ‘for a servant’ ficando ‘não
prestava para trabalhar’ e para o ‘on account of’, encontrou uma solução por intermédio
de uma expressão coloquial ‘de tão besta que ficou’, dando um tom jocoso ao texto sem
menosprezar ou desmerecer o valor de Jim como ‘pessoa’.
O último exemplo, na fala de Tom, Flaksman permite a personagem uma
explicação do papel de atuação da quadrilha de forma simples e com uma variação
lexical mais de acordo como o texto original. Neste trecho, ainda podemos observar o
emprego do pronome do caso reto sujeito no lugar do objeto ‘tinham deitado ele’ e o
uso do pronome ‘a gente’ no sintagma nominal ‘a quadrilha da gente’.
Tabela 37 – Flaksman e o Capítulo 8
1. ‘Well, fust I tackled stock.’ [Jim] (p.
53)
“Primeiro em gado. […]” [Jim] (p. 61)
2. ‘No, I didn’ lose it all. I on’y los’ ‘bout
nine of it. I sole de hide en taller for a
dollar en ten cents.’ [Jim] (p. 53)
“Não, só uns nove, porque depois eu
vendi o couro e o sebo por um dólar e dez
centavos.” [Jim] (p. 61)
3. ‘Yes. You know dat one-laigged nigger
dat b’longs to old Misto Bradish? well, he
sot up a bank, em say anybody dat put in a
dollar would git fo’ dollars mo’ at de en’
er de year. Well, all de niggers went in,
but dey didn’t have much. I wuz de one
dat had much. So I stuck out for mo’ dan
fo’ dollars, en I said ‘f I didn’ git it I’d
start a bank myself. Well, o’ course dat
nigger warn’ to keep me out er de
business, bekase he say dey warn’t
business ‘nough for two banks, so he say I
could put it in my five dollars en he pay
me thirty-five at de en’ er de year. [Jim]
(p. 53)
“Investi. Sabe aquele escravo perneta do
velho sr. Bradish? Pois ele fundou um
banco, e disse que quem aplicasse um
dólar no banco ia ganhar mais quatro no
fim do ano. Todos os negros foram
entrando no negócio, mas ninguém tinha
muito dinheiro. Aí eu resolvi que eu
queria ganhar mais de quatro dólares, e
que ia abrir o meu próprio banco se ele
não me pagasse mais. É claro que aquele
negro não queria que eu fundasse um
outro banco, e acabou dizendo que, se eu
aplicasse os meus cinco dólares, ele ia me
pagar trinta e cinco no fim do ano. [Jim]
(p. 62)
130
Nesse capítulo, mais uma vez, Flaksman é atento aos detalhes constitutivos da
cena narrada, como, ‘fust’ e ‘a dollar en ten cents’ traduzidos por ‘primeiro’ e ‘um dólar
e dez centavos’, pois eles serão relevantes no desenrolar do capítulo.
Tabela 38 – Flaksman e o Capítulo 14
1. ‘Dat’s good! But he’ll be pooty
lonesome – dey ain’ no kings here, is dey,
Huck?’[Jim] (p. 83)
“Assim melhorou! Mas ele deve sentir
falta dos outros reis – aqui não tem rei,
não é, Huck?” [Jim] (p. 96)
2. ‘I don’t know; but it’s so. I got some of
their jabber out of a book. S’pose a man
was to come to you and say Polly-voo-
franzy – what would you think? [Huck]
(p. 83)
“Não sei, mas é assim. Eu vi num livro
como é o jeito que eles falam. Se alguém
chegasse para você e perguntasse –
Parlevú frrancê? – o que é que você ia
achar?”[Huck] (p. 96)
3. ‘Why, he is a-saying it. That’s a
Frenchman’s way of saying it.’ [Huck] (p.
83)
“Mas é o que ele estava falando. É assim
que se fala em francês.” [Huck] (p. 97)
No capítulo 14, há duas observações a serem feitas. A primeira refere-se ao
‘como é o jeito que eles falam’ e ‘o que é que você’, ou seja, a repetição do
‘como...que’ e ‘que...que’ muito comuns da língua falada. A segunda diz respeito ao uso
do pretérito imperfeito ‘ia’ em vez do futuro do pretérito ‘iria’, mostrando o
cumprimento dos propósitos do tradutor quanto à sua estratégia.
Tabela 39 – Flaksman e o Capítulo 38
1. ‘Why, Mars Tom, I hain’t got no coat
o’ arms: I hain’t got nuffn but dish-yer ole
shirt, en you knows I got to keep de
journal on dat.’ [Jim] (p. 249)
“Mas sr. Tom, a minha família não tem
arma nenhuma: eu aqui estou desarmado,
só tenho esses pedaços de ferro, mas o
senhor sabe que eu preciso deles para usar
como pena.” [Jim] (p. 280)
2. ‘I reckon I knowed that’, Tom says,
‘but you bet he’ll have one before he goes
out of this -… [Tom] (p. 249)
“E vocês acham que eu não sei disso?”,
disse Tom. “Mas podem apostar que ele
vai arranjar antes de sair dessa história -
...” [Tom] (p. 280)
3. ‘We ain’t got no time to bother over
that’, he says, ‘we got to dig in like all git-
out.’ [Tom] (p. 249)
“A gente não tem tempo de falar sobre
isso agora,” disse ele, “ a gente precisa
cuidar da fuga.” [Tom] (p. 281)
131
Nesse capítulo, Flaksman foge um pouco do texto original, fazendo uma
brincadeira a respeito do ‘coat o’ arms’, mostrando com isso um desconhecimento de
Jim sobre o termo acrescido de suas justificativas. Para tanto, ele acaba mudando outros
elementos, como, ‘ole shirt’ por ‘pedaços de ferro’. Não vemos nessas alterações um
comprometimento da imagem da personagem, pois, nesse capítulo, existem três
discursos em paralelo que não chegam a nenhum ponto em comum: Tom impõe suas
fantasias, Huck entende mais as necessidades de Jim do que as de Tom, mas submete-se
aos caprichos do último, Jim não compreende o que se passa, e tenta, por meio de
exemplos concretos ‘ole shirt,’ mostrar a sua realidade naquele espaço. Portanto, a
alteração do tradutor também resulta em um diálogo sem troca significativa de
compreensão. Para complementar, podemos ainda mencionar a repetição do ‘a gente’ no
terceiro exemplo como ilustração da criação da oralidade do texto traduzido.
Podemos concluir que a solução encontrada por Flaksman para a grande perda
da linguagem dialetal foi remediada com uma intermediária, ou seja, não há linguagem
totalmente padrão tampouco dialetos. Há um coloquialismo relativamente significante,
se levarmos em conta as possíveis normas editoriais, que levaram o tradutor a submeter-
se ao possível, e como Flaksman não ignora a importância da língua do original,
apresenta uma amenização na estrutura gramatical e lexical de seu texto. Dessa forma,
como o Huck falante de português, em termos lingüísticos, não é exatamente um
menino de rua, mas também não é um garoto culto, acreditamos que o tradutor nos
apresenta o “Seu Huckleberry Finn”.
132
4.3 Alex Marins e a Martin Claret
Em meados de 2007, tomamos conhecimento de alguns problemas com a editora
Martin Claret e igualmente com seu tradutor Alex Marins, cuja tradução de Huckleberry
Finn faz parte deste trabalho. Em um artigo intitulado Pseudotraduções, veiculado por
algumas listas de tradução e blogs na Internet, o tradutor Saulo Krieger denunciou
atividades ilícitas dessa editora, entre elas, o plágio de alguns clássicos e, como
podemos ler no trecho abaixo, revelou a inexistência do sr. Alex Marins, o terceiro
tradutor escolhido para a nossa análise.
[...] O Sr. Claret não respeitava nem as traduções alheias nem o
tempo de seus colaboradores-revisores, sempre solicitando, aqui e ali,
um serviço gratuito, para que ‘se colaborasse com a editora’. Quanto
aos tradutores-fantasmas, querem mais alguma prova? Quem é Jean
Melville? Quem é Alex Marins? Quem é o tal ‘Popov’, não o
nadador, mas a pessoa que algum dia teve trânsito no mundo das
letras? Ora, se puserem, por exemplo, o meu nome, ‘Saulo Krieger’
(2008), no Google, verão milhares de ocorrência, que remetem ou a
meus trabalhos como tradutor, ou como escritor em certa medida
difundido na net.
A escolha da tradução de Huckleberry pela Martin Claret deu-se em razão do
ano de sua publicação, ou seja, 2003, visto que já tínhamos uma de 1934 e outra de
1997. Julgou-se, na ocasião da opção pelo livro, ser interessante ter a versão mais
recente possível, a fim de verificar questões relativas à linguagem. Acreditava-se então
ser essa a tradução mais inovadora, em termos de registro lingüístico, visto ser a
tradução de Flaksman anterior a essa e já ter dado uma contribuição na tentativa de
aproximar língua e personagens. Começamos nossa pesquisa e só em meados de 2007
ocorreu o surgimento de diversos artigos a respeito dos fatos acima relatados por
Krieger. Dessa forma, decidimos manter a mesma análise desenvolvida até aquele
momento e acrescentar os dados referentes ao ‘tradutor’ Alex Marins e a sua ‘casa
editorial’. Portanto, o procedimento adotado será o seguinte: em primeiro lugar,
133
exibiremos algumas frases coletadas ao longo de toda a narrativa e não apenas dos
capítulos selecionados, pois elas fornecerão mais material para avaliar o quanto essa
tradução representa o seu ano de publicação (2003). Para tanto, os exemplos foram
separados em dois grupos: aspectos gramaticais e lexicais. O último grupo foi
subdividido em aspectos relacionados a medidas e moedas e títulos de capítulos. Em
segundo lugar, mostraremos amostras retiradas dos mesmos trechos e capítulos
analisados anteriormente.
Apresentaremos, no apêndice A deste trabalho, as reportagens completas das
denúncias à editora ‘Martin Claret’, assim como uma tabela dos excertos analisados
nesta seção, com a sua contraparte em português de Portugal. Pode-se perguntar o
porquê da inclusão dessa tabela no apêndice e não no corpo do trabalho. Acreditamos,
em primeiro lugar, que o foco do nosso trabalho não é o de verificar se a tradução do sr.
Alex Marins é ou não plágio; em segundo lugar, um estudo para detectar uma possível
cópia de outra obra demandaria mais tempo e material a ser analisado. Tentamos
conseguir uma edição de Huckleberry Finn em português de Portugal, porém, nossas
tentativas foram quase sempre frustradas. Fizemos primeiramente a encomenda do livro
por meio de uma livraria, mas depois de dois meses, tempo dado como período máximo
da entrega da encomenda, recebemos um aviso de que não tinham conseguido adquirir o
livro. Nova tentativa foi feita, mas novamente malograda. A livraria dessa vez avisou
que a edição portuguesa da editora Europa-América estava esgotada, sem possibilidade
de reedição e não houve referências a traduções de outras casas editoriais. Assim, por
meio de amigos em Portugal, foi possível adquirir uma da editora citada, em uma
livraria de livros usados. Dessa forma, temos apenas a tradução de Miriam Marder Silva
Monteiro. Os trechos em paralelo não mostram sinais claros de plágio, mas devemos
esclarecer que a seleção do material foi feita exatamente igual à das outras análises e
134
nesses trechos não conseguimos detectar se houve ou não cópia, pois se houve fraude,
ela pode ter sido feita a partir de outra(s) tradução(ões). Portanto, acreditamos que, ao
registrar neste trabalho esses fatos, estaremos contribuindo para apontar um ato pouco
lovável na área editorial que talvez nem seja julgado tampouco punido.
Assim, passaremos agora à análise:
4.3.1 Alex Marins e a tradução de Huckleberry Finn
A tradução de As Aventuras de Huckleberry Finn feita por Alex Marins faz parte
de uma coleção da editora Martin Claret intitulada ‘Coleção A Obra-Prima de Cada
Autor’, de 2003. Trata-se de um texto com algumas peculiaridades, como a omissão do
explanatório e a apresentação em inglês do poema ‘Ode a Stephen Dowling Bots,
falecido’ e também do ‘Solilóquio de Hamlet’. Ainda que esses poemas não tenham
sido analisados nas outras duas traduções, o fato de estarem em inglês faz-nos
questionar o porquê disso. A tradução de Monteiro Lobato, por exemplo, corta as duas
passagens, o que nos pareceu mais coerente. O fato de os poemas estarem em inglês soa
ainda mais estranho por haver na capa o subtítulo ‘Texto Integral’. Dessa forma,
acreditamos tratar-se de uma propaganda enganosa, pois ela priva o leitor de dados
essenciais à obra como, o explanatório e a possibilidade de ler as passagens citadas em
português. Afinal, quando o leitor recorre a uma tradução normalmente isso se dá
porque ele busca um texto em sua língua. Portanto, antes de iniciar a leitura das
aventuras, já nos deparamos com um dado revelador de descaso para com o público
leitor.
135
A primeira seção a ser abordada é a de aspectos gramaticais, sendo os exemplos
focados em verbos e pronomes.
Tabela 40 – Alex Marins e os verbos e pronomes
1. Couberam seis mil dólares a cada um – tudo em ouro. [Huck] (C.1, p. 27)
2. – Quem anda aí? [Jim] (C.2, p. 31)
3. Algumas autoridades pensam de maneira diferente, mas a maioria considera melhor
matá-las. [Tom] (C.2, p. 36)
4. – Que tolices dizes, Ben Rogers! Como hão de eles poder escapulir, se terão sempre
guardas à vista, prontos a atirar neles se fizerem um movimento? [Tom] (C.2, p. 36)
5. A gente as traz para a caverna, e mostra-se sempre da maior delicadeza para com elas
[...] [Tom] (C.2, p. 37)
6. - Bom, isso já é alguma coisa. Já é uma resposta. Por que não disseste isso antes?
Conservá-los-emos até serem resgatados até a morte [...] [Ben Rogers] (C. 2, p. 36)
7. -Dar-te-ei coisa melhor; dar-te-ei um curral. (Pap Finn, C.5, p. 51)
8. [peixe] Fi-lo, e ele comeu-o, dizendo que ajudaria a cura. [Huck] (C.8, p. 90)
9. Achas que Tom Sawyer seria capaz de passar por ele sem ir a bordo? Duvido!
Chamar-lhe-ia uma aventura, isso sim. [Huck] (C.12, p. 107)
10. - É uma boa idéia. Acho que alguém já o fez. [Tom] (p. 326)
Das dez frases transcritas acima, deixamos em negrito os aspectos mais
chamativos do ponto de vista da coerência entre personagem, estrutura gramatical usada
e ano de publicação. Ao lermos Monteiro Lobato, também nos deparamos com uma
estrutura gramatical não condizente com as personagens, mas não podemos nos
esquecer de que Lobato é pioneiro em trazer Twain ao Brasil. Além disso, a tradução de
Lobato data de 1934, ou seja, há uma diferença entre os dois textos de quase setenta
anos. Tal diferença é significativa, pois vemos na tradução de Flaksman um exemplo de
um passo à frente de Lobato, pois suas escolhas deixam um pouco da rigidez da
136
gramática normativa de lado e apresentam-nos um texto mais adequado às personagens,
permitindo-as maior flexibilidade em suas formas de expressarem-se. Com Marins, dá-
se exatamente o oposto, as amostras apresentadas deixam uma sensação de tratar-se de
um texto anterior ao de Lobato. Os exemplos mais marcantes, para nós, são as
mesóclises e o uso do pronome ‘tu’, o que lembra o português de Portugal. Quanto à
frase de número 5, decidimos transcrevê-la justamente pelo contraste entre ‘conservá-
lo-emos’ (frase 6), ‘que tolices dizes’ (frase 4), ‘dar-te-ei’ (frase 7) e ‘a gente as traz’
(frase 6), mostrando inadvertidamente uma mistura de pronome pessoal com pronome
de tratamento.
Quanto ao léxico, temos:
Tabela 41 – Alex Marins e o léxico 1
1. -Ora, com mil bombas! “Temos” de fazê-la. Já não te disse que está nos livros?
[Tom] (C.2, p. 36)
2. Levei um bom sabonete de Miss Watson, na manhã seguinte, por causa das minhas
roupas [...] [Huck] (C. 3, p. 39)
3. [...] soltou um berro de arrepiar os cabelos da gente, e caiu, rolando de um lado para o
outro na poeira e segurando o pé magoado [...] [Huck] (C.6, p. 60)
4. Um casal de esquilos estava sentado em um ramo, palrando para mim de maneira
muito amigável. [Huck] (C.8, p. 71)
5. Ninguém tropeça com elas. É preciso ficar atrás de um penedo, esperando. [Jim]
(C.8, p. 80)
6. Tivemos bastante dificuldade em chegar ao cimo, porque as encostas eram realmente
muito escarpadas e as moitas muito espessas. [Huck] (C.8, p. 83)
7. [...] menos as cobras e tartarugas; estas deslizavam para a água. A colina onde se
encontrava a nossa caverna estava cheia delas. Poderíamos ter muitos brinquedos, se
quiséssemos. [Huck] (C.8, p. 85)
8. Esperou uma oportunidade e por fim atirou o pedaço de chumbo contra um rato, mas
errou por muito a pontaria e disse: “Bolas!” Ainda lhe doía muito o braço. [Huck]
(C.11, p. 97)
9. [...] mas perderam a sirga e derivaram na correnteza, de popa, cerca de duas milhas,
137
até que foram abalroar com o navio encalhado, e o homem da barca [...] [Huck] (C.13,
p. 117)
10. Pouco a pouco, quando acordamos, passamos revista ao botim que os bandidos
tinham roubado do navio naufragado [...] [Huck] (C. 14, p. 119)
11. - Eu, não! Que remanso? Não vi nenhum remanso! Que nevoeiro? [Huck] (C.15, p.
129)
12. - Para trás, John para trás! – exclamou um. E recuaram o escaler – Conserva-te
afastado rapaz. Teu pai está com bexigas, e tu sabes disso muito bem. [Homem] (C.16,
p. 137)
13. Gritei por Jim uma dúzia de vezes, mas não obtive resposta; então agarrei uma tábua
que me aflorou e comecei a nadar para a praia, empurrando-a à minha frente. [Huck]
(C.16, p. 141)
14. Era lindo ouvir aquele relógio trabalhando; e quando aparecia algum bufarinheiro e
lhe dava uma boa limpeza, era capaz de bater cento e cinqüenta badaladas sem parar.
[Huck] (C.17, p. 147)
15. Usava uma bengala de mogno com castão de prata. [Huck] (C. 18, p. 153)
16. Eu avancei pelo matagal um pouco, até chegar a uma pequena clareira, do tamanho
de um quarto de dormir, toda cercada de silvados, e encontrei um homem ali deitado,
dormindo [...] [Huck] (C.18, p. 159)
17. [...] depois o vapor dobrava uma curva, as luzes desapareciam e o seu resfolegar
morria deixando o rio mergulhado no silêncio, de novo [...] [Huck] (C.19, p. 169)
18. - Degradou-se de quê? De que foi que se degradou? (o Duque, C.19, p. 172)
19. Julgávamos que poderíamos percorrer bastantes milhas naquela noite para nos
livrarmos da celeuma que o trabalho do duque na pequena tipografia iria sem dúvida
levantar na cidade [...] [Huck] (C.20, p.185)
20. [...] correu o pano, e logo em seguida apareceu o rei, andando de gatas,
completamente nu, e com todo o corpo pintado com listas de todas as cores, variegado
como um arco-íris. [Huck] (C.23, p. 205)
21. - Calou-se, e olhou em volta, como se buscasse um olhar amigável, algures. [Huck]
(C.33, p. 291)
22. [...] abriu a torta, escondeu a corda dentro da palha do colchão, garatujou algumas
marcas em um dos pratos de folha, e jogou-o pela janela. [Huck] (C.37, p. 321)
23. Arrastamo-nos até a porta, e ali paramos, enquanto Tom espreitava por uma
frincha, mas não podia ver nada, por causa do escuro [...] [Huck] (C.40, p. 340)
138
Foram selecionadas mais amostras relativas ao léxico, ou seja, vinte e três frases
acima e mais sete abaixo, pois elas podem dar-nos uma idéia mais clara do tipo de
português usado. Para as expressões ou palavras, como: ‘levar um sabonete’ (ser
repreendido), ‘pé magoado’ (pé machucado), ‘palrar’ (tagarelar), ‘penedo’ (grande
rocha), ‘cimo’ (cume), ‘sirga’ (corda para puxar embarcação), ‘abalroar’ (colidir),
‘remanso’ (contracorrente às margens de um rio), ‘escaler’ (tipo de embarcação),
‘bexigas’ (varíola), ‘aflorar’ (vir à tona), ‘bufarinheiro’ (vendedor ambulante de objetos
de pouco valor), ‘castão’ (remate superior das bengalas), ‘silvado’ (sarçal), ‘resfolegar’
(tomar fôlego), ‘degradar-se’ (rebaixar-se), ‘celeuma’ (barulho), ‘andar de gatas’(de
gatinhas), ‘variegado’ (sortido, variado), ‘algures’ (em alguma parte), ‘garatujar’
(rabiscar), ‘frincha’ (fenda) foram encontradas, no dicionário, as acepções em
parênteses. Porém, as interjeições ‘bombas’ e ‘bolas’ não foram encontradas com as
acepções usadas no texto, assim como ‘passar revista ao botim’ e ‘brinquedos’. Não há
‘botim’ no dicionário, mas foi encontrado o termo ‘butim’ com o significado igual ao do
texto, ou seja, ‘saque’, ‘pilhagem’. O contexto em que ‘brinquedos’ é usado não é
esclarecedor e nem o seu uso.
Se as estruturas gramaticais mostraram-se ‘antigas’ ou mais próximas ao
português de Portugal, o léxico vem reforçar esta mesma idéia. Além disso, na
subdivisão dos aspectos lexicais, incluímos elementos referentes a medidas e moedas,
pois vemos neles termos não usados em português do Brasil, como podemos verificar
nos seguintes exemplos:
Tabela 42 – Alex Marins e o léxico 2
1. - Não. Não perdi tudo. Só perdi nove. Vendi o couro e o sebo por um dólar e dez
cêntimos. [Jim] (C.8, p. 81)
2. Remei para a margem do Illinois e derivei mais de meia milha ao fazê-lo. Subi ao
longo do remanso da margem e não tivemos acidentes nem encontramos ninguém.
139
[Huck] (C.8, p. 87)
3. [...] alguns segundos depois estávamos umas cem jardas abaixo do navio e a
escuridão o engoliu por completo; estávamos salvos e sabíamo-lo. [Huck] (C.13, p. 114)
4. Julgávamos que poderíamos percorrer bastantes milhas naquela noite para nos
livramos da celeuma que o trabalho do duque na pequena tipografia iria sem dúvida
levantar na cidade [...] [Huck] (C.20, p. 185)
E, como últimas frases, apresentamos alguns títulos também lembrando um
léxico de Portugal.
Tabela 43 – Alex Marins e o léxico 3
1. [Título] Huck explica – Planejando uma campanha - O sermão campal – Um pirata
no sermão campal – O duque tipógrafo – Jim procurado (C.20, p. 177)
2. [Título] Burlados! – Comparações reais – Jim sente saudades (C.23, p. 205)
3. [Título] O rei ataca Huck – Disputa real - Um valente pifão (C.30, p. 265)
Essa seleção ajuda-nos a melhor compreender os pequenos trechos a serem
analisados agora, pois sem eles ficaríamos apenas com a impressão de tratar-se de um
texto antigo. Portanto, a seguir faremos a análise dos capítulos.
Tabela 44 – Alex Marins e o Capítulo 1
1. The Widow Douglas she took me for
her son, and allowed she would sivilize
me […] (p. 11)
A viúva Douglas adotou-me como filho, e
entendeu que havia de civilizar-me. (p.
27)
2. Well, after a long time I heard the clock
away off in the town go boom – boom –
boom – twelve licks – (p. 13)
Bem, depois de bastante tempo, ouvi um
campanário ao longe, na cidade, bater
bum! bum! bum!, doze badaladas [...] (p.
30)
3. Directly I could just barely hear a ‘me-
yow! me-yow!’ down there. (p. 14)
E prestando atenção, mal pude ouvir um
Miau! miau!” lá em baixo. (p. 30)
No geral, esse capítulo introdutório demonstra a escolha lexical mais sofisticada,
ou até mais antiga, como, por exemplo, o emprego do vocábulo ‘campanário’. Mas
notamos o mesmo termo ‘entender’ no sentido de ‘ter intento’ ou ‘tenção de’ usado
140
também por Lobato.
Tabela 45 – Alex Marins e o Capítulo 2
1. […] and rode him all over the State,
and then set him under the trees again
and hung his hat on a limb to show who
done it. [Huck] (p. 15)
[...] levando-o por todo o Estado e
trazendo-o de novo para debaixo das
árvores do jardim, onde lhe tinham
pendurado o chapéu em um ramo, só para
mostrar que haviam sido elas que tinham
feito aquilo. [Huck] (p. 33)
2. Jim was most ruined, for a servant,
because he got so stuck up on account of
having seen the devil and been rode by
witches. [Huck] (p. 16)
Jim ficou muito estragado, como criado,
de tanto contar que tinha visto o diabo e
que fora raptado pelas bruxas. [Huck] (p.
33)
3. ‘Stuff! Stealing cattle and such things
ain’t robbery, it’s burglary,’ says Tom
Sawyer. ‘We ain’t burglars. That ain’t no
sort of style. [Tom] (p. 18)
- Idiotice! Roubar gado e outras coisas
assim, não é assaltar, é simples
ladroagem – exclamou Tom Sawyer. Nós
não somos larápios. Isso não tem graça
nenhuma. [Tom] (p. 35)
No primeiro e segundo exemplos do texto em português, nota-se uma linguagem
mais de acordo com a norma escrita que a falada. A estrutura usada por Twain é mais
oral, principalmente se levarmos em consideração o uso repetido da conjunção ‘and’,
sendo que em português o ‘e’ não aparece o mesmo número de vezes. Na terceira frase,
o tradutor utiliza mais termos para explicar a atividade do bando de Tom, ou seja, usa
quatro termos, da mesma forma que o fizera Lobato.
Tabela 46 – Alex Marins e o Capítulo 8
1. ‘Well, fust I tackled stock.’ [Jim] (p.
53)
- Primeiro dediquei-me a gado. [Jim] (p.
81)
2. ‘No, I didn’ lose it all. I on’y los’ ‘bout
nine of it. I sole de hide en taller for a
dollar en ten cents.’ [Jim] (p. 53)
- Não. Não perdi tudo. Só perdi nove.
Vendi o couro e o sebo por um dólar e dez
cêntimos. [Jim] (p. 81)
3. ‘Yes. You know dat one-laigged nigger
dat b’longs to old Misto Bradish? Well, he
sot up a bank, em say anybody dat put in a
dollar would git fo’ dollars mo’ at de en’
er de year. Well, all de niggers went in,
but dey didn’t have much. I wuz de one
dat had much. So I stuck out for mo’ dan
- Especulei sim. Tu conheces aquele
negro com uma perna só, que pertence a
sinhazinha Bradish? Bem, ele abriu um
banco e disse que quem botasse um dólar
no banco receberia quatro dólares mais no
fim do ano. Todos os negros quiseram
experimentar, mas pouco dinheiro tinham.
141
fo’ dollars, en I said ‘f I didn’ git it I’d
start a bank myself. Well, o’ course dat
nigger warn’ to keep me out er de
business, bekase he say dey warn’t
business ‘nough for two banks, so he say I
could put it in my five dollars en he pay
me thirty-five at de en’ er de year. [Jim]
(p. 53)
Eu era o único que tinha muito. Eu queria
empregar quatro dólares, e disse que se
não os recebesse, eu próprio iria abrir um
banco. Naturalmente o negro quis que eu
ficasse fora do negócio, porque me disse
que não havia bastantes negócios para
dois bancos, de modo que era melhor eu
entregar-lhe os meus cinco dólares e
receber trinta e cinco no fim do ano. [Jim]
(p. 81)
No capítulo 8, no geral, novamente percebe-se uma linguagem mais próxima da
escrita, construída com orações subordinadas, léxico pouco ou nada usado em português
do Brasil, como, ‘cêntimos’, além do uso do pronome pessoal ‘tu’, do imperfeito do
subjuntivo ‘botasse’ e da colocação pronominal de acordo com a norma gramatical
‘entregar-lhe’. Especificamente no terceiro exemplo, o uso do verbo ‘botar’ com sentido
de ‘colocar’ é muito usual na língua falada e como é usado em meio a elementos mais
formais sobressai-se como algo fora de seu ‘habitat’. Novamente o tradutor mistura
inadequadamente um registro muito formal com um termo coloquial. Além disso, a
tradução de ‘old Misto Bradish’ ficou ‘a sinhazinha Bradish’. Embora essa mudança de
masculino a feminino não seja significativa.
Tabela 47 – Alex Marins e o Capítulo 14
1. ‘Dat’s good! But he’ll be pooty
lonesome – dey ain’ no kings here, is dey,
Huck?’[Jim] (p. 83)
- Assim é melhor! Mas o coitadinho devia
sentir-se muito solitário ... Não há reis na
América, pois não, Huck? [Jim] (p. 122)
2. ‘I don’t know; but it’s so. I got some of
their jabber out of a book. S’pose a man
was to come to you and say Polly-voo-
franzy – what would you think? [Huck]
(p. 83)
- Não sei. Mas é assim mesmo. Eu já vi
um pouco do linguajar deles em um livro.
Imagina que um homem chegasse junto de
ti e te dissesse; “Parlé vu francé?”, o que é
que tu pensarias? [Huck] (p. 122)
3. ‘Why, he is a-saying it. That’s a
Frenchman’s way of saying it.’ [Huck] (p.
83)
- Mas dizem! É a maneira francesa de
dizê-lo. [Huck] (p. 123)
Esse capítulo não traz nenhuma novidade em relação aos anteriores, portanto,
142
não temos nada a acrescentar.
Tabela 48 – Alex Marins e o Capítulo 38
1. ‘Why, Mars Tom, I hain’t got no coat
o’ arms: I hain’t got nuffn but dish-yer ole
shirt, en you knows I got to keep de
journal on dat.’ [Jim] (p. 249)
- Mas, sinhô Tom – disse Jim -, eu não
tenho nenhum brasão de armas; não tenho
senão esta camisa velha, e bem sabe que
eu tenho de escrever nela o meu diário.
[Jim] (p. 323)
2. ‘I reckon I knowed that’, Tom says,
‘but you bet he’ll have one before he goes
out of this […] [Tom] (p. 249)
- Eu já sabia disso – respondeu Tom -,
mas podes estar certo que terá um, antes
de sair daqui [...] [Tom] (p. 323-324)
3. ‘We ain’t got no time to bother over
that’, he says, ‘we got to dig in like all git-
out.’ [Tom] (p. 249)
- Não temos tempo para explicações –
respondeu ele – Precisamos andar com
isso para diante. [Tom] (p. 324)
Nesse capítulo, vemos como elemento novo o uso de ‘sinhô’ usado
apropriadamente por Jim para referir-se a Tom, termo também usado por Monteiro
Lobato.
Para concluir esta análise, gostaríamos de acrescentar que, embora essa tradução
seja a mais recente, ela parece-nos a mais distante do nosso tempo cronológico, devido à
escolha lexical e aspectos morfossintáticos. Não sabemos se, na escolha lexical, há uma
tentativa de levar o texto à virada do século 19 para o 20 ou ainda se é um texto escrito
em português de Portugal. Se uma opção ou outra, não vemos nessas ‘estratégias’ um
acréscimo às traduções já existentes. Ao passo que Lobato, pioneiro no texto de Huck,
apresenta um elemento novo, ou seja, a introdução de uma nova literatura em nossa
cultura e Flaksman amplia o feito de Lobato ao utilizar uma linguagem coloquial.
Portanto, sendo ou não plágio, a tradução da editora Martin Claret não justifica a sua
existência e transforma Huckleberry no ‘Excelentíssimo Senhor Huckleberry Finn’.
143
4.4 Por que civilizaram Huck?: mais alguns esclarecimentos acerca da escolha
dos tradutores
Vemos os títulos ‘As aventuras do Senhor Huckleberry Finn’ (Monteiro Lobato),
‘As aventuras de Seu Huckleberry Finn’ (Sérgio Flaksman) e ‘As Aventuras do
Excelentíssimo Senhor Huckleberry Finn’ (Alex Marins) mais apropriados que os dados
pelos tradutores mencionados. E quais seriam seus motivos? Por que os tradutores
acabaram apresentando Huckleberry com um pronome de tratamento?
A resposta mais imediata está conectada às análises feitas anteriormente, ou seja,
a linguagem usada nos textos. Alex Marins submete as personagens a rígidas regras
gramaticais. Monteiro Lobato é um pouco menos severo, mas presenteia Huck com um
‘terno’ e Sergio Flaksman, finalmente, deixa-as cometerem alguns ‘pecados’
lingüísticos. Mas nos três casos as personagens descrevem uma órbita em torno da fala-
padrão, com registros mais ou menos formais. Assim, a distância entre os três textos
pode ser medida em termos de maior ou menor intensidade no uso da gramática
normativa e as diferenças entre os anos de publicação; porém, somente a questão do
registro da língua usado não responde a nossa pergunta acima de forma completa.
Existem outras questões envolvidas na maneira das nossas personagens falarem
português. Há dois estudos que podem ajudar-nos a compreender a questão dos níveis
de formalidade usados pelos tradutores. O primeiro trata da discussão a respeito de
alguns elementos relacionados à tradição da tradução de obras clássicas analisadas por
John Milton (2002), e o segundo refere-se à representação oral na literatura brasileira
por Dino Preti (2004).
Para Preti, sempre houve na literatura uma tentativa por parte dos autores
literários de representar a oralidade de sua época. Entre os escritores brasileiros mais
144
representativos dessa prática estão José de Alencar (1829-1877) e Aluísio Azevedo
(1857-1913); ambos produziram no século 19 e, portanto, contemporâneos de Mark
Twain. Segundo Preti, é justamente nesse século que começa a haver interesse em
retratar personagens de classes menos privilegiadas e, com elas, seus hábitos
lingüísticos. Porém, foi somente no século 20 que os prosadores souberam aproveitar
melhor alguns aspectos da língua falada na escrita. Entre eles, Preti (2004, p. 120) cita
“Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Marques Rebelo, Jorge Amado, na chamada
‘geração de 45’, bem como as dos cronistas como Fernando Sabino, na década de 60 e,
mais recentemente, a de autores como João Antônio [...], Rubem Fonseca e Luís
Vilela.”.
Quanto a essa tradição de escritores voltados para a oralidade na escrita, John
Milton (2002, p. 57) afirma: “Não existe uma tradição de romances do proletariado em
português; tampouco nenhuma obra que se compare a Huckleberry Finn, e uma tradição
literária do uso de formas dialetais como ocorreu mais recentemente em Guimarães
Rosa”.
Se há uma defasagem cronológica entre a literatura norte-americana e a
brasileira em relação à representação do uso de fala não-padrão, pois Twain publica
Huckleberry no final do século 19 e Guimarães Rosa (1908-1967) nasce no começo do
século 20, como se comportam os tradutores de obras com dialetos? O desenvolvimento
mais tardio de uma literatura voltada para uma fala dialetal também influencia os
tradutores? Ao ler O Clube do livro (2002) entendemos que sim, mas não apenas isso.
Ao estudar as traduções de romances clássicos do inglês para o português, do
período de 1945 a 1975, Milton constatou que as traduções não traziam nenhuma marca
de discurso não-padrão
121
. Como conseqüência, notou-se o que ele chama de
121
Dentro do âmbito de não-padrão, Milton elenca gíria, palavras de baixo calão, desvios gramaticais,
dialetos, não fazendo distinção entre esses elementos.
145
homogeneização da linguagem com sua ‘elevação’ de registro. Entre outros motivos,
particularmente ligados ao Brasil, estão: a influência francesa na cultura brasileira tendo
por base a tradição da literatura vista como ‘belles lettres’
122
; o desenvolvimento tardio
dos estudos sobre dialetos no Brasil; o conservadorismo da classe média predominante
no mercado editorial, evitando novidades; o sistema de classes brasileiro mais rígido
que o norte-americano e o europeu, que, como conseqüência, estabelece uma lacuna
maior entre as classes sociais, limita oportunidades de educação para as classes menos
privilegiadas e reforça um quadro de leitores de classe média. Embora Milton cite essas
características como da sociedade brasileira, resultando em uma tradução focalizada na
língua normativa, ele afirma não se tratar de um fenômeno isolado, tampouco apenas da
tradução da língua inglesa, na verdade, esse fato ocorre em outros países e também pode
ser observado em traduções de outras línguas. Por exemplo, outro aspecto apontado por
ele é o papel educacional dos clássicos, e, portanto, a importância dada à língua-padrão,
como transcrito abaixo:
Romances clássicos em tradução podem fazer parte de um circuito
educacional, com grandes tiragens e altos lucros, cuja prioridade é
dada à linguagem correta. Miryam Du-Nour mostra que esse foi um
elemento muito importante para os editores de literatura infantil em
Israel (Du-Nour, p. 339) [...] Eva Hung aponta que a preocupação
principal dos leitores chineses de Dickens, na virada do século 19
para o 20, era social e educacional em vez de literária [...](MILTON,
2002, p. 58).
Outro fator importante é o papel das editoras ao lidarem com a tradução e a
remuneração de seus tradutores, pois, como diz Milton (2002, p. 61): “Se um tradutor
recebe entre R$8 e R$10 por página, ele não tem tempo de preocupar-se com precisão
estilística, ou de buscar o melhor dialeto, equivalente ou analógico, para representar o
dialeto estrangeiro que está traduzindo”; além disso, há normas exigidas pelas editoras.
Com o intuito de ilustrar esse papel limitador das editoras, vamos transcrever um
122
Judith Lavoie (1994) refere-se a essa tradição francesa quando critica a tradução de Bay.
146
exemplo dos vários apresentados por Milton.
As instruções dadas aos tradutores pela Editora Best Seller, editora
especializada em publicar best-sellers de ficção, são parecidas,
embora os editores dissessem que o trabalho deveria ser fiel ao
original: ‘Normas de Tradução: não literal, mas fiel, bem escrita no
que chamamos de luso-brasileiro. Clareza, fluência e eufonia são
essenciais’ (Editora Best Seller, 1986, apud MILTON, 2002, p. 115)
Além da tradição de normatizar a língua da tradução de clássicos, Milton cita
exemplos de tentativas de respeitar os traços estilísticos do autor, como é o caso da
tradução de Ulysses, por Antônio Houaiss (1965) e a tradução de The Color Purple
(1986). Para completar esse quadro de novas perspectivas para a tradução com dialetos,
podemos relembrar os trabalhos acadêmicos e as duas traduções
123
citados na
introdução deste trabalho. Em relação a essas duas traduções, selecionamos algumas
frases a fim de ilustrar as estratégias usadas pelos tradutores na elaboração do dialeto
em suas traduções.
Em O Harlem é Escuro, a tradutora Celina Falk Cavalcante usa elementos que
podem ser identificados como ‘dialeto caipira’ e/ou ‘social popular’
124
para dar pistas de
que as personagens não empregam a norma culta da língua. E, na verdade, utilizamos
‘dar pistas’ porque a linguagem não-padrão é abrandada, na medida em que as primeiras
marcas dialetais do texto de partida são ignoradas no texto de chegada.
Vejamos alguns exemplos em inglês em paralelo com os em português:
Tabela 49 – Chester Himes e Celina Falk Cavalcante
Blind Man with a pistol: Chester Himes O Harlem é Escuro: Celina Falk
Cavalcante
1. What would a colored convent want
with “fertile womens”? Fertile womens
was for fools, not God. (1989, p. 8)
Para que um convento de negras ia
precisar de “mulheres férteis?” Mulheres
férteis eram para os tolos não para Deus.
123
O Harlem é Escuro, tadução de Blind man with a pistol (1969), romance de Chester Himes (1909-
1984), traduzido por Celina Falk Cavalcante (2006) e de Pigmaleão (1913), peça de teatro do escritor
George Bernard Shaw (1856-1950), traduzida por Millôr Fernandes (2005).
124
As normas gramaticais do ‘dialeto caipira’ são descritas por Amadeu Amaral e apresentadas em forma
de ‘quadro-resumo’ no Apêndice A deste trabalho. O ‘dialeto social popular’ de Dino Preti é tratado na
seção 5.1.
147
(2006, p. 8)
2. “Can you hold ‘em while I call the
station?” (1989, p. 9)
- Dá para segurar essa gente enquanto eu
ligo para a delegacia? (2006, p. 11)
3. “It is feetsies. Everybody ain’t rich like
you white folks.” (1989, 10)
- Mas são fezes mesmo. Nem todos são
ricos feito vocês, os brancos. (2006, p. 11)
4. “What they doin’ here anyway?” (1989,
10)
- O que eles estão fazendo aqui, afinal?
(2006, p. 12)
5. “You the boss man, then?” the first cop
said. (1989, p. 10) [notar a ausência do
verbo de ligação]
- Você é que é o chefe por aqui, então –
disse o primeiro tira. (2006, p. 12)
6. The cop blinked. “Papa!” he echoed. He
your son too?” (1989, p. 11) [notar a
ausência do verbo de ligação]
- “Papai?” – repetiu ele. – Esse cara aí
também é seu filho?”(2006, p. 13)
Talvez a tradutora ou a editora tenha querido apenas marcar as fala das
personagens sem fazer com que essas fossem reconhecidas pelo público de língua de
chegada, como ‘caipiras’, gaúchos, nordestinos ou pertencentes a qualquer outra parte
do Brasil. Em contrapartida, em Pigmaleão, o tradutor Millôr Fernandes cria uma
linguagem para as personagens incultas da peça de forma bem marcada.
4.4.1 O Harlem é Escuro
Destacamos alguns exemplos de O Harlem é Escuro a fim de observarmos o tipo
de dialeto criado pela tradutora para as persoagens desse livro.
Tabela 50 – A tradução de Celina Flak Cavalcante
Tradução Observações
1. – ‘Num’ me lembro exatamente, não.
Noite retrasada, acho eu. [não consta o
nome da personagem](p. 45, grifo nosso)
Nota-se, assim, a forma proclítica do ‘não’
[num].
2. – ‘Botar’ quem para correr? ‘Nóis’ Nessa fala, podemos notar o verbo ‘botar’,
148
‘tudo’ vive aqui! [não consta o nome da
personagem] (p. 46, grifo nosso)
que consta do vocabulário de Amadeu
Amaral (1955, p. 101) como pertencente
ao grupo de vocábulos usados no dialeto
caipira. Ele é de uso bastante popular e
talvez possa fazer parte do que Dino Preti
chama ‘vocabulário popular’, em oposição
a ‘vocabulário culto’. Ainda temos a vogal
tônica seguida de sibilante (s ou z) com a
transformação do ‘nós’ em ‘nóis’. E a
mudança do ‘o’ medial em ‘u’ e ‘s’ final
que cai, transformando o pronome ‘todos’
em ‘tudo’.
3. - É! Vocês vêm tentando dizer mais sim
que os brancos, mas hoje em dia ‘os
branco’ estão dizendo sim ‘pra’ vocês tão
rápido, que vocês não ‘sabe’ quem está
dizendo sim ‘pra’ quem. [Dr. Mutuba] (p.
49, grifo nosso)
Nessa fala, notamos que a personagem usa
a pluralização de acordo com a norma
padrão [os brancos] e, logo em seguida, a
não-padrão, sendo que o ‘s’ da marca do
plural é mantido apenas pelo determinante
[os branco]. Ainda podemos observar a
contração da preposição ‘para’ + o artigo
‘a’ de uso da língua oral [pra (2vezes)].
Cabe observar ainda que o advérbio de
negação ‘não’, embora em posição átona,
não sofre a transformação em ‘num’, como
ocorre em outros exemplos
125
.
4. - Sr. Sam – disse ele –, vou lhe dizer
‘pra ocê’ aqui e agora, na sua cara – acho
que o senhor endoidou. Perdeu todo o
juízo com que nasceu. [Johnson X] (p. 51,
grifo nosso)
Notamos novamente a contração da
preposição ‘para’ + o artigo ‘a’ de uso da
língua oral [pra]; o emprego do pronome
pessoal reto ‘você’ como objeto e as
variantes do ‘você’ comuns no dialeto
caipira [ocê]; uso do pronome pessoal
125
Essa variação também ocorre em Huckleberry Finn, mas muito reduzida. Twain usa ‘warn’t’ em lugar
de ‘wasn’t’, mas há duas ocorrências de ‘wasn’t’ na obra, na fala de Huck: “There is ways to keep off
some kinds of bad luck, but this wasn’t one of them kind […]” (TWAIN, 1994, p. 24) e “I wanted an axe,
but there wasn’t any […]” (TWAIN, 1994, p. 40)
149
oblíquo átono ‘lhe’ seguido do verbo
‘dizer’ e, depois, a redundância, com o uso
da preposição ‘pra’ + o pronome pessoal
reto ‘ocê’.
5. – ‘Bancano’ o cafetão e ‘dirigino’ um
bordel desde que aprendeu ‘as coisa’ que
ia vender... [Johnson X] (p. 52, grifo
nosso)
Temos um exemplo típico do dialeto
caipira, segundo Amadeu Amaral, em que
o ‘d’ cai, quase sempre, na sílaba final das
formas verbais em ‘ando’, ‘endo’, ‘indo’.
Assim, os verbos em ‘ando’ e ‘indo’:
‘bancando’ e ‘dirigindo’ transformam-se
em ‘bancano’, ‘dirigino’. E, novamente o
plural marcado apenas pelo determinante
[as coisa].
6. - Cercado de ‘muié’ a vida inteira, e
ainda ‘num
tá’ satisfeito. Tem quase cem
‘ano’, e quer ‘contrariá’ a ‘órdi’ bem
ordenada da criação. [Johnson X] (p. 52,
grifo nosso)
Notam-se as seguintes mudanças: o ‘lh’
vocaliza-se em ‘i’ e ‘r’ final cai [muié],
sendo essa marca muito comum no dialeto
caipira e também apresentado por Dino
Preti, na forma de menor prestígio do
dialeto social; forma proclítica do ‘não’
[num]; supressão da primeira sílaba do
verbo flexionado ‘estar’ de uso da língua
oral [tá]; não há flexão da pluralidade que
é marcada pelo determinante ‘cem’; o ‘r’
final do verbo no infinitivo cai [contrariá];
e ‘ei
n
(em)’ no final do vocábulo reduz-se
a ‘e’ grave, que seria ‘orde’ [caso seguisse
as normas do dialeto caipira], no entanto, a
tradutora usou ‘órdi’.
7.- Velho e ‘marvado’ como o senhor é,
com ‘tudo os pecado’ que cometeu na
vida, ‘tantas pessoa’ que enganou, ‘toda as
mentira’ que contou, tudo que roubou, tem
coragem de dizer que ‘tá’ esperando ajuda
Podemos notar as seguintes mudanças: ‘l’
em final de sílaba muda-se em ‘r’:
[marvado], um traço muito característico
do dialeto caipira e também apresentado
por Dino Preti, na forma de menor
150
de Deus? [Johnson X] (p. 52) prestígio do dialeto social; ‘o’ medial
muda-se em ‘u’ e ‘s’ final cai, assim temos
‘tudo’ em lugar de ‘todos’; três
ocorrências do plural marcado apenas pelo
determinante [os pecado; tantas pessoa;
toda as mentira]; e, finalmente, a
supressão da primeira sílaba do verbo
flexionado ‘estar ‘de uso da língua oral
[tá].
8. – ‘Me lembra’ um camarada que eu
conheci que era capaz de ‘ingravidar’ uma
‘muié’ só de ‘oiá pra’ ela. [Sr. Sam] (p. 54,
grifo nosso)
Nessa fala, temos: o uso da próclise em
lugar da ênclise, próprio da língua oral
[me lembra]; ‘e’ nasal muda-se para ‘i’
nasal [ingravidar]; 2 ocorrências de ‘lh’
que se vocaliza em ‘i’; e ‘r’ final cai
[muié; oiá], novamente temos a presença
de traços caipiras e forma de menor
prestígio do dialeto social; e contração da
preposição ‘para’ + o artigo ‘a’ de uso da
língua oral [pra].
9. - Não esqueceu nada, esqueceu? Bolas,
penas e olhos e o ‘ispréma’. E ‘essas outra
coisinha esquisita’ são o quê? [Sr. Sam]
(p. 55, grifo nosso)
Notam-se as seguintes alterações: ‘e’
inicial muda-se em ‘i’, mas não ‘i’ nasal, o
que seria o caso se seguisse as regras do
dialeto caipira. Verifica-se também
metátese do ‘r’ [ispréma]
126
; e a marca do
plural se dá apenas pelo determinante
[essas outra coisinha esquisita].
Julgamos suficientes essas nove falas, visto que elas exemplificam a utilização
de várias das regras gramaticais seguidas no dialeto caipira, com alguns desvios, e do
126
Seguindo-se a regra do dialeto caipira, segundo Amadeu Amaral, deveríamos ter inspréma. Porém,
vemos que se trata de uma criação da tradutora.
151
dialeto social popular. A tradutora criou a linguagem das personagens baseando-se em
traços desses dois dialetos. Sua criação também demonstra, assim como na tradução de
Millôr, a falta de fixidez própria de cada fala, ou seja, mesmo que a personagem ‘se
desvie’ da norma gramatical a maior parte do tempo, às vezes, pode fazer uso da norma.
Ainda sobre O Harlem é Escuro, devemos ressaltar que a caracterização das
personagens por meio das falas criadas pela tradutora não permite ao leitor afirmar que
tais personagens pertençam a uma região específica do Brasil. Isso ocorre, a nosso ver,
pelo fato de o socioleto criado estar diluído no todo. Talvez haja certo grau de
desequilíbrio da linguagem do texto, porque o dialeto aparece na obra mais
uniformemente só a partir da página 45 (exemplo 2); porém, isto não ocorre no texto de
partida, como vimos alguns exemplos. Mesmo havendo essa pequena diferença entre o
texto de partida e o de chegada, consideramos a linguagem da tradutora como modelo
de linguagem literária não-padrão.
Quanto à obra Pigmaleão, à qual passaremos a seguir, pode-se dizer que, desde
o primeiro exemplo, a linguagem é densa, não deixando nenhuma dúvida no leitor de
que se trata de personagens de baixa escolaridade, como veremos a seguir.
4.4.2 Pigmaleão
Na tradução de Pigmaleão, o tradutor marca a fala das personagens com uma
linguagem não-padrão, ora usando as regras do dialeto caipira ou do dialeto social
popular, ora usando criação. Algumas dessas criações pareceram-nos um tanto
exageradas, pois não soam muito verossímeis, como ‘artolados na lama’. Vemos este
exemplo como iverossímel, por dois motivos. O primeiro pelo acréscimo do ‘r’ em um
152
vocábulo que não o possui, assim não se tratando de metátese. O segundo pela escolha
do termo ‘atolado’, pois ele parece-nos de uso menos comum que, por exemplo,
‘enlameado’ tornado ‘lameado’. Além disso, o tradutor continua a usar o dialeto não-
padrão mesmo quando o texto original parou de usá-lo, o que nos remete ao fato
contrário ocorrido com o texto de O Harlem é Escuro, como vimos acima. Outras
observações de transformações morfossintáticas estão na tabela abaixo:
Tabela 51 – A tradução de Millôr Fernandes
Tradução Observações
1. Homem: (À direita da senhora). ‘Êli’
‘num’ vai ‘pergá’ carro ‘ninhum cum essi’
toró, ‘num
sinhora’. Só lá ‘pras meia-
noite’. ‘Dispois’ do ‘pensoal todu dus
triatru i pra’ casa ‘drumi’. (p. 13, grifo
nosso)
Notamos os seguintes ‘desvios’ da norma:
sílaba postônica grave com ‘e’ final, muda
para ‘i’: [Êli; essi]; forma proclítica do não
[num]; criação do tradutor [pergá; pensoal;
triatru]; ‘e’ nasal muda-se em ‘i’ nasal
[ninhum]; ‘o’ medial muda-se em ‘u’
[cum; dus]; o advérbio de negação ‘não’
em posição tônica não deveria sofrer
alteração, de acordo com as regras do
dialeto caipira, mas sofre [num sinhora];
‘e’ medial muda-se em ‘i’ [sinhora]; uso
do plural onde não existe plural [pras
meia-noite]; o vocábulo ‘despois’ faz parte
do vocabulário de Amadeu Amaral. Neste
caso, o tradutor faz uso da regra em que o
‘e’ medial torna-se ‘i’, comum em várias
regiões do Brasil [depois despois
dispois]; sílaba postônica do vocábulo
grave com final ‘o’ [todu]; nos
apontamentos de Amadeu Amaral temos o
‘i’ para o verbo ‘ir’ e nenhum exemplo
com o ‘e’ conjunção. O tradutor faz uso
dos dois, ou seja, ‘i’ serve para o verbo ‘ir’
153
e para a conjunção ‘e’; contração da
preposição ‘para’ + o artigo ‘a’ de uso da
língua oral [pra]; o ‘o’ medial muda-se
para ‘u’ e o ‘r’ final cai, e temos a criação
do tradutor [drumi]
2. Homem: ‘Num mi’ olha ‘ansim’ não,
madama. A ‘curpa num’ é minha. (p. 14,
grifo nosso)
Nessa fala, notam-se: forma proclítica do
‘não’ [num (2 vezes)]; ‘e’ final em ‘i’
[mi]; ansim
127
; e ‘l’ em final de sílaba
muda-se em ‘r’ [curpa]
3. Florista: ‘Dirvagá cum’ a loça,
‘Ferderico’. ‘Num inxerga’ não, ‘hômi’?
(p. 15, grifo nosso)
Notam-se as seguintes alterações: ‘e’
medial muda-se em ‘i’, criação do tradutor
[dirvagá]; ‘o’ medial muda-se em ‘u’
[cum]; ‘ou’ acentuado ou não, contrai-se o
primeiro em ‘ô’ [loça]; metátese
[Ferderico]; forma proclítica do ‘não’
[num]; ‘e’ nasal muda-se em ‘i’ nasal, de
acordo com a regra do dialeto caipira
teríamos ‘home’, pois o ‘ei
n
(em)’ final de
vocábulo, reduz-se a ‘e’ grave, e não em
‘i’ {homi], o que coincide com a forma de
menor prestígio do dialeto social
apresentado por Preti.
4. Florista: (Recolhendo as flores e
colocando-as de novo na cesta) ‘Qui
inducação’, ‘qui’ modos, nossa ‘sinhora’.
Cincos ‘burquês’ de ‘mangnólias
artolados’ na lama. (p.15)
Podemos notar: ‘e’ final muda-se em ‘i’
[qui (2 vezes)]; ‘e’ inicial muda-se em ‘i’
nasal [inducação]; ‘e’ medial muda-se em
‘i’ [sinhora]; criação do tradutor [burquês;
mangnólias; artolados]
5. Florista: Ah, a ‘sinhora’ é a mãe ‘du’
moço? Mãe boa, hein, ‘qui insina êssis
modus pru’ filho; ‘bota as fror tudo’ no
‘artolero i corri sim nim pargá’. A
Notam-se as alterações seguintes: ‘e’
medial muda-se em ‘i’ [sinhora]; ‘o’ final
muda-se em ‘u’ [du]; ‘e’ final muda-se em
‘i’ [qui]; ‘e’ nasal muda-se em ‘i’ nasal
127
Conforme Amadeu Amaral (1955, p. 75) “Ansim, assim, adv.: forma pop. Em todo o Brasil, com o a
nasalizado por influência do im. – Encontra-se freqüentemente nas peças castelhanas de Gil V.”
154
madama vai ‘pargá’. A madama vai
‘pargá’ meus ‘prijuízo’? (p. 16)
[insina]; sílaba postônica grave com ‘e’
final, muda-se em ‘i’ [êssis]; ‘o’ final
muda-se em ‘u’ [modus]; contração da
preposição ‘para’ + ‘o’ e permuta do ‘o’
final em ‘u’ de uso freqüente na língua
oral em geral [pru]; embora o verbo
‘botar’ conste do vocabulário de Amadeu
Amaral (1955, p. 101), como pertencente
ao grupo de vocábulos usados no dialeto
caipira (p.101), ele é de uso bastante
popular e talvez possa fazer parte do que
Dino Preti chama ‘vocabulário popular’,
em oposição a ‘vocabulário culto’; ‘l’
subjuntivo de um grupo, muda-se em ‘r’ e
pluralidade marcada pelo determinante [as
fror]; inexistência da flexão de gênero e
número do determinante e ‘o’ medial
muda-se em ‘u’ [tudo], finalmente,
acréscimo de letra ao vocábulo artolero,
que talvez seja criação do tradutor [tudo
no artolero]. Nos apontamentos de
Amadeu Amaral temos o ‘i’ para o verbo
‘ir’ e nenhum exemplo com o ‘e’
conjunção. O tradutor faz uso dos dois, ou
seja, ‘i’ serve para o verbo ‘ir’ e para a
conjunção ‘e’; ‘e’ final muda-se em ‘i’,
mas neste caso deveria haver acento no ‘o’
para não confundi-lo com o verbo na 1ª
pessoa do singular do pretérito perfeito
[corri]; ‘e’ nasal muda-se em ‘i’ nasal, mas
aqui pode haver confusão com o advérbio
‘sim’, embora o contexto indique o sem
[sim]; ‘e’ nasal muda-se em ‘i’ nasal
155
[nim]; criação do tradutor [pargá (3
vezes); prijuízo]
6. Florista: (Esperançosa) Eu tenho ‘u
distrocado’, dona.
Nessa fala, temos: o ‘u’ como forma
substitutiva do artigo definido ‘o’ ou do
indefinido ‘um’ [u]; e criação do tradutor
[distrocado].
Todos estes exemplos corroboram a sugestão de que a criação do dialeto feita
pelo tradutor não é ‘apenas estranha’ como ele sugere
128
, mas é uma construção que tem
por base o dialeto caipira e/ ou o social popular e, em alguns casos, a criação de um ou
outro vocábulo. Embora a linguagem não-padrão seja mais usada nesta tradução que na
primeira apresentada, a forma como o tradutor retratou as personagens por meio do
dialeto literário não permite ao leitor identificar uma possível região do Brasil, a qual
pertenceria tal dialeto. Assim, tanto em uma como na outra tradução não há muitas
ocorrências da vocalização do ‘lh’ em ‘i’, o que facilmente distinguiria falantes de áreas
rurais, assim como não há marcas de pronúncias, por exemplo, do ‘r’ caipira. Além
disso, no caso de Pigmaleão, há algumas criações do tradutor, como: pagar > pargá;
viver > virvê; ofender > orfendê; trocado > distrocado, etc, dificultando a identificação
da possível região geográfica da personagem.
Dessa forma, acreditamos ser o momento de explicar um pouco o que vem a ser
‘dialeto caipira’ e ‘social popular’, mencionados anteriormente. Para tanto,
começaremos a descrevê-los na próxima seção, passando à criação dos dialetos em
português e finalizando com a proposta de tradução.
128
Quanto à criação do dialeto em português para Pigmaleão, Millôr Fernandes (2005, p. 17, grifo do
autor) afirma: “Assim, o tradutor tentará criar uma língua que, não sendo de parte alguma, possa sugerir a
idéia do cockney, uma forma de baixeza lingüística que faz com que representantes da elite repilam
ligações mais íntimas (ligações sociais simples, quanto mais casamento!) com pessoas tão ignorantes.
Para que essa tradução tenha efeito, é necessária a colaboração profunda de diretor e atores. O que inclui
não transformar as palavras em nenhum sotaque regional (nordestino, gaúcho ou semelhante)
reconhecível pelo público. Nada disso. A linguagem dever apenas estranha, com uma conotação, claro, de
grossa incultura. Aqui e ali o público poderá reconhecer formas e maneiras de dizer universais, mas não
deve poder localizar nehum [sic] delas.”
156
5 A CONSTRUÇÃO DA ORALIDADE E DOS DIALETOS LITERÁRIOS DA
PROPOSTA DE TRADUÇÃO
Se até o momento não foi mencionada uma possível linha teórica que pudesse
permear este trabalho, isso foi devido às etapas de seu desenvolvimento. Sumariamente
podemos dizer que partimos da argumentação de não civilizar Huckleberry, procuramos
definir dialeto literário e mostrar as implicações em seu uso, analisamos três traduções
da obra e verificamos a tradição da tradução em padronizar a língua de obras clássicas.
Para concluirmos, será apresentada uma proposta de tradução com criação do dialeto
literário, tomando por base teórica o chamado ‘dialeto social popular’, conforme
definido por Dino Preti e os possíveis riscos de uma tradução dialetal, sob a perspectiva
de Gillian Lane-Mercier.
5.1 Dino Preti e o dialeto social popular
Dino Preti, em Sociolingüística: os níveis de fala (1982), descreve o campo de
ação da sociolingüística como sendo aquele que, grosso modo, se ocupa da inter-relação
e interdependência entre língua, indivíduo e sociedade, sendo a primeira o elo entre os
dois últimos elementos. Esse estudo vai distinguir e classificar variedades lingüísticas
dentro da mesma língua, e Preti divide tais variedades em dois campos: o das variedades
geográficas (ou diatópicas) e o das variedades sócio-culturais (ou diastráticas), estando
o último inserido no primeiro.
157
Estes dois grupos por sua vez apresentam subdivisões. Pertencentes ao primeiro
grupo, as variedades geográficas dividem-se em linguagem urbana e linguagem rural.
Estas duas últimas referem-se aos dialetos ou falares regionais. No segundo bloco, o das
variedades sócio-culturais, há também uma subdivisão. O primeiro subgrupo está ligado
ao ‘falante’ por influência de idade, sexo, raça, profissão, posição social, grau de
escolaridade e classe econômica, local em que reside, sendo esses elementos
combinados resultantes do dialeto social. Este, por sua vez, subdivide-se em culto e
popular. O segundo subgrupo está ligado à ‘situação’ por influência do ambiente, tema,
estado emocional do falante, grau de intimidade entre os falantes, sendo a combinação
desses traços o resultado de níveis de fala ou registros, que podem ser formal ou
coloquial.
Dentro dos limites do ‘dialeto social’, a subdivisão ‘culto’ e ‘popular’ não deve
ser entendida de forma estanque, mas como possuidora de características flutuantes,
variando do culto ao popular, passando por um nível intermediário chamado de
‘comum’. Assim como os ‘níveis de fala’ ou ‘registros’ também vão do formal ao
coloquial, passando pelo ‘comum’.
Os ‘dialetos sociais cultos’ apresentam as seguintes singularidades relativamente
fixas: “[...] padrão lingüístico, maior prestígio, situações mais formais, falantes cultos,
literatura e linguagem escrita, sintaxe mais complexa, vocabulário mais amplo,
vocabulário técnico, maior ligação com a gramática e com a língua dos escritores
129
,
etc” (PRETI, 1982, p. 32). Os ‘dialetos sociais populares’ possuem as seguintes
particularidades: “[...] subpadrão lingüístico, menor prestígio, situações menos formais,
falantes do povo menos culto, linguagem escrita popular, simplificação sintática,
vocabulário mais restrito, gíria, linguagem obscena, fora dos padrões da gramática
129
É interessante notar a citação da literatura e da língua de escritores como exemplo de linguagem
escrita e padrão, reforçando o que vimos anteriormente, na explicação da função da literatura como
aquela que educa.
158
tradicional, etc” (PRETI, 1982, p. 32). Quanto aos ‘níveis de fala’ ou ‘registros’, entre
os elementos que constituem o registro formal, encontramos “[...] situações de
formalidade, predomínio de linguagem culta, comportamento lingüístico mais refletido,
mais tenso, vocabulário técnico, etc” (PRETI, 1982, p. 35). O ‘registro coloquial’ possui
os seguintes traços: “situações familiares ou de menor formalidade, predomínio da
linguagem popular, comportamento lingüístico mais distenso, gíria, linguagem afetiva,
expressões obscenas, etc” (PRETI, 1982, p. 35).
De acordo com a explanação acima, tentando entender a criação de Mark Twain,
com as ferramentas apresentadas por Dino Preti, podemos dizer que Twain combinou os
dois blocos das variedades lingüísticas, ou seja, variedades geográficas e sócio-
culturais, para criar as falas dialetais de suas personagens. Do primeiro, usou a
‘linguagem rural’ que recebe o nome de ‘dialetos’ ou ‘falares regionais’, tendo por base
a linguagem do sul dos Estados Unidos. Do segundo bloco, o das variedades sócio-
culturais, ele fez as seguintes composições para Huck, determinando: idade (14 anos),
sexo (masculino), raça (branca), posição social (pária), grau de escolaridade (sabe ler e
escrever) e local em que reside (casa da viúva Douglas/ Saint Petersburg). Deste bloco,
ele optou pelo ‘dialeto social popular’. E, quanto aos ‘níveis de fala’ ou ‘registros’, usou
o ‘registro coloquial’ para as três personagens. Para Jim, determinou: sexo (masculino),
raça (negra), etnia (afro-americana)
130
posição social (escravo), grau de escolaridade
(analfabeto), local em que reside (casa da viúva Douglas em Saint Petersburg). Para
Tom, determinou: sexo (masculino), raça (branca), grau de escolaridade (freqüenta a
escola), classe econômica (classe média), local em que reside (casa da tia Polly em Saint
130
A etnia não faz parte dos itens ligados ao falante, na descrição sócio-cultural proposta por Preti.
Porém, Jim é representado lingüisticamente por meio do dialeto usado pela comunidade afro-americana,
assim, julgamos necessário introduzir esse item.
159
Petersburg)
131
.
Dessa forma, podemos enquadrar nossas personagens como falantes de uma
linguagem rural, ou seja, suas falas apresentam elementos das variedades geográficas.
Vemos aqui a explicação da grande ocorrência das características fonológicas. Se, em
inglês, é possível reconhecê-las, em maior ou menor grau, como falantes do AAE (Jim)
e do dialeto dos rincões distantes do sudoeste e do ‘Pike-County’ (Huck, Tom e outras
personagens), em português não pretendemos que elas sejam reconhecidas como
falantes de uma região brasileira específica. No entanto, torna-se tarefa quase
impossível partir de um dialeto em português sem provocar nenhuma identificação com
uma ou outra região do país. Portanto, o que procuramos fazer foi ter por base
características mais gerais da língua não-padrão. Como vimos, Twain fez uma
combinação de outros elementos dentro das variedades diatópicas, ou seja, ele buscou
características do ‘dialeto social popular’ com um ‘registro coloquial’, dentro de alguns
‘falares regionais’. Dessa forma, nosso enfoque estará voltado para os elementos
constitutivos do ‘dialeto social popular’, também com ‘registro coloquial’
132
.
Do ponto de vista da estrutura morfossintática do ‘dialeto social popular’, de
todas as características levantadas por Preti, empregaremos as seguintes que aparecem
na tabela abaixo:
Tabela 52 – Dino Preti e o ‘dialeto social popular’*
1. Economia nas marcas de gênero, número e pessoa (Ex.: “Essas pessoa não tem
jeito”);
2. Mistura da 2ª pessoa com a 3ª no singular. Uso intenso da expressão de tratamento a
gente, em lugar de eu e nós (Ex.: “A gente já te disse que você está errado”) [grifo do
131
Huck e Tom acabam As aventuras de Tom Sawyer ricos por terem encontrado o tesouro de Injun Joe.
Huckleberry Finn inicia-se justamente relembrando esse fato aos leitores. Huck não muda de
comportamento devido ao dinheiro, assim como Tom. Essa ‘classe média’ foi atribuída a Tom de acordo
com inferências da leitura de As aventuras de Tom Sawyer. Portanto, como Huck conserva a mesma
forma de agir demonstrada em Tom Sawyer no livro que leva o seu nome, julgamos adequado manter
‘pária’ como sua posição social.
132
Usaremos do ‘dialeto caipira’ alguns traços para a fala de Jim, como: metatése de fósforo fósfro e
satisfeito sastifeito. Além disso, o ‘ansim’ e alterações de vogal tônica seguida de sibilante (s ou z).
160
autor];
3. Falta de correlação verbal entre os tempos (Ex.: “Se encontrasse ela agora, contava
tudo.”);
4. Redução do processo subordinativo em benefício da frase simples e da coordenação
(Ex.: “Já disse pra você, não disse? Quando eu acabei o curso, não tinha mais dinheiro.
Aí então, fui trabalhar”, em lugar de “Não sei se já lhe disse que, quando terminei o
curso, fui trabalhar, porque não tinha mais dinheiro”);
5. Predomínio das regências diretas nos verbos (Ex.: “Você já assistiu o filme?”, em
lugar de “Você já assistiu ao filme?”)
133
;
6. Simplificações gramaticais da frase, emprego de “bordões” do tipo “então”, “aí”,
etc.;
7. Emprego dos pronomes pessoais retos como objetos (Ex.: “Vi ele, encontrei ela”
etc.)
* Esta tabela foi elaborada a partir da descrição do ‘dialeto social popular’ por Preti (1982, p.
27-28).
Em relação ao léxico, Preti faz uma divisão entre ‘vocabulário culto’ e
‘vocabulário popular’; os falantes da língua culta usam uma gama maior de vocábulos
contrastando com os da língua popular, embora a distinção entre um e outro seja difícil
de ser estabelecida. Na nossa proposta, usamos alguns vocábulos e expressões que
lembram a fala rural, como, ‘prosa’, ‘prosear’, ‘de modos que’, etc.; porém, existem
mais vocábulos comuns as duas falas, a rural e a urbana, a fim de evitar a identificação
das personagens como pertencentes a uma ou outra região do Brasil.
Quanto à fonologia, Preti faz distinção entre ‘pronúncia culta’ e ‘pronúncia
popular’, sendo relevantes os seguintes exemplos: a preposição ‘pra’, usada nas duas
traduções apresentadas, e também na proposta deste trabalho e, ainda, algumas formas
verbais, “nesse campo, muitas formas como, falá, dizê, contô, falô, falaro etc. já
começam a ingressar também numa faixa de linguagem comum e não constituem mais
133
Quanto às regências verbal e nominal, usamos algumas as quais chamamos de ‘especiais’ por não
haver um nome específico para seus usos. Elas aparecem em forma de tabela (64, 68 e 70) e ocorrem na
fala das três personagens.
161
elementos diferenciadores entre os dialetos sociais culto e popular” (PRETI, 1982, p.
30, grifo do autor)
Ao tratar do prestígio do ‘dialeto social’, Preti (1982, p. 31) faz a seguinte
distinção, com os exemplos abaixo:
Tabela 53 – Dino Preti o dialeto social de maior e menor prestígio
Maior prestígio Menor prestígio
1. Haver (=existir) Ter (=existir)
2. Falar Falá
3. Palha Paia
4. Homem Homi
5. Os bichos Os bicho
6. Fazemos Fazemo
7. Olhei-a Olhei ela
8. Dir-lhe-ei, Eu lhe direi, Eu digo pra ela, eu digo pra você, eu digo
pr’ocê
9. Se você fizer isso Se você fazê isso
10. As nossas riquezas não servem para
nada.
As nossa riqueza não serve pra nada.
11. Isso é estupidez! Isso é estupideza!
12. Você não me engana mais, pois já o
conheço bem.
Você não me engana mais. Já te conheço
bem.
Algumas das características apresentadas acima coincidem com os traços do
dialeto caipira, como descrito por Amadeu Amaral, em O Dialeto Caipira (1955)
134
,
como: a perda do ‘r’ final no infinitivo dos verbos, a flexão do plural marcada apenas
pelo determinante e a vocalização do ‘lh’.
Se já estamos munidos das ferramentas para a construção dos dialetos em
português a serem usados por Huck, Jim e Tom, falta-nos ainda discutir acerca dos
possíveis riscos corridos por nossa proposta de tradução em função da criação de tais
dialetos.
134
No Apêndice A deste trabalho, foram incluídas algumas tabelas explicativas das características do
dialeto caipira, conforme descrito por Amadeu Amaral.
162
5.2 Lane-Mercier: responsabilidade e riscos assumidos pelo tradutor de
dialetos
No artigo Translating the Untranslatable: The Translator’s Aesthetic,
Ideological and Political Responsibility (1997), Lane-Mercier trata da questão da
tradução de dialetos literários, suas possíveis conseqüências e a responsabilidade do
tradutor em suas escolhas.
A visão de Lane-Mercier quanto à criação de dialetos é similar às observações
de Sumner Ives, desde a definição do termo até as possíveis representações grotescas da
personagem. Nesse tocante, ela também tem opinião semelhante à de Antônio Cândido.
Para o último, as representações inapropriadas podem ocorrer devido a um narrador de
terceira pessoa; Lane-Mercier fala apenas em narrador ‘neutro’. Se até aqui não há
novidades em suas observações, o que é inovador em seu texto é sua visão pós-moderna
do processo tradutório que leva em consideração a posição do tradutor, pois este produz
não apenas significado semântico, mas estético, ideológico e político:
Such meaning is indicative, amongst other things, of the translator’s
position within the socio-ideological stratifications of his or her
cultural context, of the values, beliefs, images and attitudes
circulating within this context, of the translator’s interpretation of the
source text as well as of his or her aesthetic, ideological and political
agendas, and of the interpretive possibilities made available to the
target-text readers through the translator’s strategies and decisions.
(LANE-MERCIER, 1997, p. 44)
135
Lane-Mercier ainda faz uma seleção de alguns dos riscos corridos pelo tradutor
de dialeto literário, tais como: risco de criação e de perda de significado, de
etnocentrismo, de falta de autenticidade e de conservadorismo e/ou radicalismo. Ao
apresentá-los, ela trabalha com exemplificações de outros teóricos e expõe suas
135
“Tal significado é indicativo, entre outras coisas, da posição do tradutor dentro das estratificações
sócio-ideológicas de seu contexto cultural, de valores, crenças, imagens e atitudes circulando neste
contexto, da interpretação do tradutor do texto-fonte, assim como de sua agenda estética, ideológica e
política e das possibilidades interpretativas tornadas acessíveis aos leitores do texto-alvo por meio das
decisões e estratégias do tradutor.”
163
contradições nas sugestões de possíveis soluções para problemas dialetais. Quanto à
nossa proposta de tradução, podemos dizer que se, por um lado, corremos todos os
riscos elencados por Lane-Mercier, por outro, não nos resta outra saída, se quisermos
dar vozes as personagens de Huckleberry. Sendo assim, iremos nos deter um pouco na
compreensão de tais riscos com base nas descrições de Lane-Mercier
Twain representa Jim por meio do AAE, como vimos, e esse dialeto carrega
valores não existentes nos possíveis dialetos criados em português; isso também é
igualmente notado nos demais dialetos usados por outras personagens.
Ao usarmos elementos do ‘dialeto social popular’, corremos o risco de criação
de significado, pois o leitor pode identificar nessas falas uma correspondência com
determinada região brasileira, transformando Huck, Jim e Tom em Pedro, João e Paulo,
embora tenhamos procurado evitar essa possível identificação, não apresentando
características fonológicas peculiares a uma região, por exemplo. Porém, igualmente
corremos o risco de perda de significado, pois não temos como resgatar os valores
incorporados nos dialetos usados por Mark Twain, uma vez que cada dialeto é único,
possuindo uma representação singular.
Se a criação e a perda são praticamente inevitáveis na nossa proposta, a questão
da autenticidade toca em um ponto ainda mais frágil. Em primeiro lugar porque Lane-
Mercier não define o que acredita ser autenticidade, e as acepções dadas pelo dicionário
não elucidam o seu significado
136
. Além disso, a própria criação de Twain levanta
discussões. Como vimos, principalmente na seção 3, vários estudiosos discutem a
questão da criação dos dialetos de Mark Twain, principalmente o usado por Jim; porém,
há divergências de opiniões. Enquanto uns defendem essa criação, pois comprovaram,
136
O dicionário Aurélio dá as seguintes definições acerca de ‘autenticidade’: “qualidade de autêntico”. E
para ‘autêntico’ as seguintes: “que é do autor a quem se atribui; a que se pode dar fé, fidedigno; que faz
fé, legalizado; verdadeiro, real; genuíno, legítimo, lídimo.” Vemos em todos os sinônimos a mesma
subjetividade de autenticidade.
164
por meio de comparações, a existência de características em comum entre falantes da
comunidade afro-americana com as falas de Jim, como é o caso de Minnick. Por outro
lado, outros acreditam que Twain exagerou nas características dialetais de Jim,
tornando-o estereotipado e, como conseqüência, da mesma forma o seu dialeto. Assim,
se acreditamos na autenticidade dos dialetos criados por Twain, nossa criação torna-se
ilegítima, pois a ‘genuinidade’ pertence ao criador. No entanto, se não acreditamos nela,
igualmente não podemos construir algo autêntico, pois já negamos na fonte a veracidade
da criação. Portanto, essa questão, parece-nos um círculo vicioso, levando-nos sempre
ao mesmo ponto, ou seja, o da inautenticidade.
Ainda restam-nos alguns riscos, como, por exemplo, o de etnocentrismo, ou seja,
traduzirmos os dialetos literários de acordo com os valores da nossa cultura, sendo não-
etnocentrismo procurar acolher os dialetos de Twain, preservando os valores da cultura
fonte, para enriquecer a nossa cultura. Esse ponto levanta questões relacionadas às
estratégias de domesticação e estrangeirização
137
, debatida há séculos, e sem relevância
para este trabalho, pois nosso objetivo é a representação das personagens de Mark
Twain, por intermédio de um dialeto não-padrão, com o intuito de não civilizá-las,
estando esse ligado ou não a uma ou outra estratégia. Como se não bastassem os riscos
apresentados, ainda temos o de radicalismo e/ou conservadorismo. Ao optarmos por
uma linguagem atual, corremos o risco de radicalismo, pois estaremos distanciamo-nos
da linguagem do século 19 usada por Twain e tornando o texto anacrônico. No entanto,
se procurarmos uma linguagem mais antiga ou ainda muito próxima do texto de partida,
com notas de rodapé para garantir a legibilidade do texto ao leitor, podemos ser
conservadores.
137
John Milton explica da seguinte forma as estratégias de domesticação e estrangeirização desenvolvidas
por Schleiermacher (1768-1834): “Na primeira, o tradutor deixa o leitor em paz e leva o autor até o leitor;
em outras palavras, a tradução deveria parecer fluente na língua-alvo, nesse caso, o alemão. No segundo,
o tradutor deixa o autor em paz e leva o leitor até ele; isto é, as formas estrangeiras do original serão
transferidas para o alemão.” (1998, p. 67)
165
Dessa forma, vemos que os riscos elencados por Lane-Mercier, na verdade,
podem ocorrer em qualquer tipo de tradução e não apenas na de dialetos; porém, para
ela, a tradução dialetal é paradigmática na medida em que acentua tais problemas e
reforça as contradições inerentes às dicotomias elaboradas pelos teóricos
138
, como
fidelidade versus infidelidade e visibilidade versus invisibilidade. Podemos acrescentar
ainda, em relação às suas observações, que seu texto instiga o tradutor a refletir sobre
tais ‘perigos’, assim como sobre sua responsabilidade e não simplesmente a usar uma
linguagem padrão para apagar os dialetos e com isso camuflar problemas existentes ou
até intensificá-los.
Na verdade, acreditamos que o grande peso da obra de Twain reside na denúncia
do racismo que, por usa vez, permeia o discurso das personagens brancas e a submissão
de Jim em relação às regras da sociedade racista. Dessa forma, o AAE não apenas
representa uma fala da comunidade afro-americana, distinguindo uma etnia, mas
também e principalmente clama por uma liberdade que não está presente em nenhum
dos locais percorridos por Jim. O seu dialeto e os demais buscam por algo inexistente
nos espaços traçados por Twain na obra. Enxergamos esses dialetos como um elemento
não-padrão à procura do ainda não-existente. Assim, tanto Jim como as outras
personagens só podem ser representadas por um subpadrão lingüístico, pois usar
regionalismos ou o ‘dialeto social culto’, como tem sido feito nas traduções até agora,
falsearia a fala das personagens, assim como suas escolhas e buscas. Por isso, vemos na
representação desses dialetos mais do que simples variedades geográficas, com
subdivisões étnicas e comprometimento estilístico e os valores inerentes a eles. Para
138
No artigo mencionado, Lane-Mercier aprofunda duas dicotomias, invisibilidade versus visibilidade e
negativo versus positivo, apresentadas respectivamente por Lawrence Venuti e Antoine Berman. Ela
critica a visão de Venuti, pois vê nela uma limitação teórica. No caso dos dialetos literários,
invariavelmente eles manifestam a subjetividade do tradutor, ou seja, em ambas as estratégias, visível ou
invisível, o tradutor faz-se presente. No caso de Berman, ela acredita que este apresenta uma solução
possível para o problema dos dialetos literários, visto que eles possuem um alto grau de estrangeiridade,
que acentua a diversidade do texto-fonte e confronta o tradutor ‘com o Outro ficcional.’
166
nós, tais dialetos são elementos de conexão e harmonia na obra, ou seja, todas as
personagens utilizam um tipo de dialeto, cujo papel é o de não civilizá-las; elas afastam-
se, portanto, do padrão, pois procuram valores não existentes naquela civilização
representada por Twain. Sendo assim, Jim, o que tem o grau dialetal mais elevado, está
mais distante das regras da sociedade, enquanto Tom está mais próximo. A obra termina
com Jim liberto, mas não sabemos o que irá acontecer a ele e nem a Tom. Porém, não
podemos nos esquecer do título do livro As aventuras de Huckleberry Finn, ou seja,
sabemos apenas que Huck vai continuar em fuga. Não há menções de possíveis lugares
apropriados para refugiar-se, mas apenas a certeza de que nos locais percorridos não
existem valores capazes de tornarem os seres humanos menos cruéis do que são,
sabemos apenas que “Human beings can be awful cruel to one another.” (TWAIN,
1994, p. 224)
139
Dessa forma, o uso do ‘dialeto social popular’ pode não ser o mais adequado,
mas é o que mostrou menos peculiaridades regionais e ao mesmo tempo traços não-
padrão suficientes para representar Huck, Jim e Tom. Assim, antes de nossa proposta,
apresentaremos alguns passos dados na construção da oralidade na tradução, que se
baseou em alguns elementos elencados por Dino Preti, como a repetição e os
marcadores conversacionais; as estruturas sintáticas de frases simples, interrompidas e
coordenadas. Para tanto, coletamos alguns exemplos dos elementos citados no texto em
inglês, com sua respectiva tradução, tentando seguir o mais perto possível os passos de
Twain.
139
Nem sei como é que os seres humanos conseguem ser tão cruéis uns com os outros. (FLAKSMAN,
1997, p. 253)
167
5.3 A construção da oralidade na tradução
Quanto à repetição, selecionamos quatro exemplos, um de cada capítulo da
proposta. Procuramos exemplos apenas de discurso direto, por esse motivo, nenhum
exemplo do capítulo 1 foi escolhido, pois nele só há a narração de Huck.
Tabela 54 – A oralidade e a repetição
1. Everybody said:
‘Oh, she’ll do, she’ll do. That’s all right. Huck can come in.’ [Everybody] (C2, p. 17)
Todo mundo disse:
- Tá bom. Ela sérvi, ela sérvi. O Huck pode entrá.
2. ‘I reck’n I could eat a hoss. I think I could … [Jim] (C.8, p. 49)
- Acho que dava pr’eu comê um boi. Acho que dava memo.
3. ‘Well, I don’t know. Some of them gets on the police, and some of them learns
people how to talk French.’ [Huck] (C.14:83)
- Bem, num sei. Alguns dele entra pra polícia, otros ensina francês pra gente.
4. ‘A fessa fess is – you don’t need to know what a fess is. I’ll show him how to
make it …’ [Tom] (C.38:249)
- Um listel – um listel é – você num precisa sabê o que é um listel. Eu vô mostrá na
hora que ele tivé que fazê um.
Quanto aos marcadores conversacionais, destacamos cinco exemplos.
Tabela 55 – A oralidade e os marcadores conversacionais
1. Well, then, the old thing commenced again. [Huck] (C1:12)
- E aí começô tudo de novo.
2. ‘But you got a gun, hain’t you? Den we kin git sumfn’ better den strawbries.’ [Jim]
(C.8, p. 49)
- Mais ‘ocê tem uma arma, num tem? Aí então a gente pode pegá alguma coisa mais
boa
que morango.’
3. ‘[…] Balum – Balum’s Ass dey call him for short, he’s one er dem chuckle-heads,
you know. [….]’ [Jim] (C.8, p. 53)
- [...] Balum – Balum, o Bobo, era o apelido dele, porque ele é meio bobo memo,
sabe, ?
4. ‘Looky here, Jim; does a cat talk like we do?’ [Huck] (C.14, p. 83)
- Olha aqui, Jim, um gato fala como que a gente?
5. ‘Why, Jim, you wouldn’t be afraid of it, after a little.’[Tom] (C.38, p. 252)
- Que que é isso, Jim; logo, logo você num ia mais tê medo dela.
168
Quanto às estruturas sintáticas, escolhemos duas frases simples, uma
interrompida e duas coordenadas.
Tabela 56 – A oralidade e as frases simples
1. ‘I don’t know; but it’s so.’ [Huck] (C.14:83)
- Num sei, mas é assim mesmo.
2. ‘But I tell you you don’t get the point.’[Huck] (C.14:82)
‘Blame de pint!’ [Jim] (C.14, p. 82)
- Mas tô te dizendo que você num pegô a idéia. [Huck]
- Mais que diabo! [Jim]
Tabela 57 – A oralidade e as frases interrompidas
1. [about kings] But other times they just lazy around; or go hawking – just hawking
and sp - - Sh! – d’you hear a noise? [Huck] (C.14, p. 81)
Mas notra época eles só fica vadiando; ou vão caçá – só caçá e esp - - psss! – Você
num ouviu um barulho?
Tabela 58 – A oralidade e as frases coordenadas
1. ‘Why, Mars Tom, I hain’t got no coat o’arms: I hain’t got nuffn but dish-yer ole shirt
[…] [Jim] (C.38:249)
- Mais, sinhô Tom, eu num tenho nenhum brasão de arma; num tenho nada a num sê só
essa camisa véia [...].
2. Our hole was pretty big, but it warn’t big enough to get the grindstone through; but
Jim he took the pick and soon made it big enough. [Huck] (C.38, p. 251)
O buraco era bem grande, mas num era tão grande pra passá a pedra; mas o Jim pegô
uma picareta e rapidinho aumentô o tamanho do buraco.
Agora passaremos a descrever as características dialetais em português de cada
personagem.
5.4 As personagens e seus dialetos literários
Lisa Cohen Minnick apresenta quatorze tabelas com as características
fonológicas de Jim. Em pelo menos seis casos o apóstrofo é usado para mostrar
supressão ou queda de morfema ou sílaba. Das tabelas de Minnick, comentaremos
169
alguns exemplos, porém, ela apresenta todas as mudanças ocorridas e quantas vezes elas
aparecem no texto inteiro. Algumas dessas alterações podem ser feitas em português,
mas nem sempre em relação à mesma característica. Da mesma forma, nem sempre o
uso do apóstrofo é possível em português. Quanto à vocalização de /r/ posvocálica,
podemos dizer que em inglês há ocorrências de muitos vocábulos terminados por ‘r’
depois de vogal, como: ‘hear’ ‘heah’, ‘ashore’ ‘asho’, etc. A fim de usarmos o
mesmo recurso do inglês, com queda do ‘r’, todos os infinitivos dos verbos de 1ª (-ar),
2ª (-er) e 3ª (-ir) conjugações perderam o ‘r’ final, com exceção dos verbos ‘ir’ e ‘vir’.
Em relação ao primeiro verbo, para não haver confusão com um possível uso do ‘i’
como representação da conjunção ‘e’ e, quanto ao último, para ele não ser confundido
com a primeira pessoa do pretérito perfeito do ‘ver’ ‘vi’. Os verbos de primeira e
terceira conjugação perdem o ‘r’ e ganham um acento agudo na vogal final, como, por
exemplo, ‘falar’ ‘falá’ e ‘resistir’ ‘resistí’. Os verbos de segunda conjugação
perdem o ‘r’ e ganham um acento circunflexo, como, por exemplo, ‘fazer’ ‘fazê’. O
verbo ‘estar’ sofre mais mudanças, perde o ‘es’ além do ‘r’, em todas as pessoas verbais
e tempos, no entanto, não usamos apóstrofo.
No caso dos finais átonos /n/ em vez de /ŋ/ no particípio presente, em inglês,
todos os verbos no particípio presente tiveram essa alteração na voz de Jim. Em
português, foi possível fazer uma alteração do particípio presente com a redução do
‘ndo’ a ‘no’, com exceção do verbo ‘vir’. Em inglês essa mesma mudança de /ŋ/ por /n/
mais apóstrofo também ocorre em outros vocábulos, ou seja, não apenas no particípio,
mas também em palavras como ‘evening’, ‘afternoon’, ‘morning’, etc. Em português,
também foi possível fazer essa mudança em ‘quando’ ‘quano’, porém, apenas na fala
de Jim.
Como há muitas ocorrências de apóstrofos, o que parece uma característica do
170
afro-americano também comentado por Brodosky, optou-se pelo uso deles nos seguintes
casos:
Tabela 59 – Encontro vocálico com ‘para’
Definição
Encontro vocálico da primeira palavra com a segunda, sendo que o apóstrofo substitui
a queda do ‘a’ átono, nos seguintes encontros com a preposição para’ reduzida a ‘pra’.
Encontro vocálico Exemplo com ‘para’+ a/o Transformação
1. a + a pra + água pr’água
2. a + e pra + ele (eles, ela, elas,
eu)
pr’ele
3. a + i pra + ispantá pr’ispantá
4. a + o pra + ocê
pra + onde
pra + otra
pr’ocê
pr’onde
pr’otra
5. a + u pra + um pr’um
Tabela 60 – Encontro vocálico com ‘que’
Definição
O pronome relativo ‘que’ com as vogais ‘a’, ‘e’, ‘i’ e ‘o’.
Encontro vocálico Exemplo com ‘que’ Transformação
1. e + a que + a qu’a
2. e + e que + eu (ele, esse) qu’eu
3. e + i que + ia
que + isperá
qu’ia
qu’isperá
4. e + o que + ocê
que + o
qu’ocê
qu’o
Tabela 61 – Encontro vocálico com ‘em’
Definição
A preposição ‘em’ mais artigos definidos ou não, apenas nos encontros vocálicos com
‘a’ e ‘o’.
Encontro vocálico Exemplo com ‘em’[na/no] Transformação
1. a + a na + água n’água
2. e + o em + ocê n’ocê
Tabela 62 – A preposição ‘de’ mais vogais
Definição
A preposição ‘de’ com ou sem junção com artigos definidos, nos encontros com ‘a’,
‘e’, ‘i’, ‘o’ e ‘u’.
171
Encontro vocálico Exemplo com ‘de’ Transformação
1. e + a de + água
de + arma
d’água
d’arma
2. e + e de + eu/ ele / ela ...
de + escravo
d’eu
d’escravo
3. e + i de + incontra d’incontra
4. e + o de + ocê d’ocê
5. e + u de + um (a) d’um (a)
Tabela 63 – O ‘se’ pronominal
Definição
O ‘se’ do verbo pronominal ‘esconder-se’ e do ‘ir-se embora’.
Encontro vocálico Exemplo com ‘se’ Transformação
1. e + i se + iscondi s’iscondi
2. e + i se + imbora s’imbora
Tabela 64 – Jim e as características morfológicas
Definição
Além das marcas acima, Jim apresenta as seguintes características morfológicas.
característica exemplo
1. Queda do ‘r’ final de todos os verbos no
infinitivo, com acréscimo de acento agudo
para verbos da 1ª e 3ª conjugações (-ar, -
ir) e circunflexo para os da 2ª (-er)
Já sei o que qu’eu vô fazê.
2. Queda do ‘r’ final e da sílaba átona do
verbo ‘estar’, sem apóstrofo, em todos os
tempos e pessoas verbais
- E faiz quanto tempo qu’ocê na ilha?
3. Queda do ‘r’ do grupo consonantal ‘vr’
do verbo ‘livrar’ e do ‘pr’ no substantivo
‘problema’
- Deus o live, meu fio...
4. Queda do ‘r’ apenas no pronome
indefinido ‘qualquer’, com acento agudo
para marcar a sílaba tônica e do
substantivo ‘flor’
- ... e num vejo pra que qu’eu vô tê uma
flô.
5. Queda do ‘d’ do particípio presente - E o que qu’ocê tá comeno?
6. Outras alterações com queda do ‘d’ - ... e ele fechava a fábrica quano queria
descansá.
7. Troca do ‘am’ pelo ‘o’ dos verbos na 3ª
pessoa do plural (eles/elas) no pretérito
perfeito
- ... os bote começaro a saí.
8. Queda do ‘l’ final das palavras: ‘fácil’,
‘difícil’, ‘possível’, ‘cascavel’, etc.,
mantendo o acento quando houver e
quando não acrescentá-lo à sílaba tônica
- Sinhô Tom, eu tô disposto a fazê tudo o
que é razoáve, ...
9. Queda do ‘v’ ou do ‘vo’ do vocábulo
‘você’. O apóstrofo só será usado quando
- Quem qu’ocê é?
- ‘ sabe...
172
for encontro vocálico
10. Queda das sílabas ‘co’ e ‘i’ na palavra
‘coitadinho’, com apóstrofo
- ‘Tadinho dele.
11. Alterações de vogais seguidas de
sibilantes ‘s’ ou ‘z’
- Empatei déiz dólar numa vaca.
12. Alteração do ‘es’ dos verbos
‘esconder’, ‘esquecer’, ‘escurecer’ e
‘esperar’ e suas variações para ‘i’
- ... então eu s’iscondi...
13. Vocalização do ‘lh’ em ‘i’ - Eu acho que as muié brigava um bocado
...
14. Forma proclítica do ‘não’ - Não sinhô, graças a Deus num tem não,
sinhô Tom.
15. Redução de ditongo: ‘ei’ ‘e’ e ‘ou’
‘o’
- Verdade verdadera.
16. Transformação da preposição ‘para’ +
artigo definido ‘o(s)’/’a(s)’ou ‘para’ sem
artigo + verbo
- Se dá pra passá sem isso ...
17. Perda da sílaba átona - Eu num ‘credito nem um poco nisso.
18. Forma popular em todo o Brasil, com
o ‘a’ nasalizado por influência do ‘im’.
Encontra-se com freqüência nas peças de
Gil Vicente*
- Eu num sabia que tinha tantos rei ansim.
19. Queda do ‘s’ medial - Fiquei muito triste memo...
20. ‘em’ final reduz-se a ‘e’ grave - E a vaca é um home?
21. Forma arcaica do ‘depois’ ** - ... a pessoa pode tê de sê pobre muito
tempo, e despois fica rica.
22. Metátese - ... e alguns fósfro ...
- ... sastifeito ...
* Conforme Amadeu Amaral ( 1955, p. 75)
** Conforme Amadeu Amaral (1955, p. 13)
Tabela 65 – Jim e as características morfossintáticas
característica exemplo
1. Quanto ao número: o ‘s’ como marca
de plural é mantido pelo determinante
- ... os último tava cheio...
2. Mistura da 2ª e da 3ª pessoa do singular (não exemplos nos capítulos
selecionados para a proposta)
3. Falta de correlação entre os tempos
verbais
- ... por causa qu’eles ia tirá o dia de folga
ansim que as duas tava fora de casa.
4. Emprego do ‘a gente’ em vez de ‘nós’ - Quano a gente tava ...
5. Troca do futuro do pretérito pelo
pretérito imperfeito + o infinitivo
- ... por causa qu’eles ia tirá ...
6. Uso de pronomes pessoais oblíquos no
início das orações
- Me responde agora!
7. Uso do pronome pessoal reto com
função de objeto
- Num consigo ‘güentá elas, ...
8. Regência nominal especial - ... que nunca qu’ia me vendê ...
9. Regência verbal especial - ... qu’eu devia de dá o dinhero.
10. Repetição do ‘que’ - Quem que tá aí?
173
11. Tautologia - ...A dona Moça – aquela senhorita
Watson – ela implicava ...
12. O comparativo de superioridade de
‘bom’ segue a regra dos adjetivos
regulares
- Aí então a gente pode pegá alguma coisa
mais boa que morango.
Como Twain marca a fala de Huck com alguns apóstrofos, mas não muitos,
escolhemos dois casos para os cinco capítulos.
Tabela 66 – Huck e os apóstrofos
característica exemplos
1. Perda da sílaba átona - Mas, ‘perai, Jim,....
- ... e ‘inda por cima ...
Tabela 67 – Huck e as características morfológicas
característica exemplo
1. Queda do ‘r’ final de todos os verbos no
infinitivo, com acréscimo de acento agudo
para verbos da 1ª e 3ª conjugações (-ar, -
ir) e circunflexo para os da 2ª (-er)
- Vamo comê?
2. Queda do ‘r’ final e da sílaba átona do
verbo ‘estar’, sem apóstrofo, em todos os
tempos e pessoas verbais
- Você vivendo disso?
3. Troca do ‘am’ pelo ‘o’ dos verbos na 3ª
pessoa do plural (eles/elas) no pretérito
perfeito
- Desde a noite que me mataro.
4. Forma proclítica do ‘não’ - Bem, eu disse que num contava, num
disse.
5. Transformação da preposição ‘para’ +
artigo definido ‘o(s)’/’a(s)’ou ‘para’ sem
artigo
- Por que que você pra cá?
6. Redução do ditongo ‘ou’ ‘o’ - Eu num contá.
7. Queda do ‘r’ do vocábulo ‘qualquer’ e
de ‘problema’
- ... tudo o que eu queria era uma mudança
qualqué.
8. Queda do ‘s’ final de verbos na 1ª
pessoa do plural
- ... e então eu e Tom fomo dormí.
Tabela 68 – Huck e as características morfossintáticas
característica exemplo
1. Quanto ao número: o ‘s’ como marca
de plural é mantido pelo determinante
- ... ovelha desgarrada e um monte de
otros nome também ...
2. Mistura da 2ª e da 3ª pessoa do singular - Ele num te xingando. Ele só tá
perguntando se você sabe falá francês.
3. Falta de correlação entre os tempos
verbais
- ... onde talvez tinha gente doente.
174
4. Emprego do ‘a gente’ em vez de ‘nós’ - A gente foi andando nas ponta dos pé.
5. Troca do futuro do pretérito pelo
pretérito imperfeito + o infinitivo
- ... num ia adiantá de nada.
6. Uso de pronomes pessoais oblíquos no
início das orações
- Me levantei e dei três volta ...
7. Uso do pronome pessoal reto com
função de objeto
- Quando você perde uma ferradura que
tinha achado em vez de pregá ela em cima
da porta ...
8. Regência nominal especial - ... mas era difícil de vivê ...
9. Regência verbal especial - Quando sentava na mesa ...
10. Repetição do ‘que’ - Porque que você num pegô...?
11. O comparativo de ‘pequena’ segue a
regra do comparativo de adjetivos
regulares
- .... e ainda por cima a mais pequena.
12. Tautologia A tia Polly, ela é a ...
Tabela 69 - Huck e alguns usos especiais
Características e termos especiais exemplos
1. De modos que - ... de modos que eu podia me divertí.
2. Por causa que - ... mas num era bom acendê uma
fogueira por causa que eles podia ...
3. janta - Na hora da janta ...
4. Dialeto visual - ... e resolveu que ia me sivilizá ...
5. Particípio passado do verbo ‘escrever’
usado de acordo com a regra dos verbos
regulares
- Então o Tom pegô um pedaço de papel
onde ele tinha escrevido o juramento e
leu.
Tabela 70 - Tom e as características morfológicas
característica exemplos
1. Queda do ‘r’ final de todos os verbos no
infinitivo, com acréscimo de acento agudo
para verbos da 1ª e 3ª conjugações (-ar, -
ir) e circunflexo para os da 2ª (-er)
- ... que vai se chamá o bando do Tom
Sawyer.
2. Troca do ‘am’ pelo ‘o’ dos verbos na 3ª
pessoa do plural (eles/elas) no pretérito
perfeito
- Você num acha que as pessoa que
escrevero os livro ...
3. Forma proclítica do ‘não’ - Robá gado e coisa assim num é assalto
...
4. Transformação da preposição ‘para’ +
artigo definido ‘o(s)’/’a(s)’ou ‘para’ sem
artigo
- A gente precisa de uma pedra pras frase
e pro brasão ...
5. Redução do ditongo ‘ou’ em ‘o’ - Eu mostrá na hora...
6. Queda do ‘s’ final de verbos na 1ª
pessoa do plural
- Vamo buscá uma pedra.
175
Tabela 71 - Tom e as características morfossintáticas
característica exemplo
1. Quanto ao número: o ‘s’ como marca
de plural é mantido pelo determinante
- .. e aí a gente mata todo mundo e fica
com os relógio e o dinheiro.
2. Mistura da 2ª e da 3ª pessoa do singular - Num te disse que tá nos livro? Você qué
fazê ...
3. Falta de correlação entre os tempos
verbais
- ... se eu fosse tão ignorante como você,
eu ficava quieto.
4. Emprego do ‘a gente’ em vez de ‘nós’ - A gente num é ladrãozinho.
5. Troca do futuro do pretérito pelo
pretérito imperfeito + o infinitivo
- ... num ia adiantá de nada.
6. Uso do pronome pessoal reto com
função de objeto
- ... Você traz elas pra caverna ...
7. Regência verbal especial (Não há exemplo na proposta)
8. Repetição do ‘que’ - Que que isso, Jim ...
5.4.1 As personagens e os dialetos em comum
Após as características individuais das personagens, julgou-se necessária a
apresentação de duas tabelas, uma em inglês e a outra em português, com a intenção de
mostrar alguma correspondência entre as marcas dialetais do original e da proposta.
Essa correspondência diz respeito ao número de ocorrências, ou seja, há certo equilíbrio
na criação dos dialetos da proposta, se comparada à de Twain.
Tabela 72 - As personagens e suas características gerais em inglês
Jim Huck Tom
1. Supressão do verbo auxiliar X X
2. Dupla negativa X X X
3. Supressão do ‘s’ da 3ª pessoa do
plural
X
4. 1ª pessoa do singular/plural com ‘s’ X X
5. Passado não marcado X
176
6. Passado de verbos irregulares
tornados regulares
X X X
7. Supressão do ‘s’ do plural X
8. Prefixação com ‘a’ X X X
9. Nivelamento do ‘was’ X
10. Nivelamento do ‘weren’t’ X X X
11. ‘wasn’t’ e ‘weren’t’ tornados
‘warn’t’
X X X
12. Verbo ‘be’ no presente, na 3ª
pessoa do singular para todas as
pessoas verbais
X X
13. Verbo ‘be’: passado afirmativo X
14. Uso do ‘ain’t’ para todas as pessoas
do verbo
X X X
15. Uso do ‘hain’t’ para todas as
pessoas do verbo
X X
16. Forma ‘there + be’ sempre na 3ª
pessoa do singular
X X
17. Foram do pronome indefinido
‘some/any’ + ‘s’
X X
18. Tautologia X X
19. Dialeto visual X X X
20. Supressão vocálica X X X
21. Supressão consonantal X X X
22. Supressão de sílaba X X X
23. Vocalização do /r/ pós-vocálico X
24. Perda do /r/ após consoante X
25. /n/ em vez de /ŋ/ X
26. /t/ em posição final X
27. Supressão da sílaba tônica X X X
28. Fricativas interdentais trocadas por
labiais
X
Total 28 17 12
Tabela 73 - As personagens e suas características gerais em português
Jim Huck Tom
1. Queda do ‘r’ final de todos os verbos
no infinitivo, com acréscimo de acento
agudo para verbos de 1ª e 3ª
conjugações (-ar, -ir) e circunflexo para
os da 2ª (-er)
X X X
2. Queda do ‘r’ final e da sílaba átona
do verbo ‘estar’, com acento agudo,
sem apóstrofo
X X X
3. Queda do ‘r’ do grupo consonantal X
177
‘vr’ do verbo ‘livrar’ e do ‘pr’ no
substantivo ‘problema’
4. Queda do ‘r’ apenas no pronome
indefinido ‘qualquer’, com acento
agudo para marcar a sílaba tônica e do
substantivo ‘flor’
X X
5. Queda do ‘d’ do particípio presente X X X
6. Outras alterações com queda do ‘d’ X
7. Troca do ‘am’ pelo ‘o’ dos verbos na
3ª pessoa do plural (eles/elas) no
pretérito perfeito
X X X
8. Queda do ‘l’ final das palavras:
‘fácil’, ‘difícil’ e ‘possível’, ‘cascavel’,
mantendo o acento quando houver e
quando não acrescentá-lo à sílaba
tônica
X
9. Queda do ‘v’ ou do ‘vo’ do vocábulo
‘você’. O apóstrofo só será usado
quando for encontro vocálico
X
10. Queda das sílabas ‘co’ e ‘i’ na
palavra ‘coitadinho’, com apóstrofo
X
11. Alterações de vogais seguidas de
sibilantes ‘s’ ou ‘z’
X
12. Alteração do ‘e’ inicial do verbo
‘esconder’ e suas variações para ‘i’ e
‘esquecer’
X
13. Vocalização do ‘lh’ em ‘i’ X
14. Forma proclítica do ‘não’ X X X
15. Redução de ditongo: ‘ou’ e ‘ei’. X X* X*
16. Transformação da preposição ‘para’
+ artigo definido ‘o(s)’/’a(s)’
X X X
17. Quanto ao número, o ‘s’ como
marca de plural é mantido pelo
determinante
X X X
18. Mistura da 2ª e da 3ª pessoa do
singular
X X X
19. Falta de correlação entre os tempos
verbais
X X X
20. Emprego do ‘a gente’ em vez de
‘nós’
X X X
21. Troca do futuro do pretérito pelo
pretérito imperfeito + o infinitivo
X X X
22. Uso de pronomes pessoais oblíquos
no início das orações
X X X
23. Uso do pronome pessoal reto com
função de objeto
X X X
24. Regência nominal especial X X
25. Regência verbal especial X X
26. Repetição do ‘que’ X X X
178
27. Tautologia X X
28. Dialeto visual X
Total 28 19,5* 14,5*
* Para Huck e Tom, só há redução de ditongo em ‘ou’.
5.5 A proposta de tradução
A seguir apresentamos a proposta de tradução para cinco capítulos, a saber:
capítulos 1, 2, 8, 14 e 38.
5.5.1 Proposta de tradução – Capítulo 1
Texto original: Mark Twain Proposta de tradução
Chapter 1: Civilizing Huck – Moses and
the ‘Bulrushers’ – Miss Watson – Tom
Sawyer waits
Capítulo 1: Civilizando Huck – Moisés e
os juncos – A Srta. Watson – Tom Sawyer
esperando
Page 11
You don’t know about me, without you
have read a book by the name of The
Adventures of Tom Sawyer, but that ain’t
no matter. That book was made by Mr
Mark Twain, and he told the truth, mainly.
There was things which he stretched, but
mainly he told the truth. That is nothing. I
never seen anybody but lied, one time or
another, without it was Aunt Polly, or the
widow, or maybe Mary. Aunt Polly –
Tom’s Aunt Polly, she is – and Mary, and
the Widow Douglas, is all told about in
that book – which is mostly a true book;
with some stretchers, as I said before.
Vocês num sabe nada de mim, se num lero
um livro com o nome de As Aventura de
Tom Sawyer, mas isso num é problema.
Esse livro foi escrevido pelo senhor Mark
Twain e ele contô quase sempre a verdade.
Tem coisa que ele exagerô, mas quase
sempre ele disse a verdade. Isso num é
nada. Eu nunca vi ninguém que num
mentisse uma vez ou otra, só a tia Polly,
ou a viúva ou talvez a Mary. A tia Polly –
ela é a tia do Tom – e a Mary, e a viúva
Douglas tá tudo nesse livro – que é quase
sempre um livro verdadeiro, com alguns
exagero, como eu disse antes.
Now the way that the book winds up, is
this: Tom and me found the money that
the robbers hid in the cave, and it made us
Bem, o jeito que o livro acaba é assim:
Tom e eu, a gente descobre o dinheiro que
os ladrão escondero na caverna e a gente
179
rich. We got six thousand dollars apiece –
all gold. It was an awful sight of money
when it was piled up. Well, Judge
Thatcher, he took it and put it out at
interest, and it fetched us a dollar a day
apiece, all the year round – more than a
body could tell what to do with. The
Widow Douglas, she took me for her son,
and allowed she would sivilize me; but it
was rough living in the house all the time,
considering how dismal regular and decent
the widow was in all her ways; and so
when I couldn’t stand it no longer, I lit out.
I got into my old rags and my sugar-
hogshead again, and was free and
satisfied. But Tom Sawyer he hunted me
up and said he was going to start a band of
robbers, and I might join if I would go
back to the widow and be respectable. So I
went back.
fica rico. Seis mil dólar pra cada um – tudo
em oro. Era uma coisa impressionante de
se vê de tanto dinheiro amontoado. Aí, o
juiz Thatcher, ele pegô tudo e botô a juro,
um dólar por dia pra cada um, o ano todo –
e ninguém sabia o que fazê com tanto
dinheiro. A viúva Douglas, ela me pegô
pra filho dela, e resolveu que ia me
sivilizá; mas era difícil de vivê naquela
casa o tempo todo, porque a viúva tinha
uns costume que deixava a vida triste de
tão decente; e aí quando num agüentei
mais, dei o fora. Botei
minhas ropa
velha
de novo e fui morá no meu tonel, e fiquei
livre e satisfeito. Mas o Tom Sawyer, ele
foi atrás de mim e disse que ia começá
uma quadrilha de ladrão e eu podia entrá
no caso de voltá pra casa da viúva e tê uma
vida respeitável. Aí então eu voltei.
Page 11-12
The widow she cried over me, and called
me a poor lost lamb, and she called me a
lot of other names, too, but she never
meant no harm by it. She put me in them
new clothes again, and I couldn’t do
nothing but sweat and sweat, and feel all
cramped up. Well, then, the old thing
commenced again. The widow rung a bell
for supper, and you had to come to time.
When you got to the table you couldn’t go
right to eating, but you had to wait for the
widow to tuck down her head and grumble
a little over the victuals, though there
warn’t really anything the matter with
them. That is, nothing only everything was
cooked by itself. In a barrel of odds and
ends it is different; things get mixed up,
and the juice kind of swaps around, and
the things go better.
A viúva chorô muito quando me viu e me
chamô de ovelha desgarrada e de um
monte de otros nome também, mas ela
num queria me ofendê com isso. Ela me
botô ropa nova de novo e eu num pude
fazê nada, só suá e suá e me sentí
apertado. E aí começô tudo de novo. Na
hora da janta, a viúva tocava um sino e
tinha que chegá na hora. Quando sentava
na mesa, num pudia ir logo comeno; tinha
que esperá a viúva baixá a cabeça e
resmungá umas coisa em cima da comida,
sem motivo porque num tinha nenhum
problema com a comida. Isso é, o
problema é que tudo era cozido separado.
Numa lata com resto de comida, é tudo
misturado e o molho cobre tudo e fica
mais gostoso.
Page 12
After supper she got out her book and
learned me about Moses and the
Bulrushers; and I was in a sweat to find
out all about him; but by-and-by she let it
out that Moses had been dead a
considerable long time; so then I didn’t
care no more about him; because I don’t
take no stock in dead people.
Depois da janta, ela pegava um livro e me
contava a história de um Moisés e os
junco; fiquei loco pra sabê tudo dele; mas
ela deixô escapá que Moisés já tava morto
fazia muito tempo. Aí eu num tive mais
interesse porque eu num ligo a mínima pra
gente morta.
Pretty soon I wanted to smoke, and asked Daí a poco eu ficava com vontade de fumá
180
the widow to let me. But she wouldn’t.
She said it was a mean practice and wasn’t
clean, and I must try to not do it any more.
That is just the way with some people.
They get down on a thing when they don’t
know nothing about it. Here she was a-
bothering about Moses, which was no kin
to her, and no use to anybody, being gone,
you see, yet finding a power of fault with
me for doing a thing that had some good in
it. And she took snuff too; of course, that
was all right, because she done it herself.
e pedia pra viúva pra ela deixá, mas ela
num deixava. Dizia que era um costume
ruim, num era certo e que eu tinha que
tentá num fazê mais isso. É, tem gente que
é assim. Implica com uma coisa que num
sabe nem o que é. Ela se preocupava com
aquele Moisés que nem era parente dela e
num servia pra ninguém porque tava
morto, vê só, e implicava comigo que fazia
uma coisa que eu gostava. Mas ela
cheirava rapé; é claro, isso tava certo
porque era ela que fazia isso.
Page 12
Her sister, Miss Watson, a tolerable slim
old maid, with goggles on, had just come
to live with her, and took a set at me now,
with a spelling-book. She worked me
middling hard for about an hour, and then
the widow made her ease up. I couldn’t
stood it much longer. Then for an hour it
was deadly dull, and I was fidgety. Miss
Watson would say, ‘Don’t put your feet
up, Huckleberry’; and, ‘don’t scrunch up
like that, Huckleberry – set up straight’;
and pretty soon she would say, ‘Don’t gap
and stretch like that, Huckleberry – why
don’t you try to behave?’ Then she told
me all about the bad place, and I said I
wished I was there. She got mad, then, but
I didn’t mean no harm. All I wanted was
to go somewheres; all I wanted was a
change, I warn’t particular. She said it was
wicked to say what I said; said she
wouldn’t say it for the whole world; she
was going to live so as to go to the good
place. Well, I couldn’t see no advantage in
going where she was going, so I made up
my mind I wouldn’t try for it. But I never
said so, because it would only make
trouble, and wouldn’t do no good.
A irmã dela, a srta. Watson, uma
solteirona magra de óculos, tinha vino
morá com ela e começô a me ensiná com
uma cartilha. Ela me fazia estudá pra valê
por uma hora e aí a viúva fazia ela ir mais
devagar. Eu num agüentava aquilo muito
tempo. Aí, por uma hora ficava tudo chato
por demais e eu ficava sem paciência. A
srta. Watson falava: ‘Num põe o pé aí em
cima, Huckleberry’ e ‘num fica curvado
assim, Huckleberry – senta direito’; e logo
depois ela falava: ‘pára de bocejá e
espreguiçá assim, Huckleberry – por que
que você nunca se comporta?’ Então, ela
me falô tudo do inferno e aí eu disse que
queria tá lá. Ela ficô furiosa, mas eu num
disse por mal. Tudo o que eu queria era ir
pra algum lugar; tudo o que eu queria era
uma mudança qualqué. Ela disse que era
pecado dizê aquilo; falô que ela num dizia
aquilo por nada desse mundo; ela ia vivê
de um jeito certo pra ir pro céu. Eu num
conseguia vê nenhuma vantagem em ir pra
onde ela ia. Então, decidi que eu num ia
fazê nenhuma força pra isso. Mas eu num
disse nada, porque só ia complicá as coisa
e num ia adiantá de nada.
Page 12-13
Now she had got a start, and she went on
and told me all about the good place. She
said all a body would have to do there was
to go around all day long with a harp and
sing for ever and ever. So I didn’t think
much of it. But I never said so. I asked her
if she reckoned Tom Sawyer would go
there, and she said, not by a considerable
sight. I was glad about that, because I
Agora que ela tinha começado, ela
continuô falano e me contô tudo do céu.
Disse que as pessoa passava o dia todo
tocano harpa e cantano pra todo o sempre.
Num achei nada interessante. Mas eu num
dizia nada. Perguntei pra ela se ela achava
que o Tom Sawyer ia pra lá e ela disse que
ele num ia de jeito nenhum. Fiquei feliz de
sabê disso porque eu queria que nós dois
181
wanted him and me to be together. ficasse no mesmo lugar.
Page 13
Miss Watson she kept pecking at me, and
it got tiresome and lonesome. By-and-by
they fetched the niggers in and had
prayers, and then everybody was off to
bed. I went up to my room with a piece of
candle and put it on the table. Then I set
down in a chair by the window and tried to
think of something cheerful, but it warn’t
no use. I felt so lonesome I most wished I
was dead. The stars was shining, and the
leaves rustled in the woods ever so
mournful; and I heard an owl, away off,
who-whooing about somebody that was
dead, and a whippowill and a dog crying
about something that was going to die; and
the wind was trying to whisper something
to me and I couldn’t make out what it was,
and so it made the cold shivers run over
me. Then away out in the woods I heard
that kind of a sound that a ghost makes
when it wants to tell about something
that’s on its mind and can’t make itself
understood, and so can’t rest easy in its
grave and has to go about that way every
night grieving. I got so downhearted and
scared, I did wish I had some company.
Pretty soon a spider went crawling up my
shoulder, and I flipped it off and it lit in
the candle; and before I could budge it was
all shrivelled up. I didn’t need anybody to
tell me that that was an awful bad sign and
would fetch me some bad luck, so I was
scared and most shook the clothes off of
me. I got up and turned around in my
tracks three times and crossed my breast
every time; and then I tied up a little lock
of my hair with a thread to keep witches
away. But I hadn’t no confidence. You do
that when you’ve lost a horse-shoe that
you’ve found, instead of nailing it up over
the door, but I hadn’t ever heard anybody
say it was any way to keep off bad luck
when you’d killed a spider.
A srta. Watson continuô implicano
comigo, isso foi dano uma canseira e me
senti sozinho. Aí elas chamaro os negro
pra dentro da casa e rezaro e depois todo
mundo foi dormí. Eu fui pro meu quarto
com um toco de vela, lá coloquei ele na
mesa. Aí sentei na cadeira perto da janela
e tentei pensá numa coisa alegre, mas num
teve jeito. Eu me sentia tão sozinho que
quase tive vontade de morrê. As estrela
brilhava e as folha murmurava no mato
com tanta tristeza; eu ouvi uma coruja,
longe, piano por causa de alguém que tava
morto e um otro pássaro noturno e ainda
um cachorro latino por causa de alguém
que tava pra morrê; e o vento tentava me
sussurrá alguma coisa que eu num
conseguia entendê e aí senti um calafrio.
E, longe, no mato, ouvi aquele tipo de som
que os fantasma faz quando qué contá
alguma coisa que ninguém entende, aí
num consegue descansá no túmulo e tem
que continuá desse jeito, penano, toda
noite. Fiquei tão desanimado e senti tanto
medo que fiquei com vontade de tá com
alguém. Aí, uma aranha começô a subi no
meu ombro, eu dei um peteleco nela e ela
foi caí bem na vela; num deu tempo nem
de me mexê e ela ficô queimada e toda
encolhidinha. Ninguém precisava me dizê
que isso era um mau sinal e ia me trazê
azar, aí então eu fiquei apavorado e tirei a
ropa com tanta pressa que quase arranquei
ela do corpo. Me levantei e dei três volta
no mesmo lugar sempre fazeno o sinal da
cruz; depois amarrei um cacho do meu
cabelo com uma linha pra afastá as bruxa.
Mas eu num conseguia sossegá. Quando
você perde uma ferradura que tinha achado
em vez de pregá ela em cima da porta, a
gente faz isso, mas nunca tinha ouvido
ninguém dizê que isso também serve pra
afastá azar quando a gente mata uma
aranha.
Page 13-14
I set down again, a-shaking all over, and
got out my pipe for a smoke; for the house
was all as still as death, now, and so the
Sentei de novo, tremeno sem pará e peguei
meu cachimbo pra fumá; como a casa tava
num silêncio de morte, a viúva num ia
182
widow wouldn’t know. Well, after a long
time I heard the clock away off in the town
go boom – boom – boom – twelve licks –
and all still again – stiller than ever. Pretty
soon I heard a twig snap, down in the dark
amongst the trees – something was a-
stirring. I set still and listened. Directly I
could just barely hear a ‘me-yow! me-
yow!’ down there. That was good! Says I,
me-yow! me-yow!’ as soft as I could, and
then I put out the light and scrambled out
of the window on to the shed. Then I
slipped down to the ground and crawled in
amongst the trees, and sure enough there
was Tom Sawyer waiting for me.
sabê. Depois de um tempo ouvi o relógio
longe na cidade bateno – bum – bum –
bum – doze batida – e tudo quieto de novo
– mais do que antes. Daí a poco ouvi o
barulho de um galho se quebrá lá embaixo,
no escuro, no meio das árvore – alguma
coisa tava se mexeno. Fiquei sentado sem
me mexê só ouvino. Quase num ouvi um
miau! miau!’ lá embaixo. Que bom! Eu
respondi ‘miau! miau!’ bem baixinho e aí
apaguei a luz e saí pela janela pro
barracão. Depois desci pro chão e fui me
rastejano pelo meio das árvore, com a
certeza de que lá tava Tom Sawyer
esperano por mim.
5.5.2 Proposta de tradução – Capítulo 2
Texto original: Mark Twain Proposta de tradução
Chapter 2: The boys escape Jim – Jim! –
Tom Sawyer’s Gang – Deep-laid Plans
Capítulo 2: Os meninos escapam de Jim
Jim! – A quadrilha de Tom Sawyer –
Planos bem detalhados
Page 14
We went tip-toeing along a path amongst
the trees back towards the end of the
widow’s garden, stooping down so as the
branches wouldn’t scrape our heads. When
we was passing the kitchen I fell over a
root and made a noise. We scrouched
down and laid still. Miss Watson’s big
nigger, named Jim, was setting in the
kitchen door; we could see him pretty
clear, because there was a light behind
him. He got up and stretched his neck out
about a minute, listening. Then he says:
A gente foi andano nas ponta dos pé por
uma trilha entre as árvore, passano por trás
do quintal da viúva, se abaixano pra num
raspá a cabeça nos galho. Quando a gente
tava passano pela cozinha eu tropiquei
numa raiz e fiz barulho. A gente deitô no
chão e ficô quieto. O escravo grande da
srta. Watson, chamado Jim, tava sentado
perto da porta da cozinha; dava pra gente
vê bem porque tinha luz atrás dele. Ele se
levantô e esticô o pescoço por um minuto
e ficô ouvino. Aí ele disse:
‘Who dah?’ - Quem que tá aí?
He listened some more; then he come tip-
toeing down and stood right between us;
we could a touched him, nearly. Well,
likely it was minutes and minutes that
there warn’t a sound, and we all there so
close together. There was a place on my
Ele ficô ouvino mais um poco; depois veio
nas ponta dos pé e ficô bem no meio de
nós dois; quase que dava pra gente tocá
nele. E passô um tempão sem nenhum
barulho, com nós três ali bem pertinho.
Um lugar no meu tornozelo começô a
183
ankle that got to itching; but I dasn’t
scratch it; and then my ear begun to itch;
and next my back, right between my
shoulders. Seemed like I’d die if I couldn’t
scratch. Well, I’ve noticed that thing
plenty of times since. If you are with the
quality, or at a funeral, or trying to go to
sleep when you ain’t sleepy – if you are
anywheres where it won’t do for you to
scratch, why you will itch all over in
upwards of a thousand places. Pretty soon
Jim says:
coçá; mas eu num cocei e aí minha orelha
começô a coçá; e depois minhas costa,
bem no meio dos ombro. Parecia que eu ia
morrê se num coçasse. Depois desse dia,
notei esse tipo de coisa. Se você tá com
gente fina, num funeral ou tentano pegá no
sono quando num tá com sono – se você tá
em qualqué lugar que num dá pra coçá, aí
começa a coçá tudo, em mais de mil lugar.
Daí a poco o Jim disse:
‘Say – who is you? Whar is you? Dog my
cats ef I didn’t hear sumf’n. Well, I knows
what I’s gwyne to do. I’s gwyne to set
down here and listen tell I hears it agin.’
- Quem que tá aí? Quem qu’ocê é? Vaia
me Deus se eu num ouvi um baruio. Já sei
o que qu’eu vô fazê. Vô ficá sentado aqui
ouvino até iscutá de novo.
Page 14-15
So he set down on the ground betwixt me
and Tom. He leaned his back up against a
tree, and stretched his legs out till one of
them most touched one of mine. My nose
begun to itch. It itched till the tears come
into my eyes. But I dasn’t scratch. Then it
begun to itch on the inside. Next I got to
itching underneath. I didn’t know how I
was going to set still. This miserableness
went on as much as six or seven minutes;
but it seemed a sight longer than that. I
was itching in eleven different places now.
I reckoned I couldn’t stand it more’n a
minute longer, but I set my teeth hard and
got ready to try. Just then Jim begun to
breathe heavy; next he begun to snore –
and then I was pretty soon comfortable
again.
Aí ele sentô lá no chão entre eu e o Tom.
Encostô as costa na árvore e esticô as
perna e uma delas quase esbarrô na minha.
Meu nariz começô a coçá. Coçava tanto
que veio lágrima nos olho. Mas eu num
cocei. Aí começô a coçá dentro do nariz.
Depois por baixo. Num tinha idéia de
como ia ficá sem me mexê. Esse tormento
durô uns seis ou sete minuto; mas parecia
muito mais que isso. Agora a coceira tava
em onze lugar diferente. Achei que num ia
consegui agüentá mais um minuto, mas
apertei os dente com força tentano me
controlá. Foi então que o Jim começô a
respirá pesado e depois a roncá – e aí num
senti mais coceira.
Page 15
Tom he made a sign to me – kind of a little
noise with his mouth – and we went
creeping away on our hands and knees.
When we was ten foot off, Tom whispered
to me and wanted to tie Jim to the tree for
fun; but I said no; he might wake and
make a disturbance, and then they’d find
out I warn’t in. Then Tom said he hadn’t
got candles enough, and he would slip in
the kitchen and get some more. I didn’t
want him to try. I said Jim might wake up
and come. But Tom wanted to resk it; so
we slid in there and got three candles, and
Tom laid five cents on the table for pay.
O Tom, ele fez um sinal pra mim – um
barulho com a boca – e a gente saiu de lá
engatinhano. Quando a gente tava a uns
três metro, o Tom sussurrô pra mim que
queria amarrá o Jim na árvore, só de
brincadeira; mas eu disse que não; ele
podia acordá e fazê barulho e depois eles
ia descobrí que eu num tava em casa. O
Tom disse que num tinha muitas vela e
que a gente podia pegá umas na cozinha.
Eu num queria. Eu disse que o Jim podia
acordá e vir atrás da gente. Mas o Tom
queria tentá; ele foi até lá, pegô três vela e
deixô cinco centavo na mesa como
184
Then we got out, and I was in a sweat to
get away; but nothing would do Tom but
he must crawl to where Jim was, on his
hands and knees, and play something on
him. I waited, and it seemed a good while,
everything was so still and lonesome.
pagamento. Aí, ele saiu; eu tava no maior
suadô pra saí dali; mas nada ia fazê o Tom
desistí de ir até onde o Jim tava e pregá
uma peça nele. Eu esperei e parecia muito
tempo porque tudo tava quieto e solitário.
Page 15-16
As soon as Tom was back, we cut along
the path, around the garden fence, and by
and by fetched up on the steep top of the
hill the other side of the house. Tom said
he slipped Jim’s hat off of his head and
hung it on a limb right over him, and Jim
stirred a little, but he didn’t wake.
Afterwards Jim said the witches bewitched
him and put him in a trance, and rode him
all over the State, and then set him under
the trees again and hung his hat on a limb
to show who done it. And next time Jim
told it he said they rode him down to New
Orleans; and after that, every time he told
it he spread it more and more, till by and
by he said they rode him all over the
world, and tired him most to death, and his
back was all over saddle-boils. Jim was
monstrous proud about it, and he got so he
wouldn’t hardly notice the other niggers.
Niggers would come miles to hear Jim tell
about it, and he was more looked up to
than any nigger in that country. Strange
niggers would stand with their mouths
open and look him all over, same as if he
was a wonder. Niggers is always talking
about witches in the dark by the kitchen
fire; but whenever one was talking and
letting on to know all about such things,
Jim would happen in and say, ‘Hm! What
you know ‘bout witches?’ and that nigger
was corked up and had to take a back seat.
Jim always kept that five-center piece
around his neck with a string, and said it
was a charm the devil give to him with his
own hands and told him he could cure
anybody with it and fetch witches
whenever he wanted to, just by saying
something to it; but he never told what it
was he said to it. Niggers would come
from all around there and give Jim
anything they had, just for a sight of that
five-center piece; but they wouldn’t touch
Assim que o Tom voltô, a gente cortô
caminho pela trilha, acompanhano a cerca
do jardim, depois subiu até o alto do morro
do otro lado da casa. Tom me contô que
ele tinha tirado o chapéu do Jim com
cuidado e pendurado num galho bem em
cima dele, o Jim se mexeu um poco, mas
num acordô. Mais tarde, o Jim disse que
ele foi enfeitiçado pelas bruxa, ele ficô em
transe e elas montaro nele num passeio por
todo o estado. Depois elas botaro ele
embaixo da árvore de novo e penduraro o
chapéu dele pra mostrá quem que tinha
feito aquilo. Da otra vez que o Jim contô o
caso, ele disse que elas tinha montado nele
até Nova Orleans; e depois disso, cada vez
que ele contava a história, aumentava um
poquinho, até que ele falô que elas dero a
volta no mundo com ele e deixaro ele
morto de cansaço e suas costa tava cheia
de bolhas da sela. O Jim tava orgulhoso
que só ele por causa do que tinha
acontecido. E ele ficô tão orgulhoso que
nem notava mais os otro escravo. Vinha
negro de longe pra ouví o Jim e ele era
mais respeitado que qualqué otro escravo
do país. Negros estranho ficava parado,
com a boca aberta, olhano pra ele, de cima
em baixo, como se ele fosse uma
maravilha. Os escravo tão sempre falano
de bruxa no escuro, perto do fogo na
cozinha; mas toda vez que um tava falano
e mostrano que sabia do assunto, o Jim
pegava e dizia: ‘Hum! Que que ‘cê sabe de
bruxa?’ e aquele negro tinha que calá a
boca e deixá ele falá. O Jim sempre
guardava aquela moeda de cinco centavo
em volta do pescoço, presa com um
barbante, e dizia que era um talismã que o
diabo tinha dado pra ele em pessoa, dizeno
que ele podia curá qualqué um e chamá as
bruxa sempre, no caso dele querê: era só
falá com o talismã. Os escravo vinha de
185
it, because the devil had had his hands on
it. Jim was most ruined, for a servant,
because he got so stuck up on account of
having seen the devil and been rode by
witches.
todos os lugar e dava tudo o que tinha pro
Jim, só pra dá uma olhada naquela moeda
de cinco centavo; mas eles num queria
tocá nela porque o diabo tinha colocado as
mão nela. O Jim ficô imprestável como
criado de tão bobo que ficô de tê visto o
diabo e tê sido montado pelas bruxa.
Page 16
Well, when Tom and me got to the edge of
the hill-top, we looked away down into the
village and could see three or four lights
twinkling, where there was sick folks,
maybe; and the stars over us was sparkling
ever so fine; and down by the village was
the river, a whole mile broad, and awful
still and grand. We went down the hill and
found Jo Harper, and Ben Rogers, and two
or three more of the boys, hid in the old
tanyard. So we unhitched a skiff and
pulled down the river two mile and a half,
to the big scar on the hill-side, and went
ashore.
Bem, quando o Tom e eu, a gente chegô
no alto do morrinho, olhô lá de cima pra
cidade e pôde vê três ou quatro luzinha
piscano, onde talvez tinha gente doente; e
as estrela no céu tava tão brilhante, e lá
embaixo na cidade passava o rio grande,
com mais de um quilômetro de largura e
com as água calma. A gente desceu o
morrinho e encontrô o Jo Harper, o Ben
Rogers e mais dois ou três menino,
escondido no velho curtume. Aí a gente
desamarrô um barco e desceu o rio uns
cinco quilômetro, até um penhasco grande
na encosta da montanha e saiu do bote.
We went to a clump of bushes, and Tom
made everybody swear to keep the secret,
and then showed them a hole in the hill,
right in the thickest part of the bushes.
Then we lit the candles and crawled in on
our hands and knees. We went about two
hundred yards, and then the cave opened
up. Tom poked about amongst the
passages and pretty soon ducked under a
wall where you wouldn’t a noticed that
there was a hole. We went along a narrow
place and got into a kind of room, all
damp and sweaty and cold, and there we
stopped. Tom says:
A gente foi até uma moita e o Tom fez
todo mundo jurá que ia guardá segredo, e
depois mostrô um buraco no morro pra
eles, na parte mais cheia de mato. Aí, a
gente acendeu as vela e se arrastô até lá.
Depois de rastejá por uns duzentos metro,
a gente chegô na boca da gruta. O Tom foi
tateano pelo corredor e logo sumiu por
uma parede onde nem dava pra vê que
tinha um buraco. A gente foi andano por
um lugar estreito e chegô num tipo de
caverna, muito úmida e fria e a gente ficô
ali. O Tom disse:
‘Now we’ll start this band of robbers and
call it Tom Sawyer’s Gang. Everybody
that wants to join has got to take an oath,
and write his name in blood.’
- Agora a gente vai criá uma quadrilha de
ladrão, que vai se chamá o bando do Tom
Sawyer. Quem quisé entrá tem que fazê
um juramento e assiná o nome com
sangue.
Page 16-17
Everybody was willing. So Tom got out a
sheet of paper that he had wrote the oath
on, and read it. It swore every boy to stick
to the band, and never tell any of the
secrets; and if anybody done anything to
any boy in the band, whichever boy was
ordered to kill that person and his family
must do it, and he mustn’t eat and he
Todo mundo quis. Então o Tom pegô um
pedaço de papel onde ele tinha escrevido o
juramento e leu. Jurava que todos os
menino seria fiel ao bando e nunca ia
contá os segredo pra ninguém; no caso de
alguém fazê alguma coisa pra algum dos
menino do bando, qualqué dos menino que
tivesse ordem de matá aquela pessoa e a
186
mustn’t sleep till he had killed them and
hacked a cross in their breasts, which was
the sign of the band. And nobody that
didn’t belong to the band could use that
mark, and if he did he must be sued; and if
he done it again he must be killed. And if
anybody that belonged to the band told the
secrets, he must have his throat cut, and
then have his carcass burnt up and the
ashes scattered all around, and his name
blotted off of the list with blood and never
mentioned again by the Gang, but have a
curse put on it and be forgot, for ever.
família tinha que obedecê e ele num podia
comê e nem dormí até tê matado todos e
marcado uma cruz no peito deles, o sinal
da nossa quadrilha. Os que num fazia parte
do bando num podia usá aquele sinal e, no
caso de usá, tinha que sê processado, e, no
caso de usá de novo, tinha que sê morto.
Se alguém do bando contava os segredo,
tinha que tê a garganta cortada, a carcaça
queimada, as cinza espalhada, o nome
riscado da lista com sangue e nunca mais
ninguém ia falá o nome dele de novo na
quadrilha, mas ia sê amaldiçoado e
esquecido pra sempre.
Page 17
Everybody said it was a real beautiful
oath, and asked Tom if he got it out of his
own head. He said, some of it, but the rest
was out of pirate books, and robber books,
and every gang that was high-toned had it.
Todo mundo disse que era um juramento
muito bonito e perguntaro pro Tom se ele
tinha tirado tudo aquilo da cabeça dele.
Ele falô que algumas coisa sim, mas o
resto ele tinha tirado dos livro de pirata, de
ladrão e que toda quadrilha importante
tinha um assim.
Page 17
Some thought it would be good to kill the
families of boys that told the secrets. Tom
said it was a good idea, so he took a pencil
and wrote it in. Then Ben Rogers says:
Alguns achava que ia sê bom matá a
família dos menino que tinha contado os
segredo. Tom achô que era uma boa idéia,
pegô um lápis e escreveu. Aí o Ben Rogers
disse:
‘Here’s Huck Finn, he hain’t got no family
– what you going to do ‘bout him?’
- Aqui tá o Huck Finn, ele num tem
família – que é que a gente faz no caso
dele?
‘Well, hain’t he got a father?’ says Tom
Sawyer.
- Mas ele tem pai, num tem? disse Tom
Sawyer
‘Yes, he’s got a father, but you can’t never
find him, these days. He used to lay drunk
with the hogs in the tanyard, but he hain’t
been seen in these parts for a year or
more.’
- É, tem pai, mas num se sabe onde ele
anda. Ele costuma bebê até caí e fica c’os
porco no curtume, mas ele sumiu dessas
banda faz um ano ou mais.
They talked it over, and they was going to
rule me out, because they said every boy
must have a family or somebody to kill, or
else it wouldn’t be fair and square for the
others. Well, nobody could think of
anything to do – everybody was stumped,
and set still. I was most ready to cry; but
all at once I thought of a way, and so I
offered them Miss Watson – they could
kill her. Everybody said:
Discutiro o caso e eles ia me expulsá
porque eles falaro que cada menino tinha
que tê uma família ou alguém pra matá,
senão num era justo com os otro. Bem,
ninguém conseguiu pensá no que fazê –
todo mundo tava espantado e quieto. Eu já
tava quase chorano, mas de repente tive
uma idéia e aí ofereci a senhorita Watson
– eles podia matá ela. Todo mundo disse:
‘Oh, she’ll do, she’ll do. That’s all right.
Huck can come in.’
- Tá bom. Ela sérvi, ela sérvi. O Huck
pode entrá.
187
Then they all stuck a pin in their fingers to
get blood to sign with, and I made my
mark on the paper.
Aí, cada um espetô um alfinete no dedo
pra conseguí sangue e assiná, e eu fiz
minha marca no papel.
‘Now’, says Ben Rogers, ‘what’s the line
of business of this Gang?’
- Agora, disse o Ben Rogers, o que que a
nossa quadrilha vai fazê?
Page 18
‘Nothing only robbery and murder,’ Tom
said.
- Nada. Só robá e matá, disse Tom.
‘But who are we going to rob? Houses – or
cattle – or - - ‘
- Mas quem que a gente vai assaltá? Casas,
ou gado, ou ...
‘Stuff! Stealing cattle and such things ain’t
robbery, it’s burglary,’ says Tom Sawyer.
‘We ain’t burglars. That ain’t no sort of
style. We are highwaymen. We stop stages
and carriages on the road, with masks on,
and kill the people and take their watches
and money.’
- Bobagem! Robá gado e coisa assim num
é assalto, é só furto, disse o Tom Sawyer.
A gente num é ladrãozinho. A gente é
ladrão de estrada. A gente faz as diligência
e carruagem pará, com máscara e aí a
gente mata todo mundo e fica com os
relógio e o dinheiro.
‘Must we always kill the people?’ - A gente tem sempre que matá as pessoa?
‘Oh, certainly. It’s best. Some authorities
think different, but mostly it’s considered
best to kill them. Except some that you
bring to the cave here and keep them till
they’re ransomed.’
- Claro. É melhor assim. Alguns
especialista pensam diferente, mas a
maioria acha melhor matá todos. Menos
alguns que a gente traz aqui pra caverna e
fica com eles até recebê um resgate.
‘Ransomed? What’s that?’ - Resgate? Que que é isso?
‘I don’t know. But that’s what they do.
I’ve seen it in books; and so, of course,
that’s what we’ve got to do.’
- Num sei. Mas isso é o que eles fazem. Eu
li nos livro; então, é claro que é isso que a
gente tem que fazê.
‘But how can we do it if we don’t know
what it is?’
- Mas como que a gente vai fazê isso se a
gente num sabe o que que isso qué dizê?
‘Why blame it all, we’ve got to do it.
Don’t I tell you it’s in the books? Do you
want to go to doing different from what’s
in the books, and get things all muddled
up?’
- Mas que coisa, a gente tem que fazê isso.
Num te disse que tá nos livro? Você qué
fazê diferente dos livro e estragá tudo?
‘Oh, that’s all very fine to say, Tom
Sawyer, but how in the nation are these
fellows going to be ransomed if we don’t
know how to do it to them? That’s the
thing I want to get at. Now, what do you
reckon it is?’
- Ah, falá é fácil, Tom Sawyer, mas com
que diabo a gente vai recebê resgate dessas
pessoa se a gente num sabe como fazê
isso? É nisso que eu quero chegá. Mas o
que que você acha que é isso?
‘Well, I don’t know. But per’aps if we
keep them till they’re ransomed, it means
that we keep them till they’re dead.’
- Bem, eu num sei. Mas, talvez, se a gente
ficá com eles até o resgate, isso significa
que eles ficam com a gente até a morte.
‘Now, that’s something like. That’ll
answer. Why couldn’t you said that
before? We’ll keep them till they’re
ransomed to death – and a bothersome lot
they’ll be, too, eating up everything and
always trying to get loose.’
- Haha, agora sim. Isso é uma resposta. Por
que que num disse isso antes? Eles fica
com a gente até morrê de resgate – e vai
dá uma trabalheira com eles quereno comê
e sempre tentano fugí.
188
‘How you talk, Ben Rogers. How can they
get loose when there’s a guard over them,
ready to shoot them down if they move a
peg?’
- Morda a língua, Ben Rogers. Com é que
eles vão escapá com gente vigiano e
pronta pra atirá ao menor movimento?
‘A guard. Well, that is good. So
somebody’s got to set up all night and
never get any sleep, just so as to watch
them. I think that’s foolishness. Why can’t
a body take a club and ransom them as
soon as they get here?’
- Gente vigiano. Ah, bom. Então, alguém
tem que ficá acordado a noite toda pra
vigiá essa gente. Eu acho isso uma
bobagem. Por que que a gente num pode
resgatá eles a paulada logo que eles chegá
aqui?
Page 18-19
‘Because it ain’t in the books so – that’s
why. Now, Ben Rogers, do you want to do
things regular, or don’t you? – that’s the
idea. Don’t you reckon that the people that
made the books knows what’s the correct
thing to do? Do you reckon you can
learn’em anything? Not by a good deal.
No, sir, we’ll just go on and ransom them
in the regular way.’
- Porque num é assim que tá nos livro – só
isso. Ben Rogers, você qué ou num qué
fazê as coisa direito? A idéia é essa. Você
num acha que as pessoa que escrevero os
livro sabe o jeito certo de fazê as coisa?
Ou você acha que sabe fazê melhor que
elas? De jeito nenhum. Não senhor, a
gente vai fazê o resgate deles do jeito
certo.
Page 19
‘All right. I don’t mind; but I say it’s a
fool way, anyhow. Say – do we kill the
women, too?’
- Tudo bem. Num tá aqui quem falô; mas
eu continuo achano uma bobagem. E as
mulher? A gente mata também?
‘Well, Ben Rogers, if I was as ignorant as
you I wouldn’t let on. Kill the women? No
– nobody ever saw anything in the books
like that. You fetch them to the cave, and
you’re always as polite as pie to them; and
by-and-by they fall in love with you and
never want to go home any more.’
- Mas, Ben Rogers, se eu fosse tão
ignorante como você, eu ficava quieto.
Matá as mulher? Não – ninguém nunca leu
nada igual a isso nos livro. Você traz elas
pra caverna e sempre trata elas com
delicadeza e depois elas acabam
apaixonadas pela gente e num qué mais
voltá pra casa delas.
‘Well, if that’s the way, I’m agreed, but I
don’t take no stock in it. Mighty soon
we’ll have the cave so cluttered up with
women, and fellows waiting to be
ransomed, that there won’t be no place for
the robbers. But go ahead, I ain’t got
nothing to say.’
- Tudo bem, se é assim que funciona, eu
concordo, mas acho que num vai dá em
nada. Logo, a caverna vai tá entulhada de
mulher e de gente esperano pra recebê o
resgate, que num vai tê lugar pros ladrão.
Mas, continua, num tenho nada pra falá.
Little Tommy Barnes was asleep, now,
and when they waked him up he was
scared, and cried, and said he wanted to go
home to his ma, and didn’t want to be a
robber any more.
O pequeno Tommy Barnes tava dormino,
e quando foi acordado ficô assustado,
começô a chorá, querê a mãe, ir pra casa e
num queria mais sê ladrão.
So they all made fun of him, and called
him cry-baby, and that made him mad, and
he said he would go straight and tell all the
secrets. But Tom give him five cents to
keep quiet, and said we would all go home
and meet next week and rob somebody
Aí todo mundo começô a ri dele e chamá
ele de bebê chorão. Ele ficô furioso e disse
que ia contá os segredo da gente. Mas o
Tom deu cinco centavo pra ele ficá quieto
e disse pra gente voltá pra casa e se
encontrá na semana próxima pra roubá e
189
and kill some people. matá alguém.
Ben Rogers said he couldn’t get out much,
only Sundays, and so he wanted to begin
next Sunday; but all the boys said it would
be wicked to do it on Sunday, and that
settled the thing. They agreed to get
together and fix a day as soon as they
could, and then we elected Tom Sawyer
first captain and Jo Harper second captain
of the Gang, and so started home.
O Ben Rogers disse que num podia saí
muito, só no domingo, então ele queria
começá no domingo seguinte; mas os otro
menino acharo que seria pecado fazê isso
no domingo e isso resolveu o caso. Eles
concordaro de se encontrá e marcá um dia
assim que possível. Então, elegero o Tom
Sawyer primeiro capitão e o Jo Harper
segundo capitão do bando e a gente foi pra
casa.
I clumb up the shed and crept into my
window just before day was breaking. My
new clothes was all greased up and clayey,
and I was dog-tired.
Subi pelo barracão e entrei pela minha
janela um poco antes do dia amanhecê.
Minhas ropa nova tava toda manchada e
‘lameada, e eu tava morto de cansaço.
5.5.3 Proposta de tradução – Capítulo 8
Texto original: Mark Twain Proposta de tradução
Chapter 8 – Sleeping in the Woods –
Raising the Dead – On the Watch! –
Exploring the Island – A Profitless Sleep –
Finding Jim – Jim’s Escape – Signs – ‘Dat
One-laigged Nigger’ – Balum
Capítulo 8 – Dormindo no mato –
Levantando o morto – De guarda! –
Explorando a ilha – Um sono agitado – O
encontro com Jim – A fuga de Jim – Sinais
– ‘O escravo perneta’ – Balum
Page 43-44
The sun was up so high when I walked,
that I judged it was after eight o’ clock. I
laid there in the grass and the cool shade,
thinking about things and feeling rested
and ruther comfortable and satisfied. I
could see the sun out at one or two holes,
but mostly it was big trees all about, and
gloomy in there amongst them. There was
freckled places on the ground where the
light sifted down through the leaves, and
the freckled places swapped about a little,
showing there was a little breeze up there.
A couple of squirrels set on a limb and
jabbered at me very friendly.
O sol tava tão alto quando acordei que
achei que já tinha passado das oito. Fiquei
deitado na grama, na sombra fresca,
pensano em coisas, me sentino descansado
e bem confortável e contente. Dava pra vê
o sol por uma ou duas fresta, mas tinha
árvores grande por todo lado, e tava escuro
entre elas, mas dava pra vê o sol pelos vão
das folha. Tinha uns lugar pintado da luz
do sol no chão, onde ela atravessava as
folha, e as pinta do sol se mexia um
poquinho, mostrano que tinha um ventinho
lá em cima. Um casal de esquilo tava
sentado num galho de árvore e tagarelava
em minha direção dum jeito muito
amigável.
I was powerful lazy and comfortable – Eu tava com muita preguiça e me sentia à
190
didn’t want to get up and cook breakfast.
Well, I was dozing off again, when I
thinks I hears a deep sound of ‘boom!’
away up the river. I rouses up and rests on
my elbow and listens; pretty soon I hears it
again. I hopped up and went and looked
out at a hole in the leaves, and I see a
bunch of smoke laying on the water a long
ways up – about abreast the ferry. And
there was the ferry-boat full of people,
floating along down. I knowed what was
the matter, now. ‘Boom!’ I see the white
smoke squirt out of the ferry-boat’s side.
You see, they was firing cannon over the
water, trying to make my carcass come to
the top.
vontade – num queria me levantá e fazê o
café da manhã. Já tava cochilano de novo
quando achei que ouvi um ‘bum!’ lá longe,
na parte de cima do rio. Levantei o corpo
um poco e fiquei apoiado nos cotovelo pra
escutá; dali a poco ouvi de novo o barulho.
Dei um pulo, fui olhá pelas fresta das
folha e vi uma fumaceira cobrino as água
do rio lá longe, quase na frente da estação
da balsa. E lá tava a balsa desceno o rio,
cheia de gente. Agora eu já sabia o que
tava aconteceno. ‘Bum!’ Vi a fumaceira
branca saí do lado da balsa. Vê só, eles
tava dano tiros de canhão na água, pra
tentá fazê o meu corpo vir à tona.
I was pretty hungry, but it warn’t going to
do for me to start a fire, because they
might see the smoke. So I set there and
watched the cannon-smoke and listened to
the boom. The river was a mile wide,
there, and it always looks pretty on a
summer morning – so I was having a good
enough time seeing them hunt for my
remainders, if I only had a bite to eat.
Well, then I happened to think how they
always put quicksilver in loaves of bread
and float them off because they always go
right to the drownded carcass and stop
there. So says I, I’ll keep a look-out, and if
any of them’s floating around after me, I’ll
give them a show. I changed to the Illinois
edge of the island to see what luck I could
have, and I warn’t disappointed. A big
double loaf come along, and I most got it,
with a long stick, but my foot slipped and
she floated out further. Of course I was
where the current set in the closest to the
shore- I knowed enough for that. But by-
and-by along comes another one, and this
time I won. I took out the plug and shook
out the little dab of quicksilver, and set my
teeth in. It was ‘baker’s bread’ – what the
quality eat – none of your low-down
cornpone.
Eu tava com muita fome, mas num era
bom acendê uma fogueira por causa que
eles podia vê a fumaça. Então me sentei lá
e fiquei olhano a fumaça dos tiro de
canhão e escutano os bum. Naquele ponto,
o rio tinha mais de um quilômetro de
largura, e é sempre bonito de se vê numa
manhã de verão – de modos que eu podia
me divertí bastante, veno eles procurá o
meu corpo, no caso de tê pelo menos
alguma coisa pra comê. E aí por acaso me
lembrei que eles sempre bota mercúrio nos
filão de pão e deixa eles ir flutuano nas
água por causa que o pão vai direto onde
tá o corpo do afogado e pára ali. E aí então
eu pensei comigo, vô ficá de prontidão e
no caso de um dos pão vir me procurá, eu
aproveito e como ele. Eu fui pra ponta da
ilha do lado de Illinois, pra vê como tava a
minha sorte e ela tava boa. Um pãozão
duplo vinha desceno, e quase que peguei
ele com uma vara comprida, mas o meu pé
escorregô e ele me escapô. Claro, eu tava
onde a correnteza passava mais perto da
margem – sabia disso muito bem. Mas dali
a poco veio desceno otro pão e dessa vez
ele num me escapô. Tirei o tampão, sacudi
o pão pro mercúrio saí, e aí dei uma
dentada nele. Era pão de padeiro, de boa
qualidade, num era pão de milho como dos
pobre.
Page 44-45
I got a good place amongst the leaves, and
set there on a log, munching the bread and
Arranjei um bom lugar entre as folha e
fiquei ali sentado num tronco de árvore,
191
watching the ferry-boat, and very well
satisfied. And then something struck me. I
says, now I reckon the widow or the
parson or somebody prayed that this bread
would find me, and here it has gone and
done it. So there ain’t no doubt but there is
something in that thing. That is, there’s
something in it when a body like the
widow or the parson prays, but it don’t
work for me, and I reckon it don’t work
for only just the right kind.
comeno o pão e olhano a balsa bem
satisfeito. E aí então me lembrei de uma
coisa; pensei que a viúva ou o pastor devia
de tê rezado pra aquele pão ir me achá, e
num é que ele veio e me achô mesmo.
Então num tinha dúvida de que tinha
alguma verdade naquilo. Isso é, tinha
alguma coisa quando uma pessoa como a
viúva ou o pastor rezava, mas num dá
certo comigo, eu acho que só funciona
com a pessoa certa.
Page 45
I lit a pipe and had a good long smoke and
went on watching. The ferry-boat was
floating with the current, and I allowed I’d
have a chance to see who was aboard
when she come along, because she would
come in close, where the bread did. When
she’d got pretty well along down towards
me, I put out my pipe and went to where I
fished out the bread, and laid down behind
a log on the bank in a little open place.
Where the log forked I could peep
through.
Acendi o meu cachimbo e fiquei
cachimbano e observano. A balsa vinha
desceno com a correnteza, e era possível
eu tê a sorte de vê quem tava dentro dela,
quando ela tava chegano perto da ilha,
porque ela tinha que passá perto do lugar
onde o pão tinha parado. Quando ela ficô
bem pertinho de onde eu tava, apaguei o
cachimbo e fui pra onde eu tinha pescado
o pão e fiquei deitado atrás de um tronco,
na margem, num lugar aberto. No lugar
que o tronco fazia uma forquilha eu podia
ficá espiano.
By-and-by she come along, and she drifted
in so close that they could run out a plank
and walked ashore. Most everybody was
on the boat. Pap, and Judge Thatcher, and
Bessie Thatcher, and Jo Harper, and Tom
Sawyer, and his old Aunt Polly, and Sid
and Mary, and plenty more. Everybody
was talking about the murder, but the
captain broke in and says:
Poco depois a balsa veio vino e passô tão
perto que dava pra eles descê a prancha e
desembarcá. Quase todo mundo tava na
balsa. O meu pai, o juiz Thatcher e a
Bessie Thatcher, o Joe Harper, o Tom
Sawyer e a sua velha tia Polly, o Sid, a
Mary, e muito mais gente. Eles tava tudo
falano do assassinato, mas o capitão
interrompeu o falatório e disse:
‘Look sharp, now; the current sets in the
closest here, and maybe he’s washed
ashore and got tangled amongst the brush
at the water’s edge. I hope so, anyway.’
- Olhem bem, agora; a correnteza passa
bem perto daqui, e talvez o corpo tenha
sido levado pra margem e tenha se
enroscado nos galho que fica na beira das
água do rio. Pelo menos, eu espero que
sim.
I didn’t hope so. They all crowded up and
leaned over the rails, nearly in my face,
and kept still, watching with all their
might. I could see them first-rate, but they
couldn’t see me. Then the captain sung
out:
Eu esperava que não. Todos eles se
amontoaro e se apoiaro na amurada quase
na minha cara, e ficaro no maior silêncio
olhano tudo com toda atenção. Eles tava
bem na minha cara, mas num dava pra eles
me vê.
E aí o capitão gritô:
Page 45-46
‘Stand away!’ and the cannon let off such
a blast right before me that it made me
- Afastem-se! E o canhão disparô um tiro
tão forte tão perto de mim, que quase que
192
deaf with the noise and pretty near blind
with the smoke, and I judged I was gone.
If they’d a had some bullets in, I reckon
they’d a got the corpse they was after.
Well, I see I warn’t hurt, thanks to
goodness. The boat floated on and went
out of sight around the shoulder of the
island. I could hear the booming, now and
then, further and further off, and by-and-
by after an hour, I didn’t hear it no more.
The island was three mile long. I judged
they had got to the foot, and was giving it
up. But they didn’t yet awhile. They
turned around the foot of the island and
started up the channel on the Missouri
side, under steam, and booming once in a
while as they went. I crossed over to that
side and watched them. When they got
abreast the head of the island they quit
shooting and dropped over to the Missouri
shore and went home to the town.
o barulho me deixô surdo e a fumaça me
deixô cego, e eu pensei que tinha morrido.
Se eles tivesse carregado o canhão com
bala, eu acho que eles encontrava o corpo
que tava procurano. Bem, eu vi que num
tava machucado, graças a Deus. A balsa
foi ino e sumiu de vista atrás de uma ponta
da ilha. Dava pra ouví os tiro, às vez, cada
vez mais longe, e poco depois de uma hora
já num dava pra ouví mais nada. A ilha
tinha uns cinco quilômetro de
comprimento. Achei que eles tava na
ponta de baixo da ilha e que ia desistí. Mas
num desitiro por um tempo. Dero a volta
na ponta de baixo da ilha e começaro a
subí o canal do lado do Missouri, embaixo
da fumaceira, e de vez em quando ainda
atirava. Atravessei pro lado que eles tava e
fiquei olhano eles. Quando chegaro de
novo na ponta de cima da ilha, deixaro de
atirá, foro pra margem do estado do
Missouri, e voltaro pra cidade.
Page 46
I knowed I was all right now. Nobody else
would come a-hunting after me. I got my
traps out of the canoe and made me a nice
camp in the thick woods. I made a kind of
a tent out of my blankets to put my things
under so the rain couldn’t get at them. I
catched a cat-fish and haggled him open
with my saw, and towards sundown I
started my camp-fire and had supper. Then
I set out a line to catch some fish for
breakfast.
Sabia que agora eu podia ficá sossegado.
Ninguém mais ia vim me procurá. Tirei as
minhas coisa da canoa e me ajeitei pra
acampá bem na parte densa da mata.
Armei um tipo de tenda com os cobertô,
pras minhas coisa num ficá molhada no
caso de chovê. Apanhei um peixe, abri ele
com a minha serra, e quando o sol começô
a se pôr, acendi uma fogueira e fiz a janta.
Dali a poco, armei umas linha pra pescá
uns peixe pro café da manhã.
When it was dark I set by my camp-fire
smoking, and feeling pretty satisfied; but
by-and-by it got sort of lonesome, and so I
went and set on the bank and listened to
the currents washing along, and counted
the stars and drift-logs and rafts that come
down, and then went to bed; there ain’t no
better way to put in time when you are
lonesome; you can’t stay so, you soon get
over it.
Quando escureceu, sentei do lado da
fogueira, fiquei fumano e me sentino
contente; mas depois de um poco comecei
a me sentí meio sozinho, e aí fui sentá na
beira do rio, escutá a correnteza, contá as
estrela, os tronco solto e as jangada que
vinha desceno e aí fui dormí; é o melhor
jeito de passá o tempo quando a gente tá
sozinho; num dá pra ficá muito triste e a
gente acaba esqueceno a tristeza.
And so for three days and nights. No
difference – just the same thing. But the
next day I went exploring around down
through the island. I was boss of it; it all
belonged to me, so to say, and I wanted to
know all about it; but mainly I wanted to
Três dia e três noite passaro. Nenhuma
novidade – tudo sempre igual. Mas no dia
seguinte fui explorá a ilha. Eu era o dono
dela; tudo era meu, a bem da verdade, e eu
queria sabê tudo dela; mas na verdade eu
queria mesmo era passá o tempo. Achei
193
put in the time. I found plenty
strawberries, ripe and prime; and green
summer-grapes, and green razberries; and
the green blackberries was just beginning
to show. They would all come handy by-
and-by, I judged.
um monte de morango maduro e bom; uva,
framboesa e amora ainda verde, começano
a saí. Logo elas deve de tá no ponto,
pensei.
Well, I went fooling along in the deep
woods till I judged I warn’t far from the
foot of the island. I had my gun along, but
I hadn’t shot nothing; it was for
protection; thought I would kill some
game nigh home. About this time I mighty
near stepped on a good-sized snake, and it
went sliding off through the grass and
flowers, and I after it, trying to get a shot
at it. I clipped along, and all of a sudden I
bounded right on to the ashes of a camp-
fire that was still smoking.
Bem, fui andano sem rumo pra dentro da
mata, até, eu imaginei, chegá quase na
ponta de baixo da ilha. Eu tinha uma arma
comigo, mas num tinha dado nenhum tiro;
era mais uma proteção, eu pensava que
podia pegá uma caça mais perto do
acampamento. Nisso, eu quase que pisei
numa cobrona e ela saiu rastejano pelas
grama e flor, e eu atrás dela, tentano dá um
tiro nela. Fui perseguino ela, e de repente
topei com as cinza de uma fogueira de
acampamento ainda em brasa.
Page 46-47
My heart jumped up amongst my lungs. I
never waited for to look further, but
uncocked my gun and went sneaking back
on my tip-toes as fast as ever I could.
Every now and then I stopped a second,
amongst the thick leaves, and listened; but
my breath come so hard I couldn’t hear
nothing else. I slunk along another piece
further, then listened again; and so on, and
so on; if I see a stump, I took it for a man;
if I trod on a stick and broke it, it made me
feel like a person had cut one of my
breaths in two and I only got half, and the
short half, too.
Meu coração disparô. Num esperei pra vê
de que se tratava; engatilhei a espingarda e
fui andano de fasto nas ponta dos pé, o
mais depressa possível. De vez em quando
parava um poquinho no meio de um monte
de folha e escutava; mas num consegui
ouví nada por causa que minha respiração
tava muito forte. Escapulia um bocadinho
mais e depois escutava de novo; e de novo
e de novo; se eu via um toco de árvore,
achava que era um homem; se pisava num
graveto e ele quebrava, parecia que
alguém tinha cortado o meu fôlego em
duas parte e eu tinha ficado com a metade
e ainda por cima a mais pequena.
Page 47
When I got to camp I warn’t feeling very
brash, there warn’t much sand in my craw;
but I says, this ain’t no time to be fooling
around. So I got all my traps into my
canoe again so as to have them out of
sight, and I put out the fire and scattered
the ashes around to look like an old last
year’s camp, and then clumb a tree.
Quando cheguei no acampamento, num
tava me sentino disposto, tinha perdido o
ânimo, mas disse pra mim mesmo: num dá
pra ficá de brincadeira. Aí catei minhas
tranqueira e coloquei tudo na canoa pra
num ficá a vista; apaguei a fogueira e
espalhei as cinza de modos que parecia
que era uma fogueira de um acampamento
do ano passado; e aí então, subi numa
árvore.
I reckon I was up in the tree two hours; but
I didn’t see nothing, I didn’t hear nothing
– I only thought I heard and seen as much
as a thousand things. Well, I couldn’t stay
up there for ever; so at last I got down, but
Acho que fiquei em cima da árvore umas
duas hora; mas num vi coisa nenhuma,
num ouvi nada – só achava que via e ouvia
umas mil coisa. Bem, como eu num podia
ficá lá em cima pra sempre, no fim acabei
194
I kept in the thick woods and on the look-
out all the time. All I could get to eat was
berries and what was left over from
breakfast.
desceno, mas continuei na mata fechada e
sempre de prontidão. Só consegui comê
umas frutinha do mato e os resto do café
da manhã.
By the time it was night I was pretty
hungry. So when it was good and dark, I
slid out from shore before moonrise and
paddled over to the Illinois bank – about a
quarter of a mile. I went out in the woods
and cooked a supper, and I had about
made up my mind I would stay there all
night, when I hear a plunkety-plunk,
plunkety-plunk, and says to myself, horses
coming; and next I hear people’s voices. I
got everything into the canoe as quick as I
could, and then went creeping through the
woods to see what I could find out. I
hadn’t got far when I hear a man say:
Quando ficô noite, eu tava com muita
fome. Então, me enfiei na canoa antes da
lua saí e remei até a margem de Illinois –
uns quinhentos metro. Saí da canoa, entrei
na mata e fiz uma janta, e já tinha decidido
que ia fica por ali mesmo, quando ouvi um
‘pocotó-pocotó, pocotó-pocotó’, e disse
pra mim mesmo: tem cavalo chegano; e
depois ouvi voz de gente. Taquei tudo na
canoa o mais rápido possível e fui me
rastejano pela mata pra vê o que eu
conseguia descobrí. Num tava muito longe
quando ouvi um homem falá:
‘We better camp here, if we can find a
good place; the horses is about beat out.
Let’s look around.’
- É melhor a gente acampá aqui mesmo, se
a gente conseguí encontrá um bom lugar;
os cavalo tão arriano. Vamo dá uma
olhada por aqui.
I didn’t wait, but shoved out and paddled
away easy. I tied up in the old place, and
reckoned I would sleep in the canoe.
Num esperei mais; empurrei a canoa na
água, entrei nela e saí remano pra longe.
Amarrei ela no lugar de antes, e pensei que
ia dá pra dormí na canoa.
I didn’t sleep much. I couldn’t, somehow,
for thinking. And every time I waked up I
thought somebody had me by the neck. So
the sleep didn’t do me no good. By-and-by
I says to myself, I can’t live this way; I’m
agoing to find out who it is that’s here on
the island with me; I’ll find it out or bust.
Well, I felt better, right off.
Num dormí muito. Num consegui dormí
por causa dos pensamento. E cada vez que
eu acordava, achava que tinha alguém me
apertano o pescoço. De modos que o sono
não me fez bem. Dali a poco, eu disse pra
mim mesmo: eu num posso vivê desse
jeito; eu vô descobrí quem que tá na ilha
comigo; eu vô descobrí e pronto. Bem, só
de pensá assim, já me senti melhor.
Page 47-48
So I took my paddle and slid out from
shore just a step or two, and then let the
canoe drop along down amongst the
shadows. The moon was shining, and
outside of the shadows it made it most as
light as day. I poked along well on to an
hour, everything still as rocks and sound
asleep. Well, by this time I was most down
to the foot of the island. A little ripply,
cool breeze begun to blow, and that was as
good as saying the night was about done. I
give her a turn with the paddle and brung
her nose to shore; then I got my gun and
slipped out and into the edge of the woods.
Aí peguei meu remo, me afastei da
margem uns dois ou três passo e deixei a
canoa deslizá por entre as sombra. A lua
tava brilhano e fora das sombra tava ficano
claro como que o dia. Fui deslizano por
quase uma hora, tudo quieto e adormecido.
Bem, a essa altura eu tava muito perto da
ponta de baixo da ilha. Uma brisinha
começô a soprá e encrespá as água do rio e
isso queria dizê que tava amanheceno.
Usei os remo pra virá a canoa e embicá ela
na margem; depois peguei minha arma e
saí da canoa e entrei na mata. Sentei lá
num tronco e espiei por entre as folha. Vi a
195
I set down there on a log and looked out
through the leaves. I see the moon go off
watch and the darkness begin to blanket
the river. But in a little while I see a pale
streak over the tree-tops, and knowed the
day was coming. So I took my gun and
slipped off towards where I had run across
that camp-fire, stopping every minute or
two to listen. But I hadn’t no luck,
somehow; I couldn’t seem to find the
place. But by-and-by, sure enough, I
catched a glimpse of fire, away through
the trees. I went for it, cautious and slow.
By-and-by I was close enough to have a
look, and there laid a man on the ground.
It most give me the fan-tods. He had a
blanket around his head, and his head was
nearly in the fire. I set there behind a
clump of bushes, in about six foot of him,
and kept my eyes on him steady. It was
getting grey daylight, now. Pretty soon he
gapped, and stretched himself, and hove
off the blanket, and it was Miss Watson’s
Jim! I bet I was glad to see him. I says:
lua sumí de vista e a escuridão começô a
cobrí o rio. Mas dali a poco vi uma faixa
clara por cima das árvore e eu sabia que o
dia tava raiano. Então peguei minha arma
de novo e fui pra onde eu tinha topado
com a fogueira, parano a cada minuto pra
escutá. Mas eu num tava com sorte; num
conseguia encontrá o lugar. Mas, poco
depois, dei com o brilho da fogueira,
longe, no meio das árvore. Caminhei até lá
devagar e com cuidado. Quando já dava
pra enxergá, vi um homem deitado no
chão. Quase que tive um troço. Ele tinha a
cabeça enrolada com um cobertô e tava
perto do fogo. Sentei lá, atrás de uma
moita, a uns metro dele e preguei os olho
nele. Tava amanheceno agora. Logo ele
acordô, se espreguiçô e tirô o cobertô da
cabeça e era o Jim da senhorita Watson!
Fiquei feliz mesmo de vê que era ele e
disse:
Page 48
‘Hello, Jim!’ and skipped out. - Oi, Jim! e apareci.
He bounced up and stared at me wild.
Then he drops down on his knees, and
puts his hands together and says:
Ele deu um pulo e ficô de olho arregalado
me olhano assustado. Aí caiu de joelho,
ficô
com as mão posta e disse:
‘Doan’ hurt me – don’t! I hain’t ever done
no harm to a ghos’. I awluz liked dead
people, en done all I could for ‘em. You
go en git in de river agin, whah you
b’longs, en doan’ do ‘nuffn to Ole Jim, ‘at
‘uz awluz yo’ fren’.’
- Num mi machuca eu, não! Eu nunca fiz
mal pra nenhum fantasma. Sempre gostei
de defunto e fiz tudo pr’eles. Vai lá pro rio
de novo, qu’ocê é de lá, e num faiz nada
pro Véio Jim que sempre foi seu amigo.
Well, I warn’t long making him
understand I warn’t dead. I was ever so
glad to see Jim. I warn’t lonesome, now. I
told him I warn’t afraid of him telling the
people where I was. I talked along, but he
only set there and looked at me; never said
nothing. Then I says:
Bem, num me deu muito trabalho fazê o
Jim entendê que eu num tava morto.
Eu tava tão feliz de vê o Jim. Eu num tava
mais sozinho, agora. Eu disse pra ele que
eu num
tinha medo no caso d’ele contá
pras pessoa onde eu tava. Eu falava, falava
e ele só ficava sentado me olhano; nunca
que
dizia nada. Aí, eu disse:
‘It’s good daylight. Le’s get breakfast.
Make up your camp-fire good.’
- Já é dia claro. Vamo comê. Aumenta a
sua fogueira.
Page 48-49
‘What’s de use er makin’ up de camp-fire - Pra que aumentá a foguera pra cozinhá
196
to cook strawbries en sich truck? But you
got a gun, hain’t you? Den we kin git
sumfn’ better den strawbries.’
morango e essas coisa? Mais ‘ocê tem uma
arma, num tem? Aí então a gente pode
pegá alguma coisa mais boa
que morango.’
Page 49
‘Strawberries and such truck’, I says. ‘Is
that what you live on?’
- Morango e essas coisa, eu disse. Você tá
viveno disso?
‘I couldn’ git nuffn’ else,’ he says. - Num consegui mais nada, ele disse.
‘Why, how long you been on the island,
Jim?’
- E faz quanto tempo que você tá na ilha,
Jim?
‘I come heah de night arter you’s killed.’ - Cheguei aqui na noite despois qu’ocê foi
morto.
‘What, all that time?’ - Nossa, todo esse tempo?
‘Yes-indeedy.’ - Verdade verdadera.
‘And ain’t you had nothing but that kind
of rubbage to eat?’
- E só comeu essas frutinha?
‘No, sah – nuffn’ else.’ - Só isso memo.
‘Well, you must be most starved, ain’t
you?’
- Então você deve de tá morto de fome,
num tá?
‘I reck’n I could eat a hoss. I think I could.
How long you ben on de islan’?’
- Acho que dava pr’eu comê um boi. Acho
que dava memo. E faiz quanto tempo
qu’ocê tá na ilha?
‘Since the night I got killed.’ - Desde a noite que me mataro.
‘No! W’y, what has you lived on? But you
got a gun? Oh, yes, you got a gun. Dat’s
good. Now you kill sumfn’ en I’ll make up
de fire.’
- Num diga! E o que qu’ocê tá comeno?
Mais ‘ocê tem uma arma, né? Isso é bom.
Agora, ‘ocê vai caçá qu’eu vô botá mais
fogo na foguera.
So we went over to where the canoe was,
and while he built a fire in a grassy open
place amongst the trees, I fetched meal
and bacon and coffee, and coffee-pot and
frying-pan, and sugar and tin cups, and the
nigger was set back considerable, because
he reckoned it was all done with
witchcraft. I catched a good big cat-fish,
too, and Jim cleaned him with his knife,
and fried him.
Então a gente foi pra onde tava a canoa e
enquanto ele fazia a fogueira num lugar
aberto no meio das árvore, eu peguei a
farinha, o tocinho e o café, o bule e a
frigideira, o açúcar e as caneca de lata, e o
negro quase que caiu de costa porque
achava que eu tinha feito bruxaria. Peguei
um peixão também e o Jim limpô ele com
a faca e fritô.
When breakfast was ready, we lolled on
the grass and eat it smoking hot; Jim laid it
in with all his might, for he was most
about starved. Then when we had got
pretty well stuffed, we laid off and lazied.
Quando a comida ficô pronta, a gente
sentô na grama e comeu tudo quentinho; o
Jim comeu com muita vontade porque tava
morto de fome. Depois, quando a gente já
tava cheio, deitô e ficô descansano.
By-and-by Jim says: E o Jim disse:
‘But looky here, Huck, who wuz it dat ‘uz
killed in dat shanty, ef it warn’t you?’
- Mais, oia aqui Huck, se num foi ‘ocê que
morreu naquela cabana, quem que foi,
então?
197
Then I told him the whole thing, and he
said it was smart. He said Tom Sawyer
couldn’t get up no better plan than what I
had. Then I says:
Aí, contei toda a minha história e ele me
achô esperto. Disse que nem o Tom
Sawyer podia inventá um plano melhor
que o meu. E aí eu disse:
‘How do you come to be here, Jim, and
how’d you get here?’
- E você Jim? Por que que você veio pra
cá? Como que você veio pará aqui?
He looked pretty uneasy, and didn’t say
nothing for a minute. Then he says:
Ele parecia um poco nervoso e num disse
nada no começo. Depois falô:
Page 50
‘Maybe I better not tell.’ - Acho meió num contá.
‘Why, Jim?’ - Por que, Jim?
‘Well, dey’s reasons. But you wouldn’t
tell on me ef I ‘uz to tell you, would you,
Huck?’
- Bem, tenho meus motivo. Mais ocê num
vai contá pra ninguém, se eu contá pr’ocê,
vai, Huck?
‘Blamed if I would, Jim.’ - Claro que não, Jim.
‘Well, I b’lieve you, Huck. I – I run off.’ - Bem, eu ‘credito n’ocê. Eu – eu fugi.
‘Jim!’ - Jim!
‘But mind, you said you wouldn’t tell –
you know you said you wouldn’t tell,
Huck.’
- Mais ‘ocê disse que num contava – ‘ocê
disse que num contava, Huck.
‘Well, I did. I said I wouldn’t, and I’ll
stick to it. Honest injun I will. People
would call me a low-down Ablitionist and
despise me for keeping mum – but that
don’t make no difference. I ain’t agoing to
tell, and I ain’t agoing back there
anyways. So now, le’s know all about it.’
- Bem, eu disse que num contava, num
disse? Então, num vô contá. Juro que não.
Eles pode me chamá de ‘boliçonista e
coisa e tal porque eu vô ficá calado – mas
num faz nenhuma diferença. Eu num vô
contá e num vô voltá pra lá mesmo. Mas
agora me conta tudo.
‘Well, you see, its ‘uz dis way. Ole Missus
– dat’s Miss Watson – she pecks on me all
de time, en treats me pooty rough, but she
awluz said she wouldn’ sell me down to
Orleans. But I noticed dey wuz a nigger
trader roun’ de place considable, lately, en
I begin to git oneasy. Well, one night I
creeps to de do’, pooty late, en de do’
warn’t quite shet, en I hear ole missus tell
the widder she gwyne to sell me down to
Orleans, but she didn’ want to, but she
could git eight hund’d dollars for me, en it
‘uz sich a big stack o’ money she couldn’
resis’. De widder she try to git her to say
she wouldn’ do it, but I never waited to
hear de res’. I lit out mighty quick, I tell
you.
- Bem, vê só, foi ansim. A dona Moça –
aquela senhorita Watson – ela implicava
comigo o tempo todo, e me tratava bem
mal, mas ela sempre dizia que nunca qu’ia
me vendê lá pra Nova Orleans. Mas eu
notei que tinha um mercador d’escravo
rondano a casa nos último tempo e
comecei a ficá desassossegado. Bem, uma
noite eu fui de mansinho até a porta e ela
num tava bem fechada e aí ouvi a dona
Moça contá pra viúva que ela ia me vendê
pra Nova Orleans. Ela num queria, mas ela
podia me vendê por oitocentos dólar e era
um monte de dinhero que num dava pr’ela
resistí. A viúva, ela tentô convencê a irmã
pra num fazê isso, mas eu num esperei pra
ouví o resto. Eu fugi bem rápido, ah fugi
memo.
‘I tuck out en shin down de hill en ‘spec to
steal a skift ‘long de sho’ som’ers ‘bove de
town, but dey wuz people a-stirrin’yit, so I
hid in de old tumble-down cooper shop on
de bank to wait for everybody to go ‘way.
- Sai correno e desci o morrinho e pensei
em robá um bote na margem do rio, perto
da cidade, mas tinha muito movimento,
então eu s’iscondi na véia fábrica de barril,
na margem do rio, pra esperá o povo ir s’
198
Well, I wuz dah all night. Dey wuz
somebody roun’ all de time. ‘Long ‘bout
six in the mawnin’, skifts begin to go by,
en ‘bout eight er nine every skift dat went
‘long wuz talkin’ ‘bout how yo’ pap come
over to de town en say you’s killed. Dese
las’ skifts wuz full o’ ladies en genlmen
agoin’ over for to see de place. Sometimes
dey’d pull up at de sho’ en take a res’
b’fo’ dey started acrost, so by de talk I got
to know all ‘bout de killin’. I ‘uz powerful
sorry you’s killed, Huck, but I ain’t no
mo’, now.
imbora. Bem, fiquei lá a noite toda. Tinha
sempre alguém por perto o tempo todo.
Por volta das seis hora da manhã, os bote
começaro a saí e, lá pelas oito ou nove,
cada bote que saía, as pessoa ia falano de
como seu pai tinha ido até a cidade pra
dizê que mataro ‘ocê. Os último tava cheio
de muié e home pra vê onde tinha sido o
lugar. As veiz, eles ficava na margem,
proseano o dia todo. Então pela prosa,
fiquei sabeno tudo da sua morte. Fiquei
muito triste memo de sabe qu’ocê tinha
morrido, Huck, mais agora num tô mais.
Page 50-51
‘I laid dah under de shavins all day. I ‘uz
hungry, but I warn’t afeared; bekase I
knowed ole missus en de widder wuz
goin’ to start to de camp-meetn’ right arter
breakfas’ en be gone all day, en dey
knows I goes off wid de cattle ‘bout day-
light, so dey wouldn’ ‘spec to see me
roun’ de place, en so dey wouldn’ miss me
tell arter dark in de evenin’. De yuther
servants wouldn’ miss me, kase dey’d shin
out en take holiday, soon as de ole folks
‘uz out’n de way.
- Passei o dia todo ali iscondido. Eu tava
com fome, mas num tava com medo;
porque eu sabia que a dona Moça e a viúva
ia numa reunião logo despois do café e ia
ficá o dia todo fora. Elas sabia qu’ eu ia saí
com o gado de manhã cedinho, então elas
num esperava de me vê por ali e num ia dá
por falta de mim até iscurecê. Os otro
criado num ia sentí minha falta por causa
qu’eles ia tirá o dia de folga ansim que as
duas tava fora de casa.
Page 51
‘Well, when it come dark I tuck out up de
river road, en went ‘bout two mile er more
to whah dey warn’t no houses. I’d made
up my mine ‘bout what I’s agwyne to do.
You see ef I kep’ on tryin’ to git away
afoot, de dogs ‘ud track me; ef I stole a
skift to cross over, dey’d miss dat skift,
you see, en dey’d know ‘bout whah I’d
lan’ on de yuther side en whah to pick up
my track. So I says, a raff is what I’s arter;
it doan’ make no track.
- Bem, quano iscureceu, eu peguei a
estrada do rio e andei um bocado até onde
num tinha mais casa. Decidi o que qu’eu ia
fazê. ‘Cê sábi, né, no caso d’eu fugí a pé,
os cachorro ia atrás de mim; no caso d’eu
robá um bote pra atravessá o rio, eles ia dá
pela falta do bote, vê bem, e eles ia sabê
qu’ eu tinha ido pará do otro lado e ia
seguí o meu rasto. Aí, eu disse, uma
jangada, é isso; uma jangada num dexa
rasto.
‘I see a light a-comin’ roun’ de p’int,
bymeby, so I wade’ in en shove’ a log
ahead o’ me, en swum more’n half-way
acrost de river, en got in ‘mongst de drift-
wood, en kep’ my head down low, en
kinder swum agin de current tell the raff
come along. Den I swum to de stern uv it,
en tuck aholt. It clouded up en ‘uz pooty
dark for a little while. So I clumb up en
laid down on de planks. De men ‘uz all
‘way yonder in de middle, whah de lantern
wuz. De river wuz arisin’ en dey wuz a
- Eu vi uma luz chegano perto, despois d’
um tempo. Aí entrei n’água e empurrei um
tronco de madera na minha frente, e nadei
até mais da metade do otro lado do rio e
fiquei entre os pedaço solto de madera,
fiquei com a cabeça abaixada e nadei
contra a correnteza até a jangada chegá
perto. Aí, nadei até a parte de trás dela e
subi. Tinha muita nuvem e logo ficô bem
iscuro. Subi e deitei no meio dos tronco.
Os home tava do otro lado, onde tava o
lampião. O rio tava começano a subí e
199
good current; so I reck’n’d ‘at by fo’ in de
mawnin’ I’d be twenty-five mile down de
river, en den I’d slip in, jis’ b’fo daylight,
en swim asho’ en take to de woods on de
Illinoi side.
tinha uma correnteza boa, de modos que
calculei que, lá pelas quatro da manhã, eu
ia tá a uns quarenta quilômetro dali; eu
pensava em deslizá pr’água antes de
‘manhecê, nadá pra margem e entrá no
mato em Illinois.
‘But I didn’ have no luck. When we ‘uz
mos’ down to de head er de islan’, a man
begin to come aft wid de lantern. I see it
warn’t no use fer to wait, so I slid
overboard, en struck out fer de islan’.
Well, I had a notion I could lan’ mos’
anywhers, but I couldn’t – bank too bluff.
I ‘uz mos’ to de foot er de islan’ b’fo’ I
foun’ a good place. I went into de woods
en jedged I wouldn’ fool wid raffs no mo’,
long as dey move de lantern roun’ so. I
had my pipe en a plug er dog-leg, en some
matches in my cap, en dey warn’t wet, so I
‘uz all right.’
- Mais num tive sorte. Quano a gente tava
quase na parte de cima da ilha, um home
começô a vir na minha direção com um
lampião. Vi que num adiantava isperá,
deslizei pr’ água e nadei pra ilha. Bem, eu
achava qu’ ia dá pé em qualqué ponto,
mais num dava; as marge era muito difíci
de subí; vim nadano até a ponta da ilha
antes d’ incontrá um lugar bom. Entrei na
mata e resolvi que num queria mais sabê
de jangada porque tem sempre alguém
com um lampião pra rondá. Eu tinha o
meu cachimbo, um poco de fumo e alguns
fósfro iscondido dentro do gorro, que num
tava moiado, então tudo tava bem.
‘And so you ain’t had no meat nor bread
to eat all this time? Why didn’t you get
mud-turkles?’
- E você num tinha carne nem pão pra
comê, todo esse tempo? Por que que você
num pegô umas tartaruga?
Page 51-52
‘How you gwyne to git’m? You can’t slip
up on um en grab um; en how’s a body
gwyne to hit um wid a rock? How could a
body do it in de night? en I warn’t gwyne
to show myself on de bank in de daytime.’
- Como qu’eu ia conseguí? A gente num
tropica nelas e pronto: pegô uma. Como
qu’ eu ia pegá ela, com uma pedra?
Precisa ficá iscondido, isperano. E como
qu’ eu ia fazê isso de noite? Eu num queria
aparecê na praia de dia.
Page 52
‘Well, that’s so. You’ve had to keep in the
woods all the time, of course. Did you
hear ‘em shooting the cannon?’
- Tá certo, é verdade. Você tinha que ficá
na mata mesmo o tempo todo. Você ouviu
eles atirano com o canhão?
‘Oh, yes. I knowed dey was arter you. I
see um go by heah; watched um thoo de
bushes.’
- Ouvi, sim. Sabia qu’ eles tava atrás
d’ocê. Vi eles vino aqui, iscondido nas
moita.
Some young birds come along, flying a
yard or two at a time and lighting. Jim said
it was a sign it was going to rain. He said
it was a sign when young chickens flew
that way, and so he reckoned it was the
same way when young birds done it. I was
going to catch some of them, but Jim
wouldn’t let me. He said it was death. He
said his father lay mighty sick once, and
some of them catched a bird, and his old
granny said his father would die, and he
did.
Alguns passarinho novo viero voano um
metro, de cada vez, e posano de novo. O
Jim falô que aquilo era sinal de que ia
chovê. Disse que era sinal de chuva
quando os frango voava assim, então ele
achava que devia de sê a mesma coisa com
os passarinho. Eu quis apanhá uns, mas o
Jim num deixô. Disse que isso era sinal de
morte. Contô que o pai dele tinha ficado
muito doente, uma vez, e que alguém tinha
pegado uns passarinho, e aí a sua avó disse
que o pai dele ia morrê e ele morreu
200
mesmo.
And Jim said you mustn’t count the things
you are going to cook for dinner, because
that would bring bad luck. The same if
you shook the tablecloth after sundown.
And he said if a man owned a bee-hive,
and that man died, the bees must be told
about it before sun-up next morning, or
else the bees would all weaken down and
quit work and die. Jim said bees wouldn’t
sting idiots; but I didn’t believe that,
because I had tried them lots of times
myself, and they wouldn’t sting me.
O Jim disse também que num é bom contá
as coisa que a gente vai cozinhá pra janta,
porque isso traz azar. O mesmo acontece
se a gente sacode a toalha da mesa depois
do sol se pôr. E disse que se um homem
tem uma colméia e ele morre, a gente deve
de levá a notícia pras abelha antes do sol
nascê no dia seguinte, senão as abelha fica
fraca, num trabalha e morre. O Jim disse
que elas num pica os idiota; mas eu num
acreditei, porque eu já tinha tentado muitas
vez, e elas num me picava.
I had heard about some of these things
before, but not all of them. Jim knowed all
kinds of signs. He said he knowed most
everything. I said it looked to me like all
the signs was about back luck, and so I
asked him if there warn’t any good-luck
signs. He says:
Eu já tinha ouvido falá dessas coisa antes,
mas não de todas. O Jim conhecia todo
tipo de sinal. Ele disse que sabia quase
tudo. Eu falei que parecia que todos eles
era sempre sinal de azar e perguntei pra
ele se num tinha também sinal de boa
sorte.
‘Mighty few – an’ dey ain’ no use to a
body. What you want to know when good
luck’s a-comin’ for? want to keep it off?’
And he said: ‘Ef you’s got hairy arms en a
hairy breas’, it’s a sign dat you’s agwyne
to be rich. Well, dey’s some use in a sign
like dat, ‘kase it’s so fur ahead. You see,
maybe you’s got to be po’ a long time fust,
en so you might git discourage’ en kill
yo’self ‘f you didn’ know by de sign dat
you gwyne to be rich bymeby.’
- Bem poco – e num serve de nada pra
ninguém. Para que qu’ocê vai querê sabê
quano que vem a boa sorte? Pr’ispantá
ela? – e acrescentô: – Quano a gente tem
braço e peito cabeludo, é sinal que a gente
vai ficá rico. Bem, esse sim é bom de sabê
porque a gente fica sabeno do fato muito
antes d’ele acontecê. Vê bem, a pessoa
pode tê de sê pobre muito tempo, e despois
fica rica. Ela podia perdê a corage e se
matá, se num sabe que ainda tinha que sê
rica.
‘Have you got hairy arms and a hairy
breast, Jim?’
- Você tem os braço e o peito peludo, Jim?
‘What’s de use to axe dat question? don’
you see I has?’
- Porque qu’ ocê tá me fazeno essa
pergunta? ‘Ocê num tá veno qu’eu tenho?
‘Well, are you rich?’ - Então, você é rico?
Page 52-53
‘No, but I been rich wunst, and gwyne to
be rich agin. Wunst I had foteen dollars,
but I tuck to speculat’n’, en got busted
out.’
- Não, mais já fui rico, e ainda vô sê de
novo. Uma veiz eu tive quatorze dólar.
Mais resolvi investí eles, e perdi tudo.
Page 53
‘What did you speculate in, Jim?’ - E você investiu no quê, Jim?
‘Well, fust I tackled stock.’ - Bem, primero investi em gado.
‘What kind of stock?’ - Que tipo de gado?
‘Why, live stock. Catlle, you know. I put
ten dollars in a cow. But I ain’ gwyne to
resk no mo’ money in stock. De cow up ‘n
died on my han’s.’
- Gado vivo, ‘cê sabe, né? Empatei 10
dólar numa vaca. Mais nunca mais vô
arriscá dinhero em gado. A vaca morreu
nas minha mão.
201
‘So you lost the ten dollars.’ - Então, você perdeu os dez dólar.
‘No, I didn’ lose it all. I on’y los’ ‘bout
nine of it. I sole de hide en taller for a
dollar en ten cents.’
- Não. Num perdi tudo. Só perdi nove.
Vendi o coro e o sebo por um dólar e deiz
centavo.
‘You had five dollars and ten cents left.
Did you speculate any more?’
- Você ficô com cinco dólar e dez centavo.
Você investiu otra vez?
‘Yes. You know dat one-laigged nigger
dat b’longs to old Misto Brasdish? well, he
sot up a bank, en say anybody dat put in a
dollar would git fo’ dollars mo’ at de en’
er de year. Well, all de niggers went in,
but dey didn’ have much. I wuz de on’y
one dat had much. So I stuck out for mo’
dan fo’ dollars, en I said ‘f I didn’ git it I’d
start a bank myself. Well, o’ course dat
nigger want’ to keep me out er de
business, bekase he say dey warn’t
business’ nough for two banks, so he say I
could put in my five dollars en he pay me
thirty-five at de en’ er de year.
- Investi. ‘Ocê conheci aquele negro
perneta do seu Bradish? Bem, ele abriu um
banco e disse que quem botasse um dólar
no banco ia recebê mais quatro dólar no
fim do ano. Todos negro quisero entrá no
negócio, mais eles num tinha muito. Eu
era o único que tinha muito dinhero. Eu
queria investí mais de quatro dólar e ia
fundá o meu próprio banco, no caso d’ele
num me dá mais de quatro dólar. Claro qu’
ele quis qu’ eu ficasse fora do negócio. Ele
me disse que num tinha negócio pra dois
banco. Então, era meió dá pr’ele os meus
cinco dólar e recebê trinta e cinco no fim
do ano.
‘So I done it. Den I reck’n’d I’d inves’ de
thirty-five dollars right off en keep things
a-movin’. Dey wuz a nigger name’ Bob,
dat had ketched a wood-flat, en his marster
didn’ know it; en I bought it off’n him en
told him to take de thirty-five dollars when
de en’er de year come; but somebody stole
de wood-flat dat night, en nex’ day de
one-laigged nigger say de bank’s busted.
So dey didn’ none uv us git no money.’
- E foi o qu’eu fiz. Eu achava que despois
eu ia investí de novo os trinta e cinco dólar
e ganhá muito dinhero. Mais tinha um
negro chamado Bob que tinha pegado uma
canoa sem o patrão dele sabê. Eu comprei
a canoa dele e falei pr’ele recebê os trinta
e cinco dólar no banco, no fim do ano; mas
alguém robô a canoa naquela noite, e no
otro dia o negro perneta disse que o banco
tinha falido. Então, ninguém recebeu nada.
‘What did you do with the ten cents, Jim?’ - E que que você fez com os dez centavo,
Jim?
Page 53-54
‘Well, I uz gwyne to spen’ it, but I had a
dream, en de dream tole me to give it to a
nigger name’ Balum – Balum’s Ass dey
call him for short, he’s one er dem
chuckle-heads, you know. But he’s lucky,
dey say, en I see I warn’t lucky. De dream
say let Balum inves’ de ten cents en he’d
make a raise for me. Well, Balum he tuck
de money, en when he wuz in church he
hear de preacher say day whoever give to
de po’ len’ to de Lord, en boun’ to git his
money back a hund’d times. So Blaum he
tuck en give de ten cents to de po’, en laid
low to see what wuz gwyne to come of it.’
- Bem, pensei em gastá, mas tive um
sonho e o sonho dizia qu’eu devia de dá o
dinhero pr’um negro chamado Balum-
Balum, o Bobo, era o apelido dele, porque
ele é meio bobo memo, cê sabe, né? Mas
dizem qu’ele tem sorte, e eu andava meio
sem sorte memo. O sonho dizia pro Balum
investí os deiz centavo e eu ia tê lucro.
Bem, o Balum, ele recebeu o dinhero, e
quano tava na igreja ouviu o pastor dizê
que quem dava pros pobre emprestava pra
Deus e qu’ ia recebê despois cem veiz
mais. Então, o Balum, ele foi e deu os deiz
centavo pros pobre e ficô isperano o qu’ ia
acontecê.
Page 54
202
‘Well, what did come of it, Jim?’ - E o que que deu isso, Jim?
‘Nuffn’ never come of it. I couldn’
manage to k’leck dat money no way; en
Balum he couldn’. I ain’t gwyne to len’ no
mo’ money ‘dout I see de security. Boun’
to git yo’ money back a hund’d times, de
preacher says! Ef I could git de ten cents
back, I’d call it squash, en be glad er de
chanst.’
- Num deu em nada. Num consegui tê
aquele dinhero de volta e nem o Balum.
Num vô mais emprestá dinhero sem
uma garantia. E ia recebê cem veiz mais o
meu dinhero, o pastor tinha falado. Ah, só
de recebê os deiz centavo de volta eu já ia
me dá por sastifeito.
‘Well, it’s all right, anyway, Jim, long as
you’re going to be rich again some time or
other.’
- Bem, mas no fim vai dá tudo certo, Jim,
porque você vai sê rico de novo.
‘Yes – en I’s rich now, come to look at it.
I owns myself, en I’s wuth eight hund’d
dollars. I wisht I had de money, I wouldn’
want no mo’.’
- Pensano bem, eu já sô rico agora. Eu tô
valeno oitocentos dólar. Mais eu queria
memo é tê esse dinhero e aí num ia precisá
de mais nada.
5.5.4 Proposta de tradução – Capítulo 14
Texto original: Mark Twain Proposta de tradução
Chapter 14: A General Good Time – The
Harem - French
Capítulo 14: Uma diversão mesmo – O
Harém – O idioma francês
Page 80-81
By-and-by, when we got up, we turned
over the truck the gang had stole off of the
wreck, and found boots, and blankets, and
clothes, and all sorts of other things, and a
lot of books, and a spy-glass, and three
boxes of seegars. We hadn’t ever been this
rich before, in neither of our lives. The
seegars was prime. We laid off all the
afternoon in the woods talking, and me
reading the books, and having a general
good time. I told Jim all about what
happened inside the wreck, and at the
ferry-boat; and I said these kinds of things
was adventures: but he said he didn’t want
no more adventures. He said that when I
went in the texas, and he crawled back to
get on the raft and found her gone, he
nearly died; because he judged it was all
up with him, anyway it could be fixed; for
Dali a poco, quando a gente acordô, virô
as bugiganga que os ladrão tinha rôbado
do navio naufragado, e a gente encontrô
bota, cobertô, ropa e um bocado de otras
coisa, até um monte de livro, um
telescópio e três caixa de charuto. Nunca
na nossa vida a gente tinha sido tão rico.
Os charuto era de primeira. A gente ficô
deitado a tarde toda na mata, proseano, eu
fiquei leno os livro e a gente se divertiu
mesmo. Contei pro Jim tudo o tinha
acontecido no navio naufragado, e na
balsa; e disse que esse tipo de coisa é que
era aventura; mas ele disse que num queria
mais aventura nenhuma. O Jim disse que
quando eu fui pra cabine e ele engatinhô
de volta pra pegá a jangada e aí viu que ela
tinha sumido, ele quase morreu; por causa
que ele achô que tava tudo acabado pra
203
if he didn’t get saved he would get
drownded; and if he did get saved,
whoever saved him would send him back
home so as to get the reward, and then
Miss Watson would sell him South, sure.
Well, he was right; he was most always
right; he had an uncommon level head, for
a nigger.
ele, de um jeito ou de otro ele tava sem
saída; se ele num se salvava, ele se
afogava; e se alguém salvava ele, esse
alguém ia mandá ele de volta pra casa pra
recebê a recompensa, e é claro que a srta.
Watson ia vendê ele pro Sul. Bem, ele tava
certo; quase sempre ele tava certo; ele
tinha uma cabeça muito boa, pra um
negro.
Page 81
I read considerable to Jim about kings, and
dukes, and earls, and such, and how gaudy
they dressed, and how much style they put
on, and called each other your majesty,
and your grace, and your lordship, and so
on, ‘stead of mister; and Jim’s eyes
bugged out, and he was interested. He
says:
Li muito pro Jim sobre rei, duque, conde e
essa gente toda, de como eles se enfeitava,
era elegante, e como se chamava de vossa
majestade, vossa alteza, vossa senhoria e
coisa e tal em vez de ‘senhor’; os olho do
Jim ficaro arregalado e ele ficô todo
interessado. Aí ele disse:
‘I didn’t know dey was so many un um. I
hain’t hearn ‘bout none un um, skasely,
but ole King Sollermun, onless you counts
dem kings dat’s in a pack er k’yards. How
much do a king git?’
- Eu num sabia que tinha tantos rei ansim.
Nunca tinha ouvido falá de nenhum, só do
véio rei Salomão e só se contá aqueles rei
do baraio. Quanto que ganha um rei?
‘Get?’ I says; ‘why, they get a thousand
dollars a month if they want it; they can
have just as much as they want; everything
belongs to them.’
- Quanto que ganha? – perguntei – Ora,
ganha mil dólar por mês, no caso de ele
querê; eles pode tê tudo que qué; tudo é
deles.
Ain’t dat gay? En what dey got to do,
Huck?’
- Num é uma maravia? E o que que eles
tem que fazê, Huck?
They don’t do nothing! Why, how you
talk. They just set around.’
- Eles num tem que fazê nada! Ora essa,
do que que você tá falano. Eles só fica
sentado.
‘No – is dat so?’ - Não – verdade?
‘Of course it is. They just set around.
Except maybe when there’s a war; then
they go to the war. But other times they
just lazy around; or go hawking – just
hawking and sp - - Sh! – d’you hear a
noise?’
- Claro que é. Só ficá sentado. Menos,
talvez, quando tem uma guerra; aí eles vão
pra guerra. Mas notra época eles só ficá
vadiano; ou vão caçá – só caçá e esp--
psss! – Você num ouviu um barulho?
We skipped out and looked; but it warn’t
nothing but the flutter of a steamboat’s
wheel, away down coming around the
point; so we come back.
A gente deu um pulo e olhô por entre as
folha; mas num era nada, só onda que a
roda do barco a vapor, que tava passano lá
longe, ia fazeno; então a gente voltô pro
nosso canto.
“Yes,’ says I, ‘and other times, when
things is dull, they fuss with the
parlyment; and if everybody don’t go just
so he whacks their heads off. But mostly
they hang round the harem.’
- É – disse eu – e otras vez, quando as
coisa fica sem graça, eles implica com o
palamento; e se todo mundo num faz as
coisa do jeito que eles qué, eles manda
cortá a cabeça. Mas quase sempre eles fica
a toa no harém.
204
‘Roun’ de which?’ - A toa no quê?
‘Harem.’ - No harém.
‘What’s de harem?’ - O que que é harém?
‘The place where he keep his wives. Don’t
you know about the harem? Solomon had
one; he had about a million wives.’
- O lugar onde eles guarda as esposa. Você
nunca ouviu falá do harém? Salomão tinha
um; ele tinha quase um milhão de mulher.
Page 81-82
‘Why, yes, dat’s so; I – I’d done forgot it.
A harem’s a bo’d’n-house, I reck’n. Mos’
likely dey has rackety times in de nussery.
En reck’n de wives quarrels considable; en
dat ‘crease de racket. Yit dey say
Sollermun de wises’man dat ever live’. I
doan’ take no stock in dat. Bekase why:
would a wise man want to live in de mids’
er sich a blimblammin’ all de time? No –
‘deed he wouldn’t. A wise man ‘ud take en
buil’ a biler-factry; en den he could shet
down de biler-factry when he want to res’.’
- É memo; eu ... eu já tinha s’isquecido. Eu
acho que o harém é um tipo ansim de
pensão. Parecido com um lugar com muito
baruio de criança. Eu acho que as muié
brigava um bocado, numa baruiera só. Se
diz por aí que Salomão foi o home mais
sabido que já viveu. Eu num ‘credito nem
um poco nisso. Sabe por que que não?
Como é que um home sabido ia querê vivê
no meio dum inferno o tempo todo? Não –
ele num ia querê. Um home sabido ia fazê
uma fábrica de caldera; e ele fechava a
fábrica quano queria descansá.
‘Well, but he was the wisest man, anyway;
because the widow she told me so her own
self.’
- Bem, mas ele foi mesmo o homem mais
sabido; porque foi a viúva mesmo que me
contô isso.
‘I doan’ k’yer what de widder say, he
warn’t no wise man, nuther. He had some
er de dad-fetchedes’ ways I ever see. Does
you know ‘bout dat chile dat he ‘uz gwyne
to chop in two?’
- Eu num me importo com o que a viúva
diz. Ele num era nem um pingo sabido.
Ele fazia umas coisa qu’eu nunca vi. ‘Ocê
sabia da história da criança qu’ele queria
rachá no meio?
‘Yes, the widow told me all about it.’ - Claro, a viúva me contô tudinho.
Well, den! Warn’ dat de beatenes’ notion
in de worl’? You jes’ take en look at it a
minute. Dah’s de stump, dah – dat’s one er
de women; heah’s you – dat’s de yuther
one; I’s Sollermun; en dish-yer dollar
bill’s de chile. Bofe un you claims it. What
does I do? Does I shin aroun’ mongs’ de
neighbours en fine out which un you de
bill do b’long to, en han’ it over to de right
one, all safe en soun’, de way dat anybody
dat had any gumption would? No – I take
en whack de bill in two, en give half un it
to you, en de yuther half to de yuther
woman. Dat’s de way Sollermun was
gwyne to do wid de chile. Now I want to
ast you: what’s de use er dat half a bill? –
can’t buy noth’n wid it. En what use is a
half a chile? I wouldn’ give a dern for a
million un um.’
- E então! Isso num havéra de sê a coisa
mais sem pé nem cabeça do mundo? Pensa
um bocadinho. Faiz de conta qu’esse
tronco é uma das muié – ‘ocê aqui é a otra;
eu sô Salomão; e essa nota de um dólar é a
criança. ‘Ocês duas qué ela. O que é que
eu faço? ‘Ocê acha qu’eu vô procurá pela
vizinhança e sabê de quem que é a nota de
dólar e entregá direitinho pra pessoa certa,
como uma pessoa inteligente ia fazê? Não
– eu pego e rasgo a nota em dois pedaço e
dô uma metade pr’ocê e a otra metade pr’
otra muié. Isso era o que Salomão ia fazê
com a criança. Agora eu pergunto pr’ôce:
pra que que serve a metade d’uma criança?
Eu num ia dá nada por um milhão de meia
criança.
‘But hang it, Jim, you’ve clean missed the
point – blame it, you’ve missed it a
- Mas, ‘perai, Jim; você num entendeu
nada – você num pegô a idéia.
205
thousand mile.’
‘Who? Me? Go ‘long. Doan’ talk to me
‘bout yo’ pints. I reck’n I knows sense
when I sees it; en dey ain’ no sense in sich
doin’s as dat. De ‘spute warn’t ‘bout a half
a chile, de ‘spute was ‘bout a whole chile;
en de man dat think he kin settle a ‘spute
‘bout a whole chile wid a half chile, doan’
know enough to come in out’n de rain.
Doan’ talk to me ‘bout Sollermun, Huck. I
knows him by de back.’
- Quem? Eu? Dexa de sê bobo. Num me
vem com essa de idéia. Eu sei muito bem
quano a idéia faiz sentido; e essa aí num
faiz nenhum. A briga das muiê num era
por causa da metade de uma criança, era
por causa de uma criança intera; e um
home que acha que pode resolvê uma
briga por causa de uma criança intera com
a metade dessa criança, num é nada
inteligente. Num vem me falá de Salomão,
Huck. Conheço esse tipo muito bem.
‘But I tell you you don’t get the point.’ - Mas tô te dizeno que você num pegô a
idéia.
Page 82-83
‘Blame de pint! I reck’n I knows what I
knows. En mine you, de real pint is down
furder – it’s down deeper. It lays in de way
Sollermun was raised. You take a man
dat’s got on’y one er two chillen; is dat
man gwyne to be waseful o’ chillen? No,
he ain’t; he can’t ‘ford it. He know how to
value ‘em. But you take a man dat’s got
‘bout five million chillen runnin’ round’
de house, en it’s diffunt. He as soon chop a
chile in two as a cat. Dey’s plenty mo’. A
chile er tow, mo’er less, warn’t no
consekens to Sollermun, dad fetch him!’
- Mais que diabo! Eu sei o que que eu sei.
E a idéia certa tá longe – tá bem mais no
fundo. Ela tá no jeito qu’ o Salomão foi
criado. Vê só o caso d’um home que tem
só um fio ou dois; ele sabe o valor do fio?
Mais ocê tem um home que tem uns cinco
milhão de fio correno pela casa, aí é
diferente. Esse manda cortá o fio em dois,
fáci fáci que nem que era um gato. Ele tem
um monte de otro em casa. Uma criança a
mais ou a menos, num faiz diferença para
esse tal de Salomão; essa é a pura verdade.
Page 83
I never seen such a nigger. If he got a
notion in his head once, there warn’t no
getting it out again. He was the most down
on Solomon of any nigger I ever see. So I
went to talking about other kings, and let
Solomon slide. I told about Louis
Sixteenth that got his head cut off in
France long time ago; and about little boy
the dolphin, that would a been a king, but
they took and shut him up in jail, and some
say he died there.
- Nunca que vi um negro como o Jim.
Quando enfiava uma coisa na cabeça, num
tinha ninguém que tirava. Foi o negro que
mais falô mal de Salomão que eu já
conheci. De modos que fui falano de otros
rei e deixano Salomão de lado. Contei pra
ele do rei da França Luiz XVI, que tinha
tido a cabeça cortada, já fazia muito
tempo; e do menino, o Delfim, que ia sê
rei, mas que prendero ele, uns dizem que
ele morreu na prisão.
‘Po’ little chap.’ - ‘Tadinho dele!
‘But some says he got out and got away,
and come to America.’
- Mas tem também gente que diz que ele
fugiu e veio pra América.
‘Dat’s good! But he’ll be potty lonesome –
dey ain’ no kings here, is dey, Huck?’
- Que bom! Mas ele deve de se sentí muito
sozinho. Num tem rei aqui na América,
num é, Huck?
‘No.’ - É, num tem não.
‘Den he cain’t git no situation. What he
gwyne to do?’
- Então num dá pr’ele conseguí emprego.
O que que ele vai fazê?
‘Well, I don’t know. Some of them gets on - Bem, num sei. Alguns dele entra pra
206
the police, and some of them learns people
how to talk French.’
polícia, otros ensina francês pra gente.
‘Why, Huck, doan’ de French people talk
de same way we does?’
- O quê, Huck! Então os francêiz num fala
como a gente?
No, Jim; you couldn’t understand a word
they said – not a single word.’
- Não, Jim! Num dá pra entendê nada do
que eles fala. Nenhuma palavra.
‘Well, now, I be ding-busted! How do dat
come?’
- Bem, agora, eu tô confuso! Como que
isso é possíve?
‘I don’t know; but it’s so. I got some of
their jabber out of a book. S’pose a man
was to come to you and say Polly-voo-
franz y – what would you think?’
- Num sei, mas é assim mesmo. Eu já li
um poco do jeito deles falá num livro.
Imagina que um homem chega perto de
você e diz: “Parlé-vuu-francé?”, o que que
você ia achá?
‘I wouldn’ think nuff’n; I’d take en bust
him over de head. Dat is, if he warn’t
white. I wouldn’ ‘low no nigger to call me
dat.’
- Num ia achá nada. Ia dá uma paulada na
cabeça dele. Isto é, no caso de num sê um
branco. Eu nunca qu’ ia dexá um negro me
chamá de umas coisa dessa!
‘Shucks, it ain’t calling you anything. It’s
only saying do you know how to talk
French.’
- Mas que coisa! Ele num tá te xingano.
Ele só tá perguntano se você sabe falá
francês.
‘Well, den, why couldn’t he say it?’ - Ué, então por que que ele num fala logo
isso?
‘Why, he is a-saying it. That’s a
Frenchman’s way of saying it.’
- Ora bolas, é isso que ele tá falano. Isso é
o jeito dos francês de falá isso.
‘Well, it’s a blame’ ridicklous way, en I
doan’ want to hear no mo’ ‘bout it. Dey
ain’ no sense in it.’
- Bem, então é um jeito muito idiota, e
num quero mais ouví falá disso. Isso num
faiz sentido.
‘Looky here, Jim; does a cat talk like we
do?’
- Olha aqui, Jim, um gato fala como que a
gente?
‘No, a cat don’t.’ - Não, ele num fala, não.
Page 84
‘Well, does a cow?’ - Bem, e uma vaca?
‘No, a cow don’t, nuther.’ - Não. Uma vaca também não.
‘Does a cat talk like a cow, or a cow talk
like a cat?’
- E um gato fala como que uma vaca ou
uma vaca como que um gato?
‘No, dey don’t. - Não, eles num fala.
‘It’s natural and right for ‘em to talk
different from each other, ain’t it?’
- Num é natural e certo eles falá diferente
uns dos otro?
‘’Course.’ - Claro que é.
‘And ain’t it natural and right for a cat and
a cow to talk different from us?’
- Então num é natural e certo um gato e
uma vaca falá diferente da gente?
‘Why, mo’sholy it is.’ - Mais é claro que é.
‘Well, then, why ain’t it natural and right
for a Frenchman to talk different from us?
You answer me that.’
- Então por que que num é natural e certo
um francês falá diferente da gente? Me
responde isso.
‘Is a cat a man, Huck?’ - Um gato é um home, Huck?
‘No.’ - Não.
‘Well, den, dey ain’t no sense in a cat
talkin’ like a man. Is a cow a man? – er is
- Bem; então num faiz sentido um gato
falá que nem que um home. E uma vaca é
207
a cow a cat?’ um home? Ou uma vaca é um gato?
‘No, she ain’t either of them.’ - Não; nenhum dos dois.
‘Well, den, she ain’t got no business to
talk like either one er the yuther of ‘em. Is
a Frenchman a man?’
- Pois então, ela num tem que falá igual a
nenhum dos dois. Agora, me diz aqui, um
francêiz é um home?
‘Yes.’ - É
Well, den! Dad blame it, why doan’ he
talk like a man? You answer me dat!’
- Ora, bolas! Então por que que ele num
fala que nem que um home? Me responde
agora!
I see it warn’t no use wasting words – you
can’t learn a nigger to argue. So I quit.
Vi que num tinha jeito e que num
adiantava eu gastá mais prosa. Num dá pra
ensiná um negro a discutí. Então, desistí.
5.5.5 Proposta de tradução – Capítulo 38
Texto original: Mark Twain Proposta de tradução
Chapter 38: The coat of arms – a Skilled
Superintendent – Unpleasant Glory – A
Tearful Subject
Capítulo 38: O brasão de armas – Um
superintendente habilidoso – Uma glória
desagradável – Um assunto choroso
Page 248
Making them pens was a distressid-tough
job, and so was the saw; and Jim allowed
the inscription was going to be the
toughest of all. That’s the one which the
prisoner has to scrabble on the wall. But
we had to have it; Tom said we’d got to:
there warn’t no case of a State prisoner not
scrabbling his inscription to leave behind,
and his coat of arms.
Fazê as pena dava um trabalho danado, e a
serra também; e o Jim achava que a
inscrição ia sê o mais difícil de tudo.
Aquela uma que o prisioneiro tinha que
rabiscá na parede. Mas a gente tinha que
fazê; o Tom disse que num tinha otro
jeito: num tinha nenhum caso de um
prisioneiro de estado que num fazia uma
inscrição na cela e o seu brasão de arma.
Page 248-249
‘Look at Jane Grey’, he says; ‘look at
Gilford Dudley; look at old
Northumberland! Why, Huck, s’pose it is
considerble trouble? – what you going to
do? – how you going to get around it?
Jim’s got to do his inscription and coat of
arms. They all do.’
- Veja o caso da Jane Grey – disse ele –.
Veja o do Gilford Dudley e o do velho
Northumberland! Ora, Huck, imagina que
seja difícil demais, que é que a gente vai
fazê? Como que a gente dá um jeito nisso?
O Jim tem que fazê a inscrição e o brasão
de armas. Todos eles fazem.
Page 249
Jim says:
‘Why, Mars Tom, I hain’t got no coat o’
arms: I hain’t got nuffn but dish-yer ole
shirt, en you knows I got to keep de
O Jim disse:
- Mais, sinhô Tom, eu num tenho nenhum
brasão d’arma; num tenho nada a num sê
essa camisa veia, e o sinhô sabe que tenho
208
journal on dat.’ que guardá o diário nela.
‘Oh, you don’t understand, Jim; a coat of
arms is very different.’
- Ah, você num entendeu, Jim. Um brasão
de armas é muito diferente.
‘Well,’ I says, ‘Jim’s right, anyway, when
he says he hain’t got no coat of arms,
because he hain’t.’
- Bem – disse eu –, o Jim tá certo quando
diz que num tem brasão de arma nenhum,
porque ele num tem mesmo.
‘I reckon I knowed that,’ Tom says, ‘but
you bet he’ll have one before he goes out
of this – because he’s going out right, and
there ain’t going to be no flaws in his
record.’
- Eu já contava com isso – respondeu Tom
–, mas pode apostá que ele vai tê um antes
de saí daqui –, porque ele vai saí do jeito
certo e num vai tê nenhum erro nessa
história.
So whilst me and Jim filed away at the
pens on a brickbat apiece, Jim a-making
his’n out of the brass and I making mine
out of the spoon, Tom set to work to think
out the coat of arms. By-and-by he said
he’d struck so many good ones he didn’t
hardly know which to take, but there was
one which he reckoned he’d decide on. He
says:
E enquanto eu e o Jim lixava as pena num
pedaço de tijolo, o Jim fazeno a dele de
um castiçal e eu fazeno a minha de uma
colher, o Tom começô a matutá como é
que ia sê o brasão de arma. Depois, disse
que já tinha imaginado tantos que nem
sabia qual que ia escolhê, mas tinha um
que ele achava que era o melhor de todos.
Ele disse:
‘On the scutcheon we’ll have a bend or in
the dexter base, a saltire murrey in the
fess, with a dog, couchant, for common
charge, and under his foot a chain
embattled, for slavery, with a chevron vert
in a chief engrailed, and three invected
lines on a field azure, with the nombril
points rampant on a dancette indented;
crest, a runaway nigger, sable, with his
bundle over his shoulder on a bar sinister;
and a couple of gules for supporters,
which is you and me; motto, Maggiore
fretta, minore atto. Got it out of a book –
means, the more haste, the less speed.’
No escudo a gente vai tê uma barra dorada
na dextra, aspas púrpura no listel, com um
cachorro deitado; sob os pés dele uma
corrente da batalha, como símbolo da
escravidão; com uma faixa verde em
cimeira denteada e três listas deitada em
campo azul, com pontos no centro
rampante, numa divisa denteada, na
cimeira, um negro fugitivo em preto com a
troxa no ombro à sinistra; e dois goles
como ajudante, que são você e eu; com a
divisa: “Maggiore fretta, minore atto”.
Tirei de um livro e significa: quanto maior
a pressa, menor a velocidade.
‘Geewhillikins’, I says, ‘but what does the
rest of it mean?’
- Minha nossa – disse eu –, mas o que que
qué dizê o resto disso tudo?
‘We ain’t got no time to bother over that’,
he says, ‘we got to dig in like all git-out.’
- A gente num tem tempo pra perdê com
explicação – respondeu ele – a gente
precisa cuidá da fuga.
‘Well, anyway,’ I says, ‘what’s some of it?
What a fess?’
- Tudo bem, mas explica só alguma coisa.
Que que é um listel?
‘A fess – a fess is – you don’t need to
know what a fess is. I’ll show him how to
make it when he gets to it.’
- Um listel – um listel é – você num
precisa sabê o que é um listel. Eu vô
mostrá na hora que ele tivé que fazê um.
‘Shucks, Tom,’ I says, ‘I think you might
tell a person. What’s a bar sinister?’
- Caramba, Tom, disse eu. Eu acho que
você devia de explicá. O que que é à
sinistra?
‘Oh, I don’t know. But he’s got to have it.
All the nobility does.’
- Ah, eu num sei. Mas ele tem que tê um.
Toda nobreza tem.
Page 250
209
That was just his way. If it didn’t suit him
to explain a thing to you, he wouldn’t do
it. You might pump at him a week, it
wouldn’t make no difference.
Esse era o jeito do Tom. Se num agradava
ele explicá uma coisa, num explicava.
Você podia enchê ele por uma semana,
num ia adiantá de nada.
He’d got all that coat of arms business
fixed, so now he started in to finish up the
rest of that part of the work, which was to
plan out a mournful inscription – said Jim
got to have one, like they all done. He
made up a lot, and wrote them out on a
paper, and read them off, so:
Ele já tinha resolvido todo aquele negócio
do brasão de arma, e agora tinha que
caprichá no que faltava que era a tal da
inscrição triste – disse que o Jim tinha que
tê uma, já que todos tinha. Fez um monte
de frase, escreveu elas num papel, e depois
leu:
1. Here a captive heart busted.
2. Here a poor prisoner, forsook by
the world and friends, fretted out
his sorrowful life.
3. Here a lonely heart broke, and a
worn spirit went to its rest, after
thirty-seven years of solitary
captivity.
4. Here, homeless and friendless after
thirty-seven years of bitter
captivity, perished a noble
stranger, natural son of Louis XIV.
1. – Aqui extinguiu-se um coração
cativo.
2. – Aqui, um pobre prisioneiro,
desamparado pelo mundo e
amigos, martirizô sua triste vida.
3. – Aqui um coração solitário se
dilacerô, e um espírito cansado
buscô descanso, após trinta e sete
anos de cativeiro solitário.
4. – Aqui, sem lar e amigos, após
trinta e sete anos de amargo
cativeiro, sucumbiu um nobre
estrangeiro, filho natural de Luiz
XIV.
Tom’s voice trembled, whilst he was
reading them, and he most broke down.
When he got home, he couldn’t no way
make up his mind which one for Jim to
scrabble on to the wall, they was all so
good; but at last he allowed he would let
him scrabble them all on. Jim said it would
take him a year to scrabble such a lot of
truck on to the logs with a nail, and he
didn’t know how to make letters, besides;
but Tom said he would block them out for
him, and then he wouldn’t have nothing to
do but just follow the lines. Then pretty
soon he says:
A voz do Tom tremia, enquanto tava leno
e ele quase que chorô. Quando acabô, num
conseguia de jeito nenhum se decidí por
qual das frase o Jim ia rabiscá na parede,
de tão boa que elas era; mas no final
resolveu que o Jim ia gravá todas. O Jim
disse que ia levá um ano pra ele escrevê
tanta coisa num tronco da parede com um
prego, e ‘inda por cima ele num sabia
escrevê; mas aí o Tom disse que ia
desenhá as letra e o Jim só tinha que
rabiscá por cima delas. Dali a poco ele
falô:
‘Come to think, the logs ain’t agoing to
do; they don’t have log walls in a
dungeon: we got to dig the inscriptions
into a rock. We’ll fetch a rock.’
- Pensano bem os tronco da parede num
serve; num tem tronco nas parede de um
calabouço; a gente tem que gravá as
inscrição numa pedra. Vamo buscá uma
pedra.
Jim said the rock was worse then the logs;
he said it would take him such a pison
long time to dig them into a rock, he
wouldn’t ever get out. But Tom said he
would let me help him do it. Then he took
a look to see how me and Jim was getting
O Jim falô que a pedra era ainda pior que
os tronco; disse que ia levá tanto tempo
pra gravá as palavra na pedra que nunca
mais ele ia saí de lá. Mas o Tom disse que
ia deixá eu ajudá a escrevê. Depois veio vê
como que eu e o Jim tava ino com as pena.
210
along with the pens. It was most pesky
tedious hard work and slow, and didn’t
give my hands no show to get well of the
sores, and we didn’t seem to make no
headway, hardly. So. Tom says:
Era um trabalho danado de chato, difícil e
demorado, deixô minhas mão toda
machucada e parecia que num rendia nada.
Então o Tom disse:
Page 250-251
‘I know how to fix it. We got to have a
rock for the coat of arms and mournful
inscriptions, and we can kill two birds
with that same rock. There’s a gaudy big
grindstone down at the mill, and we’ll
smouch it, and carve the things on it, and
file out the pens and the saw on it, too.’
- Já sei como resolvê isso. A gente precisa
de uma pedra pras frase e pro brasão de
armas, dá pra matá dois coelho com a
mesma pedra. Tem uma pedra de amolá
bem grande lá embaixo na serraria; a gente
roba ela, grava as frase nela e ao mesmo
tempo lixa as pena e a serra.
Page 251
It warn’t no slouch of an idea; and it
warn’t no slouch of a grindstone nuther;
but we allowed we’d tackle it. It warn’t
quite midnight, yet, so we cleared out for
the mill, leaving Jim at work. We
smouched the grindstone, and set out to
roll her home, but it was a most nation
tough job. Sometimes, do what we could,
we couldn’t keep her from falling over,
and she come mighty near mashing us,
every time. Tom said she was going to get
one of us, sure, before we got through. We
got her half-way; and then we was plumb
played out, and most drowned with sweat.
We see it warn’t no use, we got to go and
fetch Jim. So he raised up his bed and slid
the chain off of the bed-leg, and wrapt it
round and round his neck, and we crawled
out through our hole and down there, and
Jim and me laid into that grindstone and
walked her along like nothing; and Tom
superintended. He could out-superintend
any boy I ever see. He knowed how to do
everything.
Num é que era uma grande idéia mesmo; e
era uma pedra de amolá grande também;
mas a gente resolveu que ia pegá ela. Num
era bem meia-noite ainda, então a gente
saiu pra ir pra serraria e deixô o Jim
trabalhano. A gente surrupiô a pedra e
começô a rolá ela pra cabana, mas era um
trabalho difícil demais. Às vez, por mais
que a gente fazia, num conseguia num
deixá ela caí, e cada vez que ela caía,
quase que esmagava a gente. O Tom disse
que ela ia pegá um de nós na certa, antes
da gente terminá o que tinha que fazê. A
gente levô ela até a metade do caminho, e
tava exausto e suano as bica. A gente viu
que num tinha otro jeito; tinha que buscá o
Jim. Então, ele levantô a cama, soltô a
corrente que tava presa no pé da cama,
enrolô ela no pescoço, a gente engatinhô
pelo buraco e foi até onde tava a pedra, o
Jim e eu rolamo a pedra e ficô fácil fácil
de levá ela; o Tom dava as ordem; ele
sabia mandá muito bem, melhor que
qualqué menino que eu conhecia. Ele sabia
fazê de tudo.
Our hole was pretty big, but it warn’t big
enough to get the grindstone through; but
Jim he took the pick and soon made it big
enough. Then Tom marked out them
things on it with the nail, and set Jim to
work on them, with the nail for a chisel
and an iron bolt from the rubbage in the
lean-to for a hammer, and told him to
work till the rest of his candle quit on him,
and then he could go to bed, and hide the
grindstone under his straw tick and sleep
O buraco era bem grande, mas num era tão
grande pra passá a pedra; mas o Jim pegô
uma picareta e rapidinho aumentô o
tamanho do buraco. Aí, o Tom desenhô as
inscrição na pedra, com o prego, e mandô
o Jim gravá por cima, com o prego como
talhadeira e um pino de ferro tirado do
galpão no lugar do martelo, e disse pro Jim
trabalhá até acabá a vela; e aí então ele
podia ir dormí, escondeno a pedra debaixo
do colchão e dormino em cima dela.
211
on it. Then we helped him fix his chain
back on the bed-leg, and was ready for bed
ourselves. But Tom thought of something,
and says:
Depois, a gente ajudô o Jim a prendê a
corrente na perna da cama, e já tava quase
pronto pra ir dormí, quando o Tom lembrô
de uma coisa e disse:
‘You got any spiders in here, Jim? - Tem alguma aranha aqui, Jim?
‘No, sah, thanks to goodness I hain’t, Mars
Tom.’
- Não, sinhô; graças a Deus num tem não,
sinhô Tom.
‘All right, we’ll get you some.’ - Muito bem, a gente vai trazê umas.
‘But bless you, honey, I doan’ want none.
I’s afeard un um. I jis’ ‘s soon have
rattlesnakes aroun’.’
- Deus o live, meu fio, num quero elas
não. Tenho medo delas. Prefiro até umas
cobra cascavé.
Tom thought a minute or two, and says:
‘It’s a good idea. And I reckon it’s been
done. It must a been done; it stands to
reason. Yes, it’s a prime good idea. Where
could you keep it?’
Tom pensô um poquinho, e disse:
- Boa idéia. Acho que alguém já fez isso.
Já deve de tê feito, é claro. Sim; é uma
ótima idéia. Onde é que a gente podia
guardá?
‘Keep what, Mars Tom?’ - Guardá o quê, sinhô Tom?
Page 252
‘Why, a rattlesnake.’ - Ora, a cascavel.
‘De goodness gracious alive, Mars Tom!
Why, if dey was a rattlesnake to come in
heah, I’d take en bust right out thoo dat
log wall, I would, wid my head.’
- Deus seja lovado, sinhô, Tom! Ora, se
tinha uma cascavé aqui eu ia fugí daqui o
mais rápido possíve, nem que tinha que
abrí essa parede de tronco dano cabeçada.
‘Why, Jim, you wouldn’t be afraid of it,
after a little. You could tame it.’
- Que que é isso, Jim; logo, logo você num
ia mais tê medo dela. Você podia
domesticá a cobra.
Tame it!’ - Domesticá a cobra!
‘Yes – easy enough. Every animal is
grateful for kindness and petting, and they
wouldn’t think of hurting a person that
pets them. Any book will tell you that.
You try – that’s all I ask; just try for two
or three days. Why, you can get him so, in
a little while, that he’ll love you; and sleep
with you; and won’t stay away from you a
minute; and will let you wrap him round
your neck and put his head in your mouth.’
- Claro… é muito fácil. Qualquer animal
gosta quando recebe carinho e afago, e
eles nunca iam pensá em machucá a
pessoa que lhe deu carinho. Qualquer livro
vai te ensiná isso. Tenta… é só o que te
peço; tenta por dois ou três dia. Ora, você
vai vê que, em poco tempo, você vai fazê
ela gostá de você; dormí com você; e ela
num vai ficá longe de você nem um
minuto; vai até deixá você enrolá ela no
seu pescoço e colocá a cabeça dela na sua
boca.
Please, Mars Tom – doan’ talk so! I can’t
stan’ it! He’d let me shove his head in my
mouf – fer a favour, hain’t it? I lay he’d
wait a pow’ful long time ‘fo’ I ast him. En
mo’ en dat, I doan’ want him to sleep wid
me.’
- Faiz favor, sinhô Tom, num diz uma
coisa dessa! Eu num ‘güento isso! Ela ia
dexá eu colocá a cabeça dela na minha
boca – faiz favor! Acho qu’ela tinha
qu’isperá muito tempo pr’eu pedí isso. E
mais ainda, num quero ela dormino
comigo.
‘Jim, don’t act so foolish. A prisoner’s got
to have some kind of a dumb pet, and if a
rattlesnake hain’t ever been tried, why,
there’s more glory to be gained in your
- Jim, num se comporta como um bobo.
Um prisioneiro tem que tê um bicho de
estimação mudo, e se ninguém nunca teve
uma cascavel, ora, a glória é maior ainda
212
being the first to ever try it than any other
way you could ever think of to save your
life.’
porque você vai sê o primeiro.
‘Why, Mars Tom, I doan’ want no sich
glory. Snake take’n bite Jim’s chin off,
den whah is de glory? No, sah, I doan’
want no sich doin’s.’
- Ora, sinhô Tom, eu num quero esse tipo
de glória. A cascavé pode me picá eu, e aí
pr’onde é que vai a glória? Não, sinhô,
num quero sabê dessas coisa.
‘Blame it, can’t you try? I only want you
to try – you needn’t keep it up if it don’t
work.’
- Que droga, você num pode tentá! Eu só
quero que você tenta – num precisa
continuá se você acha que num dá certo.
‘But de trouble all done, ef de snake bite
me while I’s a-tryin’ him. Mars Tom, I’s
willin’ to tackle mos’ anything ‘at ain’t
onreasonable, but ef you en Huck fetches a
rattlesnake in heah for me to tame, I’s
gwyne to leave, dat’s shore.’
- Mais o poblema é que num vai mais
volta, e se a cobra me picá eu enquanto
qu’ eu tô tentano? Sinhô Tom, eu tô
disposto a fazê tudo o que é razoáve, mais
se o sinhô e o Huck traiz aqui uma cascavé
pr’eu domesticá, eu vô dá o fora daqui ,
memo.
‘Well, then, let it go, let it go, if you’re so
bullheaded about it. We can get you some
garter-snakes and you can tie some buttons
on their tails, and let on they’re
rattlesnakes, and I reckon that’ll have to
do.’
- Bem, fazê o que, num se fala mais nisso,
já que você é tão teimoso. A gente pode
arrumá umas cobra d’água e você prega
uns botão no rabo delas e fingí que são
cascavéis, acho que agora é razoável, né?
‘I k’n stan’ dem, Mars Tom, but blame’ ‘f
I couldn’t get along widout um, I tell you
dat. I never knowed b’fo’, ‘t was so much
bother and trouble to be a prisoner.’
- Num consigo ‘güenta elas, sinhô Tom,
que coisa. Se dá pra passá sem isso, eu
prefiro. Nunca na minha vida que pensei
que sê prisionero ia sê tão difíci.
Page 253
‘Well, it always is, when it’s done right.
You got any rats around here?’
- Bem, sempre é, quando se faz do jeito
certo. Tem ratos por aqui?
‘No, sah, I hain’t seed none.’ - Não, sinhô. Ainda num vi nenhum.
‘Well, we’ll get you some rats.’ - Bem, então a gente vai arrumá uns.
‘Why, Mars Tom, I doan’ want no rats.
Dey’s de dadblamedest creturs to ‘sturb a
body, en rustle roun’ over’im, en bite his
feet, when he’s tryin’ to sleep, I ever see.
No, sah, gimme g’yarter-snakes ‘f I’s got
to have’m, but doan’ gimme no rats, I ain’t
got no use f’r um, skasely.
- Ora essa, sinhô Tom, eu num quero
nenhum rato. São uns bicho mais danado
da vida qu’eu já vi pra perturbá, eles passa
por cima da gente, morde os pé, quano ocê
tá tentano dormí. Não, sinhô, traiz as cobra
d’água, então, se num dá pra ficá sem
bicho, mas rato, não. Num quero sabê
deles.
‘But Jim, you got to have ‘em – they all
do. So don’t make no more fuss about it.
Prisoners ain’t ever without rats. There
ain’t no instance of it. And they train
them, and pet them, and learn them tricks,
and they get to be as sociable as flies. But
you got to play music to them. You got
anything to play music on?’
- Mas, Jim, você tem que tê – todos os
prisioneiros têm ratos. Chega de exagero.
Nunca se viu um prisioneiro sem rato.
Num existe um só caso. E eles treinam os
ratos, acariciam eles e ensinam truques pra
eles, até que eles acabam ficano tão
sociável quanto as mosca. Mas pra isso
você tem que tocá música pra eles.Você
tem alguma coisa pra tocá aqui?
‘I ain’t got nuffn but a coase comb en a - Só tenho um pente, um pedaço de papé e
213
piece o’ paper, en a juice-harp; but I
reck’n dey wouldn’ take no stock in a
juice-harp.’
um berimbau; mas acho que eles num ia
dá a mínima pro berimbau.
‘Yes, they would. They don’t care what
kind of music ‘tis. A jews-harp’s plenty
good enough for a rat. All animals likes
music – in a prison they dote on it.
Specially, painful music; and you can’t get
no other kind out of a jews-harp. It always
interests them; they come out to see what’s
the matter with you. Yes, you’re all right;
you’re fixed very well. You want to set on
your bed, nights, before you go to sleep,
and early in the mornings, and play your
jews-harp; play The Last Link is Broken
that’s the thing that’ll scoop a rat,
quicker’n anything else; and when you’ve
played about two minutes, you’ll see all
the rats, and the snakes, and spiders, and
things begin to feel worried about you, and
come. And they’ll just fairly swarm over
you, and have a noble good time.’
- Claro que iam. Eles num se importam
com o tipo de música. Um berimbau é pra
lá de bom prum rato. Todos os animais
gostam de música – numa prisão então
ficam locos por ela. Principalmente
música triste; e num dá pra tocá otro tipo
de música com um berimbau. É sempre
interessante pra eles; eles saem dos buraco
pra vê o que que tá aconteceno com você.
Sim, se tudo tá bem com você; vai dá
certo. Você pode tocá na cama, à noite,
antes de dormí e de manhã cedo; toca O
Último Elo está Rompido – é desse tipo de
música que os rato gostam, mais do que
tudo; e depois que você tocá uns dois
minuto, vai vê todos os rato, as cobra e as
aranha vino, preocupados com você. Eles
vão chegá pertinho de você e vai sê muito
divertido.
‘Yes, dey will, I reck’n, Mars Tom, but
what kine er time is Jim havin’? Blest if I
kin see de pint. But I’ll do it ef I got to. I
reck’n I better keep de animals satisfied,
en not have no trouble in de house.’
- Ah, vai sê sim, pr’eles, sinhô Tom, mais
e o Jim, como é que fica? Num consigo
entendê isso. Mas se tem que sê ansim, eu
faço. Acho que é bom memo tê os bicho
sastifeito e sem poblema aqui.
Tom waited to think over, and see if there
wasn’t nothing else; and pretty soon he
says:
Tom esperô pra pensá melhor, e vê se num
faltava nada; e dali a poco disse:
‘Oh – there’s one thing I forgot. Could you
raise a flower here, do you reckon?’
- Ah!... Tem uma coisa que eu esqueci.
Você acha que dá pra tê uma flor aqui,
hein?
Page 254
‘I doan’ know, but maybe I could, Mars
Tom; but it’s tolable dark in heah, en I ain’
got no use f’r no flower, nohow, en she’d
be a pow’ful sight o’ trouble.’
- Num sei, mais pode sê que sim, sinhô
Tom; mais é muito iscuro aqui, e num vejo
pra que que eu vô tê uma flô, isso ia dá
muito trabaio.
‘Well, you try it, anyway. Some other
prisoners has done it.’
- Mas num custa tenta, né? Alguns otros
prisioneiro fizero isso.
‘One er dem big cat-tail-lookin’ mullen-
stalks would grow in heah, Mars Tom, I
reck’n, but she wouldn’ be wuth half de
trouble she’d coss.’
- Uma dessas flô crista-de-galo de talo
comprido pode sê que cresce aqui, sinhô
Tom, acho eu, mais o trabaio que vai dá
num compensa.
‘Don’t you believe it. We’ll fetch you a
little one, and you plant it in the corner,
over there, and raise it. And don’t call it
mullen, call it Pitchiola – that’s its right
name, when it’s in a prison. And you want
to water it with your tears.’
- Num se incomode. Vô trazê uma
pequena e você planta ela num canto, ali, e
cuida dela. E num chama ela de crista-de-
galo, chama de ‘pitchola’ – esse é o nome
certo dela, quando tá na prisão. E você vai
tê que regá ela com as suas lágrima.
214
‘Why, I got plenty spring water, Mars
Tom.’
- Ora essa! Eu tenho água fresca a
vontade, sinhô Tom!
‘You don’t want spring water; you want to
water it with your tears. It’s the way they
always do.’
- Você num vai querê água fresca; você
vai querê aguá ela com as suas lágrima. É
desse jeito que eles fazem.
‘Why, Mars Tom, I lay I kin raise one er
dem mullen-stalks twyste wid spring water
whiles another man’s a start’n one wid
tears.’
- Mais, mais, sinhô Tom, eu acho que a
planta pode crescê duas veiz mais com
água fresca do que a flô dos otro com
lágrima.
‘That ain’t the idea. You got to do it with
tears.’
- Num se trata disso. Você tem que regá
ela com lágrima.
‘She’ll die on my han’s, Mars Tom, she
sholy will; kase I doan’ skasely ever cry.’
- Então ela vai morrê nas minha mão,
sinhô Tom; vai memo, porque eu quase
que num choro.
So Tom was stumped. But he studied it
over, and then said Jim would have to
worry along the best he could with an
onion. He promised he would go to the
nigger cabins and drop one, private, in
Jim’s coffee-pot, in the morning. Jim said
he would ‘jis’ ‘s soon have tobacker in his
coffee; and found so much fault with it,
and with the work and bother of raising
the mullen, and jews-harping the rats, and
petting and flattering up the snakes and
spiders and things, on top of all the other
work he had to do on pens, and
inscriptions, and journals, and things,
which made it more trouble and worry and
responsibility to be a prisoner than
anything he ever undertook, that Tom
most lost all patience with him; and said
he was just loadened down with more
gaudier chances than a prisoner ever had
in the world to make a name for himself,
and yet he didn’t know enough to
appreciate them, and they was just about
wasted on him. So Jim he was sorry, and
said he wouldn’t behave so no more, and
then me and Tom shoved for bed.
Tom ficô espantado. Mas pensô um poco e
disse pro Jim que ele tinha que se virá com
uma cebola. Ele prometeu ir na cabana dos
negro e botá uma, em segredo, no bule de
café do Jim, de manhã. O Jim falô que
preferia tabaco no café; e se queixô do
trabalho que ia dá de plantá a flor, tocá
berimbau pros rato e ensiná as cobra, as
aranha e as otras bicharada, e por cima
ainda tinha que trabalhá nas pena e nas
inscrição, no diário e coisa e tal, e a vida
de um prisioneiro dava mais trabalho,
tinha mais preocupação e mais
responsabilidade que tudo que ele já tinha
feito na vida; aí então o Tom quase que
perdeu a paciência com ele; e disse que o
Jim tinha a oportunidade de ficá famoso
que nenhum prisioneiro tinha tido, e que
ele num sabia reconhecê, e essas
possibilidade tava seno desperdiçada com
ele. Aí o Jim se arrependeu, e prometeu
que num ia mais se comportá assim, e
então eu e o Tom fomo dormí.
215
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a apresentação de nossa proposta de tradução, há pouco a ser dito sem que
se incorra em repetição. No entanto, procuraremos, em defesa de não civilizar
Huckleberry, retomar alguns pontos, como o uso dos dialetos literários na tradução e o
leitor da língua de chegada.
Na narrativa criada por Twain, além das personagens, há dois elementos
essenciais para as aventuras, assim como para a comunicação entre elas: o rio Mississipi
e os dialetos, pois sem esses dois não há aventuras nem interação, respectivamente.
Podemos traçar um paralelo entre esses componentes tendo por base a fluidez comum às
águas de um grande rio, assim como à conversação informal. Ao traduzir Huckleberry,
não ocorre a nenhum tradutor tirar o rio da história, pois ao fazê-lo estaria arrancando
com ele a ligação entre uma e outra peripécia. O mesmo, podemos dizer, dá-se com os
dialetos, pois ao serem ignorados, extrai-se do texto a naturalidade dos diálogos e da
narrativa da obra.
Assim, a necessidade vital da linguagem não-padrão na tradução de Huckleberry
está em sintonia com o original, o explanatório e os limites lingüísticos bem
demarcados das personagens. Quanto a este último ponto, é importante lembrar que
quando Huck, Jim e Tom ganham um status novo com o uso da língua culta, a
artificialidade de suas falas questiona a verossimilhança daquilo que está sendo dito e
narrado. Ainda em relação a esse aspecto, buscamos um pequeno trecho de Graciliano
Ramos (1945, p. 99) para ilustrar as dificuldades enfrentadas pelo narrador-personagem
de Infância ao aprender a ler e escrever: as dúvidas presentes nesse texto seriam as
mesmas de nossas três personagens ao fazerem uso da língua padrão em português, e
também, em menor grau, de uma linguagem apenas coloquial.
216
Afinal meu pai desesperou de instruir-me, revelou tristeza por haver
gerado um maluco e deixou-me. Respirei, meti-me na soletração,
guiado por Mocinha. E as duas letras amansaram. Gaguejei sílabas
um mês. No fim da carta elas se reuniam, formavam sentenças
graves, arrevesadas, que me atordoavam. Certamente meu pai usara
um horrível embuste naquela maldita manhã, inculcando-me a
excelência do papel impresso. Eu não lia direto, mas, arfando
penosamente, conseguia mastigar os conceitos sisudos: ‘A preguiça é
a chave da pobreza – Quem não ouve conselhos raras vezes acerta –
Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.’
Esse Terteão para mim era um homem, e não pude saber que fazia ele
na página da carta. As outras folhas se desprendiam, restavam-me as
linhas em negrita, resumo da ciência anunciada por meu pai.
- Mocinha, quem é o Terteão?
Mocinha estranhou a pergunta. Não havia pensado que Terteão fosse
homem. Talvez fosse. ‘Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.’
- Mocinha, que quer dizer isso?
Mocinha confessou honestamente que não conhecia Terteão.
O respaldo que buscamos nesse excerto faz-nos voltar principalmente às
traduções de Monteiro Lobato e de Alex Marins, pois os dois impuseram a Huck, Jim e
Tom um ‘Terteão’ absolutamente incompreensível, que passou a figurar no texto,
expondo a incongruência da linguagem em desarmonia com as personagens. Esse
‘estranho homem’, ocupando o lugar dos dialetos literários, transforma a narrativa em
algo pesado e inverossímil. No entanto, como vimos, a questão não é tão simples assim,
não basta fazer nossas personagens falarem um dialeto não-padrão. É preciso debruçar-
se sobre os elementos constitutivos do conjunto formado pela obra e sua tradução, a fim
de observar atentamente a relação entre língua de partida e língua de chegada; dentre os
elementos mais relevantes, podemos citar: obra original, recepção da obra e o leitor da
língua de partida, crenças do autor, criação e implicações dos dialetos literários (nesse
caso específico), posição do tradutor em relação à obra e seu autor (admiração?
respeito? descaso?), crenças do tradutor em relação às possibilidades (ou não) do uso de
dialetos e o leitor da língua de chegada.
Dessa forma, gostaríamos de acrescentar alguns comentários a respeito do leitor
de língua de chegada, pois, se, por um lado, os dialetos são imprescindíveis para a
217
verossimilitude da obra, por outro, a aceitação do leitor em relação à criação do tradutor
faz-se necessária, visto que a premissa de não civilizar Huckleberry tem por objetivo dar
ao leitor uma idéia da criação de Twain. E quem seria esse leitor? Neste trabalho, o
primeiro leitor tomado como principal seria o próprio tradutor, pois temos a finalidade
de fazê-lo refletir um pouco sobre a tradução de dialetos. E, além deste, também o leitor
de literatura de forma mais geral. No entanto, em relação ao segundo leitor, restam-nos
ainda algumas questões levantadas a partir da leitura do texto de John Milton que trata
da tradução de clássicos que buscam respeitar os traços estilísticos do autor. Em relação
a esses casos, Milton (2002, p. 61) cita trabalhos com apoio acadêmico, sem foco no
grande público:
As traduções de Laurence Venuti são respaldadas pela posição
acadêmica que ele ocupa, como foi o caso das excelentes traduções
de Giovanni Pontiero das obras de Clarice Lispector e de José
Saramago para o inglês. De fato, Pontiero sublinha que a situação
acadêmica é a ideal para fazer-se uma tradução firmemente
respaldada na pesquisa (Orero & Sager, p.63). Uma tradução
espanhola bastante criativa do Livro Kidnapped, feita por Julio Cesar
Santoyo, também foi realizada no conforto do ambiente acadêmico. A
tradução cuidadosa que Antônio Houaiss fez do Ulysses deu-se
durante a sua aposentadoria. [...]
Com base nessas observações, podemos perguntar: a tradução com uso de
dialetos seria aceita pelo público comum, ou seja, por aqueles não ligados aos estudos
acadêmicos ou ainda pelos falantes de língua não-padrão? Ou ela estaria destinada a
uma elite acadêmica, capaz de refletir sobre a relevância da tradução dos dialetos
literários? Afinal de contas, essa elite é possuidora de meios para analisar e entender os
preconceitos em relação às variedades lingüísticas. Como tentativa de responder a tais
questões, faz-se necessário reforçar um importante aspecto levantado por Minnick, ao
afirmar que apenas o estudo lingüístico de uma obra com dialetos, mesmo tendo a
comprovação da exatidão do autor ao retratar suas personagens, não basta para afastar
possíveis preconceitos em relação aos dialetos não-padrão. Pois se alguém não
218
considerar o falar afro-americano, por exemplo, como digno de representar uma
personagem, mas, ao contrário, o vir como engraçado e grosseiro, nenhuma teoria o
convencerá do contrário. O mesmo acontecerá na tradução, pois o leitor acostumado a
uma linguagem padrão pode ver no uso de outra linguagem o absurdo, o cômico e/ou o
estereótipo.
Diante do exposto, podemos nos lembrar de alguns aspectos positivos citados,
como a mudança ocorrida até o momento na prática tradutória de dialetos, ao mostrar
para o leitor não apenas a história em si, mas como ela é narrada. Como exemplo disso
vimos as traduções de Pigmaleão e O Harlem é Escuro, assim como os estudos
acadêmicos citados na introdução deste trabalho. Além disso, se os parâmetros
curriculares brasileiros começarem a dar frutos, ou seja, se o aluno de língua não-padrão
passar a ser respeitado dentro de sua variedade lingüística, e a língua-padrão for
estudada como aquela usada para determinados fins, como, por exemplo, trabalhos
acadêmicos, meio profissional, talvez os falantes de dialetos não-padrão possam
entender um livro escrito em uma linguagem similar à usada por eles.
Portanto, acreditamos que o emprego da língua culta, assim como o de uma
linguagem apenas coloquial, desarmoniza a obra e torna as personagens artificiais, pois
elas se acham travestidas de elementos estranhos a si. Além disso, não podemos nos
esquecer do pedido de Mark Twain citado na abertura desta pesquisa, ou seja, “This is
Huck Finn, a child of mine of shady reputation. Be good to him for his parent’s
sake”
140
. E é exatamente isso que foi pretendido neste trabalho, respeitar o pedido de
Twain e, dessa forma, não ‘sivilizar’ Huckleberry Finn.
140
Este é Huck Finn, um filho meu com uma reputação duvidosa. Seja bom para com ele, em respeito a
seu criador.
219
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARAL, Amadeu. O Dialeto Caipira: gramática, vocabulário. São Paulo: Editora
Anhembi, 1955.
ANDERSON, F. (Ed.). A Pen Warmed-up in Hell: Mark Twain in Protest. New York:
Harper & Row, 1979.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa
– Século XXI. Versão 3.0.
AZEVEDO, Milton M. Vozes em Branco e Preto: a representação literária da fala não-
padrão. São Paulo: EDUSP, 2003.
BAGNO, M. Preconceito Lingüístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições
Loyola, 2007.
BETTI, M. S. (Org.). Patriotas e traidores: antiimperialismo, política e crítica social.
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.
BRODSKY, F. Traduction du vernaculaire noir: l´exemple de Zora Neale Hurston,
TTR, Montréal, v. 9, n. 2, p. 165-77, 2º semestre, 1996.
BROOKS, Van Wyck. The Ordeal of Mark Twain. New York: Dutton, 1970.
CAHEN, Jacques-Fernand. A Literatura Americana. Tradução de Yolanda Steidel de Toledo.
São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1955.
CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: Remate de males,
Campinas, IEL/Unicamp, p.81-89, 1999. Número especial.
CARVALHO, Solange Peixe Pinheiro de. A Tradução do Socioleto Literário: Um
Estudo de Wuthering Heights. 2006. Dissertação (Mestrado em Estudos Lingüísticos e
Literários em Inglês) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo,
SP.
220
COSTA, Francisco. Webbog. Site filisteu [mantido pelo escritor Francisco Costa.
Martin Claret. Disponível em <http://ciscocosta.com/filisteu/?p=2242>. Acesso em
01 set. 2008
DE VOTO, B. A. (Ed.). The portable Mark Twain. Harmondsworth: Penguin, 1979.
DI VITO, M. Proposta de tradução de Huckleberry Finn. 1997. 141 f. Dissertação
(Mestrado em Língua e Literatura Inglesa e Norte-Americana) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.
EMBERSON, Frances Guthrie. Mark Twain’s Vocabulary: a general survey.
Columbia: University of Missouri, 1935.
HANNA, Kátia. Tradução do Dialeto Literário de Burma Jones, da obra “A
Confederacy of Dunces”, de John Kennedy Toole. 2006. Dissertação (Mestrado em
Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês). – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.
HIMES, Chester. Blind Man With a Pistol. New York: Vintage Books, 1989.
_____. O Harlem é escuro. Tradução de Celina Falk Cavalvante. Porto Alegre: L & M
Editores, vol. 520. 2006.
INGE, M. Thomas. Huck Finn among the critics: a centennial selection, 1884-1984.
Washington: United States Information Agency, 1984.
IVES, S. A Theory of Literary Dialect. Tulane studies in English, New Orleans, v.2, p.
137-182, 1950.
KRIEGER, Saulo. Pseudotraduções. Disponível em
<http://www.amigosdolivro.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=5018>
Acesso em 25 ago. 2008.
LANE-MERCIER, G. Translating the untranslatable: the translator’s aesthetic,
ideological and political responsibility. Target, Amsterdam, v. 9, n. 1, p. 43-68, 1997.
LAVOIE, J. Problèmes de traduction du vernaculaire noir américain: le cas de “The
221
Adventures of Huckleberry Finn”. TTR, Montréal, v. 7, n. 2, p.115-144, 2º semestre,
1994.
LEARY, Lewis. Mark Twain. São Paulo: Livraria Martins Editôra, 1960.
LOBATO, M. Emília no país da gramática. São Paulo: Círculo do Livro, [1934].
_____. Emília no país da aritmética. São Paulo: Círculo do Livro, [1934].
MARCUSCHI, L. Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 3.
ed. São Paulo: Cortez, 2001.
MILTON, J. Tradução – Teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
_____. O clube do livro e a tradução. Bauru: EDUSC, 2002.
_____. The Political Adaptations of Monteiro Lobato. In: Cadernos de Tradução, n°.
XI, 2003/1. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2004, pp.211-217.
MINNICK, Lisa Cohen. Dialect and Dichotomy: Literary Representation of African
American Speech. Tuscaloosa: The University of Alabama Press, 2004.
NEIDER, C. (Ed.). The Autobiography of Mark Twain. New York: Harper Perennial,
1990.
NUNES, Cassiano. Mark Twain e Monteiro Lobato um estudo comparativo. Separata da
Revista de Letras – vol. I – 1960. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis.
OLIVEIRA, Vassil. O plágio da Martin Claret. Disponível em:
<http://www.vassil.com.br/blog.php?id=73> Acesso em 01 de set. 2008
PINTO, E. P. (Org.) O escritor enfrenta a língua. São Paulo: Humanitas, 1994.
_____. O português popular escrito. São Paulo: Contexto, 1996.
222
PRETI, Dino. Sociolingüística: Os níveis de fala. 4ª.ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1982, v. 6
_____. (Org.) Análise de Textos Orais. São Paulo: Humanitas, 2003.
_____. Estudos de Língua Oral e Escrita. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2004.
SARIAN, Maristela Cury. A tradução e a sociolingüística: Um estudo sobre “The
Color Purple” e sua tradução. 2002. Dissertação. (Mestrado em Estudos Lingüísticos) -
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista,
Campus de São José do Rio Preto.
SHAW, George Bernard. Pigmaleão. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L &
M Editores, vol. 427. 2005.
SLOANE, David E. E. Adventures of Huckleberry Finn: American comic vision.
Boston: Twayne Publishers, 1988
SILVA, C. E. Lins da. Twain sem Censura. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 de
setembro de 1995. Caderno Mais, p. 4-6.
SUN, Adam. No pega-pega da Arte da Guerra. Disponível em
<http://assinado-tradutores.blogspot.com/2008/07/piau-iii-martin-claret.html>. Acesso
em 15 set.2008
RAMOS, G. Infância. Rio de Janeiro: Editora Record, 1995.
ROBINSON, Forrest G. The Cambridge companion to Mark Twain. Cambridge:
Cambridge University Press, 1995.
TWAIN, Mark. The Adventures of Huckleberry Finn. London: Penguin Popular
Classics, 1994.
_____. As Aventuras de Huckleberry Finn. Tradução de Alex Marins. São Paulo:
Martin Claret, 2003.
223
_____. As Aventuras de Huckleberry Finn. Tradução de Sergio Flaksman. 2ª. ed.
São Paulo: Editora Ática, 1997.
_____. Aventuras de Huck. Tradução de Monteiro Lobato. 9ª. ed. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1977.
_____. As Aventuras de Huckleberry Finn. Tradução de Miriam Marder Silva
Monteiro. Portugal: Publicações Europa-América, Ltd. [s.d.]
_____. The Adventures of Tom Sawyer. London: Penguin Popular Classics, 1994.
_____. As Aventuras de Tom Sawyer. Tradução de Monteiro Lobato. 12ª. edição. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1978.
WILLIAM, Jorge. Livros têm páginas idênticas e mesmos erros. Disponível em
<http://www.brasilquele.com.br/texto_ler.php?id=2785&secao=6>
Acesso em 15 jun. 2008.
ILUSTRAÇÕES
KEMBLE, E. W. A primeira figura de Huckleberry Finn. 1884. In: INGE, M.
Thomas. Huck Finn among the critics: a centennial selection, 1884-1984 Washington:
United States Information Agency, 1984, p. 250.
_____. A segunda figura de Huckleberry Finn. 1884. In: INGE, M. Thomas. Huck
Finn among the critics: a centennial selection, 1884-1984 Washington: United States
Information Agency, 1984, p. 251.
_____. A terceira figura de Huckleberry Finn. 1884. In: INGE, M. Thomas. Huck
Finn among the critics: a centennial selection, 1884-1984 Washington: United States
Information Agency, 1984, p. 255.
_____. A quarta figura de Huckleberry Finn. 1884. In: INGE, M. Thomas. Huck
Finn among the critics: a centennial selection, 1884-1984 Washington: United States
Information Agency, 1984, p. 253.
224
_____. A quinta figura de Huckleberry Finn. 1884. In: INGE, M. Thomas. Huck
Finn among the critics: a centennial selection, 1884-1984 Washington: United States
Information Agency, 1984, p. 256.
225
APÊNDICES
APÊNDICE A – Quadro-resumo do dialeto caipira de Amadeu Amaral
APÊNDICE B - Tabela comparativa: Alex Marins e Miriam Marder Silva Monteiro
APÊNDICE C - Tabela dos dialetos mais comuns usados por Huck, Jim e Tom.
226
APÊNDICE A - Quadro-resumo do dialeto caipira de Amadeu Amaral
Este quadro-resumo foi elaborado tendo por base o livro O Dialeto Caipira de
Amadeu Amaral (1955), com o intuito de esclarecer alguns pontos apenas citados na
análise dos dialetos criados pelos tradutores das obras: O Harlem é Escuro e Pigmaleão,
uma vez que são feitas referências a esse estudo e seu autor. Como se trata de uma
apresentação concisa, levou-se em conta apenas aspectos presentes nas traduções
citadas, assim como na proposta de tradução.
QUADRO-RESUMO – DIALETO CAIPIRA
I – ASPECTOS FONOLÓGICOS
Grupo 1: Os fonemas e suas alterações - Vogais
DIALETO PADRÃO DIALETO CAIPIRA
1. VOGAIS
1.1 VOGAIS TÔNICAS
Exemplos: rapaz, mês, pés, nós, luz. Vogais tônicas não sofrem alterações,
somente as seguidas de ciciante* (s ou z).
então temos: rapáiz, mêis, péis, nóis, lúiz.
* a classificação de ciciante é dada pelo
Livro: O Dialeto Caipira.
1.2 SÍLABAS PRETÔNICAS
1.2.1 E INICIAL
Exemplos: exame, exemplo, eleição. Muda-se em i nasal: inzame, inzempro,
inleição.
1.2.2 E MEDIAL
Exemplos: tesoura, Teodoro, pequeno.
Exemplos: perigo, delicado, menino,
atrevido, inteligente.
Muda-se freqüentemente em i: tisôra, Tiodor,
piqueno.
Muda-se em i sobretudo se há outro i na
sílaba seguinte: pirigo, dilicado, minino,
atrivido, intiligente.
1.2.3 O MEDIAL
Exemplos: cozinha, domingo.
Exemplos: engolir, bulir, tossir, surtir.
Muda-se muitas vezes em u: cuzinha,
dumingo.
Muda-se em u sobretudo nos infinitivos dos
verbos em ir, que o tem na sílaba
227
Exemplos: cobrar, cortar, sofrer, poder.
imediatamente anterior à tônica: ingulí(r),
bulí(r), tussí(r), surtí(r).
Nos infinitivos dos verbos em ar e ir,
conserva-se o o: cobrá(r), cortá(r), sofrê(r),
podê(r).
1.2.4 E
N
(EN, EM) INICIAL
Exemplos: emprego, encurtar, ensino. Muda-se em in: imprego, incurtá(r), insino.
1.2.5 Õ (ON, OM) MEDIAL
Exemplos: comer, compadre, comigo,
conversa, começar.
Muda-se em u: cume(r), cumpadre, cumigo,
cunversa, cumeçá(r) e em geral nos
vocábulos cuja sílaba inicial é .
Grupo 2: Os fonemas e suas alterações – Grupos Vocálicos
DIALETO PADRÃO DIALETO CAIPIRA
2. GRUPOS VOCÁLICOS
2.1 EI
N
(EM) FINAL
Exemplos: viagem, virgem, homem. Reduz-se a e grave: viage, virge, home.
2.2 ÍO (HIATO) FINAL
Exemplos: pavio, tio, rio. Ditonga-se sempre em íu: pavíu, tíu, ríu.
Grupo 3: Os fonemas e suas alterações – Consoantes
DIALETO PADRÃO DIALETO CAIPIRA
3. CONSOANTES
3.1 D
Exemplos: andando, vendo, caindo.
O d caí, quase sempre, na sílaba final das
formas verbais em ando, endo, indo:
andano, veno, caíno.
O d caí às vezes no advérbio quando:
quano
3.2 L FINAL DE SÍLABA
Exemplos: qualquer, papel, mel, alma. Muda-se em r: quarquér, papér, mér, arma
L SUBJUNTIVO DE UM GRUPO
Exemplos: claro, completo, flor. Muda-se em r: craro, cumpreto, frô(r).
3.3 R FINAL
Exemplos: andar, mulher, esquecer, vapor. O r caí quando estiver no final da palavra:
andá, muié, esquecê, vapô.
Exceções: a. O r conserva-se em alguns
monossílabos: dor, cor, par.
b. Conserva-se também no monossílabo
átono por.
c. Conserva-se raramente em palavras de
mais de uma sílaba: amor, suor.
3.4 S FINAL
Exemplos: alferes, pires, vamos. O s caí quando estiver no final de palavra
paroxítona ou proparoxítona: arfére, pire,
228
vamo (ou bamo: muda-se às vezes o v em
b e vise-versa).
3.5 LH
Exemplos: espalhado, malho, mulher,
filho
Vocaliza-se em i: espaiado, maio, muié,
fiio.
Grupo 4: Os fonemas e suas alterações – Modificações Isoladas
DIALETO PADRÃO DIALETO CAIPIRA
4. MODIFICAÇÕES ISOLADAS
4.1 METÁTESE
Exemplos: preciso, pretende, procissão,
prateleira, agradecer, acreditar
perciso, pertende, purcissão, partelêra,
agardecê, aquerditá(r).
4.2 HIPÉRTESE
Exemplos: algodão, cadarço, chacoalhar,
lagarto
agordão, cardaço, chacoalhá(r), largato.
4.3 FORMAS PROCLÍTICAS
Exemplos: senhor; não nhô, seô, seu, siô, sô; num
Grupo 5: Os fonemas e suas alterações – Vogais
DIALETO PADRÃO DIALETO GERAL*
VOGAIS ÁTONAS
Exemplos: aquele, este; povo, digo
Na sílaba postônica dos vocábulos graves,
não há troca de e por i e nem de o por u,
como se observa em outras regiões do
país.
Então, para o e, temos: aquêli, êssi e para
o o: povu, digu.
* Segundo Amadeu Amaral, o fenômeno descrito acima ocorre em outras regiões, mas não no
interior de São Paulo, por este motivo nomeamos essa ocorrência de dialeto geral.
II – ASPECTOS MORFOLÓGICOS
1. GÊNERO
DIALETO PADRÃO DIALETO CAIPIRA
Exemplos: essas coisaradas bonitas, as
crianças estavam quietas, as criações
ficaram empestiadas.
O adjetivo e o particípio passado deixam,
freqüentemente, de sofrer a flexão de
gênero, principalmente se não estiverem
contíguos aos substantivos: essas coisarada
bunito, as criança távum quéto, as criação
ficárum pestiado.
2. NÚMERO
Exemplos: a. os alferes; dois homens; os
cavalos; os láticos.
O s como marca de plural desaparece nos
seguintes casos:
229
b. os ingleses, as pazes, às vezes, as cores
c. duas casas vendidas
d. Estas cartas não são as minhas.
a. nos vocábulos paroxítonos e
proparoxítonos: os alfére; dois home; os
cavalo; os lático
b. vem precedido de vogal a que se apóia:
os ingrêis, as páiz, às vêiz, as côr.
Regra: o s é mantido geralmente pelos
determinantes. Os adjetivos assim como os
substantivos perdem o s do plural: duas
casa vendida.
Quando os determinantes funcionam como
pronomes substantivos podem perder o s:
Estas carta não são as minha.
2.1 PRÓTESE
Exemplos: artigo definido plural os +
palavra inicial por vogal: vamos + embora
(nós vamos, ele foi embora); os + olhos.
bamo+zimbora (o s passa a ser integrante
da outra palavra) = nóis bamo, ele foi
zimbora;
zóio
3. FLEXÕES VERBAIS
3.1 PESSOAS
Exemplos: Tu não calas essa boca?; Tu
vais?
Só as formas da 1ª e 3ª pessoas são
empregadas de acordo com a norma culta.
A 2ª pessoa do singular, embora usada às
vezes, assimila-se às formas da 3ª: Tu num
cala essa boca?; Tu vai?
3.2 NÚMERO
Exemplos: nós vamos, nós fomos, nós
fazemos.
A 1ª pessoa do plural perde o s: nóis bamo,
nóis fomo, nóis fazêmo.
PRONOMES
Exemplo: você
Formas pronominais: a gente, u
n
a pessoa
(ambas correspondentes ao francês on) e
as variantes de você:
vacê, vancê, vassuncê,mecê, ocê.
230
APÊNDICE B - Tabela comparativa: Alex Marins e Miriam Marder Silva
Monteiro
A apresentação desta tabela deveu-se ao fato de a tradução de Alex Marins
apresentar um léxico e algumas construções voltados para o português de Portugal,
assim como pelo fato de haver acusações a Marin Claret de que algumas de suas
traduções são plágios. Os trechos escolhidos para a comparação entre a tradução de
Alex Marins e a tradução de Portugal são os mesmos das análise apresentadas nesta
pesquisa. Os excertos transcritos não provam que a tradução de As aventuras de
Huckleberry Finn da Martin Claret seja um plágio. No entanto, julgou-se necessária a
sua apresentação neste espaço apenas como um complemento a nossa análise anterior.
Tabela comparativa - Capítulo 1
Mark Twain Alex Marins Edição Europa-America
Miriam Marder Silva
Monteiro
The Widow Douglas she
took me for her son, and
allowed she would
sivilize me… [Huck] (p.
11)
A viúva Douglas adotou-
me como filho, e entendeu
que havia de civilizar-me.
[Huck] (p. 27)
A viúva Douglas adotou-me
como seu filho e disse que ia
civilizar-me... [Huck] (p. 5)
But Tom Sawyer he
hunted me up and said he
was going to start a band
of robbers… [Huck] (p.
11)
Mas Tom Sawyer foi
procurar-me, dizendo que
iria chefiar uma quadrilha
de ladrões... [Huck] (p. 28)
Mas Tom Sawyer descobriu-
me e disse que ia fundar uma
quadrilha de
bandidos...[Huck] (p. 5)
The stars was shining,
and the leaves rustled in
the woods ever so
mournful; and I heard an
owl, away off, who-
whooing about somebody
that was dead… [Huck]
(p. 13)
As estrelas brilhavam, e as
folhas rumorejavam nos
bosques com um sussurro
triste; ouvi um mocho, ao
longe, piando sobre o
túmulo de alguém que
morrera... [Huck] (p. 29)
As estrelas brilhavam e as
folhas sussurravam na floresta
solitária. Ouvi um mocho
piar, muito ao longe, em sinal
de luto por alguém que estava
para morrer. [Huck] (p. 7)
Well, after a long time I
heard the clock away off
in the town go boom –
boom – boom – twelve
Bem depois de bastante
tempo, ouvi um
campanário ao longe, na
cidade, bater bum! bum!
Passado muito tempo ouvi o
sino da vila – blom, blom,
doze pancadas… [Huck] (p.
7)
231
licks... [Huck] (p. 13) bum!, doze badaladas...
[Huck] (p. 30)
Directly I could just
barely hear a ‘me-yow!
me-yow!’ down there.
[Huck] (p. 14)
E prestando atenção, mal
pude ouvir um “Miau!
miau!” lá em baixo. [Huck]
(p. 30)
Não me mexi, mas escutei
atentamente. Quase não ouvi
o “miau, miau” proferido lá
em baixo. [Huck] (p. 7)
232
Tabela comparativa - Capítulo 2
Mark Twain Alex Marins Edição Europa-America
Miriam Marder Silva
Monteiro
When we was passing the
kitchen I fell over a root
and made a noise. [Huck]
(p. 14)
Quando íamos passando
perto da cozinha, tropecei
em uma raiz e fiz algum
barulho. [Huck] (p. 31)
Quando passávamos pela
cozinha, tropecei numa raiz,
fazendo assim um pequeno
ruído. [Huck] (p. 8)
‘Say – who is you? Whar
is you? Dog my cats ef I
didn’ hear sumf’n. Well, I
knows what I’s gwyne to
do. I’s gwyne to set down
here and listen tell I hears
it agin.’ [Jim] (p. 14)
- Quem está aí? Quem é
você? Onde está? Diabos
me levem, se não ouvi um
barulho. Bem, já sei o que
vou fazer; vou sentar-me
aqui e esperar até ouvi-lo
de novo. [Jim] (p. 32)
- Quem é? Onde estás?
Diabo se não ouvi qualquer
coisa. Mas sei o que preciso
fazer! Tenho de sentar-me
aqui e esperar até o ouvir de
novo. [Jim] (p. 8)
…, and rode him all over
the State, and then set him
under the trees again and
hung his hat on a limb to
show who done it. [Huck]
(p. 15)
...levando-o por todo o
Estado e trazendo-o de
novo para debaixo das
árvores do jardim, onde lhe
tinham pendurado o chapéu
em um ramo, só para
mostrar que haviam sido
elas que tinham feito
aquilo. [Huck] (p. 33)
...galoparam com ele por
todo o estado. Depois,
tinham-no posto de novo
debaixo da árvore e
pendurado o chapéu num
ramo, para assim ele saber
quem o fizera. [Huck] (p. 9)
Jim was most ruined, for a
servant, because he got so
stuck up on account of
having seen the devil and
been rode by witches.
[Huck] (p. 16)
Jim ficou muito estragado,
como criado, de tanto
contar que tinham visto o
diabo e que fora raptado
pelas bruxas. [Huck] (p.
33)
Jim já não servia para
criado, pois tornara-se muito
altivo, só por ter visto o
Diabo e ter sido utilizado
como cavalo pelas bruxas.
[Huck] (p. 9)
‘Stuff! Stealing cattle and
such things ain’t robbery,
it’s burglary,’ says Tom
Sawyer. ‘We ain’t
burglars. That ain’t no sort
of style. [Tom] (p. 18)
- Idiotice! Roubar gado e
outras coisas assim, não é
assaltar, é simples
ladroagem – exclamou
Tom Sawyer. Nós não
somos larápios. Isso não
tem graça nenhuma. [Tom]
(p. 35)
- Tolice! Roubar gado e
coisas semelhantes não é
saque, é roubo. Nós não
somos ladrões! Isso não é o
nosso estilo. [Tom] (p. 11)
233
Tabela Comparativa - Capítulo 8
Mark Twain Alex Marins Edição Europa-America
Miriam Marder Silva
Monteiro
So we went over to where
the canoe was, and while
he built a fire in a grassy
open place amongst the
trees, I fetched meal and
bacon and coffee, and
coffee-pot and frying-pan,
and sugar and tin cups, and
the nigger was set back
considerable, because he
reckoned it was all done
with witchcraft. [Huck] (p.
49)
Fomos para o lugar onde eu
deixara a canoa, e enquanto
Jim preparava a fogueira
em uma clareira tapetada
de relva, entre as árvores,
eu trouxe a farinha, o
toucinho, o café, o bule, a
frigideira, o açúcar, e as
canecas de estanho, e o
negro ficou muito
assombrado, porque julgou
que eu fazia aquilo tudo por
artes mágicas. [Huck] (p.
77)
Fomos então para onde
estava a canoa e, enquanto
ele preparava uma fogueira
numa clareira de relva,
entre as árvores, eu trouxe a
farinha, o toucinho, o café e
a cafeteira, a frigideira, o
açúcar e as canecas. O preto
ficou muito admirado
porque pensava que tudo
era feito por encantamento.
[Huck] (p. 39)
‘But looky here, Huck,
who wuz it dat ‘uz killed in
dat shanty, ef it warn’t
you?’ [Jim] (p. 49)
- Mas escuta aqui, Huck,
quem foi assassinado
naquela cabana, se não
foste tu? [Jim] (p. 77)
- Mas olha lá, Huck, quem
foi que tinha sido morto lá
na cabana, se não foste tu?
[Jim] (p. 40)
‘Well, fust I tackled stock.’
[Jim] (p. 53)
- Primeiro dediquei-me a
gado. [Jim] (p. 81)
- Bem, primeiro tentei
mercadorias. [Jim] (p. 43)
‘No, I didn’ lose it all. I
on’y los’ ‘bout nine of it. I
sole de hide en taller for a
dollar en ten cents.’ [Jim]
(p. 53)
- Não. Não perdi tudo. Só
perdi nove. Vendi o couro e
o sebo por um dólar e dez
cêntimos. [Jim] (p. 81)
- Não, não os perdi todos.
Apenas nove. Vendi a pele
e o resto por um dólar e dez
cêntimos. [Jim] (p. 43)
‘Yes. You know dat one-
laigged nigger dat b’longs
to old Misto Bradish?
Well, he sot up a bank, em
say anybody dat put in a
dollar would git fo’ dollars
mo’ at de en’ er de year.
Well, all de niggers went
in, but dey didn’t have
much. I wuz de one dat had
much. So I stuck out for
mo’ dan fo’ dollars, en I
said ‘f I didn’ git it I’d start
a bank myself. Well, o’
course dat nigger warn’ to
keep me out er de business,
bekase he say dey warn’t
business ‘nough for two
banks, so he say I could
put it in my five dollars en
- Especulei sim. Tu
conheces aquele negro com
uma perna só, que pertence
a sinhazinha Bradish? Bem,
ele abriu um banco e disse
que quem botasse um dólar
no banco receberia quatro
dólares mais no fim do ano.
Todos os negros quiseram
experimentar, mas pouco
dinheiro tinham. Eu era o
único que tinha muito. Eu
queria empregar quatro
dólares, e disse que se não
os recebesse, eu próprio iria
abrir um banco.
Naturalmente o negro quis
que eu ficasse fora do
negócio. Porque me disse
que não havia bastantes
- Sim. Conheces aquele
preto só com uma perna que
pertence ao velho Sr.
Bradish? Bem, ele abriu um
banco e disse que qualquer
pessoa que depositasse um
dólar receberia mais quatro
dólares no fim do ano.
Pronto, todos os pretos
depositaram, mas eles não
tinham muito. Era o único
que tinha muito. Por isso
mesmo queria receber mais
do que quatro dólares e
disse que se não recebesse
abriria eu próprio um
banco. Claro que o preto
queria manter-me fora do
negócio, porque dizia que
não havia suficientes
234
he pay me thirty-five at de
en’ er de year. [Jim] (p. 53)
negócios para dois bancos,
de modo que era melhor eu
entregar-lhe os meus cinco
dólares e receber trinta e
cinco no fim do ano. [Jim]
(p. 81)
transacções para dois
bancos. Disse-me que podia
depositar os meus cinco
dólares e que me pagaria
trinta e cinco no fim do ano.
[Jim] (p. 43)
235
Tabela comparativa - Capítulo 14
Mark Twain Alex Marins Edição Europa-America
Miriam Marder Silva
Monteiro
‘Po’ kittle chap.’ [Jim] (p.
83)
- Coitadinho do menino! –
exclamou Jim. [Jim] (p.
122)
- Pobrezinho, coitado. [Jim]
(p. 71)
‘Dat’s good! But he’ll be
pooty lonesome – dey ain’
no kings here, is dey,
Huck?’[Jim] (p. 83)
- Assim é melhor! Mas o
coitadinho devia sentir-se
muito solitário... Não há
reis na América, pois não,
Huck? [Jim] (p. 122)
- Isso é que era bom! Mas
vai sentir-se muito só; aqui
não há reis, pois não, Huck.
[Jim] (p. 71)
‘I don’t know; but it’s so. I
got some of their jabber out
of a book. S’pose a man
was to come to you and say
Polly-voo-franzy – what
would you think? [Huck] (p.
83)
- Não sei. Mas é assim
mesmo. Eu já vi um pouco
do linguajar deles em um
livro. Imagina que um
homem chegasse junto de
ti e te dissesse; “Parlé vu
francé?”, o que é que tu
pensarias? [Huck] (p. 122)
- Não sei porquê, mas é
assim. Sei alguma coisa da
língua deles, de um livro.
Imagina um homem que te
dizia: Parlez-vous
français?; que pensarias?
[Huck] (p. 71)
‘Why, he is a-saying it.
That’s a Frenchman’s way
of saying it.’ [Huck] (p. 83)
- Mas dizem! É a maneira
francesa de dizê-lo. [Huck]
(p. 123)
- Mas ele di-lo. É uma
maneira de os Franceses o
dizerem. [Huck] (p. 71)
236
Tabela comparativa - Capítulo 38
Mark Twain Alex Marins Edição Europa-America
Miriam Marder Silva
Monteiro
‘…Why, Huck, s’pose it is
considerble trouble? – what
are you going to do? – how
you going to get around it?
Jim’s got to do his
inscription and coat of
arms. They all do. [Tom]
(p. 248-249)
- …Ora essa, Huck! Mesmo
que seja difícil, que
haveremos de fazer? Como
poderemos contornar a
dificuldade? Jim “tem” de
fazer a inscrição e o brasão
de armas. Todos eles o
fazem. [Tom] (p. 323)
- Oh, Huck, supondo que
seja mesmo muito
trabalhoso! Que vais fazer?
Como vais excusar-te de o
fazer? Jim tem de fazer a
sua inscrição e o seu
brasão. Todos o fazem.
[Tom] (p. 220)
‘Why, Mars Tom, I hain’t
got no coat o’ arms: I hain’t
got nuffn but dish-yer ole
shirt, en you knows I got to
keep de journal on dat.’
[Jim] (p. 249)
- Mas, sinhô Tom – disse
Jim -, eu não tenho nenhum
brasão de armas; não tenho
senão esta camisa velha, e
bem sabe que eu tenho de
escrever nela o meu diário.
[Jim] (p. 323)
- Mas, Sr. Tom, não tenho
um brasão; não tenho nada
a não ser esta camisa velha,
e você sabe que tenho de
fazer o diária nela. [Jim]
(p. 220)
‘I reckon I knowed that’,
Tom says, ‘but you bet
he’ll have one before he
goes out of this -… [Tom]
(p. 249)
- Eu já sabia disso –
respondeu Tom -, mas
podes estar certo que terá
um, antes de sair daqui...
[Tom] (p. 324)
- Acho que já sabia isso –
disse Tom –, mas aposto
contigo em como vai ter
um antes de sair daqui...
[Tom] (p. 221)
By-and-by he said he’d
struck so many good ones
he didn’t hardly know
which to take… [Huck] (p.
249)
Afinal, disse que já
imaginara tantos que nem
sabia qual escolher...
[Huck] (p. 324)
Finalmente disse que tinha
imaginado tantos bons que
quase não sabia qual
realizar. [Huck] (p. 221)
‘We ain’t got no time to
bother over that’, he says,
‘we got to dig in like all
git-out.’ [Tom] (p. 249)
- Não temos tempo para
explicações – respondeu ele
-. Precisamos andar com
isso para diante. [Tom] (p.
324)
- Não temos tempo para
nos preocupar com isso –
disse ele –, temos de
arranhá-lo a toda a pressa.
[Tom] (p. 221)
237
APÊNDICE C - Tabela dos dialetos mais comuns usados por Huck, Jim e
Tom.
Este apêndice foi incluído apenas como um exemplo das muitas seleções feitas
de falas não-padrão das personagens, com o intuito de saber a direção a ser tomada em
português.
Huck e os dialetos em inglês
Capítulo 1 p.11 ... but that ain’t no matter.
There was things …
I never seen anybody
Tom’s Aunt Polly, she is …
The widow she cried …
I couldn’t stand it no longer
Though there warn’t really
She would sivilize me
I lit out
p.12 All I wanted was to go somewheres
Here she was a-bothering
Because she done it herself
She let it out
p.13 I set down…
I couldn’t make out …
By-and-by
… but she meant no harm …
Capítulo 2 p.14 We could a touched him …
I dasn’t scratch it;…
…if you are anywheres …
p.15 I couldn’t stand it more’n a minute…
Tom wanted to resk it.
I was in a sweat
p.16 Niggers is always talking
Where you wouldn’t a noticed …
Capítulo 8 p.43 … and ruther comfortable
p.44 I rouses up and rests…
I hears it again …
I knowed what was …
…, but it don’t work for me,…
p.45 If they’d a had …
And was giving it up
p.47 I’m agoing to find out
p.48 I catched a glimpse…
238
p.49 Strawberries and such truck,…
p.50 Ablitionist
Capítulo 14 p.80 …he didn’t want no more…
…seegars…
p.81 …,’stead of mister
Sh! – d’you hear a noise?
…with the parlyment…
p.82 …because the widow she told me so …
p.83 … that would a been a king …
S’pose a man was …
Looky here, Jim
…jabber out…
p.84 It’s natural right for’em
Capítulo 38 p.248 …was a distressid-tough
…there warn’t no case of…
Jim a-making his’n out of …
Jim e os dialetos em inglês
Capítulo 2 p.14 Who dash?
Who is you
Whar is you?
Dog my cats ef I didn’t
Hear sumf’n
I knows what …
I’s gwyne to do …
… tell I hears it agin.
…set down here
Capítulo 8 p.48 Doan’ hurt me..
I hain’t ever …
To a ghos’…
I awluz liked …
…all I could for’em
…en git in de river agin…
Whah you b’longs
‘nuffn
‘at ‘uz yo’ fren’
What’s de use er makin’up
p.49 Strawbries en sich truck
We kin git sumf’n
Git nuffn’else
I come heah de night arter you’s killed
No, sah – nuff’ else.
I could eat a hoss.
…you ben on de islan’?
Dat’s good.
…you kill sumfn’ en…
But looky here, Huck
…who wuz it dat’uz killed in dat shanty,…
239
Ef it warn’t you?
p.50 Well, dey’s reasons.
Well, I b’lieve you
Everybody to go’ way…
Well, I wuz dah all night
Dey wuz…
Roun’ all de time
Dey started acrost, so by de talk …
But I ain’t no mo’, now
… en treats me pooty rough…
… noticed by wuz a nigger…
Considable, lately.
To git oneasy
I creeps to de do’…
She could git eight hund’d …
p.51 ..er de islan’ b’fo’…
How you gwyne to git’m?
…bekase I knowed ole missus
…so dey wouldn’ ’spec…
Kase dey’d
I kep’ on tryin’
I see a light a-comin’ roun’ de p’int, …
I see it warn’t no use …
p.52 You’s got to be po’…
A long time fust,…
p.53 Bustled out
To resk no mo’
On my han’s
So dey didn’ none uv us git no money
Dream tole me…
p.54 Nuffn’
Eigth hund’d dollars
I wisht
Capítulo 14 p.81 I didn’t know dey was so many un um.
…onless you counts dem
…a pack er k’yards
…what dey go..
‘roun’ de which?
A harem’s a bo’d’n-house
I reck’n
Mos’ likely dey has …
…en dat ‘crease de racket.
Yit dey say...
p.82 No – ‘deed he wouldn’t
I doan’ k’yer what de widder...
…he warn’t no wise man, nuther.
‘bout dat chile dat…
240
…heah’s you – dat’s de yuther
Bofe un you claims it
What does I do?
…can’t buy noth’n wid it
…’bout yo’ pints.
De ‘spute warn’t ‘bout
He can’t ‘ford it
He know how to value’em
…en it’s diffunt
p.83 What he gwyne to do?
French people talk de same way we does.
I wouldn’ think nuff’n
I wouldn’ ‘low no nigger
Well, it’s a blame’ ridicklous way
No, a cat don’t.
- dey ain’ no kings here, is dey, Huck?
p.84 Why, mos’ sholy it is.
Capítulo 38 p.249 Why, Mars Tom, …
p.251 No, sah, thanks to goodness…
p.252 …in my mouf-fer a favour…
…wait a pow’ful long time ‘fo’ I
I doan’ want no sich glory
‘at ain’t onreasonable
p.253 …creturs to ‘sturb a …
…but doan’ gimme no rats.
Tom e os dialetos em inglês
Capítulo 2 p.17 Well, hain’t he got a father?...
p.18 … such things ain’t robbery, …
But per’aps if …
… that the people that made the books knows …
Muddled up
... you can lear’em anything?
By-and-by
Capítulo 38 p.248 Why, Huck, s’pose it is considerble trouble?
p.249 I reckon I knowed that …
.. and there ain’t going to be no flaws in …
We got to dig in like all git-out
p.250 … the logs ain’t agoing to do
p.251 You got anything to play music on?
…quicker’n anything else, …
Some other prisoners had done it.
p.253 … care what kind of music’tis.
241
ANEXOS
ANEXO A – Figuras
Figura 1: A primeira imagem de Huckleberry Finn
Figura 2: O desenho escolhido por Mark Twain para representar Huck
Figura 3: A capa da 1ª edição norte-americana de Huckleberry de 1885
Figura 4: Jim e os dois meninos
Figura 5: Huck fumando
ANEXO B - Notícias a respeito da Martin Claret e do tradutor Alex Marins
ANEXO C - Tabelas de Lisa Cohen Minnick das características lingüísticas de Jim
242
ANEXO A - Figuras
Figura 1: A primeira figura de Huck aparece em The Adventures of Tom Sawyer (1876),
em que ele segura um gato pelo rabo.
243
Figura 2. Desenho de Huck escolhido por Mark Twain. Huck segura um coelho pelo
rabo e não um gato como visto anteriormente. Esta figura aparece na 1ª edição norte-
americana de 1885.
244
Figura 3. Capa da 1ª edição norte-americana de The Adventures of Huckleberry Finn de
1885.
245
Figura 4. Jim e os dois meninos.
Figura 5. Huck fumando seu cachimbo, o que foi considerado um mau exemplo para os
adolescentes.
246
ANEXO B - Notícias a respeito da Martin Claret e do tradutor Alex Marins
1. <http://www.vassil.com.br/blog.php?id=73>. Acesso em 01 de set. 2008
Blog do Vassil
05/11/07 - Segunda-feira
O plágio da Martin Claret
postado na categoria
Sou testemunha. Não é de hoje que o jornalista Euler de França Belém, editor do Jornal
Opção, chama a atenção para plágios de tradução feitos pela editora Marin Claret. Neste
domingo (04.11.07), a Folha de S. Paulo traz ampla reportagem sobre o assunto. E
crédito a Euler:
Coincidência impossível - "A República", de Platão (428/27 a.C. - 347 a.C.), saiu neste
ano pela Martin Claret com tradução assinada por Pietro Nassetti. O repórter Euler de
França Belém mostrou na edição de 14 de outubro do jornal "Opção", de Goiânia, que
o texto é uma "adaptação" -com mudanças de palavras para ficar mais "acessível"- da
tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, uma das maiores especialistas
portuguesas em Grécia Antiga. A Folha confrontou os dois livros e comprovou que as
diferenças são insignificantes, coincidência impossível no caso de uma tradução tão
complexa. O livro da Fundação Calouste Gulbenkian foi lançado em Portugal em 1972
e está na 10ª edição.
2. <http://ciscocosta.com/filisteu/?p=2242>. Acesso em 01.set.2008
Martin Claret
Quem presta um pouco de atenção no mercado editorial não se surpreendeu muito ao ler
que a Martin Claret plagiou traduções de clássicos ($):
Em negociação para ter 75% de suas ações compradas pela Objetiva, braço brasileiro do
poderoso grupo espanhol Santillana/Prisa, a Martin Claret é uma editora que já plagiou
traduções. Os nomes dos verdadeiros tradutores foram omitidos e seus direitos,
violados.
Criada nos anos 70, em São Paulo, pelo gaúcho Martin Claret, a empresa tem em seu
catálogo cerca de 500 títulos de domínio público (de escritores mortos há mais de 70
anos) publicados em formato de bolso (preços de R$ 10,50 a R$ 18,90). Quatro casos de
247
plágio estão confirmados: edições de “Os Irmãos Karamazov”, “A República”, “As
Flores do Mal” e de três novelas de Franz Kafka reunidas num único volume-”A
Metamorfose”, “Um Artista da Fome” e “Carta a Meu Pai”.
Lançada em 2003, a edição de “Os Irmãos Karamazov”, de Fiodor Dostoievski (1821-
1881), tem como tradutor um certo Alexandre Boris Popov, que não consta entre os
poucos nomes que costumam passar obras do russo para o português. Na verdade, é
cópia da tradução concluída em 1944 por Boris Schnaiderman para a extinta editora
Vecchi. (…)
Suspeita-se que muitos outros livros da Martin Claret usem traduções plagiadas, já que
poucos e desconhecidos nomes -como ‘Alex Marins’ e Jean Melville- assinam um arco
eclético de títulos. [grifo nosso]
Pietro Nassetti teria traduzido Shakespeare, Maquiavel, Descartes, Rousseau, Voltaire,
Schopenhauer, Balzac, Poe e outros.
“Se esse cara trabalhasse 24 horas por dia durante 60 anos, não traduziria nem a décima
parte disso”, afirma o especialista Ivo Barroso.
7 comentários em “Martin Claret”
1. Picaretagem editorial « De Gustibus Non Est Disputandum:
November 5th, 2007 às 17:02 pm
[…] Novembro 5, 2007 Posted by claudio in economia política da corrupção,
plágio. trackback Coisas que deixam um brasileiro triste. “Sou brasileiro, não
desisto nunca”. Eis apropaganda que veicularam há algum tempo. Aplica-se a
boa parte dos políticos envolvidos no “mensalão” (lembra dele?) como também
aos que se esforçam para que esta selva seja menos selvagem. […]
2. Ed:
November 6th, 2007 às 17:17 pm
Nunca fui muito com a cara da Martin Claret; acho que são edições meio porcas.
Realmente não é de se espantar.
3. helder:
November 8th, 2007 às 14:38 pm
Roubalheira por todo lugar. Já não me espanto com nada.
4. denise bottmann:
December 23rd, 2007 às 10:48 am
tentando reagir.
por favor, visitem e se possível divulguem:
http://assinado-tradutores.blogspot.com
248
obg,
denise bottmann
5. Filisteu » Blog Archive » Martin Claret: bad publisher, very bad. No cookie for
you.:
December 27th, 2007 às 22:08 pm
[…] Para quem lembra do caso de plágio da Martin Claret sobre o qual postei
em novembro, e se interessa pelo assunto, sugiro que visite http://assinado-
tradutores.blogspot.com/. E que não compre livros da Martin Claret. […]
6. denise bottmann:
May 17th, 2008 às 21:02 pm
Indico a leitura do seguinte texto publicado no Globo Online:
A primeira tradução de Machado de Assis para… o português
(http://www.oglobo.com.br/blogs/prosa/post.asp?cod_post=102805)
7. robert:
July 28th, 2008 às 12:25 pm
Sempre li os livros da editora Martin Claret e apesar do plagio, adoro lê-los!
3. <http://assinado-tradutores.blogspot.com/2008/07/piau-iii-martin-claret.html>.
Acesso em 15. set.2008
Quarta-feira, 23 de Julho de 2008
www.esl.-lesson-plan.com
no pega-pega da arte da guerra, vamos deixar o jardim dos livros para depois, e pular
direto para a martin claret.
aí é sempre mais do mesmo. e adam sun tem pleno conhecimento do mar de lama em
que ela chafurda.
"nos domínios da claret, aparentemente a desatenção com o alheio é método", pietro
nassetti - "sim, sim", "sim, ele mesmo" - é "o erudito", "o azougue", o prestimoso e
prolífico parceiro do "octogenário Claret... habituado à perene ligeireza". já fazem parte
249
do folclore da abjeção.
mas, indo aos fatos: a arte da guerra publicada pela martin claret, avisa-nos adam sun,
é uma apropriação da versão portuguesa de ricardo iglésias, a partir do inglês, na
tradução de samuel b. griffith. a cópia foi assinada pelo indefectível nassetti. e, como
sempre, o sr. claret afirma que corrigirá "esse erro", lançará uma nova tradução "e está
tudo resolvido". simples como isso.
e alerta o articulista: talvez claret "mantenha em catálogo, distraidamente, toda uma
coleção de vítimas de apropriação indébita". como são mais de 300 traduções sob
suspeita, várias delas já comprovados casos de plágio, e como a santillana-prisa
(objetiva) pelo jeito desistiu de bancar o abacaxi que seria comprar a martin claret, sabe-
se lá como ficarão as coisas.
com tanta desmoralização assim, de tudo o que diz respeito ao objeto "livro" - a obra, o
autor, o tradutor, o revisor, o capista, o editor, o proprietário, o livreiro, as associações
de classe dos editores, as associações de classe dos livreiros, o leitor, as escolas, as
bibliotecas, tudo, tudo enlameado, uns com sua delinqüência, outros com sua
conivência, outros com o desrespeito e danos sofridos, a sociedade como um todo
vítima de um ultraje sem igual na história cultural do país -, eu não estranharia se algum
dia a casa caísse.
4. <http://www.amigosdolivro.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=5018>
Acesso em 25. ago. 2008
Pseudotraduções por Saulo Krieger
Não posso dizer que o li com satisfação, pois se trata de um crime, que eu testemunhei e
comuniquei, na época, a possíveis interessados, isto é, a partes lesadas, que não se
prontificaram a tomar nenhuma providência.
Agora, de algum modo me senti compensado ao deparar com a matéria de ontem,
domingo, nesta Folha, apontando, denunciando, uma série de crimes contra direitos
autorais de, como dizer, "pseudotraduções" lançadas às dezenas ou centenas pela
Editora Martin Claret.
Nos idos de 2000 ou 2001, ao oferecer meus serviços como profissional da tradução na
referida editora, fui tomado de uma desconfiança ante seus procedimentos — livros sem
autores (os tais “livros-clipping”) traduções sem tradutores ou um mesmo nome para
uma gama inabarcável de títulos e gêneros. Aos poucos, foi-me revelado como todo o
processo de falsificações funcionava: para meu espanto, veio a se confirmar que quase
nenhuma tradução da Martin Claret era efetivamente realizada, nem mesmo seus
direitos autorais adquiridos.
Eventualmente se aproveitava alguma tradução que já estava em domínio público, ou,
250
ao que me parece, foram comprados os direitos autorais da tradução de Torrieri
Guimarães de uma obra de Kafka. Mas isso era exceção. Outra exceção: a tradução da
obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber, foi feita pelo Sr.
Pietro Nasseti, mas as inúmeras notas de rodapé nela constantes foram surrupiadas de
outra edição havia muito existente no mercado — o nome da editora eu não me recordo
—, tanto que até erros constantes na referida tradução, e reconhecidos por estudiosos da
obra, foram reproduzidos na edição da Martin Claret.
O que se fazia, como próprio Sr. Claret paulatinamente veio a me pôr a par, era um
"mix" ou “enjambramento”, ou seja lá o nome que tal ato de pirataria leve, de algumas
edições já existentes, em geral duas ou três. Ou do que viesse na cabeça do profissional
que faria o que ele chamava de "copidesque" — qualquer pessoa com trânsito na área
editorial sabe que "copidesque" não era aquilo a que ele se referia, termo que servia,
pois, como um eufemismo para um procedimento desonesto que teria o nobilíssimo
intuito de divulgar a produção cultural, mais precisamente obras clássicas, a preços
populares.
Uma vez que o Sr. Claret achava ou acha que uma tradução é algo muito difícil e
custoso de fazer — e efetivamente o é —, que só pode traduzir do idioma X um nativo
do idioma X —, o que absolutamente não é verdade, até pelo contrário, em alguns casos
—, e em nome do seu propósito de lançar o maior número de títulos no mercado em
tempo recorde — os originais estavam em domínio público (70 anos a contar da data da
morte do autor), mas as traduções quase sempre não — e fazer coleções com 100, 300
títulos ou mais, sem nenhum critério que eu reconheça como propriamente editorial, era
o caso de o “revisor-copidesque” se munir de uma tradução lançada, por exemplo, por
uma editora como a Martins Fontes — apenas um exemplo —, por outra de uma editora
que já fechara as portas — "já faliu há muito, muito tempo", como o Sr. Claret, um
verdadeiro "rato de sebos", tinha especial prazer em dizer — ou por uma terceira
tradução, de editora portuguesa, como as Edições Setenta — o Sr. Claret gostava muito
das portuguesas, porque estavam do outro lado do oceano e porque em todo o caso se
teria de adaptar o português de Portugal aqui e ali — para se ter o que seria a "tradução"
da Martin Claret.
Essas edições eram fornecidas pela própria Martin Claret, que tinha todo um acervo
delas — uma extensa biblioteca, que só não contava com livros em seus idiomas de
origem, se este não fosse o português. Traduções, as verdadeiras, de outros, eram
escaneadas — havia um "departamento" que o fazia, como em linha de produção —
para então receberem uma ligeira maquiagem.
Para mascarar o processo, a editora ou se mostrava muito reticente em dizer nomes de
autores, optando por "equipe de tradutores da Martin Claret" — mas esta opção logo foi
rejeitada pelos clientes-livreiros —, ou usava, com o consentimento deste, o nome do
Sr. Pietro Nasseti, um senhor, dentista no exercício da profissão de dentista, muito
amigo do Sr. Claret, ou ainda simplesmente eram inventados nomes "estrangeirados"
que podiam dar a aparência de tradutores confiáveis e autorizados. Por exemplo: "Jean
Melville". "Jean" é o nome do filho do Sr. Claret; Melville, todos sabem, o sobrenome
do autor de Moby Dick, esta uma obra editada pela editora, que portanto estava na
ordem do dia. "Popov" deve lhes ter ocorrido pelo seu desempenho nas piscinas, e daí
transferi-lo para as letras foi um pequeno passo; "Alex Marins"? Outra invencionice do
gênero.
251
Certa vez o Sr. Claret chegou a me "pedir emprestado" o meu nome, "Saulo Krieger",
para usá-lo como cover de tradutor de uma obra de Nietzsche — a qual passara pelo
mesmo processo — que eu não traduzira, pois, até por não me sentir capacitado a fazê-
lo, mesmo sendo eu tradutor do alemão, e da qual eu não poderia nem ver o resultado —
vergonhoso, diga-se — antes de ser lançada no mercado editorial. Constrangidamente
eu recusei, e acho que nem é o caso de enumerar os meus tantos motivos.
Mesmo assim, por desonestidade ou por desorganização da editora, acho que meu nome
pode, eventualmente, constar em edições que jamais passaram pelo meu crivo, nem
como revisor de textos, e muito menos como tradutor — o ofício de tradutor inexiste em
se tratando de Martin Claret. O Sr. Claret não respeitava nem as traduções alheias nem o
tempo de seus colaboradores-revisores, sempre solicitando, aqui e ali, um serviço
gratuito, para que "se colaborasse com a editora". Quanto aos tradutores-fantasmas,
querem mais alguma prova? Quem é Jean Melville? Quem é Alex Marins? Quem é o tal
“Popov”, não o nadador, mas pessoa que algum dia teve trânsito no mundo das letras?
Ora, se puserem, por exemplo, o meu nome, “Saulo Krieger”, no Google, verão
milhares de ocorrências, que remetem ou a meus trabalhos como tradutor, ou como
escritor em certa medida difundido na net.
Saliento ainda, que, no serviço, tal como era solicitado — e chegou a ser chamado pelo
Sr. Claret de "picaretagem ética" — a questão não era exatamente a de trocar termos
"rebuscados" por "fáceis", “antigos” por “atualizados” — embora isso fatalmente viesse
a acontecer — mas sim por... "sinônimos" — na literatura, como na filosofia, sabemos,
sinônimos não são exatamente "sinônimos", e tudo depende do modo ou contexto como
um termo ou expressão foi usada (nada disso importa para Martin Claret) — ou então,
outro expediente de sua predileção, cortar parágrafos, e abri-los, sem qualquer critério
não fosse o de "escamotear", onde não existiam em outra tradução. Solicitava-se alterar
sobretudo inícios e finais de parágrafos, para que "não desse na vista". O miolo, bem,
este poderia bem passar com muitas semelhanças, normalmente mais do que
improváveis entre uma e outra tradução.
Em obras como as de Machado de Assis, Castro Alves, Eça de Queiroz, José de
Alencar, por motivos óbvios, não se procedia a qualquer irregularidade ou
desonestidade.
Dali para diante, passei a comunicar a outras pessoas do meu círculo ou mesmo do meio
editorial — como fiz, contando o ocorrido à Martins Fontes — sobre como as coisas
aconteciam naquela casa editorial. Editores me agradeceram, dizendo, porém, que não
havia nada que se pudesse fazer a respeito.
Tudo isso revelo agora porque, de lá para cá, minha indignação só fez crescer ante tais
procedimentos — e à indiferença do mercado editorial à revelação dos "estratagemas"
— e porque, afinal, lá estive oferecendo meu trabalho como tradutor — do inglês, do
francês e do alemão — e não como profissional adepto de "picaretagem ética" em nome
de uma democratização da produção cultural que se fazia e se faz por vias torpes e
tortas.
252
Autorizo plenamente a publicação desta denúncia, que não é anônima, fico satisfeito em
poder desvelar a farsa, revelar minha experiência e externar minha indignação.
5. <http://www.brasilquele.com.br/texto_ler.php?id=2785&secao=6>
MUITO EM COMUM
Livros têm páginas idênticas e mesmos erros
Para especialistas, fraude é única explicação possível; nomes de supostos tradutores
podem ter sido inventados
A coordenadora editorial da coleção Obras Primas era Janice Florido, hoje na Ediouro.
Ela diz que não se lembra quem era o encarregado de negociar os direitos de tradução.
O editor da coleção, Eliel Silveira Cunha, hoje na Miro Editorial, diz que nunca lidou
com isso, nem sabia quem era o responsável. A outra editora, Fernanda Cardoso, não foi
localizada pelo GLOBO.
No entanto, e apesar do que sugere a resposta da Nova Cultural, as trocas nos créditos
das traduções são anteriores à coleção, afirma Denise Bottman. Começaram a acontecer
em 1995, sete anos antes de ela ser lançada. Na época, a Abril Cultural já tinha deixado
de existir e os livros eram editados pela Nova Cultural, parte do grupo CLC, controlado
por Richard Civita (ele e seu irmão, Roberto, dividiram a herança editorial deixada pelo
pai dos dois, Victor).
Os primeiros títulos afetados, apontam as comparações, foram “Suave é a noite”, de F.
Scott Fitzgerald; “A mulher de trinta anos”, de Balzac; “O retrato de Dorian Gray”, de
Oscar Wilde; “Ana Karênina”, de Tolstói; e “Os irmãos Karamazóvi”, de Dostoiévski.
Como nas outras trocas de crédito, nomes de intelectuais importantes foram substituídos
pelos de pessoas desconhecidas: Lígia Junqueira por Enrico Corvisieri; José Maria
Machado pelo mesmo Enrico Corvisieri, depois substituído em 2002 por Gisele Donat
Soares; Oscar Mendes por Maria Cristina F. da Silva; João Gaspar Simões por Mirtes
Ugeda Coscodai; Natália Nunes e Oscar Mendes por (mais uma vez) Enrico Corvisieri.
Pequenas alterações em alguns trechos
Em alguns casos, como em “O retrato de Dorian Gray”, até os erros das traduções
anteriores são reproduzidos. “Suit of armor”, ou “um jogo completo de armadura”, foi
traduzido por Oscar Mendes por “coleção de armaduras”. Em outro exemplo, “exquisite
life” vira “vida estranha”, quando o correto seria bela, maravilhosa, refinada. Ambos
equívocos, entre outros, são repetidos na tradução atribuída a Maria Cristina F. da Silva.
— O que foi feito é uma apropriação indébita, é quase o equivalente a roubar uma
sepultura. O mais chocante é que não foi uma coisa ocasional, era uma política editorial
— diz Jorio Dauster, tradutor de Vladimir Nabokov e J.D. Salinger, entre outros.
Os cotejos mostram páginas e páginas com textos idênticos, às vezes com troca de
algumas palavras por sinônimos, como é o caso do trecho de “A mulher de trinta anos”,
de Balzac, reproduzido na primeira página deste caderno. A possibilidade de que
253
tradutores diferentes cheguem a soluções idênticas com tanta freqüência é descartada
por profissionais da área como Ivo Barroso:
— São casos incontestáveis, com repetições extensas demais para serem coincidências.
Na poesia isso é especialmente claro, porque há questões como a escolha do adjetivo, da
colocação do verbo, do ritmo, da sinonímia, que já tornam difícil que dois tradutores
traduzam dois versos seguidos da mesma forma. Quando você encontra então 160
versos iguais, não tem como não ter certeza. O que fizeram é insuportável: apagaram os
nomes de tradutores com uma história, uma identidade tradutória, para botar no lugar os
de uns quaisquer.
Pessoas desconhecidas no meio literário, Enrico Corvisieri, Leonardo Codignoto, Vera
M. Renoldi, Fábio M. Alberti e outros supostos autores das traduções da Nova Cultural
são elogiados em páginas da internet pela qualidade do seu trabalho. Quem quiser
transmitir os cumprimentos diretamente a eles, porém, terá dificuldades. Buscas na
internet mostram apenas referências às traduções, e os nomes não constam da lista
telefônica.
Ainda mais intrigante é a identidade por trás de Calvin Carruthers, creditado como
tradutor de “A metamorfose”, de Franz Kafka. Calvin Carruthers é o nome de um
personagem representado por Vic Tayback no filme “Horror, blood and lace”. O último
filme em que Tayback atuou foi “Horseplayer”, de Kurt Voss, no qual ele representou
um personagem chamado Gregor Samsa — nome do protagonista de “A metamorfose”.
Não há nenhum cotejo, porém, que indique se essa tradução é um plágio, ou se
Carruthers foi apenas um pseudônimo escolhido por um tradutor real.
Nos últimos anos, a editora Martin Claret também foi alvo de denúncias de plágio. Seu
catálogo, composto principalmente por obras em domínio público, atribui a Pietro
Nassetti traduções de Marx, Descartes, Rousseau, Nietzsche, Weber, Shakespeare,
Kafka, Platão, Maupassant, Doistoiévski, Goethe, Baudelaire, Sun-Tzu, Aristóteles,
Durkheim, Schopenhauer, Ovídio, Maquiavel, Eurípides, Esopo e Voltaire, entre outros.
A Objetiva está negociando a compra de parte da editora.
254
ANEXO C - Tabelas de Lisa Cohen Minnick das características lingüísticas de
Jim.
As tabelas apresentadas a seguir são de autoria de Lisa Cohen Minnick, e
encontram-se em seu livro intitulado Dialect and Dichotomy: Literary Representations
of African American Speech (2004). A tradução delas surgiu para auxiliar a construção
do dialeto de Jim em português. Assim, julgou ser necessário traduzir as tabelas e deixá-
las inseridas no anexo, como exemplos da pesquisa de Minnick.
I – Jim: tabelas com características fonológicas
Tabela 1 Vocalização de posvocálica /r/
Exemplos da fala de Jim (números) Não-ocorrência de características
(número)
asho’ (1), bo’d’nhouse (1), coase (1), fo’
(0), heah (13), mo’ (22), sho (4), sholy
(2), skasely (3)
ashore (0), boardinghouse (0), coarse (0),
course (2), for (28), fer (4), f’r (3), hear
(8), here (8), more (2), shore (1), sure (0),
surely(0), scarcely (0)
Total = 47 (46%*) Total = 56 (54%*)
* não significativo
Tabela 2 Perda do /r/ após consoante
Exemplos da fala de Jim (números) Não-ocorrência de características
(número)
fum (1), hun’d (4), pooty (7), too (1) from (0), hundred (0), pretty (0), through
(0)
Total = 13 (100%*) Total = 0
* significativo em p<.05.
Tabela 3 Perda do /r/ intervocálico com perda de sílaba
Exemplos da fala de Jim (números) Não-ocorrência de características
(número)
considable (5), diffunt (1), tolable (1) considerable (0), different (0), tolerble (1;
ortografia de Twain)
Total = 7 (87,5%*) Total = 1 (12,5%*)
* significativo em p<.05.
255
Tabela 4 Interrupção da sílaba inicial fricativa
Exemplos da fala de Jim (números) Não-ocorrência de características
(número)
dah (16), dan (1), dat (87), de (238), dem
(7), den (26), dese (4), dey (64), dis (14)
there (0), than (0), that (2), the (1), them
(0), then (0), these (0), they (0), this (0)
Total = 457 (99%*) Total = 3 (1%*)
* significativo em p<.05.
Tabela 5 Labialização de fricativas interdentais
Exemplos da fala de Jim (números) Não-ocorrência de características
(número)
bofe (1), breff (1), mouf (2), nuffn/nuff’n
(7)
both (0), breath (0), mouth (0), nothing(1)
Total = 11 (92%*) Total = 1 (8%*)
* significativo em p<.5.
Tabela 6 Redução de grupo consonantal, especialmente do termo final
Exemplos da fala de Jim (números) Não-ocorrência de características
(número)
ain’ (15), an’ (1), en (222), behine (4),
bes’ (2), chile (19), coss (1), doan’ (33),
kep’ (3), raf /raff (s) (13)
ain’t (15), and (6), behind (0), best (0),
child (0), costs (0), don’t (12), kept (0),
raft (s) (0)
Total = 313 (90%*) Total = 33 (10%*)
* significativo em p< .05.
Tabela 7 Supressão de sílaba átona inicial ou medial
Exemplos da fala de Jim (números) Não-ocorrência de características
(número)
‘bout (28), ‘bove (1), ‘dout (3),
‘kase/’kaze (9), ‘nough (1)
about (1), above (0), without (0),
because/bekase (5), enough (0)
Total = 42 (87,5%*) Total = 6 (12,5%*)
* significativo em p< .05.
Tabela 8 Final átono /n/ em vez de /ŋ/ no particípio presente
Exemplos da fala de Jim (números) Não-ocorrência de características
(número)
bein’ (1), bilin’ (1), blim-blammin’ (1),
buyin’ (1), callin’ (1), comin’ (6), cryin’
(1), doin’ (3), drinkin’ (3), flyin (1),
gitt’n/gittn (2), goin’ (2), havin’ (2),
hoverin’ (1), hummin’ (1), jawin’ (1),
killin’ (1), listenin’ (1), lookin’ (2),
makin’ (1), mournin’ (1), movin’ (1),
patchin’ (1), risin’ (1), runnin’ (2), sayin’
being (0), biling (0), boiling (0), blim-
blamming (0), buying (0), calling (0),
coming (0), crying (0), doing (0), drinking
(0), flying (0), getting (0), going (1),
flying (0), getting (0), going (1), having
(0), hovering (0), humming (0), jawing
(0), killing (0), listening (0), looking (0),
making (0), mourning (0), moving (0),
256
(1), smilin’ (2), sprawlin’ (1), stannin’ (4),
startin’ (1), stirrin’ (0), talkin’ (2), tellin’
(1), thinkin’ (1), trembin’ (1), trryin’ (3),
willin’ (1)
patching (0), rising (0), running (0),
saying (0), starting (0), stirring (1), talking
(0), telling (0), thinking (0), trembling (0),
trying (0), willing (0)
Total = 57 (97, %*) Total = 2 (3%*)
* significativo em p<.05
Tabela 9 Outras alterações de /n/ átono em vez de /ŋ/
Exemplos da fala de Jim (números) Não-ocorrência de características
(número)
anythin’ (0), evenin’ (1), mawnin’ (3),
nuffn/nuff’n (7), shavin’ (1)
anything (1), evening (0), morning (0),
nothing (1), shavings (0)
Total = 11 (85%*) Total = 2 (15%*)
* significativo em p.<05.
Tabela 10 /t/ em posição final
Exemplos da fala de Jim (números) Não-ocorrência de características
(número)
acrost (3), chanst (2), twyste (1), wunst (3) across (0), chance (1), twice (1), once (0)
Total = 9 (82%*) Total = 2 (18%*)
* significativo em p< .05.
Tabela 11 /j/ após interrupção das velares /k/ e /g/ antes de vogais
Exemplos da fala de Jim (números) Não-ocorrência de características
(número)
g’yarter (1), k’yards (1), k’yer (2),
sk’yarlet (1), sk’yerd (1)
Outras construções ou pronúncia /gar/(0),
outras construções ou pronúncia /kar/(0),
outras construções ou pronúncia/ker/(0),
scarlet e construções similares (0), scared
(0), scarcely, com a ortografia skasely (3)
Total = 6 (86%*) Total = 1 (14%*)
* significativo em p< .05.
Tabela 12 Alteração dos ditongos /aI/ em vez de / I/
Exemplos da fala de Jim (números) Não-ocorrência de características
(número)
biler (1), bilin’ (1), agwyne/a-
gwyne/gwyne/gwineter (42), pint (s)/ p’int
(4)
bolier (0), boiling (0), (a)goin(g) (3), point
(s) (0)
Total = 48 (94%*) Total = 3 (6%*)
* significativo em p< .05
257
Tabela 13 Alteração de /e/ por / /
Exemplos da fala de Jim (números) Não-ocorrência de características
(número)
bekase/’kase/’kaze because (0)
Total = 14 (100%*)
* significativo em p< .05.
Tabela 14 Fusão de /ε/ e /I/
Exemplos da fala de Jim (números) Não-ocorrência de características
(número)
agin (19), resk (2), git (-s)/ (-ing) (31) again (1), risk (0), get(-s)/ (-ing) (1)
Total = 52 (96%*) Total = 2 (4%*)
* significativo em p< .05.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo