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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA
ESPORTE E CULTURA: ESPORTIVIZAÇÃO DE PRÁTICAS CORPORAIS
NOS JOGOS DOS POVOS INDÍGENAS
Arthur José Medeiros de Almeida
BRASÍLIA
2008
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ii
ESPORTE E CULTURA: ANÁLISE ACERCA DA ESPORTIVIZAÇÃO DE
PRÁTICAS CORPORAIS NOS JOGOS DOS POVOS INDÍGENAS
Arthur José Medeiros de Almeida
Dissertação apresentada à
Faculdade de Educação Física da
Universidade de Brasília, como
requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre em Educação Física.
ORIENTADORA: PROFª. DRª. DULCE MARIA FILGUEIRA DE ALMEIDA
SUASSUNA
CO-ORIENTADORA: PROFª. DRª. BELENI SALETE GRANDO
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Arthur José Medeiros de Almeida
ESPORTE E CULTURA: ESPORTIVIZAÇÃO DE PRÁTICAS CORPORAIS
NOS JOGOS DOS POVOS INDÍGENAS
Dissertação aprovada pela Faculdade de Educação Física da
Universidade de Brasília, como requisito para obtenção do grau de Mestre
em Educação Física.
Banca examinadora:
Profª. Drª. Dulce Maria Filgueira de Almeida Suassuna
(Orientadora – FEF/UnB)
Profª. Drª. Beleni Salete Grando
(Co-orientadora – UNEMAT)
Prof. Dr. Edson Silva de Farias
(Membro Interno – SOL/UnB)
Prof. Dr. Jocimar Daólio
(Membro Externo – Unicamp)
Profª. Drª. Ingrid Dittrich Wiggers
(Suplente – FEF/UnB)
Brasília, 31 de julho de 2008.
iv
À Iara Almeida
- sua alegria nos inspira.
v
AGRADECIMENTOS
À família
Márcia, Ailton, Fabiana e Michelle, por participarem de minha formação
pessoal.
À esposa
Priscila, pelo companheirismo e pela paciência durante a realização do curso.
À professora Dulce Suassuna,
Soube orientar meus passos nesta trajetória acadêmica, demonstrando ser,
acima de tudo, uma amiga.
À professora Beleni Grando,
que me acompanhou durante o trabalho de campo, enriquecendo-o com sua
sabedoria.
Aos companheiros,
Leandro, Pedro, Juarez, Dori, Daniel, Júlio, Heberth, Zé, Marco e Fernando, por
contribuírem para meu amadurecimento intelectual e pelas conversas
descontraídas.
Aos funcionários,
Alba e Welton, pela presteza e compreensão que tiveram conosco.
Ao Ministério do Esporte,
por meio de Leila Mirtes, por possibilitar minha participação nos Jogos dos
Povos Indígenas.
A Capes, pela concessão da Bolsa de estudo.
A todos aqueles que colaboraram de algum modo para a realização deste
trabalho, em especial aos indígenas participantes do evento, pelo grande
aprendizado que me propiciaram.
vi
SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS E FIGURAS....................................................................viii
RESUMO............................................................................................................ix
ABSTRACT.........................................................................................................x
INTRODUÇÃO....................................................................................................1
CAPÍTULO 1: ESPORTE, JOGO E CULTURA: UMA DISCUSSÃO TEÓRICA
SOBRE ESPORTIVIZAÇÃO...............................................................................9
1.1 Cultura na sociedade capitalista........................................................13
1.2 Sociedades Indígenas no Brasil........................................................18
1.3 Jogo como elemento cultural.............................................................21
1.4 Esporte: um fenômeno contraditório.................................................31
1.5 Diferentes visões acerca do fenômeno esportivo.............................37
1.6 Esportivização: a que se refere este termo?.....................................44
CAPÍTULO 2: ANÁLISE CULTURAL: EM BUSCA DE UMA DUPLA
INTERPRETAÇÃO............................................................................................46
2.1 A experiência metódica....................................................................49
2.2 Reconhecendo o campo...................................................................50
2.3 A construção do Olhar......................................................................52
2.4 O Campo em foco.............................................................................53
2.5 Ouvir: a experiência vivida na comunicação pesquisador-
pesquisado..............................................................................................55
2.6 Transformando sentido em significado.............................................56
2.7 Repensando padrões monológicos...................................................57
2.8 Sociedade indígena, sociedade tradicional e valores
modernos................................................................................................58
CAPÍTULO 3: OS JOGOS DOS POVOS INDÍGENAS: A DESCRIÇÃO DO
CAMPO..............................................................................................................61
3.1 O início da observação......................................................................62
3.2 O congresso técnico..........................................................................64
vii
3.3 Geraldão: um espaço de interação...................................................66
3.4 Cerimônia de abertura: inicia-se o espetáculo..................................68
3.5 O duplo sentido do futebol................................................................70
3.5.1 A reprodução do futebol-espetáculo....................................71
3.5.2 “Pelada”: a ressignificação do futebol..................................76
3.6 Cabo de Força...................................................................................78
3.7 As práticas corporais tradicionais sob a lógica do esporte de alto
rendimento..............................................................................................79
3.7.1 A contradição dos instrumentos..........................................81
3.7.2 Canoagem e Natação: competição e brincadeira na água..86
3.7.3 As corridas desvinculadas do mundo espiritual...................88
3.8 Corrida de Toras: diferentes interesses, diferentes sentidos............90
CAPÍTULO 4: ESPORTIVIZAÇÃO DE PRÁTICAS CORPORAIS INDÍGENAS:
CONTRIBUIÇÃO À INTEGRAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS BRASILEIROS
À SOCIEDADE GLOBAL...................................................................................95
4.1 A espetacularização das práticas corporais tradicionais.................102
4.2 A especialização do corpo indígena para uma mudança de
comportamento.....................................................................................107
4.2.1 De que corpo se fala?........................................................109
4.2.2 Treinamento esportivo entre os indígenas........................112
4.2.3 Especialização dos corpos................................................115
4.3 O processo de integração e o papel do esporte.............................117
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O ESPORTE ENTRE OS POVOS INDÍGENAS
NO BRASIL......................................................................................................123
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................128
viii
LISTA DE TABELAS E FIGURAS
Tabela 1: Documentos recolhidos.....................................................................53
Tabela 2: Etnias participantes dos Jogos dos Povos Indígenas 2007..............66
Tabela 3: Conseqüências patológicas da ruptura dos processos de reprodução
do mundo natural.............................................................................................110
Figura 1: Roda de cantos e danças...................................................................72
Figura 2: Competição de arco e flecha..............................................................88
Figura 3: Aferição da marca alcançada no lançamento da lança......................90
Figura 4: Corrida de toras competitiva...............................................................98
ix
RESUMO
ESPORTE E CULTURA: ESPORTIVIZAÇÃO DE PRÁTICAS CORPORAIS
NOS JOGOS DOS POVOS INDÍGENAS
O Governo Federal, por meio de uma ação intersetorial, fomentou a realização
da IX edição dos Jogos dos Povos Indígenas em 2007, com a finalidade de
promover a reafirmação da identidade cultural das etnias indígenas no Brasil.
Evento cultural que surgiu de uma demanda dos indígenas brasileiros, com o
propósito de trocarem informações a respeito de suas práticas culturais,
econômicas e sociais, tem como objetivo a valorização das manifestações
culturais destes povos. Com essa compreensão, o presente estudo tem como
objetivos: (a) analisar as práticas corporais apresentadas de modo competitivo
nos IX Jogos dos Povos Indígenas, cruzando-as com os princípios e elementos
que caracterizam o esporte de alto rendimento; (b) analisar em que medida o
evento alcança os objetivos propostos; (c) compreender o sentido atribuído ao
esporte pelos indígenas participantes desta edição e (d) como o Estado cumpri
sua atribuição de assegurar os direitos desses povos, enfocando as práticas
corporais como manifestações tradicionais das diferentes culturas indígenas.
Para tanto, realizou-se uma pesquisa composta por fases distintas, constituída
de pesquisa bibliográfica, documental e de campo, na qual foram utilizadas
como procedimentos a observação participante e realização de entrevistas.
Compreende-se, a partir da análise, que a estruturação dos Jogos dos Povos
Indígenas contribui para o desenvolvimento de um processo de esportivização
de práticas corporais destes povos, observando como possíveis conseqüências
desse processo: a ressiginificação dessas práticas corporais e alterações no
comportamento dessas pessoas, reforçando a tendência de integração dos
povos indígenas envolvidos à sociedade global. Nessa direção, os Jogos dos
Povos Indígenas parecem ser objetos de controvérsia, pois, na medida em que
seu objetivo não é o de promover o esporte de alto rendimento, percebe-se que
as práticas corporais tradicionais passam a ser estruturadas segundo sua
lógica. O esporte, nesse âmbito, aparece como um instrumento que tem como
pressuposto a interação entre distintas comunidades indígenas e dessas com a
sociedade envolvente, proporcionando o intercâmbio de valores tradicionais e
modernos.
Palavras-chave: culturas indígenas, práticas corporais, esporte e sociedade
global.
x
ABSTRACT
SPORT AND CULTURE: THE SPORTIVIZATION OF CORPORAL
PRACTICES OF NATIVE PEOPLES’ GAMES
The Federal Government, by means of an inter-sectoral action, fomented the
realization of the IX edition of the Native Peoples Games in 2007, with the
purpose of promoting the reaffirmation of the cultural identity of the native ethnic
groups in Brazil. Such cultural event arose from a demand of the native
Brazilians, with the purpose of exchanging information about their social,
economic, and cultural practices, and its main goal is to value all cultural
manifestations of these groups. In this perspective, the present study has the
following objectives: (a) to analyze the corporal practices presented in a
competitive way at the IX the Native Peoples Games, comparing them to the
principles and elements that characterize high performance sports; (b) to
analyze in what extent this event achieved the proposed objectives; (c) to
understand the meaning that the participants of this edition have attributed to
sport and (d) how the Government fulfilled its attribution of assuring these
peoples’ rights, focusing on their corporal practices as traditional manifestations
of different native cultures. To do so, a complex research was carried out in
distinct phases, composed of documentary, bibliographical and field
researches, having participant observation and interviews as procedures. From
that analysis, it was possible to understand that the structuring of the Native
Peoples Games contributed to the development of a sportivization process of
the corporal practices of those peoples, i.e. when an ordinary practice is turned
over to a regular sport; and it was also possible to observe as probable
consequences of such process: the re-significance of those corporal practices
and the changes in those people’s behaviors, reinforcing the integration of the
involved native peoples into the global society. From this point of view, the
Native Peoples Games could be a source of controversy, once its objective is
not to promote high performance sports, but it is possible to say that the
traditional corporal practices start being structured by its logic. In this scope, the
sport is an instrument which function is the interaction between distinct native
communities and between those and the society, providing the exchange of
traditional and modern values.
Keywords: native cultures, corporal practices, sport and global society.
1
INTRODUÇÃO
Os Jogos dos Povos Indígenas se configuram como uma ação governamental
e intersetorial, visto que envolve ações dos Ministérios do Esporte, da Cultura e da
Fundação Nacional do Índio. Tais instituições representam uma estratégia de
consolidação de uma política pública específica e diferenciada por meio da qual se
integram práticas corporais sistematizadas por um processo de construção técnica.
Nesse âmbito, a modernidade é o cenário, sendo, portanto, o espaço-tempo
que corresponde a um longo processo de fluxo global de mercadorias e
informações, sendo perpassada por resgates e apropriações de práticas tradicionais
e usos de práticas modernas. A globalização é o conceito utilizado para referir-se ao
momento histórico no qual a livre circulação monetária (iniciada com a abertura dos
mercados nacionais a investimentos externos e a liberdade política conquistada por
nações e minorias) propicia que tanto o capital econômico como o capital cultural
sejam trocados. Esse termo tem sido empregado com mais constância a partir da
década de 1990, a fim de caracterizar o presente e suas contradições, pois se trata
de um fenômeno que envolve em sua complexidade aspectos políticos, econômicos,
sociais e culturais. Um planeta dividido em três mundos capitalista desenvolvido,
socialista e capitalista subdesenvolvido originado na metade do século XX,
passou, segundo Denning, ao sistema-mundo no espaço de quatro décadas, o que
“significa que esses mundos e seus ideais não fracassaram, mas terminaram,
morreram” (2005: 38).
Nesse recente contexto global, um fenômeno cultural é desencadeado,
possibilitando, de um lado, que aspectos da cultura ocidental se difundam pelo globo
terrestre, e, do outro, que movimentos sociais criem outras formas de resistência, de
modo a construir uma subjetividade política distinta. Pode-se considerar que o início
desse processo se deu após a Segunda Guerra Mundial, com o surgimento de um
mercado cultural mundial reforçado por uma indústria cultural que difundia o estilo de
vida das sociedades capitalistas. Esse fenômeno teve seu ímpeto aumentado com o
fim das repúblicas socialistas e com a queda do Muro de Berlim em 1989. Conviveu
com alternativas de resistências estabelecidas pelos povos do Segundo e Terceiro
Mundo a essa forma de coerção. Com as privatizações, e maior liberdade aos meios
de comunicação de massa no final da década de 1980, esse mercado global de
bens culturais se estabelece e vem se desenvolvendo e se ressignificando.
2
Segundo Denning (2005), esse mercado cultural global se fundamenta em
dois tipos de culturas de mercadorias. A primeira diz respeito a prover os meios de
subsistência cotidiana através de produtos culturais de grandes corporações
nacionais. Sendo indiferente ao conteúdo e enfatizando a estética da mercadoria,
essa cultura está aberta à hibridação, isto é, à incorporação de elementos locais em
sua essência. A outra possui suas raízes em questões sociais que se referem às
mudanças ocorridas no mundo subdesenvolvido, atuando como mecanismo de
resistência da Nova Esquerda, frente ao avanço do capitalismo, de suas
conseqüências e contradições. Todavia ambas se baseiam na ideologia de
expansão do mercado, para atingir a totalidade do globo, seja para produção, seja
para consumo das mercadorias culturais.
Em um mundo no qual o processo de globalização
torna-se cada vez mais
acelerado, e no qual aspectos do modo de vida ocidental se fazem presentes em
locais distantes dos grandes centros urbanos, observa-se, como paradoxo, a
necessidade de reconhecimento da diversidade de identidades e de culturas.
Segundo Ortiz, “o processo de mundialização é um fenômeno social total que
permeia o conjunto de manifestações culturais” (2006: 30). Trata-se, pois, de um
processo que engloba outras formas de organização social, de comunidades, etnias
e nações, introduzindo-as e enraizando-se nas práticas cotidianas e redefinindo
suas especificidades.
A idéia de Ortiz (2006) a respeito de um processo de mundialização da cultura
traz à tona a noção de que a totalidade cultural modifica as múltiplas
particularidades, nas quais valores e padrões culturais de uma sociedade
globalizada entranham-se nos hábitos, comportamentos e tradições dos grupos
tradicionais, alterando seus sentidos e significados. Nesse sentido, as diferentes
culturas dos povos indígenas vistas como culturas tradicionais, por serem distintas
da cultura urbano-industrial – podem ser ainda caracterizadas, nos dias atuais, como
um mecanismo de resistência à cultura da sociedade envolvente e, portanto, o seu
reconhecimento como outra cultura pode ter como um dos significados a valorização
e o respeito ao direito à diferença, a fim de se constituir um modelo de
desenvolvimento distinto.
Com o intuito de propiciar o congraçamento, o intercâmbio cultural entre os
povos indígenas e a valorização de seus patrimônios culturais, o governo brasileiro,
por meio do Ministério Extraordinário do Esporte sob a gestão do então Ministro
3
Extraordinário Edson Arantes do Nascimento promoveu em 1996 a realização da
primeira edição dos Jogos dos Povos Indígenas na cidade de Goiânia/GO. Esse
evento foi idealizado por dois irmãos da etnia Terena, com o propósito de os povos
indígenas trocarem informações a respeito de suas práticas culturais, econômicas e
sociais. De acordo com os documentos oficiais que orientam os Jogos, tem-se como
objetivo promover a cidadania indígena, a integração e o intercâmbio de valores
tradicionais, com vistas a incentivar e valorizar as manifestações culturais próprias
desses povos.
Os Jogos se originaram de uma demanda dos povos indígenas brasileiros aos
órgãos governamentais e, de acordo com o Regulamento Geral, têm por finalidade
fortalecer a identidade cultural das sociedades indígenas, e por isso, procura
obedecer a concepção e a filosofia tradicional de cada etnia participante. A
realização dos IX Jogos dos Povos Indígenas é de responsabilidade do Ministério do
Esporte, do Comitê Intertribal Memória e Ciência Indígena, da Fundação Nacional do
Índio (Funai) e do Governo do Estado de Pernambuco. Conta com parcerias dos
Ministérios da Cultura, Educação, Justiça e com o apoio das Prefeituras de Recife e
de Olinda e de empresas privadas.
Conforme dados obtidos por meio de observações e relatos orais, destacam-
se em torno desse evento questões políticas e sociais – como o Fórum Social
Indígena; questões econômicas como a Feira de Artesanato e questões culturais –
como as Demonstrações e as Competições que abarcam as práticas corporais. O
esporte aparece, neste âmbito, como um instrumento que tem como pressuposto a
interação entre distintas etnias; entretanto, outras manifestações culturais se fazem
presentes nesse evento, como os jogos e brincadeiras tradicionais, os ritos, as
danças, as pinturas e os adornos corporais.
Os Jogos dos Povos Indígenas visam a assegurar o que preceitua o Art. 217
do capítulo VIII, inciso IV, da Constituição Federal do Brasil: “proteção e o incentivo
às manifestações desportivas de criação nacional”. Por seu turno, o Art. 231 entende
ser reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições”. A Lei 6.001 de 19 de dezembro de 1973, em seu Art. 47, assinala que: “É
assegurado o respeito ao patrimônio cultural das comunidades indígenas, seus
valores artísticos e meios de expressão” (Regulamento Geral, 1999: 2).
Esse evento de abragência nacional tem como premissa incentivar a prática
das atividades tradicionais e as manifestações culturais de cada povo indígena.
4
Tendo como base o documento oficial que regulamenta os Jogos dos Povos
Indígenas, pode-se ressaltar que tal evento deve estimular a “participação coletiva
na prática de seus esportes tradicionais, visando a assegurar um relacionamento
mais digno e respeitoso com toda a sociedade não-indígena, fortalecendo a auto-
estima e a identidade cultural das sociedades indígenas” (Regulamento Geral, 1999:
2) Grifo meu.
Nos Jogos dos Povos Indígenas foi apresentado um conjunto de práticas
culturais de diversas etnias participantes, que demonstraram como cada um desses
povos supera as situações conflitantes de seu cotidiano, e pelas quais construíram
sua cultura corporal de movimento. Convivendo diariamente durante uma semana
entre essas etnias, compostas de aproximadamente quarenta indivíduos de ambos
os sexos e todas as idades, pode-se perceber a diversidade cultural existente entre
os indígenas no Brasil.
Além dos indígenas, os demais atores sociais envolvidos na realização dos
Jogos são os organizadores, provenientes dos diferentes órgãos responsáveis pela
execução do evento; os atachês
1
, compostos em sua maioria por estagiários dos
projetos desenvolvidos pela Prefeitura de Recife; os voluntários e a imprensa, tanto
local quanto internacional. A estrutura física do evento funcionou em três pontos
distintos: o local de alojamento das etnias e das refeições (Ginásio de Esportes
Geraldo Magalhães
2
), a Arena montada na Praia do Bairro Novo em Olinda (espaço
onde ocorreram oito “modalidades” competitivas e doze práticas demonstrativas) e o
Campo da Torre em Recife (palco da competição de futebol). Neste ínterim, pode-se
observar, apreender dados e construir interpretações preliminares, a partir dos
discursos, comportamentos e fatos assinalados no cotidiano desse microcosmo que
se criou em Pernambuco.
Nesse estudo, o foco de investigação e análise é direcionado para as práticas
corporais, jogos, brincadeiras e o futebol, com uma abordagem qualitativa. Neste
sentido, as práticas corporais constituintes desse evento parecem ser objeto de
controvérsia, pois, na medida em que seu objetivo é o de promover o
reconhecimento das manifestações culturais dos povos indígenas, a lógica do
esporte de alto rendimento é colocada no conjunto dessas práticas. Trata-se de
1
Atachê: Pessoa não-indígena que acompanha uma determinada etnia durante todo o evento, servindo
voluntariamente como interlocutor entre indígenas e a organização do evento.
2
Por também ser conhecido como Geraldão, optou-se por utilizar este termo no decorrer do texto.
5
ponto pacífico para os teóricos do esporte que esse fenômeno social seja
caracterizado teoricamente como uma manifestação ocidental moderna (Bracht,
2003). Dessa forma, não se apresenta como meio de enraizamento da identidade
das culturas autóctones e, por conseguinte, não colabora para promover o
intercâmbio de valores tradicionais. Embora o lema dos Jogos seja “o importante
não é competir, mas sim celebrar” (Orientações Específicas das Modalidades, 2007:
1). Segundo Rubio et al, “o que se assiste nas últimas edições é o acirramento da
disputa entre as diversas nações por uma melhor colocação” (2006: 112).
Por meio dessa afirmação, pode-se inferir que, apesar de os Jogos Indígenas
visarem à valorização das diversas manifestações culturais desses povos, uma
relevante influência da prática corporal hegemônica da cultura ocidental moderna,
tendo o esporte como foco. Percebe-se, portanto, a possibilidade de esse evento
cultural contribuir para o desenvolvimento de um processo de esportivização de
práticas corporais tradicionais dos povos indígenas e, por conseguinte, para uma
possível ressignificação de seus sentidos, de seus hábitos, tradições e costumes de
usos dos corpos, imprescindíveis à formação da identidade da pessoa indígena e à
diversidade cultural.
As manifestações culturais são expressões do sistema de significados de
cada povo que, por seu turno, apresentam uma diversidade de técnicas corporais
construídas e apropriadas historicamente em diferentes culturas. Nessa perspectiva,
devem-se identificar seus sentidos e procurar compreender os significados
atribuídos pelos Indígenas ao esporte. Concordando com Cardoso de Oliveira
(1998), cabe ao cientista o papel de interpretação, transformando sentido em
significado. Para tanto, e devido aos aspectos teórico-metodológicos das Ciências
Sociais que conduzem a pesquisa, faz-se necessário recorrer a uma fundamentação
em teorias distintas, porém não contraditórias, que contribuirão para um
entendimento mais amplo do fenômeno esportivo e do processo de esportivização
das práticas corporais tradicionais.
Ao propor-se analisar os Jogos dos Povos Indígenas, evento que se tornou de
grande relevância para as distintas etnias que deles participam, tem-se a intenção
de problematizar e compreender o fenômeno em tela, visando à construção de uma
perspectiva de interpretação da realidade. o obstante, torna-se necessário
proceder a uma análise dos Jogos Indígenas, com base em uma visão crítica e
reflexiva, a fim de interpretar a seguinte questão: em que medida a competição nos
6
Jogos dos Povos Indígenas pode contribuir para a esportivização das práticas
corporais das sociedades autóctones envolvidas e, por conseguinte, para a
integração desses povos na sociedade global?
Nesse sentido, o objetivo geral é analisar as práticas corporais, enquanto
elementos da cultura corporal de movimento de cada povo, cruzando-as com
elementos que caracterizam o esporte moderno em sua dimensão de alto
rendimento, a partir de diferentes visões sobre o fenômeno esportivo, assim como
observar como se dá sua esportivização. E, especificamente, analisar se esse
evento alcança seus objetivos; compreender o significado atribuído pelos indígenas
ao esporte e se o Estado vem cumprindo seu papel de assegurar os direitos dos
povos tradicionais, habitantes deste território, de acordo com a Constituição Federal
do Brasil.
Por entender que ações governamentais devem intervir no sentido de
fomentar o esporte como elemento cultural, tem-se que o Estado, por meio da
realização dos Jogos dos Povos Indígenas, pode estar cooperando para o
desenvolvimento de um processo de esportivização de práticas corporais de
sociedades tradicionais. Vale ressaltar que esse processo é entendido como a
inserção da lógica do esporte de alto rendimento ou esporte-espetáculo nessas
manifestações culturais, interferindo, com efeito, nas relações sociais do cotidiano
de cada comunidade. Entende-se que a esportivização pode acarretar mudanças
culturais com perdas e/ou ressignificações dessas práticas na cultura corporal de
movimento dos povos indígenas e, por conseguinte, promover rupturas nas
tradições desses grupos, por meio de mudanças comportamentais individuais.
Nesse âmbito, o esporte serve como meio de assimilação de valores modernos
condizentes com um processo de integração de grupos e pessoas indígenas na
sociedade global.
Dessa forma, a hipótese a ser verificada é que a reprodução das práticas
corporais da cultura envolvente e a estruturação das práticas corporais tradicionais
sob a lógica do esporte de alto rendimento auxiliam a consolidação de uma cultura
mundial com a integração dos povos indígenas brasileiros ao mundo globalizado.
Para tanto, apresenta-se no capítulo inicial a construção de um arcabouço teórico
com a intenção de conduzir uma discussão que dará fundamentação à análise
acerca da esportivização das práticas corporais tradicionais e as formas de
resistência apresentadas pelas diferentes etnias indígenas, a partir da participação
7
na IX edição dos Jogos dos Povos Indígenas. Por isso, fez-se necessário realizar
um levantamento bibliográfico, com base em autores que abordam a cultura
indígena, o jogo e o esporte como temáticas em suas obras, a saber: Lévi-Strauss
(1976), Geertz (1989), Ianni (2003), Caillois (1994), Huizinga (2004), Bracht (2003),
Kunz (2006), dentre outros.
Em seguida, tendo por base a obra de Cardoso de Oliveira (1998) O trabalho
do Antropólogo apresentam-se as considerações referentes à metodologia aplicada
na pesquisa. Na perspectiva da interdisciplinaridade, o estudo procura construir um
diálogo entre os campos disciplinares da Educação Física e das Ciências Sociais,
levando em consideração objetos de estudos compartilhados, as categorias de
análise e o método empregado. Nessa passagem demonstra-se que as
observações, os registros de imagens, as anotações no diário de campo e as
entrevistas concedidas durante e após a realização dos IX Jogos dos Povos
Indígenas de 2007 são imprescindíveis para a análise, almejando alcançar uma
dupla interpretação sobre o aspecto que diz respeito à cultura corporal de
movimento.
O terceiro capítulo intitulado Os Jogos dos Povos Indígenas: a descrição do
campo” consiste em uma descrição dos acontecimentos referentes à cultura corporal
de movimento dos povos indígenas, assim como do elemento esportivo observado
nesse evento cultural. A explicitação de detalhes que remontam espaço/tempo de
realização dessas práticas torna possível comparar sua estruturação com aspectos
que caracterizam o esporte de alto rendimento.
No seu processo de consolidação como prática hegemônica na sociedade
ocidental moderna, o esporte foi e ainda é utilizado por instituições como uma
ferramenta carregada de concepções ideológicas construídas historicamente. Para
proceder a sua análise, tornou-se necessário recorrer aos ensinamentos à luz da
sociologia crítica do esporte. Por outro lado, reconhecendo que os sentidos e
significados referenciados ao esporte pelos grupos que o praticam são
diferenciados, compreende-se, neste caso, que o esporte pode ser ressignificado
por indígenas das diferentes etnias participantes da IX edição dos Jogos dos Povos
Indígenas. Nessa perspectiva, o trabalho apóia-se na teoria do processo civilizador
de Elias (2006), com ênfase na contribuição do esporte nesse processo. E por
compreender que a teoria de Bourdieu (1983, 1990, 1997) agrega ambos os
aspectos, tanto institucional quanto relacional em seu conteúdo, sua contribuição
8
forneceu ao estudo importantes elementos para se proceder a uma análise mais
acurada do fenômeno esportivo entre os indígenas no Brasil.
No capítulo quatro mostra-se a análise dos dados, discutindo-se
especificamente a questão da esportivização de práticas corporais indígenas,
problematizando a contribuição desse processo para a (re)tradicionalização dessas
manifestações culturais e, por conseguinte, a integração dos povos indígenas na
sociedade global.
9
CAPÍTULO 1
ESPORTE, JOGO E CULTURA: UMA DISCUSSÃO TEÓRICA SOBRE
ESPORTIVIZAÇÃO
O debate acerca da conceituação do termo Cultura ainda hoje possui lugar de
destaque na academia. A constante reconstrução conceitual é apresentada a partir
de uma diversidade de fragmentos teóricos, compondo um dos objetivos principais
da Antropologia. Inicia-se essa discussão na tentativa de fugir das concepções
simplistas que se referem à cultura, almejando, no entanto, ir ao encontro de uma
compreensão mais ampliada desse termo. Cultura é um conceito que pode ser
compreendido levando em conta diversos significados. Para Geertz, a Cultura no
sentido antropológico não deve ser entendida apenas como hábitos, costumes, usos
e tradições, “mas como um conjunto de mecanismos simbólicos para o controle do
comportamento” (1989: 64). Sem Cultura o comportamento humano seria composto
de ações sem sentido e significados, e é essa totalidade acumulada de padrões
culturais que fornece a base da especificidade humana, dada sob um sistema de
significados historicamente criados. Essa perspectiva da cultura como mecanismo
de controle” é fundada no pressuposto de que o pensamento humano é tanto social
como público. Pensar consiste em relacionar os símbolos significantes de uma
sociedade, quais sejam: as palavras, os gestos, desenhos, sons, músicas, artifícios
mecânicos e objetos naturais; enfim, a linguagem, a arte, os mitos e rituais, algo que
seja utilizado para dar significado a uma experiência vivida.
A partir da leitura de Cultura: um conceito antropológico de Laraia (2002)
compreende-se como se deu o desenvolvimento desse conceito. Apesar de possuir
antecedentes históricos, pode-se afirmar que o conceito de Cultura foi definido pela
primeira vez por Tylor (1871), na tentativa de formalizar a idéia que vinha ganhando
espaço na sociedade de sua época. Segundo Laraia, Tylor (1871) acreditava se
tratar a cultura de “um fenômeno natural que possui causas e regularidades,
permitindo um estudo objetivo e uma análise capazes de proporcionar a formulação
de leis sobre o processo cultural e a evolução”. (2002: 30).
A fim de compreender a formulação de Tylor (1871), deve-se levar em
consideração o momento histórico em que foi postulado tal conceito. O conceito
10
elaborado pelo referido autor sofreu críticas de outros antropólogos por trazer a idéia
de um desenvolvimento uniforme das sociedades que partiria das mais simples e
culminaria nas sociedades mais complexas.
O evolucionismo ou falso evolucionismo consiste numa
tentativa para suprimir a diversidade das culturas, fingindo conhecê-la
completamente. Porque se tratarmos os diferentes estados em que se
encontram as sociedades humanas, [...], como estádios ou etapas de um
desenvolvimento único que, partindo do mesmo ponto, deve convergir para
o mesmo fim, vemos bem que a diversidade é aparente (Lévi-Strauss,
1976: 61).
Ao considerar determinadas sociedades como etapas de outras, ignora-se a
construção histórica de cada uma. Seria admitir, no entanto, que enquanto algumas
evoluíram no tempo, outras permaneceram estacionadas ou pouco progrediram. É
mais sensato dizer que enquanto algumas sociedades humanas possuíram uma
história progressiva, acumulativa de achados e invenções para a construção de
grandes civilizações, outras, com uma história igualmente ativa, empregaram seus
talentos para outras finalidades. Nesse sentido, entende-se o progresso como algo
que não necessariamente seja contínuo, e numa mesma direção, mas por
progressões em diferentes sentidos, o que pressupõe a idéia de que o
desenvolvimento constitui uma lógica de “descontinuidades”, conforme a
interpretação das conseqüências da modernidade (Giddens, 1991).
Segundo Laraia, o evolucionismo começou a ser questionado por Boas (1896)
que, ao contrário, propôs “a comparação dos resultados obtidos através dos estudos
históricos das culturas simples e da compreensão dos efeitos das condições
psicológicas e dos meios ambientes” (2002: 36). Boas (1896) apresenta uma visão
diferenciada, entendendo que cada cultura tem seu desenvolvimento próprio, gerado
em função dos eventos históricos que atravessou e em determinados contextos.
Surgia nesse momento o particularismo histórico. Kroeber (1949), por seu turno,
procurou demonstrar a diferença entre o biológico e o cultural. A preocupação do
autor parte da compreensão de que o homem depende de seu equipamento
biológico e para sobreviver deve satisfazer determinadas funções vitais. Entretanto,
embora estas funções sejam comuns à humanidade, a forma de satisfazê-las é
diferente de uma cultura para outra.
11
Kroeber (1949) contribui para a ampliação do conceito de Cultura na medida
em que entende que ela determina o comportamento humano, agindo como um
meio de adaptação do homem em diferentes ambientes, necessitando menos de
modificar seu equipamento biológico do que seu aparato material. Adquirindo cultura
o homem passa a depender do aprendizado, ou seja, da acumulação de
conhecimentos e saberes resultantes de toda experiência histórica de seus
antepassados, permitindo a ele romper as barreiras ambientais e habitar todo o
globo terrestre. A Cultura acompanhou todo processo evolutivo do equipamento
biológico do homem, baseada nas primeiras normas, nos primeiros símbolos criados
e nos primeiros materiais manufaturados.
As teorias modernas referentes à Cultura apresentam algumas classificações,
amparadas em diferentes pontos de vista, originados na tentativa de obter uma
precisão conceitual. teorias que consideram a cultura como um sistema
adaptativo, difundida pelos chamados neo-evolucionistas. as teorias idealistas
possuem três abordagens, entendendo a cultura de maneiras distintas. São elas: a
cultura como sistema cognitivo, como sistemas estruturais e como sistemas
simbólicos (Laraia, 2002: 61).
Compreendendo a Cultura como sistemas simbólicos, Geertz (1989) parte da
premissa de que não existe um modelo de homem ideal, propagado pelo Iluminismo
e amparado pela antropologia clássica, mas que os homens nascem aptos a se
socializar em qualquer cultura existente. Nessa perspectiva, assinala Geertz: Cultura
é
Um conjunto de mecanismos simbólicos para controle do comportamento,
fontes de informação extra-somáticas, a cultura fornece o vínculo entre o
que os homens são intrinsecamente capazes de se tornar e o que eles
realmente se tornam, um por um. Tornar-se humano é tornar-se individual,
e nós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais,
sistemas de significados criados historicamente em termos dos quais
damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas (1989: 64).
Os padrões culturais determinam o modo de o indivíduo enxergar o mundo
que o cerca. Os valores e a moral que o conduzem a diferentes comportamentos
sociais e as maneiras de lidar com o seu corpoo produtos de acumulação
histórica de experiências de determinadas sociedades, e dependem de um
aprendizado dos padrões culturais de seu grupo. A diversidade cultural existente
permite que cada povo distinga seu modo de pensar, sentir e agir, respaldadas em
12
valores e simbolismos próprios. O respeito a esta diversidade é algo que deve ser
posto em prática, por meio de atitudes e comportamentos condizentes com a
aceitação do outro, do diferente.
Não obstante ter-se a compreensão de que dentro de uma mesma cultura
cada indivíduo é único (pois existem variações dentro de um mesmo padrão
cultural), torna-se necessário um olhar cauteloso para que sejam evitadas visões
etnocêntricas. Um indivíduo não é capaz de participar de todos os elementos de sua
cultura; no entanto, ele deve apreender um mínimo de conhecimento que permita
sua interação na sociedade em que convive. Deve saber agir em determinadas
situações para não romper com um comportamento esperado pelo grupo. Quando
tal fato acontece, ou é porque os padrões culturais não determinam certo
comportamento ou porque “ocorre em períodos de mudanças culturais e,
principalmente, quando estes são determinados por forças externas” (Laraia, 2002:
84).
As mudanças culturais ocorrem em todas as culturas, mesmo naquelas que
possuem menor grau de contato com outras, quer dizer, as mudanças podem
decorrer de fontes endógenas ou exógenas à sociedade. Os homens, elaboradores
de cultura, questionam e refletem sobre seu modo de vida e seus comportamentos,
sendo capazes de alterá-los. Esta seria uma forma consciente de mudança cultural.
Por outro lado, o contato com outros povos produz trocas simbólicas que podem
promover mudanças mais ou menos bruscas e que por vezes pode-se não ter a
clara consciência de tais alterações na sociedade.
As diferentes culturas dos povos indígenas apresentam um dinamismo; elas
não estão estáticas como muitos ainda hoje as consideram. Todavia, como observa
Laraia, “cada mudança, por menor que seja, representa o desenlace de numerosos
conflitos” (2002: 99). Portanto, ter a compreensão de que uma cultura é dinâmica
pode minimizar o impacto sobre as gerações porvir; entretanto, sociedades que
produziam mudanças culturais em longos períodos de tempo estão sujeitas a
apresentarem conflitos devido às rápidas mudanças decorrentes do contato com
uma sociedade envolvente, cujo principal traço característico é a globalização.
13
1.1 Cultura na sociedade capitalista
A sociedade ocidental moderna tem como ponto central o aspecto econômico
baseado no modo de produção capitalista. A cultura que emerge nessa sociedade
tem como pilares a ciência positivista e as técnicas, se opondo aos mitos e às
práticas tradicionais. Ao se analisar a cultura de uma época pode-se ter a
compreensão do conjunto de manifestações sociais de um momento histórico em
que a sociedade se torna global. Nessa direção, torna-se necessário observar que:
A característica principal da organização social capitalista deveria ser
buscada então no fato de que a vida econômica deixou de ser um
instrumento para a função vital da sociedade e se colocou no centro: se
converteu em fim em si mesmo, o objeto de toda atividade social. A
primeira conseqüência, e a mais importante, é a transformação da vida
social em uma grande relação de troca; a sociedade em seu conjunto
tomou a forma de mercado. Nas distintas funções da vida, tal situação se
expressa no fato de que cada produto da época capitalista, como também
todas as energias dos produtores e dos criadores, reveste a forma de
mercadoria. Cada coisa deixou de valer em virtude de seu valor intrínseco:
tem valor unicamente como coisa vendável ou adquirível no mercado
(Lukács, 1920: 2-3).
No entendimento do autor, a base material consolidada em cada momento da
sociedade capitalista é a “infra-estrutura” que, em grande medida, determina a
formação de uma determinada ideologia a “superestrutura” ambas constituintes
da sociedade ocidental moderna. Ao modificar o caráter do processo produtivo, o
capitalismo suprimiu características básicas de culturas preexistentes, quais sejam,
a continuidade e a organicidade. O desenvolvimento lento e contínuo dos produtos
culturais foi substituído por um desenvolvimento fundado em constantes alterações.
A cultura capitalista ou ocidental moderna apresenta um paradoxo. Enquanto
sua ideologia de liberdade individual era difundida, ao obter o poder, a burguesia se
empenhou em não estendê-la ao restante da sociedade. A fim de conter os
movimentos operários advindos da consciência de classe, a burguesia procurou
desenvolver cientificamente conhecimentos que permitissem controlar a grande
massa de assalariados. A partir daí, essa ideologia passou a ser utilizada como uma
“máscara de uma ação oposta a ela” (Lukács, 1920: 5). Existindo uma oposição
entre ideologia, organização social e econômica, os sentidos e significados dos
padrões culturais entram em contradição, sendo subsistidos em todos os campos do
comportamento humano, afetando, por conseguinte, as relações sociais. Isto se
14
deve ao interesse dos donos dos meios de produção capitalista que almejam um
progresso contínuo, fundado na exploração da grande massa de proletários
responsáveis pelo labor e que, por sua vez, gera o desenvolvimento do sistema.
Elemento fundamental para o desenvolvimento do sistema capitalista de produção,
os donos da força de trabalho se viram, em todo esse período, induzidos a competir
entre si. Com esta intenção:
A burguesia irá acentuar o “esforço pessoal” e o valor individual de cada
um, afirmando, ainda, que os mais aptos vencem, portanto “competem”.
Competição e concorrência, grandes eixos do capitalismo, serão
entendidos como naturais e não como produto histórico de
desenvolvimento da sociedade (Soares, 2004: 17).
Desse modo, pode-se atinar que as produções culturais estão a serviço dos
indivíduos e respeitam suas exigências, compreendendo, portanto, que os homens
são capazes de serem agentes produtores de cultura; contudo, tem-se que a
competição e a concorrência tornaram-se padrões culturais da sociedade ocidental
moderna que contribuem para desencadear determinados comportamentos, pois a
cultura é criada e sofre mudanças por meio de uma atitude pró-ativa dos indivíduos
e da coletividade, a partir de uma espontaneidade possibilitada por cada sociedade.
A idéia revolucionária sobre Cultura defendida por Lukács (1920), em sua
obra Velha e Nova Cultura, foi exceção em um período em que o termo Cultura era
tratado de forma conservadora. Essa tendência se manteve até meados do século
XX, momento em que a atenção dos estudos culturais voltaram seu foco para as
formas de utilização dos produtos culturais pelo mercado e pelo Estado Liberal.
A “cultura de massa” portadora de uma ideologia condizente com essa
sociedade se colocava entre os meios de produção e os meios de comunicação,
tendo centralidade na constituição de uma ordem do capitalismo pós-industrial, o
consumismo. “Os novos materialismos culturais o eram simplesmente uma
reafirmação da superestrutura, mas um repensar da economia e da política em
termos culturais” (Denning, 2005: 94). Desse modo, observa-se a cultura como um
investimento, por criar um capital cultural, que, dominado pelo capital econômico,
conduz as escolhas humanas.
Ocorre, todavia, que a expansão do sistema capitalista envolveu tanto a
produção cultural quanto a produção material. Com a globalização, a atividade
econômica reorganiza os meios de produção, distribuição e consumo, com
15
estratégia direcionada ao livre mercado. O processo de globalização produz
mudanças na natureza e nos sistemas de Estados, que passam por um processo
complexo de internacionalização em suas estruturas e funções, adequando sua
economia às exigências de um mercado mundial. Segundo Ianni, “as sociedades
contemporâneas, a despeito de suas diversidades e tensões internas e externas,
estão articuladas numa sociedade global. Uma sociedade global que compreende
relações, processos e estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais” (2003:
39).
Pode-se afirmar que se vive um processo de elaboração de uma sociedade
global, “uma totalidade abrangente, complexa e contraditória” (Ianni, 1996: 11).
Transformações de ordem social, econômica, política e cultural se intensificaram
durante o século XX, principalmente após a Segunda Grande Guerra e durante o
período da Guerra Fria. Com a queda do Muro de Berlim e a crise do socialismo, o
capitalismo encontrou a abertura necessária para se expandir e adentrou em países
e regiões que até então não aderiam a esse sistema econômico. A reprodução do
capital (imaterial) em escala global é decorrente da organização da produção e
distribuição em escala mundial, o que torna o consumo exacerbado.
A ocidentalização das diferentes culturas ocorre muitas vezes por anseio das
próprias sociedades que, por sua vez, se apropriam de elementos da sociedade
industrial. Nesse movimento, as sociedades tradicionais preservam elementos de
sua cultura, enquanto outros aspectos passam por profundas modificações; porém,
esta adesão ao modo de vida ocidental não é o espontânea e consciente quanto
se imagina. A civilização ocidental vem engendrando um arcabouço que permite a
intervenção, direta ou indireta, na vida de populações, alterando e substituindo o
modo tradicional de existência por um outro. É notório que o processo de
ocidentalização não se de forma amena, por meio de mecanismos de resistência;
sofre recuos, distorções, pois as ideologias e padrões culturais particulares são
recriados e ressurgem com outros significados.
Formas de particularismos cultural, étnico, lingüístico e religioso subsistem;
entretanto, a tendência que se verifica é a constituição de uma sociedade global, tão
quão acentuado é o alcance da ideologia capitalista nos diferentes espaços do
planeta. Com efeito, tem-se uma modificação nas condições de vida, nos modos de
ser, sentir e pensar, minimizando a capacidade de emancipação de indivíduos,
grupos e etnias. A globalização, como resultado da abrangência do capitalismo, é
16
um processo que historicamente vem trilhando seu percurso e que tem como intuito
menos uma homogeneização do que a integração de diferentes sociedades ao
sistema-mundo. A contradição apresentada é que almejando essa integração notam-
se mudanças nas relações sociais, o que fazem vir à tona questões étnicas e raciais
que criam e recriam as diversidades e identidades como desigualdades, gerando
preconceito, etnicismos e intolerâncias.
O século XX foi marcado por profundos confrontos étnicos em uma
perspectiva mundial. A luta de minorias por autonomia e independência demonstra
uma força no sentido contrário à tendência de formação de uma sociedade global. A
consciência étnica vem ascendendo como força política, afetando, desse modo,
nações nas quais existe uma grande diversidade étnica, como o Brasil. Tais lutas
são as expressões de tensões resultantes da difusão de uma forma de vida
ocidental, isto é, de um processo civilizatório que visa à disciplinarização do homem.
Um modo de vida que prima pelo aspecto econômico em detrimento do social e
cultural e que vem sendo, de certa forma, imposto a grupos que reagem a sua
maneira, multiplicando, nesse contexto,
As ressurgências de movimentos nacionais e de nacionalidades,
preconizando autonomia, independência, auto governos ou federalismo.
São ressurgências que envolvem aspectos não históricos e geográficos,
mas também culturais, religiosos, lingüísticos, étnicos ou raciais, além das
implicações sociais e outras. São ressurgências nas quais manifestam-se
reivindicações e ressentimentos recentes e remotos, preconizando a
afirmação de identidades, territórios, línguas, religiões, história, tradições,
heróis, santos, monumentos e ruínas (Ianni, 1996: 209-210).
No Brasil, a resistência dos povos indígenas a esse processo se deu por
diversos meios. A partir da década de 1970, as comunidades indígenas que habitam
o território brasileiro unificaram-se com a formação de organizações indígenas e
contando com a colaboração de organizações não-governamentais que, por seu
turno, mediavam às discussões com a sociedade nacional. Dessa forma, os povos
indígenas intensificaram a luta pelo direito à diversidade étnica e cultural, em um
movimento de luta pela reconquista e oficialização de suas terras e preservação de
seus patrimônios culturais.
As diversas etnias indígenas puderam, desse modo, manter um contato
permanente e, intercomunicando-se, promoveram transformações que permitiram
maior envolvimento desses povos nos debates referentes às suas culturas. Nesse
âmbito, muitos jovens das sociedades tradicionais saem de suas aldeias para
17
estudar nas cidades, retornando a elas em momentos de festividade. “Dessa
maneira, são sujeitos de sua própria história e estão cientes da complexa relação
que vivem entre dois mundos, duas culturas diferentes” (Grando & Hasse, 2001:
103).
Mesmo nos casos em que as sociedades tradicionais procuram reafirmar
suas singularidades, existem intercâmbios de atores sociais e, por conseguinte, de
padrões e valores socioculturais que contribuem para modificá-las. O aspecto
econômico interfere de tal modo nas relações sociais existentes em uma sociedade
global que, independente de suas vontades, os homens encontram-se interligados
na sociedade contemporânea, vivendo um processo de integração à cultura
mundializada.
Em sua obra Os índios e civilização: integração das populações indígenas no
Brasil moderno (trabalho que surgiu em virtude de uma demanda da Unesco em
1952, visando à pesquisa sobre as relações entre os índios e não-índios no território
brasileiro), Ribeiro (1986) faz transparecer como se deu o processo de integração
das sociedades indígenas à sociedade nacional. Com o objetivo de compreender a
situação de interação entre índios e frentes de expansão, e com a finalidade de
analisar as mudanças culturais decorrentes da conjunção interétnica, a pesquisa
demonstrou que havia um longo processo de interação entre uma etnia nacional em
crescimento e centenas de etnias indígenas.
Essa interação gerou conflitos que, em muitos casos, acabou por dizimar
inúmeras populações indígenas. As que sobreviveram resultaram em povos com
hábitos e costumes modificados, segundo Ribeiro (1986), vítimas de dominação.
Suas observações constatam que as diversas tribos de variadas etnias possuíam
diferentes graus de interação com a sociedade nacional desde as sociedades
isoladas até as que possuem contatos intermitentes, as de contato permanente e as
integradas. Essas categorias referentes ao grau de contato formam etapas
sucessivas e fundamentais para a integração; no entanto, notou-se que não uma
assimilação, isto é, uma fusão das sociedades tradicionais à sociedade brasileira.
Com efeito, o processo de integração dos indígenas à sociedade brasileira é
marcado por uma série de condutas que geraram um verdadeiro genocídio, com
sentido de submissão e eliminação de culturas e populações. A tentativa de
incorporação dos indígenas à sociedade nacional teve como característica uma
18
intervenção etnocêntrica, fragmentadora e destruidora de organizações sociais que
possuem uma outra lógica.
1.2 Sociedades Indígenas no Brasil
Atores protagonistas dos Jogos dos Povos Indígenas, os índios brasileiros
ainda hoje são vistos, de modo geral, como pertencentes a uma única cultura,
resultando, portanto, numa visão uniforme sobre esses povos. Essa visão
uniformizadora se ancora na existência da “cultura indígena”. No entanto no território
brasileiro existem atualmente 225 etnias indígenas, segundo o Instituto
Socioambiental (ISA), apresentando uma grande diversidade cultural (ISA: 2006: 7).
No século XVI, acredita-se que eram mais de seis milhões de pessoas organizadas
em aproximadamente 900 nações indígenas (Grando e Hasse, 2001: 104).
Não há um consenso quanto à população geral e por etnia indígena no
território brasileiro, pois não existe um censo ou um levantamento específico para os
povos indígenas. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no censo
realizado em 2000, apresenta como estimativa 734 mil indígenas, havendo um
aumento de 150% a partir de 1991; porém, somente quatro etnias contam com mais
de 20 mil pessoas (ISA, 2006: 7). Para o ISA, o número de indígenas é menor
cerca de 600 mil pessoas vivendo em terras indígenas, em áreas urbanas
próximas a elas ou em grandes centros urbanos. Tal divergência se pela
utilização de metodologias distintas. Enquanto o IBGE avalia a população indígena
por auto-identificação, o ISA utiliza dados da Fundação Nacional do Índio (Funai),
que estima a população indígena em 460 mil pessoas; da Fundação Nacional de
Saúde (Funasa), que contabiliza a partir do Sistema de Informação de Saúde
Indígena (Siasi), registrando um número de 453 mil indígenas e de outros
colaboradores (ISA, 2006: 17).
Com efeito, cada povo, cada etnia indígena tem uma cultura própria, com
organização social e econômica e práticas corporais particulares. Compreende-se
que cada uma dessas sociedades possui uma lógica que rege seu funcionamento e
encontra coerência dentro do próprio sistema cultural. Contudo esta gica consiste
em uma forma de classificação distinta da ciência moderna; enfim, proporciona uma
determinada concepção de mundo aos indivíduos. “Cada cultura ordenou a seu
19
modo o mundo que circunscreve e que esta ordenação um sentido cultural à
aparente confusão das coisas naturais” (Laraia, 2002: 92).
A vida na humanidade não se desenvolveu de forma unívoca, mas sim por
meios bastante diversificados de sociedades e civilizações, gerando uma
diversidade intelectual, estética, sociológica e de técnicas corporais que não têm
relação direta com o plano biológico. “Existem muito mais culturas humanas do que
raças humanas [...]; duas culturas elaboradas por homens pertencentes a uma
mesma raça podem diferir tanto ou mais que duas culturas provenientes de grupos
racialmente afastados” (Lévi-Strauss, 1976: 54). Portanto, deve-se compreender que
se trata de culturas de diferentes povos indígenas, elaboradas em contextos
diferenciados, conforme sua localização no território brasileiro, e seu grau de contato
com outras culturas em determinados momentos históricos, conforme reforça o autor
a seguir:
A originalidade de cada uma delas reside antes na maneira particular como
resolvem os seus problemas e perspectivam valores que são
aproximadamente os mesmos para os homens, porque todos os homens
sem exceção possuem linguagem, técnicas, arte, conhecimentos de tipo
cientifico, crenças religiosas, organização social, econômica e política. Ora,
esta dosagem não é nunca exatamente a mesma em cada cultura (Lévi-
Strauss, 1976: 75).
Na tentativa de compreender a diversidade das culturas, deve-se ter a noção
de que, tanto no presente quanto no passado, está-se diante de sociedades
justapostas no espaço/tempo, umas mais próximas, mantendo um maior grau de
interação, outras mais afastadas, mas nem por isso isoladas, exceto em casos
excepcionais, pois as culturas se combinam, voluntária ou involuntariamente, por
meios variados. O fato é que sempre existiram sociedades contemporâneas e suas
diferenças culturais podem ter emergido de um tronco comum, como é o caso da
língua dos povos indígenas brasileiros.
Ao se observar uma cultura, devem ser considerados os valores e interesses
de cada sociedade que, muitas vezes, diferem de uma para outra, pois, desse modo,
se evita caracterizar uma sociedade como “primitiva” ou “selvagem”, num processo
de desenvolvimento comum. Tais sociedades o entendidas neste trabalho como
tradicionais, por serem distintas da sociedade urbano-industrial. Entretanto
negligenciar o conhecimento produzido por essas sociedades é superestimar a
orientação objetiva da ciência moderna.
20
Se o pensamento dos povos tradicionais é direcionado a realidades diferentes
das quais a ciência moderna toma como objeto, suas exigências intelectuais e seus
métodos de observação são similares. A diferença mais significativa é o
determinismo integral da ciência moderna, a sistematização de dados, enquanto que
no pensamento das sociedades tradicionais a mitologia traduz outra lógica de
explicação do conhecimento, concordando-se mais uma vez com o que observa
Lévi-Strauss.
Em lugar, pois, de opor magia e ciência, melhor seria colocá-las em
paralelo, como duas formas de conhecimento, desiguais quanto aos
resultados teóricos e práticos [...], mas não pelo gênero de operações
mentais, que ambas supõem (1970: 34)
.
Ambos os sistemas presumem séculos de observações, hipóteses
comprovadas e refutadas, por meio de experiências exaustivamente repetidas.
Deve-se, portanto, considerar que existem dois tipos de pensamento, de produção
do conhecimento e não estágios desiguais de desenvolvimento humano, mas de
níveis estratégicos distintos, em que um se aproxima da percepção e da intuição e
outro se mostra mais afastado.
Os mitos e ritos têm como valor modos de observação e de reflexão que
ainda hoje continuam adaptados a descobertas, a partir da organização e da
exploração sensíveis, porém não apresentam resultados menos reais que os da
ciência moderna. Tanto em uma quanto em outra forma de pensamento, o sujeito da
investigação deverá começar por um inventário minucioso de um conjunto
predeterminado de conhecimentos teóricos e práticos e de técnicas que restringem
as soluções possíveis.
No pensamento mítico, a imagem (ou signo) é algo concreto e assemelha-se
ao conceito por seu poder de referência; todavia, o conceito possui uma capacidade
ilimitada, enquanto a do signo é limitada. O signo representa o significante e o
conceito o significado. O pensamento mítico é generalizador, trabalha com analogias
e aproximações.
Não é somente o prisioneiro de acontecimentos e de experiências que
ordena e reordena, incansavelmente, para lhes descobrir um sentido; é
também libertador, pelo protesto feito contra a falta de sentido, com que a
ciência estava, a princípio, resignada a transigir (Lévi-Strauss, 1970: 43).
21
Se no plano do conhecimento o pensamento mítico possui uma analogia com
a arte do bricolage termo francês que se refere à execução de um trabalho com a
ausência de um plano pré-concebido no plano prático existe uma analogia entre o
rito e o jogo, pois todo jogo possui seu conjunto de regras previamente definidas e
consentidas por seus praticantes, o que o torna passível de ser disputado inúmeras
vezes. “Mas o rito, que se “joga” também, parece mais uma partida privilegiada,
retida entre todas as possíveis, porque ela resulta num certo tipo de equilíbrio
entre os dois campos” (Lévi-Strauss, 1970: 52). Ritos são acompanhados de jogos
de destreza ou de sorte que, à primeira vista, poderiam assemelhar-se às
competições desportivas, porém são imbuídos de sentidos e significados
ritualísticos.
Como a ciência [...], o jogo produz acontecimentos a partir de uma
estrutura: compreende-se, pois, que os jogos de competição
[esportivizados] prosperem em nossas sociedades industriais; enquanto
que os ritos e os mitos, à maneira do bricolage (que essas mesmas
sociedades industriais não mais toleram senão como hobby ou
passatempo), decompõem e recompõem conjuntos acontecimentais (no
plano psíquico, sócio-histórico (sic) ou técnico) e deles se servem como de
outras tantas peças indestrutíveis, em vista de arranjos estruturais que
exercem, alternativamente, o papel de fins ou de meios (Lévi-Strauss,
1970: 55).
Os jogos das sociedades tradicionais são práticas corporais que coloboram
para que valores, costumes, normas sociais e comportamentos desejados sejam
assimilados por meio dos corpos dos indivíduos, tendo como base suas tradições.
1.3 Jogo como elemento cultural
Huizinga (2004) considera o jogo como uma prática social diferenciada; sua
análise é construída levando em conta suas características. A primeira delas é o
divertimento, caracterizado pela ludicidade dos jogos mais simples. Não está ligado
a qualquer grau de civilização ou ideologia; trata-se de uma atividade voluntária,
praticada em momentos de tempo livre. Torna-se obrigação somente quando
constitui uma função cultural reconhecida, como o culto e o ritual. É uma prática
social livre e desinteressada, não diz respeito à satisfação das necessidades
materiais; mas, por ter uma finalidade autônoma, visa a uma satisfação que consiste
22
em sua própria realização que, por sua vez, segue uma ordem estabelecida pelas
regras que o compõe.
O jogo induz à criação de figuras, símbolos e materiais necessários a sua
prática. Trata-se de conjuntos de elementos cujo funcionamento complexo permite
que incontáveis situações se registrem. Nele se combinam idéias de limite, liberdade
e criação, balizadas por regras e convenções que devem imperar e serem
respeitadas de maneira inapelável, sob pena de que se encerre o jogo. Nessa ótica,
um conjunto de restrições é acordado e aceito por todos os jogadores,
voluntariamente, para que uma ordem seja estabelecida, sem a presença obrigatória
de um indivíduo que faça cumpri-las. É permitido inventar dentro dos limites
consentidos casos em que são desenvolvidas a liberdade de criação e a
participação do sujeito junto ao seu grupo. No jogo uma relação dialética entre
estes opostos: liberdade e limite. Nele estruturas abstratas são produzidas
possibilitando o aprimoramento de habilidades físicas e intelectuais e o
desenvolvimento de atitudes psicológicas que contribuem para a vida em sociedade
e para a continuidade de uma cultura. O jogo não prepara ninguém para o trabalho,
somente antecipa uma atividade ou uma função a ser cumprida na fase adulta. É um
meio de introduzir o indivíduo de forma geral na vida, aperfeiçoando sua capacidade
de resolver problemas decorrentes do contexto em que vive.
Segundo Huizinga, o jogo contribui para a estruturação das instituições que
ordenam a sociedade. Tem “uma função significante, isto é, encerra um determinado
sentido” (2004: 3) dentro de uma cultura, quer dizer, possui um elemento imaterial
em sua essência. Analisando as teorias do jogo, o autor encontrou um elemento
comum. Todas essas hipóteses partem do pressuposto de que o jogo tem relação
com algo que não seja o próprio jogo, algo que seja exterior a sua realidade
autônoma.
O jogo está presente nas diferentes sociedades contemporâneas. A grande
variedade e espécies de jogos colaboram para que sejam caracterizados como
práticas lúdicas que propiciam prazer e divertimento aos seus praticantes, porém
essas características o fazem objeto de pouca importância para a academia. Ao se
distanciar de atividades produtivas, como o trabalho, é estereotipado como “não-
sério”, praticado de forma espontânea e voluntária, sem que haja produção de bens
materiais.
23
O momento de sua realização está delimitado por espaço e tempo próprios;
entretanto, mesmo após seu rmino, o jogo promove a formação de grupos sociais,
com tendência a ressaltarem suas diferenças, podendo, desse modo, ser
considerado importante meio de valorização e conservação da diversidade cultural.
Assim sendo, por meio da criação de significados a serem conservados pela
memória, e transmitidos pela tradição, e podendo ser repetido a qualquer momento,
o jogo fixa-se como fenômeno cultural, contribuindo para a formação identitária de
cada povo. É o que assinala Huizinga a seguir:
Em sua qualidade de distensão regularmente verificada, ele [o jogo] se
torna um acompanhamento, um complemento e, em última análise, uma
parte integrante da vida em geral. Ornamenta a vida, ampliando-a, e nessa
medida torna-se necessidade tanto para o indivíduo, como função vital,
quanto para a sociedade, devido ao sentido que encerra, à sua
significação, a seu valor expressivo, a suas associações espirituais e
sociais, em resumo, como função cultural (2004: 12).
Caillois (1994) compreende a importância da análise original feita por
Huizinga (2004) em Homo Ludens, sobre as características fundamentais do jogo,
que demonstram sua importância para o desenvolvimento da civilização. Apesar de
considerar que essa obra deixa lacunas no que diz respeito a uma análise dos jogos,
em relação a sua prática e ao aspecto econômico, Caillois (1994) entende a
capacidade de o jogo contribuir para a construção de uma ordem social. Sua função
social tem sido modificada no percurso da história, principalmente durante o
desenvolvimento da sociedade moderna que promoveu a alteração de seus
significados e o despojou de sentido religioso.
O autor observa o estudo de Huizinga (2004) como uma investigação sobre a
origem do espírito dos jogos regulamentados, excluindo de sua análise as diferentes
atitudes psicológicas manifestadas em determinados tipos de jogos. Ambos os
autores deixam claro que o jogo deve ser definido como uma atividade de livre
escolha de participação, proporcionando prazer aos seus adeptos. Posto de outra
forma, uma ocupação cuidadosamente separada da realidade cotidiana e que, em
alguns casos, resulta um universo reservado e protegido, em que as regras da vida
ordinária são substituídas, dentro de certos limites de tempo e espaço, por regras
que são consentidas e respeitadas para que o seu desenrolar seja correto.
Na perspectiva de Caillois (1994), ao definir o jogo como uma atividade
desprovida de todo e qualquer interesse material, Huizinga (2004) acaba por excluir
24
de seu estudo os jogos de azar e as apostas decorrentes dos jogos, como no turfe.
E assevera: “Además, no tomarlos en consideración conduce a dar del juego una
definición que afirma o sobreentendimento de que el juego no lleva consigo ningún
interés de ordem econômico” (Caillois, 1994: 30). Compreendendo ainda que em
muitos casos os jogos apresentam significativa relação com a economia, o autor
verifica sua influência na realidade de diferentes povos. Contudo cabe aqui uma
diferenciação: o jogo não produz riqueza, o que o distingue do trabalho e da arte,
embora nele haja desde gastos de tempo, de energia, até de habilidade. Na
sociedade ocidental, todavia, os jogos esportivos proporcionam utilização de
recursos financeiros, por parte de seus atores, para a compra de materiais e aluguel
de locais para sua realização. Nesse sentido, os jogos esportivos ajudam a
economia, com a transferência de recursos financeiros, mas não com a produção de
bens.
O universo do jogo, limitado por um tempo e espaço específicos, promove a
construção de uma realidade autônoma, desvinculada das leis da vida real. O
espaço de realização dos jogos é um local reservado e protegido por regras precisas
que devem ser aceitas para seu correto andamento. As regras absolutas dos jogos
substituem as complexas leis da sociedade durante este tempo determinado. Quem
não as aceita não pode persistir jogando. Elas são responsáveis por trazer a
incerteza do resultado que deve permanecer duvidoso até que o jogo se por
encerrado. Durante este período seu adepto é livre para encontrar uma solução ao
desafio dentro dos limites consentidos por todos.
No entanto Caillois (1994) considera que existem muitos jogos sem regras;
são aqueles em que o prazer consiste em representar papéis. Nesse caso a ficção
(a imitação da vida) substitui as regras cumprindo as mesmas funções. Nesse
contexto, quem joga seguirá as regras existentes na sociedade, com a consciência
de que se trata de um fingimento. Essas duas características dos jogos são
excludentes entre si, posto que o jogo ou é regulamentado ou é fictício. Contudo, ao
caracterizar os jogos como fictícios ou regulamentados, Caillois (1994) abarca em
sua análise as brincadeiras e os esportes. Enquanto os últimos aparentam ser
atividades regulamentadas e rias da vida cotidiana, os primeiros são caricaturas
dela. Segundo o autor, o jogo é uma atividade:
25
Libre: a la cual el jugador no podría estar obligado sin que el juego perdiera
al punto su naturaleza de diversión atractiva y alegre;
Separada: circunscrita en limites de espacio y tiempo precisos y
determinados por antecipado;
Incerta: cuyo desarrollo no podría estar predeterminado ni el resultado
dado de antemano, por dejarse obligatoriamente a la iniciativa del jugador
cierta libertad en la necesidad de inventar;
Improductiva: por no crear ni bienes, ni riqueza, ni tampoco elemento
nuevo de ninguna especie; y, salvo desplazamiento de propriedad en el
seno del círculo de los jugadores, porque se llega a una situación idêntica a
la del principio de la partida;
Reglamentada: sometida a convenciones que suspendem las leyes
ordinarias e instauram mometáneamente una nueva legislación, que es la
única que cuenta;
Fictícia: acompañada de una conciencia específica de realidad secundaria
o de franca irrealidad en comparación con la vida corriente (Caillois, 1994:
37-38).
As características apontadas pelo autor permitem distinguir uma atividade
qualquer de um jogo; no entanto, a grande quantidade de jogos torna mais complexa
a tarefa de classificá-los, de descobrir princípios que possibilitem ordená-los em
categorias bem definidas. Enquanto um jogo demanda uma série de habilidades,
outro pode prescindir de nenhuma. Nesta perspectiva, em Los juegos y los hombres:
la máscara y el vértigo, Caillois (1994) procura fazer uma classificação dos jogos,
tendo em conta a atitude que deve ser exigida de seu praticante, propondo distingui-
los com base em quatro categorias fundamentais, a saber: a competição, o azar, a
imitação e a vertigem.
Cada uma dessas categorias é regida por dois princípios essenciais de
diferentes maneiras de jogar: o princípio da diversão, da livre improvisação,
chamado de paidia, e o princípio oposto e complementar a essa espontaneidade,
que é o regulamento denominado ludus, ou seja, a necessidade de
convencionalismos arbitrários que aumentam a dificuldade de se chegar ao
resultado desejado. Esse princípio vem disciplinar e enriquecer as livres
manifestações (paidia), na medida em que promove a conquista de uma
determinada habilidade. Tais princípios estão presentes em todos os jogos; no
entanto, existem jogos em que prevalência de um em relação ao outro. A
liberdade e a espontaneidade são encontradas com maior evidência nos jogos mais
simples, porém permanecem presentes nos jogos mais complexos e as regras são
inseparáveis quando assumem caráter institucional, fazendo parte da natureza do
jogo. O ludus, ou a tendência de agir sob normas preestabelecidas, é o princípio que
fornece aos jogos importância cultural, pois são as regras que transformam o jogo
26
em um elemento cultural. Esses princípios não revelam uma atitude psicológica
como as categorias fundamentais o fazem; todavia, enfatizam suas essências.
A competição “Agon” segundo Caillois (1994) é a categoria do jogo pela
qual se manifestam determinadas habilidades, como velocidade, resistência,
memória que são exercidas sem auxílio externo. “Esa es la regla de las
competencias deportivas y la razón de ser de sus múltiples subdivisiones” (Caillois,
1994: 43). Posto de outra forma, é a realização de jogos em que uma busca por
igualdade de oportunidades um dos princípios da competição. Esta suposta
igualdade traz à tona a desigualdade das capacidades dos competidores, tanto física
como intelectual, dado que fornece subsídios para que seja conhecido o vencedor.
Nos jogos competitivos a demonstração do esforço pessoal do indivíduo,
servindo, desse modo, para a afirmação de sua personalidade. A relação
competência-regulamento se na medida em que a regra traz ao jogador a
esperança de um novo êxito ao recomeçar a partida ou a rodada. Desta maneira,
quando não esta relação, o jogo, por sua forma de organização, não é capaz de
atrair um grande público a sua prática.
Em oposição a essa primeira categoria estão todos os jogos em que o
resultado não depende da capacidade do jogador, e sim da sorte, chamados de
Alea
3
. Nessa categoria, os jogadores não adquirem outra postura senão a de
aguardar que o azar recurso único do jogo não lhe traga a derrota. Essa atitude
é exatamente oposta àquela que proporciona satisfação nos jogos de competição.
No primeiro o jogador conta apenas consigo e, no outro, conta com indícios, com
particularidades, menos com seu próprio mérito. A sorte tem por função eliminar
superioridades adquiridas pelos indivíduos, com a finalidade de impor uma igualdade
absoluta aos participantes. Tanto nos jogos em que predomina a competição, quanto
nos de azar, regras precisas tentam substituir as contradições da realidade vivida,
em que é negada aos indivíduos a igualdade, por situações perfeitas.
A imitação terceira categoria conhecida como “mimicry”
4
diz respeito aos
jogos pelos quais os participantes aceitam, por tempo determinado, um universo
fictício. No jogo de simulacro presume-se a criação de personagem ilusória, por meio
do qual o jogador abandona sua personalidade temporariamente para assumir outro
papel. O prazer do jogo consiste em o intérprete mascarar-se com a finalidade de
3
Nome do jogo de dados em latim (Caillois, 1994: 48).
4
Em inglês, mimetismo (Caillois, 1994: 52).
27
representar uma personagem, que, por alguns momentos, fará parte do seu corpo. A
mímica e o disfarce são recursos utilizados nesse grupo de jogos, que engloba a
representação teatral, e a interpretação dramática em seu conjunto.
A categoria em que são agrupados os jogos de vertigem é chamada de
ilinx
5
. Consiste na tentativa de o jogo desestabilizar a consciência e criar uma
espécie de pânico súbito para se alcançar um transe, negando completamente a
realidade. É comparado ao gosto reprimido da desordem, manifestando formas
duras de afirmação da personalidade.
“Cada una de esas categorías fundamentales del juego presenta de ese
modo aspectos socializados que, por su amplitud y su estabilidad, han adquirido
carta de naturalización en la vida colectiva” (Caillois, 1994: 65). Praticar jogos cuja
essência seja competitiva, de sorte, de representação ou de vertigem contribui para
definir o que estar por vir em uma sociedade. E continua o autor “En efecto, esos
juegos ejemplifican los valores morales e intelectuales de una cultura. Además,
contribuyen a precisarlos y a desarrollarlos” (1994: 65). Contudo, por suas
características e suas categorias fundamentais, os jogos são atividades em que são
manifestadas habilidades individuais, mas também valores de uma sociedade,
compreendidos a partir dos sentidos e significados que lhes são atribuídos
culturalmente e, por sua vez, expressados no momento de sua realização.
Na sociedade ocidental moderna, a competição e o azar estão tão presentes
quanto a representação, desempenhando, por conseguinte, uma função social. Ao
imitar um adulto em momentos ritualísticos ou militares, e simulando seus
instrumentos e comportamentos, as crianças estão realizando uma atividade
paralela, em que a atividade séria dos adultos se faz presente simultaneamente à
diversão.
São as características próprias dos jogos que diferem suas atividades da
realidade cotidiana, mas que educam com a finalidade de preparar os indivíduos a
desempenharem papéis específicos. Não obstante, os princípios do jogo são
encontrados fora de seu universo fechado. O jogo aparece como uma prática de um
grupo limitado de pessoas que se encontram para vivenciar a atividade de sua
preferência. Portanto, pode-se inferir que por meio das manifestações individuais e
5
Nome grego dado a redemoinho d’água (Caillois, 1994: 61).
28
coletivas os jogos fornecem usos e instituições às culturas indígenas e ocidental
moderna e, por conseguinte, influenciam diretamente seus hábitos diários.
Os juegos disciplinan los instintos y les imponen una existencia
institucional. En el momento en que les conceden una satisfacción formal y
limitada, los educan, los fertilizan y vacunan el alma contra a virulencia. Al
mismo tiempo, los hacen apropiados para contribuir últimente ao
enriquecimiento y la fijación de los estilos de las culturas (Caillois, 1994:
104).
No entanto a cultura também interfere nos jogos, ameaçando corromper sua
natureza de ser uma atividade separada da vida corrente. Na medida em que se
confundir as regras imperiosas dos jogos com as leis que regem a existência
cotidiana, ou quando ausência dessas regras, o jogo passa a se subordinar à
realidade que, por seu turno, desvia-o de seus princípios.
A competição não é exclusivamente natural; a sociedade moderna a reforça e
a estimula fazendo com que se encontre a violência, física ou simbólica, quando as
rédeas legais não cumprem sua função. Esta é a premissa do processo civilizador
de Elias (2006), qual seja: a de impor freios que condicionam os indivíduos a
reprimirem seu impulso agressivo. Uma competição está corrompida no momento
em que não se reconhecem as regras e os responsáveis por colocá-las em prática.
Nesse momento, o regulamento, que fornece ao jogo igualdade de oportunidades e
freia a agressividade, o é mais consentido, fato que interrompe a disputa leal. É
certo que esta atitude tem deixado conseqüências desconfortáveis ao
desenvolvimento da humanidade (Elias & Dunning, 2006).
O jogo apresenta importância fundamental na construção do tecido cultural;
suas manifestações e suas estruturas aparecem interligadas, sendo regidas por
instituições e regulamentos. Os jogos e a cultura oferecem um ao outro ordens
complementares que não se excluem. As atitudes expressas nos jogos assim
também estão presentes na cultura dos diferentes povos. As próprias instituições
funcionam, em parte, como um jogo que responde a outras necessidades, sobre
outras regras, mas que exigem determinadas aptidões e fazem prosperar
determinados valores. Nos jogos esses valores são internalizados por um elevado
número de indivíduos. A relação jogo-cultura se quando existe a compreensão de
que os jogos, os hábitos e as instituições convivem e se complementam, permitindo
inferir que o destino de uma cultura pode ser reconhecido a partir da escolha, por
29
parte de seus praticantes, de jogos cujas categorias fundamentais revelam os
valores de cada sociedade.
Nessa concepção, as comunidades indígenas possuem uma variedade de
jogos e brincadeiras que permitem uma continuidade de seus padrões culturais.
Sendo transmitidos dos mais velhos aos mais jovens, se estabelecem como um
importante meio de aprendizagem de cnicas corporais que lhes serão úteis para
superação de desafios imposto pelo meio natural a sua sobrevivência. Observando a
diversidade de etnias indígenas que habitam o território brasileiro, nota-se a
existência de uma grande variedade de jogos e brincadeiras, sendo possível
compreender as diferenças entre esses povos, por meio de uma sociologia
amparada nos jogos que Caillois (1994) procura estabelecer através de suas
categorias fundamentais.
Essas categorias não se encontram separadas, não se excluem; pelo
contrário, suas características se combinam em inúmeros jogos. Encontram-se na
maioria das situações conjugadas, o que permite, de acordo com o autor, seis
conjunções, pois a vertigem não pode se associar com a competição
regulamentada. Enquanto uma demanda um abandono total da razão, a outra exige
um controle absoluto dela. Do mesmo modo, na interpretação não espaço para a
renúncia da habilidade de quem joga com a intenção de esperar pela sorte.
Interpretação e sorte não possuem relação alguma, pois, em uma mesma atividade,
uma atitude nega completamente a outra.
A sorte se associa bem com a vertigem. Ao se lançar ao desconhecido, o
jogador conta com a sorte para lograr êxito em sua atividade. O mesmo ocorre entre
a competição e a representação que se desenvolvem sob regras similares. Ambas
contribuem para ser criada uma ansiedade em relação ao resultado porvir e
esperam pela complacência de um público. A interpretação e a competição são
combinadas constantemente em eventos esportivos. Eles, por si só, já são um
espetáculo, com vestimentas, solenidades e rituais desenvolvidos perante regras
conhecidas. Em um jogo de competição, os candidatos mensuram sua capacidade
para uma multidão de espectadores. Visto por essa ótica, a interpretação reforça a
competição por meio da exigência que leva o jogador a não desapontar os
espectadores que o aclamam e, de certo modo, o dominam. Por sua vez, essa
situação favorece a ocorrência de um transe coletivo, que acaba por alimentá-lo.
30
Portanto, as competições esportivas são ocasiões perfeitas para manifestar-
se a representação, constituindo um momento de interação entre público e atores.
“Son dramas cuyas diferentes peripecias hacen al público contener el aliento y
llegan a un desenlance que exalta a unos y decepciona a otros” (Caillois, 1994: 57).
Mesmo que haja predominância da competência, da rivalidade e da competição,
este é um período propício para a interpretação e a interação entre jogadores e
espectadores. Na maior parte dos jogos, seu ápice ocorre quando uma
cumplicidade entre os atores neles envolvidos, a saber: quem joga, quem os assiste
ou quem torce. Essa combinação cria formas culturais e dela surgem instituições
carregadas de valores que são apropriados por todos.
Uma relação simétrica e complementar é vista entre representação e
vertigem, que presume constantes improvisações dos jogadores. Enquanto na
vertigem há o abandono da consciência, na representação a plena consciência
da simulação. O mesmo se passa entre a competência e a sorte. Apesar de serem
opostas, tais atitudes podem se manifestar em um mesmo jogo, visto que obedecem
a uma mesma norma, qual seja: a de criar artificialmente situações de igualdade,
substituindo as contradições da vida corrente por momentos livres de interferências.
A competição necessita de uma postura do jogador em que toda sua capacidade e
esforço individual são engendrados para lograr-se o resultado desejado. Quanto à
sorte, nada é esperado de quem joga, a não ser aguardar pelo êxito. A maneira de
se reconhecer o vencedor é oposta; no entanto, uma série de jogos combina essas
duas atitudes. Por conseguinte, trata-se de identificar a importância que as diversas
sociedades dão à competição, ao azar, a representação e ao transe, levando em
conta a escolha por determinados jogos.
Nas sociedades tradicionais em que não o desenvolvimento da ciência e
da técnica, como havia ressaltado Lévi-Strauss (1976), o que se evidencia é a
predileção da simulação e da vertigem encontradas nos seus jogos e brincadeiras
.
Entendendo-os como sendo atividades não-regulamentadas nas quais a ludicidade
se faz presente, nota-se que suas categorias fundamentais garantem a coesão da
vida coletiva. em sociedades urbano-industriais, que possuem um maior grau de
complexidade, o fator econômico interfere de maneira significativa nas relações
sociais, tendo em vista que a preferência é pela sorte e pela competência. Contudo
a predileção não poderia ser outra, senão o jogo esportivo, que combina a
31
competência regulamentada e a interpretação com a sorte, proporcionando a
expectativa do resultado até o fim da competição.
Os jogos o-competitivos se assemelham às brincadeiras pelas
características de prazer e diversão geradas pela espontaneidade das ações e se
distanciam dessa espontaneidade à medida que possui uma finalidade e um sentido.
Nos jogos um princípio de sistematização de regras fixas que no esporte são
exacerbadas, necessitando de uma organização mais ampla. Com efeito, as ações
espontâneas são menos presentes no esporte do que no jogo e na brincadeira, pois
o jogo esportivo envolve um alto grau de complexidade em sua organização. O
caráter competitivo é a essência do esporte e fator preponderante no alto
rendimento. Não obstante, para uma compreensão mais ampla, apresenta-se outra
dimensão do esporte: o esporte de lazer ou recreativo, que pode ser visto como
prática corporal realizada no tempo livre, trazendo consigo menos a rigidez das
regras institucionalizadas do que a fluidez do comportamento lúdico.
1.4 Esporte: um fenômeno contraditório
Considera-se que o esporte passou a ser objeto de estudo sistematizado a
partir da década de 1960, período em que uma Sociologia do Esporte começou a se
desenvolver. Inicialmente as análises sociológicas eram realizadas pelo setor
acadêmico mais diretamente envolvido com esse fenômeno – a Educação Física.
Em um primeiro momento, a Sociologia dedicou pouca atenção ao esporte
como objeto de estudo relevante ao desenvolvimento de suas teorias. Não obstante,
as práticas esportivas expressam continuidades e descontinuidades socioculturais
que as tornam um fenômeno social passível de análise, com foco em diferentes
teorias. Por um lado, com base na constatação da importância política, sociocultural
e econômica que o esporte passou a assumir; por outro, uma busca por ampliação
de temas de interesse da Sociologia e suas interfaces com a Antropologia Social,
ressalta-se que o esporte pode ser considerado um campo social que permite a
aplicação e o desenvolvimento das teorias sociológicas, podendo, desse modo,
contribuir para a compreensão de processos socioculturais mais amplos.
A sociologia do Esporte procura investigar a organização esportiva e os
microssistemas sociais que se desenvolvem no esporte, bem como os grupos, as
subculturas e a dinâmica cultural em geral. Nesse ínterim, a Sociologia do Esporte
32
recorre a grandes teorias sociológicas como as de raiz empírico-analítica, do
processo civilizador de Elias (2006), da teoria de Bourdieu (1990), da teoria crítica
da Escola de Frankfurt, dentre outras, permitindo distinguir o esporte de outras
práticas sociais e compreender as funções que ele desempenha nas sociedades
(Bracht, 2003).
Do ponto de vista sociológico, o esporte é um “fato social total” (Mauss, 2003),
por se tratar de um fenômeno que envolve aspectos sociais/culturais, psicológicos e
biológicos. É um fenômeno contraditório que possui características próprias
diferenciadoras de outras práticas sociais e corporais. Trata-se de um fenômeno
moderno e, segundo Bracht, “resultou de um processo de modificação [...] de
esportivização de elementos da cultura corporal de movimento das classes
populares inglesas, e também de elementos da cultura corporal de movimento da
nobreza inglesa” (2003: 13). Nessa percepção, entende-se a ocorrência de um
processo de esportivização de passatempos, decorrente de novos estilos de vida,
consolidados pela industrialização e urbanização no âmbito da cultura européia no
século XVIII.
A constituição de uma sociologia do esporte, na visão de Bourdieu (1990),
consiste no estabelecimento de propriedades sociológicas que permitem observar os
interesses e as preferências de cada classe social, evitando uma relação direta entre
um esporte e um grupo. O sistema de preferências não está ligado somente à
posição social ocupada por determinado grupo, mas também à experiência adquirida
pelo grupo no espaço social. É na relação entre o espaço/tempo esportivo e o
espaço/tempo social que as propriedades das práticas esportivas são definidas.
Uma compreensão das práticas esportivas depende do entendimento que se
tenha; se elas contribuem, e em que medida, para a manutenção da distância
existente entre as posições sociais de cada grupo. Portanto, devem ser levadas em
consideração as transformações históricas acarretadas pelo surgimento de uma
nova prática esportiva e a difusão de um determinado esporte. Esta difusão é
acompanhada de uma diversificação de seus praticantes que, por sua vez,
constroem um universo de diferenças em relação ao estilo, à competição e ao
treinamento, entre outras.
O desafio ao estudioso do esporte é construir a estrutura do espaço esportivo.
Sua análise deve partir da compreensão das transformações na estrutura que, em
um dado momento da história, se configurava de determinada forma e, por
33
conseguinte, cabe a esse profissional elaborar uma descrição sumária do
espaço/tempo considerados. As estruturas o produtos objetivados das lutas
históricas apreendidos num dado momento do tempo. Nesse âmbito, a construção
de estruturas objetivas e a identificação das representações construídas pelos
agentes devem ser consideradas dentro do universo das práticas esportivas.
No entanto Stigger (2002) observa ambigüidades no que se refere à tentativa
de definição do termo esporte, ou na tentativa de encontrar sua essência, seu
significado. Deve ser entendido como um fenômeno humano que constitui um
conjunto social e cultural, ou seja, como um conjunto de normas, valores e
representações orientadas por aspectos macrossociais que, por sua vez, necessita
de uma análise mais ampla. A abordagem sociológica de base marxista situa o
esporte como instituição e o apresenta como um elemento da cultura que reproduz
as determinações da estrutura social mais ampla. Nessa perspectiva, o esporte é
compreendido como uma instância composta por elementos materiais e produtos
culturais, possuidor de grupos específicos, com agentes de autoria e hierarquias em
que os papéis são definidos. ainda símbolos coletivos, comportamentos
determinados e um conjunto de representações.
Contudo o modelo de esporte reificado e praticado nos diferentes âmbitos da
sociedade capitalista é o do esporte de alto rendimento, aqui entendido como aquele
que possui “as características dos empreendimentos do setor produtivo ou de
prestação de serviços capitalistas” (Bracht, 2003: 18), ou como aquele “que é
sistematicamente treinado com o objetivo de participar periodicamente em
competições esportivas” (Kunz, 2006: 48). Na atualidade, seus produtos tendem a
tornar-se mercadoria e, desse modo, seguir as leis do mercado globalizado. Sua
abrangência é tamanha que se espalha pelo mundo inserindo seus sentidos de
maximização do rendimento e racionalização dos meios, nas mais diversas práticas
corporais.
Tendo a convicção de que não se trata de uma prática que apresenta um
único sentido, considera-se que o esporte possui diferentes dimensões ou formas de
ser praticado. Todavia, mesmo em sua dimensão recreativa, a competitividade se
faz presente e influencia as práticas de lazer esportivo. Tendo em vista que o
comportamento dos indivíduos é formado num processo educativo, condicionado
pelo meio social em que a pessoa está inserida, a escolha pelo lazer esportivo é
condicionada por uma organização social mais abrangente, impregnada de relações
34
competitivas, fazendo com que os indivíduos dessa sociedade construam sua
personalidade, nos momentos de tempo livre, baseados em valores da sociedade
capitalista de alcance mundial. Com o intuito de analisar a influência do esporte
sobre práticas corporais tradicionais, torna-se oportuno refletir sobre o
desenvolvimento humano proporcionado pelo esporte de alto rendimento e seu
impacto na vida social do indivíduo.
De acordo com Kunz (2006: 22), o esporte de alto rendimento possui
princípios sicos, quais sejam, “sobrepujança” e “comparações objetivas”. Esses
princípios trazem como conseqüências os “processos da seleção, da especialização
e da instrumentalização”, propiciando que as técnicas corporais assim como a
organização do espaço físico e os materiais utilizados sejam cada vez mais
normatizados e padronizados.
Assim, atualmente, em qualquer situação onde o esporte é praticado e
independente dos motivos que levam a essa prática, seja pelo lazer, pelo
rendimento ou como Educação Física Escolar, a tendência é pela
normatização e padronização dessas práticas, impedindo assim que um
horizonte de outras possibilidades de movimentos possa ser realizado. Isto
coíbe, inclusive, uma participação subjetiva dos indivíduos nas práticas do
esporte (Kunz, 2006: 23).
Tal fato ocorre devido ao próprio desenvolvimento das sociedades ocidentais
modernas, em que o princípio do rendimento permeia o conjunto de todas as ações
humanas, entre elas o esporte. Outra característica predominante no jogo
esportivizado é a sua essência competitiva. Ela exerce uma dominação no seu
significado atual, que estaria relacionada à conjuntura hipercompetitiva da sociedade
ocidental moderna, o que auxilia, portanto, para uma situação favorável ao
desenvolvimento do sistema capitalista e, no atual momento, de uma sociedade
global.
O estudo do esporte visto sob uma matriz teórica marxista demonstra que a
estrutura do modo de produção industrial nele se reproduz como o princípio do
rendimento: competição e hierarquia social. Nessa perspectiva, o esporte funciona
como reprodutor das relações sociais desiguais das sociedades capitalistas. A
competitividade culturalmente reforçada se insere de tal modo nas relações sociais
dessas sociedades, que pode até resultar em exclusão e individualismo, rivalidades
e disputas exageradas.
35
Com o entendimento de que o esporte não está dissociado do aspecto
político, econômico e social, faz-se profícuo trazer à tona a utilização histórica que
se fez dele pelo Estado, no Brasil e em diferentes países, por meio de políticas
públicas, com a finalidade de garantir interesses dominantes e a reprodução do
capital. Portanto, essa prática contribuiu para tal processo, seja como instrumento de
reprodução da força de trabalho, seja para atenuar tensões sociais. Compreende-se
a apropriação e legitimação do esporte de alto rendimento pelos Estados
capitalistas, por meio de uma série de características, que o torna atraente à
população, pelo fato de ser facilmente compreensível (linguagem acessível); pela
imprevisibilidade dos resultados; pela fácil adaptação à comunicação de massa. Por
todas essas peculiaridades o esporte de alto rendimento pode interagir com o
coletivo, além de revestir de um simbolismo próprio.
Durante o regime de exceção no Brasil, o esporte assumiu uma relação
corporativista com o Estado autoritário que impunha regras, diminuindo a autonomia
da organização esportiva, e o fazia cumprir funções públicas de seu interesse. Após
o fim desse período, é concedida a autonomia esportiva, porém de maneira regulada
pelo Estado, não o desvinculando, portanto, de produtos esperados, quais sejam,
controle da ordem pública, afirmação internacional do Estado e, no momento atual,
de crescimento econômico.
Observando as relações de poder existentes, o esporte de alto rendimento é a
forma hegemônica da cultura corporal de movimento nas sociedades complexas.
Seguindo uma orientação funcionalista, o elemento cultural do fenômeno esportivo
que o Estado tem enfatizado sua atenção, na atualidade, é o da integração, por meio
da qual trocas simbólicas e de bens culturais são realizadas, visando à reprodução
do capital. As trocas ocorrem em duplo sentido, e os grupos de minorias incorporam
os bens culturais da sociedade envolvente, cabendo a esses grupos reelaborar a
prática esportiva entre a coletividade. Por outro lado, a sociedade global se apropria
dos patrimônios culturais de diferentes grupos as práticas corporais
transformando-as, por meio da indústria cultural, em “itens” a serem consumidos,
indicando uma tendência à sua esportivização.
O interesse econômico que desperta o esporte de alto rendimento pode ser
constatado a partir das palavras de Bourdieu, que observa a progressiva
transformação do Comitê Olímpico Internacional (COI) em uma
36
Grande empresa comercial com o orçamento anual de 20 milhões de
dólares, dominado por uma camarilha de dirigentes esportivos e de
representantes das grandes marcas industriais, que controla a venda dos
direitos de transmissão (avaliados, para Barcelona, em 633 bilhões de
dólares) e dos direitos de patrocínio, assim como a escolha das cidades
olímpicas (1997: 125-6)
.
Nesse ínterim, nota-se um processo de mercadorização dessa prática, tendo
como ocorrência a penetração da lógica capitalista em seu contexto. Pode-se
entender esse processo como uma demanda da indústria cultural, caracterizando
também o esporte de alto rendimento como um produto cultural muito valorizado no
mercado internacional. O esporte-mercadoria, veiculado pelos meios de
comunicação de massa, está apoiado em uma ciência que busca soluções para um
aperfeiçoamento físico e técnico, a fim de produzir campeões. A indústria cultural,
por meio de seu produto esporte, faz com que os indivíduos assumam uma forma de
conduta que compreende ações padronizadas, de modo a estimular uma maneira de
pensamento baseada na racionalidade cnica. Os movimentos são realizados
independentes das experiências subjetivas dos indivíduos; trata-se, pois, de gestos
técnicos executados por um corpo bem treinado, relevantes por sua funcionalidade.
O esporte de alto rendimento, imbuído de valores, como os do rendimento e
da competitividade, com suas normas e exigências, é responsável por “formar”
interesses individuais condizentes com interesses do mercado mundial. Kunz afirma
que Marcuse (1955), teórico da Escola de Frankfurt,
foi um dos primeiros a denunciar que os efeitos ideológicos da dominação
não se enraizavam historicamente, apenas, nas condições
socioeconômicas, mas também, (sic) nas estruturas das necessidades que
constitui a disposição e a personalidade de cada indivíduo (Kunz, 2006:
27).
Nesse sentido, a estrutura básica do esporte de alto rendimento pode ser
alterada para atender aos “verdadeiros” interesses de seus praticantes, com vistas
ao desenvolvimento de determinadas competências fundamentais à formação de
sujeitos autônomos e emancipados. Sujeitos capazes de entender a relação entre o
esporte e a sociedade e saber posicionar-se criticamente em relação aos sentidos
atribuídos a essa prática, com os objetivos de ressignificá-la e humanizá-la.
Stigger, por seu turno, assinala que ao privilegiar aspectos estruturais da
sociedade e aspectos que caracterizam o esporte como realidade cultural específica,
37
os autores que apresentam o esporte como instituição trariam uma “visão
homogeneizada desta prática” (2002: 36). Desconsiderando, portanto, que o esporte
pode ter diferentes significados, que são atribuídos por seus praticantes em
diferentes contextos socioculturais. Para o autor, o se trata de um fenômeno
homogêneo, pois se relaciona com fatores diferenciais, tal como gênero, idade e
aspectos socioeconômicos.
A contribuição de um estudo histórico do fenômeno esportivo em suas
diferentes vertentes mostra-se relevante; no entanto, não se pode desconsiderar a
contribuição da teoria crítica em relação aos estudos sobre o esporte. Caracterizá-lo
como fenômeno moderno que possui relações com outras instâncias da sociedade,
que ocasionou sua consolidação em paralelo com o progresso do modo de produção
capitalista, é uma visão que pode ter limitações, porém ajuda na compreensão
desse fenômeno de modo mais abrangente.
1.5 Diferentes visões acerca do fenômeno esportivo
Nessa perspectiva, três autores que possuem visões distintas sobre o esporte
foram estudados, com a finalidade de que seus ensinamentos pudessem
proporcionar uma compreensão mais aprofundada do fenômeno e, a partir de então,
lograr uma análise mais acurada da esportivização de práticas corporais dos povos
indígenas.
A contribuição de Guttmann (2004) a esse estudo se deu a partir da sua obra
From ritual to record: the nature of modern sports e do auxilio de Stigger (2002) que
a analisou e a comentou. Nela, Guttmann (2004) apresenta em uma perspectiva
histórica sete características que diferenciam o esporte moderno visto como
instituição das práticas corporais, as quais ele classifica como: esporte primitivo,
esporte grego, esporte romano e esporte medieval. Isso não significa que tais
características não estavam presentes anteriormente; porém, reunidas, distinguem
essa prática como esporte de alto rendimento. São elas: secularismo, igualdade,
racionalização, especialização, organização burocrática, quantificação e o record.
Por outro lado, de acordo com a iia de heterogeneidade do fenômeno
esportivo, e com o intuito de demonstrar que o esporte pode possuir significados
diferenciados entre seus adeptos, o presente estudo apóia-se em Elias e Dunning
38
(2006) que analisam o esporte na perspectiva de um processo civilizador histórico
em sua obra Sport et civilisation: la violence maîtrisée.
O esporte, por esta análise, é entendido como um importante elemento para
reconhecimento da sociedade moderna. Ao passo que não se desconsidera uma
perspectiva institucional, seu enfoque é dado ao aspecto relacional desta prática, ou
seja, é a partir da estrutura da personalidade humana que decorre sua teoria. As
idéias dos autores abrem espaço a uma visão heterogênea, em relação aos
significados atribuídos ao esporte, observando-o como resultado do processo de
civilização que ocorreu na Inglaterra no século XVIII, especialmente o repúdio à
violência física que acabou por modificar hábitos sociais dos indivíduos daquela
época.
Na busca da compreensão de um sentido no processo civilizador, Elias (2206)
lançou mão de investigações “psicogenéticas” e “sociogenéticas”. Compreende-se a
origem dessa prática como um produto de outra ordem social que surgia em paralelo
com a ascensão do modo de produção capitalista e, por outro olhar, como sendo
parte do processo civilizatório inglês, em que uma maior resistência à violência física
se refletia nos hábitos sociais, a qual fora substituída pela violência simbólica.
Contudo, entende-se que nesse processo os indivíduos eram levados a dominar
suas emoções, devido a regulamentos e normas que restringiam ações violentas
dos praticantes (Stigger 2002: 28-29).
Por esse aspecto, torna-se possível compreender que o esporte exerce uma
função cultural, que é a de satisfação de uma necessidade de agressividade
humana, seja por meio de violência física regulamentada, seja pela violência
simbólica. O jogo organizado com regras preestabelecidas permite uma luta na qual
esta agressividade é levada até o limite consentido. Caso este limite tênue seja
ultrapassado, o esportista passa a ser visto como um transgressor que precisa ser
punido.
Por este olhar, o esporte como estrutura social é capaz de educar a pessoa
por meio de suas práticas corporais, devendo ser analisado como um produto da
sociedade ocidental moderna que “implica um crescente grau de interdependência,
diversificação de funções e regulação de ações” (Lucena, 2002: 115). A prática de
determinados tipos de esporte conduziram à formação de condutas desejáveis a
uma classe dominante que visava à consolidação de um processo civilizador. Esse
processo ocorre em duas fases distintas: a primeira é uma fase de assimilação por
39
uma classe subalterna, de padrões de condutas impostos, conscientemente ou não,
pela classe dominadora; a segunda, consiste em uma emancipação desses grupos
que se diferenciam e aumentam seu poder na sociedade, forçando a elite a moderar
sua ação, gerando como conseqüência conflitos sociais. Essa diferenciação
individual ou a individualização surge de um autocontrole específico e se desenvolve
por meio da consciência da autonomia relativa dos planos e ações dos indivíduos,
em relação ao meio social ao qual eles estão inseridos.
De acordo com Guttmann (2004), o esporte moderno seria um reflexo da
Revolução Industrial, assim como do movimento da Reforma Protestante,
responsáveis por provocar transformações sociais no âmbito da sociedade européia,
implantando tais características em práticas corporais tradicionais, em detrimento da
ludicidade presente nos jogos. As limitações que sua análise apresenta dizem
respeito a não considerar manifestações que o esporte assume em diferentes
espaços da sociedade – como o lazer esportivo e os esportes praticados em escolas
e também por desconsiderar a influência do fator econômico sobre ele. Seu ponto
de vista não distingue se os aspectos da sociedade moderna são incorporados às
práticas esportivas, em geral, ou se o esporte moderno é o reflexo do alto
rendimento.
Entende-se que os esportes caracterizados pelo autor como sendo primitivos,
antigos (gregos e romanos) e medievais sejam considerados jogos e que o esporte
moderno seja o esporte de alto rendimento, pois, na visão de Guttmann (2004), o
esporte se apresenta de maneira institucional. Esse tipo de esporte que na
atualidade se configura como esporte-espetáculo. Atrelado a interesses
mercadológicos, e devido a sua relação com a indústria cultural, dissemina-se pelo
mundo influenciando práticas corporais de diferentes grupos de pessoas.
Por meio do olhar de Elias e Dunning (2006) nota-se que, apesar de o habitus
exercer um controle social, os indivíduos têm a capacidade de se diferenciar,
independente dessas coerções externas que difundem o sentido dominante das
práticas. O habitus social age como o controlador externo do comportamento das
pessoas. É um produto da história das práticas individuais e coletivas, proveniente
de tensões e que, portanto, é revelador da estrutura social. O comportamento
partilhado socialmente é o solo do qual se emerge a diferenciação individual. A
individualização e habitus, nesta perspectiva, possuem uma relação autônoma, pois,
na medida em que a formação da estrutura da personalidade se dá por meio das
40
experiências individuais e pela relação de interdependência humana, a estrutura
social é somente ponto de partida que desencadeia esse processo. Contudo no
processo civilizador o mecanismo de autocoação ou autocontrole se torna mais
evidente que o controle social.
O esporte, enquanto promove um autocontrole nos indivíduos, e sendo prática
diferenciadora, contribuiu para a formação dos Estados modernos possibilitando que
as classes dominadas exercessem uma pressão estrutural, gerando constantes
tensões. Nesse ínterim, o esporte serviu de instrumento para o desenvolvimento de
um processo civilizador não planejado, em que os indivíduos se controlam
autonomamente, mas que, no momento de sua realização, tanto quem assiste
quanto quem joga almeja buscar excitação dentro de um limite socialmente
controlado, participando de forma ativa para a consolidação da sociedade.
O estímulo criador dessa carga de emoção, isto é, esta tensão que gera a
excitação no público e nos jogadores, é o que de particular nas práticas
esportivas. Não se trata de um mero espaço de ação motora, ou de descarga de
energia, mas de uma prática inserida em um contexto de um processo civilizador
que requer formas de participação pautadas por condutas específicas. Suas regras
são responsáveis por coibir as condutas que porventura venham a transgredir o
universo de ações aceitáveis; são elas também que proporcionam a excitação ao
criarem fronteiras tênues entre o que não é e o que é permitido.
Lucena, em O esporte na cidade: aspectos do esforço civilizador brasileiro,
afirma que:
A análise de Elias caminha no sentido de uma explicação que compreenda
essa prática [o esporte] como componente de um processo não planejado
e que tem, nas inter-relações com outros processos sociais, a possibilidade
de um entendimento de uma mudança em larga escala e em diferentes
níveis, culminando com comportamentos sociais diferentes da fase anterior
(Lucena, 2001: 47).
Explicação que aponta para um processo peculiar de diversificação de
funções nas sociedades diferenciadas, complexas e com ações individualizadas e
rigidamente reguladas. O esporte surge no âmbito de uma elite da sociedade
ocidental moderna, com o intuito de manter o controle das emoções que se refletem
no controle das ações motoras. O esporte se expande a outras configurações,
devido sua apreensão por outros grupos sociais que lhe conferem um sentido
diferenciado.
41
Stigger (2002), por seu turno, em Esporte, lazer e estilos de vidas: um estudo
etnográfico faz uma análise da teoria eliasiana aplicada ao esporte e, com isso,
acredita que: “Mesmo que o esporte constitua um elemento da cultura que traz
consigo muitas características que lhe são específicas [...], quando apropriadas
pelos atores sociais nas suas práticas localizadas e particulares, pode apresentar
manifestações bastante diversificadas” (2002: 15). Com esse argumento o autor
tenta compreender o esporte para além do plano institucional, como um fenômeno
cultural, elemento do estilo de vida de populações urbanas.
Ao analisar o fenômeno esportivo, Bourdieu apresenta uma leitura do esporte
em que as instituições, ou suas estruturas sociais, estão diretamente relacionadas
às estruturas da personalidade humana. Na tentativa de encontrar as leis que
determinam a reprodução social, ele aplica ao esporte a teoria dos campos. Os
diferentes campos possuem leis invariantes que determinam seu funcionamento.
Trata-se de “espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades
dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas
independentemente das características de seus ocupantes (em parte determinadas
por elas)” (1983: 89).
A análise dos campos, além de possibilitar a descoberta de propriedades
específicas de um campo particular, contribui para o conhecimento de suas regras
universais. Uma delas é que em cada campo uma luta é travada por grupos com
diferentes interesses; um conflito entre os que procuram ter os mesmos direitos
dentro de um campo e os que tentam mantê-los a um grupo dominante. Os objetos
de disputa são percebidos por aqueles que estão preparados a adentrar em
determinado campo. Significa dizer que essas pessoas devem ser dotadas de
conhecimentos que as façam identificar as leis, os interesses, o funcionamento e a
estrutura de um campo específico.
A estrutura de um campo se dá por meio da relação de força entre os agentes
ou as instituições engajadas na apropriação do capital específico, seja ele
econômico, social, cultural, seja simbólico que, acumulado no curso das lutas
anteriores, orienta as estratégias a serem seguidas. Portanto, nessa perspectiva de
análise estão envolvidos em um processo de interação os atores sociais, as
instituições e suas estruturas, almejando romper com dois métodos aparentemente
antagônicos: o objetivismo e o subjetivismo. No primeiro, a análise parte das
42
relações objetivas que determinam comportamentos individuais, enquanto no
segundo parte da experiência do indivíduo.
Bourdieu (1990) pretende relacionar dialeticamente ambos os métodos para a
construção do conhecimento científico. Em conferência realizada em San Diego,
EUA, em 1986, caracteriza sua teoria como sendo um construtivismo estruturalista
ou estruturalismo construtivista. Estruturalismo é apresentado no sentido dado por
Lévi-Strauss. Registra-se a afirmação de Bourdieu:
Por estruturalismo ou estruturalista, quero dizer que existem, no próprio
mundo social e não apenas nos sistemas simbólicos – linguagem, mito, etc.
–, estruturas objetivas, independentes da consciência e da vontade dos
agentes, as quais o capazes de orientar ou coagir suas práticas e
representações. Por construtivismo, quero dizer que há, de um lado, uma
gênese social dos esquemas de percepção, pensamento e ão que são
constitutivos do que chamo de habitus e, de outro, das estruturas sociais,
em particular do que chamo de campos e grupos, e particularmente do que
se costuma chamar de classes sociais (1990: 149).
O esporte praticado por grupos distintos dentro de um mesmo contexto social
possui uma relação de interação e conflito. Em uma sociedade marcada por
contradições sociais, os protagonistas da prática esportiva, em muitos casos, não
são capazes de reconhecer que as coerções sociais têm influência em seu
comportamento. Contudo o fenômeno esportivo possui em seu interior uma lógica,
um universo de significados que necessita ser compreendido a partir dos diferentes
protagonistas e espaços em que é praticado. Nessa perspectiva, a ciência deve
estudar tanto a realidade esportiva quanto a percepção que se tem dela; pontos de
vista construídos em função da posição ocupada no espaço social e de seu habitus,
isto é, “as estruturas mentais através das quais eles apreendem o mundo social, são
em essência produto da interiorização das estruturas do mundo social” (Bourdieu,
1990: 158).
Para tanto, deve-se ter a noção de que o funcionamento do campo esportivo
depende da existência de objetos de interesse e de disputas e de pessoas com
determinados habitus que identifiquem e dêem legitimidades às leis que conduzem
as relações produzidas nesse campo. O espaço esportivo não deve ser analisado
separadamente do espaço social no qual está inserido e nem das representações
propostas por seus praticantes, pois revelam um conjunto de práticas e um sistema
de consumos que decorrem do fenômeno esportivo.
43
O universo das práticas esportivas é:
Resultante da relação entre uma oferta, produzida por uma história
anterior, isto é, um conjunto de modelos”, de práticas (regras,
equipamentos, instituições especializadas), e uma procura, inscrita nas
disposições. A própria oferta tal como se apresenta num dado momento,
sob a forma de um conjunto de esportes passíveis de serem praticados (ou
vistos), é produto de uma longa série de relações entre modelos de
práticas e disposições para a prática (Bourdieu, 1990: 213).
Em outras palavras, a distribuição das práticas esportivas provém de uma
relação entre a oferta, que possibilita a realização de possíveis práticas, e a procura
por estas práticas, com base nas disposições de seus praticantes. Ressalta-se que
as disposições que conduzem a procura pelas diferentes práticas esportivas estão
relacionadas ao habitus e são definidas pelo estado atual de ofertas.
Bourdieu (1990) observa essa disposição por meio de duas visões que
relacionam esporte e posição social. A primeira é descrita como sincrônica, na qual
um determinado programa esportivo é diretamente relacionado a uma posição
social. A outra, diacrônica, admite que qualquer agente de posições sociais
diferentes por conseguinte, com disposições diversas podem apropriar-se de
qualquer esporte. Nessa forma de leitura, o fenômeno esportivo tem a possibilidade
de atender aos interesses dos mais diferentes grupos sociais que, por sua vez, são
influenciados pelos interesses dominantes ou, no presente momento histórico, por
interesses mercadológicos.
Nesse grande comércio que se tornaram os eventos esportivos são
produzidas imagens e discursos midiáticos capazes de atrair um numeroso público
de consumidores aos bens esportivos. A televisão fornece maior espaço em sua
programação aos esportes e aos atletas que propiciarem lucros e satisfizerem o
orgulho de um público com vitórias. Na representação criada pela mídia, os atletas
tornam-se as estrelas do espetáculo que, para serem reconhecidos, devem vencer,
serem os melhores, os campeões. Contudo observa-se uma exploração simbólica e
econômica das vitórias e uma industrialização da produção esportiva.
Nessa perspectiva, concorda-se com o autor ao afirmar que:
Em matéria de esporte, estamos frequentemente, na melhor das hipóteses,
no estágio da dança do culo XIX, com profissionais que se apresentam
para amadores que ainda praticam ou praticaram; mas a difusão favorecida
pela televisão introduz cada vez mais espectadores desprovidos de
qualquer competência prática e atentos a aspectos extrínsecos da prática,
44
como o resultado, a vitória. O que acarreta efeitos, por intermédio da
sanção (financeira ou outra) dada pelo blico, no próprio funcionamento
do campo de profissionais (como a busca de vitória a qualquer preço e,
com ela, entre outras coisas, o aumento da violência) (Bourdieu, 1990:
218).
Mas tem-se que o sentido do esporte-espetáculo construído e reafirmado a
todo instante pela indústria cultural de forma geral, e mais especificamente a
televisão, têm influenciado o habitus social de uma sociedade globalizada. A
abrangência alcançada pelo discurso esportivo, produzido por agentes dominantes,
tem propiciado que o sentido do esporte-espetáculo penetre nas mais variadas
práticas corporais dos mais diferentes grupos sociais, alterando seus sentidos
originais e incorporando esses grupos, de possíveis consumidores ao mercado
mundial pelo aspecto esportivo.
1.6 Esportivização: a que se refere este termo?
O uso do termo esportivização, para a análise de mudanças de sentidos e
significado das práticas corporais indígenas, se com base na visão de Bracht que
entende esportivização como um “processo de absorção por outras práticas
corporais inicialmente não-esportivas, dos códigos e princípios que caracterizam o
esporte” (2003: 24). Desse modo, os jogos tradicionais foram esvaziados de seu
sentido inicial, e as práticas corporais tradicionais passaram a assumir as
características básicas do esporte de alto rendimento. O fenômeno esportivo
penetrou na cultura corporal de movimento de diversos povos com suas técnicas
corporais, tornando-se sua expressão hegemônica, o que tornou legítima a utilização
do termo esporte para referir-se a uma gama de outras práticas corporais.
González observa a esportivização como um fenômeno que afeta tanto a
cultura corporal de movimento como a própria subjetividade e, nesta ótica, apresenta
dois diferentes sentidos a este termo. O primeiro refere-se ao processo de
modificação de práticas corporais que passam a assumir os códigos do esporte de
alto rendimento, quais sejam: “comparação objetiva, desempenho, regras oficiais-
únicas, institucionalização, racionalização das práticas/treinamento na busca por
maximização do desempenho” (González, 2006: 78).
A fim de esclarecer o segundo sentido de esportivização, González (2006) se
apóia em Maguire (2003) que a considera como um processo de incorporação da
45
lógica do esporte de alto rendimento em outros espaços sociais que o sejam
aqueles do campo das práticas corporais. Compreende-se que a lógica dessa
prática social penetra em outros espaços afetando as diferentes sociedades.
González (2006) ainda traz a contribuição de Adorno (2004) que analisa o esporte
na indústria cultural e entende como processo de esportivização uma socialização a
partir da relação do público com o esporte-espetáculo, contribuindo, nesta
perspectiva, para a formação da subjetividade. Todavia o processo de
esportivização se evidencia quando se observa que a lógica do esporte de alto
rendimento espetáculo competição e rendimento se faz presente nos diferentes
espaços e, desse modo, permeia as relações sociais modificando a visão de mundo
dos indivíduos (Gonzalez, 2006: 79). Segundo o autor, esse processo tem
proporcionado posicionamentos contrários à esportivização de diversas
manifestações, como a capoeira e movimentos que almejam esportivizar jogos e
práticas corporais tradicionais, numa perspectiva de (re)tradicionalização.
Concordando com as idéias dos autores, entende-se aqui outra concepção de
esportivização no contexto da apropriação de práticas corporais indígenas como
sendo: um processo de incorporação da lógica do esporte de alto rendimento,
caracterizado na atualidade pela mercadorização do esporte-espetáculo, em práticas
corporais tradicionais e em outras esferas da vida social que, por conseguinte,
interfere na formação da subjetividade e do habitus social. Surge, com isso, uma
ressignificação das tradições, o que Farias (2004) chama de (re)tradicionalização,
com movimentos de continuidades e descontinuidades, em relação às tradições e
práticas corporais desses povos. Essa discussão, bem como outras que foram
trazidas ao longo desse quadro teórico, serão retomadas na análise dos dados.
46
CAPÍTULO 2
ANÁLISE CULTURAL: EM BUSCA DE UMA DUPLA INTERPRETAÇÃO
O presente capítulo visa a explicitar a perspectiva metodológica adotada para
o desenvolvimento do trabalho. Tem-se como objetivo apresentar o método de
pesquisa definido para o estudo dos Jogos dos Povos Indígenas, as técnicas e os
procedimentos de pesquisa, assim como a perspectiva de análise. Para tanto,
propõe-se construir um diálogo entre os campos das Ciências Sociais e o da
Educação Física, configurando-se como um estudo de caráter interdisciplinar, com
base em uma metodologia em que tanto as relações objetivas da sociedade quanto
as ações sociais (individuais e coletivas) servem de referência para a construção de
uma leitura da realidade. Localizando-se em uma posição de equilíbrio entre o
empirismo e a visão cartesiana de racionalismo, o método de estudo rompe com o
limite entre sujeito e objeto e passa-se a compreender o objeto de estudo como
sujeito investigado.
Nessa perspectiva, a interação social em que indivíduo e sociedade estão
(inter)relacionados fomenta relações nas quais os símbolos são criados,
interpretados, compartilhados e alterados, em função de determinados interesses.
Os sentidos apresentados pelos objetos simbolizados têm fundamental importância
para a compreensão do comportamento indígena e, por conseguinte, de suas
sociedades. Estas, por seu turno, são compostas por estruturas significantes que,
em certa medida, influenciam a consciência do homem e, em assim sendo, a
elaboração dos sentidos.
A fim de construir um conhecimento sobre o sujeito investigado que perpassa
a Antropologia, a Sociologia e a Educação Física é relevante observar que esses
campos “compartilham determinados objetos de estudo, ainda que não
necessariamente com os mesmos interesses e enfoques” (Magnani, 2001: 17). As
primeiras oferecem métodos e técnicas de pesquisa, além de categorias e modelos
explicativos, com base em conceitos, como o de cultura e dinâmica social, enquanto
a última tende a problematizar recortes, principalmente como campo de
investigação, tendendo para o predomínio de um viés biológico/fisiológico. Nesse
contexto, o corpo vem sendo o objeto mais estudado de modo interdisciplinar e se
constitui elemento central da área da Educação Física, por ser seu objeto de estudo
47
e intervenção, e, na Antropologia, por ser considerado um campo tradicional de
investigação.
A concepção de homem na modernidade tem sua origem no pensamento
mecanicista, que serve de base para a abordagem positivista de ciência,
pensamento de natureza individualista, em que se encontra uma dualidade entre a
essência do ser e seu corpo. O método utilizado para o estudo de um objeto, por
este tipo de pensamento, divide o todo em partes e controla suas variáveis, se
tornando científico. Esse pensamento forneceu a base teórica que influenciou o
conhecimento que provinha de uma ciência nova.
Acreditava-se que ao se encontrar a origem do homem, um ser puro sem
influências culturais, poder-se-ia compreender como se deram seu desenvolvimento
e suas desigualdades. Com a intensificação dos estudos na área, as premissas de
linearidade e seqüência de estágios de desenvolvimento humano foram superadas e
passou-se a reconhecer a Antropologia como ciência social. Nesse percurso, o
homem é compreendido como sendo um animal incompleto e inacabado que se
completa por meio das particularidades culturais e que, “a espécie humana
chegou a se constituir como tal pela concorrência simultânea de fatores culturais e
biológicos” (Daólio, 1995: 33).
A partir de então, pensar a natureza humana como sendo exclusivamente
biológica e desvinculada da cultura é um equívoco. Essa outra forma de pensar o
homem traz o entendimento de que as semelhanças ou diferenças físicas são frutos
de um conjunto de significados que cada sociedade inscreve em seu corpo, ao longo
do tempo, “por ser ele o meio de contato primário do indivíduo com o ambiente que o
cerca” (Daólio, 1995: 39). Na medida em que as diferentes sociedades se
expressam, por meio dos corpos de seus membros, esses são vistos como uma
construção cultural, pois, onde se manifestam as regras das relações humanas,
pode-se reconhecer uma cultura. A cultura ordena o meio a partir de regras; no caso
do corpo, seu controle torna-se basilar para o desenvolvimento de padrões culturais
específicos. Os indivíduos, desde o nascimento, apreendem valores normas e
costumes sociais por meio dos seus corpos, ou seja, um conteúdo cultural é
incorporado ao seu conjunto de expressões.
Uma concepção antropológica possibilita ampliar a visão da educação
física sobre o corpo [...]. Além do aspecto biológico que o corpo
evidentemente possui e que deve ser digno de estudo pela área, importa
48
também o caráter cultural expresso pelo corpo e que identifica o homem no
seio de uma dada sociedade (Daólio, 2001: 31).
As técnicas corporais são objeto de uma grande quantidade de estudo nessa
área. Visto sob o aspecto cultural, todo movimento humano é um gesto criado e
transmitido que atende a necessidades materiais e simbólicas. Com efeito, as
técnicas possuem tradição, sendo apreendidas por meio de processos educativos
próprios de cada cultura e eficácia, pois auxiliam o homem a solucionar problemas
de sua vida ordinária, dando sentido aos movimentos de seu corpo. A sociedade
fornece ao indivíduo a segurança e a destreza nos movimentos e que, por
conseguinte, lhe permite uma resposta coordenada às exigências que o meio social,
cultural e natural impõem ao seu corpo. “Para as sociedades indígenas, as formas
de transmissão das técnicas corporais [...] transformam o corpo biológico em corpo
social e possibilita que a pessoa passe a se identificar em seu grupo e por ele seja
identificado” (Grando, 2005a: 167).
Mauss (2003) enumera uma série de técnicas corporais que constituem um
“homem total”, em que estão em constantes relações os aspectos biológico,
sociológico e psicológico. As técnicas estão presentes desde o início e acompanham
esse ser durante toda vida. Técnicas da infância, da adolescência, da idade adulta,
de repouso, de cuidados com o corpo, etc. Dentre elas as cnicas do movimento,
que são utilizadas nos jogos e brincadeiras e no esporte, se apresentam como
objeto clássico de investigação da Antropologia.
Por seu turno, os jogos e brincadeiras e o esporte são, por si, temáticas que
possuem pontos de intersecção entre ambos os campos do conhecimento: a
Antropologia e a Educação Física. Para compreender a dinâmica do objeto de
estudo, enquanto um encontro de um conjunto de práticas corporais construídas
culturalmente, realizou-se uma investigação, com base nos pressupostos
metodológicos das Ciências Sociais, por meio de método de pesquisa composto por
fases distintas.
Esse todo abre a perspectiva de análise do esporte por outro ponto de
vista, ampliando a margem de reflexão e interpretação. Nesse ínterim, as pessoas
participantes deste evento são sujeitos sociais que estão imersos em uma dinâmica
cultural da qual faz parte um conjunto de representações. As ações dos indivíduos
devem ser analisadas em relação a essas representações e não fora desse
contexto, de forma isolada. Essas práticas, por serem expressões ou derivações de
49
valores coletivos, possuem uma lógica que orienta seu funcionamento e produz
comportamentos, aos quais cabe à ciência desvelar. Portanto, a primeira
contribuição das Ciências Sociais ao estudo consiste em tematizar e situar as
práticas corporais apresentadas nos Jogos dos Povos Indígenas, como objeto de
estudo num quadro conceitual.
2.1 A experiência metódica
A experiência metódica consistiu na realização de um estudo sobre os Jogos
dos Povos Indígenas; todavia, para melhor apropriação do significado atribuído ao
esporte nos Jogos por parte dos indígenas, e visando a criar um melhor
delineamento do objeto de investigação para apresentar conceitos, formular
hipóteses e verificá-las a partir de uma análise cuidadosa, foi realizada inicialmente
uma Pesquisa Bibliográfica. Nesse momento, que serve de pressuposto para
elaboração da metodologia, foi consultado um referencial teórico que abarca, em
seu conjunto, autores das Ciências Sociais que permitem um diálogo com a área da
Educação Física. Essa fase consistiu em fazer um levantamento detalhado de livros,
artigos e publicações que fornecessem subsídios teóricos em relação ao objeto. O
objetivo foi o de elaborar uma fundamentação teórica e problematizar as práticas
corporais em sociedades tradicionais, com base nos conceitos de cultura, jogo e
esporte, que conduziu a análise dos dados.
O momento seguinte consistiu na realização de uma Pesquisa Documental
em Brasília/DF, durante o período compreendido entre abril de 2007 e maio de 2008.
Nessa etapa, foram feitas consultas nos bancos de dados da Fundação Nacional do
Índio (Funai), na Secretaria Nacional de Desenvolvimento do Esporte e Lazer
(SNDEL), na Secretaria Nacional de Esporte Educacional (SNEE) e na Assessoria
de Comunicação (Ascon), estas últimas do Ministério do Esporte e, por fim, na
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do
Ministério da Educação. Naquela oportunidade, foram priorizados documentos que
fundamentam a realização dos Jogos dos Povos Indígenas, sua história, princípios e
objetivos, assim como aqueles que dizem respeito aos direitos dos povos indígenas.
50
Os documentos recolhidos estão apresentados na Tabela abaixo:
Tabela 1 – Documentos recolhidos
Documentos Ano Fonte
Regulamento Geral 1999 Ministério do Esporte
Histórico 2007 Ministério do Esporte
Orientações Específicas das Modalidades 2007 Ministério do Esporte
Orientações para registro fotográfico 2007 FUNAI
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos
dos Povos Indígenas
2007 FUNAI
Referencial Curricular Nacional para as Escolas
Indígenas
2005 Ministério da Educação
Fonte: Almeida, A. Brasília: 2008. Com base na pesquisa documental.
Outro importante meio de informações foi o documentário de Ronaldo Duque
IX Jogos dos Povos Indígenas que foi produzido durante a realização dos Jogos
em Recife, por meio de uma ação intersetorial entre o Ministério da Cultura e o
Ministério do Esporte, e que resulta em um importante documento, fazendo parte do
acervo do núcleo de pesquisa da Rede CEDES (ME/UnB). Por fim, ainda nessa
fase, foram identificadas as etnias participantes e elementos da cultura corporal de
movimento de cada uma, com o intuito de reconhecer quais são as práticas
corporais realizadas por essas etnias em seu cotidiano (v. Tabela 2: 70).
2.2 Reconhecendo o campo
A Pesquisa de Campo foi realizada durante a IX edição dos Jogos dos Povos
Indígenas, em Pernambuco, nas cidades de Recife e Olinda, no período de 23 de
novembro a de dezembro de 2007. Na ocasião, procurei me inserir no contexto
desse evento e assumir um papel ativo. Para tanto, na condição de voluntário da
Subcomissão de Avaliação e Documentação, participei da pesquisa sob a
coordenação da Diretora do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério do
Esporte Dra. Leila Mirtes Magalhães Pinto. Os trabalhos dessa subcomissão tinham
como propósito levantar dados para a elaboração de um acervo documental, com o
objetivo de conceber um registro da história dos Jogos dos Povos Indígenas. O
51
intuito foi compreender o seu significado para as etnias participantes, assim como
suas práticas corporais, com a finalidade de contribuir para a criação de políticas
públicas de Esporte e Lazer que respeitem as particularidades de cada cultura dos
povos indígenas no Brasil.
Entendendo o conceito de cultura como sendo um conjunto de mecanismos
simbólicos para controle do comportamento humano, socializados publicamente, e
com a perspectiva de construir um estudo interdisciplinar, aproximando as Ciências
Sociais do campo da Educação Física, procurou-se observar elementos relevantes
como falas, depoimentos e acontecimentos que permitissem uma interpretação.
Vivenciar o momento de realização do evento intercultural possibilita fazer
construções a partir do contato direto com o objeto estudado, momento em que o
pesquisador “inscreve o discurso social. Ao fazê-lo, ele o transforma de
acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento de ocorrência,
em um relato, que existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente”
(Geertz, 1989: 29).
Na ocasião foram utilizadas as seguintes técnicas de pesquisa: Observação
Participante; Entrevistas com roteiros pré-estruturados; coleta de Registros
Fotográficos, de Áudio e de Vídeo e anotações em Diário de Campo referentes às
práticas corporais, com o registro detalhado do período em que estive presente no
local. A captura de imagens de filmagem e fotografias teve o intuito de fornecer
elementos mais precisos para um detalhamento minucioso das manifestações
culturais apresentadas durante o evento e servem como importante elemento para a
respectiva análise.
Sobre o papel de cientista Cardoso de Oliveira (1998) ensina que é
transformar o sentido em significado, por meio de três atos cognitivos ou etapas que
compõem a produção do conhecimento: o olhar, o ouvir e o escrever, atitudes
fundamentais para que se possa concretizar o desafio de encontrar uma coerência
no sistema de símbolos observados. Essas etapas apresentam “responsabilidades
intelectuais específicas, forma, pela dinâmica de sua interação, uma unidade
irredutível” (Cardoso de Oliveira, 1998: 12) que permitem ao pesquisador construir o
saber científico. O olhar e o ouvir constituem a percepção do sujeito da pesquisa,
elaborada à luz dos conhecimentos antropológicos. no ato da escrita, esta e o
pensamento ocorrem de maneira quase simultânea para a construção de um
52
discurso que propicie um olhar sobre o objeto investigado e, com isso, possa vir a
contribuir com a teoria social.
2.3 A construção do Olhar
O primeiro dos atos cognitivos a ser executado em uma Pesquisa de Campo
é o olhar. Observa-se o objeto de estudo de maneira particular, apreende-se tal
objeto conforme a estrutura intelectual à qual formou a maneira de olhar do
pesquisador. Um olhar disciplinado por uma teoria que possibilita ao pesquisador ver
a realidade distinta de outros olhares e tirar informações que retratam previamente
comportamentos, modo de pensar e viver do sujeito-objeto do estudo; um olhar que
se torna imprescindível na pesquisa social, particularmente na pesquisa de campo.
Tendo essa noção, procurei estudar como surgiram os Jogos dos Povos
Indígenas, seus objetivos, princípios e história, bem como sua estrutura em edições
anteriores. o obstante, apreender elementos culturais das diferentes etnias
participantes dos jogos foi extremamente relevante para entender como se dão seu
modo de vida, seus pensamentos, principalmente para compreender os sentidos e
significados de suas práticas corporais. Com esse procedimento, pude elaborar um
pensamento que me fornecesse subsídios para a construção de um olhar
diferenciado em campo.
A apreensão da realidade por meio do olhar em uma pesquisa de campo
presume que o pesquisador realize no campo uma observação participante. Nela tal
especialista se faz presente na situação social a ser investigada, participando, de
modo horizontal, com os sujeitos observados, o que representa uma experiência em
seu modo de viver em grupo. Nesse âmbito, o pesquisador se insere ou é inserido
em outros modos de vidas que lhe são desconhecidos; com efeito, a pesquisa de
campo possibilita a criação de um espectro de aceitação entre os membros do grupo
estudado, preponderante para captação dos significados.
A primeira descrição foi elaborada no contexto vivido e anotada no Diário de
Campo que me acompanhou durante toda a jornada. Tudo que fosse passível de
reflexão era anotado e, a cada vez que retornava com outros registros, outras
interpretações surgiam. Foram registrados discursos e falas dos atores sociais
envolvidos, tal como os acontecimentos programados, especificamente as
demonstrações e as competições referentes às práticas corporais e relações
53
interpessoais notadas durante o evento. Para rememorar o passado e enriquecer a
análise, registros de imagem e vídeo foram realizados e socializados com outros
personagens que também os faziam. Os registros de áudio capturaram discursos
durante os acontecimentos das atividades nos Jogos, a exemplo da cerimônia de
acendimento do fogo, na cerimônia de abertura oficial, no congresso técnico, nas
mesas-redondas do fórum social indígena e nas competições e apresentações das
manifestações culturais. Os discursos proferidos tanto pelas autoridades (como o
Ministro do Esporte) quanto pelos idealizadores dos Jogos e lideranças indígenas
foram gravados em aparelhos de captação de áudio, e posteriormente transcritos,
formando parte dos dados analisados. Poder rever comportamentos, discursos e
fatos, me fez ganhar profundidade na interpretação do material, passando de uma
compreensão ingênua para uma compreensão embasada teoricamente, no
momento de exercício do pensamento.
Rica em termos de troca de conhecimentos e sentidos, que mais tarde se
transformarão em significados, a observação participante revela aspectos da
estrutura social e de sua dinâmica, reafirmando e criando novos conceitos para
explicar a realidade. Portanto, o cientista deve estar atento a possíveis fatores
externos que conduzem a interpretações errôneas sobre o objeto investigado. Entre
eles o viés do tipo sociocultural, em que o observador compartilha valores de sua
própria cultura, no desempenho de sua função, e o viés do tipo ideológico, no qual
há uma indução da observação do quadro conceitual do pesquisador.
2.4 O Campo em foco
A fim de realizar uma observação participante conduzida por essa concepção
metodológica, procurei me inserir no âmbito dos IX Jogos dos Povos Indígenas,
assumindo um papel na realização desse evento. Desse modo, vivenciei uma
realidade que somente esse contexto poderia apresentar. Minha participação como
voluntário da Subcomissão de Avaliação e Documentação dos IX Jogos dos Povos
Indígenas ocorreu sem nenhum ônus
6
ao Ministério do Esporte. Fazer parte da
referida subcomissão contribuiu para que novas indagações surgissem. Foi durante
as reuniões para construção do plano de trabalho dessa subcomissão que passei a
6
No sentido financeiro.
54
direcionar meu olhar para outro foco. Foi-me disponibilizado um espaço no
alojamento e alimentação durante a realização do evento, o que me permitiu ter um
contato mais próximo e constante com os atores envolvidos, principalmente com
indígenas das etnias participantes.
Para os trabalhos da Subcomissão de Avaliação e Documentação, participei
da realização de entrevistas com autoridades presentes, entre elas: o Ministro do
Esporte, o Secretário Nacional de Identidade e Diversidade Cultural, a Prefeita de
Olinda, o Coordenador Geral de Artesanato Indígena da Fundação Nacional do Índio
e os idealizadores do evento. Naquela oportunidade entendia-se a necessidade de
dar voz aos atores principais dos jogos. Partindo dessa premissa, a subcomissão, da
qual faziam parte pouco mais de 25 pessoas, elaborou um questionário com catorze
perguntas relacionadas com as características de cada etnia, com as práticas
corporais tradicionais ou técnicas corporais vivenciadas, com os esportes praticados
por elas e com a organização do evento. As entrevistas foram concedidas por
lideranças, esportiva e cultural, das etnias participantes, “atletas” masculino e
feminino e atachês que, divididos por etnias, foram se apropriando das
características de cada uma delas.
Durante a aplicação desse questionário, surgiram incertezas que provocaram
reflexões as quais conduziram à realização de entrevistas próprias. Não obstante,
antes de realizá-las, procurei estabelecer uma relação de confiança com aqueles
que seriam os interlocutores, vez que notei em suas respostas ao questionário
imprecisões características de uma relação o-dialógica com o entrevistador. A
aproximação com os indígenas de diferentes etnias deu-se aos poucos durante as
refeições, nos ônibus, dirigindo-se aos locais das competições e das apresentações,
em momentos de descontração e interação entre os povos no Geraldão. Com alguns
deles não houve a consolidação dessa relação desejada; no entanto, especialmente
entre os Bororo, a aproximação foi diferente.
Desde o início dos Jogos pude estabelecer laços de confiança e afetividade
com os representantes dessa etnia. Logo no primeiro dia, em Recife, a interação se
deu quando um indígena Bororo, procurando informações sobre o local, aproximou-
se. Não foi possível ajudá-lo, porém a conversa, que durou algum tempo, tratou de
assuntos como: o evento, sua cultura e suas práticas corporais. No dia seguinte,
vivenciei a experiência de poder transitar entre eles, passei a acompanhá-los nos
percursos e durante a realização das atividades, o que me permitiu a construção de
55
um diálogo que revelasse, em alguma medida, a apreensão de seus pensamentos.
Conforme os acontecimentos se sucediam, ouvi-los se fazia necessário para obter
um maior esclarecimento dos sentidos que atribuíam aos fatos relacionados aos
Jogos dos Povos Indígenas.
2.5 Ouvir: a experiência vivida na comunicação pesquisador-pesquisado
O ouvir, de certo modo, é complementar ao olhar, ambos possuem as
mesmas condições de apreender dados relevantes à análise. Porém o pesquisador
deve estar preparado para relativizar discursos que não são apropriados ao seu
estudo. Entrevistar os indivíduos que compõem o universo pesquisado, ou seja,
ouvi-los, permite alcançar uma compreensão do sentido que determinado fato tem
para seu povo, contribuindo para que o pesquisador apresente um significado, tendo
a consciência de que suas afirmações são fruto de uma percepção modificada por
reações cognitivas e emocionais, verbalizadas a partir da capacidade de cada
entrevistado. A dificuldade posta está justamente na diferença de concepção de
mundo entre os comunicantes, todavia, afirmações que parecem conflitantes,
contraditórias podem revelar importantes elementos de análise.
Neste campo, pude destacar o papel da entrevista para a pesquisa social. De
acordo com Haguette, essa técnica “pode ser definida como um processo de
interação entre duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a
obtenção de informações por parte do outro, o entrevistado” (1992: 86). Essas
informações são captadas por meio de um roteiro com tópicos previamente
estabelecidos, com base em uma problemática. A técnica da entrevista requer que
seus elementos o entrevistador, o entrevistado, o instrumento e a situação de
pesquisa estejam relacionados uns aos outros, para que sejam evitados os vieses
que se encontram localizados tanto nos fatores externos quanto no roteiro. Melhor
dizendo: quando as perguntas são elaboradas com o objetivo de se obter respostas
diretas, vez que propicia uma situação não-real de interação entre pesquisador e
informante.
Em relação aos últimos, os vieses estão relacionados não a motivos
ulteriores quando o entrevistado acredita que suas respostas podem influenciar
situações futuras mas também ao desejo que ele tem de agradar o pesquisador,
ou mesmo por reações próprias de cada informante, que gera uma quebra de
56
espontaneidade. Tal situação, não-confortável, faz com que o informante deixe de
ser um interlocutor de sua cultura, podendo fornecer dados ilusórios em um discurso
falseado. O pesquisador deve, ao criar uma situação de diálogo, observar que,
agindo dessa forma, “[ele] faz com que os horizontes semânticos em confronto (...)
abram-se um ao outro, de maneira a transformar um tal confronto em um verdadeiro
encontro etnográfico” (Cardoso de Oliveira, 1998: 24). Tanto a observação
participante quanto a entrevista são técnicas que apresentam limitações sobre as
quais o pesquisador deve atentar para evitá-las, quando for possível, e aceitá-las,
quando inevitável, em um trabalho de campo.
Nessa direção, entrevistei
7
a Liderança do povo Bororo e um indígena dessa
etnia que participou do Futebol e do Arco e Flecha. Outros atores também foram
entrevistados, entre eles um antropólogo convidado para uma palestra no Fórum
Social Indígena, o atachê da etnia Kayapó e um voluntário que acompanhou a etnia
Xerente, desde a aldeia até o evento
8
. Todas as entrevistas foram realizadas
durante os dias do evento no Geraldão, em Recife, porque nesse local se
encontravam todos os participantes facilitando a coleta dos depoimentos. Ainda
nessa fase, foi enviado um questionário via on line à pesquisadora do tema que,
junto com os registros das entrevistas e do Diário de Campo, formaram os dados
utilizados para a construção de uma análise interpretativa fundamentada numa
perspectiva hermenêutica.
2.6 Transformando sentido em significado
Na pesquisa, a fase imprescindível para uma posterior análise interpretativa é
o escrever, porquanto os dados contidos no diário de campo são constantemente
ressignificados a cada momento em que o pesquisador volta a eles e rememora a
realidade vivida. Nessa vivência, a escrita é preliminar e servirá de base para a
redação do texto interpretativo.
O escrever é o momento em que a função cognitiva mais elevada o
pensamento é posto em prática para a produção de um conhecimento. Essa etapa
não ocorre quando o pesquisador está em campo, mas sim em um local onde se
oferece à pesquisa condições de um desenvolvimento textual dos fenômenos
7
Optei por não apresentar os nomes das pessoas entrevistadas neste trabalho.
8
As entrevistas tiveram a duração de 44 min43s.
57
culturais observados. O momento de textualização, de construção de uma descrição
densa, no qual o pesquisador coloca suas reflexões em forma escrita é muito
complexo e delicado. Requer uma habilidade intelectual necessária para compor um
discurso fundamentado conceitualmente. Trata-se de trazer a vida de outros para o
papel; portanto, o pesquisador deve assumir a ética como princípio, para o
desenvolvimento do seu trabalho.
Afastar a realidade observada da base conceitual tende a dificultar o
raciocínio lógico, levando a caminhos imaginativos. A análise se constrói a partir de
legados de outros estudos, que, cada vez melhor teorizados, permitem um maior
aprofundamento da reflexão. Fatos e conceitos anteriormente estudados servem
para enriquecer a análise cultural. Na medida em que o arcabouço teórico continua a
oferecer possíveis interpretações sobre os fenômenos culturais estudados pelo
pesquisador, sua tarefa é traduzir os dados levantados e os discursos sociais para
uma linguagem antropológica. A teoria tem o papel de fornecer um vocabulário
apropriado para que o ato simbólico seja explicitado (Geertz, 1989).
No processo de escrever o oferecidos espaços à pluralidade de discursos
obtidos que é enfatizada por um pesquisador presente no texto, procurando
relativizar, ou seja, assumir uma postura não etnocêntrica na análise. A
interpretação não pode se separar do acontecimento, do que as pessoas de
determinadas localidades disseram em contexto específicos; isto seria torná-la sem
propósito, vazia. Interpretar significa “traçar a curva de um discurso social; fixá-lo
numa forma inspecionável” (Geertz, 1989: 29). Todavia o pesquisador não tem
acesso direto a um discurso social bruto, mas sim a uma pequena parte que os
entrevistados querem que seja compreendido. Em uma análise cultural
interpretativa, menos se deseja descobrir uma realidade que não pode ser
encontrada do que perceber os significados e tirar conclusões não deterministas.
2.7 Repensando padrões monológicos
A seguinte reflexão de Cardoso de Oliveira (1998) que é trazida para esta
análise sobre A dupla interpretação na antropologia
9
expõe idéias a respeito da
9
Texto originalmente elaborado para uma mesa-redonda da Semana de Antropologia da Unicamp e
posteriormente publicado como capítulo do livro O trabalho do antropólogo. Ver em Cardoso de Oliveira
(1998).
58
interpretação, baseada no binômio explicar-compreender. A interpretação se faz
presente em momentos distintos da pesquisa. A primeira é realizada no momento da
descrição do fato social; uma descrição densa, interpretativa. Outras interpretações
se fazem sobre esta primeira; uma interpretação da descrição. Reconhecendo que
não descrição sem interpretação, o autor considera que o conceito de
interpretação abarca outros dois conceitos: o de explicação e o de compreensão
que, unidos em uma única categoria cognitiva, possuem a função de adjetivá-la.
Tanto a interpretação explicativa quanto a compreensiva apresentam uma relação
de complementaridade. Explicativa, no sentido de estar “voltada para a identificação
de regras e de padrões suscetíveis de um tratamento proposicional” (Cardoso de
Oliveira, 1998: 101). Compreensiva, por voltar-se “para a apreensão do campo
semântico em que se movimenta uma sociedade particular” (Cardoso de Oliveira,
1998: 101). Esta última, de concepção hermenêutica, é realizada freqüentemente
durante a observação participante.
Ao reconhecer que nenhuma delas (das interpretações) fornece
conhecimentos, tem-se uma postura cética do pesquisador. No caso de somente a
interpretação compreensiva cumprir esse papel, tem-se uma postura romântica.
Uma postura monológica, positivista é notada quando somente o método explicativo
contribui para a elaboração do conhecimento. A relação entre as interpretações
torna-se dialética quando ambas são válidas para proporcionarem o conhecimento
antropológico, resultando no que o autor apresenta como dupla interpretação. O
método explicativo deve servir como um refinamento da interpretação, retirando-a de
uma compreensão ingênua e direcionando-a para uma compreensão sábia, em que
uma apreensão dos sentidos, não apreensível metodicamente. Com esta
perspectiva de dupla interpretação, esquiva-se dos extremos radicais que conduzem
uma análise interpretativa.
2.8 Sociedade indígena, sociedade tradicional e valores modernos
A última fase da pesquisa foi a análise dos dados observados, porém com
enfoque cultural. Vista sob o prisma de uma tradição intelectual antropológica, tende
a ressaltar as particularidades de cada cultura e, em conseqüência, valorizar a
diversidade existente entre elas. Compreendendo assim, observa-se uma distância
59
entre as sociedades indígenas (vistas aqui como sociedades tradicionais) e valores
“modernos”.
Uma análise construída com base em um contexto de mundialização cultural
abre a perspectiva para que se possa estabelecer outro olhar sobre o aspecto
cultural. Pretendo aqui estudar um conjunto de valores e de formas de pensar, que
são originados nas diversas culturas indígenas, por meio do esporte e de suas
práticas corporais, e que podem contribuir para que determinados comportamentos
sejam assimilados aos seus modos de vida, com vistas à consolidação de uma
sociedade global.
A análise cultural com base numa perspectiva de consolidação de uma
sociedade mundial não pode deixar de lado o contexto histórico de construção desta
sociedade que se confunde com o avanço do sistema capitalista; portanto, é notória
a inter-relação entre os fatores cultural, político e econômico neste processo. No
entanto conferir maior abrangência na análise ao fator econômico é considerar que a
cultura seja apenas a esfera ideológica determinada por uma infra-estrutura material.
Cultura o se reduz a isto. o uma determinação nas relações estabelecidas
entre esses aspectos, pois a relação cultura-economia-política não se faz num
mesmo momento. Para tanto, é necessário compreender que a totalidade de um
sistema mundial não é oposta à noção de diversidade. A diversidade é uma
característica que fornece coerência ao sistema e integra partes ao todo. A análise
parte da tendência à integração de diversas etnias a um sistema mundial guiado por
valores econômicos, que se repercute no cotidiano de sociedades tradicionais e em
suas manifestações culturais, enfatizando-se neste âmbito suas práticas corporais
nos Jogos dos Povos Indígenas.
Compreender o que está nas entrelinhas desses discursos e identificar o
significado dos comportamentos observados faz com que eles se apresentem de
forma mais real os acontecimentos mesmo que a realidade para o pesquisador
seja diferente da realidade dos sujeitos investigados e a partir daí ter-se uma base
para a construção de uma leitura, de uma interpretação dos fatos. Contudo
interpretar não significa chegar a uma compreensão exata do fato estudado neste
caso, os Jogos dos Povos Indígenas mas construir idéias sobre o simbolismo
apresentado por meio dos comportamentos.
O intuito é esclarecer, mostrar uma visão do que está ocorrendo nos Jogos
dos Povos Indígenas, fundamentado por um arcabouço teórico constituído de idéias
60
de autores de ambas as áreas do conhecimento (as Ciências Sociais e a Educação
Física). É o que proponho neste trabalho; olhar o objeto investigado, buscando uma
dupla interpretação de um fenômeno complexo e relacional que se coloca no
contexto de uma sociedade moderna, mas cujas bases têm por fundamento
elementos das sociedades tradicionais. Trata-se, deste modo, de uma análise
compreensiva que se pauta na necessidade de apreensão do sentido de
deslocamento, posto que elementos da cultura indígena são apropriados de forma
conjuntural para tornarem-se espetáculo no contexto de uma sociedade que se
fundamenta por valores modernos. Diante deste desafio, a consciência de que o
papel do pesquisador é ver, ouvir e interpretar. É o que farei a seguir.
61
CAPÍTULO 3
OS JOGOS DOS POVOS INDÍGENAS: A DESCRIÇÃO DO CAMPO
A realização da IX edição desse evento cultural, ocorrida no Estado de
Pernambuco entre os dias 23 de novembro e de dezembro do ano de 2007,
obedecendo ao calendário lunar indígena, teve como pano de fundo a valorização
da identidade de cada povo e a conscientização da sociedade nacional sobre os
direitos dos povos indígenas em relação à sua terra e seu desenvolvimento físico,
espiritual, sociocultural e econômico.
A Organização das Nações Unidas (ONU), afirmando que os povos indígenas
são iguais aos demais, e reconhecendo o direito de todos os povos expressarem
suas diferenças, tem consciência da necessidade de respeitar e promover os direitos
dos povos indígenas que derivam de suas estruturas políticas, econômicas, sociais e
culturais. A ONU está convencida de que o controle por estes povos dos
acontecimentos que lhes dizem respeito reforça suas instituições e promove seu
desenvolvimento. Nesse ínterim, elaborou a Declaração das Nações Unidas sobre
os Direitos dos Povos Indígenas e afirma em seu Artigo 31 que:
Os povos indígenas têm o direito a manter, controlar, proteger e
desenvolver seu patrimônio cultural, seus conhecimentos tradicionais, suas
expressões culturais tradicionais e as manifestações das suas ciências,
tecnologias e culturas, compreendidos os recursos humanos e genéticos,
as sementes, os medicamentos, o conhecimento das propriedades da
fauna e da flora, as tradições orais, as literaturas, os desenhos, os esportes
e os jogos tradicionais e as artes visuais e interpretativas (ONU.
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas,
2007: 21) Grifos meus.
Almejando a confraternização entre as diferentes etnias, por meio das quais
os povos indígenas brasileiros assumem uma postura pró-ativa em relação à
divulgação e o usufruto de seus direitos, os Jogos dos Povos Indígenas são
considerados um dos maiores encontros esportivos e culturais das Américas, na
medida em que visa a promover o desenvolvimento do patrimônio cultural destes
povos, por meio do esporte e das práticas corporais tradicionais. A seguir, a Tabela
2 apresenta as etnias participantes dos Jogos dos Povos Indígenas 2007 e seu local
de origem.
62
Tabela 2 – Etnias participantes dos Jogos dos Povos Indígenas 2007
Etnia Estado da
Federação
Etnia Estado da
Federação
Assurini Pará Pankararú Pernambuco
Bakairi Mato Grosso Pankará Pernambuco
Bororo Boe
Mato Grosso Kambiawá Pernambuco
Kanela
Ramkokamekra
Maranhão Kapinawá Pernambuco
Karajá Mato Grosso/
Tocantins e Pará
Fulni-ô Pernambuco
Kayapó Mato Grosso e Pará Atikum Pernambuco
Kuikuro Mato Grosso Pataxó Bahia
Manoki Mato Grosso Umutina Mato Grosso
Pareci Haliti Mato Grosso Xerente Tocantins
Rikbaktsa Mato Grosso Gavião Parkatejê Pará
Tenharim Amazonas Terena Mato Grosso do Sul
Xavante Mato Grosso Karitiana Roraima
Xikrin Pará Tapirapé Mato Grosso
Xokleng Santa Catarina
Fonte: Documento de composição da subcomissão de avaliação e documentação dos IX Jogos.
Como se percebe da Tabela 2, os IX Jogos dos Povos Indígenas contaram
com a participação de 27 etnias, de diferentes estados e regiões do país. Também
se verifica na Tabela apresentada a característica da interiorização
10
desses povos,
que a maioria das etnias participantes do respectivo evento habita o Estado do
Mato Grosso.
3.1 O início da observação
O início da trajetória no contexto desse evento se deu ao pisar em solo
pernambucano, às 16 horas do dia 23 de novembro do ano de 2007, onde, horas
antes, representantes dos povos indígenas desse Estado percorriam as ruas de
Recife com a tocha dos Jogos Indígenas, levando o fogo sagrado ao local do ritual
de abertura. Indo diretamente à Praia de Pina em Recife, local da realização da
Cerimônia de Acendimento do Fogo, pode-se perceber a diversidade cultural que se
10
Este aspecto, embora seja considerado de grande importância, não será objeto de análise no momento, visto
que um estudo mais aprofundado pode possibilitar a compreensão do alcance dos Jogos dos Povos Indígenas
como uma ação governamental, intersetorial, decorrente, portanto, de uma política pública.
63
faria presente durante aquela semana. Indígenas das etnias Karajá e Xikrin
desembarcaram de seus ônibus em meio a edifícios enormes, com suas pinturas
corporais e seus adornos que chamavam a atenção de todos os presentes no local.
No final da tarde, enquanto os grupos étnicos se preparavam para dar início à
cerimônia, várias pessoas disputavam espaço para capturarem os melhores
registros fotográficos, que deveriam seguir as orientações elaboradas pela Funai e
pelo Ministério da Justiça.
A etnia Karajá, representada pelos indígenas da aldeia Santa Isabel do Morro,
localizada na Ilha do Bananal, em Tocantins, entraram enfileirados no espaço
reservado ao acendimento do fogo. À frente, dois líderes com os braços unidos,
seguidos dos adultos, das mulheres com as crianças. Os líderes iniciaram uma
oração, ao mesmo tempo em que o restante do grupo acendia uma espécie de
fogueira na areia da praia e reverenciavam com gestos característicos de sua
cultura. Os líderes viraram-se de costas para o grupo e, de frente para a Lua que
surgia no céu, rezavam. Após rodearem a chama cantando e dançando, os Karajá
retiram-se para, em seguida, entrarem os Xikrin. Os indígenas dessa etnia
apresentavam em seus semblantes a seriedade e a concentração necessárias para
a ocasião. Assim como os Karajá, os Xikrin adentraram no espaço demonstrando
suas especificidades. Quatro fileiras se formaram; os homens, com as bordunas,
separados das mulheres que carregavam seus filhos nos braços. Com sua dança e
seu canto tradicional, e com a lua no céu, entraram no espaço do ritual, uns ao
lado dos outros. Os homens se aproximaram do centro e encerraram a cerimônia
apagando o fogo, jogando sobre ele a areia da praia.
Durante toda a cerimônia os profissionais da indústria dos bens culturais não
paravam de disparar seus fleches na direção desses povos, buscando elementos
“exóticos” para serem transformados em produtos culturais. Fotógrafos e
cinegrafistas a todo instante adentravam no espaço da cerimônia, procurando se
aproximar o máximo possível para fazerem seus registros, enquanto os indígenas
demonstraram aceitação; muitos até posavam para as câmeras, simulando gestos
técnicos oriundos de sua cultura. Nesse momento, notou-se o envolvimento que a
mídia teria com os indígenas.
64
3.2 O congresso técnico
Saindo da Praia de Pina, todos se dirigiram para o Ginásio Geraldão em
Recife, local em que ficaram alojados os indígenas, voluntários e alguns
organizadores. Nesse local, foi realizado o congresso técnico que, estudado em
edições anteriores por Vinha e Rocha Ferreira (2005), tem como objetivo promover
uma discussão e tomar decisões sobre as “modalidades esportivas” a serem
praticadas. As autoras chegaram à conclusão que o intuito é de definir e retificar os
regulamentos finais dos jogos, além de estabelecer normas comuns, considerando
as diferentes organizações indígenas. A partir da identificação do propósito de
regulamentar as práticas corporais com a finalidade de competição, pode-se
considerar que tal procedimento equivale ao mesmo processo descrito por Bracht
(2003) que ocorreu na Europa com as regulações dos jogos populares e culminou
em um processo de esportivização de tais práticas, porém com suas diferenças
sociohistóricas.
A realização do congresso técnico seguiu as normas do Regulamento Geral
dos Jogos dos Povos Indígenas que determina que essa jornada seja realizada um
dia antes da abertura oficial do evento. Dirigido por um orientador indígena e pelo
diretor da comissão técnica, cada etnia delega um representante para a realização
dos trabalhos. Naquele momento, o orientador indígena iniciou relatando como
surgiu a idéia de realização dos jogos e como esta idéia se concretizou. Para um
público do qual faziam parte pesquisadores, estudantes e representantes das etnias
de Pernambuco, Karajá, Xikrin, Bakairi e Xavante foram apresentados os
componentes da comissão técnica e os documentos que regem os Jogos:
Regulamento Geral, Histórico dos Jogos e as Orientações Específicas das
Modalidades. Este último tem por finalidade orientar as “atividades desportivas
competitivas” e apresenta em seu texto nomenclaturas dos esportes de alto
rendimento, como “delegação”, “atletas”, “arbitragem”, “bateria” e “eliminatória”
(Orientações Específicas das Modalidades, 2007).
Antes de passar a palavra ao diretor técnico dos Jogos dos Povos Indígenas,
o orientador indígena ressaltou que o baixo número de etnias participantes do
congresso técnico se devia a dificuldade no deslocamento desses povos a
Pernambuco, mantendo sua realização nessas circunstâncias. Dessa forma,
observa-se o pouco envolvimento dos indígenas participantes dos Jogos, no que se
65
refere à normatização, isto é, a alteração dos sentidos de suas práticas corporais.
Finalizando, o indígena declarou que o objetivo dos jogos é a celebração e não o
rendimento. Nessa perspectiva, as práticas corporais deveriam ser estruturadas de
modo a proporcionar a valorização de seus sentidos tradicionais e não a competição
(Discurso do idealizador dos Jogos, Recife, Referência Diário de Campo, 2007).
O objetivo maior desse evento, à luz do Regulamento Geral “não é promover
prioritariamente o esporte de alto rendimento”, mas “destacar o esporte como
identidade das culturas autóctones, que promove a cidadania indígena, a integração
e o intercâmbio de valores tradicionais” (1999: 2). Partindo dessa compreensão,
observa-se como contraditória a realização do congresso técnico, com a presença
de apenas cinco representantes de etnias, enquanto a maioria delas não teve a
oportunidade de apresentar os seus interesses, em relação às práticas corporais,
aos organizadores do evento. Da forma como ocorreu, nota-se que tal atividade não
alcançou os resultados desejados, visto que a cidadania indígena não foi
contemplada nos seus anseios.
No entanto, de acordo com a pesquisadora entrevistada, historicamente esse
evento vem possibilitando maior visibilidade às mulheres nos jogos e o
fortalecimento político dos povos indígenas. Nos últimos Jogos questões que haviam
sido levantadas em edições anteriores foram fortalecidas.
“Uma dessas questões foi a forma de organização dos Jogos.
Havia uma preocupação das consideradas lideranças
indígenas quanto à forma de organização da programação.
Para elas, estava ocorrendo uma predominância do esporte
em relação às práticas corporais tradicionais. Apesar de
observar que não houve uma mudança expressiva na
programação, o debate sobre esse aspecto foi fortalecido, no
sentido de se pensar uma forma de organização que possa
atender as reivindicações dos indígenas que querem a
predominância das práticas tradicionais na programação”
(Entrevista, Pesquisadora, Brasília, 2008).
Nessa perspectiva, e entendendo que a configuração do evento deve ser
alterada para acompanhar os interesses das pessoas indígenas, apresenta-se a
opinião de um indígena participante dos Jogos Indígenas.
“No caso, nossos Jogos mesmo, a gente não tem o que aqui
está tendo, aqui tem esta questão de ir para a final, quem
66
vence vai para a final. Eu sou um dos organizadores, no caso,
eu coordeno os Jogos da aldeia. Eu sou coordenador geral e
eu tirei isso. Nós temos atividades como apresentação, não
temos como competição. Se eu ganho no cabo de guerra hoje,
eu não posso disputar amanhã para saber quem vai para a
final” (Discurso da Liderança Pataxó, Recife, Referência Diário
de Campo, 2007).
Apesar de ter havido comentários pertinentes durante a realização do
congresso técnico, no tocante à estruturação do evento e das práticas corporais,
percebeu-se que não houve modificações significativas no documento que orienta as
“modalidades”. Essa atividade serviu apenas como uma apresentação da estrutura
regulamentada das práticas corporais que seriam realizadas de maneira competitiva,
de acordo com edições anteriores. Por conseguinte, o foi cumprindo o propósito
de garantir a participação ativa da pessoa indígena, em relação aos acontecimentos
que lhes dizem respeito. Com efeito, as opiniões dos indígenas sobre atividades
relacionadas às suas manifestações culturais não foram contempladas no congresso
técnico dos Jogos. A única decisão tomada conjuntamente referiu-se ao início do
torneio de futebol, marcado para o dia seguinte, mesmo que a maioria dos povos
não tivesse chegado à cidade.
3.3 Geraldão: um espaço de interação
O Geraldão fica localizado no bairro de Imbiribeira em Recife. Trata-se de um
complexo esportivo composto por um ginásio e quadras adjacentes. Nesse cenário
se localiza um cleo que coordena as políticas esportivas da gestão municipal e foi
responsável pela seleção dos atachês. Foi nesse espaço que se alojaram os
indígenas das etnias participantes dos Jogos dos Povos Indígenas.
Durante toda noite e todo o dia seguinte, chegavam etnias vindas de todas as
regiões do país. No Geraldão, conheceu-se o público envolvido que fez o evento se
realizar organizadores, indígenas, motoristas, cozinheiros, pesquisadores, atachês
e voluntários. Acompanhando a chegada de algumas etnias, notou-se o cansaço
anunciado em seus corpos, após terem enfrentado dias de viagem, passando por
percalços de diferentes tipos, como problemas financeiros para custeio de
alimentação, falta de combustível, além de constantes problemas mecânicos no
veículo.
67
Os indígenas eram recebidos pelos voluntários que lhes forneciam colchões e
cobertores e os encaminhavam para os dormitórios. Tais acomodações foram
construídas com divisórias, sob a cobertura de duas quadras de esporte que fazem
parte do complexo esportivo do ginásio. O chão fora revestido com carpete, no qual
os indígenas colocavam seus colchões para dormir. Todavia durante a semana do
evento surgiram dificuldades em relação à manutenção dos banheiros do ginásio e
do local dos dormitórios que colaboraram para que os indígenas assumissem uma
postura pró-ativa no que diz respeito à higiene e ao conforto do local.
Nesse sentido, por o serem oferecidas pela organização do evento
atividades de lazer aos indígenas, e pelo desejo de interação manifestado entre os
parentes
11
, eles próprios se encarregaram de providenciar algumas práticas dicas,
que, por sua vez, eram realizadas entre as atividades oficiais do evento no complexo
esportivo.
Figura 1: Roda de cantos e danças
12
Nas rodas de cantos e danças cada etnia era representada por um grupo de
indígenas que demonstrava sua cultura. Em conseqüência, essa dinâmica permitiu a
interação entre os indígenas e destes com o não-índio que participava dessa
atividade. Iniciada na noite do dia 29 de novembro por um grupo de indígenas da
etnia Pataxó, essa prática foi contagiando indígenas de outras etnias que se
integravam a ela, participando das danças de outras etnias e demonstrando as suas.
11
Forma utilizada pelos indígenas para se referirem uns aos outros.
12
Foto: Marco Mendes.
68
Nesse momento, percebeu-se a espontaneidade e a alegria na face de cada
indígena e não-indígena presente.
Outras práticas foram observadas. O cinema improvisado ao ar livre, por
exemplo, foi realizado em mais de uma noite. A idéia partiu de um indígena da etnia
Kuikuro após a exibição de deo produzido por ele. Esse momento promovido pela
organização dos Jogos dos Povos Indígenas ocorreu no interior do ginásio, local
onde foi montada uma estrutura composta de um telão, projetor de imagem e
aparelhos de áudio. Ao final da sessão oficial, os indígenas demonstraram o desejo
de assistir a mais filmes. O produtor do vídeo sobre a cultura Kuikuro, que havia
levado aos jogos equipamentos de projeção e outros vídeos, contou com o auxílio
de indígenas, além de voluntários e atachês, para montar uma estrutura mais
simples no lado externo do ginásio. As mostras de vídeos atraíram a atenção de
grande parte das pessoas que estavam no local, com a exibição de filmes e
documentários sobre as comunidades indígenas.
Outros espaços de sociabilidade eram construídos espontaneamente. Os
atores sociais envolvidos nesse microcosmo a todo o instante conversavam e
cantavam em pequenos grupos, dos quais faziam parte indígenas de diferentes
etnias, voluntários, atachês e organizadores. Notou-se que essas atividades traziam
em seu bojo a descontração e o caráter lúdico como princípios, o que possibilitou
uma relação de interação dos sujeitos.
3.4 Cerimônia de abertura: inicia-se o espetáculo
A abertura oficial foi realizada no final da tarde do dia 24 de novembro, na
arena montada na Praia do Bairro Novo, em Olinda. Nesse local foram dispostas
três arquibancadas e construída uma oca para preparação das etnias, antes da
entrada na arena. No lado externo da arena, ao sul, salas com computadores
conectados à internet permitiram à impressa enviar registros num curto espaço de
tempo; salas de reuniões possibilitaram aos organizadores tomarem decisões no
local das atividades e o posto médico serviu para atendimento das pessoas
envolvidas nas práticas corporais. No lado norte da arena, foi construída a feira de
artesanato com estruturas adequadas para sua exposição, local que possibilitou um
contato mais próximo entre indígenas e as pessoas de Pernambuco.
69
A cerimônia de abertura contou com a presença de um grande público, do
qual faziam parte indígenas e não-indígenas, entre eles representantes de órgãos
oficiais, a exemplo do Ministro do Esporte, do Secretário Nacional de Esporte
Educacional e da Secretária Nacional de Desenvolvimento do Esporte e do Lazer,
ambos do Ministério do Esporte. Compareceram ainda o Secretário Nacional de
Identidade e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, o representante da Funai
e a Prefeita de Olinda. Nessa oportunidade ficou evidente que, os primeiros
elementos do esporte-espetáculo faziam-se presentes, percebendo-se uma
semelhança com as cerimônias de abertura dos megaeventos esportivos.
Enquanto as etnias aguardavam o momento de sua entrada, enfileiradas no
lado externo da arena, uma representante dos povos indígenas de Pernambuco,
iniciando o cerimonial, trouxe a tocha com o “fogo sagrado” e a repassou para um
“guerreiro”. Ele percorreu a área das competições e demonstrações acendendo
outras tochas e, em seguida, se dirigiu aa pira, dando início à IX edição dos Jogos
dos Povos Indígenas. Assim como ocorre nos Jogos Olímpicos, os povos (nações)
indígenas entraram no espaço da arena, um de cada vez, segurando uma placa
(bandeira) que identificava sua etnia. Demonstrando sua cultura por meio das
expressões trazidas em seus corpos, os indígenas percorreram a arena, ao passo
que o locutor oficial do evento trazia informações de cada povo.
O pronunciamento do Ministro do Esporte que abriu oficialmente os Jogos dos
Povos Indígenas 2007 demonstra que, por parte do Governo Federal, a lógica do
esporte de alto rendimento está inserida no âmbito desse evento. Suas palavras
foram as seguintes:
“Para todo mundo que está aqui assistindo e, sobretudo, para
todas as nações indígenas que participam destes jogos que
nosso presidente Luis Inácio Lula da Silva não pode vir aqui,
mas pediu que eu trouxesse um abraço e dissesse que ele vai
estar de Brasília acompanhando, durante toda a semana, os
jogos. Ele que sonha e espera ainda ver um atleta brasileiro
indígena participando de jogos olímpicos” (Discurso do
Ministro do Esporte, Referência Diário de Campo, 2007).
A partir desse discurso, pode-se inferir que o Estado, responsável por adotar
“medidas eficazes para reconhecer e proteger o exercício” (Declaração das Nações
Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, 2007: 21) do direito dos povos
indígenas em manter, proteger e desenvolver seu patrimônio cultural apresenta
70
como paradoxo o interesse de inserir a pessoa indígena no âmbito dos megaeventos
esportivos que propagam a lógica do esporte-espetáculo. Nessa direção, observa-se
o futebol como um meio que possibilita a integração dos indígenas à sociedade
global, mas, por outro lado, pode ser compreendido como um mecanismo de
resistência a essa tendência.
3.5 O duplo sentido do futebol
No dia 24 de novembro de 2007, após o café da manhã, seguiu-se o caminho
para o campo da torre (no ônibus dos Kayapó), local do torneio de futebol. Essa
etnia é conhecida pelo ativismo político que desempenha em relação aos seus
direitos territoriais, políticos e ambientais e que, por conseguinte, a envolveu em
conflitos que a faz manter uma relação de desconfiança com o não-índio. No ônibus
todos os indivíduos permaneciam em silêncio. Chegando ao local dos jogos, os
índios desembarcaram do veículo empunhando suas bordunas e se dirigiram para a
arquibancada, pois não jogariam naquele dia.
O Futebol é o único esporte praticado nos Jogos dos Povos Indígenas; no
entanto, agrega um grande número de indígenas em sua realização. Nessa edição,
os jogos de futebol foram realizados simultaneamente ao Fórum Social Indígena,
causando um esvaziamento dessa atividade política. Tanto os jogos da “categoria”
masculina quanto os da feminina ocorreram sobre a areia, o que desagradou
algumas etnias que costumam jogar na suas aldeias em campo de terra batida. Os
jogos eram compostos de dois tempos de quinze minutos, cada equipe com seis
jogadores descalços, sendo as substituições livres. O sistema adotado foi o de
eliminatória simples; caso o jogo terminasse empatado, as equipes disputavam a
permanência no torneio por meio de cobranças alternadas de pênaltis, num total de
cinco ou mais, se necessário.
Tendo em vista que a cada jogo uma etnia é eliminada da competição, foi
observado um acirramento da disputa em busca da vitória, gerando jogadas bruscas
e conflitos. De acordo com Kunz (2006: 22), um dos princípios básicos do esporte de
alto rendimento é “sobrepujança”, isto é, uma busca constante pela superação, seja
de uma marca, seja de um adversário e que se expressa na vitória. As normas do
torneio de futebol e das outras práticas corporais apresentadas de forma competitiva
nos Jogos dos Povos Indígenas são reflexos de uma organização burocrática
71
característica da sociedade moderna. A organização burocrática, segundo Guttmann
(2004) é uma exigência do esporte moderno com a perspectiva de que seja
realizado dentro de um sistema de organização, com hierarquia e funções.
No bojo de uma administração burocrática, característica da sociedade
moderna, estratégias para o desenvolvimento mundial do esporte o utilizadas
pelas instituições, como a universalização das regras, para produzirem competições
esportivas na forma de megaespetáculos. As instituições que administram o
desenvolvimento de competições unificadas e universais, que ocorrem em diversos
níveis, local, nacional e internacional são regidas pela mesma lógica do esporte de
alto rendimento. A burocracia, de acordo com Guttmann (2004), está diretamente
associada às outras duas características do esporte moderno, pois é a partir dela
que a quantificação dos resultados e a superação de recordes são garantidas.
O record, de acordo com (Guttmann, 2004), é a característica que aparece
no esporte moderno. Mesmo que anteriormente existisse uma tendência à
comparação dos resultados, o recorde é uma combinação do impulso para a
quantificação do desempenho atlético com o desejo de vitória, ligado à idéia de
comparação e progresso cnico. Desse modo, é possível haver a competição entre
pessoas sem que haja a necessidade de encontro em algum lugar ou tempo. A
disputa do esportista passa a ser menos em relação a um adversário do que a meta
que deseja superar. A cada aperfeiçoamento pode haver outro acima. Caso haja
uma assimilação dessa atitude, percebe-se a possibilidade de haver uma alteração
no comportamento e nas atitudes da pessoa indígena de diferentes povos, devido à
assimilação de valores e procedimentos técnicos vinculados ao esporte de alto
rendimento.
3.5.1 A reprodução do futebol-espetáculo
O primeiro jogo do torneio foi entre as etnias Xikrin e Karajá. O preparativo
para o jogo segue o ritual do futebol profissional com conversas iniciais (preleções),
aquecimento e alongamentos. É sabido que existe uma diversidade de maneiras de
serem realizados os alongamentos e que variam de uma cultura para outra,
conforme a utilização dos seus corpos. Um exemplo dessa afirmação foi observado
entre os Bororo no qual
72
“constata-se, nas técnicas corporais das jovens mães educadas na escola,
a falta de jeito e de flexibilidade para sentarem-se com as pernas esticadas
na esteira por um longo tempo, a fim de confeccionarem os ornamentos
clânicos que seus filhos usariam no ritual de nominação” (Grando, 2006:
250).
Portanto, trata-se de uma prática aprendida culturalmente devido aos hábitos
de cada sociedade. Nesse sentido, observou-se que a maneira como ela é realizada
no esporte de alto rendimento, e reproduzida pelos indígenas nos jogos em
Pernambuco, segue a lógica da sociedade envolvente, ou seja, um padrão de
movimento comprovado cientificamente e praticado sem ludicidade. Notam-se duas
possíveis conseqüências desse fato. A primeira diz respeito ao abandono de formas
tradicionais de se alongar e, por conseguinte, uma alteração produzida no corpo dos
indígenas, visando a suprir as exigências da prática esportiva e não mais das
necessidades do seu modo de vida tradicional. A segunda refere-se à expectativa de
que possa ocorrer outra educação do corpo, levando em conta que se observou uma
padronização, em que todos os indivíduos em círculos faziam os mesmos
movimentos, sob a orientação daquele que possuía maior “conhecimento da
técnica.
O público e a mídia procuram o melhor local para verem a partida, enquanto
as equipes masculinas aguardam o início da disputa uniformizadas e dispostas em
campo, sem uma orientação tática definida. Dois juízes não-índios conduzem o jogo
que se inicia com muita disposição por parte dos jogadores de ambas as equipes. O
jogo segue sem muitas faltas e com os indígenas demonstrando dificuldades
técnicas impostas pelo terreno. Com o resultado empatado em um gol, as equipes
cometem mais faltas e os jogadores aparentam-se tensos com a possibilidade de
serem eliminados do torneio. Os jogadores e representantes da etnia Karajá que
estavam no banco de reserva incentivam sua equipe, enquanto do outro lado os
indígenas Xikrin ficam em silêncio. Ao término da partida, com o jogo se
encaminhando para a disputa dos pênaltis, observou-se uma insatisfação por parte
dos jogadores da etnia Xikrin. A disputa inicia-se com jogadores de ambas as
equipes marcando gols, até que um indígena Xikrin perde um pênalti. Os Karajá
festejam a cobrança perdida, saem vencedores do desempate e comemoram
cantando e dançando em campo. Do outro lado, os Xikrin demonstraram irritação e
discutiram entre si, principalmente com aquele que perdeu a penalidade máxima.
73
Ao serem questionados, ainda em campo de jogo, como se sentiam em não
poder jogar mais futebol naqueles jogos, os jogadores Xikrin o responderam e
balançaram a cabeça negativamente. O representante (técnico) da equipe falou que
ficou frustrado em o poder mais jogar e que gostaria de falar para a organização
dos Jogos que os deixassem jogar mais vezes. Finalizou afirmando que somente um
jogo é pouco para quem se deslocou de longe e comentou que o jogo foi bom, mas
os cobradores de pênaltis de sua equipe eram ruins tecnicamente (Referência,
Diário de Campo, Recife, 2007). Esta afirmação demonstra que as normas do
torneio de futebol nos Jogos dos Povos Indígenas dão grande relevância ao
resultado vitorioso, pois assim é permitido praticar o futebol novamente, recaindo
a culpa da derrota sobre aqueles que cometeram erros.
O Jogo entre os Bororo e os Bakairi é bem semelhante à primeira partida,
porém mais faltoso, a ponto de um jogador Bororo receber cartão amarelo por
cometer uma falta mais forte. Os Bororo saem na frente, no placar, o que motiva a
substituição do goleiro adversário. O “técnico” dos Bakairi demonstra irritação com
os erros de sua equipe e comemora o gol de empate no segundo tempo, fato que
leva a partida para a disputa de pênaltis. O goleiro da etnia Bororo defende uma
cobrança, possibilitando que sua equipe permaneça na competição. Ele foi muito
festejado pelos companheiros.
No jogo entre as equipes femininas das etnias Karajá e Xikrin, os homens
acompanham à beira do campo, dando instruções constantes às jogadoras de
ambas as equipes. As jogadoras Xikrin demonstram mais habilidade com a bola,
mas se confundiram com os gestos dos árbitros, apesar de entenderem as regras do
jogo. O jogo chega ao final sem que ocorram muitas faltas e sem gols. Mais uma vez
a decisão de quem continua no torneio é por meio de cobranças de pênaltis, o que
proporciona maior ansiedade nas jogadoras. Após o início da disputa, a goleira
Karajá se destaca defendendo duas cobranças, levando os integrantes do banco de
reservas a comemorarem o feito. Entretanto as cobradoras dessa etnia também
perdem dois pênaltis, gerando cobranças alternadas nas quais a equipe que marcar
o gol e não sofrer sagra-se como vencedora. Logo na primeira cobrança da série
alternada a jogadora Xikrin marca e a jogadora Karajá chuta para fora, ocasionando
uma comemoração exaltada por parte dos indígenas Xikrin que haviam perdido a
partida masculina.
74
Na outra partida, válida pelo torneio feminino, a etnia Bororo enfrenta a etnia
Bakairi. As jogadoras Bororo demonstram boa técnica e vencem facilmente a partida
por 4 gols a 0. Perguntada sobre a prática do futebol pelas mulheres Bororo na
Aldeia Meruri, a representante afirma que elas o praticam constantemente. Diferente
dos homens na aldeia, que jogam com tênis ou chuteiras, as meninas praticam
descalças, mas também participam de campeonatos na região, sendo que, no
momento do evento, uma equipe composta por mulheres estava participando de
uma competição em Barra do Garça/MT (Referência, Diário de Campo, Recife,
2007).
À medida que se passavam os jogos notava-se que os comportamentos eram
similares, sem fugir das especificidades de cada cultura, ou seja, o elemento cultural
da sociedade nacional – o futebol – foi apropriado pelas diferentes sociedades
indígenas e adaptado à diversidade cultural das sociedades tradicionais. Por outro
lado, algumas condutas desenvolvidas na sociedade envolvente o reproduzidas
no contexto desses jogos. Nesse sentido, o futebol é um elemento intercultural que,
praticado de acordo com a estrutura do esporte de alto rendimento, contribui para
que determinados valores, atitudes e comportamentos sejam assimilados por
pessoas indígenas de diferentes etnias. A violência física que, segundo Elias &
Dunning (2006), o esporte moderno tem como função controlar, está tão presente
nos dias atuais na sociedade global quanto no esporte que a indústria cultural
transforma em espetáculo. Veiculando imagens de brigas de torcidas, agressões aos
árbitros e “batalhas campais”, a mídia possibilita a assimilação dessa atitude pelos
indivíduos de diferentes povos. Segundo um dos idealizadores dos Jogos: “O
pessoal acha que é um campeonato de índio, mas não é. Ele tem uma linguagem
indígena diversificada. O único, vamos dizer assim, que nos globaliza é o futebol e é
no futebol que temos mais problemas de brigas” (Discurso do idealizador dos Jogos,
Recife, Referência Diário de Campo, 2007).
Nos IX Jogos dos Povos Indígenas a violência esteve presente e teve como
pretexto uma partida de futebol, disputada entre os Kayapó e os Pareci Haliti. O jogo
foi bastante ríspido, com ambas as equipes demonstrando grande anseio pela
vitória. Após uma falta cometida por um Pareci, iniciou-se um conflito descrito desse
modo pela atachê dos Kayapó:
75
“Estavam às (sic) crianças, e eu estava tomando conta delas,
quando de repente a gente viu um jogador Kayapó no chão.
Eu não sei o que ocorreu, quando eu levantei a vista deu
tempo de ver a confusão. Eles todos, o pessoal dos Kayapó e
dos Pareci correndo uns para cima do outro” (Entrevista,
Atachê, Recife, 2007).
Após essa primeira desavença, a equipe dos Pareci marcou um gol que,
segundo a atachê, motivou mais ainda o conflito, pois sua comemoração foi
provocativa. “Eles [Pareci] celebrando indo em direção a eles [Kayapó], assim como
se tivessem... a gente quando faz gol por aqui, um debocha com o outro né? Pronto,
a mesma coisa eram eles” (Entrevista, Atachê, Recife, 2007). Ao término da partida,
os grupos voltaram para o alojamento, onde a desordem aumentou.
“Quando a gente desceu do ônibus no estacionamento, só deu
tempo deles descerem, quando eu desci nem o cacique, nem
o Davi (Líder) tinha descido. Os primeiros que desceram
saíram correndo para o ônibus do pessoal dos Pareci. O
pessoal dos Pareci quando viram o pessoal do Kayapó
chegando junto correram para fora do estacionamento. Então
o pessoal foi atrás, nisso não deu tempo mais de segurar os
meninos, as crianças, as mulheres, nada, todos eles correram
para junto. Então assim, eu acabei me envolvendo por que
quando eu vim dar conta, eu estava no meio da confusão.
Depois eu pensei que fosse até perigoso, porque eles estavam
com os instrumentos (armas) deles, foi quando eu peguei as
crianças, peguei no braço e arrastei para fora da confusão e
fiquei gritando para o Davi, para que ele pudesse tomar uma
providencia, mas o cacique estava brigando também”
(Entrevista, Atachê, Recife, 2007).
Na briga, um indígena do Kayapó desferiu um golpe com sua borduna sobre
um integrante da outra etnia, ferindo-o. Após o incidente, o organizador, e
idealizador dos jogos, reuniu todas as lideranças no alojamento. Um líder religioso
fez uma oração para que bons fluidos acompanhassem os Kayapó que decidiram
deixar os jogos e voltar para suas aldeias. Com efeito, esse acontecimento foi de
encontro ao objetivo do evento, que é promover a integração dos indígenas com o
intercâmbio de valores tradicionais. Nesse sentido, pode-se inferir que a
estruturação do futebol nos jogos propiciou uma desavença entre duas etnias, o que
foi possível observar a contradição existente entre a idealização e a realidade
apresentada no evento.
76
3.5.2 “Pelada”: a ressignificação do futebol
Por outro lado, o futebol foi praticado de maneira distinta. Ressignificado
dentro dos Jogos pelos próprios indígenas, pode-se compreender outro sentido
atribuído ao esporte. Todos os dias os indígenas, exercendo sua autonomia,
organizavam e jogavam suas partidas no ginásio Geraldão, nos intervalos das
atividades.
A programação do evento previa, na maioria dos dias, atividades no período
matutino, que iniciavam às 8 horas e se encerravam aproximadamente às 11h30.
Após o almoço as atividades recomeçavam às 16 horas, encerrando-se às 21 horas.
Durante o intervalo, os indígenas de diferentes etnias se encontravam na quadra do
ginásio e estruturavam o espaço para a prática do futebol. As traves eram reduzidas,
dispostas uma de cada lado da quadra oficial de futsal, sobre a linha de fundo. Para
a formação das equipes, os jogadores indígenas e não-indígenas, que se
conheceram momentos antes da partida, procuravam-se aleatoriamente, sendo três
em cada equipe, não havendo goleiro. A bola de futsal pertencia a um dos indígenas
que a trouxe de sua comunidade. O jogo seguia as regras básicas do futebol. Outras
questões que surgiam durante a partida eram decididas entre aqueles que estavam
jogando, até que se chegasse a um consenso. As partidas tinham a duração de dez
minutos; a equipe que vencia continuava, enquanto a outra cedia lugar para aqueles
que aguardavam do lado de fora seu momento de jogar.
Participando das “peladas”, percebeu-se que a vitória não é considerada
como o aspecto principal do jogo. Observou-se que as atitudes dos jogadores dentro
da partida eram na tentativa de realizarem jogadas esteticamente apreciáveis e,
quando isso ocorria, todos se alegravam. Portanto, compreende-se que essa outra
estruturação do jogo o instiga o princípio da sobrepujança. Nesse ambiente,
observou-se a confraternização entre indígenas de parte das etnias e deles com os
não-índios, onde todos praticavam o esporte com tranqüilidade e sem violência.
A estruturação desse jogo seguiu os princípios da dimensão recreativa do
esporte, tendo “a compreensão de que em sua realização deve prevalecer o sentido
lúdico, a livre escolha na participação e a construção pelos próprios sujeitos
envolvidos de valores, sentidos e significados à prática desse esporte. Por meio dele
o ser humano só, em pequenos grupos, ou em multidão, vivencia situações
esportivas lúdicas e prazerosas” (Brasil. Ministério do Esporte, 2008: 10). Os
77
indígenas configuraram o futebol como prática de lazer, em que a competição não
foi exacerbada, abrindo espaço para a ludicidade e a socialização, sendo o indivíduo
capaz de se adaptar e aceitar as normas, com vistas a estabelecer um nível de
participação nesse processo.
Elias e Dunning (2006) entendem indivíduo e sociedade como entidades em
constantes transformações dentro de uma configuração na qual inter-relações
pessoais são estabelecidas e balizadas, não por uma liberdade absoluta e nem por
uma dominação, mas como liberdade de ação dentro de limites controlados social e
individualmente. Nessa compreensão, cabe ao indivíduo encontrar maneiras de se
manifestar que sejam aceitáveis socialmente. A ressignificação das práticas
esportivas é resultado dessas mudanças que interferem em comportamentos, tanto
individual quanto coletivo. A psicogênese, resultante da auto-regulação e do controle
dos impulsos provenientes das coerções sociais, modifica a estrutura da
personalidade que, interligada ao desenvolvimento das estruturas sociais nas quais
os indivíduos se inserem, proporciona a sociogênese, isto é, mudanças nas práticas
sociais e tradições. No contexto do futebol ressignificado, não se percebeu qualquer
espécie de violência; com a predominância do caráter lúdico, os envolvidos
participaram do jogo com alegria e respeitaram o adversário.
Segundo Bourdieu (1990), a partir do conceito de habitus o campo esportivo,
composto por estruturas próprias, estabelece uma relação dialética entre o sistema
esportivo (Instituições) e o sistema de preferências de cada grupo social, ou seja, o
espaço de práticas esportivas é dependente do grupo social e da escolha de seus
praticantes, à semelhança das instituições que são responsáveis por seu
funcionamento. Quando realizado, o esporte carrega em seu bojo estruturas que
influenciam os sentidos e significados atribuídos por determinados atores sociais.
Com efeito, ou sofre uma ressignificação ou nele se reproduz a estrutura social.
O sentido que é dado ao esporte parte da interpretação desses atores, que,
por sua vez, pode ser diferente daquele que é dominante, na medida em que se
pode construir outra concepção de esporte. Nesse sentido, os atores sociais tornam-
se agentes produtores de cultura, relativizam essa tendência e põem em evidência
as decisões individuais e dos grupos de praticantes. Assumem uma posição ativa,
criando e recriando essas práticas culturais. O esporte é uma prática social
apropriada de forma diferenciada em realidades específicas. Os agentes sociais que
ocupam posições vizinhas são submetidos a condicionamentos semelhantes,
78
podendo, dessa forma, apresentar interesses e práticas semelhantes, cuja intenção
é ajustar-se a esse espaço. O espaço funciona com um ambiente simbólico
constituído por diferentes grupos, caracterizados por diferentes estilos de vida. Não
obstante, de acordo com Bourdieu (1990), no campo esportivo as instituições ou
suas estruturas sociais estão diretamente relacionadas às estruturas da
personalidade humana, podendo-se encontrar as leis que determinam a reprodução
social. Esse campo possui leis que determinam seu funcionamento, e suas
estruturas são produtos das lutas históricas de grupos que apresentam interesses
distintos, determinando sua utilização.
Nesse contexto, entende-se que a “pelada” o futebol ressignificado tem
como sentido o divertimento e a ludicidade e pode ser considerada como um
mecanismo de resistência dos indígenas em relação à estrutura competitiva, que
segue a lógica capitalista de produção de resultados nos diferentes âmbitos das
manifestações culturais, tendo em vista o caráter de espetáculo assumido pelo
evento que, por seu turno, influenciou a configuração das demais práticas corporais.
3.6 Cabo de Força
Entende-se o cabo de força como um jogo popular que, assimilado pelos
indígenas, tem o sentido de reconhecimento dos mais fortes. Nas culturas indígenas
assume a identidade de “guerreiro”, possuindo, desse modo, determinado prestígio
social. Inicialmente, o jogo popular é “entendido como atividade física que marca
uma sociedade ou grupo social, sendo repassado intra e intergerações e cuja origem
pode estar em um ou diversos povos, embora seja disseminado e praticado em
diferentes sociedades (Rocha Ferreira et al, 2005 apud Vinha & Rocha Ferreira,
2005: 5-6).
O cabo de força é uma das atividades que cria mais expectativa entre homens
e mulheres indígenas. Doze indígenas, sendo dois reservas, compõem as equipes
masculina e feminina que, antes da disputa, se preparam com cantos e danças, em
rituais próprios, dentro da oca construída na arena. Entram no espaço da disputa por
“bateria” duas equipes masculina e feminina, que concorrem para vencer e, desse
modo, permanecer até o fim da competição. São três minutos de força intensa para
tentar fazer com que a fita, que marca o centro da corda, fique no seu campo após
esse tempo. A força aplicada pelos indígenas para vencer o oponente é tamanha
79
que chega a causar lesões musculares. Ao final, vêem-se rostos cansados dos dois
lados, uns felizes com a vitória; outros, frustrados, porém comemoram juntos,
demonstrando respeito pelo esforço do adversário.
Regulamentada, essa prática assume outro sentido. Vinha (2005), em estudo
realizado entre os Kadiwéu, ressalta que sinais de uma memória guerreira no
esporte. Aquele que outrora era o guerreiro, por ser o mais forte, hoje, pela mesma
habilidade, é o campeão, gozando de prestígio semelhante ao do anterior. Contudo
observa-se que com o fim dos conflitos que exigiam lutas corporais (em que se
reconheciam os guerreiros da aldeia), esses povos atribuem os sentidos das
práticas tradicionais ao esporte e, nesse caso, ao jogo popular que, por sua vez,
contribui para a continuidade da tradição.
3.7 As práticas corporais tradicionais sob a lógica do esporte de alto
rendimento
Os jogos e brincadeiras tradicionais demonstram as preferências de cada
sociedade, prolongam seus hábitos e refletem suas crenças. As lutas corporais, a
corrida, os jogos tradicionais presumem uma explicação mitológica para sua
realização; são meios de interação entre o mundo dos espíritos e o mundo real,
responsáveis por constituir a pessoa indígena. As escolhas por determinadas
práticas corporais demonstram o modo de raciocinar de um grupo, o que acaba por
educá-lo, definindo suas características morais e intelectuais e reafirmando seus
habitus. Propõem que determinados comportamentos sejam seguidos evitando
reações adversas e contribuindo para a continuidade de uma dada ordem social.
Portanto, as influências dos princípios e das categorias do jogo se manifestam fora
desse espaço delimitado por um tempo próprio, penetra na vida ordinária das
sociedades, colaborando para definir o estilo de diferentes culturas (Caillois, 1994).
As práticas corporais tradicionais começaram a ser realizadas no dia 25 de
novembro de 2007 na arena de Olinda. As atividades passíveis de regulamentação
foram realizadas de maneira competitiva. Por meio dela é garantida a participação
de todos os inscritos, sob normas unificadas, com o intuito de se obter a
quantificação dos resultados. Guttmann (2004) afirma que a quantificação, aqui
entendida como mensuração do desempenho atlético no esporte moderno, é
coerente com o modo de vida da sociedade moderna. Caracteriza-se por
80
transformar as atividades esportivas em algo que possa ser quantificado e medido,
em número de pontos ou gols, medidas de tempo e distância ou notas. Nos jogos a
pontuação ocorreu “para efeito de registro e Classificação Geral (a soma das
pontuações adquiridas conforme a participação em todas as atividades)”
(Regulamento Geral, 2007: 7), reforçando a quantificação.
Todavia outras práticas em que não condições de normatização, por
serem restritas a determinados grupos, desenvolveram-se sob forma de
demonstração. Dentre as práticas corporais tradicionais demonstradas destacam-se
as lutas corporais, atividades que são essenciais para a fabricação do corpo e, por
conseguinte, da identidade da pessoa indígena. A Uka-Uka é praticada pelos povos
habitantes do Parque Nacional do Xingu e pelos Bakairi de Mato Grosso. O Iwo
pelos Xavante que estão espalhados por todo o Estado do Mato Grosso. O Idjassú é
característico do povo Karajá da Ilha do Bananal e a Aipenkuit é exercitada entre os
homens do povo Gavião Kyikatejê do Estado do Pará. Cada qual possui suas
peculiaridades; entretanto, de modo geral, têm como função preparar o indígena
para combates que exigem maior capacidade de destreza e força física. Essas
práticas corporais consistem basicamente em uma disputa entre dois lutadores que
têm como objetivo desequilibrar e derrubar o oponente. Apesar de requerer um vigor
físico, não se percebeu qualquer tipo de violência entre seus adeptos.
O Xikunahaty, conhecido como futebol de cabeça, foi apresentado pelos
Pareci Haliti. Nesse jogo, o objetivo é passar a bola para o campo adversário,
usando apenas a cabeça, marcando ponto aquele que não cometer erros. Essa
prática, segundo um indígena dessa etnia, em declaração feita para o documentário
dos IX Jogos dos Povos Indígenas, possui estreita relação com o mito de origem
desse povo no qual um ser superior orientou como o povo que sairá da fenda de
uma pedra deveria viver e, em seguida, reuniu todos para jogar com a bola
produzida do látex de Mangaba (Discurso da Liderança Pareci, Referência
Documentário, 2008). Tendo em vista essa afirmação, nota-se que tal prática possui
o caráter conjuntivo – e não disjuntivo – característico dos jogos esportivizados.
Para Lévi-Strauss (1970), a diferença é que o jogo (esportivizado) é
“disjuntivo”, ou seja, ele resulta de uma divisão entre jogadores, individualmente ou
em equipes, que, em princípio, seriam igualitários, mas no final da partida se
distinguirão entre vencedores e vencidos. O jogo tradicional (ritualizado) apresenta-
se de forma simétrica e inversa ao jogo esportivo, posto que ele é “conjuntivo”.
81
Institui a união ou estabelece uma relação orgânica entre os participantes que foram
separados no início e, no final, se confundem com a coletividade. A simetria do jogo
decorre da instituição de regras iguais para ambas as equipes e a assimetria provém
dos acontecimentos, dependendo da intenção, da sorte e do talento. No ritual ocorre
o inverso, a assimetria é preconcebida, por exemplo, entre iniciados e não-iniciados
e consiste em unir todos do mesmo lado.
A peteca, brinquedo que está presente em diversas culturas indígenas, foi
apresentada em um jogo, do qual participaram além de indígenas de grande parte
das etnias, voluntários, organizadores e o blico. Após ser lançada para o alto,
todos deveriam se empenhar para o deixar a peteca cair no solo. Aquele que o
grupo identificar como responsável por esse fato sofre um tipo de punição na qual
todos os participantes desferem leves sopapos em quem cometeu o erro. Todas
essas práticas corporais que foram demonstradas nos Jogos dos Povos Indígenas
são realizadas conforme sua tradição, não sendo inseridos nelas elementos do
esporte que alteram sua estrutura.
Nesse cenário, observou-se a preservação do patrimônio cultural dos povos
indígenas envolvidos. Na oportunidade houve uma verdadeira celebração com a
interação de índios de diversas etnias entre si e desses com os não-índios, um dos
objetivos do evento. Por outro lado, entende-se que os jogos tradicionais, isto é, as
“manifestações realizadas por grupos indígenas, com características mitológicas e
ritualísticas específicas de cada grupo” (Rocha Ferreira et al, 2005. In Vinha &
Rocha Ferreira, 2005: 6) sofreram um processo de regulamentação para propiciar a
competição.
3.7.1 A contradição dos instrumentos
O arco e a flecha são instrumentos que fazem parte da cultura de diversas
etnias indígenas. Durante muitos anos seu uso tinha como objetivo prover alimentos,
por meio da caça, e dar proteção às sociedades, sendo utilizados como armas em
conflitos com outros povos. As técnicas necessárias ao seu uso, são aprendidas
nessas sociedades através de jogos e brincadeiras que desenvolvem na pessoa
indígena habilidades específicas desde sua infância. Após o contato com o o-
índio, e a assimilação de uma rie de comportamentos dessa outra cultura,
82
algumas etnias mantêm o uso desse instrumento com outros sentidos, enquanto
outras não têm mais o costume de “flechar”.
Segundo Guttmann (2004), a racionalização, característica do esporte
moderno, é vinculada a uma racionalidade que estabelece relações entre meios e
fins na sociedade moderna. As regras fazem parte dos jogos mais antigos; todavia, o
esporte moderno as cria e recria, a fim de garantir uma previsibilidade às
competições, agindo como um instrumento cultural. A racionalização promoveu
assim a criação de tecnologias, equipamentos e métodos de treinamento que visam
a alcançar o mais alto grau de desempenho humano. Fato semelhante ocorreu na
Europa e foi analisado por Guttmann (2004). Segundo o autor, ao passar por um
processo de racionalização, a caça, que possuía uma essência utilitária e desigual,
tornou-se modalidade esportiva do tiro ao alvo.
Na IX edição dos Jogos Indígenas, a prática que envolve o arco e a flecha foi
realizada somente por homens, e seguiu a lógica do tiro com flecha praticado nos
eventos esportivos. Dois indígenas de cada etnia, com sua pintura corporal e seus
adornos específicos, entraram na área de competição. Todos tinham o direito a três
“tiros” em um alvo de 2 metros de altura por 4 metros de largura, no qual havia o
desenho de um peixe. Diferentes partes do peixe apresentavam pontuação, no
espectro de 1 ponto a 40 pontos. O valor mais alto encontrava-se no olho da figura.
A distância de 30 metros do arqueiro para o alvo foi demarcada por um cone, não
havendo tempo estipulado para a concretização das flechadas após a autorização
do “árbitro”.
83
Figura 2: Competição de arco e flecha
13
A figura demonstra a fiscalização que foi realizada por um membro da
comissão cnica, o que indica a adoção de regras e busca de padronização das
práticas corporais, como no caso do arco-e-flecha. Ainda pode-se perceber, de
acordo com a imagem, o interesse que a prática desperta no público presente:
indígenas, o-índigenas, organizadores e na própria mídia que, de forma atenta,
procura captar todos os ângulos dos movimentos corporais praticados pelos
“competidores”. Desta forma, nota-se a mescla de elementos tradicionais
constituintes das práticas corporais dos povos indígenas (arco-e-flecha) como o
próprio instrumento e os adornos corporais e elementos modernos que se
caracterizam pela fiscalização, uso de equipamentos modernos e presença da mídia
no local.
No contexto da regulamentação (fiscalização), o sistema de eliminatórias foi
mais uma vez utilizado. Os doze atiradores que obtiveram maior pontuação, depois
de somada as três tentativas, avançaram para a etapa seguinte, na qual tiveram
direito a mais três tiros que foram somados aos primeiros. Dessa forma, foram
definidos os primeiros colocados (Referência, Diário de Campo, Recife, 2007).
Com o discurso de não ferir a tradição indígena, definiu-se no congresso
técnico que cada povo poderia utilizar seu arco e sua flecha tradicionais. No entanto
nota-se que tal procedimento não interfere na igualdade, uma das sete
13
Foto: Marco Mendes.
84
características do esporte moderno apresentada por Guttmann (2004). A igualdade
de oportunidades de participação é outra característica contraditória do esporte
moderno. Todos os indivíduos, independente de classe social, idade, sexo podem
participar, porém as mulheres e os negros, durante anos, foram segregados dessa
prática. De acordo com o autor, entre os povos primitivos a participação em práticas
corporais era aceita pelo caráter religioso; portanto, não era para todos. Os gregos
manifestavam efetivamente a igualdade nos esportes, enquanto os romanos, apesar
de aceitá-la, utilizavam tais atividades para trazer divertimento ao público. Deve-se
ter a compreensão de que no esporte moderno não se tem igualdade de condições,
mesmo que muitos regulamentos sejam desenvolvidos para que isto ocorra. Apesar
de as regras terem como intuito a igualdade, no contexto atual elas são utilizadas
pelas instituições internacionais ligadas ao esporte para adequá-lo à indústria
cultural. Compreendendo que o regulamento fora desenvolvido para estabelecer
uma pura igualdade de condições, esse nivelamento não é alcançado em nenhum
esporte de alto rendimento, devido a diversos fatores que, por sua vez, determinam
quem será o vencedor.
No arremesso de lança a padronização do instrumento se fez necessária para
garantir que o vencedor fosse conhecido pelo seu desempenho, isto é, “pela maior
distância arremessada” (Orientação Específicas das Modalidades, 2007). Segundo o
diretor técnico dos Jogos dos Povos Indígenas “há muita diferença no material das
lanças”, o que impediria a igualdade de condições. Sendo assim, as lanças foram
produzidas pelo povo Terena de Mato Grosso do Sul e a competição seguiu os
mesmos princípios do arco-e-flecha, sendo considerado para registro do resultado o
arremesso mais distante de cada participante, após a tentativa de três lançamentos.
85
Figura 3: Aferição da marca alcançada no lançamento da lança
14
No registro fotográfico, observa-se o momento da aferição da marca
alcançada no lançamento realizado por um indígena, demonstrando o interesse da
organização do evento em proporcionar comparações dos resultados dos
participantes. Portanto, nota-se que a lança outro instrumento das sociedades
indígenas que possui relação com a caça e a defesa da comunidade – também sofre
um processo de regulamentação, assim como o arco-e-flecha, com o intuito de
torná-lo uma modalidade esportiva.
A padronização do instrumento, com efeito, altera a técnica corporal dos
indígenas, porquanto cada instrumento determina a especificidade da cnica. A
propósito, observa-se o clássico exemplo dado por Mauss (2003), ao referir-se às
tropas inglesas que não sabiam servir-se de pás francesas para cavar as trincheiras.
Explica-se: considerando o nível de complexidade e o lento aprendizado para
proceder à manipulação desses instrumentos que exigiam técnica apropriada e
grande habilidade os ingleses não foram capazes de utilizar com eficiência os
equipamentos franceses. As técnicas corporais são as “maneiras pelas quais os
homens, de sociedade a sociedade, de forma tradicional sabem servir-se de seu
corpo” (Mauss, 2003: 401). Toda técnica ou atitude corporal tem sua especificidade.
As técnicas corporais são apreendidas lentamente devido à educação que conduz a
hábitos próprios de cada sociedade. O ensino de determinadas técnicas corporais
14
Foto: Arthur Almeida.
86
podem revelar o modo de vida de uma sociedade, visto que são suas tradições que
condicionam as atitudes individuais.
No âmbito dos Jogos dos Povos Indígenas, nota-se, por meio das cnicas
corporais específicas, que o arco-e-flecha e a lança têm seus sentidos originais
alterados, a fim de proporcionar a competitividade entre os povos indígenas, fato
que pode contribuir para uma mudança no comportamento desses grupos, nos seus
hábitos e, particularmente, nas suas tradições.
3.7.2 Canoagem e Natação: competição e brincadeira na água
A manhã do dia 29 de novembro de 2007 foi reservada para as atividades no
meio aquático. Na Praia do Bairro Novo, ao lado da arena, foram realizadas as
competições de canoagem e natação. Antes de se iniciarem as provas, ocorreu a
apresentação de um ritual pelo povo Xavante, demonstrando sua relação com a
água. Nessa celebração nove homens ficam lado a lado dentro da água. Em
movimentos alternados, afundando e jogando a água para o alto, os Xavante iniciam
a manifestação. Após alguns minutos todos saem da água, um atrás do outro,
apanham um pedaço de madeira do chão, abaixam a cabeça e caminham em
sentido circular, sentando-se, em seguida, na areia. Outro indígena dessa etnia se
aproxima, faz movimento com o tronco em direção ao seu companheiro, e simula
que está furando sua orelha. Depois de ter a orelha furada o indígena levanta-se e
se retira levando consigo a madeira. Segundo um dos idealizadores dos Jogos, o
ritual de furação da orelha significa que o indivíduo está preparado para se casar
(Referência, Diário de Campo, Recife, 2007). Não os Xavante, mas todos os
povos indígenas possuem afinidade com a água. Tanto é assim que o lema dessa
edição dos Jogos foi “água é vida, direito sagrado que não se vende”. No entanto
cada um dos povos evidencia essa relação do seu modo específico.
Na canoagem participavam dois indígenas do sexo masculino de cada etnia.
Com seus remos próprios, ou cedidos por outros indígenas, eles se posicionavam
atrás de duas canoas. A confecção das canoas foi de responsabilidade do povo
Rikbaktsa, também conhecido como canoeiros, devido a sua habilidade no uso
desse equipamento, que lhes provém alimento e lhes proporciona deslocamento
pela região que habitam, no noroeste de Mato Grosso. Ao sinal sonoro, os dois
indígenas corriam em direção a uma dessas canoas e a colocavam no mar. Em
87
seguida remavam ultrapassando bóias que demarcavam um percurso de
aproximadamente 300 metros. O percurso foi demarcado por duas bóias e contava
com a presença de profissionais do corpo de bombeiros que utilizavam jet ski para
prestar socorro, em caso de emergência. A cada “bateria” os indígenas menos
habilidosos na utilização das canoas eram eliminados, a restarem apenas duas
etnias que disputavam a final. Notou-se uma diversidade de técnicas corporais
utilizadas pelos indígenas, assim como indígenas que não conseguiam remar,
possivelmente devido ao fato de não terem uma familiaridade com o mar, ou por
terem uma relação diferenciada com a água (Referência, Diário de Campo, Recife,
2007).
A natação foi configurada de maneira similar à prática esportiva do triatlon.
Primeiramente os homens participantes da “prova” aguardavam o sinal sonoro lado
a lado na praia, de onde saíam correndo em direção ao mar e tinham que contornar
uma bóia, percorrendo aproximadamente 100 metros. Quatro indígenas por etnia
poderiam participar das provas que foram disputadas em “bateria” única. A categoria
feminina seguiu o mesmo procedimento em relação à largada e à distância da
disputa masculina, sendo declarado vencedor o indivíduo que saísse primeiro da
água. Um fato percebido nessa prática foi a utilização de um material esportivo
toca de natação por uma indígena, evidenciando o impacto da indústria esportiva
no contexto global.
Simultaneamente à competição dessas “modalidades”, a alguns metros, um
grande número de indígenas aproveitavam o dia ensolarado para interagir a sua
maneira com a água. Os mais velhos apenas se molhavam e contemplavam o
ambiente, enquanto as crianças e os adolescentes se alegravam com brincadeiras,
como, por exemplo, aquela em que uma pessoa sobre os ombros da outra tenta
derrubar o adversário, empurrando-o. Indígenas de todas as idades entravam no
mar e demonstravam de que modo se relacionam com a água nos momentos de
lazer. Nas sociedades tradicionais, esses momentos não são vistos separadamente
do tempo do trabalho. Tal fato traz à tona a existência e a diversidade de práticas
corporais tradicionais e, por conseguinte, de sentidos que esses povos apresentam
no que diz respeito à água. O próprio nado e a canoagem não possuem o sentido de
superação de uma distância em menor tempo possível, porém eles ocorrem para
compor um quadro de “modalidades” a serem disputadas no contexto competitivo
dos Jogos dos Povos Indígenas.
88
3.7.3 As corridas desvinculadas do mundo espiritual
As corridas entre os indígenas no Brasil são praticadas com ou sem
instrumentos. Segundo Rocha Ferreira (2002), são muito valorizadas entre esses
povos. Sendo transmitidas dos mais velhos aos mais novos, as corridas transmitem
a noção de elo entre os mundos físico e espiritual, posto que fazem parte da
cosmologia das sociedades indígenas. A capacidade por elas exigida como
velocidade e resistência estão relacionadas com mitos de diversas culturas, nas
quais os dons são recebidos pelas pessoas indígenas como forma de sobrevivência
e adaptação ao meio ambiente.
De acordo com Melatti (1976), a maioria dos grupos que pratica a corrida não
habita áreas de florestas. Em estudo realizado entre os Kraô o registro de um mito
que classifica os animais moradores do cerrado como sendo aqueles que correm mais
rapidamente.
O mito deixa bem claro que a velocidade é um meio de defesa no cerrado, tal
como a possibilidade de se esconder na mata. [...]. A habilidade em correr
tamm possibilitaria perseguir com mais eficiência os animais de caça, e
mesmo inimigos, bem como explorar para a subsisncia uma área mais
vasta em torno da aldeia (Melatti, 1976: 40).
Na IX edição dos Jogos dos Povos Indígenas as corridas foram disputadas
competitivamente em três “modalidades”. Na Corrida de “Cem Metros Rasos”, dois
atletas de cada etnia se colocam um ao lado do outro, nas duas “categorias”, não
havendo “séries” eliminatórias. No espaço da arena, sobre o solo arenoso, foi
delimitado o percurso, o qual os participantes deveriam transpor, após o sinal, no
menor tempo possível, para, desse modo, ser reconhecido como o indígena mais
veloz.
Com a exigência da capacidade de se deslocar de um ponto a outro com
velocidade, e com o propósito de comparar o desempenho dos indivíduos, as
corridas se distanciam dos sentidos atribuídos pelos povos indígenas, seja com
significado de fuga, de perseguição, seja de reconhecimento do ambiente
circundante, para tornar-se um espetáculo observado por um público acostumado
com essa estrutura, o que torna o evento mais facilmente aceito.
Seguindo essa gica, torna-se profícuo observar a similaridade da “Corrida
de Fundo” com a prova mais tradicional do maior espetáculo esportivo: a maratona
89
que possui todo um simbolismo dentro das olimpíadas e possibilita ao público
manter um contato mais próximo com os competidores. Foi o que aconteceu em
Recife. Sem um número determinado de “atletas” inscritos por etnia, eles deveriam
percorrer um trajeto de 3000 mil metros pelas ruas adjacentes ao ginásio Geraldão.
Em mais um dia ensolarado, as pessoas paravam para olhar os indígenas, calçados
ou não, correrem sobre o asfalto, demonstrando capacidade de velocidade e
resistência. Ao final, no ginásio de esportes, os vencedores foram recebidos com
entusiasmo pelos espectadores e organizadores do evento. Assim como ocorre com
a maratona nos Jogos Olímpicos, a “Corrida de Fundo” foi realizada no último dia
dos Jogos, fechando as atividades competitivas.
A cerimônia de encerramento dos IX Jogos dos Povos Indígenas, que
início a um ciclo de dois anos de espera pela edição seguinte, ocorreu após a
realização da “Corrida de Fundo”, sob um ambiente de emoção que contagiou a
todos. Mais uma vez o fogo fez parte do ritual apresentado pelo povo Terena do
Mato Grosso do Sul e observado atentamente por espectadores que lotavam a
arena. Em seguida todas as etnias entraram nesse espaço cantando e dançando,
conforme sua tradição, com suas pinturas e adornos, expressando sua identidade
por meio do corpo. Nesse clima de confraternização, sob aplausos, os participantes
dos Jogos receberam troféus e medalhas. Apesar de todos os concorrentes terem
recebido sua premiação, observou-se que a lógica do esporte de alto rendimento,
elemento da modernidade, foi inserida em práticas corporais tradicionais dos povos
indígenas brasileiros, a partir de um processo de regulamentação desenvolvido
pelos organizadores do evento e, como foi notado no congresso técnico, com pouco
envolvimento dos representantes indígenas.
Nesse sentido, vale ressaltar que o esporte de alto rendimento condiz com os
interesses dominantes na sociedade capitalista, influenciando o estado atual de
ofertas esportivas. A oferta, segundo Bourdieu (1990), é caracterizada pelas
propriedades técnicas e relacionais de cada prática e interfere de modo
determinante no habitus de uma coletividade. É reconhecida uma variedade de
práticas esportivas totalmente diferentes e muitas vezes com sentidos opostos;
porém, apesar de os esportes permitirem uma gama de usos, prevalece na
atualidade o sentido dominante que lhes é atribuído. No momento atual, o sentido do
esporte-espetáculo predomina. Desse modo, nota-se que as práticas corporais
90
tradicionais, assim como o futebol, são oferecidas aos protagonistas dos Jogos dos
Povos Indígenas também sob a lógica do esporte de alto rendimento.
3.8 Corrida de Toras: diferentes interesses, diferentes sentidos
A corrida de toras nesta edição dos Jogos dos Povos Indígenas demonstrou
que a lógica do esporte de alto rendimento penetrou nas práticas corporais
indígenas. Após oito edições desse evento nacional essa prática foi realizada tanto
de maneira demonstrativa, quanto competitiva, em que “outras comunidades que
[quiseram] participar desta nova modalidade, tipicamente indígena, [puderam]
competir neste evento” (Orientações Específicas das Modalidades, 2007). De acordo
com Marcos Terena, organizador do evento, em declaração para o documentário IX
Jogos dos Povos Indígenas, existem hoje seis etnias que praticam a corrida de toras
em território brasileiro, a saber: Xerente, Gavião, Xavante, Kanela, Krikati e Krahô.
Destas, as duas últimas não estiveram presentes ao evento (Discurso do
Idealizador, Referência Documentário, 2008).
Nas demonstrações, cada etnia corre com a tora que é tradicional de sua
cultura, expressando suas especificidades. Ressalta-se que a corrida de toras varia
muito de uma sociedade para outra. Os Gavião Kyikatejê do Pará, antes de
iniciarem a corrida (denominada Jãmparti), colocam duas toras de aproximadamente
3 metros de altura, apoiadas na areia sobre extremidade de diâmetro maior,
ornamentada com algodão, visto que essa tora apresenta uma diferença de diâmetro
entre as extremidades. Os corredores, de os dadas, se posicionam ao redor das
toras cantando e dançando, como preparação para atividade. Entre os Gavião, as
toras são erguidas com a ajuda de todos os participantes e conduzidas por dois
indígenas de cada vez, que as carregam nos ombros com a extremidade de maior
diâmetro à frente. Para a passagem da tora há uma pequena pausa até que esteja
segura por outros dois índios. Os Kanela, tanto homens quanto mulheres, correm
com toras de aproximadamente 1 metro de comprimento por 30 centímetros de
diâmetro. A tora é conduzida individualmente, com o acompanhamento de outros
indígenas, que auxiliam o corredor equilibrando-a. A passagem é dinâmica, e o
condutor da tora realiza um giro colocando-a sobre o ombro do companheiro.
Melatti (1976), em estudo realizado entre os Krahô, constatou que essa
prática está sempre associada a um rito. Conforme os ritos, variam-se as formas das
91
toras, os grupos que disputam a corrida e o percurso.
As corridas vindas de fora da aldeia se fazem geralmente no final da tarde,
quando os índios retornam de alguma atividade coletiva: uma caçada, um
mutirão na roça de um deles. Enquanto caçam ou trabalham na roça, uns dois
deles preparam as toras. Derrubam um buriti e cortam duas seções de seu
tronco. Os dois cilindros assim obtidos, iguais em tamanho, são rolados para
fora do brejo e colocados num lugar limpo. Se os demais índios estão
caçando, é neste local que virão dividir entre si os animais abatidos. Velhos e
meninos se encarregam de levar as espingardas e os pedaços de carne que
tocaram a cada um dos rapazes e homens adultos, enquanto estes partem
correndo com as toras na direção da aldeia. Toda corrida que sai de fora da
aldeia se faz sempre com toras novas (Melatti, 1976: 40)
.
Nesse ínterim, o autor identificou sete tipos diferentes de toras, geralmente
confeccionadas de tronco de Buriti. Quando utilizadas em momentos distintos, as toras
possuem sentidos espeficos. Desse modo, observa-se que desde sua fabricação a
tora está envolvida em um sistema de significados, o que contribui para desmentir a
idéia de que a corrida de tora seja realizada exclusivamente como um teste
matrimonial. Entre os Krahô, os mitos sustentam a idéia de que a sociedade se
mantém com elementos que vêm da natureza. Os ritos e cânticos foram aprendidos
com os animais, assim como a ingestão de alimentos, a utilização de técnicas
agcolas, o uso do fogo que, segundo os mitos, vieram de fora da sociedade.
“Portanto, as corridas de toras [para este povo] constituiriam a representão da
passagem de todos esses elementos "naturais" para o âmbito da sociedade” (Melatti,
1976: 44).
O idealizador dos Jogos, em depoimento expresso no documentário IX Jogos
dos Povos Indígenas afirma que: “Cada tora tem um desenho, uma identidade e
uma espiritualidade própria daquele povo. Não basta cortar um tronco e sair
correndo com o tronco nas costas é preciso uma identidade com cada uma dessas
manifestações” (Discurso do Idealizador, Referência Documentário, 2008),
demonstrando consciência do significado dessa prática para os diferentes povos. O
líder Xavante no congresso técnico argumentou:
“Corrida de Toras é coisa muito ria. Deveríamos tratar com
as próprias etnias se isso vale a pena”, se referindo a
realização desta prática em forma de competição. Percebendo
uma descaracterização desta, propôs que fosse feita “apenas
uma apresentação para todos verem” (Discurso da Liderança
Xavante, Referência Diário de Campo, Recife, 2007).
92
Ressalta-se, contudo que, pela primeira vez, a corrida de toras foi realizada
de maneira competitiva dentro dos Jogos dos Povos Indígenas, sofrendo um
processo de regulamentação no qual a organização burocrática se sobressai aos
interesses dos povos indígenas.
O regulamento dos jogos indígenas determinou que cada etnia que quisesse
participar dessa competição deveria inscrever uma equipe masculina com quinze
integrantes. A “prova” foi disputada na arena, onde foi montado um percurso
retangular demarcado por cones. Voluntários fiscalizavam o cumprimento do trajeto.
Crendo em uma imparcialidade, foi feito um sorteio das toras entre duas equipes que
as carregaram durante a corrida. O instrumento dessa prática a tora foi
padronizado, sendo eleita a tora da etnia Xavante, a fim de proporcionar a igualdade
de condições aos “competidores”. Tendo em conta que os Xavantes apresentam
maior habilidade para manipular este tipo de tora, essa igualdade se fez relativa.
Sendo reconhecido vencedor aquele grupo que percorreu o trajeto no menor tempo.
Figura 4: Corrida de toras competitiva
15
Estruturada dessa forma, a corrida de toras assume como característica
essencial a competitividade, atributo que, segundo Melatti (1976) não se faz
presente no cotidiano das aldeias. A imagem mostra que na IX edição dos Jogos
dos Povos Indígenas os participantes de duas etnias competem, com o objetivo de
percorrer um percurso delimitado e fiscalizado em menos tempo que o oponente.
15
Foto: Arthur Almeida.
93
Desse modo, compreende-se que o sentido tradicional dessa prática foi retirado,
permanecendo apenas o movimento corporal para a busca da performance
(competição).
No contexto das sociedades indígenas essa prática está associada aos ritos,
possuindo um caráter conjuntivo, em que, ao ser encerrada, o grupo que iniciou
separado se une (Lévi-Strauss, 1970). Dessa forma, entende-se que o princípio da
sobrepujança atrelado aos esportes, de acordo com Kunz (2006), não é evidenciado
entre os indígenas que praticam a corrida de toras em suas aldeias. Nessa direção,
concorda-se com Melatti (1976) que não considera a corrida de toras como uma
modalidade esportiva tipicamente indígena, devido a sua estrutura original não
possuir as características do esporte. O autor afirma que tal entendimento é um
“equívoco” e continua:
Ora, não se pode dizer que as corridas de toras comecem em igualdade de
condições. É certo que as toras, na medida do possível, têm o mesmo peso;
mas o mero de participantes de cada metade o é necessariamente o
mesmo. Há corridas que começam com a vantagem inicial de uma das
metades, que parte na frente. outras em que as metades trocam, durante
o percurso, em locais previamente estabelecidos, suas toras, desfazendo
qualquer vantagem que uma delas tenha conseguido até o momento da troca.
Além disso, quando um corredor, com a tora ao ombro, percebe que o rival,
que está com a outra tora, é seu hõpin (um amigo ritual), não pode correr
muito, para não fazer seu "amigo" se cansar. Assim, há uma diferença inicial,
mas também uma diferença final, pois quase sempre uma das metades
chega na frente. Mas sua vitória não é festejada (Melatti, 1976: 45).
Portanto, verifica-se que a corrida de toras nos Jogos dos Povos Indígenas
passou por um processo de alteração dos sentidos. Na medida em que uma
normatizão com o intuito de propiciar a competitividade, essa prática tradicional
torna-se secularizada, isto é, desvinculada da espiritualidade desses povos. O esporte
moderno é uma prática desvinculada de cerimônias ou festas religiosas; a ligação
entre o real e o transcendental foi rompida. A posição de Guttmann (2004) vai ao
encontro dos argumentos de Lévi-Strauss (1970), que caracteriza tais práticas como
jogos. Os denominados esportes gregos estariam mais próximos das práticas dos
povos primitivos do que do esporte moderno, por não deixar dúvida do seu caráter
religioso. os esportes ditos romanos acentuaram a secularidade, pois o intuito em
sua prática era o aprimoramento da forma física, assemelhando-se ao ideário de
esporte-espetáculo, tendência mais predominante no cenário atual.
94
A fim de possibilitar a competição e a comparão do desempenho dos
indígenas, a corrida de toras (bem como outras práticas corporais tradicionais) foi
estruturada por meio de uma regulamentação baseada no sentido dominante do
femeno esportivo. Na medida em que foram assim concebidas, tais práticas
evidenciam os princípios da sobrepujança e da comparação objetiva e assumem desse
modo a lógica do esporte de alto rendimento, tornando-se esportivizadas, com vista a
propiciar a integração de grupos e minorias à sociedade global em construção.
95
CAPÍTULO 4
ESPORTIVIZAÇÃO DE PRÁTICAS CORPORAIS INDÍGENAS: CONTRIBUIÇÃO À
INTEGRAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS BRASILEIROS À SOCIEDADE GLOBAL
Nas sociedades indígenas as práticas corporais os jogos e as brincadeiras
tradicionais estão relacionadas à cosmologia que orienta seu modus vivendi e sua
visão de mundo. As práticas corporais compartilhadas nas aldeias educam e
apresentam relação direta entre a infância e a vida adulta. As brincadeiras são
formas lúdicas de apreensão da realidade que formam uma identidade
fundamentada nos sentidos e significados específicos de cada cultura.
“As culturas indígenas, embora os índios estejam dentro da
sociedade nacional e dialoguem com a nossa cultura, eles
mantêm muitos espaços de autonomia e de criação onde as
práticas corporais o elementos essenciais de afirmação
deles. [...] tem sido fundamental até na luta política deles”
(Entrevista, Antropólogo, Recife, 2007).
As práticas corporais estão envolvidas na totalidade das culturas indígenas;
portanto, não se trata de uma área específica dentro dessas culturas, porque
possuem um símbolo próprio em suas tradições que contribuem para a educação da
pessoa indígena. A educação, por meio dos jogos e brincadeiras tradicionais, se
baseia em superar as dificuldades impostas pelo meio ambiente e no
desenvolvimento de valores cooperativos e de evolução social. Observa-se o que
afirma Herrero:
Isso tudo faz dos jogos e brincadeiras atividades extremamente atraentes e
agradáveis para toda a comunidade e promove uma aprendizagem ativa,
com avaliação de propostas, valores e conhecimento que vão muito além
do que é permitido e proibido ou dos indicadores de pontuação ou valores
das jogadas (2006:116).
O estudo realizado pela autora na Aldeia Aiha da etnia Kalapalo tinha por
objetivo resgatar os jogos e brincadeiras daquela comunidade. Foi o que aconteceu.
Aos poucos, os indígenas mais velhos recuperaram as regras e as formas de jogar e
as transmitiram aos mais novos as devidas práticas. Foram descritas 25 práticas das
quais dezesseis eram desconhecidas dos mais novos. Nos jogos apresentados por
essa etnia, verificou-se o caráter cooperativo, enfocando temas como: “iniciação
96
sexual, guerra, caça, justiça, família, mitos da criação, bichos e mitos de
transformação de mortos em bichos e vice-versa” (Herrero, 2006: 114). Todos
participam, porém as mulheres com menor freqüência. De modo geral, a diversão
satisfaz vencedores, vencidos e espectadores. Nessa oportunidade, os jogos e
brincadeiras foram praticados no entorno da Aldeia Aiha da etnia Kalapalo. Os
materiais fabricados pelos jogadores geraram demanda pela procura de recursos
naturais para sua confecção, o que contribuiu para que os indivíduos daquela
comunidade reconhecessem o meio em que vivem. A transmissão de jogos e
brincadeiras dos mais velhos aos mais novos envolveu imagens e histórias que
exigiam certo nível de abstração, o que propiciou o desenvolvimento do intelecto da
criança, reafirmando sua cultura por meio dos mitos.
Cada um dos jogos e brincadeiras desenvolve determinadas habilidades que
servem de base para a futura função social exercida pelos índios Kalapalo. Dentre
elas, o companheirismo, a coragem, a observação, a conceituação e a classificação
que estão relacionadas ao planejamento e análise de resultados, entre outras. O
índio que se sobressai em habilidades manuais podese tornar artesão. Os bons
lutadores, devido ao prestígio que adquirem, geralmente tornam-se caciques,
enquanto outros desenvolverão suas habilidades para a pesca e outras atividades
comunitárias.
Por outro lado, no contexto atual de uma sociedade global, em que o
fenômeno da globalização proporciona que bens materiais e imateriais sejam
permutados, tem-se, nesse cenário, o esporte como meio de interação entre
diferentes povos. O esporte de alto rendimento, elemento cultural das sociedades
complexas, tornou-se a prática corporal hegemônica de tais sociedades, tendo seu
sentido inserido em outras práticas sociais de lazer, a exemplo dos jogos e as
brincadeiras tradicionais. Esses elementos culturais das sociedades tradicionais o
são necessariamente perdidos, mas sofrem um processo de ressignificação pela
incorporação de valores modernos em suas práticas. O fenômeno esportivo ganhou
cada vez mais espaço na sociedade ocidental moderna durante o transcorrer do
século XX. Nas últimas cadas, devido ao intenso contato dos não-índios com as
sociedades indígenas brasileiras, o futebol vem sendo praticado cotidianamente em
diferentes comunidades indígenas. Não desconsiderando o aspecto institucional, e
tendo como finalidade a compreensão do significado atribuído ao esporte por
diferentes grupos étnicos de sociedades tradicionais (constituídas de ordens sociais
97
distintas da sociedade ocidental moderna), torna-se de fundamental importância
para a análise em questão entender como o fenômeno esportivo vem sendo
incorporado ao cotidiano das sociedades indígenas no Brasil.
Em conseqüência, explica-se a causa da apropriação voluntária do esporte,
notadamente do futebol, por parte desses povos visto que essa modalidade
esportiva adapta-se bem “a várias condições e regras” (Fassheber, 2005: 157). Se,
por um lado, os jogos e as brincadeiras tradicionais ficaram marginalizados no
contexto de desenvolvimento da sociedade nacional, excluídos da cultura corporal
de movimento da maior parte da população, por outro, o esporte rapidamente se
difundiu entre as diferentes etnias indígenas no território brasileiro. Cada uma
dessas comunidades experimentou o primeiro contato com o esporte de modo
específico, seja por meio de ações missionárias, seja por meio da proximidade com
o meio urbano no entorno das aldeias, seja ainda em intervenções de professores
em escolas indígenas. Por conseguinte, o esporte é constantemente reafirmado pela
indústria cultural. Ações de entidades governamentais e não-governamentais
contribuíram para a adoção do esporte por parte dos indígenas, através de projetos
como a “Aldeia Cultural”, que contempla competições de futebol, vôlei, natação,
lutas e corrida do buriti. A “Caravana do Esporte” é promovida pelo Instituto Esporte
Educação, com sede no Rio de Janeiro, que visa a desenvolver habilidades de
modalidades como o vôlei, futebol e basquete entre os indígenas, além de levar a
efeito projetos como “Esporte para Todos”, no Estado do Pará, em comunidades
daquela região. (Vinha, 2005: 149).
Em algumas etnias, como é o caso dos Kadiwéu, existem hoje departamentos
para o esporte e o lazer na estrutura política dessa comunidade (Vinha & Rocha
Ferreira, 2003: 151), tamanho é o interesse dessa prática esportiva entre seus
indivíduos. Segundo as autoras, em pesquisa realizada com o objetivo de
compreender o esporte na modalidade futebol entre os Kadiwéu, constatou-se
que existe uma mobilização de todos os indígenas para organizar o esporte na
aldeia Bodoquema. Essa organização consiste na decisão das equipes que irão
representar seu povo no preparo de uniformes, na adoção de estratégias para
aquisição de bolas para os treinos, na melhoria da estrada de acesso à aldeia, em
visitas às cidades próximas e na limpeza e demarcação do campo localizado na
aldeia. A partir desse panorama, observa-se que a prática do futebol está voltada
98
para a participação em torneios, inclusive com a seleção de equipes. Nesse
contexto,
A formação dos técnicos da aldeia vem ocorrendo com ajuda dos patrícios
habitantes na cidade vizinha e na capital. Os patrícios trazem informações
de revistas, gravam fitas de vídeo e discutem informações que ajudam a
compreender a modalidade. A mídia é acessada por rádio ou nas
esporádicas transmissões coletivas realizadas na varanda da escola,
usando a TV e o vídeo, que são de uso quase exclusivo dos alunos. Nos
finais de semana, também o trânsito realizado por alguns aficcionados
por futebol que estudam nas universidades próximas, mas vivem na aldeia.
Tanto os técnicos como as lideranças esportivas usam a metalinguagem da
educação física e do esporte: patrocinadores, massa, lazer, evento
esportivo, treinos técnico-tático (Vinha & Rocha Ferreira, 2003: 152)
.
Entre os Kadiwéu e os Kaingàng o futebol é praticado por homens e mulheres
de todas as idades; no entanto, elas participam menos de campeonatos fora da
aldeia. A participação dos indígenas em competições esportivas, que são realizadas
na maioria das vezes nas cidades, exige maior conhecimento tanto táticos quanto
técnicos para o êxito da vitória, levando-os a buscar o conhecimento científico,
desvirtuando os sentidos de suas técnicas corporais.
Realidade semelhante se verifica entre os Bororo da Aldeia Meruri, localizada
a 400 km de Cuiabá, Mato Grosso. Em estudo feito por Grando (2004) sobre As
relações interculturais nas práticas corporais Bororo, a autora observou que:
O futebol é praticado com várias finalidades: como atividade lúdica
promovida de forma espontânea entre crianças e familiares, como atividade
escolar, durante as aulas de Educação Física, como treinamento e
aprendizado; como competição na própria comunidade e, finalmente, como
amadorismo, em jogos oficiais de futebol amador fora da aldeia (Grando,
2004: 279- 280).
Com o interesse em melhorar o desempenho dessa etnia, frente aos
adversários nos torneios dos quais participam, os Bororo introduziram conteúdos
técnicos e táticos dessa prática esportiva no âmbito da educação escolar indígena.
Com efeito, as técnicas corporais e os comportamentos foram alterados a partir de
uma maior compreensão das regras e da tática do futebol que, segundo a visão da
autora, se tornou institucionalizado na aldeia, se estabelecendo como “rituais
semanais” (Grando, 2004).
Após a inserção do esporte nas sociedades indígenas no Brasil, as práticas
corporais tradicionais vêm caindo em desuso ou sendo ressignificadas, em muitos
casos, perdendo seus sentidos na cultura desses povos. Isto se deve ao fato da
99
intensa inserção do futebol nas comunidades, em que os mais jovens dão
preferência à prática esportiva do que às cerimônias e festividades culturais, nas
quais os jogos e as brincadeiras tradicionais são praticados. A rivalidade que é
resolvida sem ressentimentos nos jogos tradicionais é substituída pela
competitividade existente no esporte que nunca se extingue, isto é, ela sempre se
renova. Portanto, em relação ao comportamento indígena, “o esporte pode
demandar mudanças devido às características de organização que o estruturam”
(Vinha & Rocha Ferreira, 2003: 155), havendo a possibilidade de distanciar os mais
jovens dos valores tradicionais.
No desenrolar de um processo de mundialização da cultura (Ortiz, 2006), o
esporte vem se caracterizando nas últimas décadas como um espetáculo,
estruturado em megaeventos a serem consumido por diferentes grupos, em
contextos sociais distintos. No bojo de uma administração burocrática, peculiar da
sociedade moderna, estratégias para o seu desenvolvimento mundial o utilizadas
pelas instituições internacionais, como a universalização das regras, para
produzirem competições esportivas na forma de megaespetáculos e, assim,
envolver um maior número de pessoas nesses eventos. Atrelado a interesses
econômicos, essas manifestações esportivas tornam-se mercadorizadas, gerando
produtos a serem obtidos por uma grande massa de consumidores do esporte.
Em certa medida, os Jogos dos Povos Indígenas podem ser comparados aos
Jogos Olímpicos, esse megaevento esportivo, pois
O referencial aparente é a manifestação “real”, isto é, um espetáculo
propriamente esportivo, confronto de atletas vindos de todo o universo
[território brasileiro] que se realiza sob o signo de ideais universalistas, e
um ritual, com forte coloração nacional [étnica] (Bourdieu, 1997: 123) Grifos
meus.
Não obstante, as palavras proferidas pelo idealizador dos Jogos expressas no
documentário dos IX Jogos dos Povos Indígenas não consideram tal evento como
uma olimpíada indígena, pois, no seu entender, “olimpíadas, o nome clássico, ela é
essencialmente competitiva” (Discurso do Idealizador, Referência Documentário,
2008). Ao contrário dessa opinião, entende-se que os Jogos Indígenas possui um
caráter competitivo. A inserção da lógica do esporte de alto rendimento prática
corporal dominante na sociedade capitalista em práticas corporais tradicionais,
sem que estas percam todas as suas especificidades, demonstra uma semelhança
100
entre esses eventos – a competitividade – com a adaptação das práticas tradicionais
ao espetáculo. Essa compreensão vai ao encontro da idéia de Ortiz (2006), a
respeito de um processo de mundialização da cultura.
Crer que a mundialização cultural dilui as especificidades de cada povo em
uma totalidade abragente não é o mais correto. A totalidade cultural modifica as
múltiplas particularidades. Esse processo aparece no cotidiano desses grupos,
valores e padrões culturais de uma sociedade globalizada; entranham-se nos
hábitos, comportamentos e valores das minorias, alterando seus sentidos e
significados. Contudo observa-se o que afirma Ortiz:
Seria mais convincente compreender a mundialização como processo e
totalidade. Processo que se reproduz e se desfaz incessantemente (como
toda sociedade) no contexto das disputas e das aspirações divididas pelos
atores sociais. Mas que se reveste [...] de uma dimensão abrangente,
englobando outras formas de organização social: comunidades, etnias e
nações. A totalidade penetra no seu âmago, redefinindo-as nas suas
especificidades (2006: 30).
O processo de mundialização é um fenômeno social total que coabita e se
reforça por meio de manifestações culturais particulares, criando um universo
simbólico específico a ser consumido. A cultura do consumo visa a atrair cada vez
mais consumidores, com o discurso da liberdade e democracia, contribuindo para a
expansão do capital. Associar o consumismo de uma massa de indivíduos mundiais
à liberdade é um tanto quanto ingênuo em um contexto marcado por tensões,
disputas e interesses. A cultura do consumo possui papel destacado em um mundo
globalizado, no sentido de definir e dar legitimidade a determinados
comportamentos.
Deve-se compreender que o termo mundialização não se refere a uma
homogeneidade de padrões culturais, pois, para existir, o fenômeno permeia o
conjunto de manifestações culturais, enraizando-se nas práticas cotidianas e, por
vezes, transformando-as em mercadoria. A padronização é um processo que se
tornou hegemônico no contexto da sociedade global, mas isso não significa que
outras expressões culturais não coexistam. A cultura mundializada abarca em sua
amplitude diferentes padrões culturais, alterando seus sentidos e significados que,
por sua especificidade, difunde uma outra visão de mundo e estabelece novos
valores. Portanto, a sociedade global envolve diferentes sujeitos em seu conjunto
101
complexo de relações, promovendo a integração de indivíduos, minorias, grupos e
etnias a essa sociedade cujos padrões culturais são mundializados.
Com esse entendimento, compreende-se que as práticas corporais
oportunizadas na IX edição dos Jogos dos Povos Indígenas são regidas, em grande
medida, pelo princípio da competição, sendo estruturadas a partir de uma
organização burocrática que institui regras únicas, de acordo com o esporte de alto
rendimento. Nesse sentido, devem-se esclarecer os valores transmitidos pelo
esporte, decorrentes das relações capitalistas que envolvem sua estruturação e
como esses valores influenciam a educação indígena. Nesse âmbito, compreende-
se a contribuição dos Jogos dos Povos Indígenas, evento de amplitude nacional,
para o desenvolvimento de um processo de esportivização das práticas corporais
tradicionais, identificando a sua estruturação e sua influência na construção do
comportamento da pessoa indígena.
Estudos mostram que na relação entre esporte e culturas indígenas, os
elementos de tais culturas são preservados e inseridos na prática esportiva, embora
outros elementos tenham seus sentidos modificados, indo ao encontro de interesses
políticos e econômicos, como no caso das práticas corporais tradicionais. Com
efeito, valores modernos podem ser inseridos no cotidiano dessas práticas, por meio
do esporte, determinando as relações sociais existentes e contribuindo para que
ocorram mudanças em suas tradições.
Conforme estudos analisados, observa-se a predominância da gica do
esporte de alto rendimento nas práticas esportivas realizadas entre os indígenas nas
aldeias no Brasil. Nesse sentido, afirma-se que os Jogos dos Povos Indígenas, ao
oferecerem esse modelo de esporte, colaboram para a esportivização das práticas
corporais tradicionais, decorrentes da inserção do esporte em comunidades
indígenas. Contudo listam-se quatro possíveis conseqüências que são decorrentes
umas das outras, e que são observadas nesse processo de esportivização
analisado. São elas: exploração econômica dos patrimônios culturais, alteração dos
sentidos das práticas corporais tradicionais, mudanças de comportamento da
pessoa indígena e integração das comunidades indígenas à sociedade global.
102
4.1 A espetacularização das práticas corporais tradicionais
O conhecimento de uma sociedade caracterizada pela cultura dos grandes
eventos é imprescindível para perceber que o esporte ocupa lugar de destaque na
produção de espetáculos para a grande massa. Mobilizando sentimentos e
sensibilidade, o esporte-espetáculo atrai consumidores às grandes festas esportivas
e, por conseguinte, aos seus produtos. O Mercado e o Estado reforçam a noção de
que o esporte é um meio eficaz de transmissão de valores de inclusão social e disso
se aproveita para alcançar seus objetivos. Os meios de comunicação, parceiros fiéis
do esporte-espetáculo, potencializam suas características impactando os
consumidores com uma grande carga de emoção, focalizando as cenas que irão
proporcionar maior dramaticidade.
Essa emoção toma conta do indivíduo não só durante a prática esportiva, mas
também antes e depois da disputa. O gosto gerado pela busca do sentimento de
excitação propicia o prazer daquele que está envolvido no contexto do esporte-
espetáculo. Seus símbolos demonstram que o aspecto emotivo do ser humano deve
ser exaltado e que, dessa forma, a partir da realização do seu gosto, os indivíduos
afirmam suas singularidades, sua identidade individual e coletiva.
A lógica eminentemente capitalista de aumento de capital econômico, a partir
da exploração de bens culturais, envolve em seu bojo a produção de um capital
cultural distinto, permeada de relações competitivas. Tendo em mente os
ensinamentos de Bourdieu (1997), entende-se que possa haver uma exploração
econômica dos patrimônios culturais nos Jogos dos Povos Indígenas, proveniente
da estruturação do evento, que desperta interesse de um público não-índio e
propicia grande envolvimento da indústria cultural. Esta, por sua vez, contribui para
que esse evento siga as leis do mercado, atendendo ao gosto de um público cada
vez maior e, por conseguinte, para que seus produtos possam ser consumidos.
Nesse contexto, vale ressaltar que, no tocante a um estudo realizado na IV e
na VII edição dos Jogos dos Povos Indígenas, Vinha & Rocha Ferreira (2005)
demonstram que, para as lideranças indígenas, a relação jogo-esporte-evento é
mais bem compreendida pela sociedade envolvente, e, por isso, auxilia a transpor
barreiras historicamente hostis e excludentes a esses povos. No entanto tem-se o
entendimento de que a relação ora apresentada influencia para que ocorra uma
espetacularização das manifestações culturais, isto é, com o intuito de propiciar que
103
o “exótico” seja transformado em mercadoria a ser comercializada no mercado
mundial. Com essa compreensão, percebe-se que as práticas corporais tradicionais
são transformadas em produtos culturais-esportivos, com forte apelo comercial.
Por meio da análise de Habermas (1987) sobre as Conseqüências
Patológicas da Ruptura do Mundo Natural é possível construir relações com a noção
de apropriação do sentido de esportivização, atribuído aos Jogos dos Povos
Indígenas. O que se pretende, portanto, é tomar a leitura do autor construindo uma
aproximação com o desenvolvimento do processo de esportivização, entendido
como uma conseqüência do quadro patológico da modernidade. Habermas (1987)
explica que o mundo natural racionalizado, quando colonizado, perde autonomia
política e torna-se indiferente em relação à cultura. Nessa ótica, a patologia cultural
é a perda de sentido que se torna evidente. A racionalização cultural, reproduzida
por meio da institucionalização permanente, propiciou a criação de formas
padronizadas de comportamento e discurso, sendo a base da racionalidade
moderna.
A noção de Habermas (1987) pode ser melhor compreendida a partir de uma
construção gráfica, na qual o autor cruza os conceitos relacionados aos
comportamentos estruturais (cultura, sociedade e pessoa) com as alterações de
domínio (reprodução cultural, integração social e socialização), apresentando, por
fim, a dimensão de avaliação como racionalidade do conhecimento, solidariedade
dos membros e responsabilidade pessoal (Suassuna, 2001 e 2007). O modelo
gráfico a seguir ajuda a entender a dimensão das mudanças causadas pelo
processo de esportivização das práticas corporais tradicionais em comunidades
indígenas.
104
Observa-se o que demonstra a tabela
16
:
Tabela 3 – Conseqüências patológicas da ruptura dos processos de
reprodução do mundo natural
17
Componentes
Estruturais
Alteração
no domínio de
Cultura
Sociedade
Pessoa
Dimensão de
avaliação
Reprodução
Cultural
Perda de
sentido
Retirada de
legitimação
Crise na
orientação e
educação
Racionalidade do
conhecimento
Integração
Social
Perturbação
da identidade
colectiva
Anomia
Alienação
Solidariedade
dos Membros
Socialização
Ruptura da
tradição
Retirada da
motivação
Psicopatologias
Responsabilidade
pessoal
Fonte: Jürgen Habermas, The Theory of Communicative Action, Volume 2, Boston: Press; Cambridge: Polity Press, 1987.
Extraído de Goldblatt (1996: 182). Reprodução.
Prendendo-se ao componente estrutural Cultura, e entendendo o processo de
esportivização como uma forma de Reprodução Cultural, nota-se em relação às
práticas corporais tradicionais uma possível perda de sentido. Percebe-se que a
entrada dos esportes no cotidiano das comunidades, reproduzindo as estruturas
dominantes da sociedade capitalista, influencia a inserção de valores modernos em
práticas tradicionais que passam a ser realizadas com outros sentidos e com outras
finalidades. Sob o enfoque cultural, as práticas corporais tradicionais passam a
assumir a forma de uma “modalidade” esportiva. Ao se tornarem desvinculadas dos
mitos e dos ritos das diferentes culturas indígenas, tais práticas assimilam os
16
Reprodução.
17
Esta Tabela foi utilizada na tese de doutorado de Suassuna, Dulce (2001), “A intervenção do Projeto Tamar
em comunidades pesqueiras”, apresentada ao Programa de s-Graduação em Sociologia da Universidade de
Brasília. Leitura e interpretação que foi aqui apropriada. Esta tese resultou no livro: Suassuna, Dulce. Um olhar
sobre as políticas ambientais: o Projeto Tamar. Coleção Dossiê. Brasília: Thesaurus, 2007.
105
sentidos do esporte de alto rendimento que carrega em seu bojo uma ideologia
capitalista para atender a outros interesses.
O processo de esportivização das práticas corporais indígenas, oriundo da
inserção do esporte em comunidades indígenas, que alguns autores identificaram e
apresentaram em estudos recentes, está relacionado com o processo de
colonização brasileiro e contato com o não-índio. Conforme Vinha & Rocha Ferreira
(2005) o esporte sofre com idéias estagnadas de um período em que fora
influenciado pelas concepções médicas e militares, marcado por um processo de
exclusão e de uso político. No entanto, segundo as autoras, no final da década de
1980 sentia-se a superação dessas influências sociohistóricas, assumindo outras
conotações, tais como educação, lazer e socialização, configurando-se o esporte
“inclusivo” como perfil contemporâneo. Nessa visão, o esporte é entendido como um
espaço político de “contato interétnico”. Por esse olhar,
o jogo esportivizado [...] não deve incorrer em temores, mas sim ser
acompanhado e orientado com um elemento intercultural, sob o olhar de
configurações de processos civilizadores ocorrendo em longo prazo, pouco
dependentes de nossa vontade (Vinha & Rocha Ferreira, 2005: 8).
Por outro lado, compreende-se que as configurações humanas não são
isentas de interesses políticos e econômicos, o que dificulta o controle desse
processo por parte dos indígenas. Contudo aceita-se que essas novas coerções,
inter-relacionadas com diferentes valores, princípios e formas de comportamentos
possam alterar a ordem social. Observando na tabela 3 o cruzamento entre Cultura
e Integração Social, percebe-se que houve uma perturbação da identidade coletiva
que constitui o grupo e, como conseqüência, a possibilidade de ocorrer uma ruptura
na tradição de povos indígenas, posto que a cultura não se encontra separada do
sistema de significados os quais governam o movimento humano e lhe fornecem
sentido.
O esporte se apresenta como um fenômeno paradoxal, tendo em mente que
propricia a interação entre diferentes grupos. Não obstante, visto em sua dimensão
de rendimento, tal prática não tem contribuído para solucionar os problemas de
indivíduos que vivem à margem da sociedade. Permanece, por conseguinte, o
“status quo” na medida em que o processo seletivo é totalmente excludente. Por ser
contraditório, sua estruturação determinará os sentidos a ele atribuídos. Nesse
106
âmbito, é um grande equívoco considerar que o esporte se configura como uma
prática inclusiva, pois sequer superou situações indesejáveis de usos político e
econômico que dele se faz.
Ao participar como professora de Educação Física de cursos de formação de
professores indígenas pelos projetos Tucum e grau indígena em Mato Grosso,
Grando (2005b) pôde refletir com mais de 30 etnias de que maneira o futebol se
adapta à organização dos tempos e espaços nas aldeias. Portanto, entende-se que,
diante de uma ruptura das tradições indígenas, o mais correto é afirmar que ocorre
uma ressignificação desses costumes, de acordo com o aspecto econômico que
rege a sociedade global, ocasionando, dessa maneira, uma (re)tradicionalização
dessas práticas corporais dentro das culturas indígenas.
Na (re)tradicionalização, o moderno e o tradicional estão imbricados com a
finalidade de proporcionar uma estrutura que viabilize maior audiência das
manifestações culturais, junto ao grande público. O sentido atribuído às práticas
corporais dos povos indígenas concorre com os interesses políticos e econômicos
da sociedade capitalista. Nesse sentido, a (re)tradicionalização compõe a mesma
condição de primazia da aceleração dos fluxos. Segundo o autor,
Algo assim requer pensar no desenho sócio-histórico da teia social com
sua própria figuração de equilíbrios de poder, cuja caracterização articula a
lógica de ampliação dos fatores de lucratividade do capital ao peso
adquirido por uma economia simbólica, na qual o comércio de signos e a
ludicidade são valorizadas na contrapartida da geração de disposições de
práticas devotadas à elaboração e re-significação (sic) de identidades
(Farias, 2004: 155)
.
Nesse panorama, entender a diferença identitária dos indígenas implica
reconhecer o complexo de relações que envolvem a produção e o consumo de bens
simbólicos de um mercado que se sustenta na diferença cultural. Esta, por seu
turno, passa a ser recriada a partir da “intensificação dos fluxos humanos, de
ideários e técnicas, os midiático-informacionais e financeiro-monetários” (Farias,
2004: 146), decorrentes de uma sociedade global e de um modo de vida moderno.
Observa-se que as práticas corporais realizadas de maneira competitiva
levada a efeito nos Jogos dos Povos Indígenas envolvem em seu conjunto
elementos tradicionais (como as pinturas e adornos corporais) e outros referentes a
aspectos modernos (como a regulamentação e a fiscalização). O arco-e-flecha e a
lança são instrumentos tradicionalmente utilizados para a caça e a defesa da
107
comunidade na aldeia. O uso desses instrumentos exige técnicas corporais
específicas que possuem sentido e significado próprios em cada cultura indígena.
Nos Jogos, o arco e a flecha foram produzidos pela própria etnia; no entanto, sua
estruturação com um alvo fixo e com a limitação de uma distância promoveu uma
semelhança entre as técnicas apresentadas com um sentido único. A lança é um
instrumento que não está presente na cultura de parte das etnias participantes;
portanto, sem um sentido para esses povos. Apresentou na realização de seu
lançamento técnicas diversificadas, porém sem o sentido tradicional. O mesmo fato
pode ser observado na canoagem com a canoa padronizada e na natação,
assim como nas corridas que, desprovidas de seus elementos originais, assumem
outros sentidos e significados diferentes daqueles de fuga, de reconhecimento do
ambiente natural e de relação com o mundo espiritual.
Nesse contexto, ressalta-se que a regulamentação das práticas corporais sob
a lógica do esporte de alto-rendimento na compreensão dos organizadores dos
Jogos dos Povos Indígenas poderá resultar num esvaziamento do sentido
tradicionais desses povos, permanecendo apenas o movimento corporal
(caracterizado por técnicas corporais particulares) para a apreciação do público.
Desse modo, entende-se que a estruturação do evento permitiu uma ressignificação
das práticas corporais por parte dos indígenas, a partir da relação entre elementos e
valores tradicionais e modernos.
4.2 A especialização do corpo indígena para uma mudança de comportamento
A mudança de comportamento da pessoa indígena pode ser analisada
também a partir da tabela 3. Ao cruzar a reprodução cultural promovida pela
esportivização com a pessoa, observa-se que pode haver uma crise de orientação e
de educação indígena. A influência do processo de incorporação do esporte pelas
comunidades indígenas na educação de seus jovens pode ser observada em relatos
que demonstram a complexidade desse fenômeno nas aldeias e na educação
indígena. Nessa perspectiva, recorre-se aos ensinamentos de Grando:
No Parque Nacional do Xingu, um jovem foi para a cidade e gastou o
resultado do trabalho coletivo R$ 900,00 (novecentos reais) na compra
de uma chuteira e retornou à aldeia de seus pais sem os provimentos de
combustível e alimentação; numa aldeia Xavante, o padrinho reclama o
direito de dançar com o afilhado no final da tarde, agora tomado pela
108
prática do futebol o dia todo quando não está na escola; sem dançar com
ele, não pode orientar e ensinar [...]; entre os Pareci, alguns homens
lembram dos jogos realizados entre as aldeias como um momento de festa
e confraternização entre os parentes, já as mulheres lembram dos conflitos
que o resultado do jogo de futebol gerou entre elas que nunca haviam
brigado, mas ficaram dois meses sem conversar após os jogos; um ancião
acadêmico do 3º Grau Indígena reclama da deseducação que o futebol traz
aos jovens; muitos pais lamentam o fato de seus filhos chegarem do jogo
com fome e cansados e não tendo o que comer, brigam com eles; os pais
não tem mais tempo para educar seus filhos no trabalho da sobrevivência
que cada um tem obrigação de garantir, já que passam o tempo todo
jogando bola (2005b: 183).
Essa relação em que sujeito e sociedade se reconstroem mutuamente pode
ser melhor entendida por meio dos conceitos da psicogênese e da sociogênese.
Segundo Elias e Dunning (2006), a psicogênese pode ser caracterizada por
mudanças do comportamento humano, tendo em conta regulamentações e controle
de impulsos instintivos que passam a ser internalizados, impactando a estrutura da
personalidade do indivíduo, no sentido de discipliná-lo, visando a promover o
autocontrole das emoções. Essas transformações estão relacionadas com o
desenvolvimento das estruturas sociais em longo prazo, isto é, a sociogênese de um
processo civilizador.
Trata-se da busca por um comportamento condizente com o modo de vida
moderno que atenda aos interesses políticos e econômicos, por meio da inserção
dos indivíduos em um padrão social que é reproduzido, mesmo que
inconscientemente, mas que permite experimentações de atitudes aceitáveis.
Entretanto observa-se uma tendência das coerções controladoras tornarem-se
impulsos particulares que não são percebidos pela consciência. Com efeito, as
estruturas da personalidade, em certa medida, são referências do desenvolvimento
das estruturas sociais. Nessa direção, o esporte de alto rendimento desencadeia um
processo de individualização, característico de um modo de ser próprio das
sociedades altamente reguladas e diferenciadas.
Com o desenvolvimento da sociedade ocidental moderna, percebeu-se que
os comportamentos humanos tornaram-se mais diferenciados, o que não se em
sociedades tradicionais nas quais as atitudes individuais não se sobressaem dentro
do grupo. Esse processo não é uma escolha do indivíduo, mas socialmente exigido
e consentido em sociedades complexas, com alto grau de diferenciação de funções,
nas quais os comportamentos e as práticas sociais possuem sentidos variados. A
diversificação dos indivíduos gera uma interdependência que alimenta essa
109
diferenciação. Por meio de uma interação com pessoas diferentes há uma afirmação
de suas características, ao mesmo tempo em que há uma aquisição de outros
costumes. As condutas partilhadas entre os membros da sociedade e o habitus
social que caracteriza um povo servem de base para que ocorra essa diferenciação.
É um capital adquirido em conformidade com a história individual e que
aparenta ser inato quando é incorporado. Gera estratégias para satisfazer e adaptar-
se às exigências e às novas situações do campo, o que lhe confere uma
transformação durável até que determinados ajustamentos sejam solicitados. É ao
mesmo tempo individual e social. Um sistema de disposições adquiridas pela
aprendizagem que sustenta um sistema de classificação e, em sendo um produto de
relações sociais, demonstra por meio da ação de seus agentes um processo de
conformidade que tende a reproduzir as relações estruturais. O termo distingue-se
da noção de hábito por ser aquilo que “se encarnou no corpo de forma durável sob a
forma de disposições permanentes” (Bourdieu, 1983: 105).
4.2.1 De que corpo se fala?
A construção do corpo na modernidade se sustenta na ciência que, por sua
vez, apresenta métodos mais eficazes e estudos biomecânicos, fundamentada em
uma concepção que fragmenta o corpo, considerando este como uma máquina.
Pode-se compreender a construção do corpo do homem moderno a partir do
momento em que se consolida o Estado capitalista, decorrente das grandes
revoluções na França e na Inglaterra, com a classe burguesa ascendendo ao poder.
Almejando a manutenção de sua hegemonia, utilizam-se idéias positivistas a fim de
justificar as conseqüências do sistema de produção sobre o modo de vida das
pessoas. Com essa preocupação, a classe dominante cuidou de investir na
construção de um outro homem capaz de enfrentar outra ordem social que estava
posta em uma sociedade guiada pelas leis do capital.
Com o aumento da industralização e da urbanização, e da conseqüente
expansão econômica, percebe-se a necessidade de ter-se à disposição um maior
número de trabalhadores capacitados para atuar em diferentes áreas exploradas
pelo capital. Corpos saudáveis deveriam servir para o progresso técnico e
econômico contínuo. Com as idéias higienistas, a Educação Física trouxe os ideais
da teoria eugênica de melhoramento e embraquecimento da raça, forjando a
110
construção de um corpo Higiênico-Eugênico, cumprindo funções moralistas e
sanitárias de ordens médicas e militares. Entre as décadas de 1960 e 1970 se
produziu um corpo produtivo e alienado, quando os interesses eram de aumento da
produção e desvio da atenção da cena política no Brasil. No período do Estado Novo
fazia-se necessário engendrar esforços para se consolidar uma nação
industrializada (Castellani Filho, 1993: 120). Para tanto, o Estado, por meio de leis
que regulamentavam a Educação Física, utilizou o esporte e outras práticas
corporais para construir corpos aptos a enfrentar as exigências do trabalho nas
fábricas. A ação pedagógica dessa disciplina na escola tinha como fundamento
conceitos das ciências biológicas, mas especificamente da fisiologia do exercício
que se fundamentava em uma metodologia padronizada. Corpo este que se
configura no momento atual da sociedade capitalista como mercador, por estar a
serviço da venda de produtos, ao passo que também é mercadoria, mantendo a
tendência atual de consumo em grande escala (Castellani Filho, 1993). Durante
todos os períodos de consolidação de uma sociedade global, o corpo humano
esteve sujeito a intervenções de interesses da classe dominante.
A Educação Física contribuiu nesse processo, incorporando e transmitindo
valores indispensáveis à moral, à disciplina, ao esforço individual para conquista da
saúde do corpo desejada pela burguesia. “Na sociedade do capital, [a Educação
Física], constiuir-se-á em valioso objeto de disciplinarização da vontade, de
adequação e reorganização de gestos e atitudes necessários à manutenção da
ordem” (Soares, 2004: 14), entendendo o corpo como unidade produtiva da indústria
capitalista. Com essa concepção, o corpo passa a ser visto nessa sociedade como
mercadoria a ser socializada, segundo as leis que regem as relações de produção.
O corpo controlado para uso do capital.
Por esse olhar, deve-se compreender que o esporte em suas diferentes
dimensões recreativo e alto rendimento parte do pressuposto de que ambas
sejam educacionais. Tais dimensões condicionaram determinados comportamentos
em espaços de educação formal e não-formal; contribuíram e contribuem
significativamente para a produção de determinados modelos de corpos. Nos mais
variados campos em que está presente, seja na escola, seja no lazer, o esporte
pode colaborar para que valores da sociedade capitalista sejam transmitidos aos
seus praticantes. Segundo Hoberman (1992),
111
O esporte de alta competição coloca cada vez mais em pauta uma
tecnologia industrial visando a transformar o corpo humano em uma
máquina eficaz e inesgotável através da mobilização de diferentes ciências
biológicas e psicológicas” (apud Bourdieu, 1997: 128).
O corpo humano que assumiu um caráter individualizado na sociedade
ocidental moderna, nas sociedades indígenas brasileiras exerce papel central sendo
fabricado para se tornar coletivo. A corporalidade é uma dimensão fundamental para
o processo de ensino e aprendizado de conhecimentos, habilidades e técnicas da
pessoa indígena.
Fica evidente, portanto, que o conjunto de posturas e movimentos
corporais representa valores e princípios culturais. Conseqüentemente,
atuar no corpo implica atuar sobre a sociedade na qual esse corpo está
inserido. Todas as práticas institucionais que envolvem o corpo humano
[...], sejam elas educativas, recreativas, reabilitadoras ou expressivas,
devem ser pensadas nesse contexto, a fim de que não se conceba sua
realização de forma reducionista, mas se considere o homem como sujeito
da vida social (Daólio, 1995: 42).
Nas sociedades indígenas, a transmissão de técnicas corporais é necessária
para assumir da melhor maneira os papéis sociais conquistados; portanto,
“reconhece-se a capacidade da criança de aprender a partir dos jogos e
brincadeiras” (Grando, 2006: 231). Nesse momento, a criança está se apropriando
de sua cultura, construindo sua identificação com seus pares e tornando-se únicas
nesse contexto. As práticas corporais tradicionais efetivadas de forma competitiva
durante a realização dos Jogos dos Povos Indígenas e os rituais ocorridos nas
aldeias cumprem a função de ensino e aprendizado da maneira de fazer, pensar e
sentir que são específicas por gênero e idade em cada etnia.
Em sua obra A fabricação do corpo na sociedade xinguana, Viveiros de
Castro (1987) assinala que em determinadas sociedades como as que vivem em
aldeias do Alto Xingu o corpo humano é “fabricado” a partir de processos
intencionais e periódicos. Essas mudanças produzidas no corpo proporcionam
outras de posição social e, por conseguinte, de identidade social. A “fabricação do
corpo” é intervenção consciente da cultura sobre o corpo humano, construindo a
pessoa, modificando sua essência e se manifestando desde a gestualidade, até
alterações da forma desse corpo. As modificações corporais são realizadas entre os
xinguanos por meio de rituais que a encenação da criação do humano faz referência
à morte e à vida. Concebendo os homens como uma produção cultural, sua
112
fabricação presume uma reclusão, porquanto é durante a reclusão que uma
mudança significativa no corpo e onde os papéis sociais são assumidos. “A
personificação do homem ideal depende de uma adesão correta às regras ditadas
pela tecnologia do corpo na reclusão” (Viveiros de Castro, 1987: 35). Todavia nota-
se o corpo desempenhando um papel central na construção da identidade da
pessoa xinguana.
Entre os Bororo do Mato Grosso, fato semelhante ocorre. Nos rituais, as
danças o utilizadas como um instrumento de educação do corpo, em que os
jovens ao “fabricarem seus corpos” constituem uma identidade específica. A dança
representa uma “prática educativa significativa para a transmissão de valores, de
técnicas corporais e dos sentidos e significados que compõem os patrimônios
clânicos e as relações entre os clãs na cosmologia Bororo” (Grando, 2005a: 173). A
dança acompanha os adornos e pinturas corporais que expressam uma simbologia.
Durante a dança, são expressas as histórias e as relações sociais que constituem o
grupo e, ao dançar, as pessoas assumem seu lugar na sociedade.
4.2.2 Treinamento esportivo entre os indígenas
Devido à prática constante do futebol na Aldeia Meruri, os Bororo vêm
construindo seus corpos tanto com conhecimentos tradicionais quanto com
conhecimentos técnicos e táticos dessa prática esportiva, destacando-se entre as
etnias que disputaram o torneio de futebol nos Jogos dos Povos Indígenas. Na
prática do futebol realizada fora da aldeia, os Bororo se identificam como um grupo
étnico estabelecendo diferenças com os não-índios. Da mesma forma, verifica-se
que os indígenas assimilam comportamentos condizentes com a formação de uma
sociedade global, porque constroem sua identidade em “espaços de interseções
contemporâneos” (Farias, 2004: 146), nos quais valores tradicionais e modernos
estão presentes. “Esse futebol oficial traz consigo todas as características de
competição, a tensão e o nervosismo dos jogadores, compartilhados pela
comunidade, assumindo a característica polissêmica da integração, que também é
confronto” (Grando, 2005b: 182).
Em relação à melhoria do desempenho técnico e da aptidão física, os Bororo
se mostram resistentes às mudanças no hábito alimentar e na organização do tempo
do grupo. Contudo nota-se que treinamentos fazem parte da preparação dos
113
indígenas para a participação nos Jogos dos Povos Indígenas. Ao ser questionado
se treinavam as modalidades na aldeia, o indígena respondeu:
“Temos treinamento sim. Inclusive pra vir pra cá, depois que
foi feita a seleção, todos os dias, três e meia, quatro horas da
manhã, a gente treinávamos, aquecimento, alongamento, todo
isso. Faz uma preparação de maneira geral. Aí pratica também
o futebol e corridas, natação, tudo isso(Entrevista, Indígena
Bororo, Recife, 2007).
O treinamento esportivo é capaz de proporcionar alterações nos corpos dos
indígenas que, por seu turno, demonstram discursos contraditórios em relação ao
interesse por esse procedimento. A liderança indígena da etnia Xavante, em
declaração expressa no documentário IX Jogos dos Povos Indígenas, apresenta sua
compreensão sobre a influência da sociedade global nas diferentes culturas
indígenas, ao afirmar que
“Como hoje a globalização está aí, se o índio não se preparar
vai ser abocanhado rapidamente. Então é isso que nós
estamos dizendo, nós temos que nos preparar e começar a
desenvolver tanto na educação, na saúde, nas atividades
produtivas. Nos blindar diante desta ameaça” (Discurso da
Liderança Xavante, Referência Documentário, 2008).
Entretanto este mesmo indígena declara que
“Os índios gostam muito de futebol, tanto é que hoje
estamos competindo com os times do não-índio que ainda
não temos malandragem, a técnica, a tática que o time do não-
índio tem. Então nós estamos querendo também introduzir a
malandragem na linguagem do futebol” (Discurso da Liderança
Xavante, Referência Documentário, 2008).
Desse modo, ao confirmar o interesse em inserir aspectos da tática e da
técnica dos esportes em suas culturas, o indígena demonstra o desconhecimento do
esporte de alto rendimento como elemento moderno que carrega em seu bojo
valores característicos de uma sociedade globalizada. Entende-se que, para que
haja o aprimoramento da tática e principalmente da técnica esportiva como
demonstra o indígena, é necessário que sejam realizados treinamentos específicos
de cada “modalidade”. Todavia observa-se que tal fato vinha ocorrendo no interior
114
das aldeias. Ao presenciar um integrante da “delegaçãoXerente comandando um
treino de corrida dentro dos Jogos dos Povos Indígenas, indagou-se sobre o fato e a
resposta foi a seguinte:
“Nós treinamos três vezes, duas vezes na aldeia e uma vez
na cidade, em Tocantins, mas é muito pouco. O tempo todo
nós estamos com eles , como voluntário, anos e anos já.
ensinamos as meninas a jogar futebol também. Aos índios
também tinham muita força, mas não tinham técnica, agora
sim, eles tocam a bolam certinho. tem alguns índios
que nós estamos profissionalizando. Dos nossos Xerente aqui,
eu profissionalizei um deles e outros também estão na
eminência de profissionalizar” (Entrevista, Voluntário Xerente,
Recife, 2007).
Contudo verifica-se que o treinamento é uma demanda dos próprios
indígenas, estando relacionado à oferta do esporte que é oportunizada a esses
povos, vez que muitos deles participam de competições esportivas, sendo uma das
poucas maneiras de vivenciar a prática esportiva. Com efeito, tem-se uma mudança
na “fabricação” do corpo indígena, devido à assimilação de técnicas corporais
esportivas através do treinamento, com o objetivo de proceder a um aumento
gradual do rendimento para a participação nessas competições. De acordo com
Kunz (2006), que analisa o treinamento especializado para crianças, as técnicas
corporais alteram e impedem um desenvolvimento plural do indivíduo,
principalmente se for iniciado “antes da fase pubertária”, por exigir uma
especialização do indivíduo em determinada atividade ou função. Por conseguinte,
percebe-se a possibilidade de a educação do indígena tornar seus corpos
especializados com o treinamento sistematizado, sendo iniciado precocemente.
As técnicas esportivas correspondem à visão de mundo ocidental,
fundamentada em uma organização social capitalista, sendo construídas e
reconstruídas historicamente, com o intuito de aumentar sua eficácia. Essa noção de
técnica do corpo proveniente da racionalidade moderna exigiu que outras atitudes,
comportamentos e maneiras de fazer fossem abandonadas ou adaptadas ao modo
de pensar e de sentir das sociedades industriais avançadas, pois a adaptação das
técnicas corporais “é efetuada numa série de atos montados, e remontados no
indivíduo não simplesmente por ele próprio, mas por toda a sua educação, por toda
a sociedade da qual faz parte, conforme o lugar que ocupa” (Mauss, 2003: 408).
115
Portanto, as relações interculturais vivenciadas entre os povos indígenas e a
sociedade envolvente, por meio do esporte e do treinamento, possibilitam que haja
uma adaptação do comportamento de diferentes indígenas ao estilo de vida
moderno que se inscreve na crença do crescimento e progresso ilimitado.
4.2.3 Especialização dos corpos
De acordo com Guttmann (2004), o esporte moderno é marcado pela lógica
da especialização de papéis. Com a divisão do trabalho na sociedade capitalista foi
proporcionada uma especialização de profissões, no caso do esporte, o
profissionalismo. Contudo nota-se uma alteração no sentido dado ao esporte de alto
rendimento, em relação às práticas corporais tradicionais, posto que o tempo de sua
realização deixa de ser um tempo de culto ou divertimento, para se tornar um tempo
de trabalho. A lógica da competição faz com que sejam utilizados agressivos
métodos de treinamento para adestramento do corpo. Conforme Bourdieu,
Talvez seja refletindo sobre o que o esporte tem mais específico, isto é, a
manipulação regrada do corpo, sobre o fato de que o esporte, como todas
as disciplinas em todas as instituições totais ou totalitárias, [...], ser uma
maneira de se obter do corpo uma adesão que o espírito poderia recusar,
que se conseguiria compreender melhor o uso que a maior parte dos
regimes autoritários faz do esporte (1990: 220).
Nesse âmbito, “não se trata de transmitir apenas uma maneira de fazer.
Trata-se de transmitir uma outra visão de mundo, uma outra realidade, que se
estende a todos os domínios da vida” (Grando, 2001: 109). Ao assimilar esse
procedimento em sua rotina diária, o indígena pode reduzir a participação em
atividades corriqueiras de suas culturas, imprescindíveis para a construção de sua
identidade, por ter que dedicar grande período de tempo aos treinos e às
competições. “Isto é um problema social muito complexo e que obedece às regras e
princípios da competição e da concorrência próprias das sociedades industriais”
(Kunz, 2006: 53). Pensando na criança indígena sendo introduzida ao “sistema
esportivo de rendimento”, ela pode incorporar valores da sociedade envolvente e
apresentar mudanças em seu comportamento, porque o treinamento é responsável
pela constituição de um outro habitus, que se sustenta numa educação
116
especializada do corpo, a fim de originar um papel social distinto entre os indígenas
– o “atleta”.
“O que caracteriza a sociedade moderna é a especialização de
áreas, tem religião, tem lazer, tem economia todas como
coisas estanquizadas. Na vida dos povos indígenas isto são
coisas que formam totalidades, elas interagem entre si”
(Entrevista, Antropólogo, Recife, 2007).
A especialização, apesar de aparecer em práticas corporais tradicionais, é
característica básica do esporte de alto rendimento, que, diferentes delas, fomenta a
profissionalização dos mais aptos, devido a relação que possui com a sociedade
capitalista. Nos jogos realizados dentro das aldeias, os melhores jogadores são
selecionados para representar as etnias em competições externas; entretanto, como
requisito para essa escolha, os jogadores devem conhecer sua cultura e saber se
comportar entre os não-indígenas. Segundo um Bororo que esteve nos Jogos em
Pernambuco, foram realizadas
“preliminares, para poder ficar nessa seleção. Natação,
velocidade, cem metros, resistência o próprio de futebol. O
coordenador fez uma seleção com a gente.Todo mundo queria
vir, na verdade. Toda a comunidade queria ta participando,
mas foi feita esta seleção” (Entrevista, Indígena Bororo,
Recife, 2007).
Por conseguinte, nota-se que tanto o treinamento dos corpos quanto a
seletividade, fazem parte do comportamento dos indígenas da etnia Bororo e
encontram-se presentes no cotidiano dessa comunidade, preparando os mais aptos
para representarem seu povo fora da aldeia. O esporte-espetáculo está associado à
idéia de seletividade, de um “campo de profissionais da produção de bens e serviços
esportivos” (Bourdieu, 1990: 217) e vem se constituindo progressivamente. Possui
uma relação de interdependência com a indústria cultural que cria uma
representação, transformando a competição esportiva em um produto que segue as
leis do mercado globalizado. Na construção desse espetáculo estão envolvidos,
além dos atletas, um conjunto de agentes (organizadores, médicos, juízes,
treinadores) que discursam sobre o esporte-espetáculo, sob uma pressão exercida
pelas relações objetivas nas quais esses atores estão inseridos.
117
Em relação à profissionalização de indígenas, vê-se esse fato como um meio
de integração desses povos à sociedade global, como atores e como consumidores
do fenômeno esportivo. Porém essa integração se de modo individual, vez que
apenas os indígenas que se sobressaem na prática do esporte despertam o
interesse do mercado esportivo. Por conseguinte, são incluídos na sociedade
envolvente.
4.3 O processo de integração e o papel do esporte
Na medida em que a sociedade brasileira aumentava sua densidade
demográfica, outras áreas do território nacional foram sendo adentradas. No
decorrer do século XX esse processo de integração se intensificou, restringindo os
povos indígenas em pequenas porções de terra, dificultando sua sobrevivência.
Naquele momento histórico o sistema capitalista se desenvolvia intensificando a
produção de bens, necessitando de mais matéria-prima e mão-de-obra. As
economias extrativista, agrícola e pastoril embrenhavam-se nas terras indígenas
afetando todo sistema sociocultural dessas sociedades. A expansão do agronegócio
sobre o território indígena propiciou inúmeros conflitos, nos quais os indígenas que
lutavam por seus direitos foram incorporados à mão-de-obra do campo para
aumentar a lucratividade dos grandes fazendeiros. Com efeito, a caça e a pesca
foram deixando de ser atividades principais de providência de alimentos que
passaram a ser adquiridos nas cidades próximas às aldeias.
Ribeiro (1986) assinala como se deu o processo de integração dos indígenas
à sociedade nacional, para, a partir desse marco, identificar o recente papel do
esporte nesse processo. De acordo com o referido autor, diferentes grupos que
viviam isolados, ou que haviam tido raros contatos com não-índio, eram iniciados
nesse processo. Muitos se mostravam hostis à presença do não-índio e
conseguiram manter a autonomia cultural por algum tempo. Outros grupos possuíam
contato intermitente motivados por atitudes ambivalentes de fascínio e medo. Eles
conseguiam manter certa autonomia cultural que se perdia, ao passo que novas
necessidades eram satisfeitas através de relações econômicas, seja pela venda da
força de trabalho de seus membros, seja dedicando o tempo deles à produção de
artefatos para troca, demonstrando, dessa forma, características da sociedade
nacional em seu comportamento. Os grupos que mantinham contato permanente
118
podem ser caracterizados como aqueles que perderam sua autonomia
sociocultural, encontrando-se em completa dependência econômica, porém
mantendo costumes que se modificam adaptando-os à nova condição em que se
encontravam.
Os integrados são aqueles que conseguiram sobreviver, mas que se
encontram ilhados em meio à população nacional, incorporando-se à vida
econômica como mão-de-obra no campo ou no comércio das grandes cidades. São
comumente confundidos com mestiços, não se distinguindo por utilizar as mesmas
vestimentas, nem possuindo os mesmo hábitos, devido a profundas transformações
em seu modo de vida. As missões cristãs assumiram um importante papel nesse
processo de integração, impondo sua maneira de compreender o mundo e seu
modo de vida às populações indígenas. A educação jesuítica foi responsável pela
mudança de várias culturas indígenas, posto que promoveram a alteração “de suas
formas de organização social, das regras de parentesco e de xamanismo e do
domínio do corpo, através da mudança de técnicas corporais tradicionais” (Grando,
2001: 107).
A educação escolar indígena baseava-se em transformar indígenas tidos
como selvagens em pessoas civilizadas. Esses povos deveriam abdicar de sua
língua, crenças e padrões culturais. A estruturação da educação escolar indígena
rompia e, em certa medida, ainda rompe com a noção de ensino e aprendizagem
que, por seu turno, ocorrem de forma contínua e incorporada à rotina das
comunidades. As sociedades indígenas possuem organizações sociais distintas
entre si e da sociedade capitalista. Nelas, a ação pedagógica se por meio da
transmissão oral da tradição cultural dos mais velhos aos mais jovens visando à
continuidade de uma maneira peculiar de viver em coletividade. O índio apreende os
padrões culturais de sua sociedade por meio de relações ritualizadas, através de
uma ação pedagógica para que eles se tornem aptos a assumirem um determinado
papel social futuramente. O processo de aprendizado das crianças indígenas
envolve “hábitos motores, atividades rotineiras, capacidade lingüística e o
surgimento das primeiras habilidades técnicas” (Grando, 2006: 234). A ação
missionária, com o objetivo de catequizar os indígenas, educava essa população
com vistas a incorporar valores culturais ocidentais, provocando uma ruptura da
solidariedade coletiva.
119
Ribeiro acredita que as etapas da integração constituem estágios de um
processo de transfiguração étnico-cultural podendo ser definida como
O processo através do qual as populações tribais que se defrontam com
sociedades nacionais preenchem os requisitos necessários à sua
persistência como entidades étnicas, mediante sucessivas alterações em
seu substrato biológico, em sua cultura e em suas formas de relação com a
sociedade envolvente (1986: 13).
Alguns fatores são responsáveis por produzir efeitos específicos que,
somados uns aos outros, causam essa acomodação a outro contexto, a saber: as
compulsões ecológicas que afetam as sociedades indígenas tanto pela
miscigenação quanto pela disputa de terras; as compulsões bióticas constituem na
disseminação de doenças que, em muitos casos, resultaram em óbito de inúmeros
indivíduos, podendo chegar à extinção étnica; as coerções tecnológico-culturais
resultantes da adoção de instrumentos e de técnicas de produção que causam
dependência da tribo em relação aos provedores desses bens. As coerções
socioeconômicas que consistem na inserção dos índios ao sistema capitalista de
produção que, no momento atual, visa à apropriação de bens culturais que serão
transformados em mercadoria para venda no mercado mundial, proporcionando,
dessa forma, as coerções ideológicas responsáveis por redefinir suas crenças e
valores, formando potenciais consumidores e profissionais do esporte.
Diante desse panorama, acredita-se que a intervenção protecionista do
Estado como pura proteção não serviu para solucionar os problemas da expansão
da sociedade envolvente. Em um mundo globalizado as sociedades dominantes
estão armadas de força suficiente para subjugar as etnias tribais e para
desagregar suas estruturas socioeconômicas [...]. Nestas novas condições,
o indígena tem por oportunidades algo maiores de sobreviver, mas é
condenado a transformar radicalmente seu perfil cultural, porque pode
enfrentar as compulsões a que é submetido, transfigurando sua
indianidade, mas persistindo como índio (Ribeiro, 1986: 14).
Na perspectiva de uma sociedade global, o esporte se apresenta como uma
importante ferramenta de integração das sociedades indígenas ao sistema-mundo,
no sentido apresentado por Grando: “de dependência social, econômica e política
das sociedades tradicionais em relação à sociedade envolvente” (2006: 243). A
prática de esportes vem ocorrendo com grande impacto nessas sociedades que, por
seu turno, vêem-se com menos autonomia em relação às suas atividades
120
econômicas, sociais, políticas e culturais e em luta constante pelo direito a suas
terras. Nessa ótica, é possível estabelecer uma relação entre o fenômeno esportivo
e a integração dos povos indígenas à sociedade global.
Com essa compreensão, foi apresentado aos indígenas o esporte como
instrumento de transmissão de outros padrões culturais, entre eles a língua nacional
e as técnicas corporais condizentes com o modo de vida moderno. Tendo em vista
que o corpo é local de aprendizado social, o esporte é visto como um meio de
educação do corpo indígena, em que estratégias de apropriação de elementos que
se estruturam em uma cultura mundializada são desenvolvidas para que ocorra a
integração desses povos à sociedade global. O esporte, numa lógica inerente à
cultura ocidental moderna, transforma o indígena corporalmente, na medida em que
altera seu habitus, moldando outros corpos, isto é, outras pessoas indígenas.
Esses indígenas modificam seus comportamentos e, desse modo, a própria
organização econômica das sociedades devido à demanda de recursos que não
podem ser encontrados na natureza tornam o dinheiro uma necessidade real.
Nesse ínterim, os instrumentos utilizados em suas práticas tradicionais deixam de
ser prioritários e o artesanato torna-se um produto a ser comercializado, a fim de
gerar renda para a compra de materiais esportivos, a exemplo de uniformes,
chuteiras, bolas, entre outros.
O domínio das técnicas corporais, que diz respeito às especificidades de suas
culturas como nadar, pescar, caçar e coletar alimentos, é prejudicado pela
assimilação das técnicas esportivas.
Nesse processo, deixará de aprender formas de andar, de sentar, de untar
e pintar o corpo, de prepará-lo para viver em harmonia com os demais
corpos que vivem no mundo da cultura em diferentes níveis, [...], de
conhecer seu território e conhecer cada planta e animal que participa de
seu mundo, não conhecerá os nomes e os significados deles para os
antepassados, para seu povo e para seus descendentes (Grando, 2006:
247).
As atividades que formam o corpo do indígena e que são exercidas sob
aspectos que atingem diferentes dimensões são responsáveis pela constituição de
uma subjetividade essencial para o convívio em sua comunidade e para o
estabelecimento de relações com o meio natural e espiritual.
Contudo nota-se que o processo de esportivização pelo qual vem
atravessando suas práticas corporais tradicionais não contribui para que esses
121
povos exerçam sua autonomia em relação ao modo de vida moderno e, de certo
modo, age como um determinante na vida dos indígenas integrando-os na maneira
de se relacionar com seu corpo, de acordo com a visão de mundo ocidental. As
formas de aprendizado provenientes do esporte de alto rendimento, como o
treinamento, reafirmam uma disciplinarização e uma especialização que impõe ao
corpo indígena a cultura não-indígena.
Assim compreende-se a
“esportivização como um processo de desuniversalização das
práticas corporais indígenas que são orientadas pelos saberes
tradicionais, que provoca a anulação das diferenças étnicas
em proveito da igualdade de chances nas competições, a
constituição de um cenário característico e de uma
temporalidade específica para a sua prática, entre outras
manifestações” (Entrevista, Pesquisadora, Brasília, 2008).
Entende-se que os Jogos dos Povos Indígenas colaboram para o
desenvolvimento do processo de esportivização das práticas corporais tradicionais e
para que o esporte seja reconhecido como elemento de integração, aparentemente
amena, dos indígenas brasileiros à sociedade global. Essa aparente falta de
hostilidade se deve ao fato de não ser levado em consideração que a disseminação
do esporte pelos diferentes grupos e sua assimilação por diferentes culturas
demandou a superação de “espessas barreiras mentais, físicas, psíquicas e também
materiais” (Grando, 2001: 109). Todavia a aceitação do esporte entre indígenas no
Brasil pode ser entendida a partir da compreensão do processo de integração, que
esses povos atravessaram, considerando a forma autoritária e preconceituosa de
contato promovido pelo Estado e pelas instituições religiosas.
Nesse sentido, entende-se como relevante a análise do esporte em sua
dimensão de rendimento, que adentrou como prática corporal nas diferentes etnias
no Brasil, transmitindo valores da sociedade envolvente, fundamentada no sistema
capitalista. Segundo Grando (2005b), o esporte é um símbolo de desenvolvimento e,
nesse aspecto, o futebol tem sido utilizado como estratégia de integração das
diversas etnias indígenas à sociedade capitalista, por veicular seus valores mediante
suas regras, seus ídolos e seus espetáculos. “Os corpos são preparados para serem
inseridos na lógica capitalista, ou seja, por meio de novas técnicas corporais, corpos
são adaptados a novas mentalidades, criando novos consumidores de uma cultura
122
globalizada” (Grando, 2005b: 179). Por esse olhar, o esporte é utilizado como um
meio de interação que contribui para integração dos povos indígenas à sociedade
envolvente de modo não-hostil.
No momento atual, entende-se que os indígenas são integrados à sociedade
global por meio do fenômeno esportivo, como profissionais do esporte, por
produzirem mercadorias esportivas, isto é, resultados que geram lucro aos agentes
do mercado esportivo. Pensando assim, toda comunidade é integrada por possuir
potenciais consumidores de produtos esportivos, propiciando o desenvolvimento do
mercado esportivo mundial e, dessa forma, contribuindo para o processo de
mundialização da cultura.
123
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ESPORTE ENTRE OS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL
A análise apresentada a respeito da IX edição dos Jogos dos Povos
Indígenas evento idealizado e organizado por indígenas da etnia Terena, tendo o
Ministério do Esporte como executor e os Ministérios da Cultura e da Justiça, além
da Funai, como parceiros demonstra a existência de contradições entre o discurso
dos organizadores e a realidade observada, no que se refere aos seus sentido e
significado.
Em relação ao alcance dos objetos explicitados no documento oficial que rege
os Jogos, entende-se que o evento, na medida em que promove o congraçamento
entre os povos indígenas, proporciona um encontro de povos de diferentes etnias,
em um único local, durante um determinado espaço temporal. Ressalta-se que a
interação entre as pessoas e os povos indígenas se deu mais por iniciativa dos
próprios indígenas (com a construção de práticas de lazer durante o evento, como
foi visto no local do alojamento) do que por parte dos organizadores.
Observa-se que as práticas corporais foram configuradas de modo a
proporcionar a competição entre os indígenas. Percebeu-se que o objetivo de
contribuir para o desenvolvimento de uma relação mais respeitosa com a sociedade
envolvente é alcançado por meio de uma estruturação em que os indivíduos dessa
sociedade compreendem e aceitam mais facilmente uma estrutura baseada nos
megaeventos esportivos, os quais propagam o esporte-espetáculo. Essa mesma
estrutura, que ao fomentar a competição estimula o fortalecimento da auto-estima
dos indígenas vencedores, não contribui para a valorização da identidade cultural
das sociedades indígenas e nem para a valorização das manifestações culturais,
nem tampouco para o intercâmbio dos valores tradicionais. Conforme notou-se nos
Jogos dos Povos Indígenas, as práticas corporais o reconfiguradas, isto é, são
retirados dessas práticas os elementos que a identificam como práticas tradicionais,
restando apenas o movimento corporal ressignificado, com base nos elementos do
esporte moderno. Pode-se perceber, de acordo com as notas do diário de campo,
que as práticas de arco-e-flecha e lança, assim como a canoagem, a natação e as
corridas são regulamentadas conforme as regras criadas, para propiciar a
competição em práticas que tradicionalmente não a apresentam.
124
Com a intenção de compreender o sentido atribuído pelos indígenas
participantes da IX edição dos Jogos ao esporte, pôde-se observar que é a partir da
estruturação das práticas corporais dos jogos dos povos indígenas (regulamento,
fiscalização e padronização) que se tem seu significado. O futebol “oficial” pode ser
um exemplo. Durante a prática dessa atividade, a organização dos Jogos
apresentou uma regulamentação e não foi proporcionada uma efetiva participação
dos indígenas nesse processo. Essa prática foi realizada segundo regras
preestabelecidas que estimularam a competição e a sobrepujança. Com esse
enfoque, os indígenas assumem-se como “competidores”, apresentando
comportamentos que visavam à busca da vitória, tais como: o enfrentamento
ocorrido entre as duas etnias (Pareci e Kayapó) durante a realização da partida de
futebol, discussões dentro do próprio grupo, entre outros aspectos (Referência,
Diário de Campo, Recife, 2007). Por outro lado, a “pelada” ou futebol
ressignificado que foi estruturado pelos próprios participantes do jogo, de acordo
com o princípio da ludicidade, demonstrou que a mesma prática corporal pode
possuir diferentes significados, segundo os interesses de seus adeptos.
Nessa perspectiva, vale registrar que a oferta das práticas corporais nos
Jogos dos Povos Indígenas, em relação à sua estruturação, segue a lógica
capitalista que rege o esporte de alto rendimento. Compreende-se que esse evento
contribui para o desenvolvimento de um processo de esportivização das práticas
corporais tradicionais, processo esse que vem se propagando a partir da inserção do
fenômeno esportivo em comunidades indígenas no Brasil. Outro ponto marcante dos
Jogos dos Povos Indígenas foi a promoção da (re)tradicionalização dessas práticas
que passam a ser ressignificadas, de acordo com aspectos econômicos que
orientam a sociedade ocidental moderna.
Com essa visão, as práticas corporais dos povos indígenas estão repletas de
sentidos e significados atribuídos por diferentes etnias. Ao sofrerem um processo de
esportivização, tais práticas carregam em seu bojo valores modernos, os quais
foram assimilados pelas pessoas indígenas. Com efeito, nota-se que a
ressignificação das práticas corporais ocorre na medida em que a apropriação do
esporte de alto rendimento pelas sociedades tradicionais. Desse modo, tais práticas
assumem características com sentido competitivo, que podem contribuir para o
surgimento de outro habitus e modificar a relação dos indígenas com o uso de seu
corpo. Como conseqüência desse processo, espera-se que ocorram mudanças
125
comportamentais que venham contribuir para a integração de pessoas e de grupos
indígenas à sociedade global, por meio do mercado esportivo mundial. Essa
integração entendida conforme Ribeiro (1986) resulta na justaposição dos
valores modernos aos valores tradicionais, o que proporciona as descontinuidades
geradas nas tradições desses povos, devido à alteração dos sentidos e significados
das práticas corporais tradicionais. Possíveis mudanças culturais e comportamentais
decorrentes de uma (re)tradicionalização das práticas corporais podem ocorrer com
os grupos indígenas participantes dos Jogos. Contudo é importante registrar que tais
mudanças podem não repercutir nas tradições da etnia, podendo ser, portanto, uma
mudança pontual.
Em relação ao esporte, foi observado durante a realização do evento que
um grande interesse por parte dos indígenas em aprendê-lo e praticá-lo. Esse
interesse pode ser identificado com base em falas e depoimentos apresentados
pelos indígenas no evento; todavia, ao mesmo tempo em que há uma valorização do
esporte – como fenômeno moderno – essas falas também indicam a necessidade de
valorização das práticas corporais tradicionais dentro da programação dos jogos.
Percebe-se, portanto, uma contradição que é marcada pela incorporação de lógicas
diferenciadas na apropriação do sentido das práticas corporais tradicionais e do
esporte.
Assim sendo, compreende-se que o esporte a ser oferecido aos povos
indígenas no Brasil deva respeitar sua autonomia, isto é, o direito que esses povos
têm de participar ativamente das decisões que dizem respeito às suas
manifestações culturais. Sendo o esporte um elemento intercultural ele deve ser
problematizado, posto que permite o contato de diferentes povos com valores,
instituições e procedimentos distintos dos que lhes são próprios. Por conseguinte,
cria-se a expectativa de garantir aos indígenas o acesso a informações,
conhecimentos cnicos e científicos, explicitando as possíveis conseqüências
decorrentes de sua inserção nessas comunidades para que, a partir de então, os
interesses desses povos possam surgir de escolhas conscientes.
De acordo com o artigo 231 do capítulo VII da Constituição Federal do Brasil,
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, nguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”
(Grupioni, 2005: 16). Cabe ao Estado:
126
(a) apoiar e incentivar a conservação, valorização e difusão das manifestações
culturais dos povos indígenas, entre eles os jogos e as brincadeiras
tradicionais;
(b) assegurar o respeito ao patrimônio cultural das comunidades indígenas, a
partir do direito que os indígenas têm de decidirem seu destino, fazer
escolhas, elaborar e administrar projetos oriundos de seus interesses.
Diante desse cenário, reconhece-se que o Governo Federal vem cumprindo
parcialmente o que a Constituição atribui como papel do Estado, por meio de
programas e ações, a exemplo dos Jogos dos Povos Indígenas. Observa-se, no
entanto, que o Estado, ao passo que executa um evento que estrutura as práticas
corporais de maneira competitiva, não assegura a valorização do patrimônio cultural
dessas comunidades. Com efeito, o intento é contribuir para o usufruto de seus
direitos, aceitando o constante processo de construção, reelaboração, criação e
desenvolvimento pelo qual passam as culturas indígenas e entendendo que a
diversidade de padrões culturais é um patrimônio para toda a humanidade.
Um importante meio para que o esporte seja compreendido mais amplamente
por essas comunidades é a educação escolar indígena, posta em prática por uma
escola indígena, vez que é “um dos lugares onde a relação entre os conhecimentos
próprios e os conhecimentos das demais culturas deve se articular” (Brasil.
Ministério da Educação, 2005: 24). Além do mais, tal entidade poderia propiciar mais
informações, saberes e valores da sociedade nacional aos povos indígenas no
Brasil. O Estado, tendo a competência privativa de legislar sobre as populações
indígenas, tem por atribuição, de acordo com o Artigo 79 da Lei de Diretrizes e
Bases, “manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à
educação escolar nas comunidades indígenas” (Brasil. Ministério da Educação,
2005: 33).
Por fim, conclui-se que o esporte de alto rendimento, apesar de possuir
diferentes representações construídas por seus praticantes em diversos contextos, é
um meio que traz consigo valores e concepções da cultura ocidental moderna e que,
desse modo, pode proporcionar uma (re)tradicionalização das práticas corporais nas
culturas indígenas. Portanto, os Jogos dos Povos Indígenas, ao estruturar e oferecer
práticas corporais tradicionais sob a lógica do esporte de alto rendimento, colabora
para que ocorra uma modificação nos sentidos e significados. Nessa compreensão,
o estudo visa a contribuir para que esse evento concretize seus objetivos e para que
127
políticas públicas referentes ao esporte entre os indígenas sejam articuladas,
considerando a autonomia desses povos e respeitando o direito à diferença.
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