vovó batia os címbalos nos dedos, eu dançava segurando as pontas das tranças para dar lugar às
mãos haialalala vira vira stlac stlac e não ficarem correndo no ar haialaia os braços formando asas
de xícaras vóvó borrifava água-de-rosa
230
.
Encontro com o espaço dado em uma abstração temporal, a dança se apresenta como
o lugar de contato com o mundo, sua forma de conquistá-lo e impor-se para usufruir dele,
onde quer que esteja, quando quer que esteja, entre as quatro paredes da casa no Líbano ou
nas calçadas de Nova Iorque. Ela é “a forma ideal em descobrir a vocação de cada parte do
corpo, o mais perfeito uso das mãos, do queixo, dos ombros, dos pés, o espaço que os quadris
devem ocupar, em que lugar se joga a transparência de um véu, uma arte de espaço de espírito
de anatomia”
231
. Não se trata, contudo, apenas do encontro com o espaço externo, mas,
simultaneamente, um encontro com o espaço interior, consigo mesma. A dança é tratada
como um refúgio: “um desejo de solidão, uma contemplação do interior da selvageria do
corpo, das nostalgias da memória, mágicos efeitos, celebração da calma do espírito
clarividente, corpo, a simbólica encarnação da infinita luxúria a obediência à paixão e ao
perverso temperamento feminino.”
232
.
Intrinsecamente ligados, essa relação entre dança e espaço habita tempos passados e
futuros. E se o ritmo haialalala haialaia permeia inúmeras passagens em que a dança oculta e
revela acontecimentos, o bailado de Amina não é propriamente descrito no romance. Nem a
dançarina, nem a sua dança são expostos no corpo do texto, quando muito é sugerido o
movimento, o que afasta a descrição da coreografia de Amina da executada pela personagem
Ana, de Raduan Nassar
233
, para aproximá-la, em variados aspectos da elaboração discursiva, à
de Salomé de Oscar Wilde.
230
MIRANDA, op. cit., p. 20.
231
MIRANDA, op. cit., p. 21.
232
MIRANDA, id.
233
Raduan Nassar oferece ao leitor o olhar de André que, como se fosse uma tela ou um espelho, capta e reflete a
imagem da irmã que desliza através da dança: "não tardava Ana, impaciente, impetuosa, o corpo de campônia, a
flor vermelha feito um coalho de sangue preenchendo de lado os cabelos negros e soltos, essa minha irmã que,
como eu, mais que qualquer outro em casa, trazia a peste no corpo, ela varava então o círculo que dançava e logo
eu podia adivinhar seus passos precisos de cigana se deslocando no meio da roda, desenvolvendo com destreza
gestos curvos entre as frutas, e as flores do cesto, só tocando a terra na ponta dos pés descalços, os braços
erguidos acima da cabeça serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais lento, mais ondulante, as mãos
graciosas girando no alto, toda ela cheia de uma selvagem elegância, seus dedos canoros estalando como se
fossem, estava ali a origem das castanholas, e em torno dela a roda girava cada vez mais veloz, mais delirante, as
palmas de fora mais quentes e mais fortes, e mais intempestiva, e magnetizando a todos, ela roubava de repente o
lenço branco do bolso de um dos moços, desfraldando-o com a mão erguida acima da cabeça enquanto
serpenteava com o corpo, ela sabia fazer as coisas, essa minha irmã". (NASSAR, RADUAN, Lavoura arcaica.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 30-31). Nosso interesse nessa descrição de dança vem do paralelo
que ela estabelece com as de Amina e Salomé ao gerar uma curta expectativa no leitor, concentrando a ação
diretamente nos movimentos que saltam da narrativa.