Download PDF
ads:
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA
A FUNÇÃO PÚBLICA
DA TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE
ISABELA XAVIER FERREIRA DE SÁ
ORIENTADORA: ANA CRISTINA FIGUEIREDO
Rio de Janeiro
Setembro de 2005
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
A FUNÇÃO PÚBLICA
DA TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE
Isabela Xavier Ferreira de
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Teoria Psicanalítica,
Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ,
como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.
Orientadora: Ana Cristina Figueiredo
Rio de Janeiro
Setembro de 2005
ads:
3
A Funçãoblica da Transmissão da Psicanálise
Isabela Xavier Ferreira de Sá
Orientadora: Ana Cristina Figueiredo
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica,
Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.
Aprovada por:
Presidente, Profa. Ana Cristina Figueiredo
Profa. Anna Carolina Lo Bianco
Profa. Dionysia R. Andrade
Profa. Doris Rinaldi
Prof. Cláudio Oliveira
Rio de Janeiro
Setembro de 2005
4
FICHA CATALOGRÁFICA
SÁ, Isabela Xavier Ferreira
A Função Pública da Transmissão da Psicanálise/Isabela Xavier
Ferreira de Sá. Rio de Janeiro: UFRJ, IP, 2005.
XIX, 200f.
Ana Cristina Figueiredo. Tese, UFRJ, IP, Programa de Pós-Grad
uação em
Teoria Psicanalítica. 2005. 5.
I. Figueiredo, Ana Cristina
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia.
III. Título
5
RESUMO: A função pública da transmissão da psicanálise
Isabela Xavier Ferreira de Sá
Orientadora: Ana Cristina Figueiredo
Resumo de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a
obtenção do título de Doutor em teoria Psicanalítica.
A função pública da transmissão da psicanálise
levanta a questão de como a
psicanálise pode ser ensinada, transmitida e insc
rita no campo social com a mesma eficácia
de sua práxis stricto sensu
. A tese fundamenta a operacionalidade do discurso analítico
dentro dessa esfera, promovendo um novo modo de liame no qual se sustentam as
condições para fazer surgir na fala o sujeito como efeito de verdade.
Verifica-se que sua incidência excede o tratamento de sua prática intra-
muros, uma
vez que percebemos na psicanálise, através do conceito de sujeito, a confluência entre as
dimensões pública e privada, embora não se trate de transpo
rtar a psicanálise para a cultura.
Deve-
se reconhecer no discurso psicanalítico e em sua ética, elaborados e formalizados por
Lacan, o que já é indissociavelmente função pública.
A tese sustenta e demonstra, ainda, que a transmissão da psicanálise relança
o
sujeito em sua dívida com a própria transmissão, analítica ou não, fazendo-
o retomar para si
a responsabilidade de garantir o social.
No texto, refaz-se o caminho da constituição do laço social e demonstra-
se que a
psicanálise opera na contra-mão da egoificação e da paranoização
modos de resistência
no sujeito neurótico à sua condição de submissão ao significante. São elaborados, por fim,
os caminhos do gozo e do desejo como componentes da tessitura de nossos laços sociais.
Na conclusão, afirma-
se que a psicanálise nada tem a restituir ao social em sua
função pública, a não ser habilitar o sujeito em sua própria condição, marcando-
lhe a falha
e a falta, o que pode fazer com que algo se movimente, estabelecendo na perda de gozo
como trabalho do d
esejo, a possibilidade de desestabilizar o funcionamento discursivo ao
afetar seus hábitos mais mortificantes.
Palavras-chaves: Psicanálise, Transmissão, Função pública e sujeito.
Rio de Janeiro
Setembro de 2005.
6
ABSTRACT: A função pública da transmissão da psicanálise
Isabela Xavier Ferreira de
Orientadora: Ana Cristina Figueiredo
Resumo de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a
obtenção do título de Doutor em teoria Psicanalítica.
This thesis, The public function of the transmission of psychoanalysis, raises the
issue of how psychoanalysis can be taught, transmitted and inscribed in the social realm
with the same efficiency of its praxis stricto sensu. It confirms the operativeness of the
psychoanalytical discourse within this sphere, demonstrating how it promotes a new sort of
social bond, by which there appears the subject as an effect of truth.
At the same time, it claims that the incidence of psychoanalysis goes beyond its
intra-mural practice. By the concept of subject the confluence of the private and public
domains emerges. Without supposing a transposition of psychoanalysis into culture, the
psychoanalytical discourse, together with its ethics (elaborated and formalized by Lacan),
shows itself to be irrevocably a public function.
Furthermore, the tenets that support the contents of this thesis demonstrate that the
transmission of psychoanalysis puts the subject in face of his debt to transmission itself,
whether it be analytical or not, making the subject call onto himself/herself the
responsibility of warranting the social sphere. The steps that lead to the construction of the
social bondage are traced, showing how psychoanalysis moves against “egoification” and
“paranoidization” – both representing the neurotic’s resistance against his/her submission to
the signifier. Finally desire and jouissance are shown as components of the structure of our
social bondage.
In the conclusion, there is the claim that psychoanalysis in its public function does
not have anything to give back to the social domain, except settling the subject in his/her
own condition , branding him with fault and lack, which can set something moving,
establishing in the loss of jouissance as work of desire the possibility of destabilizing the
discursive functioning as it affects its most mortifying habits.
Key-words: Psychoanalysis, Transmission, Public function, subject.
Rio de Janeiro
Setembro de 2005.
7
Agradecimentos
:
A CAPES e a FAPERJ pelo apoio financeiro dado a pesquisa.
A Ana Cristina Figueiredo pela orientação, pela paciência e pela delicadeza.
A Márcia, a Ângela, a Laura e a Madalena pela grande ajuda, pela fidelidade e pela
compreensão.
A N
eide por tomar conta por mim do que eu não dei conta nesses meses, sempre com
muita generosidade.
A Anna Carolina Lo Bianco e Dionysia R. Andrade por terem me feito encontrar a
tese de meu trabalho através de suas leituras na ocasião de meu exame de
qualificação.
Ao
Tempo Freudiano
Associação Psicanalítica pela oportunidade do ensino, da
transmissão e do trabalho. Particularmente a Franscico Leonel, Eduardo Rocha e Ana
Cristina Manfroni.
E,
especialmente, a Antônio Carlos Rocha.
A meu pai por todo inestimável e carinhoso apoio.
A minha mãe pela incansável ajuda, pela disponibilidade, pela capacidade intelectual,
pelo bom humor e pelo incentivo que foram, todos, muito tocantes e imprescindíveis
neste momento.
E a Ricardo,
mais, ainda.
8
A Ricardo,
com quem toda alegria começou
e
a Pedro, a Filipe e a Clarice,
por quem a alegria nunca mais quer acabar...
9
SUMÁRIO
Introdução ......................................................................................................10
Capítulo 1
De que é feito o laço social?...........................................................................26
1.1 Indivíduo e Sociedade...............................................................................35
1.2 O mito da constituição do laço social em Freud.......................................53
1.3 A constituição do laço social em Lacan....................................................60
Capítulo 2
A psicanálise avança onde a paranóia fracassa.............................................65
2.1 Laço social e narcisismo............................................................................71
2.2 A constituição do eu e a ficção do dentro e do fora...................................75
2.3 A fantasia: do mundo ao sujeito.................................................................80
2.4 O sujeito e o social....................................................................................100
2.5 Sujeito e autonomia...................................................................................104
Capítulo 3
O gozo e o desejo............................................................................................ 108
3.1 O sexual na psicanálise............................................................................. 109
3.2 O gozo e o discurso....................................................................................113
3.3 A verdade do gozo.................................................................................... 116
3.4 Tirar da castração um gozo?......................................................................121
3.5 O limite do gozo........................................................................................125
3.6 O desejo e a ética.......................................................................................133
Capítulo 4
Transmissão da psicanálise e função pública.................................................142
4.1 Psicanálise e Weltanschauung...................................................................143
4.2 A Psicanálise e a Ciência: sujeito, saber e verdade...................................149
4.3 A psicanálise, o público e o privado..........................................................158
4.4 A psicanálise e sua transmissão.................................................................164
4.5 Intensão e extensão....................................................................................182
4.6 O ato analítico e a ética da psicanálise: função pública?...........................186
Conclusão.........................................................................................................189
Referências Bibliográficas................................................................................196
10
O contraste entre a psicologia individual e a psicologia
social ou de grupo
, que à primeira vista pode parecer
pleno de significação, perde grande parte de sua
nitidez quando examinado mais de perto. É verdade
que a psicologia individual relaciona-se com o homem
tomado individualmente e explora os caminhos pelos
quais ele busca encontrar satisfação para seus impulsos
instintuais; contudo, apenas raramente e sob certas
condições excepcionais, a psicologia individual se
acha em posição de desprezar as relações desse
indivíduo com os outros. Algo mais está
invariavelmente envolvido na vida mental do
indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar,
um oponente, de maneira que, desde o começo, a
psicologia individual, nesse sentido ampliado, mas
inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo
tempo, também psicologia social (Freud, [1921] 1980,
vol. XVIII).
O primeiro método estabelecido para abordar a questão que esta tese levanta
apresentava, fundamentalmente, a discussão da transmissão da psicanálise e de sua
incidência nas esferas pública e privada, estabelecendo com elas uma comparação entre o
individual e o social. Seu esboço, traçado de modo a tomar paralelamente os espaços em
questão, tinha a intenção de discutir também o estabelecimento de tais categorias
constituídas pelo antagonismo.
De que trata, então, a indagação sobre as noções de público e privado? Para a
psicanálise e para algumas áreas de pensamento essa questão se coloca a partir de
pressupostos distintos. O importante, no entanto, é situar a discussão à luz de pontos de
vista diferentes para que estes se iluminem mutuamente por suas especificidades ou por
suas eventuais semelhanças. Desta forma, poderemos nos aproximar da posição do
sujeito/indivíduo dentro dessas abordagens.
11
Assim, tentaremos inicialmente apenas fazer um breve excurso sobre o tema -
basicamente a partir de algumas reflexões de Hannah Arendt -, para depois então abordá-lo
pela psicanálise.
Se formos acompanhar a trajetória das noções e das práticas exercidas dentro dos
espaços do público e do privado, no quadro ocidental, através das diferentes configurações
sócio-históricas, verificamos um processo de transformação ao longo do tempo: de espaços
radicalmente separados, onde reinam independentemente a esfera da política e a da
reprodução da vida, para uma interpenetração dessas dimensões na esfera do que é cunhado
como o primado do social, onde as práticas e comportamentos se ligam pelo que é de
interesse comum (embora isso não signifique que seja um espaço compartilhado entre
“iguais”).
O primeiro momento de relações humanas dentro de espaços diferenciados se na
Grécia Antiga, com a criação dos espaços público (o da política) e privado (o da família) -
àquela altura totalmente apartados. Naquele período histórico surge o indivíduo livre, dono
de propriedades e de escravos,
1
senhor de sua casa e de suas idéias. A esfera política
encontra-se na polis, centrada na agora, ou seja, na assembléia pública, onde se desenvolve
a atividade política propriamente dita. Esta é uma atividade “pública”, por excelência, pois
se caracteriza pela necessidade dos indivíduos que se encontram de serem vistos e
ouvidos. Nesse espaço, o indivíduo deve se expor, através de seu discurso, perante os que
são sempre seus “iguais” - tanto em seus privilégios quanto em suas atribuições. Essa arena
é o espaço onde se busca a distinção. A singularidade, o prestígio e a força dos discursos
dos homens que ali podem comparecer competem com os de seus pares em busca da glória
1
Estes eram os “não-indivíduos”, dentro dos parâmetros que regiam aquela sociedade onde havia as relações
entre “iguais” e onde as outras ficavam de fora dessas relações.
12
atributo traduzido para o grego pelo termo arete (Arendt, 1983:58), ideal maior para
aqueles homens. O outro par da dicotomia é o oikos, âmbito da vida privada, âmbito da
“necessidade”, da reprodução da vida, em oposição ao da “liberdade” desfrutada em praça
aberta. Hannah Arendt chama atenção para essas condições sobre a vida na Grécia àquela
época, quando diz:
É o caráter público da esfera pública que é capaz de absorver e dar brilho
através dos séculos a tudo o que os homens venham a preservar da ruína
natural do tempo. Durante muitas eras antes de nós (...) os homens
ingressavam na esfera pública por desejarem que algo seu, ou algo que
tinham em comum com outros, fosse mais permanente que suas vidas
terrenas. (op. cit.:65)
Ela acrescenta a esse comentário o fato de haver interpretações equivocadas a
respeito desse desejo de imortalidade, ao criticarem-no como sendo conseqüência de um
sentimento de vaidade. Entretanto, a polis era para os gregos o lugar da “garantia contra a
futilidade da vida individual e reservado à relativa permanência, senão à imortalidade dos
mortais” (op. cit.:66).
É também importante ressaltar que a cidade-estado grega foi o corpo político mais
individualista e menos conformista de que se tem notícia, com a importância que conferiam
à ação e ao discurso. Para assegurar esse estado de coisas tudo indica, segundo Arendt, que
os gregos intuíram que deveriam restringir o número de participantes dessa experiência de
liberdade política
2
: a inclusão democrática indiscriminada (sua democracia era não-
representativa) impediria a realização dessa vivência política.
A autora da Condição Humana declara que:
2
O poder absoluto de um ou de alguns subjugando os indivíduos na esfera da vida política era inconcebível
na antiguidade clássica na Grécia.
13
Grandes números de indivíduos, agrupados numa multidão, desenvolvem
uma inclinação quase irresistível na direção do despotismo, seja o
despotismo pessoal ou o do governo da maioria. (...) quanto mais pessoas
existem, maior é a possibilidade de que se comportem e de que não tolerem
o não-comportamento. (op. cit.:53)
Aqui se ressalta um dos aspectos a serem analisados por Hannah Arendt sobre as
condições que se apresentarão no mundo moderno.
3
É interessante observar que experiência similar a dos gregos, com a separação entre
os espaços público e privado, acontece posteriormente em Roma, porém com algumas
diferenças. Nesta, em referência ao espaço público, a ênfase recai sobre a res publica (o
bem público) e não a arete (a virtude individual do homem político). Além do mais, os
romanos não consideravam a esfera privada como uma dimensão da privação, como os
gregos, mas, sim, um lugar de proteção contra as atribulações da res publica.
A partir desse momento, dilui-se a divisão radical dessas duas dimensões na vida
dos homens, com a transformação das relações internas a cada espaço. Nessa mudança
uma convergência e deslocamento, para ambos os casos, em direção a uma esfera que passa
a representar agora a de relações sociais. Aqui é clara a crítica que a autora faz a essa nova
forma de sociabilidade:
(...) A uniformidade estatística não é de modo algum um ideal científico
inócuo e, sim, o ideal político, agora não mais secreto, de uma sociedade
que, inteiramente submersa na rotina do cotidiano, aceita pacificamente a
concepção científica inerente à sua própria existência (idem).
Entretanto, mesmo o surgimento do espaço social, onde se misturam as atividades
políticas e as da vida pessoal (interesses e subsistência) - que se comparadas às da
3
Hannah Arendt distingue a era moderna (século XVI) do que chama de mundo moderno ( mundo capitalista
e posteriormente o da sociedade de massas).
14
Antiguidade apresentam-se visíveis ainda distinção entre o que deve ser exibido e o
que deve ser ocultado:
A distinção entre as esferas pública e privada, encarada do ponto de vista da
privatidade e não do corpo político, equivale à diferença entre o que deve ser
exibido e o que deve ser ocultado. (...) mas é impressionante que, desde os
primórdios da história até o nosso tempo, o que precisou de ser escondido na
privatidade tenha sido sempre a parte corporal da existência humana, tudo
que é ligado à necessidade do próprio processo vital e que, antes da era
moderna, abrangia todas as atividades a serviço da subsistência da espécie.
Mantidos fora da vista eram os trabalhadores “que com seu corpo cuidavam
das necessidades (físicas) da vida”
4
(...) e as mulheres que com seu corpo
garantem a sobrevivência física da espécie (op. cit.:82).
5
Ao mesmo tempo, a esfera privada passa a ser apenas a esfera da intimidade, se
apresentando em oposição não ao que é público, mas sim ao social, espaço da transparência
e não apenas da exposição voluntária. Não é à toa, nos diz a autora, que o surgimento do
romance, “a única forma de arte inteiramente social” coincide com o declínio das artes que
são públicas, especialmente a arquitetura (op. cit.:49). É interessante também apontar para o
surgimento, dentro do espaço social, de uma sociedade civil, na medida em que a separação
do público e do privado assume paulatinamente uma forma moderna. Esta forma do social
passa a ser o corolário da autoridade despersonalizada do estado.
A expressão aristotélica do homem como animal político vai se distinguir da
posterior expressão de animal social como a passagem de uma posição de distinção
conferida por seu caráter de ser membro de uma instituição “artificial” (a polis), que se
4
Citação da autora de Aristóteles, Política 1254b25.
5
A autora destaca a coincidência da emancipação das classes operárias e das mulheres ter se dado quase que
simultaneamente; para ela isto é característico de uma época que não mais acredita que as funções corporais e
os interesses materiais devam ser ocultados.
15
acrescenta ao naturalístico (oikos), se apresentando como uma realidade cultural, dado ser
algo que o homem cultivou sobre aquilo que lhe foi dado.
Ao ser qualificado como ser social, a ênfase passa a ser o aspecto não-diferenciado
do pertencimento: o que é comum a todos e de interesse de todos (resultado das intenções
dos indivíduos e/ou grupos); é isto o que transparece na sociabilidade familiar, por
exemplo. O âmbito social passa a ser o espaço de gerenciamento das necessidades e dos
interesses dos homens. Desloca-se o doméstico para o social, se compararmos essas novas
formas às clássicas gregas.
Na Grécia, o político claramente se destacara do social, quando criara um novo tipo
de laço entre os homens. Assim, na polis, a convivência era entre iguais que buscavam a
diferença; na esfera social, a convivência é entre não-iguais que buscam o que pode lhes ser
comum e conveniente. Vê-se a mudança para um novo tipo de laço o do laço social (do
latim, sociale, que denota “aliança”). As relações de trabalho e outras tantas (salvo as da
intimidade que, dentro do individualismo moderno, serão relações e comportamentos
relativamente particulares a cada pessoa), transcorrem às claras. De certa forma, pode-se
dizer que um processo de privatização do espaço público privatização essa tomada
comparativamente ao que era privado na Antiguidade.
Em relação aos outros espaços, o constante fortalecimento do social enfraquece e
altera a força do político que, na Grécia clássica, preservava sua liberdade ao não interferir
em assuntos fora de seu âmbito. Na Idade Média, a esfera do político passa a tentar proteger
uma sociedade de fiéis, ou uma sociedade de proprietários, como em Locke, ou de
produtores, como em Marx, e assim por diante. A autora nos diz que:
16
Em todos estes casos, é a liberdade (e, em alguns casos, a pseudo-liberdade)
da sociedade que requer e justifica a limitação da autoridade política. A
liberdade situa-se na esfera do social e a força e a violência tornam-se
monopólio do governo (op. cit.:40).
Hannah Arendt considera que essa ascendência da esfera social que não era nem
privada nem pública, no sentido estrito do termo -, faz a esfera “privada” da sociedade
tornar-se publicamente relevante, dizendo que, em sociedade (o espaço agora determinado
como social), o fato da dependência mútua em nome da vida - e nada mais -, assume
significância pública. (op. cit.:37), Por outro lado, esta relevância abole o aspecto sui
generis da área política como existira na época clássica grega e sua força também
transgride e diminui o espaço da intimidade.
Somos chamados a também considerar a transformação na forma moderna de
governo, que deixa para trás o absolutismo de um único governante, passando a uma
espécie de governo de ninguém, o que não significa ausência de poder ou de comando; ao
contrário este pode representar, através da burocracia como última forma de governo no
estado nacional moderno, o que “pode vir a ser uma das mais cruéis e tirânicas versões”
(op.cit.:50) e onde “(...) o fenômeno do conformismo é característico do último estágio
dessa evolução moderna” (idem). Lembramo-nos aqui da imagem weberiana da “gaiola de
ferro” e da experiência do absurdo avassalador enfrentado por K. personagem central em
O Processo, famosa obra de Kafka. Em vez da ação e do discurso, a aceitação e a
conformidade.
Finalizando, trazemos o que Hannah Arendt ainda tem a nos dizer a respeito da
questão do social e da intimidade. Ela recorre a Jean-Jacques Rousseau, para quem tanto o
íntimo quanto o social eram formas subjetivas da existência humana. Segundo esse
17
pensador, o indivíduo moderno, em seus conflitos incessantes, se sentia incapacitado dentro
da vida em sociedade, ao mesmo tempo em que não poderia mais viver completamente fora
dela (op. cit.: 48 e 49). A opressão dos ditames da sociedade sobre seus membros era
incontestável e irrecorrível.
Podemos ver, depois desse rápido passar de olhos sobre a explanação da cientista
política e filósofa alemã, Hannah Arendt, a respeito do surgimento e do desenvolvimento
das noções de público e privado, que essa visão nos oferece um solo para a abordagem da
visada da psicanálise sobre a questão, como passamos a discutir agora.
Os argumentos na psicanálise sustentam que estamos sempre inscritos na dimensão
pública (entendida como a experiência da fala no sujeito como um domínio do Outro, sendo
ela a própria garantia de um bem comum, de um pacto social que se reduz em última
instância a fala no exercício compartilhado da língua pelo qual se pode reduzir pelas vias
do discurso a segregação, principal forma de desumanização
6
) mesmo quando o exercício
de nossa prática está concernido à esfera privada (aquela da intimidade, do que deve
permanecer protegido “das atribulações da res publica”). No caminho de averiguação da
transmissão da psicanálise no público e no privado, surgiu uma questão que foi se
estabelecendo de modo mais consistente como a própria tese. Trata-se de verificar se há, na
transmissão da psicanálise, uma função pública. Este desdobramento conservou uma série
de discussões já propostas inicialmente, exigindo igualmente a tarefa de expor o fato de que
qualquer via de transmissão analítica coloca o sujeito exposto à esfera pública diante da
qual ele tem responsabilidades, ainda que sua experiência de análise tenha que se passar em
uma atmosfera privada.
6
Melman, 2002, transcrição de sua fala proferida na Universidade de Bogotá sobre o “Público e o Privado”.
18
Nossa direção se tornou a de saber como e até que ponto a psicanálise pode incidir
no âmbito social, fazendo ressaltar que o espaço público equivale aqui ao espaço do laço
social (como nos impõe nossa herança romana). O espaço privado, por sua vez,
representava, no projeto inicial, a psicanálise em intensão, termo introduzido por Lacan em
nosso campo para sublinhar o caráter intensivo da psicanálise, como prática clínica. A
intensão se enlaça em continuidade à extensão, termo também cunhado por Lacan para
designar a devida intervenção da psicanálise nos laços institucionais. No entanto, a
psicanálise constitui, sobretudo, uma nova forma de laço. Será nossa tarefa demonstrar seu
funcionamento.
Assim, a mudança de rumo da tese se deveu ao fato de termos percebido que a
divisão entre público e privado na psicanálise mal se sustenta. Não é à toa que a divisão que
Lacan faz dos diferentes campos de transmissão, ainda que não os estabeleça em oposição,
é entre intensão e extensão. Lacan refere-se, sobretudo, ao fim de uma dimensão privada na
experiência de uma análise. Ele afirma que no percurso de uma psicanálise não mais
vida privada, o Outro, o terceiro elemento, ganha lugar neste espaço que até então permitia
que o “entre quatro paredes” poupasse o sujeito de aludir à alteridade, ao impossível, isto é,
a um fora do “entre nós”. A psicanálise faz submergir a vida privada “entre quatro paredes”
quando formaliza o laço social como uma estrutura mínima constituída de quatro lugares.
Os termos: público e privado não se prestam a nos ajudar a tratar daquilo que
queremos, ou seja, o fato de que, primeiro: a transmissão da psicanálise depende em sua
efetividade de ser sustentada por um laço social que lhe é próprio e que é por sua vez, causa
de transmissão; e segundo: que a ética da psicanálise deve a esse laço seu fundamento.
Ainda que Lacan tenha primeiro decantado a ética de que se trata na psicanálise para então,
19
anos depois, tratar do ato analítico e, só então, ter podido escrever em uma estrutura
discursiva o laço que a psicanálise institui, a posteriori podemos ler na ética a sustentação
deste laço social inédito.
Logo, trabalhando sobretudo a questão da transmissão da psicanálise, de sua
incidência e do discurso engendrado por ela, fomos levados a pensar na articulação de
outros dois termos o social e o individual, onde deve se ler a instância do eu tratada por
Freud de modo inteiramente novo - que aparecem em nossa história como termos que se
contrapõem. Esses termos nos colocam questões tanto no que concerne ao lugar do analista
quanto à posição do sujeito. O que tem o sujeito a ver com o social? O que é o social? O
que é, especificamente, o social para a psicanálise? Qual a responsabilidade do sujeito
frente ao social e que conseqüências têm para o sujeito o funcionamento social, ou como
diz Lacan, o sintoma social? Qual é o sintoma social que lugar à psicanálise e como ele
avança? Em resumo: podemos situar o sujeito na dimensão pública, como efeito e causa do
laço social? Qual é a visada da psicanálise no social? Pode um analista se eximir de uma
função pública?
Como veremos no primeiro capítulo, nossa intuição sobre a relação do indivíduo
com a sociedade é herdeira da leitura que as ciências sociais tecem a este respeito. Mesmo
que sua leitura seja múltipla variando conforme o autor, mantém-se em todas elas a
dicotomia indivíduo/sociedade, sustentando dois campos que se inter-relacionam ou que se
determinam conforme a abordagem. Essa leitura nos ajuda na medida em que nos oferece
as bases de nossa forma de pensar (determinando nosso senso-comum), o que, por sua vez,
nos auxilia a situar nossos problemas e atingi-los um pouco mais a fundo.
20
A psicanálise nem sequer trabalha com os termos “sociedade” e “indivíduo”, mas
forçando um pouco a aproximação tenderíamos a sobrepor o sujeito em sua inscrição
egóica (o eu) do lado do indivíduo e o laço social como a fundação do que vem a ser
reconhecido como sociedade, que digamos, de modo geral poderia ser descrita como um
corpo que conjuga as individualidades em um sistema de leis comuns e que instituem uma
vida coletiva. Evidentemente, que não se trata de supor que se poderia recobrir os dois
conceitos da sociologia com os dois conceitos da psicanálise, ao mesmo tempo, suas
aproximações ajudam a evidenciar suas diferenças, tornando mais clara a proposta
psicanalítica justamente naquilo que cerne a impossibilidade de polarizar ou de tomar como
ordens de diferentes universos o sujeito e o social.
O laço social na psicanálise é, por um lado, os modos discursivos que possibilitam
essa vida coletiva e institucional e, por outro, o lugar externo ao domínio do privado para o
sujeito. Ele, o sujeito, está em relação ao social dotado de responsabilidade pelo sintoma no
qual o social se institui e pelos laços que regem nossa vida atual, dos quais ele é efeito e
determinação.
A difusão da psicanálise fez veicular, de certo modo, sua práxis como um fazer
clínico apartado de uma inscrição social, produzindo a suposição de uma divisão entre a
posição do analista enquanto operador de um dispositivo em uma experiência clínica e sua
inserção enquanto sujeito do mundo, cidadão. Isto é, como cidadão aquele sujeito que se
oferece na clínica no lugar de analista poderia estar em uma posição antagônica ou estranha
ao discurso que ele promove? Na mesma via, também é feita a suposição de que alguém
que vai se analisar tratará na análise de aspectos pessoais e privados de sua vida, sobre os
quais ela deverá se situar de outro modo, mantendo o que concerne ao social fora do jogo.
21
Pois, neste sentido o sujeito que se oferece numa certa posição como analista não
possui a liberdade de, uma vez “fora” de seu exercício, se eximir da ética que o comanda
em sua prática, pois que a ética que o norteia não tem como intuito proferir seus bons
modos e sua boa conduta como profissional, ela, ao contrário, se sustenta em uma estrutura
discursiva na qual o sujeito tem como dever se subtrair do comando egóico e se submeter a
sua produção significante. Esta pode ser efetiva na medida em que o sujeito se faça
encontrar no mesmo lugar de seu dizer. Ou seja, o sujeito deve advir onde isso é o puro
real do significante, pura falta de sentido, puro buraco... Eis o postulado de Freud na
máxima Wos es war, soll Ich werden”, segundo a leitura que Lacan nos propõe. Para
acrescentar ainda um ponto importante, é necessário entender que o buraco em jogo é,
segundo Lacan, justamente o que faz laço social para a psicanálise.
Mas, se fosse possível supor que o sujeito pudesse ter uma direção ética para cada
lugar que ele ocupa no mundo, deveríamos supor que é possível para o sujeito ser
comandado por duas, ou mais éticas, segundo a ocasião. É possível nos oferecermos a uma
práxis e nos retirarmos da ética que ela comporta ao nos posicionarmos no mundo? Ao nos
posicionarmos institucionalmente? Essas mesmas questões colocam problemas de base
quando podemos verificar que na psicanálise os registros do público e do privado, do
individual e do social, se constituem na continuidade de uma mesma superfície e que sua
diferença se apresenta apenas numa dobra dessa superfície e que se reencontram a cada vez
que se altera algo nessa dobradura
7
.
A transmissão da psicanálise faz confluir intensão e extensão, ou seja, ela exige que
a prática clínica não esteja apartada da experiência institucional e social do sujeito no
7
Fazemos referência à figura topológica da Banda de Moebius.
22
mundo e que o ensino da psicanálise, que a supervisão clínica ou que o trabalho
institucional não esteja livre da clínica; tudo se constitui naquilo que Lacan reduz a uma
práxis na qual se trata o real pelo simbólico. A própria clínica deve ser antes que uma
experiência privada, uma reinserção do sujeito no campo do Outro, ou seja, uma
responsabilização pela sua própria divisão constituída pelo campo do Outro.
Estas são as questões que norteiam nosso trabalho e que são revistas nos problemas
que elas nos colocam. A tese trata, portanto, da questão de base que se refere à transmissão
da psicanálise e abrange em sua visada a questão do público e do privado
fundamentalmente pelo viés da psicanálise em intensão e extensão e pela constituição do
sujeito no campo do Outro, tendo em vista a condição do sujeito de não apenas estar ao
Outro submetido, mas, antes, de fazê-lo operar pelo próprio trabalho que o concerne.
A tese sustenta uma certa posição da psicanálise que suporta a questão que se
colocou: há função pública da ética da psicanálise? E se constitui de quatro capítulos.
O primeiro capítulo aborda em sua introdução a questão da difusão da psicanálise e
de sua incidência no social, para em seguida apresentar a questão do indivíduo e da
sociedade pela teoria sociológica que é, neste ponto, o argumento que faz o consenso do
conhecimento sobre a questão, isto com o intuito de começar a tecer aquilo que constitui o
social. Tendo minimamente estabelecido a diferença entre esta abordagem e a da
psicanálise, nos detemos naquilo que se concebeu na psicanálise como nosso mito de
constituição do laço social. Em 1912 Freud começou a trabalhar em seu ensaio sobre
“Totem e Tabu”, pelo qual pretendeu construir nosso mito de fundação, fazendo nascer
simultaneamente o sujeito e o social. Neste texto, Freud delimita os operadores
fundamentais para ambas constituições, a saber, o gozo e o desejo advindos da operação de
23
uma Lei simbólica, nomeada como castração. Na seqüência, introduzimos o discurso do
mestre, discurso no qual se funda a condição do sujeito como aquilo que um significante
representa para outro significante. Esta condição é demarcada por uma discursividade que
Lacan reconhece como uma das quatro possíveis para a sustentação do laço social.
Partimos, então, da visada freudiana e avançamos para a lacaniana, que aborda igualmente
a relação do sujeito com o gozo e o desejo, introduzindo, porém, o significante, o objeto a e
o sujeito como os elementos mínimos e fundamentais do laço social.
O capítulo dois propõe um estudo sobre o eu, o sujeito e o campo do Outro. Porém,
ao introduzi-lo tratamos pontualmente da via discursiva diante da qual a psicanálise é
construída como uma resposta à demanda dirigida ao saber médico; atravessamos, portanto,
de passagem, o discurso histérico e o do analista. A relevância de abordar tais discursos
nesta etapa deve-se a um ponto que perseguimos na tese, trata-se de explorar em cada
articulação, o laço social que está em jogo. Assim, damos a ver como cada discurso está
determinado pela posição do sujeito e como ele se articula no laço. Logo, neste capítulo
tratamos de pensar como os conceitos de eu, de sujeito e de Outro encaminham a questão
do público e do privado na transmissão da psicanálise. Apostamos na idéia de que o sujeito
e o Outro fazem os registros do público e do privado se bordearem numa topologia
moebiana, enquanto que o eu tenderia a separar estes registros. Utilizamo-nos do conceito
de narcisismo, trabalhado por Freud no texto homônimo de 1914 para examinar a instância
do eu à luz de nossa tese. Percebemos, também, a necessidade de averiguar o conceito de
fantasia em Freud e Lacan para atingir de modo mais preciso a relação do sujeito com o
mundo externo e com a realidade que é constituída para ele na cena social.
24
No capítulo três enfrentamos a teoria do gozo e do desejo em Lacan para operar
com o que se faz do buraco que faz laço social. O gozo e o desejo são as formas pelas quais
o sujeito pode se haver com o dito buraco. Portanto, gozo e desejo determinam não a
necessidade do laço social, mas, mais ainda, eles determinam o laço que se constitui
segundo os modos de gozo e a posição do sujeito frente à sua condição desejante,
delimitando a ética ou o sintoma em jogo.
O capítulo quatro trata do estatuto da psicanálise, trazendo os argumentos de Freud
em “A Questão da Weltanschaunnge de Lacan em “A Ciência e a Verdade” para abordar
o estatuto que a psicanálise tem e situar de que lugar ela pode tomar partido na questão do
social. Trata, ainda, da transmissão da psicanálise e apresenta as dificuldades que a
psicanálise nos coloca em sua transmissão, ou ainda, as dificuldades que colocamos à
transmissão da psicanálise. Verificamos a diferença que entre difundir e transmitir, e
discutimos a questão levantada por Lacan sobre o fato da psicanálise ser um sintoma social.
Entramos na questão do funcionamento proposto por Lacan para a Escola através dos
dispositivos que ele inventou. Esses dispositivos servem para que a transmissão da
psicanálise, estando incluído seu ensino, possa se dar pelos princípios que delimitam sua
ética, fazendo verdadeiramente da transmissão uma práxis entre intensão e extensão.
Abordando essa questão, sustentamos tanto a indissociabilidade dos dois níveis de
transmissão, quanto a implicação fundamental que um tem no outro.
Na conclusão, por fim, circunscrevemos uma resposta à questão da função pública
da transmissão e da ética da psicanálise, contrapondo-nos à idéia de que a ética concerne a
visada estrita da prática clínica. Justamente por a psicanálise não constituir uma “visão de
mundo”, ela tem nele um lugar que não é nem de fora nem de dentro do mundo, mas é um
25
lugar de borda no qual sua práxis oferece ao sujeito uma certa posição de responsabilização
advinda de uma ética, pela qual se recoloca o saber na direção da verdade sem recobri-la,
franqueando a chance para o sujeito de eventualmente fundar alguma sorte de pacto social
sob um novo estilo de laço.
26
CAPÍTULO 1
DE QUE É FEITO O LAÇO SOCIAL?
Quando a psicanálise que se produzia a partir dos efeitos do ensinamento de Jacques
Lacan começou a intervir no espaço público, o fez autorizada por dar provas de constituir, a
partir de seu ensino, uma ética e de se constituir como um novo discurso. Ao romper com a
idéia de que seu interesse e seu fazer deveriam visar somente à clínica tout court ou às
questões internas a seu próprio campo, a psicanálise surge, então, como uma estrutura nova
de laço social. Não que não fosse esta a visada freudiana. A psicanálise se difundiu no
social inclusive nas artes e na cultura de modo geral. Mas, não tendo tido Freud os meios
nem o tempo necessários, apesar de todos seus esforços, para sedimentar numa prática a
necessidade da psicanálise de se transmitir no social e operar seus efeitos para além de uma
clínica intensiva, ela parece ter sido tomada pelos chamados pós-freudianos (sobretudo pela
psicologia do ego) como uma prática fechada em si mesma e incomunicável, como chega a
dizer Lacan. Neste sentido, a psicanálise tendeu a se limitar a seu lugar de “direito”.
Freud, de fato, mantinha a preocupação de que a psicanálise não se eximisse de sua
responsabilidade social. Em “Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica” de 1919, ele
nos dá esse testemunho:
Os senhores sabem que as nossas atividades terapêuticas não têm um
alcance muito vasto. Somos apenas um pequeno grupo e, mesmo
trabalhando muito, cada um pode dedicar-se, num ano, somente a um
pequeno número de pacientes. Comparada à enorme quantidade da miséria
neurótica que existe no mundo, e que talvez não precisasse existir, a
quantidade que podemos resolver é quase desprezível. (...) Presentemente
nada podemos fazer pelas camadas sociais mais amplas, que sofrem de
neurose de maneira extremamente grave.
27
Vamos presumir que, por meio de algum tipo de organização,
consigamos aumentar os nossos números em medida suficiente para tratar
uma considerável massa
da população. (...) haverá instituições ou clínicas
de pacientes externos, para os quais serão destinados médicos analiticamente
preparados, de modo que homens que de outra forma cederiam à bebida,
mulheres que praticamente sucumbiriam ao seu fardo de privações, crianças
para as quais não existe escolha, a não ser o embrutecimento ou a neurose,
possam tornar-se capazes pela análise, de resistência e de trabalho eficiente.
Tais tratamentos serão gratuitos.Pode ser que passe um longo tempo antes
que o Estado chegue a compreender como são urgentes esses deveres. (...)
Mais cedo ou mais tarde, contudo, chegaremos a isso. (...) No entanto,
qualquer que seja a forma que essa psicoterapia para o povo possa assumir,
quaisquer que sejam os elementos dos quais se componha, seus ingredientes
mais efetivos e mais importantes continuarão a ser, certamente, aqueles
tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa (FREUD, [1919] 1980: 210 e
211).
O texto que Freud escreve na seqüência desse trata da questão do ensino da
psicanálise nas universidades (1919), nele Freud mantém o desejo de ver a psicanálise
assumindo novos campos nos quais ela pudesse ser interveniente. A posição de Freud é a de
que não é a psicanálise que lucra ao assumir uma incidência mais direta no âmbito social, é,
ao contrário, o social que pode se beneficiar com aquilo de que a psicanálise trata. A
questão para Freud não é certamente mercadológica, ela é ética.
Entretanto, antes de tudo, era necessário que a psicanálise estabelecesse seu lugar no
mundo. Em “A questão da análise leiga” diz ele:
Essa questão tem suas limitações tanto no tempo como no espaço. No tempo,
porque até agora
ninguém se preocupou com quem pratica a análise. Na
realidade, as pessoas se têm preocupado pouquíssimo com isto a única
coisa com a qual estavam concordes era o
desejo de que ninguém deveria
praticá-la. (...) Assim, a exigência de que somente médicos devem analisar
corresponde a uma atitude nova e aparentemente mais amistosa em relação à
análise (FREUD, 1926:209
).
Sua referência ao fato de que a preocupação com a citada discussão demonstra uma
maior aceitação em relação à psicanálise não expõe sua posição frente à discussão. Antes
de tudo, revela seu contentamento por terem se interessado pela psicanálise e demonstra a
28
dificuldade de se inscrever a psicanálise no mundo. A discussão do texto que trata de
avaliar se uma análise pode ser conduzida por alguém que não tenha formação médica,
levanta a questão da necessidade que tiveram os pós-freudianos da IPA de mantê-la
circunscrita a um campo um tanto limitado, no qual sua transmissão deveria se restringir às
portas fechadas de uma sociedade analítica. A entrada em uma tal instituição requeria o
cumprimento de um vasto número de regras estabelecidas de modo burocrático que, de
saída, criava um grande constrangimento diante do desejo de se trabalhar na via freudiana,
como se não se contasse com os constrangimentos que a própria exposição ao trabalho
inconsciente produz. A psicanálise, embora estivesse difundida (o que não é o mesmo que
dizer que ela era transmitida), parecia ter como única via de incidência a adesão de um
sujeito a uma análise. Mas o que faz um sujeito procurar uma análise se algo de seu campo
não é ofertado na via de uma transmissão? Pode-se ofertar a psicanálise e mantê-la, ao
mesmo tempo, fora do âmbito público?
8
Viu-se no Brasil, nos anos 70 e 80, um fenômeno de modismo em relação à sua
prática. A psicanálise ganhou força, se estabelecendo como um produto de consumo de
uma elite intelectual. Não obstante, podemos deduzir que ela produziu muitos efeitos.
Entretanto, ela se mantinha periférica à esfera pública no que diz respeito verdadeiramente
à sua transmissão. Desta forma, salvo exceções, os psicanalistas não pareciam dedicados a
intervir no social em nome da psicanálise ou de poder pensá-la como uma nova forma de
laço. Pela maciça difusão da psicanálise (que é, naturalmente, a difusão de idéias
hegemônicas que analistas e leigos têm acerca da psicanálise), constituíram-se verdadeiras
Weltanschauungen psicanalíticas, e sua penetração no Brasil foi muito significativa.
8
A referência que fazemos aqui é ao modelo de formação da IPA, que era difundida como a única formação
oficial em psicanálise.
29
Viscejou aqui, verdadeiramente, uma “cultura psicanalítica”, isto é, um conjunto de
crenças, noções do senso comum, idéias de sujeito valores, largamente influenciados pelos
“ideais analíticos” vigentes, o que, na visão de muitos autores, não deixou de acentuar uma
diluição da descoberta freudiana, inclusive no interior do próprio campo da psicanálise.
(COELHO DOS SANTOS, 1991 e FIGUEIREDO, 1984 e 1997).
Os psicanalistas quando vinham a público, o faziam, sobretudo, no sentido de
interpretar nossa realidade social, ou seja, de privatizar o público, de colocar o social no
divã, como se estivessem os psicanalistas fora dele. A psicanálise, então, preservou-se em
uma esfera privada, restrita a seu próprio campo, como que se resguardando da exposição
pública em sua transmissão.
Tomando como privado aquilo que está restrito a um determinado grupo que se
encerra em si mesmo, podemos considerar que ali se passava uma experiência que estava
privada de uma exposição pública - na qual não se pode medir de que posição se é
escutado. Seria o caso de se pendurar nas portas das sociedades o dizer: “proibida a entrada
de estranhos”. Entretanto, o estranho para a psicanálise, como diz Freud, não é justamente
algo que é secretamente familiar? Algo que “foi submetido à repressão e depois voltou”?
(FREUD, 1919:306) Por que então a transmissão da psicanálise deveria visar a exclusão do
estranho?
Não se defende com isso uma psicanálise ao alcance de todos
9
; não é disto que se
trata. Lacan tentou cuidar, a seu modo, para que as coisas não desembocassem nessa
situação. Ele queria, acima de tudo, sustentar a operação de corte que a psicanálise havia
9
Quando dizemos que não se trata de um “ao alcance de todos” referimo-nos ao fato de que a psicanálise nem
tem como ser unânime, nem está à mão. Ela, por estrutura, não pode abarcar o mundo, ela pode apenas incidir
pontualmente, mesmo que na esfera pública. Por outro lado, a esfera pública também não se confunde com a
massa (de uma população).
30
instaurado; isto é, queria manter, na experiência do sujeito, o tempo em descontinuidade e o
significado na instabilidade pela dimensão significante que a psicanálise revelou. Trata-se,
porém, ao incluir o estranho, de expor um trabalho, inscrevendo-o no domínio público, ou
seja, trata-se de que alguém de dentro do discurso analítico pague o preço, como fez Freud
em seu tempo e Lacan com seu ensino. Trata-se de dirigir-se a um Outro, pois se expor ao
âmbito público e intervir no social marca uma certa relação do sujeito com o Outro.
Quando fazemos referência ao que é o público, isto não significa nem o conjunto de
pessoas de uma população, nem significa uma platéia múltipla; significa, antes, um externo
a nossas muralhas egóicas - muralhas que construímos muitas vezes coletivamente.
Significa lançar-se na exposição significante, na língua que sempre nos vem do Outro. O
social, neste sentido, não marca também a relação entre muitos, mas a relação de sujeito a
um objeto pelos avatares da dimensão significante.
Subir a muralha e estancar qualquer movimento na transmissão da psicanálise não
pode ser a tentativa de manter recalcado o corte que ela introduz no sujeito? Não é preciso
dizer que o eu pode se manter tanto mais forte quanto menos acossado ele for por aquilo
que se mantém sob recalque. A estratégia de manter a psicanálise à parte do social não a
assegura de se eximir de sua própria mensagem vinda do exterior?
Afinal, todos que faziam parte das sociedades reconhecidas pela IPA como
sociedades de psicanálise compartilhavam uma transmissão. No entanto, segundo Lacan,
diferentemente do esforço de Freud, elas tornaram-se um mundo à parte e sabemos que nele
se mantinham justamente para preservar alguma coisa. Diz Lacan:
(...) a pertinência de tal fato que supostamente nos diz respeito, é do exterior
que ele (o aspecto extraordinário no qual se mantêm os analistas) nos é
passado, e com a ressalva da estranheza de nossos hábitos mentais. (...)
Como não haveríamos de ficar satisfeitos com esse efeito de segregação
31
intelectual como fruto da distância que mantemos pela incomunicabilidade
de nossa experiência
? (LACAN, 1956:462).
Em sua crítica reiterada à posição adotada pelos psicanalistas de sua época e às
regras da IPA, Lacan nos faz pensar que, ao se arrumarem numa estrutura fechada na qual
algumas garantias estão pré-estabelecidas, os analistas se remetem uns aos outros criando
entraves à circulação significante na própria circulação da palavra. A resistência que se
encontra em deixar o significante operar diz respeito ao fato de que sua trilha se determina
em ato não podendo ser previamente calculada.
10
Sendo assim, os lugares não se
estabelecem por decreto, não basta o cumprimento do roteiro para se chegar à posição
almejada.
O caráter de intransmissibilidade que opera numa sociedade assim constituída é
regido não por um real em jogo, mas sim pela exacerbação de um incompartilhável no
pensamento corrente, levando cada um a prosseguir com suas próprias premissas, com seus
próprios argumentos, sem expô-los, de fato, a uma instância Outra, no que ela se mantém
como alteridade e não como mestria. Diz Lacan,
(...) entre os analistas, (...) não existe talvez um único que tenha, no fundo, a
mesma idéia que qualquer outro dos seus contemporâneos ou vizinhos a
respeito daquilo que se faz, daquilo que se visa, daquilo que se obtém,
daquilo de que se trata na análise.”(LACAN, 1953-1954:19
)
Deste modo, o “incompartilhável” em jogo não se revela pelo real da
impossibilidade da plena comunicação entre os homens. O que toma lugar no mal-
entendido da língua é uma língua particular. Isso se passa de tal forma como se fosse
10
Não entraremos na discussão de onde levou cada via tomada na psicanálise pelos pós-freudianos; limitamo-
nos a acompanhar a crítica de Lacan a seus colegas da época e, com isso, responder ao fato da psicanálise ter
sido tomada
sobretudo como uma terapêutica, tendo sido, neste sentido, abandonada em sua dimensão ética, dimensão
que inaugura um novo lugar para o sujeito.
32
possível resguardá-la do Outro, como se ela pudesse nascer de um interior a si, fora de
qualquer exterioridade.
Carregando um pouco nas tintas, rascunhamos o quadro da situação da psicanálise
nos anos 50 e 60, tentando transmitir o caráter privado que a psicanálise pós-freudiana
ganhou, autorizada possivelmente por ter alcançado os propósitos que almejava. Ao dar, na
leitura freudiana, ênfase a uma finalidade terapêutica da psicanálise onde se deve “restaurar
o eu, livrá-lo de suas restrições, e dar-lhe de volta o domínio sobre o eu que ele perdeu
devido às suas primeiras repressões” (FREUD, 1926:233), ela tendeu a se transmitir na
mesma via egóica: a que tem como finalidade no tratamento o fortalecimento do eu, o que
acaba por instaurar uma paranoização coletiva.
Freud, em “O Mal-estar na civilização”, reconhece que o mecanismo paranóico
opera, em certa medida, em todos nós sempre quando tentamos nos desviar daquilo que
causa sofrimento:
Um outro processo (para evitar o sofrimento) opera de modo mais energético
e completo. Considera a realidade como a única inimiga e a fonte de todo
sofrimento, com a qual é impossível viver, de maneira que, se quisermos ser
de algum modo felizes, temos de romper todas as relações com ela. O
eremita rejeita o mundo e não quer saber de tratar com ele. Pode-se, porém,
fazer mais do que isso; pode-se tentar recriar o mundo, em seu lugar
construir um outro mundo, no qual os seus aspectos mais insuportáveis
sejam eliminados e substituídos por outros mais adequados a nossos próprios
desejos. (...) Afirma-se, contudo, que cada um de nós se comporta, sob
determinado aspecto, como um paranóico, corrige algum aspecto do mundo
que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio
na realidade. Concede-se especial importância ao caso em que a tentativa de
obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através
de um remodelamento delirante da realidade, é efetuada em comum por um
considerável número de pessoas. As religiões da humanidade devem ser
classificadas entre os delírios de massa desse tipo. É desnecessário dizer que
todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como tal (FREUD,
1930-1931:100).
33
A psicanálise, para não se ofertar como uma visão de mundo ou como um sistema
religioso, deve sustentar, pelo trabalho do sujeito, sua impossibilidade em ser possuída.
Deve manter-se como um campo que se perde.
11
Como diz Freud, é a psicanálise que nos
possui, não o inverso. Portanto, se não se volta a cada vez a seus fundamentos, a seus
conceitos e à lâmina de sua navalha, opera-se com ela sem lhe dar o mínimo de crédito,
uma vez que as tendências nas quais o eu se sustenta são sempre o avesso da ética que ela
propõe.
A finalidade do eu é sempre a de se fortalecer e de poder escapar, em alguma
medida, da posição escravizante em que se encontra frente aos seus três senhores: o isso, o
supereu e o mundo externo. Pois se é esta a condição do eu, resta saber se ele deve ser
fortalecido para melhor “combater” a realidade externa (que, em última instância, sabemos
que é sua própria realidade fantasmática), para melhor “combater” o isso como sede
pulsional (que sabemos que é o que não cessa de não se inscrever, constituindo uma
exigência de satisfação que jamais poderá ser cumprida pelo sujeito) e para melhor
“combater” o supereu (que diz ao sujeito: “goze!” e que, no entanto, sabemos que tão mais
tente ele se livrar desse mandamento pela via do combate, mas ele se encontra submetido a
ele, isto é, se torna para ele um gozo a mais a tarefa de não gozar, mandamento igualmente
escravizante: “goze de não gozar!”).
12
Existirá, então, eu mais forte, mais combatente? Ou
não será essa uma estratégia que, por si só, conduz o sujeito a uma paranoização: o eu
identificado ao que é bom e o que lhe é externo identificado ao que é mau? Voltaremos a
esta questão adiante.
11
Esta expressão é de Lacan, cunhada em “O Seminário, Livro 11”.
12
Cf. Freud, S., “O Ego e o Id” em Obras Completas, vol. XIX, 1923.
34
Dito isto, devemos preservar a idéia de que a direção que se imprime ao tratamento
não está apartada de seus efeitos e de sua própria forma de inserção no mundo, nem de seu
modo de transmissão. Ou seja, o privilégio dado pela escola inglesa ao fortalecimento do eu
na direção do tratamento indica o caminho, os efeitos de sua transmissão e de sua posição
frente ao social. Contudo, se o fortalecimento do eu pode desembocar numa paranoização e
na constituição de uma nova realidade, não podemos dizer que os pós-freudianos tenham
alcançado isto. Pelo contrário, ao que tudo indica, eles se eximiram de imprimir, pela
transmissão da psicanálise em ato, um buraco, um real ou um deslocamento na realidade
vigente. A realidade foi preservada tal como a contemplamos, reproduzindo as estratégias
egóicas de defesa frente ao real do inconsciente. Quando não se chega ao extremo do
delírio, a estratégia do eu não é a de constituir uma nova realidade - até mesmo porque
nossa realidade é sempre constituída pela fantasia e é sempre, em alguma medida, delirante
– mas a de manter a realidade vigente intacta. Deste modo, diante da ferida narcísica aberta
por Freud pela descoberta de que o eu (...) nem sequer é amo em sua própria casa”
(FREUD, [1916-17] 1980:336) -, a psicanálise, dedicada ao fortalecimento egóico, pôs-se a
suturá-la com os instrumentos usuais.
Fazer esta crítica depois de Lacan é certamente simples, mas devemos voltar a ela
para não perder o tênue fio sobre o qual a psicanálise deve se manter para não criar, ela
própria, seu antídoto. Contra a peste estamos sempre em alerta, com as vacinas em punho.
Não responder ao corte instaurado pela psicanálise na via da paranoização, eis o desafio
tomado por Lacan.
Neste sentido, ele a pensou como um novo laço social, como um discurso que,
enquanto tal, não pode ser reduzido ao dispositivo clínico nos quais se preserva a dupla
35
analista-paciente até o fim, do qual o paciente sairia mais senhor de seus atos e, portanto,
supostamente menos neurótico.
Tendo-se em vista que a psicanálise não se reduz a uma especialidade clínica e
levando-se em conta que sua invenção e sua prática tiveram importantes conseqüências no
laço social, pode-se supor que ela não poderia dele se omitir. No entanto, a despeito do que
demonstramos acima, seu avanço na vida social foi tomado, de certo modo, como uma
sociologização da psicanálise, isto é, como uma degradação de sua especificidade.
Na verdade, a psicanálise pensa o social a partir de uma outra estrutura que o
articula como laço discursivo e pensa o sujeito como efeito dessa articulação significante.
Ela não corrobora, portanto, com a relação instituída pela sociologia entre indivíduo e
sociedade. Torna-se importante a esta altura cotejar essas duas teorias embora de modo
um tanto superficial na esperança de que, ao se demarcarem as diferenças entre elas,
destaquem-se, de modo mais evidente, os conceitos de ambas, revelando-lhes as diferenças.
1.1 Indivíduo e Sociedade
Os últimos anos do século XIX e as primeiras décadas do século XX traduzem o
momento de transformações sócio-culturais e científicas que se impõem de forma
contundente ao mundo ocidental, sobretudo o europeu. Novas questões estão postas,
exigindo novas abordagens, com novas interpretações. Entre tantas, uma dessas questões
refere-se à relação entre a vida social e o indivíduo; outra trata do sujeito na sua dimensão
inconsciente.
36
Nas artes a ruptura é radical com a desagregação das formas e do som e o
irracionalismo/surrealismo nas letras (o cubismo de Picasso; a música atonal de
Schoenberg; a prosa e os personagens desconcertantes de Kafka, por exemplo).
Segundo os críticos dessas transformações, a racionalização e a secularização
crescentes, a aceleração do tempo e o ritmo das máquinas sobrepondo o dos homens, a
otimização dos meios sobre os fins, o controle da Burocracia sobre os indivíduos, a lógica
impessoal do sistema, a coesão funcional, todos são elementos problemáticos dessa
modernidade, na qual o homem sofre a perda de balizas estáveis (o apóio da tradição e o
amparo inquestionável, até então, da religião).
Este quadro é instigante e demanda uma análise que utilize uma nova forma de
aproximação. Surge a Sociologia, entendida como ciência por seus fundadores, e distinta da
Filosofia e da História, que até aquele momento se ocupavam da interpretação da realidade
e do papel do homem em seu mundo.
Voltemo-nos, portanto, à sociologia - campo muito amplo e diverso e sobre a qual
quaisquer generalizações são questionáveis -, para os fins aos quais nos propusemos. No
centro das suas discussões podemos destacar, desde o final do século XIX até nossos dias, a
polaridade entre indivíduo e sociedade. A descrição e a análise - quer sincrônica, quer
diacrônica desses dois pólos e a relação que se estabelece entre eles em formações
modernas, tradicionais ou ditas primitivas, constitui seu mais importante objeto de estudo.
Os temas indivíduo/pessoa/sujeito e o social são o fulcro de um campo que se torna a
matriz de todas as ramificações abordadas por essas análises sociológicas e antropológicas
(instituições, normas, conduta, religião, costumes, práticas culturais e econômicas -, e
assim por diante).
37
Vê-se que o conceito de “sociedade” ocupa uma posição focal no discurso
sociológico. Obviamente, este conceito denota uma certa ambigüidade, referindo-se tanto à
“associação social” de um modo genérico (uma coletividade) quanto a um sistema
específico de relações sociais. O que nos interessa aqui é a segunda noção deste conceito:
aquela que designa um sistema fechado que recobre todas as esferas das práticas e das
representações de seus membros, incluindo as culturais, as econômicas, as religiosas, as
jurídicas e outras que compõem a vida social.
Quanto à questão do homem, tanto as análises sociológicas quanto as antropológicas
tratam da sua condição como sendo a de um ser social, pertencendo a uma determinada
sociedade face a todas suas instâncias mas, ao mesmo tempo, também como
indivíduo/pessoa/sujeito, cujos interesses e desejos muitas vezes se encontram em conflito
ou em tensão com os valores e as imposições dessa mesma sociedade. Perpassando-se por
essas análises, constata-se, entretanto, que não uma dicotomia insuperável entre esses
pólos; o que se verifica é a ênfase diferenciada dada a cada um desses elementos ou o tipo
de relação que se estabelece entre eles, segundo diferentes interpretações que destacam que,
ao mesmo tempo em que o indivíduo encontra limites e constrangimentos dentro do espaço
social, é neste e através deste que ele alcança sua possibilidade de existência. Ao mesmo
tempo, segundo a maioria das interpretações, é ele, o indivíduo, que cria e recria esse
espaço de convivência com permanências e transformações. Tomemos alguns poucos
autores para elucidar a questão.
Diríamos que é oportuno começarmos por Émile Durkheim, cuja análise centra-se
na primazia da sociedade, considerada como uma totalidade a ser mantida coesa e
ordenada, para sua sobrevivência (o que, para o autor, implica conseqüentemente na
segurança e preservação de se seus membros). Por tratar os fatos sociais como “coisas”
38
como fenômenos exteriores à consciência individual, sendo coercitivos e gerais, jamais se
confundindo com os fenômenos orgânicos nem com os psíquicos ele define a sociedade
como uma realidade sui generis, distinta de um somatório de indivíduos (DURKHEIM,
1972:1-4; 8-11).
O indivíduo encontra-se situado num espaço que lhe impõe, através da educação,
das leis, das normas e costumes, como agir, pensar e sentir. Todos estes elementos lhe
chegam de fora prontos e lhe antecedem, estando fora de sua consciência individual. Assim,
para Durkheim, as normas, as regras e as instituições formam o substrato da sociedade e da
consciência coletiva dado seu caráter a priori e duradouro, ou seja, antecedendo e
ultrapassando o das vidas individuais. A coesão das instituições e o caráter integrativo da
família, da religião (como forma de representações ou concepções coletivas do mundo) e,
sobretudo, da moral garantem a manutenção da sociedade em detrimento da autonomia do
indivíduo. Assim, a sociedade se apresenta como um complexo integrado de fatos sociais,
onde o indivíduo, o homo duplex, segundo Durkheim, por sua dupla existência enquanto
indivíduo (ser empírico) e ser social (ser moral), participa da solidariedade social para
garantir a ordem - o que faz em seu próprio benefício - evitando o afrouxamento das
normas sociais que conduzem ao estado de anomia, ou seja, de desintegração da
sociedade(idem). Para Durkheim, a questão da moral se apresenta como sendo de suma
importância por estar também vinculada à educação, forma precípua de socialização dos
homens e de internalização da consciência coletiva; desta forma, estaria forjado o laço
social, uma espécie de realização de uma unidade mais funda, de uma comunhão cuja base
estaria assentada sobre a moral (cujo progresso, desejava ele, deveria se equiparar ao
progresso científico, tornado-a, dessa forma, um setor da ciência sobre as condições das
sociedades humanas) (DURKHEIM, 1984:11). É clara, sua vinculação também da moral
39
com a autoridade ao dizer que: “A moral não é, pois, apenas um sistema de hábitos, é um
sistema de comandos(op. cit:32).
Apesar de certos impasses teóricos impostos por suas formulações que fixavam
rigidamente conceitos tais como os de indivíduo e sociedade e os de sagrado e profano em
pares de oposição e pela reificação de seu conceito de sociedade, colocando-a suspensa,
pairando acima da vida social, como que uma força transcendental, a obra de Durkheim é
reconhecidamente de grande importância para o estabelecimento de um novo estatuto para
a sociologia. Até então, esta área de estudos chegava a ser confundida com uma forma
científica de socialismo. Suas investigações e o desenvolvimento de sua refinada
metodologia (com recurso à estatística, por exemplo, no seu trabalho sobre o suicídio)
definem o novo campo para a sociologia, que agora está demarcado por suas
especificidades.
Em Marcel Mauss, a relação entre o social e o indivíduo ganha novos contornos.
Para alcançarmos o valor dos elementos na teoria que ele constrói, é esclarecedora a idéia
de que, para este teórico, o social é real quando o fato social está integrado como um
sistema eficaz de símbolos ou como uma rede de valores simbólicos, que irá se inserir na
dimensão mais profunda do ser pela intermediação da educação das necessidades, das
atividades corporais da conduta. A esta altura, vale ser destacado o recorte novo que ele
introduz nas mediações que agem sobre o indivíduo ao incluir entre estas as técnicas do
corpo através das quais cada sociedade impõe um uso rigorosamente determinado do corpo
para seus membros, demonstrando como o corpo é uma construção social (LÉVI-
STRAUSS, 1998:XII-XII). Com todas essas instâncias da vida social, ele traça seu famoso
conceito de fato social total (MAUSS, vol II, 1969:41) síntese de múltiplas determinações e
sistema eficaz de símbolos (MAUSS, 1978:20).
40
Apesar de também considerar que um a priori, este não é o social enquanto
forma, como em Durkheim, mas é um a priori enquanto princípio: o da reciprocidade (op.
cit.:22). Com isso ele supera a problemática da anterioridade da morfologia e das
representações que advinham dessa morfologia (dentro da concepção de Durkheim, o que
nos leva indagar de onde, na realidade, viriam?). Também não coloca uma antinomia entre
os dois pólos do arcabouço social, bem como também não trata mais do simples absoluto,
nem da pura soma, mas em toda parte, totalidades ou conjuntos articulados mais ou menos
ricos. Para conceber o social como sistemas de relações simbólicas, Mauss consegue
encontrar o meio de respeitar a realidade do indivíduo, a do social (mantendo a noção de
totalidade) e a variedade de culturas sem torná-las impermeáveis uma à outra. Nesse
sentido, ele levanta a questão da possível incomunicabilidade entre o etnólogo e o nativo.
Mas afirma que a apreensão subjetiva do etnólogo e a do nativo, onde aparentemente não
haveria nenhum ponto comum, pode ser resolvida sobre um mesmo terreno onde o
subjetivo e o objetivo se encontram, isto é, no inconsciente. Lévi-Strauss diz, na
“Introdução” à obra de Mauss, Sociologia e Antropologia, que, desta forma, o inconsciente
seria “o termo mediador entre o eu e o outro” (MAUSS, 1974:19).
A antinomia que, nos trabalhos de Durkheim, aprisiona a relação entre o indivíduo e
o social, cede lugar em Mauss, à noção de que a regulação que circunscreve os indivíduos
não o suprime; no espaço social encontram-se relações de intersubjetividades que se
expressam e se enfrentam por meio de conjuntos sociais articulados, na base dos quais
operam simultaneamente as dimensões sociológica, histórica e fisio-psicológica. Para o
autor, a vida social é definida como um mundo de relações simbólicas. Sua preocupação
com a dimensão fisio-psicológica na experiência humana faz com que ele uma nova
orientação às considerações de cunho sócio-antropológicos ao fazer uma aproximação entre
41
a etnologia e a psicanálise (ato de coragem para um homem que tem uma formação
cunhada pelo neo-kantismo da época), embora não deixe de demarcar a distinção entre a
sociologia e a psicologia:
nas consciências representações coletivas que são distintas de
representações individuais. (...) Não somente as representações coletivas são
feitas de outros elementos diferentes das representações individuais, mas
ainda têm na verdade um outro objeto. O que elas exprimem, com efeito, é o
próprio estado da sociedade (MAUSS, 1969:160-161).
O caráter inovador de seus ensinamentos ensinamentos estes de quem hoje pode
ser reconhecido como criador da antropologia social, apesar de não ter feito pesquisa de
campo, salvo uma breve visita ao Marrocos – já se encontra presente em sua aula inaugural
do curso “História das Religiões de Povos Não-Civilizados” (1902, École Pratique des
Hautes Études), quando afirma que o título da conferência apresenta equívocos: “(...) não
existem povos não-civilizados. Existem apenas povos de civilizações diferentes. A hipótese
do homem ‘natural’ está definitivamente abandonada (op. cit.:229-230)”. Mais adiante ele
irá descobrir estados psíquicos desaparecidos que se remetem à infância, chamando atenção
para a importância, por exemplo, do momento do desmame do bebê e das formas como a
criança é tratada. Novamente aqui aponta para a aproximação entre a etnologia e a
psicanálise, constatando, àquela altura, a necessidade de uma articulação estreita entre a
psicologia e a sociologia (na verdade, a etnologia, mas se refere à sociologia porque ainda
se considera um sociólogo). Ele diz que na magia, como na religião e na lingüística, são as
idéias inconscientes que agem. O inconsciente seria, portanto, o termo mediador entre o eu
e o outro. Desta forma, ele acrescenta, num certo sentido, mais um termo na relação entre o
individual (ser empírico e social) e a sociedade. E quanto à dimensão simbólica, para
Mauss não se trata de traduzir em símbolos um dado extrínseco, mas de reduzir à sua
42
natureza de sistema simbólico as coisas que escapam dali para se tornarem incomunicáveis.
Como o social, vê na linguagem uma realidade autônoma.
Georg Simmel também a interrelação dos indivíduos como fundamental para a
existência da sociedade, com ênfase no princípio da individualidade (Simmel, 2002:20). Ele
considera que processos que, realizando-se definitivamente nos indivíduos, “(...)
condicionam a ‘sociabilidade’, não como causas antecedentes no tempo, senão como
processos inerentes à síntese que, resumindo, chamamos de sociedade (op.cit.:80)”, diz ele.
Quanto à individualidade, ele a vê formada por elementos isolados que só se
encontram sintetizados na unidade da sociedade, através de um processo consciente que faz
a correlação da existência individual do elemento isolado com a de outro, segundo certas
formas e de acordo com certas normas (Simmel, 1959; 6-22). Para ele, a conexão social
ocorre imediatamente dentro dos indivíduos. Isto não significa que cada membro de uma
sociedade tenha consciência de tal noção abstrata de unidade. As relações se realizam
imediatamente, de fato, ‘nas coisas’, que são para ele, neste caso, as almas individuais. Isto
também significa que o indivíduo é absorvido por inúmeras relações específicas e pelo
sentimento e percepção de que ele determina seus pares e de que é determinado por eles.
Vemos, portanto, que ele não se atém na questão das instituições nem das normas sociais
dentro de uma sociedade, como formas de regulação, privilegiando as interrelações para
este papel.
Simmel avança em sua análise afirmando que somos todos fragmentos, não somente
do homem em geral, mas também de nós mesmos. Somos esboços não somente de tipos de
homens, mas também da individualidade e singularidade de nós mesmos. O outro só nos vê
como fragmentos justapostos, mas, por outro lado, também somos pensados em termos de
43
uma categoria geral. Dentro de uma sociedade uma condição a priori de interações
adicionais, onde todos são vistos não apenas empiricamente, mas através de um princípio
compartilhado que o grupo impõe a seus participantes, presumindo estar tornando-os
membros daquele grupo. Assim, os indivíduos se vêem através de um véu que não
simplesmente esconde a peculiaridade da pessoa; ele lhe confere uma nova forma (ele
trabalha com as noções de forma e conteúdo, focalizando seus estudos sobretudo nas
formas sociais
13
).
A pura individualidade e a natureza do grupo se fundem em um novo fenômeno: o
da sociabilidade. Portanto, Simmel considera a sociedade como uma rede de fenômenos
qualitativamente diferenciados, oferecendo posições variadas, mas onde, apesar das
discrepâncias, a vida social existe se todos seus elementos se encontrarem
interrelacionados, de tal modo que cada um deles, em sua própria individualidade, dependa
dos outros e vice-versa. Sua suposição é de que a individualidade encontra seu lugar na
estrutura da generalidade e, apesar do caráter imprevisível da individualidade, o indivíduo
encontrará sua função.
Este autor considera as questões da regulação da vida social através de normas e
restrições como meramente secundárias. Para ele, sendo essa regulação efeito da interação
social, sua ênfase recai sobre a interação dentro de uma rede de grupos sociais e sobre a
necessidade de ‘cultivo’ (noção cara em sua reflexão) por parte dos indivíduos. Estes
tendem a buscar o desenvolvimento de suas potencialidades e é somente dentro desse
espaço interativo que os indivíduos podem desenvolvê-las. Este processo se através da
13
Os conteúdos são vistos como os aspectos da existência que não contêm nenhuma estrutura nem possibilidade de serem
apreendidos por nós em sua imediatidade, enquanto que as formas são os princípios sintetizadores que moldam os
conteúdos. (op. cit., 2002, p. 18); o andaime conceitual da sociologia de Simmel consiste em 4 níveis de formas: 1)
formas de interação social elementar; 2) estruturas institucionalizadas; 3) formas “lúdicas” autônomas; e 4) a forma
genérica da própria sociedade (op. cit., p. 31).
44
cultura objetiva, que cresce de acordo com sua própria lógica imanente e que conta, por sua
vez, com a contribuição de um sem número de participantes, ao longo de muitas gerações
(idem). Trata-se da reciprocidade, tanto de influências quanto de interesses, de fins ou
motivações que impulsionam os indivíduos para a ação e não da primazia de um dos
elementos do binômio, como acontece em Durkheim.
Agora nos voltamos para a teoria sociológica de Max Weber, contrastando-a
imediatamente com a de Durkheim, no que se refere à noção de sociedade. Para Weber, a
sociedade não seria algo exterior e superior aos indivíduos, podendo ser compreendida. a
partir do conjunto das ações individuais reciprocamente referidas. Por isso, Weber define
como objeto da sociologia a ação social.
Em primeiro lugar, devemos comentar a metodologia weberiana, ressaltando que
ela se propõe a ser um forte antídoto contra as tendências holistas de impor conceitos
coletivos na análise dos fenômenos sociais, históricos e políticos. O individualismo
metodológico weberiano e a noção de tipo ideal
14
servem antes de tudo ao projeto de
fundação de uma ciência empírica da realidade. Nesta tentativa da construção de uma
ciência empírica da realidade contra o “preconceito naturalista” de que os economistas e
outros cientistas sociais deveriam procurar leis gerais do tipo daquelas encontradas nas
ciências naturais, este teórico, tomando um conceito histórico, referido em seu conteúdo a
um fenômeno significativo por sua individualidade, afirma que ele deveria ser
gradualmente estruturado a partir das partes individuais tomadas à realidade histórica que o
14
Weber trabalha com um instrumento teórico chamado “tipo ideal”. O tipo ideal é um conceito sociológico construído e
testado previamente, antes de ser aplicado às diferentes situações onde se acredita que ele tenha ocorrido. É um modelo
teórico fabricado a partir de fenômenos isolados ou da ligação entre eles, e que é testado, em seguida, empiricamente. Ver
reproduzido de Weber “Die ‘Objektivität’ Sozialwissenschafticher und politischer Erkenntniss” (“A objetividade do
conhecimento nas Ciências Sociais)” In:
Gessammelte Aufsätze zur Wissenschaftlehere, 1973, apud Cohn, G. (org.) e
Fernandes, F. (org.),
Weber, Ed. Ática, São Paulo, 1982, p. 105.
45
instituiu. Em outras palavras: a sociologia também não pode ser praticada senão partindo da
ação do indivíduo, ou dos indivíduos, qualquer que seja seu número, portanto, de modo
estritamente individualista em seu método.
Assim sendo, para Max Weber o indivíduo é sujeito e, portanto, criador e construtor
de seu próprio destino. Portanto, o social não é tido como fenômeno objetivo. A
subjetividade é pensada como inerente ao próprio fenômeno, uma vez que este deriva da
subjetividade dos atores sociais que, ao interagirem, produzem-no. Cada ação individual
importante e, em última análise, a vida em sua totalidade consistiria em uma cadeia de
decisões últimas pelas quais os indivíduos escolheriam seu próprio destino - isto é, o
sentido de seu agir e de seu ser. A sociologia weberiana não é apenas individualista, mas
também racionalista: o agir somente é real e efetivamente significativo quando pleno e
consciente. O indivíduo weberiano é provido de um certo número de atributos -
especialmente de combinar meios e fins e avaliar as eventualidades que se lhe apresentam,
vendo-se que a ação deve ser compreendida pelo sentido que lhe atribuem os agentes; o
sentido da ação deve ser buscado na intersubjetividade dos agentes, isto é, uma ação só tem
sentido se levar em conta a resposta previsível de outros parceiros. A ação social pode ser
orientada para o comportamento de outra pessoa, de vários indivíduos, ou para a conduta de
uma pluralidade indefinida que pode incluir vastas populações, ou grupos organizados. O
“racionalismo” sociológico de Weber consiste simplesmente em supor que o sentido de
nossas ações seja determinado em relação a nossas intenções e em relação a nossas
expectativas, referentes às intenções e às expectativas dos outros.
No horizonte em que Weber situava seu próprio trabalho, o conceito de
“objetividade científica” seria igualmente compreendido por ele como conceito histórico,
46
um dos produtos desta racionalização (WEBER, 1982:201) que Weber descobriu na
formação da modernidade ocidental. A crescente intelectualização e racionalização não
indicariam, portanto, um conhecimento maior e geral das condições sob as quais vivemos.
Significaria alguma coisa a mais, ou seja, o conhecimento ou a crença de que, se
quiséssemos, poderíamos ter esse conhecimento a qualquer momento. Significaria
principalmente, como escreveu Weber, que não haveria forças misteriosas incalculáveis,
mas que poderíamos, em princípio, dominar todas as coisas pelo cálculo. Isto significaria
que o mundo fora desencantado (op. cit.:165).
Assim, Weber dirá que toda vez que se estabelecer uma relação significativa, isto é,
com algum tipo de sentido, entre várias ações sociais, teremos então relações sociais.
existe ação social quando o indivíduo tenta estabelecer algum tipo de comunicação, a partir
de suas ações, com os demais. Weber afirma que podemos pensar em diferentes tipos de
ação social, agrupando-as de acordo com o modo pelo qual os indivíduos orientam suas
ações.
Quanto à questão de “sentido”, Weber o entendia como sentido intencional e
subjetivo dos sujeitos da ação. De modo algum se trata de um sentido “objetivamente justo”
ou de um sentido “verdadeiro” ou ainda “justo” e “válido”. Weber afirma, por exemplo,
que uma economia socialista também teria que ser compreendida pela ação dos indivíduos -
os tipos de “funcionários” que nela existissem -, ou seja, com igual caráter “individualista”
que caracteriza a compreensão dos fenômenos de troca com ajuda do método da utilidade
marginal. Porque também neste caso, enfatiza Weber, a investigação empírico-sociológica
começa com esta pergunta: que motivos determinaram e determinam aos funcionários e
membros dessa comunidade a conduzi-la de tal modo que ela pôde surgir e subsistir?
47
Portanto, a unidade elementar da vida social é a ação humana individual. Explicar
instituições sociais e mudança social é mostrar como elas surgem como resultado da ação e
interação de indivíduos. Entretanto, ele não escapou de defrontar-se com a tensão entre
liberdade e determinismo ou, em outras palavras, a tensão entre estrutura social e ação
humana que perpassa a análise da ação política historicamente determinada. A sociedade
ocidental àquela época enfrentava os efeitos da contínua racionalização dos meios
utilizados pelos indivíduos em suas interações o que, além de provocar o desencantamento
do mundo - nas palavras do sociólogo -, dava surgimento ao crescente processo de
burocratização, tema caro a Weber. Por um lado, apresenta-nos implicitamente uma alusão
às ações individuais dos homens e, por outro, às instituições nas quais eles agem e que
foram realizações ou resultados também de ações humanas. Isto se explicita mais ainda
quando se expõe o conceito weberiano de Estado:
(...) o Estado é uma relação de homens dominando homens, relação mantida
por meio da violência legítima (isto é, considerada como legítima). Para que
o Estado exista, os dominados devem obedecer à autoridade alegada pelos
detentores do poder. Quando e por que os homens obedecem? Sobre que
justificação íntima e sobre que meios exteriores repousa esse domínio?(op.
cit.:98-99)
A mesma referência se coloca quanto aos aspectos individuais da ação e aos seus
resultados sociais encontramos no seguinte trecho: “Todas as lutas partidárias são lutas para
o controle de cargos, bem como lutas para metas objetivas” (op. cit:107). Ou, ainda, na
definição do político profissional no contexto institucional de uma democracia parlamentar:
“(...) políticos profissionais que lutam pelo poder através de campanhas partidárias
‘pacíficas’, no mercado dos votos” (op. cit.:120). Importante também é ressaltar que Weber
percebeu o caráter “emergente” dos fatos sociais e estabeleceu uma distinção muito clara
entre as intenções e as motivações dos atores. Pois, é preciso entender que a lição central da
48
análise estratégica é que a busca de objetivos individuais freqüentemente leva a resultados
coletivamente indesejáveis. Esta constatação estava clara para Weber quando ele escrevia
que o resultado final da ação política, tema estudado por ele especialmente em Política
Como Vocação (op.cit:97-153), apresentava paradoxos éticos.
Como entende Weber, a sociologia é uma disciplina interpretativa. Mas essa
interpretação não é, como se diria atualmente, uma “decifração” ou uma hermenêutica. Ela
não se propõe liberar o imaginário, fazer aflorar o “vivido” social “aprisionado” em moldes
e convenções. Assim como a “compreensão” não deve ser confundida com uma
hermenêutica do inconsciente social, a “subjetividade” de que fala Weber não deve ser
considerada a essência singular de um indivíduo. O método weberiano tem ambição
analítica e generalizante. Não é o indivíduo singular que ele visa, é o agente submetido às
condições de sua situação em que, por certo, as intenções dos outros têm grande
importância.
Como mencionamos, é interessante observarmos como na literatura a inquietação
sobre a natureza da nova sociabilidade também se faz presente. Na obra literária de Kafka
(Metamorfose e O processo, entre outros), para citar apenas um exemplo (talvez por ser o
mais radical de sua época), encontramos um evidente paralelismo temático entre seus
escritos e as preocupações da teoria sociológica de Weber, por exemplo. Ambos nos
descrevem a mudança que se passa em seu tempo e se colocam entre os críticos de seus
efeitos, contra aqueles que se filiam a favor das mudanças, acreditando na idéia de
progresso e na visão otimista do futuro. Para estes autores, o ethos dessa nova sociabilidade
indica o rompimento com valores da tradição e da transcendência, com a ênfase dos meios
sobre os fins, desembocando numa visão utilitarista e imediatista da vida. Kafka nos diz:
49
Não sou um esquimó, mas vivo, como a maioria das pessoas, em um mundo
glacial.(JANOUCH, 1968:43).
Não pecado, não nostalgia de Deus. Tudo é inteiramente terreno e
pragmático. (...) Todos os conflitos transcendentais aparentemente
desapareceram. (...) Não acontece nada. O mundo está em ordem. Somos
apenas tão rigidamente imóveis quanto a imagem de madeira em sua igreja.
Mas sem altar (op.cit.:61).
A discussão em pauta continua ainda hoje, abordando a questão por outra entrada.
Antonio Negri, filósofo e cientista político italiano, com a colaboração de Michael Hardt,
debate o processo de globalização e sua dinâmica, em seu livro 5 Lições sobre o Império.
Na “Lição 3”, ele trata da questão da multidão e da subjetividade. Trata-se da definição de
subjetividade política como conceito de subjetividade tout court – e novamente como
produto de um conjunto de relações. Aqui também, na definição de sujeito, a
autoconsciência é secundária em relação à multidão (termo muito específico dentro do
contexto da discussão desenvolvida no livro, mas que talvez pudesse ser colocada como o
outro pólo do binômio anteriormente apresentado, substituindo o termo sociedade). “As
singularidades mantêm certamente sua força própria, mas a mantêm dentro de uma
dinâmica relacional, que permite construir, ao mesmo tempo, a si mesmas e ao todo”
(Negri, 2003:143-144). Mais uma vez, o sujeito aparece em interrelação com o conjunto;
fora disso ele não subsiste. O autor comenta o conceito de “sujeito social” apresentado e
desenvolvido por Marx, nos Grundrisse
15
, quando este diz que o sujeito social é um sujeito
complexo que se constitui na cooperação. Por outro lado, Negri define multidão como
conjunto, como multiplicidade de singularidades, com capacidade de desenvolvimento
autônomo.
15
Dentre os manuscritos "econômicos" de Marx, publicados postumamente, o mais famoso é certamente aquele de 1857-
1858, que os editores - com base numa indicação do próprio Marx - intitularam
Grundrisse der Kritik der politischen
Ökonomie
, ou seja, Elementos fundamentais para a crítica da economia política, conhecidos simplesmente como
Grundrisse.
50
Finalmente, verificamos que, para as ciências sociais, tensão entre os termos do
binômio indivíduo/sociedade, o que não elimina o vínculo indissolúvel entre seus pólos. A
questão da interrelação entre esses dois elementos está sempre presente, até em Durkheim,
mesmo quando coloca sua ênfase sobre a sociedade. A indagação que se percebe nessas
análises é: em que medida liberdade para o indivíduo agir, em que medida ele age
seguindo determinações da coletividade (como é o caso do feiticeiro, analisado por Marcel
Mauss, cujo desempenho é conseqüência de uma imposição coletiva e cuja autoridade lhe é
investida pela sociedade, estabelecendo uma convenção social para a magia)? Para as
abordagens que sumariamente apresentamos, a revelação de que o indivíduo e a
sociedade são elementos igualmente constitutivos do elo que os une (mesmo quando em
oposição), tornando a continuidade da vida social garantida e a da vida individual possível.
Dizem-nos que, desta forma, as sociedades promovem, através das relações internas entre
seus membros, em maior ou menor grau, as condições para o prosseguimento da trajetória
dos indivíduos dentro de sua época e lugar.
Ao mesmo tempo, são os indivíduos que, por suas ações e representações, podem
reproduzir, desenvolver ou transformar “a forma e o conteúdo” das sociedades, segundo
conceitos simmelianos, embora ancorados nas condições culturais, econômicas, religiosas,
jurídicas e sociais de sua formação histórico-sociológica. Ou seja, as análises sociológicas
sempre trazem a questão da condição do homem como ser social face à sociedade: quer sob
a coerção exercida pela imposição de normas, leis, costumes, ou como ajustamento de uma
grande variedade de ações e interações dentro de um determinado grupo com relações
controladas ou definidas institucionalmente, quer como resultado das interrelações
promovidas em seu convívio social ou ainda como ocupante de uma posição específica no
51
campo social segundo seu “capital simbólico” (sendo o campo social um espaço
multidimensional de coordenadas e lutas simbólicas, segundo Pierre Bourdieu (1987), ou
seja, um “sistema simbólico”, no qual ele introduz a noção de poder), ou ainda como
assujeitado a determinismos históricos de modos de produção responsáveis por sua
distribuição dentro de uma sociedade de classes (Marx). Seria ele, então, o resultado da
coerção das instituições com suas regras e punições, seria ele o resultado de sua posição
dentro de um espaço sócio-político, ou seria ele, em alguma medida, o responsável pela
criação desses mesmos organismos, com as normas que ordenam a vida social, e
responsável também pelos espaços nela existentes, dentro de um processo de interação no
qual, ao mesmo tempo em que sofre a influência de seu meio social, está também implicado
na construção social da realidade?
O que nos parece claro é que, na perspectiva sociológica, sociedade e indivíduo se
determinam mutuamente operando, de um extremo a outro, incidências diversas segundo a
leitura que se faça. A abordagem sociológica do binômio indivíduo/sociedade é, digamos, a
leitura mais corrente que escutamos nas discussões que tratam de nossa realidade social. O
corte que estabelece esse binômio, também é, por sua vez, a nossa forma mais intuitiva de
perceber o mundo. Nossa lógica e razão habituaram-se a lançar mão da geometria
euclidiana (na qual percebemos um dentro e um fora, um interno e um externo) para
compreender o mundo. Portanto, nada mais natural do que pensarmos de um lado um
indivíduo e de outro a sociedade, de um lado o eu de cada um e de outro, o mundo externo
(trata-se da constante busca de construção de oposições: indivíduo/sociedade,
interno/externo, o eu/o outro, o público/o privado).
52
Nesta direção, tender-se-ia a repetir este modelo na psicanálise e imaginar que, ao se
introduzir na questão do social a via da psicanálise, seria necessário pensar de um lado o
sujeito e de outro o social. Deste modo, analisando bem essa relação com as premissas
analíticas daríamos trato à questão. Contudo, na psicanálise, a estrutura que está em jogo
opera uma subversão na forma em que o tempo e o espaço estão constituídos no senso-
comum: do tempo cronológico ao tempo do só-depois, da geometria euclidiana à topologia,
ou seja, o modo de pensar nossa realidade é subvertido. No novo discurso, a temporalidade
faz vir do futuro o passado. Desta maneira, a significação de algo que se deu - a de uma
palavra dita - se estabelece no futuro, no desenrolar da rede significante onde um sujeito se
representa. Ao mesmo tempo, na Banda de Moebius, figura topológica que representa o
espaço do sujeito, não se pode recortar dois lados. Não se pode nela demarcar um dentro e
um fora, um interno e um externo, um lado e outro lado. Nela o externo está na
continuidade do interno e vice-e-versa; interior e exterior não fazem oposição.
O social, ao invés de ser tomado como uma estrutura na qual estão agregados
indivíduos ou seres humanos, é apreendido pela psicanálise como fato discursivo e, nessa
perspectiva, Lacan nos mostra como é impossível pensar o sujeito desarticulado de sua
inscrição no discurso. Para ele é impossível separar o sujeito do social; não porque um
dependa do outro (isto é o que diz a sociologia), mas porque o social é o laço constituído do
sujeito ao objeto pelos significantes. No entanto, a posição na qual o sujeito se encontra,
tanto frente ao objeto quanto aos significantes, varia. De qualquer modo, não é possível
pensar o sujeito desarticulado de sua inscrição no discurso, assim como não é possível
supor um discurso no qual não esteja incluído um sujeito. Mas, insistimos ainda, não
porque um dependa do outro, mas porque o social é o sujeito inscrito no mundo e porque o
53
sujeito é tecido social. Não social sem um sujeito em seu exercício de sujeito, nem
sujeito fora do laço social. O sujeito não é a outra ponta do social, tampouco é um elemento
que se pode isolar do social; ele é, via de regra, o que constitui o social, não em sua soma a
outros sujeitos, porque para a psicanálise não relação de sujeito a sujeito, mas em sua
operacionalidade.
A abordagem sociológica, de outra forma, nos permite supor um indivíduo que
existe numa certa borda em relação ao social e que, portanto, pode ser influenciado ou, até
mesmo, determinado pelo cenário social, mas que fundamentalmente é pensado numa
direção em que o elemento se define como tal em relação ao conjunto ao qual pertence.
Inversamente, o sujeito na psicanálise não se define por nenhuma relação ao seu
semelhante; ele se define, antes, por constituir uma dimensão social. Neste sentido, o
sujeito não é definido pela sua inserção no social; é ele quem define, por sua posição de
sujeito, o tipo de laço que se estabelece no social. Entretanto, o laço que ele define não é
estável nem estático. Pela intervenção de um outro laço, as coisas podem girar.
1.2 O mito da constituição do laço social em Freud
Tudo o que aí encontramos é um pai violento e ciumento que guarda todas as
fêmeas para si próprio e expulsa os filhos à medida que crescem. Esse estado
primitivo da sociedade nunca foi objeto da observação. (...) Certo dia, os
irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o
pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. (...) Não apenas matavam,
mas também devoravam a vítima. O violento pai primevo foi sem dúvida o
temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos...” (FREUD,
[1912-13] 1980: 109
).
54
O assassinato do Pai no mito totêmico seria, na abordagem freudiana, a
sedimentação do solo para a edificação da primeira forma de laço social. O assassinato
estabelece uma primeira Lei que, como tal, é sustentada pelo simbólico, preservando do
pacto estabelecido a incidência real da violência. O pacto desaloja, de uma vez por todas, a
permissão absoluta por um lado e a interdição absoluta, por outro. Ou seja, a nova
organização modifica, de uma vez por todas, o destino daquele grupo. Fica estabelecido que
ninguém mais pode vir a ocupar o lugar deixado vago pelo Pai, sob o risco de ser também
morto. Sob essa Lei, criaram-se os dois tabus fundamentais do totemismo: não tomar o
lugar do pai e renunciar à mulher do pai os dois desejos recalcados do complexo de
Édipo. Funda-se, portanto, através da renúncia a um gozo totalizante do Pai violento, o
próprio ato de desejar. Ou seja, não é a Lei que impede o desejo, mas é ela que se constitui
como a condição deste.
Estando o Pai morto, faz-se necessária a inscrição de uma cadeia de transmissão
pela qual a Lei será sustentada. A transmissão desta Lei é operada, sobretudo, pela falta que
ela mantém (que se marca pelo simbólico e na condição de uma certa oposição a uma
presença isto é, não poderia haver a inscrição de uma falta na existência desértica dos
filhos frente ao Pai vivo) e pelo desejo que ela inscreve.
Pode-se, neste sentido, dizer que esse mito trata da estrutura que articula a Lei ao
desejo. Se por um lado, na trama narrativa articulada por este mito, não é possível supor
uma organização social onde o desejo possa vir a se exercer sem limites o que seria uma
contradição de termos – na medida em que a lógica dessa trama leva o sujeito a encontrar o
limite de seu desejo no exercício desejante de seu semelhante, por outro lado, esse limite
55
passa a ser a própria condição para que a organização social como tal venha a se
estabelecer.
Freud chama atenção para o fato de que os tabus se expressam preponderantemente
em proibições, o que torna claro o fato de que o tabu se constitui na presença subjacente de
um desejo. Afinal de contas, não nenhuma necessidade de se proibir algo que ninguém
deseja fazer.
Mais precisamente, o tabu faz referência a um real do qual deve-se tomar distância
para manter isolado aquilo que ele promove como disrupção na própria organização social.
O curioso, entretanto, é que não se consegue estabelecer o que constitui propriamente este
perigo nas organizações sociais que estabelecem seus tabus, a fonte do tabu permanece
nelas ignorada. Contudo, todos os rituais e arranjos que se organizam em torno do que se
apresenta como objeto tabu são passíveis de serem acompanhados em seus fenômenos.
Inclusive, Freud reconhece nos relatos antropológicos, principalmente nos de Frazer, toda
uma série de interdições e obrigações que ele havia escutado dos neuróticos obsessivos
quando descreviam suas práticas em análise.
Havia em ambos os relatos elementos semelhantes tais como a impureza, a
transmissibilidade e o sagrado que deveriam ser regulados por toda uma série de práticas
rígidas. Tal como no tabu, essas proibições e obrigações eram destituídas de sentido, mas
tinham que ser seguidas rigorosamente sob o risco de uma catástrofe se abater sobre o
sujeito, sobre seu próximo ou mesmo sobre todo o corpo social. Os relatos etnográficos dão
conta de um complexo sistema de regras nas quais estão prescritas punições para a violação
do tabu (no qual podem ser objetos de tabu: pessoas, bichos ou comidas), assim como
obrigações para aqueles que estão submetidos ao sistema organizado em torno de um tabu.
56
Diante deste vasto mundo, a questão de Freud em relação ao tabu se resume em saber que
estatuto ele tem numa organização social ou psíquica, isto é, se resume em saber porque se
faz necessário isolar um objeto e mantê-lo absolutamente interdito sob a ameaça de que um
mau se instale.
Percebe-se que Freud, ao avançar em sua pesquisa, confere ao tabu um caráter
eminentemente significante (ainda que ele não lide com o conceito, que é de Lacan) na
medida em que ele se articula como um texto que deve ser isolado e cujo sentido se
mantém irredutível a significação. É possível, por exemplo, acompanhar os
desdobramentos significantes do que vem a se articular como tabu, mas não se pode
precisar exatamente o significado do que se evita com ele. Através de sua inscrição
significante, Freud pôde constatar, entretanto, que os tabus “apresentam todos os sinais de
serem derivados de impulsos ambivalentes, que correspondem tanto a um desejo como a
um contradesejo” (FREUD, 1913 [1912-13] vol. XIII:56). Ao encontrar um funcionamento
ambivalente no tabu, isto é, de atos que dão expressão a correntes opostas operando
simultaneamente, Freud reconhece o vínculo com a estrutura do sintoma que ele havia
observado na neurose e volta à questão da necessidade do funcionamento ambivalente em
nossa organização.
Não devemos, portanto, perder de vista, que a questão do funcionamento psíquico já
se coloca desde a inscrição de um sujeito no laço social. De forma que são fartos os
exemplos etnológicos dessa ambivalência:
(...) um governante ‘não deve apenas ser protegido, mas também se deve proteger
contra ele’. (FRAZER, 1911:132 apud FREUD, op. cit. :62);
57
(...) os impulsos que expressam para com o inimigo não são unicamente
hostis. São também manifestações de remorso, de admiração pelo inimigo e
de consciência pesada por havê-lo matado.(op.cit.:59);
(...) mais uma vez, então, descobrimos que o tabu desenvolveu-se com base
numa atitude emocional ambivalente. O tabu sobre os mortos surge, como os
outros, do contraste existente entre o sofrimento consciente e a satisfação
inconsciente pela morte que ocorreu. (op.cit.:83)
Freud, apesar de fazer a aproximação do tabu com a neurose obsessiva, demonstra
que uma grande diferença entre um e outro. Enquanto a construção sintomática do
obsessivo vai levá-lo a uma posição de isolamento em relação ao social (não laço social
do discurso obsessivo), o tabu nessas culturas que o sustentam constitui “uma instituição
social” (op. cit.:93), na medida em que ele organiza todo um sistema de regras que regula a
vida social.
Apesar de o tabu assumir, nas culturas de sociedades simples, o efeito oposto ao da
neurose obsessiva quanto à inscrição no social, de todo modo, ele introduz naquelas um
problema interessante para a articulação do sujeito no laço social. Este diz respeito à forma
como se articula o tabu com o sistema de regras que o acompanha.
Podemos dizer que, para Freud, o tabu - ao articular a relação do desejo à proibição
- se apresenta como uma forma de inscrição (simbólica) de uma interdição (real). Esta
estrutura instala uma outra dimensão pela qual se inscreve um novo lugar, nomeado por
Lacan de Outro. Esse lugar aberto pela inscrição de uma interdição é condição de
possibilidade para o próprio sujeito. Em seu destino de se representar frente a um vazio, o
sujeito não se separa, enquanto tal, da necessidade do enlace social. O sujeito, por ser
aquilo que se representa no vazio da significação, faz apelo ao Outro na suposição de existir
nele, no Outro, um sujeito - um sujeito que sabe daquilo que lhe falta. Por esta suposição,
ele lhe pede este saber. Por esta suposição, ele se endereça ao Outro.
58
Nesse caminho, Freud se interessa, sobretudo, pela dinâmica que se estabelece em
relação à posição de uma autoridade e à regulação da via pela qual o sexual se expressa nas
sociedades sobre as quais ele se detém. Ao se interrogar sobre o que o tabu interdita e sobre
o que ele promove com essa interdição, ele pôde reconhecer na estrutura do tabu (pelo
menos naqueles tabus a que ele teve acesso pela pena de Frazer) essa íntima relação entre a
forma de vigência da instância paterna (do exercício de uma autoridade) e as possibilidades
pelas quais um sexo se dirigia a outro. Assim, Freud pôde articular termos que
aparentemente não têm relação alguma: o sexual, a autoridade paterna e a instituição do
laço social, justamente por tratar o tabu como uma estrutura significante que responde por
um interdito.
No mundo moderno, onde impera a ideologia da liberdade do eu - manifestada pela
possibilidade do eu, entre outras coisas, escolher seu sexo, o sexo de seu filho, as
dimensões e as formas de seu corpo e, sobretudo, questionar em juízo, ainda criança, a
autoridade de seus pais -, percebemos que a interdição em ato e o impossível perderam um
tanto de sua força bruta, tendo como conseqüência a deflação de uma necessidade de o
sujeito dirigir-se ao Outro. Ao mesmo tempo, o que lhe chega como falta de sentido através
da experiência de uma alteridade nele (sujeito) é freqüentemente atenuado pela estratégia a
seu alcance: a de se preencher com os objetos ofertados no mundo, objetos esses, sempre à
mão e sempre multiplicados. Deste modo, o sujeito escapa de se arranhar no trajeto
significante que estruturalmente lhe é exigido para seguir em seu exercício de sujeito, no
qual a instabilidade, a impossibilidade e a finitude advêm inexoravelmente. Foi exatamente
sobre estes termos que o primeiro pacto social, no mito do Pai primevo, se estabeleceu.
59
Deve-se notar que o recalque é o que corresponde, no funcionamento psíquico, a
essa operação de segregação testemunhada no tabu. O representante psíquico objeto de
recalque é desligado do afeto que o corresponde, ficando segregado. Excluindo da
consciência esse termo que some pela operação do recalque, o eu precisa fortificar sua
guarda sob a ameaça de ser por ele falado. Neste sentido, o tabu se articula como um
dispositivo privilegiado para o isolamento. Se um representante psíquico o remete àquilo de
que esse sujeito não quer nada saber, ele será isolado “numa representação tabu”, da qual o
sujeito deverá manter distância.
Aliás, Freud nos mostra que a própria palavra tabu refere-se àquilo que não se pode
tocar, isto é, àquilo que se deve manter a uma certa distância. Ela denota todo o veículo do
qual emana esse “misterioso atributo”. Atributo este que é fonte de proibições e que
abrange o que é: “sagrado”, “acima do comum”, “perigoso”, “impuro” e “misterioso”. As
operações de interdição sobre esse “atributo misterioso” - que não pode ser predicado
enquanto tal - funda um sistema de leis que é condição para o próprio laço social.
Afinal de contas, Freud volta a reconhecer no funcionamento social a possibilidade
de nossa organização psíquica. O interdito reina sempre sobre as bases de um impulso
sexual. Para Lacan, o assassinato do Pai da horda interdita no gozo o privilégio para um de
seus filhos. Estes se inscrevem como irmãos, por sua vez, pela condição igual que se
encontram frente ao assassinato. Desta forma, eles podem passar a nomear tanto o que os
torna iguais quanto o que os faz diferentes, isto é, o que faz com que não tenham todos a
mesma mulher. Assim se encontra o fundamento de um laço que irá reunir os irmãos em
um sistema de parentesco. Em suas palavras:
60
O velho papai tinha todas elas para si, o que é fabuloso porque as teria
todas elas para si? -, já que, havendo, além disso, outros rapazes, elas
provavelmente também podem ter os seus caprichos. Matam-no. A
conseqüência é completamente diferente do mito de Édipo – por terem
matado o velho, o velho orangotango, duas coisas acontecem. Ponho uma
delas entre parênteses, pois é fabulosa eles se descobrem irmãos. Enfim
isso pode dar a vocês alguma idéia do que é a fraternidade (...) conheço
uma única origem da fraternidade falo da humana, sempre húmus -, é a
segregação. Estamos evidentemente numa época em que a segregação,
erght! Não há mais segregação em lugar nenhum, é inaudito quando se os
jornais. Simplesmente, na sociedade (...) tudo o que existe se baseia na
segregação (...).
Nenhuma outra fraternidade é concebível, não tem o menor fundamento, como
acabo de dizer, o menor fundamento científico, se não é por estarmos isolados juntos,
isolados do resto” (LACAN, 1969-1970:107).
Lacan no texto freudiano a operação das categorias que ele isola, a saber: a
interdição, a segregação e a fraternidade. Ora, é justamente porque algo é interdito, fazendo
conseqüentemente exceção, que um conjunto vem a se constituir, isto é, o conjunto dos
irmãos. Por outro lado, esse conjunto se organiza pela segregação dos elementos que não
são reconhecidos como irmãos, que não estão regidos pelo mesmo nome que os congrega.
De toda forma, é pela instauração de uma interdição que a condição de possibilidade para
que um desejo se articule vem a se constituir, sempre com esse caráter ambivalente que
Freud sublinhava. Aquilo que interdita é, ao mesmo tempo, o que possibilita, aquilo que
reúne é, ao mesmo tempo, o que segrega. Se Lacan um problema no mito, ele não está
nos termos, mas numa certa leitura que recusa fundamentalmente o que esta lógica
constitui.
61
1.3 A constituição do laço social em Lacan
Quando Lacan diz que estamos isolados juntos, isolados do resto, ele nos traz à
percepção o fato de que o laço social na psicanálise não corresponde a uma união (a um
encontro) entre sujeitos. Esse laço trata do fato de que cada sujeito tem, frente a seu objeto,
uma posição que é tecida discursivamente na composição: significante-mestre (S
1
), saber
(S
2
), sujeito ($) e objeto (a). Em seu Seminário, proferido em 1969 e 1970 (que veio a ser
publicado como O avesso da psicanálise), ele isolou quatro possibilidades de arranjo para
esses quatro elementos, formando um aparato algébrico ao qual designou como quadrípode.
Ou seja, os elementos que circulam entre as quatro posições do quadrípode ocupam, cada
um deles, um lugar conforme o discurso, sendo que eles sempre guardam entre si a mesma
distância, trocando de lugar por um quarto de volta no discurso precedente.
Por hora, recortaremos o que nos interessa (nos próximos capítulos nos ateremos
aos outros discursos - o da histérica, o do analista e o universitário). Vejamos, portanto, o
discurso do mestre, aquele que funda o laço social e que, por ser inaugural, aos quatro
elementos a marca da posição em que se encontram nele. Este é representado pelo seguinte
quadrípode:
S
1
S
2
----- ------
$ a
Vejamos, também, a distribuição de lugares nos discursos:
lugar do agente lugar do trabalho ou do Outro
------------------------ -------------------------------------
lugar da verdade lugar da produção
62
Temos, então: S
1
, o significante-mestre, que se encontra em seu “lugar-tenente”, no
lugar de agente ou de comando. Neste sentido, o que agencia um laço social ou um discurso
é o significante como força criativa no exercício de seu poder, pelo qual o próprio mundo
se constitui tal como o sabemos. Apenas por suposições poderíamos tentar imaginar qual a
apreensão que teríamos do mundo, não fosse ele constituído pelos significantes. De todo
modo, estaríamos imersos nesta tarefa no mundo que há, ou seja, no do significante. Diz
Lacan:
Os discursos em apreço nada mais são do que a articulação significante, o
aparelho, cuja mera presença, o status existente, domina e governa tudo o
que eventualmente pode surgir de palavras. São discursos sem a palavra, que
vem em seguida alojar-se neles (LACAN, 1969-70:158).
Portanto, o funcionamento do social é determinado e constituído pelo significante,
de modo que o que constitui o social para a psicanálise são lugares a serem ocupados neste
funcionamento. Assim, o significante desencadeia um trabalho que expõe, por um lado, a
verdade de seu exercício e, por outro, o produto de sua ação.
Temos, ainda: S
2
, o saber, que se encontra no lugar do trabalho. Isto é, ao comando
de S
1,
os demais significantes (S
2
) trabalham e, no desenrolar da cadeia, tecem um saber
extraído do próprio trabalho (o savoir-faire). Deste modo, o saber trabalha como escravo de
um significante-mestre:
S
1
é, para andar rápido, o significante, a função de significante sobre a qual
se apóia a essência do senhor. Por um outro lado, vocês talvez se lembrem
do que enfatizei muitas vezes no ano passado o campo próprio do escravo
é o saber, S
2
. Lendo os testemunhos que temos da vida antiga, em todo caso
do discurso que se emitia sobre essa vida leiam sobre isto a
Política de
Aristóteles –, não fica qualquer dúvida sobre o que afirmo quanto ao escravo
caracterizando-o como suporte de saber.
63
Na era antiga, ele não simplesmente, como nosso moderno escravo, uma
classe – era uma função inscrita na família. O escravo de que fala Aristóteles
está tanto na família quanto no Estado, e ainda mais em uma que no outro.
Está porque é aquele que tem um
savoir-faire, um saber fazer. Antes de
saber se o saber se sabe, se pode fundar um sujeito na perspectiva de um
saber totalmente transparente em si mesmo, é importante saber enxugar o
registro do que é originalmente
saber-fazer (LACAN, 1969:18-19).
O mestre coloca o escravo para trabalhar, fazendo seu saber operar.
Nesta estrutura de base o $, o sujeito, se apresenta como o efeito de verdade do
encontro entre S
1
e S
2,
pois ele é, na clássica definição de Lacan, o que um significante
representa para outro significante. O $ como efeito de verdade também carrega, por sua
vez, o estatuto que a verdade tem. A saber, que a verdade não pode ser toda dita, pois que
não toda verdade a dizer. Ela, em si mesma. é o que escapa à nossa apreensão, ao nosso
imperativo do “derradeiro significado”, aquele que faria tudo ser dito, calando o que fala a
nosso despeito. Pois, se pudéssemos algo da verdade escutar, o que chegaria a nossos
ouvidos seria tão somente: “Eu, a verdade, falo” (LACAN, [1955] 1998: 410). Logo, vê-se
que não podemos saber a verdade, à verdade não se chega pelo saber, ao contrário, ela é um
efeito do trabalho do saber (S
2
). A verdade, portanto, retorna a cada dito, o que implica que
não enunciação que não carregue em si a verdade de que toda vez que se fala se
reinaugura a operação em que um significante, ao se dirigir a outro, introduz, como efeito
de verdade, um sujeito. Este, por sua vez, não tem em si nenhuma estabilidade, nenhuma
consistência, nenhuma existência a não ser a de ser um efeito de fala que acarreta nela uma
verdade não-toda.
Por fim, temos como produto do trabalho desse discurso o objeto a que, embora
constitua o discurso e, portanto, esteja nele incluído, é senão produto do discurso; o objeto é
o que resta, o que cai, o que se substancializa, o que consiste em algo que não pode ser
64
digerido pelo discurso; ele é, propriamente, algo que, uma vez produzido, escande o próprio
trabalho. O objeto a tem a característica de ser, ao mesmo tempo, o que mais escapa a
qualquer significação e o que é menos etéreo no próprio fato discursivo. Ou seja, ele escapa
à simbolização, à fala, ao dizer, sem, no entanto, por ser real, jamais ceder como causa de
nossa fala. Entretanto, este real que o objeto acarreta ou, melhor dizendo, do qual ele é
matéria, não está antes ou depois da fala e, sim, no próprio ato da fala. Portanto, ele se
constitui como causa simultaneamente à fala e não antes dela. Do antes não nada que se
possa dizer. Deste modo, o produto a é o que escande um dito e, ao mesmo tempo, é o que
nos faz de novo falar. Isto porque, sendo ele, por um lado, produto - o que encerra um
trabalho -, ele é, por outro, o que descompleta o dito, o que abre nele a falta. Neste sentido,
não há na operação significante trabalho bem sucedido a não ser justamente em seu
fracasso. Ele é, na verdade, bem sucedido ao fracassar por expor a estrutura que lhe
garante, estrutura esta que é aquela em que o que resta do trabalho não pode ser incluído
nele (ou excluído dele como resto) para o tornar apto a uma toda verdade. O discurso do
mestre, portando a estrutura social que Hegel isola através da dialética do senhor e do
escravo e que Lacan trata como um enlaçamento discursivo, é, assim, o que configura o
primeiro modo de laço social e, ao mesmo tempo, a estrutura do trabalho inconsciente.
Assim, o discurso do mestre é o próprio funcionamento do inconsciente, não
havendo, para a psicanálise, laço social fora do circuito significante. O laço social é, de
fato, uma possibilidade dada pela linguagem uma vez que ela se exerce unicamente pelo
trabalho significante que é acionado na temporalidade do só-depois por um significante
segregado da cadeia como S
1
. O inconsciente, escutado por Freud como uma instância de
65
trabalho e não como um estado do ser, constitui lógica e eticamente o valor do laço social,
fazendo ver que o inconsciente é o próprio social.
Com isso, o laço social, na forma como foi instituído (pelo discurso do mestre),
surge da segregação de um elemento: S
1
dos demais significantes (S
2
), tendo como produto
a que cai como resto.
16
Logo, o que surge de um resto isolado tende a nos manter isolados
do resto.
16
Quanto a isto o discurso analítico mantém sua peculiaridade, da qual trataremos mais adiante.
66
CAPÍTULO 2
A PSICANÁLISE AVANÇA ONDE A PARANÓIA FRACASSA
17
Como vimos no capítulo anterior, o enlaçamento que inaugura a estrutura social
articula, por um lado, um conjunto fraterno e, por outro, marca, pelo o que é excluído dele,
o que não pode ser reduzido à sociedade de iguais. Isto introduz na fundação do laço social
o que nele está autorizado e o que dele fica excluído.
Entretanto, pelos caminhos em que a cultura e os fatos sociais se desdobraram,
novas possibilidades de laço, para além daquele que teria fundado o próprio social pelo
discurso do mestre, foram possíveis. A histérica, com sua estranha sintomática, para a qual
a ciência médica não conseguia dar uma resposta, leva o mestre a trabalhar. Ela o desafia ao
saber e, sem cerimônia, o convoca a dedicar-lhe seu interesse. Seu sintoma e sua
reivindicação de tomar a palavra, invertendo o lugar do saber e da fala no exercício do
tratamento médico, dão notícias ao mundo de uma nova possibilidade discursiva. Contudo,
não dependeu apenas das histéricas o discurso histérico como um novo laço social, mas
seus sintomas eloqüentes, mesmo na mudez, fizeram alguém, ou seja, Freud, sustentar
justamente esse novo laço.
O questionamento cartesiano, ao franquear ao sujeito a possibilidade de tomar a
palavra e colocar em questão o mestre, abre uma nova dimensão aos lugares estabelecidos
pelo discurso fundador. A coragem de Descartes em questionar o saber que ele deveria
transmitir em bloco aderindo, sem hesitar, à sua verdade, levantou a barra sob a qual o
17
O título faz referência a seguinte afirmação feita por Freud em carta à Ferenczi: “Tive sucesso onde o paranóico
fracassa”. Jones, E., 1979 -
Vida e Obra de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Zahar Editores, p.428.
67
sujeito permanecia silenciado. É fato que Descartes não sustentou manter o sujeito no
comando, fazendo aparecer em seu lugar o saber, mas isto deixou uma primeira marca.
Se o discurso do mestre mantinha o sujeito dividido dividido, diga-se, pela
irrupção da ação significante em sua ex-sistência
18
- sob a barra do recalque, mantendo a
verdade da operação significante em resguardo, o discurso da histérica leva o sujeito ao
comando, pelo qual temos:
$ S
1
--------- ----------
a S
2
Nele o mestre deve trabalhar para o sujeito que, tendo tomado a cena, pede a ele
uma resposta sobre sua condição - sobre sua barra, seu limite, sua falta, sua incompletude.
O mestre, quanto a isso, deve produzir um saber que lhe ofereça uma alternativa à sua
insatisfação. No entanto, o sujeito fica sem saída quando espera que o Outro trabalhe em
seu lugar. Este mestre que ele faz trabalhar, neste sentido está marcado pela insuficiência,
dado que nesta estrutura em que o saber se produz, como produto que é, ele é também
perda de saber, perda de sentido.
Freud, séculos depois de Descartes, recolheu a causa de seu trabalho no chamado
das histéricas. Entretanto, por suportar a forma de enlaçamento que a histeria propõe,
sustentado pelo seu desejo de tratar e entender este estranho mal, ele acrescentou ainda a
este, um novo laço: o do analista. Porém, o discurso do analista que foi gerido no
dispositivo analítico inventado por Freud - dada a posição na qual ele se permitiu ser
18
A ex-sistência é um termo de Lacan para dar conta, justamente, dessa existência perdida do sujeito frente à
ação significante, pela qual seu ser cede sua suposta consistência ao escolher forçadamente entrar no mundo
da linguagem.
68
tomado por suas histéricas em análise -, pôde ganhar corpo pela conceitualização e pela
prática de Lacan, nas quais fica revelada a estreiteza em que opera o ato do analista, na
função de objeto a. (LACAN, 1967-68:100)
Diz Lacan sobre a questão da histérica, da transferência e do analista como a, pelo
qual ele é investido amorosamente :
Ela atinge a meta de imediato, a histérica. Freud, de quem ela chupa a maçã,
é o objeto
a”. Todos sabem que está o que é necessário a uma histérica,
sobretudo ao sair da hipnose. As coisas estão, de alguma forma, se podemos
dizer, facilitadas. Freud, seguramente está o problema que se coloca a seu
propósito, como ele pode pôr em suspenso, desta forma radical, o que é do
amor? Talvez possamos suspeitar, demarcando o que é estritamente da
operação analítica.
A questão não está aí. Colocar o amor em suspenso permitiu-lhe instaurar,
por esse curto circuito original que ele soube estender até lhe dar esse lugar
desmesurado da operação analítica, na qual se descobre todo o drama do
desejo humano. E no final, o que? Não é pouca coisa, toda essa imensa
aquisição, o novo campo aberto sobre o que é a subjetivação. No final o que?
Mas o mesmo resultado que era alcançado neste curto instante! A saber, de
um lado o $, simbolizado por este momento de emergência, este momento
fulminante entre dois mundos, por um despertar do sono hipnótico, e o
a
subitamente estreitado nos braços da histérica. Se o “
a” lhe convém tão bem,
é porque ele é isso que está no coração das vestimentas do amor, o que se
toma. o articulei e demonstrei suficientemente: é em torno desse objeto
aque se instalam, que se instauram, todos os revestimentos narcísicos nos
quais se apóia o amor (LACAN, 1967-1968:153-154).
Nesta descrição que faz Lacan do encontro entre a histérica e Freud, em função de
a, vê-se que o que sustenta, na análise, a falta de resposta do Outro sobre o desser do
analisante é o amor. O a - esse objeto real, cru, dessubjetivado - serve como suporte para o
investimento amoroso do sujeito histérico, que é, pela forma pela qual ele ama, um
investimento narcísico. A análise, apesar de contar com a manobra que o sujeito histérico
faz no modo de abordar o objeto sendo o amor modo este pelo qual ele se dispõe a
trabalhar leva, a seu fim, o sujeito ao encontro do objeto a destituído de vestimentas, em
69
sua insustentável rudeza, pela qual o sujeito se encontra com sua própria condição de
objeto.
O objeto a, apesar de estar operando às custas da pessoa de Freud desde os
primórdios do tratamento analítico, é, contudo, um conceito acrescentado à psicanálise por
Lacan. Ele o decantou de sua própria experiência sob o rigor do corte impetrado por Freud
em nossa organização psíquica e social. Logo, de Lacan a Freud pode-se ler,
retroativamente, o novo laço já traçado na práxis de Freud. A aposta freudiana, ao escutar o
sujeito em cena de dentro do discurso da histérica, foi a de que o saber que elas pediam ao
mestre como produto de seu trabalho, se tecia no lugar da verdade. Desta forma, não era o
saber que passava a ganhar a qualidade de ser verdadeiro, mas era no lugar da verdade,
como verdade sobre o sujeito, que esse saber tinha efetividade, ainda que recalcado e,
paradoxalmente, devido a ser recalcado.
Logo, através da histeria, Freud constatou a tensão da articulação do desejo no seio
do social. Os sintomas histéricos davam sobre isso seu testemunho por serem em si o
resultado de uma estrutura conflituosa.
Na verdade, o sentido do sintoma é um par contraditório da manifestação do desejo
no sujeito, pelo qual ocorre uma solução de compromisso entre uma exigência de satisfação
pulsional veiculada por um desejo, e a impossibilidade do sujeito em sustentá-lo. O
insustentável do desejo, no entanto, não está separado do encontro do sujeito com aqueles
com quem ele faz sua sociedade fraternal, sempre submetida ao nome de um Pai. Todavia,
a despeito de sua solução sintomática, o conflito subjacente ao sintoma sustenta para o
sujeito o sentimento de culpa. Uma vez que ele se encontra como sujeito desejante, como
sujeito destinado a querer justamente aquilo que ele não tem como sustentar ou como levar
70
a cabo, a solução que ele encontra para o paradoxo de sua condição é a de repousar na
culpa. Ignorando, com isso, que o que é para ele vontade de ir além de um limite, o é
justamente por estar suposto ali um desejo.
Por conseguinte, aquilo que ele experimenta como castração (por um limite ou pela
interdição) é inexorável à sua condição de falasser, não havendo para o sujeito nenhum
acordo possível. Pelo fato de o sujeito se representar pela fala e de estar no campo da fala,
seu destino exclui da interdição aquilo que poderia ser tomado como um capricho do Outro
(como o capricho, por exemplo, do orangotango primordial), pois a Lei que veicula tal e
qual interdição ou limite é o que conduz, através de um representante, a incessante força
real de um impossível se inscrever no simbólico.
A crença de havermos sofrido a subtração de um gozo ou a subtração de uma
experiência de satisfação pulsional subjaz ao fato de que o desejo conduz o sujeito à vida na
medida em que o campo da fala introduz a morte das coisas em si e do ser em si,
estabelecendo a vida sobre a inaptidão do significante para produzir sentido e certeza. E, na
medida em que a significação e a certeza dependem do sujeito, de sua decisão, ele ou estará
fadado a trabalhar em favor de seu desejo, sem descanso, abrindo mão do gozo que o
tornaria, se dispusesse dele, um sujeito aposentado, ou estará, como já dissemos, devotado à
culpa. Isto é, ou o sujeito assume seu encargo ou sofre de sua circunstância.
Logo, o sujeito não está em condições de acabar com o desejo, mas, ao contrário,
como nos faz ver a psicanálise, ele pode conceder às determinações dele advindas e abrir
mão de seus artifícios de defesa assentados sobretudo na paixão da ignorância para assim se
decidir a não recuar ante a responsabilidade que ele tem quanto a seu desejo, que
paradoxalmente não está sob seu controle. (LACAN, [1972-73] 1985:164). Toda esses
71
expedientes de recusa são sustentados pela paixão que tem o sujeito em fazer viver no
Outro um sujeito que sabe sobre ele, que sabe em seu lugar. Foi nisto que Freud pôde se
apoiar para fazer acontecer um trabalho analítico. Verifica-se nesta suposição que se faz ao
Outro o que Lacan reconheceu estar em jogo no amor de transferência, no amor ao saber
como sujeito suposto saber.(LACAN, [1964] 1985:220)
.
É fato, porém, que enquanto se
está na infância, não se tem outra alternativa, mas estranho é que o sujeito não possa, a
certa altura de seu caminho, tomar em suas mãos aquilo que estava delegado, por ele
mesmo, ao Outro.
Portanto, pela forma como as coisas se resolvem, vemos que as histéricas sustentam
com seu sintoma um outro laço social. Freud, por sua vez, responde a ele com um novo
laço no qual se fazer girar o elemento que é posto a trabalhar. Ao aprender que não
deveria dar às histéricas a esperada resposta, até porque ele se conta de que não a tem,
Freud as faz trabalhar para que elas possam encontrar na suas falas o saber inconsciente
como verdade. Os atos falhos, como percebe Freud, irrompem como um saber sobre o
sujeito que se revela nele com a marca da verdade
19
. O discurso do analista, então, faz girar
os elementos no discurso da histérica. Seu produto é “os” S
1
que caem de sua fala em corte,
não se remetendo automaticamente ao saber (S
2
). Essa interrupção na cadeia significante
lança o sujeito, por um lado, na falta de sentido que é próprio de sua “natureza” e, por outro
lado, o lança em sua condição de submissão ao significante, onde toda natureza está
perdida. Vejamos, pois, a formatação algébrica que tem o discurso do analista:
a $
-------- ---------
S
2
S
1
19
cf. Freud, S., em “O manejo da transferência.”
72
O giro operado no discurso histérico pelo discurso do analista oferece ao sujeito
uma possibilidade de, ao trabalhar, não reduzir seu trabalho ao fazer do escravo. O fazer
nele está, sem dúvida, do lado do sujeito, mas justamente ele é a possibilidade de o sujeito
escapar à escravidão do comando da culpa. O discurso do analista, diferentemente dos
outros, introduz uma vacilação nas marcas que os lugares guardam do discurso do mestre.
Lá onde estava o saber na posição de trabalho, como saber-fazer do escravo, está aqui como
o fazer do sujeito pelo trabalho de poder se desvencilhar também da escravidão do saber.
Pois, como dissemos, se não se trabalha a favor do desejo, isto é, a favor de fazer metáfora
da carência de sentido, do buraco, trabalhamos a favor da culpa pelo o que ela nos oferece
de sentido pleno, de certeza, de garantia de gozo.
Podemos perceber que a psicanálise trata o laço social de uma forma própria. O
sintoma que poderia ser visto como um obstáculo, como uma insígnia do que não funciona
no social, se institui, nesse caso, como o efeito de uma inscrição do sujeito em um laço
próprio.
2.1 Laço Social e Narcisismo
No texto “Introdução ao Narcisismo”, de 1914, Freud introduz uma questão
importante. Ao criar o dispositivo analítico, ele percebe um limite no laço que propôs. Este
limite se produzia na ação do analisante ao se endereçar ao analista. Com isso, ele
descobriu uma certa forma de organização da economia libidinal. Parte da libido não era
disponibilizada para se inscrever na via transferencial, ela se cristalizava em uma estrutura
que Freud denominou de narcísica e que formava obstáculo a seu endereçamento ao Outro.
Tendo em vista essa estrutura e retomando o que se avançou nos comentários sobre o texto
73
“Totem e Tabu”, no qual a questão “fraternal” se apresenta na base da própria estrutura
social, Freud percebe, pelo conceito de narcisismo, o fundamento do reconhecimento de
semelhança, “o narcisismo das pequenas diferenças”, que está em jogo na fraternidade.
Somos semelhantes porque reconhecemos em cada outro a estrutura narcísica que nos
consistência e que permite nossa identificação a um eu que tomamos como nós próprios.
Quanto mais semelhantes parecemos ser e quanto menos confrontados somos com a
alteridade, mais confortavelmente nos mantemos em nosso próprio narcisismo.
No entanto, inversamente ao que o narcisismo compõe como realidade, a
constituição do eu traz em sua definição a noção de algo para além de sua unidade e de seu
caráter privado. Às voltas com a dita questão da constituição do eu, Freud se conduzido
a formular o conceito de narcisismo para dar conta dos impasses que ele enfrenta ao
perceber que, desde seu nascimento, o sujeito se referido a um outro que, neste
momento inaugural, está identificado a ele mesmo. Observa-se que para trabalhar com o
conceito de narcisismo, Freud não pode senão percorrer à questão do investimento objetal.
No texto, percebemos que o objeto e o eu são indissociáveis para a formulação do conceito.
É sempre na relação de um ao outro que ambos se constituem. A constituição do eu,
portanto, está vinculada à constituição de um objeto para o próprio eu ou, ainda, do eu
como objeto.
Ao tentar entender qual investimento se segue ao outro, Freud aventa a hipótese de
que um investimento libidinal original no eu, parte do qual será posteriormente
transmitida a objetos, “mas que fundamentalmente persiste e que está relacionada com as
catexias [investimentos] objetais, assim como o corpo de uma ameba está relacionado com
os pseudópodes que produz” (FREUD, 1914, vol. XIV:92).
74
Na dinâmica libidinal que se estabelece, Freud também observa que uma
antítese entre libido do eu e libido objetal. Quanto mais uma é investida, mais a outra se
esvazia. Ele acredita, contudo, que haja uma indiferenciação das libidos num estágio
anterior. Na verdade, afirma que está destinado a supor que:
(...) uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o
começo; o ego tem de ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo,
ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja
adicionado ao auto-erotismo – uma nova ação psíquicaa fim de provocar o
narcisismo (FREUD, [1914]1980 vol XIV:92).
A nova ação psíquica constitui uma unidade que, ao se formar, produz uma
descontinuidade num campo que era, até então, sem fronteiras. Essa unidade opera como
uma instância que Freud nomeia de eu e que se constitui por uma alienação que determina
uma imagem de unidade corporal ao que antes era indeterminado. Esta identificação tem
por conseqüência sua separação dos objetos do mundo. São constituídos dois campos:
aquele do eu e aquele dos objetos, para a partir de então, o eu vir a almejar o reencontro
com esse estado mítico no qual a falta não era experimentada. Nesse sentido, “o
desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narcisismo primário e margem a
uma vigorosa tentativa de recuperação desse estado” (LACAN, [1949]1998:117).
Entretanto, o narcisismo primário, tempo em que a falta não estaria constituída,
pode ser elaborado como um ideal que outros atribuem à criança enquanto ela ainda não
está submetida à imagem egóica e ao significante enquanto tal.
Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos, temos que
reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que
muito abandonaram. (...) [Os pais] sentem-se inclinados a suspender, em favor da criança, o
funcionamento de todas as aquisições culturais que seu próprio narcisismo foi forçado a
75
respeitar, e a renovar em nome dela as reivindicações aos privilégios de muito por eles
próprios abandonados (FREUD, op. cit.:108).
O movimento do eu, portanto, se revela numa tentativa de retornar a um momento
“anterior” à submissão à linguagem e à cultura, diante da qual a única escolha do eu é:
submeter-se a ela ou, pela recusa, não se apresentar a ela como, se supõe, fazem os autistas.
Portanto, ao constituir uma unidade, o eu não se torna autônomo, nem dono de suas
vontades. Ao contrário, Freud afirma que ele tem uma existência comprometida com duas
finalidades:
O indivíduo leva realmente uma existência dúplice: uma para servir as suas
próprias finalidades e a outra como um elo numa corrente, que ele serve
contra sua vontade ou pelo menos involuntariamente. (...) Ele é o veículo
mortal de uma substância (possivelmente) imortal como o herdeiro de
uma propriedade inalienável, que é o único dono temporário de um
patrimônio que lhe sobrevive
(FREUD, op.cit.:94).
Se o homem se submete a uma estrutura que o ultrapassa e tem por tarefa transmiti-
la, é porque sua condição não lhe alternativas. A noção de desamparo formulada por
Freud trata, na dimensão do humano, de um desamparo que é acima de tudo efeito de uma
prematuridade estrutural. A formulação da prematuridade no humano é uma conseqüência
lógica da impossibilidade do encontro com uma sonhada completude (maturação) do
sujeito. O sujeito prematuro, nesse sentido, jamais alcançará a tal maturidade que o tornaria
um sujeito autônomo. Este sujeito seguirá sempre na dependência do Outro. O desamparo,
abordado por Freud em vários momentos de sua obra, registra esta dependência do sujeito
ao Outro, ou seja, a uma alteridade que o determina e da qual ele não pode prescindir. É
neste sentido que se coloca a impossibilidade de uma autonomia do eu e de um ideal de
76
liberdade que não seja delirante. O amparo no Outro é também um desamparo na medida
em que o sujeito não está jamais em condições de alcançar uma maturidade que finalmente
possibilite sua independência. O sujeito, nesse sentido, não se cura do desamparo e não
escapa de sua condição de efeito de um laço social e de uma transmissão, não sendo jamais
causa de si. O eu, que, por sua vez, é o que do sujeito se apreende num sentido e numa
unidade, não está menos dependente do campo social que lhe aparece como uma
exterioridade.
Fica patente pelo argumento desenvolvido, que uma das estratégias do sujeito frente
ao risco que ele corre em se deparar com algo de que ele não quer nada saber é a de
reservar num mundo particular suas mais caras ficções, dentre elas aquela de seu sonhado
encontro com o objeto que falta à sua completude no plano da relação sexual. A
psicanálise, entretanto, é uma estrutura de laço social que não sustenta esse sonho, ao
contrário, ela desperta o sujeito desse sonho sonhado para o manter dormindo. A
convocação que o discurso analítico faz é no sentido do sujeito poder abordar sua verdade
na parcialidade que ela porta, uma vez que sua alternativa a isso é fugir dela como um cão
que foge de seu próprio rabo, correndo sem cessar num trajeto circular.
2.2 A constituição do eu e a ficção do dentro e do fora
No texto em que aborda a constituição do eu através da fórmula do estádio do
espelho, Lacan apresenta uma dinâmica para tratar dessa constituição que nos oferece
detidamente a apreensão de que o eu, ele próprio, sobrevém como um elemento do mundo
externo. A imagem no espelho que o infans apreende como sendo a sua própria lhe chega
obviamente de fora. Essa imagem funciona como “matriz simbólica em que o eu se
77
precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o
outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito” (LACAN,
[1949]1998:97).
A matriz simbólica - na qual o eu se precipita - constitui-se como suporte para que o
infans possa sustentar a dimensão da imagem como especular. Nela ele não se reconhece
como um semelhante, mas como ele mesmo.
Esse desenvolvimento é vivido como uma dialética temporal que projeta
decisivamente na história a formação do indivíduo: o
estádio do espelho é
um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a
antecipação e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da
identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem
despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de
ortopédica – e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante,
que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental.
Assim, o rompimento do círculo do
Innenwelt para o Umwelt gera a
quadratura inesgotável dos arrolamentos do
eu (LACAN, [1949] 1998:100).
O reconhecimento de si depende, entretanto, de um tempo anterior no qual a criança
possa ter-se visto no olhar da mãe que a olha. O olhar, como tal, tem para a psicanálise o
estatuto de um objeto, mais precisamente de um objeto caído de uma operação de corte.
Nesse sentido, para funcionar como tal, ele depende de que a mãe possa ter feito algum luto
de seu bebê, sustentando a perda de uma separação. Na distância que a mãe toma do bebê,
ela tem por ele um sentimento passional de amor, ou até de ódio, que remete justamente a
esta perda. Esse sentimento vivido nos cuidados da mãe com seu bebê, o libidiniza. O
investimento libidinal é tanto um estágio para a constituição da imagem do bebê, quanto o
que deixa um resto que não constitui imagem, a que damos o nome de objeto a.
Portanto, nossa percepção do mundo é feita a partir desse eu que é, desde seu
surgimento, um elemento do mundo. Paradoxalmente, é por intermédio desse eu, que é um
78
pequeno outro, que se adquire o conhecimento do mundo. Ou seja, o mundo que tomamos
como interno não se separa do externo; é de fora que ele surge. “Mas o ponto importante é
que essa forma situa a instância do eu, desde antes de sua determinação social, numa linha
de ficção, para sempre irredutível para o indivíduo isolado”, diz Lacan (op. cit.:98).
A ficção em que o eu se aliena para se constituir é, por assim dizer, paranóica. É
inerente à sua estrutura constituir um dentro e um fora para tomar como interior o que é
bom e como exterior o que é mau. Com essa estratégia, que é a via possível do eu se inserir
na vida social, ele se defende do que lhe é ao mesmo tempo mais estranho e mais familiar.
A especificidade das categorias de espaço e de tempo na psicanálise torna sem
validade qualquer intuição que nos acompanhe para dar conta das estruturas em jogo. O
público e o privado são termos, por exemplo, que funcionam na estrutura habitual, onde um
interior e um exterior se separam, onde o sujeito reconhece um campo privado no qual ele
está a salvo de uma intromissão externa, mantendo coerente o mundo de sua fabricação.
Porém, este interior no qual o eu acredita separar-se do mundo é feito senão da alienação do
sujeito em uma imagem do mundo. Inexoravelmente, “é no outro que o sujeito se identifica
e até se experimenta a princípio” (LACAN, [1946]1998:182).
O modo de constituição do eu que trata de excluir de seu campo aquilo que o
ameaça, atribuindo, pelo julgamento de atribuição, ao mundo externo todo o mau, é o
primeiro testemunho desta realidade. Assim Freud apresenta o eu em sua forma nascente:
A função do julgamento está relacionada, em geral, com duas espécies de
decisões. Ele afirma ou desafirma a posse, em uma coisa, de um atributo
particular, e assevera ou discute que uma representação tenha uma existência
na realidade. O atributo sobre o qual se deve decidir, pode originalmente ter
sido bom ou mau, útil ou prejudicial. Expresso na linguagem dos mais
antigos impulsos instintuais os orais o julgamento é: ‘Gostaria de comer
79
isso’, ou ‘gostaria de cuspi-lo fora’, ou, colocado de modo mais geral,
‘gostaria de botar isso para dentro de mim e manter aquilo fora.’ Isso
equivale a dizer: ‘Estará dentro de mim’ ou ‘estará fora de mim’. Como
demonstrei em outro lugar, o ego-prazer original deseja introjetar para
dentro de si tudo quanto é bom, e ejetar de si tudo quanto é mau. Aquilo que
é mau, que é estranho ao ego, e aquilo que é externo são, para começar,
idênticos
(FREUD, [1925], 1980 vol. XIX:297).
20
O eu esta imagem que constituímos e que nos vem “de fora
21
”, dando-nos a
possibilidade de organizar um dentro e um fora mantém-se na ficção. É certo, contudo,
que o sujeito não aparece, nem na sua mais fugaz evanescência, se não for dada à
insipiência de sujeito identificações para serem tomadas como eu. Por outro lado, o sujeito,
em sua manifestação, ameaça as estabilidades necessárias ao eu para manter-se na unidade
pela qual se tomou. Vemos, então, que o sujeito precisa de uma certa estabilidade egóica
para vir a se exercer; paradoxalmente, suas manifestações desestabilizam o foco encontrado
num dado enquadramento para manter e garantir a suposta solidez do eu.
Nesta tensão que consiste em manter intacta nossa organização egóica, apesar da
ininterrupta exigência pulsional a que estamos submetidos, o sujeito faz suas aparições.
Porém, a cada vez, sua aparição pode dar a ver na cena armada em que vivemos a estrutura
que ela tem. Isto é o que constitui propriamente o horror no humano. A angústia, esse
horror, diz Lacan no Seminário 10, é realmente a mesma coisa que a fantasia na qual o
sujeito monta seu mundo.
A estrutura da linguagem no sujeito acarreta algo que é, ao mesmo tempo, via de
possibilidade para o sujeito vir a comparecer e via de fuga pela qual o sujeito se engendra
20
A segunda espécie de decisão a que Freud se refere no trecho citado é tomada pelo julgamento de
existência. O teste de realidade, conferido pela verificação da existência real de algo que existe como
representação: “algo que está no ego como representação pode ser também redescoberto na percepção
(realidade)” (op.cit.298). Trata-se, novamente, diz Freud, de
externo e interno.
21
É muito difícil abandonarmos a espacialidade a que somos habituados para demonstrar justamente que não
é da natureza do sujeito a oposição: dentro e fora. Na verdade não há senão o fora, o que, a rigor, nem é fora
uma vez que o fora se institui como oposição ao dentro.
80
para se defender de sua ex-sistência
22
, ou seja, pela qual ele se engendra para tentar existir e
consistir. O paradoxal é que, para entrar no mundo, o sujeito deve crer que ele e o
mundo; no entanto, só há mundo dele. Não obstante, há uma instância Outra.
A Outra instância se impõe não como produto do mundo no qual vivemos, mas
como trabalho do inconsciente que é estruturado como uma linguagem. Ponto por ponto,
vamos lembrar, primeiro, que a linguagem da qual nos ocupamos é desdobramento de
significantes que não guardam em si nenhuma identidade, isto é, cada qual não equivale
nem a si mesmo e que, sobretudo, são, por definição, insuficientes em relação ao objeto que
tangem. Segundo, que o objeto pode ser traduzido, por hora, por perda real produzida nesse
trabalho em andamento. Terceiro, que o sujeito é o que um significante representa para
outro significante. Ou seja, o sujeito é o que produz alguma sorte de significação no
remetimento de um significante a outro, imprimindo no significante alguma ordem de
saber. E, por último, que toda essa estrutura funciona em decorrência de o sujeito se
estabelecer como efeito de um corte que faz dele subtração de seu suposto objeto
complementar.
Voltando a questão do eu e seu mundo, sabemos que os dois, como foi dito, se
constituem ao mesmo tempo. Mas é justamente porque o eu ganha seu contorno, ao se
separar do mundo, que ele é capaz de estar no laço social. Deve haver entre o eu e o mundo
uma distância ótima para que concretamente não haja apenas ou Um ou Outro como vemos
nitidamente ocorrer na paranóia instalada. Logo, é necessário, para que o sujeito possa
22
Este termo de Lacan se refere à única possibilidade de “existência” para o sujeito. Isto é, sempre como uma
ocorrência evanescente e instável, tendo como suporte único a ética. Um sujeito, em seu nome, há que se
responsabilizar por este advento do sujeito e expô-lo a suas conseqüências para que, retroativamente, o sujeito
tenha atravessado a cena. Sem o suporte ético não há de se encontrar nenhuma consistência que garanta
alguma presença de sujeito.
81
constituir algum tipo de laço social, que exista um eu e um mundo e que, nesta realidade
constituída, a experiência da perda tenha deixado sua marca.
É pelo fato de a marca da perda estar inscrita que a hiância entre o sujeito e o objeto
precipita o eu no laço. Isto ocorre, diga-se de passagem, como uma necessidade da
estrutura. A idéia de que o eu, e não o sujeito, se precipita no laço dando lugar ao sujeito,
deve-se ao fato de que o laço social para a psicanálise é tecido com a trama do sujeito e,
portanto, o sujeito não é exterior ao laço. Para a psicanálise o social não é o encontro do
sujeito com o outro, mas é o que fundamenta e lugar a um trabalho onde a circulação
significante possa produzir, com vicissitudes variáveis, os efeitos de sujeito, articulando a
ele uma posição frente ao desejo ou ao gozo marcada pelo modo através do qual o sujeito
se coloca frente à falta do objeto cedido.
23
Entretanto, o que nos alguma consistência do laço social é a moldura em que o
colocamos. Nossa janela para o mundo, ou seja, nossa fantasia, nos garante que eu não é
outro e que o Outro fora quer algo de “mim” - tudo bastante separado e devidamente
enquadrado. Mas, particularmente quando o sujeito, por alguma contingência, se vê privado
de sua fantasia, constatamos que o registro da paranóia fica à mão para ele, tornando-se
essa uma resposta muito possível para o sujeito.(CZERMAK, 1998:15) Por outro lado, a
angústia é o encontro com essa desmontagem sem recursos intermediários.
2.3 A Fantasia: do mundo ao sujeito
23
Diz-se objeto cedido na medida em que o sujeito reafirma seu consentimento ao corte produzido pela
função paterna na unidade que resultou em sujeito e objeto. (cf.Lacan, Seminário 10)
82
Para abordarmos a questão da fantasia faremos aqui um recorte do conceito de
fantasia na obra de Freud. Este destaca o caráter subversivo da psicanálise no que se refere
à nossa tendência de não nos responsabilizarmos por aquilo que nos acomete, a não ser que
um ato voluntário e consciente de nossa parte tenha ocorrido. Além disso, tudo que nos
acontece e nos retira da boa forma que tendemos dar à nossa imagem egóica e tudo que nos
afasta de nossa boa moral parece obra de alguma extraterritorialidade.
Na teoria freudiana, o conceito de fantasia opera pontos de virada fundamentais
para a clínica articulados, obviamente, a partir da própria clínica. Esse conceito é também
fundamental na medida em que diz respeito à direção do tratamento e na medida em que ele
conta do que a textura e as cores de seu mundo produzem para o sujeito. Ele também
guia Freud quanto à posição ética que ele propõe pela máxima: Wo es war, soll Ich
werden”, traduzida e tomada nesse lugar por Lacan da seguinte forma: “ali onde isso era, eu
(como sujeito) devo advir”, ou seja, onde o funcionamento pulsional parecia operar a
despeito de qualquer subjetividade, eu, nessa dimensão do sujeito, devo (como
constrangimento ético) comparecer com minha responsabilidade e operar a partir daí
mesmo, apesar de não poder reconhecer, naquilo que se refere ao isso, nada de escolha ou
de voluntário.
Lacan acrescenta, ainda nesse terreno, sua aposta de que podemos captar as bases
sobre a qual um analista virá a conduzir um trabalho analítico mediante a forma como ele
se situa diante do conceito de fantasia. Ele nos demonstra que é possível reler, através do
conceito de fantasia, a posição de Freud na condução do tratamento e os impasses surgidos
na clínica que o constrangeram a introduzir as viradas que se produziram por este conceito.
83
Essas viradas decorrentes das formulações do conceito de fantasia podem ser
observadas em dois momentos importantes do desenvolvimento da teoria e da prática
analíticas: na descoberta da fantasia de sedução e na descoberta da fantasia de
espancamento. O recorte desses dois momentos nos ajuda a acompanhar Lacan na
fundamentação da concepção da fantasia fundamental, destino certo da incidência do
trabalho analítico. Na verdade, obtivemos a real dimensão da virada operada por Freud
em sua clínica a partir do modo pelo qual Lacan trabalha com o conceito de fantasia
fundamental. Logo, nossa leitura de Freud será, em alguma medida, uma leitura à luz da
abordagem lacaniana.
A partir da descoberta de que a cena de sedução é uma fantasia, Freud formula que
a única realidade que interessa à psicanálise é a realidade psíquica, ou seja, aquela que é
constituída pela fantasia. Nesse sentido, a fantasia de sedução marca uma virada no
pensamento de Freud e pode ser considerada a formulação que inaugura a psicanálise,
estabelecendo que toda realidade é psíquica. Por sua vez, a fantasia de espancamento marca
uma outra virada. Em torno de uma fantasia reiteradamente encontrada em sua clínica,
Freud percebe a existência de algo que insiste em se repetir e sobre o qual o paciente,
mesmo interrogado, não pode falar. Às vésperas da formulação da pulsão de morte, da
compulsão à repetição, de um para além do princípio do prazer, a fantasia de espancamento
antecipa a idéia de que para o sujeito um real que o determina fundamentalmente. Em
sua leitura de “Uma Criança é Espancada”, Lacan retira importantes conseqüências que, por
fim, o fazem propor uma fantasia fundamental na formação e nos alicerces do sujeito.
O conceito de fantasia na obra de Freud denuncia a própria posição do sujeito.
Desde o primeiro momento em que ela se revela, na leitura de Freud da fala de seus
84
pacientes, ela se situa como o momento de descoberta de que a realidade para o sujeito é
determinada pela fantasia inconsciente. Isto é, a introdução do conceito de fantasia de
sedução se concomitantemente ao próprio momento da descoberta de que a realidade de
que se trata na psicanálise é a realidade psíquica. A cena de sedução, freqüentemente
exposta no relato das pacientes histéricas, foi o momento crucial desta descoberta.
O segundo momento que tomamos como ponto de virada na psicanálise pela via da
conceituação da fantasia é aquele em que Freud percebe na fantasia perversa inconsciente
um tempo do qual o sujeito não tem o que dizer. Na verdade, nada pode dizer. Também
recorrente na clínica de Freud, esta fantasia é enunciada pela frase bate-se numa criança
ou, como foi traduzida para o português, uma criança é espancada. As observações de
Freud acerca desta fantasia precedem a virada, na teoria psicanalítica, em torno da
formulação de um mais-além do princípio do prazer.
É importante frisar do que se trata o sintoma histérico. Por excelência, ele é a
conversão de um conflito psíquico em um adoecimento de algum órgão do corpo que esteja
inconscientemente associado ao conteúdo do conflito. A conversão é, portanto, como
metáfora, o modelo do mecanismo da histeria. Os recursos para tratá-la não devem mais ser
buscados no corpo sobre o qual a ciência intervém, mas sim no corpo significante da
atuação da fantasia, que sabemos, obedece a leis espaço-temporais próprias.
Devemos destacar que a atuação da fantasia de onde se buscam recursos para
tratar da metáfora histérica — não esteve desde sempre evidente em seus diversos aspectos.
Tendo privilegiado a associação livre como regra fundamental da psicanálise, ou seja, que o
analisante fale de tudo que lhe ocorrer, Freud valoriza o saber inconsciente. Isto significa
que algo que o sujeito não tem como desvelar senão através do artifício que compõe a
85
cena psicanalítica. A transferência, a associação livre, a presença do analista como função
de a e o corte operado pelo significante fazem parte das condições necessárias para que
algo da ordem do inconsciente se instale.
24
Entretanto, no início, Freud trabalhava com um
conceito estreito de realidade. Como se pode ler nas postulações sobre a etiologia da
histeria - datadas de 1893 e escritas com a colaboração de Breuer -, a realidade
propriamente dita (a material) era o que deveria ser alcançado como a verdade do
sofrimento do sujeito. Freud queria situar no começo do sintoma algum trauma vivido pelo
paciente. O que a ele parecia estar revestido, encoberto, escondia uma realidade material
que o sujeito evitava, apagando-a de sua consciência por não poder suportar sua verdade.
Porém, a cena que insistia em aparecer no relato das histéricas tinha conteúdo sexual. Este
conteúdo, via de regra, remetia-se a uma suposta sedução sexual sofrida por ela. Ao
avançar nos tratamentos, a verdade da qual Freud se aproximou foi a de uma sedução
sexual sofrida por suas pacientes em sua tenra infância. Surpreendentemente, quem via de
regra impunha este sofrimento à histérica era seu próprio pai. A crença na realidade factual
dessas cenas relatadas por suas pacientes levou Freud a postular que na origem de toda
neurose de histeria está uma sedução sexual sofrida pela histérica na infância.
Desde então, a sexualidade não mais abandonaria seu papel etiológico na teoria das
psiconeuroses. Contudo, naquele momento, Freud acreditava na necessidade de haver um
acontecimento factual, ou seja, uma sedução sexual propriamente dita para precipitá-la na
vida infantil. Neste caso, a sedução constituiria um fato traumático posto que a criança seria
24
Nesse viés, Lacan afirma: “a presença do analista é ela própria uma manifestação do
inconsciente” (O Seminário, Livro 11”, pág. 121.
86
ainda imatura para elaborar tal cena e idéias ou sentimentos vinculados a ela. As idéias e
sentimentos, por sua inadequação ao eu, tornavam-se muito aflitivos.
Tal abordagem seria radicalmente transformada no desenvolvimento das
descobertas freudianas. Como dissemos anteriormente, Freud virá a postular queuma
única realidade que importa à psicanálise e esta é a realidade psíquica.
Esta realidade, no entanto, não tem compromisso com uma suposta verdade
empírica e, no entanto, apesar de conferir um contorno próprio ao mundo do neurótico, lhe
a certeza de ser, ela mesma, a realidade material dos fatos. Ao fazer a escolha pela
realidade psíquica, Freud aporta ao mundo do fantasístico, o que lhe permite recolocar para
o sujeito aquilo que se apresenta como um desejo na constituição sintomática. Desde então,
a realidade factual vai perdendo progressivamente em consistência.
Podemos localizar o momento em que Freud apresenta seu primeiro conceito de
fantasia, que já destaca sua dimensão inconsciente, em 2 de maio de 1897, numa carta a seu
amigo e correspondente Wilhelm Fliess. Nessa carta Freud relata seu percurso:
(...) minhas conquistas estão-se consolidando. Em primeiro lugar, adquiri
uma noção segura da estrutura da histeria. Tudo remonta à reprodução de
cenas (do passado). A algumas se pode chegar diretamente, e
a outras, por
meio de fantasias que se erguem à frente delas.
As fantasias provêm de
coisas que foram ouvidas, mas só posteriormente entendidas,
e todo material
delas, é claro, é verdadeiro. São estruturas protetoras
, sublimações dos
fatos, embelezamentos deles e, ao mesmo tempo, servem para o alívio
pessoal. (...) Um segundo elemento importante de compreensão me diz que
as estruturas psíquicas que, na histeria, são afetadas pelo recalcamento, não
são, na verdade, lembranças, já que ninguém se entrega à atividade mnêmica
sem um motivo, e sim a impulsos decorrentes de cenas originárias)
25
(...).
Apercebo-me agora de que todas as três neuroses (histeria, neurose
obsessiva e paranóia) exibem os mesmos elementos (ao lado da mesma
etiologia), quais sejam,
fragmentos de memória, impulsos (derivados das
lembranças) e ficções protetoras
; mas a irrupção na consciência, a formação
de soluções de compromisso (isto é, de sintomas) ocorre nelas em pontos
diferentes (MASSON,1986:240).
Freud acreditava, nesta época, que a fantasia era um desvio na rememoração de
cenas sexuais mais primitivas. Isto é, cenas em que a histérica, para dar um exemplo, havia
25
Na tradução dessa mesma passagem na Edição Standard Brasileira, consta nota de rodapé do tradutor com
o seguinte comentário: “Lembrar nunca é uma motivação, mas apenas um meio, um método.
87
sido passiva na sedução sexual por parte do pai. As fantasias como “fachadas psíquicas”
seriam produzidas com o objetivo de deformar essas recordações. Neste sentido, as
fantasias reconstruiriam estas cenas de modo mais aperfeiçoado, para também torná-las
mais sublimes. Esta versão, que postula a fantasia como aquilo que encobre uma verdade
factual, considera que ela funciona como ficção protetora.
Em pouco tempo, Freud deixa de acreditar na fantasia como anteparo de uma
lembrança. Entretanto, mesmo assim, ele continua mantendo sua função de ficção
protetora. Nesta função, a fantasia é concebida como uma montagem que encobre, ou seja,
que vela algo que é insuportável para o sujeito. No entanto, Freud irá descobrir que o
insuportável não é a sedução sexual paterna. É antes o desejo sexual da própria histérica
que visa seu pai e que, em sua fantasia, o toma como sedutor. Nesta passagem, o que é
traumático se desloca, mas a fantasia continua sendo o destino do traumático.
Em uma outra correspondência a Fliess, datada de 7 de julho do mesmo ano, Freud
reconhece a fantasia como uma estrutura que pode ser recalcada, tornando-se inconsciente.
A isto se deve a tese de Freud de que as fantasias estariam acompanhadas por impulsos
perversos que surgem ao lado delas, uma vez que ele havia concluído que o recalque
incide sobre os representantes pulsionais inconscientes e não sobre lembranças. Freud
adverte, entretanto, que considera incompleto seu conhecimento sobre o agrupamento
destas fantasias e destes impulsos e, ainda, sobre os determinantes do recalcamento neste
caso. Afirma em sua carta que “aquilo com que somos confrontados são falsificações da
memória e fantasias - estas últimas referentes ao passado ou ao futuro (op. cit.:256)”.
Portanto, fantasia e lembrança encobridora têm estruturas distintas, embora ambas revelem
o impossível do acesso a uma suposta ocorrência factual.
Freud, neste momento, ainda se às voltas com a oposição entre verdadeiro e
falso. Tenta delimitar onde a verdade é encontrada e onde a falsificação faz suplência. A
fantasia, no entanto, coloca um problema. Ao mesmo tempo em que ela responde a uma
88
falta de referente causada pela ‘verdade’ recalcada, ela, por sua vez, também está suscetível
ao recalque.
26
Após mais alguns meses de trabalho, em 21 de setembro, Freud, em outra carta a
Fliess, revela que não acredita mais em sua neurótica (teoria das neuroses). Explica de onde
vieram os motivos de sua descrença:
O desapontamento contínuo em minhas tentativas de levar uma única análise
a uma conclusão real (...). Depois, a surpresa de que, na totalidade dos casos,
o pai, sem excluir o meu, tinha que ser acusado de pervertido — a percepção
da inesperada freqüência da histeria, com predomínio precisamente das
mesmas condições em cada caso, muito embora, certamente, essas
perversões tão generalizadas contra as crianças não sejam muito prováveis.
A incidência da perversão teria que ser incomensuravelmente mais freqüente
do que a histeria (dela resultante), porque, afinal, a doença só ocorre quando
um acúmulo de acontecimentos e um fator contributivo que enfraqueça a
defesa. Depois, em terceiro (lugar), o conhecimento seguro de que não
indicações de realidade no inconsciente, de modo que não pode distinguir
entre verdade e a ficção que foram catexizadas pelo afeto. (Por conseguinte,
restaria a solução de que a fantasia sexual se prende invariavelmente ao tema
dos pais (op. cit:265-266).
Freud realmente produz uma nova tese para sua neurótica que reformula conceitos
anteriores e que promove uma subversão do lugar do sujeito em seu sintoma. A versão do
sujeito, apresentada pela sua fantasia, resulta de algo que é insuportável para ele e que,
como conseqüência, é recalcado. No entanto, o recalque deixa de ser o resultado de uma
cena traumática vivida pelo sujeito para ser resultado de algo que ele experimenta como
traumático e pelo que ele tem que se responsabilizar. Freud não se engana mais com a
vitimização do sujeito quando avança em suas descobertas. Percebe que a neurose é o que
aliena o sujeito de seus desejos, desresponsabilizando-o por seus sintomas e fantasias. Em
suas fantasias, inclusive, é o outro quem o faz sofrer.
26
Veremos que Freud muda esta sua formulação em 1919, quando afirma que a fantasia é heterogênea às
formações do inconsciente.
89
Em 27 de abril de 1898, em outra carta, Freud escreve que a parcela de fantasia na
histeria é muito maior do que ele havia suposto (op. cit.:312). Chega a referir-se, em outro
momento, à chave da fantasia, isto é, à sua descoberta de que a chave da neurose não estava
nos acontecimentos reais, mas, de fato, nas fantasias. Desde sua descoberta sobre o estatuto
da fantasia, o tratamento psicanalítico passa a enfatizar a realidade psíquica, até postular
que não há outra realidade que não a psíquica.
Em 1899, Freud continua fazendo avanços nas descobertas do funcionamento do
aparelho psíquico. Tendo Fliess como seu principal interlocutor, ele escreve, em 19 de
fevereiro de 1899, sobre sua conclusão de que não apenas os sonhos, mas também os
ataques histéricos, são realizações de desejos. E conclui, também, que isto que se aplica aos
sintomas histéricos provavelmente se aplica a todos os produtos da neurose. Os sintomas
são, portanto, a via pela qual os desejos podem se realizar estando, não obstante,
submetidos ao recalque. O sintoma é o produto da solução de compromisso entre o desejo e
o impedimento de sua realização por seu caráter traumático e, neste momento, a realidade é
para Freud o lugar do impedimento: “Realidade e realização de desejo: é desses opostos
que emerge nossa vida mental”(op. cit.:346). Com isto, Freud concluirá que “o sentido do
sintoma é um par contraditório de realizações de desejo” (idem). Isto é, a realização de
desejo no sintoma diz respeito não ao pensamento recalcado como também ao
pensamento recalcador que pode se realizar sob forma de uma punição. Freud segue suas
elaborações concluindo-as com a série: desejo-fantasia-sintoma. Ainda na mesma carta,
conta a Fliess um episódio que se repete com um amigo em comum. Esse amigo “enrubesce
e transpira tão logo depara com alguém de uma determinada categoria de pessoas
90
conhecidas...” (idem). A conclusão de Freud é de que isto se deve a uma fantasia do amigo
em questão, na qual ele aparece como deflorador das pessoas que encontra.
Transpira enquanto deflora esforçando-se muito nisso. Um eco do sentido
desse sintoma encontra voz nele, como o ressentimento do derrotado, todas
as vezes que ele sente vergonha na presença de alguém: ‘Ora, essa boboca
acha que eu estou envergonhado. Se eu pudesse levá-la para a cama, ela ia
ver como é pequeno meu embaraço!’ E a fase durante a qual ele
transformou seus desejos nessa fantasia deixou sua marca no complexo
mental que produz o sintoma. (idem).
É possível perceber que a fantasia, nesse sentido, determina o sintoma. A fantasia é
pensada nesta passagem como aquilo que suporta o desejo, isto é, aquilo em que ele se
apóia para encontrar alguma realização. Se o sintoma, por sua vez, é justamente a formação
de compromisso entre o pensamento do desejo recalcado e o pensamento recalcador, a
fantasia é o que determina a solução sintomática. Ou seja, a fantasia é o modo pelo qual
cada sujeito encontra, pela ação significante, de se haver com a distância intransponível que
o separa de seu objeto causa de desejo. Ela corresponde, por um lado, a uma realização de
desejo e, por outro, ao impossível de sua realização.
Com a certeza de que não indicações de realidade no inconsciente, sendo
impossível diferenciar verdade e ficção investida de afeto, Freud conclui que o inconsciente
não pode advir plenamente à consciência. Portanto, tudo a que temos acesso resulta de uma
cena que se desenrola sobre a tela da fantasia.
Vimos que a cena narrada pelas histéricas em seu relato era sempre a de uma
sedução sexual operada por seus pais. Enquanto Freud acreditou na realidade factual desses
relatos, ele viu revelado aí um suposto e estranho hábito dos chefes de família vienenses de
assediarem sexualmente suas filhas. Quando Freud passou a conceber que a verdade
contida nesses relatos era de outra ordem, revelou-se para ele algo muito mais portentoso: a
sexualidade infantil.
91
Pela correspondência com Fliess, acompanhamos como Freud abandona a crença na
realidade factual do trauma, em favor da idéia de que na base do sintoma está uma fantasia.
O que esse avanço teórico irá revelar é que as fantasias de sedução encobrem a própria
atividade sexual da criança, aparecendo, assim, como produto e máscara da sexualidade
infantil. A sexualidade deixava de ser “privilégio” da maturidade, sendo agora concebida
como estando presente desde o começo. Não mais encoberta pelos lençóis do moralismo,
era agora percebida como determinante na vida sexual adulta.
Se os pacientes histéricos remontam seus sintomas a fatos fictícios é porque eles
criam tais cenas na fantasia e, desde então, essa realidade psíquica precisa ser levada em
conta. Essa reflexão foi logo seguida da descoberta de que estas fantasias destinavam-se a
encobrir a atividade auto-erótica dos primeiros anos da infância, a embelezá-la e a elevá-la.
E agora, pelas fantasias, toda a gama da vida sexual da criança vinha à luz (Freud, 1914,
vol. XIV:27-28).
Vemos, portanto, que o recalque incide justamente sobre a ordem do sexual,
fazendo com que não se saiba nada sobre isso. Mas é importante ressaltar que a
sexualidade, para a psicanálise, é propriamente o campo da submissão do sujeito ao desejo.
È o que constitui sua castração. Nesse sentido, a sedução tenta retificar a própria condição
humana, ou seja, a condição marcada pela realidade da castração.
Precedendo em um ano sua formulação a respeito da pulsão de morte, Freud, no
início do ano de 1919, se dedica ao estudo das perversões, tendo especial interesse pela
questão do masoquismo. Seu estudo resultou no texto: “Uma criança é espancada uma
contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais”. O texto aborda a questão de uma
fantasia que freqüentemente aparece na clínica de Freud. Ele a escuta na fala de vários
92
pacientes e reconhece nela uma estrutura que é própria da neurose. A fantasia “bate-se
numa criança” aparece como uma frase enunciada. Nada mais a acompanha, não
informações que a tornem menos obscura ou que revelem um enredo.
O que a frase traz consigo, no entanto, relaciona-se ao prazer. Em busca do prazer, o
paciente reproduziria uma mesma fantasia em inúmeras ocasiões. Freud acreditava que a
reprodução da fantasia, visando uma satisfação masturbatória, poderia ser, a princípio,
voluntária, tornando-se posteriormente quase uma obsessão. Neste sentido, a fantasia
apresenta inicialmente o aparecimento do consentimento para se constituir numa
compulsão. Mesmo que para o sujeito a fantasia se torne carregada de repugnância, ele não
consegue evitá-la. O prazer antes obtido torna-se, neste circuito, desprazer. A fantasia,
como afirma Freud, só é confessada com hesitação. A resistência a ela na análise é
inequívoca e ela aparece acompanhada de vergonha e de um forte sentimento de culpa
(FREUD, [1919]1980, vol. XVII:225).
Temos no texto, logo de partida, algumas afirmações sobre a fantasia. Em primeiro
lugar, a fantasia é uma situação imaginada à qual o sujeito recorre para ter sentimentos de
prazer; além disso, a reprodução da fantasia visa esse prazer que dela decorre; também é
perversa, pois circunscreve um modo fixo de satisfação que acaba resultando em uma
recorrência com características de obsessão; além do mais, a fantasia pode ser parcialmente
confessada e recordada; finalmente, resistência em função da fantasia, vergonha e culpa
fazem parte de sua estrutura.
Na tentativa de compreender as motivações da recorrente fantasia, Freud interroga
seus pacientes sobre os lugares que os sujeitos em jogo na fantasia ocupam. Nesta a
criança na qual se bate e a pessoa que bate nela. Sua questão obtém deles a seguinte
93
resposta: “nada mais sei sobre isso, estão batendo numa criança”. E, ao perguntar sobre o
sexo da criança espancada, Freud ouve: “não sei, não importa”. Portanto, há na constituição
da fantasia um desconhecimento, uma ignorância, que lhe é própria. Percebemos no
silêncio que ronda a fantasia, que sua fórmula não constitui um enredo compensatório, ela
aparece apenas como uma formulação condensada e enigmática para o sujeito.
Freud acredita que “uma fantasia dessa natureza, nascida, talvez de causas
acidentais na primitiva infância, e retida com o propósito de satisfação auto-erótica,
pode, à luz de nosso conhecimento atual, ser considerada como um traço primário de
perversão” (op. cit.:228).
O que ocorre na fantasia é uma fixação acidental em um modo de obter prazer,
caracterizando seu traço perverso. O sujeito tende a se fixar numa fonte que é, a princípio,
fonte de prazer. A fixação está aí, por um lado, recortando um circuito pulsional e, por
outro, amarrando o sujeito nesse circuito.
Em sua pesquisa, Freud afirma que é preciso que se admita que essas fantasias
“subsistem à parte do resto do conteúdo de uma neurose e não encontram lugar adequado
em sua estrutura” (op. cit.:230) isto é, apesar de se constituírem como a condição da
neurose, ela não se articula para o sujeito como uma formação inconsciente. Freud
considera, também, que ela pode representar um resíduo e não uma manifestação inicial,
como algo que resta como cicatriz do complexo de Édipo.
As fantasias de espancamento vão sendo trabalhadas na pesquisa clínica de Freud
através da análise dos enunciados proferidos por seus analisantes em torno de uma
proposição fundamental. A tarefa de Freud consiste, justamente, em tentar dar lugar à
enunciação da frase da fantasia. Isto é, trazer o sujeito do inconsciente à cena.
94
Os três enunciados da fantasia advindos nas análises de Freud são: o meu pai está
batendo na criança que eu odeio; o meu pai me bate; bate-se numa criança. No
desdobramento da primeira fase temos: “O meu pai não ama essa outra criança, ama apenas
a mim”. Por se referir ao amor incestuoso, esta fase está destinada ao recalque. Na segunda
fase, a frase tem que ser construída na análise, não há o que tornar consciente. Na suposição
de Freud, ela mantém um gozo masoquista e talvez isso explique sua falta de suporte
simbólico. Na última fase, na frase enunciada, a criança e o pai somem de cena.
Por fim, Freud afirma que “a fantasia, via de regra, permanece inconsciente e
pode ser reconstruída no decorrer da análise” (op. cit.:238). Portanto, a frase da fantasia que
não pode ser dita, da qual não se têm notícias, onde faltam associações e que pode ser
construída em uma análise, leva o sujeito a dizer: nada mais sei sobre isso. Ela não pode
ser enunciada porque se apresenta como condição ou, melhor dizendo, como a estrutura
formal que é a condição de qualquer enunciação. Ela é pura forma. A fantasia, nesse
sentido, se funda como uma estrutura a partir do furo na cadeia significante. Ela, ao mesmo
tempo, articula esse furo como causa no movimento de buscar recobri-lo. A função da
fantasia que é a de, num tempo, encobrir e revelar a verdade da causa do sujeito, está
aí apresentada em 1919.
Podemos perceber que, desde suas primeiras formulações sobre a fantasia, Freud
reconhece que ela é uma estrutura protetora, ou ainda, uma ficção protetora. O que muda
em sua teoria é o estatuto daquilo de que o sujeito se protege. Ou seja, se antes Freud
acreditava que a proteção da fantasia poupava o sujeito de um trauma vivido, agora ele sabe
que ela o protege da fixão que o sujeito constitui pelo vazio que está no centro de sua causa.
95
Ela o protege de sua atração pela falta.
27
Esta será a via pela qual Freud chegará a formular
um mais-além do princípio do prazer em 1920.
Se a fantasia, de certo modo, preserva o sujeito de assumir seu dever, ela, em
alguma medida, o faz ter notícias disto. No entanto, sabemos que o sujeito não pode tomar
seu rumo sem ter sua realidade enquadrada pela fantasia. Nesse caso, como pode o discurso
analítico produzir uma nova posição para o sujeito? Diríamos, precipitando a resposta, que,
ao se dirigir ao sujeito no momento em que ele se lança na aventura significante depondo
suas armas, a psicanálise permite que, cada vez que o sujeito toma a palavra, se confronte
com o que lhe retorna do Outro naquilo que o concerne.
Lacan, que retira dos conceitos da psicanálise sua estrutura mínima, seu osso,
propõe para fantasia uma fórmula na qual temos: o sujeito dividido, $, efeito da operação
significante, o sinal de conjução e disjunção e o objeto a. O a, que se situa do outro lado do
elo, corresponde a uma queda no campo dos significantes. Ele é o que resta de uma
operação de corte, é o que cai como produção da cadeia significante. Então lê-se: $ a.
(LACAN, Seminário da Angústia, dez/1962:8)
Para dar conta desse objeto que ele acrescenta ao corpo da psicanálise, no Seminário
da Angústia, Lacan formula uma operação aritmética de divisão na qual faz aparecer o
objeto a no momento de sua cessão. A operação tem como elementos o Outro originário
como lugar do significante, na posição de dividendo e o S, ainda não existente (mera
suposição) que irá se situar como determinado pelo significante, na posição de divisor. A
operação produz um quociente A, que devemos ler como o grande Outro barrado e um resto
27
Expressão usada por Lacan em “O Seminário, Livro 7”, p. 10.
96
a, donde advirá como efeito um $. Podemos acrescentar à operação, no eixo esquerdo, onde
temos a e $, a punção (◊), obtendo, como saída final da operação, a fantasia.
A S X
a A angústia
$ desejo
Lacan segue dizendo:
É com relação ao tesouro do significante que, desde já, espero, constituir o
espaço onde ele tem de se situar, que o sujeito, neste nível mítico que ainda
não existe, que apenas existe partindo do significante que lhe é anterior, que
em relação a ele é constituinte, o sujeito faz, no
A, essa primeira
interrogação operativa — se vocês querem — quantas vezes
S? E a operação
sendo aqui colocada de tal modo que, no
A marcado desta interrogação,
aparece diferença entre esse
A resposta e o A dado, algo que é o resto, o
irredutível do sujeito, algo que é
a; a é o que resta de irredutível nesta
operação total de advento do sujeito no lugar de Outro, e é daí que ele vai
tomar sua função.(...)
Este resto, então, enquanto é a queda, digamos, da operação subjetiva, este
resto, nele reconhecemos aqui, estruturalmente, em uma análise calculadora
(calculatrice), o objeto perdido; é disto que temos de tratar, de uma parte no
desejo, de outra parte na angústia (op.cit., março/1963:5).
O objeto a — produto da cadeia significante que se mantém excluído por sua
incompatibilidade a ela é, conforme seu lugar na estrutura, objeto causa de desejo,
objeto da angústia e objeto de gozo. Ele é objeto causa de desejo por ser o que falta como
interseção, como complementaridade, entre o Outro e o sujeito barrado. Ou seja, “o a de
que se trata é o objeto absolutamente estranho ao sujeito que nos fala enquanto causa de sua
falta” (op.cit., jan/1963:9). Como objeto de angústia, o a faz sua aparição. A angústia,
como diz Lacan, não é sem objeto, é angústia diante do aparecimento no campo imaginário
97
deste ‘objeto aestruturalmente impróprio à imaginarização. A angústia é, então, um afeto
que toma o sujeito diante da falta da falta diante da presença de um estranho que está
onde algo deveria faltar. Nesta experiência tudo está posto, a angústia é aquilo que não
engana, o sem dúvida” (op. cit., dez/1962:8).
Se retomarmos a operação de divisão, notaremos que Lacan assinala três estágios: o
X que é o do gozo mítico, o da angústia e o do desejo. A angústia, afirma ele, tem uma
função mediana entre o desejo e o gozo, o que é diferente de dizer que ela tem uma função
mediadora. Mas o que Lacan apresenta nesta operação é que a angústia, como o tempo de
evidência do a, determina que “o gozo não conhecerá o Outro, A, senão por este resto a
(op. cit., março/1963:4). Ou seja, desde que a está presente como o que resta da cadeia
significante, o sujeito que advém ao final da operação pode visar o gozo do encontro
com o Outro pelas vias de um desejo que concerne ao a. O suposto gozo - suposto
obviamente a posteriori - remete ao momento mítico no qual o significante poderia
significar-se a si mesmo. O suporte do desejo, portanto, é o sujeito barrado e a em
conjunção/disjunção na fantasia. Lacan diz que “a fantasia é $ numa certa relação de
oposição a a, $ ae que poderíamos colocar as coisas nestes termos: $: a/S, ou seja, o
sujeito barrado como produto do corte de a sobre o sujeito do gozo.
a simboliza o que,(...) na esfera do significante é, sempre, o que se apresenta
(...) como perdido, como o que se perde na significantização. Ora, é
justamente este dejeto, esta queda, aquilo que resiste à significantização
[significantisation], o que vem a constituir-se no fundamento como tal do
sujeito desejante, não mais o sujeito do gozo, mas o sujeito enquanto que na
via da sua busca, enquanto que goza, que não é busca de seu gozo, mas é de
querer fazer entrar este gozo no lugar do Outro, como lugar do significante,
é por esta via que o sujeito se precipita, se antecipa como desejante (op.
cit:5).
98
Todavia, na fantasia a articulação: $ - a tende à supressão do a (como falta) pela
produção de saber, de saber responder sobre o desejo. Na angústia, por sua vez, a
intervenção do objeto a está testemunhada. Não há saber em causa, há verdade.
No entanto, devemos notar que antes de a angústia aparecer no sujeito, afetando seu
lugar na fantasia, o sujeito ignora a fantasia. A fantasia pode ser suposta uma vez
abalada pela angústia. De outro modo, ela trabalha em silêncio. Neste sentido, o sujeito de
nada sabe. Ele sabe através de sua fantasia, mas não sabe que é dela (de uma tal estrutura)
que ele tira suas respostas. Assim como se pode dizer que a própria angústia aparece
quando há um desfalecimento da cobertura fantasmática, pode-se dizer que a própria
fantasia só aparece no momento de seu desfalecimento, do “terá sido”.
Operando pela fórmula de conjugar o sujeito com o objeto, a fantasia enquadra o
mundo do sujeito oferecendo para ele uma cena, o que não quer dizer que seja uma bela
cena, apresentada dentro das molduras de uma janela (Lacan chega a considerar que a cena
do sonho recorrente do Homem dos Lobos, vista através de uma janela, é “a fantasia pura
desvelada em sua estrutura”) (op. cit., dez/1962:5).
28
Logo, a estrutura da fantasia oferece
ao neurótico um mundo (que está aí em oposição à outra cena, que Freud apresenta como a
da ordem do inconsciente) erigido nos enquadres de uma janela. No entanto, em sua
abertura a janela está preenchida por uma tela que encobre a verdade do objeto enquanto
perdido, ou seja, a verdade da castração.
Mas, diz Lacan, a angústia está também enquadrada “por uma janela que se abre
(idem)”. O unheimlich - o estranho, o assustador - que é desvelado pela angústia nesta
imagem do objeto a, aparece na janela pelas frestas, ou seja, num enquadramento. Neste
28
cf. Freud, S., “História de uma Neurose Infantil” (1918 [1914]), vol.17.
99
sentido, Lacan afirma que a outra cena aparece “num levantar de cortinas” pelas frestas do
quadro posto diante da janela, pois o quadro (a tela) está para não deixar ver o que se
pela janela. Estão aí a estrutura da angústia e a da fantasia, estruturas que Lacan faz
coincidir.
Entretanto, podemos afirmar que não janela sem frestas. Portanto, pela
conjunção e disjunção do sujeito barrado com o objeto a, na fantasia o objeto está velando
e revelando a falta do sujeito. Vela ao encobrir o furo no campo do significante e revela
justamente por buscar encobri-lo.
29
A fantasia opera como resposta ao desejo do Outro e
mantém sua vinculação com a falta no campo significante.
Lacan também nos diz:
O $ em relação ao a toma aqui valor significante da entrada do sujeito nesta
alguma coisa que vai levá-lo a esta cadeia indefinida de significações que se
chama destino. Pode-se dele escapar indefinidamente, a saber, que isto que
se trataria de reencontrar, é justamente o começo, como ele entrou nesse
negócio do significante (op. cit., dez/1962:13)
.
A fantasia é, em suma, a tela que colocamos na janela sobre a qual o sujeito se
debruça para ver o mundo e conhecê-lo. A cena da tela, então, organiza um mundo no qual
o sujeito se insere. Este mundo, no entanto, nada mais é do que uma cena na tela que
recobre o buraco da janela. O buraco, por sua vez, é aquilo que nomeado real, nem faz
imagem e nem é absorvido pela estrutura simbólica. A angústia, então, é essa nesga de real
que passa pelas frestas da tela na janela, dada a ver nos momentos em que, poderíamos
dizer, o sujeito perde o foco da cena.
Em tal caso, a fantasia é a estrutura que sustenta não o conhecimento de cada
sujeito sobre o seu mundo, como também é a base sobre a qual se fundou a teoria do
29
Portanto, o sentido aqui de velar é tanto o de cobrir com um véu, quanto o de zelar .
100
conhecimento para o homem. Essa teoria, como nos lembra Lacan desde seus primeiros
seminários, é central em qualquer elaboração da relação do homem com seu mundo. Nesta
perspectiva, trata-se do ser do sujeito vir a conhecer o mundo no qual ele está inserido, se
adequando ao que o mundo é. Trata-se, por conseguinte, do sujeito ter que se adequar “com
a coisa numa relação de ser com ser relação de um ser subjetivo, porém bem real, de um
ser que sabe que ele é, com um ser que se sabe que é” (LACAN, [1955]1981:280). Ou seja,
estamos diante de um saber que estabelece o fundamento dessa relação entre o ser e o ser.
O saber, reduzido à capacidade do homem em conhecer e produzir conhecimento,
estabelece em ambos os campos - o do homem e o do mundo – a consistência do ser.
Entretanto, na experiência discursiva que a psicanálise propõe ao sujeito pelo
discurso do analista, o registro desse encontro é outro. Trata-se de um sujeito destituído de
ser e provocado por um objeto idêntico a si mesmo cuja consistência se deve ao fato de ser
ele o que cai, o que resta, o que não se insere no jogo significante, sendo, em essência,
impermeável à metáfora ou a metonímia, pelo o que ele se reduz à presença real da falta
simbólica. Logo, se mundo no universo da psicanálise, mundo do desejo e este, na
verdade, nos aparece (na fresta da janela) como o negativo do mundo (sempre originado e
mantido pela fantasia) no qual pensamos viver, irreversivelmente inconsistente, infectado
pela falta e impossível de ser absorvido – o (i)mundo.
É curioso notar que é na tensão entre o (i)mundo e o mundo - sobre o qual tecemos
vivamente nosso conhecimento - que se faz laço social, pois que o laço garante que um não
anule o outro - ainda que o possa desmontar temporariamente. Portanto, o laço não exclui
nem um lugar para o sujeito nem o Outro como lugar. Deste modo, ainda que o social não
seja, para a psicanálise, o resultado de um somatório de sujeitos, este social específico
101
permite, pela dupla inscrição, tanto a congregação quanto um tanto de segregação, como
dissemos.
Ao contrário, podemos, por exemplo, notar que a paranóia, quando ultrapassa nossa
experiência narcísica cotidiana, não se constitui como uma forma de laço social justamente
por fazer consistir no Outro um Um e não conceder sua própria chance como sujeito a um
lugar terceiro. Temos notícias de que:
(há) aquelas formas de paranóia que são constituídas pela certeza, pela
presunção de que no Outro haveria um Um, quer dizer que aqui um
Outro, nessa forma aqui, mas que esse Outro está ocupado pela presença de
um Um, que trama todo o negócio.
Parece-me interessante que a identificação, no paranóico, desse Um que vem
assim obturar, anular a dimensão Outra, é ao mesmo tempo o que vai colocá-
lo num conflito competitivo com relação a essa figura ideal no Outro, a qual
supostamente trama todo o negócio e onde, aqui ainda, a alternativa será
disjuntiva, é “ou bem ele, ou bem eu”; não pode ser os dois (MELMAN,
1999:15).
A fantasia, com sua dupla função de resposta e regulação do desejo do Outro, revela
que, ainda que o sujeito tente fazer viver no Outro alguém que o sustenta e, portanto, para
quem ele deve endereçar a pergunta sobre seu desejo (que naturalmente, pensa ele, o
concerne): Che vuoi? Que queres?, mesmo assim ela mantém o sujeito sem uma resposta
satisfatória.
30
Tendo em vista que o Outro não habilita nenhuma certeza nas possíveis
respostas - nem poderia fazê-lo uma vez que não alguém para responder e decidir
sobre coisa alguma - mantém-se no sujeito a demanda insatisfeita que é, ela mesma, aporte
de seu desejo. O desejo, por sua vez, é o movimento do sujeito frente à falta, digamos, de
resposta e matéria-prima com a qual se faz laço social. Se tudo estiver preenchido,
30
Apesar da fantasia ser em si um esboço de resposta ao “Che vuoi?” ela não suprime a pergunta. Seu estatuto
é, ao mesmo tempo, de suturar a demanda e de sustentá-la.
102
respondido e dado, ainda que com que o desfecho mais atroz, nada haverá de fazer o sujeito
se dirigir ao Outro.
Embora, de certa forma, resguardado do real por este mundo que o neurótico
constitui, ele apela ainda assim para um mundo no mundo onde seja possível para ele se
assegurar de que a exposição ao Outro seja tanto menos quanto possível. A intenção é a de
evitar no embate do desejo o encontro do sujeito com o objeto a como causa de desejo e,
portanto, como produto de sua perda. Esse “mundo no mundo”, o sujeito constrói com sua
vida privada.
Como abordamos na questão da espacialidade do dentro/fora, o sujeito inaugura o
“dentro” como o lugar onde, a princípio, ele pode estar a salvo de todo mau e o “fora”, o
externo a si, por sua vez, como a sede onde se aloja o mau que se traduz pelo desconhecido,
pela alteridade, em suma, pelo estranho. O estranho, portanto, na lógica da neurose é
justamente o que fica excluído daquilo que constitui o eu. Contudo, a novidade que a
psicanálise traz é a de fazer aparecer o estranho como o que é mais íntimo ao sujeito.
A privacidade - a vida privada, que oferece ao sujeito um lugar protegido do mundo
sugere, então, um espaço onde o sujeito estaria ao abrigo da imposição das leis
significantes e, portanto, do Outro. Como a psicanálise nos faz ver, a verdadeira exposição
à alteridade é evitada até suas últimas possibilidades. No âmbito privado o sujeito
reconhece como sustentável uma certa autonomia e mantém a ilusão de fazer suas próprias
leis. A psicanálise, entretanto, o expõe inexoravelmente ao Outro campo.
2.4 – O sujeito e o Social
103
Retomando neste ponto a questão do laço social como discurso, verificamos que
Lacan foi capaz de delimitar a ética da psicanálise e o objeto a - a que ele mesmo a
consistência e o estatuto que operam extensos e intensos efeitos em nossa experiência.
Como desdobramento da ética extraída do campo do desejo no sujeito, com a constituição
do objeto a e com sua elaboração sobre o ato psicanalítico, ele constitui a teoria dos quatro
discursos, como dissemos, designando como discurso o que funda e sustenta o
funcionamento da linguagem no sujeito, permitindo que os elementos de sua engrenagem
circulem por quatro possíveis lugares, sempre mantendo entre si a mesma distância, ainda
que cada um esteja numa outra posição.
Os lugares designados no capítulo um podem ainda ser nomeados respectivamente
por desejo (onde se lugar do agente), Outro (onde se trabalho), recalque (onde se
verdade) e perda ou mais- de- gozar (onde se lugar da produção) que são ocupados pelos
quatro elementos conhecidos: (S
1
), (S
2
), o objeto a que se inscreve como gozo ou causa
de desejo e o sujeito. Os elementos, que se seguem nessa ordem, respeitando entre si
sempre a mesma distância, passam de um discurso a outro, portanto, por quartos de volta
sobre o quadrilátero.
Cada posição em que cada elemento se encontra determina um modo de relação do
sujeito ao desejo ou ao gozo e aos significantes que os representa para outros significantes,
isto é, cada uma destas posições conta de um modo de laço que se estabelece na nossa
estrutura social. Os quatro discursos, em suma, são a escrita das variações que regem nossa
relação social. Tocando o cerne de nossa experiência social, Lacan nos faz ver que não
lugar para o sujeito fora do âmbito social. O sujeito é, nesse sentido, uma letra da escrita
dos modos possíveis de laço.
Partindo do ponto de constituição do sujeito, percebemos que a imbricação no social
se apresenta desde então. O destino do sujeito, do sujeito por vir, é ser recortado da unidade
104
mãe-bebê por um Outro e destacado como corpo do corpo da mãe. Para tanto, é preciso que
ele consinta respondendo a esse corte. O Outro se introduz como elemento terceiro dessa
unidade mãe-bebê para retirar dela o dois que, na psicanálise, pode ser contado depois
do três. O Outro é, portanto, o termo que separa um e outro e, como terceiro elemento
prescrito pela linguagem, atravessa esse campo do qual o sujeito deverá advir. Esta função
do Outro no momento de constituição do sujeito é propriamente a função paterna. Assim, o
sujeito é totalmente tributário do Outro como terceiro intervindo nessa unidade mãe-bebê e
do laço que passa a comandar sua primeira situação social, a família.
Em um texto do princípio de sua obra, Lacan trata da instituição familiar como lugar
do exercício da autoridade concentrada nomeadamente em um de seus membros, veículo de
transmissão e suporte da sucessão de uma linhagem. Desta forma, ele trata da família como
um laço enodado pela questão da herança, o que equivale a dizer, pela questão da
transmissão. Assim, o laço social é inseparável da transmissão, o sujeito de sua dívida para
com o Outro e o significante, de sua sucessão em cadeia.
O sujeito, em seu exercício, está inteiramente imerso nos fundamentos do que
constitui para a psicanálise o social que, assim visto, depende do fato de que um sujeito
ocupe um determinado lugar, nem que este lugar seja o do recalque. No entanto, a
determinação do sujeito ao social não o impede, como insistimos em dizer, que ele construa
um espaço privado para si que, ainda desse modo, é marcado por algum arranjo do laço
social como, por exemplo, o laço conjugal, onde suas ficções possam se manter mais ou
menos intactas.
A exposição do sujeito ao Outro franqueia para ele o retorno de sua própria
mensagem de forma invertida sobre a qual, na verdade, o sujeito não quer saber nada. A
privacidade e as questões ligadas a ela, por sua vez, oferecem ao sujeito um asilo onde as
105
ficções escapam de sofrer relevantes abalos, salvas pelo pacto de egos, sempre iguais em
suas intenções de manter acesa a chama da ignorância frente à verdade do sujeito.
31
Esta verdade pode ser aproximada ao fato de que o sujeito está apartado de uma vez
por todas de “seu” objeto e que o Outro nada tem a restituí-lo uma vez que, sem
intencionalidade - visto que nele nenhum sujeito habita -, mantém esta distância, de certa
forma, preservada. O Outro - que na fantasia é habitado por um sujeito (portanto, desejante)
- opera como tal porque sujeito trabalhando para sustentá-lo. Quando um pai
comparece em sua função no lugar do Outro, justamente o que ele está ocupando é um
lugar, um lugar ofertado pela estrutura que depende de um sujeito que, a cada vez, venha a
pagar o preço de garanti-lo. Ao contrário disso, o neurótico quer ter certeza de que no
Outro mora alguém, quiçá Deus, que quer algo de nós e que estará sempre nos velando.
O sujeito se está rendido à linguagem, está rendido ainda mais ao discurso
em cujo movimento seu lugar está inscrito desde seu nascimento pelo seu
nome próprio. Nada antecede às leis do discurso. Toda experiência adquire
sua dimensão essencial na tradição instaurada pelo próprio discurso. Esta
tradição funda as estruturas elementares da cultura e a partir dela se pode
escrever a história. Por sua vez, tais estruturas, ordenam as trocas que seriam
impossíveis “fora das permutações autorizadas pela linguagem (LACAN,
[1957]1998:498).
Assim, Lacan afirma que é nessa estrutura significante que o mundo - o mundo do
sujeito da Ciência inaugurado por Descartes - se sustenta e se funda. Esse sujeito, portanto,
é datado e está em condições (como condição de possibilidade) de advir numa estrutura
discursiva que, como estrutura, não é particular. A singularidade do sujeito é dada na
estrutura discursiva por um significante que terá operado para ele como S
1
(sempre numa
temporalidade do a posteriori). Conclui-se, então, que para que o sujeito advenha, ele tem
que ser antecedido por uma rede significante que não é nem privada nem a-histórica e que
está inserida numa cadeia de transmissão que é, por sua vez, trans-individual.
31
Lacan chama a atenção para homofonia que há em francês para egos e égaux, isto é, entre egos e iguais.
106
O social é, por conseguinte, o que sustenta a relação entre S
1
e S
2
justamente porque
entre eles um buraco. A segregação de um significante introduz um corte entre ele e os
outros (S
2
). Os S
2
, por sua vez, deixados por si mesmos não constituem qualquer sentido;
para que funcionem produzindo sentido é necessária a intervenção de S
1.
haveria
manifestações do inconsciente, tais como atos falhos, se - e somente se - pudermos
pressupor um sentido que possa vir a se formar ali. Ou, como diz Lacan, se for possível
pressupor que ali possa aparecer um sujeito.
2.5 Sujeito e autonomia
Se o sujeito de certa forma é uma decisão que se precipita numa significantização, a
neurose é o que comporta para o sujeito toda sua divagação pela qual ele não consegue
responder à convocação sexual. Mesmo porque a anatomia do sexual em jogo no humano é
significante. Neste sentido, o falo como representante do funcionamento significante no
sujeito, coincide com o órgão sexual masculino pelo fato de ser ele mesmo também um
significante, portando em seu funcionamento a detumescência de todo sentido e de toda
realização estável.
a ciência pode almejar ter com o órgão sexual uma incidência direta, justamente
retirando dele seu caráter sexual, ou seja, desarticulando real e simbólico. O sexual é a
ligação entre simbólico e real na medida em que ele é a inscrição de uma falta.(LACAN,
[1964]1985:159). a ciência e cada vez mais a nossa modernidade está mais aderida a
ela –, em sua ambição de interromper ou fazer avançar os acontecimentos humanos, pode
tentar operar uma dessexualização do falo, porém cada cientista em sua condição de sujeito
está igualmente comandado por ele.
107
Não se pode escapar do fato de que o sexual expõe ao sujeito a privação de sua
suposta autonomia (aí moram os problemas sexuais no humano) e, justamente isso, é o que
o sujeito deve manter interno a suas muralhas. Entretanto, o sexual não concerne à
privacidade, o que não quer dizer que seu exercício tenha que ser público - ao contrário. Ele
não nos coloca na dimensão pública por estar à vista; ele nos expõe ao público porque se o
sujeito quanto ao sexual não tem autonomia, desde então, o Outro está em questão, o
sujeito está exposto à alteridade. Quem sabe não seja por isso mesmo que o sujeito fique
tão perseguido quando a coisa no sexual não funciona, há sempre para ele nisso um
mistério que ronda. Logo, se algo de privado no sexual, ele está reduzido ao fato do
sujeito estar privado do comando. Isso por sua vez abarca a vergonha humana no que
concerne aos assuntos sexuais. Lacan aborda a questão dizendo que:
(...) se existe o indecidível, é um indecidível que se sustenta nisso: que o
amarremos (nouons); que existe o indecidível, mas que a idéia vem dessa
segurança que a matemática dá, precisamente, a de que não há um não-nó, se
posso dizer, pois é a única definição possível do real, e que apertar os nós
serviria para não escorregar indefinidamente, e é para isso que nos
esforçamos na análise. Pois o que é a análise, no final das contas? É uma
coisa que se diferencia disso, é que permitimos uma espécie de irrupção do
privado no público. O privado evoca a muralha, os pequenos assuntos de
cada um, que tem um núcleo perfeitamente característico, o de tratar-se de
assuntos sexuais. É esse o núcleo do privado. É, de qualquer modo,
engraçado que esse “público”, no qual fazemos emergir o privado, tenha um
laço completamente manifesto, para os etimologistas, com publis, ou seja, o
público é o que emerge do que é vergonhoso, pois como distinguir o privado
daquilo que se tem vergonha?
É claro que a indecência de tudo isso, indecência do que se passa numa
análise, em virtude da castração – da qual a análise foi bem feita para evocar
sua dimensão a partir de Freud –, em virtude da castração, essa indecência
desaparece. Toda questão é então esta: tirar da castração um gozo, será isso
o mais-de-gozar? Em todo caso é tudo que é permitido até agora, a qualquer
pessoa, se é que a palavra “pessoa” designa pessoa
32
.(LACAN, 1975-
1976:116).
32
Em francês, personne significa: pessoa e ninguém.
108
Então, como já foi dito, uma vez que a psicanálise se dirige ao sujeito, não podemos
supor um dentro e um fora. O conceito de sujeito estabelece uma topologia na qual não
corte entre interno e externo, entre privado e público. A figura do oito interior é revela que
o interno é ao mesmo tempo o outro lado do externo e sua continuidade. Um traço deitado
sobre tal superfície (a banda de Moebius) desliza sobre ambos os lados sem que nenhum
corte se dê. Na psicanálise, o corte subtraído do espaço ao qual estamos habituados recai
sobre a linha temporal. Ao contrário, a temporalidade não nos oferece a continuidade na
qual desdobramos passado, presente e futuro. O passado na psicanálise advém do futuro, o
que estabelece um tempo descontínuo estabelecido em cortes.
Na suspensão de toda nossa experiência intuitiva, é fundamental destacar que o eu é,
ao mesmo tempo, possibilidade e defesa contra o sujeito, no que ele veicula de sua verdade.
Vemos com isso que, na psicanálise, não se pode pretender fazer denúncia de uma
instância, de uma posição ou de um fato; ou, por outro lado, não se pode fazer militância
destes mesmos temas. Nela, trata-se de abordar o real pelo simbólico e não de evitá-lo ou
de apoiá-lo, mas apenas de recolhê-lo precariamente pelo simbólico (LACAN,
[1964]1985:14). Trata-se de ceder ao que não se pode evitar e, logo, de parar de lutar
indefinidamente contra a impossibilidade de se separar da falta. Quando se espera encontrar
a saída, separando o bom do mau, o dentro do fora, o eu de sua falta, notamos que ela se
revela como uma solução paranóica:
É muito interessante notar o quanto este modo de apreensão da relação do
dentro e do fora é um modo de apreensão fundamentalmente paranóico.
Cada vez que vocês encontram em algum lugar esta distinção dentro-fora, é
por si um modo de pensamento, um modo de apreensão paranóica. A
concepção lacaniana, que consiste em mostrar que o que dentro, está
fora, (...) esta concepção indica, pois, que a questão do dentro e do fora deve
ser inteiramente repensada (MELMAN, 1986/2005:21).
109
O peso desta questão deve ser retomado mais uma vez pelas palavras de Lacan:
Fala-se de vida privada. Sempre me surpreendo que essa expressão “vida privada”
não tenha jamais interessado a ninguém, especialmente aos psicanalistas, que deveriam
estar particularmente interessados nisso. Vida privada... de que? Poderíamos fazer floreios
retóricos. O que é a vida privada? Por que ela é tão privada, esta vida privada? Isso devia
interessar a vocês. A partir do momento em que se faz uma análise, não mais vida
privada. É preciso dizer que quando as mulheres ficam furiosas porque o marido se analisa,
elas têm razão. Não adianta, nós, analistas, nos incomodarmos com isso, é preciso
reconhecer que elas têm razão, porque não há mais vida privada.
Isso não quer dizer que ela se torne pública. uma comporta intermediária: é uma
vida psicanalisada ou psicanalisante. Não é uma vida privada. Isso nos leva a pensar.
Afinal, por que será tão respeitável, essa vida privada? Vou dizer. Porque a vida privada é o
que permite manter intactas essas famosas normas que, a propósito do chalé na montanha,
eu estava em vias de jogar pelos ares. “Privada”, isso quer dizer tudo o que preserva esse
ponto delicado do que é o ato sexual e de tudo o que decorre dele no acasalamento dos
seres, no “você é minha mulher e eu sou teu homem” e outras coisas essenciais, em um
outro registro que conhecemos bem, o da ficção. È o que permite manter em um campo no
qual nós, os analistas, nós introduzimos uma ordem de relatividade que, como vocês notam,
não é absolutamente fácil de dominar, e que poderia ser dominada com uma única
condição, se pudéssemos reconhecer o lugar que temos nela, nós enquanto analistas, não
enquanto sujeitos do conhecimento, mas enquanto analistas instrumentos de revelação
(LACAN, 1967-1968: 272 e 273).
110
Capítulo 3
O GOZO E O DESEJO
No primeiro capítulo contemplamos a tese de Freud em “Totem e Tabu” que
sustenta que a civilização se funda na exclusão de um gozo. Em seu argumento, ele
demonstra que a civilização exige de cada sujeito uma certa renúncia pulsional. Ou seja,
para o sujeito entrar na cultura e constituir laço social, ele cede de um gozo ilimitado – que,
como tal, é mítico –, sendo submetido à injunção fálica. No entanto, a constituição do
sujeito exige que essa perda de gozo seja a tal ponto incondicional que podemos dizer que
não há sujeito sem que o gozo se inscreva em perda.
A práxis fundada por Freud desvelou, na renúncia ao gozo, a possibilidade da
existência do social. O sujeito que irrompe nesta única via está desde então fadado a extrair
de sua experiência um gozo que ele percebe como limitado. A cada vez que o sujeito
experimenta o gozo, cai como objeto aquilo que faltaria ao gozo para fazê-lo total. A queda
do objeto que é designado por Lacan como mais-de-gozar produz a vivência da falta deste
tanto de gozo perdido que, na verdade, houve como gozo absoluto na reminiscência
construída pela falta que o gozo possível acarreta no sujeito. Na subversão intrínseca ao
campo do sujeito, vemos que o objeto caído da experiência do gozo toma o lugar de causa
de desejo. O sujeito está, pela sua condição no gozo, dado a desejar. Eis os elementos
fundamentais de que é tecido nosso laço social.
111
3.1 O sexual na psicanálise
Desde seu surgimento, a psicanálise for recebida com grande resistência na própria
cultura em que ela nasceu. A audácia de Freud em conferir ao sexual uma função de causa
do sujeito colocou à luz do dia o fato de que o sexual está em jogo em qualquer ato, mesmo
naqueles mais elevados ou nos mais despretensiosos. O sexual de que se trata na psicanálise
não opera como uma força acionada pelo entusiasmo ou pela vontade do eu. O sexual o
transcende e o constrange a um movimento que não cede à sua decisão em freá-lo ou em
ativa-lo. Por conseguinte, a reação à psicanálise foi tributária não somente das ressonâncias
de uma moral vitoriana, mas também de uma ferida narcísica aberta pela descoberta do
inconsciente, o que significava uma falta de autonomia e de gerência do sujeito face ao
sexual.
A Viena do fim do século XIX sofria os efeitos da nova geografia política
implementada neste período e atravessava mudanças substanciais entre as quais, o
estilhaçamento do credo liberal. A cultura liberal que vigorava era, então, esmagada
politicamente pelos movimentos de massa modernos, cristãos, anti-semitas, socialistas e
nacionalistas.
A cultura moral e científica da haute bourgeoisie vienense praticamente não
se distingue do vitorianismo corrente dos outros países europeus. Em termos
morais, era convicta, virtuosa e repressora; em termos políticos, importava-
se com o império da lei, ao qual se submetiam os direitos individuais e a
ordem social. Intelectualmente defendia o domínio da mente sobre o corpo e
um voltairianismo atualizado: progresso social através da ciência, educação
112
e trabalho duro. (...) Mas nem os valores, nem o progresso alcançado com
eles conferiram à alta classe média austríaca um caráter único.
(SCHORSKE, 1988:28)
Freud estava entre aqueles que escapavam à predominância da moral vitoriana da
classe média austríaca. Ademais, o cientificismo reinante suponha a soberania da mente,
identificando nela o lugar-tenente do saber. Neste sentido, produz-se a justificativa de sua
capacidade de controle sobre o corpo. Fiel a seu trabalho clínico, Freud reconheceu a
evidência de que era insustentável defender o domínio da mente sobre o corpo e que não se
podia evitar o reconhecimento da dominância do sexual no sujeito.
No entanto, quando a psicanálise marca e retira conseqüências da morte da coisa
33
pelo fato da linguagem, ela subtrai da concepção de corpo sua sentença de uma
organicidade natural mantida por leis próprias e disjunta da “mente”. Ao mesmo tempo, ela
constata que o saber no sujeito não se estabelece pelo conhecimento, afirmando também
que sua razão é composta na precariedade do eu. A partir daí, a psicanálise não poderia
sustentar a soberania da mente. A consciência e a razão se determinam pela realidade em
que cada sujeito se sustenta, ou seja, elas são determinadas pela fantasia de cada um, assim
como o suposto domínio da mente é ele próprio produto de uma realidade social. Na
verdade, o sujeito da psicanálise não se identifica nem com a mente nem com o corpo, ele
está identificado à possibilidade de que um falasser possa recortar pelo “órgão” da palavra
um corpo próprio e que por esse corte se abram dois campos: o do Outro e o do sujeito.
Dado o corte, o objeto a cai como elemento real dessa separação. Então, o que por fim a
psicanálise descobre é que corpo e mente não são substâncias ontológicas que se
comunicam, eles são formações do aparelho de linguagem. A mente, como domínio do
pensamento consciente, dotada de conhecimento e preceptora de um saber, pouco comanda.
Enquanto se polariza corpo e mente, a psicanálise descobre o inconsciente como uma
33
A “morte da coisa” faz referência, na psicanálise, ao momento em que a linguagem passa a funcionar;
momento evidentemente mítico que sugere o tempo da pré-existência da palavra e da linguagem no qual o
acesso à coisa seria direto e no qual a coisa seria real, não sendo ela uma realidade significante. Faz-se apelo à
vida animal em seu contexto natural para dar notícias do que seria essa condição. A função que cabe a esse
termo é evidenciar que nossa realidade é inteiramente determinada e constituída pelo significante. O
significante, neste sentido, não é nossa via de acesso às coisas; diferentemente, é dele que as coisas são feitas
para nós. Uma vez na linguagem, a coisa em si está perdida.
113
instância da qual nada queremos saber, pois ela determina que: “o eu não é senhor nem em
sua própria casa.”
À essa ferida narcísica que a psicanálise abriu soma-se o fato de que seu dispositivo
se fundou como uma invenção que pretendia operar num domínio privado à intimidade de
cada sujeito, o qual era regrado conforme seus compromissos morais e religiosos. Então,
poder-se-ia perguntar, porque um psicanalista deveria se interessar pelo domínio mais
privado de um sujeito? Porque um analista faria o sujeito falar dos capítulos não
publicáveis de sua história pessoal, ou ainda, porque o analista deveria fazer o sujeito falar
do que lhe é insuportável e embaraçoso? E isto é mais estranho, sobretudo, porque o sujeito
ao se dirigir ao psicanalista é levado pela dinâmica da transferência a atualizar neste o
Outro, o que quer dizer que se torna uma impossibilidade para o sujeito manter com o
analista uma relação especular de confissões solidárias. Acrescenta-se ainda ao contexto o
fato de que o analista ao escutar o sujeito na livre associação de sua fala não o acolhe na
posição de aconselhá-lo ou de julgá-lo, via essa, aliás, pela qual o analisante teria sua culpa
quanto ao sexual respaldada. O psicanalista, ao contrário, o leva a se encontrar em sua
fala, isto é, despojado dos subterfúgios imaginários nos quais o sujeito se sustenta, se
afogando em sentido. Portanto, o antagonismo da psicanálise ao senso-comum e ao bom
senso não poderia deixar de fazer resistência à sua oferta.
Logo, a partir da recepção do discurso psicanalítico no seio da cultura pela via da
resistência, percebemos que ele toca naquilo que deveria ser silenciado para o “bom
funcionamento” da ordem social e para o descanso do sujeito. De certa forma, algo que é
inscrito por sua recusa indícios de que nela (na recusa) uma verdade articulada que
tem a qualidade de afetar vivamente o sujeito na medida em que ele tenta manter esta
verdade fora da fala, como um núcleo banido do laço social. Vemos que se perfila nessa
reação à psicanálise a estrutura mesma do que se apresenta como sintoma para o sujeito.
114
O sintoma é o resultado de uma conjunção entre um núcleo significante a ser
segregado da vida ordinária do sujeito e de um comando pulsional ao qual ele não consegue
fazer frente. O que disso resulta pode aparecer como sofrimento ou como um traço
repetitivo e intolerável que deveria ser eliminado, gerando para o sujeito desestabilização e
mal-estar. Quando alguém é levado de fato a procurar uma análise é porque, em alguma
medida, seu sintoma falou, fez ruído.
Logo, a mobilização daquilo que leva o sujeito a pedir uma análise acaba por fazer o
sujeito se encontrar com o caráter perturbador do sexual. Se os tempos avançaram na
liberação dos hábitos que implicam diretamente o sexual, e se o escandaloso de antes não
causa mais nenhum impacto, isto não quer dizer que o discurso psicanalítico não guarde
ainda um viés perturbador, pois do sexual de que se trata nele e com o qual ele nos coloca
em contato é justo aquele de que nada queremos saber em tempo algum, ou seja, de nosso
lugar de objeto. Podemos, inclusive, dizer que esse núcleo perturbador é a própria mola do
dispositivo analítico na medida em que esse afeto tem a chance de provocar no sujeito um
incômodo tal que o coloque a trabalhar. Entretanto, aquilo que é designado como sexual na
psicanálise não coincide inteiramente com aquilo que designamos como sexual no senso
comum. O sexual na psicanálise é aquilo que implica simultaneamente na experiência da
perda do objeto e na impossibilidade de uma relação de complementaridade com qualquer
objeto encontrado, ou seja, o sexual é aquilo que marca no sujeito a falta a ferro e fogo e
brinda-o com o apelo incessante do desejo.
O que a psicanálise entende como investimento desejante, por sua vez, é ampliado
enormemente em relação ao senso comum. Este pode estar presente em qualquer relação ou
fazer do sujeito em sua vida, isto é, o sexual e o desejo que a ele corresponde não estão
restritos ao que concerne à esfera propriamente do genital, nem é ele seu ápice, ou o
caminho principal para se chegar ao que é o sexual na psicanálise. Na verdade, o gozo e o
desejo são a via mestra para se entender como o sexual recorta a vida do sujeito e como
115
operam na determinação da posição do sujeito no laço social. A inscrição do sujeito no laço
social, por exemplo, é determinada, de saída, pela posição que ele ocupa na partilha dos
sexos. O sujeito vem a tomar lugar no social de uma forma sexuada - pela enunciação
dos pais quando se é criança ou ao seu próprio custo desde a adolescência, momento
definitivo de ingresso do sujeito no social por seu nome próprio (MELMAN, 2002) - e terá
que se a ver com as conseqüências que sua posição assumida quanto à partilha dos sexos i
lhe acarretar.
3.2 Gozo e discurso
34
A leitura da amarração pela qual o gozo e o desejo tecem o laço social é operada
pelo discurso do analista. Esse discurso ao ler o que se articula significantemente, não toma
como função a prescrição da boa posição do sujeito frente ao gozo ou dos bons modos de
gozo, ao contrário, ele prevê que o analista acolha o que o sujeito lhe endereça em seu
trabalho inconsciente e, pelo desdobramento desse trabalho, sustenta que o sujeito se deixe
levar ao encontro de suas formas de gozo. Então, uma vez que a possibilidade de se ler,
pelo discurso analítico, os modos pelos quais o sujeito goza, podem-se ler as formas pelas
quais o gozo se produz, produzindo o laço social no qual ele se inscreve. Isto é, o liame
social, lugar no qual o sujeito se articula, é constituído pelo modo como o gozo opera na
trama significante, tecendo paradoxalmente o campo no qual ele faz sua inscrição.
Cada maneira do sujeito se apresentar no laço social situa um discurso. Entre os
quatro que há, o discurso do mestre é aquele que se apresenta como o avesso da psicanálise
justamente porque ele tem por finalidade partilhar e administrar o que é da ordem do gozo.
Lacan, ao apontar esta visada política do discurso do mestre, vem em contra partida se
interrogar sobre o lugar da psicanálise na política:
(...) falando do avesso da psicanálise, coloca-se a questão do lugar da
psicanálise na política. A intrusão na política só pode ser feita reconhecendo-
se que não discurso e não apenas o analítico que não seja do gozo,
pelo menos quando dele se espera o trabalho da verdade
. (LACAN, 1969-
70: 74)
34
O texto dos itens que tratam do gozo têm como referência os Seminários de Lacan de 1969-70 e 1972-73,
respectivamente,
O Avesso da psicanálise e Mais, Ainda.
116
Ora, uma análise visa, sobretudo, este trabalho da verdade. Trabalho do qual o
sujeito não é seu mestre, mas, pelo contrário, está submetido à forma como essa verdade se
articula nele e vem a lhe convocar. A verdade, esclarece Lacan, é a forma pela qual o gozo
se articula discursivamente, isto é, é a forma pela qual o gozo condescendeu ao discurso.
Portanto, uma análise visa retirar o gozo de seu enquistamento no sintoma para
oferecer a ele uma discursividade. Sua possibilidade de articulação estará dada no trajeto
que o sujeito tem a percorrer em sua trama significante. Mas, como a psicanálise não tem a
finalidade da política, ela não organiza e nem administra para o sujeito qualquer solução,
neste sentido, aquilo que ela pode transmitir é a intransmissibilidade de uma solução, aquilo
que ela pode transmitir é que “isso não resolve nada”
35
. Resta, apenas, a cada um se
responsabilizar pelo limite que se introduz no campo da linguagem uma vez que o gozo se
inscreve na rede significante como um real inarticulado, como aquilo que justamente não
tem solução. Isto é, apesar de o gozo não poder ser todo simbolizado ou metaforizado, ele
pode se inscrever numa discursividade, ele pode fazer laço. Como diz Lacan:
Ocorreu-me com muita insistência no ano passado distinguir o que está em
questão no discurso como uma estrutura necessária, que ultrapassa em muito
a palavra, sempre mais ou menos ocasional. O que prefiro, disse, e até
proclamei um dia , é
um discurso sem palavras.
É que sem palavras, na verdade, ele pode muito bem subsistir. Subsiste em
certas relações fundamentais. Estas, literalmente, não poderiam se manter
sem a linguagem. Mediante o instrumento da linguagem instaura-se um certo
número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode
inscrever-se algo bem mais amplo, que vai bem mais longe do que as
enunciações efetivas. Não necessidade destas para que nossa conduta,
nossos atos, eventualmente, se inscrevam no âmbito de certos enunciados
primordiais. Se não fosse assim, o que seria do que encontramos na
experiência, especialmente a analítica – sendo esta evocada nessa articulação
apenas por havê-la precisamente designado -, o que seria do que se encontra
para nós sob o aspecto do supereu? (LACAN, 1969-70:10 e 11).
Vemos, então, que o gozo não paira no limbo. Ele de fato se sustenta numa
discursividade. O supereu, instância evocada por Lacan para dar o exemplo do que
funciona na linguagem para além ou aquém das palavras, invoca um único mandamento ao
sujeito: goza! O sujeito ou cede ao mandamento superegóico e goza ou tenta se insurgir
35
Frase de Lacan em “O Seminário, Livro 17”, 1969-70, p.51.
117
contra ele e...goza disso! A chance que tem o sujeito de fazer nesse gozo algum atrito e de
não ser escravizado por ele depende de sua coragem em se encontrar nele para, na carne,
achar sua verdade, isto é de que o gozo é perda de gozo, e, conseqüentemente, substrato de
desejo.
Mas, se a condição disruptiva do gozo convoca o social - sobretudo pela via de uma
solução política e pedagógica - a oferecer soluções para domesticá-lo, administrá-lo e
partilhá-lo, isso não quer dizer que haja alguma solução para assimilá-lo todo. Todos os
recursos empreendidos desta ordem constituem ilusórias ofertas ao social de meios de lidar
com o nosso mal-estar na civilização.
Inclusive, em “O Mal-estar na civilização” e em “O futuro de uma ilusão” Freud
analisa detidamente a relação indissociável do social com o sexual. O sexual no humano
por ser pulsional, não é regido nem pelo instinto, que estabelece um fazer pré-determinado
visando uma finalidade sexual ou, melhor, reprodutora, nem é regido pela finalidade de um
bom encontro entre dois sujeitos que resolveriam na relação sexual seus impulsos
libidinais. Na condição de falasser o sujeito não encontra meios para se livrar de toda
tensão obtida pela libido sexual que mantém um mal-estar incurável no sujeito, pois o laço
social como parte dos pilares de nossa realidade é o avesso desta possibilidade. Portanto,
aquilo que irrompe da ordem pulsional no social delimita um inabordável ao qual todas as
respostas que o social possa vir a dar para articular esse inabordável constituem-se como
uma solução ilusória que projeta para um futuro aquilo que elas encontram no presente
como fracasso. Todavia, a psicanálise quanto ao mal-estar no social, não nos reserva
esperanças ou soluções. Mas ela toma em mãos alguma coisa, ela alguma coisa e com
isso escreve algo como:
Não esperem, portanto, de meu discurso nada de mais subversivo do que não
pretender a solução. No entanto, é claro que nada é mais candente do que
aquilo que, do discurso, faz referência ao gozo.
O discurso toca nisso sem cessar, posto que é dali que ele se origina. E o
agita de novo desde que tenta retornar a essa origem. É nisso que ele
contesta todo apaziguamento. Freud, é preciso dizer, sustenta um discurso
estranho, o mais contrário à coerência, à consistência de um discurso. O
sujeito do discurso não se sabe como sujeito que sustenta o discurso. Que ele
não saiba o que diz, ainda passa, sempre o supriu. Mas o que diz Freud é que
ele não sabe quem o diz. (LACAN; 1969-1970:66)
118
Por conseguinte, vemos que a psicanálise pôde assinalar que alguma coisa fala nesse
lugar onde o sujeito não sabe quem diz: “a verdade fala Eu eu, a verdade, (Eu) falo.”
36
Onde o Eu em questão deve ser entendido como sujeito (je), e não como o eu narcísico.
3.3 A verdade do gozo
De fato foi pelo discurso psicanalítico que se pôde abordar com maior precisão e
efeitos o que concerne ao campo do gozo. Esse discurso se ocupa em operar, justamente,
aquilo que a ciência foracluiu. Freud ao se interessar pelas histéricas, isto é, pelo o que se
articulava em seus sintomas, inventou um dispositivo que lhe permitiu recolher as
incidências do gozo nesses sintomas de que elas se queixavam. É pelo fato de ter podido
ceder ao impulso, que nos acomete com freqüência, de buscar prescrever a solução do
problema, que lhe foi possível escutar o que se constituía naqueles sintomas como gozo.
Esse encaminhamento, como sabemos, o levou até as vias de introduzir o conceito de
repetição
37
, que em poucas palavras, estabelece no caminho do gozo uma exigência de
recomeço, e que testemunha a impossibilidade de assimilação pela linguagem deste ponto
inarticulável.
O conceito de repetição lhe foi fundamental para que sua prática clínica pudesse
extrair conseqüências ainda mais radicais de suas premissas conceituais. Freud percebeu
que havia na fala do sujeito, em seu fazer de analisante, algo que não se articulava, que não
cedia à interpretação, que se situava mais-além do princípio do prazer. Logo, Lacan
reconhece precisamente no conceito de repetição a via de acesso que aproximou Freud do
que concerne ao campo do gozo tratado extensamente por ele.
36
Lacan, J., “O Seminário, Livro 17”, 1969-1970, p.61.
37
cf. Freud, S., em “Mais-Além do Princípio do Prazer”, 1920.
119
As palavras de Lacan não situam na batida da repetição o meio de gozo, como
sustentam o gozo nesta perda inexorável de gozo, por onde se vê a função do objeto
perdido:
Um significante, então se articula por representar um sujeito junto a outro
significante. É daí que partimos para dar sentido a essa repetição inaugural,
na medida em que ela é repetição que visa o gozo (...).
Esse saber, ao qual podemos dar o suporte de uma experiência que é a da
lógica moderna, que é em si e, sobretudo, manejo da escrita, esse tipo de
saber, é ele mesmo que está em jogo quando se trata de medir na clínica
analítica a incidência da repetição (...).
Esse saber mostra aqui sua raiz porquanto na repetição, e sob a forma do
traço unário, para começar, ele vem a ser o meio do gozo — do gozo
precisamente na medida em que ultrapassa os limites impostos, sob o termo
prazer, às tensões usuais da vida.
O que surge desse formalismo é que, como dissemos a pouco, perda de
gozo. E é no lugar dessa perda, introduzida pela repetição, que vemos
aparecer a função do objeto perdido, disso que eu chamo
a. (LACAN, 1969-
1970:46)
Os termos que estão em jogo dizem respeito ao que de mais elementar na
condição do sujeito. O traço unário aqui referido, diz Lacan, é a “forma mais simples de
marca, que é, falando propriamente, a origem do significante. (...) é no traço unário que tem
origem tudo que nos interessa, a nós, analistas, como saber.”(op. cit.:44). Sua função se
estabelece justamente por ele se repetir, e o que estabelece sua repetição é o fato do objeto
aparecer como perda e disso, diríamos, resta um traço. O traço, para dar dele ainda mais
uma idéia, é isso que se fixa na perda. Mas, devemos acrescentar ao nosso quadro da
situação que, quando tratamos do objeto que aparece como perda, não aludimos a um
objeto a ser perdido, na verdade, o objeto se constitui por se perder. Essa perda, por sua
vez, se institui quando algo se inscreve. Então vemos que é nessa operação de ceder do
gozo, ceder o objeto que ninguém “possui”, o objeto que não há, que o sujeito pode surgir
como tal e se inscrever no social e garanti-lo. Sendo assim, o saber, o único saber humano,
120
é o que se institui no nível de S
2
como efeito da pura inscrição da repetição do traço unário
(S
1
).
Lacan nos faz notar que o gozo sexual, por se articular a partir da repetição do traço
unário (S
1
junto a S
2
), já se apresenta como perda de gozo. À perda de gozo o falaser virá a
responder de formas diversas que vão desde a renúncia ao gozo até a obrigação de sempre
gozar. De um pólo a outro, o sujeito está sempre gozando: goza pelo sacrifício de renunciar
ao gozo e goza ao se submeter ao imperativo que lhe impõe gozar. Por essas vias, ele busca
preencher a hiância que se produz em perda de gozo para articular toda uma gama de
“objetos que são, de algum modo, pré-adaptados, feitos para servir de tampão”(op. cit.:48).
Por mais que o sujeito tente escapar, ele não tem como escapar do gozo, pois todos os seus
recursos já se inscrevem como uma forma de gozo.
Portanto, a clínica psicanalítica não visa prescrever nenhuma forma de gozo uma
vez que ela demonstra, de saída, que essa prescrição está condenada ao fracasso. Por outro
lado, é o fracasso do bom encontro, daquele que se houvesse o satisfaria, que se articula
para o sujeito como possibilidade de gozo. Se a clínica se dirige ao sujeito, e não ao eu para
falar do sujeito que nele, ela não pode determinar aquilo que seria seu bem, ou seja, o
bom caminho do gozo porque o sujeito é a forma própria pela qual isso goza. Ele é
constituído pela forma que o gozo lhe acontece e, por essa razão, ele não pode ser mestre de
seu gozo. Ele não pode decidir como e quando vai gozar, nem pode esperar que alguém
decida isso por ele. Ou seja, nada o obriga a gozar a não ser o superego, como nos
lembra Lacan — nem, tão pouco, nada o impede de gozar.
Do ponto de vista clínico, isso levanta uma questão importante: como um sujeito
que não quer saber nada sobre o gozo pois é assim que o sujeito está em cena –, pode
121
fazer alguma coisa com isso que o constitui, ao invés de ficar aprisionado no círculo
infernal do gozo, onde o impedimento e a imposição se constituem como formas do gozar?
Como pode um sujeito que não quer saber nada d’ isso introduzir no campo do gozo o
desejo como causa?
A intervenção do dispositivo analítico, entretanto, busca minimizar o gozo da fala
para introduzir no sujeito a possibilidade dele vir a se encontrar com os efeitos do gozo sem
que, para tanto, ele esteja necessariamente todo imerso no gozar. Ao recomendar que uma
análise seja conduzida na abstinência da exigência de satisfação que se convoca pela
transferência, Freud introduz uma forma peculiar de laço social cujo funcionamento
permite tocar nas determinações do gozo e na estrutura de sua incidência. Nesse sentido, a
análise depura do gozo que se articula pela fala aquilo que constitui sua determinação.
O lugar que Lacan confere ao significante mostra, também, que uma análise visa
operar sobre o gozo no sentido de que o sujeito possa fazer aparecer o saber no lugar da
verdade. Isto é, que sua condição de sujeito no gozo apareça como é: condição de objeto,
objeto de um gozo, conquanto de que se trata nesse campo é de apossamento, de comando.
Contudo, a psicanálise não visa fazer o sujeito gozar mais satisfatoriamente, ela, ao
contrário, introduz nesta oferta recorrente do mundo moderno uma diferença.
A psicanálise é um discurso que coloca o sujeito no lugar do trabalho e aposta na
possibilidade dele vir a se deslocar da posição que mantém frente a seu sintoma, tornando-
se menos prisioneiro de seus meios de gozo. Por ter essa visada, vê-se que é freqüente
supor alguma promessa de felicidade veiculada na oferta do dispositivo analítico. Senão,
perguntaria aquele que supõe a tal felicidade, afinal de contas porque o sujeito se engajaria
em um fazer no qual ele é constrangido ao trabalho e pelo qual é ele mesmo quem paga?
122
Entretanto, Freud e, seguindo sua via, Lacan nos fazem ver que para sustentar um
laço que, do ponto de vista do sujeito, tem a incongruência de estar do mesmo lado aquele
que paga e aquele que trabalha, o que é necessário é que o sujeito entre com seu amor. Pela
via do amor, a promessa de felicidade não poderia ser traduzida simplesmente em obter a
autonomia sobre seus sintomas incômodos, mas, sobretudo, em alcançá-la através da
retribuição de seu amor pelo Outro. A retribuição desse amor poderia ser constatada, em
resumo, na medida em que o Outro, ao qual o sujeito supõe também um sujeito mas, um
sujeito que sabe sobre ele - lhe conduziria por seu saber à saída de todo o mal-estar.
O analista recolhe este pedido sem, no entanto, dar a ele qualquer resposta. Desta
forma, ele permite ao sujeito se encontrar com o próprio pedido em sua dimensão mais
crua. Ao mesmo tempo, ao falar, ao se expor a sua determinação significante, o sujeito cede
em alguma medida à sua paixão pela ignorância, isto é, ao seu “não quero saber nada
disso
(LACAN,
[
1972-73]
1985:9 e 164) e tem alguma chance de parar de recusar aquilo que é
sua condição. Conseqüentemente, abrindo mão em certa medida de seu circuito sintomático
e gozoso ele se desanuvia de toda uma complexa administração na qual se escora para
evitar o que aconteceu, a saber, que ele está fadado a gozar em perda. E o discurso
psicanalítico pôde se aproximar disso de uma forma mais operativa quando abordou o
campo do gozo a partir do significante, fazendo o saber se encontrar no lugar da verdade.
No pequeno engrama que lhes dei do discurso analítico, o a se escreve em
cima à esquerda, e se sustenta pelo S
2
, quer dizer, pelo saber no que ele está
no lugar da verdade. É dali que ele interpela o $, o que deve dar na produção
123
do S
1
, do significante pelo qual se possa resolver o quê? – sua relação com a
verdade. (LACAN, 1972-1973: 123)
Esquema do discurso analítico:
a $
--------- -----------
S
2
S
1
3.4 Tirar da castração um gozo?
A aproximação do campo do gozo é efeito de uma formalização decorrente
propriamente de um encaminhamento científico. A possibilidade de tratar da questão do
gozo é conseqüência de uma escrita formalizada que permite operar algo que não tem
necessariamente uma existência positiva. Essa escrita demonstra que o gozo é algo que se
articula para o sujeito como uma perda de gozo, algo que o convoca a tomar lugar a
partir da perda pela qual o gozo se presentifica. Assim, nos resta tratar o gozo a partir de
uma formalização significante, que é decorrente do próprio desenvolvimento da ciência.
É (na formalização) que o real se distingue. O real se poderia inscrever
por um impasse da formalização. é que eu acreditei poder desenhar seu
modelo a partir da formalização matemática, no que ela é a elaboração mais
avançada que nos tem sido dado produzir da significância. Essa
formalização matemática da significância se faz ao contrário do sentido, eu
ia quase dizer a
contra-senso.
124
(...) a formalização da lógica matemática, tão bem feita para se basear na
escrita, não poderá ela nos servir no processo analítico, no que ali se designa
isso que invisivelmente retém os corpos?” (LACAN, 1972-1973: 125).
Essa formalização na abordagem da questão do gozo permite a construção de um
espaço que se articula pelo corte. É por essa razão que ele pode inscrever o gozo como
perda de gozo. Esse espaço, portanto, não é o geométrico que poderia oferecer uma
existência positivada ao gozo, ele está mais próximo de um espaço capaz de introduzir uma
negatividade onde não é possível localizar um lugar apropriado a um dado x e, no qual, ele
já se inscreve como corte que testemunha a própria contingência pela qual o gozo ocorre.
Assim, podemos dizer que partimos disso: o gozo se apresenta como uma perda
de gozo. O gozo não pode ser positivado e, portanto, não cabe uma abordagem fundada na
possibilidade de sua predicação. Sem essa baliza fundamental não temos como avançar
minimamente no que concerne ao campo do gozo. Isso porque, o gozo não é um fato
intuitivo, pelo contrário, ele ofende todas as certezas do senso comum. No entanto, ele deve
ser deduzido formalmente para que de fato se possa operar com ele num dispositivo clínico.
Se é dessa forma negativizada que podemos aprender as suas incidências, como abordar o
gozo? De que forma a formalização permite a aproximação com o campo do gozo?
A conseqüência mais flagrante dessa articulação do gozo com uma inscrição
consiste em que o gozo para o sujeito introduz uma dimensão Outra. O sujeito não está
numa posição de agente em relação a seu gozo, visto que o gozo lhe ocorre como um
acontecimento que o ultrapassa, ao mesmo tempo, que o decepciona. O gozo se apresenta
como algo que o sujeito não tem controle. Que ele se empenhe em assumir uma posição
perversa de mestria do gozo de um outro é um artifício para burlar aquilo que
fundamentalmente o gozo nos impõe, a saber, que somos afetados pelo Outro e que nessa
125
afetação nos constituímos. Nesse sentido apesar de não estarmos na posição de sujeito
quando algo da ordem do gozo se passa, podemos dizer que onde isso goza o sujeito pode
advir, é ali que estamos concernidos de forma irremediável em nossa condição de sujeito. O
gozo, portanto, introduz o sujeito numa via paradoxal de ter que vir a se responsabilizar por
aquilo que lhe constitui, isto é, onde ele não se reconhece como sujeito. É talvez esse
caráter paradoxal que o sujeito recusa na neurose. Ele se recusa a responsabilizar-se por
aquilo que o afeta, que o comove, que se repete e sobre o que ele não tem nenhum controle.
Essa falta de mestria sobre o gozo ao gozo que lhe acontece uma condição de
alteridade e lhe impõe como uma hipótese necessária que um gozo do Outro. Constata-
se que é a exploração rigorosa da construção gramatical da fantasia exposta no texto “Bate-
se numa criança” que fundamentalmente oferece os elementos que estão em jogo, é
justamente esse ato de percorrê-la em sua gramática que ao sujeito um lugar. O
enquadramento fantasmático que se encontra é uma forma de dar a ver que o sujeito
pode assumir um lugar desejante a partir da operação que se inaugura pela marca de um
gozo. Ora, isso aponta que o sujeito se constitui ali aonde ele assume a condição de objeto
de gozo.
É interessante vermos nesse texto que a construção de um lugar para o Outro se
apresenta como uma necessidade lógica, onde se articula precisamente um lugar em que o
Outro goza. É somente referido a esse lugar Outro que o sujeito pode vir a assumir um
lugar de sujeito. Foi com isso que Freud se defrontou quando ele depurou uma estrutura
lógica no enredo fantasmático narrado pelos seus analisantes. Podemos admitir pela leitura
freudiana da frase “bate-se numa criança” que a suposição de que o Outro goza é uma
hipótese necessária. Não é por outra razão que Lacan diz que Deus se constitui como uma
126
hipótese necessária para o sujeito: “O Outro como lugar da verdade, é o único lugar
irredutível, que podemos dar ao termo divino, Deus, para chamá-lo por seu nome. (....)
Enquanto se disser alguma coisa a hipótese de Deus estará aí.” (LACAN, 1972-1973: 62)
Então, ele articula como uma necessidade da linguagem que o Outro goza. A partir
dessa referência ao “Bate-se numa criança” e à hipótese de Deus, podemos dizer que não é
possível articular nada da ordem do gozo sem introduzir a hipótese de que o Outro goza.
Assim, se o gozo introduz uma dimensão Outra é porque ele é feito do próprio tecido da
linguagem que é o significante. Em uma frase: a questão do gozo é articulada de uma forma
tal que não é possível pensar o gozo parcial sem articulá-lo a um gozo do Outro.
Se a suposição de um Outro é uma exigência da estrutura, podemos nos perguntar
como o gozo se apresenta para o sujeito. Qual a operação que retira o gozo de uma
dimensão radicalmente Outra e faz ele ocorrer para o sujeito articulado na linguagem?
Como diz Lacan, podemos supor que a ostra goza, que a planta goza, que o castor goza,
mas temos que reconhecer que o gozo do sujeito é diferente. É apenas do interior desse
gozo que podemos fazer a suposição do gozo pleno. Talvez esse gozo das plantas e dos
bichos pudesse até existir, mas não poderíamos nunca colocá-lo em palavras e, muito
menos, experimentá-lo. Isso quer dizer que o gozo do ser falante é parcializado,
determinado. Ele encontra um limite no significante, que por o limitar permite que ele
venha a se determinar, ou seja, ganhar existência como um acontecimento de linguagem,
desta forma o gozo é em nós um limite.
Lacan entende que essa possibilidade do gozo articular-se como linguagem vem a
civilizar o gozo. Domesticar o gozo pela sua articulação a um objeto retirando-o de sua
completa insensatez. Entretanto, o gozo não se presta a civilidades, ele resiste como um
127
núcleo insensato a qualquer domesticação. É dessa forma que ele comparece para o sujeito.
Acontece que essa irracionalidade pela qual ele se apresenta fenomenicamente se
constitui como uma operação da linguagem.
Logo, para o falante a decorrência do gozo se constitui como um fato de linguagem
que introduz, por si só, a hipótese de uma dimensão Outra que goza. Se por estrutura é
necessário supor que um Outro goza, a questão que se coloca, portanto, é explicar como é
possível haver um gozo que não seja o do Outro, o qual podemos tomar como nosso e que
nos vejamos convocados a responder por ele.
3.5 O limite do gozo
O gozo é exatamente correlativo à forma primeira da entrada em ação do que
chamo a marca, o traço unário, que é marca para a morte, se quiserem dar-
lhe seu sentido. Observem bem que nada toma sentido até que a morte entre
na jogada.
É a partir da clivagem, da separação entre o gozo e o corpo doravante
mortificado, a partir do momento em que jogo de inscrições, marca do
traço unário, que a questão se coloca. Não é preciso esperar que o sujeito
tenha se revelado bem oculto no nível da verdade do mestre. A divisão do
sujeito não é certamente outra coisa senão a ambigüidade radical que se
vincula ao próprio termo verdade (LACAN; 1969-70:169
).
O significante, ao separar o gozo do corpo, articula o gozo como parcial e o corpo
como mortificado, marcado por essa operação que o constitui como um corpo de
significante ou corpo do Outro. Por essa operação, o gozo se refere ao falo cuja função é a
de se apresentar como o significante que, no conjunto dos significantes, representa essa
perda introduzida pela inscrição da morte para o sujeito. Lacan sublinha que o gozo fálico,
por ser efeito dessa mortificação do corpo, tornando-o um corpo do Outro, inscreve a
questão da parcialidade para o sujeito. Não há possibilidade de se cogitar o gozo fálico sem
128
o limite que ele introduz. Falar que o gozo se separa do corpo é introduzir um limite no
gozo e, por outro lado, é estabelecer uma relação entre o gozo e o corpo. O gozo fálico se
constitui como um obstáculo tanto ao corpo do Outro, por parcializá-lo, quanto ao Outro
sexo, por ser ele o que representa o gozo fora dos limites do fálico. Se tudo gira em redor
do gozo fálico - porque este é o único que tem uma existência discursiva, ou seja, porque
ele é o único que tem existência -, devemos nos perguntar se nele estamos condenados ao
isolamento ou à solidão.
Essa questão coloca o problema da relação sexual. A relação sexual é o que não
existe, uma vez que ela não pode se realizar nem como o encontro do objeto da falta do
sujeito, nem como o encontro de dois sujeitos porque não sujeito que vise outro sujeito:
o sujeito sempre visa um objeto. Ainda mais, o próprio sexual na psicanálise está fadado ao
parcial, a perda de objeto. Deste modo, poderíamos imaginar que, se a relação sexual fosse
coroada com sua realização, o homem estaria destinado a não estar isolado. Contudo, é
justo o oposto que se passa. Se a relação sexual resolvesse para o sujeito seu conflito frente
ao sexual, nada mais faria nele apelo. Logo, nada o empurraria para constituir
discursivamente um laço social. Estaríamos testemunhando o isolamento do sujeito, como
vemos, em esboço, os sujeitos em puro estado de paixão. Por outro lado, se o laço não
resolve para o sujeito o fato de ele estar só, uma vez que a solidão é de certa forma
inescapável para o sujeito, ele ao menos lhe oferece um lugar no social e uma possibilidade
de nele se expor, constituindo um fazer e levando adiante seu quinhão. Transmite, assim, no
laço, sua parte devida.
Na sentença: não existe relação sexual lê-se ainda que o corpo do Outro não é o que
falta ao gozo fálico para completá-lo. Isto porque o gozo fálico só se institui como um gozo
possível a partir de sua separação do corpo do Outro. O gozo fálico só existe porque não há
relação sexual. Se houvesse um gozo pleno do corpo do Outro, se alguém pudesse nos dizê-
lo, esse gozo não seria sexual porque ele não nos colocaria diante do Outro, do Outro sexo;
o Outro seria o próprio ser encontrado dizemos isto apenas recorrendo a um artifício
(fantástico) na tentativa de oferecer uma compreensibilidade aos difíceis termos.
129
O sexual nos envia, então, para a parcialização, o que quer dizer, em contrapartida,
que a linguagem nos envia para o sexual e, portanto, para o parcial. Lacan nos oferece uma
fórmula interessante para pensar essa relação do gozo sexual com o significante:
Gozar tem essa propriedade fundamental de ser em suma o corpo de um que
goza de uma parte do corpo do Outro. Mas essa parte também goza aquilo
agrada o Outro mais, ou menos, mas é fato que ele não pode ficar indiferente
(LACAN, 1972-1973:35
).
Por esse motivo Lacan não cansa de insistir que sempre gozamos de uma parte do
corpo do Outro, seja qual for a posição sexual em que estivermos. Isso quer dizer que esse
corpo tem que ser despedaçado para que o gozo se produza. Em outras palavras, é quando o
gozo se separa do corpo do Outro que se goza. Assim, o significante se apresenta como a
causa do gozo, na medida em que é ele o que procede desse despedaçamento.
O significante como causa do gozo não está separado do efeito que ele produz, a
saber, a configuração do gozo como uma substância gozante. Essa relação de causalidade
não é uma relação entre dois elementos. A causa é interior ao que ela produz. Nessa
relação, o significante já se articula como imanente ao gozo que ele produz. As notícias que
temos do ser, que numa referência ao gozo é suposto como o próprio gozo do Outro,
constituem-se como um efeito da operação do significante. Nesse sentido, a questão do
ser é subvertida na psicanálise. Isso significa que a linguagem não se institui como uma
referência ao ser, pelo contrário, o ser passa a ser um efeito da linguagem. A fala produz
efeitos de ser, efeitos esses que se apresentam como aquilo que nos resta dessa suposição de
um Ser pleno.
Lacan aborda o problema retomando a questão do limite. A verdade não pode ser
toda, ela tanto se refere ao corpo do Outro quanto ao gozo que se articula como
130
parcializado. Portanto, a verdade se articula como um semi-dizer porque o gozo lhe faz
limite.
O gozo, a partir desse encaminhamento, se apresenta como um limite à verdade. É
por esse limite que somos impossibilitados de ter com a verdade outra relação senão a de
um semi-dizer (LACAN, livro 20, 1972-1973:124). O gozo ao se articular como perda de
gozo, se constitui como limite à verdade. Ora, isso quer dizer que se a verdade se articula
como um semi-dizer, como já destacamos em outro momento, o que está aí implicado é que
o significante faz limite ao gozo e que somente podemos gozar de uma parte do corpo do
Outro. Em outras palavras, o gozo fálico nos constrange a sempre gozarmos daquilo que se
destaca do corpo do Outro pelo significante. Essa articulação do significante como causa de
gozo é fundamental para o encaminhamento lacaniano. É tão fundamental que Lacan vai
identificar essa condição significante de causa do gozo a cada uma das quatro causas que
Aristóteles isola.
Enquanto causa material, o significante se constitui como causa do gozo na medida
em que ele possibilita que algo do gozo se deposite numa parte do corpo. É o significante
em sua parcialidade que nos permite recolher a perda de gozo como efeito do gozo para o
sujeito. Como causa formal, o significante barra o gozo, isto é, ele articula o gozo como um
acontecimento evanescente. Isso quer dizer que se inicialmente ele permite que algo nos
comova, é por sua razão que acabamos por nos sentir fatigados, entristecidos e
desinteressados. Enquanto causa eficiente, o significante é o que dá limite ao gozo e
determina seu uso. Ele define o caminho que o gozo assume pelo enquadramento através do
qual ele se apresenta a nós. Por último, o significante se apresenta como causa final, isto é,
o significante articula uma gramática do gozo que define o modo pelo qual um sujeito goza.
131
Lacan nos mostra que quanto ao gozo sempre podemos interrogar quem escora quem, ou
seja, por meio de que arranjo dos corpos o gozo se produz.
Nesses quatro modos em que o significante opera como causa do gozo, podemos
dizer que o meio pelo qual ele opera em cada um dos casos é por sua função de fazer um
limite ao gozo. O significante, por fazer limite ao gozo, possibilita que o gozo se precipite
em sua rede. Porém, essa parcialização coloca um problema para o sujeito. Isso porque, o
gozo ocorre para ele de forma decepcionante, reenviando sempre a um gozar mais, que
seria aquilo que designa a própria perda de gozo na qual ele se articula.
Esse mais-de-gozar se apresenta como um resto que revela que no que concerne ao
gozo não uma via resolutiva, isto é, não possibilidade de relação sexual. No
Seminário Mais, Ainda, Lacan transcorre afirmando de diversas formas a impossibilidade
de haver relação sexual. Uma das formas que ele encontra para abordar essa
impossibilidade é afirmando que a relação sexual rateia, que dela sobra uma rata. A rata é
um fiasco, uma mancada, uma gafe. Assim, o fiasco, a mancada não é outra coisa para o
sujeito senão esse objeto mais-de-gozar que resta como testemunho da não relação sexual.
À essa explanação Lacan acrescenta o termo “devido gozo” que é articulado a partir
do equívoco entre dever e dívida. Ao gozo devido por dever ou dívida, Lacan contrapõe o
gozo que não se deve. Dessa contraposição entre o gozo fálico, o devido gozo e o gozo do
Outro como aquele que não se deve, Lacan desdobra a frase anterior numa outra que
salienta ainda mais o caráter sem lugar do gozo que não se deve. “O gozo, o que não se
deveria, se houvesse um outro gozo que não o fálico, não teria que ser aquele” (LACAN,
1972-1973:81). Não podemos esquecer que o gozo do Outro, do Outro sexo, se articula
como uma necessidade para que um gozo, este que há, possa ocorrer - ainda que como
132
contingência. Isso quer dizer que se houvesse um Outro gozo - o do Outro sexo -, o gozo
não precisaria ser o fálico, isto é, esse gozo que goza da parte. Essa equivocação entre o
devido e o que não se deve serve a Lacan para jogar com a relação do gozo com as
categorias Aristotélicas (necessário, contingente, possível e impossível). Essas categorias
nos servem para avançar um pouco mais nessa escrituração lógica que Lacan articula.
Para que um gozo fálico ocorra numa condição contingente, enquanto aquilo que
“cessa de não se escrever”, ele tem que se dirigir para um Outro sexo que se apresenta para
ele como uma impossibilidade, isto é, como algo que “não cessa de não se escrever”.
Vemos que a escrituração do gozo se impõe como aquilo que distingue um gozo de Outro
gozo. Não é por uma diferença de natureza que eles se distinguem, mas sim pela forma
como eles se escrevem para o sujeito. Não devemos esquecer que Freud insistia que a libido
era sempre masculina e que, portanto, não havia duas libidos (uma masculina e outra
feminina). Lacan retoma essa questão para acrescentar que a diferença sexual é um
problema de escrita. Concerne, portanto, à forma como isso que goza se escreve para o
sujeito.
Por se tratar de uma escrita, a questão é: como o gozo, a partir da experiência
analítica, se escreve para o sujeito? As categorias de Aristóteles servem a Lacan para
propor, como dissemos, uma formalização do gozo. Esses quatro termos que Aristóteles
isola ao estabelecerem uma relação entre si, permitem que Lacan apreenda um pouco
melhor a forma como o gozo fálico se articula ao gozo do Outro. As categorias se prestam
para tal porque elas dizem respeito a quatro formas de se articular algo pela escritura,
criando uma estrutura onde o impossível implica o necessário e o possível o contingente. A
partir da relação entre insistência e inscrição operada pela incidência da negação em ambos
133
ou em cada um dos termos, Lacan redefine as categorias aristotélicas. Por essa leitura, o
impossível trata daquilo que não pode se escrever de forma alguma. Ele se afirma pela sua
insistência em não se escrever. O possível trata do campo das possibilidades e se apresenta
nessa formalização como aquilo que é possível de se escrever. O necessário conjuga a
insistência do “não cessa” com a possibilidade de algo vir a se escrever. Por essa razão ele
vem a se apresentar como a própria expressão da insistência (não cessa de se escrever).
Nessa relação quaternária também o contingente que trata da ocorrência de algo
pontualmente. Ele se articula como um acontecimento que não pode se escrever. Como é
possível algo se produzir como acontecimento pela sua não inscrição? Essa é uma
articulação própria à psicanálise, posto que ela introduz a possibilidade de que algo se
presentifique como uma falta.
Se houvesse a possibilidade de se escrever um gozo impossível, um gozo que não
deveria, aquele que “não cessa de não se escrever”, não haveria a necessidade de ocorrer
um gozo contingencial para que ele pudesse vir a cessar de não se escrever.
Essa impossibilidade marcada pela dupla negativa, que tanto recai sobre o cessar
quanto sobre o escrever, sofre um trabalho para que se desloque a incidência da negativa. A
negativa, primeiramente, recai sobre o cessar, marcando que nessa impossibilidade
uma necessidade ou, preferindo-se, uma insistência de algo em se escrever. No segundo
momento, a negativa se desloca para o escrever, mostrando que é possível que algo
desse gozo marcado pela impossibilidade possa ocorrer para o sujeito pela sua não
inscrição, isto é, pela sua contingência. Por essa escritura ser tão contra-intuitiva, podemos
ver que é da articulação de um impossível como necessário que se torna possível a um gozo
marcado por essa impossibilidade vir a ocorrer de modo contingencial para o falante.
134
Porém, o gozo fálico, por estar referido a esta impossibilidade, ocorre para o falante
como uma perda de gozo. Podemos dizer, a partir desse encaminhamento que, do ponto de
vista da estrutura, o gozo fálico se funda por essa referência a uma impossibilidade que se
introduz pela hipótese de um gozo Outro. O gozo fálico resta inteiramente engatado a esse
gozo do Outro.
É fundamental, no entanto, que o gozo do Outro não se constitua como uma questão
exclusivamente de um dos lados da partilha sexual. Todo o falante, porque está submetido
às leis da linguagem, têm que necessariamente se referir ao Outro sexo. Isso coloca
embaraço para eles. Não é por outra razão que Lacan vem afirmar que recalcamos o gozo
porque não nos convém que ele seja dito. Dizer que o gozo não convém a ser dito é uma
outra forma de afirmar que ele não deveria. Essa proximidade com uma impossibilidade faz
o falante recalcar o que é da ordem desse gozo que não convém. Porém, o falante não faz
outra coisa senão gozar. Ele goza e não se apercebe disso. Isso quer dizer que se ele goza
sem descanso de seu sintoma neurótico é, justamente, porque esse gozo parcializado ao que
ele tem acesso não lhe convém. É disso que o falasser não quer saber. Para fazer vacilar
essa posição bem instalada do falante, é preciso muito trabalho - um trabalho discursivo
que conduz o sujeito a ter que se haver com a forma como o gozo se inscreve para ele.
Nessa situação, talvez ele venha a se interrogar sobre o que ele pode fazer a partir disso que
o comanda.
3.6 O desejo e a ética
A ética da psicanálise não concerne a nada além do que a posição do sujeito frente a
seu desejo. Ela, como medida de nossa ação, situa o desejo na perda de gozo. Isto é, o
135
sujeito do inconsciente tem como princípio ético ceder de seu gozo para não ceder de seu
desejo. A castração, como aquilo que instaura no corpo do sujeito o regime significante,
inscreve o objeto perdido como parte de um pacto simbólico no qual o sujeito entra com
uma dívida. A falta que essa dívida insculpe, faz no sujeito apelo a uma determinação, a
uma orientação, a uma interpretação que é, por sua vez, o próprio trabalho do desejo em
funcionamento. Neste sentido, o desejo, pela via da perda, faz com que as coisas ganhem
alguma realidade, introduzindo numa série significante o inefável do gozo. O desejo é,
portanto, como diz Lacan no Seminário da Angústia, “vontade de rechaço de gozo”, pois o
desejo, ao articular significantemente o gozo, faz o sujeito experimentá-lo já em perda.
“A única coisa da qual se pode ser culpado é de ter cedido de seu desejo” (LACAN,
[1959/60], 1991:385). Eis o enunciado ético da psicanálise. Mas, para tomá-lo como se
deve, é preciso ler no texto do desejo tudo o que ele acarreta: primeiro, que o saber do
sujeito sobre seu desejo se desdobra no lugar da verdade. Segundo, que a verdade tem, ela
mesma, estrutura de ficção e que, portanto, não a verdade da verdade, há, da verdade,
fala - a verdade fala, não se fala a verdade e, como fala, ela é sempre um semi-dizer. E,
terceiro, que o desejo é o próprio movimento no sujeito da cessão de seu objeto. Ou o
sujeito encontra no objeto de seu desejo o objeto a como sua causalidade e segue seu
caminho fazendo o que ele tem a fazer na falta daquilo que Lacan denomina “existência da
relação sexual”, ou ele cede de seu desejo e, pelo consumo desenfreado de objetos, vai à
procura daquele que resolveria a inexorável inexistência da relação sexual não apenas se
preenchendo com os gadgets da vida moderna, mas também podendo tomar seu objeto
amoroso como um produto de seu consumo (nada impede num encontro amoroso que isso
136
se dê) ou, ainda, ele cede à melancólica inércia que a vivência da inexistência da relação
sexual pode acarretar e busca na depressão sua saída.
O objeto a, como a libra de carne do sujeito presa na máquina formal, como o
pedaço que o sujeito deixa cair de si pelo advento de sua entrada na linguagem e no social,
deve ser cedido a cada vez em que o sujeito toma a palavra, ou seja, a cada vez em que a
fala do sujeito ultrapassa o blá, blá, blá. Nesse sentido, o desejo e o gozo são um para o
outro o fiel da balança, pois o sujeito precisa ceder de seu gozo, para se situar em sua
condição desejante.
À luz de nossa discussão, vamos dispor de mais uma interpretação para o
“imperativo original da ascese freudiana” - Wo Es war, soll Ich werden”. Onde se na
tradução sugerida por Lacan em “A Ética da Psicanálise” (1959): “Ali onde isso era, eu,
como sujeito, devo advir” pode-se ler: “lá onde o gozo comanda, eu (nem mestre, nem
senhor) como responsável pela determinação significante que me transcende, devo surgir.”
A exortação freudiana não ignora a descontinuidade, o buraco, que entre onde
isso era” e o sujeito. É desse modo mesmo, na descontinuidade entre as duas posições, que
o passo ético tem que ser dado. Mas, outras dificuldades são antecipadas. Vejamos o que
diz Lacan:
A resposta à demanda que nos chega deve manter o sentido profundamente
inconsciente dessa demanda. A psicanálise aprofundou o universo da falta, e
com o que lidamos é, sobretudo, com a atração da falta.
O que se reúne sob esse termo de ética da psicanálise permitir-nos-á, mais do
que qualquer outro domínio, colocar à prova as categorias através das quais,
naquilo que lhes ensino, acredito dar-lhes o instrumento mais apropriado
para salientar o que a obra de Freud e a experiência da psicanálise que dela
decorre trazem-nos de novo
.
De novo sobre o quê? Sobre alguma coisa que é, ao mesmo tempo, muito
geral e muito particular. Muito geral na medida em que a experiência da
psicanálise é altamente significativa de um certo momento do homem que é
aquele em que vivemos, sem poder sempre, e até pelo contrário, discernir o
137
que significa a obra, a obra coletiva, na qual estamos mergulhados. E, por
outro lado, muito particular, como é nosso trabalho de todos os dias, ou seja,
a maneira pela qual temos que responder na experiência ao que lhes ensinei
a articular como uma demanda, demanda do doente à qual nossa resposta
confere uma significação exata uma resposta da qual devemos conservar a
mais severa disciplina para não deixar adulterar o sentido, em suma
profundamente inconsciente, dessa demanda (LACAN, 1959-1960:9 e10).
Se nossa experiência trata do universo da falta, algo com que temos que contar.
A falta, como nos é apresentada por Lacan neste seminário sobre a ética, é indissociável da
morbidez. Aqueles que, de algum modo, se dedicam a dar algum tratamento à questão da
falta cedem, em geral, à tentação de acreditar que através de uma certa redução da
morbidez poderiam fazê-la evaporar. Visada um tanto otimista, diz Lacan, porque no final
das contas, aquilo com que lidamos é, antes de tudo, com a atração da falta. Esta atração é o
que em Freud foi desenvolvido sob o título de “Mais além do princípio do prazer”. A
constatação e o compromisso de Freud em desenvolver conceitualmente aquilo que ele
pôde reconhecer como uma atração pela falta abriu um novo caminho para a psicanálise
que veio a reorganizar todo seu campo, nos possibilitando uma releitura de tudo o que
vinha sendo estabelecido como o campo do inconsciente e do sujeito. O enlace da ética com
a atração da falta, com a morbidez da busca do sujeito por esse ponto oco de gozo, coloca
para experiência humana todas as dificuldades com o próprio campo da ética.
A ética, de modo geral, não é assimilável somente por leis articuladas que regem as
ações do sujeito através de sua obediência a seus princípios, ela não se traduz em bom
cumprimento de obrigações prescritas. Além de uma orientação, a via da ética implica,
sobretudo, em uma sanção, em uma confirmação de sua injunção por parte do sujeito,
constituindo uma tendência pela qual ele se compromete com sua ação de modo particular –
138
pois, o coloca a se encontrar em relação a ela sem volteios, edificando um bem pelo qual
ele clama (LACAN, [1959-1960]1991).
No entanto, como dissemos, o fundamento desta tendência está associado à falta e a
própria atração mórbida dela em nós que comparece pelo avesso do desejo. Para o sujeito,
portanto, a via menos custosa de aproximação da questão ética se faz pelo sentimento de
obrigação e seu reverso, o sentimento de culpa que comparece na falta do cumprimento
de seu dever – eximindo o sujeito de sancionar o preceito ético. Neste caso, o sujeito sai da
via ética para se dedicar ao exercício da culpa.
Na culpa, comumente, trata-se de um sentimento desencadeado por algo como um
deficit que o sujeito teria deixado na contabilidade que ele estabelece em relação à falta do
Outro. A obrigação, como o outro lado da culpa, tem a propriedade de colocar o sujeito na
posição de estar prestando um serviço ao Outro, ou seja, de estar no funcionamento
burocrático de uma ação determinada por algo que ele não reconhece como movido por seu
desejo. O desejo no comando, por sua vez, não tem compromisso algum com nenhum
acerto de contas. Ele acossa o sujeito ao movimento a fundo perdido. Na verdade, o desejo
constitui algo que é percebido pelo sujeito e, por isso mesmo, rejeitado como uma força
subversiva porque desestabiliza a contabilidade encontrada por ele para quitar sua dívida e
se livrar da falta que lhe é inerente.
A psicanálise, por constituir uma práxis - por ser originária da clínica de uma escuta
- pôde apreender a função do sentimento de culpa e a gênese da dimensão ética no humano
nas raízes do desejo. Em favor disso, a censura a que nós somos submetidos pelo caráter
normativo do Édipo através do recalque é tributária de nossa condição de sujeitos ao
desejo.
139
Lacan dedicou grande parte de seu ensino a nos fazer ver que o analista não pode se
dirigir ao eu (self) do sujeito que recebe em sua clínica, como rezava a escola inglesa. O eu,
sempre voltado a recuperar em algum sentido, o que escapa de “si” no falar, tentará fazer
com o analista uma parceria de oposição “àquele sujeito” de quem eles, analista e
analisante, falam. Trata-se, nessa via, de analisar o sujeito em questão e desautorizá-lo em
sua operância. Ao contrário, do que Lacan recuperou em Freud, o analista deve se dirigir ao
sujeito e não falar sobre ele. O analista deverá dirigir o tratamento no sentido de que o
sujeito possa mais e mais destituir suas defesas egóicas e responder menos em nome de seu
eu e mais por sua causalidade. De todo modo, o sujeito não se tornará outro através de uma
análise, ao contrário, ele poderá, se ele se dispuser a isso, deixar que aquilo que em geral o
eu rechaça possa ter lugar. Se o sujeito autorizar o trabalho inconsciente e permitir que o
real do objeto atravesse nossa realidade banal, isso permitirá um certo deslocamento do eu.
O autorizar e o permitir referidos acima são possíveis por alguma sorte de
constrangimento imposto ao sujeito. O constrangimento a que o sujeito se vê submetido, no
entanto, é sempre um constrangimento ético. Senão, haverá para ele sempre uma saída, nem
que seja a de gozar de seu sofrimento. O analista por sua vez, ao fazer do analisante
suporte e autorização(LACAN, 1967-1968).
Conseqüentemente, a ética é o que não dá escolha ao sujeito. A única escolha que se
tem diante de um constrangimento ético é o de não se estar em sua via. Quando aí estamos -
e isso é uma verificação que não se faz de uma vez por todas - sua orientação é clara, não
depende de interpretações. No caso da psicanálise, a ética se refere à posição do sujeito
frente a seu desejo. Sem muitas predicações, ela tem algo a transmitir de modo
140
extremamente pontual e preciso e que é alcançável no fazer do próprio trajeto de cada
um.
Apesar da especificidade da transmissão na psicanálise, o que de comum em
relação ao fato da transmissão, qualquer que ela seja, é que ela se do Outro ao um, que
necessariamente estão em posições assimétricas entre si. A transmissão de um nome de
família transmitido de pai para filho é um exemplo. Cada pai está na condição de transmitir
aquilo que lhe foi transmitido enquanto filho, agora na posição de pai. Essa assimetria e
essa continuidade que atravessa a diferença dos lugares é essencial à produção do laço
social. Isto é, ao mesmo tempo em que a transmissão insere o sujeito no espaço público, ela
também mantém o próprio social. A transmissão, na verdade, é efeito da dívida do sujeito
com o desejo do Outro, pela qual ele recebe não o “bem” confiado que lhe é transmitido
como também o legado do próprio desejo como desejo de desejo, como desejo de cavar no
sujeito a quem a transmissão visa um novo desejo. A importância da transmissão está,
acima de tudo, no reconhecimento do desejo que ela veicula visando um sujeito que, por
sua vez, se habilita ele próprio ao desejo. Logo, esses termos são essenciais ao laço social e
à função pública do desejo, posto que não efeito de transmissão em domínio privado. A
transmissão é uma necessidade do próprio fato da linguagem e concerne o sujeito como
“veículo mortal de uma substância (possivelmente) imortal como o herdeiro de uma
propriedade inalienável, que é o único dono temporário de um patrimônio que lhe
sobrevive” (FREUD, [1914]1980 vol. XIV:94).
O laço social na psicanálise, apesar de não ser a união de vários sujeitos em um
determinado conjunto e apesar de contar com o significante, o sujeito e o objeto a como
seus elementos estruturais, conclama a esfera pública uma vez que ele está sustentado pelo
141
que se segue: cada vez que o sujeito está remetido a uma alteridade, cada vez que ele pode
fazer a experiência de que entre ele e o Outro um corte, uma linha descontínua, ele está
exposto a algo que se liga por um laço que é social, ou seja, por um laço que não junta
dois ou mais fazendo um corpo, tendência do laço conjugal. O laço social trata de uma
relação que é por si mesma disjunta, e que conta, então, com o buraco, com a
descontinuidade.
Ele é, ao mesmo tempo, efeito e recobrimento da estrutura da linguagem que produz
um sujeito, um sujeito, um sujeito, (e não uma sociedade)... cada qual separado do objeto
que marca o próprio corte como incidindo sobre cada um e não tão somente entre um e
outro. O laço conjugal, por sua vez, é também efeito e recobrimento desta estrutura. No
entanto, ele pode ser mais bem sucedido em sua função de recobrimento. O pacto contido
neste laço é de que o corte deverá ser estreitado até que pareça abolido, momento no qual
cada um se sentirá autorizado a saber o que o outro pensa, o que o outro faz, o que o outro
quer, o que o outro diz. Essa situação expressa bem o que abordamos aqui como vida
privada. Privada não por não participar da vida pública, mas, sobretudo, privada de
sofrer os efeitos do que é exterior, externo, estranho.
Na estrutura de interdependência dos dois campos: o do sujeito e do Outro e na
impossibilidade da dinâmica se sustentar nas bases de uma autonomia e auto-suficiência do
sujeito, desvela-se no âmbito do privado a ineficácia da tentativa de separação entre o
indivíduo e o mundo. O que o sujeito tem de privado, de incompartilhável em sua
experiência, diz respeito propriamente a sua fantasia, àquilo que é justamente o que
constitui seu mundo.
142
Aquilo que a psicanálise pode visar quanto a isso é que se faça uma inversão na
relação do sujeito com o Outro. Ao invés do sujeito pedir garantias ao Outro, esperando
dele algo que venha a lhe sustentar, ele deve passar a oferecer seu desejo como garantia, ou
seja, o trabalho decorrente de sua posição ética se constituirá como uma forma de garantir o
Outro. Isso porque não existe Outro sem esse trabalho do inconsciente que produz os
significantes pelo qual ele (o Outro) ganha materialidade. Justamente, a questão que a
análise coloca para o sujeito é a de que não vive ninguém no Outro, de que de não lhe
chega demanda alguma. Na realidade, cabe ao sujeito transmitir o Outro como um lugar na
medida em que ele é a própria trama significante, é o saber-fazer da rede significante
enquanto ela se tece.
Em A Ética da Psicanálise, Lacan diz:
Se a análise tem um sentido, o desejo nada mais é do que aquilo que suporta
o tema inconsciente, a articulação própria do que faz com que nos
enraizemos num destino particular, o qual exige com insistência que a dívida
seja paga, e ele torna a voltar, retorna e nos traz sempre de volta para uma
certa trilha, para a trilha do que é propriamente nosso afazer (op. cit:383
).
Lacan, no Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, afirma ainda
que o “estatuto do inconsciente é ético, e não ôntico” ([1964] 1985:37). Em outro momento
Lacan afirma, segundo Melman, que “o inconsciente é o social”. Notadamente, para Lacan
o inconsciente não se sustenta como o campo do inefável ou como uma instância no sujeito
onde aquilo que é mais privativo lhe ocorre. Pelo contrário, Lacan encontra na ética a
possibilidade do inconsciente e no inconsciente a estrutura do social.
Entendemos que o inconsciente é ético na medida em que dele depende uma sanção
do sujeito quanto à falha, à fenda, à perda que o trabalho inconsciente produz. De outro
modo, se não há um sujeito para recolher do trabalho inconsciente as conseqüências
decorrentes dele, não ao menos como supor o inconsciente. Para a suposição do
inconsciente é preciso que o sujeito se deixe representar pelos significantes que se
143
encadeiam em sua fala o que ele não faz por gosto ou gozo. Não basta que o sujeito fale.
Se na fala não se lê o inconsciente e o modo pelo qual o sujeito se engatou em seu gozo, ela
pode se manter reduzida a um dos modos de gozo do sujeito.
É, de fato, surpreendente que Lacan tenha podido ler na estrutura do inconsciente a
própria estrutura do social. Mas, na realidade, seguindo seu trajeto, isso começa a se
mostrar necessário. O social é feito de operações discursivas, tomadas de posições,
segregações significantes inscrevendo um saber-fazer. O social é o fato de alguém estar na
posição de comando e de alguém estar na posição de trabalho. É o fato de que haja um
lugar para o Outro. A partir da estrutura primeira do social, outros arranjos sociais são
possíveis.
Como falantes, estamos no laço social determinados pelo furo que a castração cava
em nossa experiência, caso contrário, nos seria desnecessário o próprio laço. Viveríamos
tão somente comandados pela necessidade do organismo fisiológico e não por aquela do
organismo social. Afinal de contas, devemos supor um sujeito que, como tal, não
corresponda ao átomo isto é, à ponta indivizível do social, mas sim que corresponda à
própria possibilidade do social de cumprir sua função de laço, de uma amarração que nos
insere numa série, nos determinando na via de um discurso articulado. Essa articulação, por
sua vez, depende de uma estrutura na qual o sujeito está incluído.
144
Capítulo 4
TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE E FUNÇÃO PÚBLICA
Situar em que dimensão a psicanálise opera, nos orienta para sua função. Se ela, por
ventura, constituísse uma visão de mundo na qual poderíamos nos apoiar para explicar
nossa existência e encontrar as respostas necessárias para estabelecermos uma condição de
amparo e conforto, sua função seria a de oferecer ao sujeito a promessa de uma alguma
sorte de felicidade. Se, por outro lado, seu estatuto fosse tão somente aquele da ciência, seu
“fazer” estaria inteiramente do lado do analista, a quem caberia extrair de seu objeto
constituído algum tipo de efeito que produzisse no real uma modificação. Além do mais,
para que uma operação possa receber o estatuto de ciência, em uma abordagem mais geral,
é necessário que o sujeito possa ser apagado. É preciso que qualquer um que se habilite a
percorrer os passos traçados em uma operação científica obtenha, do mesmo modo que seu
antecessor, o resultado encontrado. A ciência é verificável e seus caminhos podem ser
repetidos. Nesta dimensão, sua função visaria exaurir o real, capturá-lo em alguma medida
para, eventualmente, intervir nele. Se, de outro modo, a psicanálise for orientada por uma
ética, sua função dependerá, em todos os casos, do sujeito e de sua escolha. Ela poderá
ser verificada em seus efeitos a cada caso e a cada vez. Dessa forma, ela não dependerá, em
sua operação, apenas do caminho percorrido pelo analista. O analista não poderá apenas
repetir os passos de um analista que o anteceda para obter os mesmos resultados e seguir
daquele ponto em diante. Será necessário, para cada um, que o caminho seja inteiramente
145
percorrido a seu modo e de seu lugar como sujeito para que, em um dado momento, ele
possa vir a operar na função de analista.
Vejamos primeiro, então, a partir desse sobrevôo inicial, o lugar social da
psicanálise segundo seus princípios. Verifiquemos, na seqüência, como opera a psicanálise,
o que ela estabelece em seu funcionamento, como ela se transmite e, por fim, iremos
considerar o que resta a ela como função pública na condição de ser, ela mesma, um
discurso que visa intervir pontualmente nos outros modos de laço social.
4.1 Psicanálise e Weltanschauung
Em “Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”, Freud dedica uma
conferência à questão da Weltanschauung,
38
conceito especificamente alemão que ele
considerava de difícil tradução. Para encaminhar sua questão ele próprio sua definição
para o conceito,
a Weltanschauung é uma construção intelectual que soluciona todos
os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma
hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma
pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar
fixo. (FREUD,
[1933] 1980, vol.XXII :193)
A questão na qual Freud se debruça é a seguinte: “a psicanálise conduz a uma
determinada Weltanschauung e, em caso afirmativo, a qual?”
38
A tradução para a palavra alemã consagrada entre nós é a de “visão de mundo”, que encerra igualmente um
conceito.
146
Pelo que nos esclarece do conceito, Freud diz que não é difícil imaginar que uma
Weltanschauung faça parte dos desejos ideais da vida humana. Se o homem se apóia em
uma, seu conforto de estar, de alguma forma, seguro é sua recompensa.
A psicanálise, no entanto, como uma práxis que trata do inconsciente, da falta que
estrutura a vida humana, do saber que não se sabe, não poderia erigir, ela mesma, uma
Weltanshauung. O sujeito da psicanálise, sujeito do inconsciente, é, como nos demonstra
Lacan, um sujeito que nasce de um ato de subversão da operação cartesiana que determinou
por si mesma um corte com a Weltanschauung transmitida pela alta elite intelectual do
século dezessete. Descartes não aceitou como verdadeiras e inquestionáveis as opiniões
estabelecidas às perguntas filosóficas que seus mestres se colocaram.
Freud, tendo ele dito sobre a impossibilidade da psicanálise de produzir uma
Weltanschauung, conclui: “ela [a psicanálise] é praticamente incapaz de construir, por si
mesma, uma Weltanschauung: tem de aceitar uma Weltanschauung científica.”(op. cit.:
194). No entanto, ele não nos esclarece sobre a necessidade da psicanálise em ter que
aceitar uma para se colocar ao seu lado. Deve a psicanálise, enquanto práxis que é, estando
fundada na evidência do fracasso dos ideais e na descoberta de que na raiz do desejo
humano a insatisfação está sempre colocada, lançar mão de uma construção intelectual que
solucione todos os problemas de nossa existência? Que encontre um bom lugar para tudo
que nos interessa?
Apesar de colocar a psicanálise na posição de aceitar a Weltanschauung científica,
Freud argumenta que a Weltanschauung da ciência diverge muito de sua própria
definição do conceito. Ele considera que a “visão de mundo” da ciência é diferente de sua
própria definição de “visão de mundo” tout curt, pelo fato de que a suposição da ciência,
147
quanto à uniformidade na explicação do universo, não passa de um projeto a ser realizado
sempre no futuro. Além do mais, a ciência, assim como a psicanálise, não reconhece como
legítimo nenhum conhecimento derivado de revelação, de intuição ou de adivinhação,
sendo a pesquisa a única via de conhecimento e fonte de saber.
A Weltanschauung científica por estar apoiada inteiramente na pesquisa é sempre
parcial em suas respostas, deixando muitas questões em aberto. Pela precariedade de suas
respostas, ela não é suficiente para responder à demanda do homem de ter, enfim, seus
maiores enigmas desvendados. No entanto, a psicanálise, fazendo sua contribuição
justamente no que concerne à demanda humana e às ilusões que a suportam, pode
reconhecer que essa demanda não tem como ser de fato calada, seja por uma resposta, seja
por algum reconhecimento intelectual de seus motivos. A principal via de organização e
esterilização de tal demanda é a devoção religiosa e a crença de que Deus está dando uma
resposta através dos acontecimentos ordinários e extraordinários. Ou seja, de que o sujeito
que pede pode descansar em paz porque tem um Outro lhe suportando e encontrando para
ele, em seu lugar, as vias a percorrer.
Freud reconhece como três poderes aqueles que podem disputar a posição básica da
ciência. São eles: a religião, a arte e a filosofia. Quanto à arte, ele considera-a inócua na
disputa e até benéfica uma vez que não pretende estabelecer nenhum compromisso com a
realidade. A filosofia não se opõe à ciência, trabalha com os mesmos métodos, embora se
considere capaz de apresentar um quadro do universo coeso, sem falhas, todo coerente.
Segundo Freud, a filosofia peca ao “superestimar o valor epistemológico de nossas
operações lógicas e ao aceitar outras fontes de conhecimento, como a intuição.” (op.
cit.:196) A filosofia ainda é mais inócua pelo fato de atingir um número pequeno de
148
pessoas, não sendo accessível a todos. Em contra partida, a religião é um poder muito
grandioso, capaz de capitalizar um enorme número de fiéis. Ela, antes da ciência moderna
ser inaugurada por Descartes, assumia o próprio lugar da ciência. Constituía uma
Weltanschauung auto-suficiente e sem paralelos e ainda que a religião não se apresente
mais como uma visão hegemônica como outrora, ela se mantém ao longo dos séculos como
uma forma de estancar o mal-estar intrínseco à cultura.
É difícil, no entanto, reiterando a questão, estabelecer a função da psicanálise numa
Weltanschauung, pois, uma vez que ela não constitui por si própria uma Weltanschauung,
deve ela aceitar a “visão de mundo” científica e nela se encaminhar? O que lhe torna
incapaz de constituir sua própria “visão de mundo” não é o fato de ser ela mesma o avesso
dessa necessidade? Terá faltado a Freud os meios de constituir para a psicanálise um outro
estatuto que estabelecesse seus princípios e seu fim?
A quem cabe justamente essa função de oferecer todas as respostas é a religião,
ainda que algumas se encerrem como o mistério divino. Cabe à religião sustentar a
“hipótese superior dominante” numa Weltanschauung e, ainda, faz parte dos seus desígnios
reunir o maior número de seguidores e adeptos a suas determinações e explicações. A
religião oferece ao sujeito, como lembra Freud, uma garantia de um final feliz e de conforto
na desventura, o que a torna mais atrativa e o que seguramente soluciona questões que nem
a psicanálise, nem a ciência, nem a arte e nem a filosofia poderiam por si oferecer como
resposta.
Freud acredita que “a notável combinação de ensino, consolo e exigências que se
verifica na religião” (op.cit.:198) sustentam como oferta aquilo que ao homem falta. A
religião confere sentido ao que não tem sentido, oferece consolo às desventuras e traça o
149
caminho que o sujeito deve percorrer para lhe garantir uma boa acolhida em sua condição
de desamparado e, por fim, ainda o coroa com o descanso eterno. Mas, observa Freud, esses
três aspectos que convergem na solução religiosa têm texturas diferentes. Mistura-se a
explicação da origem do universo com preceitos éticos específicos, como fez Kant ao unir
os céus estrelados e as leis morais dentro de nós como testemunhos vivos de Deus. Para nos
fazer compreender porque tem efeito reunir coisas tão díspares em nome de Deus, Freud
nos lembra que esse Deus que evocamos como pai, copia a própria função paterna reunindo
a criação, de cada um de nós, com a transmissão de deveres sociais e princípios éticos.(op.
cit.:199 e 200). Ele é feito à nossa imagem e semelhança.
Sobre a origem dos primeiros mandamentos éticos Freud evoca seu trabalho sobre o
“Totem e Tabu”. Os primeiros mandamentos éticos teriam sido delimitados pelo que se
constituiu como tabu. Melman em uma palestra na Universidade de Bogotá em 2002 sobre
“O público e o privado” diz que
(...) não há comunidade humana possível sem que exista em seu seio
um bem comum, público, do qual todos os membros da comunidade tirem
proveito. Não sociedade humana sem que exista em seu seio um bem
público e o primeiro, que os antropólogos nos revelaram, é o totem. É um
bem público essencial por que é, para cada um dos membros do grupo, o
signo de sua humanidade. Vocês podem notar, também, em seguida, que este
bem público exige sacrifícios, ou seja, pede a cada um que renuncie a um
certo gozo, de tal forma que se poderia dizer que o que permite aos membros
desta comunidade reconhecer sua humanidade é compartilhar o mesmo
sacrifício (MELMAN, 2002).
O totem exige, então, a renúncia de um certo gozo que se inscreve como um
mandamento ético. A ética, portanto, se vincula a uma renúncia ao gozo de modo
150
específico, que é, conseqüentemente, o que confere o signo de nossa humanidade. A
psicanálise, de outro modo, exige pela ética do desejo, pela assunção da castração, um certo
limite ao gozo, sem constituir para tanto um novo totem ou um tabu, não obstante necessite
ela de um pacto social. Ela funda um novo tipo de laço que ao invés de se instituir pelo
sacrifício comum, se institui pelo desejo que mantém no cerne de nossa condição humana o
buraco aberto pela nossa entrada na estrutura da linguagem. O buraco no discurso em
questão é a própria causa de nosso esforço para produzir novos significantes (S
1
) que, uma
vez no comando (no lugar de agente) do laço social podem introduzir um novo corte na
série de nossos hábitos sintomáticos e mortificantes, em nossa ordem fraterna de
segregação da diferença e da privatização do bem comum. Esses novos significantes (S
1
)
que surgem como produto do discurso do analista portam a memória do objeto como causa,
do sujeito no trabalho significante e do saber no lugar da verdade:
Chegamos enfim ao nível do discurso do analista. Naturalmente ninguém
assinalou é muito curioso que o que ele produz nada mais seja do que o
discurso do mestre, já que S
1
é o que vem no lugar da produção. E, como eu
dizia da última vez, quando deixei Vincennes, talvez seja do discurso do
analista, se fizermos esses três quartos de giro, que possa surgir um outro
estilo de significante mestre (Lacan, [1969-70] 1992:168).
Por sua vez, a ciência moderna, desvinculada dos preceitos e crenças religiosas,
acabou, pela própria pesquisa, a revelar o quanto a Weltanschauung da religião era um
assunto humano e passível de críticas. A religião, ela mesma, passou a ter sua eficácia
pesquisada. Inclusive, “se tentarmos situar o lugar da religião na evolução da humanidade,
ela aparece não como uma aquisição permanente, mas sim como um equivalente da neurose
pela qual o homem civilizado, individualmente, teve de passar, em sua transição da infância
à maturidade” (op. cit.:204).
151
A ciência - e dela, nesse sentido, a psicanálise se aproxima - é incapaz de garantir
ou de proporcionar consolo e alegria. Não pode, tampouco, prever destino algum. Seu
trabalho é lento e provisório, sua verdade transitória. São nesses aspectos que vemos Freud
colocar a psicanálise do lado da Weltanschauung científica. No entanto, as esperanças
devem ser contidas em ambas, adverte ele.
Ao concluir seu texto, Freud retoma o que dissera no início. Reafirma que a
psicanálise é incapaz de criar uma Weltanschauung por si mesma. “A psicanálise não
precisa de uma Weltanschauung; faz parte da ciência e pode aderir a Weltanschauung
científica”, diz ele, conforme citado anteriormente. Entretanto, ela é bastante restrita
naquilo que é capaz de abranger e não é suficiente para construir sistemas.
A nosso ver, se para Freud foi necessário afirmar a psicanálise como ciência e fazê-
la participar da Weltanschauung científica é porque, antes de tudo, ele mesmo considerava-
se um cientista. A psicanálise nunca deixou de o fazer trabalhar como um verdadeiro
pesquisador e, diante dela, podemos constatar que Freud nunca descansou; tomava muitas
de suas verdades como provisórias e não recuava de sua hipótese do inconsciente, até
porque as evidências sempre estiveram a seu favor.
A sorte de questionamentos que interpelam Freud em seu limite ignora os tempos do
sujeito, suas determinações culturais (e, incluída nelas, suas determinações significantes) e
os limites de um certo avanço clínico e teórico no tempo de uma vida, mesmo sendo na
vida de um homem que ultrapassou em muito seu tempo. Portanto, aquilo que nos leva a
contrapor a posição de Freud à posição de Lacan tem razão em nome de nos fazer
atravessar as conseqüências de cada um dos caminhos e de ajudar a nos orientarmos
clinicamente a partir dessa experiência.
152
4.2 A psicanálise e a ciência: sujeito, saber e verdade
A psicanálise certamente nasce da ciência, tanto pelo que Freud pôde recolher dos
efeitos de ruptura de Descartes com a Weltanschauung vigente, tanto pelo fato de que seu
campo de origem é o da ciência (Freud como neurologista se interessou pela patologia
histérica e fez dela uma pesquisa). Entretanto, o que Freud formulou, desenvolveu e
sustentou, a partir de então, levou a psicanálise a produzir algo além de um novo objeto
científico.
Se em “A ciência e a verdade”, Lacan estabelece uma discussão com a tomada de
posição de Freud no texto da Weltanschauung, sua intenção parece ser, em primeiro lugar,
a de identificar “a vocação de ciência da psicanálise” (LACAN, ([1965]1998: 870), para
então, situar com ela seu ponto de ruptura. Ateremo-nos a essas duas questões.
Diz Lacan: “Para que um psicanalista saiba o que acontece com sua práxis (...) é
preciso uma certa redução, às vezes demorada para se efetuar, mas sempre decisiva no
nascimento de uma ciência; redução que constitui propriamente seu objeto” (op. cit.: 869).
Logo, Lacan, num tempo, fala da necessidade de redução da práxis ao objeto para que o
analista saiba de fato a que concerne sua função e do efeito que a redução de uma práxis à
um objeto tem como nascimento de uma ciência.
No texto, Lacan toma o sujeito como ponto crucial da ligação da psicanálise com a
ciência. De modo que, segundo Lacan, a via que Freud abriu nunca se desvinculou dos
ideais do cientificismo, trazendo deste uma marca que lhe é essencial. (LACAN, [1965]
153
1998: 871). O que a psicanálise preserva da ciência moderna é, no entanto, a relação do
sujeito com o saber, que é nomeado cogito.
Dizer que o sujeito sobre quem operamos em psicanálise pode ser o
sujeito da ciência talvez passe por um paradoxo. É aí, no entanto, que se
deve fazer uma demarcação, sem o que tudo se mistura e começa uma
desonestidade que em outros lugares é chamada de objetiva: mas é que é
falta de audácia e falta de haver situado o objeto que malogra. Por nossa
posição de sujeitos somos sempre responsáveis. Que chamem a isso como
quiserem, terrorismo. Tenho o direito de sorrir, pois não era num meio em
que a doutrina é abertamente matéria de negociatas que eu temia chocar
quem quer que fosse, ao formular que o erro de boa fé é dentre todos o mais
imperdoável (LACAN, idem: 873).
Se o sujeito da psicanálise é aquele que nasce pelo advento da ciência moderna, ele,
entretanto, não é recolhido pela psicanálise e pela ciência da mesma forma:
Indicaremos mais adiante como se situa a lógica moderna. Ela é, de modo
inconteste, a conseqüência estritamente determinada de uma tentativa de
suturar o sujeito da ciência, e o último teorema de Gödel mostra que ela
fracassa nisso, o que equivale a dizer que o sujeito em questão continua a ser
o correlato da ciência, mas um correlato antinômico, já que a ciência mostra-
se definida pela impossibilidade do esforço de suturá-lo (op. cit.:875).
Em relação ao sujeito, a ciência e a psicanálise avançam em direções opostas e, na
realidade, a psicanálise recolhe o que a ciência exclui. O outro ponto sobre o qual Lacan se
detém no texto para, digamos, cotejar a posição da psicanálise com a da ciência, incidiu
sobre o estatuto que tem o saber e a verdade para cada uma delas. Primeiramente Lacan se
pergunta,
O objeto da psicanálise (...) não é outro senão aquilo que expus sobre a
função que nela desempenha o objeto
a. O saber sobre o objeto a, seria
então, a ciência da psicanálise? (op. cit.:877).
Mais o que seria em si a ciência da psicanálise, o que seria saber sobre a função de a
se de sua função o que sabemos nos chega pela sua incidência real? Ainda que Lacan tenha
inventado o objeto a como um conceito preciso para estabelecer uma direção na práxis da
154
psicanálise, ele, em sua elaboração, repete o próprio valor da práxis que é o de tratar o real
do objeto pelo simbólico de nossa rede significante. No Seminário Mais, Ainda (1972-
1973), Lacan faz um giro nesta primeira formulação dizendo que no humano o real é o
simbólico, na medida em que ele não se resolve, em que ele nada soluciona e que é no
cerne de sua estrutura que o a se produz.
Não relação da psicanálise com o saber que não seja aquela do saber em seu
discurso, ou seja, aquela do saber no lugar da verdade que é bem diferente do “se saber a
verdade”:
E de novo retornar àquilo de que se trata, ou seja, admitir que nos é preciso
renunciar, na psicanálise, a que a cada verdade corresponde seu saber? Esse
é o ponto de ruptura por onde dependemos do advento da ciência. Nada mais
temos, para conjuga-los, senão esse sujeito da ciência. (op.cit.883)
(...) a prodigiosa fecundidade de nossa ciência deve ser interrogada em sua
relação com o seguinte aspecto, no qual a ciência se sustentaria: que, da
verdade como causa, ela não quer-saber-nada. (op. cit.:889)
Com o cogito cartesiano - que parte do “desfilamento de um rechaço de todo saber”
- nasce a ciência moderna e o sujeito como seu correlato. Ao questionar o saber que lhe era
transmitido e, portanto, retirar dele seu valor de verdade, Descartes empenha sua
subjetividade em um trabalho de verificação. Dever-se-ia chegar à verdade, cada um, em
sua própria experiência. Tal experiência, entretanto, é possível na medida em que um
saber eminentemente ontológico possa ser abalado. A consistência, a esfericidade e a
compacidade do saber em que o ser encontrava seu lugar e estatuto não resistem à fenda
aberta pelo cogito. Quando tudo é colocado em causa, nada guarda mais sua estabilidade. O
ser, por sua vez, depende da continuidade e da permanência de seus atributos de ser. Isso
que emerge no lugar do ser, o sujeito, é de outra ordem: descontínuo, intervalar, inesperado,
indeduzível e presente, tão somente, pela convocação da deriva significante. Descartes
155
provoca a abertura que lugar ao sujeito. Contudo, “pretende fundar para o sujeito um
certo ancoramento no ser” (LACAN, op. cit.:870), operação que remete a uma “sutura” do
efeito de seu ato. Uma vez que o cogito retira o lugar estabelecido e seguro do ser - onde
tudo estava dado e no qual cabia apenas a cada um seguir seu caminho - ele funda o sujeito
como a exigência de que, em nome próprio, cada um venha, a cada vez, na medida de seu
passo, fundar sua própria trilha.
Ao se colocar em questão o saber pela interrogação, perdem-se as garantias sobre as
quais o cosmo estava sustentado. A tradição não pode mais se afirmar como norma de
verdade. Em suma, a autoridade dos mestres que seriam responsáveis por afirmar um saber
como verdade fica comprometida, de modo que Descartes sente a necessidade de restituir
Deus ao lugar de garantidor da verdade, para que as certezas do sujeito adquiram o valor de
verdade. Entretanto, vemos que a fenda se abriu. Uma vez tendo isso acontecido, não será
mais suficiente a instauração de um Deus no lugar da garantia. Para que uma verdade possa
ser demonstrada, é preciso a realização de uma operação, a cada vez, para que a certeza seja
produzida. Vemos em uma análise que o sujeito, ao se encontrar com a inconsistência do
Outro, não pode mais estabelecer o Outro como uma autoridade garantidora, operação que,
por si, só faz com que o Outro passe a ser, ele próprio, garantido pelo sujeito. O sujeito - na
medida em que conseqüências ao funcionamento significante, na medida em que possa
sustentar aquilo que o determina nesse funcionamento como sendo da ordem de uma
alteridade e, portanto, na exterioridade do ser - garante o lugar de seu exercício e,
concomitantemente, o lugar do Outro.
Essa operação de interrogação do saber introduzida por Descartes, que tem por
efeito o advento do sujeito, está fundada na própria divisão entre o saber e a verdade.
156
Enquanto na ciência antiga o saber era transmitido por uma tradição, garantido por uma
autoridade e tinha valor de verdade, na ciência moderna o sujeito vem a interrogar o saber
em relação à verdade que ele pode suportar de forma que, ao ser garantido por sua própria
verificação, ele passa a ser relativizado quanto a seu valor de verdade. O estatuto da
verdade passa a ser transitório e parcial, cedendo lugar para a certeza. Cabe ao sujeito
aceder à certeza porque a verdade é uma questão que concerne, sobretudo, a Deus.
Ora, se a introdução do conceito de sujeito rompe com o legado de uma tradição
teológica e convoca cada um de nós a um recomeço e, se através dessa experiência pode-se
retirar do fato da linguagem e da fala o conceito de inconsciente, é porque houve um sujeito
(houve Freud, houve Lacan), que a cada vez, a despeito de qualquer natureza, se prestou a
esse trabalho. A partir de Descartes, podemos dizer que foi demolida (obviamente trata-se
de um processo em que a resistência, a princípio, recusou qualquer movimento) a
convicção de que se deveria receber todo ensinamento como verdadeiro. A verdade, quando
dada como tal, é inquestionável. Mas, uma vez que já não era verdadeiro que Deus
garantisse a verdade, dependia do sujeito fazer aparecer algo como certeza. O lugar da
verdade, a partir da operação cartesiana, é dado pela trama discursiva, pelo efeito da certeza
que ela engendra, o que levou Lacan a vir a afirmar que a verdade é ela mesma um lugar
discursivo.
Dado que a verdade é um lugar discursivo, um lugar que constitui a própria
estrutura da fala, ela não tem como ser dita inteiramente. O que da fala extraímos como
verdade é algo que inevitavelmente nos remete à estrutura discursiva. Não é possível falar
inteiramente daquilo que é a própria possibilidade do dizer. Embora o sujeito tenha como
capacidade constituir como idéia o todo ou, mais precisamente, embora o sujeito seja
capaz de estabelecer como ideal um todo -, ele é incapaz de acolher em sua fala um todo.
157
Resta inevitavelmente sempre aquilo que não se pode dizer, para o qual faltam palavras.
Nesse caminho, Lacan nos ensina que a verdade é um semi-dizer.
No entanto, embora a psicanálise, através de Lacan, deva ao ato de Descartes a
própria possibilidade do sujeito com o qual lidamos, a passagem de Descartes a Freud não é
um traço contínuo, não se podendo imaginar um desenvolvimento natural do pensamento
de um ao de outro. A descoberta freudiana do inconsciente e a práxis analítica que Freud
colocou em funcionamento implicam numa subversão desse sujeito em questão.
Descartes, duvidando de todo saber que lhe fora transmitido até então, não pode se
assegurar de nenhuma certeza, a não ser a de que pensa. Primeiramente, Descartes é levado
da dúvida a uma certeza: Estou seguro, porque duvido, de que penso”, em seguida extrai
desta certeza a consistência do ser: Penso, logo, sou.” Entretanto, Descartes não consegue
avançar sem convocar Deus para restabelecer todo o resto das determinações. Descartes
precisa se assegurar de um Outro que não seja enganador para garantir, pela sua existência
e segundo sua vontade, as bases da verdade. que haver esse Outro para garantir “que
em sua própria razão objetiva os fundamentos necessários para que o real mesmo de que ele
vem de se assegurar possa encontrar a dimensão da verdade” (LACAN, [1964] 1985: 39).
Uma verdade que encontra em Deus sua consistência não pode ter qualidades mundanas.
Ela mesma se estabelece como absoluta.
Para Freud a dúvida também é operatória, de forma que através dela ele atinge uma
certeza. Para Freud, se o sujeito duvida ou esquece de algo, isso quer dizer que há algo que
determina essa incerteza. Ora, a hipótese do inconsciente permite recolher daquilo que se
apresenta como um ponto de incidência da resistência aquilo que a causa. Isto é, a ação do
desejo inconsciente, que nesse ponto busca realizar-se. Ele percebe, portanto, que o sujeito
que esbarra na dúvida tem algo a preservar longe de sua consciência.
158
Freud pôde reconhecer nas respostas sintomáticas de seus pacientes a própria
estrutura do inconsciente na medida em que neles habitava o sujeito do cogito.
39
Trata-se,
portanto, de um campo onde o que pode ser apreendido como verdade não tem nenhuma
comunhão com a natureza das coisas. O campo no qual estamos: o do significante, o da
ciência, ou seja, o do humano, não encontra as coisas senão como perdidas. Sempre
presentes em perda nas palavras e não representadas por elas.
O senso comum, o que nos é dado por nossa intuição, é que tomemos as coisas
como existentes em sua natureza de coisas. Temos a tendência de supor que a fala serve
apenas para apresentá-las, representá-las ou, ainda, mediá-las. O que nos recusamos a
verificar é que o significante é o que constitui as coisas. Elas, em si mesmas, não existem.
Se nós temos a necessidade de fazê-las consistirem, é pela dificuldade que nos coloca o fato
de serem dependentes de nossa fala, dependentes de nosso trabalho com o significante.
A suposição de um estado natural que nunca houve é o universo no qual colocamos
nossas esperanças em dispor do recurso de que algo por si evoluindo, amadurecendo,
se transformando até que se conclua naquilo em que deveria se concluir “naturalmente”.
Esse estado natural consiste na suposição de que verdade e saber se equivalem. Cada ser da
natureza traria consigo um saber que equivaleria a sua verdade de ser. De modo geral, os
tradutores da obra de Freud acertaram as “arestas”, compreendendo que uma psicanálise
deveria ajudar ao eu a voltar a seu funcionamento “natural”, isto é, a curar a pessoa de seus
impedimentos e desvios, evoluindo até o amadurecimento genital. Que os sintomas cedam
para a natureza cursar seu rumo é o avesso do que a releitura de Freud por Lacan propõe.
39
Contudo, não coube a Freud dar ao inconsciente o estatuto de sujeito e nem de reconhecê-lo como resto
desta operação, isso, devemos a Lacan.
159
Como a natureza para nós está perdida, não amadurecemos no curso natural. A
temporalidade na qual nos organizamos para dar conta das escanções próprias da
articulação significante e que dividem nossas vidas em passado, presente e futuro, nesta
seqüência, não determinam que, como faz pensar nossa lógica, o passado esteja sempre
antes do futuro.
O passado não tem, ele mesmo, uma natureza de passado, isto é, ele não se estanca e
se congela em seus acontecimentos. O presente, de outra sorte, é de uma pontualidade
indeterminável, sendo o que foi, se torna passado. O futuro, por sua vez, é apenas o que
se antecipa. Entretanto, a temporalidade que constitui a realidade do sujeito não respeita a
sucessão destes tempos. Como na fala, é do futuro que vem nosso passado. É no ponto que
encerra a frase que sua significação se determina. Nosso passado vem do futuro, do futuro
dele, pois é no só depois que ele se significa.
Em um terreno onde o passado vem do futuro, onde é pela experiência do sujeito
que o mundo se estabelece, não podemos supor que quando alguém ouve um ruído ele
estava lá, a questão trata do fato de que a ocorrência de alguém ter ouvido um ruído
constitui não o ruído, mas tudo que decorre dele. Para que uma sonoridade, ao invés de
se integrar e compor a música que nos embala cotidianamente, se torne ruído é necessário
que um sujeito faça dessa sonoridade um significante fora de lugar e alguma
conseqüência a sua escuta. Não ouve bem quem tem bons ouvidos, ouve bem quem tem
coragem para isso.
Portanto, o sujeito neste mundo, que nada tem de natural, está fundado na própria
divisão entre o saber e a verdade. Diferentemente do que ocorria na ciência antiga, na
ciência moderna o saber passa a ser ensinado pela estrutura do discurso universitário,
160
estando garantido por sua posição de comando e por sua própria verificação. No giro, como
um quarto de volta para trás, do discurso do mestre para o universitário, verifica-se a
passagem do saber-fazer ao saber-teórico, recalcando a verdade do comando do
significante mestre como acionamento do trabalho inconsciente e colocando o a no lugar do
Outro ou do trabalho, ele o aborda como uma exterioridade que deve ser escravizada pelo
saber. Nessa estrutura, o estatuto da verdade passa a ser transitório e parcial, embora a
verdade seja ela mesma perseguida em sua verificação. O que institui a verdade como tal,
nesse caso, diz respeito a uma verdade que estabelece o estatuto do verdadeiro, pelo qual a
verdade da verdade (como uma metalinguagem) se possa confirmar.
A estrutura do discurso universitário:
S
2
a
---------- ----------
S
1
$
No discurso analítico, como dissemos, uma vez que é a verdade que fala, não
nem o que se verificar da verdade como verdade e nem há como estabelecer para a verdade
um exercício de sua verificação. É ela quem fala e não como se falar dela, assim como
também não há, para a psicanálise, metalinguagem ou o Outro do Outro. Portanto, a
posição da ciência e a da psicanálise, frente à verdade, caminham em direções antagônicas.
Desta forma, pensamos que a psicanálise não precisa da Weltanschauung científica
para encontrar sua função. No ponto onde Freud recorre à visão de mundo da ciência para
encontrar o lugar do qual a psicanálise pode tomar partido no social e fazer valer sua
função, Lacan pôde constituir uma ética e um discurso, tendo ele mesmo (o discurso) valor
de laço social.
161
4.3 A psicanálise, o público e o privado
Segundo o ideal de autonomia do eu, o núcleo do privado pode até ser exposto ao
público com a condição de permanecer intocado, isto é, de não ver transformado o seu
valor essencial e sua função de resguardar o eu. O que se percebe como estratégia da
modernidade para a afirmação da privacidade consiste num movimento que, ao se expor a
um julgamento moral do outro, preserva ainda mais radicalmente, por todos os lados, a
mesma muralha que mantém o sujeito isolado em si mesmo. Cada qual mantém suas idéias,
seus ideais, seu eu, cada qual com suas opiniões sem que ninguém se arrisque à verdadeira
exposição, à exposição ao Outro e suas determinações. Como é fala corrente: “Cada um
pode pensar o que quiser, fazer o que quiser, contanto que mantenha preservado aquele que
está ao seu redor”. E, subentenda-se: contanto que isso não abra em nenhum sujeito
nenhuma divisão. É claro que o ditado: “a minha liberdade acaba quando começa a do
outro”, tem sua função, mas ele é absolutamente contemporâneo à cultura individualista
40
-
cultura que tende a valorizar o indivíduo em detrimento ao que é da ordem propriamente
social - e revela que a norma contida nele preserva o “cada um” sem nenhuma referência ao
registro do que não é especularizável, ao que é de um campo Outro.
Logo, o que podemos verificar em nosso tempo é a indiferenciação dos domínios
público e privado através do desconhecimento do sujeito frente àquilo que não lhe concerne
diretamente. Essa indiferenciação mantém a coisa pública exterior ao sujeito, e “em relação
à qual ele se sente estrangeiro e, evidentemente, não representado. Ora, quanto menos o
40
Não pretendemos discutir se a cultura individualista é boa ou não; no nosso caso, é nela que nascemos e é aí
que estamos. No entanto, trata-se de situá-la em relação à ética da psicanálise e de nos perguntarmos o que
temos a fazer de nosso lugar em relação ao fato de ela nos poupar enquanto sujeitos.
162
sujeito está representado, mais ele pretenderá se significar, evidentemente, numa
privatização do mundo tão extensiva quanto sem saída”(ROCHA, 1992:45).
Temos que ter em mente que como o sujeito é representado por um significante para
outro significante, ele, mesmo na evanescência que decorre de sua condição intervalar, tem,
a cada vez, um lugar que caberá a ele apreender como ponto de representação de sua trilha
significante, ou seja, da trilha que o determina. O que põe a cadeia significante a deslizar é
o próprio sujeito (LACAN, [1957]1998), determinado por algo que lhe é, a um tempo,
exterior e intrínseco - isto é, a linguagem submetida às formações do inconsciente.
41
Se não
nos reconhecemos representados pela linguagem, pelo Outro, ou ainda, pelo social,
tendemos a nos significar, tornando-nos “senhores de si”. Ao contrário, o eu está submetido
a seus três senhores: o mundo externo, o isso e o supereu (FREUD, [1923] 1980, vol. XIX).
Logo, se podemos conquistar alguma coisa nesse terreno, nossa conquista se limita a nossa
responsabilização pelo que podemos entrever do Outro em “nós”, do que podemos entrever
como a dimensão do desejo.
Por outro lado, o que se constata na psicanálise é que o conceito de sujeito é o traço
que liga individual e social. Ao tratarmos do sujeito e não do indivíduo - ou seja, da ordem
do indivisível - deslocamos a questão de social versus individual para a intromissão
constitutiva do público ou social naquilo que é para o sujeito da esfera do privado.
O público - como espaço de troca e de laço social - não se traduz aqui por tornar
cambiável nossa privacidade. Não se trata de se tornarem públicas nossas intimidades
41
Em A Terceira Lacan formula o conceito de alíngüa para dar conta dessa operação na qual o sujeito faz de
algo que lhe vem do exterior, a linguagem, algo que se torna intrínseco a sua condição. A linguagem é uma
estrutura que se oferece à própria subversão que o inconsciente é capaz de operar em sua lógica. Esta
subversão operada na linguagem pelas formações do inconsciente nas quais o sujeito se apresenta, Lacan a
nomeou de
alíngüa.
163
incompartilháveis. O que estamos experimentando hoje em dia, por exemplo, com o auge
da exibição explícita de intimidades, auge este constatado pela audiência dos reality shows,
não concerne ao que tomamos por público na linha do que consideramos o social. Passar do
privado ao público não é o mesmo que publicar o íntimo. Essa passagem, do ponto de vista
analítico, diz respeito a uma mudança de posição do sujeito. Para a questão da transmissão
da psicanálise essa passagem é fundamental. Não analista sem que aquele que assim se
autorizou por seu ato tenha passado do privado ao público.
O espaço público geralmente não é o espaço sobre o qual nos colocamos a trabalhar
deixando no comando o discurso do analista. Entretanto, a psicanálise é chamada a
responder. Isto se observa não na demanda clínica, mas também no interesse em que a
esfera pública demonstra quanto a saber o que o psicanalista pode dizer sobre aquilo que
faz questão para a sociedade. Contudo, nos parece que é sempre no âmbito de um pedido de
explicação que essa demanda se faz. Sabemos que é isso que o senso comum espera de um
analista, que ele explique, sentido àquilo que perdeu sentido, àquilo que está na ordem
do enigmático para o sujeito, sobre aquilo que é o sintoma que faz cimento social. E vemos
nos meios de comunicação os analistas sendo convocados a dar um sentido a algum fato, a
dar opiniões, a dizer que conseqüências isto ou aquilo terá para o sujeito ou para a cultura,
uma vez que é raro se ver falar do estrutural. Isto é, pede-se aos analistas que, enquanto
analistas, respondam pelo sujeito, em seu lugar. Poderíamos dizer que respondendo daí,
eles não respondem mais como analistas. Oferecem um saber a ser consumido e não
veiculam um discurso que tenha efeito de transmissão. Ao mesmo tempo, sabemos que não
se trata de aplicar os dispositivos analíticos tais como eles estão colocados na clínica para
tomar a palavra na cena pública.
164
Para formular a questão do público e do privado na psicanálise - não enquanto
esferas separadas e antagônicas, mas justamente onde não seria possível separar o destino
individual da implicação social é necessária a noção de extimidade, isto é, de um lugar
êxtimo que é, ao mesmo tempo, o mais exterior e o mais íntimo. Freud no texto “O
Estranho” de 1919, através de observações clínicas, concluiu que o estranho (Unheimlich) é
justamente o retorno de algo que nos é o mais familiar, mas que emerge para o sujeito como
estranho porque o recalque, ao subtrair o que se associa a essa experiência, nega seu caráter
familiar (FREUD, [1919] 1980, vol. XVII).
42
O que nos causa vergonha em nossa exposição à coisa pública? O que para nós
problematiza o sexual senão o fato de que nele encontramos o que não esperamos? O
gozo é incompleto, a relação sexual não é o encontro de dois, muito menos é um encontro.
O desejo é efeito dessa estrutura. Será que nos envergonhamos por não podermos acertar as
contas com o desejo e, sobretudo, por denunciar pelo desejo a estrutura? Ao tomar esse
viés, nossa questão se conduz justamente em direção à ética da psicanálise. Isso porque se
nosso desejo não pode se subtrair do público e se, como dissemos, ele é a presença do
Outro em “nós”, há algo de vergonhoso que acaba por emergir publicamente (e só é
vergonhoso por ser público). Mas, tudo isso depende de que o desejo possa ser tomado pelo
sujeito em nome próprio, apesar de vir do Outro - desse lugar que é heterogêneo ao sujeito.
Essa operação tem como causa o próprio reconhecimento da castração. Esse
reconhecimento talvez torne o então vergonhoso, banal
43
- possível de ser público pela
visada da transmissão -, uma vez que não é mais o eu com sua expectativa de autonomia
42
É interessante observar que em alemão heimlich coincide com seu antônimo unheimlich. (Hanns, L.,
Dicionário Comentado do Alemão de Freud. Rio de Janeiro; Imago, 1996.)
43
O sexual deixa de ser a questão dos pudores, dos entraves, dos sintomas para se tornar a condição estrutural
do sujeito e determina sua relação ao gozo fálico.
165
que está no comando da cena, mas o sujeito em seu próprio funcionamento. Nossa ética
trata de transmitir o buraco que faz laço social, de transmitir o desejo. Lacan situa essa
passagem como um passo dado ou como um passe de analisante à analista. Mas, esse passo
se em pequenos atos antes que algo se torne mais definitivo na posição do sujeito frente
à castração. Portanto, a cada vez que o sujeito pode sustentar seu desejo, algo da passagem
desses registros operou.
A ética do desejo, diferentemente do que se pode supor, alcança o social. O desejo
lança o sujeito necessariamente para uma exterioridade de si e para um campo Outro. A
máxima freudiana Wo Es war, soll Ich werden, através de Lacan pôde ser lida como o
sujeito devendo advir onde isso era, ou seja, essa leitura permite que uma passagem do
privado ao social se dê. O sujeito conseqüências no social ao que estava na ordem do
externo ao laço, regido pelo isso. Por outro lado, podemos ler segundo o entendimento dos
pós-freudianos do Wo Es war...: “Eu devo estar no comando ali onde o isso estava”, uma
passagem da exterioridade do laço no nível do isso para a privacidade do eu.
Mas, poderiam fazer-nos a advertência de que a psicanálise trata, a rigor, de algo
que se constrói na solidão da experiência de sujeito que ela mesma possibilita. Porém, a
solidão diz muito mais respeito ao fato de não nos sentirmos acompanhados ou garantidos
pelo Outro do que pelo fato de estarmos fora de qualquer alteridade. É mesmo pela
experiência da alteridade que podemos dizer que estamos sós. O fato da solidão não nos
parece coincidir com o privado, mesmo que na situação do encontro do analisante com seu
analista seja necessário que ele se dê a portas fechadas. O sujeito vem para a análise em sua
privacidade e pode alcançar seu desejo pela via de seus segredos. No entanto, durante a
análise vão-se os segredos e fica a estrutura que os comanda: o discurso em causa.
166
Podemos, à essa altura, retomar a questão do público e do privado na Antigüidade,
quando essas esferas se opunham como o que devia ser mostrado e o que devia ser
escondido. O público se constituía como uma esfera franqueada somente aos homens
cidadãos que podiam colocar à mostra suas idéias e o privado ficava no nível da privação,
“da impossibilidade de acesso à”, restrição cabível às mulheres e aos escravos. A dicotomia
público e privado torna-se, no nosso mundo, a dicotomia entre “minhas intimidades”,
“meus valores”, “meus bens”, “meus direitos” e o bem comum, aquilo que me concerne
numa certa exterioridade. A psicanálise estaria em relação ao privado mais nesse sentido da
privação de que se tratava na Grécia Antiga do que no regime das “intimidades” e dos
“bens”? Mas, não é natural que aquilo de que nos acreditamos privados se constitua para
nós como um “bem”
44
? Trata-se, na psicanálise, para retomarmos o início de nossa
discussão, de promover um trabalho para que cada sujeito possa se deparar com o modo
pelo qual experimentou a realidade da castração simbólica em sua ficção de privação.
Trata-se de fazer o deslocamento do privado das intimidades, do segredo da neurose para o
privado da privação fantasmática de cada sujeito que, uma vez formulada como tal, se torna
passível de produzir outro impacto e assumir outra dimensão, que não a de uma sistemática
recusa da verdade da castração.
4.4 A psicanálise e sua transmissão
Lacan, como leitor de Freud, poderia ter vindo a esclarecer, para aqueles que o
ouvem, o legado freudiano. No entanto, o que faz Lacan é submeter-se categoricamente ao
estudo do texto freudiano, extraindo dele a enunciação, as bases de seus argumentos, a
subversão de suas descobertas e os fundamentos clínicos de seus conceitos. Isso o levou a
44
Como algo que se constitui por ter um valor fundamental para cada pessoa.
167
tirar conseqüências clínicas e conceituais daquilo a que se submetia. Lacan não estava
preocupado em compreender Freud, estava, antes de tudo, interessado em fazer com que o
texto freudiano operasse para ele de tal forma que sua incidência fosse analítica, isto é, que
o estudo que fazia o colocasse a trabalhar como um sujeito deve se pôr a trabalhar em uma
análise, submetendo-se aos significantes que se apresentam e se responsabilizando por eles,
fazendo algo com eles e a partir deles. nessa perspectiva podemos supor a presença do
efeito de transmissão.
Havia, para Lacan, uma questão que permeava sua leitura de Freud, a saber, que sua
direção havia sido e seria “sempre em função da questão o que fazemos quando fazemos
uma análise? (LACAN, [1953-54] 1983:19). Como Lacan não entendia a transmissão
como uma experiência apartada da análise, poderia parodiá-lo perguntando o que fazemos
quando ensinamos ou operamos com a psicanálise? Como transmitir a psicanálise? O
difícil nessa questão e na psicanálise é que qualquer resposta prescritiva e conclusiva no
sentido de encerrar a questão, implode a própria questão. Ao que se chega novamente é à
idéia de que a única via de transmissão da psicanálise é a de fazer seu caminho e, nesse
caminho, fazer acrescentar algo do sujeito à própria psicanálise.
Sabemos que Lacan estava num certo contexto, numa dada época, se havendo
com o fato da dita “confusão” da psicanálise diante do legado freudiano. A Lacan, o que lhe
coube fazer foi reabrir este corte feito por Freud em nossa cultura. Ao retomar Freud, Lacan
avança em algumas formulações, cria um novo conceito, o de objeto a e tem como visada a
transmissão da psicanálise. Em seu ensino e no que concernia à formação de analistas,
Lacan tentava operar de modo a fazer obstáculo à absorção da psicanálise pelo discurso
168
universitário (LACAN [1969-70] 1992)
45
e por tudo aquilo que fizesse apelo a uma
suturação do corte freudiano - qual seja, o descentramento de nosso saber, de um saber
assentado exclusivamente na consciência para um saber inconsciente o que, em última
instância, demonstra o fato de sermos comandados pelo significante (o que Freud não
afirma nestes termos, mas, o demonstra). Este apelo está presente, e com freqüência,
inclusive entre os analistas.
Freud sabia da resistência que a psicanálise causava. Em A História do Movimento
Psicanalítico (1914) revela: “Compreendi que daquele momento em diante eu passara a
fazer parte do grupo daqueles que ‘perturbaram o sono do mundo’, como diz Hebbel e que
não poderia contar com objetividade e tolerância” (FREUD, [1914] 1980, vol. XIV:32). No
entanto, pode-se usar a psicanálise para continuarmos a dormir. É possível que se utilizem
dela apenas como uma produção de saber ou como uma terapêutica, o que, além de limitar
seu campo, retira de seu discurso toda efetividade.
Lacan, ao enfatizar a necessidade de tratar o que concerne ao sujeito a partir daquilo
que é possível operar pelo significante, nos permite ver que os textos de Freud estão
comprometidos, desde o início, com uma dimensão extensiva da psicanálise. Não
significante que não se dirija ao Outro e que, portanto, nessa operação não engendre um
laço social. O sujeito emerge numa operação em que o social está posto em cena. Ao
entendermos que o sujeito se constitui a partir de sua submissão ao significante, esvazia-se
por completo qualquer possibilidade de supor que o campo do sujeito seja restrito ao
domínio privado ou ao individual.
Se nos interessa saber qual o tipo de laço que o discurso analítico engendra no
social, é interessante que saibamos que estrutura permitiu que o discurso analítico pudesse
45
No sentido propriamente discursivo como Lacan o aborda.
169
ter lugar. Estamos, no entanto, diferenciando a questão da difusão da psicanálise da
condição de possibilidade para a transmissão do discurso analítico. Isto porque a difusão da
psicanálise permitiu que se operasse com jargões psicanalíticos, com o enunciado freudiano
e lacaniano sem dele extrair sua enunciação e o discurso próprio da psicanálise, posição que
acarreta como conseqüência a possibilidade de alguém vir, em nome da psicanálise, a
afirmar qualquer coisa. Freud se preocupou com as conseqüências que a popularização da
psicanálise trariam para a própria psicanálise:
Julguei necessário formar uma associação oficial porque temia os
abusos a que a psicanálise estaria sujeita logo que se tornasse popular.
Deveria haver alguma sede cuja função seria declarar: “Todas essas tolices
nada têm que ver com a análise; isto não é psicanálise”. Nas sessões dos
grupos locais (que reunidos constituíram a associação internacional) seria
ensinada a prática da psicanálise e seriam preparados médicos, cujas
atividades recebiam assim uma espécie de garantia
(idem)
.
Apesar da preocupação de Freud, sabemos que a garantia que ele tentava estabelecer
através da formação instituída pela IPA fracassou, ao menos na perspectiva que temos do
analítico, seguindo Lacan. A formação do analista não pode estar apartada das formações
do inconsciente, não se abandona uma experiência para se passar pela outra (LACAN, op.
cit., 1964, cap. X). As regras estabelecidas pela IPA, para se dar uma garantia de
transmissão, logo se afeiçoaram às questões políticas e burocráticas, não tendo como
direção fundamental a própria novidade da psicanálise. A dificuldade de se ocupar o lugar
de analista não advém do número de horas que o sujeito se submete à análise e à
supervisão, nem advém dos anos tomados pelas disciplinas requeridas pela formação, mas,
sobretudo, advém de sua coragem de se responsabilizar como sujeito pelo seu desejo e pelo
170
fato de não ter, em relação a seu desejo e a seu trabalho, nenhuma garantia. Obviamente,
isso não dispensa o sujeito de um trabalho árduo de análise e de supervisão e de estudo
rigoroso. No entanto, para que seu trabalho incida analiticamente, o sujeito tem que se
submeter à formação sustentada pelo seu desejo, pela transferência em jogo na análise e
pela transferência de trabalho em sua instituição, sem ter garantido a priori que, cumprindo
tais etapas, seu lugar esteja reservado.
Como pensar, então, a questão da transmissão da psicanálise e de nossa tendência,
por estrutura, de estar pouco permeável à sua incidência?
Como dissemos, não se trata da difusão da psicanálise
46
, assunto bastante
trabalhado, nem de abordar a questão através de saberes que estão fora dos limites da
clínica psicanalítica, mas sim de pensar como a psicanálise pode ser ensinada, transmitida,
inscrita na cultura, sendo interveniente? Nossa aposta é justamente no fato de a psicanálise
não ter que se abandonar, abandonando seus conceitos, para incidir sobre as questões
sociais e culturais. Entretanto, não estamos afirmando que não se deva lançar mão de outras
disciplinas para trabalharmos em nosso campo. Isso foi freqüentemente feito por Freud e
Lacan. Se a psicanálise está no mundo, entre outros discursos, ela deve operar com eles,
sobre eles, mas a partir de seu próprio lugar.
Freud nos fala de sua experiência ao tratar das questões da civilização pela
psicanálise:
Nos quatro ensaios intitulados “Totem e Tabu” [1912-13] tentei examinar os
problemas de antropologia social à luz da psicanálise; esta linha de investigação leva
diretamente às origens das instituições mais importantes de nossa civilização da
46
Questão que abordo na introdução de minha dissertação de mestrado para indicar uma das possíveis causas
da “confusão” da psicanálise no Brasil, isto é, de sua utilização para tratar do que é radicalmente contrário às
postulações freudianas.
171
estrutura do Estado, da moralidade e da religião e, além disso, da proibição contra o
incesto [...] (FREUD, [1912-13] 1980, vol. XIII:17)
Freud nos o testemunho do que pode ser revelado para nós nesta investigação.
Como vemos, nada que não esteja profundamente ligado às questões que se colocam os
sujeitos que chegam para se analisar em relação à sua religião, às suas questões com o Pai,
às suas culpas. Mas, será que se trata de examinar as questões culturais, o laço social, à luz
da psicanálise, ou, mais que isso, de fazê-la intervir na cultura, de possibilitar que a
psicanálise opere como discurso, produzindo um laço social que é novo? A expressão de
Freud: “examinar à luz da psicanálise”, tornou-se, de certa maneira, popular. Muitas
psicoterapias são “inspiradas” na psicanálise, muitas pesquisas a têm como “referência”.
Nosso cotidiano é examinado nos meios de comunicação, por exemplo, “à luz da
psicanálise”. Contudo, a psicanálise não é uma “visão de mundo” e, ainda menos, é um
arcabouço prático-teórico do qual se poderia extrair algumas premissas e deixar outras de
fora conforme a conveniência do assunto. Com Lacan podemos formular que ela é um
discurso que faz operar uma práxis. Quando, por exemplo, Freud nos diz que examinou os
problemas da antropologia social “à luz da psicanálise”, pelo resultado que colhemos em
seu trabalho, isso se traduz por “através da psicanálise”. A psicanálise atravessou as
questões sociais e renasceu delas. Isto é, ela pode atravessar essas questões porque
permaneceu como uma práxis. Isso mudava muitas coisas. Como, então, transmitir a
psicanálise enquanto práxis que é? Mas, ainda insistindo, quando abordamos a transmissão
da psicanálise não podemos supor que transmitir é difundir. A psicanálise não é uma
experiência que se difunde. Qual deve ser, então, nossa ambição frente à transmissão?
Como Freud pôde constatar, não se leva a “peste” quando se está na via de transmitir a
172
psicanálise, porém, se ela se difunde, não é com o poder devastador da peste, mas, antes,
por sua vacina:
Mas, quando se desconhece a excentricidade radical de si em si mesmo com
que o homem é confrontado, ou, dito de outra maneira, a verdade descoberta
por Freud, falha-se quanto à ordem e aos caminhos da mediação
psicanalítica e se faz dela a operação de compromisso a que ela efetivamente
chegou, ou seja, aquilo que é mais repudiado pelo espírito de Freud e pela
letra de sua obra: pois, visto que a noção de compromisso é incessantemente
evocada por ele como estando na base de todas as misérias que sua análise
socorre, podemos dizer que o recurso ao compromisso, seja ele explícito ou
implícito, desnorteia toda a ação psicanalítica e a mergulha nas trevas
.
(LACAN, [1957] 1998:528)
Diante da questão da transmissão, temos que nos deparar com a própria estrutura da
psicanálise, com a “matéria-prima” da qual ela é feita e, então, suspenderemos nossas
ilusões de fazê-la alcançar muitos territórios. Em A Terceira (1974), o terceiro ou o que
teria sido o terceiro discurso em Roma, de Lacan, ele nos uma idéia disso. Junto à
publicação propriamente dita do discurso, a transcrição de uma entrevista onde algumas
questões de seu discurso aparecem anunciadas. Lacan tratava das relações da psicanálise
com a religião. Diz o analista que elas (as relações) “não são muito amigáveis”, e “em
suma, é ou uma ou a outra.”
47
Portanto, se a religião triunfar, a psicanálise fracassou. Mas,
nos surpreende Lacan: “É muito normal que ela fracasse, porque aquilo ao qual se consagra
é muito, muito difícil”
48
. Isso o remete às três tarefas que Freud qualifica como
impossíveis: governar, educar e psicanalisar. A diferença das três posições insustentáveis
para Lacan seja o fato de que a psicanálise é a única sem nenhuma tradição. A psicanálise é
algo a se descobrir, de forma que se oferecer a esta tarefa é também reinventá-la. Essa
47
Lacan, J., “Entrevista do Dr. Lacan à imprensa 29 de outubro de 1974 no Centre Culturel Français” em
Cadernos Lacan, vol.2. Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, 2002.
48
Op. cit.,:16
173
afirmação nos coloca novamente diante da questão: o que se transmite então? Nada que seja
da ordem de uma mensagem, de um código ou de um saber estabelecido.
No decorrer da entrevista, Lacan adverte que a análise se ocupa justamente daquilo
que não funciona, que não funciona dentro da ordem, do que para nós funciona, isto é,
dentro da ordem simbólica - aquela que constitui o mundo, mundo este que também é bem
amparado pelo nosso cosmos imaginário. A psicanálise se ocupa do que resta deste mundo,
do que escapa, ou seja, diz Lacan, do (i)mundo, que é o que constitui o real. Como analistas
estamos submetidos ao que não funciona, expostos ao real, sem que tenhamos que
sucumbir a ele.
À nossa possível ambição diante da transmissão da psicanálise, Lacan nos adverte
que a psicanálise não triunfará. Trata-se, antes de mais nada, da questão: ela sobreviverá ou
não? A psicanálise tende ao fracasso, ela tem que fracassar embora possamos esperar que
ela sobreviva; se a psicanálise triunfasse, então ela haveria definitivamente se instalado no
“mundo” e passaria, quem sabe, como uma religião a deixar o mundo mais redondo e
fazendo mais sentido. Esta não é a função da psicanálise, é a da religião; e como ele
anunciou, não são relações muito amigáveis as da psicanálise com a religião. A psicanálise
está na contramão daquilo que nos oferece a religião. A psicanálise é, na verdade, um
sintoma, um sintoma social.
49
Ou seja, ela vai na direção do que não anda, do que Lacan
nomeia de real e que contraria nossa tendência “natural” de esperar bons resultados, isto é,
de que as coisas triunfem, apareçam como uma “resposta” e que nos mostrem o bom
caminho. A psicanálise, como sintoma, é aquilo que não funciona e que, por essa razão
mesma, se apresenta como aquilo que apenas opera. Mas, diz Lacan, sem ficar na espera ou
49
“Se a psicanálise não é um sintoma, não vejo porque ela tenha aparecido tão tarde. Aparece tarde na medida
em que alguma coisa tem que se conservar (sem dúvida porque está a perigo) de uma certa relação com a
substância do ser humano.” Lacan, J., “A Função dos Cartéis”, p.119)
174
na esperança, pode ser ainda que a humanidade consiga afogar em sentido esse sintoma que
é real. Esta seria a maneira de recalcá-lo
50
.
Mas o que devemos ter como rigor para que a psicanálise em seu ensino “preste
algum serviço”? Sabemos que enquanto não pudermos nos colocar num lugar muito
preciso, nosso furor curandis estará sempre correndo o perigo de se manifestar e se exaltar
na contramão da transmissão da psicanálise e em favor de sua difusão. Não se trata, no laço
que o discurso analítico faz nó, de ganhar pessoas que venham aderir a ele. Lacan afirma
não temer que as pessoas partam. Diz, ao contrário, que isso até o alivia. Talvez porque ele
saiba da estreiteza deste discurso, donde sua dificuldade; algo assim não pode ganhar o
mundo, triunfar, tornar-se “a peste”. de estar fadado a um certo fracasso, porque, como
ele disse, se triunfar, então fracassou - fracassou na sua dimensão analítica. O único sucesso
a que podemos nos referir é o de algum resultado, de sujeito a sujeito. Em relação à dita
precisão devemos escutar Lacan mais uma vez:
Eu me esforço é para dizer coisas que colem à minha experiência de analista,
isto é, a algo de conciso, porque nenhuma experiência de analista pode
pretender se apoiar sobre gente suficiente para generalizar. Tento determinar
com quê um analista pode sustentar-se a si mesmo, o que comporta de
aparelho - se posso me expressar assim - de aparelho mental rigoroso a
função de analista; quando se é analista, em que corrimão é preciso se
segurar para não transbordar de sua função de analista. Porque, quando se é
analista, tem-se todo o tempo a tendência a derrapar, a deslizar, a se deixar
escorregar de traseiro na escada de costas, e, no entanto isso é muito pouco
digno da função de analista. É preciso saber permanecer rigoroso porque não
se deve intervir senão de uma maneira sóbria e de preferência eficaz. Para
que a análise seja séria e eficaz, tento estabelecer suas condições; isso parece
entrar na seara filosófica, mas não é isso de jeito nenhum
51
(op. cit.:35).
Como dissemos, sendo a psicanálise uma práxis e na definição do Seminário 11:
uma práxis “é o termo mais amplo para designar uma ação realizada pelo homem, qualquer
50
Neste parágrafo acompanhamos ponto por ponto alguns dos argumentos de Lacan n’ A Terceira. Apesar de
“importarmos” um ou outro significante presente no texto, não o estamos citando literalmente.
51
Entrevista à imprensa, de 29 de outubro de 1974, publicada em Caderno de Lacan , vol. 2, Associação
Psicanalítica de Porto Alegre (publicação não comercial).
175
que ela seja, que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico (1964, op. cit.:14)”,
tratar o real pelo simbólico é da própria estrutura do sintoma. O sintoma, na definição
lacaniana, é o que vem do real, “ele se atravessa para impedir que as coisas andem”
(LACAN, 1974:48). Tem estrutura de metáfora: “Que a linguagem possa fazer dele
equívoco, eis o meio pelo qual é ganho o terreno que separa o sintoma do sentido” (op.
cit.:60). O sintoma vem do real porque não cessa de se escrever no real, de ser sem sentido.
No que ele se atravessa, no que impede que as coisas andem, ele se faz sintomático do real.
O mecanismo do duplo gatilho da metáfora é o mesmo em que se determina
o sintoma no sentido analítico. Entre o significante enigmático do trauma
sexual (sem sentido)
52
e o termo que ele vem substituir numa cadeia
significante atual passa a centelha que fixa num sintoma - metáfora em que a
carne ou a função são tomadas como elemento significante - a significação,
inacessível ao sujeito inconsciente onde ele pode se resolver (LACAN,
[1957] 1998: 522).
A psicanálise é, então, um sintoma que trata do sintoma? A psicanálise, na verdade,
não trata do sintoma na tentativa de curar o sujeito de seu sintoma, mas, trata de fazê-lo se
encontrar com ele, com o “sentido do significante que conota a relação do sujeito com o
significante” (LACAN, [1956] 1998:470). O sujeito, pela análise, pode chegar, através do
retorno do recalcado, ao ponto de real.
Nesse sentido, o neurótico pede à psicanálise que ela o livre tanto do real quanto do
sintoma. No entanto, é justamente do que ela não pode livrá-lo, senão o livraria justamente
daquilo que ela visa, o sujeito.
“Se a psicanálise tem êxito, ela se apagará poro ser senão um sintoma esquecido.
Este é o destino da verdade, a verdade é esquecida. (...) Logo, tudo depende de que o real
insista” (idem) e de que a psicanálise fracasse em resolver o sintoma. Se é possível e até
52
A observação entre parênteses é nossa.
176
provável que nos esqueçamos da verdade, se podemos recalcá-la, é preciso que o real nos
atrapalhe, nos acorde. Não é do analista, diz Lacan, que depende o advento do real. É do
“futuro” do real que depende o analista. O analista, no entanto, tem por missão detê-lo pelo
simbólico, mantê-lo amarrado ao que faz real, simbólico e imaginário se constrangerem
neste enlaçamento. Se estes registros estão enodados de forma borromeana, cada um deles
não pode funcionar de modo autônomo, posto que são limitados pela própria estrutura do
nó. Através do afrouxamento deste nó, o real poderia, nos termos lacanianos, desembestar
com o apoio do discurso científico, como hoje estamos tendo a oportunidade de ver
acontecer (LACAN, 1974).
O que a psicanálise tem é a possibilidade de que cada sujeito faça uso do bem
comum da língua em sua própria singularidade.
O que esta estrutura da cadeia significante revela é a possibilidade que eu
tenho, justamente na medida em que sua língua me é comum com outros
sujeitos, isto é, em que essa língua existe, de me servir dela para expressar
algo completamente diferente do que ela diz. Função mais digna de ser
enfatizada na fala que a de disfarçar o pensamento (quase sempre
indefinível) do sujeito: a saber, a de indicar o lugar desse sujeito na busca da
verdade. (LACAN, [1957] 1998: 508)
Não se trata, na psicanálise, nem de manter o sintoma, nem de suprimi-lo. Mas de,
pela interpretação sobre o significante, fazer alguma coisa do sintoma recuar. Embora
sempre reste algo do inconsciente ininterpretável. Quando o saber inscrito d’alíngua, que
constitui o inconsciente, se elabora, ele ganha sobre o sintoma e isso sem o preço de nos
deixar engolir pela religião do sentido. Pode-se, neste caso, fazer o sintoma ir além do
sintomático e produzir algo da verdade. No sentido mesmo de que é assim, pelo sintoma,
que algo se apresenta, algo da dimensão da causa da qual o desejo é efeito. E é desse modo
177
que podemos entender a psicanálise como um sintoma soical, como uma certa irrupção do
real na via discursiva.
A própria intromissão do desejo torna o discurso que opera a partir de sua causa, ou
seja, o discurso do analista, totalmente inassimilável pelos outros discursos. O desejo abre
um corte na esperada harmonia à qual tende a nossa suposta satisfação e, por conseguinte,
afasta a possibilidade de um encontro entre um objeto “incompleto” com sua
complementaridade, encontro este que tornaria a experiência humana bem mais estável.
Esperamos, instaurados em nossa neurose, que um possa completar o outro através de um
encontro entre dois, um encontro de dois elementos que façam um.
A psicanálise tem, portanto, uma outra consistência que a dos outros três discursos:
ela é um laço a dois (não é um laço de dois). É nisso que ela se encontra no lugar da falta de
relação sexual (LACAN, 1974). O laço a dois rompe, de início, com a possibilidade de que
um se locuplete com o outro ou que um dispense o outro. A significação depende do par
significante-significante. Não se trata, na psicanálise, de um e outro, mas de um a outro. O
laço mantém, entretanto, o intervalo dos elementos, um a outro, não se tornando um. Por
essa via, o discurso do analista promove a solda do analisante ao par analisante-analista. O
analisante não vai, a rigor, ao encontro de seu analista, vai ao encontro daquilo que ele pode
tomar do inconsciente para instituir o analista, posto que “a presença do analista é ela
mesma uma manifestação do inconsciente...” (LACAN, [1964] 1985:121). Logo, em cada
análise, cada sujeito funda o estatuto ético do inconsciente ao se submeter ao inconsciente e
às suas injunções na e pela presença do analista. O analista, por sua vez, estando fundado
pelo par analisante-analista, garante não sua presença como pessoa, mas a presença do
inconsciente pela transferência. O laço a dois constitui uma série, veículo de transmissão,
178
que por sua vez, produz série. O discurso do analista, concluímos, não pode ser sustentado
por apenas um.
A partir desse fato da estrutura, podemos dizer que o discurso analítico implica
em si mesmo a necessidade de uma instituição (Escola). Lacan vai nos demonstrar essa
relação necessária no texto a “Proposição sobre o psicanalista da Escola” (Proposição de 9
de outubro de 1967), na qual ele propõe uma nova forma de enlaçamento entre analistas.
Este enlaçamento segue a novidade que a experiência analítica introduz na relação do
sujeito ao social. No texto, sua aposta é a de que o trabalho na Escola deve tratar “de
estruturas estabelecidas na psicanálise e de garantir sua efetuação no psicanalista”
(LACAN, 1967:29). Isto quer dizer que as estruturas estabelecidas na psicanálise devem
operar contando com dispositivos que garantam uma efetuação, ou seja, que produzam em
ato um efeito.
A proposta de Lacan na “Proposição” é a de se testemunhar o resultado da
passagem de analisante a analista, fazendo a experiência da confluência dos registros
privado e público. A realização do passe teria efeito de transmissão na medida em que um
sujeito daria à sua experiência de análise, que, a princípio, se realiza no plano privado, uma
dimensão pública. O sujeito candidato ao passe falaria a outros daquilo que foi sua
experiência desse tratamento do real pelo simbólico na clínica analítica, sem que, para isso,
precisasse falar de seus dramas pessoais. O que está em jogo é o sujeito em sua relação
ao significante. Sua palavra seria por outros transmitida a terceiros, de modo que antes que
qualquer individualidade, este testemunho concerne ao que do significante foi posto em
causa através da experiência analítica. Assim, no passe, a circulação significante permitiria
que algo dessa tomada do real pelo simbólico pudesse se realizar num certo efeito de cadeia
179
de transmissão. Nessa cadeia é o discurso do analista como estrutura que intervém, se
lançando a produzir em outras estruturas algum efeito.
Nosso interesse consiste em saber o que Lacan propõe como sendo uma intervenção
no campo do sujeito para além da cura analítica, aquilo que ele introduz como sendo a
transmissão da psicanálise em extensão, isto é, naquilo em que a psicanálise como discurso
opera no social e na cultura, e que, lembremos, não é em outro lugar que o sujeito pode
advir. Se o sujeito é o que um significante representa para outro significante, ele é efeito do
discurso, ou seja, efeito do deslizamento significante que é dado a trabalhar pela própria
estrutura do que Lacan chamou de discurso.
[...] está desde inscrito naquilo que funciona como essa realidade de que eu
falava agora mesmo, a do discurso que está no mundo e que o sustenta, pelo
menos aquele que conhecemos. Não apenas já está inscrito, como faz parte de seus
pilares (LACAN, [1969-70] 1992:13).
Podemos formular que o social é o laço que liga S
1
a S
2
. Ele é a liga que estabelece
uma tessitura na hiância que há entre os significantes. Logicamente, o inconsciente se
apresenta, por sua vez, como esse buraco que entre os significantes. Mas apenas como
buraco não temos notícias dele. É preciso que esse buraco venha a fazer buraco no social,
naquilo que pelo social está estabelecido como continuidade, como sentido e como mundo.
Ele lança no mundo social o (i)mundo do real. Mas o que determina que haja laço é
justamente o mesmo buraco que determina que sem o laço o mundo não é possível. Desse
buraco o sujeito não tem como se livrar. Assim, o que se abre para o humano a partir dele é
uma escolha forçada que o condena a trabalhar frente a esse vazio.
O analista que se coloca na exterioridade, na incomunicabilidade de sua experiência,
não estaria na suficiência, como categoriza Lacan? Se estivermos instalados na suficiência,
nenhuma troca será necessária, justamente porque o prefixo suposto da suficiência é o
180
“auto”; ou seja, nela o sujeito se basta a si mesmo, nela o sujeito limita-se em si mesmo,
dispensando o Outro. “A suficiência em si encontra-se para além de qualquer comprovação.
Não tem que bastar para nada, já que basta a si mesma” (LACAN, [1954-56] 1998:478). O
analista nesta posição se coloca numa extraterritorialidade científica quando o interesse
pela psicanálise é despertado. Esta extraterritorialidade e a suficiência não retiram o
analista do mundo, mas conferem a ele o lugar das privacidades, da “intocabilidade” e da
exceção. Poderiam eles falar do mundo fora de sua contaminação? Estão eles vacinados
contra a peste? Podemos supor que nessa posição o analista não possa participar do âmbito
público.
O analista, para Lacan, não define a qualidade da psicanálise; ao contrário, é a
psicanálise que decide sobre a qualidade do analista. Isto é, uma anterioridade lógica da
psicanálise em relação ao analista. Sendo assim, é necessário que a psicanálise tenha efeito
de transmissão para que o sujeito possa passar, num dado momento, ao lugar de analista.
Na “Proposição de 9 de outubro de 1967”, Lacan afirma que se institui algo novo no
funcionamento, ou seja, é o funcionamento articulado pelo discurso analítico que pode
garantir o novo. No momento de dissolução da Escola ele ainda é mais contundente: “Não
espero nada das pessoas, apenas alguma coisa do funcionamento” (LACAN, 1980:47)
53
.
Ninguém, em sua pessoa, pode esperar ocupar e garantir um lugar ou mesmo instituir um
ato que lance o novo. Não depende da intenção de ninguém para que isso ocorra, assim
como não depende da nossa boa vontade a abertura do inconsciente. Ao contrário, depende
de que nos esqueçamos de nós e que estejamos operando no funcionamento, por exemplo,
da análise para que um significante novo nos represente enquanto sujeito a outro.
53
Fala de Lacan, em 15 de jan/1980,”O Outro falta”, em razão da dissolução de sua Escola, que consta da
revista da Letra Freudiana,
Escola, Psicanálise e Transmissão, ano I, nº 0
181
A formação analítica se faz através de um funcionamento muito preciso no qual está
incluído que “o psicanalista se autoriza por si mesmo” (LACAN, 1967:29). Pode, a
princípio, parecer um contra senso o “autorizar-se por si mesmo”. Poderíamos imaginar que
isso nos leva de volta à suficiência. Porém, o paradoxal da questão do público e do privado
na formação analítica, é que a referência ao Outro, que faz parte de uma formação analítica,
não é a um Outro garantidor, justamente porque é uma referência a um Outro que é barrado.
Ele opera no funcionamento, uma vez que esse funcionamento depende da própria
promoção de uma circulação significante, tendo como conseqüência uma abertura ao
funcionamento inconsciente, o que, de todo modo, não nenhuma garantia ao sujeito. A
oferta de um funcionamento que proporcione um funcionamento analítico não estabelece
um efeito direto de que o sujeito fará seu trabalho. O trabalho de cada um é
responsabilidade de cada sujeito. Uma instituição tem apenas como oferecer algumas
condições de transmissão, mas não tem como garantir que ela produza seus efeitos. A
instituição pode, no máximo, testemunhar que esses efeitos estão acontecendo um a um.
Isto quer dizer que o sujeito terá que reconhecer a posteriori que, pelo seu ato, se autorizou
como analista - o que implica que ele tenha reconhecido que algo ali se passou que o
colocou em outro lugar, diferente daquele que ele ocupava como analisante endereçado a
um Outro que sabe de sua verdade. Nesse sentido, é o analista que garante, a posteriori, que
houve formação suficiente. É ele que garante o Outro.
No entanto, “isto não exclui que uma Escola garanta que o analista depende de sua
formação. E o analista pode querer essa garantia, coisa que, a partir de então, deve
necessariamente ir além: tornar-se responsável pelo progresso da Escola, tornar-se
psicanalista da sua própria experiência”
(idem).
O que a Escola garante, a nosso ver, é que o
182
analista em sua formação não pode prescindir do Outro encarnado na experiência do
funcionamento da Escola e que terá, na passagem de analisante a analista, que liquidar tão
somente o sujeito suposto saber, mantendo a transferência de trabalho com a Escola, com
os analistas da Escola e se responsabilizando como analista pela própria Escola. Como
vemos, em nenhum momento nem o analista dispensa a Escola, nem a Escola dispensa o
analista.
Tudo o que a Escola garante é a relação do analista com a formação que ela
ministra. Poderíamos concluir que o que a Escola garante é esse laço a dois, formado pelo
analista e o par analista-formação da Escola, como sendo necessário ao próprio “conceito”
de analista ou de Escola? Seria necessário, portanto, ao analista que ele esteja nesse laço
garantindo a transmissão da psicanálise?
A formação do analista depende desta junção da psicanálise em intensão e extensão,
depende da formação como formação do inconsciente e do desejo do analista como efeito.
O desejo do analista, por sua vez, o lança a estender os efeitos de sua análise a outros, que
vão ao divã ou não. Os efeitos analíticos não ficam reservados a pessoa que diretamente os
sofreu, visto que eles tendem a contaminar algumas pessoas ao redor daquele que os sofreu
pela discrepância de sua relação com o desejo em relação aos demais. Esse desejo do
analista desloca o sujeito de sua posição “natural”, da acomodação neurótica, na medida em
que ele faz, com mais freqüência, o sujeito trabalhar, justamente por supor haver ali um
sujeito em cada fala a ele endereçada. Esse desejo, no entanto, pode operar pontualmente
no sujeito que está em um trabalho de análise, o que, por sua vez, não implica que ele seja
incorporado definitivamente por quem a terminou, mas pelo que está formulado em Lacan,
neste ele se apresenta de forma mais decidida.
183
Quanto à questão do fim de análise, por estar esta submetida à instituição
psicanalítica, ela é aqui vinculada a uma dimensão pública que visa verificar se o próprio
percurso que é submetido a uma experiência de apreciação pública se finda retroativamente
a partir do ato deste testemunho.
O cartel - como outro dispositivo de formação -, por sua vez, é um método inédito
de organização social sustentado pela transferência de trabalho. O funcionamento proposto
por Lacan visava impedir que a Escola entrasse nas vias da suficiência, da comunhão tácita
e do conformismo através de uma nodulação borromeana que articula o trabalho de cada
componente ao trabalho de todos, tornando, ao mesmo tempo, cada trabalho singular, sem
que jamais nenhum venha a ser auto-suficiente. A formação do cartel implica em que a
saída de um sujeito daquele trabalho desfaça o em que consiste o próprio cartel, isto é, a
saída de um implica em que o cartel se desfaça. No entanto, no cada um continua em
sua via de trabalho sem nenhuma garantia do Outro, cada um permanece só em sua via, mas
depende, para estar nela, do trabalho com outros. Toda essa formação sustenta um novo
laço social.
Por sua vez, o grupo está fadado a funcionar segundo uma lógica amorosa, isto é,
está fadado à transferência de ódio e de amor (o que é o mesmo), sem que ninguém
obstaculize a competição de todos pelo lugar no coração do Um. Se não uma resposta
que barre a paixão, o significante deixa de circular e dá lugar aos enunciados pré-fabricados
pela expectativa daquilo que se imagina que o Outro quer. Relação tão sem saída quanto
distante da transmissão.
Recebemos do Outro nossa mensagem de forma invertida: esta é uma proposição
importante na formulação de Lacan. Se soubermos levar a sério essa fórmula, poderemos
184
verificar, pelos efeitos que ela nos causa, a eficácia de um ensino, tal como verificamos a
efetividade de uma intervenção analítica pela resposta do sujeito. Não se tem outro material
para avaliar se um trabalho se produziu na transferência - na transferência do efeito de um
trabalho para outro trabalho.
Os dispositivos psicanalíticos não têm equivalentes no social, na
psicanálise lugares, funções, que podem ser definidos fora dos próprios
dispositivos analíticos por inversão, pelo seu objetivo que não será, por
exemplo, o da correspondência, da identificação, do fenômeno de grupo (...)
(LACAN, 1975:95).
A transmissão da psicanálise necessita de dispositivos inéditos, porque aquilo que
ela transmite não é nada de positivado nem de efetivado, mas sim algo que concerne
propriamente ao campo da falta. Como falar, então, do inconsciente fazendo operar o
próprio inconsciente? Não encontraremos a resposta positiva e cabal, senão a tentativa de
falar de uma posição do sujeito que testemunhe o efeito de transmissão.
Lacan afirma, portanto, que é nessa estrutura significante que o mundo, o mundo do
sujeito moderno, se funda. Este sujeito, portanto, é datado, e está em condições (como
condição de possibilidade, não como uma garantia) de advir numa estrutura discursiva que,
como estrutura, não é particular. A singularidade do sujeito é dada, na estrutura discursiva,
por um significante que terá operado para ele como S
1
(sempre numa temporalidade do a
posteriori). Conclui-se, então, que para que o sujeito advenha tem que ser antecedido por
uma rede significante que não é nem privada, nem a-histórica, e que está inserida numa
cadeia de transmissão que é, por sua vez, trans-individual.
Um psicanalista deve assegurar-se nessa evidência de que o homem, desde
antes do seu nascimento e para-além da morte, está preso na cadeia
simbólica, a qual fundou a linhagem antes que nela se bordasse a história;
deve habituar-se à idéia de que é em seu próprio ser, em sua personalidade
total, como se expressam alguns comicamente, que ele é efetivamente
apanhado como um todo, que à maneira de um peão, no jogo do
185
significante, e isso, desde antes que as regras desse jogo lhe sejam
transmitidas, contanto que ele acabe por surpreendê-las devendo essa
ordem de prioridades ser entendida como uma ordem lógica, isto é, sempre
atual (LACAN, [1956] 1998:471).
Dadas essas condições, primeiramente podemos afirmar que aquilo que se institui
como um corte na nossa história, como um fenda que se abre numa dada ordem do mundo,
foi nossa condição de possibilidade de advir como sujeitos. Para tratar desta questão, Freud
recorre ao pai primevo, enquanto que Lacan se põe a estabelecer o nascimento do sujeito
como efeito de uma operação significante. Por advir articulado a significantes, o sujeito
desde sempre emerge como uma questão ao saber, isto é, uma questão endereçada ao
campo do Outro (S
2
) relativa à sua verdade.
A maneira pela qual Lacan aborda o sujeito é uma conseqüência lógica da
determinação significante. Poderíamos, então, pensar que os significantes são da esfera do
privado? Poderíamos pensar que cada sujeito, numa dada cultura e num certo contexto
social, tem seu repertório significante particular? Certamente uns e outros significantes têm
seu peso e estão combinados na cadeia de um modo próprio para cada sujeito, e, por
conseguinte, a significação que advém deste processo é particular. Mas será que a relação
com este Outro, como lugar da bateria significante, a partir dos significantes que
delimitaram uma cultura e um contexto social não tem incidência nos sujeitos que
advém? Ou, ainda, será que não determina certa forma de evitar o advento do sujeito
constituindo, se assim podemos dizer, um certo sintoma? Será que quando Lacan diz que “o
inconsciente é o discurso do Outro” (“o inconsciente é o social”) (op. cit.:126), a dimensão
de algo que ultrapassa a minha intimidade, que ultrapassa o que em mim eu pretendo como
privado, não está em jogo?
186
Percebemos que o Outro e o sujeito não estão em relação de independência e que
não são entidades abstratas, mas sim campos onde, por um lado, encontramos nossa
determinação e, por outro, encontramos o lugar onde nos exercermos. Isso nos conduz a
tratar o social como campo de inserção da psicanálise.
4.5 INTENSÃO E EXTENSÃO
Czermak afirma que para a psicanálise não se tornar terapêutica, sem ambições
outras que puramente as médicas e que para se tratar o objeto adequadamente não pode
haver a separação entre a exposição clínica e as questões sociais. E, nesse viés ele diz que:
A psicanálise “em intensão” não se limita a preparar operadores no campo
terapêutico, mas, questionando a relação de um sujeito com a transferência,
impele-o a ponto que lhe torna a reflexão ética obrigatória, ponto de retorno,
onde o efeito da análise torna-se igualmente de questionamento social: o
que é esta relação do paciente com a relação paciente/psicanalista, e o que
como vínculo social, é ele levado a considerar em sua relação com o
próximo? E ficamos desde então na psicanálise “em extensão” que é
igualmente, relação da psicanálise com a cidadania ou com o cidadão”
(CZERMAK, 1991:51).
54
Podemos observar nesta passagem como a psicanálise aposta radicalmente na
imbricação da intensão na extensão. Ao levar a questão do analisante ao par analisante-
analista para o âmbito social pelo que se atualiza da estrutura dessa relação na
transferência, o autor reafirma nosso argumento de que o social para a psicanálise é o que
coloca o Outro em causa, neste caso, pela presença do analista. Mas, como iremos, a partir
desse laço que convoca um posicionamento ético, nos haver com nosso próximo? Que lugar
54
“Notas sobre as perversões em sua relação com a vida dos grupos” em Paixões do Objeto: estudo
psicanalítico das psicoses
, Porto Alegre, Artes Médicas.
187
lhe dar? Talvez devamos pensar que o lugar possível a oferecer é aquele que cabe ao
sujeito.
Sabemos, a partir da experiência analítica, que os termos “o discurso analítico”, “a
ética da psicanálise”, “nossa alienação ao Outro como sujeito”, sempre nos escapam. A
psicanálise, como afirma Lacan, é um campo que se perde. Mas, sabemos também que todo
nosso trabalho corre nesse sentido. Então, a questão que ainda se coloca de imediato é a de
como ensinar a psicanálise “não apenas a quem não sabe, mas a quem, sendo dado isso de
que se trata, a quem não pode saber?” (LACAN, jan/1962:2). Dentro deste enfoque, como
introduzir em nossa cultura esse discurso que é por estrutura recusado, mas que, ao mesmo
tempo, por suas condições culturais, se tornou possível de ser inventado?
Lacan entende que o passe testemunha a própria nodulação da psicanálise em
intensão e extensão. Segundo ele:
Para introduzi-los nisso, me apoiarei nos dois momentos da junção do que
chamarei respectivamente, nesta dedução, de psicanálise em extensão - quer
dizer, tudo o que resume a função de nossa Escola na medida em que ela
presentifica a psicanálise no mundo, - e a psicanálise em intensão, ou seja, a
didática, _ na medida em que não faz outra coisa senão preparar aí
operadores (LACAN, 1967:31).
A psicanálise em extensão está definida por Lacan por “tudo o que resume a função
da Escola na medida em que ela presentifica a psicanálise no mundo”. O que está em jogo
no “presentificar a psicanálise no mundo”? Não se trata de difundi-la, nem de se colocar
em relação ao mundo nas bases da suficiência, o que seria, de outra forma, não precisar
fazê-la presente no mundo. A “presentificação” da psicanálise no mundo remete-nos ao que
Lacan trabalha como a presença do analista no trabalho da análise, ou seja, ao próprio
trabalho do inconsciente promovido por sua escuta. Mesmo que a presença do analista seja
heterônoma à pessoa daquele que a encarna, essa presença não se faz senão encarnada e,
188
como dissemos, como manifestação do inconsciente. A psicanálise presentificada no
mundo tem que estar de alguma forma encarnada num analista através do trabalho de
transmissão realizado por ele. A letra de Freud e o ensinamento de Lacan não podem estar
reunidos como bibliografia arquivada a ser consultada. Tanto a obra como o ensinamento,
precisam estar vivos, convocando o sujeito. O que possibilita esta convocação é o efeito de
transferência posto em trabalho por aqueles que têm êxito em transmitir a psicanálise -
êxito em transmitir o próprio trabalho operado pela transferência de atualização da
realidade do inconsciente. A psicanálise não pode se presentificar no mundo de outro
modo. Isso porque se ela abdicasse da tarefa de transmissão, ela correria o risco de apenas
estar no mundo, deixando assim de produzir qualquer efeito sobre o sujeito.
Portanto, na experiência analítica, trata-se de uma junção da intensão com a extensão, na qual a psicanálise em intensão
possibilita a construção de operadores, através dos quais a psicanálise em extensão se presentifica no mundo.
O efeito de transmissão previsto no desejo do analista levou Lacan a formular o
passe, justamente chamando o analista “a finalizar, num certo sentido, sua análise na esfera
pública, (...), a consumar esse fim de análise no registro público”.
55
No analítico não se
pode estar isolado, o discurso não se sustenta apenas por um, como um único:
Mas se eu estivesse só, efetivamente, só para fundar a Escola, como ao
enunciar esse ato, eu o disse sem hesitação: “só como sempre estive em
minha relação com a causa analítica...”,será que por isso acreditei ser o
único? Eu não o era mais, a partir
do momento em que um só seguisse os meus
passos, não por acaso aquele de quem interrogo as graças presentes. Com
todos vocês, por parecer só, será que vou pretender estar isolado? ([1967]
1995:27)
56
55
Sbano, V., “O caso do Psicanalista e da Transferência na Extensão (Sobre a Proposição de 9 de outubro de
1967
)”, Rio de Janeiro, texto inédito, 2000.
56
Lacan, J., “Discurso à E:F:P:” Documentos para uma Escola II, Letra Freudiana: Escola, Psicanálise e
Transmissão, ano XIV, nº 0, Rio de Janeiro, 1995 (1967b), p.27.
189
Em seguida, pergunta Lacan: “se fosse único em relação à experiência analítica,
para quem eu falaria?”
Como observamos no início deste capítulo, o estar remete fundamentalmente ao
Outro; ao contrário, ser único remete à exceção, ao fora de série, ao fora da série, à
suficiência, termos que apontam para uma vivência bem distante da experiência analítica.
Logo, podemos supor que um analista sério, uma Escola séria, como Lacan qualifica a
Escola à certa altura, consiste fundamentalmente em que se esteja na série, na cadeia de
transmissão que se inaugura a partir de Freud. Assim sendo, se inscritos nesta série, é nosso
dever levá-la adiante.
Aquele que julga que jamais poderá falar de sua análise, aquele que julga que não
poderá fazer de sua experiência um trabalho de transmissão, muito provavelmente está
diante daquilo que é conquistado pelo recalque. Propriamente falando, está diante do que
nos lança no registro do privado (SAFOUAN, 1985).
57
Sendo sua experiência vedada à
fala, à fala que faz circular o significante, supomos que o sujeito esteja naquela língua
própria, não compartilhável, fabricada com seu sintoma pelo recalque.
Mas se a operação do recalque cinde o público e o privado, podemos nos perguntar
o que precisa ser recalcado no social? Se por um lado, a experiência do social remete-nos a
uma certa exterioridade, ela também tende ao grupo. O grupo tem uma formação que insiste
em excluir Um para fazer dos outros iguais na adoração e devoção ao Um. Este Um deve
ser aquele que nos restitui o que faltava ou, pelo menos, que ficava como o endereçamento
de nossa esperança. Esta é a tendência de todo grupo, por ser ela própria a tendência do
sujeito em seu sintoma. Como pode a experiência de uma Escola, de uma Instituição
57
Cf. Safouan, M., Jacques Lacan e a questão da formação dos analistas. Porto Alegre, Artes Médicas, 1985.
190
Analítica escapar a essa tendência? Pelo funcionamento, pelos dispositivos, talvez se possa
frear seu desenvolvimento, evitando uma unidade fictícia para que um analista, ao invés de
vir a responder do lugar do único, venha a intervir do lugar de mais-um. Daquele que nos
coloca a trabalhar, que descompleta o grupo. Foi essa a idéia de Lacan ao inventar o
dispositivo do cartel para o funcionamento da Escola. Ou seja, fazer com que na extensão a
psicanálise não perdesse aquilo que convoca o sujeito em sua experiência intensiva da
psicanálise.
4.6 O ATO ANALÍTICO E A ÉTICA DA PSICANÁLISE: FUNÇÃO PÚBLICA?
Pelo efeito de transmissão é possível dizermos que há ato analítico no âmbito
social? Ou ainda, o ato analítico não seria um ato que necessariamente se daria no âmbito
público, uma vez que o ato é algo que se verifica, ou ainda, que terá acontecido pelo seu
efeito? O efeito de um ato não pode ser outro que o advento de um sujeito numa posição
ética, pois é isto que indica que ato houve. Isto quer dizer que para que haja ato é necessário
que alguém como sujeito tire certas conseqüências de uma determinada ação, conferindo a
ela o valor de um ato. Logo, essas conseqüências deverão apontar para algo da ordem do
desejo. Ou seja, deverão ter uma dimensão ética para o sujeito por incidir sobre sua
posição. A posição desejante de um sujeito, quando em causa, não o lança necessariamente
para a ordem pública? O desejo, ao tornar incompleto o sujeito, não o faz achar em seu
caminho algo que é inevitavelmente um fora de si?
Lacan, no começo do Seminário 15 (1967-1968), afirma: “a psicanálise, isso faz
alguma coisa”. Esse fazer é, como ele também afirma, uma inscrição em algum lugar. O
que a psicanálise inscreve em sua transmissão? Algo que deve ter conseqüências diretas.
191
Que tipo de conseqüências serão essas que podem fazer algum corte na série de nossos
hábitos sociais?
Trago aqui uma observação que faz Chemama em seu artigo “O Sujeito para o
Objeto”. Diz ele que “o discurso lacaniano não era intemporal, era intempestivo”
(CHEMAMA, 1977:24). Isto é, Lacan estava inserido em seu tempo, lidando com o que
constituía a história de sua época, com os acontecimentos do momento, apesar de não se
situar como o esperado, na conformidade prevista ao momento. É desta posição que
Lacan intervém num certo contexto analítico.
Portanto, Lacan não faz seu ensino como se pudesse dele tratar fora do mundo, de
maneira asséptica, como se pudesse se retirar das questões de sua cultura, de sua formação,
do lugar onde estava inserido. Ao contrário, ele está sempre se referindo aos
acontecimentos de sua época, aos problemas institucionais pelos quais passou, às questões
éticas contra as quais estes fatos esbarram. Refere-se a isto a partir de uma posição fundada
numa ética e produzida, na maioria das vezes, pelo discurso analítico. Sua posição, então,
não é uma posição pessoal, mas sim uma posição comprometida com uma ética e, ainda
assim, se há nela alguma escolha, é uma escolha forçada.
Em suma, podemos concluir este capítulo retomando a questão que perpassou todo
seu desenvolvimento: é a ética da psicanálise uma ética do âmbito do público? A partir de
um olhar que dissocia o público do privado, podemos nos perguntar se a ética da
psicanálise concerne ao sujeito no âmbito exclusivo de sua própria subjetividade ou se ela
também se aplica a ele como cidadão. A questão toca não só ao que diz respeito ao público
e ao privado, mas também ao que ela nos faz pensar da relação do sujeito com o Outro. De
quantos sujeitos podemos falar quando pensamos numa estrutura discursiva? Pode-se falar
de sujeitos distintos? De um que diz respeito ao que em nós é privado, íntimo; de outro que
192
sai no mundo e lida com a vida pública, com a esfera do público? Ou se pode falar de
um mesmo sujeito que vem a responder em todos esses níveis, atravessado pela mesma
ética, submetido à mesma estrutura, em lugares diferentes nos discursos?
A questão da transmissão da psicanálise para além da cura analítica é, pois, uma
questão de escolha de cada analista ou ela se coloca para nós como uma necessidade ética?
Podemos decidir até onde e quando queremos operar com a psicanálise? Como diz Freud,
“a atividade psicanalítica é árdua e exigente: não pode ser manejada como um par de óculos
que se põe para ler e se tira para sair a caminhar. Via de regra, a psicanálise possui um
médico inteiramente, ou não o possui em absoluto” (FREUD, [1933] 1980, vol. XXII:45).
Ao sair para caminhar, ao ganhar o espaço público, podemos dispensar a psicanálise como
uma estrutura discursiva que produz um laço social específico?
Logo, se a psicanálise depende e exige do sujeito sua inserção na série de
transmissão, ela não o poupa em nada, só faz acionar nele o desejo e a coragem de
percorrer todo o caminho:
“Tal como hoje chego a pensar a psicanálise é intransmissível. Isso é bem
desagradável. É desagradável que cada analista seja forçado – já que é
preciso que ele seja forçado a isso – a reinventar a psicanálise.”
Se eu disse em Lille que o passe me havia decepcionado, foi exatamente por
isso, pelo fato de ser preciso que cada psicanalista reinvente, a partir do que
ele tirou do fato de ter sido durante um tempo psicanalisante, a maneira pela
qual a psicanálise pode perdurar” (LACAN, 1978:66).
193
CONCLUSÃO
A dimensão pública da psicanálise refere-se, sobretudo, à experiência da fala no
sujeito como um domínio do Outro. O Outro, em geral, se constitui como aquele a quem
caberia garantir um bem comum. Entretanto, o que a psicanálise como “bem comum”,
sob o qual se estabelece um pacto social, se reduz à fala no exercício compartilhado da
língua.
Contudo, se todo laço social segrega algo ou alguém daquilo que ele institui como
uma certa interioridade de si mesmo e se o laço social do discurso do mestre, do discurso da
histérica e do discurso universitário estabelecem um comando, numa certa medida, em seu
funcionamento eles destituem o sujeito que opera sob seu comando em uma determinada
função. Contudo, ao colocar no significante o poder de toda eficácia, a psicanálise não
fabrica com eles um mundo virtual de letras. Ao contrário, ela reconhece o peso que o
significante exerce nas relações e no sujeito. Mais do que isso, ela reconhece que é o
significante que determina o sujeito e o funcionamento de suas relações. Deste modo, o
significante senhor, o significante escravo ou marido ou mulher imprimem naqueles que
estão sob sua materialidade (a do significante) seu efeito. Eles comandam, assim, uma
determinação e, em última instância, eles nos dão a vida: “O Outro é o lugar em que se
situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder se presentificar do sujeito, é
o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer.” (LACAN, 1964, p.193).
O discurso do analista, como um novo laço, oferece uma outra possibilidade de
liame. Nele, o Outro nada pode garantir pelo justo fato de que ele é apenas um lugar no
194
qual “se situa a cadeia significante”. Logo, ele se estabelece, a princípio, na subversão
dessa garantia:
Aquilo diante de que o neurótico recua, não é diante da castração, é de fazer
de sua castração, a sua, isso que falta ao Outro, A, é de fazer de sua
castração alguma coisa de positivo que é a garantia dessa função do Outro
.
(LACAN, [1962-63; 23/01/63] 1997: 137).
A garantia é dada pelo sujeito na medida em que ele autoriza a fala no uso
compartilhado da língua e sustenta nela a verdade da fala. De tal modo, ele restitui a cada
vez o lugar do sujeito, operando sem o artifício de colonizá-lo ou de comandá-lo, segundo a
ordem pré-estabelecida por um saber vigente.
Dessa forma, a segregação e a escravização de cada sujeito podem ser
reencontradas sob a responsabilidade do próprio sujeito e do laço que ele institui com
outros. Neste sentido, a maior desumanização a que se pode submeter o sujeito é retirar-lhe
sua responsabilidade.
Deve-se ter em conta que a psicanálise não é uma prática de perquisição das
intimidades do sujeito, muito menos pretende ela operar como uma ortopedia, nem como
uma terapêutica do sujeito, na qual qualquer ordem de falha deve ser restabelecida. Lacan
sempre nos faz retomar essa prudência:
Basta lembrar as reservas, na verdade, fundamentais, constitutivas, da
posição freudiana concernindo a tudo o que é educação. Certamente somos
levados, e mais especialmente os psicanalistas de criança, a invadir esse
domínio, a operar na dimensão do que chamei, em outro lugar, num sentido
etimológico, de uma ortopedia. Contudo é espantoso que tanto pelos meios
que empregamos quanto pelos móveis teóricos que colocamos em primeiro
plano, a ética da análise pois existe uma comporte o apagamento, o
obscurecimento, o recuo, até mesmo a ausência de uma dimensão, cujo
termo basta ser dito para se perceber o que nos separa de toda a dimensão
ética anterior a nós é o hábito, o bom e o mau hábito. (LACAN, J., 1959-
1960, p.20)
195
O bom e mau hábito era sobre o que se debruçava a ética antes da psicanálise. E ela
vem, sobretudo, nos retirar de nossos hábitos, desmontando-os sejam aqueles que dizem
respeito à nossa boa forma, sejam aqueles que dizem respeito à nossa boa vontade –, de
todo modo, sempre aqueles que subtraem do sujeito o efeito que ele é. Ao analista cabe
marcar a falha como fato de estrutura, retirando conseqüências dos impasses sintomáticos.
Ao analista não cabe nem o hábito, nem a espera e nem a esperança.
No discurso do analista, o trabalho não pode se constituir num penar ou numa
tortura
58
. O trabalho vem restituir ao sujeito um lugar de elaboração, não de sentido, mas de
uma elaboração de sua verdade. Trabalho este que pode ganhar sua função se retrair o
hábito de nossas contabilidades e puder se instalar no sujeito, a fundo perdido, pelo desejo
em questão. A psicanálise em intensão e extensão, por si só, tem uma função pública e
social, na medida em que ela, de imediato, coloca o sujeito em causa, não somente ao
escutá-lo, mas ao se dirigir a ele.
Não constituindo a psicanálise uma “visão de mundo”, ela tem que ser sustentada
institucionalmente com a mesma radicalidade que a clínica exige, destituindo-se de ideais e
de soluções políticas. O discurso analítico é um entre quatro discursos. Nestes não estamos
absolutamente por eleição. Estamos sempre submetidos a todos, um a cada tempo. Mas a
questão é a de saber ao que temos que responder e o que temos que suportar enquanto
analistas. Obviamente, ninguém ocupa ou é ocupado pelo discurso analítico continuamente.
Pela teoria dos discursos de Lacan, é logicamente impossível supor uma estabilização do
sujeito num discurso. O importante a ser destacado, no entanto, é que, funcionando
58
Raiz vinda do latim “tripāliāre”, torturar com o “tripalium”, instrumento com três pontas afiadas.
196
dentro desses quatro discursos, o sujeito não pode ser comandado por quatro diferentes
éticas.
Em Weber, sua noção de ética dúplice revela a possibilidade de seguirmos uma
dupla orientação: uma ética para orientar nossas questões mais íntimas e outra para nos
orientar na vida pública. Quando estamos trabalhando em espaços outros que não nos
nossos consultórios particulares e se estamos na via da psicanálise, podemos nos apoiar
nessa dicotomia?
Toda ética supõe uma função pública posto que ela, em geral, deriva de um
compromisso social. Contudo, compartilhamos a idéia (no senso-comum) de que devemos
nos conduzir diante daqueles que fazem parte de nossa vida privada diferentemente de
como o fazemos diante daqueles que estão numa esfera mais distante. Nessa situação,
parece-nos que a ética não é determinante do sujeito e sim determinada por ele àquele que
ele visa. “A ética dúplice permitiu o que era proibido nas relações “entre irmãos”.”
(WEBER, 1947:36). O espírito capitalista, segundo Max Weber, permitiu ao sujeito esta
dupla orientação.
A psicanálise, por sua vez, mapeia uma nova ética. Esta é dirigida propriamente ao
sujeito em seu exercício desejante. Sendo esta a que nos interessa tratar, devemos entender
de que modo ela não participa dessa dupla orientação que ao sujeito possibilidades de
negociação com aquilo que é da ordem de um dever. Apesar de a psicanálise ter uma ética
extremamente estreita em seu enunciado – “a única coisa da qual se possa ser culpado, é de
ter cedido de seu desejo” (LACAN, [1959-1960] 1991:382) – ela tem amplo espectro como
medida de nossa ação.
197
Por visar o desejo, a ética da psicanálise é facilmente tomada como uma ética de
caráter muito particular. O que visa um desejo é de fato singular. Entretanto, a possibilidade
de um sujeito estar numa posição desejante implica em uma posição discursiva. Como a
questão tratada na ética da psicanálise é a de não ceder de seu desejo, isto se presta
rapidamente a uma abordagem que separa o sujeito do Outro, podendo ser escutada como
uma questão que trata do eu, dada a presença do pronome que lhe corresponde.
Portanto, a ética da psicanálise não se coloca como um dever a ser respeitado na
vida íntima de uma pessoa, oferecendo a baliza em sua questão pessoal. Ao contrário, ela só
pode orientar o sujeito e dirigir-se a ele. Sendo assim, a ética trata, sobretudo, da maneira
como gozamos e de como fazemos laço com nosso gozo.
O psicanalista, no exercício de seu trabalho, tem o dever de fundar no social um
lugar de habilitação para o sujeito. Seja nos hospitais psiquiátricos, seja nos Centros de
Atenção Psicossociais, seja na Universidade, seja em escolas ou no campo jurídico, o
analista tem uma função que será específica apenas em relação à especificidade de cada
lugar. No entanto, se ele realmente estiver no funcionamento do discurso analítico, haverá
um efeito de transmissão em sua relação com seu trabalho e com aqueles que convivem
nesse mesmo espaço. Nessa situação encontra-se o analista no lugar de analisante, uma vez
que no discurso analítico ou se está na função de analista, operando pontualmente como
causa do sujeito, ou se está como analisante, no fazer, por exemplo, do trabalho
institucional. Assim, o analista em intensão e analisante em extensão encontra-se sob o
mesmo princípio ético e sob o mesmo dever de transmissão. Mas, o que pode transmitir o
discurso do analista?
198
A questão da transmissão sustenta-se sobre um paradoxo. Na realidade, o efeito do
discurso do analista não organiza, não ensina e não soluciona nada. O fazer de seu trabalho,
na via de seu discurso, é um fazer engajado pela causa de seu desejo. Pelo compromisso de
seu desejo, seu fazer se autoriza na falta de garantia do Outro.
O que é próprio à psicanálise não é vencer, muito menos convencer. Ao psicanalista
não cabe arranjar o real ou operar como se ele pudesse não estar lá, como se pudesse nos
imunizar contra esse real. O psicanalista numa instituição não é aquele que fica indignado
com a resistência à psicanálise ou com o que não anda. Ele tem que contar com o sintoma,
apesar de dever estranhá-lo, apesar de convocar alguém para responder por ele ou, ainda,
apesar de o tomar em sua conta. O que não pode acontecer é que o analista, por altivez ou
por auto-suficiência, queira se responsabilizar, resolvendo pelo outro ou poupando o outro.
O analista não é aquele que está fora do jogo ou do mundo. O discurso analítico é, então, o
único entre os quatro que, ao invés de acionar algo pelo comando, aciona o sujeito por uma
causa que é a sua própria.
Logo, o que um psicanalista pode transmitir pode ter efeito de sujeito a sujeito e,
ainda, aquilo que lhe oferece sua ética no discurso, instaura um novo poder no laço social
pela autorização de sua estrutura significante.
Desse modo, a psicanálise como estrutura discursiva, não está fora do mundo para
analisá-lo, para curá-lo de suas falhas ou para lhe oferecer sua boa forma. Se a psicanálise
se inscreve como um laço social, ela não está nem interna nem externa ao mundo. Nessa
estrutura de borda, ela está no mundo como um de seus pilares, inaugurando um novo laço
social. Neste, o sujeito terá que produzir um significante que, segregado da série, tenha uma
incidência nova sobre a própria série, dando condições ao sujeito de fazer face a seus
199
hábitos sociais. Nossa preguiça em fazer as coisas se mexerem, nosso horror de ver
abaladas nossas verdades permite, por um lado, que nos mantenhamos em nossa miséria
subjetiva e, por outro, que nos inflamemos militantemente para fazer o mundo mudar. As
revoluções produzem reviravoltas, diz Lacan, que servem para que, rodando tudo, tudo
volte ao mesmo lugar.
A função pública da transmissão da psicanálise não é a de se oferecer para mudar o
mundo, para ajustá-lo, nem para suturar-lhe as falhas. Ao contrário, sua função é a de
“refraturar, a de encurvar, de marcar com uma curvatura aquilo que produz como tal a
falha, a descontinuidade” (LACAN, [1972-1973] 1985:61). Essa refratura não se faz de
uma vez por todas. É preciso que cada sujeito a refaça a cada vez, a seu modo e a seu
próprio custo. Vemos, afinal, que a incidência da psicanálise faz girar em quartos de volta
os discursos, promovendo a descontinuidade na fixidez das estabilidades, fazendo-nos
apostar que, através dos cortes operados por suas intervenções, possa surgir algum novo
estilo no laço.
200
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARENDT, H., A Condição Humana. 9º ed. Rio de Janeiro,Forense Universitária, 1999.
CHEMAMA, R., Éléments Lacaniens pour une psychanalyse au quotidien , Collection les
Discours Psychanalytique. Paris, Publication de l’Association Freudienne International,
1994.
COHN, G. (org.), Max Weber: Sociologia, São Paulo, Ed. Ática, 1984.
CZERMAK, M., “Notas sobre as perversões em sua relação com a vida dos grupos” em
Paixões do Objeto:estudo psicanalítico das psicoses, Porto Alegre, Artes Médicas, 1991.
DA MATTA, R., Carnavais, Malandros e Heróis, para uma sociologia do dilema brasileiro, Rio de Janeiro,
Zahar Editores, 3ª ed.,1981.
DE ANDRADE, D. R., Alguns Traços da Cultura Brasileira: um olhar psicanalítico., Rio
de Janeiro, Tese de Doutorado - PUC, 2000.
DURKHEIM, E. As regras do Método Sociológico, São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1972.
FIGUEIREDO, A.C. (org.), Psicanálise, Pesquisa e Clínica. Rio de Janeiro, Edições IPUB-
CUCA, 2001.
–––––––––––––––––––––Vastas Confusões e Atendimentos Imperfeitos, Rio de Janeiro,
Relume-Dumará, 1997.
FRANÇA, M. I. (org.) - Ética, Psicalise e sua Transmissão. Petrópolis, Vozes, 1996.
FREUD, S., da Edição Standard Brasileira das Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago,
1980:
“A Psicopatologia da Vida Cotidiana” (1901), vol.6.
“Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna” (1908), vol.11.
“As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica” (1910), vol.11.
“Totem e tabu” (1912-13), vol.13.
201
“A história do movimento psicanalítico” (1914), vol.14.
“Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914), vol.14.
“O inconsciente” e “Apêndice C: Palavras e coisas” (1915), vol.14.
“Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”, Conf. XVIII, (1916-1917).
“O Estranho” (1919), vol.17.
“Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica” (1919), vol.17.
“Psicologia de Grupo e Análise do Eu” (1921), vol.17.
“O Ego e o Id” (1923), vol.19.
“A Questão da análise leiga” (1926), vol.21
“O Mal-estar na Civilização” (1930), vol.21.
“Novas conferências introdutórias sobre psicanálise” (1933 [1932]), vol.22.
GOLDENBERG, R., (org.) Goza!: Capitalismo, globalização e psicanálise. Salvador,
Ágalma, 1977.
JANOUCH, G. – Conversas com Kafka, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1968.
JONES, E., Vida e Obra de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1979.
HANNS, L., Dicionário Comentado do Alemão de Freud. Rio de Janeiro; Imago, 1996.
KURT, W., “How is society possible” in
Georg Simmel, 1858-1918: a collection of essays, Ohio State
University Press, 1959.
LACAN, J. – A Família. Lisboa, Assírio e Alvim Ed., 1981.
Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.
–––––––––- O Estádio do Espelho como formador da função do eu” (1949)
_________ - “A ciência e a verdade” (1965-66)
_________ - “Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise” in Escritos. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.
_________ - “A Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão desde Freud” in Escritos.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.
202
__________-“A Situação da Psicanálise e a formação do analista em 1956” em Escritos.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1998.
_________ - “Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo no Inconsciente Freudiano” in
Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1998.
__________- “Proposição Sobre o Psicanalista da Escola” (1967) em Documentos para uma Escola, Letra
Freudiana: Escola, Psicanálise e Transmissão, ano 1, nº 0, Rio de Janeiro, s/ data.
__________- “Discurso à E:F:P:”
Documentos para uma Escola II (1967b), Letra Freudiana: Escola,
Psicanálise e Transmissão, ano XIV, nº 0, Rio de Janeiro, 1995
__________- “Entrevista do Dr. Lacan à imprensa 29 de outubro de 1974 no Centre Culturel Français” em
Cadernos Lacan, vol.2. Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, 2002.
__________- “A Terceira” (1974) em Cadernos Lacan, vol.2. Associação Psicanalítica de
Porto Alegre. Porto Alegre, 2002.
__________- “A Função dos Cartéis”, transcrição da discussão realizada nas Jornadas sobre Cartéis
(abril/1975), publicada em
Lettres d’École Freudienne de Paris, 18, 1976 e traduzido para o português em
Documentos para uma Escola, Letra Freudiana: Escola, Psicanálise e Transmissão, ano 1, nº 0. Rio de
Janeiro, s/ data ;
__________- “Conclusões: Congresso sobre a transmissão, 1978” em
Documentos para uma Escola II:
Lacan e o Passe
, Letra Freudiana: Escola, Psicanálise e Transmissão, ano XIV, nº 0, Rio de Janeiro, 1995
__________- “Dissolução” (1980) em
Documentos para uma Escola, Letra Freudiana: Escola, Psicanálise e
Transmissão, ano 1, nº 0, Rio de Janeiro, s/ data.
_________ - O Seminário, Livro 7 (1959/60). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988.
_________-O Seminário, Livro 10 (1962/63). Recife, Centro de Estudos Freudianos do
Recife (publicação não oficial) 1997.
________ - O Seminário, Livro 11 (1963/64). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990.
________ - O Seminário, Livro 15 (1967/68). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., Edição não
autorizada
_________ - O Seminário, Livro 17 (1969/70). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.
–– O Seminário, Livro 20 (1972/73). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991.
LÉVI-STRAUSS,C., Introduction à oeuvre de Marcel Mauss in Sociologie et Anthropologie,
Paris, PUF, 1950, p. IX XII.
MAUSS, M., Oeuvres, Paris, Lês Éditions de Minuit , 1969, v. III.
203
MELLO E SOUZA, L., História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na
América Portuguesa. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
MELMAN, C., “Os adolescentes estão sempre confrontados ao Minotauro” em
Adolescência: entre o passado e o futuro (org. APPOA). Porto Alegre, Artes e Ofícios,
1997.
___________- “Le social de plus em plus sciant!” em Le Trimestre Psychanalytique nº1:
L’inconscient, c’est le social, Publication de L’Association Freudienne Internationale,
Paris, 1996
MILNER, J.-C. - A obra clara. Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 1996.
NEGRI, A., 5 lições sobre o império, Rio de Janeiro, DP & A Editora, 2003.
OLIVEIRA, R. (org.), Mauss: Antropologia, São Paulo, Ed, Ática, 1979.
OLIVEIRA, C., “Freud, Marx e a Weltanschauung” in 10 x Freud, Niterói, Azougue
Editorial, 2005.
PELLEGRIN-RESCIA, M-L., “Dichotomie Prive/Public: Une Possibilite de Dépassement
em Revue Internationalede Psychologie, vol.VI, nº 15: Domaine Prive – Sphère Publique.
Paris, Editions Eska, 2000.
RASSIAL, J.J., O Adolescente e o psicanalista. Rio de Janeiro, Companhia de Freud Ed.,
1999.
REVISTA TEMPO FREUDIANO, A clínica da Psicose: Lacan e a Psiquiatria, Rio de
Janeiro, vol.1:fenômenos elementares, 2004 e vol.2: as paranóias, 2005.
RINALDI, D., A Ética da Diferença, um debate entre psicanálise e antropologia, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Ed., Editora da UERJ, 1996.
ROCHA, A.C., “O Discurso Analítico: limites de sua transmissão” em Lacan e a
formação dos psicanalistas no Brasil (org. Marcus do Rio Teixeira), Salvador, Ágalma,
1992.
204
SÁ, R., O cogito cartesiano e a subversão do sujeito pela psicanálise, tese de doutorado em
filosofia, IFCS, 2002.
–––––––––– “O gossou na Terceira em Referências de A Terceira de Lacan, Rio de
Janeiro, Tempo Freudiano Associação Psicanalítica, 2003.
SAFOUAN, M., Jacques Lacan e a questão da formação dos analistas. Porto Alegre, Artes
Médicas, 1985.
SBANO, V., “O caso do Psicanalista e da Transferência na Extensão (Sobre a Proposição
de 9 de outubro de 1967)”, Rio de Janeiro, texto inédito, 2000.
SENNET, R., O Declínio do Homem Público, as tiranias da intimidade. São Paulo,
Companhia das Letras, 1988.
SIMMEL, G., Sobre la individualidad y las formas sociales, Universidad Nacional de
Quilmes, Buenos Aires, 2002.
SCHORSHE, C., Viena Fin-de-Siécle, Cia, das Letras, Ed, Unicamp, SP, 1988.
WEBER, M., Ensayos de Sociología,Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1982, 5ª ed.
–––––––––– A Ética Protestante e o espírito do capitalismo, Livraria Pioneira Ed., SP,
1989.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo