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Universidade Federal do Rio de Janeiro
AS PULSÕES DE MORTE E SEUS DERIVADOS: OS AVATARES DA TEORIA
Suelena Werneck Pereira
2006
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AS PULSÕES DE MORTE E SEUS DERIVADOS: OS AVATARES DA TEORIA
Suelena Werneck Pereira
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de
Psicologia, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Teoria
Psicanalítica.
Orientador: Teresa Pinheiro
Rio de Janeiro
Agosto de 2006
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iii
AS PULSÕES DE MORTE E SEUS DERIVADOS: OS AVATARES DA TEORIA
Suelena Werneck Pereira
Orientador: Teresa Pinheiro
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria
Psicanalítica.
Aprovada por:
_____________________________________________
Presidente, Prof. Dra. Teresa Pinheiro
_____________________________________________
Prof. Dr. Joel Birman
_____________________________________________
Prof. Dra. Teresa Cristina O. C. Carreteiro
_____________________________________________
Prof. Dra. Regina Herzog
_____________________________________________
Prof. Dr. Chaim Samuel Katz
Rio de Janeiro
Agosto de 2006
iv
Pereira, Suelena de Castro Werneck
As pulsões de morte e seus derivados: os avatares da teoria/
Suelena de Castro Werneck Pereira Rio de Janeiro: UFRJ,
CFCH, IP, 2006
xi, 376 f.; cm.
Orientador: Teresa Pinheiro
Tese (doutorado) UFRJ/ Instituto de Psicologia/ Programa
de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, 2006.
Referências Bibliográficas: f. 367-376
1. Teoria pulsional 2. Pulsão de morte. 3. Sadismo e
masoquismo. 4. Destruição. 5. Dominação. 6. Agressão. I.
Pinheiro, Teresa. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Psicologia, Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica. III. As pulsões de morte e seus derivados: os
avatares da teoria.
v
RESUMO
AS PULSÕES DE MORTE E SEUS DERIVADOS: OS AVATARES DA TEORIA
Suelena Werneck Pereira
Orientador: Teresa Pinheiro
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
– UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria
Psicanalítica.
O objetivo dessa tese é o de estabelecer distinções metapsicológicas entre os
derivados das pulsões de morte, a saber: a pulsão de destruição, a pulsão de agressão e a
pulsão de dominação. Trabalharemos também com situações ou estados afetivos em que
a presença da pulsão de morte é inconteste: o sadismo e o masoquismo, além da
maldade, da crueldade e da violência. Tomando a pulsão de morte como fio condutor e
considerando que esse conceito é indispensável à continuidade e à dialetização da teoria
psicanalítica, tentaremos mostrar que, a partir do enlace entre as pulsões de morte e
Eros, seu opositor conforme estabelecido pela segunda teoria pulsional, teremos
diferentes resultados ou produtos. Os derivados em questão diferenciam-se a partir da
proporção e da qualidade das mesclas pulsionais: à noção de quantidade, isto é, de
quanto de cada pulsão se encontra presente em determinada combinação, se junta a
circunstância em que essa intricação se dá. Os diferentes derivados estarão na
dependência do momento do desenvolvimento em que se encontra o sujeito quando se
estabelece a mistura das pulsões: esse momento leva em consideração a fase de seu
desenvolvimento psicossexual, a fase de desenvolvimento de seu eu, os pontos de
fixação que determinarão as regressões, os distintos modos de satisfação e as relações
de objeto.
Palavras-chave: Pulsão de morte. Intricação das pulsões. Sadismo e masoquismo.
Pulsões de destruição, agressão e dominação. Maldade, crueldade e violência.
Rio de Janeiro
Agosto de 2006
vi
ABSTRACT
THE DEATH INSTINCTS AND THEIR DERIVATIVES: THE AVATARS OF
THE THEORY
Suelena Werneck Pereira
Orientador: Teresa Pinheiro
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria
Psicanalítica.
The purpose of this thesis is to establish metapsychological distinctions between
the derivatives of the death instincts, such as: the destruction instinct, the aggression
instinct and the instinct to master. We will also work with situations or affective states
in which the presence of the death instinct is unquestionable: sadism and masochism,
besides meanness, cruelty and violence. Considering the death instinct as a guiding line
and that this concept is indispensable to the continuity and the dialectics of the
psychoanalytical theory, we will try to demonstrate that, starting from the alliance
between the death instinct and Eros, its opponent as established by the second theory of
the instincts, we will have different results or products. The considered derivatives
differ from each other according to the proportion and the quality of the fusion of the
instincts: besides the quantity factor, that is to say, how much of each instinct is found
in a specific combination, we will consider the circumstances in which this fusion
happens. The different derivatives will depend on the moment of the development in
which the individual finds himself when the fusion of the instincts is established: this
moment regards the stages of his psychosexual development, the phases of development
of his ego, the fixation points that will determine the regressions, the diverse modalities
of satisfaction and the object-relationships.
Key-words: Death instinct. Fusion of the instincts. Sadism and masochism. Destructive
and aggressive instincts, instinct to master. Meanness, cruelty and violence.
Rio de Janeiro
Agosto de 2006
vii
RÉSUMÉ
LES PULSIONS DE MORT ET SES REJETONS: LES AVATARS DE LA
THÉORIE
Suelena Werneck Pereira
Orientador : Teresa Pinheiro
Résumé da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria
Psicanalítica.
L’objectif de cette thèse c’est d’établir des distinctions métapsychologiques
entre les rejetons des pulsions de mort, à savoir : la pulsion de destruction, la pulsion
d’agression et la pulsion d’emprise. Nous travaillerons aussi avec des situations ou des
états affectifs la présence de la pulsion de mort est incontestée : le sadisme et le
masochisme, outre la méchanceté, la cruauté et la violence. En prenant la pulsion de
mort comme fil conducteur et en considérant que ce concept est indispensable à la
continuité et à la dialectisation de la théorie psychanalytique, nous essaierons de
démontrer que, depuis la liaison entre les pulsions de mort et Eros, son oppositeur selon
la seconde théorie pulsionnelle, nous trouverons des résultats ou des produits différents.
Les rejetons en question diffèrent selon la proportion et la qualité des mélanges
pulsionnels : à la notion de quantité, c’est à dire, de combien de chaque pulsion se
trouve dans une combination terminée, s’ajoute la circonstance dans laquelle cette
intrication survient. Les différents rejetons vont dépendre du moment du développement
où se trouve le sujet quand la fusion des pulsions s’établit : ce moment prend en
considération le stade de son veloppement psychosexuel, le stade de développement
de son moi, les points de fixation qui détermineront les régressions, les différents
modalités de satisfaction et les relation d’objet.
Mots-clé : Pulsion de mort. Intrication des pulsions. Sadisme et masochisme. Pulsions
de destruction, d’agression et d’emprise. Méchanceté, cruauté et violence.
Rio de Janeiro
Agosto de 2006
viii
Para Carolina, Juliana, Isabella e, em breve, João Maurício.
ix
AGRADECIMENTOS:
A todos aqueles que me acompanharam nesses que foram os mais difíceis anos de
minha vida, pelo amor que demonstraram, pela paciência e pela generosidade diante de
meus estados de alma alterados, meu isolamento, minha parca disponibilidade. Marido,
filhos, mãe, amigos.
Àqueles que não estão mais aqui mas cujos exemplos, ensinamentos e dedicação ao
saber e ao trabalho me serviram de condutores éticos. Pai e tio.
Aos netos, pelo simples fato de existirem, o que dota minha vida de novos sentidos.
A Teresa Pinheiro, por me ter aceitado como orientanda por uma segunda vez, já
sabendo o que encontraria, e pela confiança em meu esforço.
Aos analisandos, sempre muito pacientes, que serviram de instrumento para que eu
atualizasse em práticas meus pensamentos, transformasse em ofício o que certamente,
sem eles, não passaria de idéias.
À CAPES, por me ter concedido a bolsa, incentivo e recompensa
x
Habito meu nome, sou de minha língua, não tenho outra
verdadeira pátria a não ser a de minhas idéias e me
reencontro verdadeiramente nas famílias de espírito que
escolhi.
Saint-John Perse, Exil , VI.
xi
SUMÁRIO:
I. Introdução p. 1
II. Morte, pulsão de morte p. 41
III. Sadismo, masoquismo, sadomasoquismo p. 122
IV. Destrutividade, destruição, pulsão de destruição p. 168
V. Domínio, dominação, pulsão de dominação p. 207
VI. Agressividade, agressão, pulsão de agressão p. 239
VII. Crueldade, maldade, violência p. 292
VIII. A guisa de conclusão p. 342
IX. Referências bibliográficas p. 367
I. Introdução
Em nenhum de meus trabalhos tive, como neste, a sensação de expor
coisas mais do que sabidas, gastar papel e tinta, e fazer trabalhar o
tipógrafo e o impressor meramente para referir coisas triviais.
Sigmund Freud, El malestar en la cultura.
Tudo é como deve ser se o que constituiu a pedra do escândalo de
uma teoria está destinado a proporcionar a pedra angular da teoria que
a substitua.
Sigmund Freud, 32ª conferência das Nuevas conferencias
de introducción al psicoanálisis.
A idéia central desse trabalho é tentar estabelecer as diferenças existentes entre
os vários derivados das pulsões de morte: de uma distinção nocional, a ser proposta,
procuraremos chegar a uma diferenciação metapsicológica. Acreditamos que, ao tentar
discriminar aquilo que entendemos como os diversos produtos das mesclas das duas
pulsões antagonistas, conforme a segunda e última teoria pulsional, estaremos não
apenas buscando um rigor teórico como também um suporte mais definido para a
prática de nosso ofício.
Paralelamente a esse objetivo, central, tentaremos acompanhar a evolução do
pensamento freudiano no que diz respeito à produção do conceito de pulsão de morte,
do qual, afinal, derivam os outros conceitos que tentaremos distinguir. Dentro de uma
perspectiva da gênese do conceito, faremos um recenseamento, um rastreamento dos
pontos em que começam a emergir as idéias, fundamentos na criação de noções, até
chegarmos ao conceito propriamente dito, isto é, ao momento em que se estabelece
como ponto de convergência das diversas entradas consideradas. Além do contexto
cultural em que Freud se encontrava inserido, que sempre teremos presente, vamos
considerar o engendramento das idéias, seus momentos de irrupção, através dos
diálogos que o criador da psicanálise foi estabelecendo, sobretudo nos primeiros anos de
sua produção teórica, com aqueles com quem se correspondia, seus pares, seus
interlocutores. Como pudemos observar, nesse diálogo com discípulos e colegas Freud
pôde acolher e depois utilizar algumas idéias muito específicas: lida com elas de modo
peculiar às vezes rejeitando-as inicialmente -, as digere, as integra no conjunto de
outras idéias e noções, produzindo vínculos ‘orgânicos’ entre elas, o que vai lhes dar,
finalmente, o estatuto de um conceito.
2
Algumas noções que depois se tornam conceitos têm seu surgimento através da
palavra de outros; são posteriormente depuradas, modificadas e integradas a uma rede
articulada, dotando a disciplina incipiente de seu caráter de consistência. Muitos dos
conceitos que aparentemente têm uma data para seu surgimento ou produção – como é o
caso específico da pulsão de morte e o ano de 1920 percorreram um longo e árduo
caminho de elaboração, de digestão, de maturação, antes de se apresentarem a público.
Apenas a guisa de exemplo, gostaríamos de citar a ‘pulsão de agressão’. Esta é
apresentada pelo discurso de Adler, em 1908, e não se trata de uma vaga idéia acerca da
agressão ou da agressividade, características passíveis de observação no humano.
Quando Adler fala dessa pulsão, numa reunião científica, o faz de modo específico,
como examinaremos detidamente mais tarde. Certamente, essa postulação de Adler era
discrepante com a teoria como Freud a pretendia e entendia e este a recusa. É somente
através do diálogo que Freud estabelece com seus pares e um trabalho interno de
elaboração que essas palavras, próprias e alheias, são incorporadas ao edifício da teoria,
depois de devidamente adequadas à estrutura geral. As novas idéias são registradas e
assim permanecem aencontrarem ressonância e congruência com outros pensamentos
de Freud que, então, pode trazê-las à luz já como parte de um todo conceitual.
Assim como Freud define a metapsicologia, composta pelos pontos de vista
econômico, dinâmico e tópico, será necessário trabalhar com essas categorias, capazes
de caracterizar uma abordagem metapsicológica de nossa questão. Sabemos que Freud,
dirigindo-se a Fliess, na carta de 10 de março de 1898, lhe pergunta se pode dar à sua
psicologia, que se estende para além da consciência, o nome de metapsicologia
(MASSON, 1986). Segundo Bercherie, o termo metapsicologia foi forjado a partir de
metafísica: “da mesma forma como esta última é um discurso sobre aquilo que, para
além do perceptível, organiza sua ordenação, a metapsicologia pretende ser a teoria
daquilo que se situa para além do consciente e comanda o funcionamento
deste”(BERCHERIE, 1988, p. 17). Como sugere Freud, pela primeira vez utilizando o
termo em sua obra escrita, a ciência deve tentar transformar em psicologia do
inconsciente aquilo que se apresenta na construção de uma realidade supra-sensível: ou
seja, “ousar resolver dessa maneira os mitos (...) e transpor a metafísica em
metapsicologia” (FREUD, 1901/1986, p. 251). Freud também deixa clara sua intenção
de traçar um paralelo entre a metapsicologia e a metafísica ao escolher essa palavra para
3
definir sua teoria: “o conhecimento obscuro (...) de fatores e relações psíquicas do
Inconsciente reflete-se (...) na construção de uma realidade sobrenatural, a qual deverá
ser transformada pela ciência em psicologia do Inconsciente” (ibid, p. 167). Acrescenta
que “poderíamos nos atrever a transcrever os mitos do paraíso e do pecado original, de
Deus, do bem e do mal, da imortalidade e coisas tais, e converter a metafísica em
metapsicologia” (ibid, p. 169).
Inicialmente, a metapsicologia vem substituir, ainda de maneira insatisfatória, o
lugar deixado vago pelo ideal científico inacessível. A compreensão clínica, ou
“psicológica”, o basta para as ambições científicas de Freud e a metapsicologia se
destina a explicar aquilo que está para além da psicologia. Para seguir a construção do
pensamento freudiano não podemos desconhecer seu lugar como sujeito nem o
movimento de seu desejo.
Sabemos como Freud produzia sua teoria e como ele pensava seu método. Logo
no início de seu texto metapsicológico sobre as pulsões, de 1915, encontramos um
verdadeiro manifesto epistemológico, muito esclarecedor. Rebela-se contra a exigência
de que uma ciência deve ser construída sobre conceitos básicos claros e definidos com
precisão e assevera que nem as ciências mais exatas começam com tais definições. “O
começo correto da atividade científica consiste antes em descrever fenômenos que logo
são agrupados, ordenados e inseridos em conexões” (FREUD, 1915a/1986, p. 113).
Considera que não se pode evitar a aplicação ao material coletado de “certas idéias
abstratas recolhidas em outros lugares”, importadas de outros campos do saber, e essas
idéias, que se tornarão os conceitos fundamentais Grundbegriffe - da ciência, têm a
característica de convenções e se tornam, na elaboração ulterior dos materiais, ainda
mais indispensáveis. Freud sempre considerou a teoria como uma ferramenta. (FREUD,
1920/1986, p. 58). A leitura das primeiras atas da Sociedade Psicanalítica de Viena e o
relato que aí encontramos das discussões que se davam no seio dessa sociedade, nos
revelam, de forma muito ilustrativa, seu método de trabalho intelectual, talvez com mais
acuidade que seus livros e ensaios nos permitiram compreender. “Freud combinava uma
observação científica meticulosa com uma fantasia aparentemente sem limites mas
controlada pelo espírito crítico, pela necessidade de sistematizar, de integrar os dados e
os fatos, e de vê-los em suas relações de causalidade”, escreveu Nunberg em seu
prefácio às primeiras atas. (NUNBERG & FEDERN, 1979, p. 21).
4
Gostaríamos, para o bem da clareza acerca de nossa filiação, tomar emprestadas
as palavras de Gilou Garcia Reynoso, quando essa, em uma entrevista, se declara de
enraizamento freudiano: “isso é uma filiação porque me reconheço nascida de um
trabalho com Freud” (REYNOSO, 1991, p. 45). Lembra-nos que o verbo francês
fillier’, além de sua ligação mais óbvia com a palavra ‘filho’, também significa seguir
um fio. O nosso fio é a obra de Freud.
Para que possamos dar um tratamento metapsicológico à nossa questão,
pretendemos utilizar como balizas desse estudo as diversas fases do desenvolvimento
psicossexual, os tipos de escolha de objeto, os diferentes momentos de organização do
eu e de desenvolvimento da libido, as relações objetais, as metas das pulsões em questão
e, se possível, a variação na proporção da mescla pulsional, o que altera
fundamentalmente a meta primordial a ser atingida. O que temos é uma gama de
possibilidades dos derivados das pulsões de morte, muito próximos e intrincados uns
com os outros mas passíveis de sutis diferenciações. Conforme nos diz Freud,
“de que maneira setores das duas variedades pulsionais se conjugam entre si
para a execução das diversas funções vitais; sob que condições tais reuniões se
tornam menores ou se decompõem; que perturbações correspondem a essas
alterações, e com que sensações responde a elas a escala perceptiva do
princípio de prazer: esclarecer tudo isso seria a tarefa mais lucrativa da
investigação psicológica” (FREUD, 1937a/1986, p. 245).
A justificação da utilidade desta tese segue os ditames do próprio Freud que, em
O Mal-estar na cultura, de 1930, estabelece, em prol de uma maior clareza
terminológica, a diferença que existe entre supereu, consciência moral, sentimento de
culpa, necessidade de castigo, arrependimento. “Pode não ser muito importante mas
talvez não resulte supérfluo elucidar o significado de alguns termos (...), termos que
talvez tenhamos usado amiúde de uma maneira excessivamente frouxa, intercambiando-
os” (FREUD, 1930/1986, p. 132). Cabe à teoria tentar estabelecer as distinções. A base
da investigação será constituída pelos textos freudianos e alguns comentários críticos de
outros autores, fundamentados nos próprios textos de Freud.
Este trabalho, apesar de usar bastante a cronologia, não deve ser considerado
como uma apresentação cronológica; trata-se, melhor, de um esquema de
engendramento das idéias, de certa maneira genético, genealógico. Em princípio,
questiona como de uma idéia, e passando-se por uma noção, se chega a um conceito;
investiga o caminho, a passagem que leva de uma noção a uma categoria conceitual.
5
Procuraremos seguir a orientação do pensamento freudiano; o próprio fundador da
psicanálise via sua teorização como uma progressão contínua, mais ou menos linear.
Testemunho desse aspecto são as Conferências de introdução à psicanálise, de 1916-
17, e as Novas conferências, de 1933, com numeração seqüencial, o que aponta para um
sentido de continuidade dado pelo autor. Entretanto, pensamos que, ao longo de sua
teoria, Freud criou e apresentou modelos conceitualmente bastante distantes uns dos
outros, por vezes até mesmo contraditórios. A produção do conceito de pulsão de morte,
verdadeiro divisor de águas da metapsicologia, é um exemplo da maior dessas guinadas
teóricas, que mudou inteiramente a inflexão da psicanálise. De forma sintética,
poderíamos considerar que, no desenvolvimento do pensamento freudiano, encontram-
se dois grandes modelos metapsicológicos, que são a primeira e a segunda tópicas.
Examinaremos, adiante, a subdivisão desses dois modelos em dois “vértices”
heterogêneos cada um, constituindo-se, assim, quatro modelos principais na obra de
Freud (BERCHERIE, 1988). O conceito de pulsão de morte, por ser de difícil
sustentação e de caráter eminentemente especulativo, acaba por ser apropriado de
maneiras distintas pelos pensadores das diferentes escolas, naquilo que mais lhes
interessa.
Apesar deste ser um trabalho eminentemente conceitual, sua inspiração veio da
clínica. Mais precisamente das dificuldades em compreender e, conseqüentemente,
manejar uma situação transferencial particularmente delicada. A transferência que se
apresentava fugia do padrão das transferências hostis ou negativas. O surpreendente da
situação era o teor da hostilidade, da agressividade, que excedia, em muito, aquilo que
habitualmente se apresenta. Não se tratava de uma agressividade dirigida ao objeto, com
a cautela de manter o vínculo como tal, objetal; o que se jogava ali era algo muito mais
radical, mais da ordem de um movimento de destruição que de agressão. O intuito do
analisando não era agredir o analista nem tampouco dominá-lo ou humilhá-lo; o embate
era mortal, o que era visado era, imaginariamente, o aniquilamento daquele outro que
teimava em dizer coisas que provavelmente estavam longe de ‘interpretar’o que estava
se passando. O sentimento em questão era mortífero e tinha a capacidade de, ao
paralisar o profissional, fazê-lo ‘desaparecer’. O analista, não compreendendo
efetivamente o que se passava, viu-se ocupando, de maneira contundente, o lugar do
morto. A simples presença do outro, transferencialmente representado pelo analista,
6
ameaçava aquele sujeito de aniquilamento; o analista, por sua vez, encontrou-se tolhido,
completamente sem ação.
Tratava-se, portanto, de uma luta de vida ou morte, em nada semelhante a outros
movimentos típicos da transferência negativa como o sadismo, as tentativas de controle,
a sabotagem, a agressão e a desqualificação do saber do profissional. Diante do inédito
da vivência e da incompetência em compreender de onde aquele sujeito falava, a saída
foi procurar na teoria algo que fundamentasse e instrumentalizasse aquela prática. O
caminho foi procurar uma resposta metapsicológica nos textos voltados para a
negatividade dos sentimentos, transferenciais ou não, sobretudo aqueles do ódio e da
destrutividade; estes textos foram, essencialmente, aqueles posteriores à postulação do
conceito de pulsão de morte, sobretudo o de 1930 sobre o mal-estar na cultura. Ali
foram encontrados subsídios para a inteligibilidade e para o manejo clínico. E mais:
uma pista para as diferentes configurações que assumiam os derivados das pulsões de
morte, produtos psíquicos em que a meta era ditada por estas.
Ficara claro que a transferência em questão pertencia a um quadro
psicopatológico específico, bem mais rudimentar e desorganizado do que os das
neuroses. O paciente escapava de uma classificação neurótica clássica e nos dava claros
indícios de seus precários arranjos psíquicos. Sua composição anímica baseava-se em
condutas compulsivas, em adições, em vínculos onde imperava a oralidade, em um
constante refazer-se que, se ausente, apontava para uma perigosa ameaça de
desestruturação e muita, muita agressividade. À medida que o tratamento progredia,
agora de forma mais produtiva que o analista conseguira discernir o que se passava,
as outras modalidades transferenciais começaram a aparecer, substituindo a mais
perigosa e arcaica. Desse modo, ficou patente que as transferências negativas são
diversas e provêm de mesclas pulsionais também distintas. E os derivados das pulsões
de morte que imperam nesses diferentes modos também merecem ser discernidos, para
o benefício tanto da compreensão teórica quanto da prática clínica. A singeleza, a
simplicidade da prática clínica só se atinge quando se domina a teoria.
Ao pesquisarmos o uso das expressões por Freud, verificamos que ele por vezes
parece fazer uma distinção entre termos como pulsões de agressão e pulsões de
destruição, para logo depois tratá-los como sinônimos; em alguns textos, substitui o
conceito de pulsão de morte pelo de pulsão de destruição, nomeando esta última como
7
uma das duas pulsões primordiais. Da mesma forma, usa outras palavras para expressar
características e sentimentos humanos que pertencem ao mesmo campo de significação,
como violência, crueldade, maldade, hostilidade, vingança, ódio, agressão e destruição
sem apontar, de forma precisa, para as sutis diferenças que pensamos existirem entre
elas. Pretendemos trabalhar em cima das fraturas de seu texto. Tomando como sugestão
uma observação do próprio Freud, no texto O estranho, em que aponta para o fato de a
estética ser, além de uma ciência do belo, uma doutrina das qualidades de nosso sentir
(FREUD, 1919a/1986), gostaríamos de buscar as especificidades desses afetos e
condutas do homem. A partir do aparelho nocional da psicanálise e de uma permanente
análise da doutrina freudiana original pretendemos distinguir os termos usados por seu
fundador visando não apenas uma clareza metapsicológica como melhores condições
para a prática do ofício de psicanalisar. Especial atenção será dada aos aspectos
etimológicos dos termos e expressões em português, assim como serão consideradas as
características semânticas das palavras em alemão.
Para dar conta desse objetivo e, ao mesmo tempo, dar continuidade à pesquisa
realizada em nossa dissertação de mestrado intitulada “Pulsões e origens de pulsão: a
pré-história de um conceito”, levando adiante o tema da teoria pulsional analisada por
um prisma histórico e arqueológico, tomaremos a hipótese de que um conceito é
produzido porque se faz necessário, porque pressiona no sentido de exigir sua
postulação para que o todo da teoria possa prosseguir. De acordo com Pontalis
(PONTALIS, 2005), um conceito se produz porque uma exigência do pensamento,
uma necessidade teórica. E como nos diz Laplanche, em psicanálise, “o pensamento é o
movimento da própria coisa” (LAPLANCHE, 1978, p. 90).
Além disso, consideramos que sua produção é determinada pela articulação de
três dimensões, a saber, a matriz clínica, o contexto cultural e, no caso de Freud, por ter
sido ele o criador da disciplina, sua auto-análise. Este é um modelo proposto por Mezan
para a construção de uma história da psicanálise que fuja das esquemáticas
historiografias já conhecidas (MEZAN, 1988). Na dissertação de mestrado, a idéia foi a
de utilizar seu pressuposto metodológico a fim de fazer a história da elaboração do
conceito de pulsão. Nesse trabalho, tentaremos usar as mesmas premissas para
mergulhar naquilo que o próprio Freud chamou de o “caráter demoníaco” do psiquismo
humano (FREUD, 1920/1986, p. 78), seus contornos mais sombrios, seu aspecto mais
8
“negativo” ou pessimista: as forças responsáveis pela impermanência, pelo inacessível,
pela parte selada da alma humana. Eros estará aqui como coadjuvante, coadjuvante de
um eu desguarnecido, que perde o controle de seus contornos, necessitando de ‘cola’, de
‘liga’, para se reorganizar. A impermanência de que falamos é tanto do eu quanto do
sujeito, resultado de pulsões de morte soltas, momentaneamente não-ligadas.
Além do pressuposto metodológico a que nos referimos acima, levaremos
também em conta as postulações de Bercherie acerca da existência, na obra de Freud, de
quatro modelos metapsicológicos, bastante contraditórios. Segundo esse autor, as
contradições, as ambigüidades e as dificuldades do texto freudiano, particularmente no
nível da teoria, repousam essencialmente nesse fato. O campo psicanalítico, em sua
heterogeneidade, pode ser mais bem entendido se levarmos em conta seus diferentes
dispositivos técnicos e matrizes clínicas, ambos às vezes um pouco ocultos para nós, o
que nos permitiria perceber a verdadeira dialética da estruturação tanto do saber clínico
quanto da própria metapsicologia. Concepções ainda sem contornos definidos
determinam a própria emergência dos materiais empíricos. Bercherie aponta para o
estatuto instrumental e para o caráter sempre provisório do registro metapsicológico, em
constante refundação, ajuste e afrouxamento.
A dissertação de mestrado partiu do aspecto cultural, examinando Freud como
pertencendo a uma filiação específica, a da ciência dos países de língua alemã na virada
do século XIX. Como sabemos, o terreno científico em que Freud pisava era o de
disciplinas positivistas, empíricas, associacionistas. O fisicalismo imperava em seu
ambiente científico. À rigidez dessa postura, acrescentou-se a filosofia da natureza,
como um fator amenizador. Verificamos também que a leitura de textos de filosofia e a
influência de Brentano fizeram com que sua postura não fosse a de um empirista cego.
Freud aproximou-se do que se costuma chamar de neokantismo dos cientistas. Seu
pertencimento a esta clara linha de pensamento justifica sua adesão a um firme
dualismo e sua explicação do conflito psíquico, da dinâmica anímica, através da idéia de
uma oposição de forças. Ao longo de sua teorização Freud busca os elementos para
compor esse quadro; a elaboração de sua segunda teoria pulsional, eixo principal deste
trabalho, é a que mais se aproxima da postura fisicalista em que o universo é explicado
pela oposição das duas forças fundamentais: a atração die Anziehung e a repulsão
die Abstossung. Essa idéia se explicita com clareza em seu texto A negação, de 1925.
9
O segundo fator examinado foi a matriz clínica de Freud, isto é, a configuração
psicopatológica principal do grupo inicial de seus clientes. Constatamos que, nesses
primeiros momentos, o grosso de sua clientela, sendo ele um jovem neurologista, se
compunha de pessoas com sintomas que aparentemente pertenciam às afecções
neurológicas. Ao atender pacientes com sintomas que se expressavam no corpo, Freud
não pôde fazer a menos do que incluir esse corpo nas considerações teóricas que
lidavam com as representações fora do âmbito da consciência e suas cargas energéticas
excessivas e móveis. Ao examinar pacientes sem sinais de lesão anatômica que
justificasse seus sofrimentos, e tendo aprendido com Charcot que isso era possível,
Freud viu-se diante de uma patologia cuja nese era provavelmente psíquica - ou
“mental”, ou “dos nervos” - mas cujos efeitos implicavam esses corpos excitados e
marcados, essa curiosa cartografia desejante, que se expressava por outros meios que
não apenas as representações. Mais do que nunca se apresentou a Freud o problema de
tentar explicar a força que movimentava as representações e as defesas, mola mestra da
dinâmica incipiente por ele postulada. As histéricas foram o campo de investigação
adequado às considerações de um “extra-representação”, de algo além do psíquico
propriamente dito. Seus sintomas vinham a calhar: se havia um problema da separação
dos campos psíquico e sico, ao qual os fisicalistas e a medicina em geral pretendiam
responder reduzindo os fatos psíquicos a meros epifenômenos do físico e do fisiológico,
agora urgia compreender de que maneira esses dois registros heterogêneos se
comunicavam para a produção de tais sintomas. A pulsão, postulada como uma
“entidade” que pertencia aos dois territórios, demarcando-os, delimitando-os, se
transformava em imprescindível instrumento de teorização. Essa matriz clínica será
substituída por outras, que examinaremos a partir da elaboração do conceito de
narcisismo, processo de afastamento da matriz histérica que culminará com o advento
do conceito de pulsão de morte. Nesse momento, em que o eixo principal é a pulsão de
morte, a matriz clínica se define a partir da melancolia e da neurose obsessiva. Em
ambas as afecções o que está em jogo são os aspectos sádicos, destrutivos e agressivos,
e toda a luta defensiva do eu para fazer frente à fúria destrutiva que se abate sobre ele.
A terceira categoria considerada, ainda segundo a proposta de Mezan, foi a auto-
análise de Freud, que lhe permitiu descobrir, em si mesmo, os desejos ligados à
sexualidade infantil e ao Édipo, fugindo, como sempre ele procurou fazer, da pecha de
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utilizar dados da psicopatologia para tentar explicar o funcionamento normal” da alma
humana. Dessa forma, tomando a si mesmo como objeto de investigação, Freud sentiu-
se à vontade de propor determinados conceitos-chave à continuação da teoria. A
descoberta da sexualidade infantil era o que lhe faltava para postular a especificidade da
sexualidade do homem e seu fundamento, a pulsão. Isso acontece no texto de 1905, Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, 1905a/1986).
A utilização dessas três categorias de alise demonstrou ser satisfatória à meta
da dissertação. Entretanto, mal esboçara o conceito, que receberia de Freud um
tratamento metapsicológico somente dez anos mais tarde. E havia a grande questão de
toda a teoria pulsional: a mudança radical que se apresenta no texto de 1920, Além do
princípio de prazer. A cada releitura do texto freudiano, surgiam novos modos de
compreender os desvãos, as entrelinhas, que já anunciavam a mudança de inflexão.
Além do pressuposto metodológico a que nos referimos acima, levaremos
também em conta as postulações de Bercherie acerca da existência, na obra de Freud, de
quatro modelos metapsicológicos bastante diferentes. Esse autor enfatiza o fato de “a
bruxa” metapsicologia conforme palavras do próprio Freud em Análise terminável e
interminável, de 1937, tomadas de empréstimo ao Fausto, de Goethe (p. 228) - não
poder e não dever se tornar um fetiche do ofício do psicanalista mas sim uma
ferramenta, um instrumento, uma alavanca para que se abram novas perspectivas. “A
teoria que se rigidifica engessa a prática não permitindo a esta o movimento em espiral,
a espiral do saber” (BERCHERIE, op.cit., p. 32). Conforme este viés de análise, a teoria
deve constituir tanto uma bua de orientação para a prática quanto um quadro de
integração para os materiais que dela provêm.
Freud, mesmo especulando muito em Totem e tabu, de 1912, a hipótese usada
parece bem fantasiosa e em Além do princípio de prazer, de 1920, a especulação vai
bem longe, para mencionar dois exemplos -, se mantém fiel aos rigorosos ideais de
sobriedade e humildade teóricas, de reverência à observação empírica própria das
ciências da natureza, a uma dimensão histórica e arqueológica da produção científica. A
presença, em seus textos, de uma dimensão neolamarckista, por exemplo, não apenas
atesta sua filiação como lhe permite um nível maior de fantasmatização teórica. Aquilo
que pode parecer uma flutuação conceitual não anula sua adesão a determinados
princípios. A produção do conceito de pulsão de morte é uma testemunha disso: nesse
11
movimento podemos destacar uma postura em que o esforço especulativo início,
mantém e conclui os passos da pesquisa, formula e integra à teoria intuições clínicas
essenciais, possivelmente inacessíveis por outras vias de investigação. Ainda segundo o
pensamento de Bercherie, “o estatuto do conceito, na obra de Freud, percebido em sua
heterogeneidade e sua justaposição, é o de uma ferramenta, tanto mais precioso se abre
o acesso ao real” (op. cit., p. 33).
O autor considera a existência de quatro modelos na teoria freudiana; são eles o
modelo histérico, o narcísico-psicótico, o melancólico e o obsessivo. Antes mesmo do
primeiro modelo, propõe que pensemos um momento zero da teorização: guiado por
princípios doutrinários tomados ao ramo alemão do positivismo psicológico, cujos
paradigmas seguiam o psicofisiologismo, a teoria do campo e do umbral da consciência,
o ideal fisicalista da quantificação e da mensuração, a neurofisiologia cerebral, para
mencionar apenas alguns, Freud produz o texto conhecido como Projeto, em 1895. O
abandono do paralelismo neuropsicológico abrirá o caminho para o registro
metapsicológico propriamente dito.
O primeiro modelo, o histérico, se constitui entre 1895 e 1900 e seu texto
principal é o capítulo VII de A interpretação de sonhos; esse primeiro momento se
completa com os Três ensaios, de 1905, no qual o abandono da sedução como teoria de
causação patogênica exclusiva à teorização sua especificidade metapsicológica. Suas
características fundamentais seriam a idéia de um “lugar psíquico”, a identidade
fundamental entre processos normais e patológicos, o conceito de um recalque
originário e a afirmação de que as formações sintomáticas são “realizações de desejos
inconscientes”. Aponta o autor que ainda são mantidas as referências associacionistas,
com seus aspectos utilitários e psicofisiológicos, assim como as referências
evolucionistas. Como expressão dessas referências temos, no primeiro caso, a
postulação dos dois regimes de funcionamento do psiquismo, o primário e o secundário,
com o eu, ligado ao último, surgindo como instância de adaptação ao real, ditando a
dilação da descarga, a elaboração consciente da experiência e a consideração das
exigências da realidade. A consciência é o eixo do sistema do eu e é concebida como
um “órgão dos sentidos” que permite perceber as qualidades psíquicas (FREUD,
1900/1986, p. 593), tese que se filia à tradição herbartiana.
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Dentro do esquema evolucionista, constata-se a identificação do primário
(função) com o precoce (ontogênese) e com o primitivo (filogênese), em oposição à
identificação do secundário com o adulto e o civilizado. Essas identificações serão
mantidas por Freud até o final de sua obra. Apontam-se como conceitos nodais desse
modelo o Inconsciente, o recalque, o processo primário e a teoria difásica da
sexualidade. Seus referentes clínicos fundamentais são o sonho e a histeria, com sua
“língua fundamental”, tronco comum de todas as psiconeuroses (BERCHERIE, op. cit.,
p. 40-41). A noção de originário ocupa o lugar de causa última, antes posta na conta da
sedução. A direção da cura é dada pela tomada de consciência e pela passagem do
recalcado ao controle mais evoluído do processo psíquico secundário. Essa é uma
concepção de tonalidade racionalista e pedagógica e fala de um Freud ainda imerso no
modelo catártico e na ligação básica entre lembrança e sintoma. O estatuto da
transferência se reduziria ao de um artefato da rememoração: uma falsa conexão que
ligaria a lembrança inconsciente à figura do analista. O “caso Dora” representaria o
protótipo da prática e do pensamento freudiano nesse período.
Dentro do quadro da histeria, escreve Freud que “o sucesso do recalque na
histeria de conversão é sempre completo, desde o começo, conquanto seja alcançado
graças à intensa formação de substitutos” (FREUD, 1915/1984, p. 66). E que a histeria
de conversão orienta-se contra o primado dos genitais (ibid, p. 73). Desse modo, a
questão da regressão é aqui menos notável do que em outras afecções neuróticas.
O segundo modelo, o narcísico-psicótico, teria resultado de um remanejamento
teórico provocado pelas discordâncias entre Freud e Jung. nos casos clínicos
conhecidos como o pequeno Hans” e “o homem dos ratos”, ambos publicados em
1909, constata-se como que um ultrapassamento do primeiro modelo; a influência de
Jung leva Freud ao pensamento de Bleuler e de Janet e às discussões sobre as psicoses.
Conforme correspondência trocada entre os dois, constatamos a preocupação de ambos
com o auto-erotismo e a demência precoce. Jung dirige diversas perguntas a Freud que,
por sua vez, diz que “só a poucas” pode responder (McGUIRE, 1976, p. 81), e o avisa
de que Bleuler cada vez mais se inclina ao auto-erotismo, mas em teoria.” Em
“Algumas observações teóricas sobre a paranóia”, textos escritos e enviados a Jung
entre 14 e 20 de abril de 1907, Freud discorre sobre suas descobertas acerca do eu
paranóide e sobre a retirada da libido do objeto (ibid, p. 80).
13
Estamos à beira de uma grande reviravolta metapsicológica. Confirmando o
valor dado à experiência clínica, verdadeira determinação em última instância da teoria,
escreve Freud a Jung que “nada posso fazer sem o impacto direto do material e sei
perfeitamente que três análises pormenorizadas sempre nos ensinam mais que tudo o
que se consegue alinhavar sobre uma mesa de trabalho” (ibid, p. 82). O texto de 1911
sobre os dois princípios do funcionamento anímico introduz metapsicologicamente o
segundo modelo e o estudo do caso Schreber entabula a construção do conceito de
narcisismo; a introversão patogênica da libido e a fuga para a doença são encaradas
como a essência fundamental do fenômeno (FREUD, 1911/1986). O que estrutura esse
modelo é a oposição dos dois registros do funcionamento subjetivo, que Freud começa a
identificar com os dois processos do primeiro modelo. Assim, temos duas séries: aquela
que agrupa o Inconsciente, o processo psíquico primário e o princípio de prazer e a que
compreende o eu, o processo psíquico secundário e o princípio de realidade.
Nesse momento, atenua-se a concepção anterior, elementarista, a que aliou o
aparelho psíquico a um regime de funcionamento privilegiadamente primário,
mecânico, automático. As pulsões do eu, muito mais submetidas ao fator da
necessidade, percorrem, na ontogênese, uma estrada que faz o eu-prazer-inicial
transformar-se em eu-realidade. A transferência assume finalmente uma posição central,
relegando a um segundo plano o velho modelo catártico que até então demonstrara sua
força e pregnância. O eixo essencial da direção da cura é o que representa a atualização
transferencial da organização neurótica como o reinvestimento libidinal regressivo das
formações fantasmáticas inconscientes, o instrumento e a alavanca para a desconstrução
analítica da neurose. O processo psicanalítico adquire sua especificidade em relação
às diferentes psicoterapias: é o único a devolver a potência do vínculo transferencial a
ele mesmo (BERCHERIE, op. cit., p. 47).
Os conceitos nodais desse segundo modelo são o narcisismo primário, a noção
de onipotência e a polaridade autoplastia/aloplastia. Com o termo aloplastia o autor
designa a adaptação ao real concebida como uma tensão na ão, como uma atividade
inventiva. Ao contrário, autoplastia se refere a um dobrar-se patogenicamente a um
universo interior fantasmático e alucinatório, regido pela realização onipotente do
desejo. O referente clínico fundamental é o campo da psicose. “A demência precoce e a
paranóia nos darão acesso à compreensão da psicologia do eu” (FREUD, 1914a/1986,
14
p. 78). Este modelo seria o único modelo freudiano a fazer da diferença entre normal e
patológico uma oposição qualitativa entre saúde e doença. Apesar de prenunciar a
elaboração do conceito de cisão do eu e, conseqüentemente, a do fetichismo e da
coexistência de duas posições relativas à castração – o que se insinuava no texto sobre o
“homem dos lobos”, publicado em 1918, sem que Freud o tivesse enunciado com
clareza -, o que permitiu a compreensão das perversões e dos estados-limite, esse
modelo é, de todos, o menos elaborado. Seu conceito central, o narcisismo primário,
como dissemos, embora essencial à dialetização de toda a teoria por vir, esbarra na
insuficiência clínica de Freud no campo das psicoses e estados assemelhados.
Bercherie postula que a matriz comum indiferenciada de onde partem os dois
últimos modelos da conceituação metapsicológica, que veremos a seguir, é o quarto
ensaio de Totem e tabu, de 1912/13. Ali, Freud demonstra estar filiado à antropologia
evolucionista, corrente de pensamento dominada pelo darwinismo, por sua identificação
do arcaico (da pré-história da espécie) com o primitivo (das tribos) e com o precoce (da
infância), através da idéia da recapitulação da filogênese pela ontogênese e pela
dominância da dimensão do originário, presente no segundo modelo. Diz o autor que
os dois modelos que se seguem são de ordem genética. Freud pretenderia integrar à
teoria a passagem ao primeiro plano da clínica do complexo de Édipo, como complexo
nuclear das neuroses, e a questão da ambivalência, diretamente ligada ao tema do
complexo paterno.
O terceiro modelo proposto é o melancólico o qual, juntamente com o quarto, o
obsessivo, diz respeito diretamente ao interesse central dessa tese. O modelo
melancólico teria sua origem na integração da ambivalência ao longo do luto, através da
interiorização dos desejos do objeto perdido. O reconhecimento no conceito de
narcisismo da existência precoce de uma escolha de objeto libidinal abre o caminho
para uma profunda revisão da teoria da libido. Deparamo-nos com uma seqüência de
organizações sexuais infantis cuja conceituação será organizada a partir, novamente, de
uma referência darwiniana: a organização narcísica será ligada à organização oral do
desenvolvimento libidinal e será sucedida pelo estágio sádico-anal. A este se seguirá um
estágio fálico, cuja teoria será desenvolvida em 1923, no artigo sobre a organização
genital infantil, mas que já corresponde, aqui, à organização edípica.
15
O terceiro modelo começa a se constituir nos textos metapsicológicos de 1915,
mais precisamente na segunda parte de Pulsões e destinos de pulsão: refere a questão da
ambivalência à subjetividade como uma globalidade a idéia de Selbst e propõe uma
análise genética. Ao mesmo tempo, se desenha uma história do desenvolvimento da
relação de objeto, isto é, dos “estágios preliminares do amor” (ibid, p. 54). Às fases do
desenvolvimento, juntam-se os tipos de relação de objeto: primeiro temos o incorporar
ou devorar, tipo de amor compatível com a supressão da existência do objeto em sua
individualidade, ambivalente. A meta dessa relação seria, portanto, a destruição do
objeto. A seguir, relativa à organização sádico-anal, constata-se a existência de um
impulso à dominação; aqui, estragar ou destruir o objeto não está propriamente em jogo.
O afeto dirigido ao objeto, entretanto, é quase o mesmo que o ódio. Depois, a
organização genital onde, finalmente, encontra-se a oposição entre amor e ódio. Opera-
se uma verdadeira desintricação entre amor e ódio.
Este terceiro modelo termina com os textos Além do princípio do prazer e O eu
e o isso, segundo grande esforço de imaginação teórica da obra freudiana. Em Além do
princípio de prazer, deparamo-nos com a fascinação, da juventude de Freud, por Goethe
e pelo panteísmo da filosofia da natureza. Acerta as contas com Adler, que propunha a
existência de uma pulsão agressiva autônoma, e com Jung, que lutava pela assimilação
das pulsões sexuais e das de autoconservação ao mesmo grupo. Encontram-se
imagens fortemente vitalistas, como a da vesícula indiferenciada de substância
excitável. O conceito de introjeção/identificação é a peça essencial desse processo
genético: o mais importante dos processos introjetivos é o que resulta no supereu. A
dialética do modelo é atravessada pela luta entre as duas grandes pulsões, Eros e pulsão
de morte, nada muito diferente do embate travado entre amor e ódio. Assume um lugar
proeminente o conceito de ligação: dos sonhos das neuroses traumáticas à dominação da
pulsão de morte, grande batalha subterrânea do psiquismo. Os conceitos nucleares desse
terceiro modelo são a pulsão de morte, o processo de ligação, os mecanismos
introjetivos e a instância ideal do supereu. A referência clínica fundamental é a
melancolia como patologia do luto, única ocorrência clínica em que se manifesta
abertamente a pulsão de morte, ademais sempre silenciosa.
Se nas três neuroses de transferência a orientação é “contra o pleno
desenvolvimento da libido”, nas neuroses narcísicas observa-se um retrocesso às fases
16
anteriores ao encontro do objeto: “a demência precoce regride até o auto-erotismo, a
paranóia aa escolha homossexual e narcisista de objeto, e a melancolia se baseia na
identificação narcísica com o objeto” (FREUD, 1915/1984, p. 73).
Nesse momento, o conceito de narcisismo aponta para uma modalidade de
organização do eu e da relação objetal e não mais, como foi o caso no segundo modelo,
a um estado de dobra autística: do autismo alucinatório à onipotência, clinicamente do
referente psicótico ao referente maníaco (ibid, p. 58). Compulsão à repetição e pulsão de
morte tentam dar conta da negatividade na dinâmica psíquica: inércia, repetição,
necessidade de castigo, masoquismo moral, reação terapêutica negativa, viscosidade
neurótica. Juntam-se à ambivalência e ao ódio, assim como ao sadomasoquismo, nos
conceitos metapsicológicos que, pela primeira vez, integram o “caráter demoníaco” do
psiquismo humano, de que falamos acima. Trata-se agora do fracasso da cura e da
impotência do analista. Dentro desse mesmo prisma, o terceiro modelo veicula uma
visão dramática de mundo, uma Weltanshauung catastrofista (BERCHERIE, op. cit.,
p. 59).
Em 1925, o artigo Inibição, sintoma e angústia muda o tom e inaugura o quarto
e último modelo proposto, o obsessivo. Do mesmo modo que o anterior, parte do último
ensaio de Totem e tabu e, retomando a segunda tópica, como estruturada no terceiro
modelo, nos apresenta uma imagem bastante diferente. A divisão e fraqueza do eu são
decorrência patológica do conflito neurótico e não sua condição única de existência.
Normalmente, a organização subjetiva funciona como um todo, do qual o eu representa
a parte mais organizada. Há uma compulsão à síntese e à adaptação. O eu é protagonista
de um constante esforço de mediação entre a realidade objetal e as moções pulsionais do
isso.
O eixo desse modelo é a completa reformulação da teoria da angústia; a angústia
surge como um sinal de perigo, uma ferramenta a serviço do eu, propiciadora de uma
ação de controle sobre os desenvolvimentos pulsionais ameaçadores à estrutura do eu e
que provêm do isso. Freud retoma o velho conceito de defesa, principal atividade do eu
em sua estratégia de adaptação. Apresenta uma nova tipologia das modalidades
defensivas, cada neurose com sua forma e mecanismo defensivo singular. Há um
retorno a um certo anacronismo no processo patogênico: suas origens encontram-se no
desamparo e na imaturidade originários, acentua-se o fato de sua dependência aos
17
objetos primordiais, o complexo de Édipo e a angústia de castração tomam a frente da
cena e são peças fundamentais na constituição do supereu.
Novamente trilhando o evolucionismo, Freud apresenta a neurose como sendo
fruto da prematuração da criança, origem de sua vulnerabilidade diante das fixações
evolutivas. um remanejamento da teoria da cura, agora centrada no reforço do eu:
fala-se de aliança terapêutica, de pacto de trabalho. A força motora do tratamento
continua sendo a transferência mas o eu, antes débil servidor de três amos, se fortalece.
O processo neurótico passa a depender de uma incompetência do eu, fixado em modos
de reação inadaptados e fora de uso. O analista assume postura levemente diretiva; no
que o analisando resiste, vemos ressurgir peças dos outros modelos: narcisismo, pulsão
de morte, compulsão à repetição, disposições constitucionais, os limites da análise. Os
conceitos nucleares passam a ser a adaptação à realidade e os mecanismos de defesa do
eu. O elemento essencial desse último modelo se torna a parte inconsciente dos
mecanismos de defesa do eu, o que suplanta o papel central que detinha o sistema
inconsciente propriamente dito. O modelo reduz o isso a um magma de moções
pulsionais ávidos por descarga. O referente clínico é a neurose obsessiva (ibid, p. 60-
61). Esta, segundo Freud, “orienta-se contra a fase anterior sádica” (FREUD,
1915/1984, p. 73) e combater a agressividade e o sadismo são seus principais motivos
de defesa. Acrescenta que “na neurose obsessiva, o fator constitucional é mais
claramente identificado que o fator acidental na histeria de conversão” (ibid, p. 71).
Pensamos que os dois pressupostos apresentados, o de Mezan, baseado na noção
de sobredeterminação dos fatos psíquicos, e o de Bercherie, mais complexo e
genealógico, não são excludentes; ao contrário, se completam e nos servem de
parâmetro à nossa análise tanto da produção do conceito de pulsão de morte quanto da
determinação da distinção entre seus derivados. Recorreremos a eles sempre que
possível fazendo deles nossas ferramentas de conceituação. A guisa de síntese,
entendemos que esses quatro modelos se centram, respectivamente, segundo o papel
nuclear dos conceitos e a ênfase dada na construção metapsicológica, no Inconsciente,
na realidade, no supereu e finalmente no eu. Assim, o modelo histérico seria o da
descoberta e teorização do sistema Inconsciente como âmago do aparelho psíquico; o
modelo narcísico-psicótico, aquele que trata das relações do sujeito com a realidade,
ignorada ou desconsiderada no fenômeno psicótico; o melancólico, o da constatação,
18
constituição e pregnância do supereu, sempre cruel, sempre severo; e o obsessivo, onde
o foco recai no eu, o qual se torna, assim, o protagonista dos textos finais da obra
freudiana. Junto a esse deslocamento conceitual, encontramos diferentes abordagens
clínicas e correspondentes compreensões da transferência e do papel do analista no
desempenho de seu ofício. Voltaremos a isso adiante.
Tal como Freud, para pensarmos em pulsão de morte devemos partir do conceito
fundamental de pulsão sexual. Tentaremos acompanhar a elaboração de seu
pensamento, um pensamento em movimento, irremediavelmente inacabado. Conforme
sugestão de Pontalis, o se trata de dogmatizar a obra freudiana mas sim de jogar com
ela, provocá-la, espicaçá-la, fazê-la trabalhar (FROCHTENGARTEN, 2005). Este será
um trabalho não de exegese como de análise do texto freudiano, naquilo que diz
respeito à elaboração do conceito de pulsão de morte e à distinção entre seus derivados.
Como sabemos, a pulsão de morte tem gerado leituras muito diferentes e que acabaram
por desembocar em caminhos teóricos também contrastantes. Como nos diz Martins,
uma leitura é sempre uma releitura, uma recriação, a partir de pontos de vista
culturalmente diversos (MARTINS, 2002).
Como sabemos, o conceito de pulsão surgiu no contexto da sexualidade humana
e foi apresentado de forma sistemática nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.
O termo Trieb foi escolhido para designar o que finalmente se tornaria seu conceito
fundamental. Verificamos, aqui como em outros momentos da teorização freudiana, o
uso de uma palavra comum, do vernáculo, para dar corpo a uma idéia; à diferença de
Instinkt, que Freud reservou para uma noção muito específica acerca do comportamento
animal e que aparece em seu texto três ou quatro vezes, apenas, Trieb é uma palavra
antiga, de origem germânica, enquanto que Instinkt é uma palavra de origem latina. As
duas palavras têm um significado bastante semelhante mas quando Freud escolhe uma,
e não a outra, para nomear seu conceito, é justamente na diferença entre os dois termos
que ele se baseia para postular seu conceito e para separá-lo do sentido comum que
revestia as noções acerca da sexualidade do homem. Segundo Anzieu (ANZIEU, 1984),
Freud, ao usar este termo corrente da língua alemã, quis designar uma realidade
econômica: a carga energética, um componente tópico limite entre a necessidade
biológica e o desejo psíquico, e um processo dinâmico, que visa encontrar, na descarga
motora ou seus equivalentes, uma satisfação.
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Consideremos como definição inicial aquela que diz que
“uma pulsão é um processo dinâmico que consiste numa pressão ou força, que
faz tender o organismo para um alvo; (...) tem sua fonte numa excitação
corporal, que é um estado de tensão, o seu alvo é suprimir o estado de tensão
que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode
atingir o seu alvo” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1970).
Ou, como escreve Dorey (DOREY, 1984), comentando uma postulação feita por
Freud, a pulsão é uma espécie de delegação enviada pelo somático ao psiquismo, ação
de uma força surgida no corpo que se exprime como exigência de trabalho imposta ao
aparelho psíquico. Entidade intermediária entre o psíquico e o somático, conceito-
limite, ser-limite? Pode um realismo da pulsão ainda ser mantido? Pulsão ou conceito de
pulsão?
A pulsão, segundo essa primeira acepção, é um processo que vai servir à
tendência fundamental do sistema chamado aparelho psíquico, que é a de restaurar um
estado anterior à estimulação, obedecendo à lei geral da estabilidade de Fechner; ela é o
modo com que esse sistema, econômico por definição, vai se livrar de uma excitação
{Erregung} que a ele chegou através de um estímulo {Reiz}. Devemos entender que o
aparelho psíquico, como outros sistemas vivos, é econômico, não se põe em movimento
por si e usa um recurso que possui para obedecer à tendência primordial, que é a de
restaurar a quietude inicial. O instrumento usado por esse sistema, para obedecer a essa
sua tendência primeira, é a pulsão. É impossível saber o que é uma pulsão antes que ela
tenha se tornado representável pelo aparelho psíquico em questão. Verifica-se, então,
que a pulsão, assim definida nos primeiros momentos, é ao mesmo tempo aquilo que
estimula o aparelho e a ferramenta de que ele dispõe para descarregar essa excitação. A
tendência fundamental é à inércia, assim apresentada por Freud em seu Projeto de
psicologia, de 1895, e retomada no Além do princípio de prazer, de 1920, texto que
indica o trilhamento que seu pensamento vai seguir a o fim de sua obra.
Acreditamos que ao intuirmos a pulsão no contexto do Projeto, temos um vislumbre não
apenas da pulsão sexual como também da pulsão de morte, verdadeiro operador da
tendência à inércia. Podemos mesmo concordar com Bercherie quando diz que, no texto
de 1920, o princípio de inércia é o instrumento da pulsão de morte. A consecução dessa
tendência será contrariada por aquele grupo de pulsões que, a partir de 1920, vão
formar, em oposição e conjugadas às pulsões de morte, a segunda teoria pulsional: as
pulsões de vida ou Eros.
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Voltemos à primeira teoria pulsional. Depois da apresentação do conceito de
pulsão, e de pulsão sexual, teremos o assentamento da primeira dualidade no texto de
1910, intitulado A perturbação psicogênica da visão segundo a psicanálise (FREUD,
1910a/1986). nos Três ensaios (FREUD, 1905a/1986), Freud fala da provável
existência de um outro tipo de pulsões além das sexuais. Essa idéia obedecia a uma das
premissas sicas do pensamento freudiano: todos os fenômenos se explicam pela
existência de duas forças contrapostas, como mencionamos, a repulsão e a atração,
vestígios de sua formação científica e sua filiação fisicalista. Sua filiação a essa escola
de pensamento fundamenta sua fidelidade a uma “intuição básica dualista”, conforme
afirmado no texto O eu e o isso, de 1923 (FREUD, 1923/1986, p. 47). A idéia de que
todos os fenômenos vitais decorrem da “ação eficaz conjugada e oposta das forças
psíquicas está presente na obra seminal da psicanálise, A interpretação de sonhos, de
1900 (FREUD, 1900/1986, p. 29).
No artigo de 1910, acima citado, Freud baseia a concepção dinâmica do aparelho
anímico no conceito de recalcamento e este, por sua vez, se apóia no conflito entre
forças opostas. Essa oposição se daria entre o eu e grupos singulares de representações.
“De particular interesse para nossa explicação é a inequívoca oposição entre as
pulsões que servem à sexualidade, à obtenção de prazer sexual, e as que têm
como meta a autoconservação do indivíduo, as pulsões egóicas” (FREUD,
1910a, p. 212).
A questão nuclear nesse momento é a noção de esforço {Drang} que vem das
pulsões. O conflito se desenvolve entre essas forças elementares; esse “esforço” é um
esforço de desalojar {verdrängen}, desalojar as representações penosas, desalojar a
energia delas, desalojar o eu de uma determinada posição perceptiva.
Pouco tempo depois, em 1914, Freud escreve Introdução do narcisismo
(FREUD, 1914a/1986), texto que provocará uma revolução na teoria que até então
vigorara. Nele, Freud postula que o eu é o primeiro objeto da reunião das pulsões
sexuais, sendo, portanto, ele mesmo investido pela libido, energia destas pulsões. De
fato, o eu se constitui propriamente pelo investimento libidinal. Como então manter a
dualidade pulsional postulada? Como manter as pulsões do eu, com sua energia própria,
não-sexual, o interesse? Como veremos, a segunda teoria pulsional surge como
conseqüência de, em 1914 e em resposta a Jung, Freud ter feito derivar as pulsões de
autoconservação ou do eu das pulsões sexuais, ao postular o conceito de narcisismo. A
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partir daí, a oposição estabelecida entre pulsões do eu e pulsões sexuais, de 1910, estava
desfeita. Estamos diante de pulsões sexuais, somente: do eu e do objeto. É enorme a
ameaça de um monismo. O conceito de narcisismo, ao ser produzido, produz um efeito
de desmantelamento da primeira teoria pulsional. A postulação do conceito de pulsão de
morte, através da noção de compulsão à repetição e sua capacidade de destronar o
princípio de prazer, procede a uma verdadeira desarrumação do pensamento freudiano.
No ano seguinte, Freud empreende a redação dos textos conhecidos como
metapsicológicos onde, apesar da dificuldade criada com a introdução do conceito de
narcisismo, reafirma a primeira teoria pulsional e estabelece aquilo que conhecemos
como a primeira tópica. Em Pulsões e destinos de pulsão, de 1915, texto que estabelece
a pulsão e sua metapsicologia, surge uma outra importante questão: a do ódio,
sentimento inequívoco e inegável. O ódio é examinado no par antitético
sadismo/masoquismo e Freud se depara com a dificuldade de determinar a derivação
desse sentimento comum a todos os seres humanos. Parece simples fazer o amor derivar
das pulsões sexuais e, na falta de explicação melhor, Freud propõe que façamos o ódio
provir das pulsões do eu.
“O eu odeia e persegue com fins destrutivos aqueles objetos que são para ele
fonte de sensações desprazerosas, donde chegamos à conclusão que os
genuínos modelos da relação de ódio não provêm da vida sexual, mas da luta
do eu em conservar-se e afirmar-se” (FREUD, 1915a/1986, p. 122).
Entretanto, ele afirma, nesse mesmo texto, que amor e ódio não surgiram da
cisão de algo comum originário, tendo origens diversas. O amor provém da capacidade
que o eu tem em satisfazer de maneira auto-erótica parte de suas moções pulsionais. O
ódio é, como relação com o objeto, mais antigo que o amor, surgindo da repulsa
primordial que o eu narcisista opõe, inicialmente, ao mundo externo provedor de
estímulos. Mas qual a origem desse movimento de repulsa? que afirma que amor e
ódio são sentimentos de natureza e origem completamente diferentes, Freud o poderá
manter a idéia de que há uma transformação de um em outro. A presença de sentimentos
hostis e sua insistente repetição, em variados contextos, lhe revela outra face da
constituição pulsional. O princípio que até agora era considerado reinar absoluto sobre o
funcionamento da vida anímica parece sucumbir diante de outro tipo de força. Então,
nada mais lhe resta que postular um além do princípio de prazer e é por esse viés que
chegaremos à segunda teoria pulsional.
22
Podemos também introduzir a questão acerca de a pulsão ter ou não um sentido.
Na verdade, considerando-se o psiquismo inicialmente como tabula rasa, podemos
considerar que o sentido se na relação com o outro, com aquele que nomeia. Para
evitarmos uma metafísica, uma visão essencialista do funcionamento do psiquismo,
devemos supor, com Freud, que o sentido está para além do referente, na
intersubjetividade. O homem, para além de ser movido pela sexualidade, é um ser
falante. Essa é sua especificidade e sua fala se remete à sexualidade; o aparelho a ser
proposto tem de dar conta desse fato. Freud constata, inicialmente, que a fala das
histéricas, suas primeiras pacientes, está marcada pela sexualidade. Por trás do sintoma,
havia uma idéia intolerável para a consciência e essa idéia estava, invariavelmente,
ligada a um desejo sexual proibido, recalcado. A sexualidade é o articulador necessário
de uma dupla face: corpo, superfície material, ordenação somática; e anímico, aparelho
de representar (PINHEIRO, 2000).
Sabemos que o processo de subjetivação, o fazer-se sujeito, se pela presença
estruturante do trauma. O trauma está implicado no processo de entrada na ordem do
sexual, toda ‘sexuação’ é por definição traumática, tomando-se traumática na acepção
freudiana de um excesso de excitação que o aparelho-a-ser não tem condições de
representar. Trauma e sedução são complementares devendo ambos ser entendidos para
além da anedota, isto é, do manifesto. A passagem do instinto à pulsão – referindo-nos à
idéia de apoio se faz por uma situação dissimétrica entre adulto e criança. A sedução
originária é aquilo que produz a autonomização da pulsão. O apoio é posto em
andamento pela situação intersubjetiva: sua teoria pode ser compreendida a partir da
idéia da sedução originária. Os gestos autoconservativos do adulto são portadores de
mensagens sexuais, inconscientes para ele, e sem possibilidade de domínio para a
criança. “São eles que produzem, nos lugares ditos erógenos, o movimento de clivagem
e de deriva que culmina na atividade auto-erótica” (LAPLANCHE, 1984, p. 20). O
corpo da criança, ao ser tratado, é iniciado na sexualidade por causa do sentido erótico
das fantasias inconscientes de quem o cuida. A boca que deve ser alimentada é também,
para o adulto, a boca que beija, para o dizer mais. Os outros orifícios corporais têm
também outro sentido, para o adulto que sobre eles se inclina, na higiene, nos cuidados,
que o autoconservativo. O olhar do adulto erotiza o corpo da criança, também fonte das
satisfações exigidas pela manutenção da vida.
23
Ao trauma se liga a idéia de recalque originário, acontecimento constitutivo da
própria organização psíquica. O recalque originário segrega no psiquismo um
Inconsciente primordial, que se torna o isso da segunda tópica. O veículo obrigatório do
auto-erotismo, aquilo que o estimula e faz existir, é a intrusão, seguida pelo recalque,
dos significantes ‘enigmáticos’ introduzidos pelo adulto. Estes significantes constituem
o núcleo do Inconsciente. Enigmático é todo significante que excede a capacidade de
integração pelo pequeno ser humano e está sempre vinculado à sexualidade adulta, em
que a criança é imersa.
É pela via do trauma exemplificado no sonho da neurose traumática, única
justificativa clínica que razoavelmente se sustenta na sua argumentação a favor de uma
compulsão à repetição, ponto de partida para a postulação da pulsão de morte que
Freud nos introduz em sua segunda teoria das pulsões, na fábula metabiológica”
(BERCHERIE, op. cit., p. 58) do Além do princípio de prazer.
Freud postula suas novas idéias tomando como exemplo três situações: a
brincadeira infantil do fort-da, o fenômeno clínico da transferência e os sonhos típicos
dos sujeitos afetados por neuroses traumáticas. O que existe de comum nesses três casos
é a compulsão à repetição, poderosa o bastante para desrespeitar o domínio do princípio
de prazer. A compulsão à repetição assume, nesse momento, as características de uma
pulsão propriamente dita. Segundo Mezan, a repetição é, muito precisamente, a
condição de possibilidade da pulsão, aquilo sem o qual ela o poderia se reproduzir
uma vez extinto o seu ímpeto inicial, por descarga ou por outra via qualquer, como, por
exemplo, a sublimação” (MEZAN, 1987, p. 259). Entendemos que Mezan aponta para o
fato de o “veio vulcânico que nos movimenta, que nos e garante a vida” (COSTA,
1989) não se extinguir mesmo alcançada a satisfação por conta dessa característica da
vida pulsional que é a repetição.
A isso podemos acrescentar a idéia de que nada se extingue na vida pulsional
que sempre restará algo desse campo que não receberá, do psíquico, representações
adequadas ao seu encaminhamento. O domínio do pulsional excederá, sempre, o campo
da representação, do psíquico propriamente, o que marca sua infinitude e
indeterminação. O que resta corresponderá ao que de mais pulsional existe, a pulsão de
morte, impedida de obter entrada no âmbito do psiquismo através de um enlace por
Eros, que a dotaria de um sentido. O sonho da neurose traumática é um sonho que o
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realiza um desejo, definição até então adotada pela teoria psicanalítica. Ele repete
experiências muito desprazerosas, na tentativa de fazê-las ganhar elaboração e sentido,
ganhar articulação com a amplidão da vida psíquica. Essa é a mesma função da
brincadeira do fort-da, repetição sem cessar na tentativa de controlar e transformar a
matéria psíquica que é tão somente ruptura, repetição pura, em presença desejante no
psiquismo, ligada eroticamente. A anti-matéria psíquica” (AB’SABER, 2000, p. 49)
que o for envolvida por Eros se manterá como corpo estranho ao psiquismo, um
repetitivo não-elaborado, como Freud classificara o sintoma em seus Estudos sobre a
histeria, de 1895. A compulsão à repetição está por trás da repetição do ainda não-
elaborado, ainda o-pensado, coisa-em-si psíquica tentando ser inscrita e dominada.
Diante da constatação da compulsão à repetição, surgem novas indagações: como o
desprazer pode ser uma meta pulsional? Como, por vezes, o excesso de excitação pode
se acompanhar de prazer? Como uma descarga, eventualmente, pode ser desprazerosa?
A explicação quantitativa não basta e torna-se imprescindível se recorrer a um fator
qualitativo, ainda desconhecido.
O que a produção do conceito de pulsão de morte vai permitir, sobretudo, é que
se compreenda a agressividade e a destrutividade destacadas da função sexual,
autônoma, ainda mais fundamental e dominando a cena, em determinados momentos: o
que predomina, o que dita a meta da mescla pulsional, não mais é a obtenção de prazer,
como no caso do sadismo, mas sim um movimento no sentido da destruição, do
aniquilamento do objeto, de um ataque levado a cabo contra este. O ganho de prazer
passa então a ser secundário à meta primeira da intricação das pulsões.
A produção de um conceito se faz pela pressão da necessidade, como
mencionamos acima. Como vimos, Freud estava diante de um enorme impasse trazido
pela introdução do conceito de narcisismo. Ou ele aceitava uma explicação monista para
o funcionamento anímico, o que era inviável para um pensador com sua filiação, ou
partia para uma nova teorização. Havia questões clínicas prementes, não esqueçamos
nunca que Freud tinha, antes de tudo, preocupações terapêuticas. Os tratamentos
andavam mal, os sentimentos hostis de seus pacientes o surpreendiam e, por vezes,
chocavam. Freud não tinha instrumentos para compreender nem a transferência hostil
nem o que viria a ser conhecida como reação terapêutica negativa. Faltava-lhe um
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conceito, ou melhor, conceitos que permitissem o avanço da teoria e de sua prática. Essa
dimensão do pressuposto metodológico que adotaremos se faz sempre presente.
Com a teoria que até então vigorara, ele o conseguia dar conta das afecções
para além das neuroses de transferência, matriz clínica de sua primeira oposição
pulsional. O conceito de narcisismo, que a problematiza, é introduzido no momento em
que Freud, levado pelas hipóteses de Jung, se debruça para compreender as parafrenias,
as psicoses e, para tal, se compelido a empreender uma análise do eu. O corpo
teórico da psicanálise é uma obra em movimento, vai encontrando determinados
impasses, ditados pela conjugação das três categorias propostas, que obrigam seus
pensadores a produzir novos conceitos e novas articulações. Foi assim com o texto de
1920.
Este inicia retomando a questão do princípio de prazer como o princípio
regulador do aparelho psíquico. O aparelho é posto em andamento por uma tensão,
desprazerosa em si, e adota uma orientação em que o resultado final coincide com uma
diminuição dessa tensão. Evitação de desprazer, produção de prazer. O prazer e o
desprazer na vida anímica estão relacionados à quantidade de excitação presente e que
não se encontra ligada. Escapa-se, assim, de uma idéia exclusivamente quantitativa,
econômica: uma diferença sutil entre a noção de excesso e a questão da não-ligação.
O que ameaça o aparelho é a energia não-ligada. Dentro do registro do psíquico, a
energia deverá estar sempre ligada: pode estar frouxamente ligada ou estar mais
tenazmente vinculada. No processo psíquico primário, a energia é livremente móvel
mas já tem uma ligação; no secundário, a energia tem com as representações uma
ligação menos flexível podendo, mesmo assim, sofrer deslocamentos e condensações. O
próprio aparelho psíquico se constitui por uma primeira ligação, uma primeira fixação
da energia a uma representação, a que damos o nome de recalque originário. Deve-se
esse mecanismo a Eros, aquele que liga; a função propriamente das pulsões de morte é a
de desligar. Sem Eros, as pulsões de morte o teriam entrada no registro do psíquico,
nem representação. Equivaleriam ao que no Projeto Freud chama de neurônios Φ, que
estão lá desde o início.
Segundo esse esquema, que persiste na elaboração da primeira tópica, todo o
sistema funcionaria segundo o modelo do arco reflexo. Esses neurônios vão se
modificar por uma necessidade funcional: diante da pressão exercida pelos estímulos
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endógenos - os endogene Reize o basta empreender uma fuga ou uma evitação. O
aparelho se verá obrigado a empreender uma ação específica e para isso terá que
armazenar pequenas quantidades de excitação, permanentemente. Os neurônios Φ, até
então inteiramente permeáveis à passagem de excitação, transformam-se, por uma
exigência de trabalho, em neurônios Ψ, parcialmente impermeáveis à passagem. Desta
forma, esses neurônios ficam marcados pela passagem da excitação, constituindo a
memória do aparelho. O aparelho é um aparelho de memória, fundado, portanto, em
termos mais atuais, pela fixação, pela ligação da energia a uma representação. O eu,
ainda no esquema do Projeto, se constitui de um conjunto de neurônios
permanentemente investidos que, por essa razão, criam, entre si, um campo imantado.
Dessa forma, compõem um sistema, com investimento suficiente para passar a acolher
novos investimentos e dirigi-los da forma que lhe for mais adequada. Nem sempre as
coisas se dão dessa maneira, harmoniosa, e o eu se obrigado a lançar mão de outros
recursos. Entre eles, o recalque {die Verdrängung} daquelas representações que são
incompatíveis com sua organização, com a coesão entre suas representações.
Falamos, inicialmente, numa tendência à inércia, à descarga total da excitação;
essa tendência é contrariada pela necessidade de se empreender a ação específica, única
capaz de fazer cessar a fonte dos estímulos endógenos e dessa forma manter a vida que
se inicia. A própria vida, uma vez instalada, luta para se manter: é uma urgência, die Not
des Lebens. A tendência à inércia é substituída pelo princípio de constância, correlato
econômico do princípio de prazer. Podemos dizer que é a partir do princípio de
constância, isto é, a partir de uma preocupação com a manutenção de um nível mínimo
e constante de energia, necessário à continuação da vida, que se instaura a série
desprazer-prazer. Uma tendência, como o próprio nome diz, é algo a que um sistema
tende e princípio é propriamente aquilo que regula seu funcionamento. A inércia é uma
tendência e não um princípio: ela é atingida quando cessam todas as atividades do
aparelho anímico e portanto não atua no sentido de regular seu funcionamento, sendo
estrangeira a ele.
Todos os princípios o de prazer, o de constância e o de realidade funcionam
sob essa tendência à inércia. O que Freud nos diz no texto de 1920 é que o que existe na
vida psíquica não é um império do princípio de prazer mas sim uma forte tendência ao
prazer. Ele pode ser contrariado por outras forças que o antecederam e que, em
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determinadas circunstâncias, o sobrepujam e mesmo ignoram. E que se o trabalho do
aparato anímico se empenha em manter baixa a quantidade de excitação, tudo quanto
seja adequado para incrementar a excitação será percebido como disfuncional, isto é,
desprazeroso. Isso corrige a idéia de que prazer equivale necessariamente àquilo que
percebemos subjetivamente como júbilo, alegria. No Projeto, lemos que quando um
aumento da Q em Ψ, Ψ fica à mercê desta Q e todo o aparelho funciona mal (FREUD,
1950[1895]/1986). A esse mau funcionamento, Freud o qualitativo de desprazeroso
porque é uma situação de tensão, de impossibilidade de se administrar
convenientemente o decurso das excitações.
O princípio de prazer é contrariado em três circunstâncias; a primeira delas é a
entrada em cena do princípio de realidade. O princípio de prazer é próprio de um modo
de funcionamento do aparato que é ineficaz do ponto de vista da autoconservação do
organismo. Sob a influência das pulsões de autoconservação do eu, que são aquelas que
cuidam da preservação do sujeito, o princípio de prazer é substituído pelo de realidade,
o qual não abandona, fundamentalmente, a intenção de obter prazer, apenas efetua
adiamentos na satisfação, impondo-lhe algumas condições. As pulsões sexuais
continuam a usar o princípio de prazer como seu método de funcionamento.
Outra circunstância em que o princípio de prazer é destronado se deve aos
conflitos que acontecem no aparato durante o processo de desenvolvimento do eu. O eu
se desenvolve em direção a organizações mais complexas mas nem todas as pulsões
obedecem a esse mesmo desenvolvimento. Certas pulsões podem então se mostrar
incompatíveis com as restantes, que “se combinam numa unidade inclusiva a que se
o nome de eu” (FREUD, 1920/1986, p. 10). Elas serão separadas das outras, mantidas
em níveis inferiores do desenvolvimento psíquico e afastadas, inicialmente, da
possibilidade de satisfação, pelo recalcamento. A terceira causa de inibição do princípio
de prazer são as causas perceptivas. Entretanto, nada disso o autoriza a promulgar um
além do princípio de prazer. Somente a compulsão à repetição está apta a fundamentar o
novo conceito; na verdade, é por causa dela que Freud se obrigado a produzi-lo. Ela
diz respeito à repetição da ação de pulsões que, desde sempre, somente produziram
desprazer e é uma compulsão o que a ocasiona. O que resta dos exemplos invocados é,
segundo o autor, bastante para justificar a hipótese da compulsão à repetição, e esta
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surge como “mais originária, mais elementar, mais pulsional {Triebhaft} que o
princípio de prazer que ela destrona” (ibid, p. 23).
Retomando a noção de trauma, chamará de traumáticas as excitações externas
que possuem força suficiente para perfurar a proteção antiestímulo {Reizschutz}, o que
produzirá enorme perturbação da economia {Betrieb} energética do organismo e porá
em ação todos seus meios de defender-se. Num primeiro momento, o princípio de
prazer ficará abolido e o aparato anímico se verá invadido por grandes quantidades de
estímulo. Daí deduz-se que a primeiríssima tarefa apresentada ao aparelho é a de
dominar o estímulo, ligar psiquicamente os volumes de excitação a fim de conduzi-los,
depois, à sua descarga. Dito de outra forma, trata-se de poder conter dando um sentido,
função propriamente da linguagem. O que se apresenta a esse aparelho é o trabalho de
contenção à pura dispersão da excitação e ele mesmo resulta dessa contenção, dessa
primordial ligação. Há, portanto, um momento anterior ao estabelecimento do prazer
como princípio: não se trata aqui, ainda, de uma preocupação com a constância, com os
níveis mínimos e ótimos de excitação dentro do aparato e sim de uma urgência em dar
um mínimo de domínio ao caos pulsional que ameaça de não-existência esse aparelho
em constituição. Só depois dessa primeira “ligação”, ou melhor, fixação, da energia que
aflui ao aparato anímico é que este tentará levá-la de um estado de livre fluir a um
estado quiescente.
Tomando o exemplo do sonho das neuroses traumáticas, Freud dirá que
podemos supor que eles contribuem a outra tarefa que deve ser resolvida antes que o
princípio de prazer possa iniciar seu império. Esses sonhos buscam recuperar o domínio
sobre o estímulo por meio de um desenvolvimento de angústia, cuja omissão causou a
neurose traumática. Essa idéia introduz uma alteração na função dos sonhos,
acarretando uma mudança correlata em seus estatuto psíquico. Esse raciocínio o leva a
supor uma função do aparelho que, sem todavia contradizer o princípio de prazer, é dele
independente e parece mais originária que a meta de obter prazer e evitar desprazer.
Está introduzida a hipótese de uma função mais arcaica que o próprio princípio de
prazer, que existiria num momento anterior à sua instalação e, por que não, capaz de se
colocar em andamento, à revelia deste, toda vez que determinada composição da mescla
pulsional assim o exigir. O que na verdade Freud está propondo é uma situação de um
fora do princípio de prazer, isto é, um funcionamento do aparelho que à primeira vista,
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e à luz do princípio de prazer, é incompreensível. Nesse quadro, os sonhos das neuroses
traumáticas não seriam propriamente realizações de desejos pois se dão numa esfera de
funcionamento alheia ao objetivo de obter prazer, função originária dos sonhos, por
definição. Partindo de seu pensamento originário de que os sonhos são realizações de
desejo, Freud lança as primeiras idéias na direção de algo além do desejo, além da força
das pulsões sexuais, enfim, além da dominação inconteste do princípio de prazer.
Como falta uma proteção antiestímulo que proteja o aparelho de estímulos das
excitações provenientes do interior do organismo, tais transferências de estímulo são de
enorme importância econômica e dão lugar a perturbações equivalentes às neuroses
traumáticas.
“As fontes mais profícuas dessa excitação interna são as chamadas ‘pulsões’
do organismo: os representantes {Repräsentant} de todas as forças eficazes
que provêm do interior do corpo e se transferem ao aparato anímico” (ibid,
p. 34).
A excitação das pulsões entra em operação no processo psíquico primário, os
extratos superiores têm a tarefa de ligá-la segundo o processo secundário; a primeira
ligação é responsável pela estruturação das fantasias também primárias. As ligações
anteriores à vigência do princípio de prazer, isto é, anteriores à transformação do prazer
em princípio, vão constituir um primeiro esboço de organização da instância psíquica a
que Freud, em sua segunda tópica, dará o nome de isso, das Es. Diz Freud que estamos
diante de uma característica universal das pulsões: “uma pulsão seria então um esforço,
inerente ao orgânico vivo, de reprodução de um estado anterior” (ibid, p. 36) a que o
vivo teve de renunciar devido à influência de forças perturbadoras externas. Uma pulsão
seria, então, a exteriorização da inércia na vida orgânica.
Estamos diante do estabelecimento da nova teoria das pulsões. Afirma Freud que
ambas as pulsões são conservadoras, dirigidas ao restabelecimento da situação anterior
cada uma a seu modo e o desenvolvimento se deve às influências externas,
perturbadoras e desviantes. Nada mais perturbador e externo que o investimento do
outro de quem o sujeito é objeto.
Em algum momento, que Freud diz não poder precisar, as propriedades da vida
foram suscitadas na matéria inanimada. A tensão assim gerada produziu um esforço no
sentido do nivelamento, da extinção da excitação, e assim nasceu a primeira pulsão, a de
voltar ao estado inanimado. Esta seria a pulsão de morte; ao lado dela, distinguirá uma
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outra classe de pulsões, as de vida ou Eros, que pretendem renovar a vida e o
conseguem. A oposição da primeira teoria das pulsões se mantém e continua a vigorar
para explicar os conflitos típicos das neuroses de transferência. Elas seguem sendo o
resultado de um conflito entre o eu e o investimento libidinal de objeto. A oposição da
segunda teoria das pulsões, a oposição em última instância, é aquela que se entre
pulsões de morte e pulsões de vida.
Este é o primeiro momento da notável virada teórica de 1920. A partir do novo
conceito, Freud se verá obrigado a propor uma nova arquitetura para o aparelho
psíquico, a repensar a questão do masoquismo, a produzir uma segunda teoria da
angústia e, em 1929, trazer para o primeiro plano a noção da destrutividade do homem,
levada a efeito pelos derivados das pulsões de morte, a saber, as pulsões de destruição,
de agressão, de dominação.
É no texto sobre o mal-estar – em que na frente da cena se joga a terrível
oposição entre as exigências pulsionais e as restrições às mesmas que a cultura impõe
que Freud define o destino trágico do homem: não há felicidade possível para o homem
‘civilizado’, o próprio fato de o homem não mais pertencer à ‘natureza’ o condena à
insatisfação, ao ódio, à violência, ao sofrimento. Freud postula, inicialmente, que a
cultura tende a limitar a vida sexual do homem e o tabu do incesto é a marca da
passagem da natureza para a cultura. O totemismo implica a proibição da escolha
incestuosa de objeto e ele “constitui a mais terrível mutilação que sofre a vida amorosa
dos seres humanos” (FREUD, 1930/1986, p. 101).
Entretanto, verifica-se que a cultura exige outros sacrifícios além daquele que
incide na satisfação sexual. Apesar dos apelos ao amor universal e indiscriminado, de
que se encarregam as religiões de maneira geral enunciados pelo amar ao próximo
como a si mesmo” - um aspecto da realidade efetiva que não pode ser negado: todo
ser humano tem em sua dotação pulsional uma grande quota de agressividade. O
homem é o lobo do homem. Em vez do ‘bom selvagem’ de Rousseau, nos deparamos
com a verdadeira face do homem civilizado: a agressão cruel de que é capaz e que
transforma o próximo de possível auxiliar e objeto sexual em alguém a ser “explorado,
usado, humilhado, maltratado” (ibid, p. 108), desmascara os seres humanos e os mostra
como bestas-feras, que não poupam nem outros seres de sua própria espécie. É essa
inclinação agressiva a responsável pela maior ameaça aos vínculos entre os homens e a
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que compele a cultura a realizar seus maiores gastos de energia. A ameaça de dissolução
é constante e provém dessa hostilidade primária. A marca distintiva dessas pulsões de
destruição está dada pela tendência, própria das pulsões de morte, a desligar, a desfazer
ligações e buscar sempre unidades mais simples. Sabemos que os seres humanos foram
levados a se unir em grupos pela constatação de que o grupo é mais forte, mais
resistente que o indivíduo; é preciso que os homens se tolerem uns aos outros por
necessidade de sobrevivência, de domínio sobre as hiperpotentes forças da natureza e
para a união necessária ao trabalho. Suporta-se o outro porque ele é necessário à
execução de tarefas. A cultura tem que mobilizar muitos recursos para pôr limites às
pulsões agressivas dos homens. E lança mão de um amplo arsenal de medidas, que vai
desde formações reativas a identificações e vínculos amorosos de meta inibida,
decorrendo, também daí, uma maior limitação da vida sexual. Diz-nos Freud que “não é
fácil renunciar à satisfação desta inclinação agressiva” (ibid, p. 111).
A grande novidade do texto sobre o mal-estar é o reconhecimento de uma pulsão
de agressão especial, autônoma. Sempre que, até então, Freud tratava da agressividade
humana, ela surgia secundariamente, como no caso do sadismo. No momento teórico
anterior, o de 1920, em que se postula uma luta entre uma tendência “retornante da
morte e o movimento agregador e de maior complexidade da vida, Freud posiciona a
primeira projeção para o exterior da agressividade” (AB’SABER, op. cit., p. 49),
resultado desse embate. Nunca foi fácil destacar a atividade das pulsões de morte, elas
surgiam sempre conjugadas e contrapostas às pulsões de vida, mescladas de modo a se
expressar apenas através das ruidosas exteriorizações de Eros.
A pulsão de morte trabalha muda dentro do ser vivo na obra de sua dissolução,
mas isso não constitui uma prova de sua existência. Podemos apenas inferi-la como um
saldo após a passagem de Eros, um resto não-ligado, que nos escapa. Surge então a idéia
de que a pulsão de morte, ou melhor, que parte dela, se dirige ao mundo externo e se
mostra como pulsão a agredir, destruir e dominar. Se esta agressão voltada para fora for
limitada, acarretará um incremento da autodestruição, aliás sempre presente. Além dos
exemplos conhecidos do sadismo e do masoquismo, agora Freud propõe que
pensemos numa agressão e numa destruição não-eróticas. Não que Eros não esteja
sempre presente, mesmo onde a agressão emerge aparentemente sem propósito sexual,
inclusive na mais cega fúria destrutiva. A diferença é que agora podemos pensar numa
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meta predominantemente destrutiva, onde o sexual é que surge como secundário. No
sadismo, a meta é erótica, modificada pela pressão da pulsão de morte, que impõe
condições à obtenção de prazer. Mas o alvo continua sendo o ganho de prazer. Aqui se
abre a possibilidade de pensarmos uma meta primariamente destrutiva; mesmo assim, a
satisfação das pulsões de destruição se enlaça com um gozo narcísico
extraordinariamente elevado, na medida em que ensina ao eu a realização de seus
antigos desejos de onipotência” (FREUD, 1930/1986, p. 117). A pulsão de destruição
dirigida aos objetos tem ao seu encargo providenciar, para o eu, a satisfação das
necessidades vitais e o domínio sobre a natureza.
Chegamos então à afirmação de que a inclinação agressiva é uma disposição
pulsional autônoma, originária do ser humano, apesar de derivada de uma das pulsões
fundamentais, a de morte. “Esta pulsão de agressão é o derivado e o principal delegado
da pulsão de morte que descobrimos junto a Eros” (ibid, p. 118). Como, então, a cultura,
tão ameaçada por essas forças, inibe, ou mesmo erradica, essa agressão? O homem
civilizado introjeta, interioriza esta agressão, enviando-a a seu ponto de partida; ela
volta em direção ao eu próprio. Ali é recolhida por uma parte do eu e, sob a forma de
supereu, opõe-se ao resto do seu hospedeiro. Como consciência moral, está pronta a
exercer sobre o eu toda a agressividade antes destinada aos objetos. Pior a emenda que o
soneto?
Desse modo, verifica-se que não há saída para o ser humano; pelo menos, não há
possibilidade de bem-estar, de felicidade. Senão, vejamos: para não partir em
desvantagem, é necessário que parte das pulsões de morte, originárias, seja enviada para
fora do sistema, em direção aos objetos que assim se constituem onde, enlaçada por
Eros, constituirá, primeiro, o que Freud chamará de sadismo originário e depois o que se
designa por pulsões de agressão, de destruição, de dominação. Entretanto, o estado de
desamparo fundamental do ser humano faz com que essa agressão voltada para fora o
ameace com a perda do amor daquele que é, ao mesmo tempo, objeto de suas pulsões
sexuais e agressivas, além de precioso auxiliar na tarefa de sobreviver. O desamparo é
propriamente constitutivo do humano; é algo que não se resolve, que não pode ser
evitado ou preenchido. Impossibilitado de satisfazer as duas classes de pulsões, o
homem renuncia a elas, a duras penas, e, a partir do recalque, dará a elas distintos
destinos. O sentimento de culpa ou “consciência de culpa” é produto da tensão entre o
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supereu que se fez severo, pela introjeção da agressão dirigida para o objeto, e o eu que
está submetido a ele. A implantação de um supereu traz uma outra desvantagem
econômica, além do retorno ao próprio eu de parte da agressão que havia sido defletida:
o sentimento de culpa, que persiste apesar das renúncias. Além de tudo, esse sacrifício
perde todo o sentido se, em troca, ele o obtém a paga que buscava, a segurança. A
renúncia do pulsional não é substituída pela segurança no amor: uma infelicidade que
ameaçava de fora se transformou em infelicidade interna permanente. O supereu é uma
autoridade ainda mais implacável que aquela que ameaçava o sujeito com a perda do
amor, do qual ele dependia inteiramente no início de sua vida.
Freud postula que a maldade é a vingança do homem contra a sociedade, pelas
restrições que ela impõe. E pelo pouco retorno que ela oferece, em termos de segurança,
em sentido mais amplo. Uma cultura em que os aspectos comunitários perdem aos
poucos sua importância, em que se verificam tantas rupturas de pactos, de contratos
sociais, está apta a fomentar os desejos de vingança. A medida em que os apelos à
inibição das metas diretas e grosseiras visadas pelas pulsões, à sublimação das
aspirações propriamente pulsionais, se tornam mais prementes e exigentes, os sujeitos
se vêem com um ficit, um débito {Abzug} de sua potência erótica de ligação,
facilitando o desvio dos objetivos a favor das pulsões de morte. Toda a delicada
manobra que culmina na instalação do supereu – deflexão de parte das pulsões de morte
para o exterior, subseqüente introjeção das mesmas, posto que não se podem destruir os
objetos de que dependemos inteiramente, e identificação com estes mostra-se
insuficiente para conter a frustração trazida ao homem tanto por questões internas
quanto por fragmentos da realidade. Mostra-se, a nu, a força disruptiva e demoníaca das
pulsões, cujas metas estão, então, sob o domínio daquelas pulsões que visam, em última
análise, pôr fim ao estado de tensão que a vida inaugura. A violência voltada para o
outro, causador maior das tensões, atinge seu próprio agente, ao dissolver os laços com
o grupo, ao colocá-lo à margem, marginal.
Outra questão surgiu, recentemente. Se na vigência da primeira teoria pulsional
o aparelho psíquico era visto como tendo por tarefa primordial a contenção da
excitação, leia-se da energia sexual, não seria mais adequado postular outra tarefa
primordial para esse aparelho já de posse das idéias da segunda teoria? Antes mesmo de
a excitação sexual se apresentar como excessiva, causadora de grande perturbação,
34
parece que cabe ao aparelho que se funda e para que se funde - o afã de fazer as
primeiras ligações, lançando para o exterior o que puder das pulsões de morte, que ali
estão desde sempre. Eros é trazido, as pulsões de morte são “próprias” do sistema vivo,
como referidas ao instrumento de descarga, em obediência à tendência à inércia. Antes
de conter, ao aparelho é demandado que ligue, através de Eros, a pura força que ali se
encontra, sob a forma de pulsões de morte, para que ele mesmo possa passar a existir.
aí, se veria às voltas com o excessivo, o propriamente traumático, o sexual. Eros é
trazido para se contrapor a essa força que pretende desligar, dissolver; o sujeito vive
porque alguém mais assim o desejou e o investiu com seu amor. Isso nunca é suficiente
para neutralizar a totalidade dessa força verdadeiramente demoníaca, que se opõe à
continuação da vida ou até mesmo à sua instalação.
A luta defensiva inicial do aparelho é a de enlaçar o que puder das pulsões de
morte por Eros e assim sobreviver. A linguagem é essa ligação produtora de sentido. A
subjetividade o é uma essência: podemos considerá-la como inventada pela
linguagem. A contenção da pura dispersão seria posterior a esse mito da primordial
ligação. Antes de tudo, é preciso vincular a energia pulsional invasora: domesticá-la,
antes de se pensar em encaminhá-la, seja para a descarga, seja para a defesa, o recalque
(MONZANI, 1989). Ou ainda: a Bindung (...) o é o princípio de prazer, apenas
prepara o terreno para o domínio do princípio de prazer. Uma vez preparado o terreno,
introduz o senhor, instala-o, assegura-o, confirma-o, consolida-o na sua senhoria”
(DERRIDA, 1980, p. 421).
Estamos diante de um duplo movimento, o de ‘amarrar’ e o de ‘desamarrar’. Ao
‘desamarrar’ corresponde um momento em que as pulsões de morte, momentaneamente
soltas, cumprem seu destino de dissolver as organizações, os sistemas, e tentam voltar à
quietude inicial. É como se ao sossego se imprimisse a perturbação, da vida, e a
tendência do sistema é a de descarregar a tensão e voltar ao antigo estado. O ‘amarrar’ é
próprio de Eros e do eu, em sua tentativa de organizar o tempo e o espaço. À essa
espacialização, se opõe, teoricamente, a dispersão pulsional do tempo puro.
O próprio Freud apresentou seu novo conceito cheio de pudores; o conceito de
pulsão de morte lhe parecia muito especulativo para caber nos parâmetros da ciência.
Entretanto, mesmo se desculpando, ele prossegue em sua apresentação. Podemos a
pensar que algo mudou em suas referências científicas mas a justificativa que ele nos
35
para tal especulação o recoloca no centro de sua tradição cultural e científica.
Entretanto, tanto a forma de seu texto de 1920 quanto o significado do novo dualismo
pulsional introduziram a incerteza no interior da forma do pensar psicanalítico e mexeu
com os aspectos mais profundos e arraigados da natureza epistêmica de nossa
disciplina.
Tomaremos, pois, como eixo desse trabalho a pulsão de morte, considerando-a
um “conceito-pivô” e dotando-a da característica de um conceito que serve de base ao
desenvolvimento e à dialetização da teoria psicanalítica. O conceito de pulsão de morte
tem uma posição única com relação ao desenvolvimento da psicanálise pós-freudiana;
podemos considerá-lo como uma sorte de incógnita produtiva, que obriga sempre cada
analista a se posicionar a seu respeito e a reformulá-lo. Esse pensamento de Freud é
oferecido aos seus seguidores como um aberto, o que faz de seu conceito algo de tão
difícil apreensão. A emergência da pulsão de morte define um conceito para o trabalho
de psicanálise posterior a Freud, ao mesmo tempo em que lançou seu pensamento para
além das bases positivistas do século XIX. Consideramos que a pulsão de morte pode
ser entendida como uma “palavra-valise”, tal como Lewis Carroll imaginou para sua
Alice: um conceito de significados múltiplos e, por isso mesmo multiplicador de
sentidos. Em sua polissemia, o conceito de pulsão de morte possibilitou diversas saídas
para a continuação da teoria; dotou o texto freudiano da característica de ser uma obra
em progresso. Em vez de apresentar soluções para enigmas desde muito percebidos e
para os impasses deles decorrentes, inaugura toda uma série de novas questões, até hoje
alvo das digressões de seus seguidores. Nesse sentido, podemos considerar a pulsão de
morte como o mais vivo dos conceitos de Freud, constantemente reformulado,
discutido, analisado. Não só a idéia da morte representa o grande enigma para o
pensamento do homem: a idéia de uma pulsão de morte representa a grande
encruzilhada da doutrina psicanalítica, a partir da qual sairão sendas totalmente
diferentes entre si e, por vezes, discrepantes daquilo que se convencionou considerar o
núcleo teórico de nosso saber.
De volta ao Projeto, referência teórica a nosso ver muito valiosa, lemos que a
tendência de todo sistema vivo é à inércia, é voltar ao estado anterior de quietude,
perturbada por estímulos. Este sistema, em sua forma mais rudimentar, unicelular,
resolveria sua tensão interna por intermédio de um funcionamento do tipo do arco
36
reflexo. Entretanto, a própria vida, que se impõe e impõe sua continuidade e
manutenção, barra esse exclusivo funcionamento. A noção de vida, para Freud, implica
perturbação, tumulto, desassossego, alvoroço; o “ideal”, segundo essa leitura, é a
quietude do nada de excitação. Se quisermos pensar no conceito de pulsão de morte
“pura”, apenas para finalidades explicativas, penso que podemos dizer que ela é um
conceito que designa propriamente a função de um operador, um dispositivo imanente a
todo sistema vivo, capaz de fazer cumprir essa tendência universal e fundamental à
inércia, ao zero de excitação. Constitui tão somente um objeto de conhecimento, formal
e abstrato, não encontrável diante do “sopro da vida”. No caso do vivo, cuja meta última
é, metaforicamente, a de voltar ao não-vivo, ao inorgânico, essa tendência é contrariada
pela urgência da vida e substituída pelo princípio de constância. então, estaríamos
diante das pulsões de morte enlaçadas por Eros, no começo da luta, da oposição
pulsional fundamental. No vivo, não haveria pulsões de morte puras nem Eros puro,
estamos sempre diante de misturas pulsionais. Essa é uma concepção totalmente nova e
diferente da idéia que permeia a primeira oposição pulsional e a primeira tópica, onde as
pulsões não produziam misturas, apesar da noção de conjugação das mesmas. Eros é o
fator de ligação, é ele que amarra as marcas dispersas deixadas pelas vivências, é ele
que também amarra os eus dispersos, simples grumos de representações referidos às
vivências, constituindo uma primeira idéia de unidade e de eu imaginário, à imagem e
semelhança de seu próximo, sinal de identificação a uma espécie, signo de
pertencimento a um grupo específico, o humano. As pulsões de morte, por sua vez,
cumprem seu destino de dissolver as organizações, os sistemas complexos, já que, ao
simplificar as unidades, fica-lhes mais fácil, soltas, livres, levar a cabo sua tarefa de
desamarrar os laços e voltar à quietude inicial.
Quanto à questão, acima mencionada, sobre a existência da pulsão de morte no
humano, a que se indaga se se trata de ‘pulsão’ ou de ‘conceito de pulsão’, gostaamos
de acrescentar que nos parece que estamos diante de um constructo puramente teórico
visando a explicação daquilo que é inegável na vida humana: o homem destrói, mata,
aniquila, subjuga, maltrata, domina. O que está por trás dessa conduta que salta aos
olhos? que o aparelho psíquico é concebido por Freud como propriamente um
aparato, uma máquina, cabe perguntar que força o movimenta nesse sentido. Esse fato
obrigou Freud a produzir para o aparelho uma nova composição pulsional; que nome
37
daríamos àquilo que determina esses acontecimentos? Pulsão de morte é um nome que
tenta, ao nomear, explicar esse comportamento, gritante tanto na clínica quanto na vida
do homem. Não precisamos pensar numa existência da pulsão de morte como uma
entidade na natureza humana e sim como o nome que se ao que provoca certas
condutas. Aquilo que existe são os atos e os afetos de todos conhecidos; o conceito trata
de dar a eles uma explicação teórica e uma sistematização. Em suma: assim como
afirma Freud, em seu artigo metapsicológico de 1915, que o Inconsciente é uma
inferência, que supomos sua existência como a de um outro dentro do sujeito, o
desconhecido quanto o que se passa no psiquismo de um outro sujeito, pensamos que o
conceito de pulsão de morte é uma outra suposição desse tipo, outro constructo,
produzido a partir de uma necessidade que se impõe à teoria e sem o qual alguns
fenômenos corriqueiros da vida humana ficariam sem explicação.
Como Freud não cansou de postular, tudo no homem é pulsional; sempre tentou
explicar a vida pela contraposição de forças, a dinâmica anímica resultaria dessa
combinação e dessa composição entre forças opostas. Ora: a primeira teoria pulsional
não respondia àquilo que era constatado na conduta humana. Por isso, Freud se
forçado a propor uma nova teoria. Ao falarmos de pulsão de morte estamos falando de
um conceito, um operador teórico que traz respostas a uma questão até então obscura e
enigmática, presente em fatos incontestáveis tais como o sadismo, presente, desde sua
primeira elaboração da teoria pulsional, na vida sexual.
Gostaríamos de afirmar que não pretendemos vincular prioritariamente a
produção do conceito aos fatos históricos ou às preocupações pessoais de Freud, apesar
da grande tentação de fazê-lo. Explicar a evolução da teoria considerando, basicamente,
as razões do homem Freud, como o fazem inúmeros autores, falsearia completamente
nossa intenção. Pretendemos dar conta da hipótese levantada atendo-nos ao movimento
interno à teoria, sustentado e sugerido por questões e dificuldades clínicas. A idéia da
necessidade premente por um conceito, que responda aos impasses teóricos e clínicos, é
um dos eixos dessa pesquisa. O mais importante é procurar acompanhar ou estabelecer
aquilo que chamamos de movimento interno ao pensamento e à teorização, movimento
este ditado pela articulação dos próprios conceitos e cujas deficiências e impasses
produzirão a emergência de novos conceitos que os solucionem. Toda vez que se
apresenta um impasse teórico e clínico, cria-se uma exigência por um novo conceito que
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solucione a questão. Queremos enfatizar que os impasses não são nem apenas teóricos
nem apenas clínicos; como constatamos na formulação do conceito de pulsão de morte,
as justificativas clínicas que Freud apresenta são insuficientes e cheias de contradições.
Ao segui-las, não conseguimos chegar nunca a um além ou a um aquém do princípio de
prazer que, afinal, se apresenta em todo e qualquer fato psíquico. O que produz a
necessidade por uma novidade é, também aqui, a conjugação dos dois alicerces da
prática psicanalítica. A clínica não é somente a clínica da ‘cura’: constitui um campo no
qual vão ser elaborados, produzidos e verificados os conceitos da teoria.
O conceito é formulado como uma solução puramente abstrata e formal às
impossibilidades epistemológicas que se expressam - assim como o recalque na
resistência - nos fracassos e encruzilhadas clínicos. Sabemos que a nese do conceito
não está isenta dos efeitos das ocorrências externas e internas na vida de seu criador mas
esse fator, circunstancial, digamos, se soma a outros, de valor epistemológico mais
pregnante. Achamos improcedente tentar explicar o surgimento da pulsão de morte
como resultado de fatores tais como “luto pelo pai”, “introjeção mal feita da imago
paterna”, “crise depressiva da meia idade”. Lê-se, em autores como Guillaumin
(GUILLAUMIN, 2000), que a revolução metapsicológica “súbita” de 1919/1920 é o
resultado criativo, no plano da teoria, de um impressionante processo de defesa
desenvolvido por Freud diante de suas relações com a imago paterna. Esta revolução
não é súbita, veio se anunciando, se pensarmos apenas na obra publicada, nos textos
mesmo anteriores ao artigo sobre o narcisismo, verdadeiro divisor de águas da teoria.
Pensamos que tomar tais fatores como essenciais, como determinantes na mudança de
inflexão teórica é reduzir a história do conceito a uma historiografia ingênua, é
interpretar Freud a partir de sua biografia, sem considerar que o edifício teórico de um
saber tem vida própria, por vezes exigindo de seu arquiteto que obedeça aos seus
ditames internos. Nossa pergunta principal é a qual questão quis Freud responder ao
produzir seu novo conceito. Uma obra psicanalítica, uma invenção teórica, produzirá
sentido se mantiver presente, em seu movimento, os traços daquilo que a tornou
necessária. Assim como podemos inferir, a partir do conteúdo manifesto do sonho, o
trabalho onírico que subjaz a ele e que aponta para o desejo do sonho, o trabalho do
pensamento é o que sustenta e justifica aquilo que é escrito. Não vamos interpretar
Freud: vamos seguir o movimento de seu pensamento e sua produção teórica, sem
39
ignorar, é claro, o mundo em torno. Não se trata de interpretar e sim contextualizar um
autor em seu tempo. Devemos considerar e respeitar o conhecimento que nos é
fornecido pelos sonhos, lembranças e relatos de Freud e usá-lo apenas para demarcar as
diferentes etapas do processo da produção da teoria psicanalítica.
Este trabalho, portanto, gira em torno à questão de estabelecer, com Freud, a
distinção entre os derivados das pulsões de morte, trabalhando as idéias de agressão e
agressividade, violência, crueldade, sadismo e masoquismo, mal-estar e destrutividade.
Para atingir essa meta, tentaremos rastrear o uso destes termos no texto freudiano,
procurando estabelecer entre eles analogias semânticas que definam seu emprego. E, se
possível, definir as diferenças sutis entre eles, buscando uma sistematização teórica e
lingüística. Ao tentar distinguir os diversos derivados das pulsões de morte, nos
deparamos com nuances discretas entre as palavras utilizadas; assim, por exemplo,
destruição não deve ser confundida com destrutividade. A partir da etimologia dos
termos, constatamos que –(i)dade, sufixo formador de substantivos a partir de adjetivos,
designa uma qualidade, um atributo, aquilo que é próprio de, um modo de ser; por sua
vez o sufixo nominal –ão, do latim –iō ne, aponta para uma ação ou um resultado da
ação. Assim, destrutividade é uma qualidade, uma proclividade, e destruição é uma
ação; a pulsão de destruição, por sua vez, significa, para a teoria psicanalítica, a força
que impele o sujeito em direção à meta da destruição, ao ato em si, que é dar fim, fazer
desaparecer o objeto. A mesma diferença existe em relação a agressão e agressividade.
Outra é a questão de domínio e dominação, que examinaremos em capítulo adiante.
Inicialmente, trabalharemos o conceito de pulsão de morte, tentando estabelecer
sua genealogia no texto freudiano. A seguir, abordaremos o par antitético sadismo/
masoquismo, as pulsões de destruição, as de agressão e as de dominação. Antes da
conclusão, tentaremos rastrear as características, as condutas da crueldade, da violência
e da maldade no corpo da doutrina, como estabelecida por Freud.
Não pudemos evitar as traduções de própria autoria. Foi usada, como base
fundamental desta tese, a edição, em castelhano, das Edições Amorrortu das obras
completas de Freud, dada a superioridade de sua versão. Seria extremamente
desagradável manter todas as citações em sua versão original; por isso, optamos por sua
tradução, assim como de todos os trechos referidos a outros autores e em outros
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idiomas. Foram mantidas em sua versão original apenas algumas citações usadas em
epígrafe aos capítulos.
Sempre que necessário, serão citados termos em alemão. Essa medida não
significa um preciosismo inútil e pedante; trata-se de tornar clara a terminologia
freudiana, tantas vezes, como é notório, maltratada nas traduções. O uso de uma
palavra, apesar de não estabelecer o surgimento de um conceito, constitui uma
encruzilhada semântica e esse aspecto não pode ser negligenciado. Sobretudo quando as
dificuldades de tradução são enormes, conforme atestam os esforços de inúmeros
teóricos no sentido de estabelecer a melhor correspondência entre os termos adotados
(KEMPER, 1997; HANNS, 1996; SOUZA, 1998).
41
II. Morte, pulsão de morte
A morte é mais real que o nascimento, no sentido de que todos os
pontos de partida nos precedem. A morte é imediatamente presente
porque o momento da morte pode ser qualquer momento e é cada
momento para a alma em transformação, que vive através do perecer.
James Hillman, Suicídio e alma.
O sentido trágico da desmedida que é a permanente busca do outro
vai fazer do erotismo uma espécie de ética da transgressão; na viagem
ao extremo de suas possibilidades, o sujeito surpreende a densa e
misteriosa ligação existente entre desejo e morte: o abraço dela
extingue o desejo e este, vive apenas o prenúncio dela. O erotismo se
tece na violência do impulso para o nada.
Georges Bataille, L’érotisme.
Freud começa a escrever o artigo Além do princípio de prazer, texto que marca a
grande mudança da teoria pulsional, em março de 1919 e o conclui em maio do mesmo
ano; o artigo será publicado em dezembro do ano seguinte. Esse artigo estabelece o
início de uma verdadeira refundação da metapsicologia freudiana: a partir dele, são
revistas e modificadas várias temáticas da psicanálise, produzindo uma notável
mudança de inflexão na teoria, e o apenas no que diz respeito à teoria das pulsões. O
conceito ali apresentado, o de pulsão de morte, será a alavanca de uma nova tópica, de
uma nova teoria da angústia, da modificação da concepção de masoquismo, da
postulação de uma destrutividade e de uma agressividade no humano que têm caráter
autônomo e primário, além de possibilitar a produção de um artigo sobre o mecanismo
da negação e a postulação de um mal-estar inelutável do homem.
No mesmo mês de maio de 1919, Freud termina o texto O estranho, onde
encontramos alusões às idéias que serão trabalhadas exaustivamente no artigo
mencionado, publicado em 1920; uma dessas é a idéia de uma compulsão à repetição,
fenômeno manifesto na conduta da criança e no tratamento psicanalítico, forte o
suficiente para ignorar o princípio de prazer. Em O estranho, publicado no outono de
1919, Freud sugere que ela deriva da natureza mais íntima das pulsões. O termo pulsão
de morte, que vai designar um novo e surpreendente operador metapsicológico, está
ausente neste texto.
Em O estranho, Freud se mostra interessado em situações onde se encontra
sempre a sinistra repetição das mesmas infelizes condições, típica de algumas pessoas
cujo destino parece apontar para condutas reiteradas, provocadas por elas mesmas. A
palavra alemã heimlich, que designa, habitualmente, aquilo que é familiar, possui
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tamanha extensão semântica que acaba por designar também seu oposto, aquilo que é
unheimlich, estranho, sinistro. O prefixo da ngua alemã um, de negação, de falta, de
oposição que torna alheio o familiar seria índício do recalcado (ORSINI, 2000).
Durante a redação desse ensaio, Freud estava envolvido em algumas querelas e relações
complicadas com discípulos e analisandos, como veremos.
O conceito de pulsão de morte, situado nos limites do representável, dará à
totalidade do pensamento psicanalítico uma nova inflexão; ele representa “um
ultrapassamento ontológico e epistemológico do racionalismo freudiano”
(GUILLAUMIN, 2000, p. 2), do momento em que se situa no campo mais francamente
especulativo. E parece-nos que Freud fez questão de deixar sua especulação em aberto,
produzindo, com isso, efeitos surpreendentes em seus seguidores. Ao dar esse
verdadeiro passo hermenêutico em direção ao aberto de seu próprio sistema, dota o
conceito de pulsão de morte de uma função epistemológica no interior da disciplina. A
pulsão de morte é o conceito-chave da mudança que sofreu a psicanálise: de um projeto
inicial, neurológico e cientificista, a algo específico e inovador (MARTINS, 2002). A
mecânica, a hidráulica e a dinâmica da física do século XIX, fundamentos de uma
teorização construtivista e positivista, começam a desaparecer do texto de Freud. Sua
forma de pensar e trabalhar ganha muito em abstração (AB’SABER, 2000).
O eixo do texto de 1920 é constituído por uma interrogação fundamental: o
princípio de prazer, até agora o postulado teórico fundamental, juntamente com seus
corolários econômicos, a constância e a inércia, é colocado em discussão. O exame que
Freud efetua o leva a enunciar uma conclusão surpreendente, a que constata a existência
dessa compulsão à repetição, que se coloca acima do princípio de prazer. Ali, apoiado
em fatos da etologia animal e na lei biogenética fundamental de Haeckel, Freud constata
que a compulsão à repetição seria um fenômeno pulsional ainda mais primordial que a
própria pulsão: o automatismo da repetição não mais aparece como a expressão da vida
pulsional mas como sua fonte, a própria matriz das pulsões (BERCHERIE, 1983).
Entretanto, como o aponta Laplanche, compulsão à repetição e pulsão de morte não são
a mesma coisa. Pode-se dizer que a compulsão à repetição é antes um dos modos de se
responder à pulsão de morte, apenas uma das maneiras, talvez não a única, de tentar
ligar, no sentido freudiano do termo, Bindung, a pulsão de morte (LAPLANCHE,
1980).
43
Propomos acompanhar Freud na produção do conceito e postulamos a idéia de a
pulsão de morte ser considerada como um conceito explicativo de fenômenos da
realidade, com todo seu caráter especulativo, mais do que existindo necessariamente.
Pulsão ou conceito de pulsão? Algumas leituras entendem que a pulsão de morte é um
conceito e não um fato biológico; não acreditam que exista efetivamente um mecanismo
energético passível de ser descrito da forma em que é feito Constituiria uma tese
especulativa, teórica e hipotética, não baseada mas provocada pela clínica e pela
dinâmica dos conflitos psíquicos. Não seria um dado real mas uma decisão epistêmica
(BERCHERIE, 1983), uma construção puramente teórica. Outras leituras tendem a
aproximar o conceito de pulsão de morte da força que opera o arco reflexo, postulação
freudiana encontrada em seu texto conhecido como Projeto, de 1895.
Tanto podemos considerar a pulsão de morte como o operador da evacuação
total da excitação que invade o sistema, o aparelho psíquico que vai se formar, como
podemos pensá-la como a pulsão desvinculada tanto da sexualidade quanto da palavra.
Esta seria a distinção mais marcante entre a pulsão de morte e seus derivados: não é
possível confundir, por exemplo, pulsão de morte com pulsão de destruição. Esta
última, assim como a de agressão, é ligada à sexualidade e ao recalque, como seu efeito;
a agressividade não dispensa a palavra, a destruição tampouco. A pulsão de morte, ao
contrário, como postula o próprio Freud, é muda, sem palavras; as adquire como forma
de expressão quando se combina com Eros e origem às diversas formas de seus
derivados. As maneiras com que cada um dos derivados vai ‘falar’ serão determinadas
pela história do sujeito e os recursos psíquicos a que este terá acesso em determinada
conjuntura de sua existência. Os derivados das pulsões de morte são especificidades do
homem que fala.
Inspirando-nos na definição que dão Deleuze e Guattari para o conceito na
filosofia, podemos considerar que é preciso uma mutação de problemas para que um
conceito apareça. Segundo esses autores, todo conceito, filosófico, tem componentes e
se define por eles, construindo, a partir daí, um contorno irregular. “Cada conceito opera
um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou recortado. Mas um
conceito possui um devir que concerne sua relação com conceitos situados no mesmo
plano” (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 30). De acordo com a idéia de que um
conceito se produz se necessário, podemos dizer, seguindo esses autores, que “um
44
conceito não exige somente um problema sob o qual remaneja ou substitui conceitos
precedentes, mas uma encruzilhada de problemas em que se alia a outros conceitos
coexistentes” (ibid, p. 31).
Mesmo considerando a diferença entre um conceito da psicanálise e um conceito
filosófico, isto é, “a diferença que existe entre enunciação filosófica dos conceitos
fragmentários e enunciação científica das proposições parciais” - sem entrar na
discussão, infrutífera e datada, de a psicanálise ser ou não uma ciência -, podemos
postular que cada conceito remete a outros conceitos, não somente em sua história mas
em suas conexões presentes e “em seu devir”. Sua articulação produtiva e consistente
com os outros conceitos de seu campo é aquilo que faz dele um conceito propriamente;
um conceito é definível pela conjugação com outros conceitos sua “exo-consistência
- e pela pertinência de todos a um mesmo registro epistêmico. O que primeiro define a
consistência do conceito é o fato de manter inseparáveis nele seus componentes. O mais
interessante na acepção desses autores é o fato de eles considerarem e definirem um
conceito como “um incorporal, embora se encarne ou se efetue nos corpos”, embora não
se confunda com o estado de coisas no qual se efetua (ibid, p. 33). Fugindo de uma
visão essencialista, os autores afirmam que “o conceito diz o acontecimento, o a
essência ou a coisa”. Acreditamos que essa acepção facilita, e muito, a compreensão do
conceito de pulsão de morte.
Um conceito nada mais é que ato de pensamento. Assim como o filósofo não
pára de remanejar seus conceitos, e mesmo de mudá-los, Freud procedeu da mesma
maneira. Ele foi o primeiro a considerar seus equívocos e a reconsiderar suas opiniões.
Desse modo, e parafraseando Deleuze e Guattari, se podemos continuar sendo
freudianos hoje é porque pensamos que seus conceitos podem ser reativados em nossos
problemas e vir a inspirar os novos conceitos que se necessita criar. Criam-se conceitos
para problemas que mudam necessariamente; assim, novas patologias, novas
subjetividades, novas modalidades de sofrimento psíquico conduzirão,
obrigatoriamente, à produção de conceitos que em conta, que expliquem, que sirvam
de ferramentas à compreensão dos novos fenômenos que se apresentam à nossa
observação e dos impasses que surgem em nosso manejo clínico. Importar ferramentas
ou produzi-las a partir de encruzilhadas epistemológicas é o primeiro passo para a
constituição de uma nova disciplina ou para o alargamento do campo de conhecimento
45
de um saber existente, renovando-o. Acreditamos que todo esforço de teorização
baseia-se em necessidades internas à própria dinâmica conceitual que o precede.
Segundo Althusser, teoricamente, Freud montou “sozinho seu negócio”
(ALTHUSSER, 1980, p. 109). Como não tinha nenhuma herança atrás de si, Freud teve
que pensar sua descoberta e sua prática tomando emprestado conceitos a outras
disciplinas: à física, à economia, à biologia. Trabalhou com um punhado de conceitos
filosóficos mais incômodos que fecundos, porque marcados por uma problemática da
consciência”; seus únicos antecessores e inspiração foram Sófocles, Shakespeare,
Goethe. “Produziu seus conceitos próprios, seus conceitos ‘domésticos’, sob a proteção
de conceitos importados (...), no horizonte do mundo ideológico que banhava estes
conceitos.” (ibid, p. 110).
Podemos concordar com Althusser no que diz respeito à construção da nova
disciplina, completamente destacada do panorama da psicologia de sua época, tendo
operado um radical descentramento ao destituir a consciência de sua posição de
referência primeira dos estudos sobre o psiquismo humano; mas discordamos da
afirmação de que Freud produziu seus conceitos sozinho. Ele foi sempre um homem da
interlocução, dos grupos, precisava de um público, de um parceiro, de que o
escutassem; a solidão lhe era terrivelmente opressiva. Assim foi com Breuer, logo
substituído por Fliess, que cede seu posto privilegiado para os primeiros discípulos
reunidos, a partir do outono de 1902, nas famosas ‘reuniões científicas de quarta-feira’,
base do que viria a ser, desde 1908, a Sociedade Psicanalítica de Viena. Freud rompe
com Fliess em 1901 e os “congressos” que mantinha com seu interlocutor são
substituídos pelo grupo das quartas-feiras, embrião da instituição psicanalítica. Antes,
na condição de discípulo, seguiu as pegadas dos grandes mestres da neurologia e da
psiquiatria e muito aprendeu com eles. Freud declara a Fliess sua necessidade de pensar
em comum, de ter um pensamento em comum com o amigo e confidente
{Mitwissenschaft}. É sempre importante assinalar que, apesar do que parece ser uma
necessidade premente de interlocução, esses relacionamentos sempre foram pontuados
por dificuldades, algumas tão graves que produziram rupturas drásticas e sentidas
dissidências. A leitura de sua correspondência e das Atas da Sociedade Psicanalítica de
Viena, até o ano de 1918, muito nos ensina sobre esse trabalho de elaboração de um
saber cujas condições de produção não podem ser atribuídas a uma atividade solitária de
46
seu criador; o que constatamos é que Freud é muito ajudado pela discussão e levado a
tornar definitivamente mais claro seu pensamento.
Reafirmamos aqui uma das idéias fundamentais de nossa dissertação de
mestrado, Pulsões e origens de pulsão: a pré-história de um conceito”, defendida em
1992: Freud foi um homem do seu tempo, não podemos compreender o edifício
conceitual que erigiu se não levarmos em conta, além de suas matrizes clínicas, o caldo
cultural em que estava imerso. Dos saberes de sua época, e mesmo daqueles que o
precederam e serviram de alicerces ao pensamento que lhe foi contemporâneo, extraía,
importava ferramentas nocionais com as quais construiu seus conceitos.
Qualquer que seja o viés escolhido para a compreensão do conceito, devemos
necessariamente nos perguntar que caminhos de inteligibilidade o conceito abre, o que
ele nos permite pensar e teorizar, de que modo é usado, qual sua função tanto no campo
da teoria como no da clínica, que vetores se criam após sua postulação.
Algumas correntes do pensamento psicanalítico pós-freudiano, como aquela que
trabalha com os princípios de Melanie Klein, radicalizam a idéia original mas focalizam
a pulsão de morte sobre o objeto tanto externo quanto interno -, reduzindo-a a uma
força de destruição, que visa tão somente destruir o objeto. Acreditamos ser essa uma
redução desvantajosa para a compreensão do conceito (PONTALIS, 2005). Esta
vertente kleiniana, de caráter mentalista, aproxima-se de uma concepção metafísica do
aparelho psíquico (PINHEIRO, 2000). Com sua visão inatista, praticamente
desconsidera os aspectos intersubjetivos na constituição do sujeito. Klein inaugura seu
pensar teórico nesse ponto avançado do freudismo dos anos 20, o que talvez justifique o
uso abusivo que ela faz do conceito de pulsão de morte. Voltaremos a esse assunto mais
adiante.
Acreditamos também que a teorização freudiana acerca do tema da morte pode
ser entendida em pelo menos dois planos de análise: o primeiro é o da idéia da morte
propriamente, o segundo é sobre a capacidade humana de infligir a morte ao outro.
Freud postula para si mesmo duas questões: uma é a que pergunta por que o
homem morre, o que é a morte, e, paralelamente, o que é a vida. Esta é uma antiga
pergunta que pertence ao domínio da filosofia; desde que o homem começou a teorizar
sobre sua existência, a filosofar, essa pergunta beira o absoluto e busca uma resposta
impossível. Apesar de criticar a idéia, Freud menciona, em um texto de 1915, que “os
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filósofos asseveraram que o enigma intelectual que colocava para o homem primordial o
quadro da morte o obrigou a refletir e tornou-se o começo de toda especulação”
(FREUD, 1915d/1986, p. 294).
Em vários textos de sua obra, indaga-se sobre o que é a morte; deteve-se, como
tantos outros pensadores que o precederam, no enigma da morte do homem, dedicou-se
a se perguntar como e por que se morre. O mistério da morte é o mesmo que permeia a
vida; pensar o que é a morte equivale a querer desvendar o sentido da vida. E para o
criador da psicanálise, vida é dificuldade, é desassossego, perturbação. Freud afirma,
mais de uma vez, que não existe, no Inconsciente, representação para a morte, sobretudo
para a morte de si mesmo. A afirmação universal que diz que todo homem é mortal, e
que se exibe nos manuais de lógica”, não traz consigo nenhum maior esclarecimento e
“nosso Inconsciente concede, hoje em dia, tão pouco espaço como outrora [nos
primórdios da humanidade] à representação da própria mortalidade” (FREUD,
1919a/1986, p. 241). Quando muito, o homem representa, de forma consciente, a morte
do outro mas para a morte de si não possibilidade de representação. Dessa forma, a
morte seria o verdadeiramente irrepresentável, o inefável. A morte é apócrifa, ninguém
é autor do relato da própria morte.
Encontramos essa mesma idéia num excelente artigo de Valabrega onde lemos
que além de a morte confrontar o homem com o problema metafísico fundamental, ela
pode ser considerada como a “metafísica da vida cotidiana” (VALABREGA, 1991, p.
165). Sobre esse tema, o homem nada sabe. Não se concebe a morte, ela é
precisamente o inconcebível, o impensável, o irrepresentável. A morte é a negatividade,
a não-entidade, o não-ser” (ibid, p. 166). Mais que constituir o desconhecido, é aquilo
que não se dá a conhecer, o incognoscível: inacessível à compreensão, ao pensamento, à
razão, à ciência e à experiência. Entretanto, apesar de irrepresentável, a morte sempre
foi representada, e muito. Acrescenta o autor a idéia de que existe, no que concerne a
morte, um vazio abissal entre ‘coisa’ e ‘palavra’; quando é nomeada, isto é, quando é
palavra, a morte não é coisa. E se ela é coisa, não possui palavra, é indizível. “Tal é o
paradoxo fundamental” (ibid, 167).
Esse plano da investigação freudiana, que consideramos como pertencendo ao
domínio da metafísica, se desdobrara na parte II de um pequeno ensaio, citado
acima; primoroso, escrito entre março e abril de 1915, seis meses depois da eclosão da
48
primeira guerra mundial, trata da relação do homem com a morte em geral e com sua
própria, em particular, tema anteriormente abordado no segundo ensaio de Totem e
tabu, de 1913. Freud introduz a questão constatando que o homem tem uma atitude
pouco sincera em relação ao tema da morte (FREUD, 1915d/1986, p. 290). Gosta de
aparentar que considera a morte algo natural, incontestável e inevitável. Entretanto,
atalha Freud, é-lhe impossível conceber a morte própria. Acrescenta que, no
Inconsciente, cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade. Prossegue
dizendo que geralmente destacamos o ocasionamento contingente da morte; assim,
deixamos claro nosso desejo de rebaixar a morte de necessidade a contingência. O
homem moderno, que ostenta uma atitude cultural e convencional diante da morte, se
desorganiza quando a morte atinge uma pessoa querida; a relação do homem primordial
Urmensch com a morte, que permanece oculta em cada um de nós, ressurge com
toda sua intensidade.
Para o homem primitivo, a morte de um outro, sobretudo se inimigo, lhe parecia
justa e era entendida como o aniquilamento daquilo que ele odiava. Discordando da
idéia de que a morte levou o homem primitivo a refletir sobre ela, e a, portanto,
filosofar, Freud afirma que frente ao cadáver do inimigo aniquilado este homem se
sentia triunfante, sem preocupar-se, até esse momento, com o enigma da vida e da
morte. Ser extremamente apaixonado, era mais cruel e malvado que os outros animais e
assassinava com prazer todo aquele que lhe era um estorvo. “Não temos de lhe atribuir o
instinto [Instinkt, em uma das raras vezes em que aparece no texto freudiano] que leva
outros animais a se abster de matar e devorar seres de sua própria espécie” (ibid, p.
293). E acrescenta que a morte própria foi, para o homem primitivo, tão inimaginável e
irreal como o é hoje para cada um de nós; o que levou o homem primordial a refletir
sobre a morte foi o conflito decorrente da morte de pessoas amadas mas ao mesmo
tempo estranhas e odiadas. Afirma que deste conflito de sentimentos nasceu a
psicologia”. Foi então a ambivalência aquilo que levou o homem a tentar compreender
sua perplexidade. E volta a asseverar que nosso Inconsciente se comporta, frente ao
problema da morte, de igual modo que o homem primordial: o homem da pré-história
sobrevive imutável em nosso Inconsciente. Nosso Inconsciente não crê na morte própria
e se conduz como se imortal fosse. Como a esta região do aparelho não podemos
49
atribuir um conteúdo negativo, Freud postula que nada pulsional em nós solicita a
crença na morte de si mesmo.
A respeito do tema da morte, do caráter inexorável e irredutível da finitude do
homem, escreve Monzani que, mesmo não-nomeado, ronda toda a temática freudiana do
desejo, do prazer e da satisfação (MONZANI, 1989). Segundo esse autor, Freud acaba
por nomear a nova pulsão de pulsão ‘de morte’ porque a morte lhe parece ser o
ordenador fundamental do pensamento freudiano, de ponta a ponta, a começar pelo
texto do Projeto, de 1895. Ali, a regulação do psíquico é apresentada baseando-se na
evacuação da energia, outra maneira de nos referirmos ao princípio de inércia, retomado
em 1920.
A partir da atenção dada por Freud ao tema da morte, muitos autores apontam
para o que havia de comum entre sua teoria e o Romantismo. A pulsão de morte
costuma ser invocada como um “sinal” que denuncia a ascendência romântica de Freud.
Segundo Loureiro, nada mais equivocado e perigoso que esse tipo de raciocínio
(LOUREIRO, 2001). São concepções radicalmente distintas, haveria uma
heterogeneidade fundamental entre a psicanálise e o Romantismo. Nos autores
românticos, salienta a autora, há uma predominância de um sentimento de ruptura que é
vivido como uma perda; o núcleo da atitude romântica gira em torno à tentativa de
restituir uma experiência de plenitude e de absoluto. A tentativa romântica sempre
preserva, mesmo que levemente encoberto e disfarçado, um anelo pela plenitude” (ibid,
p. 38). Nesse aspecto particular, poderíamos invocar uma idéia que nos parece bastante
análoga, a de uma tentativa de retorno ao narcisismo absoluto, irrestrito, perdido ao
nascer, de que fala Freud, eterno movimento ideal, impedido pela própria ‘urgência da
vida’ que impele o indivíduo a admitir essa plenitude como inalcançável. Freud afirma
que esse estado de narcisismo sem falhas, a completude inicial, poderia ser revivido
no sono sem sonho.
Entretanto, a finitude, aceita como tal, é, pois, o oposto, o avesso dos anseios
românticos de plenitude. A morte se apresentaria, para os românticos, como uma das
vias de realização de seus anseios mas se ela for uma espécie de finitude transitória:
só servirá aos objetivos românticos se apontar para algum tipo de transcendência. Se for
considerada, como o é pela psicanálise, como encerramento definitivo do ciclo vital,
torna-se inadequada à temática do Romantismo. Freud aponta para a produção do
50
pensamento transcendente e a crença nos espíritos como uma invenção que o homem
primitivo criou para explicar a discrepância entre a degradação, a desintegração do
corpo e a “vida eterna” da lembrança acerca dos mortos. “As alterações físicas do morto
lhe sugeriram a decomposição do indivíduo em um corpo e uma alma; a lembrança
duradoura o fez supor outras formas de existência depois da morte, que ele viu como
aparente” (FREUD, 1915d/1986, p. 297). O homem primitivo cria todas essas noções
com a intenção de despir a morte de sua real significação de fim de uma existência.
Acrescenta Freud que, se nos primórdios da humanidade, os conflitos de ambivalência
deram origem às doutrinas da alma e da ética, hoje são o motivo da neurose.
Como eixo dessa discussão, a autora acima mencionada se refere ao complexo
de castração como “uma encruzilhada na qual a ilusão de completude é posta em xeque
e leva o sujeito à aceitação de sua incompletude, imperfeição e finitude” (LOUREIRO,
2001, p. 41). Althusser considera a situação da castração, “última etapa do Édipo”,
como “trágica e benéfica” (ALTHUSSER, op. cit., p. 125). Além da castração, outras
explicações da metapsicologia seriam a prova cabal de que o pensamento freudiano se
opõe ao desejo romântico de “reencantamento do mundo.” Se, em 1915, Freud denuncia
a dissimetria entre discurso consciente e crenças inconscientes, entre essas a atitude
insincera diante da morte, em 1920 afirma, entre outras coisas, que os seres vivos
morrem devido a causas internas.
Se Freud critica as ilusões, as crenças, porque essas escondem as verdades
inconscientes, aceita os mitos, considerando que estes têm um papel importante no
trabalho de elaboração e simbolização. Os mitos são produtos do homem e que o
ajudam a aceitar seu destino, a se reconciliar com a ‘necessidade’ da morte. “Suportar a
vida é, e sempre será, o primeiro dever de todos os viventes. A ilusão perde todo valor
quando nos atrapalha nisso”. Todos os pensamentos mistico-religiosos procuram tirar da
morte seu significado de canceladora da vida (FREUD, 1915d/1986, p. 297).
Loureiro nos remete a Pelbart, que propõe duas grandes vertentes em que se
podem organizar as concepções de morte: a Morte e o Morrer. Escreve que se em Freud
podemos discernir algo como um “consentimento da passagem“ o Morrer -, no estilo
romântico percebe-se a morte vista como uma “alavanca para a totalização” a Morte
(PELBART, 1998). Utilizando esse pensamento, Loureiro assevera que não é a mesma
‘morte’ a que está em pauta, no Romantismo e em Freud, e que a existência de um
51
interesse compartilhado não é argumento suficiente para que não se enxerguem as
distinções fundamentais. “A psicanálise renuncia por completo ao desejo de absoluto
que caracteriza o projeto romântico” (LOUREIRO, op. cit., p. 46).
Gostaríamos de acrescentar que mais válida seria uma aproximação entre a
psicanálise e a tragédia: Freud afirma a dimensão trágica da existência do homem. A
dimensão trágica do ser psíquico é inerente à sua constituição, o mal-estar é inevitável e,
portanto, não encontra saída, não tem solução. Uma ilustração disso é a escolha a uma
referência ao trágico como expressão de uma vivência humana universal que é o
complexo de Édipo. Freud vai buscar suas referências nas tragédias, tanto de Sófocles
quanto de Shakespeare (BRANCO, 1993). O fundamento trágico do desejo emerge do
limite entre a vida e a morte. Além disso, em sua origem, a sexualidade humana é
incestuosa: o objeto de desejo do homem é, por definição, interditado. Também por esse
motivo, o ser humano é angustiado. Consideramos que algo intrinsecamente
traumático acerca da sexualidade; nosso desejo, nossa força vital, são absolutamente
transgressivos. Voltaremos a essa questão adiante.
O outro plano da investigação freudiana seria o das manifestações destrutivas do
homem: a segunda questão é a que pergunta por que o homem mata. Essa é uma
pergunta de cunho o apenas social e político como, principalmente, psicanalítico.
Apesar de vir afirmando que “o que chamamos nosso ‘Inconsciente’ (os estratos mais
profundos de nossa alma, compostos por moções pulsionais) não conhece
absolutamente nada negativo {Negatif}, nenhuma negação {Verneinung} os opostos
coincidem em seu interior -, e, por conseguinte, tampouco conhece a morte própria”,
nele “existem poderosos desejos de morte dirigidos àqueles que nos estorvam”
(FREUD, 1915d/1986, p. 298). Acrescenta: a julgar por nossas moções inconscientes
de desejo, somos também [como os primitivos] uma malta de assassinos”.
Parece-nos que o enigma dos impulsos hostis do homem de muito estava
claramente presente no pensamento de Freud; constata ser impossível negar que “o mais
terno e mais íntimo de nossos vínculos de amor (...) traz aderida uma partícula de
hostilidade, que pode incitar o desejo inconsciente de morte” (ibid, p. 300), aqui
dirigido a um outro. Os impulsos hostis estão sempre presentes e tudo o que de mais
sublime existe em nossa vida afetiva se deve a uma reação a eles. Uma vez tendo feito
essa assertiva, Freud passa a procurar saber qual força estaria por trás desses desejos
52
inconscientes de morte. Qual seria o lugar psíquico da morte que, até aquele momento
da teoria, o da primeira dualidade pulsional, não existiria para o Inconsciente?” Seria
“o inconsciente sempre desejante, sexualmente pulsional, afirmativo e sempre positivo
em sua busca permanente do objeto” (AB’SABER, op. cit., p. 52)? É essa a pergunta
que Freud tenta responder ao produzir o conceito de pulsão de morte. Segundo sua
postulação, a pulsão de morte corresponderia àquilo que está por trás de todos os
movimentos do homem no sentido da eliminação de um outro; eliminação,
aniquilamento, destruição, maus-tratos, agressão, humilhação, dominação, enfim, toda a
gama, toda a tonalidade afetiva com que a pulsão de morte se apresenta, mesclada a
Eros, na totalidade da conduta do homem. Para Freud, a pulsão de morte estaria na base
do arsenal de iniqüidades que, humanos, cometemos, mesmo que tais fenômenos não
sejam suficientes, como o o fora a biologia para o texto de 1920, para provar, dez
anos depois, a existência da pulsão de morte. A presença obsedante da morte, através do
evento da guerra, traz a Freud uma perplexidade sem igual e questiona sua reflexão
sobre a noção da morte e a possibilidade de ela ser uma conquista posterior do processo
psíquico secundário, algo ligado, numa primeira reflexão, às pulsões de
autoconservação do eu.
A leitura desse precioso artigo de Freud sobre a guerra nos faz compreender o
início de um processo que levaao que alguns autores consideram como “a poderosa
corrente de pessimismo” (BERCHERIE, 1983, p. 351) que tomará conta de seu
pensamento e conseqüentemente de suas preocupações teóricas: o “massacre” de 1914-
1918 o confronta com a brutalidade de comportamento do homem mais que qualquer
outro acontecimento. A idéia, muito difundida, de que Freud teria sido vencido por uma
maré de pessimismo por conta da guerra e de perdas pessoais, não nos parece ser a que
melhor corresponde ao movimento de seu pensamento e de sua produção teórica: nem
pessimismo, nem otimismo, menos ainda romantismo, conforme acabamos de
examinar: Freud mais facilmente se alinharia entre os pensadores trágicos, sobretudo
depois do advento da pulsão de morte: especialmente a partir do texto O mal-estar na
cultura, em que não vê saída para o homem, infeliz quase que por definição; sua
posição é marcada com esse traço da tragédia. “A pulsão de morte, como potência da
discórdia, em oposição à pulsão de vida, seria o signo mais eloqüente da inscrição do
discurso freudiano no registro do trágico” (BIRMAN, 2003, p. 73).
53
Um exemplo do pertencimento do pensamento de Freud no campo da filosofia
trágica é a carta que Freud escreve ao doutor Frederik van Eeden, psicopatologista
holandês mais conhecido como literato. Datada de 28 de dezembro de 1914, escrita
poucos meses depois do início da Primeira Grande Guerra e poucos meses antes da
redação do artigo que traz considerações sobre a guerra e a morte, acima mencionado,
nela Freud defende duas teses levantadas pela psicanálise. Escreve que a psicanálise,
partindo dos sonhos das pessoas normais e dos sintomas dos neuróticos, concluiu que
“os impulsos primitivos, selvagens e malignos da humanidade não desapareceram e
persistem recalcados, no Inconsciente” (FREUD, 1914b/1986, p. 302), onde aguardam o
momento propício para se manifestar. A psicanálise também demonstrou que nossas
faculdades intelectuais são fracas e dependentes, “joguete e instrumento de nossas
inclinações pulsionais e afetos”. Afirma Freud que talvez não tenha sido original em
suas descobertas já que muitos pensadores que o precederam já haviam formulado
idéias semelhantes. Mas a psicanálise foi a primeira disciplina a elaborar essas idéias
detalhadamente, e de forma científica, e a empregá-las para decifrar muitos enigmas da
vida. Observa Freud que “as crueldades e as injustiças pelas quais se tornam
responsáveis as nações as mais civilizadas, a maneira diferente com que julgam suas
próprias mentiras e crimes em comparação aos de seus inimigos”, falam a favor da
compreensão psicanalítica acerca das moções mais rudimentares dos homens.
Major investiga e comenta o uso da palavra crueldade nos textos freudianos de
1914 e 1915, em especial na carta que acabamos de examinar. Escreve o autor que se
por um lado Freud parece condenar e buscar a eliminação da crueldade e dos
comportamentos destrutivos do homem, por outro lado aponta para o caráter originário
e o-passível de ser desenraizado da pulsão de morte e da agressividade, tanto quanto
da pulsão de dominação. Desse modo, não podemos alimentar nenhuma ilusão quanto à
possibilidade da erradicação do mal entre os homens. Aponta para o fato de Freud ter
explicitamente considerado que os impulsos mais primitivos do homem não podem nem
jamais serão abolidos e que os homens estão sempre prontos a se conduzir de forma
enganadora ou estúpida ao mais sutil reaparecimento deles (MAJOR, 1986).
Mesmo não concordando com uma certa “personalização” dos motivos que
levaram Freud a dar novos e definitivos passos em sua conceitualização, o podemos
deixar de levar em conta que foi tendo como pano de fundo a guerra e a convicção que
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começa a depreender desse acontecimento que ele vê com outros olhos e passa a dar um
novo sentido ao material clínico. Com a guerra, a realidade da morte vinha para o
primeiro plano das indagações dos homens: a guerra trouxe a morte até muito perto de
Freud. Os fatos da clínica que evidentemente começam a transbordar o quadro teórico
precedente insistem no sentido de haver um reconhecimento conceitual daquilo que
poderíamos chamar de negativo na dinâmica anímica. Tampouco estava sozinho nessas
indagações; conforme mencionamos, as discussões acerca desse tema assim como
de vários outros - eram numerosas no grupo que se reuniu em torno dele. “A guerra”,
escreve Freud em outro artigo escrito em 1915 mas publicado apenas no ano seguinte,
“destruiu não a beleza (...)” como “pôs a descoberto nossa vida pulsional em sua
nudez, libertou em nosso interior os maus espíritos que julgávamos subjugados de
forma duradoura pela educação que durante séculos nos deram os mais nobres entre
nós” (FREUD, 1916/1986, p. 311).
Resumindo: uma pergunta é o que é a morte e por que o homem morre. Nessa
direção, Freud recorre aos conhecimentos da biologia e mesmo da embriologia os
exemplos usados em Além do princípio de prazer, tais como organismos unicelulares,
membrana protoplasmática, soma, falam disso. Em O estranho, Freud escreve que
“nossa biologia não pôde decidir ainda se a morte é o destino necessário de todo ser
vivo ou apenas uma contingência regular, talvez evitável, no reino da vida” (FREUD,
1919/1986, p. 241). Podemos compreender as referências biológicas encontradas nos
dois textos mencionados como um recurso àquela que é a ciência da natureza e de sua
parte mais misteriosa, a vida.
Ao mesmo tempo em que procura entender o que é a morte e por que se morre,
está tentando compreender o que é a vida e como ela surge. O grande incognoscível,
aquilo que efetivamente limita o alcance do conhecimento do homem, é o poder
descobrir o que existe antes de a vida se instalar e o que vem depois de a morte
acontecer. Essa questão corresponde à maior preocupação filosófica de todos os tempos,
sem resposta. Podemos mesmo pensar, como mencionamos acima, que o fundamento
trágico do desejo do homem emerge do limite entre a vida e a morte, da presença da
morte como o que de mais certo existe na vida, da consciência desse fato e de sua
inelutabilidade.
55
A outra pergunta, a de por que o homem mata, Freud tenta responder através de
seus conceitos e de suas teorias, sobretudo a segunda teoria pulsional. A espantosa onda
de violência e morte que atravessa a Europa dificilmente encontraria explicação
suficiente nas concepções psicanalíticas de até então. Inicialmente, perplexo diante dos
acontecimentos, Freud tenta explicá-los mediante a idéia de forças de destruição
externas, incompreensíveis dentro dos parâmetros de seu sistema, como um momento
de falência total de todas as exigências sublimatórias da civilização. Entretanto, um
frenesi destrutivo, e autodestrutivo, de tal dimensão, uma ‘paixão’ pela morte de tal
ordem o faz suspeitar a intervenção de um fator que encontra satisfação nas ações em si,
para além de qualquer motivação narcísica ou recalcante. É algo independente, de
caráter elementar, que não encontra motivação em um movimento defensivo, de
proteção de uma unidade egóica ou narcísica.
Apesar de ser voz corrente que o conceito de pulsão de morte tem uma data de
entrada na teoria psicanalítica, o ano de 1920 com o texto Mais além do princípio de
prazer, nos surpreendeu a constatação de que essa idéia e esse tema eram discutidos
entre os primeiros discípulos reunidos em torno de Freud. Assim como aconteceu com
outros conceitos, que percorreram um longo e árduo caminho de elaboração, de
digestão, de maturação, o conceito de pulsão de morte fez seu surgimento bem antes da
data estabelecida como a de sua fundação e pela palavra de outros membros da
incipiente sociedade psicanalítica vienense. A esse respeito, nos remetemos ao relato da
reunião científica de 24 de abril de 1907 e à fala de Wilhem Stekel, doutor em medicina
e escritor, um dos quatro primeiros membros convocados por Freud. Stekel, que acaba
por afastar-se do grupo pouco depois de Adler, de quem era grande amigo, apresenta um
trabalho intitulado “Psicologia e patologia da neurose angústia” aos seus colegas. Toma
como ponto de partida o sonho de uma paciente no qual acontecia “uma clara fusão da
morte e da sexualidade: nele aparece um homem que é, ao mesmo tempo, Eros e
Tanatos”. Propõe a tese de que toda angústia é temor à morte.
Demonstrando abertamente discordar da opinião de Freud, de que a neurose de
angústia seja provocada pelo coitus interruptus e que a origem da angústia esteja no
desvio da excitação somática da esfera psíquica, Stekel assevera estar convencido de
que na neurose de angústia, assim como em qualquer outra neurose, o essencial é o
conflito psíquico; neste caso, em particular, o conflito acontece entre a excitação sexual
56
e o rechaço da sexualidade. O que se converte em angústia é o desejo mais fraco. Para
ele, repetimos, de igual modo que as neuroses ditas ‘de defesa’, a formação da neurose
de angústia está eminentemente ligada ao conflito psíquico.
Prossegue em sua apresentação afirmando, entre outras coisas, que “em todos os
casos mencionados, a angústia sempre é um sintoma neurótico originado por uma
representação (sexual) penosa” (NUNBERG & FEDERN, 1979a, p. 193) e que a
angústia, como tal, deve ser examinada do ponto de vista da vida pulsional. Acrescenta
que o existem pulsões isoladas: a pulsão sexual, por exemplo, sempre se apresenta
acompanhada de duas pulsões: a pulsão de vida e a pulsão de morte. “A pulsão de vida e
a pulsão sexual amiúde são consideradas idênticas {sich ausleben}” (ibid, p. 194). Em
nota do tradutor, somos informados que sich ausleben’, curiosamente, significa
também viver de acordo com os próprios desejos, levar uma vida consagrada ao prazer
sensual, esgotar as próprias forças vitais; a tradução literal seria ‘esgotar-se na vida’.
Stekel prossegue dizendo que “quanto mais poderosa é a pulsão de vida, mais
desenvolvido está o sentimento de angústia” (ibidem). Citando Herman Swoboda,
filósofo e biólogo vienense, acrescenta que o coito é, sem dúvida, uma morte parcial.
Estranhas afirmações essas; também consideramos como vaga a forma com que ambas
as pulsões, de vida e de morte, são aqui tratadas. Entretanto, é digno de nota a
familiaridade com que Stekel se refere a essas duas pulsões, fazendo-nos supor que
esses eram termos conhecidos pela comunidade a quem se dirige. Finaliza sua fala
postulando que a neurose de angústia consiste na interação da pulsão de vida e a de
morte”.
A esta apresentação segue-se acalorado debate. O primeiro a se manifestar é
Rudolf Reitler, médico famoso em Viena quando se aproxima de Freud, em 1902.
Reafirma que tampouco pode conceber a idéia de que a neurose de angústia seja de
origem puramente somática. Aponta para mecanismos basicamente idênticos tanto na
neurose de angústia quanto na histeria e na neurose obsessiva: se o afeto separado não
se converte em manifestação somática, se transforma em angústia ou em compulsão. “A
angústia é algo decididamente psíquico: não é um desvio do psíquico (como o quer
Freud), mas antes um desvio para o psíquico” (ibidem). Muito interessante essa
intervenção de Reitler, prenunciando o que será conhecido como a segunda teoria da
angústia, proposta por Freud em 1926. A angústia como pertencendo ao registro do
57
psíquico e não apenas considerada como a transformação de uma energia não
descarregada. Reitler ainda discorda da idéia de que a satisfação sexual do homem
consista em esvaziar as vesículas seminais.
Paul Federn, também doutor em medicina, agrega que para ele tampouco é
compreensível a explicação freudiana de que a sexualidade insatisfeita se transforme em
angústia Além disso, argumenta que a pulsão de morte não tem nada de primário; é
antes uma fuga diante da angústia, isto é, deriva da própria angústia. “O desejo de
morrer é, na realidade, uma conseqüência do medo da morte” (ibid, p. 195).
Eduard Hitschmann, médico introduzido no grupo por Federn em 1905, declara-
se confuso e assombrado com a exposição de Stekel, que subverte a descrição freudiana
da neurose de angústia, de esta consistir em um estado quase puramente sico, ligado a
uma angústia sem conteúdo específico.
Stekel, além de tentar esclarecer o aspecto psíquico da neurose de angústia,
argumenta que provavelmente as objeções que a idéia de uma ‘pulsão de morte’
encontrou se devam, simplesmente, à infeliz escolha do termo. “O termo em si não
carece de valor (...) mas a pulsão de morte não é primária, de modo algum, e tem uma
base patológica”.
A discussão prossegue, sobretudo no que diz respeito aos aspectos orgânicos da
neurose de angústia. Fritz Wittels, também médico e escritor prolífico, que adere ao
grupo em 1907, assinala que não está seguro de que a angústia seja sempre o temor à
morte; a angústia o se relaciona com algo específico mas antes é um sentimento
primário. A angústia deu origem, provavelmente, ao primeiro filósofo” (ibid, p. 196).
Freud, em seu artigo sobre a guerra e a morte, de 1915, conforme mencionamos acima,
aborda essa mesma idéia, a de que a idéia da morte levou o homem a filosofar. Até esse
momento dos trabalhos do grupo, Freud aceitava a idéia de Otto Rank de que a origem
da angústia se situa no processo do nascimento. Adler prefere não ir o longe mas
admite que a angústia pode ser rastreada na infância.
Wittels aponta para o fato de a pulsão de morte acompanhar o amor ser uma
verdade tão antiga quanto o mundo. Tão antiga quanto os antigos, diríamos. Isidor
Sadger, outro médico que se contava entre os pioneiros, adianta que “a angústia é
sempre uma repetição tardia dos primeiros anos de vida da criança” (ibidem),
antecipando, ele também, a idéia de que a angústia é um traço de uma experiência
58
vivida e que, em determinadas circunstâncias, se repete, podendo, portanto, ser incluída
entre as representações puramente psíquicas. Sadger também identifica a exposição de
Stekel como uma aplicação das idéias de Jung, tornadas públicas em 1906, do momento
que usa uma palavra-estímulo para fazer falar o paciente resistente.
Freud se manifesta e contesta, em parte, a exposição de Stekel. Entre outras
observações, fala que os casos que este apresentou não são de neurose de angústia mas
sim de histeria; dessa forma, a psicologia da neurose de angústia que Stekel acaba de
apresentar não se sustenta. Acrescenta que “a angústia neurótica surge, como
contrapartida da angústia diante da vida, a partir de uma ameaça à pulsão sexual, assim
como a angústia comum tem sua origem em uma ameaça à pulsão de vida” (ibid, p.
197). Até esse momento de sua produção teórica, Freud postulava duas causas para a
angústia: as pulsões sexuais e a pulsão de autoconservação. Refuta que toda angústia
seja proveniente do psíquico defendendo a hipótese de uma angústia puramente
somática. Ao separar a angústia comum, diante da vida, da angústia neurótica, torna-se
insustentável afirmar que toda angústia é medo da morte. Pode até acontecer, finaliza,
que a angústia não esteja de maneira alguma ligada por elementos psíquicos. O medo
da morte prevalece com tanta freqüência porque a angústia ligada aos complexos
sexuais é substituída, na consciência, pelo temor à morte, que deriva da pulsão de vida”
(ibid, p. 199).
Ao fazer essa longa digressão, que nos levou aos primórdios da psicanálise como
instituição, quisemos mostrar que Freud não trabalhava sozinho, sem que essa assertiva
seja, em absoluto, depreciativa. Freud bebeu na fonte dos pensadores de seu tempo e
daqueles que o precederam. Como já apresentamos em outro trabalho (PEREIRA,
1992), as noções de pulsão, de recalque, de Inconsciente já se encontravam nas
reflexões de outros pensadores e filósofos. Além disso, aqueles que o cercaram nos
tempos iniciais da institucionalização da psicanálise aprendiam com ele mas também
pensavam suas práticas e introduziam idéias inovadoras. Um exemplo disso foi a
postulação de Federn, em 1906, acerca da proibição do incesto: ele já via nela um
produto da evolução histórica do homem, bem antes de Freud apresentar a idéia em
Totem e tabu, de 1912-13.
Encontramos outro exemplo para nossa hipótese de uma produção ‘grupal na
reunião científica de 3 de junho de 1908, quando Adler apresenta sua tese sobre a
59
agressão, que examinaremos no capítulo VI dessa tese. Os exemplos se multiplicam à
exaustão. Em 24 de maio de 1911, Karl Abraham apresenta um ensaio sobre Giovanni
Segantini e procura as razões para sua morte precoce em seu desejo inconsciente de
morrer, “que atraíam as forças do mal(NUNBERG & FEDERN, 1983, p. 269). A esse
respeito, Hugo Heller, primeiro editor de Imago, incitado pelo trabalho sobre as
premonições de morte, lembra uma observação aparentemente paradoxal de Freud
segundo o qual o homem não morre realmente de doença mas é o desejo de morrer,
existente no Inconsciente, que leva à morte. A vontade de morrer, ancorada no
Inconsciente, se transporta no consciente sob a forma de uma premonição: o “eu vou
morrer” substitui o originário “eu quero morrer”. Como sabemos, em 1920 Freud afirma
que, devido às pulsões de morte, prontas para levar o orgânico de volta ao inorgânico, o
organismo chega à morte por meios próprios. Nesse momento, entretanto, ele responde
à observação de Heller e ao trabalho de Abraham com uma frase curta e com um sentido
vago, em que diz que “a estrita distinção entre as doenças interiores e exteriores dá lugar
a um fator que abre a via para a infecção” (ibid, p. 270) e que Heller se deu conta disso
de maneira apropriada.
Na reunião de 15 de novembro de 1911, Theodor Reik, doutor em letras e
membro recém admitido na sociedade, apresenta seu trabalho “Da morte e da
sexualidade”, que veremos, em detalhes, em outro capítulo. Novamente se estabelece
uma troca de idéias entre os colegas e Federn é de opinião que os sonhos de morte
devem ser distinguidos dos sonhos de assassinato (ibid, p. 305). Victor Tausk, doutor
em direito e dico, se pergunta se, do ponto de vista psicológico, a morte é um
símbolo da sexualidade ou se podemos considerar a equação inversa; tanto a morte
quanto a sexualidade têm em comum, segundo seu pensamento, afastar o sujeito da
consciência do “eu sou”. Prossegue argumentando que nem todos os componentes da
sexualidade são igualmente capazes de ligar o amor e a morte, apenas aqueles que m
uma relação estreita com a destruição do sujeito, a saber, o sadismo e o masoquismo.
Nesse sentido, concorda com a idéia de Reik de que a morte por amor é um equivalente
masoquista da sexualidade. Hanns Sachs invoca a idéia de pecado original e retoma a
relação entre a vida após a morte e a vida antes do nascimento: o ventre materno seria o
símbolo maior da sexualidade e a terra, sob a qual o homem é enterrado, da morte.
Lembra a existência da expressão ‘morrer de prazer’ {vor Lust vergehen} como uma
60
ilustração do que está aqui sendo tratado. Eduard Hitschmann, também médico,
menciona a neurose obsessiva, afecção em que a sexualidade e os desejos de morte se
apresentam tão intimamente ligados. O desejo de morrer seria um prazer masoquista por
excelência.
Poderíamos nos estender indefinidamente nesses relatos das reuniões científicas
da sociedade mas não é esse nosso intento. Apenas nos interessa apontar para o fato de
que esse tipo de discussão praticamente abole as versões ‘oficiais’ e personalistas sobre
o advento do conceito de pulsão de morte; o ignoramos os fatos da vida de Freud
mortes na família, por exemplo - nem os acontecimentos externos tais como a guerra,
onipresente. Entretanto, observa-se, com clareza, que o tema da morte na vida e na vida
psíquica estava sendo exaustivamente discutido por esses pioneiros: falava-se, e muito,
da pulsão de morte. Restou-nos a querela sobre quem teria sido o primeiro a usar o
termo Thanatos, se Stekel ou Reik. Ambos afirmam ter sido os introdutores do termo, já
fazendo par com Eros.
Mais adiante, em 1912, é a vez da idéia de destruição no psiquismo ser
introduzida por Sabina Spielrein, tema examinado no capítulo dedicado à
destrutividade, o IV. Exemplos dessa criação teórica ‘coletiva’ não faltam e nos
referiremos a eles oportunamente.
O que dotou a obra de Freud de seu aspecto inédito foi a articulação produtiva
que fez com as idéias e noções existentes, dotando-as do estatuto de conceitos, e
fazendo-as alavancas para seus objetivos terapêuticos: além de um pensador com
enorme capacidade de abstração e mesmo de especulação, Freud tinha a preocupação
com a cura. As noções e idéias, muitas alheias ao próprio Freud, eram depuradas,
modificadas e então integradas a uma rede teórica articulada em si mesma e em
constante diálogo com os recursos técnicos e terapêuticos. Aquilo que faz com que
Freud ocupe o lugar de introdutor dos conceitos e mestre dos demais é sua potência
criativa, sua vontade de transformar e sua honestidade intelectual. Ele é um pensador
que não hesita em mudar o rumo de suas teses, em refazê-las, em admitir seus
equívocos. A nossa tentativa de melhor discernir os conceitos, objeto dessa tese, visa,
em última análise, aparelhar, de forma mais operacional, a prática do analista. Como
fica claro através de todo o texto da tese, os conceitos, se bem que discerníveis, se
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entrelaçam de tal forma que acabam por tornar bem difícil a tarefa a que nos
propusemos.
Os produtos provenientes da ligação da pulsão de morte com Eros vão ser, pois,
o tema desta tese. Neste último registro – o do ‘matar’ - encontramo-nos com aquilo que
efetivamente pertence ao campo da psicanálise. Por que se mata, o outro e o si mesmo,
pertence à esfera psicanalítica propriamente dita, ao território de sentido que essa
disciplina delimita. Como Freud escreve ao final de seu artigo sobre a guerra e a morte,
“não seria melhor deixar à morte, na realidade e em nossos pensamentos, o lugar que de
direito lhe pertence, e deixar aparecer um pouco mais nossa atitude inconsciente para
com ela, que até o presente sufocamos com tanto cuidado?” (FREUD, 1915d/1986,
p. 301)
Gostaríamos de acrescentar, dando início à nossa análise do movimento da
conceituação freudiana, que seu pensamento, nessa momentosa viragem de 1920,
demonstra ter sofrido uma espantosa evolução: o vemos enfatizar a dimensão da
explicação histórica para os fenômenos psíquicos, em detrimento de uma explicação até
então preferencial em termos dos fatores mecânicos, agora considerada por Freud como
extremamente parcial. Nesse momento de passagem, sua firme adesão aos princípios da
escola de Helmholtz, conforme vimos em nossa dissertação de mestrado, vacila e se
insinua uma adesão cada vez maior ao darwinismo. Mantém-se como vestígio de uma
estruturação de pensamento fundamentalmente mecanicista” a idéia de uma inércia
básica do vivo, a qual o segue seu destino apenas porque o caminho de volta lhe está
barrado.
Achamos importante e necessário mencionarmos um artigo de Ab’Saber, já
citado anteriormente, em que o autor faz uma análise da forma que adquire o trabalho de
Freud a partir do texto de 1920. Aponta para o fato de Freud, no início do artigo,
interromper sua reflexão sobre os sonhos das neuroses traumáticas e passar em seguida
à análise da brincadeira infantil com o carretel. Como sabemos, a brincadeira do fort-da,
em outros momentos mencionada, o atende aos objetivos freudianos de servir de
exemplo para o argumento fundamental aqui apresentado, o do princípio de retorno do
desprazer; nessa brincadeira, admite Freud que encontramos também uma tentativa de
dominação, uma busca de prazer pela recuperação do objeto, pela transformação da
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passividade em atividade. Em suma: é uma atividade envolvida na trama do prazer e
não apenas uma tendência ao retorno.
Mas insiste o autor na suspensão que sofre o trabalho e que pode ser considerada
como “algo incomum para o velho fôlego ordenador e positivo do primeiro psicanalista”
(AB’SABER, op. cit., p. 45). Entendemos que o autor aponta para uma espécie de
quebra na metodologia freudiana e assevera que é assim que Freud agirá daqui por
diante em seu trabalho teórico: cria uma linha de investigação que esboça um problema,
a suspende, para em seguida se lançar a outra. Essas alterações nas linhas de força do
seu pensamento estariam sendo ditadas por linhas de fuga de seu desejo? Considera que
a ordem sintática rigorosa dos trabalhos anteriores do criador da psicanálise, onde os
conceitos se articulavam criando a ordenação de um pensamento construtor, fica como
que suspensa. “Há algo de muito novo nesta forma de escrever e de pensar de Freud: as
formas de coordenação e da lógica dedutiva que o transformou em um construtor de
aparelhos e sistemas não são mais as mesmas” (ibid, p. 46). Utilizando a idéia de
Laplanche a respeito da derivação das entidades psicanalíticas (LAPLANCHE, 1978),
escreve o autor que a própria estrutura do texto aponta para um novo princípio que rege
o pensamento daquele que o escreve. Deixa de existir uma noção forte de causa e efeito,
a forma do trabalho joga Freud para além dos princípios epistêmicos que o sustentaram
até esse momento. A forma do trabalho denota a própria forma do pensar, agora
modificada. “O adensamento complexo da forma digressiva do texto cria um efeito
formal que marca a definição freudiana da pulsão de morte” (AB’SABER, op. cit.,
p. 47).
O feitio do texto, não só especulativo como totalmente em aberto, não como uma
conceituação estrita e necessária ao corpo definitivo da psicanálise mas como um ponto
de partida, caracteriza igualmente o conceito de que trata. É como se Freud, para a
evolução de sua ciência, tivesse que se render a essa nova forma de pensar e tolerar esse
grau de incerteza. Freud passa a se pensar como um analista em trabalho ou, melhor,
passa a escrever como um psicanalista. Deixando seu pensamento fluir sem muita
censura ou sem obedecer a princípios lógicos rígidos, produz o conceito menos acabado
e mais polêmico de toda sua metapsicologia.
Outra leitura é a que propõe que o podemos considerar esse momento fincado
em 1920 nem como palco de grandes rupturas nem como exemplo de uma simples
63
continuidade. Precisamos abrir mão da insistência no par de opostos
ruptura/continuidade para podermos acompanhar um movimento de pensamento que “se
estrutura lentamente frente aos seus próprios postulados e teses” (MONZANI ,op. cit.,
p. 232). Este autor considera que a virada dos anos 20 não implica a introdução de
conceitos totalmente novos e estranhos à trama conceitual da teoria psicanalítica até
então em vigor nem é uma simples repetição do que fora dito. Trata-se da
“rearticulação dos conceitos em função de algumas descobertas clínicas e da
emergência explícita de um pressuposto fundamental que até esse momento tinha
trabalhado subterraneamente na articulação da teoria” (ibid, p. 234).
Ainda uma outra leitura é a que toma como eixo de análise a produção do
conceito de narcisismo, em 1914, e algumas conseqüências específicas que advêm daí.
Segundo esse viés, a elaboração da segunda teoria pulsional não começa com o
aparecimento da pulsão de morte em 1920 mas com a elaboração do conceito de pulsão
de vida e com o aprofundamento do caráter ‘conservador’ da libido, causa última dessa
mudança decisiva (ROSENBERG, 1991/2003, p. 22). Postula que a pulsão sexual, a
então encarregada apenas da conservação da espécie, em oposição às pulsões de auto-
conservação, responsáveis pela conservação do indivíduo, passa a tomar para si a tarefa
da auto-conservação do indivíduo, a partir do advento do narcisismo. A conservação do
indivíduo é ligada à do aparelho psíquico e, no interior deste último, do eu, preposto e
guardião tanto do próprio aparelho psíquico quanto do indivíduo mesmo. Deste modo, a
conservação do eu passa a ser obra do seu investimento libidinal, isto é, do narcisismo.
Como a chave do entendimento freudiano é a idéia de conflito, como tanto a vida
psíquica quanto a psicopatologia são inconcebíveis sem a noção central de
conflitualidade e a base última do conflito psíquico é a oposição pulsional, Freud se
obrigado a produzir uma nova oposição para as pulsões sexuais, agora pulsões de vida,
estendidas nessa nova compreensão e atribuição de encargos. Essa é uma maneira
ligeiramente diferente de se tratar a ameaça de monismo pulsional com que Freud se
deparou com a postulação do narcisismo. Fala de uma “transformação dialética da
primeira teoria que desemboca na segunda, uma espécie de auto-superação proveniente
de seu interior” (ibid, p. 23).
Gostaríamos de sublinhar o fato de o artigo com as reflexões sobre a guerra e a
morte, de 1915, acima mencionado, ter sido escrito praticamente ao mesmo tempo em
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que Freud produz seus dois textos metapsicológicos sobre as pulsões e o recalque. Logo
depois, entre 4 e 23 de abril, escreve O Inconsciente e de 23 de abril a 4 de maio redige
o Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos e Luto e melancolia. Segundo
Jones, todos os artigos metapsicológicos foram escritos nesse período de sete semanas,
da primavera/verão de 1915, possivelmente aproveitando a interrupção da prática
clínica provocada pela guerra (JONES, 1989).
Segundo Valabrega, no artigo citado, “a morte tem sempre a última palavra, a
palavra do fim. Mas a perpetuação da espécie, a perseveração do ser são testemunhas de
uma certa vitória alternativa, temporária, contra o nada” (VALABREGA, op. cit., p.
175). Essa é a expressão do impasse do dualismo entre corpo e alma, entre soma e
psiquismo, a que Freud dedica sua segunda tópica, a última, sob a forma do dualismo
pulsional derradeiro que exprime o dilema, a dicotomia de vida e morte. Na teoria, essas
entidades de vida e morte recebem a denominação de ‘pulsões’.
A metapsicologia é a face mais especulativa da teoria psicanalítica e Freud a
apresenta exatamente assim, cada vez que faz a ela novas contribuições. Isso se torna
patente na apresentação da segunda teoria das pulsões no texto de 1920. Mas não temos
por que criticar esse aspecto especulativo da metapsicologia nem o fato de “nossa
mitologia” ser definida por seu inacabamento. Esse aspecto é o que dota o texto
freudiano da possibilidade de ser uma obra em processo, aberta. Lemos, no artigo de
1915, acima citado, que “são precisamente nossas considerações atuais sobre a morte
que levaram a certas modificações da teoria metapsicológica” (FREUD, 1915d/1986, p.
297). E também que a insistência no mandamento “não matarás”, forte proibição tão
somente justificada por ter se erigido contra um impulso igualmente forte, nos certifica
que descendemos de uma linhagem de assassinos que “tinham no sangue o desejo de
matar, como talvez nós mesmos ainda”.
Deparamo-nos também com a questão acerca do sentido exato desta
extraordinária virada no pensamento de Freud, o que nos leva a uma constante
indagação sobre a origem e a “filiação” do novo modelo que irá surgir. Supomos
igualmente que Freud é levado à fundação do novo dualismo pulsional a partir de sua
intuição acerca do caráter primordial e irredutível do par amor/ódio, desde sempre
presente em seus textos. Seguindo a postulação de Bercherie, já mencionada,
consideramos que são três os níveis a partir dos quais se pode empreender uma análise
65
dessa extraordinária mudança de inflexão na teoria freudiana: o nível do material
clínico, factual, capaz de modificar o olhar de Freud; o nível das apostas teóricas
implicadas em seu esforço de conceitualização; e o nível do encaminhamento conceitual
e da exigência da criação de modelos, ou modelização. Ressaltamos, entretanto, que o
estilo de conceitualização freudiana não decorre simplesmente nem dos materiais
concretos nem das dificuldades teóricas que integra. Seu movimento é mais amplo e
implica a importação de noções de outras disciplinas que atuarão como verdadeiras
ferramentas de trabalho, além de seu constante diálogo com colegas e discípulos.
A evolução do pensamento freudiano tem um caráter paradigmático para todos
seus seguidores, para todos nós, os analistas: funciona como uma espécie de filogênese,
de herança primordial, em relação ao que poderíamos considerar como a ontogênese de
nosso pensamento teórico, de nossa metapsicologia individual. Com ele aprendemos a
não nos dedicarmos exclusivamente à construção teórica sem tomar como ponto de
partida, rumo e chegada o fato clínico.
Freud inicia seu Além do princípio de prazer sustentando a hipótese de as
pulsões do eu serem responsáveis pela destrutividade. Em Pulsões e destinos de pulsão,
de 1915, não podendo fazer derivar o ódio da sexualidade e constatando a presença
inequívoca do sadismo como componente da vida sexual do sujeito, postula que a
agressividade seria o resultado da luta do eu contra a realidade adversa. Esta é a situação
vigente na primeira teoria pulsional. Depois de apresentar essa hipótese, ele se vê diante
do impasse criado pela introdução do narcisismo. Sendo o eu o primeiro objeto das
pulsões sexuais, ele também é animado por energia erótica. Torna-se, portanto,
necessário buscar outra origem para aquilo que é clinicamente observado como
manifestações da destrutividade e da agressividade, independente da sexualidade.
Estamos diante da premência da postulação do novo conceito. O dualismo em Freud
toma muitas formas; quando um dos pares parece não funcionar mais como oposição, o
dualismo se desloca, se reafirma como mais originário, se preciso no campo do mito.
Manter o dualismo é, para Freud, sua maior preocupação.
Se a produção do conceito de pulsão de morte livra Freud da ameaça de cair num
monismo pulsional, resta o perigo de um monismo energético: apesar de afirmar que
temos que postular a existência de uma outra energia ele nunca nomeou essa outra
energia e tudo o que temos é a energia libidinal e ‘uma outra’, necessária mas
66
indefinível. Como Freud não consegue esclarecer que energia seria própria das pulsões
de morte, uma tendência teórica em considerar as pulsões de morte como pura força,
atuando sobre um campo energético que seria um só, o da libido; uma pulsão originária
e sem representação. E, principalmente, é preciso que fique bem clara a diferença entre
energia e força. “Não por que confundir libido, conceito energético, com pulsão,
conceito dinâmico” (GARCIA-ROZA, 1990, p. 128).
Deparamo-nos, diante dessa observação, com uma espécie de aceitação, da parte
de Freud, da objeção de Jung, a que postulava a unidade da libido. Depois da introdução
do conceito de narcisismo, como resistir à crítica junguiana e manter o conflito, a
dualidade fundamental? Parece-nos que, ao introduzir uma versão pessoal da idéia de
Adler a respeito da agressividade, Freud consegue anular a importância e a dimensão da
posição teórica de Jung. “A psicanálise fagocitava seus desviantes” (BERCHERIE,
1983, p. 353). Entretanto, conforme veremos, a pulsão de morte não é a mesma coisa
que a agressão adleriana.
Existiriam, portanto, duas pulsões, radicalmente diferentes, irredutíveis uma à
outra posto que de diferentes naturezas; as duas ‘trabalham’ com a mesma cota
energética, libidinal. Mesmo que consideremos que existe apenas uma energia, esta é
operada por duas forças de objetivos opostos: Eros, cuja meta é ligar, é produzir
unidades cada vez mais complexas, e as pulsões de morte, cujo objetivo é desligar, é
romper as ligações existentes, é desfazer as ligações visando unidades cada vez mais
simples. O essencial da pulsão de morte é seu processo radical de desligamento, de
fragmentação, de desarticulação, de decomposição, de ruptura: mas também de
fechamento, processo cuja única finalidade seria a de se realizar e ao qual o caráter
repetitivo imprime a marca do pulsional (PONTALIS, 1976/2005). Força de
desligamento e de desencadeamento, mas de novas combinações. Sistema cada vez mais
fechado, ruptura cada vez mais explosiva, processo negador de toda dialética possível.
“Nada de sublimação, ainda que trágica, nada de dialética possível com a pulsão de
morte” (BAUDRILLARD, 1996, p. 203).
O conceito de pulsão de morte nos parece o correlato especulativo e ao mesmo
tempo ‘poético’, em sua essência, da idéia da existência, no humano, de uma força que
tende a levar o orgânico de volta ao inorgânico e, ao mesmo tempo, que pretende dar
conta dos ‘poderes das trevas’, do lado mais soturno do ser. Desse modo, estaria ligado
67
tanto ao aspecto humano mais desconhecido e falho quanto a uma concepção sombria
do humano, reveladora da alma mais profunda e de seus aspectos mais obscuros e
inatingíveis. Podemos indagar a qual exigência o conceito, em sua formulação, responde
e mesmo questionar sua pertinência ou necessidade.
Não pretendemos afirmar verdades atemporais que, como sabemos, facilmente
tornam-se sectárias. não podemos negar ao novo conceito o peso e a pregnância em
toda a dialetização da teoria psicanalítica. A pulsão de morte é uma solução
metapsicológica para vários impasses, tanto da clínica quanto da teoria, ao mesmo
tempo em que aponta para várias direções, no sentido de uma expansão do corpo
teórico. Além disso, justamente por ser um conceito muito discutível e discutido,
margem a que seja apropriado por diferentes vieses, o que acaba por desaguar em
encaminhamentos teóricos radicalmente diferentes. As escolas psicanalíticas pós-
freudianas se apoderaram do conceito de diversos modos e disso resultaram posições
teóricas absolutamente díspares, conforme veremos adiante. Essa é uma questão que
não poderemos tratar aqui da forma que seria adequada: tal caminho alargaria ou
alongaria indevidamente essa nossa exposição.
Ao mesmo tempo em que as pulsões de morte são responsáveis pelos
desligamentos, deve-se a elas as novas ligações, tornadas possíveis justamente pelas
rupturas, como uma espécie de condutoras da coreografia humana. A variedade da vida
pulsional se deve à ação das pulsões de morte. Pulsões de morte não são aquelas pulsões
que levam à morte, apenas. São pulsões que rompem as ligações e, ao desligar,
possibilitam novos enlaces e levam a vida pulsional a rios resultados, inclusive o da
morte biológica, física.
Para entendermos o conceito de pulsão de morte faz-se necessário trabalhar o
significado do conceito de pulsão, der Trieb. Muito foi dito sobre a escolha do termo
por Freud e de sua nítida distinção da noção de instinto, Instinkt. A palavra Trieb, antiga
e de origem germânica, é sinônimo de Instinkt, de raiz latina; esta tem clara conotação
cientificista e foi usada por Freud, no texto dos Três ensaios, para servir de ponto de
partida para a diferenciação e posterior definição da idéia de Trieb. A tradução de Trieb
por pulsão, em português, segue o neologismo criado em francês, pulsion. O verbo
correspondente, treiben, tem o mesmo sentido do inglês to drive. Este verbo tem
diferentes sentidos: tanto significa mover, fazer andar daí Treibstoff, combustível
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quanto boiar, ir à deriva, germinar e brotar. Dentro desses campos semânticos, temos
das Treiben, movimento, atividade, das Treibhaus, estufa, die Abtreibung, aborto. Além
da conotação comum de movimento donde Triebkraft, força motriz e Triebfeder, mola
impulsora, presente no texto conhecido como Projeto, de 1895 -, existe uma forte
ligação do termo com o campo da sexualidade. Assim, Triebmensch designa sujeito
sensual, apaixonado, aquele que segue seus ‘instintos’, impulsivo, que se deixa levar
pelos sentimentos e emoções; triebhaft qualifica o que é sensual, erótico; übertrieben,
aponta para o exagerado. Triebe, no plural, designam os apetites sensuais. Trieb pode
ser considerado como um termo masculino, que subentende uma imagem de força ou de
dominação viris (ANZIEU, 1984).
Segundo Andrade (1993), a palavra Trieb floresce na língua alemã à época do
surgimento do movimento Sturm und Drang, do jovem Goethe, de Schiller, de Lessing,
que pode traduzir-se como Tempestade e Impulso. Esse autor, trabalhando com os textos
de Carl Gustav Carus, um dos representantes máximos da medicina romântica, mostra
que ele é, entre os românticos, o que melhor sistematiza noções que mais se
aproximarão das postulações freudianas, sobretudo no que diz respeito à teoria das
pulsões. Informa-nos que Freud tinha dois livros de Carus em sua biblioteca, um deles
com anotações de próprio punho. Ao examinar uma série de 21 conferências, publicadas
em Dresden, de 1829 a 1830, encontra a seguinte afirmação: “o significado do
fortalecimento trazido pelo sono é devido ao fato de o homem regredir {rückkhert} ao
estado originário da forma de vida onde, neste núcleo pulsional {wo der Keim und
Trieb}, se enraíza toda a existência” (ANDRADE, 1993, p. 13). O termo alemão aponta
para aquilo que germina, que faz surgir; para a psicanálise, a pulsão não põe em
movimento como inaugura o psiquismo, o aparelho psíquico é fundado por essa força.
A pulsão, inicialmente definida dentro do registro da sexualidade, é um processo
dinâmico que tem uma fonte, que exerce uma pressão e que tem um alvo, atingido
através de um objeto. Este é um objeto construído, representado, podendo, pois, ser
considerado como pertencendo à linguagem. Do mesmo modo, a sexualidade, cujo
fundamento é postulado por Freud, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,
como sendo a pulsão, também pode ser entendida como um fenômeno da linguagem.
Processo dinâmico fala de uma sucessão de transformações em um sistema, provocadas
pela ão de uma força. A pulsão, ao percorrer o trajeto que vai da fonte ao alvo,
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imprime um movimento ao aparelho psíquico. No campo da psicanálise,
especificamente, dinâmico aponta para a perspectiva que considera os fenômenos
psíquicos como resultantes de um conflito, de uma composição de forças que exercem
certa pressão. Como característica da pulsão, em geral, está o fato de ser um impulso de
que não se pode fugir e que exige do aparelho psíquico certo trabalho. Ela é uma força
que movimenta determinada energia e faz com que essa energia circule e se distribua de
diferentes maneiras.
Dentro dos parâmetros da metapsicologia, encontra-se também o ponto de vista
econômico que, grosso modo, diz respeito a quantidades de energia: sua circulação,
repartição e distribuição. Essa energia é capaz de aumento, diminuição e equivalência,
segundo alguns princípios. Mas, para a psicanálise, esse não é o único sentido das
considerações econômicas. O termo também se refere a uma idéia da ciência geral que
diz que econômico é todo sistema cuja tendência é a de restaurar a estabilidade inicial,
após um estímulo que tenha ocasionado um aumento em seu nível interno de tensão.
Freud, ao postular o sistema chamado aparelho psíquico, o imagina como um sistema
econômico, que tem uma quantidade de energia que circula, aumenta, diminui e é
descarregada, tendendo, quando estimulado, a restaurar o estado de coisas anterior. O
aparelho psíquico, sendo um sistema econômico, quando excitado por um estímulo, vai
tender a pôr em ão determinado mecanismo que restaure a situação anterior à
estimulação. O conceito de pulsão é a construção teórica relativa a esse mecanismo. A
pulsão, no que ela tem de mais fundamental, seria o modo com que o sistema,
econômico, tenta se livrar da excitação causada pelo advento de uma estimulação, via
de regra interna e à qual não pode escapar por outros meios, como a fuga e a evitação. A
pulsão estimula o aparelho e providencia os meios de o aparelho se livrar do excesso de
excitação; é definida, então, como um processo dinâmico que consiste numa pressão ou
força, que faz tender o aparelho psíquico para um alvo, que é o de restaurar, através da
descarga, o estado anterior à estimulação. É uma medida do trabalho solicitado, pelo
corpo, ao aparato anímico.
Esse seria o único funcionamento se nada mais houvesse que não a tendência à
inércia e seu operador, que é a pulsão de morte. Ou, inversamente, como o querem
alguns autores, o princípio de inércia é que surge como um dos instrumentos a serviço
da pulsão de morte em seu esforço para se livrar das excitações vitais da libido
70
(BERCHERIE, 1983, p. 351). Dessa maneira, em 1920, Freud introduz o conceito de
pulsão de morte, estranha combinação de termos. A pulsão, até então considerada como
o fundamento da sexualidade e da vida, acha-se nesse momento aliada à palavra morte,
Todestrieb. A pulsão, força, até esse momento, ligada à autoconservação, à vida, à
sexualidade, agora se liga à morte. Aqui estamos diante de uma verdadeira inversão: a
própria concepção do funcionamento psíquico se encontra subvertida pela mutação
sofrida pela idéia de pulsão.
Outra dificuldade do novo conceito é manter, para ele, a mesma definição
anteriormente dada para a pulsão sexual. Por vezes, o termo ‘pulsão’ para pulsão de
morte parece inadequado. Apresenta-se o problema de dizer, em relação à pulsão de
morte, qual sua fonte, seu objeto, seu alvo? Que representações a acompanham, que
afetos? Em que a pulsão de morte corresponde ainda à definição anteriormente dada à
pulsão, ela que não possui nem fonte, nem objeto e que, entretanto, representa o
pulsional por excelência? (DOREY, 1984). Um dos argumentos mais freqüentemente
lançados pelos adversários da pulsão de morte é o de sustentar queo se vê muito bem
como fazer para encaixar as características descritas para a pulsão sexual ao aplicá-las
às pulsões de morte” (GREEN, 1988). Por isso, vale defini-la como pura força e não
como uma forma particular de pulsão, com algo que a represente. A eficácia das pulsões
de morte pode ser mais bem reconhecida em seu processo e não nas figuras que lhes
emprestamos.
Neste segundo dualismo, Freud invoca a pulsão de morte como a que está em
ação em todas as partes do aparelho psíquico, sem que possamos capturá-la em estado
puro. A pulsão de morte não parece nos falar de um pólo do conflito mas do conflito em
si, propriamente naquilo que ele tem de mais irredutível. O novo dualismo pulsional
parece transcender todas as distinções metapsicológicas até então vigentes, dando um
sentido aos princípios mais mecanicistas e funcionais. Se a pulsão de morte nos
apresenta esses problemas em sua definição, a pulsão sexual é compreendida como
uma força cuja fonte é uma excitação corporal, que exerce uma pressão sobre o aparato
anímico, impelindo-o a uma meta que é a descarga da excitação, passível de resolver o
estado de tensão trazido pelo estímulo. Para que o alvo seja atingido, é necessário um
objeto, contingente, fantasmático e parcial. Sendo uma exigência de trabalho imposta ao
aparelho psíquico por conta de seu enlace com o corpo, as pulsões são modalidades
71
complexas de respostas do aparelho ao que, para ele, é um corpo estranho, que o
incomoda mas que o obriga a funcionar.
Como dissemos, Freud inicia seu texto Além do princípio de prazer
retomando a questão de ser o princípio de prazer o princípio regulador do aparelho
psíquico. Escreve que o decurso dos processos anímicos é regulado automaticamente
pelo princípio de prazer, isto é, em todos os casos o aparelho psíquico é posto em
andamento por uma tensão desprazerosa e depois adota uma orientação em que o
resultado final coincide com uma diminuição dessa tensão. uma evitação de
desprazer ou uma produção de prazer (FREUD, 1920/1986, p. 7). Esse é o resultado
buscado pelo mecanismo de fuga, segundo o ponto de vista econômico da teoria
psicanalítica. Podemos indagar se a derrocada do princípio de prazer não implica,
necessariamente, um questionamento do ponto de vista econômico da metapsicologia.
Freud sempre sustentou que o prazer e o desprazer são a face subjetiva dos fenômenos
de aumento e diminuição das quantidades de excitação: acumular tensão é desprazeroso,
descarregar é prazeroso. Sabemos que sempre houve problemas acerca dessa questão.
Tentando contornar o que poderia haver de inconsistente nessa assertiva pois
sabemos que existem tensões que são prazerosas, como aquelas relativas às fases
iniciais do coito -, acrescenta Freud que o prazer e o desprazer na vida anímica estão
relacionados à quantidade de excitação presente e que não se encontra ligada. Ou seja: a
excitação em si não é o que mais preocupa o aparelho psíquico; o problema reside na
energia não-ligada. E como seria essa energia, livre? Sabemos que dentro do aparelho
psíquico não existe energia livre, a não ser muito pontualmente, num momento de
passagem; a energia pode estar frouxamente ligada ou mais tenazmente presa a suas
representações, processo psíquico primário ou processo psíquico secundário. No
primário, a energia é livremente móvel mas tem sempre uma ligação. O aparelho
psíquico se caracteriza e se esforça - pela ligação; aliás, o aparelho se constitui por
uma primeira ligação, primeira fixação da energia a uma representação. Energia
propriamente livre só existe fora do psíquico; seria esse o registro da pulsão de morte?
Sendo a pulsão de morte uma pulsão sem representação, se pensada
isoladamente, para efeitos didáticos, ela estaria no isso, lugar de impacto do pulsional
no aparelho psíquico, uma terra-de-ninguém. Afirma Freud que existe uma parte do isso
onde não existem representações, aberta para o corpo pulsional; podemos supor essa
72
como sendo a região das pulsões de morte antes do enlace por Eros, lugar, portanto,
extrapsíquico. Na conferência 31 de suas Novas conferências de introdução à
psicanálise, de 1933, escreve Freud, sobre o isso, que podemos chamá-lo “um caos,
uma caldeira cheia de excitações borbulhantes. Imaginamos que em seu extremo está
aberto para o somático, ali acolhe dentro de si as necessidades pulsionais que nele
encontram sua expressão psíquica, mas não podemos dizer em que substrato” (FREUD,
1933/1986, p. 68). E acrescenta que o isso se enche da energia das pulsões e que seu
único afã é o de buscar satisfação para as necessidades pulsionais em observância aos
ditames do princípio de prazer. A pulsão de morte se torna psíquica quando ligada por
Eros. Se precisarmos pensar uma pulsão de morte pura, ela deverá estar fora do
psíquico. Podemos recorrer ao Projeto para tentarmos uma melhor compreensão desse
problema.
Na Parte III do Projeto, capítulo [1], Freud aponta para um estado ligado da
energia que, com um investimento elevado, só permite uma pequena passagem de
corrente (FREUD, 1950[1985]/1986). Prossegue dizendo que o eu é uma massa de
neurônios desse tipo, que retêm seus investimentos, em estado ligado. Esse estado
ligado, que reúne investimentos elevados com corrente fraca, caracterizaria o processo
de pensamento. São concebíveis, entretanto, processos em que a descarga é desinibida.
O pensamento exemplificaria o processo psíquico secundário, e a descarga desinibida,
aliada a uma fraca ligação, seria própria do processo primário. Onde a descarga é
desinibida, menor presença da massa de neurônios permanentemente investidos, que
Freud aqui chama de eu, e que tem a função de inibir a descarga. Quanto mais o eu
domina a cena, tanto mais teremos energia ligada. Quanto mais tivermos uma descarga
desinibida, tanto mais estaremos em presença de processos que estão se dando à
margem ou à revelia desse eu.
Voltando ao texto de 1920, Freud seguimento a seu raciocínio invocando
Fechner e seu princípio de tendência à estabilidade (FREUD, 1920/1986, p. 9). Apóia-se
naquilo que conhece de científico para apresentar um suposto teórico de natureza
extremamente especulativa. Diz o princípio de estabilidade de Fechner que o aparato
deve manter a quantidade de excitação tão baixa quanto possível ou pelo menos
constante. Esse é o princípio de constância, correlato econômico do princípio de prazer.
A tendência desse aparelho, econômico, é a da descarga total da excitação, é o zero de
73
excitação, o esvaziamento absoluto; essa tendência é contrariada pela necessidade de se
empreender a ação específica, única capaz de fazer cessar a fonte de estimulação
interna. A própria vida luta por se manter, escreve Freud. A tendência à inércia é
contrariada e é substituída pelo princípio de constância, antes mesmo que entre em jogo
a questão do prazer. A série prazer-desprazer é possível depois que se estabelece o
regime da constância. O aparelho, antes inteiramente permeável à passagem da
excitação e não modificado por esta, vai aprender a reter um pouco dessa excitação para
poder empreender a ação específica; só depois a série prazer-desprazer se apresenta, por
comparação, porque existe uma diferença entre um estado anterior, de tensão
desprazerosa, com o estado que se segue, o do abaixamento da tensão através da
apresentação de um objeto adequado a pôr fim à tensão que emana de uma fonte
endógena de estímulos.
O princípio de prazer, que passa a regular o funcionamento do aparelho, é, por
sua vez, contrariado pela instalação do princípio de realidade: nem todo prazer é
possível, tem-se que levar em conta a realidade. O princípio de realidade está vinculado
às pulsões que cuidam da conservação do sujeito, agora também sexuais, como
sabemos. A realidade se impõe à inexorável obtenção de prazer e a instância do
aparelho que atende às imposições da realidade é o eu. O eu vai inibir a descarga
imediata, típica do processo psíquico primário, que obedece exclusivamente ao
princípio de prazer. A tendência à inércia não é abolida mas permanece somente no
nível de uma tendência; os princípios, que efetivamente regulam o funcionamento do
aparelho, são o de constância e de prazer, e, mais tarde, o de realidade. O princípio de
prazer deriva do princípio de constância, escreve Freud. E acrescenta: se o trabalho do
aparato anímico é o de manter baixa a quantidade de excitação, tudo aquilo que servir
para aumentá-la será percebido como disfuncional, isto é, desprazeroso. Tudo aquilo
que implica uma diminuição da funcionalidade do aparelho, é desprazeroso; prazeroso
equivale, então, aos processos capazes de diminuir a excitação dentro do aparelho,
tornando-o novamente funcional. Não devemos entender prazer apenas como uma
percepção subjetiva de júbilo, de alegria. De fato, o prazer é percebido como uma
modificação adequada do funcionamento do aparelho, comprometido por algo que, ao
aumentar a excitação nele, o torna disfuncional. O aparato anímico é uma quina cujo
bom funcionamento depende de uma quantidade ótima de excitação, baixa e constante.
74
A seguir, Freud introduz uma modificação: escreve que, na verdade, o princípio
de prazer não pode ser considerado como um império e sim como uma forte tendência,
passível de ser contrariada por outras forças ou circunstâncias. Estas são três, todas
bastante comuns. A primeira circunstância é algo que tem o caráter de uma lei: o
princípio de prazer é próprio de um método de funcionamento do aparelho que é
ineficaz, do ponto de vista da autoconservação do organismo. Em sua relação com o
mundo externo, o princípio de prazer pode até ser perigoso. Sob a influência das pulsões
de autoconservação do eu, o princípio de prazer é substituído pelo princípio de
realidade, o qual não abandona a intenção de obter prazer. Apenas exige adiamentos na
satisfação, efetua o abandono de uma série de possibilidades de obtê-la e impõe a
tolerância temporária do desprazer como uma etapa no longo e indireto caminho para o
prazer. As pulsões sexuais, difíceis de serem domesticadas, continuam a usar
exclusivamente o princípio de prazer como seu método de funcionamento.
A segunda circunstância são os conflitos e dissensões que acontecem no
aparelho psíquico, durante o desenvolvimento do eu. O eu se desenvolve em direção a
organizações mais complexas mas nem todas as pulsões obedecem a esse mesmo
desenvolvimento. Certas pulsões ou partes delas podem mostrar-se incompatíveis com
as pulsões restantes, que se combinam em uma unidade inclusiva, à qual se o nome
de eu. Aquelas ficam fora dessa unidade pelo processo do recalcamento. São mantidas
em níveis inferiores do desenvolvimento psíquico e afastadas, inicialmente, da
possibilidade de satisfação. Após o recalcamento, as pulsões buscam caminhos indiretos
para a satisfação através de um retorno sob a forma de sintoma. Este é percebido pelo eu
como produtor de desprazer. “Todo desprazer neurótico é dessa espécie, um prazer que
não pode ser sentido como tal” (ibid, p. 10). Tanto prazer quanto desprazer são
sentimentos conscientes e estão ligados ao eu. Aliás, a experiência da dor e por que
não, a da satisfação também pode ser entendida a partir da constituição da barreira
de um eu, mesmo que elementar.
A terceira causa de desprazer advém das causas perceptivas, que são de três
tipos: percepção de uma pressão por parte das pulsões insatisfeitas, percepção externa
daquilo que é penoso em si mesmo e percepção externa que excita expectativas
desprazerosas do aparelho, isto é, tudo aquilo que é sinal de perigo.
75
Baseado nessas considerações, Freud inicia o segundo capítulo do texto
abordando as circunstâncias que, de fato, contrariam o princípio de prazer. São elas os
sonhos das neuroses traumáticas, a brincadeira infantil do fort-da e a questão da
transferência em análise. Desses três exemplos, o único que se sustenta minimamente é
o dos sonhos das neuroses traumáticas.
Após estabelecer uma distinção entre neurose traumática resultante de graves
efrações físicas e o que ele chama de neurose traumática comum, Freud toma essa
última, proveniente de uma situação sem violência mecânica, e postula, para ela, uma
causação que repousa sobre o fator surpresa. Nesse caso, o que determina o surgimento
desta neurose é o fator susto, determinante no sentimento de terror que se estabelece.
Um ferimento ou dano sico opera contra o desenvolvimento dessa neurose. O
traumatismo físico vai ter a capacidade de mobilizar um forte investimento narcísico
que protegerá contra essa afecção. A neurose traumática está na dependência do
despreparo e caracteriza-se por uma constante reposição do trauma. Toda vez que
houver produção de angústia estaremos diante de uma psiconeurose. Parece-nos que no
exame do problema da neurose traumática, Freud não deixa claro se leva em conta a
estrutura psicopatológica pré-existente dos doentes considerados.
Freud aponta para o fato de termos três termos diferentes, em alemão, com
relação à idéia de perigo. Temos Angst, traduzido corretamente por angústia ou medo;
Furcht, receio, temor; e Schreck, equivalente a terror, pânico. Diante da angústia, sabe-
se que se teme mas não se sabe o que se teme; no receio, o objeto é definido, sabe-se o
que se teme; o terror implica o fator surpresa, a falta de preparação. A neurose
traumática, que se estabelece por uma não-preparação e por uma situação de susto,
apresenta sonhos em que o sujeito repete, de forma idêntica, a situação propiciadora do
trauma. Tais sonhos trazem o sonhador de volta à situação patogênica produzindo outro
susto. Este será o melhor exemplo que Freud vai dar para fundamentar a idéia da
compulsão à repetição. Estamos diante de um sonho que não se inclui na definição geral
dos sonhos, a de ser uma tentativa alucinatória de realização de desejos, não se
harmonizando, portanto, com o princípio de prazer. Aqui, pela primeira vez, um sonho
não é realização de desejo.
Fazendo um breve parêntese e, novamente, recorrendo ao Projeto, lemos ali que
a tensão interna e a não descarga adequada têm a capacidade de ‘desconjuntar’ o
76
aparelho; o eu, responsável pelos agenciamentos da excitação, à mercê de Qή, não pode
trabalhar como deve, o pode gerenciar os investimentos a contento. Isso significa que
não lhe é possível secundarizar e a excitação se obrigada a passar pelos trilhamentos
processo psíquico primário -, reeditando descargas inadequadas: alucinações,
vivências de dor e situações traumáticas. Ou seja: sob forte emoção, a razão não
funciona; um eu debilitado não se prepara, não orienta os direcionamentos dos
investimentos e estamos diante da compulsão de repetição.
Na brincadeira infantil podemos perceber uma tentativa de dominação de uma
situação desprazerosa, com a substituição de uma conduta de passividade por outra de
atividade. Nessa repetição podemos claramente identificar uma obtenção de prazer,
através da satisfação de uma pulsão de dominação. A pulsão de dominação, examinada
em Pulsões e destinos de pulsão, aparecia como uma pulsão não sexual, derivada do eu,
representando um esforço deste em controlar uma situação trazida pela realidade
adversa. Ou podemos considerar essa repetição como a satisfação de uma moção hostil,
de vingar-se da e por seu próprio afastamento; esta satisfação se enquadra sob o
domínio do princípio de prazer. Propõe considerarmos a brincadeira do fort-da como
um esforço de processar psiquicamente algo impressionante, de apoderar-se
inteiramente da situação. Pode tal processo exteriorizar-se de maneira primária e
independente do princípio de prazer? O próprio Freud aponta para o fato de aqui existir
um ganho de prazer, o que não coloca o exemplo dado fora do regime do prazer.
Talvez uma analogia possa ser feita entre um fora do princípio de prazer e a
idéia de uma zona externa mas limítrofe com o aparelho psíquico, campo da pulsão de
morte sem representação. Fora do psíquico mas território do pulsional propriamente,
antes de ser inscrito, antes de se apresentar psiquicamente. A compulsão à repetição,
comandada por esta força, nada mais seria que uma tentativa de inscrição, repetida
infinitas vezes; as pulsões de morte acossam o psíquico, pedindo uma resolução, um
encaminhamento, pela via do enlace por Eros e concessão de uma representação.
Podemos pensar em algo que, por estar fora do princípio de prazer, fica na fronteira
entre o psíquico e o não psíquico, tal como Freud definiu inicialmente a pulsão, apesar
de sexual. Fora do aparelho psíquico, existe um corpo excitado, prodigador de
estímulos. Esse aparelho, neuronal, segundo a mitologia do Projeto, funciona,
77
inicialmente, segundo o arco reflexo. Toda a excitação que incide nele é descarregada
inteiramente.
Já no terreno da psicanálise propriamente, poderíamos supor que existe um
aparelho psíquico por acontecer, um aparelho em potência, virtual, parte do ser humano.
Esse aparelho, ainda por se fundar, teria um entorno funcionando segundo o arco
reflexo. Sua fundação se daria, importando a terminologia do Projeto, no momento em
que os neurônios Φ, retendo, por uma exigência funcional, parte da excitação, se
transformam em neurônios Ψ, modificados indelevelmente pela passagem da excitação
e constituintes da memória do aparelho. O aparelho psíquico, agora com outra
linguagem, se funda no momento em que, pela primeira vez, a libido se fixa a uma
determinada representação. O primeiro neurônio que se modificou por reter um pouco
da excitação, eis aí o germe do aparelho neuronal do Projeto.
A pulsão de morte seria uma abstração, um constructo para dar conta desse mito
das origens: pura, funcionaria nesse modo Φ, pré-psíquico; ligada por Eros, daria
entrada no aparelho psíquico no momento em que este se funda, fundando-o. Podemos
pensar que o conceito de pulsão de morte foi criado para dar conta desse dispositivo de
descarga, inexistente na realidade do ser vivo, e que, hipoteticamente, funcionaria, se
sozinho, como um dispositivo à moda do arco reflexo. A maneira, também hipotética,
de a tendência à inércia ser atingida seria através do desligamento de todos os vínculos,
do desfazer de todas as ligações. Eros liga, visando formar unidades cada vez mais
complexas, possibilitadoras da neutralização da terrível potência das pulsões de morte;
quanto mais simples as unidades constituídas, mais fácil a tarefa de as pulsões de morte
descarregarem a excitação inteiramente. Eros é, portanto, uma força de ligação cujo
substrato energético é a libido. Esta é inteiramente psíquica, fora do psíquico não existe
libido. A pulsão de morte pode ser pensada como uma força na direção da descarga. O
princípio de prazer rege, exclusivamente, o aparelho psíquico, aquilo que está dentro
dele; o que está fora, e representa um mundo externo para o aparelho, é um sistema
estável, econômico, cuja tendência é à inércia. Este fora do aparelho, no ser humano, é
um sistema muito complexo com uma constância para se manter vivo. A vida dos
organismos unicelulares, idéia com a qual Freud trabalha no início de seu texto, é muito
facilmente derrotada pela tendência à inércia, ao nivelamento; nos organismos
78
complexos, a tarefa de nivelamento é postergada pela própria complexidade deles e, até
a morte ocorrer, o que vê são adiamentos. A vida se interessa, ela mesma, em se manter.
A terceira circunstância que parece contrariar o princípio de prazer é aquela que
se verifica na transferência. A clínica apresentava problemas para Freud, problemas
esses que o podiam ser explicados pela primeira teoria pulsional. Como explicar a
repetição na transferência de vivências infantis que, em nenhum momento, foram
propiciadoras de prazer? Afirma que o florescimento precoce da vida sexual infantil é
sepultado porque seus desejos são incompatíveis com a realidade e com a insuficiência
da etapa do desenvolvimento da criança. O amor infantil é impossível de se satisfazer
mas, apesar dessa característica, ele é repetido na transferência, sob a forma de situações
indesejadas e emoções penosas. Nenhum prazer houve no passado, nenhum prazer pode
haver no presente, na situação transferencial. Essa repetição, Freud a atribui à
compulsão à repetição. Nesse momento teórico, Freud não considera a compulsão como
uma resistência, o facinco anos mais tarde, no texto Inibição, sintoma e angústia.
Aqui, considera que a compulsão é algo típico do recalcado, emana dele, sendo que faz
equivaler Inconsciente a recalcado; acrescenta que o Inconsciente não oferece
resistência alguma aos esforços do tratamento. Em 1926, postula que a compulsão à
repetição é uma das cinco formas de resistência, talvez a mais difícil entre todas. Ela é a
resistência pica do isso, e pode também ser descrita como uma atração que os
protótipos inconscientes exercem sobre o pulsional recalcado. Outra maneira de
entendê-la seria através da idéia de uma resistência ao desenvolvimento, à
complexificação das tramas psíquicas, isto é, uma resistência ao trabalho de Eros, de
ligar e de transformar unidades simples em unidades cada vez mais complexas, uma
resistência a que se produzam novas representações capazes de acolher moções
pulsionais fora de jogo. É uma resistência radical, irredutível às operações defensivas,
obstáculo último ao trabalho psicanalítico. Mostra assim sua verdadeira face que é a
pulsão de morte. Freud afirma que a compulsão à repetição é aquilo que de mais
elementar, mais originário, mais pulsional {Triebhaft} existe (ibid, p. 23). Uma
resistência pela resistência, uma repetição pela repetição em si, um funcionamento
psíquico que escapa à tendência ao prazer por ser, rebelde, mais forte que ele.
Freud situa o problema do trauma e de sua repetição em um quadro do aparelho
psíquico inteiramente diferente daquele até então em vigor. Esta nova concepção nos
79
apresenta, de um lado, a repetição bruta em seu ciclo próprio, dominando a dinâmica
pulsional; do outro, o aparelho psíquico, se esforçando em operar a ligação dessa força.
Verifica-se uma imagem muito diferente do processo psíquico: a dinâmica pulsional
tenderia unicamente a reproduzir o passado, qualquer que seja seu conteúdo, isto é,
tendo sido ele fonte de prazer ou de dor. A ligação visaria agora não mais instalar o
controle do princípio de realidade sobre a onda cega do desejo, na busca do prazer
possível, mas a deter a repetição, perigo mortal para o sujeito. Inércia, repetição,
viscosidade dos investimentos, sobretudo dos neuróticos, reação terapêutica negativa,
todos os fatores do fracasso dos tratamentos e da impotência do analista juntam-se à
ambivalência e ao sadomasoquismo num conceito metapsicológico que leva em
consideração, pela primeira vez e de forma abrangente, o “caráter demoníaco” do
psiquismo humano. Agora, o lugar principal na nova dialética pulsional é ocupado pela
ambivalência e pelo sadomasoquismo; em segundo plano, ficam as oposições dos
sistemas tópicos. Diante dessas novidades, como fazer para não perder tudo aquilo
previamente conquistado pela metapsicologia, a saber, a teoria das pulsões, o modelo de
aparelho psíquico, os dois princípios de seu funcionamento? A teorização freudiana terá
que lançar mão de outros referentes para não fazer tabula rasa daquilo que postulara.
Voltaremos a isso adiante.
A idéia que até então fundamentara o funcionamento psíquico numa homeostase
energética vai a pique, que algo que contraria frontalmente o princípio de prazer,
que, palavras de Freud, o destrona. Todavia, podemos considerar que Freud acaba por
reintroduzir a idéia da homeostase ao atribuir os fatos da compulsão à repetição à pulsão
de morte, estando esta empenhada em diminuir as tensões, tendendo a levar o sistema de
volta ao estado inorgânico.
Estamos, portanto, diante de três ordens de problemas: houve questões internas à
teoria, que produziram impedimentos à sua dialetização; houve questões clínicas, como
a transferência e, especialmente, a transferência hostil, e seu corolário inevitável, o
sentimento de ódio; e houve, claro, questões culturais, acontecimentos momentosos que
levaram Freud a tentar pensar a destrutividade do ser humano, a destruição que dela
decorre, as guerras. Não devemos esquecer que na guerra a morte deixa de ser uma
contingência.
80
Como decorrência de seu novo conceito, vemos impor-se uma nova arquitetura
do aparelho. Ao considerar as resistências inconscientes, Freud desloca o conflito antes
apresentado em seus artigos metapsicológicos. O conflito não mais está dado em termos
de Inconsciente se opondo a Consciência, conforme a primeira tópica; ele agora é
compreendido como se dando entre eu coeso sede do processo secundário - e
recalcado, localizado no isso e regido pelo processo psíquico primário. Diferentemente
da primeira tópica, eminentemente descritiva, a segunda tópica, que aqui se anuncia, nos
apresenta a dinâmica do conflito acontecendo entre instâncias, sistemas. E podemos
dizer mais: o que a pulsão de morte gera de movimento e de defesas parece ter tomado o
lugar do próprio conflito entre desejo expresso pela sexualidade e as forças do recalque.
Gostaríamos de comentar que a segunda tópica, assim conhecida e sistematizada
em O eu e o isso, de 1923, resultante das profundas modificações teóricas introduzidas
pela novidade do conceito de pulsão de morte, apresenta diferenças fundamentais em
relação à primeira tópica, postulada nos artigos metapsicológicos. A primeira tópica
apresenta sistemas bem definidos e separados, com energias próprias e diferentes. A
cada sistema corresponde uma qualidade de energia psíquica peculiar, constituindo uma
“super” especialização. Esse aspecto se perde, em parte, com o advento da segunda
tópica. A abertura do aparelho em direção ao corpo, conforme mencionamos acima,
questão proposta em O eu e o isso e posteriormente na Conferência 31 das Novas
conferências de introdução à psicanálise, de 1932, põe em xeque a questão da
especialização da energia psíquica. Retomaremos essa discussão e suas conseqüências
clínicas mais adiante.
Como dissemos acima, dos três exemplos dados para justificar a postulação de
um além do princípio de prazer, o do sonho da neurose traumática é o que melhor se
sustenta. Entretanto, nem esse escapa de uma análise ulterior. Esses sonhos atendem à
primeira tarefa que se apresenta ao aparelho psíquico, que é a de dominar, conter a
excitação. O sonho da neurose traumática se repete na tentativa de executar esse
trabalho. Atende a uma demanda que ainda o é regida pela preocupação com a série
prazer/desprazer, sendo anterior a esta. Antes de o princípio de prazer passar a reger o
funcionamento psíquico e buscar na descarga uma diminuição de tensão, percebida
como um prazer, antes disso, é pedido a esse aparelho-a-ser que domine a excitação
para que não seja aniquilado, nivelado pela intensidade, pela magnitude dos estímulos
81
que a ele chegam. O ser humano tem um aparelho psíquico em potência, cabe a ele se
constituir neutralizando essas intensas excitações; o homem traz um germe de tudo o
que vai atualizar em termos de psiquismo. O eu é a instância que põe na ordem do dia a
herança filogenética transmitida de isso para isso, in potentia, uma virtualidade. Essas
potencialidades serão ou não atualizadas; constituem uma possibilidade, um
protopsiquismo, tornados atuais na vigência de um eu, constituindo, assim, uma
subjetividade. O que é herdado, que faz parte das características da espécie, é
transmitido ao isso, àquilo que existe desde o início: caberá ao eu pôr em andamento,
em funcionamento, essas possibilidades e o fará através da linguagem.
Para que esse aparelho se atualize é necessário, antes de mais nada, exercer a
contenção da excitação. Essa contenção é anterior ao estabelecimento do prazer como
princípio, estando, pois, fora dele, mas aponta para o futuro e o futuro é o princípio de
prazer. Podemos pensar que o sonho da neurose traumática corresponde a essa tentativa
de contenção, única possibilidade de o aparelho cumprir seu destino. Dominar é o
destino, é o que permite ao vir-a-ser tornar-se realmente psiquismo. A tentativa de
ligação é a tentativa de transformar a situação traumática em uma expectativa de
angústia. Freud acrescenta que é raro observarmos os motivos puros da compulsão à
repetição, não apoiados por outros motivos, apontando para a presença, em todos os
fenômenos da vida psíquica, de Eros. Temos sempre que considerar um ganho erótico
acompanhando a compulsão à repetição. Essa compulsão não só contraria o princípio de
prazer como o antecede, é o mais pulsional da pulsão. Podemos considerar que, mesmo
na repetição infinita do mesmo na situação do sonho da neurose traumática, o princípio
de prazer está presente; secundário, com menor ênfase e sem mando, mas presente.
Freud dirá o mesmo em O mal-estar na cultura: nem quando pensamos estar frente à
pura destrutividade, não podemos ignorar a presença de Eros. Em paralelo a isso, Freud
diz que Eros não está desde o início mas as pulsões de morte sim, conferindo a estas
um papel primordial na ontogênese.
A fundação do aparelho psíquico e o aparecimento do sujeito se dão,
miticamente, pelo recalque originário. Este acontece pelo investimento amoroso de um
outro sujeito: vem da exterioridade e constituirá o que de mais interior habita um
sujeito. Eros é inoculado pelo amor de um outro. Trágico amor esse, porém; o amor do
82
outro salva porque constitui o sujeito mas o desgraça se realizado, interditado que é.
Esse amor impossível marca o destino do humano, limitando-o. Torna-se um sem saída.
Podemos definir recalque originário como o resultado da fixação de uma pulsão
em um determinado representante ideativo, primeiro momento da operação do
recalcamento, e que resulta na formação de um certo número de representações
inconscientes que formarão o recalcado originário. O investimento amoroso de um outro
sujeito põe em andamento essa outra virtualidade do humano além do próprio
aparelho psíquico - que são as pulsões de vida, Eros. O recalque originário corresponde
à entrada do sujeito na ordem do sexual; essa inauguração é sempre traumática devido
ao descompasso existente entre a sexualidade do outro sujeito, adulto, e a possibilidade
de registro e inscrição significativa por parte da criança. A sedução, que está presente
nessa sexuação, é sempre traumática por conta do desnível entre os registros sexuais: o
que chega ao futuro aparelho psíquico e que ele, para se formar, precisa conter, é uma
excitação com uma intensidade e um sentido que ele não tem meios de, depois de
conter, encaminhar para uma representação. O aparelho psíquico se devota, antes de
mais nada, a conter a pura dispersão de energia que lhe chega do corpo pulsional; o
corpo erógeno, pulsional, transborda, em muito e sempre, a capacidade desse aparelho
em significar. Se não fosse assim, o funcionamento do aparelho pararia: há sempre um a
mais, um excesso, um resto, tanto de uma pulsão quanto da outra, que escapa à tentativa
desesperada de inscrição simbólica. Essa idéia confirma a hipótese de que não existe, no
psíquico, energia livre; o próprio aparelho é efeito da ligação primeira que é o recalque
originário. Para pensarmos uma energia livre, só se for do tipo arco reflexo, em ausência
e sem a mediação de um aparelho anímico. A ligação da energia que aflui ao aparato
anímico consiste numa mudança de estado de livre fluir ao estado quiescente.
A desgraça do ser humano é justamente o fato de essa primeira ligação, que o
introduz na ordem do sexual, marcá-lo com a impossibilidade, com a proibição, com um
amor que é incestuoso, edípico. Nunca a fundação do aparelho psíquico se dará de
forma isenta: sua fundação se dá numa proposta sexual que lhe será para sempre
proibida. O incesto é a marca do humano e nele se constitui a pulsão. Batendo-se
contra o interdito, a pulsão se manifesta ao estar contida, diferenciada, localizada pelo
envelope psíquico, e ela se torna desejo; ou ao fazer uma efração através desse envelope
– e ela se torna traumatismo” (ANZIEU, 1984, p. 53). A constituição do aparato
83
acontece através do mais proibido dos amores, ao qual o sujeito deverá renunciar; e isso
não é tudo. Diz-nos Freud, em O mal-estar na cultura, que existe uma maior renúncia,
mais fundamental que a da sexualidade: é a renúncia à agressividade, à destrutividade.
A qualidade do amor fundante também é decisiva: entenda-se por qualidade a proporção
da mescla pulsional em ação, quanto de pulsões de morte e quanto de Eros está ali
presente, investindo aquele sujeito-a-ser.
Pensando na singularidade do humano que é a linguagem podemos dizer que é
somente a partir do que se escuta, isto é, a interpretação apresentada por um outro, que
se pode inserir numa ordem de inteligibilidade e sentido mínimos aquilo que se sente,
que se experimenta sob a forma de meras impressões. Os afetos e sensações têm como
único decodificador e mediador a palavra que um outro nos dirige; toda a constituição
do aparelho psíquico é mediada pela palavra de um outro, falante, que funciona como
intérprete, como doador, como aquele que dota de nome e sentido o que
experimentamos. Ou seja: o outro dasentido àquilo que de mais íntimo possuímos, as
sensações próprias. O que temos de mais interno, um primeiro significante, por assim
dizer, corresponde a uma exterioridade, é um signo de exterioridade que nos advém
do outro. Somos construídos a partir de uma exterioridade que nomeia nossas sensações
e designa o que somos.
A mecânica desse aparelho seria, então, primeiro a contenção, depois a ligação
primária para, só depois, atingir a ligação secundária, exemplo da energia quiescente; ao
aparelho interessa mais e melhores ligações porque dessa forma ele consegue se
proteger melhor de acontecimentos traumáticos. Quanto mais investidos os elementos
do aparelho, mais fácil se torna receber mais energias afluentes, já dizia a lei da
inexcitabilidade dos sistemas. O aparelho busca ficar cada vez mais investido para
poder encaminhar os novos afluxos de excitação a ligações adequadas e, dessa forma,
defender-se. O perigo é o o simbolizado, isto é, o não ligado: esse é o traumático.
“Quanto mais um afeto é qualificado, menos ele é móvel; quanto mais desqualificado,
mais o processo em causa se aproxima do processo psíquico primário” (LAPLANCHE,
1984, p. 22). A situação traumática é aquela que encontra o aparelho despreparado: a
quantidade de excitação que o assola causa grandes estragos. A compulsão à repetição,
ferramenta para a teorização das pulsões de morte, se encarrega de repetir situações
84
traumáticas, não obstante o grande sofrimento que isso acarreta. Este é o fora do
princípio de prazer.
Freud mesmo nos diz que as pulsões constituem a unidade mínima do
psiquismo, seu elemento irredutível. São elas que fundam o aparelho, fixando-se em
uma ou em um grupo de representações, e são elas que se encarregam de descarregar a
excitação. Se existe algo aquém da pulsão, não é psíquico. O aparelho psíquico não é
causa mas sim efeito da contenção, produto do encontro do investimento do outro com a
potência de descarga que, na teoria, foi chamada de pulsão de morte. A contenção
produz o aparelho e este, daí por diante, levaadiante essa tarefa. O ser humano traz,
filogeneticamente, como afirma Freud, um aparelho psíquico em potência; o recalque
originário o atualiza. A intersubjetividade é que atualiza a potencialidade humana.
Gostaríamos de abrir mais um parêntese, dessa vez para discutir a questão da
dimensão do originário para Freud. Diante dos impasses constatados e da dificuldade
em integrar o novo modelo a tudo aquilo que a teoria produzira, ou “integrar o
aspecto qualitativo, teleológico do psiquismo, com motivações finalistas, a um sistema
que é fundamentalmente causalista, de tipo mecanicista” (BERCHERIE, 1983, p. 354),
a teorização freudiana vai apelar para o evolucionismo darwinista, radicalizando a
dialética do originário, a dimensão arqueológica e histórica. Esse movimento aparece
em Totem e tabu, de 1913, mas é nas conferências introdutórias à psicanálise, de 1915 a
1917, que Freud introduz a noção de fantasma originário. Na verdade, antes dessas
conferências, em um texto sobre um caso de paranóia, de 1915, ele utiliza o termo
Urphantasien, no sentido de estruturas fantasmáticas típicas que organizam a vida
fantasmática do sujeito, independentemente das experiências pessoais (FREUD,
1915e/1986, p. 265). Esses fantasmas originários, ou protofantasias, constituem uma
herança filogenética, daí sua universalidade. Aquilo que na pré-história foi realidade de
fato ter-se-ia tornado realidade psíquica, na forma desses fantasmas. Na conferência de
introdução de número 21, Freud escreve que o fantasma seria uma explicação
filogenética em que a realidade retomaria seu lugar, “uma realidade de outrora, dos
tempos primitivos da família humana” (FREUD, 1917/1986, p. 299). Desde muito cedo,
Freud procurou descobrir acontecimentos arcaicos reais capazes de ser o fundamento
último dos sintomas neuróticos. Chama de Urszenen esses acontecimentos reais,
traumatizantes, e cuja recordação é por vezes elaborada e disfarçada pela produção de
85
fantasmas (FREUD, 1950[1892-99]/1986, p. 292-5). São propriamente cenas e é difícil
rastrear a evolução dessa concepção realista das cenas até a noção de fantasma
originário: mas pode-se considerar que ela acompanhe o delineamento da noção
psicanalítica de fantasia. Toda vez que Freud se depara com algo da ordem do
irredutível às circunstâncias da história dramática do sujeito, do não passível de ser
decomposto, ele lança mão da noção de originário e trabalha com algo da ordem de um
“patrimônio filogenético”. E, para isso, recorre a suas referências biologizantes: o
darwinismo, onde história e biologia se cruzam. Vai mais além: utiliza o lamarckismo e
cria uma dimensão teórica própria. Na conferência 22 ele escreve que “os fantasmas
relatados em análise podem ter sido, outrora, nas fases primitivas da família humana,
realidade” (FREUD, 1917/1986, p. 315). Aqui, mais uma vez, o campo é o clínico, com
seus núcleos fantasmáticos inconscientes e uma realidade resistente à decomposição
analítica.
Prosseguindo em sua teorização a respeito da neurose traumática, Freud afirma
que o que facilita o despreparo do aparelho nessas circunstâncias é o baixo investimento
de seus elementos. Estes não estão aptos para ligar as quantidades de excitação que
sobrevêm, donde a ruptura dos esquemas de proteção contra estímulos, os Reizschutzen
do Projeto. A efração acontece porque uma não-preparação; a quantidade torna-se,
aqui, menos importante que a organização e o investimento suficiente do sistema apto a
receber a estimulação. Postula que se na neurose traumática os sonhos reconduzem tão
regularmente o sujeito à situação em que sofreu o trauma, claro está que esses sonhos
não estão a serviço da realização de desejos, cuja produção alucinatória tornou-se a
função quando sob o domínio do princípio de prazer. Os sonhos da neurose traumática
buscam recuperar o domínio sobre o estímulo por meio de um desenvolvimento de
angústia, cuja omissão, justamente, causou a neurose traumática. Trata-se, aqui, a bem
dizer, de um antes, de uma tarefa prévia. O sonho em questão cumpre a tarefa de
recuperar o domínio sobre a excitação produzindo angústia, colocando o acontecimento
traumático sob o domínio do princípio de prazer. Com isso, podemos voltar a afirmar
que o sonho da neurose traumática é um bom exemplo da ação da compulsão à
repetição, talvez o único. A angústia é o resultado de uma ligação, aponta para o fato
de algo já ter sido inscrito.
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Se pensarmos em um antes histórico, na gênese de um sujeito psíquico,
podemos também considerar que esse antes prevalece em determinadas situações:
aquelas em que o aparelho psíquico não se preparou para a maalta libidinal, para um
súbito incremento da excitação. A compulsão à repetição vai forçar a repetição do
mesmo na busca de uma repetição diferencial, enlaçando-se, a partir daí, com o
pulsional propriamente dito. Se não inscrição, o que acontece é péssimo tanto para a
economia do aparelho quanto para a vivência subjetiva do sujeito, que revive a situação
traumática sem poder dar a ela nenhum encaminhamento. A respeito disso, Freud fala
de um recuperar o domínio: não se trata aqui da inauguração do aparelho mas de um
aparelho constituído que perdeu o domínio da excitação por estar despreparado. O
susto é o que determina que aquela situação vivida pelo sujeito fique fora do campo do
princípio do prazer, à margem do psíquico propriamente. A compulsão à repetição trata
de recuperar esse domínio perdido para colocar o acontecimento sob o império do
princípio que rege, de fato, o funcionamento do aparato.
Gostaríamos de poder pensar que mesmo o sofrimento implica um prazer: é uma
solução econômicaque liga eroticamente as pulsões de morte. A melhor solução para
o funcionamento do aparato é sempre a descarga, mesmo que seja pelo sintoma: solução
e alívio porque o pior é aquilo que não é ligado, significado, a angústia, que o ameaça
com a fragmentação e a morte. O sofrimento expressado, nem que seja tão
primitivamente quanto o é no choro, é uma descarga, serve de encaminhamento para
uma excitação; ou melhor, serve de resolução para uma situação de perturbação
econômica. É um dispêndio de energia e dotação de um sentido.
Prossegue Freud escrevendo que essa é uma função do aparato anímico que, sem
exatamente contradizer o princípio de prazer, é dele independente e parece mais
originária que o propósito de obter prazer e evitar o desprazer (FREUD, 1920/1986, p.
31). Gostaríamos de sublinhar essa que nos parece uma das mais importantes idéias do
texto: a de que existe uma tarefa originária, um tempo, antes do fato de o prazer se
tornar princípio. A série prazer/desprazer existe, antes do estabelecimento de um
princípio, pelo fato de existir uma diferença. Existe a diferença de percepção, subjetiva,
de um estado de tensão e de uma diminuição dessa tensão, o equivalente a sensações
más e boas, disfuncionais e funcionais, desprazerosas e prazerosas.
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E Freud diz mais: esses sonhos das neuroses traumáticas são semelhantes aos
sonhos tidos durante as análises, que devolvem a recordação dos traumas psíquicos da
infância, obedecendo à compulsão à repetição apoiada no desejo de convocar o
esquecido e o recalcado. Assim, não seria a função originária do sonho eliminar, através
da realização do desejo, os motivos capazes de interromper o sono; só poderia se
apropriar dessa função depois que o conjunto da vida anímica tivesse aceitado o
domínio do princípio de prazer. Esse tempo anterior à tendência à realização de desejo
constituiria um além do princípio de prazer.
No capítulo V, Freud retoma a análise do trauma, que gora vai se centrar no
trauma proveniente de estímulos internos ou endógenos. Estes são responsáveis por
graves perturbações na economia do aparelho; as fontes mais profícuas dessa excitação
interna são as chamadas pulsões do organismo: “os representantes de todas as forças
eficazes que provêm do interior do corpo e se transferem ao aparato anímico” (ibid, p.
34). As moções que partem das pulsões {Triebregungen} o são do tipo ligado,
pertencem ao processo livremente móvel que se esforça pela descarga. Esses estímulos
provenientes do interior do corpo têm acesso ao psíquico através do isso, ponto de
impacto das pulsões. Essa é a instância do aparelho que está em comunicação direta
com o corpo e, em sua região propriamente psíquica, o Inconsciente, as pulsões ganham
suas primeiras representações. O fracasso dessa ligação provocaria no aparelho uma
perturbação análoga àquela da neurose traumática. As ligações anteriores à vigência do
princípio de prazer o constituir um primeiro esboço de organização do isso e, no
Inconsciente, as primeiras inscrições desses acontecimentos na ordem do simbólico.
À diferença de um traço, impressão inscrita e que passa a fazer parte da
memória, uma marca é proveniente também de uma impressão mas o se inscreve e
passa a fazer parte de uma memória atuada, aparecendo não como narrativa, o como
história, mas como atuação. Essas marcas, que poderíamos chamar de corporais, servem
de veículo de expressão a determinados sintomas que não chegaram a ganhar inscrição
psíquica como, por exemplo, os sintomas psicossomáticos. marcas que compõem
uma memória não-psíquica, sem representação, e que serão utilizadas como última
alternativa expressiva de alguma vivência do sujeito. A marca não se inscreve por
ausência de potência de ligação, responsabilidade de Eros. O traço se constitui enquanto
tal devido à ação de ligação própria das pulsões de vida. O sintoma psicossomático
88
pertence ao corpo porque nunca saiu dele, nunca teve acesso ao psiquismo. Esse fato se
aproxima da idéia inicial de Freud acerca das neuroses atuais. O corpo é a última
trincheira.
A seguir, Freud faz a afirmação de que uma pulsão seria um esforço, inerente ao
orgânico vivo, de reproduzir o estado anterior ao qual teve que renunciar sob a
influência de forças perturbadoras externas. “Seria a exteriorização da inércia na vida
orgânica” (ibid, p. 36). Essa definição é dada para a pulsão em geral apesar de parecer
uma definição própria à pulsão de morte. A estranheza é causada pelo fato de, nessa
definição, Freud reconhecer na pulsão a expressão da natureza conservadora do ser vivo
sendo que, até agora, nos acostumáramos à idéia de a pulsão ser o fator que esforça, que
impulsiona no sentido da mudança e do desenvolvimento. Todas as pulsões obedecem à
tendência mais universal da vida que é a tendência à inércia. São as forças externas as
que perturbam essa tendência. E Eros é a maior de todas essas forças externas. Eros vai
contrariar a tendência à inércia, alcançada rapidamente segundo a natureza desse
sistema vivo, econômico e estável. O organismo vivo morre por causas próprias,
finalmente realizando a tendência ao zero de excitação, e Eros é aquilo que cuida para
que o organismo adie esse final. A força de Eros conserva aquilo que teve início com o
próprio Eros. Uma vez instalada, a vida vai lutar para se manter e, para isso, se opõe às
pulsões de morte. As pulsões de vida são as guardiãs da vida, o fazer o possível para
que esta se conserve e acabe se consumindo por motivos internos.
Lemos que, junto às pulsões conservadoras que compelem à repetição, outras
que pressionam drängenno sentido da criação e do progresso. Entretanto, confirma,
todas as pulsões querem reproduzir um estado anterior. “Se todas as pulsões orgânicas
são conservadoras, adquiridas historicamente e dirigidas à regressão, ao
restabelecimento do anterior, teremos que atribuir os êxitos do desenvolvimento
orgânico à conta de influências externas, perturbadoras e desviantes” (ibid, p. 37). As
pulsões preservaram as variações impostas na repetição. uma herança transmitida
através do isso: as modificações ocorridas nas vivências humanas passam a fazer parte
do acervo filogenético da espécie através de seus registros nessa instância; o eu, diz
Freud, não está lá desde o início. Essa herança é proveniente da sedimentação de
incontáveis experiências-eu, exemplo do pensamento evolucionista, darwinista, de
Freud.
89
Nesse momento do texto, Freud afirma que, já que todo ser vivo morre, regressa
ao inorgânico por razões internas e próprias, na ausência de outras que possam encurtar
sua vida, podemos dizer que a meta de toda a vida é a morte (ibid, p. 38). Essa
afirmação acaba por levar a uma interpretação muito estreita da pulsão de morte. Como
ele postula que o orgânico é resultado de um acidente, de uma estimulação do
inorgânico e que a tendência do orgânico seria retornar ao inorgânico, seu novo conceito
acaba por ficar aderido a esse tipo de sentido, exclusivamente. Dessa maneira,
aproxima-se pulsão de morte do fato biológico da morte. Todavia, o novo conceito
aponta para outros fenômenos da vida psíquica, fenômenos vitais que precisam da ação
da pulsão de morte para que aconteçam, mantendo, esta última, sempre, seu caráter
disjuntivo. A variação na vida psíquica está na dependência da ação desta pulsão, que é
a de desligar. Se a vida fosse deixada a cargo de Eros somente, estaríamos diante de
uma infinita monotonia. Se não houvesse o desligamento produzido pela pulsão de
morte, não haveria a possibilidade de um religar diferente. A pulsão de morte, portanto,
também está presente em movimentos e aspectos progressivos, dependendo esse sentido
de progresso da ‘qualidade’ da mescla pulsional. Dessa forma, estabelece-se
definitivamente a importância, teórica e prática, desta mescla. duas forças opostas,
que visam metas inteiramente diferentes, mas que estão sempre conjugadas; são opostas
mas se combinam, cooperam. O resultado final vai depender da relação entre essas duas
forças: relação quantitativa, é claro, mas também qualitativa. O resultado, e aí
apontamos para os derivados dessas mesclas, variará conforme o momento do
desenvolvimento psicossexual do sujeito, do desenvolvimento de sua libido, do
desenvolvimento de seu eu. Uma pulsão visa ligar, a outra, desligar. Uma quer produzir
unidades mais complexas, a outra quer retornar a unidades mais simples porque, quanto
mais simples, mais fácil se torna, para ela, a pulsão de morte, atingir seu objetivo. Freud
escreve que Eros se apresenta com o intuito de neutralizar a potência terrível das
pulsões de morte; e o faz através das ligações. Quanto mais ligações houver, menos
potente a força das pulsões de morte, mais Eros consegue sujeitá-las, domesticá-las.
Quanto mais adiantado o sujeito estiver, no que diz respeito à complexidade de seu
aparelho psíquico, dado pela fase em que se encontra e os recursos de que dispõe, mais
e melhores ligações seu eu, representante de Eros, será capaz de fazer, produzindo como
90
resultado derivados em que a força da pulsão de morte estará amenizada. Assim, em vez
de destruição, poderá acontecer uma dominação ou uma agressão ao objeto.
Conforme encontramos no Projeto, a transmissão da excitação no sistema Ψ se
dá por Komplication, isto é, complexificação, complicação. Em vez de a excitação
percorrer apenas o caminho facilitado e, dessa forma, conseguir se descarregar mais
rapidamente e de forma mais completa, em Ψ ela vai obedecer ao encaminhamento, à
inibição imposta pelo eu, que é composto por um conjunto de neurônios constantemente
investidos. O eu dará à excitação um curso que lhe seja mais adequado em vez de deixá-
la livre, seguindo o processo primário, para obedecer ao automatismo da facilitação.
Este representa graves ameaças à integridade e estabilidade do aparato: pode comandar
uma descarga em ausência do objeto real de satisfação e com isso produzir uma
frustração, ou, pior ainda, permitir que a excitação percorra o trilhamento deixado por
uma experiência de dor, capaz de deixar, após sua passagem, enormes facilitações. O
processo psíquico primário constitui um funcionamento extremamente perigoso para o
aparelho, defensivo por definição, que está sempre pronto a evitar o incremento de
excitação e o concomitante desprazer. Repetir o investimento das marcas deixadas por
uma vivência de dor constituiria o que, em 1920, Freud chama de situação traumática.
Falhou o eu em emitir, para ele mesmo, o sinal de angústia que poria em andamento
seus mecanismos de defesa. Diante disso, a situação se repete, seja no sonho seja na
própria relação transferencial, trazendo de volta apenas sofrimento. Ligar essa
experiência seria, secundarizando o processo e mitigando a força da pulsão de morte,
trazê-la para a esfera do eu. A pulsão de morte é, para o eu, uma grande ameaça de
desorganização, de fragmentação e cabe a Eros a neutralização dessa demoníaca força, a
‘domesticação’ de sua potência desagregadora, até poder, finalmente, utilizá-la a seu
favor.
É interessante observarmos Freud fazendo, em seu texto, oposição a ele mesmo.
Começa sugerindo que o ódio tem a ver com as pulsões do eu e, lentamente, vai
desfazendo essa hipótese. É como se estivéssemos vendo a tensão em seu próprio
pensamento, um esforçar, um impelir – drängen - em direção ao novo conceito.
Retomando a primeira oposição, entre pulsões sexuais e pulsões de
autoconservação, Freud verifica que o estatuto das pulsões de autoconservação
apresenta notável oposição com o pressuposto de que a vida pulsional em seu conjunto
91
serve à provocação da morte. Sob esse aspecto, as pulsões de autoconservação, assim
como as de dominação, nada mais são que pulsões parciais destinadas a assegurar o
caminho aa morte peculiar do organismo e a afastar outras possibilidades de regresso
ao inorgânico que não sejam as imanentes, ou seja, próprias daquele sistema. O
organismo só quer morrer à sua maneira, esses guardiões da vida foram originariamente
lacaios da morte. Então, Freud, retomando o raciocínio exposto em Pulsões e destinos
de pulsão, de que o ódio podia emanar das pulsões do eu, ou de autoconservação,
inicia todo um trabalho de desmonte de seu próprio pensamento. Afirma que o
organismo vivo luta com a máxima energia contra perigos que poderiam levá-lo a
alcançar sua meta vital – a morte – por um caminho mais curto. Essa conduta é
característica de um pugnar puramente pulsional, diferente de um brigar inteligente. Em
Além do princípio de prazer uma retomada do fio de pensamento interrompido na
última parte do artigo metapsicológico sobre as pulsões, onde se lê que o amor de objeto
nos mostra uma segunda polaridade, a que permeia amor (ternura) e ódio
(agressividade). As bases do novo dualismo estão aí assentadas.
Entretanto, assevera, as coisas não podem se passar bem assim porque
pulsões, as sexuais, que conservam a estrutura originária da substância viva, levando à
idéia de uma imortalidade potencial. As pulsões que vigiam os destinos desses
organismos que sobrevivem ao indivíduo constituem o grupo das pulsões sexuais.
Apesar de comandarem a perpetuação da vida, são também conservadoras porque
espelham estados anteriores da substância viva. Por conservarem a vida por períodos
mais longos, resistindo a ingerências externas, elas são as genuínas pulsões de vida, que
contrariam o propósito das outras pulsões, nesse momento do texto ainda as de
autoconservação. Entretanto, aquilo que é recalcado nunca pára de aspirar a uma plena
satisfação, nunca alcançada através da formação de sintomas ou sublimações; a tensão
desejante não pode ser cancelada senão pela repetição de uma vivência primária de
satisfação. A diferença entre o prazer conseguido e a satisfação pretendida é o fator
pulsionante. O caminho regressivo, obra da força da pulsão de morte, é o único capaz de
trazer a satisfação almejada. Porém, acrescenta, essa regressão é impedida pelas
resistências em virtude das quais os recalques se mantêm. A instância psíquica que
mantém os recalques é a mesma que os executa, o eu. O eu se opõe à consecução da
meta do zero de excitação. O aparelho psíquico se mantém através dos recalques; a
92
manutenção dos recalques acaba por impor uma direção progressiva para os fatos
psíquicos. Essa é uma abordagem pela positividade do recalque: ele o é somente o
procedimento que impede algumas satisfações. O recalque originário divide o aparelho
e cumpre o destino do humano, tornando-se indispensável à manutenção da vida, da
existência do aparelho anímico, da saúde psíquica. Quando pensamos em um além, um
fora do princípio do prazer, estamos falando de uma força que escapa da potência
organizadora do eu e cujo principal operador é o recalque. Um eu bem investido tem à
sua disposição maiores quantidades de libido narcísica para neutralizar a potência
destrutiva, disruptiva das pulsões de morte.
Por esse caminho de raciocínio, Freud constata que o eu não pode estar do lado
das pulsões de morte; ele é o representante-mor de Eros. Por ser um sistema
constantemente investido, capaz de receber ainda maiores investimentos e encaminhá-
los, o eu é capaz de inibir um processo primário, que tenderia à descarga. E o eu, desde
o texto sobre o narcisismo, de 1914, é compreendido como constituído através do
investimento da libido, sendo, portanto, também sexual. Quando Eros não é suficiente
para manter o eu coeso, ele se fragmenta e deixa de exercer suas funções; esse é o caso
no surto psicótico. Estando as funções do eu abolidas, ele mesmo fica dominado pelo
caos pulsional. Sendo Eros insuficiente em seu papel de ligação, as pulsões de morte são
deixadas à vontade para exercer sua função, a de desligar e levar as unidades complexas
de volta a unidades cada vez menores; se Eros se demonstrou incapaz de manter as
pulsões de morte sob ligação, estas fazem um movimento violento e radical no sentido
da regressão a unidades cada vez menores. O eu coeso é uma unidade firme que tende a
se complexificar cada vez mais, na dependência da potência de Eros.
Ainda no capítulo VI, Freud hesita quanto à oposição fundamental, a que
constata que de um lado estão as pulsões sexuais, que ele passa a chamar de pulsões de
vida, e do outro as pulsões de morte. A oposição anterior se demonstra insuficiente.
“Nossa concepção foi, desde o começo, dualista, e o é de maneira ainda mais nítida
hoje, quando deixamos de chamar os opostos de pulsões egóicas e pulsões sexuais, para
dar-lhes o nome de pulsões de vida e pulsões de morte” (ibid, p. 51). Como dissemos, o
amor de objeto aponta o caminho para a polaridade existente entre ternura e ódio ou
agressão. Não é possível derivar de Eros, conservador da vida, a pulsão sádica que visa
danificar o objeto. Assim, Freud pretende pôr fim a um assunto que o atormenta
93
muito. “Esse sadismo é, na verdade, uma pulsão de morte expulsa do eu pelo esforço e a
influência da libido narcísica” (ibid, p. 53).
O texto de Freud nos convida a acompanhá-lo em sua dificuldade diante desse
novo conceito, que “produz uma impressão diretamente mística” (ibidem), quase
inaceitável para um homem filiado à ciência positivista de seu tempo. Podemos
considerar que, no momento da redação do Além do princípio de prazer e da postulão
do novo conceito, que implica a introdução de uma verdadeira teleologia pulsional, uma
outra tradição cultural se infiltra em seu pensamento. Uma certa reação globalista
reatava com as correntes filosóficas “contra as quais o positivismo cientificista do fim
do século XIX havia construído sua psicologia sem alma” (BERCHERIE, 1983, p. 355).
Esse movimento toma emprestados conceitos e intuições dos espiritualistas franceses,
do kantismo e do pós-kantismo, de Aristóteles, do vitalismo, para construir a nova
psicologia. E Freud toma emprestadas suas ferramentas tanto de seu passado de
fisiologista da escola de Helmholtz quanto da sua adorada filosofia da Natureza, que o
encaminha para a medicina, da sua metafísica romântica, da qual o afastara Brucke,
primeiro mestre. A partir dessa concepção que faz da Natureza um ser subjetivo e todo-
poderoso, inaugurada para Freud pelo manifesto de Goethe, ele reencontra certa
tradição, invocando os herdeiros de Schelling e dos românticos: Fechner, já mencionado
desde as primeiras páginas do texto de 1920, e Schopenhauer, em quem Freud descobre,
atônito, pensamentos semelhantes à sua postulação da pulsão de morte e alusões ao mito
platônico por ele também adotado. Na verdade, consideramos haver grande semelhança
entre os pensadores pré-socráticos e a Naturphilosophie: esta está muito mais próxima
do mito e das cosmologias que os grandes metafísicos. Estamos diante do Freud
“místico”: não mais apenas o domínio físico-químico da escola de Helmholtz mas o
lamarckismo de Darwin, a Natureza antropomórfica de Goethe e Schelling, o
naturalismo antropomórfico de Groddeck, de quem Freud toma o termo ‘isso’ para
designar a nova instância psíquica.
A pulsão de morte representa o inefável, o inalcançável, o indefinível; a pulsão
sexual, posto que considerado como o pulsional capturado pela subjetividade,
propriamente dentro do psíquico, possibilita que falemos dela com um pouco mais de
desenvoltura. A pulsão de morte se alinha do lado daquilo que é inacessível ao
conhecimento, praticamente uma coisa-em-si kantiana, “afastadíssima de qualquer
94
evidência” (FREUD, 1920/1986, p. 53). Sem estar enlaçada por Eros, torna-se indizível.
Como a psicanálise tem como objeto de estudo o aparelho psíquico, ao abordarmos o
conceito de pulsão de morte nos colocamos num além de nosso campo, num fora de
nosso registro.
A postulação do conceito de pulsão de morte tem uma razão de ser interna à
teoria. Além das dificuldades clínicas, além das evidências na ordem dos fenômenos da
vida, Freud viu-se diante de um impasse teórico, conceitual, criado pela introdução do
conceito de narcisismo. Ou ele postulava uma outra e radical dualidade para as forças
em ação no psiquismo, ou ele cairia num monismo à moda de Jung. Ao tentar resolver
esse dilema, Freud postula existirem, no interior do eu, pulsões diferentes das pulsões de
autoconservação, também libidinais, e admite que apenas o atraso na análise do eu
impediu que ele identificasse essas outras pulsões até o momento desse texto.
Argumenta que o aumento da tensão interna, que introduz novas diferenças
vitais, obriga a que estas sejam ‘des-vividas’ {ableben}. “E posto que distinguimos
como a tendência dominante da vida anímica, e talvez da vida nervosa em geral, a de
rebaixar, manter constante, suprimir a tensão interna de estímulo (...), isso constitui um
de nossos mais fortes motivos para crer na existência de pulsões de morte” (ibid, p. 54).
O emprego da palavra ‘crer’ de fato produz uma impressão fortemente mística. Na falta
de maiores argumentos, Freud apela para o fator crença na existência de tais pulsões. E
ainda esbarra na dificuldade de pesquisar, no que diz respeito à pulsão sexual, a
característica de compulsão à repetição que justamente abriu sua hipótese de uma pulsão
de morte. Mas, para não abandonar essa hipótese, tem que associar as pulsões de morte
às de vida desde o começo. Mas, confessa, “trabalhamos aqui com uma equação de duas
incógnitas” (ibid, p. 55). Ambas as pulsões são cercadas de aspectos obscuros, difíceis
de serem discernidos. Considera esse momento teórico como o de um terceiro passo na
doutrina das pulsões, sendo os dois primeiros a ampliação do conceito de sexualidade
1905 e o segundo a tese do narcisismo 1914. Diz ele que as novidades anteriores se
baseavam fundamentalmente em observações transpostas à teoria; sabemos que nunca
foi bem assim. Agora, sente afastar-se muito da observação. Seu esforço conceitual
exige benevolência para ser aceito e o qualifica de especulação, vastamente apoiada na
ciência biológica. “A especulação busca então resolver o enigma da vida mediante a
hipótese destas duas pulsões que lutam entre si desde as origens” (ibid, p. 59, n. 27).
95
Supõe a existência de outras pulsões dentro do eu e sugere que elas talvez possam ser
pesquisadas nas pulsões de destruição. “A especulação converteu esta oposição na que
media entre pulsões de vida (Eros) e pulsões de morte” (ibidem). Aqui se afirma essa
segunda dualidade e suas forças fundamentais. Entendemos que a pulsão de morte surge
como um conceito proveniente de uma especulação, inserida na teoria psicanalítica a
partir dos fatos relacionados às pulsões de destruição: a partir dos efeitos, e, como
tentaremos demonstrar, eles são diversos e distintos, infere-se o conceito de uma pulsão,
fundamental, que seria o motor dessas produções.
No verão de 1922, Freud escreve dois pequenos artigos de caráter didático,
“Psicanálise” e Teoria da libido”. Neste último, repete, de maneira muito clara, sua
nova postulação para a doutrina das pulsões. Reconhece que, para sustentar sua nova
teoria, buscou apoio na biologia. Fazendo uma analogia com os processos orgânicos
opostos de anabolismo e catabolismo, chama de pulsões de morte ao grupo de pulsões
que trabalham no fundamento sem ruído, perseguem a meta de conduzir o ser vivo até
a morte e aparecem, dirigidas para fora, como “tendências de destruição ou de
agressão” (FREUD, 1923[1922/1986, p. 253). Essa frase é uma das muitas que fazem
com que a destruição e a agressão acabem confundidas; é contra essa indistinção que
tentaremos lutar, tornando claras as diferenças entre esses termos e acepções.
O princípio de prazer é, então, uma tendência do aparelho, cuja função é manter-
se com o mínimo de excitação possível; para isso, efetua ligações. A ligação é um ato
preparatório que introduz e assegura o domínio do princípio de prazer. É necessário
primeiro acomodar a excitação para, logo em seguida, descarregá-la definitivamente no
prazer de descarga. O princípio de prazer, portanto, parece estar a serviço da meta das
pulsões de morte do momento que visa à descarga. O princípio de realidade, esse sim,
estaria a serviço do eu e de Eros: as pulsões de vida também visam à descarga mas o
fazem pelo meio complicado, adiado, longo. As pulsões de morte buscam sua meta o
mais rapidamente possível. O princípio de prazer atende a ambas mas, atento como está,
sempre em guarda com relação aos incrementos de estímulos internos, parece estar mais
ligado ao funcionamento das pulsões de morte. Toda a psicanálise nos fala da morte
infiltrada na vida e variadas são as figuras sociais atuais das pulsões de morte. Os
indícios do atual ‘mal-estar na cultura’ podem ser procurados nas modalidades de
atualização das pulsões de morte.
96
De 1920 até 1927, ano em que empreende a redação de O futuro de uma ilusão,
Freud teve intensa produção. No período que vai de 1927 a 1929, ano em que escreve O
mal-estar na cultura, pouquíssimo produziu, possivelmente porque seu estado de saúde
estava crítico. Antes desse hiato, entretanto, Freud trouxe à luz textos fundamentais
acerca da segunda teoria pulsional e da segunda tópica: O eu e o isso, O problema
econômico do masoquismo, A negação, A diferença anatômica entre os sexos, para
mencionar apenas alguns. Em 1930, publica O mal-estar na cultura, texto que traz à
frente da cena a questão da destrutividade, dando seguimento às suas teses a respeito da
pulsão de morte e seus derivados. Paralelamente ao tema principal do livro, de cunho
sociológico, por assim dizer, que se ocupa do irremediável antagonismo entre as
exigências pulsionais e as restrições impostas pela cultura, Freud vai empreender seu
mais profundo estudo sobre a fúria destrutiva do homem e suas origens.
Antes de tomarmos esse caminho, gostaríamos de mencionar uma questão que
costuma criar problemas para a compreensão de um aspecto da doutrina: a noção de
dessexualização da libido, tema que Freud vai retomar nesse texto. Ele nos diz que, na
nova arquitetura do aparelho, o supereu ocupa lugar de destaque. Ele é produto de
alterações acontecidas no eu a partir de identificações que esse eu faz com os objetos
aos quais teve de renunciar. O supereu é um representante do isso, ele mergulha no isso,
toma do isso a sua própria razão de ser. O eu, alterado pelas identificações, se oferece
como objeto substitutivo às aspirações do isso. Como Freud escreverá mais adiante, o
caminho para o objeto é aberto pelas pulsões de destruição, que ensinam o caminho do
objeto à libido. Toda identificação, sendo uma alternativa ao investimento de objeto,
implica, necessariamente, uma renúncia à meta propriamente sexual; esse fato, por sua
vez, implica uma perda de potência erótica de ligação, propiciando maior liberdade às
pulsões de morte. A dessexualização da libido pode ter um efeito secundário que é a
desfusão pulsional, em que ficam favorecidas as aspirações das outras pulsões, as de
morte e seus derivados. Produzem-se, então, mesclas pulsionais que tendem a um
predomínio destas.
Em Além do princípio de prazer, Freud reserva a expressão investimento erótico
para os investimentos dirigidos aos objetos alheios ao eu; quando o investimento toma o
eu como objeto, a libido retorna à condição de libido narcísica, seu primeiro estado.
Essa libido narcísica é chamada por Freud de libido indiferenciada, ou seja, uma libido
97
de que dispõe o eu para investir naquilo que lhe for mais conveniente. O eu tem à sua
disposição certa quantidade de energia dessexualizada, porque narcísica, e, portanto,
indiferente, com a qual ele procura melhores ligações. A identificação, vista desse
enfoque, torna-se tanto benéfica quanto ameaçadora: ao mesmo tempo em que apresenta
ao sujeito uma saída para uma situação impossível, porque edípica, por exemplo, o
confronta com as desvantagens de ter menos potência libidinal para ligar.
Como vimos, ligar significa uma tentativa de neutralizar a fúria das pulsões de
morte. A libido está com sua plena potência de ligação quando está dirigida para o
objeto; quando está investindo o eu, se mostra enfraquecida. Se a expressão
dessexualização da libido causa impressão de estranheza, podemos substituí-la por
transformação das metas pulsionais. A libido não se dessexualiza propriamente, ela
apenas aceita, através de um mecanismo de deslocamento, outras metas que não as
metas originárias, diretamente sexuais ou agressivas, como veremos. Podemos
também pensar numa mudança de objeto, outra maneira de dizer o que acontece em
determinadas operações anímicas. O mesmo acontece com a sublimação: ali também a
libido se limitada em seu poder de enlace fazendo com que o limite entre sublimação
e formação de sintoma seja muito tênue. A libido, quando não utilizada na satisfação
das moções pulsionais brutas, se ‘enfraquece’, diminui seu poder de ligação, gastando-
se em outras satisfações que, embora mais adequadas, não “comovem nossa
corporeidade”, como assinala Freud nesse texto. Freud nos ensina que o que distingue
os sintomas reativos de saídas sublimatórias é a característica da insistência, da
exigência, da condição sine qua non. O aspecto compulsivo marca o sintomático.
Eros está em sua plena potência ligadora quando se dirige para fora do sujeito. A
libido narcísica é menos potente que a libido objetal; é como se fosse uma libido
atenuada em suas intenções, que abriu mão de sua pronta satisfação em nome de um
arranjo mais adequado àquele sujeito. A libido voltada para o próprio eu é menos
‘erótica’ do que quando está dirigida aos objetos; a satisfação obtida com o próprio eu
entenda-se uma satisfação obtida através do ideal do eu, com a proximidade entre eu
e ideal do eu o é exatamente sexual, quer dizer, já se afasta de uma meta
diretamente sexual e aceita uma substituição mitigada. A meta diretamente sexual é
alcançada no e pelo objeto. Quando a libido perde suas intenções eróticas perde também
parte de sua potência de ligação. Determinadas satisfações que implicam o objeto se
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tornam impossíveis e são substituídas por satisfações narcísicas; esse é o caminho de
formação das instâncias ideais. A libido colocada a partir daí no eu é uma libido
neutralizada, indiferente, escreve Freud em O mal-estar na cultura. Ela vai servir de
material de manobra para o eu: este pode retirá-la de uma determinada moção pulsional
e investi-la em outra, reforçando-a. O eu é capaz de deslocar a energia libidinal que tem
à sua disposição na direção de investimentos que lhe sejam mais interessantes e
adequados. Para a libido, tanto faz qual o caminho para a descarga contanto que se
descarregue. Um eu bem investido é o sistema capaz de encaminhar da melhor maneira
seus investimentos e as quantidades de excitação que a ele chegam. O eu é uma
construção permanente, um puro devir; o sujeito é também devir, constante mutação e
arranjo.
O mal-estar, escreve Freud, é inerente ao fato de o homem ser um ser da cultura,
o que o obriga a renunciar às suas satisfações pulsionais mais brutas. A seguir, trata da
pulsão de destruição e da destrutividade como um todo. Antes da postulação do conceito
de pulsão de morte, Freud não tinha como encontrar para a agressividade, constatada no
sadismo, uma fonte independente. Uma vez operando com o novo conceito, resta-lhe
agora tirar a agressividade e a destrutividade de um papel secundário na composição do
psiquismo. No texto de 1920, ocupado em tornar palatável um conceito tão
especulativo, o destaca a destrutividade em sua originalidade, em sua autonomia. A
dificuldade em enunciar a pulsão de morte é tanta que Freud deixa para tratar a questão
da agressividade e da destrutividade em si para depois; ele o fará agora. Sem o conceito
de pulsão de morte não lhe era possível ir adiante em sua doutrina.
Sabemos que em 1909, no texto sobre o caso clínico conhecido como “o
pequeno Hans”, Freud não podia admitir uma pulsão particular de agressão junto às
pulsões sexuais e de autoconservação com que se estava familiarizado e no mesmo
plano que estas. Constata a existência do ódio, do sadismo, da agressividade mas o
sabe como explicá-la. Quando em 1914 faz a introdução do conceito de narcisismo, a
própria hipótese ali levantada abona essa relutância em aceitar uma pulsão agressiva
independente da libido. Como estava, naquele momento, tudo sob a égide da libido, não
carecia apontar uma fonte independente para a pulsão agressiva. Se por um lado a
hipótese do narcisismo parecia resolver essa questão, por outro abre um problema muito
mais importante que é o do dualismo. Na falta de uma oposição consistente, no texto
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sobre o narcisismo Freud apresenta uma outra oposição, dessa vez entre libido de objeto
e libido do eu. Somente passada a tormenta de 1920, ele podese debruçar sobre a
agressividade e a destrutividade como autônomas, com origem totalmente independente
da sexualidade e ocupando a frente da cena. Esse é o tema de O mal-estar na cultura
que interessa diretamente nosso trabalho.
A pulsão de morte é proposta, no texto de 1920, como, inicialmente, uma
potência de autodestruição, isto é, uma força capaz de levar o orgânico de volta ao
inorgânico, de levar à morte o sujeito. É uma força voltada contra o próprio organismo.
No trabalho de 1930, Freud vai se dedicar a entender a pulsão de destruição, ou seja, a
pulsão de morte combinada com Eros e essencialmente voltada para o objeto. A
destrutividade não é nem tocada no texto de 1920; seu trajeto no conjunto da obra
freudiana é bastante instável. A pulsão de morte é o conceito que origem à
investigação desse campo da competência humana que vai da destrutividade à
agressividade. Entretanto, como mencionamos, ela não deve ser vista apenas por sua
negatividade: tem de ser examinada também naquilo que tem de positivo, de produtivo,
de inovador. Com sua potência de romper ligações, a pulsão de morte possibilita novos
arranjos, o que seria impossível apenas pela ação de Eros. Esta pulsão é responsável
pelo corte na viscosidade, atributo da libido; sua tendência primordial é sempre no
sentido regressivo mas, dependendo das novas ligações, também ocorrem progressos.
Sua força é responsável pela separação entre sujeito e objeto, eu e não-eu, dentro e fora.
Abordaremos esses aspectos na análise do texto A negação, de 1925. A novidade do
texto que agora abordamos é a ênfase que recai sobre as manifestações externas da
pulsão de morte, isto é, estas pulsões voltadas eminentemente para os objetos. No texto
sobre o masoquismo, de 1924, poderemos entender sua ação voltada para o próprio eu
do sujeito.
Conforme mencionamos, o tema principal do texto de 1930 é o combate
travado entre o pulsional e a cultura. Freud postula, no capítulo II, que aquilo a que visa
o princípio de prazer, o projeto de ser feliz, é um programa irrealizável; temos que nos
contentar com aproximações (FREUD, 1930/1986, p. 76). No capítulo seguinte,
aprofunda a análise das três fontes de infelicidade que se opõem à meta procurada: a
hiper força da natureza, a fragilidade do próprio corpo e a insuficiência das normas que
regulam os vínculos recíprocos entre os homens, na família, na sociedade e no estado
(ibid, p. 85). A sociedade e a cultura são as grandes culpadas por nossa miséria pela
grande medida de frustração que nos impõem às satisfações pulsionais: essas frustrações
estão a serviço de seus ideais culturais. A entrada do ser na cultura implica
necessariamente a renúncia a determinadas satisfações pulsionais. A cultura se edifica
sobre a renúncia do pulsional, a sublimação está no fundamento de sua construção. Ao
contrário do que se poderia imaginar, que a sublimação é um destino da pulsão imposto
pela cultura, o que vemos é que a cultura tem como fundamento e condição de
existência o fato de o homem renunciar às suas satisfações pulsionais mais diretas,
imediatas e grosseiras, tanto sexuais quanto, e principalmente, as destrutivas. A o-
satisfação das poderosas pulsões pode se dar por sufocação, por recalcamento e por
sublimação. A denegação ou frustração {Versagung} cultural governa o vasto âmbito
dos vínculos sociais entre os homens. “A liberdade individual não é um patrimônio da
cultura” (ibid, p. 94). O homem moderno se vê diante de exigências cada vez maiores de
contenção de suas exigências pulsionais brutas e, pela pouca compensação que recebe,
em termos de sua economia interna, acaba por se tornar presa de uma exagerada
sufocação pulsional; essas exigências sufocadas acabam por se mostrar, em toda sua
fúria, em outro lugar. Todo sistema social baseado em um enorme número de proibições
acaba por fazer nascer condutas extremamente destrutivas. Isso nos faz pensar, com
Freud, que o maior problema se relaciona com a destrutividade não expressada.
Para Freud, e desde Totem e tabu, a passagem da natureza para a cultura se
pela instalação das primeiras limitações, proibições que atingem a função sexual e a
agressividade dos sujeitos. A principal limitação é o tabu do incesto e isso constitui a
primeira norma. O que caracteriza a cultura é a existência de uma proibição, proibição
essa que incide, via de regra, sobre a função sexual.
A convivência dos seres humanos tem um duplo fundamento, acrescenta: a
compulsão ao trabalho, ou seja, a necessidade da sobrevivência, e o poder do amor. Os
homens se agrupam para poder se proteger das inúmeras dificuldades da existência e,
por amor, se reúnem em famílias, as primeiras células da sociedade. O homem passa a
“amar” os seus objetos sexuais que antes eram absolutamente pontuais por obedecerem
a uma periodicidade orgânica e que passam a ser objetos fixos. Assim se constroem os
primeiros vínculos de amor da espécie humana. Dessa forma, Eros e Ananké, a
necessidade, são os progenitores da cultura humana. Por que então os homens o são
felizes? Porque amor e cultura se contrapõem: esta impõe graves restrições ao amor,
como no caso da proibição da eleição incestuosa de objeto, fato considerado pelo autor
como talvez a mutilação mais forte que experimentou a vida amorosa dos seres
humanos no curso das épocas (ibid, p. 101). Entretanto, devemos desconfiar que o que
impede a felicidade do homem o se resume à pressão da cultura; existe algo na
essência da função sexual que nos frustra a satisfação plena.
Para introduzir a idéia que particularmente nos interessa, a de que existe,
implicada na impossibilidade de felicidade do ser humano, uma pulsão autônoma e
primordial que é a pulsão de destruição, força que movimenta a destrutividade, Freud se
baseia na noção de desamparo, de desvalimento do infante do homem. O humano é,
entre as espécies, aquele cujos filhotes permanecem durante mais tempo na dependência
de um outro adulto e, por isso, é aquele que se vê obrigado a renunciar mais longamente
às satisfações de suas moções pulsionais originárias, sobretudo as agressivas, por sua
própria constituição. Freud postula a existência de um fragmento de realidade efetiva no
homem que se tenta desmentir. “È lícito atribuir a sua dotação pulsional uma boa quota
de agressividade” (ibid, p. 108). A agressão cruel de que é capaz o homem nem precisa
de provocação para se manifestar: os seres humanos nada mais são que bestas
selvagens. Essa visão freudiana foi ingenuamente classificada de pessimista por muitos
comentadores, conforme mencionamos; preferimos considerá-la trágica por não ver
saída para a situação humana. Esta inclinação agressiva é a responsável pelas maiores
ameaças à estabilidade das relações humanas e ela é a primeira de que a cultura exige a
renúncia. Freud, que tentava determinar o que seria a destrutividade e a destruição,
começa por falar da agressividade.
A primeira satisfação pulsional abandonada em prol da sobrevivência do infante
desvalido é a satisfação cruel, destrutiva. Depois, abre-se mão das satisfações sexuais,
eróticas, para que sua energia seja utilizada na contenção das moções agressivas, na
constituição de normas e de leis de funcionamento dos grupos sociais. Abre-se mão de
uma satisfação sexual direta para edificar a cultura, cujos ditames vão impor uma
inibição à destrutividade, própria e originária do humano! Queremos ressaltar, mais uma
vez, o uso indiscriminado dos termos: satisfação destrutiva é tratada como se fosse
idêntica às moções agressivas.
O homem o se satisfaz de nenhuma maneira, por lado nenhum. E vive se
esforçando para conter algo que a teoria considera como inerente à sua própria natureza.
Na medida em que se utiliza energia libidinal para fazer identificações capazes de
manter os componentes de um grupo ligados entre si, se está desviando esta libido de
sua meta originária, direta, sexual propriamente; dessa forma, se combate a ameaça de
dissolução representada pela agressividade. A cultura tenta neutralizar a fúria das
pulsões destrutivas e a hostilidade do mesmo modo que acontece dentro de cada
indivíduo: a força de Eros é utilizada para mitigar a potência disruptiva das pulsões de
morte. A cultura se vale dos mesmos recursos em ação dentro do psiquismo. Freud
aponta para o fato de que, posto que a cultura impõe tão vastos sacrifícios tanto à
sexualidade quanto à inclinação agressiva do homem, compreendemos, agora, por que o
homem dificilmente se sente feliz em seu seio.
No capítulo VI, Freud vai, portanto, introduzir a idéia de que a satisfação
primeira à qual o homem civilizado renuncia é a das pulsões de destruição. Essas
pulsões finalmente ganham um lugar de destaque, surgindo com seu caráter autônomo e
central, ganhando foros de uma força primordial. Em determinados momentos do texto,
e outras vezes em textos posteriores, Freud vai falar de duas forças básicas em ação e as
nomeia Eros e pulsões de destruição. Preocupa-se que essa nova postulação traga uma
modificação importante para a doutrina das pulsões. Na verdade, nada que não se
coadune com o processo de mudança que sofreu todo o corpo da teoria com o advento
do conceito de pulsão de morte. O único problema surge justamente quando o próprio
Freud parece esquecer-se do que estabeleceu no texto de 1920 e postula a pulsão de
destruição como primária, básica. Ela constitui, tão somente, um derivado das pulsões
de morte, entre outros.
Também sabemos que as pulsões de morte fogem à nossa percepção se não estão
coloridas eroticamente. E as pulsões de destruição nada mais são que uma das formas
com que a pulsão de morte se apresenta, psiquicamente. Conforme já dissemos, a
composição está na dependência de como e quanto se enlaçam nessas mesclas
pulsionais as duas pulsões primárias. A pulsão de morte ‘pura’ não passa de uma
suposição, uma inferência feita a partir de seus derivados e efeitos; sem a parceria com
Eros ela não se exterioriza porque não possui os meios que são as representações. Esse é
o sentido da ‘mudez’ da pulsão de morte, por mais de uma vez apontada por Freud. Sem
Eros com sua tendência à extensão incessante” (ibid, p. 114, n. 6) -, a pulsão de
morte não tem nem coisas nem palavras para se expressar. Ela nada mais é que um
conceito que designa uma força inferida a partir dos fenômenos psíquicos, força essa
que desempenha sempre, imutavelmente, o papel daquela que rompe as ligações e, se
predominante, imprime aos fatos psíquicos um sentido regressivo, dentro da idéia que
ela tende a destruir unidades mais complexas transformando-as em unidades mais
simples, mais rudimentares e, portanto, mais primitivas e anteriores na história do
sujeito. A pura força que representa a pulsão de morte utiliza, como veículo de
expressão, a libido, que é a energia psíquica, sexual. A apresentação {Darstellung}
psíquica da pulsão de morte se somente por meio da representação {Vorstellung},
seja ela representação-coisa ou representação-coisa somada a representação-palavra.
Fora do psíquico, podemos pensá-la referida ao real pulsional, ao resto {Abzug},
àquilo que cai quando não houver inscrição, ao que sobra dessa infinita conta. A pulsão
de morte é uma construção teórica que aponta para aquilo que está nas bordas do
psíquico e que pede, insistentemente, uma inscrição. Esse ponto de passagem entre o
psíquico e o não-psíquico é uma zona indefinida, própria da articulação tanto
procurada entre corpo e alma, e que talvez possa ser entendida por uma sua
negatividade: ali o há representações. O conceito corresponde à idéia básica da
descarga que obedece ao princípio mais fundamental do sistema vivo que é o da inércia.
Existe um fora do psíquico, um corpo pulsional que, excitado, dirige uma demanda de
trabalho ao aparelho; quando essa demanda é aceita, isso significa que é possível uma
inscrição, que aquela excitação foi aceita por uma representação e com ela se enlaçou.
Ao aceitar o conceito de pulsão de morte como a possibilidade de explicação
para alguns fenômenos da vida psíquica e para um funcionamento considerado como
estando em um além do princípio de prazer, podemos também considerá-lo como
designando aquilo que, fora do âmbito do psíquico, o cerca com insistência, acossando-
o e colocando-o em funcionamento. Se a pulsão sexual é aquela entidade de fronteira,
que demarca e delimita o domínio do psiquismo, a pulsão de morte significa aquilo que
fica de fora, definindo o campo do irrepresentável, do inefável. Ela empresta sua força,
hipoteticamente de redução drástica, total e imediata das tensões, para, junto a Eros,
movimentar o aparato. Se quisermos pensar um motor, uma mola propulsora para o
psiquismo, nada mais apropriado que o conceito de pulsão de morte. A pulsão de morte
se apresenta e, se representada, funciona a favor da descarga: toda descarga psíquica
é possível mediante uma representação. Fora disso, somente paroxismos e descargas via
motilidade. O movimento psíquico existe porque existe um resto, um saldo: se todo
pedido fosse atendido com uma inscrição, o movimento cessaria. Como sempre sobra
algo não inscrito e esse algo se refere, em última análise, às pulsões de morte, talvez não
seja muito descabido atribuirmos a essa força teorizada como as Todestriebe a
manutenção da vida do aparelho psíquico.
“Junto a Eros, uma pulsão de morte; e a ação eficaz conjugada e contraposta de
ambas permitia explicar os fenômenos da vida” (ibid, p. 115). As duas pulsões são
opostas, visam metas radicalmente antagônicas, mas elas se combinam para produzir a
vida psíquica. Vista sob esse prisma, a pulsão de morte perde aquele sentido único de
levar à morte; ela será responsável pela dissolução final do indivíduo mas, antes disso,
aceitará combinações que resultarão nos fatos da vida.
A seguir, Freud determina a distinção entre a pulsão de morte, a pulsão de
agressão e a pulsão de destruição. “... Uma parte da pulsão [de morte] se dirigia ao
mundo externo, e então vinha à luz como pulsão a agredir e destruir” (ibidem). O
causador dessa expulsão, dessa deflexão das pulsões de morte para o exterior, é Eros.
Esse é o mito inaugural da vida psíquica. Ao desterro das pulsões de morte se vincula o
alarido das pulsões de vida e sua função de neutralização, como um bálsamo. O
aparelho psíquico é um aparelho que se funda ao se defender de sua extinção, do
nivelamento com que o ameaça a força da pulsão de morte. E assim a pulsão de morte
se coloca a serviço de Eros, ao voltar-se em direção ao objeto, na medida em que o ser
vivo aniquila um outro ser e não ao seu si mesmo próprio. A impossibilidade de enviar
para os objetos os investimentos pulsionais vai produzir um aumento da autodestruição.
Gostaríamos de sublinhar que, ao usar, no trecho citado acima, a conjunção
aditiva e, Freud indica que se trata de dois conceitos diferentes. Feita a distinção, logo
adiante nos deparamos com um trecho no mínimo curioso: “a suposição da pulsão de
morte ou de destruição...” aponta para uma sinonímia que, a nosso ver, o existe.
Como aponta com precisão Pontalis, é necessário especificar, em todas as operações do
aparelho psíquico, as múltiplas modalidades de associações e de ruptura de associações
das duas grandes categorias pulsionais para que se possa dar conta da especificidade de
cada uma delas (PONTALIS, 1981). Insistimos nas diferenças: pulsão de morte é uma
das pulsões fundamentais, pulsão de destruição é um de seus derivados.
Ainda no capítulo VI, Freud retoma a questão das mesclas pulsionais sempre
presentes e nos diz que não existe a menor possibilidade de nos depararmos com um
fenômeno psíquico sem a presença de Eros.
“Porém, ainda onde emerge sem propósito sexual [explícito], inclusive na mais
cega fúria destrutiva, é impossível desconhecer que sua satisfação [da pulsão
de morte] se enlaça com um gozo narcísico extraordinariamente elevado, na
medida em que ensina ao eu a realização de seus antigos desejos de
onipotência” (FREUD, 1930/1986, p. 117).
A única situação que podemos descrever como a vitória última das pulsões de
morte, em ausência de Eros, é a do suicídio levado a termo. Podemos afirmar, com
Freud, que as duas pulsões nunca são encontradas isoladas, estão sempre ligadas em
proporções muito variáveis o que nos permite postular, nas mesclas, a existência de
diferentes resultados ou produtos. Se no sadismo e no masoquismo, considerados como
pulsões parciais da sexualidade, constatamos uma forte ligação entre a aspiração de
amor e a pulsão de destruição” (ibid, p. 115), dirigidas ao objeto e ao si mesmo próprio,
com forte carga de erotismo, não podemos mais ignorar a “ubiqüidade da agressão e
destruição não-eróticas” (ibid, p. 116). Essa afirmação não significa que exista agressão
e destruição em ausência de Eros mas sim que, nesses casos, a meta é essencialmente
destrutiva ou agressiva enquanto que no sadismo e no masoquismo a meta é
primariamente erótica. Na pulsão de destruição e na pulsão de agressão, a pulsão de
morte torce a meta erótica completamente a seu favor, cabendo a Eros uma satisfação
subsidiária; no sadismo e no masoquismo, a pulsão de morte impõe à meta erótica uma
condição para que seja alcançada mas essa meta, a erótica, continua sendo a primordial.
Dito de outra maneira: visa-se a destruição ou a agressão do objeto ou do si mesmo -,
com o necessário acompanhamento da satisfação sexual que, nesse texto e, diríamos,
nesse caso, constitui um gozo; ou o que se visa é a obtenção de prazer, obedecidas
algumas condições, condições essas ditadas pela presença da pulsão de morte.
Essa distinção pode ser observada, com clareza, na transferência. Como
mencionamos na introdução, foi justamente uma dificuldade clínica aquilo que apontou
para a questão deste trabalho. Consideramos como diferentes o sadismo transferencial,
quando estamos diante de uma pulsão sádica, e a fantasia de destruição, quando então o
que move o sujeito é a pulsão de destruição. Constituem situações diferentes a busca de
satisfação através da humilhação do analista, o prazer obtido em apontar-lhe sua
imperícia e maltratá-lo, fazer pouco dele ou, como se diz na gíria, ‘gozar com sua cara’,
por exemplo, e o objetivo imaginário de acabar com esse outro sujeito, destruí-lo,
aniquilá-lo, para poder apagar, assim, toda e qualquer diferença entre eu e não-eu.
Diante da impossibilidade de tornar exeqüível essa fantasia, cabe ao analisando a
atuação: interrupção brusca da análise, abandono violento, tudo aquilo que pode ser
considerado como reação terapêutica negativa.
O sadismo visa obter prazer com o sofrimento do objeto, a pulsão de destruição
quer aniquilá-lo, a pulsão de dominação busca dominá-lo mas não destruí-lo, a pulsão
de agressão procura atacá-lo até mesmo para a finalidade de possuí-lo sexualmente.
Vários fatores definirão os diferentes derivados e, conseqüentemente, as diferentes
metas, com predominância de uma ou outra das pulsões fundamentais. então
situações em que a obtenção de prazer é o que rege a moção pulsional, outras em que
esse ganho é secundário. Essa diferença é essencial à clareza da teoria e ao manejo das
situações clínicas, transferenciais. A transferência sádica mantém o vínculo objetal
enquanto que a transferência destrutiva, atualização de questões bem mais rudimentares
de diferenciação, busca, fantasmaticamente, fazer desaparecer aquele objeto que é, por
sua vez, fonte de terríveis ameaças à integridade do sujeito: esta é uma luta de vida ou
morte, aquela fúria destrutiva de que Freud fala nesse texto, que se enlaça com um
gozo narcísico extraordinariamente elevado, na medida em que ensina ao eu a
realização de seus antigos desejos de onipotência” (ibid, p. 117). Essa onipotência se
perde quando é reconhecida a existência do objeto; a posição de eu ideal é abandonada,
ou pelo menos deve ser, e o sujeito começa a caminhar na direção da construção de um
ideal de eu onde a mitologia da completude não mais existe. A simples existência do
objeto, o reconhecimento de um outro, cria uma tensão por vezes insuportável: porque
algo mais não é eu, ou o eu, e porque não obedece ao eu. O outro frustra, não atende
incondicionalmente as demandas e merece, por isso, além de ser punido, ser aniquilado.
É a idéia de que o inferno é o outro. A luta tenta fazer desaparecer o objeto e voltar a
uma posição muito arcaica de onipotência infantil, contemporânea do eu ideal
resultante, por sua vez, do narcisismo originário.
A pulsão de destruição, continua Freud, se inibida em sua finalidade, se
forçada a buscar para o próprio eu a satisfação de suas necessidades vitais e o domínio
sobre a natureza isto é, dirige-se para fora -, numa tentativa desesperada de manter
esse eu íntegro. Não é um prazer obtido com o objeto, é um gozo narcísico diante da
possibilidade de manter íntegro o eu. O outro é uma ameaça a essa integridade, ameaça
de invasão e, portanto, de destruição, o que nos leva a pensar numa configuração
psíquica muito rudimentar e frágil. A agressividade que surge depois de efetuada a
separação sujeito/objeto, responsável pela tensão mantenedora dos limites do eu, o é
suficiente para conter os fantasmas de avanços do outro. Este sujeito, aterrado de pavor,
reage ao outro na mesma moeda, da mesma forma com que se sente passível de
destruição.
Se a separação entre sujeito e objeto é obra da pulsão de morte, a única com essa
capacidade, a indiscriminação também decorre dela, de um extraordinário predomínio
de sua força de desligamento. O aniquilamento do objeto faz o sujeito regredir a um
estado de fusão com o todo. Se o objeto passa a não existir, como no início, o que temos
é a situação descrita por Freud como de bem-aventurança originária, onde eu e mundo
são uma coisa só, a onipotência absoluta do narcisismo inicial, total e sem falhas.
Destruir o objeto significa tentar acabar com a enorme agonia que representa para o
sujeito se confrontar com a existência de algo que não é ele mesmo, aquilo que aponta
para algo que falta, uma incompletude. Esse desejo de restaurar o narcisismo absoluto,
de fusão, de indiscriminação, retoma, fantasmaticamente, a posição inicial em que não
separação entre sujeito e mundo. Esse é o retorno ao narcisismo esplêndido onde
nada existe além do sujeito, aliás, nem existe sujeito propriamente dito. Seria um
momento anterior ao advento do eu-puro-prazer, colocação que já supõe introjeção, que
se segue a uma expulsão.
Diante dessa situação, podemos considerar que a presença de Eros é insuficiente
para executar suas tarefas, a saber, a de ligar, a de complexificar, a de, com o eu, diferir
as descargas. É função de Eros complexificar cada vez mais, criar unidades cada vez
maiores e, desse modo, adiar a descarga e assim ter certo domínio sobre o
funcionamento do aparato. A da pulsão de morte é, repetimos, simplificar, dissolver os
vínculos, tornar as unidades cada vez menores para poder levar a cabo sua finalidade, a
da descarga mais completa, mais rápida possível. Ao sairmos de uma oposição entre
vida e morte, que não corresponde à oposição entre as pulsões primordiais, adquirimos
uma compreensão muito mais orgânica do que seria essa pulsão de morte. Eros também
visa a descarga mas de uma forma peculiar, muito diferente do que pretende a pulsão de
morte. A vida é resultado do adiamento feito por Eros; o eu personifica esse movimento.
Diante de uma moção pulsional, que representa uma parcela inelutável de perigo, o eu
se movimenta no sentido de incluí-la em seu domínio, procurando fazê-la funcionar
conforme os processos que regem seu funcionamento. Se a moção pulsional segue
sendo tipicamente algo do isso, o eu lança então mão de outros procedimentos, tais
como o recalque, posto em ação pela angústia. Ao incluir a moção em seu território, o
eu lhe cede uma parcela de sua própria energia. Trazer a moção para o seu seio, é o que
de mais econômico o eu pode fazer.
Ainda no capítulo VI, Freud volta a falar da ‘mudez’ da pulsão de morte. A esse
respeito, gostaríamos de nos remeter a um texto de 1913, O motivo da eleição do cofre,
onde ele associa o mutismo com a morte. Ao falar das Moiras, que representam uma
tripartição da divindade responsável pelo Destino do homem, Freud escreve que a
mudez, no caso no sonho, é uma figuração usual da morte (FREUD, 1913/1986). As
Moiras comandam o nascimento, a vida e a morte; esta última é tarefa de Átropos, a
muda, “a inexorável” (ibid, p. 312), “o inelutável” (ibid, p. 314). Sendo também o sono
e a morte associados na mitologia grega Hypnos, o sono, é irmão gêmeo de Thanatos,
a morte, ambos filhos de Nyx, a noite -, isso permite a Freud dizer que o mutismo é uma
das representações da morte e a estender para as pulsões de morte essa característica da
mudez. Acrescenta Freud, em uma nota de rodapé, que também em Stekel, em texto de
1911, a mudez é mencionada entre os símbolos da morte (ibid, p. 310, n. 11). “A criação
das Moiras é o resultado de uma compreensão que adverte o ser humano que também
ele é parte da natureza e por isso está submetido à inexorável lei da morte” (ibid,
p. 314).
Ao discorrer sobre o tema da escolha, Freud acrescenta que, apesar das inúmeras
escolhas trazidas à baila nesse texto recaírem sobre a terceira irmã ou terceira divindade,
“ninguém elege a morte, de quem se é vítima por uma fatalidade” (ibidem). Entretanto,
o que pode parecer um paradoxo é explicável pelo que chama de “formação reativa”, ou
seja, a substituição pelo oposto, aproximando, já aqui, a neurose obsessiva do tema da
morte e das moções destrutivas. Na mitologia, a deusa da morte transforma-se na deusa
mais bela, a melhor e mais amável das mulheres. E acrescenta: essa substituição foi
facilitada por uma antiga ambivalência, aproximando-se, mais uma vez, da temática da
neurose obsessiva.
De volta ao capítulo VI de O mal-estar na cultura, escreve Freud que o termo
libido designa apenas as exteriorizações da força de Eros e não serve para a energia das
pulsões de morte. Em nota de rodapé, acrescenta que “em cada exteriorização pulsional
participa a libido mas nem tudo nela é libido” (FREUD, 1930/1986, p. 117). Acrescenta
que quando a pulsão de morte não aparece através do nculo com Eros, torna-se muito
difícil de apreender; “é inferida apenas como um saldo {Abzug}”, um resto, depois da
passagem de Eros, algo não capturado. Isso que sobra, nos escapa. E acrescenta, ao final
do capítulo, que “a inclinação agressiva é uma disposição pulsional autônoma,
originária, do ser humano” (ibidem). Ao programa da cultura se opõe a pulsão de
agressão, “natural dos seres humanos”. “Esta pulsão de agressão é o derivado e o
principal delegado da pulsão de morte que descobrimos junto a Eros e que divide com
este o governo do universo” (ibid, p. 118). O sentido do desenvolvimento cultural nos é
ensinado pela luta entre Eros e Morte, pulsão de vida e pulsão de destruição.
A presença da pulsão de morte na clínica não acontece apenas nos exemplos
clássicos da reação terapêutica negativa e da atuação. Podemos considerar que todo fim
de análise se diante de uma transferência hostil. As análises “intermináveis”, que
duram anos, são aquelas em que as questões trazidas pelas pulsões de morte o são
contempladas, são, ao contrário, abafadas. O legítimo fim da análise é marcado o
apenas por uma transferência negativa como também pela ação da pulsão de morte, que
separa analisando de analista. Adiante examinaremos mais detidamente esse ponto.
Conforme consideramos no início desse capítulo, nem todos os autores pós-
freudianos concordam com a necessidade ou utilidade do conceito de pulsão de morte.
sobretudo aqueles que se opuseram, de forma consistente e fundamentada, à
postulação do conceito, sendo que alguns chegaram a se tornar chefes de escola ou, pelo
menos, a fundar uma totalmente diversa linha de pensamento teórico. Entre esses
convém mencionar Donald Winnicott, psicanalista inglês e pediatra, dotado de rara
competência clínica e que sempre se situou, no panorama psicanalítico, como alguém de
espírito independente e idéias próprias. No meio da grande controvérsia vigente na
British Psychoanalytical Society, no fogo cruzado entre Melanie Klein e Anna Freud,
Winnicott escolhe abrigar-se no Grupo dos Independentes, inteiramente de acordo com
sua posição doutrinária original e autônoma. Nunca aceitou a explicação freudiana da
agressividade em termos de pulsão de morte; para ele, ao contrário, a agressividade era
um elemento fundamental para a criatividade. Essa posição abre uma vertente outra na
psicanálise. Avesso a toda idéia sectária, não gostava de discípulos nem de imitadores:
por esse motivo, o fundou escola nem deixou propriamente seguidores. Escreve que
para ele “não tem utilidade unirmos a palavra morte com a palavra instinto [mantida a
tradução original], e ainda menos se referir a ódio e raiva pelo uso das palavras instinto
de morte. É difícil se chegar às raízes da agressão mas não nos auxilia o uso de opostos
como vida e morte” (WINNICOTT, 1990, p. 173). Apesar de suas raízes kleinianas,
Winnicott se opõe ao conceito e sustenta uma lógica paradoxal em que considera que
destruição e construção, amor e ódio perdem aquela bela e confortável estabilidade dos
entes que são apenas o que são e nada mais (FIGUEIREDO, 1999).
André Green também se manifestou de forma original acerca do conceito de
pulsão de morte. Vai pensar esta pulsão como a força demoníaca do desinvestimento,
como a retirada sistemática das forças de Eros que investem os objetos, incluídos o
mundo e o eu, e o apenas como a força de repetição ou a força agressiva contra o
próprio psiquismo ou a vida do sujeito. Afirma ser impossível falarmos de pulsão de
morte sem nos referirmos ao outro termo do par, a pulsão de vida. Ao contrário, então,
das pulsões de vida, cuja meta essencial é de garantir uma função objetalizante isto é,
função que não apenas é responsável pelas transformações do objeto mas que pode
elevar à categoria de objeto aquilo que não possui nem as qualidades nem os atributos
do objeto -, a meta da pulsão de morte é de “realizar ao máximo uma função
desobjetalizante através do desligamento” (GREEN, 1988, p. 65).
Outro autor que desenvolveu uma noção própria acerca do conceito de pulsão de
morte foi Jean Laplanche, que muitos consideram como mero comentador de Freud, não
fazendo justiça à originalidade de muitas de suas idéias; além de ser um importante
leitor de Freud, apresentou idéias muito originais acerca da questão da sedução. Em um
primeiro momento, Laplanche chega a incluir a pulsão de morte entre as pulsões
sexuais, criando o termo pulsões sexuais de morte, em oposição às pulsões sexuais de
vida. Toda pulsão seria, portanto, sexual. As pulsões sexuais de vida funcionariam
segundo o princípio da energia ligada, seu fim é a síntese, a manutenção ou a
constituição de unidades e de vínculos; as pulsões sexuais de morte funcionam segundo
o princípio da energia livre, seu fim é a descarga pulsional total e são hostis ao eu, o
qual tentam desestabilizar.
Laplanche fundamenta sua recusa em aceitar a nova oposição pulsional na idéia
de que o próprio Freud teria deixado de postular uma “destrudo”, isto é, uma energia
própria e específica da pulsão de morte. Vimos que Freud, no texto O mal-estar na
cultura, fala claramente de uma energia da pulsão de morte, diferente da libido, mas não
a nomeia. Entretanto, esse trecho é a indicação mais formal de que Freud se esforça para
tratar a pulsão de morte como uma pulsão de direito, não apenas com uma energia
própria, apesar de não especificada, mas também com seu devir metapsicológico
particular. Volta a reafirmar essa sua posição no Esboço de psicanálise, de 1938, obra
que encerra seu legado teórico para a posteridade (FREUD, 1940[1938]/1986, p. 147).
Segundo Laplanche, Freud estava inclinado a formular uma “destrudo” só que não pôde
isolá-la com suficiente clareza e se lamenta pelo fato de não poder postular um
equivalente claro da libido. A partir daí, Laplanche afirma que
“esta oposição [pulsões de vida versus pulsões de morte] se concebe com
base numa energia libidinal comum. (...) Mas uma dissimetria fundamental
persiste; a pulsão de vida tende à união entre ela mesma e o princípio de
desunião; a pulsão de morte tende à desunião tanto de sua união com a pulsão
de vida como da própria pulsão de vida” (LAPLANCHE, 1988, p. 101-5).
Entretanto, não acreditamos que essa ausência de uma destrudo nos permita
supor alguma hesitação, da parte de Freud, de afirmar a especificidade e a autonomia da
pulsão de morte, como princípio separado e oposto às pulsões sexuais.
Em seu texto A pulsão de morte na teoria da pulsão sexual, extraído de um
trabalho apresentado num Simpósio realizado em Marselha em março de 1984,
Laplanche questiona a ligação entre pulsão de morte e agressividade. Escreve que não
devemos adotar o termo pulsão de morte “dotando-o de um conteúdo (por exemplo,
agressivo) que não responde nem às experiências visadas por Freud nem à função da
noção no equilíbrio geral do pensamento freudiano” (LAPLANCHE, 1984/1988, p. 15).
Para ele, a agressividade voltada para o exterior não constitui um referente da pulsão de
morte, opondo-se a Freud que, em O mal-estar na cultura, por exemplo, faz derivar
diretamente tanto a agressividade quanto a destrutividade e o ódio das pulsões de morte.
“Somente a sexualidade tem o direito de se nomear pulsão; o único conteúdo do
inconsciente é a sexualidade” (LAPLANCHE, 1984/1988, p. 23). Afirma que na virada
de 1920, a sexualidade “correu o risco de ser completamente açambarcada, correu-se o
risco de o mais ver na sexualidade senão este aspecto ligado, investido, calmo,
quiescente” (ibidem). Perdeu-se a idéia da sexualidade não-ligada, perdeu-se seu
aspecto demoníaco, sujeito ao processo psíquico primário e à compulsão à repetição.
Para reafirmar algo que “era essencial na sexualidade”, Freud teria postulado a
existência de uma pulsão de morte. Desse modo, segundo Laplanche, se a pulsão de
morte não tem energia própria, se não possui um destino metapsicológico próprio, se a
agressividade não espelha a pulsão de morte em ação, não é necessária a postulação de
uma pulsão diferente e oposta à sexual. Para ele, a pulsão de morte” nada mais seria
que a pulsão sexual no que ela possui de mais característico e propriamente pulsional.
Em defesa de seu ponto de vista, alega Laplanche que Freud “mantém, até o fim,
apoiando-se em argumentos, a idéia de que o recalque se aplica, por excelência, à
sexualidade” (ibid, p. 24). Na verdade, e em oposição a essa postulação de Laplanche,
podemos argumentar que Freud, em O mal-estar na cultura, sugere um destino para os
elementos derivados das pulsões de morte. Admite que não resiste a formular o seguinte
enunciado: “quando uma aspiração pulsional sucumbe ao recalque, seus componentes
libidinais são transformados em sintomas, e seus componentes agressivos, em
sentimento de culpa” (FREUD, 1930/1986, p. 134). Admite que esse enunciado merece
nosso interesse ainda que seja correto apenas em uma aproximação global.
Assim como é definida por Laplanche, a pulsão de morte torna-se expurgada da
destrutividade radical de que Freud a dota no texto de 1930. “Não mais nada daquela
destruição não-erótica. Para Laplanche, é demoníaco aquilo que diz respeito à
sexualidade. É uma argumentação redutora” (TRUCCO & ALPEROWITCH, 1991,
p. 13).
Segundo Figueiredo, no mesmo texto a que nos referimos acima, as idéias de
Laplanche sobre a pulsão de morte conseguem produzir um estrago difícil de ser
remediado. “Suas formulações sobre o segundo dualismo pulsional mais confundem que
esclarecem” (FIGUEIREDO, op. cit., p. 62). Afirma esse autor que a principal fonte da
confusão encontra-se na forma simplista com que Laplanche trata as forças de ligação e
desligamento que operam no interior das pulsões sexuais: tratar-se-ia de uma proposta
de superação do dualismo pulsional e do estabelecimento de um antagonismo interno ao
próprio campo pulsional, sexual. Considera que, ao estabelecer uma equivalência entre
ligação erótica, enlace das pulsões de morte por Eros, e a noção metapsicológica mais
geral da ligação de energia, no sentido da contenção da excitação, de sua ligação
segundo um processo primário e, posteriormente, segundo um processo psíquico
secundário, Laplanche produz uma confusão conceitual de conseqüências nefastas. Essa
equivalência simples desconsideraria o fato de que Eros tanto promove a ligação de
elementos diferentes, formando unidades cada vez maiores, quanto gera energia
desligada, ao descarregá-la. “A ligação da energia {Bindung} parece ser de ordem,
natureza e função totalmente distintas do que é a reunião de elementos diferentes para a
formação de organismos pluricelulares, sejam corpos biológicos dos animais
complexos, sejam as coletividades macrossociais, embora o mesmo termo alemão seja
empregado nesse contexto” (ibid, p. 63).
Além dos autores acima citados, lemos, por exemplo, que “a agressividade, em
suas diversas formas, encontra outras explicações que não necessitam do complemento
‘de morte’ para a pulsão” (MARTINS, 2002, p. 328). Ou que “a introdução da pulsão de
morte não teve seqüências concretas, como, por exemplo, nas considerações clínicas”
(MOSCOVICI, 1981, p. 83).
Lemos, também, em um autor que discute o aspecto especulativo da teoria da
libido, que “talvez fosse de se esperar que Freud propusesse e nomeasse energias
específicas movendo cada uma de suas pulsões expressas nos conflitos pulsionais
básicos seja no primeiro dualismo seja no segundo” (FULGENCIO, 2002, p. 99).
Baseia-se no fato de somente a energia sexual ser nomeada como argumento para
invalidar tanto a primeira quanto a segunda teoria das pulsões. Ora, o autor comete,
somente nessa frase, dois equívocos. Primeiro, e mais grave, é o de confundir os
estatutos de energia e de força. Ao afirmar que Freud não postula uma energia que
movimente suas pulsões, o autor inverte completamente as definições. Pulsão designa
uma força, é ela que movimenta; a energia é a ‘matéria’, a ‘substância’ que é
movimentada pelo dinamismo, pelo movimento pulsional. A força da pulsão é aquela
que direciona a energia psíquica na direção do investimento e do desinvestimento dos
objetos; o efeito de desinvestimento se deve à predominância da pulsão de morte,
responsável pelas rupturas, pelos desligamentos. Não são as pulsões que são
impulsionadas por algum tipo de energia, é justamente o inverso disso. O autor retoma o
tema de Laplanche e recoloca, de forma equivocada, a questão acerca de que energia
impulsionaria a pulsão de morte, como se coubesse à energia esse papel. O segundo
engano é quando afirma que na primeira dualidade pulsional não havia energias
específicas para cada uma das pulsões; na realidade, Freud postula que as pulsões
sexuais m sua energia própria a libido e que as pulsões do eu ou de
autoconservação possuem a sua, o interesse, não-sexual.
E ainda aquele que postula que o conceito de pulsão de morte na obra de Freud
traz confusão para o pensamento psicanalítico porque, ao favorecer a idéia de uma
dinâmica psíquica do tipo biológico e inato, contraria toda a originalidade da descoberta
freudiana de uma sexualidade inconsciente, fantasmática, auto-erótica e anárquica.
Considera o conceito de pulsão de morte problemático e complexo: representaria um
retorno à ordem biológica, adaptativa ou natural, em total discordância com o
pensamento freudiano, perpassado pela ruptura radical que produz, do ponto de vista
epistemológico (GUTIÉRREZ-TERRAZSA, 2002).
Acreditamos que uma outra leitura pode e deve ser feita, sempre e mais,
incluindo em suas considerações aspectos evidentes da clínica. Gostaríamos de
empreender um estudo das diferentes linhas de pensamento e correntes teóricas que
tiveram como ponto de partida a postulação do conceito de pulsão de morte, aquelas que
aceitaram e fizeram desta pulsão o paradigma de toda pulsão e, ao contrário, as outras
que consideraram dispensável tal conceito. Entretanto, essa seria outra tese, impossível
de ser levada a cabo nesse momento.
A segunda teoria pulsional e seu corolário topográfico, a segunda tópica do
aparelho psíquico, nos permitem compreender não como se estrutura o aparato como
também que ferramentas essa nova arquitetura traz para o melhor entendimento da
posição e da função do analista. Se a primeira tópica tinha um jeito de tabuleiro de
xadrez, em que o analista mudava as peças de posição, tornando-as de inconscientes em
conscientes, a segunda tópica inaugura uma circulação energética ampla e uma
dinâmica extensa. Abre para o analista a possibilidade de intervir nos circuitos, nas
engrenagens, nas ligações, nas intensidades. Observamos uma maior fluidez, é uma
tópica em movimento, sem grandes estratificações. Os reflexos na prática clínica são
notáveis. Partindo-se da idéia de que nos constituímos através da fala de um outro
sujeito, que é aquele que dá nomes, os nomes primordiais, constitutivos, podemos
pensar na possibilidade de o analista inaugurar novos sentidos para o paciente, de acenar
com o inédito de novos significados, quase que interferindo na produção de um novo
circuito pulsional. Em análise, criam-se novos nomes, falam-se novas palavras,
possibilitadoras de novos circuitos, novas passagens. Cabe ao analista, ciente de sua
posição e de seu enlace com o pulsional do analisando, quebrar as univocidades uma
vez instauradas. A polissemia do conceito de pulsão de morte acaba por permitir os
múltiplos novos sentidos a serem inaugurados em análise.
Entendemos também que a representação gráfica apresentada por Freud no texto
O eu e o isso, de 1923, e na conferência 31 das Novas Conferências de introdução à
psicanálise, de 1932, sobretudo essa última, nos permite dizer que, ao contrário do
modelo da primeira tópica, o da segunda apresenta um aparelho psíquico sem
“contornos lineares como no desenho ou a pintura primitiva” (FREUD,
1933[1932]/1986, p. 74) e em comunicação com o corpo. “Imaginamos que em seu
extremo esteja aberto em direção ao somático, ali recolhe dentro de si as necessidades
pulsionais que, nele, encontram sua expressão psíquica”, conforme mencionamos
(ibid, p. 68). E não apenas isso: onde antes havia sistemas nitidamente separados, por
fronteiras, e habitados por energias distintas e representações também diferentes as
representações-coisa e a energia libidinal do sistema Inconsciente e as representações-
palavra e a energia não-libidinal, o interesse, exclusivas do sistema Pré-
consciente/Consciência agora existem instâncias, permanentemente em comunicação
entre si e com o fora do aparelho. Um esquema gráfico da primeira tópica nos sugeriria
um sistema fechado e formado por subsistemas também fechados e separados entre si,
enquanto o da segunda tópica nos mostra um aparelho sem fronteiras internas
demarcadas entre suas instâncias e com uma abertura para o corpo que representa, em
relação ao aparato anímico, também um mundo externo. Freud sai de uma divisão
sistêmica do aparelho, de uma teoria representacionista que é a da primeira tópica: como
dissemos, essa mudança de inflexão tem inevitáveis e claras repercussões no que
poderíamos considerar uma teoria da clínica. (PINHEIRO, 2000). Freud nos diz: uma
parte do isso se comunica com o corpo e é o ponto de impacto da pulsão no aparelho
psíquico. São registros heterogêneos mas em comunicação: corpo e alma, finalmente, se
articulam. E Freud diz mais: o supereu mergulha no isso, aprofundando, dessa maneira,
sua ligação com esse território desconhecido.
Essa comunicação, apesar de representar um desenvolvimento muito interessante
da teoria, deixa em aberto um problema. Desde seus primeiros escritos, Freud procurou
especializar uma energia psíquica e reiteradas vezes afirmou que a libido é
exclusivamente psíquica. Da mesma forma, procurou destacar, da noção geral de
instinto, o conceito de pulsão, como aquela cujo objeto não é pré-determinado mas sim
construído. Assim, estava mais que dada a heterogeneidade dos registros. Agora, com a
segunda teoria pulsional e, sobretudo, com a segunda tópica, essa especificidade vai
desaparecendo e Freud começa a falar da arquitetura do aparelho psíquico, em relação
ao o psíquico, de modo mais indiscriminado, mais frouxo, dando a impressão que, à
medida que a metapsicologia vai se dialetizando, ele não precisa mais de distinções o
precisas. Como decorrência desse novo modo, a teoria é apropriada, de maneiras às
vezes completamente diversas, pelas diferentes escolas; os pensadores capturam os
conceitos a partir dos aspectos que mais lhes interessam.
Voltamos a sublinhar que essa nova concepção do aparelho nos permite uma
diferente compreensão do compromisso clínico entre analisando e analista. O analista da
primeira tópica, o porta-voz da função hermenêutica, era aquele que tinha de tornar o
Inconsciente consciente, segundo palavras do próprio Freud. Diante de um Inconsciente
‘fechado’, sem possibilidade de articulação com os outros sistemas a não ser através
da passagem abrupta sob a forma de suas formações sintomáticas e não-sintomáticas -, o
que o analista tem que fazer é traduzir de uma para a outra língua os conteúdos das
representações. E tornar consciente o Inconsciente é trazer para o campo da
Consciência, emprestando-lhes palavras, as representações inconscientes. O
Inconsciente está lá, dado, e cabe ao analista o papel de tradutor e de introdutor.
Consideramos, entretanto, que certo exagero nessa leitura: outros aspectos indicados
na teoria, como a sobredeterminação, a inesgotabilidade da interpretação, a
possibilidade de sentidos vários, propiciam uma abordagem menos estrita. Todavia, a
partir da postulação do conceito de pulsão de morte e da ênfase dada à noção de mescla
pulsional, sublinhando o fato de que todo o aparelho é campo da oposição e da
conjugação das duas forças primordiais, Freud possibilita uma notável mudança na
compreensão daquilo que se passa na clinica.
Diante dessa segunda tópica, onde a idéia é a de que tudo está por acontecer e
acontecendo, sem barreiras rígidas e compartimentos estanques, o analista pode ser
compreendido como fazendo parte do circuito pulsional do analisando; ele participará,
do momento em que tudo está em perene movimento, da possibilidade de novas
inscrições. Não se trata mais, nem apenas, de transformar o que é inconsciente em
consciente, através de uma função de tradução, revelando para o analisando um sentido
que já estava mas que ele desconhecia, mas sim de participar do circuito pulsional do
sujeito que o convida a participar, transferencialmente, de sua trajetória. Seu isso está
ali, presente, batendo às portas do aparelho psíquico, solicitando inscrição e, portanto,
trabalho. Essa, pensamos, é a grande mudança que sofre a posição do analista a partir da
segunda tópica: ele, o analista, se oferece, a si mesmo, como possibilitador de inscrição.
Na transferência, ele poderá tornar possíveis novas inscrições e não apenas
desempenha o papel daquele que pode trazer para a consciência inscrições que
estavam lá desde sempre. A questão da transferência muda, o analista passa a se
apresentar como veículo de inscrição, transferencial. Na primeira tópica, a transferência
era vista como um falso enlace. Com a segunda tópica, acreditamos que, além desse
lugar, que se mantém, o analista pode passar a ser alvo e propiciador de novos enlaces
do momento em que é um dos restos diurnos do analisando. Um aparelho em perene
movimento e constantes e diferentes combinações permite que o analista tome parte da
composição de novas inscrições. Do analista/hermeneuta, estamos agora diante daquilo
que gostaríamos de chamar de analista/escriba, aquele que põe em palavras, escritas daí
em diante na história do analisando, aquilo que aentão estivera fora do registro das
inscrições. As marcas transformam-se, assim, em símbolos mnêmicos, em palavras que
testemunham os novos trajetos pulsionais do analisando. Produz-se uma extensão da
função e do desempenho do analista: agora, ele está pronto, informado pelos avanços da
metapsicologia, a tentar intervir nos próprios circuitos pulsionais de seu analisando,
propondo-lhe uma variedade para sua trajetória antes unívoca e sintomática.
O conceito de pulsão de morte e a segunda tópica dotaram a concepção do
aparelho psíquico de uma mobilidade que antes não era considerada. Esse movimento
constante se torna compreensível através do papel atribuído às pulsões de morte, de
estar constantemente possibilitando rupturas e novas ligações. Como vimos acima, dos
exemplos que Freud cita para sustentar a noção de compulsão à repetição, os sonhos das
neuroses traumáticas são os que mais se adequam ao seu propósito. Todavia, como
também entendemos, essa repetição visaria, em última análise, a possibilidade de,
inscrevendo-se, entrar no domínio do princípio de prazer. Na transferência, exemplifica
Freud, se a mesma compulsão sendo que, nesse caso, fica ainda mais clara a
subordinação a um ganho de prazer; entretanto, podemos compreender a ligação
transferencial como uma tentativa de, ao repetir, o analisando conseguir, com a inclusão
dos significantes do analista, produzir um novo sentido. Cabe ao analista tornar possível
uma nova inscrição para aquilo que até então estivera fora do domínio do psíquico.
Uma concepção menos estática do aparelho, onde os conflitos o se resumem
ao que se passa entre sistemas distintos e sim estão presentes em cada uma das mesclas
pulsionais na totalidade das instâncias, nos levou a repensar o papel do analista. A idéia
de que as forças em ação se opõem e se conjugam, se combinam, dota a nova estrutura
do aparelho de tal flexibilidade que isso acaba por refletir na noção que se tem da
verdadeira função de agente que é o analista.
Dentro dessa discussão propriamente clínica, outro aspecto interessante trazido à
tona pela nova teoria pulsional é aquele que, a nosso ver, diz respeito às questões
referentes ao fim da análise. Muito se discutiu acerca do que marcaria um fim de
análise e mesmo se isso é possível. Freud mesmo, em seu Análise terminável e
interminável, de 1937, aponta a rocha de castração como o escolho onde esbarra todo
fim de análise, apontando para as dificuldades implicadas na cura e na apropriada
condução desse processo. Não pretendemos tomar esse viés nem aquele que contrasta
fim de análise com finalidade da análise; gostaríamos apenas de sugerir uma nova
visada para esse tema, a partir do conceito de pulsão de morte e seus aspectos
propriamente positivos. Tomemos, então, a direção apontada por Freud em seu texto
acima mencionado: o fundamental seria levar o analisando a uma melhor utilização de
seu aparelho psíquico, condição possibilitada pela substituição, parcial, claramente, do
recalcado pelo julgamento consciente. Ou a definição apontada no final da 31ª
conferência das Novas conferências de introdução à psicanálise, de 1933: escreve
Freud que a finalidade dos empenhos terapêuticos é a de “fortalecer o eu, fazê-lo mais
independente do supereu, aumentar seu campo de percepção e ampliar sua organização
de maneira que possa apropriar-se de novos fragmentos do isso” (FREUD,
1933[1932]/1986, p. 74). Mas acrescenta, cauteloso com o que pode ser considerado um
término, acenando para a presença de uma tarefa, em si, interminável: “é um trabalho de
cultura como o enxugamento do Zuidersee” (ibidem).
O fim de uma análise pode ser considerado do ponto de vista mais objetivo, isto
é, aquele momento em que analista e analisando cessam de se ver; nenhuma análise
finda sem que isso aconteça, é claro. Entretanto, de nada adiantará fazermos essa análise
sem levarmos em conta se o fim foi um fim propriamente ou se não passou de uma
ruptura, de uma interrupção, de uma fuga para a saúde. À pergunta, insistente, sobre que
operação estaria presente no momento de um legítimo fim de análise, isto é, aquele em
que os objetivos foram alcançados, gostaríamos de responder que tal acontecimento
se quando, entre outros fatores que agora não examinaremos, os vínculos
transferenciais se extinguem. E consideramos que essa extinção se deve à ão das
pulsões de morte, consideradas em seu viés de positividade, isto é, o de permitir
desligamentos ou desenlaces.
O enlace é obra de Eros a busca por uma análise aponta para um predomínio
de investimentos eróticos, em que o analista é procurado e a ele se dirige a demanda do
analisando -, o desenlace, das pulsões de morte. As pulsões de morte,
inquestionavelmente presentes no que se chama reação terapêutica negativa, resistência
do supereu, e na compulsão à repetição, atribuída a uma resistência característica do
isso, participam igualmente do acontecimento que gostaríamos de qualificar como um
verdadeiro fim de análise, ou seja, aquela circunstância em que o analisando se sente em
condições de prescindir do acompanhamento de seu analista e este aquiesce. O
assentimento por parte do analista parece marcar um fim desejável para qualquer
relação terapêutica.
Sabemos também que, mesmo interrompida a relação entre analista e analisando,
a análise prossegue, agora sob a forma auto; uma vez iniciado, o percurso que a análise
inaugura jamais cessará de acontecer na alma do sujeito. Nesse sentido, a análise é
mesmo interminável; o sujeito que findou sua análise é capaz e ao mesmo tempo
compelido a dar continuidade ao processo iniciado em seus primeiros contatos com o
profissional escolhido para balizar suas investigações. Uma análise, uma vez começada,
não acaba nunca, literalmente. A pergunta adequada seria a de como termina uma
relação terapêutica.
Acabar uma análise significa destituir o analista de seu lugar previamente
apontado, o daquele que supostamente sabe, e conquistar a liberdade. De posse de um
saber sobre si mesmo suficiente para alçar vôo, agora o analisando pode seguir sozinho.
Claro está que as pulsões de morte fizeram seu trabalho, “negativo”, nas
transferências hostis, nas reminiscências infantis dirigidas ao analista; podem mesmo se
impor de forma irretorquível e levar a uma dissolução indesejada do vínculo, a uma
reação terapêutica negativa, epítome daquilo que Freud considerou a mais radical das
resistências. Mas não é disso que aqui se trata e sim da possibilidade dessas pulsões de
morte, liberadas da manutenção dos nexos incestuosos, infantis, edípicos, produzirem,
por sua competência de desligar, a liberação do analisando em relação à sua
dependência afetiva do analista. Agora, quem sabe é ele mesmo e percebe que pode
prosseguir em sua análise sem o contraponto que até então lhe oferecera seu analista.
A transferência é um dos invariantes da psicanálise, talvez sua marca mais
inconfundível; é uma tentativa de encontro afetivo com o outro – esse imenso outro que
representa o analista, alvo da transferência –, na repetição de suas modalidades
originárias e infantis. Significa um aprisionamento ao desejo do analista e nesse sentido
a transferência marca a interminabilidade de uma análise. Sob esse prisma, acreditamos
que a transferência se dissolve graças à ação própria das pulsões de morte e não a uma
palavra “dada” pelo psicanalista, seu assentimento. Termina-se uma análise dentro de
certo mal-estar, quase uma ruptura. Não é assim que as relações terminam? Não é
perguntando ao analista se se está pronto que se termina uma relação terapêutica e,
enfim, uma análise. É o analisando quem deve se perguntar se pode dispensar seu
analista e isso se dentro de certo sentimento hostil, quase de raiva. É, afinal de
contas, uma separação decidida pelo sujeito, uma ruptura, por mais que encontre, da
parte do profissional, uma concordância. Separar-se é deixar seu objeto, por um ato de
vontade. O analisando não é deixado, ele deixa, rompe, quebra laços, abandona seu
objeto e prefere ficar só; o analisando abdica de seu objeto, o “mata”, decreta seu
desaparecimento, por acreditar que está bom assim.
O final de análise seria o momento no qual a relação de transferência de desfaz;
na prática, aquele em que cessam as sessões. A operação implicada nessa dissolução
seria ditada pela potência das pulsões de morte, as únicas capazes de desfazer vínculos.
As pulsões de morte, responsáveis pela pior resistência na análise, uma vez tendo
desistido de seus objetos edípicos e tendo se dirigido para metas substitutivas e
sublimadas, tornam-se, paradoxalmente, aquelas que são capazes de dissolver o laço
terapêutico. Se isso não é possível o que se são as análises propriamente
intermináveis, aquelas que se prolongam por anos a fio, sem que nada de novo se
acrescente, perpetuando-se um pacto perverso e conveniente à manutenção das posições
narcísicas e mesmo simbióticas. Se a resolução do conflito edípico acontece, as pulsões
de morte se encontrarão em condições de, livres, atuar positivamente, a favor de um
desligamento saudável, de uma “boa” separação, por assim dizer. Estaríamos, assim,
diante da positividade das pulsões de morte,
O fim da análise, mais do que, depois de esbarrar, transpor, atravessar o rochedo
da castração, designa uma aceitação, um acolhimento, uma compreensão do desamparo
advindo da conquista da liberdade, do fato de se estar, finalmente, sozinho.
A partir dessa inteligibilidade, pensamos que a virada de 1920 trouxe
conseqüências não apenas teóricas, metapsicológicas, como também implica de forma
renovada o analista no desempenho de seu ofício. A segunda teoria pulsional e seu novo
e discutido conceito acabam por apontar para uma viragem propriamente clínica, onde o
analista, ao ser considerado como fazendo parte do fora do psíquico do analisando,
recebe uma nova e delicada missão: a de ser o facilitador de novas inscrições e não
apenas o tradutor do que lá já estaria. Não nos parece possível que uma mudança teórica
tão radical possa não ter trazido conseqüências para a concretude da clínica. Como
aponta Laplanche, uma experiência viva dos conceitos, de seu empréstimo, de sua
derivação, de seu extravio ou desvio. Há uma maneira em que a evolução da experiência
teórica esposa os avatares da evolução da coisa mesma, isto é, do ser humano”
(LAPLANCHE, 1988, p. 10).
III. Sadismo, masoquismo, sadomasoquismo
O Marquês de Sade é o verdadeiro patrono de nosso tempo. Ele
consegue alegria vital com o sofrimento dos outros, assim como o
luxo dos ricos é pago com a miséria dos pobres.
Kafka, in Conversas com Kafka, de Gustav Janouch.
Le masochiste élabore des contrats, tandis que le sadique abomine et
déchire tout contrat. Le sadique a besoin d’institutions, mais le
masochiste, de relations contractuelles.
Gilles Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch.
Encontro uma estranha atração na dor, e nada pode atiçar minha
paixão mais que a tirania, a crueldade e sobretudo a infidelidade de
uma bela mulher.
Sacher-Masoch, citado em A Vênus das peles.
A psicanálise fez do sadismo, anteriormente usado apenas para designar a
perversão sexual cuja satisfação está na dependência do sofrimento, da humilhação
física e moral, da flagelação, ou da dor infligida ao outro, um dos componentes
fundamentais da vida pulsional e, conseqüentemente, da sexualidade humana, tanto
adulta quanto infantil. O sadismo, como perversão, corresponderia “a um componente
agressivo da pulsão sexual, componente que se tornou autônomo, exagerado, elevado,
por deslocamento, ao papel principal” (FREUD, 1905a/1986, p. 143). No sadismo, o
prazer é obtido através da prática de atos de crueldade, quando se inflige sofrimento
doloroso a um outro (ENRIQUEZ, 1990).
Richard Von Krafft-Ebing, psiquiatra austríaco que foi um dos fundadores da
sexologia, foi quem propôs, em 1886, que se designasse esta conduta perversa pelo
nome de sadismo, em referência à obra e ao personagem do Marquês de Sade, na
verdade Donatien-Alphonse-François, Conde de Sade (1740-1814), e o termo passou a
fazer parte do vocabulário da sexologia. Em sua obra mais famosa e traduzida no
mundo inteiro, Psychopathia sexualis, fazia uma extraordinária descrição, baseada em
extensas observações, de todas as formas possíveis de perversões sexuais. O extremo
prazer, advindo com o sofrimento alheio, recebeu esse nome por causa do erotismo
cruel dos romances de Sade. Nesses, se descrevem cenas de libertinagem acompanhadas
de atos de crueldade.
“A inclinação a infligir dor ao objeto sexual, bem como sua contrapartida, que
são as mais freqüentes e significativas de todas as perversões, foram
denominadas por Krafft-Ebing, em suas duas formas, a ativa e a passiva, de
sadismo e masoquismo (passivo). Outros autores (...) preferem a designação
mais estrita de algolagnia, que destaca o prazer pela dor, a crueldade, enquanto
os termos escolhidos por Krafft-Ebing colocam em primeiro plano o prazer em
qualquer forma de humilhação ou sujeição (...)” (FREUD, 1905a/1986, p. 143).
Segundo o dicionário francês Le Petit Robert, sádico designa aquele que tem
prazer em fazer sofrer, a ver sofrer o outro; é usado, na linguagem corrente, como
sinônimo de mau, cruel. O termo pode também apontar para aquele capaz de perpetrar
crimes e agressões sexuais. Sadismo, além do sentido psiquiátrico de uma perversão
sexual, cuja condição de alcançar o orgasmo é através de sofrimento, físico ou moral, de
seu objeto, é praticamente um sinônimo de crueldade: na verdade, é o deleite na e com a
crueldade.
“O conceito de sadismo oscila, na linguagem corriqueira, entre uma atitude
meramente ativa, ou mesmo violenta, para com o objeto sexual, até uma
satisfação exclusivamente condicionada pela sujeição e maus-tratos a ele
infligidos” (ibidem).
No Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, lê-se que sadismo define
uma perversão sexual em que a satisfação erótica advém da prática de atos de violência
ou crueldade, física ou moral, infligidas ao parceiro sexual.
Na terminologia psicanalítica, verificamos que Freud reserva o termo sadismo, a
grande maioria das vezes, ou “sadismo propriamente dito”, para a vinculação da
sexualidade e da violência exercida sobre o outro. “Uma parte da pulsão é colocada
diretamente a serviço da função sexual, onde tem um papel importante a desempenhar.
Esse é o sadismo propriamente dito” (FREUD, 1924/1986, p. 163).
Entretanto, nem sempre é tão rigoroso e encontramos o emprego do termo
sadismo para o exercício da violência para além de qualquer satisfação sexual,
aproximando-se, assim, da acepção vulgar do termo. Esta acepção acabou se tornando
amplamente utilizada na psicanálise e levou a que se estabelecesse uma sinonímia,
especialmente a partir da obra de Melanie Klein, entre sadismo e agressividade.
O masoquismo, que acabará por compor, com o sadismo, o par antitético
sadismo-masoquismo, ou sadomasoquismo, designa a perversão sexual em que a
satisfação está vinculada ao sofrimento ou à humilhação do sujeito pela ação de um
outro, de preferência objeto de seus desejos sexuais. Como acontece com o sadismo,
Freud acaba por estender essa noção do masoquismo aos rudimentos da sexualidade
infantil, apontando elementos da perversão masoquística em numerosas condutas
sexuais; desdobra essa noção fazendo derivar dela outras formas de sofrimento,
notadamente o que ele denominou masoquismo moral, no qual o sujeito, pressionado
por um sentimento de culpa inconsciente, acaba por ocupar a posição de vítima sem que
um prazer sexual esteja claramente implicado.
Novamente deve-se a Krafft-Ebing as primeiras descrições da perversão sexual,
em 1896, a que deu o nome de masoquismo, em referência a Leopold Von Sacher-
Masoch, romancista austríaco (1836-1895) que preconizou um ideal de conduta em sua
obra, cujos personagens eram presa de erotismo patológico. Masoquismo descreve um
comportamento sexual desviante no qual o sujeito tem necessidade de sentir dor para
chegar ao gozo sexual: o termo caracteriza uma conduta sistemática de busca do prazer
na condição de tima sofredora (BALADIER, 1996, p. 322). Na expressão corrente,
diz-se da atitude de uma pessoa que busca a dor e a humilhação infligidas por outro.
Krafft-Ebing também apontou para o papel das fantasias masoquistas, além da
enumeração das principais características da perversão: dor sica, flagelação,
humilhação moral, submissão servil, castigo corporal indispensável. Também considera
o masoquismo como um crescimento excessivo e patológico dos elementos psíquicos
femininos, presentes tanto em homens quanto em mulheres. O próprio Freud acaba por
fazer uma analogia entre o sadismo e o masculino, assim como aponta um forte vínculo
entre masoquismo e o feminino, adotando, no que foi acompanhado por todos os autores
que se seguiram a ele, o neologismo da Psychopathia sexualis para qualificar esse
estranho desejo de sofrer e tirar disso prazer, o prazer encontrado na dor: “ele goza
onde ele sofre” (LAPLANCHE, 1971, p. 177).
A oposição entre masculino e feminino tem seu equivalente mais primário na
oposição ativo/passivo. Afirma Freud que algumas inclinações perversas apresentam-se
regularmente como pares de opostos e que a existência do par de opostos sadismo-
masoquismo não pode ser derivada, sem discussão, da ingerência de um componente
agressivo.
“Ao contrário, ficaríamos tentados a relacionar a presença simultânea desses
opostos com a oposição entre masculino e feminino, conjugada na
bissexualidade, oposição que amiúde é substituída na psicanálise pelo contraste
entre ativo e passivo” (FREUD, 1905a/1986, p. 145).
Na categorização do masoquismo, parece-me mais significativa a questão da
passividade, em contraste com a posição ativa do sádico, do que propriamente a busca
do prazer com e na dor. Mesmo Freud, diante desse estranho desejo de sofrer, que
colocava em xeque o princípio de prazer que domina todos os fenômenos psíquicos, via-
se confrontado com a especificidade da posição feminina.
“De maneira similar, a designação de masoquismo abrange todas as atitudes
passivas perante a vida sexual e o objeto sexual, a mais extrema das quais é o
condicionamento da satisfação ao fato de padecer de dor física ou anímica
infligida pelo objeto sexual” (ibid, p. 144).
Tanto o sadismo quanto o masoquismo foram retomados por Freud no quadro
mais geral da perversão e da pulsão; ele acoplou os dois termos criando um novo
vocábulo, o sadomasoquismo, que posteriormente passou a ser adotado pela
terminologia psicanalítica. Sadismo e masoquismo ocupam entre as perversões um
lugar especial, que a oposição entre atividade e passividade que jaz em sua base
pertence às características universais da vida sexual” (ibidem).
Freud observa, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, que sempre se
encontram vestígios dos dois tipos de postura num mesmo indivíduo, concordando com
Havelock Ellis, médico e escritor inglês, co-fundador da sexologia e autor de Estudos de
psicologia sexual, a quem Freud atribui muitas descobertas e sobretudo de quem adota
determinados termos. Um sádico é ao mesmo tempo um masoquista; tanto o aspecto
ativo quanto o passivo pode predominar e assim passa a caracterizar a atividade sexual
dominante.
Tanto o sadismo quanto o masoquismo têm como traço diferencial a questão do
sofrimento, do outro ou de si mesmo, e do prazer com isso obtido. Infligir sofrimento a
um outro implica, necessariamente, a presença da crueldade, o querer fazer sofrer.
O desenvolvimento de suas noções acerca do par sadismo-masoquismo seguirá
aquele que vai ocorrer com a teoria pulsional. Esse par de termos opostos e
complementares faz parte de uma visão mais ampla dos fundamentos da vida pulsional,
caracterizada por simetrias, oposições, combinações e reciprocidades. De início, Freud
observa a agressividade presente no sadismo; por esse motivo, o sadismo lhe pareceu
primário e o masoquismo, conseqüentemente, secundário. O sadismo lhe parecia
inegável, assim como o sentimento de ódio. Entretanto, um primeiro problema se
apresenta: o sadismo aparecia claramente ligado à sexualidade, o ódio o. Na falta de
melhor explicação, vincula-o às pulsões do eu. Com o advento do conceito de
narcisismo, a que Freud foi levado pela necessidade de compreender outras afecções
além das neuroses de transferência, o eu se define como igualmente libidinal, fazendo
com que se torne impossível fazer derivar dele o ódio.
O sadismo sempre foi muito claro, ostensivo, escandaloso: o sujeito obtém um
tipo de satisfação com o sofrimento alheio. E este outro, como se satisfaz? De uma
parte, com suas pulsões autodestrutivas, mescla pulsional onde, apesar de a meta erótica
se manter, imperam as pulsões de morte e seu objetivo de destruição. De outra parte,
com seu próprio masoquismo. Desse modo, podemos tentar estabelecer uma diferença
entre esses dois tipos de combinações pulsionais: pulsões de autodestruição e
masoquismo não seriam a mesma coisa. A pulsão de autodestruição visaria acabar,
aniquilar o si mesmo próprio, essa seria propriamente sua meta; o masoquismo seria
uma fruição, um gozo, ligado eminentemente à sexualidade, sua meta primária,
originária. Aqui, goza-se com o próprio sofrimento: na autodestruição, mesmo diante de
um gozo, mortífero, o que é almejado não é o prazer mas a destruição. Conforme
veremos adiante, o masoquismo do eu, que é uma parcela de pulsão de morte ligada por
Eros mas não defletida, isto é, retida, se satisfaz numa ligação erótica com o supereu
sádico. Por sua vez, o sadismo do supereu também constitui uma satisfação de pulsões
de morte ligadas, nele existentes; se junta a fome com a vontade de comer, ou melhor, o
desejo de morrer com a vontade de matar, condições intrapsíquicas verdadeiramente
complementares.
Assim é que temos, como introdução ao tema, as considerações, algumas
citadas, presentes nos Três ensaios, de 1905. Para Freud, o masoquismo, como
perversão, parece distanciar-se mais do objetivo sexual normal que seu oposto, o
sadismo. Sob o prisma da teoria, o eixo da análise feita é o da hipótese de anterioridade
concedida ao sadismo. Freud considera que é duvidosa a idéia de o masoquismo ser um
fenômeno primário e propõe que o compreendamos como surgindo regularmente do
sadismo, mediante uma transformação. Os trechos que contêm essa explicação foram
agregados ao texto original em 1915, o que os faz contemporâneos do texto
metapsicológico sobre as pulsões, também do mesmo ano. “É freqüente poder-se
reconhecer que o masoquismo não é outra coisa senão uma continuação do sadismo que
se volta para a própria pessoa, que faz as vezes, num início, do objeto sexual” (ibidem).
Atribui o “exagero e a fixação da atitude sexual passiva” em casos extremos de
perversão masoquista a diversos fatores, entre eles o complexo de castração e a
consciência de culpa. Ainda nos Três ensaios, na seção em que aborda as
exteriorizações sexuais masturbatórias, escreve Freud que muito se suspeitava que a
estimulação dolorosa das degas é uma das raízes erógenas da pulsão passiva à
crueldade, ou masoquismo (ibid, p. 176). A mesma idéia será retomada em Bate-se
numa criança, de 1919.
O tema do par antitético sadismo/masoquismo começou a ser amplamente
discutido na recém fundada Sociedade de Psicanálise de Viena. na reunião de de
abril de 1908, em que se abordou a questão do nculo da psicanálise com a filosofia,
Otto Rank observa que quando se Nietzsche, tem-se a impressão de que a pulsão
sádica (masoquista) e sua supressão desempenham um papel muito importante em sua
vida (NUNBERG & FEDERN, 1979a, p. 363). Esta supressão explica, por um lado,
como no neurótico obsessivo, sua delicadeza, cortesia e mesura; por outro lado,
origem à sua “glorificação da crueldade e do espírito de vingança. Suas idéias sobre a
origem do mal constituem uma justificação contra as críticas que se dirige a si mesmo”
(ibid, p. 364). Prossegue apontando para o fato de a ênfase posta na zona oral estar de
acordo com seu sadismo. O sadismo aparece, pois, nessa fala, vinculado à oralidade
canibalística, é um sadismo implicado com a destruição do objeto. Essa ligação entre
sadismo e destruição não é incondicional.
Na sessão de 13 de maio do mesmo ano, Adler retoma as apreciações de Rank e
contesta sua menção do vínculo existente entre sadismo e angústia; reivindica, como
descoberta própria, ter separado o sadismo da sexualidade e -lo colocado acima de
todas as demais pulsões. Esse é um exemplo das querelas sobre prioridades, comuns no
seio da sociedade recém fundada e que acabaram por ameaçar sua estabilidade (ibid, p.
401). Essa intervenção é pouco anterior à postulação de sua tese sobre a pulsão de
agressão, em 3 de junho.
Dos Três ensaios até O problema econômico do masoquismo, de 1925, a
concepção freudiana do sadomasoquismo permanece a mesma. Nos textos em que
Freud aborda o tema, tanto o sadismo quanto o masoquismo aparecem ora como
componentes da pulsão sexual, ora como configurando quadros de perversão, e ainda
como caracterizando condutas infantis típicas. Assim, em A propósito de um caso de
neurose obsessiva, de 1909 “o homem dos ratos” -, escreve que pouco conhece da
essência do amor para concluir algo sobre a relação do seu fator negativo, ou seja, o
desejo de morte, com o componente sádico da libido.
“Nos casos em questão, de ódio inconsciente, o componente sádico do amor se
desenvolveu constitucionalmente com particular intensidade; e, em
conseqüência disso, sofreu uma sufocação prematura e demasiado radical, e
assim os fenômenos observados da neurose se originam, de um lado, da ternura
consciente elevada por reação, e, por outro lado, do sadismo que, no
inconsciente, continua produzindo efeitos como ódio” (FREUD, 1909a/1986,
p. 187).
A análise do “homem dos ratos” Ernst Lanzer, judeu vienense que durou
cerca de nove meses, de outubro de 1907 a julho de 1908, foi mencionada por Freud em
cinco diferentes reuniões da sociedade das quartas-feiras, antes de apresentar o relato
clínico no primeiro congresso da International Psychoanalytical Association, em
Salzburg, em abril de 1908 (ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 463). A primeira
apresentação foi na reunião de 30 de outubro e Freud o qualifica de “um caso muito
ilustrativo de neurose obsessiva (pensamento obsessivo)”. Ao fazer uma exposição
detalhada das primeiras sessões de análise, Freud observa que a técnica analítica
“mudou a tal ponto que o psicanalista não tenta extrair o material que o interessa mas
permite ao paciente seguir o curso natural e espontâneo de seu pensamento”
(NUNBERG & FEDERN, 1979a, p. 242). Federn ressalta o fato de essa observação ser
de grande interesse histórico posto que foi feita em 1907; temos aqui, pela primeira vez,
o relato de um caso clínico levado a cabo pelo método das associações livres.
Segundo tratamento psicanalítico conduzido por Freud antes analisara e
relatara o “caso Dora” -, costuma ser considerado o mais elaborado e mais estruturado
de todos seus historiais clínicos. Freud finalmente tinha em mãos o relato de uma
neurose obsessiva que estava de acordo com suas hipóteses. A peça central desse caso
era o ódio inconsciente, recalcado, nutrido pelo paciente por seu pai. Tendo recalcado
desejos de morte por seu pai, aparecem as idéias obsessivas que são, na realidade,
desejos obsessivos. Era característica desse paciente o que Freud chama de
“coexistência crônica do amor e do ódio em relação à mesma pessoa”, isto é, a
ambivalência afetiva. Freud também afirma que o “ódio mantido pelo amor no
Inconsciente” desempenha um grande papel igualmente na patogênese da histeria e da
paranóia.
Ao longo da vida deste paciente, houve um intenso embate entre sentimentos de
amor e ódio simultaneamente dirigidos tanto à mulher amada quanto ao pai. Essa
condição cindida de sentimentos governava seus pensamentos obsessivos. As duas
correntes conflitivas caracterizam a ambivalência, a convergência de afetos opostos
dirigidos a uma mesma pessoa, o que traz problemas para o sujeito. Podemos dizer que
essa é uma ambivalência, típica nas afecções obsessivas, o-contornada pelo enlace
erótico das pulsões de morte, com seu conseqüente abrandamento. A ambivalência
invariavelmente se impõe onde Eros não teve potência ou competência para neutralizar
a fúria destrutiva dessas pulsões e seus derivados. A esse respeito, em O eu e o isso, de
1923, Freud observa que a regular ambivalência, que o amiúde encontramos reforçada
na disposição constitucional à neurose, pode ser concebida como resultado de uma
desmescla; entretanto, ela é tão originária que talvez seja mais correto considerá-la
como uma mescla pulsional não consumada (FREUD, 1923/1986, p. 43).
Esse conflito entre amor e ódio já causava estranheza a Freud, que se diz
assombrado pela co-existência crônica dos dois sentimentos. “O caso mostra, com
especial clareza, algo que nunca falta nos estados de neurose obsessiva: sentimentos
recalcados que são maus, agressivos, hostis e cruéis (desejos sádicos e assassinos)”
(ibid, p. 243). Esse componente de crueldade, que poderia ser considerado ‘masculino’,
está igualmente presente na vida anímica das mulheres.
Intrigado, Freud se pergunta qual seria a relação entre o ódio e a teoria da libido
até então vigente. E mais: qual seria a natureza pulsional do ódio? Se o ódio é recalcado
e mantido no Inconsciente pela ação do amor, então o amor está necessariamente no
lado da agência recalcante. Podemos dizer que, aqui, a oposição entre eu e pulsões
sexuais começa a ser deslocada para a oposição amor versus ódio. Inicialmente, localiza
o ódio ao lado da pulsão sádica.
Eis aqui a primeira indicação da tese que Freud postulará, a de que, no que se
refere à participação das pulsões na contração das neuroses, a analidade e o sadismo
constituem a base da neurose obsessiva. Esta idéia, por exemplo, ainda não aparece em
seu texto sobre as obsessões e fobias, de 1895 (FREUD, 1895/1986).
O caso do “homem dos ratos” não é importante para o desenvolvimento da teoria
apenas pelo aspecto da ambivalência dos afetos, apesar de Freud ter dito, na reunião
mencionada, que, em geral, o ser humano não pode tolerar a coexistência de idéias e
sentimentos opostos. Freud se assombra com determinadas reações de seu paciente e
escreve, por exemplo, que “observava em seu rosto uma expressão complexa e bizarra”,
expressão que ele não saberia traduzir de outra maneira senão como o horror a um
gozo que ele mesmo ignorava” (FREUD, 1909a/1986, p. 190). Depois de relatar uma
cena em que levara uma surra do pai por ter mordido alguém, da qual não tinha
nenhuma lembrança mas que lhe fora contada por sua mãe, Lanzer duvida dos
sentimentos de ódio que tinha pelo pai. Entretanto, logo depois, começa a demonstrar
muita hostilidade por seu analista, a quem, ao mesmo tempo, pedia insistentemente que
o punisse. Esse episódio confrontou Freud não apenas com a transferência, sua velha
conhecida, mas com a força desse ódio inconsciente e a virulência da transferência dita
negativa. Revelou também, de forma inequívoca, a essência do amor edipiano pela mãe
e do ódio pelo pai, também amado.
Na mesma reunião acima mencionada, a de 13 de maio, Adler se declara seguro
de que serão descobertas as condições orgânicas do caso apresentado. Concorda que a
avareza deriva de pulsões auto-eróticas localizadas na zona erógena anal. A futura
dissidência de Adler se anuncia aqui pela ênfase que ele à base orgânica de todo
sintoma.
Maximilian Steiner, doutor em medicina e um dos primeiros discípulos e
participantes das reuniões, declara que as mulheres também podem ser cruéis, donde
essa pulsão, a cruel, o poder ser considerada como uma qualidade especificamente
masculina. Federn acrescenta, em nota, que esta observação anuncia a idéia de que a
crueldade, assim como a destruição, se origina em uma pulsão independente, que é a
mesma para homens e mulheres. Considera que essa teoria será a mesma desenvolvida
por Freud em sua última dualidade pulsional (NUNBERG & FEDERN, 1979a, p. 246,
n. 14).
Freud retomao tema no artigo sobre a predisposição à neurose obsessiva, que
examinaremos a seguir. Na reunião de 27 de novembro, Freud, ao comentar um caso
apresentado por Stekel, reafirma que o caráter anal freqüentemente se combina com
tendências sadomasoquistas. Sendo o sadomasoquismo uma condição ligada
primariamente à obtenção de prazer, podemos adiantar que, mesmo vinculado à fase
anal do desenvolvimento psicossexual, ele diz mais respeito ao erotismo da mucosa anal
do que à musculatura que controla os esfíncteres, cuja vinculação se dá diretamente com
a retenção, o controle e a dominação obsessivos. O masoquismo, que muitos autores
consideram como o lado perverso da melancolia, sua função perversa, não deve ser
confundido inteiramente com os traços característicos da neurose obsessiva, esta menos
ligada, como dissemos, aos aspectos mais gozosos dessa fixação à analidade.
Na reunião científica de 22 de janeiro de 1908, Freud fizera referência ao caso
clínico do ‘homem dos ratos’ e, depois de relatar a interessante resolução de dois
sintomas no curso do tratamento desse neurótico obsessivo, acrescenta observações
sobre essa neurose. Uma delas diz que o excesso de ternura do obsessivo se combina
com o ódio: essas duas correntes que operam nele devem encontrar uma via de descarga
simultânea ou sucessiva. Esse excesso de ternura se apresenta como uma forma de
supercompensação do ódio, o qual, uma vez mais, contribui para a dificuldade em se
discernir adequadamente os traços desse quadro clínico (ibid, p. 294-5). Estamos diante
da formação reativa. Volta a referir-se a esse caso na reunião de 8 de abril, quando
apresenta a resolução da idéia dos ratos.
No texto que trata da fobia de uma criança, do mesmo ano, lemos que seu
pequeno paciente, Hans, tinha acessos de sadismo e que num estágio da análise, e
dentro de certo nexo, aparece um fragmento de sadismo sufocado nele, sadismo esse
que se referia à sua vontade de bater nos cavalos; como estava sufocado, Freud pretende
descobrir, pelo contexto, o que representava e o que queria substituir. Estamos
novamente diante da ambivalência: Hans ama seu pai e nutre pelo mesmo desejos de
morte (FREUD, 1909b/1986, p. 92). Movido pelo drama edípico, o menino deseja ver
seu pai ir embora e reconhece seu desejo de possuir a mãe. Hans, de fato Herbert Graf,
era filho do crítico e musicólogo Max Graf, participante das reuniões de quarta-feira e,
portanto, discípulo de Freud, quem, na verdade, apenas ajudou o pai na análise de seu
filho. Freud, em vez de ocupar o lugar de analista propriamente, interviera como
supervisor; encontra o menino apenas uma vez. Esta análise permitiu que Freud
comprovasse o acerto de suas teses sobre a sexualidade infantil, conforme seus Três
ensaios, de 1905. A análise do Pequeno Hans teve lugar durante o primeiro semestre de
1908 e foi contemporânea da de Lanzer, acima mencionada.
Ainda no mesmo ano, Freud profere conferências sobre a psicanálise, em uma
viagem aos Estados Unidos da América, para onde ele tinha sido convidado a participar
das comemorações do vigésimo aniversário da Clark University, no estado de
Massachusetts. Na quarta conferência, Freud menciona que atividades auto-eróticas se
manifestam muito cedo, na criança, e nelas percebem-se componentes pulsionais do
prazer sexual, ou da libido, que pressupõem como objeto uma pessoa estranha.
“Estas pulsões aparecem em pares de opostos, como ativas e passivas; cito-lhes
como mais notáveis representantes deste grupo o prazer de infligir dor
(sadismo) com o seu correspondente {Gegenspiel} passivo (masoquismo) e o
prazer de ver ativo e passivo” (FREUD, 1910[1909]/1986, p. 40).
Na ata da reunião de 19 de maio de 1909, praticamente contemporânea dos casos
clínicos acima mencionados, Freud, referindo-se a um de seus artigos Contribuições à
psicologia do amor, mais especificamente o de número I, que trata de um tipo particular
de escolha de objeto feita pelos homens, publicado em 1910 (FREUD, 1910c/1986),
menciona que o desejo de sofrer ciúmes é uma característica singularmente masoquista
(NUNBERG & FEDERN, 1980, p. 225).
Na reunião da sociedade de 10 de maio de 1911, Tausk retoma o tema e
apresenta a conferência “Uma contribuição à psicologia do masoquismo” (NUNBERG
& FEDERN, 1979b, p. 247), publicada no mesmo ano no Zentralblatt. O orador avisa
que seus achados sobre a psicologia do masoquismo se baseiam em apenas um caso
clínico, o que faz com que seu trabalho não passe de uma contribuição ao tema.
Descreve seu paciente como um homem que deu livre curso a toda sua sexualidade
através de fantasias masoquistas e que nunca tinha tido uma relação sexual quando
começou o tratamento; parecia ter uma neurose obsessiva difusa. Nesse ponto do relato,
Tausk chama a atenção da assembléia para a necessidade do acerto do diagnóstico
diferencial entre uma neurose e uma perversão. O cerne do masoquismo deste paciente
se encontra em sua relação com a e: um amor ardente é substituído por um ódio
profundo, a partir de uma mudança na atitude de sua mãe com ele. “Poderíamos supor
que foi o comportamento particular da mãe que levou o menino ao masoquismo;
entretanto, a mãe serviu, unicamente, de material às fantasias masoquistas” (ibid,
p. 248).
Depois de descrever, em minúcias, essas fantasias, o autor se coloca a questão
central do masoquismo: de que maneira as sevícias são fonte de prazer para o paciente?
As possíveis respostas são de dois aspectos. Um diz respeito à maneira de o paciente
abreagir impulsos sádicos anormais, mordendo seus bios e a mão: isso pode dar a
impressão de que é a dor que lhe dá prazer. O outro remete a uma infinidade de
sintomas que se originam no erotismo anal. Tausk deduz que o ânus é a zona erótica
privilegiada do paciente, fazendo o papel de uma vagina. Todas as fantasias masoquistas
originárias eram fantasias anais, acompanhadas pela fantasia de castração. Aqui se
apresenta o vínculo entre o masoquismo e o erotismo anal; este, à diferença da questão
da dominação, ligada estreitamente a uma atitude ativa, aponta para uma posição de
passividade, sendo então estabelecida uma analogia entre o masoquismo e a
homossexualidade.
Começada a discussão, Eduard Hitschmann, doutor em medicina, além de
elogiar a conferência, considera que se pode constatar, do relato do caso clínico, a
existência de um poderoso sadismo anterior ao período do masoquismo, confirmando a
posição teórica advogada por Freud (ibid, p. 251). Tausk observa que as causas mais
profundas do caso se encontram no caráter anal e na constituição, esta última, em seu
aspecto psicológico, no complexo de culpa. Acrescenta que, juntas, as duas causas
desembocam no masoquismo.
No que se refere ao sadismo, o paciente parece-lhe um rapaz agressivo, sádico,
que voltou sua cólera contra ele mesmo. Federn reivindica a prioridade do assunto, em
conferência realizada dois anos antes; nela asseverava que a masturbação do nis é
provavelmente precedida por uma masturbação anal entre aqueles que, mais tarde, se
tornam masoquistas. Alia-se à posição de Adler, segundo a qual são as condições
externas – questões de superioridade e de inferioridade o que faz com que uma
criança, proveniente de uma família sádica, transforme sua agressão em seu contrário.
Entretanto, esta não é a única raiz do masoquismo. Hanns Sachs, doutor em direito que
se torna psicanalista, acrescenta que o sadismo e o masoquismo são, falando de modo
generalizado, a mesma coisa (ibid, p. 254).
Isidor Sadger, por sua vez, considera que a separação entre masoquismo e
neurose tem razão de ser: “o masoquismo é apenas uma forma de atividade sexual e
opera na neurose como qualquer outra forma de atividade sexual: fornece somente o
material” (ibid, p. 255). Finaliza dizendo que o masoquismo aparece toda vez que o
sadismo se restringe a um papel passivo mas somente um masoquista é capaz de chegar
a essa atitude. Ou seja: existiria, segundo essa postulação, uma constituição masoquista,
não derivada de um sadismo voltado à própria pessoa quando impedido de se expressar
sobre um objeto. Aqui começa a se insinuar a dúvida sobre a anterioridade do sadismo e
do lugar secundário do masoquismo. Como vemos, as polarizações se apresentam, as
lutas pelas idéias se tornam cada vez mais acirradas.
Um ano e meio depois, nas reuniões de 6 e de 13 de novembro de 1912, Sadger
apresenta duas conferências intituladas “O complexo sadomasoquista”, I e II, trabalho
posteriormente publicado no Jahrbuch (NUNBERG & FEDERN, 1983, p. 138-145). É
grande o interesse do grupo por esse tema e todos se manifestam na discussão que se
segue à apresentação. Hitschmann confirma, por sua experiência, o caráter hereditário
do masoquismo mas gostaria que se determinasse mais especificamente quais as
condições para que se origine o sadomasoquismo na criança. Freud observa que não
nada de novo na conferência e reafirma que a substância, o suporte corporal do
sadomasoquismo deve necessariamente ser a superfície da pele. O masoquismo psíquico
deverá ser discutido mais tarde. Entretanto, enfatiza ele, deve-se duvidar que o
masoquismo possa ser primário, como parece ser a postulação do orador. Apesar de
não termos em mãos o material da conferência, podemos inferir qual a posição aqui
assumida por Sadger e refutada por Freud.
Sachs critica o fato de o conceito do erotismo da pele e do músculo, que não
passa de um conceito auxiliar e transitório sobre o qual nada se encontra nos artigos
publicados de Freud, por sinal – ser apresentado como algo absoluto. Além disso,
deplora a ausência de uma avaliação do aspecto psíquico do sadomasoquismo (ibid, p.
139). Alfred Freiherr von Winterstein, doutor em filosofia, é da mesma opinião de
Sachs. Gaston Rosenstein, doutor em filosofia e sociólogo, enfatiza a ausência do ponto
de vista psicanalítico na conferência e aponta para o fato de que “o sadismo manifesto e
o sadismo recalcado não foram distinguidos” (ibidem). Atribui o sadismo a um provável
recalque de outras pulsões e seria apenas por essa característica que ele se tornaria
acessível à influência terapêutica.
Rank chama a atenção para o fato de o orador dar a impressão de considerar o
masoquismo como um fenômeno primário, o que contradiz a concepção psicanalítica
de então da vida pulsional. Rank parece perceber o surgimento de uma nova idéia e
alerta para o fato de essa novidade constituir uma discrepância da teoria vigente sobre o
masoquismo, conforme postulada por Freud.
Tausk, por sua vez, acha que a relação estabelecida na tese principal apresentada
a de que o sadomasoquista quer fazer sofrer o parceiro porque a sofrimento lhe
prazer é contestável. Considera que o prazer proveniente de uma abreação é
confundido com o próprio prazer causado pelo sofrimento. A crueldade, a que o orador
recorreu como explicação, não tem absolutamente nada a ver com a sexualidade.
Freud, a propósito da intervenção de Winterstein, constata que uma educação
severa não é causa necessária para o desenvolvimento do sadismo. razão a
Rosenstein quando esse aponta como ponto de partida para o tratamento do sadismo a
facilitação para que se desenvolvam os componentes recalcados.
Federn protagoniza uma longa intervenção, em três partes, dedicadas, cada uma,
ao que ele denomina uma ‘tese’. A ‘primeira tese’, a que professa que o
sadomasoquismo se deve a um erotismo constitucionalmente intensificado da pele, da
mucosa e do músculo (ibid, p. 140), está correta na afirmação de que erotismo da pele e
sadismo coincidem; o erotismo corresponde às zonas erógenas mas nada pode ser
representado sob a denominação de erotismo do músculo. Existe, além disso, a questão
de se o erotismo da pele é primário ou secundário: pode se tratar, primariamente, de
ternura ou de crueldade. Esse comentário de Federn, conforme a transcrição, redunda
bastante enigmático; talvez apenas signifique que o erotismo da pele pode derivar tanto
de um gesto de ternura quanto de um ato de crueldade, isto é, de um aspecto mais
erótico ou de outro mais agressivo, ambos produzindo uma intensificação de uma zona
erógena, no caso a pele. É interessante observar a ressalva que Federn faz, deixando à
parte a questão do erotismo do músculo; isso aponta para uma fina percepção acerca da
ligação da musculatura com a preensão e a dominação.
Quanto à ‘segunda tese’, a que enuncia que o sadomasoquismo tem origem na
primeiríssima infância e é adquirido quando dos primeiros cuidados prodigados ao bebê,
observa que os cuidados ao bebê, universais, o podem ser apresentados como uma
etiologia. Entretanto, acrescenta, é verdade que a determinação da maioria dos sintomas
do sadomasoquismo tem sua origem na infância. Com respeito à ‘terceira tese’, a que
postula que não se trata minimamente de sujeição mas sim de experiências voluptuosas
da infância, observa que a questão da sujeição muitas vezes desempenha papel
importante e não deve ser descartada. Dessa forma enfatiza o aspecto propriamente
erótico do sadomasoquismo, apesar de não ignorar as características vinculadas ao
sofrimento, tanto físico quanto moral.
Joseph Reinhold, neurologista e doutor em filosofia, contesta o vínculo entre
masoquismo e erotismo da pele, alegando falta de provas. Além disso, sensações
concomitantes do ponto de vista anatômico não podem ser igualmente consideradas
como tal fisiologicamente. Não foi estabelecida nenhuma relação com as formas
psíquicas e o verdadeiro problema, o de saber por que o sofrimento causa prazer. Karl
Weiss, médico vienense que aderiu ao grupo nesse mesmo ano, pensa que um reforço
das zonas erógenas individuais, tal como exigido para que surja uma etiologia
específica, poderia começar no estágio do narcisismo. A atividade sadomasoquista pode
ser explicada a partir de uma disposição bissexual (ibid, p. 141).
A discussão continua na sessão da semana seguinte. Reinhold volta a insistir em
sua crítica referente à ausência de elaboração psicanalítica na apresentação das soluções
terapêuticas. Rudolf Reitler, médico que se uniu a Freud desde 1902, também considera
que o sadomasoquismo esteja ligado ao erotismo da pele mas duvida que exista um
erotismo do músculo. Acrescenta que houve um equívoco na tese de uma pulsão de
crueldade específica na criança; trata-se, muitas vezes, de pulsões de dominação. Como
até esse momento, a crueldade era condição do sadismo ou de pulsões ditas ‘de
destruição’, é interessante observarmos a inclusão da idéia de que a pulsão de
dominação se diferencia das outras pela ausência da crueldade, ou, melhor dizendo, da
crueldade intencional. Ou seja: a pulsão de dominação não visa fazer sofrer seu objeto
nem lhe fazer nenhum tipo de mal; a dominação busca apreender e manter o objeto, sem
prejudicá-lo, apenas para poder usufruir dele.
Tausk é de opinião que as zonas erógenas são simplesmente utilizadas de modo
sadomasoquista mas observa que o orador não mostrou de onde provém o sadismo (ibid,
p. 143). Tampouco ficou demonstrado por que o erotismo uretral e o do músculo m
um papel significativo nesse quadro, nem em quais condições específicas uma pessoa
com a pele incomumente sensível se torna sadomasoquista. Mostra-se apenas que as
experiências da infância, conforme mencionadas, são utilizadas mais tarde em um certo
sentido. A questão que permanece sem resposta é a de saber por que.
Federn é bastante severo com a apresentação e afirma que o orador nem de longe
compreendeu o problema do sadomasoquismo; além disso, considera que a publicação
do artigo na forma em que se encontra seria “inoportuno e prejudicial” (ibidem). Esse
tipo de intervenção aponta, mais uma vez e de forma taxativa, para as lutas internas da
sociedade e para os desfechos que muitas dessas dissensões teóricas tiveram: as
diferenças conceituais misturavam-se, sem cerimônia, com questões pessoais, de poder,
de autoridade.
Sachs defende o orador, dizendo que este foi mal compreendido: apenas quis
chamar a atenção para o fato de se encontrar, em todos os casos de sadismo, uma
irritabilidade aumentada da pele. Nesse ponto, o editor informa que havia, na margem
do manuscrito, uma nota escrita a pis e que dizia: “Sad abgelenkter erotog.
Masochismus?” Ou seja: “Sadismo masoquismo erógeno desviado?” Quem a te
escrito? O redator das Atas costumava ser Rank mas não se especifica a autoria dessa
nota que sugere, pensamos, a possibilidade de uma primariedade do masoquismo, aqui
qualificado de erógeno, em relação ao sadismo, isto é, indicação de uma derivação
do sadismo a partir de um desvio sofrido pelo masoquismo, erógeno e primário.
Finalizando a sessão, Freud, o ‘professor’, apresenta, inicialmente, um exemplo
de masoquismo verbal. Trata-se de uma mulher, pertencente às altas esferas da
sociedade, que exige de seu parceiro, para a realização do ato sexual, condutas que
incluem altercações, atos agressivos e obscenos, exame de seus órgãos genitais, insultos
e, finalmente, masturbação. Durante essa cena, a mulher se imagina observada e é desse
pormenor que ela extrai seu máximo prazer. Ao imaginar, certa vez, que seu pai estava
entre esses espectadores, recua apavorada e interrompe essa prática durante certo tempo.
Freud acha óbvio inverter essa seqüência: a masturbação vem primeiro, depois a
inspeção e, finalmente, os insultos. Parece que quando tinha a idade de três anos, a
moça foi examinada à força por um médico, provavelmente em presença de seus pais,
por conta de um sintoma de incontinência urinária. Em sua fantasia, ela agora coloca
seu pai no lugar do médico. Na patogenia de sua neurose, a figura mais importante é a
de seu pai; em seus acessos de vergitem, sintoma recorrente, ela imita os mesmos
acessos de seu pai. “Nessa identificação se expressam tanto as moções de ternura quanto
o desejo recalcado de ser liberada de toda obrigação que pudesse ter com seu pai pela
morte deste” (ibid, p. 144).
Sadger conclui sua apresentação tentando se defender do que ele considera
acusações injustas; entre estas, a de ter afirmado que o masoquismo é primário.
Entretanto, reafirma sua postulação acerca de o masoquismo, tanto em sua forma ativa
quanto na passiva, ter origem no erotismo da pele. “Para que uma pessoa se torne
sádica, é necessário que venha se somar o componente da crueldade, que provém das
pulsões do eu” (ibid, p. 145). Ou seja: o masoquismo existe antes que se estabeleça o
sadismo, resultado de um acréscimo de crueldade feito ao primeiro. O mais interessante,
porém, é essa última afirmação, a de que a crueldade provém das pulsões do eu, fórmula
que será repetida por Freud no início de seu texto fundamental de 1920.
Um pouco antes de empreender a escrita dos textos que ficaram conhecidos
como trabalhos metapsicológicos, onde encontramos a concepção do sadomasoquismo
extensivamente analisada, à luz da primeira tópica no artigo sobre as pules, de
1915 -, Freud trata do tema em analogia com o quadro psicopatológico da neurose
obsessiva. Assim é que, em 1913, escreve a respeito de uma paciente que desde a mais
tenra infância fazia fantasias sádicas de espancamento, prontamente sufocadas. Depois
disso, ela passa por um incomumente longo período de latência, sem despertar para os
sentimentos sexuais femininos”. Casa-se, ainda jovem, e inicia uma vida sexual ativa e
normal. Até que, diante de uma primeira grande frustração, eclode a neurose histérica;
segue-se uma desvalorização da vida genital e a vida sexual da moça “retorna ao estágio
infantil do sadismo” (FREUD, 1913c/1986, p. 341). Seus sintomas, sob a forma de
formações reativas, que se caracterizavam por penosa compulsão a lavar-se e à limpeza,
se erguiam contra as moções anal-eróticas e sádicas, componentes pulsionais que
governavam a organização pré-genital de sua vida sexual.
Aponta Freud que muitos autores, entre eles Ernest Jones, haviam destacado o
papel que o ódio e o erotismo anal desempenham na neurose obsessiva. Acrescenta que
a oposição entre masculino e feminino não está presente nesta fase de eleição pré-
genital de objeto, sendo substituída, como dissemos, pela oposição entre aspirações
de meta ativa e de meta passiva. Nesse ponto, escreve Freud quea atividade é
sufragada pela pulsão comum de dominação, a que damos o nome de ‘sadismo’,
justamente, quando a encontramos ao serviço da função sexual” (ibid, p. 342). Essa é a
idéia abordada no capítulo sobre a pulsão de dominação, que examina a derivação do
sadismo da pulsão “comum” de dominação, como diz o próprio Freud, esta última ainda
não visando a obtenção de prazer mas tão-somente o domínio do objeto e a manutenção
desta condição. O sadismo, acrescenta, tem importantes papéis a desempenhar na vida
sexual normal plenamente desenvolvida; desse modo, Freud aponta para uma colocação
do sadismo como fazendo parte da vida normal, destacando essa função, de auxiliar, da
perversão propriamente dita e do infantilismo na vida adulta. A seguir, retoma a questão
da pulsão de saber na neurose obsessiva, coisa da qual tratara no texto sobre
Leonardo da Vinci, de 1910.
“Em particular, ficamos sempre com a impressão de que a pulsão de saber pode
realmente tomar o lugar do sadismo no mecanismo da neurose obsessiva. Na
verdade, ela é, no fundo, uma ramificação sublimada da pulsão de dominação,
elevada ao plano intelectual, e seu repúdio sob a forma de dúvida desempenha
grande papel no quadro da neurose obsessiva” (ibid, p. 344).
Na sessão de 6 de novembro de 1912, anterior, portanto, ao artigo acima
mencionado, a mesma em que se a demissão de Stekel, Isidor Sadger apresenta a
conferência “O complexo sadomasoquista”, parte I; o trabalho relativo a essa
apresentação aparecerá no Jahrbuch com praticamente o mesmo título (NUNBERG &
FEDERN, 1983, p. 138). Na discussão que se segue, Freud mais uma vez duvida que o
masoquismo possa ser primário, como o orador pretende.
Observamos, mais uma vez, a grande qualidade do debate que se deu nesses
primórdios da instituição psicanalítica, verdadeiro arquivo do pensamento de Freud e de
seus discípulos, a memória da psicanálise. Se a correspondência de Freud nos mostra
seu pensamento se elaborar tanto interna quanto externamente, contra ele mesmo e
contra os desvios e dissidências, as Atas são a prova cabal da fecunda troca de idéia
entre os pioneiros da psicanálise, constituindo-se, também, em um documento da
própria epistemologia do novo saber.
Sabemos que em 1930, com seu trabalho O mal-estar na cultura, Freud
dispensará às pulsões agressivas e destrutivas especial atenção, conferindo-lhes
autonomia e anterioridade até então ausentes, definindo-as como derivados das pulsões
de morte. Entretanto, no trabalho metapsicológico sobre as pulsões, de 1915, Freud se
detém nos aspectos da vida pulsional em que destruição e agressão aparecem fundidas
com os elementos libidinais da pulsão: o sadismo e o masoquismo. Segundo o
Dicionário de Psicanálise, é nesse texto que encontramos a expressão mais rematada do
conceito de sadomasoquismo, à luz da primeira tópica (ROUDINESCO & PLON,
op. cit., p. 682).
Parece-nos que Freud se vê diante de um impasse aparentemente sem solução no
texto, que é o de dar uma origem ao ódio, sentimento inequívoco da natureza humana. O
amor não apresenta problemas: podemos fazê-lo derivar das pulsões sexuais que
empreendem, em relação ao objeto, uma conduta de aproximação; podemos
compreendê-lo como a relação do eu com suas fontes de prazer. Mesmo que seja difícil
para Freud considerar o amor como uma pulsão parcial da sexualidade, ele o trata, sem
maiores problemas, como a expressão da aspiração sexual como um todo” (FREUD,
1915a/1986, p. 128). O amor diz respeito ao sujeito totalizado e a seus sentimentos em
relação a um objeto. Declara que, no que diz respeito ao contrário material dessa
aspiração, pouco tem a dizer; parece-lhe, entretanto, que é um sentimento que mantém,
com o amor, uma oposição e um paralelismo. O ódio possivelmente fala também de
uma ‘totalização’. Como o ódio o pode ser derivado da mesma fonte que o amor, isto
é, as pulsões sexuais, sobra para ele o outro grupo de pulsões, as não-sexuais, de
autoconservação. Quando o objeto é fonte de sensações de desprazer, o eu tentará fugir
dele e sentirá repulsão” pelo mesmo. Esse objeto será alvo do ódio que, dessa forma,
assim como o amor, é relativo ao eu como um todo. Esse ódio pode converter-se em
inclinação a agredir e aniquilar o objeto. Freud não emprega aqui um ou’, o que nos
possibilita aventar a existência de duas finalidades do ódio.
“O eu odeia, aborrece e persegue com finalidades destrutivas todos os objetos
que se constituem para ele fonte de sensações desprazerosas (…). E ainda
podemos afirmar que os genuínos modelos da relação de ódio não provêm da
vida sexual, mas sim da luta do eu em se conservar e se afirmar” (ibid, p. 132).
Nesse momento da teoria, Freud, portanto, alinhará o ódio, que ele considera
mais antigo que o amor, com as pulsões de conservação do eu, sendo uma expressão da
luta desse eu contra uma realidade objetiva adversa e ameaçadora, porque provedora de
estímulos dos quais é necessário fugir, os quais é preciso evitar ou anular.
Freud tentará dar conta desse e de outros problemas apelando para dois destinos
de pulsão muito arcaicos, utilizáveis antes mesmo de o sujeito poder lançar mão da
operação do recalcamento. São eles a transformação em seu contrário {Verkehrung ins
Gegenteil} e o retorno sobre a própria pessoa {Wendung gegen die eigene Person}. A
transformação no contrário compreende dois processos: o retorno de uma pulsão da
atividade à passividade e a transformação quanto ao conteúdo. A mudança de atividade
em passividade contempla os pares de opostos sadismo-masoquismo e prazer de ver-
exibição, e atinge somente as metas da pulsão. A mudança de conteúdo diz respeito a
um único caso, o da transformação de amor em ódio. O retorno à própria pessoa se
torna mais compreensível se pensarmos que o masoquismo é, sem dúvida, um sadismo
que retorna ao eu próprio, e de que o exibicionismo inclui o olhar para o corpo próprio”
(ibid, p. 122).
A solução ali encontrada por Freud afirma que o sadismo é primário, anterior ao
masoquismo, e exprime uma agressividade contra um outro, tomado como objeto. O
sadismo consiste em uma ação violenta, em uma afirmação de poder dirigida a outra
pessoa como objeto” (ibid, p. 123). Com essa definição, confundem-se sadismo e pulsão
de agressão, ou mesmo pulsão de destruição, do momento em que se enfatiza a
violência. Quando aponta para uma afirmação de poder, nos remete ao conceito de
pulsão de dominação. Não sublinha, entretanto, a característica prazerosa que o sadismo
encerra, igualando-o às outras pulsões.
Há uma mudança, então, na passagem para o masoquismo, no registro do objeto:
o objeto é abandonado e substituído pela própria pessoa. Ao mesmo tempo, a meta
pulsional ativa transforma-se em passiva. A agressividade se reverte contra o próprio
sujeito e a atividade se inverte em passividade. Como esses destinos de pulsão cumprem
a tarefa de impedir a consecução direta das pulsões, são considerados como variedades
de defesa contra as mesmas. Deduzimos, pois, que a agressão contra o objeto torna-se
insuportável para o sujeito e, para defender-se, ele empreende essas mudanças. A seguir,
uma pessoa estranha é mais uma vez procurada como objeto e terá, devido às mudanças
ocorridas no nível da meta, de assumir o papel de agente da ação violenta que
caracteriza, nesse texto, o sadismo. Nesse momento, então, estamos diante do
masoquismo. “Também aqui a satisfação se obtém pelo caminho do sadismo originário,
voltando o eu passivo, em fantasia, ao seu papel inicial, que foi agora, de fato, assumido
pelo sujeito estranho” (ibidem).
Freud duvida que possa existir uma satisfação masoquista mais direta e
considera que um masoquismo originário, não derivado do sadismo, parece não existir.
Sabemos que essa visão será modificada no seu texto sobre o masoquismo, de 1925,
tornado possível pela postulação do conceito de pulsão de morte. Sabemos, também,
que esse tema foi longamente debatido com seus pares, muitos dos quais advogavam
uma primariedade para o masoquismo. depois de passados muitos anos as
primeiras discussões sobre o sadomasoquismo datam das reuniões científicas de 1907 -,
Freud passa a admitir essa nova versão.
Freud também sugere que, do ponto de vista clínico, a neurose obsessiva se
situaria no momento intermediário desse processo: no retorno à própria pessoa, o sujeito
impõe a si mesmo o sofrimento que antes pretendia levar ao objeto. um retorno mas
não a eleição de uma nova pessoa como agente do sofrimento. Do desejo de torturar
e fazer sofrer o objeto derivam o automartírio, a autopunição, tão característicos da
neurose obsessiva, mas não o masoquismo. Na neurose obsessiva, o sujeito inflige a si
mesmo o sofrimento com o qual vitimizava seu objeto. Antes de passar à posição e à
voz passiva, o fazer sofrer passa pela voz reflexa.
também outra dificuldade nesta concepção do sadismo: esta pulsão parece
visar, junto a uma meta geral, ou, como nos aponta, no interior desta, uma ação-meta
muito especial”. Junto com o objetivo de humilhar e subjugar o objeto, meta
propriamente da pulsão de dominação, o objetivo de infligir dor. Para a psicanálise,
“infligir dor o desempenha nenhum papel entre as ões-meta originárias da pulsão”.
Para dar conta dessa dificuldade, Freud produz um notável rodeio teórico.
“A criança sádica não leva em conta infligir dores, nem se propõe a fazê-lo.
Mas, uma vez ocorrida a transformação em masoquismo, as dores se prestam
muito bem para proporcionar uma meta masoquista passiva, pois temos todos
os motivos para acreditar que as sensações de dor, assim como outras
sensações de desprazer, transbordam sobre a excitação sexual e produzem um
estado prazeroso, em nome do qual o sujeito pode consentir o desprazer da dor.
Uma vez que sentir dor se transformou numa meta masoquista, a meta sádica
de infligir dor pode surgir, retrogressivamente; produzindo-a em outro, o
sujeito goza de maneira masoquista na identificação com o objeto que sofre.
Em ambos os casos, naturalmente, não se goza a dor em si, mas sim a excitação
sexual que a acompanha, e, como sádico, isso é particularmente cômodo. O
gozar com a dor seria, assim, uma meta originariamente masoquista, mas que
pode tornar-se meta pulsional em quem é originariamente sádico” (ibid,
p. 124).
Acrescenta que a transformação do sadismo em masoquismo implica um
retrocesso ao objeto narcisista e que o sujeito narcisista é substituído por identificação
por um outro, estranho.
“Se considerarmos a etapa prévia do sadismo, essa etapa narcisista que
construímos, alcançamos uma compreensão mais geral: os destinos de pulsão
que consistem na volta sobre o eu próprio e na reversão da atividade para a
passividade dependem da organização narcisista do eu e trazem o selo dessa
fase” (ibid, p. 127).
Freud propõe que examinemos também os outros componentes da função sexual
mais tardia, ainda insuficientemente acessíveis à análise. Em geral, atuam de modo
auto-erótico: seu objeto coincide com o órgão que é sua fonte. Mas isso não acontece
com os dois pares antitéticos considerados, a pulsão de ver e o exibicionismo, assim
como a dupla sadismo e masoquismo. O objeto da pulsão de ver é também,
inicialmente, uma parte do próprio corpo; entretanto, não é o olho em si. No sadismo, o
órgão fonte, que é provavelmente a musculatura capaz de ação, aponta inequivocamente
para outro objeto que não ele próprio.
Fica evidente a dificuldade de Freud em explicar o que de fato ocorria.
Trabalhando dentro da primeira oposição pulsional a que media pulsões sexuais e
pulsões do eu ou de autoconservação faltam-lhe elementos para dar conta dessa força
voltada para a destruição, para a fruição com o sofrimento alheio e próprio, para a
agressão e a dominação. Sem a idéia de uma mescla pulsional absolutamente originária
e fundamental, ele tinha de lançar mão de complicados artifícios. O prazer sádico seria
resultado de uma segunda volta, desta vez do masoquismo para o sadismo, de novo. É
somente no registro da transformação do sadismo em masoquismo que se a
articulação com a sexualidade, antes ausente. A característica sexual do sadismo
aparece nessa segunda inversão; ao se retransformar o masoquismo em sadismo, e por
intermédio de uma identificação com o objeto, pode o sujeito-agente da ação violenta
ter prazer com o sofrimento de seu objeto. Isso porque ele sabe, por vivência própria,
que o prazer também pode surgir da dor e do sofrimento. Uma vez que sentir dor
tornou-se uma meta de obter prazer, de forma masoquista, a meta sádica de obter prazer
pela produção de dor no objeto pode surgir, de forma retroativa” e identificatória.
Produzindo dor no objeto, o sujeito-agente goza com esta dor, de maneira masoquista,
por identificação com o objeto que sofre. Acrescenta que “gozar com a dor seria,
portanto, uma meta originariamente masoquista, mas que pode tornar-se meta
pulsional em quem é originariamente sádico” (ibid, p. 124). Ou seja, nesse momento da
teoria, o prazer sádico surge após o retorno à própria pessoa e o advento do prazer
masoquista; depois da vivência masoquista, pode-se gozar com a ato de infligir dor
ao outro
Assim como o sadismo, não explicitamente colocado sob a égide das pulsões
sexuais mas sim a da pulsão de dominação, inicialmente sem meta sexual, o ódio
também se alinha nesse grupo. Entretanto, sempre às voltas com o enigma da sua
gênese, aqui Freud afirma que amor e ódio, claros opostos materiais, não mantêm
entre si uma relação simples: “não surgiram da cisão de algo comum originário, mas
sim têm origens diferentes” (ibid, p. 132). Como manifestação da reação de desprazer
provocada por certos objetos, o ódio mantém um estreito nculo com as pulsões de
conservação do eu. Assim a oposição entre as pulsões se conserva, repetindo a oposição
entre os afetos.
O prenúncio de novos conceitos aqui se apresenta. A explicação teórica
encontrada, tanto para o par sadismo-masoquismo quanto para a oposição entre amor e
ódio, o é boa o suficiente para aplacar a oscilação de Freud. Como vimos, ele
invoca origens diferentes para os dois sentimentos e propõe uma etapa prévia
masoquista, anterior ao sadismo como busca de prazer. Ambas as questões anunciam a
busca de novas soluções que surgirão com a produção da segunda teoria pulsional e a,
por assim dizer, segunda teoria do masoquismo. Nesse momento, é como se seu texto
insistisse em o inscrever aquilo que está patente em seu pensamento, isto é, que no
par sadismo-masoquismo, em seu sentido próprio, sexual, o momento masoquista é
considerado o primeiro, o fundamental. Conforme assinala Pontalis, nada no
pensamento de Freud aparece de imediato em sua obra; um movimento de
interiorização progressiva que é inteiramente característico do pensamento e da
teorização freudianos (PONTALIS, 1981, p. 56). Esse movimento de interiorização
implica também a metabolização das idéias trazidas por seus companheiros iniciais.
Freud se mantém fiel a essas postulações até mesmo depois de seu texto
dedicado às perversões, Bate-se numa criança, de 1919, onde enuncia, de forma
discreta, quase velada, as mudanças teóricas que estavam por acontecer.
Assim, encontramos várias considerações acerca do tema nos textos que povoam
esse intervalo. No trabalho metapsicológico Luto e melancolia, escrito em 1915 mas
publicado somente em 1917, Freud postula a diferença do sadismo em duas afecções, a
melancolia e a neurose obsessiva. Na melancolia, em que o amor pelo objeto renunciado
se refugia na identificação narcísica, o ódio dirigido a esse objeto sempre a
ambivalência se enfurece contra o próprio eu, modificado pela identificação, o faz
sofrer e tira satisfação sádica desse sofrimento.
“A autotortura da melancolia, sem dúvida gozosa, significa, do mesmo modo
que o fenômeno correspondente da neurose obsessiva, a satisfação de
tendências sádicas e de tendências ao ódio que recaem sobre um objeto e, pela
via indicada, experimentaram uma volta à pessoa própria” (FREUD,
1917[1915]/1986, p. 248).
À diferença da neurose obsessiva, na melancolia o investimento de amor no
objeto retrocede, em parte, à identificação; uma outra parcela é regressivamente levada
à fase sádica mais próxima do conflito, de onde se volta contra o eu, podendo levá-lo à
autodestruição. Mas, como assinala Freud, esse sofrimento implica um gozo, o auto-
martírio do melancólico é flagrantemente gozoso.
A neurose obsessiva apresenta sintomas nascidos da pressão de moções sádicas
muitíssimo intensas, perversas em sua meta; servem à defesa contra esses desejos e
expressam a luta entre a satisfação e a própria defesa. Diferentemente do melancólico,
os investimentos objetais dos obsessivos resistem e não retrocedem à condição de
investimentos narcísicos. Mesmo se apresentando no registro intrapsíquico, o sadismo
do supereu noção a que teremos acesso depois do advento do conceito de pulsão de
morte e da nova arquitetura do aparelho psíquico -, do momento que toma o eu como
objeto, mantém o investimento sob essa condição, a objetal.
Os sádicos prosseguem sendo enigmáticos para Freud, tanto quanto seus
correspondentes, os masoquistas: parece-lhe bastante estranho que, para aqueles, suas
tendências ternas não conheçam outra meta que a de infligir dor e martirizar seu objeto;
e, para os últimos, o único prazer seja suportar, de parte de seu objeto amado, toda sorte
de humilhações e martírios, tanto em forma simbólica quanto real (FREUD, 1916-
1917/1986, p. 279). Ao incluir a forma simbólica, neste trecho, Freud assinala que está
preste a estabelecer, de forma mais clara, o papel da fantasia no funcionamento de seu
par de opostos.
No relato de caso clínico conhecido como “o homem dos lobos”, redigido em
1914 e publicado somente quatro anos depois, Freud aborda o tema do sadomasoquismo
e do espancamento sob o prisma das fantasias. O conteúdo de algumas dessas fantasias
de seu paciente era o de meninos sendo castigados e fustigados, especialmente no nis,
sendo que tais figuras representavam o próprio sujeito; o sadismo havia-se convertido
em fantasia contra si mesmo e transformara-se em masoquismo (FREUD,
1918[1914]/1986, p. 25). Acrescenta que o fato de o pênis ser o objeto do castigo aponta
para um sentimento de culpa originado na prática do onanismo.
Sabemos, pelo relato, que o paciente, quando menino, havia sido seduzido por
uma criada, o que resultou em uma exacerbação precoce de sua sexualidade; quando,
depois, teve seus avanços sexuais rechaçados, com a conseqüente sufocação de sua
atividade genital incipiente, sua vida sexual desenvolveu-se na direção do sadismo e do
masoquismo. “No sadismo, mantinha a arcaica identificação com o pai; no masoquismo,
escolhia-o como objeto sexual” (ibid, p. 60). A um período inicial de seu adoecimento,
em que seus principais sintomas eram fóbicos e em que o paciente apresentava um
estado de irritabilidade e angústia, segue-se a instalação da neurose obsessiva, graças a
uma intervenção de sua mãe que o introduziu a pensamentos religiosos, com o intuito de
reorientá-lo e edificá-lo. Nos últimos anos de sua neurose obsessiva, por volta dos dez
anos de idade, puseram-lhe um preceptor alemão, que exerceu grande influência sobre
ele. Sob a influência desse professor, surgiu uma nova e melhor sublimação do seu
sadismo o qual, com a aproximação da puberdade, passara a dominar, nessa época, o
masoquismo.
A parte as inúmeras referência à analidade e ao sadismo do paciente, foi muito
importante, nesse caso, a luz que sua análise lançou sobre a fase pré-genital oral de
organização da libido, examinada na parte final do trabalho, chamada “recapitulações e
problemas”. Escreve Freud que “é fácil discernir, na organização sádico-anal, um
desenvolvimento da oral. O que a distingue, a violenta atividade muscular sobre o
objeto, encontra seu lugar como ato preparatório do devoramento” (ibid, p. 98). E que
também a constituição da pulsão de investigar, a partir de seus componentes, é
igualmente característica dessa fase. O erotismo anal do menino não era claramente
perceptível. Sob a influência do sadismo, as fezes trocaram seu significado terno pelo
ofensivo. Na transformação do sadismo em masoquismo, teve seu papel um sentimento
de culpa que aponta para processos de desenvolvimento em esferas diferentes da sexual.
A influência da sedução se prolonga como suporte da passividade da meta sexual; agora
transforma em grande medida o sadismo em seu correspondente passivo, o
masoquismo. Junto com o masoquismo que governa sua aspiração sexual e se expressa
em fantasias, subsiste também o sadismo, que se afirma contra os pequenos animais. O
menino continua com as atividades sádicas e com as masoquistas, mas reage com
angústia a uma parte delas; provavelmente a conversão do sadismo em seu oposto fez
mais progressos.
No artigo Bate-se numa criança, de 1919, mencionado, Freud reafirma sua
tese da anterioridade do sadismo em relação ao masoquismo. Entretanto, através da
análise das fantasias de espancamento, presentes em muitos exemplos clínicos, ele
postula a hipótese de que a culpa, parte do recalcamento, é o agente principal da
transformação do sadismo em masoquismo. “A fantasia, portanto, tornou-se masoquista.
Até onde sei, é sempre assim; a consciência de culpa é invariavelmente o fator que
converte o sadismo em masoquismo” (FREUD, 1919b/1986, p. 186).
Freud considera que sua exposição da fantasia de espancamento proporcionou
parcas contribuições à investigação sobre a origem do masoquismo, apesar de ter se
referido ao texto, numa carta a Ferenczi, como “um artigo sobre o masoquismo”.
Reafirma que “o masoquismo não é uma exteriorização pulsional primária mas sim que
se origina de uma reversão do sadismo para a pessoa própria, ou seja, por regressão do
objeto ao eu.” A passividade o é suficiente para dar conta da totalidade do
masoquismo existem pulsões de meta passiva originariamente - nem para explicar
aquilo que ele tem de mais estranho, o caráter de desprazer e de dor como condição à
satisfação de uma pulsão.
“O recalque se manifesta aqui em três classes de efeitos: torna inconsciente o
resultado da organização genital, obriga essa última a regredir até o estágio
sádico-anal e transforma seu sadismo em masoquismo passivo, novamente,
num certo sentido, narcísico. O segundo desses três resultados torna-se possível
pela fraqueza da organização genital, que deve ser pressuposta em tais casos. O
terceiro se produz de maneira necessária porque a consciência de culpa se
escandaliza tanto com o sadismo como com a escolha objetal incestuosa,
entendida em sentido genital” (ibid, p. 190).
Prossegue dizendo que a fantasia infantil de espancamento, em homens, não se
apresentava acompanhada de sérias deteriorações da atividade sexual mas que estes se
apresentavam como masoquistas genuínos no sentido da perversão sexual.
“Entre eles, alguns encontravam sua satisfação sexual exclusivamente no
onanismo com fantasias masoquistas; outros tinham conseguido acoplar de tal
forma masoquismo e atividade genital que por meio de encenações
masoquistas e sob condições dessa mesma natureza conseguiam a meta da
ereção e ejaculação ou se habilitavam para executar um coito normal” (ibid,
p. 193).
No mesmo ano da obra cima mencionada, Freud escreve o artigo O estranho,
publicado no outono. Numa nota ao texto, a de número 20, Freud faz menção a uma
outra nota, esta acrescentada ao livro Totem e tabu, publicado em 1913, onde se refere à
qualidade de estranho de certas impressões que corroboram a onipotência dos
pensamentos (FREUD, 1919a/1986, p. 240). Vemos que o tema estava presente em
seu pensamento desde então; e, junto ao tema do texto, encontramos a idéia de uma
compulsão à repetição, que será definitivamente analisada em Além do princípio de
prazer, no ano seguinte. Os primeiros esboços deste texto começam a ser trabalhados
em março de 1919 e são concluídos em maio, mesma época em que terminava o artigo
sobre o sentimento de estranheza diante de certos acontecimentos, onde se encontra, em
algumas frases, uma síntese do núcleo da obra seguinte, sem, entretanto, nenhuma
menção às pulsões de morte. Freud está preste a anunciar sua segunda teoria pulsional,
com a postulação do conceito de pulsão de morte, e a compulsão à repetição será seu
ponto de partida.
Em 1920, a reformulação efetuada com o texto Além do princípio de prazer faz
com que Freud retome a questão do par sadismo-masoquismo, mais precisamente o
masoquismo, para começar a elaborar para o mesmo a teoria definitiva. Apesar de ter
sido bastante discutida, a idéia de uma primariedade do masoquismo encontrou um
encaminhamento teórico adequado quando Freud passou a contar com o novo conceito.
A cada passo da metapsicologia, reafirmamos a idéia de que a produção do conceito de
pulsão de morte exercia pressão proveniente de diversas direções. A exigência da
formulação do conceito se apresentava sob diversos vetores: um deles foi a explicação
do masoquismo e seu caráter originário, primário.
Partindo da grande oposição entre pulsões de vida e pulsões de morte, Freud
volta a se perguntar como poderia fazer derivar de Eros, conservador da vida, a pulsão
sádica, cuja meta é danificar e fazer sofrer o objeto. O mesmo problema surgido em
Pulsões e destinos de pulsão, o que se refere à gênese do ódio e do sadismo, serve de
mote à postulação de uma outra força, diferente das até então postuladas. Freud
considera que o amor de objeto aponta para uma polaridade, a que existe entre amor e
ódio, e que não é possível fazer derivar uma da outra nem relacioná-las entre si.
Menciona o reconhecimento, desde sempre, de um componente sádico existente na
pulsão sexual que, se tornado autônomo, domina toda a aspiração sexual do sujeito sob
a forma da perversão. Esse mesmo sadismo se apresenta como a pulsão parcial
dominante em organizações pré-genitais, a oral canibalística e a anal-sádica.
Sob a forma de uma pergunta, Freud especula se esse sadismo não pode ser
considerado como uma pulsão de morte que, sob a influência e o esforço da libido
narcísica, foi afastada do eu e que aparece em relação ao objeto, entrando, a seguir, a
serviço da função sexual. Na fase da organização oral da libido, a dominação amorosa
{Liebesbemächtigung} coincide com a destruição do objeto. Amar o objeto é o mesmo
que tê-lo em si, dentro de si; isso é alcançado pelo devoramento, pela incorporação do
objeto, protótipo do mecanismo da identificação. A identificação, como vínculo com o
objeto, é anterior ao seu investimento. Nesse momento da organização libidinal, o
sadismo se confunde com a dominação do objeto, que leva à sua destruição. Depois, na
fase genital, a pulsão sádica se dirigirá ao objeto com a finalidade de dominá-lo para a
execução do ato sexual.
“Poder-se-ia ainda dizer que o sadismo forçado a sair {herausdrängend} do eu
ensinou o caminho aos componentes libidinais da pulsão sexual que, depois
dele, se esforçam em dar caça [no sentido de ir atrás, perseguir] {nachdrängen}
ao objeto. Onde quer que o sadismo originário não tenha experimentado
nenhuma mitigação nem fusão {Verschmelzung}, fica estabelecida a conhecida
ambivalência amor-ódio da vida amorosa” (FREUD, 1920/1986, p. 52).
Estas suposições, escreve, poderiam indicar um exemplo de pulsão de morte mas
encontram-se afastadas de qualquer evidência, o que poderia produzir uma “impressão
diretamente mística”. Esse fato muito constrange Freud. Entretanto, defende-se, essa
suposição não é um fato novo. muito se ocupava ele dessa expressão inequívoca da
natureza humana que aparece sob a forma do sadismo e do masoquismo, como
acompanhamos. A concepção então extraída das observações clínicas o levou a
considerar o masoquismo, a pulsão parcial complementar do sadismo, como uma volta
{Rückwendung} do sadismo em direção ao eu próprio. Entretanto, prossegue,
“um retorno {Wendung} da pulsão a partir do objeto até o eu não é, em
princípio, outra coisa que o retorno a partir do eu em direção ao objeto, o que
aqui se coloca como algo novo. O masoquismo, o retorno da pulsão para o eu
próprio, seria então, na realidade, um retrocesso a uma fase anterior àquela,
uma regressão. A exposição que fizemos do masoquismo naquela época
precisaria ser emendada em um ponto, demasiado excludente: poderia haver
também um masoquismo primário, coisa que naquela época contestei” (ibid,
p. 53).
Escreve Freud, em uma nota, de número 22, que Sabina Spielrein, em um
trabalho rico em idéias, publicado em 1912, antecipara uma boa parte desta
especulação. Ali designa o componente sádico da pulsão sexual como “destrutivo”. Por
outro lado, August Stärke, em 1914, tentou identificar o próprio conceito de libido com
o conceito de impulsão em direção à morte, que é necessário supor na teoria biológica.
“Todos esses empenhos, da mesma forma que o do texto, são testemunhas de um
esforço que, entretanto, o se firmaram, em obter claridade para a doutrina das
pulsões.”
A reformulação da teoria continua em O eu e o isso, texto de 1923, onde Freud
propõe uma nova arquitetura para o aparelho psíquico, sua segunda tópica.
Reafirma as dificuldades encontradas na pesquisa das pulsões de morte e
confirma que reconheceu no sadismo um representante delas. Nesse texto, Freud
trabalha exaustivamente a questão da intricação pulsional e aborda o oposto desta, a
desintricação ou desfusão pulsional. Considera que os componentes sádicos da pulsão
sexual dariam um ótimo exemplo da intricação pulsional a serviço de uma finalidade – a
finalidade de se apoderar do objeto para a consecução do ato sexual e que no sadismo,
que se tornou autônomo e exagerado, como perversão, teríamos o modelo de uma
desintricação, embora não conduzida ao extremo.
Ao tratar do que ele chama de as vassalagens do eu, isto é, suas relações com as
outras instâncias e com a realidade, Freud se volta especificamente para a natureza e a
gênese do supereu. Esta é a instância em que o papel das pulsões de morte é notável,
sobretudo em determinadas afecções, como mencionamos: a neurose obsessiva e a
melancolia. Nelas, o sentimento de culpa se expressa de forma intensa, causando
transtornos diversos.
O sentimento de culpa é a percepção que corresponde, no eu, à crítica feroz do
supereu. Em seu texto de 1930, sobre o homem civilizado e seus infortúnios, lemos que
o indivíduo na cultura é marcado pelo reconhecimento de uma proibição e pela
introjeção da culpa: sexo e destruição. Como no mito do paraíso perdido pela
desobediência a uma primeira proibição, o homem perde a bem-aventurança. A
existência do sentimento de culpa é irrevogável. O eu é o hospedeiro das identificações;
a identificação originária é a gênese do eu. Formado pelo precipitado da identificação
originária, o eu, daí em diante, vai se constituindo por diferenciação, seja através do
contato do aparelho com o mundo externo – por seu sistema perceptivo -, seja através de
outras identificações, primárias e secundárias, se ampliando e se conformando, dando ao
aparelho a característica de elasticidade, pica da visão teórica da segunda tópica. O
supereu, que constitui uma outra ‘entidade’ no interior do eu, construído, também, por
identificações, usa-o como objeto de suas moções pulsionais, tanto as ternas como, e
especialmente, as agressivas e destrutivas. Todavia, o eu não satisfaz nunca as
aspirações idealizadas impostas por um ajudante do supereu, o ideal do eu, herdeiro das
metas culturais, do ‘dever-ser’. É como se a saída para os problemas humanos trouxesse
consigo outros problemas, tornando os homens seres desgraçados. Não existe vida
humana sem sentimento de culpa: o mal-estar é a exteriorização da consciência de culpa
produzida pela própria cultura. Aliás, entra-se na cultura através de uma culpa ancestral
e primordial, segundo o que lemos em Totem e tabu.
O sentimento de culpa do eu e a conseqüente necessidade de castigo são a
exteriorização pulsional do eu masoquista sob a influência de um supereu sádico,
necessariamente. Existe, portanto, inequívoco ganho de prazer. A necessidade de
punição, sendo essa exteriorização pulsional do eu, aponta para as pulsões agressivas e
destrutivas ali pré-existentes; é um gozo narcísico porque no e com o eu, e implica suas
pulsões de morte. O masoquismo, sob esse prisma, também apresenta uma satisfação
ligada às pulsões de morte, aos seus derivados internos, aqueles que permaneceram no
interior do eu após o vai-e-vem das pulsões de morte, defletidas e depois interiorizadas
para que sejam contidas. Ele é originário, primário, mas não se reduz à destruição
voltada para o si mesmo. Esta visa aniquilar o próprio eu enquanto que a posição
masoquista busca o prazer. O masoquista perverso, à diferença do melancólico, não
busca a morte, não se mata. Ele condiciona seu gozo ao sofrimento mas é o gozo que
importa não a destruição de si, aliás sistematicamente evitada. O masoquismo do eu
serve à sua economia interna: além de ser uma forma de descarga é também uma
dotação de sentido e, portanto, uma ligação. O que o sujeito ganha com isso é poder
evitar o grande perigo que representa a energia não-ligada, solta, capaz de fragmentação
e, aí sim, de morte para o eu.
Na melancolia, o supereu se abate com fúria desapiedada sobre o eu, como se
tivesse se apoderado de todo o sadismo disponível no psiquismo, e o usa, sim, com a
finalidade de destruir. O componente destrutivo encontrado no sadismo se depositou no
supereu e se volta, agora, contra o eu, modificado por identificação com o objeto
perdido e, conseqüentemente, vilipendiado. “O que agora predomina no supereu é como
uma cultura pura da pulsão de morte, que amiúde consegue efetivamente empurrar o eu
à morte (...)” (FREUD, 1923/1986, p. 53).
Entendemos, pois, que no sadismo é flagrante a existência de um componente
destrutivo muito significativo; mas ele o é tudo, Eros se apresenta e comanda,
determina a obtenção de satisfação como meta primeira.
Por outro lado, a fúria destrutiva do melancólico, determinada por sua oralidade
e antes dirigida para o objeto, não consegue encontrar resolução adequada nem pelo
recalque. O melancólico então regride para um modo de defesa mais arcaico, já
mencionado, que é o retorno sobre si mesmo Abandona um investimento de objeto e o
substitui por uma identificação; identifica-se, assim, com o objeto destruído, danificado.
Seu sadismo oral, desta feita predominantemente destrutivo, volta-se contra o próprio
sujeito; sua destruição é oral, é sádica, é identificatória. O melancólico se mata. A
melancolia, referida à questão fundamental da produção do eu ideal e intimamente
relacionada com a identificação primária ou melhor, originária -, aponta para uma
“constituição desfavorável”, como diria Freud. Quando Freud menciona essa
constituição pulsional mais ou menos favorável está se referindo, pensamos, à entrada
do sujeito na ordem do simbólico, que se dará de forma desvantajosa ou o,
dependendo de os investimentos para ele voltados serem de boa ou má qualidade”.
Estes investimentos serão a base de sua futura economia psíquica. Poderíamos postular,
para o melancólico, uma configuração, uma arrumação psíquica desfavorável, onde
pouca potência de deflexão, produzida por um investimento narcísico insuficiente, a ele
destinado, e um excesso de masoquismo erógeno, primário. Ou seja: o sujeito
melancólico foi fracamente investido com o amor do outro e o Eros nele inoculado,
portanto, pouca potência de deflexão apresentará; disso resulta um significativo
montante de pulsões de morte retidas dentro do aparelho, sob a forma de um
masoquismo erógeno e originário. A depressão, do melancólico ou do o-melancólico,
aponta para um estado afetivo, um estado de alma, uma situação sentimental, um
sofrimento. O ser ou não ser melancólico não se define por esse estado e vai depender, a
nosso ver, dos agenciamentos que o sujeito efetua, ao longo de sua história, daquilo que
lhe foi destinado nos primeiros investimentos de que foi objeto, sua “constituição”.
Em algumas formas de neurose obsessiva, as críticas da consciência moral são
igualmente fortes e cruéis mas, à diferença da melancolia, o neurótico obsessivo nunca
se mata, é como se ele estivesse imune à possibilidade do suicídio. O que garante a
segurança do eu é a conservação do objeto como tal. Suas moções destrutivas são muito
mal recebidas por seu eu, que tratará de produzir sintomas do tipo de formações
reativas, mas os vínculos objetais são mantidos. Ele se recriminará, muito, mas não se
confundirá com o objeto atacado. A culpa na neurose obsessiva resulta igualmente da
luta entre supereu e eu, quando este admite seus desejos, eróticos e destrutivos, mortais.
Mas suas saídas são bem outras.
A constituição do supereu representa, inevitavelmente, uma desvantagem
econômica para o sujeito. Mas ela é também inevitável, humanos que somos. De nada
adianta renunciar à satisfação pulsional direta, bruta, porque sempre haverá desejos,
mesmo inconscientes, que excitarão o sadismo do supereu. Essa é a origem da
infelicidade permanente, apontada por Freud, diante da autoridade interna implacável
que é o supereu, que tudo sabe e do qual o eu nada pode esconder. Ao supereu podemos
destinar a qualidade de onisciência.
Diante disso o eu vai empregar um fragmento de sua pulsão destrutiva “interna”,
não-defletida, pré-existente nele, numa ligação erótica masoquista com o supereu,
tirando esse ganho de prazer onde havia infelicidade e desprazer. Dessa forma, o eu
dribla a destrutividade do supereu, que, como na melancolia, pode tornar-se “uma pura
cultura de pulsão de morte”, e, através de um enlace erótico, transforma ameaça de
destruição em fruição masoquística. Mais ainda: escapa daquilo que é a maior ameaça
para o aparelho: as pulsões não-ligadas. Assim, torna-se masoquista e remedia um
pouco a situação. Melhor um gozo masoquístico do que nenhum ou do que a mera
destruição. A satisfação masoquística poderia ser considerada análoga à satisfação das
pulsões autodestrutivas interiorizadas se o tivesse ocorrido uma ligeira mas
significativa mudança na meta da mescla pulsional: onde antes havia destruição,
agora satisfação e prazer erótico prevalecendo. O eu masoquista o visa seu
aniquilamento: ele quer tirar alguma vantagem dessa situação desfavorável.
Da mesma forma que consideramos o sadismo dirigido ao objeto diferente da
pulsão de destruição, o masoquismo apresenta essa ligeira nuance em comparação com
as pulsões de autodestruição. O masoquismo, quando perversão, se expressa pela
satisfação erótica, sexual, obtida pelo aviltamento, pelo sofrimento, às vezes extremo,
pelo denegrir de si advindo de um outro, agente; a pulsão de destruição voltada para o si
mesmo visa o aniquilamento daquele sujeito e se evidencia, em seu caso extremo, no
suicídio. O mesmo acontece na relação entre eu masoquista e supereu sádico, onde este
último busca uma satisfação erótica, que é primária, em vez da destruição presente nas
pulsões predominantemente destrutivas. Somente quando a meta sádica é abandonada e
substituída pela meta de destruição é que o sujeito corre o risco de provocar a própria
morte.
Até esse momento da teoria e seguindo Freud podemos compreender algumas
diferenças que nos parecem significativas. Tomando o sadismo como foco, podemos
dizer que ele é inicialmente considerado um componente da pulsão sexual que, tornado
autônomo, constitui uma perversão; logo a seguir, apresenta-se como a pulsão parcial
dominante em organizações pré-genitais, a oral canibalística e a anal-sádica. Com o
advento do conceito de pulsão de morte, pode ser entendido como uma parcela da
pulsão de morte que foi defletida pela ação da libido narcísica, entrando a seguir a
serviço da função sexual.
Na fase oral do desenvolvimento psicossexual, a dominação do objeto coincide,
como vimos, com sua destruição e isso equivale ao devoramento e à incorporação,
protótipos da identificação. Nesta fase, o sadismo se confunde com a dominação, que
leva à destruição do objeto. Depois, na fase anal, o sadismo se aliaria às pulsões
agressivas e às de dominação, que visam atacar e/ou dominar o objeto, sem, entretanto,
destruí-lo. Depois ainda, na fase genital, o sadismo está presente como auxiliar na
dominação do objeto, com a finalidade de possuí-lo sexualmente. Assim, pensamos
poder distinguir pulsões sádicas das pulsões de destruição.
Em 1924, em O problema econômico do masoquismo, Freud, pressionado por
suas próprias postulações nos trabalhos mencionados e pelas amplas discussões sobre o
tema que marcaram os primeiros anos da instituição psicanalítica, propõe para a questão
do masoquismo uma nova teoria, fornecendo deste a explicação mais acabada.
Apesar de considerar que, do ponto de vista econômico, a existência dessa
aspiração masoquista na vida pulsional pode ser qualificada de enigmática, Freud define
o masoquismo como primário, originário e erógeno. Se tomarmos como princípio de
funcionamento do psíquico tão-somente o princípio de prazer, o masoquismo
permaneceria incompreensível por não obedecer à meta imediata de evitar o desprazer e
buscar o prazer. Fundamenta, então, sua nova teoria sobre o conceito de pulsão de
morte, sobre a idéia de um além ou um aquém, ou um fora do princípio de prazer: o
masoquismo seria, então, a parte da pulsão de morte que a libido não pôde lançar para
fora e colocar a serviço da pulsão de destruição nem da pulsão sexual, constituindo o
sadismo propriamente dito. O masoquismo seria a parcela da pulsão de morte que, não
tendo sido defletida pela ação de Eros, permanece no interior do sistema, mistura-se à
libido e toma o si-mesmo como objeto.
“Uma parte desta pulsão é posta diretamente ao serviço da função sexual, onde
tem a seu cargo importante operação. É o sadismo propriamente dito. Outro
setor não obedece a este translado para fora, permanece no interior do
organismo e ali é ligado libidinalmente com a ajuda da co-excitação sexual
antes mencionada; nesse setor temos que reconhecer o masoquismo erógeno,
originário” (FREUD, 1924/1986, p. 169).
Entretanto, apesar de se ocupar do assunto no final do presente artigo, é somente
a partir do texto O mal-estar na cultura, de 1930, mais especificamente no capítulo VI,
que Freud dirigirá sua atenção mais diretamente à ação da pulsão de morte voltada para
o mundo externo, constituindo, como veremos, a agressividade e a destrutividade.
O masoquismo primário seria uma testemunha de tempos primordiais da vida do
sujeito, momento em que a pulsão de morte e a pulsão de vida se misturavam
totalmente. Numa primeira fase, mítica, toda a pulsão de morte se encontra dentro do
indivíduo; essa condição ainda não é o que Freud postulará como masoquismo primário.
O estado inicial, em que a pulsão de morte está dentro do próprio indivíduo, não
corresponde nem a uma posição masoquista nem a uma posição sádica. Este momento é
inferido a partir do momento seguinte, em que Eros faz derivar para o mundo externo
grande parte dessa pulsão de morte.
O masoquismo originário é um remanescente da fase de formação do psiquismo
em que aconteceu a liga, imprescindível para que a vida se instale, entre Eros e pulsão
de morte (ibid, p. 170). Nesse momento, a pulsão de morte que atua no interior do
organismo, que Freud denomina sadismo primordial, seria idêntica ao masoquismo.
Depois que parte da pulsão de morte foi transposta para fora, em direção aos objetos,
permanece no interior, como seu resíduo, o genuíno masoquismo erógeno que, por um
lado, se tornou um componente da libido e, por outro, tem o si-mesmo-próprio {Selbst}
como seu objeto.
Penso estarmos na presença da condição fundamental da vida, momento mais
que inicial em que Eros entra em cena com seu poder de ligação e domestica, neutraliza,
parte das pulsões de morte, colocando-as a seu favor e a seu serviço. É claro que nem
toda pulsão de morte poderá ser dessa forma enlaçada; o que resta, fica fora do psíquico,
ainda por se constituir. Talvez pudéssemos, como Freud, falar de organismo, apesar de a
palavra trazer problemas. Antes de Eros, o nada, o nada a dizer. As pulsões
de morte, puras e antes da chegada de Eros, que vem do domínio de um outro, nada
mais são que, conceitualmente, uma tendência à descarga absoluta, um dispositivo do
sistema a livrar-se de toda e qualquer excitação. Tendência que não se realiza pela
intervenção de Eros, do Eros de um outro, que vincula o sujeito a si, lançando-o no
mundo do amor e também do ódio, da vida em si. Examinaremos mais detidamente esse
aspecto no capítulo sobre a pulsão de destruição.
O masoquismo erógeno acompanha a libido em todas as suas fases de
desenvolvimento, e lhe toma emprestados seus variáveis revestimentos psíquicos
{psychische Umkleidungen}. Assim, na fase oral primitiva, assume a forma do medo de
ser devorado; depois, na fase anal-sádica, surge como o desejo inconsciente de ser
espancado; depois ainda, na fase fálica do desenvolvimento, manifesta-se através da
angústia e da recusa à realidade da castração. “A castração, se bem que desmentida
{leugnen} mais tarde, intervém no conteúdo das fantasias masoquistas como sedimento
do estágio fálico de organização” (ibid, p. 169). A situação de ser possuído sexualmente
e de dar à luz, características da feminilidade, deriva da organização genital definitiva.
Ainda em O problema econômico do masoquismo, Freud distingue, além do
masoquismo originário “uma condição à que se sujeita a excitação sexual” -, outras
duas formas de masoquismo: o chamado “feminino”, que não diz respeito
especificamente à mulher mas a uma expressão “feminina”, comum aos dois sexos, e o
moral, uma norma de conduta na vida” (ibid, p. 167). O masoquismo erógeno,
originário, que se define como o prazer de receber dor, se encontra também na base das
outras duas formas. O masoquismo moral, em certo sentido a mais importante forma,
só recentemente foi identificado pela psicanálise como um sentimento de culpa, a
maioria das vezes inconsciente”.
Freud considera que o masoquismo feminino é o mais acessível à observação e
começa sua exposição justamente por ele. Seguindo suas postulações de 1919, de Bate-
se numa criança, Freud volta a dizer que, no homem, as fantasias masoquistas são
bastante ilustrativas desta forma. As encenações reais dos perversos masoquistas
correspondem inteiramente às suas fantasias. O conteúdo manifesto de suas expressões
é a realização cênica das fantasias: ser amordaçado, amarrado, surrado dolorosamente,
açoitado, maltratado de todas as maneiras, denegrido, conspurcado. Verifica que é
muito raro que esses conteúdos incluam mutilações. “A interpretação mais imediata e
fácil de obter é que o masoquista quer ser tratado como uma criança pequena,
desamparada e dependente mas, particularmente, como uma criança desordeira” (ibid,
p. 168).
Vemos, então, que quase todos os elementos do masoquismo feminino podem
ser retomados da primeira infância, quando já têm como causação um sentimento de
culpa, tal qual Freud apontara no texto de 1919.
Além disso, acrescenta, é raro que as torturas masoquistas adquiram um aspecto
tão sério quanto as crueldades – fantasiadas ou encenadas {inszeniert} - do sadismo.
Lemos que, diante de certas condições, o sadismo dirigido para fora, ou pulsão
de destruição sinonímia freudiana, com a qual não concordamos - pode ser mais uma
vez introjetado, voltado para dentro, regressando assim à sua situação anterior. Haveria,
em tal caso, a manifestação de um masoquismo secundário, que vem se acrescentar ao
originário. Como destacamos em parágrafo anterior, não nos parece adequado tomar
sadismo e pulsões de destruição como idênticos fenômenos.
Finalmente, a terceira forma do masoquismo, o masoquismo moral, causa
espécie sobretudo por, aparentemente, ter afrouxado seu vínculo com a sexualidade. A
condição de que o sofrimento parta da pessoa amada cai por terra nessa forma de
masoquismo. O que parece importar é o sofrimento como tal. “Para explicar esta
conduta é muito tentador deixar de lado a libido e limitar-se à suposição de que aqui a
pulsão de destruição foi voltada novamente para dentro e agora abate sua fúria sobre o
si-mesmo-próprio” (ibid, p. 174). Aqui nosso ponto de discussão se explicita: posta de
lado a libido, ou melhor, tornada secundária sua meta, temos, então, a pulo de
destruição em toda sua fúria. Mas Freud chama a atenção para o fato de, apesar dessa
singularidade, o uso lingüístico não ter deixado de designar essa forma de conduta de
masoquismo, vinculando-a ao erotismo.
Nesse momento do texto, Freud volta à questão da reação terapêutica negativa,
já abordada em O eu e o isso. Há pacientes que, devido a determinadas condutas durante
o tratamento, são considerados como possuidores de um sentimento de culpa
inconsciente. Esta é uma das mais difíceis resistências à análise e constitui um dos
maiores ganhos da doença. O sofrimento que a neurose implica é justamente o que a
torna preciosa para a tendência masoquista. O supereu tem a função de consciência
moral e o sentimento de culpa é a expressão da tensão entre eu e supereu. O
masoquismo moral, o destrutivo, resulta dos ataques do supereu ao eu mas é
necessário distinguirmos o sadismo do supereu, geralmente consciente, do masoquismo
do eu, quase sempre inconsciente. Além disso, é necessário distinguir o masoquismo
moral de uma “continuação inconsciente da moral”, típica de pessoas que sofreram uma
“desmedida inibição moral e estiveram sob o império de uma consciência moral
particularmente suscetível” (ibidem). Neste segundo caso, a ênfase está no sadismo
intensificado do supereu a que o eu se submete; no caso do masoquismo moral, incide
no genuíno masoquismo do eu, que pede castigo, quer de parte do supereu, quer dos
poderes parentais externos (...).” Nos dois casos, porém, trata-se igualmente de uma
relação entre o eu e o supereu e resulta numa necessidade que se satisfaz mediante
castigo e sofrimento. Todavia, como uma diferença entre as duas condições, verificamos
que o sadismo do supereu se torna consciente de forma escandalosa, ao passo que o afã
masoquista do eu permanece inconsciente para a pessoa e tem de ser descoberto através
de sua conduta.
Num prenúncio da tese abordada no texto O mal-estar na cultura, de 1930,
Freud postula que a volta do sadismo para a própria pessoa, o que constituiria o
masoquismo secundário que se acrescenta ao primário, se deve ao sufocamento
cultural das pulsões” (ibid, p. 175). Diante da impossibilidade de o sujeito empregar
sobre os objetos do mundo externo boa parte de seus componentes pulsionais
destrutivos e sádicos, dá-se uma intensificação do masoquismo no interior do eu e um
incremento do sadismo do supereu, principal lugar em que as moções destrutivas são
acolhidas. “O sadismo do supereu e o masoquismo do eu se complementam um ao outro
e se unem para provocar as mesmas conseqüências”. Tal hipótese é corroborada pelos
fenômenos da consciência moral.
Ao renunciar à satisfação das pulsões, o sujeito aumentar seu sentimento de
culpa e a consciência moral se torna tanto mais severa quanto mais se abstenha o sujeito
a agredir seus objetos. Assevera Freud que se a primeira renúncia do pulsional é
imposta por fatores externos, a ética que daí deriva, e que se expressa na consciência
moral, passará a exigir do sujeito maiores renúncias. Falaremos a respeito da ética e da
moral no capítulo dedicado à maldade, à crueldade e à violência. Mas gostaríamos de
adiantar que, a nosso ver, a moral se afirma a partir de princípios abstratos e é
indiferente aos processos reais. Os moralistas afirmam-se portadores da idéia do Bem e
protagonizam sua luta contra o Mal. A ética, por sua vez, é inseparável dos processos e
dos sujeitos que os produzem, ou seja, da transformação social e econômica que ela
determina e que a constitui. A ética não procura assemelhar-se a um Bem, que existe,
mas o produz, em ato. A ética não é a procura de um fim mais justo pois ela é imanente
ao processo de composição e de recomposição dos fins e dos meios. Freud não postula
exatamente essa diferença mas consideramos que em sua explicação da aquisição dos
princípios morais do homem ele se aproxima bem mais dessa concepção da ética do que
da idéia de moral.
Para finalizar o artigo, Freud escreve que o masoquismo moral é a testemunha da
existência da intricação das pulsões. Seu perigo reside no fato de ele descender da
pulsão de morte: corresponde à parcela que escapou da deflexão, do direcionamento ao
exterior, sob a forma de pulsão de destruição entre outras, diríamos. Entretanto, sendo
o masoquismo um componente da pulsão sexual, nada sob seu domínio pode se dar sem
a correspondente satisfação libidinal.
Aqui se apresenta novamente a dúvida: será que sadismo e pulsão de destruição
são a mesma coisa? O sadismo, como um componente da pulsão sexual e um primeiro
resultado da intricação das pulsões primordiais, não implica, como dissemos,
necessariamente, a meta de destruir o objeto. Consiste num “produto” dessa mescla,
assim como seu oposto, o masoquismo originário e erógeno. Enquanto um aponta para o
mundo externo, o outro toma o si-mesmo como seu objeto. Tanto o sadismo quanto o
masoquismo são primários, um não deriva do outro, como dizia a teoria até esse
momento. Ambos se constituem simultaneamente e, no máximo, podemos dar uma
anterioridade pontual ao masoquismo posto que o movimento de deflexão é
minimamente posterior à própria ligação das pulsões de morte por Eros. O que fica
dentro já lá está; o que é lançado para fora, o é imediatamente depois. Examinados deste
ponto de vista, tanto o sadismo quanto o masoquismo mal merecem ser incluídos no
grupo dos derivados das pulsões de morte. Seriam, antes, os primeiros resultados da
intricação das pulsões e da tarefa de Eros em domesticar, em neutralizar a fúria
destrutiva das pulsões de morte, sua meta primeira e última de evacuação total da
excitação, de nivelamento das diferenças através da anulação das tensões, colocando-as,
no que for possível, a seu serviço. Mais uma vez, não compreendemos como sinônimos
o masoquismo e a autodestruição, que seria o par oposto da correspondência entre
sadismo e pulsão de destruição.
Enquanto aqui Freud invoca a fusão pulsional, no texto Inibição, sintoma e
angústia, de 1925, considera a desfusão, a desintricação pulsional como a melhor
explicação para o fenômeno da regressão. Tomando como exemplo a neurose obsessiva,
para a qual propõe um estrato inferior de sintomas histéricos, formados muito cedo,
Freud postula um fator constitucional na configuração ulterior da neurose; a
organização genital da libido se mostra fraca e pouco resistente e, quando o eu começa
seus procedimentos defensivos contra as exigências libidinais, esta é rechaçada. Da
organização genital infantil, ou estágio fálico, o sujeito regride em direção ao estágio
anterior, o sádico-anal. Aí, teque se defender não apenas das moções sexuais mas, e
principalmente, das moções agressivas derivadas desse sadismo. Os componentes
eróticos que, no começo da fase genital se tinham somado aos investimentos destrutivos
da fase dica, são agora separados e as moções destrutivas, livres de seu enlace, estão
prontas a desempenhar seu papel (FREUD, 1926[1925]/1986, p. 108-9). Podemos dizer,
com Freud, que todo progresso no desenvolvimento psicossexual do sujeito se deve a
um acréscimo de pulsões sexuais, de libido; e toda regressão, a um débito das mesmas, a
uma diminuição dos aportes eróticos.
Gostaríamos de incluir, aqui, algumas observações a respeito da questão da
regressão. Muitas vezes tem-se a impressão que, ao falar da regressão, Freud mostra
alguns resquícios de sua filiação ao positivismo. Devemos sempre considerar a
regressão levando-se em conta que todos os tempos da evolução psicossexual estão
presentes e no presente: o sujeito chegou ao modo genital, está nesse modo mas, diante
de dificuldades em encontrar satisfação dessa maneira, utiliza outros recursos, mais
arcaicos na forma e mais antigos no tempo. No caso do obsessivo, por exemplo, a
temporalidade sádico-anal é aquela que está privilegiada, no presente, sem que as outras
estejam excluídas ou mesmo superadas. Devemos sempre pensar na postulação do
próprio Freud a respeito da atemporalidade do Inconsciente: seria incongruente cairmos
na armadilha de um tempo cronológico regendo as regressões, que ali acontecem. A
mesma observação que fizemos para o neurótico obsessivo vale para o perverso: ao
entregar-se a uma prática sádica, que implica principalmente sua oralidade, o perverso
não está fora da genitalidade.
Vemos Freud se referir ao tema da regressão na reunião da sociedade de 2 de
junho de 1909, em resposta que a Adler e à sua conferência ali apresentada, “A
unidade das neuroses”. Freud retoma sua concepção das neuroses como formações
substitutivas da libido recalcada e explica suas diferenças em função dos diferentes
mecanismos de recalque e do retorno do recalcado (NUNBERG & FEDERN, 1980, P.
249). Postula que a disposição à eleição de uma forma específica de neurose reside nos
destinos da libido, parte dos quais conhecemos e que parecem se efetivar através de
várias inibições do desenvolvimento. “Aqui se faz sentir, mais uma vez, o fator tempo”.
Mas a que tempo se refere? O tempo do desenvolvimento, tempo espacializado, ou o
tempo do Inconsciente? Prossegue observando que a explicação patogênica mais aceita
até esse momento é aquela que considera a inibição do desenvolvimento como
disposição e a regressão como mecanismo do processo de adoecer; sem dúvida, finaliza,
o que dá impulso a isto é a libido e seus destinos.
Freud retoma o tema da regressão em seu artigo publicado postumamente e que
seria o décimo segundo ensaio metapsicológico, escrito e enviado a Ferenczi, junto a
uma carta, em 1915. Ali lemos que atrás da regressão, estão encobertos os problemas
de fixação e de disposição” (FREUD, 1915/1984, p. 70). Afirma que, de uma maneira
geral, a regressão retrocede até um ponto de fixação do desenvolvimento do eu ou da
libido; isso constitui a disposição. Em outro artigo, esse de 1913, Freud esclarece:
“Assim, nossas disposições são inibições de desenvolvimento” (FREUD, 1913c/1986,
p. 110). A fixação constitui o elemento mais importante na decisão sobre a escolha da
neurose. “A fixação é produzida pela fase do desenvolvimento que foi demasiadamente
marcada, ou talvez detida por um tempo excessivamente longo para que possa passar
toda para a fase seguinte” (FREUD, 1915/1984, p. 70).
O tema do par sadismo-masoquismo volta a ser tratado, junto a outras questões
de enorme importância, no texto O mal-estar na cultura, já várias vezes mencionado.
Freud retoma as dificuldades que encontrou no desenvolvimento de sua teoria
pulsional, fazendo um breve e conciso relato do que se passou. Ao introduzir a primeira
oposição pulsional, entre pulsões egóicas e pulsões de objeto, cuja energia,
exclusivamente, merecia ser chamada de libido, menciona entre essas últimas, as
dirigidas ao objeto, a pulsão sádica. A pulsão sádica se distinguia pelo fato de sua meta
não ser amorosa; aliás, ser flagrantemente oposta aos investimentos amorosos em
sentido lato, platônico. Além disso, como mencionamos, a pulsão sádica se alinhava,
em muitos aspectos, com as pulsões egóicas; desse modo, se aproximava das pulsões de
dominação sem propósito libidinal. Apesar do impasse teórico que essa posição
significou, não havia como negar a presença do sadismo na vida sexual: era tênue a
linha que separava, por vezes, o jogo terno do cruel. O próximo passo foi dado com
Além do princípio do prazer, de 1920, e a postulação da pulsão de morte. O texto O eu e
o isso, de 1923, fornece, além da nova arquitetura psíquica, a forte idéia de uma
intricação pulsional.
Aqui, reafirma que as duas variedades de pulsão nunca se apresentavam isoladas
mas sim ligadas, misturadas em proporções muito variadas. No sadismo, “há muito
tempo conhecido por nós como pulsão parcial da sexualidade” (FREUD,
1930[1929]/1986, p. 115), nos deparamos com uma intricação especialmente forte, entre
a aspiração ao amor e a pulsão de destruição. Nesse trecho, portanto, Freud distingue
sadismo de pulsão de destruição: esta, ao se misturar à tendência amorosa, compõe o
sadismo. Este se define como um componente, uma pulsão parcial da sexualidade. O
masoquismo, por sua vez, é visto como “uma conexão da destruição com a sexualidade,
dirigida para dentro”. Graças a essa fusão, essa tendência, geralmente não perceptível,
se torna conspícua e ruidosa. “Admito que no sadismo e no masoquismo sempre
tivemos diante de nossos olhos as manifestações da pulsão de destruição, dirigidas para
fora e para dentro, com forte liga de erotismo” (ibid, p. 116).
No sadismo, onde a pulsão de morte torce a seu favor a meta erótica - apesar de
satisfazer inteiramente a tendência sexual - temos o mais completo entendimento da
natureza desta pulsão e de seu vínculo com Eros.
Não podemos nos furtar a considerar a importância do estudo do sadismo e do
masoquismo para o avanço da teoria pulsional. Foi através da constatação inequívoca de
sua existência que, desde o início, Freud abriu o caminho para a postulação de uma
pulsão de morte, de uma pulsão de agressão, de uma pulsão de destruição. Na
Conferência 32, de 1932, Freud volta a afirmar que o sadismo está mais intimamente
ligado à masculinidade e o masoquismo à feminilidade, admitindo, entretanto, o ter
feito muitos progressos nessa área (FREUD, 1933b[1932]/1986, p. 97). Considera que
ambos, sadismo e masoquismo, são fenômenos ainda muito enigmáticos para a teoria da
libido, em particular o masoquismo.
Tanto o sadismo como o masoquismo são dois excelentes exemplos da
intricação das duas classes de pulsões, “de Eros com a agressão”, e esse enlace é
paradigmático: todas as moções pulsionais são misturas dos dois tipos. Novamente, nos
deparamos com uma certa frouxidão no emprego dos termos: as duas pulsões
primordiais são Eros e a pulsão de morte. Na verdade, a agressão, como diz Freud, ou
mesmo a pulsão de agressão, já é um derivado da intricação dessas duas pulsões
fundamentais. As misturas o são aleatórias: vão depender da história singular de cada
sujeito, de seus pontos de fixação, de suas conseqüentes regressões, das modalidades
defensivas que estiverem ao seu alcance para utilizar. A singularidade apontará não
para a proporção das misturas como também para a variedade de recursos e momentos
de desenvolvimento: a diversidade das metas será dada pelas pulsões eróticas. As
pulsões de morte colaboram apenas com matizes de sua tendência monocórdia. O
homem possui potencialidades que se atualizarão em diferentes momentos de sua
existência; como que um terreno propício e prévio que determinará que certas
disposições se manifestem e outras não.
Freud lança o do exemplo do masoquismo para referendar sua postulação de
uma destrutividade autônoma e primária; se subtrairmos seus componentes eróticos, o
masoquismo nos mostrará, com clareza, a existência de uma tendência que visa a
destruição de si. E acrescenta: se também, com respeito à pulsão de destruição, é
verdade que o eu – ou melhor, corrige, o isso, a pessoa total – tem, em sua origem, todas
as moções pulsionais em seu interior, podemos dizer que o masoquismo é mais antigo
que o sadismo. “Este é a pulsão de destruição dirigida para fora, que assim assume a
característica da agressão” (ibid, p. 98). Um tanto da pulsão de destruição originária
pode ficar em seu interior e pode ser percebida se estiver ligada às pulsões eróticas
para formar o masoquismo ou que se volte para o mundo externo como agressão. Mais
uma vez, reforça-se nossa análise: pulsão de destruição se torna masoquismo – ou
sadismo – se ligada, significativamente, a Eros.
Quanto à aproximação entre masoquismo e feminilidade, ou seu correspondente
mais primitivo, a passividade, Freud assevera que é próprio da constituição da mulher
sufocar sua agressão, além das imposições que lhe faz a sociedade. Isso facilita a
constituição de intensas moções masoquistas, “suscetíveis de ligar eroticamente as
tendências destrutivas voltadas para dentro” (ibid, p. 107). O masoquismo é, então,
autenticamente feminino.
O sadismo, por sua vez, é uma fuo pulsional de aspirações puramente
libidinais com outras destrutivas puras, lê-se em Esbo de psicanálise, de 1938.
Sua própria existência é suficiente para autorizar Freud a incluir sob a rubrica da
libido as moções agressivas (FREUD, 1940[1938]/1986, p. 152). Esta é uma fusão
que não se cancela nunca mais.
Como afirmamos acima, o par sadismo/masoquismo é aquilo que de mais
primordial aponta para a intricação das duas pulsões fundamentais, a de vida e a de
morte. o constituiria propriamente um derivado das pulsões de morte, pelo menos
o em pé de igualdade com os outros conceitos abordados nesse trabalho. Se
atribuirmos, como foi sugerido acima, uma pontual anterioridade ao masoquismo,
pensamos não ser exagerado dizermos que o masoquismo primário se confunde com
a própria intricação pulsional, tamm primária; encontramos concordância a essa
postulação em ensaio onde se lê que esse aspecto confere ao masoquismo uma
posição única entre todos os fenômenos psíquicos (ROSENBERG, 1991/2003, p.
18). A esse respeito, Rosenberg escreve que o masoquismo representa o que, na
patologia, melhor mostra a validade da segunda teoria das pules. Fundamenta essa
afirmação atras do fato de o masoquismo ter, em relão às pulsões, e mais
precisamente em relação à intricação pulsional, uma posão única entre todos os
demais fenômenos pquicos. O masoquismo erógeno primário é definido em sua
especificidade própria pelo simples fato da intricação pulsional enquanto todos os
outros fenômenos psíquicos, mesmo resultando, todos, da intricação pulsional, como
sublinhamos diversas vezes,m uma especificidade outra, suplementar, am da
intricação, aliás como tamm as outras formas do masoquismo. É como se
masoquismo primário e intricação pudessem ser considerados inticos: a primeira,
a mais originária das intricações pulsionais se dá no masoquismo erógeno primário
(ibid, p. 19). O autor diz mais: toda intricação pulsional enquanto tal é, em esncia,
masoquista. O sentido próprio da intricação pulsional é a erotização da
destrutividade proveniente da pulsão de morte, portanto do desprazer que
acompanha esta destrutividade”, o que é o próprio cerne do masoquismo (ibidem).
Ainda segundo este autor, o masoquismo primário é o momento e o lugar em
que tamm o eu se forma, posto que é essa primeira ligação, aquilo que constitui
sua condão de configurão. A primeira intricação de Eros e pulo de morte, ou a
mencionada erotização da destrutividade, confere ao eu incipiente essa
possibilidade espantosa de desviar para fora uma parte da pulsão de morte e fazer
uso desse desvio para se defender da ppria pulsão, realizando assim a primeira
ligação, justificando a intricação pulsional” (ibid, p. 20).
Rosenberg considera que a pulsão de morte é duplamente vinculada ao
masoquismo: por um lado, seria impossível construir uma teoria do masoquismo – e de
seu par, o sadismo – sem a aceitação do conceito de pulsão de morte e sem uma
redifinição da ligação como relação fundamental entre pulsão de vida e pulsão de morte;
por outro, o sadismo e o masoquismo, mas fundamentalmente este último, são a
expressão clínica por excelência, ao mesmo tempo em que são testemunhas, da própria
pulsão de morte. Essa posição privilegiada que o autor confere ao masoquismo se
justifica através da idéia de que o masoquismo erotiza e liga a destrutividade
proveniente da pulsão de morte, tornando-a minimamente suportável e, sob certas
condições, limitando a ameaça que ela representa, sua periculosidade. Desse modo,
teoriza, o masoquismo se torna o guardião da vida psíquica: segundo essa idéia,
poderíamos dizer que uma dimensão masoquista do psiquismo torna-se necessária para
seu funcionamento e sua existência. Como mencionamos inúmeras vezes, o mais
importante para a possibilidade de existência do aparelho psíquico é ligar e o
masoquismo provém da primeira ligação, resulta dela. Melhor o masoquismo, com toda
a negatividade que ele pode encerrar, do que as pulsões de morte deixadas soltas, o-
ligadas, essas sim a maior ameaça à manutenção da vida em geral e da vida psíquica em
particular.
Esse desvio, essa derivação, essa defleo, esta operação que funciona
segundo o fundamento da expulo e o da negação, como vimos -, faz com que,
por seu efeito de ligação, o masoquismo se coloque, paradoxalmente, ao serviço da
pulsão de vida que nada mais é, ela mesma, que a ligão enquanto tal (ibid, p.
22). Como consta do precio desse ensaio, o masoquismo nos faz viver. Talvez
possamos, nesse sentido, falar de uma dimeno masoquista da existência humana.
Segundo esse comentador, a existência humana seria a testemunha dos avatares da
união pulsional, de sua necessidade e de sua ‘qualidade vital (LE GUEN,
1991/2003, p. 14). Entendemos por qualidade’ vital o tanto de pulo de vida, de
Eros narcísico implicado nessa primeira ligação e na conseqüente deflexão das
pulsões de morte para fora do sistema; é como se dessa primeira ligação
dependessem todas as subseqüentes, o que daria ao sujeito uma qualidade, leia-se
constituão, mais ou menos favovel.
O conceito de pulo está ligado à iia de força, ou melhor, a pulo é um
conceito-força. Essa idéia será cada vez mais aprofundada, sobretudo com o conceito
da pulo de morte. Esse par de termos complementares, que caracteriza um aspecto
fundamental da vida pulsional, e que se baseia na simetria e na reciprocidade entre
um sofrimento passivamente vivido e um outro, ativamente infligido, designa não
uma força, que impele o aparelho, mas um estado. Um estado, uma condição, uma
situação, da mesma forma que o narcisismo é um estado, atingido atras de uma
ação, a identificação origiria. O sufixo nominal ismo, derivado da forma latina
ismus, por sua vez proveniente do grego ismós, designou, primeiro no campo da
medicina, uma intoxicação por um agente obviamente tóxico e, no curso dos culos
XIX e XX, seu uso se disseminou para designar igualmente movimentos sociais,
ideológicos, políticos, opinativos, religiosos e personativos, geralmente através dos
nomes próprios representativos ou de nomes locativos de origem. Por extensão, e
esse é o caso de que tratamos aqui, passou a designar também um estado, uma
condição, podendo ser um estado anormal ou condão incomum, resultante do
excesso de uma coisa, especificada, ou marcado pela semelhaa com uma pessoa
ou coisa.
Tamm encontramos o uso desse sufixo para designar uma doutrina ou uma
teoria, como o faz Freud ao forjar ou ao adotar os termos aqui estudados. Assim
como narcisismo faz referência ao mito de Narciso, sadismo e masoquismo, como
mencionamos no início do capítulo, referem-se a Sade e a Sacher-Masoch,
respectivamente. Não apontando os conceitos de sadismo e masoquismo na direção
de uma foa, o caberiam no grupo de derivados das pules de morte; antes, é
deles que acabam por derivar as pulsões de dominação, de agressão e de destruão.
Ou seja: o sadismo e o masoquismo, conforme elaborados a partir da segunda teoria
pulsional, constituem o estado inicial do qual derivam as diferentes composões
pulsionais, todas carregando em seu bojo a caractestica da agressividade e da
destrutividade. Ambas se instalam com o advento - ou a partir de - do sadismo e do
masoquismo. Deles partem, como componentes da sexualidade, como pules
parciais predominantes de determinadas organizações pré-genitais, as pules
dicas e as pulsões masoquistas, essas sim, derivadas diretamente desse estado
inicial e indiretamente das primordiais pulsões de morte.
IV. Destrutividade, destruição, pulsão de destruição
...pour un agnostique, une des définitions possibles du démon est: ce
qui, en l’homme, aspire à le détruire.
André Malraux, Saturne, essai sur Goya.
Mais pour le désespoir de l’homme, il ne peut rien faire que
d’imparfait, soit en bien, soit en mal. Toutes ses oeuvres intellectuelles
ou physiques sont signées par une marque de destruction.
Honoré de Balzac, La fille aux yeux d’or.
...pois tudo o que nasce
digno é de se destruir; por isso,
melhor seria que não tivesse nascido;
assim, o que vós chamais pecado,
destruição, o mal, em suma,
esse é o elemento a mim adequado.
Goethe, Fausto, parte I, cena 3.
Destruir provém do latim destruere, segundo o Dicionário etimológico da língua
portuguesa (NASCENTES, 1955). De acordo com o Le Petit Robert, dicionário da
língua francesa, este verbo saiu do latim popular destrugere, proveniente do clássico
destruere, que significa demolir, abater, arruinar, fazer desaparecer. A raiz é struere,
juntar, edificar, presente em inúmeras palavras, entre elas estrutura. Em sentido
figurado, pode designar causar a morte de alguém, de algo ou de si próprio. Matar,
eliminar, exterminar, devastar, extinguir, reduzir a nada. Diferentemente de agressão,
que se refere a um ato de ataque, de hostilidade, destruição implica o desaparecimento
do objeto (REY-DEBOUE, J. & REY, A., 2003). Segundo o Dicionário Houaiss de
Língua Portuguesa, destruição se define como ação ou efeito de pôr abaixo, de demolir
o que está construído, ação ou efeito de tirar a vida, eliminação, exterminação, morte.
Designa também a ação ou efeito de assolar, devastar; estrago, perda, ruína (HOUAISS,
2001). Sua raiz etimológica é o latim destructĭo, ōnis. O termo equivalente em alemão,
Destruktion, presente na expressão pulsão de destruição, Destruktionstrieb, nem sempre
está presente nos textos. A destruição implica, via de regra, a extinção total, o
aniquilamento, o fim. Destrutividade aponta para a qualidade de quem é destrutivo, para
uma tendência, capacidade ou poder de destruir.
Conforme veremos, a expressão pulsão de destruição às vezes se confunde, no
texto freudiano, com as próprias pulsões de morte; comumente qualifica-as quando
orientadas para o mundo externo. Sua meta é, explicitamente, a destruição do objeto,
constituindo os efeitos mais acessíveis, mais manifestos, por assim dizer, das pulsões de
morte. Entretanto, o conceito de pulsão de destruição inclui a Selbsdestruktion, a
autodestruição.
A idéia de uma pulsão de morte dirigida para o exterior, para os objetos, também
define a pulsão de agressão; segundo Laplanche e Pontalis, à parcela da pulsão de morte
voltada para o exterior Freud reserva, a maioria das vezes, o nome de pulsão de
agressão, não sendo possível concluir, pelos textos, um emprego definido da expressão
“nem por uma repartição exata entre pulsão de morte, pulsão destrutiva e pulsão
agressiva” (LAPLANCHE, J & PONTALIS, J.-B., 1975, p. 511). A busca pela distinção
entre essas expressões é exatamente a questão dessa tese. Os autores, contribuindo para
a indefinição, afirmam que o alvo da pulsão de agressão é a destruição do objeto, visão
com a qual não concordamos. A meta da pulsão de agressão nada mais é que agredir,
atacar o objeto, sendo a destruição o alvo específico das pulsões de destruição.
A pesquisa sobre o uso do termo esbarra em dificuldades da tradução. Como o
texto adotado como referência é o da Editora Amorrortu, com sua tradução do alemão
para o castelhano, muitas vezes é impossível saber exatamente a palavra utilizada por
Freud para designar a idéia de destruição e destrutividade. A palavra por ele adotada
para o derivado da pulsão de morte – Destruktionstrieb – não deixa dúvidas; o problema
aparece quando procuramos rastrear em seu texto o surgimento e o desenvolvimento da
idéia de destruição. Muitas vezes, o termo aparece sob a forma de aniquilamento
Vernichtung, Vertilgung -, de sepultamento, ocaso, declínio Untergang, como no
artigo sobre o “sepultamento” do complexo de Édipo, de 1924. A palavra Destruktion é
de origem latina, relativamente incomum no uso vulgar da ngua alemã, onde é
substituída, habitualmente, por Zerstörung e Vernichtung. Zerstörung também significa
demolir, deitar abaixo, e, figurativamente, fazer fracassar; Vernichtung é usada com o
sentido de aniquilamento, de extermínio e Vertilgung, derivada do verbo vertilgen, que
também significa consumir, expressa igualmente a idéia de extermínio, de consumação.
Também se encontram os termos auflassen liquidar e Auflössung liquidação -,
utilizados com respeito ao fim do complexo de Édipo (FREUD, 1933b[1932]/1986,
p. 59).
A idéia da destruição, assim como a de destrutividade, em Freud, está sempre
associada ao afeto do ódio, à questão de uma extrema hostilidade, que visa, sempre, a
eliminação do objeto.
Assim é que vemos em diversos textos freudianos dos primeiros tempos
referências à idéia de destruição, usada no seu sentido vernacular, sem ainda carregar o
significado de uma força, de uma pulsão. Em A interpretação de sonhos, escreve Freud
que “poder-se-ia interpretar que ele [Maury] atribui ao estado onírico a capacidade o
de destruir sem planejamento a atividade psíquica (...)” (FREUD, 1900/1986, p. 95) e
que “a suposta posse de bens ou a realização imaginária de desejos, cujo refreamento ou
destruição {Vernichtung} realmente fornece um fundamento psíquico para o extravio
constituem, a maioria das vezes, o conteúdo principal do delírio” (ibid, p. 113).
Entretanto, em 1909, no caso conhecido como ‘o homem dos ratos’, surge a
pergunta sobre qual seria o lugar do ódio na metapsicologia.
No texto sobre a Gradiva, poucos anos depois, escreve que um sonho que
provocou no sonhador terrível angústia levava-o “à antiga Pompéia no dia da erupção
do Vesúvio e o fez testemunhar a destruição {Untergang} da cidade” (FREUD,
1907[1906]/1986, p. 11). Numa das cinco conferências proferidas nos Estados Unidos,
lemos que “quanto ao temido desenlace, a destruição {Zerstörung} do caráter cultural
por obra das pulsões emancipadas do recalque, ele é um desfecho absolutamente
impossível (...)” (FREUD, 1910[1909]/1986, p. 49).
No texto conhecido como ‘o caso Schreber’, também escrito em 1910 mas
publicado no ano seguinte, a violência e a intensidade pulsional presentes no quadro são
remetidas não à exacerbação das pulsões de destruição mas a uma explosão de libido
homossexual (FREUD, 1911[1910]/1986, p. 28). Nesse momento, o ódio presente na
paranóia é considerado como secundário ao amor homossexual; o delírio de perseguição
resulta da projeção do ódio, na conhecida equação: eu não o amo, eu o odeio, ele me
odeia, por isso me persegue. Mas a questão da projeção na patologia da paranóia já está
presente no texto freudiano desde 1896. A relação primária de ódio é incontestável tanto
na paranóia com a meta de destruição do objeto quanto na melancolia com a
autodestruição, em última análise uma tentativa de eliminação do outro.
Assim que Freud começa a se referir a uma possível pulsão de destruição, como
no texto metapsicológico sobre as pulsões, o termo usado é sempre Destruktion. Que
pulsões podemos estabelecer e quantas? (...) Não se pode objetar se alguém usa o
conceito de pulsão de brincar, de pulsão de destruição, de pulsão de sociabilidade (...)”
(FREUD, 1915a/1986, p. 119). Até esse texto, o afeto do ódio adquire um caráter
propriamente pulsional se erotizado, isto é, se implicado em uma satisfação sado-
masoquista.
E a idéia de destruição na vida pulsional volta a surgir no texto sobre os tipos de
caráter, do ano seguinte, novamente sendo usados termos diversos: “de outro modo,
suas ações perderiam toda meta, toda finalidade, e seriam transformadas na fúria cega
de alguém condenado à destruição [isto é, ao desaparecimento, à extinção], mas que
antes quer destruir [aniquilar] tudo o que estiver ao seu alcance” (FREUD, 1916/1986,
p. 327).
No texto metapsicológico sobre a melancolia, de 1915, Freud faz a primeira
referência à destruição voltada para o próprio sujeito. Sabemos que o texto sobre o
narcisismo, de 1914, em que Freud enfrenta as idéias de Jung a respeito da constituição
do eu e das psicoses, faz desmoronar toda a arrumação conceitual que existia até aquele
momento. O conceito de narcisismo obriga Freud a um novo desenho do universo
pulsional mas ele empreende a redação dos trabalhos ditos metapsicológicos colocando
as descobertas trazidas pela introdução do narcisismo como que em suspensão.
Entretanto, seus ecos se fazem sentir, mesmo que de forma velada. O narcisismo é o
estado ao que o sujeito acede por meio da identificação narcísica e a primeira forma
pela qual o eu escolhe um objeto. Essa escolha é ambivalente que a incorporação,
protótipo da identificação e que tem por imagem o canibalismo, implica a destruição
desse objeto com o qual o sujeito se identifica. O objeto é incorporado porque amado
mas é, ao mesmo tempo, destruído. Na incorporação, na introjeção primária, está em
obra um desejo de se apropriar e de controlar o estranho, mesmo que esse, por ser
estranho, seja visto como “mau”. O sujeito faz seu o que, por natureza, lhe escapa; ele
devora o desconhecido e se faz devorar por ele (PONTALIS, 1981, p. 70). Tanto na
melancolia quanto na neurose obsessiva, voltamos a enfatizar, a ambivalência em
relação ao objeto é muito acentuada.
No texto sobre a melancolia, Freud se refere à destruição de si mesmo como uma
conseqüência do sadismo que impera na vida anímica:
“somente este sadismo nos revela o enigma da inclinação ao suicídio, que torna
a melancolia tão interessante e ... perigosa. Identificamos como o estado
primordial do qual parte a vida pulsional um amor tão enorme do eu por si
mesmo, e na angústia que sobrevém em conseqüência de uma ameaça à vida
vemos liberar-se uma quantidade tão gigantesca de libido narcísica, que não
entendemos que esse eu possa concordar com sua autodestruição” (FREUD,
1917a[1915]/1986, p. 249).
No trabalho sobre o estranho, de 1919, e que prenuncia a postulação do conceito
de pulsão de morte no ano seguinte, Freud faz considerações sobre o que escreveu Otto
Rank sobre o tema do duplo, num trabalho de 1914. Nesse texto, Rank se indaga sobre
os vínculos do duplo com a própria imagem vista no espelho e com a sombra, “o
espírito guardião, a doutrina da alma e o medo da morte.” O duplo foi, em sua origem,
“uma segurança contra a destruição {Untergang} do eu, um ‘enérgico desmentido
{Dementierung} do poder da morte’ [Rank], e é provável que a alma imortal tenha sido
o primeiro duplo do corpo” (FREUD, 1919a/1986, p. 234).
Chegamos a 1920 e à construção da nova teoria pulsional: é aqui que pela
primeira vez Freud postula a nova dicotomia entre Eros e as pulsões de morte. Aqui
também encontramos indicações do novo quadro estrutural da alma, que será
aprofundado em O eu e o isso, de 1923. É nesse texto que faz também seu aparecimento
explícito o problema da destruição e da destrutividade, protagonistas, cada vez mais, das
obras que se seguirão. A partir de 1920, a oposição libido narcísica versus libido de
objeto e o fundamento que constituía para a origem narcísica do ódio não se fazem mais
necessários. No novo conflito fundamental, a oposição amor/ódio vai coincidir com a
nova oposição pulsional. O ódio se torna, a partir desse momento, uma ‘decorrência
natural’ da pulsão de morte e da pulsão de destruição (MENEZES, 1991, p. 21).
Freud apresenta o organismo vivo como um sistema defensivo, cuja principal
tarefa é de se proteger das forças que o acossam, de fora. Proteger-se dos estímulos é
quase mais importante que recebê-los; esse organismo está dotado de uma reserva de
energia própria e, “em seu interior, se desdobram formas particulares de transformação
de energia”. Sua principal tarefa tem de ser preservá-las de influência niveladora, e,
portanto, destrutiva, das energias supergrandes que existem fora” (FREUD, 1920/1986,
p. 27). O mundo sico, externo, é prodigador de grandes quantidades de estímulos,
capazes de aniquilar as barreiras do sujeito. Esse trecho pertence ao capítulo IV e ainda
nele Freud faz as analogias com as vesículas vivas, numa tentativa flagrante de pedir
socorro à biologia para os fundamentos de sua nova teoria. A substância viva segue
sendo seu suporte mais freqüente e sua concepção dualista encontra ali um refúgio. A
diferenciação da primeira teoria pulsional – equivalente à oposição entre fome e amor -,
é substituída pela dicotomia entre amor e ódio ou discórdia. Entretanto, sua concepção
de uma pulsão de morte cobra uma evidência para que não produza “uma impressão
diretamente mística” (ibid, p. 53).
Ao mencionar a possibilidade de que possa existir um masoquismo primário,
coisa que acreditou impossível, Freud fala de um trabalho de Sabina Spielrein,
publicado em 1912, em uma nota de rodapé ao texto de 1920. Diz que “em um trabalho
muito rico de idéias, ainda que não de todo transparente”, Sabina antecipa um bom
fragmento dessa discussão e que ela designa os componentes sádicos da pulsão sexual
como ‘destrutivos’. Por outro lado, diz Freud, Stärke, em um texto de 1914, tentou
identificar o próprio conceito de libido com o conceito de impulsão em direção à morte,
que é preciso supor na teoria biológica, idéia compartilhada por Rank. “Todos esses
empenhos, da mesma forma que o do texto, são testemunhas de um esforço, que ainda
não deu resultado, em obter clareza na doutrina das pulsões” (ibid, p. 53, n. 22).
Essa nota, em que Freud atribui a Spielrein uma primeira menção às pulsões de
destruição, está inserida em sua reflexão sobre o sadismo. Spielrein apresenta, no
mesmo Congresso de Haia em que Freud lançou seu texto de 1920, um artigo seu
intitulado As origens das palavras mamãe e papai, escrito em 1918, com tema análogo
ao explorado por Freud acerca da origem da linguagem e sua utilização da brincadeira
infantil do fort-da como exemplo de um além do princípio do prazer.
Quanto ao papel de Sabina Spielrein nesse momento da construção teórica,
remetemo-nos a um trabalho recente, parte de um projeto de pesquisa em andamento
(CROMBERG, 2005). Nele, sua autora trabalha com a idéia, baseada na análise do
dossiê e dos textos de Spielrein, que esta foi a introdutora, a inventora do conceito de
pulsão de morte em psicanálise. O exame detido do texto de Spielrein, La destruction
comme cause du devenir, de 1911, leva a autora a postular que nele se encontram as
origens do conceito de pulsão de morte, o que lhe permite afirmar que este fato
constituiria um antecipador do percurso tomado por Freud. Escreve que o conceito de
pulsão de morte, tal como desenvolvido por Freud, utiliza dados biológicos muito
semelhantes aos utilizados por Spielrein, assim como nela também se encontra a noção
da repetição do desprazeroso como indício do conceito, apontado como indicador de
um outro princípio de funcionamento do psiquismo. Entretanto, assim como
encontramos na nota de Freud, acima citada, a concepção central de Spielrein é a de um
componente destrutivo da pulsão sexual, o que abriria todo um novo campo de
explicação metapsicológica. A ausência de outras referências de Freud às idéias de
Spielrein em obras subseqüentes uma breve alusão, sem nomeá-la, em O mal-estar
na cultura - nos levaria a supor que o conceito freudiano de pulsão de morte recalcou o
conceito spielreiniano de destrutividade.
Acrescenta Cromberg que Spielrein, junto com Stekel, foi pioneira na
formulação desse componente destrutivo da pulsão e a apontar a presença de uma força
além do princípio de prazer, que busca o desprazer, o que seria posteriormente
denominado por Freud de masoquismo primário. Lemos, em seu texto acima
mencionado, que “há algo no fundo do indivíduo que, por paradoxal que possa parecer à
primeira vista, o leva a fazer mal a si mesmo e que lhe prazer nisso”, concluindo a
favor da existência de um “componente destrutivo da pulsão sexual”, ou ainda, de uma
“pulsão sexual de morte, de uma pulsão de destruição oposta à pulsão de vida”
(SPIELREIN, 1911/1981, p. 220). A componente destrutiva seria, em seu ponto de
vista, a causa da ambivalência amor-ódio nas relações de objeto bem como da pulsão
sadomasoquista, intuição precursora de um masoquismo primário ao postular no fundo
do indivíduo um “prazer a se fazer mal.” Spielrein se fundamenta em Jung, a quem cita,
e segundo o qual “as representações de morte e as representações sexuais |são|
irredutíveis umas às outras, antitéticas” (ibid, p. 214). Da mesma forma que no próprio
instinto de procriação se enraízam os sentimentos de felicidade, que inspira a todo ser
vivo seu devir, os sentimentos de defesa tais como a angústia e o nojo, suscitados por
esse mesmo instinto (...) são os sentimentos trazidos pelo componente destrutivo do
próprio instinto [instinct, na tradução para o francês] sexual” (ibid, p. 216).
Spielrein se indaga se toda nossa vida psíquica pode ser atribuída à via
preferencial do eu, que busca o prazer e reprime o desprazer, ou se não deveríamos
pensar em forças instintuais capazes de mover nossa psyché independentemente de
qualquer sentimento de prazer ou de pena que o eu poderia encontrar. “Um tal desejo de
sofrimento e de dor permanece rigorosamente incompreensível se considerarmos apenas
o eu, que não persegue efetivamente nada além de seu prazer” (ibid, p. 220).
Interessante prenúncio esse que aqui encontramos.
Federn escreveu um comentário em que faz uma crítica às postulações de
Spielrein. Em apoio às hesitações freudianas, afirma que “... sem que nada a autorize,
[ela] supõe, na base de tais processos de destruição e de transformação, uma pulsão
particular, e os remete, pois, a um objetivo perseguido enquanto tal pelo indivíduo, em
vez de ver ali manifestações acompanhando fenômenos de origem sexual, ou
decorrendo deles.”. Federn conclui que o método proposto por Spielrein é perigoso
porque busca explicação em causas longínquas” e não em “determinações mais
imediatas”, o que a aproxima “dos grandes pensadores místicos” (NUNBERG &
FEDERN, 1979, p. 114).
A hipótese de Cromberg encontra eco e confirmação em texto de Kaës, onde este
afirma ser Spielrein a “verdadeira introdutora da noção de pulsão de morte, em 1911,
em uma reunião da quarta-feira” (KAËS, 2000, p. 95). Prossegue afirmando que
Spielrein “prefigura uma idéia que ia se tornar fundamental: o componente da morte
está contido na própria pulsão [instinct, no original em francês] sexual, este componente
é indispensável ao processo do vir a ser, do tornar-se” (ibid, p. 96). O processo do devir
está presente no título do texto apresentado por Spielrein. Kaës prossegue dizendo que a
idéia de Sabina, influenciada pelos trabalhos de Jung, será recusada e criticada
duramente pela maior parte dos membros da reunião, inclusive Freud. Escreve que aqui,
como em outros episódios, Freud se comporta de forma característica: “depois de ter
rejeitado uma idéia que chega a ele de um de seus discípulos, ele a adota, a aperfeiçoa e
se apropria dela, sem mais referências a seu autor. A idéia se tornará eficaz para ele
quando for ele mesmo tomado pela questão.” Freud recebe uma nova idéia, a digere e a
incorpora como se dele fosse, fazendo como que um trabalho de metabolização, de
elaboração. O próprio Freud admite, numa carta escrita para Ferenczi, em 8 de fevereiro
de 1910, que possui “um intelecto decididamente complacente, tendendo para o plágio”
(FREUD & FERENCZI, 1994, p. 195). Alguns comentadores da vida e da obra de
Freud, como Schur (SCHUR, 1981), Roazen (ROAZEN, 1978) e Grosskurth
(GROSSKURTH, 1992) assinalam que Freud sempre foi incapaz de se distinguir de sua
criação. Em decorrência dessa característica, qualquer rejeição de um aspecto que fosse
de sua teoria implicava, para ele, uma rejeição de sua pessoa. Dessa forma, as
dissidências teóricas tornaram-se, sempre, rupturas violentas.
Também segundo Robert, o texto de Spielrein A destruição como causa do devir
poderia ser considerado como uma antecipação da concepção freudiana da pulsão de
morte, quase palavra por palavra (ROBERT, 1991, p. 198). Assinala Cromberg que
nisso o risco de certo exagero que não faria jus ao ineditismo e à cuidadosa construção
teórica de Freud, com o que concordamos. Encontramos outras antecipações, ainda
anteriores ao episódio Spielrein, nas atas das reuniões da incipiente Sociedade
Psicanalítica de Viena, da qual tratamos no capítulo sobre a pulsão de morte.
Além de postular a idéia de que a criação do conceito de pulsão de morte seria a
expressão de um campo criado anteriormente, a partir das inquietações teorico-clínicas
de Spielrein, Cromberg aponta para o papel de pivô que esta desempenhou na relação e
posterior ruptura de Freud com Jung, de quem ela fora analisanda e suposta amante.
Além das discordâncias teóricas entre os dois homens, Freud teria agido como
interventor na relação amorosa entre analista e analisanda; como conseqüência desses
acontecimentos, que beiram a crônica mundana, Cromberg sugere que os textos ditos
técnicos, imediatamente posteriores a esses acontecimentos, seriam uma resposta
freudiana às questões transferenciais ali experimentadas. “Num momento em que a
psicanálise apenas começava a engatinhar pelo mundo, com poucos analistas analisados,
tais artigos pretendiam domesticar, ao menos enquadrando, os demônios que a
descoberta do inconsciente na relação transferencial despertavam” (CROMBERG,
2005, p. 10).
Ao mesmo tempo em que Spielrein foi a segunda mulher a se filiar ao ‘grupo das
quartas-feiras’, é interessante verificarmos que a apresentação de parte de seu trabalho A
destruição como causa do devir, em 1912, se deu no encontro logo posterior à saída de
Adler e da primeira psicanalista filiada ao Grupo, Margareth Hilferding. Assim, na
reunião de 15 de novembro de 1911, em que Theodor Reik apresenta seu artigo “Da
morte e da sexualidade”, Spielrein declara já ter tratado de uma grande parte dos
problemas levantados na discussão em seu trabalho já concluído, Die Destruktion als
Ursache des Werdens (NUNBERG & FEDERN, 1983, p. 308). Observa que discutiu
o medo da dissolução do eu ou da transformação em uma outra personalidade, o
problema da vida eterna que é concebida como sendo tão terrível quanto o nascimento e
onde a morte não representa nada mais que o nascimento. Os pensamentos de morte
estão contidos na própria pulsão sexual; ora são os componentes de vida, ora os
componentes de morte que tomam a dianteira da cena” (ibidem).
O trabalho de Reik versava sobre a estranha conexão que ele acredita existir
entre os pensamentos a respeito da morte e as fantasias sexuais, conexão essa que é
familiar aos psicanalistas. A base formal para essa postulação é a idéia de que, na vida
psíquica, os contrários tendem a se substituir um ao outro, sobretudo quando se trata de
produtos do Inconsciente (ibid, p. 302). Além disso, afirma que a plasticidade do
material psíquico não se constitui no indivíduo mas é pré-formada na espécie. “Certas
associações, como do amor e da morte, atravessam toda a história, os costumes e usos
de todos os povos” (ibid, p. 303). Reafirma, com Fliess, que toda angústia é angústia
diante da morte; e que a crueldade é quase sempre reforçada por uma libido insatisfeita.
Finaliza sua apresentação observando que a causa última da ligação íntima entre o amor
e a morte é a idéia de imortalidade, a idéia de que continuamos a viver em nossos filhos.
“É assim que se fecha o círculo formado pelo devir e a morte, por Eros e Tanatos” (ibid,
p. 304).
Stekel intervém e observa que a pulsão destrutiva e a pulsão de procriação
sofreram um ‘cruzamento’ flagrante. O fato que a necessidade de criar pode tomar a
forma da necessidade de destruir é uma manifestação regressiva
{Rückschlagserscheinung} como a neurose em geral. Freud o se manifesta a respeito
do que disse Spielrein e, nessa mesma reunião, Theodor Reik é admitido na sociedade
por unanimidade. Além da apresentação de uma possível pulsão de destruição,
observamos a própria pulsão de morte se insinuando firmemente no panorama
psicanalítico compartilhado por esses pioneiros.
Sabina Spielrein apresenta parte de seu trabalho, chamada Da transformação”,
na reunião científica de 29 de novembro de 1911. Partindo da questão de saber se existe
um ‘instinto’ de morte normal no homem, conforme Ilya Mechnikov, biólogo russo que
fez seus estudos na Alemanha, Spielrein tenta provar que o componente da morte está
contido no próprio ‘instinto’ sexual: um componente destrutivo é ao mesmo tempo
inerente a este ‘instinto’, componente indispensável ao processo do devir. O editor das
Atas, Nunberg, em nota de pé de página, informa que Spielrein foi sua colega da
faculdade de medicina, “onde teve um episódio psicótico” (ibid, p. 319, n. 4) e que,
apesar de parecer que, sob a influência de Jung, ela tenha formulado, muitos anos antes
de Freud, a hipótese segundo a qual a vida pulsional consiste em duas pulsões opostas,
de vida e de morte, essa pretensa prioridade não resiste a “um olhar mais atento”.
Segundo ele, para perceber que Spielrein o expressa essa teoria mas acredita que a
pulsão sexual, isto é, a pulsão de vida, a pulsão de criação, contém um elemento
destrutivo.
Spielrein diz seguir Jung quando este afirma que dois componentes opostos são
o fundamento de todo querer; parece que, habitualmente, o instinto de vida
{Werdeinstinkt} predomina. Basta, entretanto, um pequeno deslocamento na outra
direção para que somente se perceba, no ‘instinto’ sexual, uma força destrutiva (ibid, p.
320). Prossegue em sua apresentação, caminhando pelos símbolos e pela mitologia.
Observa que o estágio pré-natal é igual à morte ou é concebido como tal, como uma
‘existência-fantasma {Schattendasein}. A destruição é causa do devir; por isso não
existe noção absoluta da morte.
Sachs observa que o nascimento e a morte são intimamente ligados na
imaginação dos homens; esta junção tem origem no primeiro e mais forte afeto de
angústia do homem, aquele da hora do nascimento. Isso explicaria a identidade da vida
depois da morte e da vida antes do nascimento, presente no pensamento humano desde a
Antigüidade. Tausk acusa Spielrein de metafísica e Federn também a critica.
Rosenstein, por sua vez, introduz a idéia de que podemos compreender o psiquismo
numa ótica biológica e não metafísica. Os desejos de morte se revelarão ser uma
formação reativa, no sentido de Stekel, e têm a ver com o suicídio, explicável pelo
desejo de matar alguém outro. A questão seria a de saber se a necessidade de se perder
no objeto amado deve ser considerada como um fenômeno normal ou igualmente como
uma formação reativa. Se a primeira tese for a certa, estaríamos em condição de dizer
que as duas pulsões existem no psiquismo (ibid, 321). É porque devemos morrer que
podemos viver os afetos e também sentir prazer.
Reinhold retoma razões biológicas gerais. Afirma que Platão ligava Eros não
apenas ao amor como também à morte (ibid, p. 323). Stekel reivindica que a concepção
da angústia como reação à pulsão de morte já está contida em seu livro sobre a angústia.
Freud responde a Spielrein citando os mitos e Jung. Diz que, em oposição à sua
concepção psicológica, a oradora tentou fundar a teoria das pulsões sobre premissas
biológicas, tal como a conservação da espécie (ibid, p. 325). Spielrein responde
afirmando que a predominância dos componentes sádicos ou masoquistas determina se
os desejos de morte são dirigidos para o próprio sujeito ou para uma outra pessoa. O
desejo de ser absorvido é uma tendência normal; entre as mulheres, se exprime amiúde
como um fantasma de destruição.
Considera Cromberg que Freud poderia ter citado Spielrein em outros momentos
de seu texto afora meras notas de rodapé; os dados biológicos do texto de Spielrein, por
exemplo, antecipam todo o campo metafórico que Freud cria a partir das pesquisas de
Weissman com as células germinais. Na carta a Jung de 30 de novembro de 1911, Freud
reconhece o inédito do texto de Spielrein mas, curiosamente, menciona que a parte
biológica não tem importância: “Fräulein Spielrein leu um capítulo do seu ensaio ontem
(...), seguindo-se um esclarecedor debate (...). Devo dizer que ela é bastante amável e
que começo a compreender. O que me incomoda mais é que Fräulein Spielrein quer
subordinar o material psicológico a considerações biológicas; tal dependência não é
mais aceitável do que uma dependência da filosofia, da fisiologia ou da anatomia
cerebral. A ψ fará da se (McGUIRE, 1976, p. 534-5).
Entretanto, apesar e além da nota que menciona o trabalho de Spielrein, é
intrigante observar que no texto que inaugura a segunda teoria pulsional e apresenta o
conceito de pulsão de morte existam tão poucas menções à destruição e à destrutividade.
No texto de 1920, Freud não se ocupa do tema da destrutividade e sim da compulsão à
repetição. Conforme artigo de Pontalis, Freud inscreve no âmago do ser humano vivo
uma força, um princípio mesmo, de antivida. Segundo ele, é o escândalo da pulsão de
morte, que é também aquele do desconhecido, daquilo que o se deixa conhecer,
escutar, pegar. “Nenhum domínio, nenhuma possibilidade de preensão, sobre aquilo que
exerce sobre nós a dominação a mais forte” (PONTALIS, 1981, p. 56). Por suas
características implacáveis de regressão, de inércia, a pulsão de morte inaugura um novo
limiar de compreensão tanto teórica quanto clínica. A pulsão de morte parece ser um
conceito inconcebível. A pulsão, inicialmente situada por Freud no cerne da
sexualidade, não tendo sido por ele considerada, em nenhum momento, como uma força
genérica, representava uma pressão constante em oposição ao eu; com o advento do
novo conceito, os fundamentos da teoria deverão ser revistos. A pulsão não poderia
mais ser vista apenas como a força tenaz introduzida pelo recalcado no sintoma
neurótico, assim como em qualquer outra produção psíquica marcada pelo selo do
Inconsciente: o campo do pulsional de estende para um além, ou um aquém, da
sexualidade e do prazer (MENEZES, 1991, p. 18).
No verão de 1922, Freud escreve dois artigos para uma enciclopédia, a
Handwörterbuch der Sexualwissenschaft, antes, portanto, que começasse a formular
seus novos pressupostos sobre a arquitetura psíquica em O eu e o isso. No segundo
artigo, chamado Teoria da libido, Freud trabalha suas idéias apresentadas em 1920.
“Um grupo dessas pulsões, que trabalham no fundo em silêncio, persegue a
meta de conduzir o ser vivo até a morte, pelo que mereceriam o nome de
“pulsões de morte”, e sairiam à luz, dirigidas para fora pela ação conjunta dos
múltiplos organismos celulares elementares, como tendências de destruição ou
de agressão.” (FREUD, 1923[1922]/1986, p. 253).
Esse é o primeiro momento em que Freud menciona, como sinônimos fossem, as
tendências à destruição e à agressão. Todavia, aqui fica clara a idéia de que as pulsões
de morte, quando dirigidas ao objeto, podem se expressar nessas duas formas,
mantendo-se para aquelas a noção de serem primárias, originárias. Prossegue afirmando
que
“no ser vivo, as pulsões eróticas e as de morte entrariam em misturas, em
amálgamas regulares; porém também seriam possíveis desfusões delas; a vida
consistiria nas exteriorizações do conflito ou da interferência de ambas as
classes de pulsões e traria, para o indivíduo, o triunfo das pulsões de destruição
pela morte, mas também o triunfo de Eros pela reprodução” (ibidem).
Segundo o editor, Strachey, esta é a primeira vez que Freud usa o termo
Entmischung, desfusão, que será discutido extensamente no texto O eu e o isso, do ano
seguinte. A morte, cuja temática é tão constitutiva da psicanálise freudiana quanto a da
sexualidade, segundo excelente artigo de Pontalis, retorna de um temporário
afastamento executado pelo próprio Freud, descentrando um edifício teórico
considerado, por seu autor, como acabado. Pontalis considera que nenhum homem foi
mais habitado pela morte que Freud e que tanto a idéia de morte quanto a noção de
sexualidade sairão transformadas pela obra freudiana, pelo trabalho do aparelho teórico,
quanto a pulsão pelo trabalho do aparelho psíquico (PONTALIS, 2005, p. 251).
Dessa forma, chegamos ao texto O eu e o isso, fundamental na construção desse
novo aparelho anímico que vigorará até o fim da obra freudiana. Freud retoma o
trabalho teórico inaugurado em 1920 e dedica todo um capítulo, o quarto, a esclarecer
suas posições quanto às duas classes de pulsões presentes no humano. Afirma que
muita dificuldade na investigação da pulsão de morte e que o sadismo, como seu
representante, foi o ponto de partida para a pesquisa. Sabemos que a pulsão de morte é
proposta, em 1920, sem uma prova clínica decisiva, ficando, para o corpo da teoria,
como propriamente um além. Apoiado pela biologia e baseando-se em consideração
teóricas – ou mesmo especulativas – Freud supõe uma pulsão de morte, “encarregada de
reconduzir o ser vivo orgânico ao estado inerte, enquanto Eros persegue a meta de
complicar a vida mediante a reunião, a síntese, de substância viva dispersada em
partículas, e isto, desde sempre, para conservá-la” (FREUD, 1923/1986, p. 41).
Prossegue reafirmando que as pulsões se misturam entre si, se ligam, de forma ainda
sem representação adequada. Retomando as analogias biológicas, através da idéia da
“união dos organismos elementares unicelulares em seres vivos pluricelulares” (ibid, p.
42), diz ter sido possível neutralizar a pulsão de morte das células singulares e desviar
para o mundo externo as moções destrutivas. Esse desvio seria efetuado por meio da
musculatura e a pulsão de morte se exteriorizaria, em parte, como pulsão de destruição.
Além disso, acrescenta, percebe-se que a pulsão de destruição está sincronizada
segundo as regras que visam a descarga, ficando assim a serviço de Eros, isto é, quanto
mais for dirigido ao objeto, menos destruição se voltará contra o próprio sujeito,
finalidade propriamente de Eros, que visa conservar a vida. Diz que encontrar
representantes de Eros não é difícil; difícil mesmo é apreender um delegado da pulsão
de morte na pulsão de destruição, cujo caminho é marcado pelo ódio (ibid, p. 43). É
inequívoca a articulação que o próprio Freud faz entre a pulsão de destruição e o ódio.
No capítulo seguinte, o quinto, dedicado às relações do eu com as demais
instâncias, relações que Freud considera de vassalagem, também aborda questões
relativas à psicopatologia. Comparando as duas afecções onde o trabalho da pulsão de
morte mais se faz sentir, a melancolia e a neurose obsessiva, nota que, diferentemente
ao que acontece na melancolia, o neurótico obsessivo raramente chega a cometer
suicídio, como se estivesse imune a esse perigo e até mesmo fosse mais bem protegido
dessa ameaça do que o histérico. “Podemos perceber que o que garante a segurança do
eu é a conservação do objeto” (ibid, p. 54). Postula que na neurose obsessiva a regressão
à organização pré-genital sádico-anal possibilitou às moções amorosas transformar-se
em moções de agressão contra o objeto. Como conseqüência, a pulsão de destruição fica
liberada e aponta para a destruição do objeto. “O eu o acolhe essas tendências e luta
contra elas com formações reativas e medidas de precaução; permanecem, então, no
isso.” O supereu, entretanto, comporta-se como se o eu fosse responsável por essas
moções que recusou e mostra, pela persistência com que vai atrás dessas intenções
aniquiladoras, que não se trata de uma aparência provocada pela regressão mas de uma
substituição efetiva de amor por ódio. Ou seja: o supereu o se deixa enganar pela
formação de sintomas e trata de punir o eu por suas intenções tão sabiamente
deslocadas. A culpa na neurose obsessiva resulta da luta entre supereu e eu, este último
tendo admitido seus desejos, eróticos e destrutivos, mortais.
Segundo um texto de 1915, os cuidados excessivos com o bem-estar dos
familiares ou as auto-acusações infundadas após a morte de uma pessoa amada,
sintomas típicos dessa neurose, mostram a importância dos desejos inconscientes de
morte, insuportáveis para o eu do sujeito (FREUD, 1915d/1986, p. 300). Formações
reativas e excessivo sentimento de culpa caracterizam essa afecção onde a analidade
sádica cobra seu preço.
Podemos então considerar que o amor pelo objeto se satisfaz, de modo arcaico,
pela incorporação do objeto, o que significa, necessariamente, sua destruição, ou pela
identificação com o objeto. Nesse caso, o da melancolia, o ódio presente nessa relação
criticamente ambivalente se volta contra o próprio eu. Na neurose obsessiva, o objeto
introjetado carregado de ódio se mantém como tal e se aloja no supereu, onde passa a
encontrar satisfação sádica nos sofrimentos que inflige ao eu. Na neurose obsessiva, o
objeto é preservado através de uma forma de amor também arcaico: o sadismo e sua
satisfação libidinal que exige o mau-trato, a tortura, a humilhação.
A erotização do ódio, resultando no sadismo, preserva o vínculo com o objeto;
do mesmo modo, a erotização do domínio impede sua eliminação, meta visada pelas
pulsões de destruição. Ou seja: um acréscimo erótico impede que o objeto seja destruído
porque promove um ‘progresso’ na relação com este. Por outro lado, um decréscimo
erótico pode levar o sujeito a tentar obter um tipo de satisfação o mais regredido de
todos, o mais arcaico, que é a incorporação e decorrente destruição do objeto. Ao ser
incorporado, o objeto perde seu estatuto objetal e se aloja no eu caso da melancolia
ou no supereu – caso da neurose obsessiva.
Voltando ao texto de 1923, a seguir, e já promovendo uma indiferenciação
terminológica entre agressão e destruição, Freud escreve que
“as perigosas pulsões de morte são tratadas de diversas maneiras no indivíduo:
em parte são tornadas inofensivas pela mistura com componentes eróticos, em
parte são desviadas para fora como agressão (...). É assombroso que o ser
humano, quanto mais limita sua agressão para fora, tanto mais severo – donde,
mais agressivo – se torna em seu ideal do eu. À primeira vista parece o inverso:
na exigência do ideal do eu o motivo que leva a sufocar a agressão. Mas o
fato é tal como o formulamos: quanto mais um ser humano sujeita sua
agressão, tanto mais aumentará a inclinação de seu ideal a agredir seu eu”
(FREUD, 1923/1896, p. 55).
Na verdade, o que de fato protege o obsessivo de se infligir a autodestruição, é o
fato de seu objeto ser mantido como tal, ao contrário do que acontece na melancolia.
Nesta, a identificação com o objeto danificado, por via da incorporação, seu protótipo,
faz com que a configuração canibalística, típica de uma organização oral, se volte agora
contra o próprio sujeito, confundido com o objeto que incorporou. sim, as pulsões
são de destruição, próprias a esse momento e a esse tipo de relação com o objeto. No
caso da neurose obsessiva, podemos propriamente falar de uma agressão dirigida ao
objeto, que permanece em sua condição e com seu estatuto objetal; não se trata de
destruição, a fase a que o obsessivo regride não implica o devoramento do objeto,
apenas a intenção e a possível ação - de atacá-lo, de agredi-lo. Desse modo, o uso do
termo agressão, mesmo referido à relação entre as instâncias, é apropriado, não
devendo, entretanto, ser usado como idêntico ao termo destruição.
Apesar de serem duas afecções aparentadas em vários pontos, existe essa
diferença fundamental, justamente baseada na conservação das relações objetais - na
neurose obsessiva -, em contraponto à destruição desses vínculos na melancolia, onde o
investimento de objeto regride, com toda a sua ambivalência, a uma identificação com o
mesmo. Desse modo, aquilo que estava destinado ao objeto, agora se realiza dentro do
próprio eu, de quem o supereu se torna o algoz. O próprio Freud nos aponta que, na
melancolia, o supereu se abate com fúria sobre o eu, como se tivesse se apossado de
todo o sadismo disponível no indivíduo.” Poder-se-ia dizer, de acordo com a concepção
do sadismo, que o componente destrutivo se depositou no supereu e se voltou contra o
eu. O que agora governa no supereu é como uma cultura pura da pulsão de morte”
(ibidem).
Acrescenta Freud que, na neurose obsessiva, a desfusão do amor em agressão
não se produz por uma operação do eu mas que é o resultado de uma regressão que se
deu no isso. Mas esse processo transbordou do isso sobre o supereu, que assim aumenta
consideravelmente sua severidade contra o eu, inocente. Porém, tanto na neurose
obsessiva quanto na melancolia, o eu, “que dominou a libido mediante identificação,
sofreria, por parte do supereu, o castigo por meio da agressão entrelaçada com a libido”
(ibidem). Um pouco antes, Freud elucida uma importante transformação. Diz ele que o
supereu se produziu através de uma identificação com a figura arquetípica do pai e que
toda identificação desse tipo tem o caráter de uma dessexualização ou de uma
sublimação. Como conseqüência dessa transformação, ocorre também uma
desintricação das pulsões, por bito dos componentes eróticos; estes, antes investindo
o objeto, perdem potência de ligação do momento que são utilizados na identificação.
Diz Freud: “depois da sublimação, o componente erótico não tem mais a força para
ligar toda a destruição [grifo nosso] com ele enlaçada, e esta se libera como inclinação
de agressão e destruição” (ibid, p. 57). São, portanto, duas possíveis saídas.
Propomos que consideremos a destruição como o tipo de ligação mais primitivo,
mais rudimentar, característica da fase oral do desenvolvimento psicossexual, fase mais
antiga no que toca as relações de objeto, com menos quantidade de componentes
eróticos. Ela é muito próxima da identificação, em que o objeto perde seu estatuto e se
converte numa modificação no próprio eu. Na medida em que são feitos acréscimos nos
componentes eróticos, o que era destruição se suaviza na direção da agressão e da
dominação. Voltamos a dizer: destruir não é a mesma coisa que agredir nem dominar.
Destruir implica o desaparecimento do objeto, seu aniquilamento, a perda de sua
condição objetal. O que era objeto volta a ser indiscriminado e a fazer parte do eu do
sujeito. A agressividade necessária à manutenção da separação entre eu e não-eu se
esvai e a condição regride para a intensidade da destruição: o objeto deixa de existir
como estranho ao eu e é a este incorporado.
A destruição nos fala, na ontogênese, de uma colocação mais arcaica que a
agressão, apontando para uma situação ainda anterior à “nova ação psíquica” que
origem ao narcisismo primário. Falaria de uma potência das pulsões de morte no que de
mais primitivo elas possuem. Claro está que mesmo a destruição traz consigo a presença
de Eros; mas trata-se, aqui, de um Eros enfraquecido, em débito, incapaz de formar uma
unidade mais complexa e capaz de manter o vínculo com o objeto. Certamente, o
conjunto eu/não-eu é mais complexo que a ilusão oceânica de uma comunhão total entre
eu e mundo.
No ano seguinte, Freud escreve um trabalho que trata do complexo de Édipo e
suas soluções. O complexo de Édipo revela-se como fenômeno central do período
sexual da primeira infância e, depois, “cai sepultado, sucumbe ao recalque como
dissemos -, e é seguido pelo período de latência. Ainda o se tornou claro, contudo, o
que é que ocasiona sua destruição [seu afundamento, sua queda, Untergang]” (FREUD,
1924b/1986, p. 181).
Ferenczi, numa carta a Freud de 24 de março de 1924, observa que a palavra
Untergang do título do trabalho “está carregada de afeto” (FREUD & FERENCZI,
2000, p. 152) e imagina que esse título tenha se inspirado em um livro de Oswald
Spengler, A queda do Ocidente; Freud lhe a entender que a havia escolhido como
reação às idéias de Rank sobre a importância do ‘trauma do nascimento’. O artigo
continha uma ligeira crítica à teoria de Rank, coisa que não interessava a Freud que
fosse divulgada, mas admite que a palavra escolhida para o título tivesse sido
influenciada por seus sentimentos em relação às idéias de Rank. O editor Strachey nos
informa que Freud já havia utilizado a expressão Untergang des Ödipuskomplexes em
duas passagens de O eu e o isso (FREUD, 1923/1986, p. 35) antes que Rank tivesse
publicado sua hipótese sobre o trauma do nascimento.
Neste mesmo ano, tremendamente prolífico, Freud escreve seu texto definitivo
sobre o masoquismo. Ali se que é possível uma outra derivação do masoquismo,
diferente da que vigorara até agora, em que este seria secundário em relação ao sadismo,
do qual seria uma volta à própria pessoa.
“No ser vivo (pluricelular), a libido enfrenta a pulsão de destruição ou de
morte; esta, que impera dentro dele, quer desagregá-lo e conduzir cada
organismo elementar à condição da estabilidade inorgânica (mesmo que tal
estabilidade só possa ser relativa). A tarefa da libido é tornar inócua esta pulsão
destruidora; o faz desviando-a em boa parte e desde cedo com a ajuda de um
sistema de órgão particular, a musculatura para fora, dirigindo-a aos objetos
do mundo externo. Recebe então o nome de pulsão de destruição, pulsão de
dominação, vontade de poder” (FREUD, 1924a/1986, p. 169).
Nesse trecho, nos deparamos com uma inconsistência teórica: Freud usa como
sinônimos as expressões ‘pulsão de destruição’ e ‘pulsão de morte’, ao utilizar a
conjunção ou, conforme vimos no capítulo sobre a pulsão de agressão, o que vem criar
ainda outra dificuldade. Entretanto, ao final do trecho citado, faz menção a outras
possibilidades de derivação, nos levando a crer que se trata aqui de três diferentes
produtos.
Logo adiante, Freud escreve que o masoquismo seria ao mesmo tempo
testemunha e resto da fase inicial em que aconteceu a primeira ligação entre Eros e
pulsão de morte, marcando a anterioridade desta em relação à pulsão de destruição, sua
derivada. Chama de pulsão de destruição o sadismo projetado, voltado para fora, que,
“sob certas constelações pode ser introjetado de novo, voltado para dentro, regressando
assim a sua situação anterior” (ibid, p. 170). Prossegue afirmando que a reversão do
sadismo para a própria pessoa ocorre como resultado da sufocação cultural das pulsões,
“em virtude da qual a pessoa se abstém de aplicar em sua vida boa parte de seus
componentes pulsionais destrutivos” (ibid, p. 175). A parte não utilizada da pulsão de
destruição retorna ao sujeito e aparece como um aumento do masoquismo do eu, um
masoquismo portanto secundário. Os fenômenos da consciência moral permitem inferir
que a destruição que retorna do mundo externo pode ser acolhida pelo supereu e
aumentar seu sadismo com relação ao eu. O masoquismo moral, um dos três tipos de
masoquismo propostos, seria a testemunha da existência da intricação das pulsões. Sua
periculosidade se deve a que descende da pulsão de morte, corresponde àquele setor
dela que se furtou à sua volta para fora, como pulsão de destruição” (ibid, 176).
Entretanto, como o perde nunca o valor psíquico de um componente erótico, nem a
destruição própria, isto é, a autodestruição, pode produzir-se sem a presença de
satisfação libidinal.
Em outro texto do ano de 1924, encontramos novamente o uso das expressões
pulsão de destruição e pulsão de morte como designando a mesma coisa e causando
certa perplexidade: a oposição foi designada, primeiro, como entre ‘pulsões sexuais e
pulsões de autoconservação’; em um giro posterior da teoria, reza ‘Eros e pulsão de
morte ou de destruição’” (FREUD, 1925[1924]/1986, p. 231). Neste trecho, Freud
reafirma que a doutrina psicanalítica das pulsões sempre foi rigorosamente dualista.
Em 1925, Freud empreende a redação do importante artigo A negação. Sabemos
que alguns autores preferem traduzir die Verneinung por ‘a negativa’ ou ‘a denegação’
mas concluímos que, seguindo Freud, não por que empregar palavras que fujam de
seu uso comum. O verbo verneinen é a exata tradução do português negar. A
importância desse artigo reside, precisamente, nas considerações de Freud sobre o
funcionamento pulsional, em especial no que diz respeito à pulsão de morte e à
destruição. Apesar de escrito em julho de 1925, o tema desse artigo já ocupava o
pensamento de Freud mais tempo. Segundo a definição do Vocabulário da
psicanálise, a negação é um processo pelo qual o sujeito, embora formulando um dos
seus desejos, pensamentos ou sentimentos, até então recalcado, continua a defender-se
dele negando que lhe pertença (LAPLANCHE & PONTALIS, 1970, p. 373). Foi na
experiência do tratamento que Freud pôs em evidência o processo de negação: a idéia de
que a tomada de consciência do recalcado se assinala muitas vezes no tratamento pela
negação situa-se no ponto de partida do texto.
Estabelecendo uma interessante ligação entre o conceito de negação e a questão
da morte e da mortalidade do homem, Valabrega postula que, com efeito, a defesa
principal contra a morte é justamente a negação (VALABREGA, 1991, p. 174). Lembra
que Freud faz derivar a crença nos espíritos e na imortalidade da alma das mesmas
fontes de onde provêm os tabus; essas prescrições representariam um primeiro
reconhecimento da necessidade inelutável da finitude da vida. O homem primitivo se
inclinaria diante da inelutabilidade da morte com a mesma atitude com que a nega
(FREUD, 1913[1912-13]/1986, p. 142).
Logo em seu início, Freud nos mostra a diferença entre dois termos – die
Verneinung e die Verleugnung -, diferença essa que foi perdida em mais um equívoco
de tradução. Em alemão, Verneinung designa a negação no sentido lógico ou gramatical
do termo, como também a denegação no sentido psicológico, referindo-se, aí, à recusa
de uma afirmação enunciada ou atribuída a alguém. De fato, a Verleugnung, traduzida
por recusa da realidade da castração ou desmentido, aproxima-se desse segundo sentido
da negação. Verleugnung tende, para o fim da obra de Freud, a ser usada para designar a
recusa da percepção de um fato que se impõe no mundo exterior, não se confundindo
com o conceito de negação. Assim é que ele nos diz que algumas vezes podemos
compreender uma negação como sendo um rechaço, por projeção, de uma ocorrência
que acaba de aflorar na consciência do paciente.
Em certo ponto do artigo, Freud escreve que ao estudar a função intelectual do
juízo ou julgamento - podemos compreender sua gênese a partir do jogo das moções
pulsionais. Negar alguma coisa com o juízo {Urteil} quer dizer, no fundo, que isso é
algo que o sujeito preferiria recalcar, ou melhor, manter recalcado. O juízo adverso ou
juízo de condenação die Verurteilung é o substituto intelectual do recalcamento, o
não é sua marca.
Freud prossegue afirmando que a função do juízo tem duas decisões a tomar:
deve atribuir ou ‘des-atribuir’ uma propriedade a uma coisa (juízo de atribuição) e deve
admitir ou impugnar a existência de uma representação na realidade (juízo de
existência). A propriedade, ou qualidade, dos objetos, se fosse expressada na linguagem
das moções pulsionais orais, equivaleria a um movimento no sentido de introduzir isso
no eu ‘quero comer’ ou de excluir isso do eu ‘quero cuspir isso’. O eu-prazer
originário, postulação freudiana, quer pôr para dentro de si, introjetar em si tudo o que é
bom e expulsar de si, pôr para fora, tudo o que é mau. Temos dois pares de opostos:
exclusão/inclusão e expulsão/introjeção. No princípio, escreve Freud, para o eu-puro-
prazer são idênticos o mau, o alheio ao eu, o que se encontra fora. A distinção entre o
estranho e o si-mesmo é resultado de uma operação, a expulsão. Sem a operação de
expulsão a introjeção não tem nem sentido nem lugar. A expulsão é a operação
primordial, na qual se funda o juízo de atribuição. A expulsão é atribuível à ação de
Eros, da libido narcísica, em luta com as pulsões de morte.
A outra decisão da função do juízo, a que diz respeito à existência real de uma
coisa do mundo representada, é questão do eu-realidade-definitivo, que se desenvolve a
partir do eu-puro-prazer e de seu encontro com o teste de realidade. Agora não mais se
trata de saber ou decidir se algo percebido, uma coisa do mundo Gegenstand deve
ou não ser acolhido no interior do eu, por ser bom ou mau, mas de se algo presente
como representação Objekt dentro do eu pode ser reencontrado também na
percepção da realidade. Ou seja: o que está na origem do juízo de existência é a relação
entre a representação e a percepção.
A partir do jogo das moções pulsionais primárias, Freud pretende compreender a
gênese de uma função intelectual.
“O julgamento é o desenvolvimento ulterior, adequado aos fins, da inclusão
{Einbeziehung} dentro do Eu ou da expulsão {Ausstossung} dele, que
originariamente foram regidas pelo princípio de prazer. Sua polaridade parece
corresponder à oposição dos dois grupos pulsionais que supusemos. A
afirmação {Bejahung} - como substituto da união {Vereinigung} - pertence a
Eros e a negação - sucessora da expulsão -, à pulsão de destruição. O gosto de
tudo negar, o negativismo de muitos psicóticos, deve provavelmente ser
compreendido como indício da desfusão de pulsões por débito (desfalque)
{Abzug} dos componentes libidinais” (FREUD, 1925/1986, p. 256).
Aqui, Freud explicita novamente sua idéia sobre um desfalque dos componentes
eróticos como causador de uma desfusão pulsional. A oposição apresentada, que media
a inclusão {Einbeziehung, o tornar-se um} e a expulsão {Austossung}, corresponde à
oposição entre as duas forças fundamentais do universo - tributo pago por Freud às suas
origens fisicalistas - a atração {Anziehung} e a repulsão {Abstossung}. Nessa grande
oposição podemos enraizar a profunda crença de Freud numa visão dualista da dinâmica
psíquica, da qual nunca abrirá mão.
Conforme observa Hyppolite, em seu artigo Comentário falado sobre a
Verneinung de Freud, aqui se estabelece uma dissimetria: enquanto a afirmação nada
mais é que a substituta {Ersatz} da união {Vereinung}, a negação é a sucessora
{Nachfolge} da expulsão (HYPPOLITE, 1989). Enquanto a afirmação primordial nada
mais é que afirmar, a negação é mais que querer destruir. Essa dissimetria nos é dada
pelo uso, diferencial, das palavras ‘substituta’ e ‘sucessora’. A afirmação, sendo
simplesmente equivalente da unificação, da união, do tornar um, é o próprio Eros, que
está em sua origem. No juízo de atribuição, por exemplo, é o próprio do introjetar, do se
apropriar em vez de expulsar. Para falar da negação, Freud emprega a palavra
Nachfolge, que tem sentido bem diverso de Ersatz. A afirmação apenas, pura e
simplesmente, se substitui à unificação, enquanto a negação resulta após a expulsão. A
negação vai ter um papel não como tendência à destruição, mas como atitude
fundamental de simbolicidade explicitada. Diz Freud: o cumprimento da função do
julgamento se tornou possível pela criação do símbolo da negação. O processo que
leva a isso, a rejeição Verwerfung, termo que aqui não é encontrado é fortemente
acentuado pelo uso da palavra expulsão, Ausstossung, bem mais radical e originário que
Verwerfung.
A afirmação pertence a Eros, o que une, e a negação pertence à pulsão de
destruição. Melhor seria dizer, originariamente à pulsão de morte, a que desune, a que
desliga. Freud conclui seu artigo dizendo que na análise não se descobre nenhum ‘não’
que provenha do inconsciente e que o reconhecimento do inconsciente por parte do eu
se expressa por uma fórmula negativa (ibid, p. 257). O eu diz o que o inconsciente não
é, ou melhor, o que nele não existe: a contradição, a exclusão, em suma, o não.
Segundo Pontalis, a questão não é se o inconsciente ignora ou não o negativo: o
inconsciente é o negativo, aquilo que se opõe à suposta plena positividade da vida. O
inconsciente é o negativo na medida em que sua própria constituição, como sistema
heterogêneo, é correlativa da perda, da ausência, da negação do próprio objeto de
satisfação (PONTALIS, 1981, p. 257). Postula o autor que o inconsciente se funda por
um o, pela impossibilidade do objeto, que se torna um núcleo, aquilo que não é
representado e representável. Seria o mesmo que dizer que o inconsciente se constitui
pela falta, pelo interdito, pela castração, pelo significante primordial, trazido pela não
repetição do mesmo, pelo objeto para sempre e desde sempre perdido. A morte, por sua
característica do que não é representável, está na própria raiz do inconsciente.
Bercherie considera que o artigo A negação retoma textualmente as
considerações do trabalho metapsicológico sobre as pulsões acerca do eu-prazer
purificado, referindo diretamente os movimentos de atração e de repulsão primordiais
ao par Eros e pulsão de morte (BERCHERIE, 1983, p. 350, n. 7).
Segundo Menezes, o primeiro movimento em relação ao objeto, isto é, o fato de
a primeira relação com o objeto ser a de ódio, equivale ao primeiro movimento no
próprio campo da pulsão, como mencionado no artigo A negação: repulsão e expulsão.
A expulsão precede a inclusão, a repulsa precede a atração. Ambos os movimentos são
próprios da pulsão de morte, ligada, é claro. A expulsão seria o que subjaz à
mencionada deflexão da pulsão de morte, primeira providência de Eros quando chega
(MENEZES, 1991, p. 21). O amor pelo objeto surge quando o sujeito pode
reconhecê-lo como possível fonte de prazer, fazendo com que empreenda um
movimento no sentido de aproximar o objeto de si e a preservá-lo; esse movimento, que
implica a atração pelo objeto, começa com a introjeção, a incorporação, protótipo
corporal do que virá a ser a identificação, e se continua na aproximação amorosa. Assim
como o sujeito procura afastar de si qualquer objeto que seja fonte de perturbação,
busca também se aproximar e reter perto de si os objetos capazes de intermediar sua
satisfação, seu prazer.
Todo amor pelo objeto, melhor dizendo, toda relação com o objeto, é
ambivalente em seu fundamento a fusão das duas pulsões -, por definição. O
reconhecimento do outro como diferente de si, o reconhecimento em si de que existe
‘um outro’, separado, não-eu, é uma concessão trabalhosa por parte do eu recém-
constituído, narcísico. Para Freud, a origem do ódio é narcísica, assim como a origem da
agressividade. O objeto, antes de tornar-se objeto do amor, é uma fonte primária de
sofrimento narcísico que ameaça a própria constituição desse incipiente sujeito e
essa situação precisa ser compensada pelo investimento libidinal desse objeto.
Novamente, em seu Estudo autobiográfico, escrito ainda em 1924, Freud
emprega pulsão de destruição como equivalendo a pulsão de morte. Depois de escrever
que reuniu sob o conceito de Eros a conservação de si mesmo e a da espécie, isto é, as
prévias pulsões de autoconservação e as sexuais, afirma que as contrapôs à pulsão de
destruição ou de morte, que trabalha silenciosamente. Define, a seguir, a pulsão como
“uma espécie de elasticidade do vivo, como um esforço {Drang} em repetir uma
situação que outrora existiu e que foi cancelada por uma perturbação externa” (FREUD,
1925[1924]/1986, p. 53). A ação conjugada e contrária de Eros e pulsão de morte nos dá
o quadro da vida.
No ano seguinte, no mês de julho, Freud escreve o denso artigo Inibição,
sintoma e angústia. Como o artigo contempla temas muito diversificados, temos a
impressão de que Freud teve muita dificuldade em dar-lhe uma unidade: examina a
mesma questão em diferentes trechos, com quase os mesmos termos. O tema central é,
entretanto, a angústia, abordado por ele desde os primórdios de seu caminho teórico.
Nesse texto, Freud retoma sua discussão com Rank acerca do trauma do nascimento,
prodigador do primeiro grande estado de angústia”, conforme se refere Freud em
trecho de O eu e o isso (FREUD, 1923/1986, p. 59). A noção de Rank, que considerava
que todos os posteriores ataques de angústia nada mais são que tentativas de
descarregar, por ab-reação, o trauma do nascimento, tira a importância do complexo de
Édipo na causação das neuroses. Nesse trabalho, Freud finalmente rejeita as idéias de
Rank, depois de grandes dúvidas. Por esse viés, aborda as questões relativas às moções
destrutivas, que nos interessam diretamente. No capítulo V, ao abordar a neurose
obsessiva, Freud discorre sobre os aspectos da regressão. Nesta neurose, verifica-se que
a organização genital da libido, alcançada pelo sujeito, é fraca e pouco resistente.
Quando o eu começa sua tarefa defensiva, sua primeira medida é rechaçar a organização
fálica para o estágio anterior, o sádico-anal. Essa regressão é determinante para a
configuração que adquire essa afecção. Freud encontra a explicação metapsicológica
para a regressão em uma desintricação das pulsões, na “separação dos componentes
eróticos que, no começo da fase genital, se haviam somado aos investimentos
destrutivos da fase sádica” (FREUD, 1926[1925]/1986, p. 109). Aqui se claramente
que a defesa recai sobre as aspirações do complexo de Édipo; a ameaça de castração é o
motor da defesa.
“Agora nos situamos no começo do período de latência que se caracteriza pelo
sepultamento {Untergang} do complexo de Édipo, a criação ou consolidação
do supereu e a ereção das barreiras éticas e estéticas no interior do eu. Na
neurose obsessiva, estes processos ultrapassam a medida normal; à destruição
{Zerstörung} do complexo de Édipo se agrega a degradação regressiva da
libido, o supereu se torna particularmente severo e sem amor, o eu desenvolve,
em obediência ao supereu, elevadas formações reativas da consciência moral, a
compaixão, a limpeza” (ibid, p. 115).
O obsessivo se às voltas com sua própria tendência à destruição e à agressão,
característica da fase do desenvolvimento a que regride, por bito dos componentes
eróticos. E por que esse débito? Freud fala de motivos constitucionais e razões
temporais, sem, entretanto, se decidir entre os dois. Ao pensarmos num fator
constitucional, teríamos que considerar um mais ou menos de pulsão de morte
diferenciando os sujeitos, o que nos levaria a um inatismo desconfortável. A hipótese
temporal fala de uma renitência por parte do eu, que se iniciou muito cedo, ainda em
pleno florescimento da fase sádica. Mas Freud tende a considerar a questão da
constituição: afirma que o estágio fálico já fora alcançado no momento do giro na
direção da neurose obsessiva.
No capítulo VII ainda do mesmo texto, Freud volta a afirmar que “no
inconsciente não nada que possa dar um conteúdo ao nosso conceito de destruição
[aniquilamento] da vida. (...) Nunca se experimentou nada semelhante à morte. (...) Por
isso, atenho-me à conjectura de que a angústia de morte deve ser concebida como
análoga à angústia de castração” (ibid, p. 123). Segundo Pontalis, em artigo
mencionado, se Freud afirma que o inconsciente não consegue representar nossa própria
mortalidade isso se deve a uma negação (PONTALIS, op. cit., p. 257). O autor
considera estranho que mais de cinco anos depois da publicação de Além do princípio
de prazer, onde Freud enuncia a pulsão de morte, ele ainda encontre tal dificuldade em
aceitar que a própria idéia de morte está no âmago do inconsciente, conforme vimos
acima.
Em 1926, num artigo intitulado Psicanálise, lemos, com espanto diante da
imprecisão terminológica, que “a especulação teórica permite conjeturar a existência de
duas pulsões básicas que se ocultam por trás das pulsões egóicas e de objeto,
manifestas: Eros, que quer alcançar uma união cada vez mais abrangente, e a pulsão de
destruição, que leva à dissolução {Auflösung} do ser vivo” (FREUD, 1926, p. 253).
Será uma relutância, por parte de Freud, em insistir na primariedade de uma pulsão, a de
morte, sem expressão direta no universo simbólico e nos fatos da vida? Talvez lhe custe
muito reafirmar a condição de básica dessa pulsão, sem fundamento concreto que o
seja um de seus derivados.
Um ano depois, Freud escreve O futuro de uma ilusão, onde se vê que a posição
que as pulsões de morte e as pulsões destrutivas ocuparão em O mal-estar na cultura, de
1930, está aqui prenunciada. Freud afirma acreditar que “seja preciso levar em conta
o fato de que em todos os seres humanos estão presentes tendências destrutivas, ou seja,
anti-sociais e anticulturais, e que em grande número de pessoas possuem força
suficiente para determinar sua conduta na sociedade humana” (FREUD, 1927a/1986, p.
7).
Finalmente, chegamos ao texto que trata extensamente o tema das pulsões de
destruição. Sabemos que o eixo central do livro é o antagonismo entre as exigências
pulsionais e as limitações impostas pela cultura, assunto ao qual Freud se dedicou desde
seus primeiros escritos. Uma das ramificações do trabalho vai pela via do
esclarecimento da natureza do sentimento de culpa, considerado como o problema mais
importante do desenvolvimento cultural.
“O obscuro sentimento de culpa que assedia a humanidade desde tempos
primordiais Urzeiten -, e que em muitas religiões condensou-se na aceitação
de uma culpa primordial Urschuld -, um pecado original, é provavelmente a
expressão de uma culpa ‘de sangue’ [por um assassinato] que a humanidade
primordial jogou sobre seus próprios ombros” (FREUD, 1915d/1986, p. 293).
Para poder chegar a um bom termo em sua investigação, Freud é obrigado a
trabalhar a idéia da pulsão de destruição encontrada na raiz tanto do sentimento de culpa
quanto das relações entre as instâncias psíquicas. Como sabemos, o sentimento de culpa
é a expressão, por parte do eu, da tensão existente entre ele e o supereu. As questões
relativas à psicologia do eu levaram Freud a estabelecer a hipótese do supereu e sua
origem nas primitivas relações de objeto do indivíduo. A introdução do texto, elaborada
por James Strachey, seu editor, incorre na mesma imprecisão que permeia o próprio
texto freudiano: usa como se idênticas fossem as expressões pulsão agressiva e pulsão
de destruição (STRACHEY, 1970/1986, p. 62). Na resenha que faz da história e da
atenção dadas ao assunto, observa-se que, na maioria dos textos apontados como
precursores do tema, os termos usados são os da agressão e da pulsão agressiva.
Sadismo, amor e ódio, ambivalência: esse é o terreno em que surgem as menções à
agressividade do homem. Até o presente texto, como mencionamos, a questão da
agressividade era tratada como algo secundário, coadjuvante, derivada da pulsão de
morte, essa sim primária e autodestrutiva. Neste texto, a ênfase recai nas manifestações
externas da pulsão de morte.
No capítulo VI, Freud começa a tratar especificamente desse tema. Ao retomar a
exposição de sua segunda e definitiva teoria pulsional, assinala que não é fácil pesquisar
a atividade da pulsão de morte. Ao contrário das exteriorizações de Eros, bastante
ruidosas e notáveis, a pulsão de morte parece trabalhar muda dentro do ser vivo, no
sentido de sua destruição [dissolução], mas isso o constitui nenhuma prova de sua
existência conceitual. Mostrou ser mais produtiva a idéia de que uma parte da pulsão de
morte era dirigida ao mundo externo e surgia, então, como pulsão a agredir e destruir
dois destinos, portanto (Freud, 1930/1986, p 115). Desse modo, a pulsão de morte servia
a Eros pois, na medida em que encontrava sua finalidade na aniquilação de outro ser
vivo, não se voltava inteiramente contra o si mesmo próprio. E acrescenta: se esta
agressão dirigida para fora for limitada, o resultado será um considerável aumento da
autodestruição.
A seguir, como que para esclarecer suas suposições e corrigir o que apenas
dissera, Freud se penitencia de ter “desprezado a ubiqüidade da agressão e da destruição
não eróticas e falhado em conceder-lhes a posição que merecem na interpretação da
vida” (ibid, p. 116). Reconhece sua resistência à concepção de uma pulsão de destruição
quando ela apareceu na literatura psicanalítica e o quanto ela permanecia inacessível
para ele. Segundo artigo de Cromberg, acima mencionado, percebe-se nesse trecho uma
alusão, mesmo que vaga, à anterioridade das postulações teóricas de Sabina Spielrein,
sem que seja nomeada sua procedência.
Parece-nos que, neste trecho, ele deixa claro que se trata de duas expressões
diferentes, a agressão e a destruição. E acrescenta: “a mania de destruição dirigida para
dentro foge, quase sempre, à nossa percepção quando não está colorida pelo erotismo”
(ibidem). Conforme assinalamos no início do capítulo, Freud admite aqui sua atitude
defensiva quando a idéia de uma pulsão de destruição surgiu nos textos psicanalíticos.
Justifica-se apontando para o fato de que ninguém gosta de lidar com determinados
fatos, a saber, “a inata inclinação humana para o ‘mal’, a agressão, a destruição e, com
elas, também, a crueldade” (ibidem). Em uma nota de de página, assinala que na fala
de Mefistófeles, no Fausto de Goethe, a identificação do princípio do mal com a pulsão
de destruição causa profunda impressão. E que, ali, o oposto desta força não é o sagrado
mas sim a força da natureza para engendrar, para multiplicar a vida, ou seja, Eros.
Nesta nova concepção do funcionamento da alma, Freud reafirma que as
exteriorizações da força de Eros m o nome de libido, à diferença da energia das
pulsões de morte, que ele desconhece qual seja. Entretanto, apesar desse
desconhecimento, diz também que, apesar de nem tudo ser libido, esta está presente em
cada e toda exteriorização pulsional (ibid, p. 117). Acrescenta que a pulsão de morte,
quando não ligada com Eros, torna-se impossível de apreender e que a inferimos apenas
como um saldo, um resto como o resto de uma conta de dividir - após a passagem de
Eros. No sadismo, onde ela torce a seu favor a meta erótica, podemos compreender mais
claramente sua natureza e seu vínculo com Eros. Mesmo onde ela parece surgir sem
uma finalidade sexual, no que Freud chama de a mais cega fúria destrutiva, “não
podemos deixar de reconhecer que a sua satisfação se enlaça com um gozo narcísico
extraordinariamente elevado, na medida em que ensina ao eu a realização se seus
antigos desejos de onipotência” (ibidem).
Este trecho é de suma importância para o entendimento de dois destinos
possíveis das mesclas pulsionais: quando a meta é erótica e as pulsões de morte torcem-
na a seu favor, isto é impõem suas condições para a obtenção da satisfação, estamos
diante do sadismo. Isto significa que a meta primeira do sadismo continua sendo a
satisfação sexual e o papel das pulsões de morte é o de modificar este alvo,
transformando-o ao incluir determinados aspectos, a saber, o sofrimento, a humilhação
do objeto. Mas esse é um aspecto secundário: o produto resultante dessa intricação visa
primariamente a satisfação sexual. Quando a meta é primariamente ditada pela pulsão
de morte, estamos diante de, entre outras, pulsões de destruição. A finalidade da
satisfação sexual está presente mas o que aquela fusão pulsional visa alcançar, antes de
tudo, é a destruição do objeto. Goza-se com isso, é certo, que não é possível a
existência de uma pulsão isolada obter sua satisfação.
A mescla pulsional está sempre presente, em diferentes proporções e
modalidades de satisfação. O que modifica seus produtos é a quantidade e a qualidade
das moções pulsionais envolvidas, suas proporções. No caso daquilo que parece ser
puramente destruição está implicada uma satisfação sexual do tipo narcísico, em que o
eu, ao destruir o objeto, retoma, imaginariamente, sua condição primeira de não
diferenciação, de tudo englobar no si mesmo próprio, de narcisismo absoluto, irrestrito.
A identificação originária, fundadora desse narcisismo absoluto, pressupõe a
incorporação do objeto que, apenas admitido, é imediatamente aniquilado. A
agressividade é a tendência correlativa do modo de identificação narcísica que
determina a estrutura do eu. “A inclinação agressiva é uma disposição pulsional
autônoma, originária, do ser humano” (ibidem).
Uma das mais primitivas, primárias possibilidades de atualizar essa
agressividade é através da pulsão de destruição. Esta, “moderada e domada [se
comparada com a brutalidade da pulsão de morte], inibida em sua meta, dirigida aos
objetos, se forçada a proporcionar ao eu a satisfação de suas necessidades vitais e o
domínio sobre a natureza” (ibid, p. 119). Outra, ainda mais atenuada por Eros, mais
‘adiantada’, é através da pulsão de agressão. Outra ainda, implicando outras
características, é através da pulsão de dominação, ligada claramente à questão do
sadismo anal, conforme veremos.
No capítulo seguinte, o sétimo, Freud volta a tratar da pulsão de destruição,
dessa feita introduzindo uma comparação entre os humanos e os outros animais.
Estabelece que, à diferença do que provavelmente aconteceu no resto do reino animal,
no caso dos homens primitivos é provável que um embate entre a libido e o mundo
circundante tenha provocado, em contrapartida, uma nova renitência à pulsão de
destruição. Em continuação, Freud volta a falar, especificamente, da agressão. Ao
propor uma gênese do sentimento de culpa, Freud trabalha com a idéia do desamparo e
da angústia frente às perdas. Até quase o final do capítulo, a expressão usada será a de
agressão e moções agressivas. No penúltimo parágrafo desse capítulo, lemos que “...o
sentimento de culpa é a expressão do conflito de ambivalência, da luta eterna entre Eros
e a pulsão de destruição ou de morte” (ibid, p. 132).
Somos levados a concluir que Freud considera, algumas vezes, a pulsão de
destruição como um equivalente da pulsão de morte e que tanto a agressão quanto a
agressividade falam de um tipo de ação e de sentimento inerentes ao humano e que
derivam da pulsão de morte como resultado de seu enlace com Eros. Essa pulsão de
destruição, classificada de interior, pré-existente, é aquilo que o eu emprega, mesmo que
seja apenas um fragmento, em uma ligação erótica com o supereu. A angústia do eu
frente à instância crítica do supereu, que se manifesta como necessidade de castigo, é
uma exteriorização pulsional do eu que se tornou masoquista sob a influência do
supereu sádico.
Em 1932, Freud empreende uma troca epistolar com Einstein, a pedido da Liga
das Nações. Nesse artigo, intitulado Por que a guerra?, lemos o que se escreveu nessa
breve correspondência a respeito da destruição. Entre esse ensaio e o texto das reflexões
sobre a guerra e a morte, decorreram 18 anos. Em 1915, Freud se depara, atônito, com a
primeira Grande Guerra entre as nações tidas como as mais civilizadas do planeta.
Agora, sua perplexidade faz aumentar mas ele possui um novo arsenal conceitual
para explicar a conduta humana.
Einstein admite que a tendência do homem a fazer a guerra se justifica se
considerarmos que ele tem, dentro de si, um desejo de ódio e destruição, que encontra
nesse modo seu viés de expressão. Freud concorda com a suposição de Einstein e
acrescenta que essa pulsão a odiar e aniquilar [destruir] tem sido considerada pela
psicanálise, que nos últimos anos tem se dedicado a estudar suas exteriorizações. E
acrescenta:
“Supomos que as pulsões do ser humano são apenas de dois tipos: aquelas que
querem conservar e reunir as chamamos de eróticas, exatamente no sentido
de Eros no O Banquete de Platão, ou sexuais, com uma consciente ampliação
do conceito popular de sexualidade -, e outras que querem destruir e matar;
reunimos estas últimas sob o título de pulsão de agressão ou de destruição”
(FREUD, 1933a[1932]/1986, p. 192).
Prossegue afirmando, mais uma vez, que muito raramente a ação é obra de uma
única moção pulsional que, em si e por si, deve estar composta de Eros e destruição.
Entre os motivos para que o homem responda afirmativamente ao chamado para a
guerra se encontra o prazer de agredir e destruir. “O entrelaçamento das aspirações
destrutivas com outras, eróticas e ideais, facilita sua satisfação desde o começo” (ibid,
p. 193).
Na tentativa de melhor explicar a um leigo seus supostos teóricos, Freud diz que
gostaria de se demorar mais um pouco no exame da pulsão de destruição, nunca
apreciada em toda sua significatividade.”
“Ela trabalha dentro de todo ser vivo e se apressa em produzir sua
decomposição, em reconduzir a vida ao estado da matéria inanimada.
Mereceria com toda seriedade o nome de uma pulsão de morte, enquanto que
as pulsões eróticas representam os afãs da vida. A pulsão de morte torna-se
pulsão de destruição quando é dirigida para fora, em direção aos objetos, com a
ajuda de órgãos particulares” (ibid, p. 194).
Essa definição que Freud também se aplicaria à pulsão de agressão, como
vimos vendo até agora. Mas nesse trecho ele deixa bem claro que pulsão de destruição e
pulsão de morte são coisas distintas, facilitando nossa tentativa de elucidação.
Prossegue dizendo que o ser vivo preserva sua própria vida destruindo – ou pelo menos,
tentando – a vida alheia, conforme a balança que abordamos. Entretanto, diz ele, uma
parcela da pulsão de morte permanece ativa no interior do sujeito, produzindo toda uma
série de fenômenos normais e patológicos: a gênese da consciência moral do homem
pode ser explicada pela interiorização dessa pulsão, a que se soma um retorno da
agressão ao próprio sujeito. “O direcionamento dessas forças pulsionais para a
destruição do mundo externo alivia o ser vivo e não pode deixar de exercer um efeito
benéfico sobre ele” (ibidem). A doutrina mitológica das pulsões permite à psicanálise
encontrar uma explicação para a guerra e talvez uma forma indireta de combatê-la: se a
aquiescência com a guerra é um transbordamento da pulsão de destruição, podemos
apelar para sua força contrária, Eros, e tentar estabelecer mais e melhores ligações de
sentimentos entre os homens.
Fazendo coro a esse pensamento, gostaríamos de citar um pequeno trecho de
uma entrevista concedida por Antonio Negri a um jornal, em que ele afirma que o amor
é uma força de cooperação, de solidariedade, a grande força humana que constrói a
civilização. E que a civilização não é a força da violência mas sobretudo a do amor e da
solidariedade. “Não há um a priori, transcendental: são realmente formas de vida,
formas com que as pessoas se organizam, constituem sua sociedade, se juntam. Amor
como força imanente e ontológica, quer dizer, construída do ser.”
Também durante o ano de 1932, Freud empreende a redação das Novas
conferências de introdução à psicanálise, das quais nos interessa a de número 32,
Angústia e vida pulsional. Nesta Freud trata, mais uma vez, da sua nova teoria
pulsional.
“Nossa hipótese reside em que existem duas classes de pulsões de natureza
diferente: as pulsões sexuais compreendidas no sentido mais lato Eros, se
preferem essa denominação —, e as pulsões de agressão, cuja meta é a
destruição. (...) Parece uma tentativa de transfiguração teórica da comum
oposição entre amar e odiar, que coincide, quem sabe, com a outra polaridade,
atração e repulsão, que a física supõe existir no mundo inorgânico” (FREUD,
1933[1932]a/1986, p. 95).
Conforme podemos observar, nesse trecho a falta de rigor terminológico é
flagrante: Freud opõe a Eros as “pulsões de agressão, cuja meta é a destruição.” Além
de dar às pulsões de agressão o estatuto das verdadeiras pulsões de morte o que
tinha feito, igualmente, com relação às pulsões de destruição -, atribui a aquelas a meta
da destruição.
Logo adiante, retoma o tema do masoquismo, na tentativa de elucidar a relação
deste com a tendência à destruição: se não considerarmos seus componentes eróticos, o
masoquismo é a prova da existência de uma tendência que visa a destruição de si. Se,
além disso, considerarmos que o eu, ou mesmo o isso, a pessoa total, contêm dentro de
si todas as moções pulsionais, inclusive as destrutivas, então podemos postular uma
anterioridade ao masoquismo, em relação ao sadismo; este seria a pulsão de destruição
voltada para fora e que adquire, desse modo, o caráter de uma agressão. Novamente a
pouca precisão com os termos chama a atenção. Todavia, delineia-se, nesse trecho, uma
distinção entre masoquismo e satisfação das pulsões destrutivas voltadas para o si
mesmo: estas podem levar o sujeito à morte, pelo suicídio, enquanto o masoquismo
apenas impõe para sua satisfação as condições de ser maltratado, humilhado, subjugado.
“Um tanto da pulsão de destruição originária pode permanecer entretanto no
interior; parece que somente podemos percebê-la de maneira patente sob estas
duas condições: que se tenha conectado com pulsões eróticas para formar o
masoquismo ou que se volte para o mundo externo como agressão com um
maior ou menor suplemento erótico -. Neste ponto, impõe-se a s o valor da
possibilidade de que a agressão não possa encontrar satisfação no mundo
externo por bater em impedimentos reais. Se tal acontece, talvez volte atrás e
multiplique a escala da autodestruição que reina no interior (...). Uma agressão
impedida parece implicar grave dano; as coisas se apresentam de fato como se
devêssemos destruir outras pessoas ou coisas para não destruirmos a nós
mesmos, para nos pormos a salvo da tendência à autodestruição” (ibid, p. 97).
Freud retoma a questão da característica conservadora das pulsões, tema já
abordado em Além do princípio de prazer. As pulsões mostram um traço universal que é
o de reproduzir um estado anterior. Mas de que valerá esse traço conservador das
pulsões para compreender esse triste fato que é a autodestruição? Qual estado anterior
esta pulsão estaria querendo reproduzir? Nesse momento, Freud diz que, assim como a
vida surgiu da matéria inanimada, surgiu imediatamente uma pulsão que tenta cancelá-
la, reproduzindo o estado inorgânico. Se virmos nessa pulsão o que está por trás da
autodestruição, podemos conceber esta força como expressão de uma pulsão de morte,
que não pode estar ausente em nenhum processo ou fenômeno da vida. Assim, Freud
à pulsão de morte um outro estatuto que o da destruição: é ela que está no começo de
tudo e a destruição é apenas uma de suas expressões possíveis na vida anímica.
Em 1937, Freud escreve o artigo Análise terminável e interminável, onde a
questão da pulsão de morte e seus derivados vem à luz sob os aspectos da clínica e suas
dificuldades. Ao abordar as resistências à cura, que são as forças que se opõem ao êxito
terapêutico, Freud se frente àquilo que, por último, a exploração psicológica é capaz
de compreender: a conduta das duas pulsões primordiais, sua distribuição, intricação e
desintricação, coisas que não podem ser representadas limitadas a uma província do
aparato anímico (isso, eu ou supereu)” (FREUD, 1930/1986, p. 244). Entre as forças
que resistem, Freud identifica a consciência de culpa e a necessidade de castigo,
resultado da relação do eu com o supereu. Entretanto, se trata apenas da parte que foi
psiquicamente ligada pelo supereu; podem existir, em operação, outras parcelas dessa
mesma força, em forma livre e em lugares que não identificamos. Os fenômenos
resistenciais, entre eles a reação terapêutica negativa, talvez o mais ferrenho opositor ao
sucesso de um tratamento, “apontam de maneira inequívoca para a presença, na vida
anímica, de um poder que, por suas metas, chamamos de pulsão de agressão ou
destruição, e que derivamos da pulsão de morte originária, própria da matéria viva”
(ibidem). E volta a afirmar, na frase seguinte, de forma quase definitiva: Eros e pulsão
de morte são as duas pulsões primordiais, sempre intricadas, nunca sozinhas.
A seguir, Freud adverte que não devemos nos limitar a observações de material
patológico na tentativa de provar a atividade da pulsão de destruição. Vários fatos da
vida anímica normal podem ser explicados à luz dessa pulsão: o masoquismo simples, a
inclinação ao conflito, externo ou interno, entre outros. Defendendo-se da possível
incompreensão para sua nova teoria pulsional, a mesmo entre seus pares, Freud se
regozija de encontrar fundamento para ela num dos “grandes pensadores da aurora
grega” (ibid, p. 246). Ele sabe que a teoria dualista, que “pretende pôr uma pulsão de
morte, de destruição ou de agressão como co-participe com iguais direitos junto a Eros,
que se a conhecer na libido, encontrou em geral pouco eco.” O pensador a que se
refere é Empédocles de Agrigento, elaborador de uma especulação cósmica muito
ousada. Postulava a existência de dois princípios nos acontecimentos, tanto na vida do
mundo quanto na da alma: o amor e a discórdia. Constituem forças naturais de
eficiência pulsional, de modo algum inteligências conscientes de finalidades”; um
desses poderes, o amor, aspira a aglomerar em uma unidade as partículas primordiais; o
outro, quer desfazer todas essas misturas e separar entre si essas partículas primordiais..
“Os dois princípios fundamentais de Empédocles, amor e discórdia, são, tanto
em nome quanto em função, o mesmo que nossas duas pulsões primordiais,
Eros e destruição, a primeira empenhada em reunir o existente em unidades
cada vez maiores, a outra em dissolver essas reuniões e destruir os produtos por
elas gerados” (ibid, 247).
Por outro lado, diz Freud que deu uma infra-estrutura biológica ao princípio da
‘discórdia’ reconduzindo nossa pulsão de destruição à pulsão de morte, o esforço do
vivo em regressar ao inerte” (ibid, 247). Ou seja: conforme afirma Guillaumin, a pulsão
de morte só pode ser apreendida clinicamente através das expressões concretas da
destrutividade. Freud tenta inferir o trabalho da pulsão de morte, “irrepresentavelmente
primitiva”, na passagem: no trajeto de suas transformações, em suas encarnações e
metamorfoses, das quais a primeira e a principal é a mutação da pulsão de morte
originária em pulsão de destruição (GUILLAUMIN, 2000, p. 49, n. 2). Ele leva de volta
a pulsão de destruição, fenômeno vital e clínico observável, à sua origem, a pulsão de
morte, da qual podemos ter notícia através de seus derivados, resultantes de sua
intricação com Eros.
Em 1938, Freud escreve a obra que servirá de legado teórico aos seus
continuadores, conhecida como Esboço de psicanálise. No capítulo II da parte I,
“Doutrina das pulsões”, Freud retoma seus preceitos fundamentais e nos diz que aquilo
que ele chama de pulsões são as “forças que supomos como conseqüência das tensões
de necessidade do isso. Representam as exigências que faz o corpo à vida anímica.
Ainda que causa última de toda atividade, são de natureza conservadora” (FREUD,
1940[1938]/1986, p. 146).
Prossegue afirmando que existem duas pulsões básicas, Eros e pulsão de
destruição, mas que tal admissão se deu “após longas hesitações, longas
tergiversações.” A meta da primeira é produzir unidades cada vez maiores e, assim,
conservá-las; sua característica é a de ser e de efetivar uma ligação. A meta da outra, ao
contrário, é dissolver vínculos e, assim, destruir as coisas do mundo. Ora, destruir é, na
verdade a meta da pulsão de destruição mas o a da pulsão de morte, definitivamente
uma das duas pulsões básicas.
Seguindo Pontalis, gostaríamos de considerar a pulsão de morte se
caracterizando por um processo radical de desligamento, de fragmentação, de
desarticulação, de decomposição, de ruptura, e não de destruição propriamente
(PONTALIS, 2005, p. 260). Trata-se de uma força de des-ligação e de
desencadeamento, processo cuja única finalidade é realizar-se, processo ao qual o
caráter repetitivo imprime a marca do pulsional.
Como parece ser a meta última da pulsão de destruição “transportar o vivo ao
estado inorgânico”, escreve Freud que, por isso, também a chama de pulsão de morte.
“Se supomos que o vivo adveio mais tarde que o inerte e se gerou a partir deste, a
pulsão de morte responde à fórmula apontada, a saber, a de que uma pulsão aspira ao
regresso a um estado anterior” (FREUD, 1940[1938]/1986, p. 146). Ao aproximar as
pulsões básicas dos efeitos que elas produzem nas funções biológicas, afirma que “o ato
de comer é uma destruição do objeto com a meta última da incorporação; o ato sexual,
uma agressão com o propósito da união mais íntima” (ibid, p. 147).
Com essa frase, Freud abre uma perspectiva para que possamos prosseguir em
nossa tentativa de diferenciar os derivados das pulsões de morte, tomadas estas,
definitivamente, como uma das pulsões básicas, em contraponto a Eros. A destruição
está ligada à incorporação, à oralidade, e é nessa fase do desenvolvimento psicossexual,
a oral, que se define sua configuração e seu modo de relação com o objeto; sua meta é
fazer desaparecer o objeto, apagando os limites e diferenças que porventura se
estabeleceram entre este e o sujeito. A incorporação do objeto pode ser considerada, a
nosso ver, como já um movimento defensivo do aparelho que está se constituindo. A
possibilidade de existência de algo fora do si mesmo é produtora de desconforto e faz
surgir a agressividade. A identificação, correlata da incorporação e constitutiva do eu
ideal e do narcisismo originário, se articula com o surgimento da agressividade.
Conforme o texto freudiano Totem e Tabu, identificação e incorporação são apenas duas
faces de uma mesma moeda: a fratria se funda na exclusão, na morte e no devoramento
– na destruição - do pai (SACEANU, 2001, p. 79).
A agressividade já está presente na ligação entre identificação narcísica e o
aniquilamento do objeto mas não é a mesma coisa que a destrutividade. Ela pode ou não
ser usada com finalidades destrutivas. A tensão induzida pela exterioridade e estranheza
do outro contém os fundamentos da agressividade. Como escreve Freud na citação
acima mencionada, a agressão está presente e caracteriza o ato sexual, onde a finalidade
não é a destruição do objeto mas sim a fruição dele. Nesse ato, estão implicadas a
agressividade, por assim dizer constitutiva do sujeito, a agressão e a dominação, como
examinamos no capítulo referente a esse derivado. A incorporação não acontece sem a
destruição do objeto; a união mais íntima que compreende o ato sexual o se efetua
sem a presença da agressão e da dominação, mas o objeto é mantido; do contrário, sem
sua presença, a fruição deixaria de existir.
Prossegue Freud afirmando que existem diferentes produtos da mescla pulsional
e que as alterações em sua proporção são responsáveis por essas diversas
conseqüências. “Um forte suplemento de agressão sexual faz do amante um assassino
estuprador; uma intensa diminuição do fator agressivo, o torna tímido ou impotente”
(FREUD, 1940[1938]/1986, p. 147). Ou seja: se os componentes eróticos diminuem, os
agressivos, sempre presentes, sofrem um incremento, resultando num aumento da
possibilidade de destruição.
Inicialmente, toda a energia disponível de Eros, a libido, está presente no eu-isso
indiferenciado e é usada na tarefa de neutralização das inclinações destrutivas, também
presentes. Observa Freud que não existe termo análogo a libido para qualificar a energia
das pulsões de destruição. Na verdade, pensamos, as pulsões de destruição utilizam a
própria energia libidinal, torcendo a meta sexual a seu favor; as pulsões de morte, estas
sim originárias, não possuem nenhuma energia. Podemos considerá-las como pura
força, tema a que nos referimos no capítulo dedicado a estas pulsões.
Ao contrário dos destinos da libido, em estados posteriores, relativamente fácil
de se entender, os destinos da pulsão de destruição mostram-se bem mais enigmáticos.
A primeira indagação que surge é a respeito da possibilidade de sua sublimação,
processo identificável no que diz respeito às pulsões sexuais. A pulsão de destruição,
enquanto mantida no interior do sistema, sob o modo de pulsão de morte, “permanece
muda; comparece diante de nós quando é voltada para fora como pulsão de
destruição” (ibid, 148).
Com o advento do supereu, parte da pulsão de agressão é fixada no interior do eu
e ali exerce efeitos autodestrutivos. Talvez fosse mais rigoroso dizermos que a
instauração do supereu permite que parcelas das pulsões de morte ligadas eroticamente
encontrem acolhida na instância crítica surgida a partir de modificações ocorridas no eu
e, sob a forma de sadismo, se abata sobre este. Sob determinadas circunstâncias, ditadas
pela história do sujeito e sua singularidade, podem redundar em uma moção
autodestrutiva, levando-o ao suicídio; além disso, em formas menos agudas, pode se
expressar em atos auto-agressivos. Conforme foi mencionado algumas vezes,
estabelece-se uma balança entre o eu próprio e os objetos: reter a agressão pode
produzir um efeito patogênico. Mesmo sem chegar ao extremo da autodestruição, uma
agressão impedida de se manifestar na direção dos objetos pode levar a ações agressivas
contra a própria pessoa, caso ilustrado por pessoas acometidas de ataques de fúria, que
se golpeiam, puxam os próprios cabelos, etc. “Uma parte de destruição de si permanece
no interior, sejam quais forem as circunstâncias, até que finalmente consegue matar o
indivíduo, talvez apenas quando a libido deste se tenha consumido ou fixado de uma
maneira desvantajosa” (ibidem).
No capítulo seguinte, O desenvolvimento da função sexual”, Freud menciona
os impulsos sádicos encontrados tanto na fase oral da organização libidinal quanto, e
mais ainda, na fase dita sádico-anal. Nesta, a satisfação é obtida na agressão e na função
de excreção. Justifica-se pelo fato de incluir sob a égide da libido as aspirações
agressivas a partir da concepção de que o sadismo resulta de uma intricação pulsional de
aspirações puramente libidinais com outras destrutivas puras, mistura essa que não é
nunca mais cancelada (ibid, p. 152). Numa nota de pé de página, Freud retoma a
questão de se é possível a satisfação de moções pulsionais puramente destrutivas ser
sentida como prazer, se estivermos diante de uma destruição pura sem suplemento
libidinal. A essa indagação, Freud respondeu no texto O mal-estar na cultura, como
vimos. Entretanto, na nota, Freud prossegue seu pensamento dizendo que uma
satisfação da pulsão de morte que permaneceu no interior do eu não parece trazer
sensações de prazer, se bem que o masoquismo constitui uma mescla inteiramente
análoga ao sadismo. Pode o parecer mas o é isso que de fato acontece. Dito isso,
podemos entender que não mesmo a menor possibilidade de uma satisfação
pulsional, de que tipo for, sem o concomitante ganho de prazer, por menos visível que
seja. A intricação pulsional é condição de todo e qualquer funcionamento das pulsões,
mesmo, como Freud diz no texto acima mencionado, na mais pura fúria destrutiva. Não
há satisfação pulsional sem o envolvimento de libido nela.
Na segunda parte do trabalho, a que trata da tarefa prática, e no capítulo VI, “A
técnica psicanalítica”, Freud embrenha-se, mais uma vez, na questão das resistências.
“Vencer as resistências é a parte de nosso trabalho que demanda mais tempo e o
máximo de empenho” (ibid, p. 179). Apesar das dificuldades, é um trabalho
amplamente recompensado pelas produtivas alterações do eu que alcança. Entretanto, há
uma forma da resistência que cria obstáculos difíceis para serem removidos: é aquela
levada a cabo pela compulsão à repetição e seu fundamento pulsional, a pulsão de
morte.
“Entre os neuróticos, pessoas em quem, a julgar por todas as suas reações, a
pulsão de autoconservação experimentou nem mais nem menos que uma
transformação em seu oposto {Verkehrung}. Parecem não almejar outra coisa
senão danificar-se e destruir-se a si mesmas. Talvez pertençam também a este
grupo as pessoas que finalmente perpetram realmente o suicídio. Supomos que
nelas efetuaram-se vastas desfusões de pulsão, em conseqüência do que houve
uma liberação de quantidades hipertróficas da pulsão de destruição voltada
para dentro” (ibid, p. 180).
Estas pessoas não toleram o fato de melhorar com o tratamento e lutam contra
isso com todos os meios. A hostilidade presente na vida dos seres humanos primeiro se
fez notar por Freud, clinicamente, no âmbito da transferência, fazendo-o, desde muito
cedo, voltar-se para o exame dessas forças. Aqui, em seu último texto, ele retoma a
questão das resistências, em especial daquela a que deu o nome de reação terapêutica
negativa. Diante dos fenômenos constatados, invoca a possibilidade de grandes
quantidades de pulsão de morte que ele aqui chama de pulsão de destruição terem
sido liberadas em conseqüência de uma desintricação pulsional. A própria desintricação,
sabemos, ocorre por um débito dos componentes eróticos. As pulsões de morte, não
ligadas e voltadas contra o próprio sujeito, podem finalmente levá-lo à morte, razão pela
qual as pulsões que se opõem a Eros receberam essa denominação.
No capítulo VIII da parte III, “O aparelho psíquico e o mundo externo”, Freud
trata da estrutura do aparelho psíquico. Reafirma que o núcleo de nosso ser está
constituído pelo obscuro isso, que não não mantém relações com o mundo externo
como só é acessível ao nosso conhecimento pela mediação de outra instância. Constitui
o que de nós pertence à categoria do incognoscível, dele podemos fazer inferências,
intermediadas.
“Dentro do isso exercem sua ação eficiente as pulsões orgânicas, elas próprias
compostas de fusões de duas forças primordiais (Eros e destruição) em
proporções variáveis e diferenciadas umas das outras por sua referência a
órgãos e sistemas de órgãos. A única coisa que estas pulsões querem alcançar é
a satisfação, que se espera de alterações precisas nos órgãos, com auxílio de
objetos do mundo externo. Porém, uma satisfação pulsional instantânea e sem
nenhuma limitação, tal como o isso a exige, freqüentemente levaria a conflitos
perigosos com o mundo externo e ao aniquilamento destruição)” (ibid,
p. 199).
Logo na gina seguinte, ao abordar a idéia de que o princípio de prazer pede
um rebaixamento, talvez no fundo uma extinção, das tensões de necessidade o que o
aproximaria, com efeito, do princípio de Nirvana Freud sugere que existem
vinculações ainda não devidamente consideradas do princípio de prazer com as duas
forças primordiais. E aqui ele as nomeia como Eros e pulsão de morte. Um pouco mais
adiante, ao analisar as relações do eu com o mundo externo e com as demais instâncias,
Freud alerta para o fato de que o próprio isso é uma fonte de perigos para o eu, em tudo
semelhante aos perigos que provêm do mundo externo, físico, com seus estímulos
hipertróficos. Diz ele que intensidades pulsionais imensas podem danificar o eu quase
da mesma forma que os estímulos da realidade objetiva: na verdade, essas intensidades
pulsionais não são capazes de aniquilá-lo mas sim de destruir a organização dinâmica
que lhe é própria, de fazer novamente do eu uma parte do isso. Como verificamos, aqui
Freud se refere à destruição da mesma maneira que o fazia no início de seus escritos,
sem considerar propriamente a questão da pulsão de destruição.
V. Domínio, dominação, pulsão de dominação
Though they go mad they shall be sane,
Though they sink through the sea they shall rise again;
Though lovers be lost love shall not;
And death shall have no dominion.
Dylan Thomas, Under Milk Wood.
Should it be said, that, by living under the dominion of a prince, which
one might leave, every individual has given a tacit assent to his
authority…
David Hume, Essays, Moral, Political, and Literary.
Herrschen Lernt sich leicht, regieren schwer.
Goethe, Literatura e Vida.
Segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa
(CUNHA, 1986, p. 276), tanto domínio quanto dominação derivam do verbo dominar,
que significa ter autoridade ou poder sobre, assim como conter, reprimir. O verbo
dominar, por sua vez, deriva do latim dŏmĭnāre, que se relaciona com dŏmĭnus, senhor,
dono. Dominação vem do latim dŏmĭnātĭo ōnis, domínio de dŏmĭnĭum –ii. Segundo o
Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (FERREIRA, 2004, p. 699), dominação
significa exercício do poder sobre indivíduos ou grupos; é sinônimo de domínio, que
implica os sentidos de autoridade e poder. É interessante observar que um dos sentidos
de dominar, em português, é o de ter conhecimento, saber: domina-se um idioma ou
uma disciplina.
Acrescenta o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS, 2001, p.
1075) que dominar, com o significado de se apoderar, tem também o sentido figurado
de apossar-se moral e/ou psicologicamente de alguém. Sugere como sinônimos os
verbos conquistar, segurar e tomar, todos coerentes com o campo semântico da pulsão
em questão.
Na verdade, o termo usado por Freud para designar aquilo que em português
convencionou-se chamar de pulsão de dominação, Bemächtigungstrieb, seria mais
corretamente traduzido por pulsão de apoderação ou apoderamento, já que o verbo
[sich] bemächtigen, reflexivo, de onde deriva o substantivo, significa apoderar-se de. É
certo que a idéia de poder está implícita no verbo dominar e acaba-se por adotar o termo
cujo uso é o mais freqüente. O termo Bemächtigung evoca alguma violência e refere-se
a tomar um objeto externo para si à força (HANNS, 1996, p. 170). Die Macht, em
alemão, denota o poder, o império, até mesmo a força no sentido militar. Dessa forma,
Bemächtigung implica a idéia da apropriação pela força. Aquilo a que o sujeito se dirige
para “tomar” ou “apoderar-se” é um objeto externo, outro que o si-mesmo; o verbo sich
bemächtigen, que geralmente se refere a objetos externos, é diferente do verbo dominar,
bewältigen, que veremos a seguir, que pode ser usado para designar o controle que o
sujeito tem sobre as próprias capacidades ou tendências internas; liga-se, também, à
idéia de certa violência, de subjugar à força. A palavra poder deriva do latim vulgar
pŏtēre, por posse.
A palavra que tradicionalmente traduz Bemächtigungstrieb para o francês,
emprise, está relacionada a entreprendre, que significa, originariamente, pegar com a
mão, agarrar. Emprise é o particípio passado substantivado de emprendre, que tem o
mesmo sentido de entreprendre, derivado do latim °imprehendere. Emprise tem
também o sentido de autoridade, império, influência, ascendência, além do sentido
corrente mais comum que é o da dominação, intelectual ou moral.
O primeiro psicanalista a propor a tradução de Bemächtigungstrieb por pulsion
d’emprise foi Béla Grunberger, numa conferência pronunciada perante a Société
Psychanalytique de Paris, em outubro de 1959, publicada, um ano depois, no número 2
da Revue Française de Psychanalyse. Na segunda parte desse artigo, Grunberger, ao
referir-se à dualidade anal sujeito-objeto, aponta para o fato de sua forma ideal ser a
dupla amo-escravo. Acrescenta que essa terminologia retoma sua significação literal na
relação objetal aparentemente invertida que é o masoquismo. Afirma que se trata, neste
caso, de “uma posição fundamental que não é somente um meio submetido a uma
finalidade que o supera, mas um fim em si, que a fase genital deve integrar mais
tarde” (GRUNBERGER, 1979, p. 146-7). Entre parênteses, escreve que “Freud falava
de Bemächtigungstrieb, igual a [=] pulsão de dominação”, propondo então a tradução.
Daniel Lagache, em 1962, mesmo sem utilizar o termo, insiste na importância das
relações de poder na organização da personalidade (LAGACHE, 1973, p. 75-82).
O Vocabulário da Psicanálise, cuja primeira edição é de 1967, traz a primeira
reflexão moderna sobre o termo, marcando seu reaparecimento na metapsicologia
psicanalítica (LAPLANCHE & PONTALIS, 1970, p. 512-15). Mas é somente em 1981,
no número 24 da Nouvelle Revue de Psychanalyse, intitulado “L’emprise”, e que
utilizaremos diversas vezes, que o interesse em torno do conceito é definitivamente
relançado.
De acordo com Fédida, a tradução de Bemächtigungstrieb por pulsão de
dominação pulsion d’emprise -, mesmo estando muito próxima da designação de uma
violência pulsional que busca tomar de assalto um objeto e dominá-lo pela força, como
acontece na crueldade e no amor, opera um ligeiro deslizamento semântico que conduz
a não fazer derivar a dominação da existência de uma pulsão específica, ou mesmo de
uma forma da pulsão de morte colocada a serviço da pulsão sexual (FÉDIDA, 1981,
p. 171).
Segundo Roger Dorey, em seu artigo “La relation d’emprise” (DOREY, 1981, p.
117), que propõe estudarmos a pulsão de dominação no campo da intersubjetividade
onde ela seria investigada no registro de uma relação de dominação -, há três correntes
semânticas do termo francês emprise, referidas a três dimensões principais da questão.
O primeiro sentido, e que corresponde ao termo Bemächtigung, é aquele que evoca a
idéia de captura, de presa ou ainda de arresto. Afirma o autor que esta é, aliás, a
significação antiga da palavra, a qual, no século XVII, em linguagem jurídica,
designava a ação de tomar terrenos por expropriação, sendo que este ato era resultante
de um atentado contra a propriedade privada, sendo, portanto, um ato administrativo
ilegal. Diz o autor que, no nível interpessoal, trata-se de uma ação de apropriação por
des-possessão do outro. Seria um confisco, representando uma violência infligida e
suportada, que traz prejuízo ao outro, que assim reduzida sua liberdade. A segunda
dimensão, inseparável da primeira, é a da dominação em si: dominação moral ou
intelectual exercida sobre um indivíduo. Apesar de derivar da expressão jurídica antiga,
esta significação adquire sua própria especificidade. Uma terceira significação do termo
aparece como a conseqüência da dupla ação de apropriação e de dominação, que não
pode ser exercida sem que dela resulte a inscrição de um traço, de uma marca. Aquele
que exerce sua dominação grava sua “impressão” – empreinte - sobre o outro.
Ainda segundo esse autor, Freud apresenta a pulsão de dominação em três
tempos: no primeiro, a dominação seria a finalidade de uma pulsão específica o-
sexual; no segundo, vincula-a ao sadomasoquismo; no terceiro, a dominação seria uma
expressão da pulsão de morte. Desse fato decorre a ambigüidade do conceito, que
aponta para o impasse no qual se encontra o plano conceitual.
Em espanhol, a tradução escolhida é a de pulsión de apoderamiento.
No texto freudiano, encontra-se também, com certa freqüência, o termo
Bewältigung, que pode ser traduzido por domínio, em português, e maîtrise, em francês,
para designar o fato de alguém se tornar senhor da excitação, quer seja ela pulsional,
quer seja de fonte externa. Este se assenhorear da excitação corresponderia ao fato de
ligá-la psiquicamente. Essa função de dominar o afluxo de energia que chega ao
aparelho psíquico, significando ligar a energia até então em estado livre, é uma função
primordial do aparelho e está propriamente num além do princípio do prazer. Constitui
uma atividade do aparelho que, mesmo sem ser contraditória com o princípio de prazer,
é anterior e independente dele. Essa função de tentar dominar a energia livre e fluente,
essa necessidade de assenhorear-se dela é primordial e opera como “um ato preparatório
ao exercício do princípio do prazer” (DERRIDA, 1980, p. 421). Esse ato de ligação é a
condição prévia para o domínio do princípio do prazer e antecede a instauração e
posterior vigência deste princípio. Interessante articulação: ao dominar a excitação que a
ele chega, o aparelho psíquico, que assim se constitui, prepara a base para que o
princípio de prazer se instale e ao mesmo tempo passe a regê-lo. A dominação da
excitação, pela ligação, permite que o aparelho se submeta ao domínio do princípio de
prazer.
Conforme Freud escreve em seu texto de 1920, cada vez que, mesmo diante de
um aparelho psíquico estruturado conforme seus princípios e funcionando segundo
seus processos, o domínio sobre o afluxo de excitação se tornar impossível, como numa
situação traumática, então, novamente, o aparelho voltará a funcionar segundo a
exigência mais primitiva a da contenção da pura dispersão de energia e colocará
entre parênteses, até poder novamente retomar o controle e resolver o problema, a
vigência e o domínio do princípio de prazer. Essa é a idéia de um além desse princípio,
ou melhor, de um aquém, de um tipo de funcionamento mais rudimentar e inicial, em
que se trata tão somente de impedir que uma quantidade muito grande de excitação
aniquile o aparelho.
Assim, o termo Bewältigung aparece num texto de 1895, sob sua forma verbal,
onde se lê, referindo-se à prática do coitus reservatus, que este “influencia perturbando
a prontidão para a relação sexual, pois introduz outra tarefa psíquica, uma tarefa que
distrai, junto com a de dominar {bewältigen} o afeto sexual” (FREUD,
1895[1894]/1986, p. 110). No artigo sobre o narcisismo, deparamo-nos com a mesma
idéia no trecho em que se que “entendemos nosso aparato anímico sobretudo como
um meio que recebeu o encargo de dominar excitações que, em caso contrário,
provocariam sensações penosas ou afetos patogênicos” (FREUD, 1914a/1986, p. 82). A
elaboração psíquica, ou seja, a possibilidade de ligar determinada excitação e, dessa
forma, dominá-la, é indispensável à economia e à dinâmica do aparelho anímico.
Encontramos também o substantivo Überwältigung, derivado do verbo
bewältigen, com o mesmo sentido do francês maîtrise. O verbo bewältigen, ao remeter
também ao processo de enfrentar e dar conta de uma tarefa, acaba por evocar um certo
trabalho, um esforço a ser despendido. Implica, via de regra, uma superação, um
empreendimento bem-sucedido e um enfrentamento custoso por ser o obstáculo algo de
certo porte. Bewältigen é uma palavra do mesmo grupo semântico de Gewalt, violência,
força. Uma situação fora de controle, uma vez dominada {bewältigt}, pode sempre
retornar ao estado anterior; o domínio não implica um controle total e completo. É
interessante observarmos que, dentro do mesmo campo de sentido, temos o verbo
vergewaltigen, em português estuprar. Num outro viés de interpretação, lemos que
Überwältigung tem conotações com walten governar, reinar; menciona-se também a
expressão walten über, com o significado de dispor de, velar sobre. Dessa forma, die
Überwältigung designaria uma dominação por uma força tranqüila, que mantém o
objeto sob as vistas e à mão, seguro e vigiado (GANTHERET, 1981, p. 105).
Segundo Dorey, apesar de Freud por vezes fazer um uso indistinto dos termos
Bewältigung e Bemächtigung, devemos compreender que eles possuem sentidos não
diferentes como mesmo opostos. Enquanto Bemächtigung, traduzido, em francês, por
emprise, tem para ele o valor de uma produção regressiva e defensiva, fundamentada na
negação da realidade da falta do objeto, Bewältigung, a maîtrise, ao contrário, se
apresenta como sustentada pelo reconhecimento e a aceitação desta falta (DOREY, op.
cit., p. 113). E acrescenta que, do ponto de vista do jogo pulsional, a maîtrise, que
traduzimos, em português, por domínio, contrariamente à dominação, a emprise, fala de
uma intricação pulsional muito avançada, da qual é mesmo um representante
privilegiado.
Em Pulsões e destinos de pulsão, de 1905, Freud escreve que “...não nos
escandalize no momento a imprecisão desta idéia, e atribuamos ao sistema nervoso o
encargo (dito em termos gerais) de dominar os estímulos {Reizbewältigen}” (FREUD,
1915a/1986, p. 115).
A idéia volta a ser apresentada a seguir ao escrever Freud que
“quando ainda verificamos que até mesmo a atividade do aparelho psíquico
mais desenvolvido está sujeita ao princípio de prazer, isto é, que ela é
automaticamente regulada por sentimentos pertencentes à série prazer-
desprazer, dificilmente poderemos rechaçar outra premissa, segundo a qual
essas sensações refletem a maneira pela qual se realiza o domínio
{Bewältigung} dos estímulos” (ibid, p. 116).
Mais adiante, em Além do princípio de prazer, Freud escreve que “estes sonhos
[da neurose traumática] tentam recuperar o domínio sobre o estímulo por meio de um
desenvolvimento de angústia (...)” (FREUD, 1920/1986, p. 31). Até esse momento, o
aparato anímico “teria a tarefa prévia de dominar ou ligar a excitação (...)”.
E também que
“não mais possibilidade de impedir que o aparato anímico seja inundado
com grandes quantidades de estímulos: em vez disto, outro problema surge, o
de dominar as quantidades de estímulo que irrompem, e de ligá-las {binden},
no sentido psíquico, a fim de delas se possa então desvencilhar” (ibid, p. 36).
Deste modo, compreendemos que, aqui, o sentido de dominar os estímulos é
aquele de ligá-los.
Consideramos que existe uma analogia e uma diferença entre dominação do
objeto à qual diz respeito especificamente a pulsão de dominação e domínio da
excitação. Novamente em Além do prinpio de prazer, para explicar a repetição da
brincadeira infantil do fort-da, assim como os sonhos da neurose traumática, Freud
sugere que podemos “atribuir esse afã a uma pulsão de dominação
{Bemächtigungstrieb}, que atuaria com independência de a lembrança em si mesma ser
prazerosa ou não” (ibid, p. 16). A dominação do objeto, no caso, seria correspondente à
ligação entre a recordação traumática e a energia que a investe, no sentido de domínio
que acabamos de abordar.
Entretanto, as diferenças entre dominação e domínio, no uso teórico que lhes
Freud, são patentes. A pulsão de dominação é um dos derivados das pulsões de morte e
designa uma modalidade e uma proporcionalidade de mescla pulsional a que nos
referiremos a seguir; visa um objeto e sua meta é ditada pela presença das pulsões de
morte, que lhe seu colorido característico. Apresenta-se sob diversas formas, entre
elas a necessidade de controle, as condutas tirânicas, a vontade de poder. Segundo
Dorey, são grandes as dificuldades de circunscrever o conceito que, a seu ver, é
ambíguo (DOREY, op. cit., p. 138). Tanto pode ser visto como a força na origem da
brincadeira infantil, caso do texto de 1920, quanto apenas um avatar das pulsões de
morte, com tendências claramente destrutivas, conforme o texto sobre o masoquismo,
de 1924. Considera que o maior problema é a tendência a aproximar a pulsão de
dominação à ação da pulsão de morte, o que tornaria o conceito dificilmente utilizável, e
cujo manejo seria muito delicado. Propõe como saída vermos a pulsão de dominação
como um modo de relação com o objeto, como resíduo da relação arcaica com o objeto
primordial. Ela tende tanto a traduzir a ação unificadora das pulsões de vida quanto a
ação destrutiva das pulsões de morte; nesse último caso, a desintricação predominaria
claramente sobre a intricação pulsional.
Para fugir das ambigüidades, e escapar ao mesmo tempo de uma visão
puramente fenomenológica da questão, Denis propõe que se dissocie a pulsão de
dominação de sua referência à pulsão de morte (DENIS, 1997, p. 26). Segundo esse
autor, a tese de uma pulsão de dominação autônoma, não-sexual, como postulada
inicialmente por Freud, não se sustenta e levaria à postulação de um eu também
autônomo, possibilidade que contraria a base da teoria psicanalítica. Em decorrência
disso, a pulsão de dominação tem de ser vinculada ou à sexualidade ou à pulsão de
morte: Freud a vincula a ambas. Denis tampouco concorda com a posição de Bergeret
em sua análise da violência fundamental, onde a pulsão de dominação é apresentada
como uma pulsão completamente à parte, como uma das pulsões fundamentais
(BERGERET, 2000). Sua discordância se baseia no fato de não considerar a pulsão de
dominação como uma pulsão particular – aliás, o autor se refere quase sempre a instinto
e não a pulsão -, autônoma, mas como “um registro libidinal da construção pulsional
ligado a ‘fontes’ corporais de excitação que formam o aparelho de dominação” (DENIS,
op. cit., p. 20).
Como toda pulsão, a de dominação fala de uma atividade, de um pôr em
movimento uma tendência do aparelho anímico, de um caráter propriamente pulsional
{triebhaft} e esforçante {drängend}. o domínio, para o qual os verbos alemães
usados são bewältigen, beherrschen e bändigen, diz respeito a situações bastante
diferentes daquela referida à pulsão de dominação e ligeiramente distintas entre si;
bewältigen aponta para uma tentativa do aparelho em dominar os estímulos pulsionais
{Triebreize} que o atingem e o ameaçam de aniquilamento, de neutralização, e tanto
beherrschen quanto bändigen expressam uma tentativa por parte do eu em dominar a
pulsão, em refreá-la. No primeiro caso, é uma tentativa de contenção da pura dispersão
de energia e conseqüente inundação do aparelho por uma avassaladora excitação; no
segundo, um esforço do eu no sentido de proteger-se de demandas pulsionais perigosas
e ameaçadoras, causadoras de desprazer. Além desse sentido, Freud usa beherrschen
para referir-se a um domínio de si, do corpo próprio, e menciona a questão como sendo
uma tendência primária para o domínio de si mesmo. Em Pulsões e destinos de pulsão,
após afirmar que o sadismo, desde o começo, se dirige a um objeto estranho, escreve
que são patentes os esforços da criança que quer tornar-se senhora {Herr werden} dos
seus próprios membros” (FREUD, 1915a/1986, p. 125).
Encontram-se ainda no texto freudiano as formas Beherrschung, com o sentido
acima mencionado, o de tornar-se senhor, dono, e Bändigung der Triebe, com o
significado de domesticação das pulsões.
Também em O problema econômico do masoquismo, Freud escreve que “nos
falta todo o saber fisiológico acerca dos caminhos e dos meios pelos quais possa dar-se
esta domesticação {Bändigung} da pulsão de morte pela libido” (FREUD, 1924a/1986,
p. 170).
Novamente, em Análise terminável e interminável, de 1937, lemos que, a
respeito de uma imaginada “resolução duradoura de uma exigência pulsional”, nada
mais podemos querer do que, em termos aproximados, a “domesticação da pulsão”
{Bändigung} (FREUD, 1937a/1986, p. 227). Adiante, tentando responder a pergunta
sobre como se explicaria a inconstância de nossa terapia analítica, escreve que nem
sempre alcançamos nosso propósito de “substituir os recalques permeáveis por
domínios {Bewältigungen} confiáveis e adequados ao eu”. E isso porque nem sempre
atingimos aquilo que a análise reivindicou para si, a saber, “as bases para o governo
sobre o pulsional” {Triebbeherrschung} (ibid, p. 232).
Podemos resumir dizendo que, por um lado, temos o dominar a energia pulsional
para, uma vez ligada, ser encaminhada pelas melhores vias; do outro, a tarefa de
dominar o objeto para fazer uso dele. Depois examinaremos a especificidade dessa
utilização.
Encontramos em Denis uma proposta teórica bastante diferente da posição até
aqui adotada: em seu livro Emprise et satisfaction, o autor sugere uma teoria na qual a
dualidade pulsional não oporia duas categorias de pulsões mas sim organizaria a própria
pulsão (DENIS, op. cit., p. 9). Conforme já foi dito, ele também considera que a palavra
dominação recobre o campo do poder mas aponta para o fato de a idéia que ela veicula
se inscrever quase sempre num registro fenomenológico, descrevendo condutas e
comportamentos que designam a ação de se apropriar. Além disso, propõe que se
resgate a riqueza potencial desta noção, abandonada por Freud, e que tomemos a pulsão
de dominação como um dos pólos da organização pulsional. Segundo este autor, uma
retomada do interesse pelas questões levantadas pela pulsão de dominação corresponde
a interrogações contemporâneas sobre o próprio conceito de pulsão, sobretudo o de
pulsão de morte. Questiona as duas teorias pulsionais e as duas tópicas freudianas como
uma tendência à simplificação: essa sistematização estaria equivocada por juntar, por
exemplo, textos diversos, como os Três ensaios, de 1905, o artigo sobre a perturbação
psicogênica da visão, de 1910, e o artigo sobre a teoria do narcisismo, de 1915, como se
todos pudessem pertencer a uma mesma categorização. Segundo Denis, Freud teria
proposto efetivamente quatro teorias pulsionais ou quatro tempos para a teoria, a saber:
primeiro, a que opôs pulsões sexuais a pulsões de dominação; segundo, a que trabalhou
com as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação; segue-se a oposição entre
pulsões sexuais e narcisismo para finalmente Freud postular a grande e final oposição
entre pulsões de vida e pulsões de morte.
Este autor experimenta uma premência metapsicológica” em imaginar um
sistema que conta da própria textura da pulsão, de seu funcionamento constitutivo;
para isso, propõe um modelo que considerará a gênese e o funcionamento da
organização pulsional a partir do jogo dos investimentos libidinais segundo duas vias
ligadas uma à outra, descrevendo uma espécie de movimento recíproco no qual se
elaborará a pulsão. Quer, na verdade, reconstituir a teoria das pulsões fazendo da
dominação uma noção central e reconsiderar, a partir daí, o conjunto da teoria
psicanalítica. Para atingir essa finalidade, o autor tomou um partido e fez uma releitura
orientada dos textos freudianos e utilizou, de forma também orientada, ou mesmo
parcial, artigos de autores cujos modelos se aproximam, de alguma maneira, do seu
(ibid, p. 11).
Postula que a noção de Bemächtigungstrieb é apenas considerada como um
“vestígio”, se o sem interesse pelo menos completamente secundário: por que isso?
Será que a noção foi abandonada por razões de conjuntura teórica e polêmica, polêmica
com Adler e Jung, o que poderia fazer com que a teoria da libido fosse relegada a um
segundo plano ou abandonada? Sugere o autor que o vínculo que Freud estabelece entre
pulsão de dominação e “pulsões que aparecem de forma relativamente independente das
zonas erógenas”, como o prazer de ver e de exibir, e a “crueldade”, segundo o texto dos
Três ensaios, poderia ter sido utilizado no sentido de Adler, para defender sua iia de
uma agressividade autônoma, de uma vontade de poder independente da libido. De fato,
em Adler, a agressão acaba sendo apresentada como a pulsão principal, sobretudo
devido à sua teoria da inferioridade dos órgãos. A teoria adleriana da agressão,
apresentada na reunião científica de 3 de junho de 1908, com o título “O sadismo na
vida e na neurose”, afirma que “a força pulsional nasce naqueles sujeitos saudáveis (...)
de duas pulsões originariamente separadas que sofreram, mais tarde, um
entrecruzamento; por causa desse entrecruzamento a resultante sadomasoquista
corresponde a duas pulsões ao mesmo tempo, a pulsão sexual e a pulsão de agressão”
(NUNBERG & FEDERN, 1979a, p. 408).
Concordamos que Freud efetivamente liga, de forma estreita, dominação e
agressividade. E que não deu a esse conceito o desenvolvimento que mereceria uma
noção central de sua teoria; tampouco seus discípulos desenvolveram suficientemente o
conceito. Acrescenta Denis que o destino da noção de pulsão de dominação estaria
então selado: ficará em estado de esboço, para que a libido permaneça em primeiro
plano, e será, depois, eclipsada pelo conceito de pulsão de morte.
Segundo Derrida, existe, indissociável do conceito de Bewältigung, que ele
traduz como exercício do poder, da dominação ou da posse, movimento de apropriação,
o conceito de pulsão de poder, isto é, da habilitação, aquilo que está por trás do ‘eu
posso’. Esta pulsão de poder anunciaria, sem dúvida, “antes e para além de qualquer
princípio, antes e para além mesmo de qualquer poder, um dos lugares de articulação do
discurso psicanalítico freudiano com as questões jurídicas e políticas em geral”
(DERRIDA, 2000, p. 48). O autor aponta para uma dupla problemática da soberania e
da crueldade presente nos dias de hoje; para seguí-lo, teríamos que entrar em outro
registro, o das transformações do campo social, o que nos levaria a um outro plano de
discussão, aqui e nesse momento impossível.
A noção de dominação tem, em Freud, duas concepções, uma antes e outra
depois de Além do princípio de prazer, de 1920. Até 1920, a noção apontava para uma
pulsão autônoma, o-sexual, apenas secundariamente ligada à sexualidade, sempre
dirigida para o exterior, relacionada com a agressividade e que constituiria o único
elemento presente na crueldade originária infantil. Seu objetivo é o de apoderar-se dos
objetos. Como veremos depois, crueldade e dominação estão sempre muito próximas.
Freud supõe que com o desenvolvimento infantil, a pulsão de dominação se mistura
com as pulsões sexuais, dando a estas certa parcela de agressividade. Ao examinar as
origens do sadismo, Freud aponta para a dominação como um componente agressivo da
pulsão sexual. Este componente não é sádico em si mesmo: acontece que, para
assegurar um domínio Überwältigung do objeto, um simples pedido não é
suficiente. O que não basta é a demanda die Werbung -, o recrutamento, o
aliciamento: é preciso certa força para agarrar o objeto, mantê-lo preso, para que ele
possa servir à satisfação. Satisfação de quê? Nesse momento, e, de acordo com o texto,
à satisfação da função vital. É um despotismo no qual Freud vê uma necessidade
biológica (GANTHERET, op. cit., p. 105). Ainda segundo esse autor, o conceito
apresentaria uma posição instável, entre pulsão sexual e pulsão de autoconservação.
Reconhece que a dominação é uma qualidade do sexual e considera que, por outro lado,
visa a “impor as soluções da autoconservação à turbulência do sexual” (ibid, 112).
Entretanto, é um ato sem intenção. A própria crueldade, cuja origem Freud situa
justamente na dominação, não é, inicialmente, uma disposição má, ela não busca o
sofrimento do outro. Isso tem início com o sadismo, onde finalmente se inaugura o
prazer com a maldade.
Em 1905, no texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, onde a pulsão de
dominação é pela primeira vez mencionada, a nese da crueldade infantil é
reconduzida a uma pulsão de dominação que, originariamente, não teria como meta
produzir o sofrimento alheio. Na verdade, o sofrimento do outro não era simplesmente
levado em conta. Já que não é visado o sofrimento, podemos deduzir que a dominação é
uma atitude anterior tanto ao surgimento da piedade quanto do sadismo propriamente
dito, sendo, nessa acepção, independente da sexualidade.
A dor do outro, entretanto, nada impede. Apesar de o sujeito ignorar o mal, seus
atos são sem piedade e sem pudor. Aquilo que chamamos de crueldade é, na verdade,
aos olhos do outro, o efeito de uma indiferença da pulsão de dominação à visão do
sofrimento do objeto. A crueldade se nomeia pelo olhar alheio: ela nada mais é que a
constatação objetiva dos efeitos da pulsão de dominação sobre o objeto mas o é,
ainda, um modo de gozo sexual. Desse modo, a pulsão de dominação não pode ser
distinguida das pulsões de autoconservação: no mínimo, pode se alinhar entre elas.
Ela assegura, ao dominar e manter o objeto, para dele dispor, o desempenho de uma
função vital; esta é uma função que não possui uma ligação intrínseca com a
sexualidade, podendo, entretanto, ser colocada a serviço desta. A crueldade decorre do
fato de a pulsão de dominação não parar diante da visão da dor causada ao objeto; é um
momento sem piedade por pura ignorância da idéia de “mal”. Poderíamos sugerir a
seguinte progressão: dominação sem gozo mas também sem limites crueldade como
efeito, uma constatação objetiva dos fatos, mas ainda sem prazer sexual – sadismo, onde
o prazer é obtido aliado à maldade e ao sofrimento infligido ao objeto.
Na parte 4 do Segundo ensaio, no trecho que se refere às pulsões parciais, Freud
escreve:
“Com independência ainda maior das outras práticas sexuais ligadas às zonas
erógenas, desenvolvem-se na criança os componentes cruéis da pulsão sexual.
A crueldade é perfeitamente natural no caráter infantil; com efeito, a inibição
em virtude da qual a pulsão de dominação se detém frente à dor do outro, a
capacidade de se compadecer, se desenvolvem relativamente tarde. É notório
que ainda não se teve êxito na análise psicológica exaustiva dessa pulsão;
podemos supor que a moção cruel provenha da pulsão de dominação e emirja
na vida sexual numa época em que os genitais ainda não assumiram o papel
que desempenharão depois” (FREUD, 1905a/1986, p. 175).
Compreende que a pulsão de dominação, em sua essência pulsional, é
irrefreável, o conhece inibição, sendo violenta e adestrutiva, mesmo não tendo a
destruição como meta primeira. No trecho acima mencionado, vemos que Freud credita
a gênese da crueldade infantil a uma pulsão de dominação ainda não inibida pela
capacidade de sentir pena ou comiseração. A pulsão se apresentaria, então, em sua
totalidade. depois, por identificação com o sofrimento do outro, o sujeito poderia
colocar limites à sua crueldade.
Numa nota de roda deste texto, de 33, lemos que nas edições de 1905 e
1910 estava escrito, neste trecho, o seguinte:
“temos direito a supor que as moções cruéis fluem de fontes na realidade
independentes da sexualidade, mas que ambas podem entrar em conexão
precocemente, por uma anastomose [conexão transversal] próxima a suas
origens. Não obstante, a observação ensina que entre o desenvolvimento sexual
e o da pulsão de ver e de crueldade persistem influências recíprocas, que
voltam a restringir a asseverada independência entre ambas as classes de
pulsões” (ibidem).
O sadismo só aparecerá mais tarde, filiado a este componente agressivo, tendo se
tornado não só excessivo em seu desenvolvimento como também autônomo.
No trecho a seguir, relativo ao sadismo, parte B do segundo capítulo do primeiro
ensaio, vemos a relação do termo com a incorporação canibalística, envolvendo o
comer:
“Que a crueldade e a pulsão sexual estão intimamente correlacionadas é-nos
ensinado, acima de qualquer dúvida, pela história da civilização humana, mas
no esclarecimento dessa ligação não se foi além de insistir no componente
agressivo da libido. Segundo alguns autores, essa agressão mesclada à pulsão
sexual é, na realidade, um resto de desejos canibalísticos e, portanto, uma co-
participação do aparelho de dominação {Bemächtigungsapparates}, que atende
à satisfação de outra grande necessidade, ontogeneticamente mais antiga” (ibid,
p. 144).
Esta é a primeira vez que o termo Bemächtigungsapparat aparece no texto de
Freud e a analogia entre a origem do sadismo e o canibalismo nos indica que a função
desse aparato está, originariamente, a serviço da satisfação da pulsão oral.
Ainda nos Três ensaios, a musculatura é indicada como suporte da pulsão de
dominação: “a atividade é produzida pela pulsão de dominação através da musculatura
do corpo” (ibid, p. 180). O apoderar-se do objeto, meta da pulsão de dominação, pode
ocorrer tomando-se o objeto com as os ou mesmo incorporando-o. Assim é que
lemos, na parte 4 do Segundo ensaio dos Três ensaios sobre a teoria sexual, referida às
atividades masturbatórias na infância e a genitalidade, que
a ação que elimina o estímulo e desencadeia a satisfação consiste num contato
por fricção manual ou numa pressão, decerto preparada nos moldes de um
reflexo, exercida com a mão ou unindo as coxas. Esta última operação é de
longe o mais freqüente na menina. No caso do menino, a preferência pela mão
indica a importante contribuição que a pulsão de dominação está destinada a
fazer para a atividade sexual masculina” (ibid, p. 171).
E esta é a primeira vez que surge a dominação designada como pulsão:
Bemächtigungstrieb. A o, parte do corpo encarregada da dominação, encerra um
objeto que é sexual, o órgão erógeno. Mesmo que originariamente a dominação tenha se
destacado da meta sexual, com ela se envolve rapidamente. Para Freud, a ação da mão
“faz prever” a tomada do objeto sexual. Aqui também observamos o vínculo entre a
pulsão de dominação e a polaridade masculino-feminino e, sobretudo, ao seu
antecedente pré-genital: a questão da atividade e da passividade. As diferenças de
conduta se anexam às diferenças sexuais.
Ainda nos Três ensaios, em seção incluída em 1915, Freud escreve, a respeito
das organizações pré-genitais o seguinte:
“uma segunda fase pré-genital é a da organização sádico-anal. Nela, a divisão
em opostos que perpassa a vida sexual se constituiu, mas eles ainda não
podem ser chamados de masculino e feminino, e sim ativo e passivo. A
atividade é produzida pela pulsão de dominação através da musculatura do
corpo, e como órgão da meta sexual passiva se constitui, antes de mais nada, a
mucosa erógena do intestino; entretanto, os objetos destas duas aspirações não
coincidem. Ao lado disso, outras pulsões parciais atuam de maneira auto-
erótica. Nessa fase, portanto, já é possível pesquisar a polaridade sexual e o
objeto estranho, faltando ainda a organização e a subordinação à função da
reprodução” (ibid, p. 180).
Freud postula, portanto, para essa fase, a polaridade atividade/passividade. A
atividade coincidiria com o sadismo e a passividade com o erotismo anal. Atribui a cada
uma das pulsões parciais correspondentes uma fonte distinta: a pulsão de dominação na
musculatura e o erotismo na mucosa anal.
A relação entre dominação e analidade desde cedo se encontra presente nas
elaborações de Freud. Antes mesmo de seu artigo dedicado ao erotismo anal, de 1908,
numa reunião científica do ‘grupo das quartas-feiras’’, em março de 1907, Freud
sublinha a relação da avareza e da prodigalidade com um investimento notável da zona
anal, antecipando seu ensaio. Acrescenta que as pessoas portadoras dessa acentuação da
analidade se distinguem, em sua vida adulta, por traços de caráter específicos, a saber,
são organizadas, limpas e escrupulosas, obstinadas e cheias de dificuldades em todas as
questões que envolvam dinheiro (NUNBERG & FEDERN, 1979a, p. 164).
Assim como Freud menciona a dominação como um componente da pulsão
sexual que trabalha com relativa independência das zonas erógenas e se volta para um
objeto estranho, o mesmo vale para outras pulsões parciais, que imediatamente buscam
um objeto fora do próprio sujeito não sendo, desde o início, auto-eróticas. Trata-se da
pulsão de ver e de exibir, além da crueldade. Freud é obrigado a admitir que, desde
cedo, há, na criança, uma escolha de objeto, com afetos poderosos. Este objeto é
“produzido” por essas pulsões parciais que não prescindem dele, que são objetais por
“natureza”; mesmo que inicialmente desprovidas de uma meta sexual, são elas que
apontam à sexualidade seus objetos contingentes. Mais uma vez, esse grupo de pulsões
se aproxima teoricamente das pulsões de autoconservação. Num conjunto de textos
contemporâneos dos primeiros acréscimos aos Três ensaios, conhecidos como
Contribuições à psicologia do amor (FREUD, 1910, 1912, 1917/1986), Freud atribui às
pulsões de autoconservação a tarefa de apontar os objetos às pulsões sexuais. Numa
modificação aos Três ensaios, de 1915, Freud, que antes afirmara que essas pulsões – de
ver, de exibir e a crueldade estavam fora da sexualidade, agora as coloca fora da
genitalidade.
‘Contudo, devemos admitir que também a vida sexual infantil, apesar da
dominação das zonas erógenas, exibe componentes que desde o início
envolvem outras pessoas na qualidade de objetos sexuais. Dessa natureza são
as pulsões do prazer de ver e de exibir, e da crueldade. Aparecem com certa
independência das zonas erógenas e mais tarde entram em relações estreitas
com a vida genital, mas na infância se fazem notar como aspirações
autônomas, inicialmente separadas da atividade sexual erógena” (FREUD,
1905a/1986, p. 174).
A idéia do suporte muscular para a pulsão de dominação é mantida e se
reapresenta diversas vezes, como no seguinte trecho de 1924, a respeito do
masoquismo, em que nos encontramos diante de uma aparente sinonímia entre os
derivados das pulsões de morte, tema dessa tese. Entretanto, ao separar os termos por
vírgulas, pode estar apontando para um conjunto de elementos diferentes, o-idênticos
entre si, hipótese que preferimos e defendemos. A pulsão destruidora, enviada aos
objetos, pode se apresentar das três formas citadas e poupar, assim, o si-mesmo de sua
potência aniquiladora.
“A tarefa da libido é a de tornar inócua esta pulsão destruidora e a realiza
desviando esta pulsão, em boa parte para fora e desde cedo com a ajuda de
um sistema orgânico especial, a musculatura -, dirigindo-a aos objetos do
mundo externo. Recebe então o nome de pulsão de destruição, pulsão de
dominação, vontade de poder” (FREUD, 1924a/1986, p. 169).
Num texto de 1913, A predisposição à neurose obsessiva, Freud refere-se à
pulsão de dominação e seu paralelismo e simultaneidade à questão
atividade/passividade, predominante na fase ali descrita, a anal-sádica.
“...encontramos a oposição entre aspirações de meta ativa e de meta passiva,
que mais tarde se solda com a oposição entre os sexos. A atividade é sufragada
pela pulsão comum de dominação, a que chamamos “sadismo”, justamente,
quando a encontramos ao serviço da função sexual” (FREUD, 1913c/1986, p.
342).
Ainda neste artigo, Freud indica que a pulsão de saber “nada mais é que, no
fundo, o derivado sublimado, intelectualizado, da pulsão de dominação”, o que
colocaria a questão das relações entre pulsão de morte e sublimação. Retomaremos esse
ponto logo adiante.
O conceito de organização pré-genital da vida sexual parece ter sido introduzido
por Freud nesse artigo, onde se ocupa apenas da organização sádico-anal. A pulsão de
dominação é aqui chamada de sadismo e já implicada no desempenho da função sexual.
Dessa forma, a crueldade aparece sexualizada, assim como a pulsão de dominação. Esse
seria o segundo tempo da teorização da pulsão de dominação, conforme mencionamos
acima: vinculada ao sadomasoquismo, sexualizada, aparece como um componente
agressivo da pulsão sexual.
A descrição da fase oral da organização libidinal, outra das organizações pré-
genitais, é introduzida por Freud num acréscimo feito em 1915 aos Três ensaios, apesar
de já fazer referência a ela na carta escrita a Fliess em 14 de novembro de 1897, onde a
boca aparece como uma zona erógena que não mais produziria descarga de
sexualidade nos seres humanos (MASSON, 1986, p. 279).
O aspecto não-sexual da dominação, entretanto, volta a ser apontado em Totem e
tabu, trabalho também de 1913, onde se lê o seguinte:
“No caso do tabu, o contato proibido [o toque físico proibido] obviamente não
deve ser entendido num sentido exclusivamente sexual, mas sim no sentido
mais geral de atacar, de obter o controle {Bemächtigung}, de [auto-]afirmar-
se” (FREUD, 1912-13/1986, P. 95).
Numa seção incluída no texto dos Três ensaios em 1915, que trata daquilo que
Freud chama de pulsão de saber, é mencionado novamente o nexo entre esta pulsão e a
pulsão de dominação.
“Ao mesmo tempo em que a vida sexual da criança chega a sua primeira
florescência, entre os três e os cinco anos, também se inicia nela a atividade
que se inscreve na pulsão de saber ou de investigar. Essa pulsão não pode ser
computada entre os componentes pulsionais elementares, nem exclusivamente
subordinada à sexualidade. Sua ação corresponde, de um lado, a uma maneira
sublimada da dominação e, de outro, trabalha com a energia da pulsão de ver”
(Freud, 1905a/1986, p. 176-7).
Na realidade, essa idéia tinha surgido anos antes, tanto no trabalho sobre
Leonardo da Vinci, de 1910 (FREUD, 1910/1986), quanto no texto sobre a disposição à
neurose obsessiva, de 1913 (FREUD, 1913c/1986).
No texto de 1910, a discussão acerca da sublimação toma como ponto de partida
a questão da investigação sexual infantil e a pulsão de saber, vista como
correspondendo, ali, por um lado a uma maneira sublimada da pulsão de dominação,
e por outro, trabalhando com a energia da pulsão de ver. Tomando a teoria ali exposta,
vemos que a pulsão de saber {Wisstrieb} está indexada à investigação sexual infantil.
Esta, conduzida pela pulsão de investigar {Forschertrieb}, tivera seus afetos
domesticados, submetidos, a paixão se transformara em esforço de saber. Entretanto,
pulsão de saber não é o mesmo que pulsão de investigar: é antes de onde deriva o
investigar. Como mencionamos, a pulsão de saber o é um componente pulsional
subordinado exclusivamente à sexualidade: implica um modo sublimado da dominação,
por sua vez originariamente não-sexual, e que trabalharia reforçada pela energia do
desejo de ver {Schaulust}, este já sexual. O que tínhamos na época como não-sexual era
o campo da autoconservação.
Gostaríamos de nos estender nesse ponto e explorar um pouco mais o conceito
de sublimação. Do mesmo modo que Freud optou pelo modelo da homossexualidade
masculina como um artifício para construir sua teoria da sexualidade, postulamos que o
uso da homossexualidade de Leonardo serviu como dispositivo de demonstração do
conceito de sublimação. Num texto de 1908, anterior, portanto, ao artigo sobre
Leonardo, aparece a idéia de que a constituição dos atingidos por inversão, os
homossexuais, inclusive se caracteriza pela particular aptidão da pulsão sexual para a
sublimação cultural” (FREUD, 1908b/1986, p. 170). Isso se deve ao fato de a pulsão
sexual ser composta e de nascer da contribuição de numerosos componentes e pulsões
parciais. Para as excitações muito intensas provenientes de certas partes privilegiadas do
corpo são procurados drenagem e emprego em outros campos. Esta seria uma das fontes
da atividade artística. Nesse momento da teoria, o desenvolvimento da pulsão sexual
passa do auto-erotismo ao amor de objeto e da autonomia das zonas erógenas à
subordinação dessas, sob o primado dos genitais, ao serviço da reprodução. Nos casos
favoráveis, diz Freud, é conduzida à sublimação. As forças utilizadas no trabalho
cultural são obtidas pela sufocação dos elementos chamados perversos da excitação
sexual. Ou seja: a perversão conhecida como homossexualidade masculina está
inteiramente apta a fornecer libido para a produção de bens culturais se não sucumbir ao
recalcamento.
A partir desse olhar, Freud se debruça sobre o texto acerca de Leonardo e sua
recordação infantil. A discussão sobre a sublimação toma como ponto de partida a
questão da investigação sexual infantil e a pulsão de saber. Esta é considerada como
correspondendo, por um lado, a uma maneira sublimada do apoderamento, função da
pulsão de dominação; e, por outro lado, trabalhando com a energia da pulsão de ver.
Num trecho acrescentado em 1915 aos Três ensaios Freud escreve que “a pulsão de
saber das crianças recai, de forma insuspeitadamente precoce e com inesperada
intensidade, sobre os problemas sexuais e pode talvez ser despertada por estes”
(FREUD, 1905a/1986, p. 176), advindo daí a particular importância de seus vínculos
com a vida sexual.
Freud aborda a questão das origens da criatividade de Leonardo, encarada como
uma sublimação, e da inibição do exercício desse talento, com um progressivo
freamento da criação pictórica. Aos poucos, e por motivos aparentemente sem
explicação, Leonardo substitui sua atividade artística por uma finalmente integral
dedicação à investigação científica. Estaria a ausência de satisfação direta de sua libido
homossexual supondo-se uma vida sexual essencialmente platônica - ligada à
sublimação e dessa forma à atividade artística? Seria seu encaminhamento à atividade
de investigação uma segunda defesa contra o sexual, não suficientemente afastado pela
pintura? Freud considera que Leonardo era um “exemplo de fria desautorização do
sexual” e que seus escritos evitavam de tal modo tudo o que dizia respeito ao sexual que
“...pareceria que Eros, que conserva tudo o que é vivo, não fosse um material digno do
esforço de saber do investigador” (FREUD, 1910b/1986, p. 64). Seus afetos eram
domesticados, “submetidos à pulsão de investigar {Forschertrieb}” e o que fizera fora
mudar a paixão em esforço de saber: “se consagrava à investigação com a tenacidade, a
constância, o aprofundamento que derivam da paixão.” Dessa maneira, o sexual deixara
sua marca em atividades tão afastadas de sua meta primeira, emprestando-lhes suas
mais essenciais características. Talvez possamos dizer que na sublimação a idéia do
sexual esteja excluída mas não os traços inconfundíveis de sua origem.
Tomemos um pequeno trecho do artigo, aquele que diz que em Leonardo nos
deparamos com uma pulsão única, estabelecida de maneira hiperintensa, o apetite de
saber {Wisstrieb} ou a pulsão de saber {Wissensdrang}: haveria uma disposição
particular e é provável que essa pulsão se tenha manifestado na primeira infância e
atraiu para si, como reforço, forças pulsionais sexuais de modo que, mais tarde, pode vir
a substituir um fragmento de vida sexual. Um homem assim, diz Freud, quando adulto,
investigará com a mesma devoção apaixonada com a qual outro dota seu amor.
Deduzimos, então, que pulsão de saber não é a mesma coisa que pulsão de
investigação: como vimos, implica um modo sublimado de dominação, originariamente
não-sexual. Ora, o que havia na época como não-sexual era o campo da
autoconservação. Essas pulsões, logo chamadas de pulsões do eu, possuíam uma energia
própria não-sexual, o interesse: emanavam do eu e atendiam às necessidades de
manutenção do indivíduo. Freud, como vimos, postula que o ódio tinha origem na
luta que o eu travava para escapar das ameaças do mundo externo, hostil; essa luta era
operada, inicialmente, pela musculatura. Dessa luta surgiria a pulsão de dominação,
própria das pulsões do eu. E a atividade da pulsão de saber corresponderia a um modo
sublimado da dominação, de saída não-sexual, e trabalharia reforçado pela energia do
desejo de ver {Schaulust, Schautrieb}, esse já sexual.
Gostaríamos de acrescentar que a idéia, cara a tantos autores, do saber vinculado
à histeria, não tem espaço nessa acepção freudiana.
Como então poderia a pulsão de dominação, não sendo sexual, ser sublimada,
posto que a sublimação é definida, nesse momento, como um destino das pulsões
parciais sexuais e apenas estas? A explicação pode ser encontrada em um trecho dos
Três ensaios a propósito do sadomasoquismo, trecho esse acrescentado posteriormente.
Freud ali desenvolve uma análise do sadismo para propor uma gênese segundo o
esquema do apoio: o sadismo, como sexual, deriva de uma atividade não-sexual, que é
simplesmente a de estender sua dominação sobre o objeto. Postula a existência da
atividade de dominação que não teria prazer - nem o visaria - com a destruição do
objeto e que vai se transformar em sexual por um movimento de apoio na
sexualidade e um posterior retorno sobre si mesmo, num momento propriamente auto-
erótico.
Como vimos, o sadismo deriva da pulsão o-sexual de estender sua
dominação sobre o objeto, sem busca de prazer. Entre essa dominação,
autoconservadora, de adaptação ao mundo externo, e o sado-masoquismo, sexual,
uma relação de apoio e é desse sado-masoquismo sublimado que deriva a pulsão de
saber, tendo sido percorrido o mesmo caminho em direção oposta. Quanto ao uso da
energia sexual da pulsão de ver, ele nos leva ao exame apresentado tanto no texto sobre
as perturbações psicogênicas da visão (FREUD, 1910b/1986) quanto ao trabalho
metapsicológico sobre as pulsões, que examinaremos a seguir. A pulsão sexual de ver e
ser visto, ou o par de opostos voyeurismo-exibicionismo, se apóia na atividade não-
sexual de ver, uma das pulsões parciais desde o início objetais. A atividade de ver
comporta dois aspectos: um não-sexual, autoconservador, que serve à orientação do
sujeito no mundo, fora de qualquer questão de prazer sexual: deriva do tocar, é uma
extensão do tatear, explicação que se liga à teoria freudiana da percepção, que fala de
uma espécie de emissão de tentáculos perceptivos que fazem uma coleta de amostras no
mundo externo, para melhor nele se situar. O outro aspecto é sexual, num movimento de
apoio no primeiro, e, através da emergência de uma simbolização sexual, se torna
representativo, se torna a interiorização de uma cena. Podemos dizer que a pulsão de
saber comporta dominação e energia da visão, uma e outra se reencontrando na
interiorização. Interiorizar é igualmente dominar (LAPLANCHE, 1980, p. 102-3).
Da mesma forma, no texto de 1913 acima mencionado, lemos:
“Com respeito à pulsão de saber, em particular, tem-se com freqüência a
impressão de que poderia substituir diretamente o sadismo no mecanismo da
neurose obsessiva. É que ela, no fundo, é uma ramificação sublimada, elevada
ao plano intelectual, da pulsão de dominação” (FREUD, 1913c/1986, p. 298).
Aqui se abre uma questão que é a que aproxima teoricamente as pulsões de ver,
de exibir e de dominação, classificadas numa mesma categoria, a das pulsões que desde
sempre exigem um objeto. E, além disso, elas cooperam para dar origem a esse derivado
sublimado, intelectualizado, da pulsão de dominação, que é a pulsão de saber.
Em um trecho da Conferência 21 das Conferências de introdução à psicanálise,
de 1916/17, Freud retoma a idéia das organizações pré-genitais em que se situam em
primeiro plano as pulsões parciais sádicas e anais. Aquilo que parece masculino nas
atividades dessa fase nada mais é que a expressão de uma “pulsão de dominação, que
facilmente transborda para o cruel”. Nessa mesma fase, a pulsão de ver e a pulsão de
saber despertam com força (FREUD, 1917/1986, p. 298). Alguns dos componentes da
pulsão sexual têm, desde o início, um objeto e o retêm, como a pulsão de dominação
(sadismo) e as pulsões de ver e de saber” (ibid, p. 299). Nesse momento, constatamos a
dificuldade de Freud em distinguir pulsão de dominação de sadismo. Gostaríamos de
apontar para uma diferença que acreditamos fundamental: o sadismo sempre implica o
prazer obtido através do sofrimento do objeto, característica que não é essencial na
pulsão de dominação. Nesta, a meta é apoderar-se do objeto, mantê-lo para dele fazer
uso, mas essa tarefa não implica fazê-lo sofrer.
Em Pulsões e destinos de pulsão, de 1915, onde se desenvolve a primeira tese
freudiana sobre o sadomasoquismo, a meta primordial do sadismo é definida como a
humilhação e a dominação do objeto pela violência {Überwältigung}. Apesar de, no
texto de Freud, Bewältigung ser quase sempre utilizado em conexão com os estímulos
pulsionais, aqui vemos seu emprego relacionado ao objeto. A palavra alemã para algo
grandioso, avassalador, é überwältigend, como em um trecho de O Mal-estar na
cultura, de 1930, onde Freud emprega este termo na descrição do amor sexual,
escrevendo que (...) uma das formas através da qual o amor se manifesta o amor
sexual nos proporcionou a mais intensa experiência de uma transbordante
{überwältigenden} sensação de prazer” (FREUD, 1930/1986, p. 100).
Como dissemos, fazer sofrer não pertence à meta primeira do sadismo; a
finalidade de causar dor, a fusão com a sexualidade e o conseqüente prazer obtido
aparecem, nesse momento da teoria, tão-somente no retorno ao masoquismo: o sadismo,
em seu sentido erógeno, de busca de prazer, é produto de um segundo retorno do
masoquismo sobre o objeto. Se a fonte da pulsão de dominação é outra que a
sexualidade, então podemos colocá-la do lado do ódio, para o qual Freud tampouco
conseguia encontrar uma gênese. Sem outro recurso além do que lhe dava a primeira
teoria pulsional, com sua oposição entre pulsões do eu e pulsões sexuais, Freud aponta o
ódio como proveniente das pulsões do eu em sua luta contra a realidade adversa; talvez
possamos fazer o mesmo com as pulsões de dominação, até esse momento de origem
tão enigmática.
Nesse momento da teoria, são as pulsões de autoconservação que apontam o
objeto, o designam para as pulsões sexuais, função atribuída, depois do advento da
segunda teoria pulsional, às pulsões agressivas. A pulsão de dominação, antes de caráter
não-sexual, quando ao serviço da sexualidade se transformaria em sadismo, mesmo que
a organização seja ainda pré-genital. Nessa acepção, a pulsão de dominação já se
aproxima do conceito a ser produzido, o de pulsão de morte. As zonas erógenas são
lugares designados como passagens pelas funções vitais. O funcionamento vital, das
pulsões de autoconservação, é transposto, do interior, pela sexualidade que insiste
incansavelmente, senhor inexorável. A função vital exige que o objeto seja capturado,
que seja mantido assim, e é a pulsão de dominação que desempenha a tarefa de agarrar
o objeto para que seja consumido, sem fim sexual. Esse mesmo objeto se tornará, pela
subversão imposta pela sexualidade, por esse transbordamento da sexualidade entendido
como a noção de apoio, o objeto sexual. Essa comunidade de tarefa é uma solução da
autoconservação imposta à turbulência do sexual. Dominar o objeto com a finalidade de
fazer cessar a fonte de estímulo é propriamente o papel da pulsão de dominação.
Numa passagem do pequeno ensaio escrito por Freud em 1915 e descoberto em
1983 por Ilse Grubich-Simitis, e que se considera como o décimo segundo artigo dos
trabalhos ditos metapsicológicos, enviado junto com uma carta a Ferenczi, em 28 de
julho de 1915, lemos que, a respeito do assassinato do pai da horda primitiva, o
cerimonial de luto pela morte de Deus e alegria triunfal na sua ressurreição apenas
repete, na direção inversa, o comportamento da fratria, após terem dominado e matado o
pai primitivo. Em nota, ficamos informados que Freud escreveu primeiro überfallen
assaltado -, riscou fallen e a substituiu por wältigt, produzindo assim ‘vencido’,
‘dominado’, überwältigt (FREUD, 1915/1987, p. 80). Prossegue Freud dizendo que o
luto pelo pai primitivo emana da identificação com ele, admirado como tipo ideal, e tal
identificação provou ser a condição do mecanismo da melancolia. Quando Freud
escreveu esse artigo, Luto e melancolia, também publicado em 1917 mas escrito em
1915, já estava encerrado.
Depois de 1920, com o advento da pulsão de morte, a questão de uma pulsão de
dominação específica coloca-se, para Freud, de forma bem diferente: além de relacionar
a pulsão de dominação com o sadismo, ele a vincula à pulsão de morte, que lhe
suporte e origem. A pulsão de dominação acaba por perder sua característica inicial de
autonomia e passa a ser considerada como um derivado das pulsões de morte, uma
atividade destas a serviço das pulsões sexuais, quando estas envolvem a dominação do
objeto necessária à consecução do ato sexual: a dominação não mais se liga a uma
pulsão específica mas aparece como uma forma que a pulsão de morte pode tomar
justamente quando entra ao serviço da função sexual. A própria gênese do sadismo é
descrita como uma derivação, para o objeto, da pulsão de morte que visa, num primeiro
momento, destruir o próprio sujeito: a pulsão sádica passa a ser vista, inicialmente,
como uma pulsão de morte repelida do eu, defletida para que o eu sobreviva. Assim, a
meta do sadismo e do masoquismo se apresenta mais dirigida à destruição do que à
dominação, estabelecendo-se uma distinção entre esses derivados. Entretanto,
lingüisticamente, o conceito mantém-se no campo semântico de um ato violento, o de
apoderar-se pela força.
Na fase de organização oral da libido, escreve Freud, a dominação no amor
{Liebesbemächtigung} coincide com a destruição do objeto, com seu aniquilamento, de
acordo com a idéia de que possuir, dominar o objeto é o mesmo que incorporá-lo. Mais
tarde, prossegue, a pulsão sádica separa-se e quando se chega ao primado da
genitalidade, assume a função de dominar o objeto sexual, na medida em que o exige a
realização do ato sexual.
no texto metapsicológico sobre as pulsões, de 1915, Freud aborda a questão
da organização pré-genital sádico-anal e escreve que
“na etapa que se segue, a da organização pré-genital sádico-anal, a tentativa de
alcançar o objeto se apresenta sob a forma do esforço de apoderamento (ou
dominação), ao qual lhe é indiferente [ou seja, não visa] o dano ou a
aniquilação do objeto. Por sua conduta em direção ao objeto, esta forma e etapa
prévia do amor é apenas diferenciável do ódio” (FREUD, 1915a/1986, p. 133).
De maneira incipiente, gostaria de distinguir a pulsão de dominação do sadismo,
em primeiro lugar, e, em seguida, da pulsão de destruição. Dominar o objeto não
implica destruí-lo; inicialmente, na fase oral canibalística, o havia outra maneira de
possuir o objeto a não ser incorporando-o; isso significa sua destruição, é certo. Mas não
estamos ainda no terreno da dominação. Esta se apresenta mediante a habilidade de
preensão, do uso da musculatura, principalmente a das mãos. O sentido de dominar o
objeto está ausente na modalidade incorporativa: não se trata disso e sim simplesmente
de, devorando o objeto, fazê-lo penetrar no si mesmo e assim desaparecer. O objeto
perde seu estatuto e passa a fazer parte do sujeito; não intuito de dominação nesse
movimento. A dominação pressupõe um desenvolvimento, um progresso na
organização tanto libidinal quanto egóica. Da incorporação oral, passa-se ao sadismo
anal, à fase anal-sádica e suas moções, carregadas de destrutividade e agressividade,
dirigidas ao objeto. Dependendo, como dissemos, da proporção das pulsões e sua
mistura, seus modos de satisfação e seus alvos, as pulsões podem destruir, agredir ou
dominar o objeto. É claro que mesmo na versão mais atenuada, a da dominação, sempre
haverá o uso da força e da violência, sinal inequívoco do predomínio das pulsões de
morte nessa intricação pulsional. Se a pulsão de dominação surge, no texto, aliada
inicialmente à crueldade e ao sadismo, ela se desenvolve no sentido do uso da força para
a subjugação do objeto. O prazer está nisso, com a conseqüente manutenção do objeto
como tal, e não em sua simples destruição. Testa-se o poder de conquistar, de submeter
e para que isso se é preciso preservar o objeto. Houve um certo amansamento, uma
certa domesticação {Bändigung} das pulsões de morte pela ação de Eros e aquelas
passam a se satisfazer com resultados menos brutais e imediatos.
A fase anal-sádica da evolução libidinal se caracteriza por uma organização da
libido sob o primado da zona erógena anal; a relação de objeto está vinculada à função
da defecação, com seu duplo movimento expulsão/retenção. Aqui se afirma o sado-
masoquismo em relação com o desenvolvimento do domínio muscular; e aqui se define
a dominação do objeto, do exercício do poder sobre ele, seu controle. A pulsão de
dominação vincula-se a um modo anal de relação com o objeto, à sua preensão e à
habilidade surgida através do uso da musculatura. Na transferência, evidencia-se nos
movimentos de controle do analista, em sua desvalorização, em desprovê-lo do que se
imagina seja seu desejo. O controle apresenta-se, na vida, sob a forma da avareza, da
meticulosidade, da tentativa de tudo controlar, até mesmo os sentimentos do objeto.
Segundo Grunberger, no texto acima mencionado, a fase anal compreende uma
modalidade de investimento específico, próprio desse estágio e diferente, em sua
essência, do modo em que se investem os outros estágios pulsionais. Há, nesse
momento, a constituição de uma “estrutura anal(GRUNBERGER, op. cit., p. 141). No
estágio anterior, em que predomina a oralidade como modo de relação objetal, a
tendência característica fundamental do universo é ser “aberto e sem limites”. A
atividade introjetiva, típica, está limitada por suas possibilidades de investimento
libidinal; sua atividade excretória é passiva, em tudo semelhante à do lactante,
inteiramente sem controle. A agressividade também “escorre” e se choca com o que
encontra em seu caminho por casualidade. O estágio anal modificaria esse estado de
coisas: movido pelo erotismo anal, o sujeito retém suas fezes para obter um prazer
maior ao expulsá-las. O fator mais importante passa a ser a retenção, implicando
controle anal e controle da motricidade. Se na oralidade, todo prazer é contingente e
passivo, na analidade se constroem as bases das faculdades de controle. A base
energética de todo o movimento pulsional é o componente anal.
A fase oral se caracterizaria por uma impotência: o sujeito está privado não
apenas de um prazer que possua uma qualidade específica como é afetado em sua
integridade narcísica. No momento do fortalecimento de seu aparelho motor e do
controle, cada vez mais apurado, de seus esfíncteres, a criança poderá obter prazer com
seu corpo, prazer que ela mesma proporciona, através do movimento de retenção e de
expulsão. O prazer anal tiraria suas características precisamente do fato de que esta área
é fechada e seria obtido de acordo a uma modalidade autônoma, em si mesmo, e sem o
auxílio de um outro. Isso põe fim à dependência obrigatória. A criança aprende então o
controle e a reconhecer o contraste entre as duas formas que se opõem. Ela finalmente
possui um objeto que está separado dela mesma enquanto sujeito e, ainda, se opõe a ele.
O sujeito possui um dispositivo para isto, fonte de prazer e de controle, assim como
“uma substância manipulável necessária para a operação em questão” (ibid, p. 144). O
controle do objeto vale para o sujeito o restabelecimento da integridade narcísica que
lhe fora negada no estágio oral. Se na fase oral o sujeito tenta alcançar seu fim
introjetando os “constituintes de seu meio”, o anal se coloca diante de seu objeto,
conquistando, assim, sua unicidade e também sua autonomia em relação a este,
“opondo-se” ao mesmo. Introduz, assim, entre seu objeto e ele mesmo, uma instância
que o delimita e delineia em relação ao objeto, noção até então completamente ignorada
pela oralidade: a realidade.
Nesse momento do desenvolvimento psicossexual, o sujeito quer se apropriar e
ter controle de seu objeto; mas esse objeto é um objeto simbólico, precisa estar
acompanhado da palavra. A pulsão de dominação vai produzir o simbólico ao se
distinguir de seu objeto, ao mantê-lo como tal e sofrer com a possibilidade de perdê-lo.
À diferença da oralidade, que tenta fazer desaparecer o objeto e assim apagar o
desconforto da diferença e da separação, a analidade lida com a falta e a ausência.
Manter o objeto, e perto de si, é já poder considerar a distância e a falta.
nos Três ensaios, Freud assinala traços de um erotismo anal no adulto e
descreve seu funcionamento na criança. A partir do erotismo anal ele vai elaborar a
idéia de uma organização pré-genital da libido. Em Caráter e erotismo anal, de 1908,
Freud relaciona traços de caráter, como a ordem, a parcimônia e a teimosia, com o
erotismo anal da criança (FREUD, 1908d/1986). Em A predisposição para a neurose
obsessiva, de 1913, conforme mencionamos, aparece pela primeira vez a noção de
uma organização pré-genital em que as pulsões sádica e erótico-anal predominam;
existe, efetivamente, uma relação com o objeto “externo”: o objeto já é oposto e
estranho ao sujeito. Entretanto, surge um problema nessa altura da teorização. Como
conciliar a idéia de uma dominação obtida pelo viés da musculatura, sem ganho sexual,
com a idéia de uma meta passiva dessa mesma fase anal-sádica, em que o órgão erógeno
é a mucosa intestinal? Junto a uma tendência ativa, posta em funcionamento por uma
habilidade motora e buscando um objeto externo, encontramos uma zona erógena que
encontra seu prazer de forma passiva e através de um objeto interno, vindo do interior
do corpo. Podemos pensar que esses fatos são impostos a Freud pelos fatos da clínica e
de uma matriz psicopatológica, que é a neurose obsessiva, onde as duas tendências
coexistem. Diante desse impasse, Freud recorre a uma idéia de Abraham, a de dividir
essa fase em duas subfases.
Em 1924, Abraham (ABRAHAM, 1924/1960, p. 255) propôs a diferenciação de
dois períodos dentro da fase anal-sádica, distinguindo em cada um deles dois tipos de
comportamento opostos quanto ao objeto: no primeiro período, o erotismo anal está
ligado à evacuação e a pulsão sádica à destruição do objeto; no segundo período, o
erotismo anal está relacionado à retenção e a pulsão sádica ao controle obsessivo. Para
esse autor, a passagem de um período a outro constitui um progresso decisivo em
direção ao amor de objeto, como o indicaria o fato de a linha de clivagem entre
regressões neuróticas e psicóticas passar entre esse dois períodos. A passagem de uma
para a outra subfase se deveria ao mecanismo da projeção e seu principal instrumento
seria justamente a pulsão de dominação, que designaria o objeto externo, apoiando-se na
musculatura, levando para fora a luta interna. “Ela fornece à voluptuosidade de reter o
suporte funcional da necessidade de imobilizar o objeto da necessidade vital”
(GANTHERET, op. cit., p. 109).
Na Conferência 32, das Novas Conferências de introdução à psicanálise, Freud
se refere a sua fonte:
“Abraham provou, em 1924, que na fase sádico-anal podem ser distinguidos
dois estágios. Deles, no anterior reinam as tendências destrutivas de aniquilar e
perder, e no posterior, as de guardar e possuir, amistosas para com os objetos.
Portanto, é na metade desta fase que emerge, pela primeira vez, a consideração
com o objeto como precursor de um posterior investimento de amor” (FREUD,
1933[1932]b/1986, p. 92).
Na obra inaugural da segunda teoria pulsional, Além do princípio de prazer,
Freud introduz a discussão sobre a dominação no contexto da brincadeira infantil e na
passagem ao ativo. Assim escreve que tem a impressão de que a criança converteu em
jogo a vivência de separar-se da mãe a partir de outro motivo.
“Na vivência, era passivo, era afetado por ela; agora se colocava em um papel
ativo, repetindo-a como jogo, mesmo que fosse desprazerosa. Poder-se-ia
atribuir este afã a uma pulsão de dominação que atuara com independência de
que a lembrança em si mesma fosse prazerosa ou não” (FREUD, 1920/1986,
p. 15).
Mas Freud desconfia que o jogo do fort-da pode ter outro motivo além do
tornar-se senhor da situação {Herr der Situation}; ele invoca a possibilidade de um
ganho de prazer da criança, seja na satisfação de moções de vingança, seja no prazer de
crescer, seja na possibilidade de mandar embora essa mãe capaz de abandoná-la. Logo a
seguir, apresenta-nos sua dúvida: pode o esforço {Drang} de processar psiquicamente
algo impressionante, de apoderar-se [dominar] inteiramente disso {sich seiner voll zu
bemächtigen}, exteriorizar-se de maneira primária e independente do princípio de
prazer?” (ibid, p. 16).
Observamos, então, importantes diferenças entre os dois momentos de maior
incidência do sadismo: na fase oral sádica, a relação com o objeto é frágil, não
resistindo a uma investida das moções destrutivas: o objeto, devorado, incorporado,
deixa de existir e passa a fazer parte do próprio sujeito, que, ao incorporá-lo, se
identifica com ele. O que era um rudimentar investimento objetal, regressa à condição
de um investimento narcísico, utilizado na identificação. Essa é uma das características
da afecção intimamente implicada com a questão da agressividade e da destruição: a
melancolia. Esta afecção caracteriza-se pela ambivalência diante da destruição do objeto
amado – e odiado – e pelo medo de que tal destruição de fato aconteça. Mesmo que com
a incorporação, modo de satisfação desse momento do desenvolvimento, o objeto seja
destruído ou, pelo menos, perca sua ‘objetalidade’ -, o melancólico teme essa
destruição. Esse é o fundamento de seu conflito.
Na mesma Conferência 32, lê-se, a seguir:
‘Igualmente justificado é supor que uma partição semelhante também para a
primeira fase, a oral. No primeiro sub-estágio, trata-se somente da incorporação
oral e falta ainda toda a ambivalência no vínculo com o objeto do peito
materno. O segundo estágio, singularizado pela emergência da atividade de
morder, pode ser designado como oral-sádico; mostra, pela primeira vez, os
fenômenos da ambivalência que adquirirão tanta nitidez na fase seguinte, a
sádico-anal. O valor destas novas distinções se evidencia particularmente
quando em determinadas neuroses neurose obsessiva, melancolia buscam-
se os lugares de pré-disposição dentro do desenvolvimento” (FREUD,
1933[1932]b/1986, p. 94).
Na fase anal-sádica, o objeto permanece como tal, assim como o investimento
que o sujeito faz nele, objetal. Se o objeto é destruído, mesmo que fantasmaticamente,
ele permanece como traço, como lembrança. O objeto é sempre externo, estranho ao
sujeito. À destruição do objeto corresponde ao movimento de evacuação, de envio para
fora de si daquilo que é ruim, do aniquilamento do nculo e da presença” do objeto.
Trata-se, aqui, da paranóia. No segundo momento da fase anal-sádica, o da retenção e
do controle do objeto, não só o objeto permanece como tal como as investidas do sujeito
não mais visam sua destruição: ele é cruel, pode até ser violento, mas o busca o
desaparecimento do objeto, seu aniquilamento. O que ele pretende é subjugar e talvez
com isso infligir dor e sofrimento constituindo-se no sadismo propriamente - mas a
relação de objeto se mantém. A linha que discrimina esses dois períodos da fase anal-
sádica é a mesma que diferencia as organizações psicóticas das neuroses. No campo da
neurose, estaríamos diante da neurose obsessiva, com suas características derivadas dos
aspectos anais do desenvolvimento libidinal do sujeito e de seus conflitos de
ambivalência.
Com a obra de 1920, toda a teoria psicanalítica sofre uma notável mudança de
inflexão. Além da nova oposição pulsional, desenha-se uma nova arquitetura do
aparelho psíquico. Nessa, as instâncias, com fronteiras flexíveis, no lugar dos sistemas
de contornos mais rígidos, o agora ser o palco da luta primordial entre as pulsões
fundamentais. E nesse campo, reaparece o jogo da dominação. Assim, em O eu e o isso,
de 1923, texto conhecido como a segunda tópica, ressurgem as idéias relativas à
dominação, agora num embate entre esses novos lugares psíquicos. Tanto mais severa
será a dominação do supereu sobre o eu quanto mais poderoso for o complexo de Édipo
e quanto mais rapidamente sucumbir ao recalque. O supereu detém o caráter do pai.
“Embora seja acessível a todas as influências posteriores, preserva, através de
toda a vida, seu caráter de origem, proveniente do complexo paterno: a
capacidade de contrapor-se ao eu e dominá-lo. Ele constitui o monumento que
lembra a fraqueza e dependência em que o eu se encontrou no passado, e
mantém seu domínio ainda sobre o eu maduro” (FREUD, 1923/1986, p. 49).
Poucos anos depois, em 1925, no texto Inibição, sintoma e angústia, Freud volta
a mencionar a dominação dos estímulos na passagem a seguir:
“Contudo, é assim que se comporta o neurótico. Embora todas as instâncias
para a dominação dos estímulos de há muito se tenham desenvolvido dentro de
amplos limites em seu aparelho anímico, e embora esteja suficientemente
crescido para satisfazer à maior parte de suas necessidades por si mesmo e
muito tenha aprendido que a castração não é mais praticada como castigo, ele
não obstante se comporta como se as antigas situações de perigo ainda
existissem e se apega a todos os antigos determinantes de angústia” (FREUD,
1925/1986, p. 95).
E, finalmente, num texto chamado Por que a guerra, de 1932, que será
mencionado várias vezes no capítulo referente à destruição e à destrutividade, Freud
afirma que “mesmo a pulsão de autoconservação sendo de natureza erótica, ela precisa
dispor da agressão se é que deseja conseguir seu propósito. Igualmente, a pulsão de
amor dirigida a objetos requer um complemento de pulsão de dominação se deseja
pegar seu objeto” (FREUD, 1933[1932]a/1986, p. 193). Nas cartas que Einstein e Freud
escrevem e trocam, percebe-se que a ingenuidade e a pretensa falta de informação de
Einstein, que Freud lhe atribui, não existem de fato. Este levanta uma hipótese que
antecipa a própria resposta de Freud: a de uma pulsão de crueldade, isto é, no fundo
uma pulsão de morte, que acompanha, sem se reduzir a ela, essa pulsão de poder, ou de
dominação, que tem um lugar original no texto da virada de 1920. A pulsão de morte,
fundamental, é irredutível a qualquer outra força; e a pulsão de dominação, embora
implique a crueldade, como vimos, tampouco se reduz à pulsão de morte. É, antes,
um derivado dela, produto de certa combinação com Eros e de um determinado modo
de satisfação, predominante em uma fase característica do desenvolvimento
psicossexual. O modo de satisfação é o anal-sádico, a meta é subjugar o objeto, a fúria
destrutiva das pulsões de morte sofreu significativo amansamento e se detém na
dominação do objeto. Essa satisfação implica um ganho de prazer, é certo, Eros está
aqui presente como, aliás, em todos os outros modos de satisfação.
Nesse momento, cabe-nos perguntar pela dinâmica pulsional da pulsão de
dominação. Inicialmente uma pulsão específica, não sexual, ligada à crueldade infantil;
a seguir, já sexual, ligada ao sadomasoquismo. Finalmente, sempre ligada por Eros, mas
diretamente indexada à ação propriamente dita das pulsões de morte.
Segundo Dorey, em artigo já mencionado, pode-se fazer uma distinção, no
campo da psicopatologia, entre a dominação da neurose obsessiva e a da perversão. A
dominação do obsessivo se daria no registro do poder e na ordem do dever; a do
perverso, se daria no registro erótico, sobre um parceiro sexual, e usa como principal
instrumento a sedução, aquilo que provoca um desvio, uma conquista, através de
encantos e sortilégios. Dessa forma, a dominação do perverso se aproxima mais do
aspecto propriamente sexual do sadismo (DOREY, op. cit., p. 125).
Como já dissemos acima, a dominação do perverso atua através da sedução,
sedução essa que assume o valor de uma fascinação: toda a estratégia do perverso
consiste em hastear o desejo erótico que o caracteriza, ao mesmo tempo em que tenta
revelar, produzir no outro um desejo equivalente. O perverso procura obter de seu
parceiro a aquiescência à sua exigência, a completa adesão às suas propostas, a resposta
mais adequada à sua demanda, que aponte para a emergência, no outro, de um desejo
complementar ao seu. A relação de dominação na perversão é de natureza
essencialmente especular, dual, não mediatizada, se desenvolvendo inteiramente no
registro imaginário. O outro, assim sugado, subtraído de seu desejo próprio, se vê
negado na própria singularidade de seu desejo, em sua alteridade. Seu ser desejante não
é abolido mas ele terá direito a existência na medida em que se mantém na posição
de duplo que lhe é designada (ibid, p. 119).
Por esse viés, nos vemos em condições de postular que a perversão, do ponto de
vista da relação de dominação que a atravessa, implica uma dimensão francamente
destrutiva, se não do sujeito em si, pelo menos da alteridade de seu desejo; trata-se aqui
de apagar, de negar qualquer diferença que aponte para a incompletude, sobretudo essa
diferença originária da irredutibilidade de qualquer sujeito desejante a seu semelhante.
Na verdade, o que o perverso tenta é recusar seu conhecimento da diferença, ou seja, a
castração, apagando o desejo genuíno de seu objeto e substituindo-o pelo seu. O outro,
siderado pela ostentação do desejo do perverso, age impelido por essa força, não
podendo mais distinguir entre o que é seu e o que não é. Entretanto, como assinala
Dorey, em seu valioso artigo, as pulsões de dominação estão presentes na perversão mas
secundariamente à questão unificadora propriamente, aquela que tende a apagar as
diferenças, transformando o outro em imagem de si (ibid, p. 120). Se podemos falar de
pulsões de dominação nesse contexto, elas são secundárias à verdadeira meta, que é a
anulação, se não do outro, pelo menos de seu desejo.
O império do obsessivo é totalitário: ele recorre à força, à tirania, à subjugação.
A pulsão de dominação se expressa nele também como uma vontade de poder, o que faz
dele um tirano. Esse poder, o obsessivo o exerce através de um controle permanente e
repetidas intrusões no território do outro. Sob a dominância das pulsões de morte,
presentes maciçamente na sua dominação, o neurótico obsessivo pretende fixar,
petrificar o que é vivo. No campo da idealidade, pretende criar um mundo perfeito, sem
falhas, que muito se assemelha à quietude da morte. Esse aspecto mostra claramente a
filiação e a derivação de suas moções de dominação. O domínio sobre o outro, no
campo da relação intersubjetiva de dominação, aparece sempre que existe uma relação
de autoridade e que o obsessivo tenta transformar numa queda de braço. Esse viés se
expressa muito claramente na relação transferencial com o analista. O obsessivo
necessita imperiosamente exercer uma dominação absoluta sobre o outro; esta é, para
ele, uma questão de vida ou morte. Seu poder é, por isso, um poder mortífero; o
obsessivo vampiriza seu interlocutor no afã de tornar quieta a turbulência da vida, capaz
de imprevistos, sempre indesejáveis em sua busca de controle absoluto. Quando o outro
resiste, o obsessivo usa sua destrutividade, pura e simplesmente: há sempre uma ameaça
de “nadificação” do outro.
Entretanto, mesmo que o outro se submeta à dominação absoluta, o obsessivo
não será jamais satisfeito. Ele levará adiante sua tarefa quase destrutiva, de forma
imperativa: o obsessivo não consegue escapar da força que o impele. A tendência à
entropia, à redução de toda tensão é a marca do pulsional em estado bruto, quase nada
domesticado, e que nele se evidencia em toda sua potência. O vetor principal da
dominação do obsessivo é, como foi dito, essa pulsão de morte, que age, de certa
forma, em estado quase puro. Quanto mais próximo estamos de um esvaziamento,
menos ligadas se encontram as pulsões de morte; é como se elas pudessem agir
praticamente por conta própria. Eros está presente, como, aliás, em toda parte, mas não
sob a forma privilegiada de uma ligação libidinal das moções destrutivas; é como se
fosse uma ação à parte, desintricada, como se as duas tendências pulsionais
fundamentais estivessem agindo separadamente.
O essencial nesse movimento é a idéia de apropriação do outro, com a
conseqüente expropriação de seu desejo, uma ação de embargo, de confisco da
alteridade, bem no sentido antigo da palavra emprise, conforme mencionamos no início
do capítulo. Aqui não acontece o mesmo que na temática perversa: o se ocupa o
obsessivo com a tarefa de capturar seu objeto num jogo de espelhos, a fim de reduzi-lo a
uma imagem, à sua imagem, para melhor dizê-lo. No caso do neurótico obsessivo, seu
afã é o de destruir seu objeto de forma muito peculiar: a destruição visa o outro como
sujeito desejante, capaz de autonomia. Esse aspecto do objeto, causador de grande
perturbação, tem de ser anulado. O obsessivo o suporta no outro qualquer
singularidade ou qualquer manifestação de desejo erótico que o tome, por sua vez, como
objeto. Percebe-se, no obsessivo, quase que uma incapacidade de ter uma vida amorosa
(ibid, p. 127). O vetor principal da dominação presente na neurose obsessiva é a pulsão
de morte, agindo como que numa espécie de estado puro. Diferentemente do
sadomasoquismo, na obsessividade é como se não houvesse uma satisfação de natureza
libidinal norteando o movimento, uma procura de obtenção de prazer, sob certas
condições. O ganho de prazer apresenta-se secundário.
O sadomasoquista se assemelha muito à problemática perversa, com a mesma
estrutura dialética de desejos. Na neurose obsessiva, à diferença das demais patologias,
inclusive a perversão, não é a meta que é torcida pelas pulsões de morte a seu favor; o
prazer, que, sem dúvida existe, é subsidiário da finalidade primeira: dominar, “destruir”
- as aspas se devem ao fato de a destruição visar, como dissemos acima,
especificamente o objeto como desejante. Na dominação do obsessivo, Eros participa,
claramente, mas não sob a forma de uma ligação libidinal das pulsões de morte; é como
se fosse uma ão à parte, desintricada, as duas tendências fundamentais agindo como
que separadamente. A atividade explícita das pulsões de morte estimula, em qualquer
sujeito, sua própria tendência autodestrutiva. A morte fascina. A dominação do
obsessivo é de e para a morte, uma morte destilada e invasiva. A ambivalência foi
considerada, por Freud, como um exemplo privilegiado da desintricação pulsional; na
neurose obsessiva, forças contraditórias claramente em ação, o que aponta para sua
ambivalência essencial, sua dificuldade básica de integrar as moções amorosas com as
destrutivas, estas de exagerada intensidade e configuração ditada pela regressão.
Para Denis, e discordando parcialmente do que postula Dorey, a dominação
obsessiva visa obter satisfação do objeto, isto é, visa trazer para o sujeito o desejo do
objeto; a morte, a anulação do outro nos surge como uma forma da dominação
exacerbada e se expressa nas modalidades do registro anal (DENIS, op. cit., p. 25).
Derrida, em texto recente e que examinaremos no capítulo sobre a crueldade, se
pergunta sobre a existência de uma crueldade inerente à pulsão de poder ou de
dominação soberana {Bemächtigungstrieb}, para além ou para aquém dos princípios, de
prazer e de realidade. Poderíamos pensar num para além da própria pulsão de morte ou
de dominação soberana, um para além de uma crueldade, um para além que não teria
nada a ver nem com as pulsões nem com os princípios? (DERRIDA, 2000, p. 14).
VI. Agressividade, agressão, pulsão de agressão
And fight in the way of God with those
who fight with you, but aggress not: God loves
not the aggressors.
Alcorão, Sura 2.
Assim, o ato de comer é uma destruição do objeto como a meta última
da incorporação; o ato sexual, uma agressão com o propósito da união
mais íntima.
Freud, S. Esboço de psicanálise.
Segundo um dicionário etimológico, agressão deriva do latim aggressĭo-ōnis,
por sua vez derivado do latim aggredī, que deu em português o verbo agredir, que
significa atacar, brigar, assaltar (CUNHA, 1986). Outro nos informa que o termo
agressão, definido como ato ou efeito de agredir, deriva do latim aggressĭo, que vem do
termo latino aggredio, que significa brigar com, atacar. Afirma que aggredio deriva do
verbo aggredir, que, por sua vez, vem do vocábulo gradi, do latim gradus, passo,
caminhada, ida, donde degrau e grau. Gradus é fonte do verbo gradĭor, caminhar,
andar, aproximar-se, adiantar-se, avançar sobre. Podemos acrescentar que o vocábulo de
que se origina agressão contém um sentido espacial, de aproximar-se mas também de se
afastar, de distância (HOUAISS, 2001).
Define-se agressão também como um ataque à integridade física ou moral de
alguém, um ato de hostilidade. Se a palavra agressão é definida como ato, o vocábulo
agressividade aparece como qualidade, caráter ou condição de quem é agressivo.
Marca uma disposição para agredir e/ou para provocar e também designa espírito
empreendedor, energia, atividade, combatividade. O sentido do latim gradus, gradi,
conforme mencionado, pode nos remeter a uma idéia geral de distância, ao significado
de se aproximar e, ao mesmo tempo, de se afastar.
Laplanche e Pontalis assinalam que, do ponto de vista terminológico, na
linguagem freudiana se encontra um só termo – Aggression, de raiz latina – para
designar tanto agressão como agressividade em alemão, Aggressivität (LAPLANCHE
& PONTALIS, 1976). Aggressivität é também traduzido, em português, por
combatividade. Em inglês, o termo aggressiveness perdeu sua acepção originária e
passou a significar assertividade, atitude enérgica, afirmatividade.
A palavra usada por Freud para exemplificar um dos derivados das pulsões de
morte é Aggressionstrieb, traduzida por pulsão de agressão ou pulsão agressiva.
Entendemos que a primeira forma é melhor que a segunda; esta apenas qualifica a
pulsão, tipificando-a, enquanto a forma “pulsão de agressão” aponta verdadeiramente
para sua meta, que é a agressão. O termo Aggressionstrieb é tradicionalmente reservado
para a parte da pulsão de morte voltada para o exterior, nomeadamente com o auxílio da
musculatura, o que empresta à teorização um aspecto prosaicamente concreto, orgânico.
Entretanto certos fenômenos que assumem grande importância, tanto na vida como na
clínica, são testemunhas de uma agressão voltada para o próprio sujeito, uma auto-
agressão. Trataremos desses aspectos quando examinarmos a clínica do luto e da
melancolia, com as presenças inequívocas do sentimento inconsciente de culpa e a
reação terapêutica negativa.
Mesmo antes de 1920, quando o texto Além do princípio do prazer e a
postulação do conceito de pulsão de morte abriram caminho para uma exploração
definitiva da agressividade e da agressão, Freud, inúmeras vezes, se rendeu a considerar
os comportamentos agressivos, não sem apresentar oscilações e grandes resistências a
aceitar determinados pensamentos.
Sabemos também que foi Adler quem, em 3 de junho de 1908, emitiu, numa
conferência proferida numa reunião científica da recém criada Sociedade Psicanalítica
de Viena, originada das “sessões de quarta-feira”, grupo de discussão semanal que
reunia os primeiros discípulos de Freud, uma hipótese sobre uma “pulsão de agressão”
autônoma, fato então recusado veementemente por Freud. Um exemplo disso é um
trecho da conclusão ao seu estudo do caso clínico conhecido como O pequeno Hans”,
de 1909.
“Alfred Adler sustentou, há pouco, em um trabalho rico em idéias do qual antes
tomei emprestada a designação de “entrelaçamento pulsional”, que a angústia
nasce pelo sufocamento da por ele chamada “pulsão de agressão”; e, em uma
vasta síntese, atribui a esta pulsão o papel principal no acontecer, “na vida e na
neurose”. E se nós chegamos à conclusão de que em nosso caso de fobia a
angústia se explicaria pelo recalque daquelas inclinações agressivas, a hostil
dirigida ao pai e a sádica dirigida à mãe, parece que teríamos dado uma
brilhante confirmação à intuição de Adler. Entretanto, não posso aderir a esta
última, que considero uma generalização equivocada. Não posso decidir-me a
admitir uma pulsão particular de agressão junto às pulsões sexuais e de
autoconservação, com que estamos familiarizados, e num mesmo plano que
elas. Parece-me que Adler hipostasiou sem razão, numa pulsão particular, o
que é um caráter universal e insuspeitado de todas as pulsões, a saber, o
“pulsional” {Triebhaft}, o esforçante {drängend} nelas. O que podemos
descrever como a aptidão a dar um impulso à motilidade” (FREUD,
1909b/1986, p. 112).
A conferência de Adler, intitulada “O sadismo na vida e na neurose”, é
publicada com o título ligeiramente modificado “A pulsão de agressão na vida e na
neurose” {Der Aggressionstrieb im Leben und in der Neurose}, ainda em 1908, no
número 19 do Fortschritte der Medizin; o artigo chamou a atenção de Abraham, que fez
dele um resumo. Abraham, em um informe sobre a bibliografia psicanalítica austríaca e
alemã publicada ao ano de 1909, sintetiza o trabalho de Adler da seguinte maneira:
“toda pulsão deriva de uma atividade de um órgão e os órgãos ditos inferiores se
distinguem por uma pulsão especialmente poderosa; o sadismo se baseia no
“entrecruzamento” {Verschränkung} da pulsão de agressão com a pulsão sexual”
(NUNBERG & FEDERN, 1979, p. 407).
“A pulsão de agressão - como todas as outras pulsões pode ingressar na
consciência sob forma pura ou sublimada, ou ser transformar em seu contrário
em decorrência do efeito inibidor de uma outra pulsão, ou ainda se voltar
contra o sujeito, ou ser deslocada para outro fim. O autor efetua uma revisão
sucinta das manifestações e o significado dessas formas da pulsão de agressão
tanto no indivíduo são como no neurótico” (ibidem).
Essa era a época dos primórdios da psicanálise institucionalizada: a primeira ata
relativa às reuniões do ‘grupo das quartas-feiras’ data de 10 de outubro de 1906 e Adler
estava presente. Não se tem notícia das reuniões entre outubro de 1902, quando
Wilhelm Stekel propõe a Freud as reuniões regulares e elas têm início, e o ano de 1906.
Freud se reunia com seus discípulos às quartas-feiras, em sua própria casa.
Evidentemente que havia grande disparidade entre Freud e os outros; afinal, ele era o
criador da nova disciplina e muitos ainda o tinham se familiarizado com a incipiente
doutrina. Além disso, essas reuniões acolhiam não apenas doutores em medicina
certamente os mais numerosos: 14 médicos nessa fase inicial - mas pessoas tão diversas
quanto musicólogos, professores, editores, eruditos, filósofos, críticos musicais,
escritores. Os membros que começam a se reunir são, em geral, intelectuais com uma
certa postura marginal, quase excluídos em seus meios de origem. Perseguem um
questionamento fundamental que encontra ressonância naquilo que podemos considerar
como o epicentro da descoberta freudiana: sexualidade e morte (SCHNEIDER, 1983).
Otto Rank secretariava as reuniões que têm um período inicial que podemos classificar
de idílico; mas logo começam as discussões, sobretudo sobre prioridades. Alguns dos
membros da Sociedade tentavam introduzir, no curso das discussões, idéias estranhas
que colidiam com os conceitos básicos da recém-criada ciência; o faziam seja por
resistência, seja por ambição de suplantar o mestre e se destacar dos outros. Freud, por
sua vez, também resistia às novidades e as rechaçava, enciumado. Apesar de ser uma
pessoa amável, Freud era duro e sem piedade na apresentação de suas idéias: para
defender sua ciência, podia sem hesitações romper com seus amigos mais íntimos, seus
colaboradores mais fiéis. Entretanto, as reuniões sempre se caracterizaram pelo mais
radical livre pensar, por uma liberdade de tom inédita: havia grande leveza e seus
membros se permitiam toda sorte de injunções e especulações, vigorava uma verdadeira
livre associação de idéias {freie Anfall}. O clima, apesar da eventual hostilidade, era de
enorme efervescência do pensamento; os aspectos transferenciais não podem ser
negligenciados.
Um exemplo desse tipo de acontecimento foi a maneira com que Freud lidou
com o fato que acabamos de mencionar, de Adler ter enfatizado, desde cedo, a
importância da agressão na esfera psíquica. Criaram-se verdadeiras facções, era grande
a rivalidade e freqüente a disputa sobre a paternidade das idéias novas. Os membros
dissidentes, que se contava entre os mais competitivos, acabavam por renunciar. Adler
foi o primeiro a sair, a primeira grande divergência no interior do grupo instituído por
Freud: dessexualiza a pulsão sexual e a substitui, em importância teórica, pela ‘ânsia de
poder’. Sua saída começa a se anunciar entre os anos de 1910 e 1911 e é efetivada na
reunião de 31 de maio de 1911, cuja ata, número 145, curiosamente não foi preservada;
esta foi a última reunião desse semestre. Na reunião anterior, de 24 de maio de 1911,
Adler tem seu “ponto de vista científico” aprovado, posto que “não contradiz as
pesquisas de outros autores, em especial de Freud” (NUNBERG & FEDERN, 1983, p.
264). Estranha discrepância entre as duas reuniões, no espaço de apenas uma semana:
numa, Adler é ‘aprovado’, noutra se demite.
Na reunião que se segue à renúncia de Adler, a de 11 de outubro, uma
assembléia plenária extraordinária, Freud avisa que na última sessão, se demitiram,
além de Adler, os doutores David Bach, Stefan Von Maday e o barão Franz Von Hye.
Nessa mesma reunião, Sabina Spielrein pede sua admissão e é aceita. O presidente, em
nome do comitê, convida os membros que pertencem ao círculo de Adler, cujas
atividades “se revestem de um teor de concorrência hostil, a escolher entre seu
pertencimento a este círculo ou ao nosso”, o da sociedade. O comitê considera os dois
círculos incompatíveis (ibid, p. 275-6). Hanns Sachs, membro do grupo desde 1910,
observa que não se trata de uma expulsão mas de uma escolha. Uma ‘agressão’ que
resulta em ‘expulsão’, dada a hostilidade percebida pelo grupo leal a Freud.
Em 1911, na sessão de 6 de novembro, também renuncia Wilhelm Stekel, por
razões diferentes das de Adler. Organizou o Zentralblatt für Psychoanalyse em 1910 e,
segundo seu próprio depoimento, abandonou a vice-presidência da sociedade por conta
de discordâncias extremas relativas às suas prerrogativas como redator; demite-se da
sociedade no ano seguinte. Considera-se que o verdadeiro motivo foi sua recusa em
aceitar a teoria freudiana sobre as neuroses atuais, que ele considerava não ser uma
categoria nosográfica à parte (MIJOLLA, 2005, p. 1794). Outra versão para a demissão
de Stekel é a que consta do apêndice II do volume IV das Atas: a razão seria a briga
entre ele e Tausk a propósito de artigos para a revista que pede que Tausk escreva e
depois recusa. Freud apóia Tausk e Stekel se ‘apropria’ da redação passando por cima
de Freud, que era o editor. Tendo sido Freud quem nomeou Stekel, fica muito
descontente com a atitude de seu ‘subordinado’. Freud resolve retirar-se do Zentralblatt
mas exige, em contrapartida, que Stekel saia da Sociedade (NUNBERG & FEDERN,
1983, p. 376).
Em carta que escreve a Abraham, em 3 de novembro de 1912, Freud declara que
não é mais o diretor da revista e que Stekel “segue seu próprio caminho” (FREUD &
ABRAHAM, 1969, p. 129). Acrescenta que experimentou grande alegria com esse
acontecimento e que Abraham não pode imaginar o quanto ele sofreu com a obrigação
de defender Stekel de todo mundo. “Ele é um ser insuportável”. Diz ter a intenção de
substituir o Zentralblatt por um novo órgão e admite que esta nova revista tem uma
grande importância para ele, “em um momento em que a psicanálise se encontra
ameaçada de desagregação e onde, à luta contra o exterior, se junta a discussão com
nossos próprios parceiros. A eliminação de uma personalidade tão duvidosa quanto
Stekel é uma bênção” (ibid, p. 130). Por esse trecho de carta podemos bem avaliar a
tensão existente na Sociedade e o temor de Freud de que as dissensões internas
acabassem por destruir a instituição.
Considera-se que Stekel foi um dos primeiros, senão o primeiro, a falar de
Thanatos. Em uma obra autobiográfica, Stekel acusa Freud de lhe roubar suas
descobertas sem lhe atribuir a autoria delas. Declara que em seu livro Os estados de
angústia nervosa e seu tratamento, de 1908, definiu a angústia “como uma reação do
instinto de vida contra o ataque do instinto de morte”; mas o instinto de morte passa a
ser creditado com exclusividade às novas idéias de Freud (ROUDINESCO & PLON,
1998, p. 728). As lutas internas da Sociedade se travam em torno à prioridade das
autorias, à agressão e às querelas de poder.
Os anos de 1912 e 1913 marcam o movimento de dissidência de Jung. Otto Rank
foi, até sua defecção, posterior à Primeira Guerra Mundial, o discípulo favorito de
Freud. Permanecem fiéis a Freud quatro dos pioneiros, durante 36 anos, até a dissolução
da sociedade: são eles Federn, Hitschmann, Sadger e Steiner. Lou Andréas-Salomé
freqüenta as reuniões durante um ano, de 1912 a 1913.
Como consta das Atas das reuniões desse tempo, Freud fazia críticas a Rank pela
maneira com que este apresentava seu material mas acatava, basicamente, seu conteúdo.
Fazia elogios a Adler por suas contribuições à psicologia do eu mas o criticava
assinalando que, justamente, a psicologia adleriana era mais uma psicologia do
consciente do que do inconsciente. Enquanto não esteve completamente seguro de que
as idéias divergentes podiam ameaçar suas doutrinas básicas, não interferia nem se
opunha a elas; tornava-se implacável, entretanto, toda vez que lhe parecia evidente que
o edifício de sua disciplina estava sendo ameaçado (NUNBERG & FEDERN, 1979,
p. 408).
Eram particularmente grandes a paciência e a tolerância de Freud com respeito
às intervenções de Adler, a quem tratava sempre com enorme deferência; lenta mas
sistematicamente, este começa a promover suas idéias próprias que, por fim, acabaram
por se opor aos conceitos freudianos básicos. Adler enfatizava as bases biológicas da
neurose ao postular que a doença resulta de uma tentativa de superar, psiquicamente, a
inferioridade de algum órgão. Para ele, desde o início, todos os conflitos seriam ficções
que mascaravam o protesto masculino e tudo o mais que este implicava. Por outro lado,
acentuava em demasia o significado do social, isto é, do fator externo na causação da
neurose, preocupado em defender e difundir seus ideais socialistas. Seu foco recaiu
sobre o que chamou de protesto masculino, noção trazida às reuniões em novembro
de 1906. Para Adler, tudo aquilo que é ‘inferior’ corresponde ao feminino; o ‘superior’ é
o fator masculino. A neurose acontece quando um indivíduo protesta contra a
inferioridade de um órgão, mediante uma superação psíquica do funcionamento
deficiente do dito órgão. Nada mais afastado das premissas freudianas. Mais palatável
foi sua idéia de uma pulsão de agressão. Sabemos que, apesar da recusa inicial, Freud
acabou por aceitar essa idéia mas muito posteriormente a incluiu em sua teoria das
pulsões, de 1915.
Adler continua seguro de que se descobrirão suas ‘condições orgânicas’. E
assinala que “na psicanálise mais que um caminho a seguir” (ibid, p. 245). A futura
dissidência de Adler não apenas se anuncia pela ênfase dada à base orgânica de todo
sintoma como também por sua tendência a achar um caminho próprio, no campo não
teórico como também da técnica.
Além das questões com Adler, que culminam na proposição de uma pulsão de
agressão, como vimos e voltaremos a examinar a seguir, Freud enfrentava as
discordâncias de Jung e Rank. Como em todo grupo, também aqui a ambivalência
começa a exercer um papel negativo, ameaçando a incipiente sociedade com a
dissolução.
Logo após a apresentação do trabalho por Adler, Eduard Hitschmann, médico
apresentado por Federn e que se uniu ao grupo em 1905, assinala que Adler
reconhecera, com razão, que a nova psicologia deve proceder das pulsões: “os
caracteres e as ações devem se definir em função dessas pulsões” (ibidem). Até mesmo
os símbolos não poderiam mais ser considerados como produto exclusivo do psiquismo
mas que também derivam da pulsão. Considera oportuna a nova concepção adleriana
mas mostras de não ter compreendido completamente o conceito de pulsão quando
observa que a postulação de Adler seria legítima se a pulsão fosse definida como
uma atividade. Ora, sabemos que toda pulsão é uma parcela de atividade, implica,
necessariamente, uma atividade. Percebemos nessa intervenção que as pulsões são
corretamente entendidas como pertencendo a outro registro que não apenas o psíquico,
conforme a proposição freudiana de 1905.
O debate prossegue, acalorado. Um dos membros desde a primeira hora, Edwin
Hollerung, doutor em medicina e cirurgião no antigo exército austro-húngaro, diz que o
termo pulsão agressiva é um pleonasmo: segundo seu entendimento, o conceito de
pulsão implica agressão, uma agressão contra o mundo externo, na medida em que o fim
de qualquer pulsão é ativo (ibid, p. 408). Acrescenta que a transformação no contrário
não é uma segunda pulsão mas sim a incapacidade de reagir diante do mundo externo.
Wilhelm Stekel afirma que as considerações de Adler não trazem nada de novo do
ponto de vista prático nem têm valor para a análise; além do que, suas teorias não
podem ser provadas.
De forma conciliatória mas dando pistas das dúvidas que começa a ter sobre
as inovações de Adler, Freud manifesta estar de acordo, de modo geral, com o estudo
sobre a inferioridade orgânica. “Adler passou rapidamente pela psicologia para
estabelecer uma relação com a medicina” (ibidem). Logo depois, retruca dizendo que o
que Adler denomina pulsão de agressão nada mais é que “nossa libido.” Acrescenta que
o trabalho ali apresentado naquela noite se encontra no limite do psíquico e do
somático, isto é, a vida pulsional. Mas critica dizendo que Adler confunde dois
elementos: amalgama a pulsão de agressão com o sadismo; este é uma forma específica
da pulsão de agressão que está ligada ao sofrimento infligido a outros (ibid, p. 409).
Preciosa essa crítica de Freud: compreendemos que ele distingue, desde então, sadismo
de pulsão de agressão, a qual não visaria primariamente produzir sofrimento em um
outro. O sofrimento acaba por se dar porque toda agressão implica, no mínimo, um
desconforto naquele que é seu alvo. Mas à diferença do sadismo, a meta da pulsão de
agressão o é o prazer obtido com o sofrimento alheio. O objetivo é a agressão e esta
virá, sempre, por definição, acompanhada de um prazer; mas não é a obtenção de prazer
o que provoca e dirige a moção.
Freud continua a se manifestar e diz que a pulsão é o que faz com que o sujeito
fique inquieto, é uma necessidade {Bedürfnis} insatisfeita. A pulsão introduz a
necessidade, a possibilidade de obter prazer e algo ativo (a libido). Conforme escreve o
editor em nota de de página, essa frase de Freud demonstra que ele sempre
considerou a libido como uma força ativa (ibid, p. 409, n. 6). Discordamos dessa
observação porque ela induz a um equívoco comum: o de considerar a libido, que é
energia, como uma força; e, paralelamente, tomar a pulsão como um conceito
energético, o que não está de acordo com as definições mais precisas desses dois
conceitos. Entendemos que o final da frase freudiana, de que a libido é algo ativo
significa apenas que a libido está sempre ligada a uma atividade, está implicada com
uma moção que, esta sim, coloca a libido em movimento.
Gostaríamos de sublinhar o uso do termo ‘necessidade’ nesse contexto, em que
Freud se refere, claramente, à pulsão sexual. Mais tarde, ele reservará o termo para
referir-se às pulsões de autoconservação ou do eu, assim como o utilizara nos Três
ensaios, para postular a noção de apoio da sexualidade na satisfação das necessidades
vitais.
Freud acrescenta que a libido não pode ser separada da possibilidade de obter
prazer e que a angústia, como ele a concebe nesse momento, é uma fase da libido
insatisfeita. Sabemos que essa concepção da angústia será modificada em 1926, em
Inibição, sintoma e angústia. Para Adler, a angústia é uma fase em que a pulsão de
agressão transformada se volta contra o sujeito. Quanto ao resto, prossegue Freud, a
descrição que faz Adler da vida pulsional encerra muitas observações justas e valiosas.
Paul Federn intervém dizendo que, contrariamente ao que disse o professor”,
substituir a “pulsão de agressão” pela “libido” não corresponde às intenções de Adler.
Do ponto de vista de Adler, o que faz com que uma criança se torne agressiva é a
frustração das maneiras de buscar obter prazer. De fato, quando Freud, para
aparentemente concordar com Adler, declara que a pulsão de agressão adleriana nada
mais é que “nossa libido”, dá mostras da enorme vontade que tem de manter o discípulo
dentro das hostes da psicanálise e, ao mesmo tempo, neutralizar suas inovações, fazendo
de conta que o que diz Adler já foi dito por ele.
Federn retoma suas críticas e observa que a “libido” de Rank era uma coisa
mística e ao mesmo tempo incompreensível. Depois de comparar as concepções opostas
de Freud e Adler, faz questão de definir sua posição acerca das idéias adlerianas:
acredita que este se enganara ao abandonar tão rapidamente a significação primária das
pulsões sexuais, dando mostras de ter sido um dos primeiros a assinalar a tendência de
Adler em minimizar a idéia freudiana da importância da sexualidade para a teoria (ibid,
p. 409). “É uma falácia inferir a existência de um órgão inferior a partir da presença de
uma potente pulsão” (ibid, p. 410). Opina que a transformação da pulsão de agressão em
seu contrário, como propôs Adler, é um enorme exagero.
Adolf Deutsch, também doutor em medicina, especializado em fisioterapia e
maçom, além de amigo íntimo de Federn, entende por agressão o que se encontra
contido em cada pulsão e é sua essência; além disso, constituiria um agregado à libido.
Adler se defende das críticas alegando que seus pontos de vista são semelhantes
aos de Freud, provêm de uma mesma “fonte originária {Mutterboden}. Diz que, a
propósito, a neurose de defesa não é “o ponto exato em que se afasta da concepção
freudiana.” Postula que nenhum órgão está necessariamente ligado à agressão: a
atividade orgânica primária não é agressiva. Rank intervém e aponta para o fato de a
libido não ser idêntica à pulsão de agressão: ele a separa da libido. Afirma que o
sadismo e o masoquismo são fenômenos complexos nos quais se combinam sexualidade
e agressão e que esta última nem sempre tem que ser cruel. A isso se segue longo debate
sobre a identidade ou a diferença existente entre a pulsão de agressão de Adler e nossa
libido” (ibid, p. 410).
Adler volta ao tema da pulsão de agressão na reunião de 2 de junho de 1909, em
que apresenta o trabalho “A unidade da neurose”. Retoma a concepção de ‘inferioridade
orgânica’ e considera que essa idéia parece proporcionar também um fundamento para a
compreensão da vida pulsional (NUNBERG & FEDERN, p. 241). A pulsão, diz ele,
pode ser compreendida em função de uma teoria da evolução. Depois de explicar a
relação da inferioridade orgânica e acidentes no processo evolutivo, que podem
comprometer o desenvolvimento, menciona a pulsão de agressão como outro ponto que
tem grande importância na vida pulsional, na medida em que ali também as inibições
psíquicas do desenvolvimento se tornam patentes (ibid, p. 242). Menciona que o que
está implicado com essa noção é um feito da civilização, necessário para o
desenvolvimento da humanidade, na medida em que a capacidade de pensar à frente de
seu tempo pode acontecer pela via indireta da agressão inibida. Esta inibição,
completa, tem sua origem em um temor antecipado, tal como encontrado na neurose. A
que estaria se referindo Adler com esse pensamento bastante tortuoso? À renúncia que o
homem tem de fazer de seus impulsos agressivos em prol da constituição e manutenção
do grupo social, tal como postula Freud em O mal-estar na cultura? Afirma que sempre
será possível rastrear as diversas formas de inibição na pulsão de agressão.
Adler passa a considerar os começos da vida pulsional e o caráter desenvolvido a
partir dela, que Freud denominou de ‘caráter anal’. Declara encontrar dificuldades em
compreender corretamente a noção mas reconhece alguns traços relativos a essa
configuração: inferioridade orgânica, pulsão de agressão e sensibilidade muito
intensificada. “Esta última está tão estreitamente ligada ao caráter anal que não pode ser
separada dele” (ibid, p. 243). Encontra as raízes da avareza nessa sensibilidade e esta é
reforçada pelas causas que levam ao desenvolvimento do caráter anal. A sensibilidade
se origina no medo de sujar-se. Verifica-se certa tautologia nesse raciocínio: a
sensibilidade extrema é causa da avareza e, por sua vez, é ‘causada’ pelo caráter anal e
pelo horror à sujeira. Logo adiante, na mesma reunião, Adler cita um pequeno
fragmento de um caso clínico com a finalidade de demonstrar em que etapa do
desenvolvimento da vida pulsional a inibição da agressão produz seus efeitos (ibid, p.
244). Nesse caso relatado, a inibição da agressão acontece na relação da paciente com o
pai, a quem considera como o maior homem do mundo. Supõe Adler que a inibição da
agressão, isto é, a formação da fantasia e seu recalque, se na época em que a menina
toma consciência das várias relações que o pai mantinha (ibid, p. 245). A questão da
escolha da neurose está relacionada com as conquistas da criança que, por sua vez, têm
a ver com sua capacidade de reação frente ao mundo externo, isto é, a eficácia e a força
de desenvolvimento de sua pulsão de agressão, e sua capacidade de reação frente a si
mesmo, ou seja, em que medida é capaz de superar pensamentos desagradáveis, recalcá-
los ou transformá-los em seu contrário. Eis uma notável antecipação do que surgirá
mais tarde, bem mais tarde, sob a forma da luta entre sujeito e mundo externo - e interno
- e a intensidade e a magnitude de sua pulsão de agressão, de sua agressão e de sua
agressividade como decisórias nos resultados. A agressão é inibida, segundo Adler, pela
produção de fantasias, que serão, por sua vez, recalcadas: em que momento e de que
forma o sujeito enfrenta a inibição da agressão, eis os condicionantes da eleição da
neurose. Nesse processo, o fator mais importante é a força da reação frente às
experiências externas e internas. A questão econômica surge com toda a pregnância que
Freud lhe havia concedido o Projeto - e voltará a conceder em artigos do final de
sua vida – como, por exemplo, Análise terminável e interminável, de 1937.
Freud declara que pouco tem a objetar à exposição de Adler, assinalando,
apenas, que este parte de um enfoque diferente. A crítica mais forte reside no fato de
Adler ter eliminado o fator sexual. Ocupa-se essencialmente da psicologia da
consciência e de uma parte da psicologia que o próprio Freud tinha negligenciado, a que
se poderia dar o nome de psicologia das pulsões egóicas. Toda a psicoterapia se alinha
com as outras, as pulsões eróticas (...). A etiologia das neuroses é sempre sexual” (ibid,
p. 247). Acrescenta que a descrição das pulsões egóicas e de seu comportamento com
respeito às pulsões sexuais, que devem ser o objeto da defesa {abzuwehrende
Sexualtriebe}, se mostra indispensável. Entretanto, a descrição dessa parte da psicologia
não representa a definição de uma neurose e sim a caracterização do eu. Estamos em
1909, um ano antes da publicação do artigo sobre as perturbações psicogênicas da visão,
onde Freud apresenta formalmente a primeira dualidade pulsional, a das pulsões sexuais
e das pulsões do eu.
Quanto à pulsão de agressão, Freud faz objeções a essa acepção que, segundo
ele, nada mais faz que hipostasiar o caráter pulsional de todas as pulsões como uma
pulsão à parte e deixa para as demais pulsões apenas um conteúdo formal. Quanto à
idéia da hipersensibilidade, considera que o é um traço característico do sujeito
neurótico mas sim de certas pulsões do eu; nessa hipersensibilidade, podemos
descobrir motivos para o recalque. A sensibilidade [excessiva] poderia ser comparada,
em certo sentido, com uma libido das pulsões egóicas” (ibidem). Essa é uma frase
enigmática, considerando-se a transcrição das reuniões como fidedigna: Freud supõe
que as pulsões egóicas também possuem uma ‘libido’. A distinção mais acabada entre
as pulsões do eu e as sexuais, cada uma com sua energia própria, libido e interesse,
ainda está por vir.
Podemos, entretanto, vislumbrar nessa discussão um outro prenúncio da
enunciação da segunda oposição pulsional: se alinham aqui a pulsão de agressão, com
sua causação, e algo que diz respeito, especificamente, às pulsões do eu. Ora, como
sabemos, nos primeiros capítulos do texto de 1920, Freud estabelece uma aproximação
entre as pulsões do eu e os sentimentos de ódio; o ódio é inicialmente considerado como
o resultado da luta empreendida pelo eu para salvaguardar-se das ameaças do mundo
externo adverso. Os aspectos agressivos e destrutivos das condutas humanas devem sua
origem a esse embate travado pelo eu; Freud não concebe a possibilidade de fazer
derivar o ódio das pulsões sexuais.
Ainda nessa sessão, lemos que Rudolf Reitler, entre outros comentários, sugere
que o que se denominava confluência ou entrecruzamento pulsional passasse a se
chamar de fusão das pulsões. Postula também que as neuroses sejam consideradas como
estágios de desenvolvimento de uma série: elas se desenvolvem uma a partir da outra,
como um processo (ibid, p. 253).
Essa visão nos aproxima da corrente de pensadores da psicanálise que
consideram que, em termos da teoria, tudo está no Projeto e nos textos considerados
como pré-psicanalíticos; essa é uma abordagem um tanto exagerada mas o podemos
deixar passar desapercebidos os indícios daquilo que, mais tarde e tendo passado por um
processo de reflexão, acaba dando ensejo ao surgimento dos novos conceitos. A entrada
da idéia da pulsão de agressão desemboca, como vimos, em uma discussão que inclui as
pulsões do eu antes de terem sido oficialmente apresentadas. Parece-nos que todas
essas informações passaram por um período de incubação e reaparecem, modificadas,
nos textos posteriores. Durante esse período inicial, parece que a teoria psicanalítica se
baseou exclusivamente na teoria da libido; entretanto, como vimos, se discutiam o
apenas as pulsões sexuais ou de vida, como também as pulsões agressivas e de morte.
Devemos também nos lembrar que algo se movimentava no ambiente cultural
em que Freud se encontrava imerso: essa é a época em que a obra de Darwin deixa sua
marca no pensamento científico e, no que diz respeito aos campos da psiquiatria e da
psicologia, esta última dominada pelas idéias de Wundt, Freud era o único homem de
idéias a aplicar as teorias darwinistas na construção de seu próprio saber. Esse era mais
um fator a aumentar sua solidão, que o oprimia. No campo da psiquiatria, vigoravam
tanto as idéias da Escola de Nancy como os ensinamentos de Charcot, Kraepelin e
Bleuler. A filosofia de Schopenhauer e de Nietzsche também marca a mente dos
intelectuais de língua alemã nessa época (PEREIRA, 1992).
Adler, na sessão de de abril de 1908, chegou a estabelecer uma linha direta
que, partindo de Schopenhauer, passava por Marx e Mach, e culminava em Freud.
Nessa época, acrescenta, omitiu Nietzsche. Coisa que procura corrigir afirmando que
Nietzsche está “tão próximo de nós que só podemos nos perguntar o que pôde ter
escapado à sua consideração” (ibid, p. 361). Acrescenta que intuitivamente Nietzsche se
antecipou a certas idéias de Freud: foi o primeiro a descobrir a importância da abreação,
do recalque, da fuga para a doença, das pulsões sexuais, tanto normais quanto sádicas
(ibid, p. 362).
Nietzsche foi tema de duas reuniões da recém-fundada Sociedade Psicanalítica
de Viena, resultante das “reuniões psicológicas de quarta-feira”: na primeira, acima
referida, a participação de Freud foi desprezível. Na segunda reunião, de 28 de outubro,
quando foi discutida a autobiografia de Nietzsche, Ecce Homo, Freud fez considerações
bastante curiosas, para dizer o mínimo. A esse respeito, e sempre dentro do mesmo tom
de negar qualquer influência filosófica em sua teoria, Freud admite que Nietzsche seja,
“para todos nós, uma personalidade enigmática.” A dificuldade de conhecê-lo deve-se
“à circunstância de que algo de não-alemão nele” (GAY, 1989, p. 220-2). Admite
que nunca conseguiu estudar Nietzsche: “em parte devido à semelhança que suas
percepções intuitivas têm com nossas penosas investigações”, e também pela riqueza de
conteúdo de seus escritos, que não o deixava ir além de meia página toda vez que
tentava uma leitura. Afirma que a paralisia de Nietzsche tornou possível que este
discernisse os impulsos {Triebe} através de todas as camadas. É notória a aparente má
vontade de Freud com os filósofos, a quem se refere, sempre que pode, com
menosprezo e desdém. Apesar de constante leitor de filosofia, faz questão de distinguir
suas ‘penosas’ investigações científicas das vagas ‘intuições’ filosóficas.
Através do texto acima citado, parte do caso ‘o pequeno Hans’, podemos
compreender que, se Freud não quis dar maior importância a uma pulsão específica que
estaria por trás das evidências da agressividade, é porque, fazendo isso, ele pensava
estar beneficiando uma pulsão com a característica essencial da pulsão em geral, isto
é, o fato de a pulsão ser um estímulo, designado como endógeno – endogene Reiz, desde
os idos do Projeto, de 1895 -, do qual não se pode fugir e que exige, como solução, que
o aparelho anímico execute certo trabalho. Toda pulsão é um fragmento de atividade.
Numa nota de rodapé ao texto ‘o pequeno Hans’, acrescentada em 1923, Freud
reconhece que se viu obrigado a estabelecer uma pulsão de agressão”, que, todavia,
não coincidiria com a de Adler. Declara que prefere chamá-la de “pulsão de destruição
ou de morte” e sua oposição com as pulsões libidinais se expressa na familiar polaridade
entre amar e odiar (FREUD, 1909b/1986, p. 112, n. 36). Quando da publicação de O
mal-estar na cultura, de 1930, Freud recorda com estranheza sua própria relutância em
reconhecer “a ubiqüidade da agressão e da destruição não-eróticas” (FREUD,
1930/1986, p. 116). Logo depois, nas Novas conferências sobre a psicanálise, de 1933,
se pergunta por que é que precisara de tanto tempo antes de se decidir a reconhecer uma
pulsão de agressão. “Por que é que hesitamos em utilizar, para a teoria, fatos que eram
evidentes e familiares a qualquer pessoa?” (FREUD, 1933[1932]b, p. 92). Freud trata
longamente de suas divergências com Adler no texto Contribuições à história do
movimento psicanalítico, de 1914, onde se lê:
“A imagem da vida que se desprende do sistema de Adler está fundada
integralmente na pulsão de agressão; não deixa espaço nenhum para o amor.
Deveríamos nos maravilhar com o eco que encontrou uma tão desconsolada
cosmovisão” (FREUD, 1914c/1986, p. 56).
Entretanto, apesar dessa divergência conceitual flagrante com Adler, Freud
jamais se recusou, bem antes de 1920, a considerar as condutas agressivas. na carta a
Fliess de 27 de outubro de 1897, Freud refere-se à resistência como uma marca
agressiva.
“A resistência, que acaba por levar o trabalho [analítico] à paralisação, não é
nada além do caráter anterior da criança, o caráter degenerativo (...). E a pessoa
que era, a princípio, um ser humano tão bom e nobre, torna-se mesquinha,
mentirosa ou obstinada” (MASSON, 1986, p. 274).
No epílogo do caso Dora, cujo historial clínico já estava quase totalmente escrito
no final de 1901, ao tratar da questão da transferência, Freud nos diz que,
diferentemente de outros tratamentos, em que o doente evoca transferências ternas e
amigáveis em benefício de sua cura,
“na psicanálise, ao contrário, de acordo com sua diferente colocação dos
motivos, são despertadas todas as moções, mesmo as hostis; tornando-as
conscientes, as aproveitamos para a análise, e assim a transferência é
aniquilada mais uma vez” (FREUD, 1905[1901]/1986, p. 102).
Podemos dizer que a transferência surge para Freud como uma resistência, isto é,
ele primeiro a percebe como uma transferência negativa, que se opõe ao progresso do
tratamento e é composta por sentimentos hostis. Sua clínica lhe mostrará que as
tendências hostis são especialmente importantes em afecções como a neurose obsessiva
e a paranóia e é nesse referencial clínico que Freud buscará fundamentos para suas
postulações acerca dos sentimentos e condutas agressivos, expressão privilegiada das
pulsões de morte e seus derivados.
Nesses primeiros sinais evidentes da preocupação de Freud com os aspectos
agressivos, presentes na vida cotidiana assim como nos tratamentos, verifica-se que a
agressão vem quase sempre acompanhada de um caráter sexual. Mesmo em trabalhos
mais antigos, essa característica se faz presente. Assim é que no texto Novas
observações sobre as neuropsicoses de defesa, de 1896, ainda sob a égide da teoria da
sedução, Freud atribui a etiologia da neurose obsessiva a uma experiência sexual na
infância, vivida de forma ativa; ali lemos:
“Em todos os casos o processo foi talvez semelhante ao que se averiguou com
certeza em alguns, a saber: o menino havia sofrido abusos por parte de uma
pessoa do sexo feminino, o que lhe despertou prematuramente a libido, e, anos
depois, em uma agressão sexual contra sua irmã, repetiu exatamente os
mesmos procedimentos aos que havia sido submetido” (FREUD, 1896b/1986,
p. 165-6).
Logo adiante, Freud acrescenta:
“Na etiologia da neurose obsessiva, vivências sexuais da primeira infância
possuem a mesma importância significativa do que na histeria; entretanto, não
se trata aqui de uma passividade sexual mas sim de agressões executadas com
prazer e de uma participação, sentida como prazerosa, em atos sexuais; isto é,
trata-se de uma atividade sexual” (ibid, p. 169).
A intuição do prazer na agressão, de uma sexualidade agressiva, da importância
do sadismo na neurose obsessiva já está presente desde então. Freud não se atém ainda à
ambivalência nem à idéia de um ódio inconsciente embora reconheça a importância da
culpa inconsciente presente nas auto-recriminações.
Num outro texto, pouco anterior ao acima referido, sobre a hereditariedade e a
etiologia das neuroses, Freud escreve:
“Descobrimos, no fundo da etiologia histérica, um acontecimento sexual
passivo, uma experiência sofrida com indiferença ou com pouquíssima
amargura ou espanto. Na neurose de obsessões {Zwangsneurose} se trata, pelo
contrário, de um acontecimento que causou prazer, de uma agressão sexual
inspirada pelo desejo (no caso do menino) ou de uma participação com gozo
nas relações sexuais (no caso da menina)” (FREUD, 1896a/1986, p. 154).
Completa afirmando que sempre encontra, em seus casos de neurose de
obsessões, um fundo de sintomas histéricos, que podem ser reconduzidos a uma cena de
passividade sexual anterior à própria ação prazerosa; uma agressão sexual prematura
pressupõe sempre uma vivência de sedução. Estamos em plena vigência da teoria da
sedução, no limiar do papel de etiologia exclusiva desta na causação das neuroses, e
desse modo Freud tenta dar conta daquilo que se apresenta na clínica, escrevendo que
“... inclino-me a supor que sem sedução prévia, as crianças não poderiam
encontrar o caminho para atos de agressão sexual. Segundo essa idéia, o
fundamento para a neurose seria estabelecido na infância, sempre por adultos
(...)” (FREUD, 1896c/1986, p. 207).
Logo depois, em 1897, Freud dirá que não acredita mais em sua Neurotica e
iniciará seu caminho na direção da postulação da sexualidade infantil.
A agressão, que assim aparece explicitamente no texto freudiano, vem
acompanhada o apenas pela qualidade de sexual como também com o corolário do
prazer. Desse modo, começa a se definir um aspecto da concepção freudiana: o enlace
dessas noções tão distintas, a agressão e o prazer, sexual. Nesses primeiros textos, onde
ainda não se definiu nem a primeira oposição pulsional, a agressão aparece claramente
vinculada à sexualidade genital; trata-se de ataques sexuais com a meta última da
consecução do coito ou, pelo menos, com a presença do caráter genital na intenção do
agente da agressão. Dito de outra forma: trata-se de uma agressão ligada à sedução, ao
abuso sexual, à violência cometida por um adulto ou uma criança mais velha tendo por
objeto uma criança pequena. O ódio ainda não se apresenta como móvel dessas ações
agressivas; pelo contrário, o que move o agressor é o desejo erótico, sexual.
Ao tirar, em 1897, de sua teoria da sedução o lugar de fator etiológico único de
todas as afecções, Freud postula o complexo de Édipo e, com ele, a conjunção de
desejos amorosos e hostis, ambos dirigidos ao mesmo objeto. A noção de ambivalência
vem validar a coexistência do amor e do ódio. Diante da importância de fenômenos
como o Édipo e os sonhos de morte, em especial aqueles com pessoas queridas, Freud
se exigido a dar uma explicação suficiente, e ao nível desse momento da teorização.
Desse modo, busca a explicação de comportamentos ou sentimentos tão claramente
agressivos, como o sadismo e o ódio, inequívocos no humano, num complexo
mecanismo das duas pulsões até então postuladas como os dois pólos do conflito e da
dinâmica psíquicos.
Em 1899, no texto Sobre as lembranças encobridoras, Freud opõe a agressão
sexual à inocência infantil, dando mostras de sua hesitação em postular, de forma
definitiva, a sexualidade infantil; esta se insinuava em seu pensamento mas lhe parecia
demasiado arriscado afirmá-la. “Você seria capaz de imaginar uma oposição mais
marcante com essas intenções de agressão sexual grosseira do que brincadeiras
infantis?” (FREUD, 1899/1986, p. 310). A agressão sexual parece-lhe incompatível com
a inocência infantil, sendo então apanágio da sexualidade adulta. Essa era da inocência
está prestes a terminar.
Um ano depois, em seu texto seminal sobre os sonhos, encontramos uma menção
à questão da agressão sexual, inserida num trecho em que ele trata de desejos hostis da
criança em relação aos genitores. Trata-se do sonho de um jovem neurótico obsessivo,
no qual este lembra o desejo infantil de morte do pai temido. Lê-se:
“Ele teria preferido que o pai não voltasse para casa em absoluto, e isso era a
mesma coisa que um desejo de morte contra o pai. E isso porque o sonhador,
quando pequeno, no decorrer de uma longa ausência do pai, fora culpado de
uma agressão sexual contra alguém (...)” (FREUD, 1900/1986, p. 333).
A equação que aqui se insinua já inclui a hostilidade no terreno da agressão
sexual: o pai odiado é o pai temido, capaz de levar a cabo a punição pela agressão
sexual perpetrada pelo jovem.
Em sua obra dedicada aos chistes, de 1905, encontram-se inúmeras menções à
hostilidade e às tendências hostis que se expressam através do cômico e do humor, além
de uma preocupação com a questão da agressão. O humor funciona como um
deslocador dentro da linguagem, como uma possibilidade de levantar parcialmente o
recalque e dar vazão à agressividade. Um exemplo disso é o trecho que se segue, onde
Freud aponta para o fato de que “uma pessoa que ri do smut que escuta, está rindo como
se fora espectador de um ato de agressão sexual”.
“O chiste tendencioso precisa, em geral, de três pessoas; além da que faz o
chiste, uma segunda, que é tomada como objeto da agressão hostil ou sexual e
uma terceira na qual se cumpre o objetivo do chiste, que é o de produzir
prazer” (FREUD, 1905b/1986, p. 97).
A agressão, então, pode ser hostil ou sexual: pode ser movida por desejos
claramente eróticos ou implicar o ódio, a agressividade. Ambas requerem de seu agente
uma atitude ativa, combativa até, de aproximação e de demonstração de força.
Poderíamos adiantar que toda agressão é hostil e sexual; estaríamos diante de mais uma
‘intuição’ freudiana?
Uma pessoa é o agente da hostilidade ou do ataque sexual, que se expressa sobre
uma segunda, para fruição de uma terceira, para quem se dirige a intenção de dar prazer.
Já vemos aqui a imbricação do prazer com a humilhação de outrem.
“Agora estamos preparados para entender o papel do chiste na agressão hostil
(...)”.
“(...) nos chistes de Herr N., por exemplo, podemos supor que não apenas
permitem a seus ouvintes o gozo da agressão sob a forma de injúrias, como,
acima de tudo, permite-lhe produzi-las.”
“(...) parece destacar-se a condição de estar envolvida a própria pessoa, e o
significado desta última condição residiria em que assim a pessoa acha
dificultadas a crítica ou a agressão diretas, que só se tornam possíveis mediante
rodeios.”
“Os recursos que servem para tornar alguém cômico são, entre outros, o
translado para situações cômicas, a imitação, o disfarce, o desmascaramento, a
caricatura, a paródia, o travestismo. Como se pode bem entender, estas técnicas
podem entrar a serviço de tendências hostis e agressivas.”
“É um bom auxiliar para a agressão, a serviço de que freqüentemente se engaja
o ato de tornar uma pessoa cômica, que o prazer cômico seja independente da
realidade objetiva da situação cômica” (ibid, p. 99, 128, 136, 180, 190).
O momento é o da publicação da primeira edição dos Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade, obra que lançará os alicerces para a teoria pulsional, definindo, pela
primeira vez de forma sistemática, o que é a pulsão. Sabemos que Freud trabalhou
simultaneamente no livro dos chistes e na sua teoria sobre a sexualidade. Os dois textos
foram publicados quase ao mesmo tempo, não se sabe com certeza qual dos dois o foi
primeiro; mas o que sabemos é que os Três ensaios foram muito mais amplamente
corrigidos e reformulados, em sucessivas edições, que os outros trabalhos do mesmo
período. Num acréscimo feito em 1910, Freud nos apresenta a pulsão como “... a
agência representante {Repräsentanz} psíquica de uma fonte de estímulos
endossomática em contínuo fluir; isso a diferencia do ‘estímulo’, que é produzido por
excitações singulares provenientes de fora” (FREUD, 1905a/1986, p. 153). Assim,
prossegue, “pulsão” é um dos conceitos da demarcação, do limite entre o anímico e o
corporal. Esse conceito, por muitos considerado de fronteira, “fronteiriço”, na verdade é
aquele que marca o campo do psíquico, em contraste e em comunicação com o
somático. Essa definição terá de ser reformulada com a postulação da segunda teoria
pulsional e o advento da pulsão de morte, pulsão sem representação, pura força.
A questão da agressão no texto dos Três ensaios aparece através da noção de
sadismo. No primeiro ensaio, o que trata das aberrações sexuais, Freud escreve que a
sexualidade da maioria dos homens exibe um componente de agressão, de inclinação a
subjugar, que serviria para vencer a resistência do objeto sexual também de outra
maneira, não apenas pelos atos de cortejar.
“Assim, o sadismo corresponderia a um componente agressivo da pulsão
sexual, componente que se tornou autônomo, exagerado, elevado por
deslocamento {descentramento} ao papel principal. Na linguagem usual, o
conceito de sadismo flutua entre uma atitude meramente ativa, ou ainda
violenta, com relação ao objeto sexual, até o submetimento e os maus-tratos
infligidos a este último como condição exclusiva da satisfação” (ibid, p. 143).
A agressão é, portanto, considerada como um componente da pulsão sexual,
onde se expressa através do sadismo, como vimos no capítulo dedicado a essa questão;
aqui se incluem o submetimento do objeto e mesmo maus-tratos infligidos a ele.
Entretanto, como vimos acima, o próprio Freud pretendia distinguir agressão de
sadismo: este teria como meta a obtenção de prazer através da causação de dor e
sofrimento a um outro; a agressão não implica necessariamente esse objetivo. Delineia-
se uma sutil diferença: a meta do sadismo é a obtenção de prazer, a meta da pulsão de
agressão é simplesmente agredir o objeto, levar a cabo esse ato. Obter prazer, para o
sádico, implica, secundariamente, como condição, fazer sofrer o objeto; a meta primária
é o ganho de prazer. Agredir implica, também secundariamente, um ganho erótico, de
prazer; sua meta é, primariamente, atacar o objeto, até mesmo para defender-se dele,
posto que este pode ser considerado como ameaçador. A relação entre ódio e sadismo
permanece, durante algum tempo, um enigma. Apenas com o artigo sobre o narcisismo,
de 1914, será possível para Freud formular uma articulação e uma diferenciação entre
ódio e pulsão sádica, até então superpostos.
Desde logo, como vimos, a agressão aparece ligada à consecução do ato sexual,
funcionando não como sua coadjuvante como condição necessária à conquista e
manutenção do objeto almejado. Articulada ao sadismo, diferencia-se da destruição e da
pulsão correspondente, a pulsão de destruição, que não se preocupa com a integridade
do objeto nem tampouco com sua conservação como tal. À diferença dessa última, o
tem como meta fazer desaparecer o objeto mas o somente atacá-lo e assegurar o
domínio sobre este, com a finalidade de levar a termo a situação sexual.
Num texto de 1908, em que Freud trabalha a importância das fantasias como
base dos sintomas histéricos, ou seja, em que tenta explicar melhor a relação existente
entre fantasias e sintomas, ele escreve que as formações delirantes dos paranóicos são
fantasias semelhantes às dos histéricos, isto é, fantasias cujos conteúdos correspondem
às situações atuadas, conscientemente, pelos perversos. Seus portadores são os
componentes sado-masoquistas da pulsão sexual. Em alguns casos de histeria, essas
fantasias não são expressas em sintomas mas como realizações conscientes: desse
modo, fingem, encenam atentados, maus-tratos, agressões sexuais (FREUD,
1908a/1986, p. 143).
Em 1911, num texto sobre os sonhos no folclore, escrito em colaboração com o
professor David Oppenheim, de Viena, Freud assinala, baseado num sonho que
desemboca numa agressão sexual executada pela sonhante, que um apuro libidinal
mais extremo pode justificar esse tipo de agressão por parte de uma mulher, de acordo
com sua idéia do sadismo e, por conseguinte, da agressão, ser apanágio do sexo
masculino (FREUD, 1958[1911]/1986, p. 188). Podemos deduzir que, para Freud, as
mulheres não são capazes de agressão sexual a menos que tenham sido preparadas,
incitadas a isso pelos acontecimentos de sua biografia. Essas mulheres são as que
podem oferecer resistência no começo de uma análise (FREUD, 1913b/1986, p. 139).
A hipótese do narcisismo reforçou, por um momento, a relutância de Freud em
aceitar uma pulsão agressiva independente da libido. Pensara que as moções agressivas,
assim como o ódio, poderiam pertencer à linhagem das pulsões de autoconservação;
que estas agora eram também libidinais, não carecia postular, momentaneamente, a
existência de uma pulsão agressiva independente. Todavia, o conceito de narcisismo o
coloca frente a uma possibilidade de abrir mão da dualidade firmemente enraizada em
sua filiação científica. O artigo sobre o narcisismo funcionou como a alavanca para a
construção da segunda teoria das pulsões, adiada ainda por alguns anos. O conceito fica
como que suspenso {aufgehoben} e toda a metapsicologia elaborada entre os anos de
1915 e 1917 trabalha como se ele não existisse.
No texto metapsicológico sobre as pulsões, de 1915, Freud demonstra ter à
sua disposição uma teoria metapsicológica da agressividade. Na primeira teoria
pulsional, a oposição se entre as pulsões sexuais e as de autoconservação, estas
últimas com a função de manter a integridade física e afirmar a existência do sujeito. Na
vigência dessa teoria, Freud vê-se diante de grandes dificuldades para explicar e fazer
derivar sentimentos e condutas flagrantemente agressivos, tais como o ódio e os desejos
de vingança. Toma como ponto de partida o sadismo, como já apontamos, inequívoco
componente da vida sexual dos indivíduos, e cria uma complexa teoria baseada no
funcionamento dos dois grupos de pulsões. A idéia da transformação de amor em ódio
não se sustenta e, já nesse texto, Freud afirma que os dois sentimentos opostos, o amor e
o ódio, não provêm de uma mesma origem, não podendo fazer derivar um do outro.
Nesse momento, não encontrando outra saída, Freud afirma que o ódio provém das
pulsões de autoconservação, mais precisamente da luta do eu por sua conservação e
afirmação” (FREUD, 1915a/1986, p. 123). Essa dificuldade teórica o levará, como
sabemos, a postular a segunda teoria pulsional.
Antes disso, em duas conferências proferidas entre 1916 e 1917, Freud aborda,
de passagem, a pulsão de agressão. Na primeira, a de número 25, assevera que a criança
não se angustia diante da força patente de estranhos nem de suas s intenções: “uma
criança assim, desconfiada, aterrorizada pela pulsão de agressão que governaria o
mundo nada mais é que uma malograda construção teórica” (FREUD, 1917/1986, p
370). Na conferência seguinte, dedicada à teoria da libido e ao narcisismo, Freud faz
uma exposição do quadro melancólico e sua relação com a questão da agressão. Afirma
que o melancólico retirou sua libido do objeto e, através da identificação narcísica, o
erigiu no interior de seu próprio eu. O eu próprio é então tratado como o seria o objeto a
que se renunciou alvo de sentimentos ambivalentes, tanto amor quanto ódio e sofre
todas as agressões e manifestações de vingança antes dirigidas ao objeto (ibid, p. 389).
Como vimos, no caso da melancolia seria mais correto falarmos de destruição que
o modo principal de funcionamento de seu circuito pulsional é o da incorporação,
própria da prevalência da organização oral-sádica, e conseqüente aniquilamento do
objeto; uma vez incorporado, e eliminado como tal, o objeto passa a fazer parte do eu e
é contra esse que agora se voltam os investimentos antes dirigidos ao objeto. Isso resulta
numa autodestruição se seu objetivo for levado às últimas conseqüências.
Preferimos, portanto, considerar que no caso de uma configuração melancólica o
que vigora são pulsões de destruição, ao lado, evidentemente, das de agressão, fato que
pode levar o melancólico à autodestruição, ao suicídio. Entretanto, não podemos
negligenciar a evidência, na vida do homem, de condutas claramente auto-agressivas
que se manifestam das mais variadas maneiras. A auto-agressão está quase sempre
ligada a um sentimento de culpa inconsciente e seu corolário, a necessidade de punição.
Pertencem a essa categoria, por exemplo, os fatores presentes na auto-sabotagem, no
boicote, no apego à doença, na desvalorização de si mesmo, mesmo na
autocomiseração, tantas vezes flagrantes nos tratamentos psicanalíticos. Da mesma
forma que condutas autodestrutivas, as de auto-agressão visam fazer o sujeito pagar por
algum delito sem, contudo, levá-lo à destruição. Por fantasiar ter cometido algum crime,
o sujeito se castiga, se mortifica, se denigre, mas não se destrói. Para que tal aconteça, é
preciso que seus nculos com o mundo tenham sido cortados, que o desligamento da
vida tenha sido completo, enfim, que seus elos vitais tenham sido aniquilados,
destruídos. Assistimos a isso no caso do melancólico onde o sujeito, identificado com o
objeto, tanto amado quanto, mais ainda, odiado, se destrói para destruí-lo. Como diz
Freud, a sensação de fim de mundo ocorre porque, de fato, para aquele sujeito, o mundo
não existe mais, nada mais o liga à realidade, demasiado desconfortável e prodigadora
de dor e sofrimento para que continue a ser investida. Na autodestruição, o sujeito
desiste de suas ligações, eróticas, com a realidade.
Conforme vimos no capítulo sobre a pulsão de dominação, Freud especifica, no
campo das pulsões de autoconservação, como pulsão independente, a ação que assegura
o domínio sobre o objeto. Segundo Laplanche e Pontalis, por esta noção Freud parece
indicar um campo intermediário entre a atividade inerente a toda pulsão e uma
tendência para a destruição pela destruição (LAPLANCHE & PONTALIS, op. cit.). A
pulsão de dominação é uma pulsão originariamente independente da sexualidade, ligada
a uma aptidão especial, a musculatura, e a uma fase definida da evolução psicossexual,
a fase anal-sádica. Diferentemente da agressão e da destruição, é indiferente à pulsão de
dominação causar danos ou fazer sofrer o objeto, coisa que só acontecerá, segundo essa
primeira análise da questão, com o retorno masoquista, momento em que a pulsão de
dominação torna-se indiscernível do sadismo e da excitação sexual que provoca.
Em 1920, com a segunda teoria das pulsões, a agressividade passa a ter um papel
preponderante na teoria. “Dada a obscuridade que hoje envolve a doutrina das pulsões,
não seria avisado rejeitar qualquer idéia que nos prometa um esclarecimento”, escreve
Freud. O uso do termo doutrina não me parece gratuito: um ligeiro deslocamento de
uma teoria a algo doutrinário, que serve para convencer as pessoas, inculcar nelas uma
crença, muitas vezes de modo sentencioso. Diante do tom especulativo de sua segunda
teoria das pulsões, Freud mostra apego à doutrina, a princípios absolutos que ele sabe
que serão, por muitos, rejeitados. As pulsões da segunda teoria adquirem mais e mais o
lugar da mitologia da psicanálise. Essa afirmação não deve ser tomada por um viés de
negatividade. Como nos adverte Garcia-Roza, estaríamos incorrendo em erro grosseiro
se entendêssemos por essa postulação freudiana que a teoria psicanalítica procuraria
estabelecer um “além inatingível e incognoscível em relação ao qual as representações
seriam a aparência ilusória, objeto de um conhecimento defeituoso.” Pensamos que
Freud, ao referir-se a uma mitologia da psicanálise, estaria apontando para a construção
de conceitos que tornariam possível a explicação buscada. Pode-se também considerar
que doutrinar significa amestrar, até mesmo amansar opositores. Freud nos convida a
partir da grande oposição entre pulsões de vida e pulsões de morte para chegar a uma
melhor compreensão do significado tanto da agressão quanto da agressividade no
humano. “No que se refere à teoria das pulsões, a mitologia de Freud nada tem de
mitológica” (GARCIA-ROZA, 1990, p. 11).
Num trecho de Além do princípio de prazer, Freud resume sua teoria sobre a
agressividade. Postula que o sadismo, que, de componente da pulsão sexual, torna-se
autônomo e governa, na qualidade de perversão, toda a aspiração sexual do sujeito, é, na
verdade, uma pulsão de morte afastada do eu pelo esforço e a influência da libido
narcísica, de modo que vem à luz em relação ao objeto como pulsão de agressão”
(FREUD, 1920/1986, p. 52). Depois, entra a serviço da função sexual.
Nesse momento, Freud sinais da diferenciação prestes a surgir entre alguns
derivados das pulsões de morte. Escreve que, durante a fase oral da organização
libidinal, possuir o objeto equivale a destruí-lo, a aniquilá-lo: a dominação amorosa se
confunde com a destruição do objeto. Dito de outra maneira, podemos afirmar, com
Freud, que, nessa fase, é difícil distinguir entre investimento de objeto e identificação:
‘eu amo’ se justapõe, sem haver contradição para o sujeito que está se constituindo, a
‘eu devoro’. A incorporação do objeto, protótipo da identificação, torna-se
indistinguível do investimento de objeto. Nesse momento, é indiferente para o sujeito o
fato de destruir o objeto amado, o objeto que se deseja possuir. A ambivalência ainda
não se instalou e é como se a esse eu incipiente só interessasse o si-mesmo: o mundo lhe
é indiferente. A esse eu Freud dá o nome de eu-realidade-primitivo e afirma que é capaz
de uma distinção absolutamente objetiva entre dentro e fora. Refere ao si-mesmo tanto
as sensações de prazer como as de desprazer, sem fazer delas qualidades do mundo
exterior, que é percebido como indiferente. Esse termo, eu-realidade-primitivo, refere-se
ao primeiro momento da gênese da relação do sujeito com o mundo externo.
Abrindo um parêntese, gostaríamos de falar brevemente desses termos, a saber,
eu-realidade-primitivo, eu-prazer-purificado e eu-realidade definitivo. A primeira
oposição, entre eu-prazer e eu-realidade, surge no texto de 1911 sobre os dois princípios
do funcionamento psíquico e corresponde à oposição que existe entre princípio de
prazer e princípio de realidade. Com esses termos Freud designa a evolução das pulsões
do eu; as pulsões, que começam a funcionar segundo o princípio de prazer, aos poucos
se submetem ao princípio de realidade. Não se trata de duas formas diferentes do eu e
sim de dois modos de funcionamento das pulsões do eu.
Num segundo momento teórico, precisamente no artigo metapsicológico sobre
as pulsões, de 1915, Freud inclui um outro termo, o de eu-realidade do início, ou
primitivo, que antecede o eu-prazer do texto anterior. Aqui é focalizada o a
articulação de um princípio com o outro nem a evolução das pulsões do eu mas a gênese
da oposição sujeito-objeto, ou eu-mundo externo. Para esse eu-realidade-inicial, é
agradável o que lhe diz respeito; o mundo externo coincide com o que é indiferente.
Para o eu-prazer-purificado, que o sucede, sujeito e mundo externo se opõem como
aquilo que é agradável e o que é desagradável. O sujeito coincide com tudo aquilo que é
prazeroso e o mundo com tudo aquilo que é desprazeroso. Essa diferenciação se
através de uma introjeção da parte dos objetos do mundo externo que constituem fontes
de prazer e pela projeção para fora de tudo aquilo que, pertencendo ao de dentro, é
causador de desprazer. Esse seria o primeiro eu propriamente psíquico e coincidiria com
o termo de eu ideal, primeiro eu possível, imaginário, resultado da identificação
originária. A esse eu se segue, como na oposição anterior, um eu-realidade, agora
definitivo, que leva em consideração as limitações impostas pelo princípio de realidade.
Agora, o sujeito quer reencontrar no mundo externo um objeto que corresponda à
representação do objeto primeiro de satisfação e para sempre perdido.
Fechando o parêntese e voltando ao raciocínio interrompido, vemos que, mais
tarde, os investimentos de objeto, partindo do isso, que sente suas aspirações como
necessidades, tomam os objetos como objetos de amor e ódio; o eu, ainda incipiente,
toma conhecimento dos investimentos que emanam do isso, concorda com eles ou busca
defender-se deles mediante procedimentos defensivos, como, por exemplo, o
recalcamento. Durante o desenrolar de sua história, durante seu percurso ontológico, o
eu vai de modificando por identificação e uma das possibilidades é, modificado, se
oferecer ao isso e suas aspirações como objeto substitutivo daqueles interditados.
O componente sádico se separa, depois, e, no estágio genital, assume a função de
dominar o objeto sexual para a consecução do ato sexual: aqui, não se trata de destruir o
objeto mas de dominá-lo para dele se fazer um uso específico. A esse momento do
desenvolvimento psicossexual corresponderia, a nosso ver, a pulsão de agressão, o
mais a de destruição, predominante na fase oral. A pulsão de agressão seria a
responsável por esse movimento deataque” ao objeto, agora com a finalidade de
apreendê-lo e dele usufruir sexualmente. Não se trata mais, definitivamente, de
incorporar o objeto e fazê-lo, assim, desaparecer e sim conquistá-lo para a finalidade
genital. Foi o sadismo, forçado a sair do eu, que ensinou o caminho do objeto aos
componentes libidinais da pulsão sexual. Esse ponto de vista será retomado mais tarde,
em O mal-estar na cultura, de 1930.
Se pulsão de dominação e pulsão de destruição encontraram razoável distinção,
tentaremos especificar o que pertence à pulsão de agressão. Tomando-se como
parâmetro a seqüência do desenvolvimento da relação de objeto através das diferentes
organizações psicossexuais da infância, ressaltando-se o papel do sadismo, da
incorporação destrutiva inicial à dominação do objeto que acompanha a consecução, a
realização do desejo genital, torna-se no mínimo delicada a tentativa de postular para a
pulsão de agressão uma distinção em relação à de destruição, à de dominação e ao
próprio sadismo. Sabemos que Freud reserva o nome de pulsão de agressão
nomeadamente para a parte da pulsão de morte voltada para o exterior, principalmente
com o auxílio da musculatura. Mas a musculatura também é a ferramenta da dominação
e essa parcela da pulsão de morte voltada para o exterior também é chamada de pulsão
de destruição. Penso que, mais adiante, poderemos especificar mais claramente essa
distinção através das diferentes fontes e metas das mesclas pulsionais.
No momento, parece-nos que a destruição se alia à incorporação oral, à fase
canibalística, em que a meta é fazer desaparecer o objeto, é aniquilá-lo; desse modo,
seria típica da melancolia em que, através da identificação, que tem por protótipo
precisamente a incorporação, os vínculos objetais desaparecem e o objeto é introjetado,
passando a fazer parte do eu, que segue, assim, modificado. Por sua vez, a dominação se
atrela à fase anal-sádica, e, inicialmente sem finalidade de obter prazer, visa subjugar,
controlar, submeter o objeto, mantendo-o como tal; tanto o perverso sobretudo nos
casos de sadomasoquismo – quanto o neurótico obsessivo fazem amplo uso desse
procedimento. O sadismo típico dessa configuração é ou atuado, no caso da perversão,
ou se expressa nos sintomas, no caso da neurose. Em ambas as configurações, o
sadismo desempenha papel preponderante. Resta-nos encontrar para a agressão alguma
especificidade. Guardemos uma diferenciação singela, entre os termos e sua etimologia:
agredir significa, grosso modo, atacar, agarrar, aproximar-se de; destruir aponta para a
aniquilação, o desaparecimento do objeto; dominar tem o sentido de ter poder sobre,
subjugar.
Mesmo de posse do conceito de pulsão de morte, a agressão ainda não é
considerada, por Freud, como algo primário, originário. No seu artigo de 1920, Freud
trata a pulsão de agressão como secundária, derivando da pulsão de morte, esta sim,
primária e autodestrutiva. Em Psicologia das massas e análise do eu, texto de 1921,
lemos que se percebe uma predisposição ao ódio no ser humano toda vez que ele se
frente a diferenças: o amor de si se comporta como se qualquer divergência fosse uma
ameaça à sua integridade. Mesmo não compreendendo o porquê dessa sensibilidade
frente às diferenciações, Freud atesta a existência de uma agressividade cuja origem é
desconhecida e a qual se fica tentado atribuir a um caráter elementar (FREUD,
1921/1986). Afirma ser inegável a manifestação de uma aptidão primária para o ódio.
Aqui se prenuncia a tese que Freud desenvolverá no texto de 1930.
Em O Eu e o Isso, de 1923, Freud dedica-se, em grande parte, às questões aqui
examinadas. São inúmeras as menções à destruição e à sua pulsão específica mas
relativamente poucas à agressão e à agressividade. Encontramos, todavia, alguma
indicação para nossa tentativa de diferenciação. Assim, no capítulo IV, Freud escreve
que existem casos em que amor e ódio por vezes se alternam, o que nada tem a ver com
o problema em pauta. “Um enamoramento ainda o manifesto se exterioriza primeiro
em hostilidade e inclinação a agredir, pois, em conseqüência do investimento de objeto,
o componente destrutivo poderia ter chegado ali antes, juntando-se a ele, depois, o
componente erótico” (FREUD, 1923/1986, p. 44).
O componente destrutivo seria, pois, anterior à ligação mais efetiva com Eros,
que o transformaria em algo menos intenso e demoníaco, uma inclinação a agredir. A
impressão que fica é a de que agredir é menos brutal e mais adiantado que destruir,
apontando para certo amansamento da fúria primeira e a um ulterior desenvolvimento
na série das fases da sexualidade.
Paradoxalmente, parece-nos que a agressividade e a agressão são anteriores,
ontologicamente, à destruição e à dominação. Poderíamos adiantar que a agressividade
se instala primariamente, como um resultado da deflexão das pulsões de morte para o
exterior, de onde resulta o sadismo como situação primordial. Primário é também o
masoquismo, resultante do tanto de pulsão de morte que, não tendo sido lançada para
fora, permanece no interior do sujeito, ligada eroticamente e tomando ao si mesmo
como objeto. A agressividade é aquilo que se instala entre sujeito e mundo, tensão
necessária à manutenção dessa primitiva e precária separação, contraface de um
narcisismo originário. A inoculação primeira por Eros, pelo amor que um outro lhe
dedica, opera essa expulsão de parte da pulsão de morte em direção aos objetos, que
assim se constituem. O que não foi passível dessa expulsão, o masoquismo primário e
erógeno, se dedicará a extrair prazer com o próprio sofrimento. Diferente desses
primeiros acontecimentos, a agressividade se encarregará de manter essa distribuição
mantendo o sujeito separado de todo o resto. O que separa, essa tensão entre sujeito e
mundo, é próprio da agressividade que se instala. A agressividade, desse ponto de vista,
pode ser entendida como um procedimento defensivo. E surge como própria do eu,
uma agressividade narcísica de um eu ameaçado, que pede ajuda. Talvez possamos
pensar essa agressividade originária como correlata da tensão da configuração narcísica.
No Vocabulário da Psicanálise lemos que a agressividade pode ser definida
como uma tendência que se atualiza em comportamentos reais ou fantasmáticos que
visam “prejudicar, destruir, constranger, humilhar o outro” (LAPLANCHE &
PONTALIS, op. cit., p. 40). Essa é uma definição que abrange mais de um derivado da
pulsão de morte e a idéia de a agressividade ser um substrato pulsional, presente
tanto em ações motoras violentas como no caso das ações ditadas pela pulsão de
agressão e destruidoras, resultantes da atuação da pulsão de destruição, assim como
em comportamentos tanto “negativos” quanto positivos”, simbólicos ou atuados. Essa
definição dota a noção de agressividade de uma amplidão desconcertante. Ao localizar a
pulsão de morte na própria origem do sujeito, ao fazer da auto-agressão o princípio
mesmo da agressividade, Freud desmonta a noção de agressividade como era
classicamente descrita, isto é, como constituindo um modo de relação com o outro,
como uma forma de violência exercida sobre o outro. Segundo os autores, para Lagache
a agressividade, assim entendida, não expressaria mais do que certas formas de
atividade.
Logo adiante, ainda em O eu e o isso, Freud menciona a paranóia persecutória
como exemplo diferente, indicativo de uma transformação. Segundo ele, o paranóico se
defende, de maneira peculiar, de uma ligação homossexual muito intensa com uma
pessoa e esta passa a ser seu perseguidor, contra quem se dirige, então, a agressão; aqui,
o amor teria se transformado em ódio, idéia anteriormente abordada, no artigo
metapsicológico sobre as pulsões. Acrescenta que, muito recentemente, a investigação
psicanalítica levada a cabo em relação à gênese da homossexualidade e dos sentimentos
sociais dessexualizados, descobriu a existência de violentos sentimentos de rivalidade
que podem desembocar em agressão. Invoca, novamente, a possibilidade de uma
transposição direta de ódio em amor.
No capítulo V, ao traçar uma comparação entre a melancolia e a neurose
obsessiva, Freud escreve que, na neurose obsessiva, uma regressão à organização pré-
genital anal-sádica possibilita que os impulsos de amor se transponham em impulsos de
agressão dirigidos ao objeto. Como conseqüência, a pulsão de destruição se libera e
quer aniquilar o objeto. O eu não acolhe essas tendências, se revolta contra elas com
formações reativas e medidas de precaução” (FREUD, 1923/1986, p. 54). Aqui temos
mais uma preciosa indicação: a pulsão de destruição se apresenta depois que, em
conseqüência de uma regressão significativa e em processo, as moções amorosas se
transpuseram em moções de agressão, por meio de um reforço, ou melhor, de um débito
de moções eróticas, e, de regressão em regressão, desembocaram na oralidade sádica e
destrutiva. As tendências destrutivas permanecem no isso mas o supereu se comporta
como se o eu fosse responsável por elas. “As perigosas pulsões de morte são tratadas de
diversas maneiras no indivíduo: em parte são tornadas inofensivas pela mescla com
componentes eróticos, em parte se desviam para fora como agressão, mas em boa parte
prosseguem seu trabalho interior sem ser impedidas”. Ou seja: as pulsões de morte têm
sua potência diabólica atenuada pela ligação erótica, podendo ser enviadas aos objetos
sob a forma de pulsões de agressão; aquelas que prosseguem seu trabalho interior”
podem trazer grande perigo para o sujeito: como pulsões de autodestruição, voltadas
para o próprio sujeito, podem levá-lo à morte.
E acrescenta, prosseguindo a diferenciação entre melancolia e neurose
obsessiva:
“Nela [a neurose obsessiva], as constelações são diferentes. A desfusão
(desmescla) do amor em agressão não foi efetuada por uma operação do eu,
mas é a conseqüência de uma regressão que ocorreu no isso. Esse processo,
porém, transbordou do isso sobre o supereu, que agora aumenta a sua
severidade contra o inocente eu. Porém, nos dois casos [neurose obsessiva e
melancolia], o eu, que dominou a libido mediante identificação, sofreria, em
troca, por parte do supereu, o castigo por meio da agressão misturada com a
libido” (ibid, p. 55).
Nesse momento, Freud enuncia uma equação que será mantida daqui por diante:
quanto mais o sujeito limita sua agressão em direção ao mundo externo, tanto mais
severo e, em conseqüência, mais agressivo se torna seu supereu. Essa fórmula pode
parecer absurda pois seria de se esperar que as exigências do supereu, tomando como
modelo o ideal do eu, seriam um bom motivo para que a agressão fosse sufocada. Mas
não: quanto mais um ser humano submete sua agressão, tanto mais aumentará a
inclinação de seu supereu a agredir seu eu. Freud retomará esse paradoxo no texto sobre
o mal-estar.
Logo adiante, na mesma página, diz que com a sublimação, o componente
erótico não possui a força necessária para ligar toda a destruição enlaçada com ele e
esta se libera como inclinação de agressão e destruição. Portanto, me parece que são
dois os modos de as pulsões de morte não-ligadas se expressarem no mundo, depois que
Eros perdeu sua potência de ligação, em decorrência da dessexualização empreendida
com a sublimação: agressão e destruição.
Ao examinar as relações do eu com as outras instâncias do aparelho, Freud
postula que o trabalho de sublimação empreendido pelo eu resulta numa desintricação
pulsional e numa liberação das pulsões de agressão dentro do supereu. A luta do eu
contra a libido o expõe ao perigo do mau-trato e da morte. Nesse jogo entre as
instâncias, verificamos um alargamento do campo de ação da agressividade depois de
1920. A agressividade não se encontra apenas nas relações com o objeto ou com o si-
mesmo, no caso de uma auto-agressão: ela se apresenta nas relações entre as instâncias,
num modo intrapsíquico de se expressar como, por exemplo, no acima mencionado
conflito entre supereu e eu.
Por outro lado, conforme mencionamos acima, ao postular a pulsão de morte
como originária no ser humano, Freud à auto-agressão o lugar inicial da
agressividade, mudando fundamentalmente a noção que apontava a agressividade como
um modo de relação com o objeto alheio, com outra pessoa. O masoquismo, agora o
primário quanto o sadismo, nos fala disso.
No texto sobre o masoquismo, de 1924, verificamos novamente um certo
descuido com a especificidade dos termos e condutas a que se referem. Ao abordar a
questão do sadismo que volta sobre a própria pessoa, Freud escreve que isso se deve à
exigida sufocação cultural das pulsões, em que o sujeito se abstém de aplicar no mundo
externo uma boa parte de suas moções destrutivas. Esse sadismo se acrescentará ao
masoquismo primário, constituindo o masoquismo secundário, e os fenômenos da
consciência moral apontam para o fato de a destruição não atuada no mundo externo ser
acolhida pelo supereu, onde reforçará o sadismo deste em relação ao eu.
“Opino que só assim podemos compreender que da sufocação das pulsões
resulte – com freqüência ou na totalidade dos casos - um sentimento de culpa, e
que a consciência moral se torne tanto mais severa e suscetível quanto mais a
pessoa se abstenha de agredir os demais. Poder-se-ia esperar que um indivíduo
que sabe que pode evitar agressões culturalmente indesejáveis, terá por isso
uma boa consciência e vigiará seu eu com menos desconfiança” (FREUD,
1924a/1986, p. 175).
Existe, pois, um sadismo do supereu e um masoquismo do eu, como vimos no
capítulo sobre o sadomasoquismo, ambos modificados e reforçados pela não satisfação
das moções destrutivas no mundo externo. Mas o supereu não visa destruir o eu e sim
atormentá-lo, exigir dele maiores e melhores realizações e enchê-lo de culpa que isso
não é possível. A destruição que retorna à própria pessoa se encontra, ali, sob essa
forma. Essas forças, entretanto, podem levar à destruição não do eu propriamente, mas
do sujeito, no caso do suicídio.
A destruição é culturalmente indesejável; mas será que podemos dizer o mesmo
da agressão em geral? Quando dizemos que alguém é agressivo, nem sempre queremos
dizer que essa pessoa é destrutiva. Há agressões que o sujeito perpetra contra si mesmo,
assim como condutas autodestrutivas, que são bem diferentes. Retomaremos essa
questão mais adiante e com maior clareza. Queríamos apenas apontar que, num texto de
1924, posterior à renovação teórica, Freud parece usar indistintamente as duas noções, a
destruição e a agressão, como se fossem sinônimos.
Propomos pensar que a agressão, mais até que a agressividade, diz respeito a um
comportamento ditado pela questão que permeia fusão e desfusão. Quando opomos Eros
e pulsão de morte, ligação e ‘des-ligação’, passamos a considerar a agressão como
resultante de uma desfusão, um triunfo da pulsão de morte, na medida em que esta visa
e consegue fazer desaparecer as unidades complexas que Eros tende a criar e manter.
Nesse sentido, a agressividade, que estaria por trás das condutas de agressão, seria uma
força desorganizadora e fragmentante; uma tendência, uma proclividade que se
atualizaria através desse representante da pulsão de morte que é a pulsão de agressão.
Dentro do mesmo enfoque, poderíamos considerar o masoquismo primordial como uma
manifestação da agressividade ligada, dessa vez, à organização narcísica.
Num texto imediatamente posterior, Inibição, sintoma e angústia, escrito ainda
em 1925, Freud abre uma perspectiva interessante. Ao mencionar as moções pulsionais
recalcadas nas fobias descritas nos dois casos clínicos conhecidos como o pequeno
Hans” eo homem dos lobos”, escreve que essas moções eram do tipo hostil e dirigidas
ao pai. Entretanto, através do processo de mudança à parte contrária {Verwandlung ins
Gegenteil} – conforme postulado em Pulsões e destinos de pulsão -, em lugar da
agressão contra o pai verifica-se uma agressão contra a própria pessoa. “Visto que essa
agressão se acha, em qualquer caso, enraizada na fase sádica da libido, somente lhe falta
uma certa degradação à fase oral (...)” (FREUD, 1926[1925]/1986, p. 101). Essa
degradação, proveniente de uma regressão, se expressa, nos dois casos, em fantasias de
ser mordido e ser devorado. Uma moção de agressão, hostil, ao regredir à oralidade,
encontra expressão em moções mais próximas da destruição. Isso poderia indicar que a
agressão e a agressividade são típicas de uma fase de desenvolvimento posterior à da
destruição, pertencente, esta última, sem dúvida, à oralidade sádica e ao devoramento
como forma de relação de objeto. A agressividade e a pulsão de agressão, mesmo
primárias e anteriores, na cronologia da existência do sujeito, às pulsões de dominação e
destruição, encontrariam seu mais propício momento de expressão quando o sujeito
tivesse atingido a genitalidade infantil, a fase lica do desenvolvimento psicossexual.
Nesse momento, seu uso se destinará a se aproximar, a “atacar” seu objeto sexual,
visando à obtenção de um prazer da ordem do genital, mesmo que infantil. A criança
que já chegou ao drama edípico e dele abre mão, entrando na latência, pode apresentar
condutas claramente agressivas, em total revolta pela renúncia de seus objetos.
Agressivas mas em nenhum momento necessariamente destrutivas.
Em O futuro de uma ilusão, texto de 1927, encontramos, novamente, indícios de
uma possível diferenciação. Ali Freud escreve que muitos homens cultos se horrorizam
diante do assassinato ou do incesto mas “que não se negam {Versagung} a satisfação de
sua avareza, de seu gosto de agredir, de seus apetites sexuais (...)” (FREUD, 1927a, p.
12). Não sendo capazes de uma interiorização das proibições culturais, nada mais lhes
restaria que destruir a própria cultura e cancelar suas premissas. Ou seja: para poder
satisfazer suas moções de agressão, tais homens não hesitariam em destruir a cultura e,
desse modo, acabar com suas interdições. O prazer de agredir exige, para sua satisfação,
que se destrua a cultura. Parece-nos bastante claro, nesse trecho, que agressão e
destruição são metas distintas.
Num pequeno artigo, escrito em cinco dias durante o mês de agosto de 1927,
Freud retorna ao tema examinado no livro sobre os chistes, à luz, agora, do novo
esquema tópico de aparelho psíquico. Considera que o humor não é resignado e sim
opositor; não apenas significa um triunfo do eu como também o do princípio do prazer,
capaz de superar as circunstâncias reais desfavoráveis. Desse modo, o humor se
aproxima dos processos regressivos encontrados na formação de sintomas. Com sua
defesa diante do sofrimento, pertence aos métodos que o homem desenvolveu para
escapar da compulsão ao sofrimento. A isso o humor deve uma dignidade “que falta
completamente ao chiste, pois o chiste serve apenas para um ganho de prazer ou põe
esse ganho a serviço da agressão” (FREUD, 1927b/1986, p. 12).
Finalmente, chegamos a O mal-estar na cultura, de 1930, tantas vezes
mencionado e tanto mais fundamental para a sustentação de nossa hipótese. Existe o que
pode ser considerado como o tema central do livro, que é a oposição, o embate
encarniçado entre as exigências pulsionais e os limites a elas impostos pela cultura. A
seguir, em ordem de importância, Freud se ocupa do sentimento de culpa, “o problema
mais importante do desenvolvimento cultural” (FREUD, 1930/1986, p. 130). Sobre isso
surge nossa questão, a que diz respeito à pulsão de destruição e à de agressão. Será
sempre muito difícil discernir os trechos do texto que tratam de uma ou de outra dessas
pulsões, assim como está clara a dificuldade de distinguí-las entre si, se jamais isso será
possível.
No final do capítulo IV, em que trata das renúncias à satisfação sexual a que o
homem civilizado se vê obrigado a fazer, numa nota de pé de página, após longa
digressão sobre a bissexualidade, Freud escreve que outra dificuldade deriva de que o
vínculo erótico, além dos componentes sádicos que lhe são próprios, freqüentemente
tem acoplado a si uma quantidade de inclinação à agressão direta” (ibid, p. 103, n. 5).
Acrescenta que nem sempre o objeto de amor mostrará muita tolerância diante dessas
complicações. Propõe que pensemos na hipótese de que as restrições à plena satisfação
sexual não são apenas devidas à cultura mas que estão na própria essência da função.
No capítulo seguinte, Freud aborda a iia de que a cultura exige dos homens
outros sacrifícios, além da renúncia à satisfação sexual plena. Assevera que a exortação
a amar o próximo como a si mesmo é inteiramente descabida e por várias razões; entre
elas, reside uma verdade, um “fragmento de realidade efetiva que se procura
desmentir”:
“o ser humano não é um ser manso, amável, no máximo capaz de se defender
se atacado, mas sim que é lícito atribuir a sua dotação pulsional uma boa quota
de agressividade. O próximo não é apenas um possível auxiliar e objeto sexual
mas sim uma tentação para satisfazer nele a agressão, explorar sua força de
trabalho sem ressarci-lo, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, tirar-lhe
seu patrimônio, humilhá-lo, infligir-lhe dores, martirizá-lo e assassiná-lo” (ibid,
p. 108).
Parece-nos que aqui Freud esboça uma discriminação: a “boa quota de
agressividade” está por trás de todas as ações a seguir nomeadas e diferenciadas, toda a
iniqüidade de que o homem é capaz, a nosso ver: essa agressividade leva o homem a
tentar satisfazer no outro sua agressão leia-se sua pulsão de agressão -, a enganá-lo e
explorá-lo, abusar dele sexualmente e lesá-lo, enfim, dominá-lo fazendo uso de sua
pulsão de dominação -, humilhá-lo e lhe causar dores e sofrimentos leia-se sadismo -,
torturá-lo e finalmente matá-lo, aí sim, satisfazendo sua pulsão de destruição.
Entretanto, prossegue Freud, tentando amenizar a dureza de suas afirmações,
essa agressão cruel geralmente é resposta a uma provocação. Quando, porém, estão
ausentes as forças anímicas contrárias que conseguem inibi-la, a agressão se manifesta
de forma espontânea e mostra os seres humanos como realmente são, animais selvagens
que o poupam nem os membros de sua própria espécie. Aquilo que atrapalha nossas
relações com os outros e obriga a cultura a grandes gastos de energia para se manter é
justamente essa inclinação agressiva, essa hostilidade primária e recíproca dos humanos.
O homem não é naturalmente bom, como o queria Rousseau.
A civilização tem que concentrar esforços em limitar as pulsões agressivas dos
seres humanos, através de formações psíquicas reativas. Daí o interesse em modificar as
moções mais grosseiras em moções de meta inibida, de dirigi-las para alvos aceitos pelo
grupo social, de limitar a vida sexual e o mandamento de amar o próximo como a si
mesmo. Diz Freud que nada contraria mais frontalmente a natureza humana originária.
Discorre, a seguir, sobre a ilusão criada pelo comunismo que o ser humano como
bom, corrompido, em sua natureza, pela instituição da propriedade privada. Não, diz
ele: a agressão não foi criada pela instituição da propriedade, existe desde sempre e
reinou absoluta em tempos imemoriais.
“Não é fácil para os seres humanos, evidentemente, renunciar a satisfazer esta
sua inclinação agressiva.” Os grupos pequenos apresentam uma vantagem: a de poder
fazer uso dessa pulsão de agressão na hostilização de estranhos. Agredimos, com menos
culpa, aqueles que estão fora de nosso círculo mais íntimo. Assim, encontra-se uma
“satisfação relativamente cômoda e inofensiva da inclinação agressiva”, o que acaba por
colaborar com a coesão da comunidade.
“Posto que a cultura impõe tantos sacrifícios não apenas à sexualidade como
também à inclinação agressiva do ser humano, compreendemos melhor que os
homens dificilmente se sintam felizes dentro dela” (ibid, p. 111).
No capítulo VI, a guisa de um resumo do que foi visto até esse ponto, Freud
introduz a dúvida de que “o reconhecimento de uma pulsão de agressão especial,
autônoma, implicaria uma modificação da doutrina psicanalítica das pulsões.” Mas não
é bem assim: na verdade, nada mais provocou do que um avanço na teoria das pulsões,
território mais pantanoso e obscuro de toda a doutrina. Desde o começo, como vimos,
entre as pulsões de objeto, isto é, as pulsões libidinais dirigidas ao objeto, destacou-se a
pulsão sádica, cuja meta não era precisamente amorosa. Se, inicialmente, Freud as
anexou às pulsões egóicas, agora é o momento de ele reconhecer que, apesar do
aparente parentesco delas com as pulsões de dominação, algo ficara sem compreensão e
sem resposta. A resposta vem sob a forma do conceito de pulsão de morte. “Além da
pulsão a conservar a substância viva e reuni-la em unidades cada vez maiores, devia
haver outra pulsão, oposta a ela, que luta por dissolver essas unidades e por reconduzi-
las ao estado inorgânico inicial” (ibid, p. 115).
Junto a Eros, em oposição e conjugada a este, uma pulsão de morte. Pois estão aí
expostas as duas forças fundamentais da vida anímica, cuja conjugação e antagonismo
são responsáveis por todos os fenômenos vitais: pulsões de vida e pulsões de morte que,
combinadas, produzirão os derivados, entre eles aqueles que o são das pulsões de morte,
predominantemente, por apresentarem a meta alterada por estas e agindo
predominantemente a seu serviço. Não encontramos motivo para fazermos, por
exemplo, da pulsão de destruição um sinônimo da pulsão de morte; ela é antes um
derivado, um derivado específico, cujo alvo é aniquilar o objeto. Isso está claro no
trecho em que Freud escreve que uma parte da pulsão [de morte] se dirigia ao mundo
externo e então vinha à luz como pulsão a agredir e destruir. Só assim podia ser
observada que seu trabalho dentro do ser vivo, visando sua dissolução, é silencioso e
indiscernível.
Agredir e destruir, duas metas distintas, que diminuem o risco de o sujeito se
destruir a si mesmo, na medida em que grandes parcelas dessas duas inclinações são
utilizadas no objeto. “Ao contrário, se esta agressão para fora era limitada, isso só podia
trazer como conseqüência um aumento da autodestruição, aliás, sempre presente” (ibid,
p. 116). Podemos entender, a partir dessa frase, que uma limitação da agressão para fora
aumenta os riscos de uma destruição voltada para o si mesmo próprio, esta uma
inclinação originária.
Freud se pergunta, em determinado momento do texto, como a cultura inibe a
agressão. Responde que a agressão é introjetada, interiorizada, reenviada ao ponto de
partida, onde havia, antes, pulsão de morte. E acrescenta: quanto maior a quantidade
de pulsões de morte que for lançada para fora, tanto melhor para o sujeito porque
menores parcelas delas ficarão retidas dentro do sistema. Entretanto, a agressão volta ao
próprio eu, exigência da limitação de sua quantidade voltada para o objeto: é
recolhida por uma parte dele que se contrapõe ao resto como supereu. Este é o preço
pago para que a cultura, o grupo social, se mantenha: acolher de volta no eu a agressão
que antes estava dirigida aos objetos.
Ora, esse movimento é como um retrocesso e constitui o paradoxo da vida do
homem: ou ele adoece porque contém muita agressão ou se torna uma ameaça para seu
grupo se a exterioriza na justa medida para proteger sua própria integridade, a de seu eu.
Acaba sendo tarefa do supereu aplacar a intensidade da agressão ao acolhê-la e,
conseqüentemente, ligá-la. Se assim não o fizer, é a morte. Outro paradoxo é o que se
apresenta entre a verdadeira natureza do homem e sua luta contra a natureza externa, o
mundo sico. Para enfrentar o mundo, o homem precisa se unir a outros homens; para
isso, para viver em grupo, ele tem de abrir mão da satisfação de suas pulsões mais
brutas, satisfação essa que é insubstituível.
Assim como no sadismo, em que se encontra uma liga particularmente forte
entre o amor e a pulsão de destruição, no masoquismo estamos frente a uma conexão da
destruição com a sexualidade, dirigida para dentro, escreve Freud. Não seria mais
preciso falar de um enlace primário entre a pulsão de morte e Eros, daí resultando a
pulsão de destruição, ou ainda, o sadismo? Aliás, o primeiro momento dessa liga
efetivamente constituiria tanto o masoquismo originário quanto o sadismo. Gostaria de
propor que considerássemos que, da primeiríssima ligação entre Eros e pulsão de morte
resultariam masoquismo originário, erógeno, e sadismo também originário. Esse
sadismo, primeiro estado derivado desse enlace, junto com o masoquismo, seria um
componente da sexualidade, presente em todo sujeito e voltado para fora, para o objeto,
efetivamente abrindo caminho ao objeto. Além dessa exteriorização da conexão entre as
duas pulsões fundamentais, teríamos o sadismo tornado perversão, além da pulsão de
dominação, da pulsão de agressão e da pulsão de destruição, estas três voltadas tanto na
direção do mundo externo, do objeto, como voltadas contra o si mesmo, num
movimento, defensivo, de retorno à própria pessoa. A balança econômica diz que
quanto mais se enviam essas tendências para fora, tanto menos elas se voltam contra o
próprio sujeito. Quanto mais sofrem limitações essas tendências para o exterior, tanto
maior vai ser o prejuízo de um investimento no si mesmo.
No parágrafo seguinte, Freud estabelece uma equivalência entre pulsão de morte
e pulsão de destruição, usando a conjunção coordenativa ou, indicativa de um uso
explicativo: a suposição da pulsão de morte ou de destruição (...).” que aqui não se
trata de uma alternância ou de uma exclusão, tampouco de uma dúvida ou incerteza,
entendemos que seu uso seja explicativo, ou seja, um equivalente de ‘isto é’, uma outra
maneira de dizer algo. O próprio Vocabulário da psicanálise, obra de referência teórica
da psicanálise, aponta para essa dubiedade em sua definição de pulsão destrutiva: às
vezes a sua extensão é a mesma da expressão “pulsão de morte”, mas na maior parte dos
casos qualifica a pulsão de morte enquanto orientada para o mundo externo. Acrescenta
que, neste sentido mais específico, Freud também usa a expressão pulsão agressiva
(LAPLANCHE & PONTALIS, op. cit., p. 510-11). Ou seja: não se especifica cada um
dos termos, seguindo-se certa frouxidão terminológica iniciada pelo próprio Freud.
Ainda no mesmo parágrafo mencionado acima, Freud admite que não pôde
evitar reconhecer as exteriorizações da pulsão de destruição, dirigida para fora e para
dentro, com forte liga de erotismo, no sadismo e no masoquismo. Entretanto, não
compreende que possamos passar por alto a ubiqüidade da agressão e destruição não
eróticas.” Acrescenta que a mania de destruição dirigida para dentro quase sempre
escapa da percepção se não estiver colorida de erotismo. Nesse trecho, o uso da
conjunção aditiva e aponta para a possibilidade de se tratar de duas coisas diferentes
que sua utilização é a de unir palavras distintas. Admite que sua atitude defensiva
quando surgiu na literatura psicanalítica a idéia de uma pulsão de destruição faz parte do
passado. Mas reconhece que não agrada a ninguém a hipótese de “uma inclinação inata
do ser humano ao ‘mal’, à agressão, à destruição e, com elas, também a crueldade”
(FREUD, 1930/1986, p. 116). Novamente Freud parece fazer uma distinção entre os
termos destruição e agressão. Da mesma forma, insinua que mal e crueldade são duas
coisas diferentes.
Em seguida a um parágrafo dedicado à destruição, Freud volta a escrever que a
inclinação agressiva é uma disposição pulsional autônoma, originária, do ser humano. E
que a cultura encontra nessa disposição o maior obstáculo à sua manutenção e
sobrevivência. A cultura pode ser considerada como um processo a serviço de Eros,
com o objetivo de juntar os indivíduos isolados em uma grande comunidade, a
humanidade como um todo. A essa meta da cultura, se opõe a pulsão de agressão
natural dos seres humanos, a hostilidade de um contra todos e de todos contra um. “Esta
pulsão de agressão é o derivado e o principal delegado da pulsão de morte que
descobrimos junto a Eros, e que compartilha com este o governo do universo” (ibid, p.
118). O desenvolvimento da cultura tem que nos ser esclarecido pela luta entre Eros e
Morte, pulsão de vida e pulsão de destruição. No mesmo trecho em que nos diz que a
pulsão de agressão é o principal sub-rogado da pulsão de morte, estabelecendo,
portanto, uma diferença entre os dois termos, utiliza destruição como sinônimo de
pulsão de morte, produzindo um efeito, esse sim, de total obscuridade. Gostaríamos de
salientar, de passagem, o vínculo que parece se estabelecer entre pulsão de agressão e
hostilidade.
No capítulo VII, Freud retoma a questão da constituição do supereu e sua
relação com as moções derivadas das pulsões de morte.
Ao se perguntar sobre os meios que a cultura utiliza para inibir ou mesmo
erradicar a agressão que a ameaça, sobre o que acontece com o sujeito para que se torne
inócuo seu gosto pela agressão, encontra resposta na introjeção da agressão, sua
interiorização. Na verdade, a agressão é enviada de volta a seu ponto de partida, o eu
próprio. A cultura jugula as tendências agressivas do sujeito vigiando-o do interior,
mediante uma instância constituída a partir da internalização de sua própria agressão,
antes dirigida aos objetos. O supereu é a marca diferencial do homem, desse ser da
cultura, noção introduzida desde o texto Totem e tabu, de 1913. E por ser assim, o
homem está condenado ao sofrimento, ao mal-estar.
Ainda nesse mesmo capítulo, Freud tratará da constituição da consciência moral
e do subseqüente sentimento de culpa. O homem não tem uma capacidade originária de
diferenciar o bem do mal. O mal não é apenas aquilo que é prejudicial para o eu; pode
ser também aquilo que o eu deseja e que lhe traz contentamento. O que vai determinar o
que é bom e o que é mau para o sujeito, sua ética, é uma influência externa, alheia ao
próprio sujeito; surge da situação de desamparo fundamental e dependência total do
sujeito diante do mundo e dos outros. Sua primeira angústia surge diante da
possibilidade da perda do amor de um outro de quem se depende. As s ões, por
assim dizer, o mau, são, inicialmente, tudo aquilo pelo qual o sujeito é ameaçado com a
perda desse amor e com o castigo por parte dessa autoridade poderosa. Esse outro passa
a ser uma figura de autoridade, que influenciará as escolhas diante do que é bom e do
que é mau. Quando essa autoridade é interiorizada, instaura-se o supereu: a partir
desse momento podemos efetivamente falar de consciência moral e sentimento de culpa.
A renúncia à satisfação pulsional é a conseqüência da angústia frente à ameaça
de perder o amor da autoridade externa, de quem se depende inteiramente; depois, essa
angústia passa a se relatar à ameaça da perda do amor do supereu. Diante do supereu, a
renúncia à satisfação pulsional não é suficiente porque o desejo persiste e nada pode ser
escondido do supereu, essa autoridade agora interna, que tudo sabe. A infelicidade que
ameaçava o sujeito de fora, perda do amor e castigo, transformou-se em infelicidade
interna permanente, a tensão da consciência de culpa. O homem age movido por
conveniência, não se podendo, portanto, esperar muito dele.
Freud propõe uma seqüência temporal para esses acontecimentos. Primeiro,
temos a renúncia do pulsional como resultado da angústia frente à agressão da
autoridade externa, que o amor seria capaz de proteger o sujeito dessa agressão
punitiva. Depois, instauração da autoridade interna, renúncia ao pulsional como
conseqüência da angústia diante dela, angústia da consciência moral. “A agressão da
consciência moral conserva a agressão da autoridade” (ibid, p. 124). Propõe também
que tomemos o exemplo da pulsão de agressão e a renúncia a esta tendência para
melhor compreendermos o aspecto severo e agressivo da instância superegóica. O que
poderíamos imaginar como sendo um efeito bom da renúncia ao pulsional se transforma
em seu oposto: cada fragmento de agressão de cuja satisfação o sujeito se abstém é
acolhido pelo supereu e aumenta sua agressão contra o eu.
Entretanto, algo aqui que não funciona muito de acordo com o que foi dito,
isto é, que a agressão originária da consciência moral é uma continuação da severidade
da autoridade paterna, o tendo nada a ver com uma renúncia. Podemos resolver isso
postulando outra gênese para a primeira dotação agressiva do supereu: diante de uma
autoridade que representava um estorvo às primeiras satisfações da criança, esta foi
tomada por uma inclinação fortemente agressiva, o importa quais renúncias deveria
vir a fazer. A criança se viu forçada a renunciar à satisfação dessa agressão vingativa,
acolhendo dentro de si, por identificação, essa autoridade inatacável, que agora se torna
seu supereu e se apossa de toda a agressão que a criança gostaria de ter manifestado
contra a autoridade. O ponto principal consiste em que a severidade originária própria
do supereu não é inteiramente aquela que a criança sofreu por parte dessa autoridade ou
que lhe foi atribuída: ela representa a agressão da própria criança contra esse objeto.
Efetivamente, completa, a consciência moral nasceu, inicialmente, pela sufocação de
uma agressão e a seguir se reforça por novas sufocações desse tipo exigidas. “A
agressão vingativa do filho é comandada [co-mandada, isto é, resultante das duas
possibilidades] pela medida da agressão punitiva que espera do pai”, em resposta ao seu
próprio desejo de agredir (ibid, p. 125).
Se a criança reage com uma agressão intensíssima e uma correspondente
severidade do supereu diante das primeiras frustrações aos seus anseios pulsionais, isso
pode ser remontado à filogênese e ultrapassa a justa reação a se esperar na atualidade. O
sentimento de culpa da espécie humana descende do complexo de Édipo e foi, em
tempos imemoriais, o resultado do parricídio perpetrado pela união dos irmãos. Nessa
ocasião, a agressão não foi sufocada e sim executada. Essa é a mesma agressão que,
agora sufocada, é a fonte do sentimento de culpa, admitido diante do supereu. A culpa
se liga aos sentimentos ambivalentes existentes no homem: uma vez satisfeito o ódio
pela agressão, o amor, dirigido ao mesmo objeto, faz surgir o arrependimento e a culpa.
Pela via da identificação com o pai, institui-se o supereu, ao qual se confia o poder do
pai como castigo pela agressão perpetrada contra ele.
Freud assevera que o se deve falar de consciência moral antes do surgimento
do supereu; a consciência de culpa, ou sentimento de culpa, ao contrário, é anterior ao
supereu e à consciência moral. O sentimento de culpa pode ser definido como a
“expressão imediata da angústia frente à autoridade externa, o reconhecimento
da tensão entre o eu e esta última, o derivado direto do conflito entre a
necessidade de seu amor e o esforço no sentido da satisfação pulsional, cuja
inibição resulta na inclinação a agredir” (Ibid, p. 132).
Essa fórmula retoma a idéia de uma agressão secundária à inibição, à frustração
de uma satisfação pulsional, sobrepondo-se à idéia nesse texto finalmente admitida de
uma agressão originária, primária, independente de qualquer sufocação ou
impedimento. E Freud não fica indiferente a essa questão; logo adiante, admite que não
podemos conceber a energia agressiva do supereu como uma continuação da energia
punitiva da autoridade paterna nem como uma reação à necessidade de conter seus
impulsos em direção a essa figura. Todo sujeito tem, em si, uma agressão própria,
resultante da intricação entre as pulsões fundamentais, Eros e a pulsão de morte.
“Eis aqui, em meu entender, a questão decisiva para o destino da espécie
humana: se seu desenvolvimento cultural terá sucesso, e, em caso afirmativo,
em que medida, em dominar a perturbação da convivência que provém da
humana pulsão de agressão e de auto-aniquilamento” (ibid, p. 136).
Estamos em 1931 e encontramos duas referências à agressão em dois pequenos
textos, Tipos libidinais e Sobre a sexualidade feminina. No primeiro, faz menção a um
tipo que ele chama de erótico os outros dois são o narcisista e o compulsivo -, cujo
principal alvo libidinal está voltado para a vida amorosa; costumam ser dominados pela
angústia frente à possibilidade de perder o amor do outro, de quem se tornam em
extremo dependentes. Esses tipos podem ser encontrados em sua forma pura ou “em
variações que se produzem em proporção com a contaminação com outro tipo e com a
simultânea escala de agressão” (FREUD, 1931a/1986, p. 220). No segundo, aborda a
questão dos desejos orais e sádicos na menina. Eles se encontram sob a forma a que os
constringiu um recalque prematuro: como angústia de ser assassinada pela mãe,
angústia esta por sua vez justificada por seu desejo que a mãe morra (FREUD,
1931b/1986, p. 239).
Durante o ano seguinte, 1932, Freud empreende a escrita das Novas conferências
de introdução à psicanálise, muito diferentes entre si quanto ao conteúdo e às novidades
que algumas encerram. Em três delas, Freud retoma o tema da agressão. São elas a 32,
Angústia e vida pulsional, a 33, A feminilidade e a 35, Em torno de uma visão de
mundo. As duas primeiras compreendem material e teoria completamente novos,
enfrentando considerações metapsicológicas antes evitadas. A última se afasta
consideravelmente de preocupações claramente teóricas.
Na 32ª conferência, lemos que, no recalque, a representação é a parte atingida
pela operação; sua quota de afeto é geralmente transformada em angústia, o
importando se se trata de moções amorosas ou agressivas (FREUD, 1933[1932]b/1986,
p. 77). Algumas páginas depois, Freud, ao nomear a definitiva oposição pulsional, fala
de pulsões de agressão, cuja meta é a destruição, antagônicas a Eros, as pulsões sexuais
em sentido lato. E afirma que não fez a suposição de uma pulsão particular de agressão
e destruição por conta das doutrinas da história nem suas experiências de vida: baseou-
se na observação dos fenômenos do sadismo e do masoquismo.
Mais adiante, enfocando, mais uma vez, a situação inicial da deflexão da pulsão
de morte pela intervenção de Eros, Freud escreve que uma determinada quantidade da
pulsão destrutiva originária pode permanecer no interior do aparelho. Ela pode ser
percebida se estiver combinada com pulsões eróticas e teremos o masoquismo
primário ou se, através de um acréscimo erótico em maior ou menor quantidade, se
volte para o mundo externo como agressão. Se a agressão não encontrar satisfação no
mundo externo por causa de impedimentos reais, ela volta atrás e multiplica a escala de
autodestruição que existe no interior do aparelho. E acrescenta, sob a forma de dúvida,
que não podemos considerar como verdade teórica a suposição de que toda a agressão
que volta do mundo externo seja ligada pelo supereu e seja dirigida contra o eu: talvez
parte dela exercite sua atividade muda e estranha {unheimlich} como pulsão de
destruição livre, tanto no eu como no isso.
Com esse trecho, Freud abre novamente uma brecha para a distinção entre
agressão e destruição sendo que, aqui, ele menciona uma destruição não ligada, em ação
dentro do aparelho, sem dúvida a pior ameaça à integridade do mesmo. Um acréscimo
erótico faz com que a destruição se torne agressão, numa clara atenuação de sua
potência desagregadora. Se a agressão, ou seja, a destruição moderada por Eros, não
puder encontrar sua satisfação no mundo externo, volta para o eu onde, tendo regredido
de objetal a narcísica, se encontra novamente sob a forma primeira, a destruição. Uma
regressão do investimento objetal a um investimento narcísico, não nos esqueçamos,
implica necessariamente uma dessexualização da libido; isso resulta numa diminuição
de sua potência de ligação permitindo às pulsões de morte maior liberdade para
perseguir sua finalidade, a desfusão e conseqüente retorno a modos de satisfação
anteriores e mais rudimentares. A meta das pulsões de morte é, sempre, desfazer
conjuntos complexos em busca de unidades mais simples, capazes de lhes permitir
maior facilidade em sua descarga.
Na 33ª conferência, Freud faz breve alusão à agressão como parte do ato sexual.
Como o macho persegue e agarra a fêmea com o propósito de união sexual, isso levaria
a que se pensasse que a masculinidade se reduz ao fator da agressão (ibid, p. 106).
Voltamos a nos deparar com a agressão atrelada à função sexual, genital.
Na conferência 35, Freud se refere à estrutura de classes sociais remetendo-as às
lutas travadas entre hordas humanas separadas por pequenas diferenças. A vitória seria
decidida por fatores psicológicos, como a gradação do prazer constitucional de agredir,
assim como pela solidez da organização dentro da horda e melhores condições
materiais. Ou seja: supõe a existência de diferenças constitucionais, que decidiriam uma
maior ou menor propensão a obter prazer por meio da agressão (ibid, p. 164).
Entre 1931 e 1932 se deu uma correspondência entre Freud e Einstein, parte de
uma troca epistolar solicitada pelo Comitê Permanente para a Literatura e as Artes da
Liga das Nações a intelectuais representativos, sobre temas de interesse tanto para a
Liga quanto para a vida intelectual em geral. Uma das primeiras personalidades
chamadas pelo Instituto foi Einstein, que sugeriu, ele mesmo, ter Freud como
interlocutor. Freud não acreditou muito nesta proposta de correspondência com Einstein
tendo comentado, em tom de ironia, com Ferenczi, que se Einstein conhecesse tanto de
psicologia quanto ele de física, os dois teriam uma conversa bem agradável. Entretanto,
Einstein demonstra saber do quê fala e evoca, de maneira bem interessante, a idéia de
uma pulsão de agressão.. Einstein escreveu primeiro e em setembro Freud lhe responde.
Ao assombro demonstrado por Einstein diante do entusiasmo que os homens
apresentam com a guerra e à sua conjetura de que algo específico deve estar por trás
disso, “uma pulsão a odiar e aniquilar”, Freud responde acreditar na existência de uma
pulsão desse tipo, por ele postulada e estudada justamente nos últimos anos. Einstein diz
que optou por enfatizar a forma de conflito entre as comunidades humanas que ele
considerou como a mais representativa e ao mesmo tempo mais funesta {unheilvollste},
palavra que também pode ser traduzida por maléfica, perversa, cruel; assim a entende
por ser, ao mesmo tempo, a mais desligada, desencadeada, desenfreada {zügelloseste}
(DERRIDA, 2000, p. 36).
Dessa interlocução resultou o artigo Por que a guerra?, testemunha dessa troca
de cartas entre os dois homens.
“Supomos que as pulsões do ser humano são apenas de dois tipos: aquelas que querem
conservar e reunir as chamamos eróticas, exatamente no sentido do Eros no O
banquete de Platão, ou sexuais, com uma consciente ampliação do conceito popular de
sexualidade -, e outras que querem destruir e matar; reunimos estas últimas sob o título
de pulsão de agressão ou de destruição. Como o senhor vê, nada mais é que a
transfiguração teórica da universalmente conhecida oposição entre amor e ódio; esta
talvez mantenha um nexo primordial com a polaridade entre atração e repulsão, que
desempenha um papel em sua disciplina” (FREUD, 1933[1932]a/1986, p. 192).
Amor e ódio, atração e repulsão: esses são os termos correntes que fundamentam
a fidelidade freudiana às dualidades do fisicalismo, às oposições que regem a vida e o
universo.
Mesmo a pulsão de autoconservação, acrescenta, também de natureza erótica,
precisa de um tanto de agressão se quiser obter seu propósito. Da mesma maneira, a
pulsão de amor, sexual propriamente, dirigida aos objetos, precisa de um complemento
de pulsão de dominação para poder agarrar seu objeto e possuí-lo. Então, quando os
homens respondem a um chamado para a guerra, eles o respondem por causa de
algumas razões: entre elas se encontra o prazer de agredir e destruir. “Inumeráveis
crueldades da história e da vida cotidiana confirmam sua existência e intensidade. O
entrelaçamento dessas aspirações destrutivas com as eróticas e ideais facilita sua
realização” (ibid, p. 194). Às vezes parece que os motivos nobres servem de desculpa
para as aspirações destrutivas: é como se aqueles fossem até a consciência enquanto os
destrutivos lhes dão um reforço de energia do inconsciente. “Quando alguém é levado à
guerra, tem uma gama de motivos para se deixar levar (...). Entre eles está o desejo da
agressão e da destruição.”
Em 1937, Freud escreve Análise terminável e interminável, notável artigo
voltado para a técnica da psicanálise, escrito vinte anos depois de publicada a última
obra dedicada ao tema. O artigo destaca as limitações e dificuldades do processo
psicanalítico e nomeia seu principal obstáculo: a pulsão de morte. Dedica a essa pulsão
uma longa passagem, onde postula que ela é responsável não apenas por grande parte da
resistência à análise como também causa última do conflito anímico. Outro grande
obstáculo à cura são as alterações do eu, aspecto amplamente examinado no artigo.
No capítulo VI, onde examina as bases mais profundas das diferenças egóicas
responsáveis por resistências inamovíveis, ou quase, aborda o último nível que a
investigação psicanalítica é capaz de compreender: o comportamento das duas pulsões
primordiais, sua distribuição, intricação e desintricação, tudo isso habitando as três
“províncias” do aparelho anímico. As resistências nada mais são que forças que se
arregimentam contra a cura, apegando-se à doença e ao sofrimento. Parte dessa força,
conforme visto, Freud chamou de consciência de culpa e necessidade de castigo,
localizadas na luta entre eu e supereu. Entretanto, trata-se apenas da parcela que foi
ligada psiquicamente pelo supereu: dessa mesma força podem estar em ação outras
quantidades, de forma ligada ou livre. Fenômenos como o masoquismo imanente de
tantas pessoas, a reação terapêutica negativa e a consciência de culpa dos neuróticos são
motivos suficientes para que se afirme a presença inequívoca, na vida anímica, de um
poder que, devido a suas metas, “chamamos de pulsão de agressão ou destruição, e
derivamos da pulsão de morte originária, própria da matéria animada” (FREUD,
1937a/1986, p. 244).
Apesar da aparente identidade entre os dois derivados, Freud deixa bem claro,
nesse trecho, que ambos derivam da pulsão de morte, essa sim originária. E que ambos
se definem por suas metas. Trata-se, aqui, prossegue ele, da ação “eficaz conjugada e
contrária das duas pulsões primordiais, Eros e pulsão de morte”, explicação bastante dos
fenômenos vitais (ibid, p. 245). O emprego da expressão ‘ação conjugada e contrária’ é
uma das predileções de Freud, mais um reflexo de sua fidelidade a uma “intuição básica
dualista”, conforme declarado em O eu e o isso (FREUD, 1923/1986, p. 47). O enigma
se encontra na maneira em que parcelas das duas variedades pulsionais se conjugam,
resultando em derivados bastante diferentes entre si, produzindo e executando as
diversas funções vitais.
E, em relação aos conflitos que se estabelecem entre as duas pulsões, Freud se
indaga se essa inclinação ao conflito não pode ser imputada a um fragmento de agressão
livre (FREUD, 1937a/1986). Presume que, no caminho do desenvolvimento humano,
desde os primitivos ao homem da cultura, acontece uma interiorização, um retorno
para dentro da agressão conforme as idéias do texto sobre o mal-estar e que os
conflitos internos nada mais seriam que o resultado desse processo referente às lutas
externas. E admite que sua nova teoria dualista teve fraca aceitação, mesmo entre os
psicanalistas: seus pares relutaram, e ainda relutam, em aceitar que junto a Eros, e em pé
de igualdade, encontram-se as outras pulsões, que aqui Freud chama,
indiscriminadamente, de pulsões de morte ou de destruição ou de agressão, pela
primeira vez fazendo a equivalência entre as três.
Pouco depois desse trabalho, em 27 de maio desse mesmo ano, Freud teceu
alguns comentários sobre a pulsão de agressão, a pulsão de destruição e sobre a
agressividade em uma carta escrita à princesa Marie Bonaparte. Referindo-se à
sublimação, como uma aplicação da pulsão sexual a outro campo em que são possíveis
realizações de maior valor social, Freud aponta para a possibilidade do mesmo destino
para a pulsão de destruição. “Todas as atividades que reorganizam ou efetuam
mudanças são em certa medida destruidoras e assim desviam uma porção da pulsão de
seu objetivo destruidor original” (JONES, 1989, p. 449). Essa é uma frase muito
importante: as pulsões de morte não visam apenas a destruição do vivo: são
imprescindíveis ao desenvolvimento anímico que se deve a elas o trabalho de des-
ligação das mesclas pulsionais, possibilitando novas ligações, mudanças que daí
decorrem, ou seja, as novidades. Escreve que mesmo a pulsão sexual não pode atuar
sem alguma medida de agressividade. Portanto, na intricação das duas pulsões, uma
sublimação parcial da pulsão de destruição. E acrescenta:
“O movimento para dentro da moção agressiva é naturalmente a contrapartida
do movimento para fora da libido, quando esta passa do eu para os objetos.
Seria possível imaginar uma boa concepção esquemática em que toda a libido,
no início da vida, se dirige para dentro, enquanto toda a agressividade se dirige
para fora, o que aos poucos se modifica no decorrer da vida. Mas talvez isso
não seja correto” (ibid, 450).
Isso parece sugerir que, originariamente, a agressividade dirigida para o mundo
externo tinha maior autonomia. Freud também admite que o recalque da agressividade é
o mais difícil de explicar. sempre a presença, em todos os fenômenos vitais, de uma
agressividade ‘latente’, mas escreve que o fica claro se esse latente é devido ao
recalque. O que geralmente ocorre é que essa agressividade é latente ou recalcada por
meio de alguma contracompensação, isto é, por meio de um investimento erótico”.
Na carta que escreveu a seguir para a princesa, em 17 de junho, Freud lhe pede
que não superestime suas considerações sobre a pulsão de destruição, comentando que
além de terem sido feitas de modo apressado, contêm pouca novidade.
Vemos que, passados sete anos da publicação de seu texto sobre o mal-estar,
Freud encontrava-se, ainda, às voltas com a questão da autonomia e da anterioridade da
pulsão de morte e seus derivados.
A invasão nazista da Áustria aconteceu em 11 de março de 1938, obrigando
Freud a deixar sua Viena e partir. Em julho de 1938, pouco depois de chegar a Londres,
Freud empreende a redação de seu Esboço de psicanálise, publicado postumamente, em
que retoma alguns temas fundamentais de sua metapsicologia com vistas a uma
divulgação e uma fixação de suas idéias entre seus pares. Devido a uma grave operação
a que teve de se submeter, Freud não concluiu seu trabalho, composto de uma série de
preciosos ensaios, de qualidade bem maior do que imaginava o próprio Freud. No
prólogo, Freud escreve que o objetivo do trabalho é o de reunir os princípios da
psicanálise e expô-los dogmaticamente, da maneira mais concisa e nos termos mais
inequívocos (FREUD, 1940[1938]/1986, p. 139)
Entretanto, no segundo capítulo da parte I, Doutrina das pulsões, Freud nomeia,
mais uma vez, de modo a dar margem a confusão, as duas pulsões básicas de sua
definitiva teoria: são elas Eros e pulsão de destruição.
“A meta da primeira é produzir unidades cada vez maiores e, assim, conservá-
las, ou seja, uma ligação {Bindung}; a meta da outra é, ao contrário, dissolver
nexos e, assim, destruir as coisas do mundo. Com respeito à pulsão de
destruição, podemos pensar que aparece como sua meta última levar o vivo ao
estado inorgânico; por isso, também a chamamos de pulsão de morte” (ibid, p.
146).
Desse modo, Freud inverte sua própria conceituação: a pulsão de destruição
merece esse nome pelo afã que apresenta de destruir as ligações, e, como isso pode
levar o orgânico de volta ao inorgânico, pode ser também chamada de pulsão de morte.
Ora, essa inversão produz um efeito de imprecisão, diante de tudo o que foi visto até
então. Podemos até imaginar que Freud prefira usar o termo pulsão de morte apenas
quando se refere ao inorgânico, à ausência de Eros; diante da vida, pulsão de morte se
transforma imediatamente em pulsão de destruição e de agressão.
Logo adiante, Freud reapresenta sua definição de pulsão, de forma bastante
similar às definições dos anos 10 e 15:
“Chamamos de pulsões as forças que supomos provir das tensões de
necessidade do isso. Representam {repräsentieren} as exigências que faz o
corpo à vida anímica. Ainda que causa última de toda atividade, são de
natureza conservadora; de todo estado alcançado por um ser brota um afã por
reproduzir esse estado, tão logo este seja abandonado” (ibid, p. 147).
A anterior oposição entre pulsão de conservação de si mesmo e de conservação
da espécie, base da primeira dualidade pulsional, assim como a outra oposição, entre
libido do eu e libido de objeto, instituída após a introdução do conceito de narcisismo,
se situam no interior de Eros. São todas libidinais, com diferenças significativas: temos
as pulsões do eu, as pulsões sexuais propriamente ditas, as sexuais inibidas em sua
meta, as sublimadas. A todas essas se opõem as pulsões de morte, definitivo
antagonista.
Acrescenta também que, que o vivo adveio mais tarde que o inerte, e se criou
a partir deste, a pulsão de morte está conforme a fórmula apresentada, a de que toda
pulsão quer fazer regressar a um estado anterior a qualquer perturbação. Toda
perturbação é devida a Eros.
Nesse momento do texto, e invocando, mais uma vez, as funções biológicas,
escreve que as duas pulsões básicas produzem efeitos uma contra a outra ou se
combinam entre si, afirmação rias vezes reiterada. “Assim, o ato de comer é uma
destruição do objeto com a meta última da incorporação; o ato sexual, uma agressão
com o propósito da mais íntima união” (ibidem). Essa oposição equivale ao par de
forças contrárias que governa o mundo: a atração {Anziehung} e a repulsão
{Abstossung}. Entretanto, vale lembrar que o recurso à biologia não fornece a Freud
uma base segura para isolar o que seria a pulsão de morte. São inúmeros os problemas
decorrentes desse apelo à biologia: perde-se a possibilidade de entender a vida pulsional
como aquilo que é especificamente humano, coisa que Freud se esforçou em estabelecer
desde 1905, com o texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, cujo objetivo,
sabemos, foi o de fundamentar as características diferenciais da sexualidade humana.
Também reconhecemos que a biologia intervém para tornar apreensível um conceito
que não se reduz à transposição de uma observação, de um fato empírico, para a teoria,
mas sim o produto de uma vasta e, para um pensador como Freud, quase insuportável
especulação Todavia, voltamos a insistir, o recurso à biologia é problemático e pouco
convincente.
Além disso, modificações na proporção em que se encontram intricadas as
pulsões produzem flagrantes conseqüências. Assim, um forte suplemento de agressão
sexual transformará um amante em um assassino estuprador; uma nítida diminuição do
fator agressivo torna-lo-á acanhado ou impotente” (ibid, p. 148). Essa questão das
proporções é fundamental para sustentar nossa hipótese, de que é possível discriminar
os derivados entre si; a idéia sica é de que um acréscimo erótico leva o sujeito a uma
posição mais ‘avançada’ em termos de sua evolução psicossexual, o que significa que
ele poderá lançar mão de recursos mais complexos e menos brutos que aqueles
anteriores, mais rudimentares, esses mais próximos de uma descarga imediata, quase
sem mediações, e mais total. Um decréscimo de Eros corresponderá a um ‘suplemento’
da potência desagregadora das pulsões de morte que, menos ‘domesticadas’ pelo enlace
erótico, determinará o destino e a direção tomada pelo derivado daí resultante. Um
suplemento de agressão, leia-se uma vantagem concedida à pulsão de morte por um
decréscimo erótico, fará de uma agressão uma destruição.
Prosseguindo com sua teorização, escreve Freud que com a instalação do
supereu, quantidades consideráveis da pulsão de agressão são fixadas no interior do eu
e ali exercem efeitos autodestrutivos” (ibid, p. 152). Reter a agressão produz um efeito
patogênico, como uma mortificação, um adoecimento {Kränkung}. Isso foi
exaustivamente tratado em textos mencionados anteriormente, mas nesse ponto surge
um aspecto bastante interessante para nossa hipótese: lemos que “o trânsito de uma
agressão impedida até chegar a uma destruição de si mesmo por meio do retorno da
agressão em direção à pessoa própria pode ser ilustrado por uma pessoa no ataque de
fúria (...)” (ibidem).
Ora, parece haver aqui, finalmente, uma distinção: a agressão impedida de
manifestar-se no objeto volta ao si mesmo próprio e se expressa como destruição,
como autodestruição. Como examinamos acima, o retorno à própria pessoa é um
procedimento defensivo e compreende uma regressão: um investimento que visava o
objeto, em um momento posterior ao investimento de si, o narcisismo, volta à condição
anterior, o investimento do si mesmo, primeira posição, de onde partem os posteriores
investimentos de objeto. Donde podemos pensar que esse movimento de retorno, por ser
uma regressão, compreende um débito de componentes eróticos uma espécie de
dessexualização ,- uma des-ligação e uma maior autonomia às moções destrutivas.
Talvez possamos pensar que a destruição, suplementada por complementos
eróticos, se suaviza na direção de moções apenas agressivas. Na direção contrária, a
agressão se retransforma em destruição, posição anterior na ontogênese e no registro do
desenvolvimento psicossexual. Uma parcela da destruição permanece no interior, onde
se expressa como destruição de si. No retorno da agressão ao si mesmo, ela irá reforçar
essa destruição que permaneceu, aumentando consideravelmente sua potência e seus
terríveis efeitos, podendo, ao final, matar o sujeito, sobretudo quando sua libido se
gastou ou se fixou de maneira desvantajosa.
Ainda na parte I do Esboço, no capítulo III, intitulado “O desenvolvimento da
função sexual”, Freud se detém brevemente na consideração da agressão. Considera que
na fase anal-sádica a satisfação é procurada na agressão e na função excretória, onde as
moções sádicas aparecem de forma muito vasta. Justifica a inclusão das aspirações
agressivas sob a égide da libido pela concepção de que o sadismo é uma mescla
pulsional de aspirações puramente libidinais com outras destrutivas puras, fusão que,
desde então, nunca mais é cancelada. Novamente entendemos que ele nos dá pistas para
a distinção entre a agressão e a destruição: esta é mais primitiva, mais rudimentar, e de
sua intricação com maiores parcelas de libido, advém a agressão, sempre aliada ao
sadismo, que funcionaria como seu fundamento.
Mesmo tendo afirmado na Introdão a este trabalho que tomaríamos
somente o texto freudiano como eixo de alise e citaríamos apenas alguns de seus
comentadores, é impossível abordar o tema da agressividade sem recorrer, tímida e
cautelosamente, ao texto de Jacques Lacan, A agressividade em psicalise
(LACAN, 1948/1989). Esse texto, apresentado sob a forma de teses, situa-se como
uma proposta de pensar a pulsão de morte somente na intersubjetividade e o no
fisicalismo ou no introspeccionismo. Segundo Lacan, a significação enigmática que
Freud promoveu como instinto de morte (...) é testemunha da aporia em que
tropeçou esse grande pensamento (ibid, p. 94). Essa aporia está no corão da
noção de agressividade. O uso do termo instinto de morte no lugar do usual pulo
de morte, por Lacan, nos parece justificado pelo fato de a pulo de morte, em si,
estar fora do campo das representações.
Em sua tese primeira, afirma Lacan que a agressividade se manifesta em uma
experiência que é subjetiva por sua ppria constituição (ibid, p. 95). Para ele, o
evento fundamental da experiência psicanalítica é a transferência negativa, o que
inverte a equação freudiana: do enamoramento histérico ao ódio paranóico. Na
segunda tese, postula que a agressividade, na experiência, nos é dada como intenção
de agreso e como imagem de disjunção, de desmantelamento, de desmembramento
corporal (ibid, p. 96). A relação fundamental entre sujeitos é de violência: o outro
está sempre ameaçando o sujeito de perder sua configuração totalizante. Entendemos
que a agressividade é aqui considerada como uma contrapartida do narcisismo. O
acesso aos fenômenos narcísicos foi o que levou Freud, num primeiro momento, à
compreeno desse aspecto global, total e pessoal da subjetividade, até então
ausente. Um exemplo disso é um trecho que lemos no artigo metapsicológico sobre
as pulsões, em que Freud escreve que amor e ódio não devem ser usados para as
relações das pules com seus objetos mas reservados para as relões do eu total
com os objetos. É esse “eu total” o que sente a ameaça proveniente de um outro eu,
amea de fragmentação, invasão, aniquilamento, fazendo com que se faça
necessária a agressividade. Diz Lacan que “a eficácia ppria dessa intenção
agressiva é manifesta: a comprovamos correntemente naão formadora de um
indivíduo sobre as pessoas de sua dependência; a agressividade intencional rói,
mina, desagrega, castra; conduz à morte (ibid, p. 97). Entretanto, prossegue, esta
agressividade se exerce certamente dentro de constrições reais.
Na tese III, e trazendo sua conceituação para o campo da prática, Lacan
escreve que as molas da agressividade decidem as razões que motivam a cnica da
alise (ibid, p. 98). O diálogo parece, em si mesmo, constituir uma renúncia à
agressividade; acrescenta que o diálogo está presente no desempenho da função do
analista mas não necessariamente a razão triunfa:o inúmeros os fracassos. A
neutralidade do analista, sua despersonalização”, assim como sua o-resposta às
demandas de seu analisando, sua absteão, esse ideal de impassibilidade”, têm o
objetivo de provocar a tensão agressiva, marca da constituição do sujeito. Devemos
r em jogo a agressividade do sujeito para conosco, posto que essas intenções, se
sabe, formam a transfencia negativa que é o nó inaugural do drama analítico”
(ibid, p. 100). A transferência negativa, aqui, passa a ser o momento detonador de
todo o processo psicanalítico, mudando radicalmente seu estatuto: de obstáculo à
cura a condição de existência do processo da alise. Isso porque, segundo Lacan, a
intenção agressiva reatualizaria a imago, formadora da identificação, varião das
matrizes que constituem os marcadores para o pulsional (ibid, p. 101).
Aquilo que para Freud aparecia como um impasse clínico, para Lacan
constitui um valioso instrumento: o é desfavorável reativar semelhante intenção
[agressiva] na psicanálise (ibidem). Acrescenta que sobretudo na neurose obsessiva
nos deparamos com uma organização psíquica destinada a camuflar, a deslocar, a
negar e a amortecer a inteão agressiva; nessa neurose, as pules agressivas se
manifestam por meio de fantasmas obsessivos e é contra eles que o analista vai lutar.
Devemos apenas evitar que a intenção agressiva do paciente encontre suporte em
uma iia atual sobre nossa pessoa, suficiente para que possa “se organizar em
reações de oposição, de denegão, de ostentação e de mentira” pprias da instância
do eu no diálogo.
Na tese IV, Lacan postula que, fundamentalmente, “a agressividade é a
tendência correlativa de um modo de identificação que chamamos narsica e que
determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades
caractestico de seu mundo (ibid, p. 102). A identificação narcísica, primeira
captura pela imagem, ganha um peso enorme e o ataque percebido é tão violento que
o eu e a paranóia estão muito próximos, aparentados pela presença da inteão
agressiva. A angústia aparece como tudo aquilo que escapa à captura da imagem.
Considera Lacan que “passar da subjetividade da intenção à noção de uma tendência
à agressão é dar o salto da fenomenologia de nossa experiência à metapsicologia
(ibid, p. 103). Mas esse salto o manifesta nenhuma outra coisa senão uma
exigência de pensamento. A tenncia agressiva se revela fundamental em certa
rie de estados significativos da personalidade, que são as psicoses paranóides e
paranóicas (ibidem).
Para Lacan, há uma primeira captão pela imagem na qual se desenha o
primeiro momento da dialética das identificões. Esse é o momento definido como
estádio do espelho, em que se manifesta o dinamismo afetivo pelo qual o sujeito se
identifica primordialmente com a Gestalt visual de seu próprio corpo, constituindo
uma unidade ideal, uma imago salvadora(ibid, p. 105). Esta imago salvadora é o
eu ideal, um eu como nunca houve porque ainda não houve, nada mais é que um eu
virtual, captão pela imago da forma humana. A natureza da agressividade no
homem se compreende nessa espécie de encruzilhada estrutural.
Na tese V, escreve Lacan que semelhante noção da agressividade como uma
das coordenadas intencionais do eu humano (...) nos permite conceber seu papel na
neurose moderna e no mal-estar da civilização” (ibid, p. 112).
A partir desse texto lacaniano, é possível compreender uma afirmação de
Bercherie, em que este enfatiza que a pulsão de agressão é essencialmente eica.
Eica porque visa manter a integridade do eu, constantemente ameaçado por outros
eus com o fantasma da desintegrão. A teno estabelecida a partir da constituição
de um primeiro eu, resultado da identificação originária, de que falamos acima como
sendo a primeira captação de uma imagem, constitui a agressividade primordial,
sinal de uma primeira diferenciação. A teno é necessária para que essa
configuração rudimentar se mantenha e resista às tentativas, internas e externas, de
nivelamento das excitões. Não podemos esquecer que o princípio de ircia,
considerado por Freud como a tenncia mais universal de todas, surge como um
dos instrumentos a serviço da pulo de morte em seu esforço para se livrar das
excitações vitais da libido (BERCHERIE, 1983, p. 353). E o eu, representante da
vida, se esforça em man-la, barrando a consecão dessa tendência originária. As
forças abissais lutam um combate mítico e eterno.
VII. Crueldade, maldade, violência
1. Crueldade
Come, you spirits
That tend on mortal thoughts! Unsex me here,
And fill me, from the crown to the toe, top-full
Of direst cruelty; make thick my blood,
Stop up the access and passage to remorse,
That no compunctious visitings of nature
Shake my fell purpose, nor keep peace between
The effect and it!
Shakespeare, Macbeth, act I, scene 5,1.
La cruauté, bien loin d’être un vice, est le premier sentiment
qu’imprime en nous la nature; l’enfant brise son hochet, mord le téton
de sa nourrice, étrangle son oiseau, bien avant que d’avoir l’âge de
raison.
Le Marquis de Sade, La Philosophie dans le boudoir.
A palavra crueldade está associada a desumanidade, ruindade, maldade violenta.
Segundo o Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa, a
etimologia da palavra remete a crudos, vocábulo latino que designa o que contém
sangue, sangrento, ensangüentado, cru, encruado e não-cozido; o indivíduo cruel é
aquele que se compraz em fazer o mal, em atormentar ou prejudicar um outro ser
(BUENO, 1968, 184). O vocábulo ‘cru’ tanto remete a cruel, feroz, como a não curtido,
no caso do couro, e não cozido (CUNHA, 1986).
Segundo Kodato, crueldade aponta para algo que contém sangue, que não sofreu,
portanto, a ação civilizatória do fogo; pode também ser associada à perversão sado-
masoquista, onde se encontra o prazer na dor. Para este autor, crueldade refere-se à
esfera do primitivo e opõe-se, por esse viés, à idéia de instituição, da esfera do
civilizado (KODATO, 1999). De acordo com Kaës, a instituição é uma formação da
sociedade e da cultura; segue-lhes a lógica própria. Define a instituição como o conjunto
de formas e estruturas sociais instituídas pela lei e pelo costume. “Quando uma
instituição não realiza sua função primária, atenta contra a ordem social, contribui para
a desrazão coletiva e o incremento da violência desenfreada” (KAËS, 1991, p. 6).
Vemos então uma idéia de falha no processo civilizatório aliada a um aspecto da
perversão. A crueldade é inerente ao ethos, seu aparecimento é contíguo ao convívio
com o outro, no duro processo de domesticação das pulsões.
Segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, a palavra cruel,
derivada do latim crudele, aponta para algo de natureza crua, que o sofreu atenuação,
bárbara (NASCENTES, 1955, p. 145). Muito parecida a definição encontrada no
Dictionnaire Etymologique, onde se lê que cruel deriva do latim crūdēlis, que, por sua
vez, vem de crudus, que significa sangrento; por sua vez, afirma que crueldade, cruauté,
em francês, e usada neste idioma desde 1130, vem do latim crūdēlĭtās,-atis. A palavra,
em latim, para designar sangue é cruor. Em fisiologia, cruor fala da parte do sangue que
se coagula (DUBOIS, 2001, p. 200).
o Dicionário Houaiss da língua portuguesa define cruel como aquele a quem
apraz derramar sangue, causar dor, aquele que gosta de fazer o mal, atormentar,
maltratar. Em latim, crūdēlis aponta para aquele que se compraz no sangue, aquele que
derrama sangue. Ainda segundo esse mesmo dicionário, crueldade é a característica ou
condição daquele que é cruel, daquele que obtém prazer em derramar sangue, em
causar dor; donde a idéia de crueldade ligada, de maneira geral, ao prazer em fazer o
mal, em atormentar (HOUAISS, 2001).
A presença do prazer é uma constante nas definições do termo crueldade,
aproximando-se do sentido do sadismo. Penso que temos uma interessante questão:
em que momento o sadismo deixa de sê-lo e passa a ser crueldade? O que define essa
sutil diferença? Será que ela existe ou será que as duas metas são iguais? Seria a
crueldade apenas um dos elementos do sadismo?
Em alemão, a palavra comumente usada para designar cruel é grausam,
crueldade equivale a Grausamkeit, também traduzido por atrocidade, barbaridade.
Cruento, que pertence ao mesmo campo semântico, é igualmente designado, em alemão,
por roh, que também significa cru, e por blutig, sangrento. Apesar das dificuldades
encontradas por utilizarmos a versão castelhana das obras de Freud, acreditamos que o
sentido dos termos em português equivale ao dos vocábulos em alemão.
Podemos relacionar a palavra crueldade a sua ascendência latina, ou seja, a uma
história do sangue derramado, do crime de sangue, dos laços de sangue; ou fazê-la
derivar, em outras línguas, de outras etimologias, em que o derramamento de sangue
não está implicado, como a palavra alemã Grausamkeit, mas sim o sentido do desejo de
fazer ou de se fazer sofrer por sofrer, para obter um prazer psíquico com o mal pelo
mal, ou seja, para usufruir o mal radical. Em ambos os casos, a crueldade seria difícil de
se determinar ou delimitar (DERRIDA, 2000, p. 10). Pode-se cessar a crueldade
sangrenta mas, segundo o que este autor entende que tenha sido o pensamento de Freud
a respeito, uma crueldade psíquica será sempre suprida pela invenção de novos recursos.
“Uma crueldade psíquica seria ainda uma crueldade da psyché, um estado da alma,
portanto ainda do vivo, mas uma crueldade não-sangrenta” (ibid, p. 11). Ao recorrer à
palavra Grausamkeit, Freud a reinscreve numa lógica psicanalítica de pulsões de
destruição, por sua vez indissociáveis da pulsão de morte. Voltaremos a esse autor ao
final do capítulo.
Sabemos que a psicanálise preconizou a existência não só da sexualidade infantil
e a ausência da inocência na infância, como apontou para a crueldade infantil, para a
maldade precoce.
O uso do termo crueldade por Freud surge desde cedo em sua obra. O adjetivo
cruel é comumente empregado para qualificar Deus, o pai e, mais tarde, o supereu, para
o qual a qualificação, a adjetivação de cruel é praticamente uma redundância. Em A
interpretação de sonhos, obra seminal da psicanálise, lemos, sobre o trabalho do
deslocamento, que o tema de um determinado sonho eram as relações entre sexualidade
e crueldade. O fator crueldade reaparece no conteúdo onírico mas numa ligação
diferente, “sem menção ao sexual, desprendido de seu contexto e por conseguinte
convertido em algo estranho” (FREUD, 1900/1986, p. 311). Um pouco antes, na parte
do capítulo VI dedicada ao trabalho de condensação, Freud menciona uma paciente que,
depois de fazer associações a um sonho, prossegue no assunto crueldade para com os
animais.” Ela observa que, alguns anos antes, “quando passavam o verão em certo
lugar, sua filha havia sido muito cruel com os animais” (ibid, p. 297).
No caso clínico conhecido como “Dora”, ao examinar a questão da transferência,
Freud propõe que as moções de crueldade e de vingança usados na vida da paciente
para sustentar seus sintomas transferem-se para o médico” (FREUD, 1905c/1986, p.
104), infelizmente antes que este possa mostrar-lhe a inconveniência e inadequação de
seus afetos. Diz ele que a melhor maneira de o paciente demonstrar sua hostilidade e
vingar-se do analista é o de exibir parcos resultados terapêuticos, mostrando claramente
ao analista quão incompetente e incapaz ele é. A hostilidade demonstrada
transferencialmente sob a forma de moções de crueldade” abre o caminho para as
reflexões de Freud acerca dessa gama de sentimentos inexplicáveis através da primeira
oposição pulsional.
Conforme examinado nos capítulos sobre o sadomasoquismo e a pulsão de
dominação, é no texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, que Freud
começa propriamente a circunscrever o terreno da crueldade. Esta aparece, muitas
vezes, relacionada à pulsão de dominação, com um estatuto bem diferenciado, como
veremos.
No capítulo 2 do primeiro ensaio, onde Freud aborda o sadismo e o masoquismo,
lemos que a algolagnia é a designação mais estrita, preferida por alguns autores para
designar o par antitético em questão, por destacar, precisamente, a crueldade, o fato de
existir prazer na dor; a designação dada por Krafft-Ebing enfatiza tão somente o prazer
existente em qualquer forma de humilhação ou sujeição. Escreve Freud que “a história
da cultura humana nos ensina, fora de qualquer dúvida, que crueldade e pulsão sexual se
conjugam da maneira mais estreita” (FREUD, 1905a/1986, p. 144). Essa pulsão de
crueldade” seria um fator do comportamento sexual, do qual não era possível fazer uma
análise aprofundada. Nada mais foi feito, acrescenta, além de se insistir no componente
agressivo da libido. Essa agressão que se mistura com a pulsão sexual nada mais seria
que um “resto de apetites canibalísticos”; seria uma participação conjunta do aparelho
de dominação, que serve à satisfação da outra grande necessidade, ontogeneticamente
mais antiga. Ao mencionar o “perigo” de uma “associação entre pulsões eróticas e a
crueldade”, Freud testemunho de sua ambigüidade em situar essa pulsão parcial: ora
a apresenta como um “fator do componente sexual”, ora como expressão da crueldade
erotizada.
No segundo ensaio, o que trata precisamente da sexualidade infantil, e no trecho
em que Freud trabalha a noção das pulsões parciais, lemos que na vida sexual infantil,
apesar da dominação das zonas erógenas, existem componentes que desde sempre
exigem a existência da outras pessoas na qualidade de objetos sexuais. São pulsões
parciais da sexualidade que não prescindem o objeto, para dizê-lo de outra maneira.
“Dessa natureza são as pulsões do prazer de ver e de exibir, e da crueldade.
Aparecem com certa independência das zonas erógenas e mais tarde entram
em relações estreitas com a vida genital, mas na infância se fazem notar
como aspirações autônomas, inicialmente separadas da atividade sexual
erógena” (ibid, p. 174).
Com essa observação, Freud lança a suposição de que nem todas as moções
pulsionais da infância, e que fazem parte da sexualidade infantil, são auto-eróticas.
Algumas, como o componente de crueldade da pulsão sexual, desenvolvem-se com
independência ainda maior das outras moções sexuais vinculadas às zonas erógenas;
além disso, nunca prescindem de um objeto. Temos o direito de supor que as moções
cruéis fluem de fontes na realidade independentes da sexualidade, mas que ambas
podem entrar em conexão desde cedo” (ibid, p. 175); inicialmente independentes,
crueldade e sexualidade rapidamente se articulam e passam a atuar na vida sexual
infantil. Propõe que aceitemos como perfeitamente natural ao caráter infantil a
crueldade; o fato de a compaixão só se desenvolver mais tarde faz com que nada
detenha a pulsão de dominação, nem mesmo a dor do outro. Essa pulsão de dominação
ainda parece suficientemente enigmática a Freud que admite não ter tido grande sucesso
em sua análise. Entretanto, supõe que a moção cruel provenha dessa pulsão e surja na
vida da criança antes da genitalidade infantil. A dominação, assim considerada,
diferencia-se do sadismo: ela não visa a dor e o sofrimento do outro; apenas, como a
piedade ainda não existe na alma infantil, a crueldade de exerce sem barreiras, de forma
incontrolável.
“As crianças que se distinguem por uma crueldade peculiar para com os
animais e os companheiros despertam, em geral justificadamente, a suspeita de
uma atividade sexual intensa e precoce advinda das zonas erógenas, e mesmo
no amadurecimento precoce e simultâneo de todas as pulsões sexuais, a
atividade sexual erógena parece ser primária. A ausência da barreira da
compaixão traz consigo o risco de que esse vínculo estabelecido na infância
entre as pulsões cruéis e as erógenas torne-se depois indissolúvel na vida”
(ibidem).
Portanto, a crueldade infantil ainda não está ligada nem à compaixão nem
propriamente à obtenção de prazer; ela é aquilo que é notado pelo outro no trajeto da
satisfação da pulsão de dominação. A crueldade é ajuizada por um outro, geralmente um
adulto, que assim percebe a atividade pulsional ligada à dominação. Obter prazer não é,
no início, a meta dessa ação.
O livro sobre os chistes, também de 1905 e escrito simultaneamente aos Três
ensaios, trata amplamente da função da agressividade, conforme vimos no capítulo
sobre a mesma. Freud considera que as pessoas que melhor fazem chistes tendenciosos
agressivos são aquelas em cuja sexualidade se registra um poderoso componente sádico.
Com relação a piadas indecentes ditas por um homem diante de uma mulher, escreve
Freud que, quando a piada não atinge a meta de provocar excitação na mesma e, em vez
disso, provoca nela uma atitude defensiva, a agressividade também altera seu caráter, do
mesmo modo que qualquer moção libidinal que tropece em um obstáculo. “Torna-se
diretamente hostil, cruel, pede então ajuda, contra o obstáculo, aos componentes sádicos
da pulsão sexual” (FREUD, 1905b/1986, p. 93). Assim, estão conjugados rios
aspectos dos temas que estamos explorando: o sexual, o agressivo, o cruel, a hostilidade
e o sadismo.
Em um texto pouco posterior aos Três ensaios, A moral sexual “cultural” e o
nervosismo moderno, Freud supõe que uma violenta sufocação de uma inclinação
constitucional para a dureza e a crueldade, transformando o sujeito em alguém
extremamente bondoso, não resultará em moções compensatórias às moções
inicialmente hostis à cultura, não diretamente sexuais. A energia subtraída a essa
tendência originária será tanta que melhor seria se tivesse levado a cabo sua meta, sem
tentar sufocá-la (FREUD, 1908/1986, p. 181). Essa idéia prenuncia o que Freud irá
desenvolver em O mal-estar na cultura, a respeito dos efeitos nocivos da tentativa
exagerada de sufocação das moções destrutivas. E mais: não restam dúvidas quanto ao
caráter de uma inclinação constitucional dado por Freud à crueldade, o que aponta para
a futura produção do conceito capaz de responder pela gênese de afetos semelhantes.
No ano seguinte, Freud escreve o relato da “análise” do pequeno Hans, levada a
cabo por seu próprio pai, um dos casos princeps da história da psicanálise. Freud
conclui que Hans era tomado de grande angústia perante o pai por causa de seu desejo
de morte contra ele, uma angústia, nos diz, portanto, de motivação normal. Entretanto,
esse sentimento era um obstáculo, talvez o maior, à boa conclusão da análise, até que foi
eliminado durante uma conversa que o próprio Freud teve com o menino, em seu
consultório. Todavia, assinala, “Hans o era, de modo algum, um malvado nem sequer
um menino em quem as inclinações cruéis e violentas da natureza humana seguiram seu
desenvolvimento desinibidas” (FREUD, 1909b/1986, p. 92). Suas moções cruéis foram
impedidas de se manifestar livremente mas sua presença, originária, era responsável por
sentimentos de culpa que se manifestavam sob a forma de uma angústia que nada mais
era que medo da retaliação por parte do pai. Novamente nos deparamos com a qualidade
de originária atribuída às moções cruéis.
A questão da neurose obsessiva se apresenta para Freud como um sinalizador de
que alguma coisa não vai bem com a clínica. O referencial teórico que a informa é ainda
aquele da histeria mas, a partir das contribuições de Jung, da constatação de fenômenos
que assumem grande importância e que são testemunhas de uma auto-agressão, da
observação do sentimento inconsciente de culpa e da reação terapêutica negativa,
presentes na clínica da melancolia e do luto, em suma, Freud começa a, paulatinamente,
se afastar dessa matriz. Ainda em 1909, ele escreve o historial clínico de um de seus
tratamentos prototípicos, aquele que ficou conhecido como o homem dos ratos”. O
paciente era um grande obsessivo e vivia atormentado por enorme medo, sobretudo
representado pela tortura com os ratos. Era possuído por grande angústia quando se
encontrava em presença de um capitão tcheco, a quem sempre chamava de “capitão
cruel”; justificava seu medo dizendo que este homem “certamente gostava de
crueldade” (FREUD, 1909a/1986, p. 132), já que sugeria a adoção de castigos corporais
para seus subordinados. O paciente discordava desse capitão com energia. Freud sugere
que o capitão tornara-se um substituto do pai de seu paciente, e, “por conseguinte,
atraíra sobre si parte da vívida repulsa que explodira, na ocasião, contra seu cruel pai”
(ibid, p. 170). Assinala Freud que a história sobre o castigo dos ratos fez despertar em
seu paciente “toda a sorte de moções de uma crueldade egoísta e sexual, sufocadas
prematuramente” (ibid, p. 168). O material de seus sintomas contém a “conexão de
dinheiro e crueldade com os ratos, por um lado; por outro, com seu pai (p. 228),
substituído pela figura do cruel capitão.
Freud vai considerar que a livre expressão das moções cruéis vai sofrer
impedimentos pela cultura. Assim, lemos em Totem e Tabu, de 1913, que
“se nos inclinamos a atribuir aos povos selvagens e semi-selvagens uma
crueldade sem inibições, da qual estaria ausente o arrependimento,
receberemos com grande interesse a notícia de que também entre eles o matar
um homem deve sujeitar-se a uma série de preceitos que estão subordinados às
práticas do tabu” (FREUD, 1913[1912-13]/1986, p. 43).
Entretanto, toda vez que um grupo social suprime toda e qualquer crítica às
ações cruéis, “cessa também a sufocação dos desejos maus e os homens cometem atos
de crueldade, de perfídia, de traição e de rudeza que se acreditava incompatíveis com
seu nível cultural” (FREUD, 1915d/1986, p. 282). Percebe-se que, para ele, uma
diferença entre preceitos dos povos primitivos e cancelamento das amarras dos povos
ditos cultos: diante da segunda hipótese, vêm à tona sentimentos e ações que nem entre
as práticas dos primitivos são encontrados, como se suspendessem quaisquer diques ao
livre fluxo das moções cruéis e hostis. O ano é 1915, Freud escreveu o artigo sobre o
narcisismo e todo seu edifício teórico sofreu forte abalo por conta da apresentação do
novo conceito. A oposição pulsional, entretanto, se mantém; o que agora aparece como
diferenciação é a estabelecida entre libido de objeto e libido do eu. Nada é dito de novo
sobre a agressividade presente na vida e nas sintomatologias; o sadismo é mais que
conhecido mas o ódio acaba por ser atribuído às pulsões do eu, não libidinais, em sua
luta contra a realidade adversa e ameaçadora. Freud se cala sobre aquilo que pressiona
no sentido da postulação do novo conceito de pulsão de morte, à espera de melhores
fundamentos para sua postulação.
No artigo sobre a guerra e a morte, de 1915, acima citado e escrito sob o impacto
do início da primeira Grande Guerra, são inúmeras as referências aos temas da violência
e da crueldade, como era de se esperar. Escreve Freud que o Estado proíbe que o
indivíduo recorra à injustiça não por querer eliminá-la mas por pretender monopolizá-la.
“O Estado beligerante se entrega a todas as injustiças e violências que seriam
infamantes para o indivíduo” (ibid, p. 281). Pratica o desrespeito, a crueldade, a
destrutividade, a mentira e a fraude. Toda vez que a comunidade suprime a crítica,
cessa também a sufocação das tendências más, e os homens cometem atos de crueldade,
de perfídia, de traição e de rudeza que se acreditaria incompatíveis com seu vel
cultural.” Surge aqui o paradoxo entre guerra e civilização, lei e violência. As
organizações sociais, em geral, têm de lutar contra a força de desagregação
característica dos homens, sua agressividade e potência de destruição. Na guerra, caem
por terra todas as forças que se opõem à plena satisfação dessas moções e a barbárie se
instala. A violência e a crueldade, próprias do homem e mantidas minimamente sob o
controle em situações normais, se vêm completamente liberadas pela situação da guerra
onde são vistas como ações necessárias para manter a soberania de uma nação.
Segundo artigo de Pontes (PONTES, 1991, p. 33), pode se perceber no texto um
leve tom moral. Argumenta a autora que ‘bem’ e ‘mal’ são categorias dadas pelos
grupos sociais e que pulsão alguma, ou mesmo tendência, em si mesma, é boa ou má,
não se pode classificar em termos absolutos algo como bom ou mau. Em desacordo com
essa postulação, seguimos Derrida quando este escreve que, assim como a polaridade
conservação/destruição cruel, a que opera entre amor e ódio não deve ser julgada
eticamente, não deve ser avaliada em termos de ‘o bem ou o mal’. Não temos por que
avaliar a crueldade ou a soberania do ponto de vista da ética e Freud não o faz. Seria
incongruente se o fizesse: tendo estabelecido que não existe vida sem a concorrência
das duas forças pulsionais antagonistas, a psicanálise não pode nem deve condená-las.
“Tem que permanecer na neutralidade do indecidível” (DERRIDA, op. cit., p. 77).
Freud afirma, em mais de uma ocasião, não poder existir nenhuma avaliação ética na
descrição das polaridades pulsionais e tampouco existir qualquer sentido em se
pretender erradicar as pulsões de destruição, sem as quais cessaria a própria vida.
A crueldade volta a ser vista como um transbordamento da pulsão de dominação,
como no texto que se segue, da conferência 21 das Conferências de introdução à
psicanálise, que trata do desenvolvimento libidinal e das organizações sexuais..
A oposição entre masculino e feminino ainda não desempenha papel algum.
Ocupa seu lugar a oposição entre ativo e passivo, que pode ser definida como a
precursora da polaridade sexual, com a qual também se solda mais tarde. O que
se parece masculino nas práticas dessa fase, quando a consideramos do ponto
de vista da fase genital, vem a ser expressão de uma pulsão de dominação que
facilmente transborda para a crueldade. Aspirações de meta passiva vinculam-
se à zona erógena do orifício anal, muito importante nesse período” (FREUD,
1917[1916-17]/1986, p. 298).
Dentro dessa chave da guerra e da morte, onde toda a Europa encontrava-se
tremendamente castigada pela conflagração, Ab’Saber faz uma interessante análise de
um sonho de Freud, ocorrido no final de 1918, três anos depois, portanto, da redação do
artigo acima citado, considerando-o como um prenúncio do conceito que estava por ser
produzido. Esse sonho foi acrescentado, em 1919, período da segunda auto-análise,
acontecida entre 1918 e 1919, à seção C do capítulo VII da Interpretação de Sonhos,
como nota. Reaparece em Sonhos e telepatia, de 1922, e em 1930 no corpo do texto da
Interpretação de sonhos, como exemplo de sonhos que são realização de desejos de
punição. À época do sonho, Martin, filho de Freud, estava na guerra e a família estava
há muito sem notícias dele (AB’SABER, 2000, p. 49).
O sonho, resumidamente, dizia respeito à morte de Martin na guerra. Ao analisá-
lo, em 1919, Freud escreve que “assim, o sonho pôs-se a dar expressão direta ao que
primeiro procurara negar, embora a tendência para a realização de desejo ainda se
mostrasse em ação nas distorções” (FREUD, 1922/1986, p. 192). Admite o saber
dizer o que deu ao sonho a força impulsora para expressar, dessa estranha maneira, seus
pensamentos aflitivos. Diante do desejo de morte do filho na guerra apresenta-se um
desejo de punição. O sonho parece mover-se, em grande parte de sua matéria, em uma
zona psíquica, em um modo de funcionamento, que Freud poderia considerar como
algo além do princípio de prazer. algo da natureza de uma força estranha ao sistema
teórico freudiano, nesse sonho de 1918: qual teria sido a ‘mola propulsora’ dessa clara
afirmação de seu desejo de morte do próprio filho? Se os principais sonhos do primeiro
período de auto-análise levaram Freud ao Édipo, o da análise de 1918 o leva
diretamente à concepção da pulsão de morte, “uma força autônoma de destruição
vigente no psiquismo”, em plena ação nesse período de guerra e destruição. Acrescenta
o autor que em 1920, Freud produz uma teoria exatamente sobre esses aspectos
demoníacos, não submetidos ao princípio de prazer, de alguns possíveis sonhos
(AB’SABER, op. cit., p. 53).
Em Psicologia das massas e análise do eu, de 1921, trabalhando com o novo
conceito da pulsão de morte, Freud aborda o que ele chamará de o “narcisismo das
pequenas diferenças”, para postular que a hostilidade aumenta na medida da intimidade
e da semelhança. Isso seria uma expressão do narcisismo que aponta para o fato de
que qualquer discrepância aparece ao sujeito como ameaça à sua integridade. Segundo
ele, “toda religião é de amor para todos aqueles a quem abrange e está pronta para a
crueldade e a intolerância para com os que não são membros” (FREUD, 1921/1986, p.
94). Aponta para o fato de que se nos dias atuais a intolerância religiosa não se mostra
tão violenta e cruel como em séculos anteriores não podemos daí concluir que houve
uma amenização dos costumes dos homens. O fenômeno que se faz presente na
dissolução de um grupo religioso não é outra coisa que moções cruéis e hostis que antes,
devido ao amor igualitário do chefe pelos membros desse grupo, eram impedidos de se
manifestar (ibid, p. 129).
Como mencionamos no início do capítulo, encontramos inúmeras vezes a
palavra cruel aposta ao termo supereu, quase que sendo uma qualidade intrínseca a ele.
Em O eu e o isso, de 1923, em que Freud apresenta a nova arquitetura do aparato
anímico, por diversas vezes o supereu é assim descrito, sobretudo quando exerce sua
crueldade e severidade contra o eu, de que é, afinal, uma modificação. Essa
característica do supereu é explicada por sua própria gênese: sendo ele produto de uma
identificação com o arquétipo paterno, traz a marca de uma dessexualização, sempre
partícipe de tal manobra. Em conseqüência dessa dessexualização que Freud chama
também, de certa forma, de uma sublimação produz-se uma desintricação de pulsões;
com isso, o componente erótico perde potência para ligar as pulsões de morte por ele
anteriormente enlaçadas e estas são liberadas como inclinação à agressão e à destruição.
Dessa desintricação, o supereu extrai todo o traço duro e cruel de seu imperioso dever-
ser (FREUD, 1923/1986, p. 55). “O supereu – a consciência moral eficaz dentro do eu –
pode se tornar duro, cruel e desapiedado contra o eu a quem tutela” (FREUD,
1924/1986, p. 173).
Num pequeno texto do mesmo ano, Breve informe sobre a psicanálise,
encontramos outra referência às moções cruéis. Abordando as forças em oposição e luta,
Freud escreve que o recalque emana regularmente do eu e invoca, para se fundamentar,
motivos estéticos e éticos. “Afeta as moções egoístas e cruéis que, em geral, podiam ser
resumidas sob o nome de moções más, porém, sobretudo, moções sexuais de desejo”
(FREUD, 1925[1924]/1986, p. 208). Apesar de já dispor do conceito da pulsão de morte
e seus derivados, Freud acentua as moções sexuais de desejo, aquilo que de imoral
habita o homem, como se as moções destrutivas e cruéis não fossem propriamente alvo
do recalque.
No ano seguinte, Freud escreve Inibição, sintoma e angústia, um conjunto
desigual de conceitos, recolhidos ao longo dos últimos anos. Nele encontramos uma
breve alusão à crueldade quando Freud trata da neurose obsessiva, afecção dotada de
um supereu severíssimo e resultante de importante regressão libidinal. O supereu não
escapa da regressão e da desintricação de pulsões que acontece no isso e se torna cada
vez mais duro, martirizador e desapiedado do que no desenvolvimento normal. Na
puberdade, um corte drástico no desenvolvimento da neurose obsessiva; a
organização genital se reinstala com inegável força, as moções agressivas voltam a
despertar, caminhando o sujeito pelas vias apresentadas pela regressão à fase anterior, a
anal-sádica; todo seu movimento emerge sob a forma de propósitos agressivos e
destrutivos. Como conseqüência de as aspirações eróticas serem desse modo
disfarçadas, a luta contra a sexualidade se trava agora sob bandeiras éticas. “O eu se
revolta, com assombro, contra convites cruéis e violentos que lhe são enviados pelo isso
à consciência, e nem suspeita que, na verdade está lutando contra desejos eróticos”
(FREUD, 1916[1925]/1986,p. 111).
No ano seguinte, num ensaio sobre Dostoievski e o parricídio, Freud retoma
considerações sobre o supereu e reformula suas últimas concepções sobre o complexo
de Édipo e o sentimento de culpa. Os sentimentos de ódio em relação ao pai são
recalcados e dão lugar a uma identificação com esse pai, identificação essa que se
assegura um lugar duradouro dentro do eu, onde se contrapõe ao outro conteúdo do eu,
como uma instância particular. Este é o supereu, o herdeiro da influência parental, a
quem são atribuídas importantes funções psíquicas. “Se o pai foi duro, violento, cruel, o
supereu toma dele essas qualidades e, em sua relação com o eu, volta a se produzir a
passividade que justamente devia ser recalcada” (FREUD, 1928[1927]/1986, p. 182).
Entretanto, Freud também assevera que a crueldade do supereu não está em
dependência direta da severidade e crueldade do genitor real: a crueldade é atributo do
supereu em decorrência de sua gênese.
Gostaríamos de observar que aqui, na análise de Dostoievski, assim como no
texto sobre o Presidente Wilson, de 1933, e no artigo Inibição, sintoma e angústia, de
1926, todos posteriores à postulação da segunda oposição pulsional, Freud menciona
pouco o conceito da pulsão de morte. Apresenta-a quando se refere aos postulados mais
gerais da teoria mas poucas vezes ao longo da análise propriamente dita. Faz derivar
tanto a agressividade quanto o ódio, a hostilidade e os impulsos assassinos do complexo
de Édipo, sem atribuir esses sentimentos e condutas à pulsão de morte. Até mesmo o
supereu, que fora declarado o representante por excelência da pulsão de morte no
psiquismo por vezes, uma verdadeira cultura de pulsão de morte” – volta a ser
considerado mais como um produto de identificações. Tanto o masoquismo de
Dostoievski quanto seu sentimento de culpa são vistos como decorrências de uma
feminilidade constitucional particularmente intensa.
Finalmente, com O mal-estar na cultura, Freud aborda a questão da
destrutividade como originária e autônoma. Conforme mencionamos, já no segundo
ensaio dos Três ensaios sobre a sexualidade Freud admite que as moções cruéis surgem
independentemente da sexualidade, mas que podem entrar em conexão com ela desde
logo. As fontes independentes indicadas tinham sua origem nas pulsões de
autoconservação. Na edição de 1915, essa passagem sofreu uma modificação: ali se
que a moção cruel provém da pulsão de dominação e omitiu-se a frase a respeito da
independência em relação à sexualidade. No afã de dominar, o sujeito é cruel; é como se
não houvesse a intenção de sê-lo nem especial obtenção de prazer com o fato. A
crueldade é assim considerada por um outro, estupefato diante da inamovibilidade das
moções de dominação.
No texto de 1930, Freud aponta para o fato de o ser humano não ser amável,
dócil, no máximo capaz de se defender se é atacado. Ao contrário, sua dotação pulsional
possui uma notável quantidade de agressividade. O próximo é alguém que serve de
auxiliar e de objeto sexual, além de suportar a satisfação da agressão do sujeito, de ser
explorado e abusado. “Quem, em vista das experiências da vida e da história, ousaria
discutir esse apotegma? Essa agressão cruel em geral aguarda uma provocação...”
(FREUD, 1930/1986, p. 108). Quando estão ausentes as forças anímicas contrárias,
capazes de inibi-la, a crueldade se manifesta também espontaneamente, desmascarando
os seres humanos como bestas selvagens que nem sequer respeitam os membros de sua
própria espécie.
Poucas páginas adiante, Freud aponta para o fato de uma das pulsões de objeto, a
sádica, ter sido sempre discernida como não-amorosa, parecer se ligar às pulsões
egóicas e mostrar sua vinculação estreita com as pulsões de dominação, não libidinais.
Entretanto, mesmo com essas evidências, tinha sido muito difícil definir do que se
tratava. “Era evidente que o sadismo pertencia à vida sexual, pois o jogo cruel podia
substituir o terno” (ibid, p. 113). Temia que o reconhecimento de uma pulsão de
agressão autônoma pudesse implicar uma modificação substancial da doutrina
psicanalítica das pulsões e por isso relutara tanto em lhe conceder o atual lugar de
destaque.
A extrema crueldade do supereu é característica, principalmente, de duas
afecções, a neurose obsessiva e a melancolia. Freud examinara o caso da neurose
obsessiva e agora, na conferência 31 das Novas conferências de introdução à
psicanálise, trabalha com a melancolia. O estado da melancolia, diz ele, é o quadro
psicopatológico que mostra claramente a severidade, até mesmo a crueldade dessa
instância, bem como as mudanças por que passa sua relação com o eu. O supereu não só
goza de certa autonomia como persegue suas próprias intenções e é independente do eu
quanto ao seu patrimônio energético (FREUD, 1933[1932]/1986, p. 56).
Talvez possamos afirmar que o aspecto mais brutal da crueldade é o fato de ela
desumanizar as suas timas antes de finalmente destruí-las. A crueldade pode ou não
levar à destruição do objeto mas está, indubitavelmente, ligada ao fazer sofrer, ao desejo
de aniquilamento, ao ódio. Apesar de inicialmente surgir, na teoria, acoplada à pulsão
de dominação, esta também no início desprovida de intenção e destacada da
sexualidade, a crueldade vai se afirmando como intimamente vinculada à obtenção de
prazer em fazer o mal. Não pode ser considerada exatamente como um sentimento mas
sim uma condição, uma característica do sujeito. A crueldade é uma tendência, uma
motivação, uma direção tomada pelos impulsos do sujeito mas não é propriamente um
afeto, um sentimento, designações estas mais apropriadas quando nos referimos, por
exemplo, ao ódio e ao amor. Desnecessário apontar para a ligação estreita entre ódio e
crueldade.
Sabemos que Freud sempre insistiu em dizer que não leu Nietzsche, pelo menos
não o suficiente para por ele ser influenciado, como mencionado nessa tese;
entretanto, é impossível não pensarmos no que o filósofo escreveu acerca da crueldade e
nas possíveis ressonâncias de suas idéias nas considerações freudianas. Assim é que
lemos, em Nietzsche, que “nas ões, nos caracteres mais elogiáveis, o assassinato, o
roubo, a crueldade, a simulação figuram enquanto elementos necessários da força
(NIETZSCHE, 1881-2/1967, p. 354). Aponta, nesse enunciado, para a convergência de
aspectos ditos ‘negativos’ e da força {die Macht}, presente na raiz do vocábulo
dominação, como examinamos. Observamos, mais uma vez, o entrelaçamento dos
temas e conceitos abordados nessa tese, o que dificulta nossa tentativa de discerni-los
entre si.
Em contrapartida, Nietzsche considera que entre as ações e caracteres mais
depreciados figuram o amor (estima e superestimação de algo cuja posse se deseja) e a
benevolência (estima por qualquer coisa que se possua e se queira conservar).
Acrescenta que “amor e crueldade não são contraditórios; encontram-se sempre
coabitando nas melhores e mais firmes naturezas” (ibidem). A crueldade não tem nem
admite contrário ou oposição, não postula conflito nem antítese, não carecendo,
portanto, de nenhuma tentativa de superação. O sentido que Nietzsche parece dar a essa
‘coabitação’ de amor e crueldade pode ser referido ao mesmo significado encontrado
em Freud, quando este fala das mesclas pulsionais: Mischung.
Nietzsche fala daquilo que já foi sublimado: “os homens não discernem as
pequenas doses sublimadas e negam sua existência; por exemplo, a crueldade no
pensador, o amor no malfeitor” (ibid, p. 355).
Consideramos que a postura de Freud com relação aos aspectos cruéis da
natureza humana não passa pela exaltação que observamos em Nietzsche mas ela a trata
como algo inevitável, próprio do fato de ser humano, este sujeito habitado por forças
opostas. Para Nietzsche, que examina a crueldade por suas características positivas, é
notável que o homem tenha podido aprender tanta alegria no aspecto ou no sentimento
da dor. “Mesmo a amplitude de prazer em prejudicar, exaltou o homem” (ibidem).
Acreditamos que tais idéias também foram elaboradas nos pensamentos de
Foucault e, mais recentemente, de Derrida. Apesar de fazê-lo com extrema cautela,
motivada pelo parco conhecimento de sua obra, não poderíamos deixar de voltar a
mencionar o que escreveu Derrida sobre a crueldade. Em sua alocução que encerrou o
evento que teve lugar em Paris, em julho de 2000, os “Estados Gerais da Psicanálise”,
Derrida abordou o tema da crueldade, articulando-o com o da soberania. Afirmou que
Freud nos fez ver que o mal existe na essência do homem sendo, portanto, diante da
inelutabilidade de sua existência, irrealístico querer negá-lo ou suprimi-lo. Freud
reinscreve a palavra crueldade em uma lógica psicanalítica de pulsões destrutivas
indissociáveis da pulsão de morte.” Uma pulsão de morte irredutível a qualquer outra
força parece inseparável daquilo que é, obscuramente, chamado de crueldade. E disse
mais: que o único discurso capaz de enfrentá-lo, dimensioná-lo e entendê-lo é
justamente o discurso psicanalítico. Psicanálise seria o nome daquilo que, sem álibi
teológico ou qualquer outro, se voltaria para o que a crueldade psíquica teria de mais
próprio” (DERRIDA, 2000, s/p), declara em sua introdução à apresentação. Aliás, diz
ele, a psicanálise seria o outro nome do “sem álibi”. E raramente se fala de álibi sem
alguma presunção de crime, nem de crime sem uma suspeita de crueldade. A crueldade
é o campo em que a psicanálise se desdobra. “Se um discurso que poderia, hoje em
dia, reivindicar a causa da crueldade psíquica como assunto próprio, esse é o que se
chama, de mais ou menos um século para cá, psicanálise” (ibid, p. 12).
Derrida salienta o fato de Freud ter feito, mais de uma vez, alusão ao ‘prazer
obtido através da agressão e da destruição’ {Die Lust an der Aggression und
Destruktion}; dito assim, parece, mais uma vez, reforçar nossa idéia de que se trata de
dois objetivos diferentes, ambos propiciadores de certo ganho de prazer, por vias e
finalidades distintas. Prossegue Derrida apontando para outras alusões freudianas, desta
feita às ‘inumeráveis crueldades da história’ {ungezählte Grausamkeiten der
Geschichte}, às ‘atrocidades da história, às ‘crueldades da santa Inquisição’ e as remete
à idéia sica do texto de 1920, de que a pulsão de morte, que trabalha sempre para
levar de volta a vida, por desagregação, à matéria não-viva, se torna pulsão de
destruição quando se volta, com a ajuda de órgãos particulares “e as armas podem ser
próteses destes” – em direção ao exterior, aos ‘objetos’. Do vivo ao morto, pela obra das
pulsões de destruição, os mais radicais derivados das pulsões de morte, sua combinação
mais ‘mortífera’.
Salienta a ocorrência da palavra crueldade sobretudo em certos textos políticos
de Freud e considera que também temos que situar, ao mesmo tempo que o tema
psicanalítico da soberania ou do domínio {Herrschaft, Bemächtigung}, o tema de uma
pulsão de dominação, de poder ou de posse. Referindo-se a outro texto seu, Carte
postale, de 1980, Derrida mostra como a palavra e o conceito de Bemächtigungstrieb,
que examinamos no capítulo V, estão presentes no texto freudiano desde os Três
ensaios, de 1905, e tem um papel decisivo em Além do princípio de prazer, quinze anos
depois: para além ou para aquém dos princípios, como princípio dos princípios,
sobretudo presente na ambivalência amor/ódio e no desencadeamento da crueldade que
leva à hipótese de um sadismo originário (ibid, p. 47).
Aponta para o que considera uma mutação cruel da crueldade, mutação essa
trazida pelos avanços técnicos, científicos, jurídicos, éticos e políticos, entre outros.
Resta-nos, a nós, psicanalistas, refletir acerca dessa mutação da própria crueldade e nos
prepararmos para melhor compreendê-la. Derrida nos convida a pensar sobre esse
horizonte, que lhe parece próprio à psicanálise, o da crueldade psíquica, “exangue ou
não necessariamente sangrenta”, e sobre o prazer agudo tirado do “mal na alma.” O
autor estabelece uma ligação absolutamente indispensável entre a crueldade, a “pior
crueldade”, o sofrer por sofrer, o deixar-sofrer, o se-fazer ou deixar sofrer, com o prazer
com o sofrimento. Refere-se à crueldade como a pulsão do mal pelo mal, de um
sofrimento que brincaria de sofrer ou de fazer sofrer pelo prazer.
Entretanto, salienta, a psicanálise se omite: ela resiste ao mundo e a si mesma:
“essa resistência é também uma resistência a si própria” (ibid, p. 17). A crueldade
resiste, a soberania resiste, ambas resistem à psicanálise assim como a psicanálise
resiste a ambas. A pulsão de morte, para a psicanálise, é uma das forças que regem o
destino do homem; a pulsão de poder, ou, diríamos, a pulsão de dominação, é uma
derivada das pulsões de morte, uma das formas de Thanatos, e está infiltrada em suas
organizações e instituições sociais, como o Estado, e se exerce como crueldade e
soberania. Um exemplo da crueldade soberana do Estado é a pena de morte.
Finaliza sua pequena introdução afirmando que o que tentou pensar, ou pelo
menos conhecer, foi a possibilidade de um impossível para além da pulsão de morte,
para além da pulsão de poder, para além da crueldade e da soberania, e um para além
incondicional. Será ainda possível o sem álibi?
Derrida menciona e comenta dois textos de Freud com os quais trabalhamos
nesse e nos outros capítulos: Considerações sobre a guerra e a morte, de 1915, e Por
que a guerra?, de 1932. Neste último, considera que Freud e Einstein, em sua troca
epistolar, estabelecem o irreversível da pulsão de morte, da crueldade e da necessidade
de o homem se defrontar, constantemente, com ela. Ao falar da palavra ‘crueldade’ e de
seu sentido, como uma das repercussões sociais da pulsão de morte, e de sua
importância nas guerras e na destrutividade, a argumentação de Freud se revela “ao
mesmo tempo a mais política e, em sua lógica, a mais rigorosamente psicanalítica”
(ibid, p. 69). Não que o sentido da palavra ‘crueldade’ {Grausamkeit} seja claro mas ele
desempenha um papel operatório indispensável, escreve. Por isso, Derrida faz recair
sobre ele toda a carga de sua questão.
Entretanto, acrescenta o autor, se a pulsão de poder ou a pulsão de crueldade é
irredutível, mais velha, mais antiga que os princípios (...), então nenhuma política
poderá erradicá-la” (ibid, p. 37). Freud aponta, nesse último texto, que não direito
sem poder (força, violência), como atesta o primeiro título pensado para ele, antes do
definitivo Warum Krieg?: Recht und Gewalt, direito e violência. Estabelece, assim, a
diferença entre a força (ou a violência) necessária para a criação e a imposição da lei, e
a crueldade, que pertence a outro domínio. Como exercer de forma adequada o poder
sem ceder à tentação da crueldade? Compreendemos que, segundo Derrida, violência e
poder são duas faces de uma mesma moeda, como duas instâncias que se articulam, em
constante dialética. A crueldade, entretanto, pertenceria a outro campo, àquele que
escapa de qualquer tentativa de regulação, de contenção. A crueldade seria o lugar de
uma radicalidade sem igual e sem possibilidade de transformação, à diferença da
violência, do poder que dá lugar à lei.
Derrida aponta para o fato de a psicanálise não dever nem poder condenar,
reprimir ou censurar a agressão e a destrutividade por sabê-las constitucionais, e, ao
contrário, objetivar sua compreensão e análise. “Pode-se acreditar que a economia é
desafiada pela especulação dita mitológica sobre a pulsão de morte e sobre a pulsão de
poder, portanto sobre a crueldade, como sobre a soberania. Na pulsão de morte (...)
pode-se reconhecer, com efeito, uma aparência aneconômica [isto é, em ausência de
economia]. E o que é mais aneconômico, dir-se-á, do que a destruição? E do que a
crueldade?” (ibid, p. 81).
Freud acredita na impossibilidade de se desenraizar as pulsões de ódio e de
destruição e Derrida, baseado nisso, afirma ser uma ilusão acreditar numa erradicação
possível das moções cruéis, das pulsões de poder ou da vontade de soberania. Além
disso, postula a crença de Freud no fato de a crueldade não possuir contrário: ela é
ligada à essência da vida e da vontade de poder. Sendo uma crueldade irredutível,
qualquer contrário apenas poderia se compor com ela. Portanto, a única possibilidade de
uma via indireta {indirekte Wege} para combater a crueldade é fazer com que ela seja
desviada, diferida e, por que não, derivada e, assim, não encontre sua expressão na
guerra. Esse desvio {Umweg} será possível se fizermos trabalhar a força antagonista
de Eros, o amor, o amor da vida, contra a pulsão de morte. Esse Eros é o termo que
pode se opor mesmo que a crueldade não tenha fim (ibid, p. 73). Freud justifica, pela
vida, o direito à vida.
Atestando o entrelaçamento, a intricação dos temas aqui abordados, e a
decorrente dificuldade em tentar estabelecer para cada um seu território definido, lemos
em Derrida que os princípios psicanalíticos, tratados, assim como os processos com que
a psicanálise sempre contou, cientificamente mas também como ficções teóricas
indispensáveis, foram postos em situação crítica: o que os põe em crise, para além ou
para aquém deles, é uma certa pulsão de morte que, na origem de toda crueldade, pode
tomar a forma destrutiva de um sadismo, de uma ferocidade que a libido narcísica teria
separado, posto para fora do eu para então exercê-la sobre o objeto exceção feita
àquilo que fica sob a forma de um masoquismo primário, erógeno. Aqui temos várias
noções, rios conceitos em sua aparente indeterminação, quase não se podendo definir
onde acaba um e começa outro. Mas Derrida opera essa distinção, ao nomeá-los, cada
um com sua especificidade, seu destino, sua atuação e seu contorno. Uma coisa é certa:
o que se encontra na origem de todos eles são as pulsões de morte, conceito mais que
especulativo e aberto, mas necessário.
2. Maldade
Toute méchanceté vient de faiblesse; l’enfant n’est méchant que parce
qu’il est faible; rendez-le fort, il sera bon: celui qui pourrait tout ne
ferait jamais de mal.
Jean-Jacques Rousseau, Émile ou de l’éducation, livre 1.
Cette manie bizarre de faire le mal pour le seul plaisir de le faire est
une des passions de l’homme la moins comprise et par conséquent la
moins analysée et que j’oserais cependant croire possible de faire
rentrer dans la classe commune des délires de son imagination .
Le Marquis de Sade, Voyage d’Italie.
On pourrait en tirer une méchante conséquence, entre tant d’autres, et
qui touche à la méchanceté même, à la méchanceté insignifiante du
mal, à l’aléa de rencontre, dans l’amour ou dans la haine: si un pardon
peut être demandé, à en croire le bon sens même, pour le mal infligé,
pour le tort, pour le crime, pour l’offense dont l’autre est, de mon fait,
la victime, ne puis-je aussi avoir à me faire pardonner le mal dont je
souffre ?
Jacques Derrida, États d’âme de la psychanalyse.
Segundo o Vocabulário técnico e crítico da filosofia, o sentido geral do
substantivo mal {Uebel} aponta para tudo que é objeto de desaprovação ou de censura,
para tudo aquilo que é de tal maneira que a vontade tem o direito de se lhe opor
legitimamente e de o modificar se possível. Citando a Teodicéia de Leibniz, na sua
parte, § 21, o vocabulário nos informa que “pode-se tomar o mal metafisicamente,
fisicamente e moralmente. O mal metafísico consiste na simples imperfeição, o mal
físico no sofrimento, e o mal moral no pecado”. Um sentido especial da palavra {Uebel,
Böse} se refere ao mal moral; este seria sempre o sentido da palavra na expressão “fazer
o mal” (LALANDE, 1996, p. 642).
A pergunta acerca da existência do mal e sua razão de ser sempre esteve, durante
séculos, no centro da reflexão filosófica, teológica e moral da humanidade. Se o mal
tem uma razão, indagamo-nos sobre a existência daquilo que o explica e justifica. Será
que temos que procurar as razões individuais, sociológicas e psicológicas para o mal,
como se ninguém pudesse ser mau por vontade própria? Não terá o mal, na atualidade,
se banalizado a ponto de tornar-se um lugar comum?
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, mau adjetiva o que
prejudica ou fere, o que concorre para o dano ou a ruína de alguém ou de algo, o que é
nocivo, desastroso para a felicidade ou o bem-estar físico ou moral; maldade refere-se à
totalidade de atos, experiências e coisas indesejáveis ou nocivas que implicam a
existência de sofrimento e perversidade. Maldade é a qualidade do que é mau
(HOUAISS, op. cit., p. 1819 e 1871). Tem como sinônimos perversidade, malignidade,
crueldade. Na versão castelhana das obras completas de Freud, da Amorrortu editores, o
vocábulo é geralmente traduzido por perversidade, apesar de reter o mesmo sentido do
termo maldade.
O vocábulo maldade vem do latim malitas, malitatis: ruindade, dano, prejuízo. O
substantivo mal proveio do advérbio latino male; no latim, encontramos ainda a forma
adjetiva malus e o substantivo masculino, malum. Em francês, a forma adjetiva
perdeu-se, e apenas existe em algumas locuções bon gré, mal gré ou em palavras
construídas mal de mer, mal du siècle, etc. O substantivo deu origem a diversas
expressões na medicina antiga, como mal des ardents, petit mal, grand mal, etc. A
palavra que é empregada, méchant, equivalente do português mau, aponta para a
qualidade daquele inclinado a fazer mal a outrem.
Lemos em “La main mauvaise”, de Masud Khan, que o adjetivo mau evil,
mauvais é empregado por Freud na mesma acepção que possui no uso corrente da
língua, nunca tendo tido o termo, em sua obra, o estatuto epistemológico de um
conceito. O autor acrescenta que a idéia de mal é de natureza sócio-teológica (KHAN,
1981, p. 42-3), o que está bastante de acordo com as definições dadas pelo dicionário
The Oxford Companion to Philosophy. Ali, sob o verbete human evil”, mal humano,
lemos que essa expressão designa o sofrimento que resulta de escolhas humanas
moralmente erradas (HONDERICH, 195, p. 254). O mal humano é, por conseguinte,
oposto ao mal natural, que resulta de desastres da natureza, tais como terremotos. O
termo evil, mal, é usado, especialmente em séculos passados, como um sinônimo para
formas extremas de erros morais. Quando usado dessa maneira, sua análise acaba por
ser a tarefa da filosofia moral secular. Quando o termo implica uma metafísica teística,
levanta o problema de como seria compatível o mal com a existência de um Deus
onipotente e amoroso.
Tentaremos evidenciar o uso do termo por Freud e suas vinculações com os
conceitos com que estamos trabalhando.
Assim, já em seus Estudos sobre a histeria, ao relatar o caso de Elisabeth von
R., Freud, examinando o campo transferencial, mesmo sem ainda se dar conta do que se
passava, observa que, diante de uma sua interpretação, a paciente “queixou-se de dores
crudelíssimas e fez um último e desesperado esforço para rechaçar este esclarecimento:
que não era verdade, que eu lhe havia sugerido, o pode ser verdade, que ela seria
incapaz de semelhante maldade [perversidade], jamais poderia perdoar-se por isso”
(FREUD, 1893-95/1986, p. 171). Aqui o termo é empregado em seu sentido mais
comum, o de uma ação ou de um sentimento reprovável.
Em A interpretação dos sonhos, afirma Freud que não podemos tirar do
sonhador a responsabilidade por seus sonhos e que podemos “deduzir da maldade
[perversidade] destes uma maligna tendência de sua natureza” (FREUD, 1900/1986, p.
91). Freud rebate, assim, aqueles que opinam que a personalidade ética do homem
desaparece no sonho. A maldade presente no sonho falaria a respeito de uma tendência
própria do sonhador, uma certa ‘malignidade’ de seu caráter.
Um ano depois, em A psicopatologia da vida cotidiana, ao tentar explicar a
superstição, afirma queuma pessoa que tenha freqüentemente desejado o mal a outros,
mas tenha sido educada para o bem e por isso recalcado tais desejos no inconsciente,
será especialmente propensa a esperar o castigo por esta maldade inconsciente como um
infortúnio que a ameaça de fora (FREUD, 1901/1986, p. 253). Aqui vemos
mencionadas as bases da teoria do recalcamento e o prenúncio da função crítica de uma
parte do aparato anímico.
No texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, tantas vezes
mencionado nessa tese, Freud aponta para o fato de que os produtos mais nobres e
elevados do espírito humano provêm da mesma fonte de onde se originam as
depravações e perversões mais repulsivas. A pulsão sexual ignora a oposição entre o
bem e o mal, ela própria é caracterizada e definida por um desvio da natureza, uma
aberração, die Abirrung. Freud inicia seu texto e baseia sua conceituação da pulsão
sexual e da sexualidade humana descrevendo comportamentos sexuais desviantes,
aberrantes. A pulsão sexual se apresenta, ela mesma, como a perversão da ordem vital.
Se a natureza é boa, regrada, a sexualidade do homem, pertencente à cultura, representa
a subversão dessa ordem. Sexo não é procriação, nos diz Freud; não nada de natural
nas práticas sexuais do ser humano. De alguma forma, a definição da sexualidade
humana como originariamente perversa, acaba por aproximá-la da idéia de algo mau,
demoníaco. Esse aspecto do homem será, com a segunda teoria pulsional, entregue à
força da pulsão de morte.
Em Totem e tabu, Freud aborda a neurose obsessiva e reflete sobre o fato de os
neuróticos, que se encontram atualmente sob a pressão de uma supermoral, se
protegerem somente da realidade psíquica de certas solicitações e se castigarem por
moções apenas sentidas. Postula existir nesse fato um fragmento de realidade histórica.
A hipótese é de que, na infância, “esses homens tiveram esses mesmos impulsos maus
e, na medida em que lhes permitiu a impotência da criança, transpuseram esses
impulsos em ações. Cada um desses indivíduos superbons passou por um período de
maldade na infância, uma fase perversa como precursora e premissa da fase posterior
supermoral” (FREUD, 1912´1913/1986, p. 161).
No ano seguinte, 1914, Freud começa a escrever o relato de seu caso clínico
conhecido como “o homem dos lobos”, publicado em 1918. Esse foi também o ano
da redação de seu artigo que introduz o conceito de narcisismo e no ano seguinte Freud
escreve o trabalho metapsicológico sobre as pulsões.
No historial do caso, na parte IV, “A neurose obsessiva”, Freud descreve alguns
detalhes do adoecimento precoce de seu paciente. Diz que, primeiro, revoltou-se contra
o caráter sofredor de Cristo e depois contra Sua história como um todo, fazendo-lhe
constantes críticas. Se era todo-poderoso, então era culpa Dele se os homens eram
maus e atormentavam os outros, em conseqüência do que eram mandados para o
Inferno. Devia -los feito bons; Ele próprio era responsável por todo o mal e todo o
martírio” (FREUD, 1918[1914]/1986, p. 59). O tema da maldade e a luta contra ela -
surge aqui associado, de forma clássica, à temática da neurose obsessiva, o que se
repetirá ao longo da obra freudiana.
Em 1915, em plena primeira guerra mundial, Freud escreve queé provável que
sintamos com força desmedida a maldade desta época, e não temos o direito de
compará-la com a de outras épocas, que o vivemos” (FREUD, 1915d/1986, p. 277).
Como já examinamos, a ocorrência da guerra deu ensejo a rias reflexões e foi
inevitável que os temas recorrentes fossem aqueles relativos aos horrores e iniqüidades
que o evento de uma conflagração desse tipo faz aflorar.
Nas Conferências de introdução à psicanálise, escritas nos dois anos seguintes,
Freud dedicou bastante atenção ao tema da maldade, talvez ainda sob a impressão da
guerra. Na conferência de número nove, sobre a censura onírica, menciona que não é
provável que se dê espaço tão grande ao mal na constituição do homem. Pergunta a seus
ouvintes se suas próprias experiências os autorizam a fazer tal afirmação.
“Não quero falar da maneira em que gostariam de ver-se a si mesmos mas será
que têm encontrado tanta benevolência entre seus chefes e competidores, tanto
cavalheirismo entre seus inimigos e tão pouca inveja naqueles que os rodeiam
que se sentem comprometidos a serem fiadores de que não há, na natureza
humana, uma parte de maldade egoísta?” (FREUD, 1915-1916/1986, p. 134).
Acrescenta que ninguém teria tido êxito em desencadear todos esses maus
espíritos se não encontrasse, entre os homens, um sentimento de cumplicidade. Será
possível, diante das evidências, a alguém continuar a sustentar a ausência de maldade na
constituição anímica do homem?
“Detemo-nos com maior insistência na maldade do homem apenas porque os
outros pretendem desmenti-la, com o que a vida anímica do homem não se
torna melhor, mas sim incompreensível. Portanto, se abandonarmos a
valoração ética unilateral, poderemos encontrar sem dúvida a fórmula mais
correta quanto à proporção do mal e do bem na natureza humana” (ibid, p.
135).
A seguir, na conferência de número treze, acerca dos traços arcaicos e do
infantilismo presentes nos sonhos, Freud observa que, sempre que alguém se transforma
num obstáculo para nós, um sonho logo se incumbe da tarefa de eliminar essa pessoa,
seja ela quem for. “Essa maldade [perversidade] da natureza humana surgiu para nosso
grande assombro e, decididamente, não estávamos propensos a aceitar, sem indagações
esse resultado da interpretação de sonhos” (ibid, p. 186). A natureza do homem se
mostra sem pudores mas Freud reluta em aceitar as premissas lançadas por seus
seguidores nos anos iniciais da instituição psicanalítica. A maldade na guerra era
ostensiva, evidente, e as disputas internas à sociedade recém-fundada constituíam bom
exemplo dela.
tendo produzido o conceito de pulsão de morte, em 1920, Freud agora dispõe
de outra possibilidade de explicação para determinados fenômenos da natureza humana.
Assim, em artigo de 1921, afirma que algumas das propriedades mostradas pelos
indivíduos quando entram em uma massa e contrapondo-se às apreciações de Le Bon,
a quem dedica o segundo capítulo -, novas em sua aparência, são, justamente, “as
exteriorizações desse inconsciente que, sem dúvida, contém, como disposição
[constitucional], toda a maldade da alma humana” (FREUD, 1921/1986, p. 71).
Acrescenta que, nessas circunstâncias, desaparece também a consciência moral ou o
sentimento de responsabilidade, o que faz com que o homem se comporte de forma
totalmente diferente de quando está sozinho. A maldade humana o apenas é
inequívoca; ela apresenta-se como constitucional.
Em outro artigo escrito um ano depois, no capítulo que trata do fato de o diabo
ser um substituto do pai, Freud menciona o processo pelo qual uma representação de
conteúdos contrários ambivalentes se decompõe em dois opostos nitidamente
diferentes. Diz ele que as contradições dentro da própria natureza originária de Deus
espelham a ambivalência que reina no vínculo do indivíduo com seu pai pessoal. Se o
Deus bom e justo é um substituto do pai, não deve espantar o fato de que na construção
de Satã tenha encontrado expressão a atitude hostil.
“Por conseguinte, o pai seria a imagem primordial {Urbild} individual tanto de
Deus como do Diabo. Mas então as religiões responderiam à inextinguível
repercussão do fato de que o pai primordial primitivo era um ser
ilimitadamente mau, menos parecido com Deus do que com o Diabo”
(FREUD, 1923[1922/1986, p. 88).
Numa entrevista concedida por Freud ao jornalista americano G. S. Viereck, em
1926, a que este deu o título de “O valor da vida”, percebemos que as idéias relativas às
diferenciações entre os estados afetivos e potencialidades humanas ocupavam seu
pensamento. Num determinado trecho, Freud afirma preferir a companhia dos animais à
companhia dos homens.
“... porque são tão mais simples, não sofrem de uma personalidade dividida, da
desintegração do Eu que resulta da tentativa do homem de adaptar-se a padrões
de civilização demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e
psíquico. O selvagem, como o animal, é cruel, mas não tem a maldade do
homem civilizado. A maldade é a vingança do homem contra a sociedade,
pelas restrições que ela impõe. As mais desagradáveis características do
homem são geradas por esse ajustamento precário a uma civilização
complicada. É o resultado do conflito entre nossas pulsões e nossa cultura”
[grifos meus] (FREUD/VIERECK, 1926).
Gostaríamos de assinalar que neste trecho nos deparamos com a utilização de
termos diferentes para distinguir um atributo do animal a crueldade do de um
humano – a maldade. Não só a maldade é do homem como ela é classificada de
vingança deste contra as imposições de renúncia da cultura. O vocábulo vingança
denota não apenas uma especificidade humana como uma ação intencional; pode ser
considerado como uma das expressões, uma das exteriorizações dos derivados das
pulsões de morte, assunto desta tese. A vingança é levada a efeito de caso pensado: essa
característica aponta para o papel da memória na composição do aparelho psíquico; não
se trata de uma pronta reação a uma agressão sofrida mas algo que passa por diversos
níveis de elaboração e até mesmo ponderação. Sabemos que Freud, por vezes, não
primou pelo rigor na utilização de termos e expressões mas nosso propósito é
justamente investigar se esse uso um pouco indeterminado e impreciso aponta para uma
negligência ou se ele pretendia ainda estabelecer algumas diferenças.
Chegamos ao texto O mal-estar na cultura, de 1930, que aborda,
exaustivamente, os temas de nosso trabalho. No que diz respeito especificamente ao
tema da maldade e da qualidade daquilo que é mau, Freud conjetura que comumente
ninguém gosta de ouvir menções à
“inclinação inata do ser humano ao mal’, à agressão, à destruição e, com elas,
também à crueldade. É que Deus criou os indivíduos à imagem e semelhança
de sua própria perfeição, e não se quer admitir quão difícil é conciliar a
indiscutível existência do mal (...) com a onipotência ou a bondade infinita de
Deus. (...) Porém, ainda assim, podem pedir a Deus que conta da existência
do Diabo, como pela do mal, que o Diabo incorpora (...)” (FREUD, 1930/1986,
p. 116).
Ou seja: de forma singela, Freud nomeia e separa, distinguindo, o mal, a
agressão, a destruição, a crueldade. Talvez não passe de preciosismo nosso buscar
nessas enumerações fundamentos para nossas premissas. Entretanto, parece-nos que se
ele não visse sutis diferenças entre as idéias e os termos que as designam, não precisaria
usar diversos termos para dar conta de uma única noção.
Logo adiante, observa Freud que a identificação do princípio do mal com a
pulsão de destruição, presente no Mefistófeles de Goethe, produz um efeito muito
convincente. E acrescenta que, no texto de Goethe, o próprio Diabo não menciona o
sagrado como seu oponente e sim a força da natureza em engendrar, em multiplicar a
vida, ou seja, Eros (ibid, p. 116, n. 10). Aqui, mais uma vez, Freud opõe Eros à
destruição e não às suas verdadeiras oponentes radicais, as pulsões de morte. Talvez
diante da dificuldade de apontar as pulsões de morte, próprias do inorgânico e mudas
diante da vida, tenha ele muitas vezes preferido se referir aos seus mais prodigiosos e
violentos derivados, as pulsões de destruição, ruidosas, constatáveis em várias condutas
humanas, inequívocas. Freud não mais se recusa a aceitar a maldade como um traço
indestrutível” da natureza humana.
Como vemos, toda a discussão sobre a existência do mal na alma humana acaba
por recorrer a exemplos que envolvem aspectos místicos, religiosos. Entretanto, um
caminho é apontado. A esse respeito lemos, em Derrida, cujo texto trabalhamos no
subcapítulo sobre a crueldade, que “sempre que uma questão do sofrer por sofrer, de
fazer ou de deixar fazer o mal pelo mal, em suma, sempre que a questão do mal radical
ou de um mal pior que o mal radical não for abandonada à religião ou à metafísica,
nenhum outro saber estará pronto para se interessar por alguma coisa como a crueldade
– a não ser que [esse saber] se chame a psicanálise (...)” (DERRIDA, op. cit., p. 13).
Em relação a esse tema, desenvolve-se, entre vários pensadores, uma querela
sobre as reverberações do Romantismo na obra de Freud. Como vimos no capítulo sobre
a pulsão de morte, o interesse comum de Freud e dos românticos pelo tema da morte
não é suficiente para incluí-lo entre esses pensadores. Entretanto, uma menção como a
citada pouco acima Eros como a força da natureza responsável pelo engendramento
e multiplicação da vida aponta para uma certa filiação interessante. Em nossa
dissertação de mestrado, tentamos trabalhar o contexto cultural em que Freud começa a
elaborar sua teoria psicanalítica, em especial no que diz respeito à teoria das pulsões. Se
por um lado temos o modelo psicofisiológico do fim do século XIX, o associacionismo
materialista firmemente implantado sobre a neurofisiologia Helmholtz, Wundt,
Meynert -, a concepção fisicalista e o ideal da mensuração e da lei matemática
dominando a pesquisa de espírito experimentalista, por outro temos a atenuação trazida
pela Filosofia da Natureza. Desde sua juventude, por volta de 1873, Freud se rende ao
impacto que lhe causa a leitura de Fragment über die Natur, de Goethe, e atribui a essa
aproximação sua opção pela carreira médica. Goethe será, ao longo da obra freudiana, o
autor mais citado (PEREIRA, 1992, p. 53). Goethe fornece ao naturalismo, que
encontrou em Darwin seu teórico positivo e seu herói, sua poesia e sua metafísica. O
encontro de Freud com Goethe não foi uma conversão poética irracional, fundada num
vago panteísmo. Goethe pode ser considerado, juntamente com Lamarck, outra grande
influência em Freud, um precursor de Darwin e sua teoria da evolução.
Goethe encontra em Kant um apoio para sua filosofia da natureza e postula,
como este, que a atração e a repulsão pertencem à essência da matéria; Freud afiança
esse pensamento. Pensamos não haver necessidade de se opor Filosofia da Natureza a
materialismo positivo. Havia um certo amálgama, no movimento materialista do qual
Freud participava, da Filosofia da Natureza com o mais positivo materialismo, até
mesmo com o fisicalismo de seus primeiros mestres. Há realmente uma oposição entre o
romantismo especulativo dos filósofos da natureza no início do século e o positivismo
estrito da geração dos naturalistas do fim do século. O Romantismo serve para colorir o
Positivismo e não é qualquer Filosofia da Natureza que inspira os naturalistas. Não é
propriamente a filosofia especulativa de Schelling e sim a abordagem de Goethe a que
combina a exigência do positivo com a ambição sintética.
Schelling é o representante da Filosofia da Natureza e Freud o reconhece como
tal; refere-se a ele oito vezes em sua obra mas quase sempre de forma pejorativa. E,
curiosamente, é apenas no texto O estranho que Freud o cita, três vezes, de modo
positivo: escolhe um trecho do filósofo para ajudar na definição do sentimento de
estranheza. “Chama-se unheimlich tudo o que sendo destinado a permanecer em
segredo, escondido, (...), vem à luz(FREUD, 1919a/1986, p. 224). Esta definição de
Schelling é repetida por Freud em associação ao processo do recalcamento
(ANDRADE, 1990, p. 89).
Os trabalhos de Schelling influenciaram diretamente a obra de Goethe. Segundo
Schelling, o objetivo da Filosofia da Natureza seria o estabelecimento de um saber sobre
a natureza, científico e preciso, e recuperá-la cientificamente como saber; cabe à sica
superior completar as ciências da natureza. Apesar de suas discordâncias com Kant, seu
mestre, Schelling reafirma que a atração e a repulsão são as forças que determinam a
dinâmica evolutiva, polaridade universal. Segundo Carvalho, em seu artigo “O
Unheimlich em Freud e Schelling”, ao utilizar essa citação de Schelling em seu artigo,
Freud a desloca de seu sistema original de referência e a interpreta num sentido oposto a
este. Esse artigo reabre a polêmica sobre as relações entre Freud e os filósofos que ele
utiliza como referências em seu texto. Considera que a citação está fora de qualquer
contexto e interpretada de maneira bastante tendenciosa (CARVALHO, 1989, p. 17). Se
remetida à origem, à coerência do sistema de pensamento do filósofo, só poderia
produzir uma noção oposta às idéias desenvolvidas no ensaio.
Existe, segundo o autor, uma oposição principalmente no que diz respeito à
relação entre sujeito e natureza, relação essa que está tanto no centro da argumentação
psicanalítica quanto na base do pensamento romântico alemão. A crítica do autor aponta
para o fato de Freud utilizar uma referência romântica para justificar uma tese que se
revelaoposta ao sistema de onde provém a citação. Há, sem dúvida, uma afinidade
temática mas óticas e objetivos radicalmente diferentes. O que distingue as duas visões
é que o projeto romântico de Schelling apontava para uma total identificação entre
sujeito e natureza, entre real e imaginário, enquanto o objetivo psicanalítico era o de
falar de uma identidade ou autonomia do sujeito cindido do resto das coisas, um sujeito
que passa a existir na cisão entre realidade e imaginário, entre o eu e o outro. Se Freud
pretende mostrar como esse sujeito indiscriminado, sem possibilidade de distinguir
entre imaginário e real, se torna um sujeito desesperado, angustiado, Schelling proporá
que essa identificação, entre real e ideal, será a fonte da serenidade do homem dentro da
natureza (ibid, p. 19). Mas voltemos a Goethe, influência muito mais significativa no
pensamento freudiano.
Encontram-se, em Freud, 112 citações e referências a Goethe, 54 das quais
remetem ao Fausto, particularmente às palavras de Mefistófeles (ANDRADE, op. cit.,
p. 108). O personagem de Fausto é considerado como a representação prototípica do
artista romântico: aquele que, para atingir o sublime, faz um pacto com o infernal. A
esse ponto, podemos nos interrogar qual o papel do Princípio do Mal, elemento
importante da estética romântica, nos mecanismos da produção freudiana. Segundo
Andrade, a temática romântica emerge um pouco em todos os lugares na produção de
Freud. Isso o é suficiente para considerarmos Freud um romântico mas aponta para
uma certa herança do Romantismo que permaneceu em seu texto e sua vida; presença
óbvia em sua juventude, cede lugar à conversão ao materialismo radical dos tempos de
Brücke mas faz algumas aparições em sonhos, enquanto que em seu texto, Freud
conscientemente trata os elementos ligados à Filosofia da Natureza com desdém (ibid,
p. 118).
Acreditamos que o romantismo da Filosofia da Natureza do jovem Freud
converte-se apenas parcialmente em puro cientificismo positivo: algo permanece da
sedução pela concepção de Goethe. Quando se deixa seduzir pelo cientificismo de seus
mestres fisicalistas, não abandona inteiramente sua tendência à especulação. Haja vista
sua postulação, primeiro, do conceito de pulsão, que surge numa obra de teor naturalista
mas o completamente afastada do terreno da especulação: desde 1905, o conceito se
apresenta como uma ficção que se faz necessária para responder aos impasses
característicos de um certo modo de pensar a produção científica e a prática clínica do
fim do século XIX. E nada mais próximo de uma franca especulação que a produção de
seu conceito de pulsão de morte.
Não poderíamos deixar de mencionar uma outra concepção psicanalítica que diz
respeito à questão do Mal: é aquela que, tópica, trabalha com a oposição entre aquilo
que é ‘bom’ e aquilo que é ‘mau’. O mau, nos diz Freud, em determinado momento do
desenvolvimento do eu, se confunde com o que é estranho, alheio ao eu, com o que está
fora. Essa idéia aparece em textos mais tardios, como em A negação. Considera que o
eu se constitui através de um movimento de expulsão, de exclusão para fora de suas
fronteiras daquilo que, estranho, lhe causa tensão e desprazer. O mau é projetado, é
posto para fora. Essa foi a linha de pensamento tomada por Melanie Klein em sua
postulação de um bom objeto e de um mau objeto, de um seio bom e de um seio mau.
Partindo dessa concepção, a cura implicaria uma erradicação da destrutividade e da
agressividade.
3. Violência
The State is a relation of men dominating men, a relation supported by
means of legitimate (i.e. considered to be legitimate) violence.
Max Weber, Politik als Beruf.
Je me méfie des incommunicables, c’est la source de toute violence.
Jean-Paul Sartre, “Qu’est-ce que la littérature ?”, in Les
Temps Modernes, julho 1947.
Il n’y a pas de mort naturelle: rien de ce qui arrive à l’homme n’est
jamais naturel puisque sa présence met le monde en question. Tous les
hommes sont mortels: mais pour chaque homme sa mort est un
accident et, même s’il la connaît et y consent, une violence indue.
Simone de Beauvoir, Une mort très douce.
Violência é conexa com o latino vis, força, e se refere tanto à qualidade do que é
violento quanto à ação ou efeito de violentar, de empregar força física ou intimidação
moral contra alguém ou algo. Ato violento, crueldade, força, ação caracterizada por um
abuso da força. Agir sobre alguém ou fazer alguém agir contra sua vontade,
empregando-se, para esse fim, a força ou a intimidação, se necessário força brutal,
brutalidade. Fala-se também da violência de um sentimento, de uma paixão, referindo-
se, nesse caso, à intensidade, à vivacidade, à impetuosidade. O adjetivo violento fala
daquele que possui grande força, grande poder de ataque ou de destruição. Deriva do
latim violēntus, impetuoso, furioso, arrebatado, por sua vez vindo de violare, cometer
violência, fazer uma violência. A violência não é propriamente um sentimento, tal como
a crueldade; refere-se, antes, a uma qualidade, uma característica de um indivíduo ou de
um ato. Muitas vezes, a violência designa particularmente uma ação. A violência pode
ser entendida como força brutal para submeter alguém. Uma violência seria o ato pelo
qual se exerce esta força. Disposição à expressão brutal dos sentimentos, brutalidade,
cólera, furor, irascibilidade.
O termo violentar, cuja raiz é obviamente a mesma de violência, implica um ato
agressivo contra alguém, com conotação essencial e nitidamente sexual: nesse sentido, é
sinônimo de estuprar.
No Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, lemos que violência, equivalente
ao alemão Gewalt, Gewaltsamkeit, Gewalttat, é a característica de um fenômeno ou de
um ato que é violento, em diversos sentidos. O que mais se aproxima da idéia de
violência em Freud é o que define violento {gewaltsam} como o que se exerce com uma
força impetuosa contra aquilo que lhe causa obstáculo. Falando de sentimentos ou de
atos, temos sempre a idéia de que se trata de impulsos que escapam à vontade
(LALANDE, 1996).
A etimologia da palavra violência é examinada, em detalhes, por Bergeret, autor
de um livro dedicado ao tema. Segundo este autor, violência é a tradução do latim
violentia, por sua vez derivado do verbo violo, cujo sentido sexual, tantas vezes
apontado na teoria freudiana, é bastante acessório e secundário (BERGERET, 2000, p.
9). Menciona o autor o primeiro exemplo muitas vezes citado nos léxicos, que se
encontra em uma frase de Cícero: violare vitam paris, atentar contra a vida de seu pai. A
tese desse autor, que veremos a seguir, é que não se trata, aqui, de uma violência sexual,
mas sim dos fundamentos de uma verdadeira luta pela vida. Para basear sua asserção,
busca novamente a etimologia: o verbo latino violo vem de um radical grego antigo,
comum tanto ao substantivo ‘violência’ quanto ao substantivo ‘vida’. Ainda faz uma
distinção, baseando-se no uso da língua francesa: violência, no singular, conserva o
sentido de uma disposição mental bastante geral; no plural, corresponde a atitudes
comportamentais, propriamente agressivas, que o puderam ser integradas no nível
das mentalizações” (ibid, p. 8). Normalmente, focalizam-se mais as vivências do objeto
das violências, no plural, do que as disposições mentais próprias do agressor.
O tema da violência aparece desde cedo no texto de Freud, publicado ou não.
Assim é que lemos no Manuscrito B, sobre a etiologia das neuroses, que ele pôde
comprovar, num caso de grave hipocondria que tivera início na puberdade, “a existência
de uma violência sexual [um atentado] no oitavo ano de vida [do paciente]” (FREUD,
1950[1892-99]/1986, p. 222). Afirma ter explicado outro caso infantil como uma reação
histérica frente a uma violência sexual [atentado] masturbatória. Como vemos,
novamente a questão da tradução nos impele a recorrer aos termos empregados em
castelhano que significam, igualmente, violência. Apesar disso, fica clara a conotação
sexual dos atos assim mencionados.
Do mesmo ano, temos o texto publicado dos estudos sobre a histeria. No relato
da história clínica de uma das pacientes, conhecida como Miss Lucy R., Freud lhe
pergunta se fora somente a forma violenta de seu patrão aquilo que a incomodara ou se
ela pensara: “se ele pode ser tão violento por uma coisa tão insignificante com um velho
amigo e convidado, quanto mais seria comigo se eu fosse mulher dele” (FREUD, 1893-
95/1986, p. 136). Lucy retruca que não era nada disso. Freud então volta a perguntar:
“Então foi pela violência?” Lucy aquiesce e Freud, ainda usando a técnica da pressão
com a o, surgir diante dele a cena mais antiga, que foi o trauma verdadeiramente
eficaz e que dera eficácia traumática a uma cena posterior, na idade adulta da paciente.
Estamos em plena época da teoria do trauma e da sedução. Miss Lucy era uma
governanta inglesa contratada por uma família de Viena e consultou Freud em 1892, em
função de uma alucinação olfativa que se acompanhava de crises de depressão. Em seu
tratamento, Freud não utilizou a hipnose, assim como no caso de Elisabeth Von R.,
atendida no mesmo ano. Com ambas, Freud usou uma técnica de concentração e
chamou o método de análise psíquica. Com Lucy, Freud empregou, pela primeira vez, a
palavra recalque, para mostrar que seus sintomas se originavam no amor inconsciente
que ela sentia por seu patrão.
Num texto de 1896, chamado A etiologia da histeria, Freud observa que, nos
pacientes histéricos, todas as experiências antigas e às quais o paciente reagiu com
freqüência e com tanta violência, retiveram seu poder efetivo. Algo como se esses
pacientes o fossem capazes de se desfazer de seus estímulos psíquicos antigos,
sobretudo aqueles acompanhados por respostas imensamente fortes (FREUD,
1896c/1986, p. 208).
Em A interpretação de sonhos, no capítulo VI, na parte dedicada ao estudo da
representação por símbolos, Freud interpreta um sonho de uma paciente jovem em que a
semelhança entre as palavras violet e violate’, em inglês, permitiu ao trabalho do
sonho usá-las para expressar, metaforicamente na linguagem das flores, Durch die
Blume “o pensamento da violência da defloração (outro termo que emprega o
simbolismo das flores) e, possivelmente, também, um traço masoquista da moça”
(FREUD, 1900/1986, p. 379). Na verdade, como observamos no início do capítulo, a
raiz de violação e violentar é a mesma de violência. A aliteração existente entre os dois
termos em inglês permitiu, por meio do recurso à simbolização, a exteriorização das
fantasias da jovem, de outra forma sob recalque. Nessa acepção particular, a de
violentar, a violência praticamente se torna um sinônimo de estupro, conforme
mencionamos acima.
Em A psicopatologia da vida cotidiana, escrita um ano depois, encontramos
outras referências ao nosso tema. No capítulo VIII, sobre o fato de inverter e confundir
as coisas {vergreifen}, Freud aponta para a possibilidade de sentido de alguns
movimentos desajeitados, aparentemente acidentais, de pequenas perturbações
funcionais das pessoas sadias em sua vida cotidiana. Existe toda uma série de
movimentos que podem ser considerados como uma manifestação de desejos
inconscientes e não apenas como resultado de gestos inábeis. Eles exibem algo de
violento, expansivo, como espastico-atáxico, mas mostram-se regidos por uma intenção
e alcançam sua meta com uma segurança de que em geral não podem vangloriar-se
todos os movimentos voluntários e inconscientes” (FREUD, 1901/1986, p. 165). Além
disso, acrescenta, partilham as duas características de serem violentos e certeiros
com algumas manifestações motoras da neurose histérica, ou seja, são da ordem da
formação de compromisso. Como tal, resultado daão do recalque.
No texto sobre as teorias sexuais, de 1905, encontramos uma breve referência à
violência. No trecho que se segue, Freud levanta a questão de as pessoas temerem que
“as tendências estabelecidas com mais violência na infância dominem permanentemente
o caráter do adulto” (FREUD, 1905a/1986, p. 220). Afirma que esses temores são
infundados porque essas tendências podem vir a desaparecer, cedendo lugar a seu
oposto, apesar da intensidade com que se apresentaram ao sujeito. Escreve essas
palavras com relação às moções pulsionais que emergem com especial intensidade,
como no caso do vínculo heterossexual daqueles que depois se tornam homossexuais
manifestos. Nesse contexto, mesmo dizendo respeito às pulsões, violência designa tão
somente uma questão de intensidade.
Em 1908, no artigo Sobre as teorias sexuais infantis, Freud investiga o modo
com que as crianças apreendem e interpretam, criando suas próprias teorias, algumas
ações dos adultos. Exemplifica com o fato de as crianças interpretarem o ato de amor
entre adultos como sendo um ato de violência: as crianças têm uma concepção sádica do
coito. Esse fato não lhes permite perceber, com alguma clareza, a diferença sexual, o
que lhes permitiria inferir sobre a origem dos bebês. Essa concepção acerca do ato
sexual “dá a impressão de um retorno ao obscuro impulso para um comportamento cruel
que se associou às excitações do pênis da criança no momento em que ela principiou a
refletir sobre a origem dos bebês” (FREUD, 1908/1986, p. 196).
No ano seguinte, Freud publica o caso clínico conhecido como “o pequeno
Hans”. Como sabemos, o pequeno Herbert, seu verdadeiro nome, era filho de Max Graf,
discípulo de Freud, e o tratamento se deu durante o primeiro semestre de 1908. Foi
contemporâneo da análise de Ernst Lanzer, o Homem dos Ratos”. Freud havia feito
menção ao pequeno Hans em dois artigos sobre a sexualidade infantil, publicados em
1907 e 1908. O tratamento de Hans foi levado a cabo pelo próprio pai, que anotava os
acontecimentos da vida do menino e seus diálogos com ele, e depois os levava para que
Freud os examinasse. Após o nascimento de sua irmã, Hans se viu presa de grande
agitação e eclodiu nele um estado ansioso. Com o advento da angústia propriamente,
instala-se uma fobia. A “análise” de Hans permitiu a Freud comprovar o acerto de suas
teses de 1905 sobre a sexualidade infantil.
Como vimos no comentário sobre o artigo Sobre as teorias sexuais infantis,
acima, aqui Freud observa as conseqüências de uma excitação prematura em Hans. Na
descrição do caso clínico, Freud observa que o pequeno “pensava que seu pai também
fazia aquela coisa proibida e enigmática com a sua mãe, que ele substituía por um ato de
violência, tal como quebrar uma vidraça ou forçar a entrada em um espaço fechado”
(FREUD, 1909b/1986, p. 38). Em conseqüência do drama edípico, Hans começou a
nutrir um desejo de morte contra o pai e disso resultou um ataque de angústia. Essa
angústia constituiu um grande obstáculo à análise e o pai do menino se viu obrigado a
levá-lo à presença de Freud; diz-nos Freud que nesse encontro foi removido esse
obstáculo. E Freud observa que “Hans não era, de modo algum, um malvado, nem
sequer uma criança em quem continuem desenvolvendo-se, desinibidas, as inclinações
cruéis e violentas da natureza humana. Ao contrário, sua índole é de uma ternura e
bondade fora do comum; seu pai relatou que a transformação da inclinação agressiva
em compaixão se deu muito cedo nele” (ibid, p. 92). Nesse relato, vemos associadas a
violência e a crueldade, além de uma referência à agressão, fechando-se, assim, o
campo de significações análogas. Parece-nos, também, que a violência eclode devido a
uma interdição e à situação edípica.
A violência, o ódio e a hostilidade perpassam todo o relato clínico do caso
conhecido como “o Homem dos Ratos”, publicado em 1909. Este foi o segundo grande
tratamento psicanalítico levado a cabo por Freud, depois do de Ida Bauer, que ficou
conhecido como ‘o Caso Dora’. Esta análise durou perto de nove meses, de outubro de
1907 a julho de 1908. Assim como acontecera com ‘Hans’ e a confirmação das idéias de
Freud sobre a sexualidade, ‘o Homem dos Ratos’ personifica o exemplo acabado de
neurose obsessiva, de acordo com as hipóteses de Freud, as quais corrobora. Com a
idade de 23 anos, Ernst, militar como o pai, começa a ser dominado por estranhas
obsessões sexuais e mórbidas. Tinha intenções suicidas e um gosto especial por funerais
e ritos de morte. Aos 27 anos, sofria de uma grave neurose obsessiva. Dois anos
depois, tendo já encontrado o cruel capitão, que se tornaria o cerne de seus medos
patológicos de castigos corporais, obcecado por causa de uma dívida e pelo suplício
com os ratos, procura tratamento com Freud. Depois de enormes dificuldades, Freud
consegue, através da “confissão” dos tormentos do paciente, relacionar o complexo
paterno com a obsessão dos ratos.
Freud constata que o ódio demonstrado pelo paciente em geral, e com o pai em
particular, se conecta com uma fonte determinada, com uma causa, de maneira que isso
o torna praticamente indestrutível.
“A fonte da qual a hostilidade contra o pai obtém sua indestrutibilidade
pertence evidentemente, por sua natureza, aos desejos sensuais, em
conseqüência do que percebeu o pai, de algum modo, como perturbador
(FREUD, 1909a/1986, p. 144).
Acrescenta que tal conflito entre sensualidade e amor infantil era totalmente
típico. A uma precoce explosão de sensualidade, sobreveio inicialmente uma
considerável contenção dela. A antiga hostilidade ressurge quando se verifica uma maré
alta da libido. De uma feita, quando o pai batia nele, o paciente foi tomado de tal fúria
que o pai, assustado parou e vaticinou que o menino se tornaria um grande homem ou
um grande criminoso. Este episódio teve um efeito duradouro no paciente e, segundo o
próprio, ocasionou nele uma alteração de caráter. Tornou-se um covarde diante da
magnitude de sua própria ira. Aliás, por toda a sua vida, teve terrível medo de
pancadas, e escondia-se, cheio de horror e indignação, quando um de seus irmãos ou
irmãs era espancado” (ibid, p. 161). A violência do pai vincula-se ao ódio do menino,
potencializando-o, à sua hostilidade por esse pai e ao desenvolvimento de sua própria
violência, substituída, eventualmente, por seus medos e covardia.
A relação com o pai era flagrantemente ambivalente, “dominada por uma
idêntica condição cindida de sentimentos”, conforme foi analisado a partir de seus
pensamentos obsessivos, assim como a relação com a amada, “composta de ternura e
hostilidade”, esta quase totalmente consciente. A diferença consistia em que primeiro
seu pai lhe dera motivos para tanta hostilidade; segundo, que inicialmente consciente,
seu sentimento negativo pelo pai “há muito tempo lhe havia sido subtraído e apenas
contra sua mais violenta resistência pôde ser levada de volta à sua consciência” (ibid, p.
185). No recalque do ódio infantil contra o pai vemos aquele processo que empurrou
para dentro dos marcos da neurose todos os acontecimentos posteriores. Eram as
características de sua vida pulsional as responsáveis pela dúvida obsessiva. Após o
relato da cena de espancamento, o paciente começa a duvidar de seus sentimentos de
ódio pelo pai; logo, em seus sonhos e associações, começa a atacar seu analista de quem
pedia um castigo. “A dolorosa via da transferência” demonstrava o ódio inconsciente
pelo pai. O relato do castigo pelos ratos foi o que havia trazido novamente à tona o
erotismo anal infantil do paciente e o fizera lembrar a antiga cena do espancamento pelo
pai.
Outra breve alusão à questão da violência é encontrada no escrito sobre
Leonardo da Vinci onde se que a ternura de sua mãe lhe fora fatal, determinando seu
destino e as privações trazidas pela vida. A violência das carícias evidentes em sua
fantasia sobre o abutre era muito natural” (FREUD, 1910c/1986, p. 102). Mais uma vez,
violência e sexualidade; a entrada da criança no terreno da sexualidade é considerada
por Freud como traumática porque violenta. Violenta porque são rompidas as barreiras
da infância pela sexualidade adulta, para a qual criança alguma possui as representações
adequadas e suficientes.
Da mesma forma, em O Moisés de Miguelangelo, de 1914, Freud descreve a
cena em que Moisés, tomado de fúria, abandona as Tábuas “precipitando-se para a
esquerda e para cima, barba adentro, como para voltar sua violência contra o próprio
corpo” (FREUD, 1914d/1986, p. 236). Aqui, como vemos, violência é utilizada com seu
sentido mais comum, de fúria exagerada, sem nenhuma conotação sexual.
Verificamos, entretanto, que os empregos das palavras guardam basicamente o
mesmo sentido. No texto metapsicológico sobre as pulsões, de 1915, a violência
surge ligada ao par sadismo-masoquismo. Diz Freud que, no caso do par de opostos
sadismo-masoquismo, o processo pode ser apresentado como, num primeiro momento,
o sadismo consistindo em uma ação violenta, em uma afirmação de poder dirigida a
outra pessoa como objeto. A seguir, como sabemos, renuncia-se a este objeto e ele é
substituído pela própria pessoa. A meta pulsional ativa transforma-se em passiva. A
seguir, busca-se de novo como objeto uma outra pessoa que, em conseqüência da
mudança de meta, tem que tomar para si o papel de agente da ação violenta (FREUD,
1915a/1986, p. 123).
Antes disso, Freud empreendeu um de seus grandes tratamentos psicanalíticos, o
de Serguei Pankejeff, ou ‘o Homem dos Lobos’, um russo muito rico com sentimentos
compulsivos” (FREUD/FERENCZI, 1994, p. 195), natural de Odessa. Essa foi uma
longa análise, tendo começado em janeiro de 1910 e terminado em junho de 1914.
Freud a publicou somente em 1918. Durante esse tratamento, Freud se empenha na
escrita do texto sobre Leonardo. Sabe-se que o paciente retomou a análise com o
próprio Freud no pós-guerra entre novembro de 1919 e fevereiro de 1920 - e, mais
tarde, tratou-se com Ruth Mack Brunswick, entre outros analistas que dele cuidaram a
a redação de suas memórias. O ponto central do relato clínico é o sonho do paciente,
que acabou por lhe dar essa denominação. Freud diagnosticou seu paciente como um
caso de histeria de angústia com fobia a animais, que depois se transforma em uma
neurose obsessiva ou numa neurose infantil, donde o título dado por ele ao relato,
História de uma neurose infantil. Numa carta escrita a Sandor Ferenczi, em 13 de
fevereiro de 1910, Freud observa a violência das manifestações transferenciais de seu
paciente. Depois da primeira sessão, o cliente declara a Freud, “a guisa de transferência:
- Judeu ladrão, gostaria de te pegar por trás e cagar na tua cabeça” (ibid, p. 200). Freud
acrescenta que aos seis anos de idade, o primeiro sintoma do paciente justamente se
manifestou em xingamentos blasfemos contra Deus.
O paciente, que sofrera, segundo suas próprias palavras, uma tentativa de
sedução por parte de sua irmã quando tinha três anos, relata a Freud um sonho que
tivera aos quatro anos. A partir desse sonho e de outras lembranças sobre sua
sexualidade na infância, Freud infere que o paciente observara uma cena de coito entre
os pais. “Para começar, presumiu que o processo observado era um ato violento mas a
expressão de prazer que viu no rosto da mãe não se harmonizava com isso; foi obrigado
a reconhecer que se tratava de uma satisfação” (FREUD, 1918[1914]/1986, p. 43).
Descrito como uma pessoa de grandes intensidades afetivas, seus sentimentos foram
descritos por Freud, mais de uma vez, como de “irresistível violência” (ibid, p. 85),
como quando se apaixona por uma moça.
Em Novos caminhos da terapia psicanalítica, de 1918, Freud, recusando a
proposta de J.J.Putnam de “colocar a psicanálise a serviço de uma determinada visão de
mundo filosófica e impô-la ao paciente com o propósito de enobrecê-lo”, qualifica essa
postura sugerida pelo psicanalista americano como um ato de violência, por mais que
se invoquem os mais nobres propósitos” (FREUD, 1919[1918]/1986, p. 160). A
América, que recebera Freud de braços abertos, em 1909, agora se mostra hostil à
psicanálise.
Em 1920, com a publicação de Além do princípio de prazer, a mudança de
inflexão sofrida pela teoria traz, cada vez mais, os aspectos propriamente negativos dos
afetos humanos. De posse do novo conceito, Freud passa a examinar de forma diferente
aqueles sentimentos óbvios mas que ele sempre tivera muita dificuldade de explicar: o
ódio, a agressão, a hostilidade e, por que não, a violência, a crueldade, a maldade.
Entretanto, nesse mesmo texto, vemos Freud empregar o termo violência com o
sentido mais amplo, da linguagem comum. Discorrendo sobre a gênese das neuroses de
guerra e das neuroses traumáticas em tempos de paz, observa que se tornou esclarecedor
e confuso ao mesmo tempo o fato de que “o mesmo quadro patológico sobrevinha em
ocasiões sem a cooperação de uma violência mecânica crua” (FREUD, 1920/1986, p.
12). Um pouco adiante, propõe que consideremos a neurose traumática comum como o
resultado de uma extensa ruptura no aparelho de proteção antiestímulos. “Isso pareceria
restabelecer a antiga e ingênua doutrina do choque, aparentemente em oposição à
posterior e de maior refinamento psicológico, que não atribui valor etiológico à ação da
violência mecânica, mas ao terror e ao perigo de morte” (ibid, p. 31).
No artigo Psicologia das massas e análise do eu, do ano seguinte, Freud cita Le
Bon e suas considerações sobre os fenômenos característicos das massas. Segundo este
autor, a massa ”respeita a força, e somente em escassa medida se deixa influenciar pelas
boas maneiras, que considera sinal de fraqueza. O que pede de seus heróis é força,
mesmo violência” (FREUD, 1921/1986, p. 75). Assevera Le Bon que, quando faz parte
de uma massa organizada, o homem, que, isolado, seria culto, na massa se torna um
bárbaro; “possui a espontaneidade, a violência, a selvageria e também o entusiasmo e o
heroísmo dos seres primitivos(ibid, p. 73). A violência aqui surge como parte da alma
primitiva, selvagem, rudimentar; do mesmo modo, a criança, sempre comparada ao
homem primitivo pela precariedade de suas configurações psíquicas, é capaz de atos de
extrema violência.
Mais adiante, na parte IV, Sugestão e libido, Freud, relatando sua antiga prática
clínica que implicava a sugestão, observa que corrigir um paciente porque este não se
deixava guiar pela sugestão, era “uma injustiça evidente e um ato de violência” (ibid, p.
85). Como constatamos, Freud hesita em empregar o termo em apenas uma acepção,
aquela que o vincula com a sexualidade; as entradas da palavra com seu sentido vulgar
são tão numerosas quanto as que ligam a violência a algo da ordem do sexual.
Na parte X do mesmo artigo, A massa e a horda primordial, Freud remete seu
leitor a um texto seu de 1912 Totem e tabu – em que concordava com uma postulação
de Darwin segundo a qual a forma primitiva da sociedade humana era uma horda
governada despoticamente por um macho forte.
“Tentei mostrar que os destinos dessa horda deixaram traços indestrutíveis na
linhagem de seus herdeiros; em particular, que o desenvolvimento do
totemismo, que incluem em si os começos da religião, da ética e da
estratificação social, se enlaça com o violento assassinato do chefe e à
transformação da horda paterna em uma comunidade de irmãos” (ibid, p. 116).
Segundo Enriquez, o homicídio do pai institui a possibilidade constante do
assassinato. A cultura não apenas se inicia com um crime como se mantém através dele,
ou melhor, de sua proibição. Houve um crime inaugural e, portanto, a violência é
sempre uma possibilidade (ENRIQUEZ, 1990, p. 34). Quando Freud evoca o
assassinato do chefe da horda, ele supõe um tempo em que o chefe mantinha seus filhos
em estado de permanente infantilização, proibindo-lhes o acesso às mulheres. O crime é
fundador da cultura; não basta renunciar a ele uma vez, é preciso aprofundar-se na
renúncia, e, por essa razão, são importantes os rituais que mantêm as premissas desta
renúncia (ibid, p. 138). O autor se pergunta, afinal, se não é exatamente com isso que
lida a neurose obsessiva. Sendo a violência inerente, já que fundadora, o como
contê-la, apenas desviá-la para outros objetos. Nesse contexto, a violência é precipitada
por um acontecimento correlato à sexualidade: a proibição de acesso às fêmeas da
horda.
Quando uma falha no processo civilizatório e suas instituições não
conseguem desempenhar plenamente seu papel e seus objetivos, o que se é uma
regressão à desordem de uma horda primitiva, onde impera a lei do mais forte e o
canibalismo o- ritualístico. Quando uma instituição o realiza sua função primária,
ela atenta contra a ordem social, contribui para a desrazão coletiva e o incremento da
violência desenfreada” (KODATO, 1999). De acordo com uma leitura psicanalítica, na
passagem da horda ao grupo existe um ato que inaugura o processo civilizatório: o
assassinato do pai, a violência fundadora. Se o processo civilizatório é um pacto de
convivência amistosa, para sua fundação o homem recorreu à violência, ao parricídio. O
parricídio é, no mito da passagem da natureza para a cultura, a violência fundadora; a
cultura se inicia com o crime, seu acontecimento inaugural.
Derrida invoca o fato de Freud ter abordado a relação entre o direito e o poder
{Recht und Macht} de modo a fazer derivar um do outro, a partir de uma genealogia
que remonta à pequena horda humana, de que falamos acima, ao assassinato do inimigo
que satisfaz uma inclinação pulsional legítima do homem, conforme examinaremos a
seguir. A passagem da violência ao direito decorre da transformação do individual
naquilo que é comum a todos. O direito se torna o poder ou a violência da comunidade
que, ao monopolizar a força, se protege contra a violência individual (DERRIDA, 2000,
p. 71).
Nesse momento, e levando-se em conta esses comentários, podemos entender o
uso do termo violência com um significado mais denso e próprio à teoria, elevando-se o
termo à categoria de uma noção. A idéia de uma violência fundadora coloca o termo em
uma outra perspectiva.
Num texto de 1926, Inibição, sintoma e angústia, Freud aborda o tema da
violência e da agressividade do ponto de vista da neurose obsessiva. Postula que a
puberdade introduz um corte brusco no desenvolvimento da neurose. A organização
genital, interrompida na infância, se reinstala. Entretanto, sabemos que esse
desenvolvimento sexual está prescrito, assim como o estivera. Desse modo,
reaparecem moções agressivas iniciais, assim como novas moções libidinais, estas
obrigadas a seguir o caminho dado pela regressão; emergem sob a forma de moções
agressivas e destrutivas. As aspirações eróticas se disfarçam e “a luta contra a
sexualidade continua sob bandeiras éticas”.
“O eu se revolta, assombrado, contra incitações cruéis e violentas que lhe são
enviadas para a consciência a partir do isso, e nem suspeita que na verdade está
lutando contra desejos eróticos, alguns dos quais teriam escapado, em outro
caso, de seu veto. O supereu severo se afirma com energia tanto maior na
sufocação da sexualidade quanto ela tenha adotado formas tão repelentes”
(FREUD, 1926[1925]/1986, p. 111).
Em O futuro de uma ilusão, de 1927, Freud retoma a questão da oposição entre
cultura e satisfação de moções pulsionais brutas. Diz Freud que se a cultura impõe o
mandamento de não se matar o próximo porque o odiamos ou porque ele seja um
obstáculo aos nossos desejos, é porque sem isso a convivência humana seria inviável.
“Com efeito, o assassino atrairia para si a vingança dos parentes do morto e a surda
inveja dos demais, que igualmente registrariam uma inclinação interna a cometer
semelhante violência” (FREUD, 1927a/1986, p. 40). Como dissemos antes, a violência
não desaparece com o estabelecimento da cultura; pelo contrário, não subsiste como
tem de ser contida a todo custo para que o grupo social se mantenha.
À violência humana, Freud contrapõe a violência da natureza, em O mal-estar
na cultura: “reconhecemos como ‘culturais’ todas as atividades e valores que são úteis
para o ser humano por lhes tornarem a terra proveitosa, por protegerem-nos contra a
violência das forças da natureza (...)” (FREUD, 1930/1986, p. 89). Aqui o vocábulo
retoma o uso comum da língua, sem um sentido propriamente psicanalítico.
Na Conferência 33 das Novas conferências de introdução à psicanálise, escritas
em 1932, Freud escreve, a respeito da feminilidade, que ambos os sexos atravessam de
maneira semelhante as primeiras fases do desenvolvimento libidinal. Existem, é claro,
diferenças na disposição pulsional, que caracterizam a natureza da mulher. Entretanto,
não é verificado um atraso ou suspensão da agressão na fase sádico-anal da menina
pequena. “A análise do jogo infantil mostrou às nossas analistas mulheres que os
impulsos agressivos das meninas não deixam nada a desejar em matéria de diversidade
e violência” (FREUD, 1933[1932]b/1986, p. 109).
Também em 1932, houve, como mencionamos várias vezes, uma troca de
cartas entre Einstein e Freud. Disso resultou um artigo denominado Por que a guerra?,
onde a violência é abordada muitas vezes. Em sua resposta, Freud pergunta a seu
interlocutor se ele pode substituir a palavra ‘poder’ por ‘violência’ {Gewalt}, mais dura
e estridente. E acrescenta: “direito e violência são hoje opostos para nós. É fácil mostrar
que um se desenvolveu da outra (...). Os conflitos de interesses entre os homens se
resolvem, inicialmente, mediante a violência” (FREUD, 1933a[1932]/1986, p. 188). No
começo dos tempos e, novamente, uma menção a Totem e tabu e em uma pequena
horda de seres humanos, as contendas se resolviam mediante força física. Depois, a
força muscular foi substituída pela superioridade mental e pelas armas. O objetivo da
disputa continua sendo o de subjugar o opositor, constrangê-lo a desistir de seus
propósitos ou de seu antagonismo.
“Isso será obtido, da maneira mais radical, quando a violência tiver eliminado
de forma duradoura o adversário, ou seja, quando o tiver matado. (...) Além
disso, a morte do inimigo satisfaz uma inclinação pulsional que
mencionaremos mais adiante. (...) Então, a violência se contentará em submetê-
lo em vez de matá-lo. (...) Eis aí, pois, o estado originário, o império do maior
poder, da violência bruta ou apoiada no intelecto. Sabemos que este regime se
modificou no curso do desenvolvimento, certo caminho levou da violência ao
direito. Porém, qual o caminho?”
(ibidem).
E ele mesmo responde: o caminho é apenas um. E passa pelo fato de que a maior
força de um pode ser largamente compensada pela união de vários fracos. A violência
é quebrantada pela união, e agora o poder destes unidos constitui o direito em oposição
à violência do único” (ibid, p. 189). A união faz a força, ou melhor, o direito. O direito
é, então, segundo essa visão, o poder da comunidade, em oposição à violência do
indivíduo, mais forte. Segue sendo uma violência, sempre pronta a atingir um membro
que não obedeça a suas regras. Usa os mesmos recursos, visa os mesmos objetivos;
apenas difere no fato de que não é mais a violência de um indivíduo se impondo aos
demais, mas o poder da comunidade.
“Entretanto, para que se consuma esse passo da violência ao novo direito, é
preciso que se realize uma condição psicológica. A união dos muitos tem que
ser permanente, duradoura. Nada se teria conseguido se se formasse apenas a
fim de combater um super poderoso e se dispersasse após seu desdobramento.
O próximo a se acreditar mais potente aspiraria novamente a um império
violento e o jogo se repetiria sem fim” (ibidem).
Nesse momento do texto, invoca Freud idéias presentes tanto em Psicologia das
massas quanto em O Mal-estar na cultura: para que a comunidade se conserve e essa
é uma condição sine qua non para a substituição da violência pelo direito -, de forma
permanente, é necessário que ela se organize, promulgue leis e normas, institua
organismos capazes de cuidar para que as leis sejam observadas, as instituições das
quais falamos pouco. Essas instituições terão a seu cargo a execução dos atos de
violência adequados ao direito.
“Opino que com isso esteja dado todo o essencial: o suplantar da violência
mediante o recurso de transferir o poder a uma unidade maior que se mantém
coesa por ligações de sentimento entre seus membros” (ibidem).
Para que a cultura seja preservada, é preciso que os homens estabeleçam entre si
laços libidinais de um tipo especial – a identificação – capaz de se contrapor aos
impulsos agressivos e destrutivos que surgem entre os homens, tanto mais violentos
quanto mais próximos. É a idéia do ‘narcisismo das pequenas diferenças’ de que fala
Freud. O estado originário da comunidade humana é o da violência bruta, no máximo
apoiada em diferenças intelectuais. O caminho do desenvolvimento da humanidade
levou da violência ao direito.
Na passagem do uso da força ao primado da lei, a violência não desaparece,
apenas muda sua face e transforma-se em violência legal. Essa lei “ainda é violência”,
pronta a voltar-se contra qualquer sujeito que se oponha a ela; funciona pelos mesmos
métodos e persegue os mesmos objetivos.
Derrida postula a existência, inegável, de um nculo indissociável da crueldade
com a soberania, com a violência do Estado que, em vez de combater a violência,
simplesmente a monopoliza. Segundo o autor, o monopólio da violência se unifica com
o da soberania (DERRIDA, op. cit., p. 66).
Dentro da mesma linha de pensamento, Major, ao abordar o que ele considera os
dois motivos de desilusão pela guerra invocada por Freud no texto de 1914, escreve que
se em tempo de paz o Estado não proíbe a violência para aboli-la mas sim para
monopolizá-la, em tempo de guerra o Estado se esquiva desavergonhadamente dos
tratados e convenções que o ligam a outros Estados, pedindo a seus cidadãos que o
aprovem em nome do patriotismo (MAJOR, 1986, p. 90). Remetendo-se ao texto
freudiano, Major descreve como conseqüência do que acabou de apontar o fato de, onde
a comunidade não opõe nenhuma objeção à conduta do Estado, os indivíduos se
dedicarem a atos de crueldade e de perfídia, de traição e de barbárie tão incompatíveis
com seu grau de civilização que os teríamos considerado impossíveis de se dar.
Em Moisés e a religião monoteísta, publicado em 1939, Freud volta a lidar com
a idéia do chefe da horda e seu imenso poder. Diz ele que o “macho forte era amo e pai
de toda a horda, ilimitado em seu poder, que exercia com violência” (FREUD,
1939[1934-38]/1986, p. 78). Todas as meas eram suas e os outros machos da horda
não tinham direito a elas.
Em outro texto breve, de 1938, acerca dos judeus, menção à violência, que
seria menos comuns entre os judeus do que entre os o-judeus. Escreve Freud: “[os
judeus] sob alguns aspectos, na verdade, são superiores a nós. Não necessitam de tanto
álcool para tornar tolerável a vida; são muito raros entre eles os crimes brutais, os
assassinatos, os roubos a mão armada e as violências sexuais” (FREUD, 1938b/1986,
p. 294).
Ao examinarmos o tratamento dado por Freud à questão da violência, chegamos
à conclusão que são duas as acepções do termo em sua obra; designa tanto um ato em
que se emprega a força contra a vontade de um outro, com um sentido idêntico ao do
vernáculo, quanto esse mesmo ato incluído na esfera do sexual, da violentação, da
conotação de abuso sexual sofrido. Em ambos os sentidos, violência implica uma
intensidade notável, talvez excessiva, e algo que é imposto pelo agente ao outro,
submetido a força.
Gostaríamos de mencionar uma entrevista concedida por Jurandir Freire Costa à
Percurso Revista de Psicanálise, onde ele contrasta dois de seus trabalhos, Violência e
psicanálise e Narcisismo em tempos sombrios, de 1988. Se no primeiro o autor
estabelece estreita relação entre violência e narcisismo, afirmando que a violência
advém da reclusão narcísica que, por outro lado, é efeito de uma violência exercida pelo
exterior, no segundo artigo Costa pretende tomar a violência em sentido mais amplo, o
de alterar aquilo que seria o movimento natural das coisas, o de impor uma ruptura
brusca no contínuo do vivido, do existente. No primeiro enfoque, parece-nos que o autor
busca a essência da violência, procurando traçar um perfil inconfundível dela em
relação a outras práticas de poder. Declarando inspirar-se numa visão de Hanna Arendt,
que definia o poder como algo escorado no consenso, na persuasão, no diálogo, Costa
considera a violência, caracterizada pelo uso de artefatos, como a imposição da vontade
de uma maioria, de alguns sobre outros, sem respeito, justamente, à persuasão e às
regras do diálogo (COSTA, 1988, p. 48-55). Nesse artigo, o autor usa a noção de
violência para dizer que, do ponto de vista social, uma cultura da violência que tem
como correlato, do ponto de vista do sujeito, o que se poderia chamar de cultura
narcísica.
Ainda dentro da chave do narcisismo, encontramos o texto de Bergeret sobre o
que ele chama de ‘violência fundamental’ e sua tentativa de elaboração
metapsicológica. Propõe um novo modelo teórico em que a sexualidade e a violência
representariam os dois dinamismos, os dois modos de funcionamento econômico, as
duas linhagens tópicas. Evidencia o papel inicial da violência fundamental no cerne das
psicogêneses, afirmando não se poder nem dever confundir violência e agressividade.
Fazer isso seria desconhecer a especificidade de uma ‘violência natural inata’,
necessária à sobrevivência do sujeito e da espécie: a esse fato Bergeret o nome de
‘violência fundamental’.
O autor propõe ainda que se considere como absolutamente essencial o caráter
diacrônico da articulação entre violência e sexualidade. Diz ele que uma violência
radical no recém-nascido, que não é nem amor nem ódio, na verdade nem propriamente
é um sentimento, regulado pela lei do “ou eu ou o outro”. O lugar que a violência
fundamental ocupa na configuração da personalidade apareceria com uma dupla
entrada: tanto como componente primário dos instintos de conservação [termo usado
textualmente] quanto como suporte ao apoio {Anlehnung} da pulsão libidinal, apoio
esse que desembocaria na criatividade.
Apesar de conter algumas idéias bastante interessantes, a proposta teórica desse
autor apresenta alguns problemas. Em primeiro lugar, ele propõe que se proceda a uma
‘interpretação’ de alguns textos freudianos, com o objetivo de alcançar a linguagem pré-
consciente do autor (BERGERET, 2000, p. 6). Para isso, deve-se tomar o fio
associativo, método propriamente psicanalítico, para se descobrir “a mensagem latente”
de um trecho de texto. Na verdade, o que o autor pretende fazer é interpretar Freud
através de trechos de seu discurso. Para tal propósito, em vez de fazer trabalhar o
próprio texto, em suas fraturas e discrepâncias internas, teóricas, que apontem para
enfoques metapsicologicamente inconsistentes, pretende “analisar” o homem Freud, seu
pré-consciente, aquele que ditaria as incongruências textuais. Certo, o homem Freud
existiu e o que escreveu o escapou de suas motivações pré-conscientes e
inconscientes; entretanto, não está presente para poder “associar” e parece-nos que não
cabe nunca ao psicanalista associar por seu analisando. O máximo que pode fazer é
imaginar e fazer alusões, inferências; e não devemos esquecer que, mesmo assim, o que
se apresenta é o imaginário do analista e não o do analisando, no caso, o autor do texto.
O autor apresenta essa proposta através da leitura de um pequeno trecho do
Esboço de psicanálise, de 1938, onde Freud menciona uma fase pré-edípica em que
existe um sentimento de ternura da criança pela mãe. Bergeret interpreta essa afirmação
freudiana e infere, na relação precoce entre mãe e bebê, uma inelutável violência
recíproca subjacente, cujo destino lógico é a integração no quadro da ternura, como
formação reativa contra os sentimentos da violência experimentados em relação à mãe
(ibid, p. 11). Diante dessa afirmação, nos perguntamos que força estaria por trás da
produção de uma formação reativa, nesse momento: não é a formação reativa uma
formação sintomática? Será que podemos conceber tal acontecimento em situação tão
precoce, em presença de um mandato, de uma proibição, de uma interdição dos
legítimos sentimentos e impulsos da criança? Será que podemos já contar com a força e
a presença do recalque? Tais indagações não encontram resposta no texto nem no
campo da metapsicologia freudiana.
O autor tem como meta de sua pesquisa precisar a natureza das encenações e
representações imaginárias que estão na origem das formações fantasmáticas as mais
precoces em um humano” (ibid, p. 8). Aí, afirma ele, nos deparamos com o domínio da
violência, precursor e não-antagonista do amor, apesar de essa violência estar destinada
a se pôr a serviço do amor. Apóia-se em vasta erudição para ilustrar sua postulação;
lembra que tal tipo de violência é citada na Ilíada, como atributo de personagens
míticos que tiveram que travar combates vitais, tais como Hércules e Etéocle, o próprio
filho de Édipo.
Quase sempre, nos textos psicanalíticos, a violência apareceria fortemente
conotada como agressão ou violação, ou ainda violentação, mas isso se daria,
segundo Bergeret, “quando as atitudes aparentes se sexualizam” (ibidem). Como se trata
de uma energia de base ainda indiferenciada, o nome não é bom pois não especifica a
exigência da força que ele quer evocar [grifos nossos]. Conclui que existem diferenças
radicais entre violência fundamental e agressividade. Emprega o termo ‘fundamental’
porque considera que essa violência se refere às fundações de qualquer estrutura da
personalidade, tanto no sentido arquitetônico quanto etimológico, fundamentum (ibid, p.
9). Acrescenta que a violência de que trata corresponde, etimologicamente, na língua
fundamental do Inconsciente coletivo de nossa cultura, a uma força vital presente desde
a origem da vida” (ibid, p. 10).
Na verdade, existem diferenças mais radicais ainda, esquecidas no enunciado de
sua hipótese: a primordial diferença entre as idéias de força e energia, como já
ressaltamos. Seria interessante se o autor especificasse de forma mais clara se a
violência é uma energia ou é uma força: refere-se a ela nas duas formas, o que não é
nem adequado nem rigoroso. Outra dúvida que surgiu com a leitura de seu texto foi a
que diz respeito à almejada diferenciação entre violência e agressividade. Quando o
autor nos demonstra a etimologia da palavra e aponta a diferença, na língua francesa,
entre a violência e as violências, no plural, parece esquecer-se de sua distinção e fala
daquele que perpetra um ato de violência como ‘agressor’. Parece-nos, portanto, que ele
mesmo não consegue manter a distinção pretendida.
Prossegue Bergeret em sua hipótese, trabalhando com a noção do complexo de
Édipo: é o genital edípico que liga, escreve ele, sem dúvida, todas as energias (ibid, p.
12). Mas o que acontece quando essa ligação não pode se efetuar verdadeiramente sob o
primado do Édipo, ou simplesmente antes que ela seja estruturalmente efetuada?
Considera o Édipo um fetiche usado, com fins defensivos, para ocultar um outro
domínio, mais arcaico e ainda mais duvidoso, de um certo ponto de vista, que é a
sexualidade. Pergunta-se novamente: o que se passa antes da triangulação ou quando
essa é entravada? (ibid, p. 13) Conclui que a noção de apoio serviria para dar conta da
integração das encenações imaginárias mais violentas e mais precoces, no seio de uma
economia genital mais complexa (ibid, p. 18).
Consideramos que Bergeret toma o Édipo como anedota e busca, na história e na
literatura antigas, respaldos para suas elaborações. A nosso ver, o Édipo nada mais é
que um operador, um facilitador de sentido, um exemplo que serve para ilustrar uma
situação que, segundo Freud, é universal e marca distintiva do ser humano. A verdade
histórica, factual, que possa ou não cercar o mito, com suas diferentes versões e
opiniões de helenistas, não é o que interessa à psicanálise. De nada nos serve, em termos
da teoria, considerar o Édipo como um episódio do qual somente Sófocles apresenta
duas versões. Bergeret continua sua postulação tomando como referência o Hamlet, de
Shakespeare, outra exemplar tragédia, capaz de apresentar as grandes paixões e os
grandes conflitos humanos sob uma forma verdadeiramente universal.
Corroborando nossa idéia que Freud pode ser incluído entre os pensadores
trágicos, apontamos mais uma vez a importância que ele dá aos mitos. Sabemos também
que uma tragédia é aquilo que pretende efetuar um exercício literário em torno a um
mito. O mito, à diferença das crenças, é um relato imaginário encarregado de
representar, sob uma forma alegórica, a generalidade de uma situação afetiva qualquer;
o mito integra dados simbólicos universais no seio do imaginário coletivo e permite,
assim, ao homem recuperar um vínculo menos angustiante com a realidade, se situar em
seu tempo de uma forma solidamente concatenada por uma continuidade passível de ser
expressa, tanto em relação ao passado como ao futuro. O mito transmite certa segurança
porque reafirma o homem no seu pertencimento à realidade (ibid, p. 71). Ele seria
equivalente a uma protofantasia, se situa no nível do pré-histórico ou mesmo do a-
histórico (ibid, p. 72).
Nesse contexto, o autor considera que a paixão mais fundamental representada
pelo personagem do Édipo é a violência, em seu aspecto universal. Segundo seu ponto
de vista, Freud teria sobrevalorizado o aspecto incestuoso do Édipo enquanto que os
autores antigos, que dele se ocuparam bem antes, valorizaram o parricídio e a luta entre
gerações. Considera que o fundo do mito é constituído pela inevitabilidade de uma
violência, sobre a qual se apóiam todas as outras atividades humanas mais elaboradas.
Concordamos que Freud enfatizou um aspecto particular do imaginário edípico, o
incesto. Mas foi com esse intuito que ele usou esse mito, para exemplificar uma
apreciação teórica universal, comum a todos os homens, aquilo que marca a passagem
da natureza para a cultura, o selo indiscutível do gênero humano, sua condição primeira.
O mito do Édipo foi usado por Freud como uma engrenagem, um dispositivo que
possibilita uma explicação consistente, e não como uma história a ser tomada ao da
letra. Não nos cabe alterar isso; quando muito, se pode propor, como parece fazer
Bergeret, outra entrada para o mesmo mito.
Com o mesmo viés interpretativo, Bergeret afirma, em texto de 1987, que as
dificuldades apresentadas pelo paciente conhecido como ‘o pequeno Hans’ eram muito
semelhantes às que Freud teria experimentado em sua infância. Observa que os dois
únicos textos que Freud não publicou em vida um sobre os personagens psicopáticos
no palco, cujo manuscrito, coincidentemente, entregou a Max Graf, pai de Herbert, o
‘pequeno Hans’, e o outro, um rascunho encontrado e publicado por Ilse Grubich-
Simitis sob o título de Neuroses de transferência: uma síntese têm em comum o tema
de uma violência irrepresentável, produzida por uma incitação sexual precocemente
intensa. A análise de Hans teria sido conduzida baseando-se Freud na denegação de um
trauma próprio (BERGERET, 1987). Deparamo-nos, aqui, mais uma vez, com essa
tendência, comum a outros autores, de ‘personalizar’ as razões e os rumos que toma a
teoria, a qual não adotamos.
Quanto aos dois artigos acima mencionados, não encontramos neles nenhuma
pista dessa ‘violência irrepresentável’ de que fala Bergeret. De fato, os dois artigos
foram publicados muito depois da morte de Freud. O primeiro, Personagens
psicopáticos no palco, foi escrito provavelmente em 1905 ou 1906, data essa presumida
por conta da referência que Freud faz a uma peça de Hermann Bahr, Die Andere,
estreada em 1905 e publicada, sob a forma de livro, em 1906. Graf relata que Freud
escreveu esse trabalho em 1904 e o deu de presente a ele; provavelmente, essa data está
errada e o foi confirmada, que o manuscrito o está datado. O texto foi publicado
somente em 1942 e o termo ‘psicopático’ do título, Psychopathisch, é usado em seu
sentido original, simplesmente como sinônimo de ‘doente mental’ e não para designar,
como hoje fazemos, um tipo particular de afecção psíquica.
Nele lemos referências bastante interessantes à questão do gozo obtido com
representações teatrais que estariam mais bem colocados em outro capítulo dessa tese.
Ao se referir ao drama como forma teatral, Freud afirma que ele vai ao fundo das
possibilidades afetivas, produzindo para o gozo do espectador os próprios presságios de
infelicidades e por isso mostra o herói derrotado em sua luta, com uma complacência
quase masoquista” (FREUD, 1942[1905- 1906]/1986, p. 278). O fato de o drama ter sua
origem nos ritos de sacrifício no culto dos deuses marca seu sentido, o de apaziguar a
revolta contra a ordem divina do mundo que instaurou o sofrimento. Os heróis são
aqueles que se revoltam contra os desígnios divinos e o sentimento da própria miséria
frente à potência divina está destinado a ser vivido com prazer, tanto pela via de uma
satisfação masoquista quanto pelo gozo direto de uma personalidade cuja grandeza é,
porém, destacada” (ibidem). Mais adiante, afirma que é o jogo da fantasia que nos
habituou mal a ponto de nos fazer extrair um gozo de nosso próprio sofrimento (ibid,
p. 279).
O segundo artigo, ao qual foi dado o tulo Neuroses de transferência: uma
síntese, provavelmente é um dos artigos sobre a metapsicologia que se perderam.
Sabemos, através de uma anotação, que Freud pretendia que esses ensaios constituíssem
“o esclarecimento e o aprofundamento das suposições teóricas que se poderiam colocar
como a base do sistema psicanalítico” (FREUD, 1917b[1915]/1986, p. 231). O pequeno
ensaio, numerado como XII, foi enviado a Ferenczi, em 28 de julho de 1915, e Freud
lhe escreve que ele escolha o que fazer, pode jogar fora ou guardar” (FREUD,
1915/1987, p. 9).
De fato, nele Freud menciona as excitações libidinais intensas que se dão muito
no início da infância como sendo a causa principal do desencadeamento de uma neurose
mas nenhuma referência foi encontrada à violência que menciona Bergeret. Freud
refere-se apenas ao fato de a histeria de angústia compreender os casos nos quais a
exigência do impulso sexual é considerada muito grande e dessa forma é repelido como
ameaça (ibid, p. 69). Mais adiante, acrescenta que “se a criança transformar sua libido
em angústia real, é porque para |ela| sua libido é demasiadamente grande, perigosa,
chegando assim à representação do perigo” (ibid, p. 75).
A única menção a alguma forma especial de violência surge num trecho em que,
tratando da questão do pai da horda primitiva, Freud escreve que o pai primitivo,
ciumento, nada permite aos filhos. Conforme o artigo Totem e tabu, de 1912, sabemos
que esse pai, numa segunda geração, expulsa os filhos de seu grupo quando chegam à
puberdade, em substituição à solução anterior, em que o pai acaba por sucumbir diante
dos filhos que se unem para matá-lo. Acrescenta que a psicanálise nos adverte sobre
uma outra solução, ainda mais cruel: “ele |o pai| os despoja de sua virilidade, dessa
forma podendo |os filhos| permanecer na horda como inofensivos trabalhadores
auxiliares” (ibid, p. 78). Postula que o efeito da castração naquele tempo primitivo se
expressaria em uma extinção de libido e uma parada no desenvolvimento individual. E
que a demência precoce repetiria esse estado de coisas, levando à desistência de
qualquer objeto de amor e uma volta ao auto-erotismo.
Nada mais encontramos, no texto, que aponte para uma violência de tal ordem
que não seja passível de representação, base de sustentação, então, da violência
fundamental de que fala Bergeret. Podemos concluir que o autor estabeleceu uma
analogia entre Hans e Freud, e entre os dois artigos publicados após sua morte, com o
fito de justificar sua postulação e como razão suficiente para sustentar sua hipótese
interpretativa.
VIII. A guisa de conclusão
O que faz da psicanálise uma força tão plena de vida não é uma vaga
combinação de ciência e sectarismo, mas sim o fato de que tenha
erigido em princípio vital o princípio supremo de todo esforço
científico: a honestidade.
Lou Andréas-Salomé, Diário.
À medida que o trabalho caminhava, percebíamos, com clareza, a dificuldade de
levar a bom termo o objetivo desta tese. A pretensão de estabelecer uma distinção
metapsicológica entre os derivados das pulsões de morte e, ainda mais, definir as
diferenças entre determinados estados de alma, estados afetivos correlatos à
predominância daquilo que chamamos de produtos do enlace entre as pulsões de morte
e Eros, se mostrava cada vez mais inalcançável. A maior dificuldade residia no fato de
trabalharmos, todo o tempo, com noções e conceitos demasiado aparentados,
semelhantes, confundíveis e confundidos como o foram pelo próprio fundador de nossa
disciplina. Não foi à toa nem por mera imprecisão que Freud não deixou para sua
posteridade esses conceitos claramente definidos e especificados. Talvez nossa
dificuldade apenas tenha dado continuidade à dele. As situações que procuramos
circunscrever e discriminar são muito próximas, às vezes passíveis de uma tênue
separação, se tanto. Maldade e violência, por exemplo, raramente se encontram
dissociadas, o mesmo que acontece com dominação e crueldade, destruição e
hostilidade, agressão e ódio. Ao constatarmos o entrelaçamento dos termos e temas, nos
deparamos com algo semelhante a uma atualização do próprio entrecruzamento, da
própria intricação das pulsões, conforme postulou Freud. Os conceitos e a
fenomenologia dos afetos se articulam de forma por vezes indiscernível; entretanto, toda
articulação supõe vínculo mas também dissociação, diferença. Tentaremos, assim,
esboçar os limites dessas articulações, jogando com as diferenças.
Além disso, ou, por causa disso, e tendo trabalhado fundamentalmente com o
texto freudiano, nos deparamos com uma verdadeira mistura dos escritos. Os textos que
interessam à nossa tese são basicamente, e sempre, os mesmos. Isto é: o mesmo texto
que se refere à destruição, por exemplo, servirá de referência aos outros termos
pesquisados. Isso torna a leitura desse trabalho mais entediante que o que acontece,
geralmente, com todas as teses. Foi inevitável retomarmos sempre os mesmos artigos e
ensaios, com pequenas variações nos enfoques. Da mesma forma, repetitiva, os autores
invocados e citados acabavam por se remeter aos mesmos trabalhos de Freud, se não a
fontes comuns, se não uns aos outros. Parece que a vastidão bibliográfica tende a se
repetir e se referir entre si mesma, ou melhor, a si mesma. Estranho efeito de
antropofagia. Ou estaríamos diante de mais um fenômeno atribuível à compulsão à
repetição, começo de tudo?
Outra questão nos surgiu, em um verdadeiro après-coup, não fosse esse um
trabalho sobre psicanálise e de psicanálise: haveria alguma coisa a ser dita sobre o título
da tese? Aparentemente, a palavra mais curiosa do título é ‘avatar’, vocábulo exótico,
chegado à ngua portuguesa através do francês avatar, proveniente do sânscrito
avatāra, que significa, literalmente, ‘descida do Céu à Terra’. É usada com o sentido de
transformação, transfiguração, mutação, enfim, processo metamórfico: com isso
quisemos apontar para a evolução da doutrina produzida por Freud, ao mesmo tempo
contínua e descontínua. Falaremos desse aspecto adiante.
Entretanto, muito nos assombrou encontrarmos apenas uma referência à
expressão ‘derivados das pulsões de morte’ no texto freudiano, além de outro trecho em
que Freud emprega a forma verbal ‘derivamos’, e nenhuma nos vários dicionários e
vocabulários de psicanálise consultados. Encontramos, apenas, no Dicionário de
Psicanálise organizado por Chemama uma referência à expressão ‘derivado do
Inconsciente’, Abkömmling des Unbewussten, rejeton de l’Inconscient, respectivamente
nos idiomas alemão e francês. Ali se define a expressão como o reaparecimento, sob a
forma de sintomas ou de uma formação do Inconsciente, daquilo que foi recalcado. Para
Freud, o que foi recalcado sempre tende a retornar, a irromper, sendo então submetido a
um novo recalcamento, a posteriori. O termo francês rejeton, nos informa o dicionário,
e que pode ser traduzido, em português, por broto, rebento, é uma metáfora extraída da
botânica, o que destaca o aspecto dinâmico do processo (CHEMAMA, 1995). O termo
‘derivado do Inconsciente’ está, portanto, intimamente relacionado com a noção de
‘retorno do recalcado’, Wiederkehr des Verdrängten. Os conteúdos inconscientes que,
segundo Freud, podemos considerar como indestrutíveis, sempre tendem a retornar por
caminhos mais ou menos desviados. Essa acepção nos aproxima do sentido da
expressão ‘derivados das pulsões de morte’, como tentaremos analisar a seguir.
A palavra alemã Abkömmling, equivalente a descendente, derivado, em
português, não apresenta maiores dificuldades de compreensão. Pertence ao mesmo
grupo semântico de Abkommen, acordo, pacto; do verbo abkommen, afastar-se, apartar-
se; de abkömmlich, disponível. Em alemão, diz-se abkommen vom Wege, perder o
caminho ou desviar-se dele, e abkommen vom Thema, desviar ou afastar-se do assunto
(IRMEN & KOLLERT, 1995). Como veremos, guarda o mesmo sentido, basicamente,
das palavras derivar, derivado.
Em francês, rejeton vem do verbo rejeter que, originando-se em jeter, jogar ou
produzir um rebento, entre outras significações, tem a de crescer de novo; esse sentido
pertence à botânica e, a partir do século XVI, passou a designar também criança.
Rejeton seria um novo ramo que cresce no tronco ou no caule de uma planta ou de uma
árvore. Figurativamente, designa descendente, rebento, a melhor tradução literal. Na
verdade, rejeter tem três acepções, que não se excluem: a de jogar em sentido contrário
daquele em que se recebeu ou pegou algo; a de jogar, levar ou colocar alhures, donde
também a idéia de abandonar e de recusar; e a de não admitir, donde a idéia de recusar,
dispensar, declinar, rechaçar, eliminar, repudiar, relegar, proscrever (REY-DEBOUE &
REY, 2003).
O termo ‘derivado’, por sua vez, vem do verbo derivar, que significa, grosso
modo, ser proveniente de, ter sua origem em, proceder. A etimologia de derivar nos leva
a riv(i), elemento de composição antepositivo, proveniente do latim rīvus, i, que designa
arroio, rio, ribeiro; fazem parte do mesmo grupo semântico os vocábulos latinos rivŭlus,
i, que designa riacho, regato, e rivālis, e, significando ‘de rio’. Este último termo é
usado sobretudo como substantivo masculino plural, rivāles, ĭ um, ‘os ribeirinhos’; por
uma metáfora tomada da linguagem rústica, rivāles passou a designar também os
‘rivais’ em amor. O verbo latino rivāre significa derivar, afastar, desviar, conduzir
uma corrente de água; derīvo, as se traduz por desviar uma corrente.
Desses vocábulos m derivatĭo, ōnis, ação de desviar as águas; derivatīvus, a,
um: que se deriva, derivado, esse um termo da gramática, todos com o elemento de
composição antepositivo deriv. A palavra adquire esse sentido além daquele mais
concreto, de alterar o leito, desviar o rumo de cursos de água. Podemos pensar também
no sentido de desviar uma corrente e de afastá-la da margem (NASCENTES, 1955). A
derivação, na gramática e na etimologia lingüística, adquire a importância de tentar
propor uma origem, um étimo para uma palavra: derivado é aquilo que deriva de outra
palavra. Desvia-se uma palavra de seu curso e se forma uma nova palavra dessa outra
(CUNHA, 1986). Não se perde o sentido daquilo que foi desviado, separado de seu
caminho normal, claramente referindo-se à etimologia originária, a de um curso de água
que teve seu curso alterado. De toda maneira, o derivado é o que é proveniente de uma
circunstância anterior, algo oriundo de, que procede de uma outra situação. Não
devemos esquecer o sentido de derivação na química: aponta para uma substância
formada a partir de transformações químicas de outra.
Todos esses sentidos do termo ‘derivado’ se coadunam com o significado que,
em psicanálise, ele adquiriu. Tanto podemos pensar num curso que foi desviado, de um
rumo que foi alterado, quanto no sentido de origem, de procedência de algum produto,
resultante da combinação de elementos outros. No caso dos derivados das pulsões de
morte, somos levados a pensar em um destino que foi alterado aquele de atingir o
esvaziamento total das excitações, a evacuação de toda a estimulação que nele incidiu, o
que levaria o sistema de volta à quietude do inorgânico -, um curso que foi desviado
pela interferência de uma outra força, a de Eros, produzindo, a partir de uma força
originária, uma combinação dela derivada e cuja meta foi alterada quando se lhe alterou
o curso. Entretanto, e guardando o significado etimológico do termo, ao se derivar não
se perde o sentido último daquilo que foi desviado. No nosso caso, o produto derivado
guarda a marca indelével de sua origem, a pulsão de morte. Como na química, a nova
‘substância’ formada a partir de transformações de outra constituiria um derivado.
Nossa grande surpresa foi, pois, verificar, nesse momento do trabalho, a escassez
do uso da expressão ‘derivados das pulsões de morteem Freud. O termo ‘derivado’
aparece em diversos contextos, sendo muitas vezes utilizado em seu sentido comum.
Lemos, por exemplo, em O mal-estar na cultura, de 1930, que “o sentimento de
felicidade derivado [no sentido de provocado por] da satisfação de uma pulsão
selvagem, não domesticada pelo eu é incomparavelmente mais intenso do que o
derivado [ou obtido] da saciedade de uma pulsão refreada” (FREUD, 1930/1986, p. 79).
Ou como no livro sobre os sonhos, de 1900, onde Freud escreve quenão é certo que os
elementos do sonho que são derivados de impressões reais que sobrevêem enquanto se
dorme se distingam, por sua nitidez, dos outros elementos, os que provêem de
lembranças” (FREUD, 1900/1986, p. 334). Nesses dois exemplos e poderíamos citar
vários -, a palavra é empregada para designar simplesmente a procedência, a origem de
tal sentimento ou de determinado efeito.
Ao longo de toda a obra freudiana, encontramos o termo ‘derivado’, com um
sentido nocional, em combinações de várias ordens: os mais comuns, mais numerosos,
são os ‘derivados do Inconsciente’ ou ‘derivados das moções inconscientes’. Assim é
que lemos, por exemplo, em O inconsciente, de 1915, o seguinte:
“Em síntese, deve-se dizer que o Inconsciente continua nos chamados
derivados [retoños, em espanhol], é acessível às vicissitudes da vida, influencia
continuamente o Pré-consciente e, por sua vez, está sujeito a influências da
parte deste. O estudo dos derivados do Inconsciente desapontará inteiramente
nossas expectativas em obter uma separação esquematicamente mpida entre
os dois sistemas psíquicos” (FREUD, 1915b/1986, p. 187).
Sempre no mesmo texto metapsicológico, mais adiante Freud escreve que “entre
os derivados das moções pulsionais inconscientes, do tipo que descrevemos, existem
alguns que reúnem em si características contrapostas”. Assim, qualitativamente
pertencem “ao sistema Pré-consciente mas, de fato, pertencem ao Inconsciente. Sua
origem continua sendo decisiva para seu destino” (p. 188). Prossegue: “As formações
substitutivas também o derivados altamente organizados do Inconsciente” (p. 190).
Afirma também que grande parte do Pré-consciente abordado origina-se no
Inconsciente, tendo a natureza dos seus derivados e estando sujeito à censura antes de
poder tornar-se consciente. Os derivados do Inconsciente se tornam conscientes na
qualidade de formações e sintomas substitutivos; mesmo tendo sofrido distorções se
referidos ao Inconsciente, conservam muitas características que ainda exigem atenção
da censura e posterior recalque. O Inconsciente é rechaçado na fronteira do Pré-
consciente, pela censura, mas seus derivados podem contorná-la. Quando, contudo sua
intensidade é incrementada e ultrapassa certos limites, são reconhecidos como derivados
do Inconsciente e outra vez recalcados na fronteira da censura, entre o Pré-consciente e
o Consciente.
Nesse sentido, apesar de ter algum tipo de semelhança, se o de outra forma
pelo menos etimológica, vemos que o significado do termo derivado não é o mesmo
daquele pretendido quando usado na expressão ‘derivados das pulsões de morte’.
Encontramos também, ao longo de toda a obra freudiana, inúmeras menções
aos ‘derivados das mões de afeto recalcadas se ele [o paciente] se entrega à
associação livre, produz ainda iias em que podemos descobrir alues às vivências
recalcadas, derivados das mões de afeto recalcadas (FREUD, 1937b/1986, p.
260) -, aos ‘derivados pquicos do representante recalcado a segunda etapa do
recalque, o recalque propriamente dito, recai sobre derivados pquicos da agência
representante recalcada (1915c/1986, p. 143) -, aos derivados do recalcado’, de
modo geral, - a segunda etapa do recalque, o recalque propriamente dito, recai
sobre os derivados psíquicos da ancia representante recalcada (...)”, tampouco é
certo que o recalque mantenha afastados do consciente todos os derivados do
recalcado primordial (...)”, quando praticamos a técnica psicanalítica, continuamos
convidando o paciente a produzir esses derivados do recalcado (...)” (p. 144) -
‘derivados das lembranças recalcadas além desses sintomas de compromisso,
que significam o retorno do recalcado (...), a neurose obsessiva constrói um conjunto
de outros sintomas cuja origem é muito diferente pois o eu procura rechar os
derivados da lembrança inicialmente recalcada” (1896a/1986, p. 151), o produto
psíquico que na histeria é afetado pelo recalque (...) nada mais é que impulsos que
derivam das cenas primordiais”, as três neuroses - histeria, neurose de angústia e
paranóia - mostram os mesmos elementos (...), a saber: fragmentos mmicos,
impulsos (derivados da lembrança) e poetizões protetoras (...) (1950[1892-
99]/1986, p. 288) -, ‘derivados dos desejos’ – “a tais desejos recalcados e seus
derivados não se lhes pode consentir outra expreso que uma gravemente
desfigurada (1908[1907]/1986, p. 129) -, e a derivados de Eros
freqüentemente temos a experncia de que as mões pulsionais que podemos
estudar se revelam como derivados de Eros (1923, p. 47). Os exemplos se
multiplicam e podeamos levar essas citações ao infinito, sem grande ganho para
nossa discuso.
duas meões à expreso derivados das pules de morte’ fora do texto
freudiano, em notas do editor inglês à Standard Edition. A primeira, na nota
introdutória ao texto As pulsões e seus destinos, de 1915, onde lemos o seguinte:
“em O mal-estar na cultura, Freud dispensa, pela primeira vez, especial
consideração às pulsões agressivas e destrutivas. Até então lhes havia
concedido escassa atenção, exceto naqueles casos (como no sadismo e no
masoquismo) em que apareciam fundidas com elementos libidinais; porém,
nesse capítulo, as aborda em sua forma pura e as explica como derivados da
pulsão de morte” (STRACHEY, 1966/1986, p. 112).
A segunda, na Introdução ao texto O mal-estar na cultura, de 1930, onde
escreve que
“foi somente após Freud ter estabelecido a hipótese de uma ‘pulsão de morte’
que uma pulsão agressiva realmente independente apareceu; isso ocorreu em
Além do princípio de prazer, em particular no capítulo VI, se bem que
devamos destacar que, inclusive nesse escrito e em outros posteriores - como,
por exemplo, no capítulo IV de O eu e o isso -, a pulsão agressiva ainda era
algo secundário, que derivava da primária pulsão de morte, autodestrutiva”
(STRACHEY, 1966/1986, p. 63).
Essa última nota evidencia o equívoco mais comum que encontramos nas
apreciações sobre a questão: aponta para a hipótese de a pulsão de agressão não ser um
derivado da pulsão de morte, isto é, ter não só autonomia como primariedade. A pulsão
de agressão não pode deixar de ser considerada secundária e derivada da pulsão de
morte, essa sim uma das duas pulsões fundamentais Grundetriebe -, juntamente com
Eros.
A única vez em que encontramos uma referência explícita de Freud à expressão
foi no texto O mal-estar na cultura; ali, escreve, como mencionamos na Introdução a
essa tese, que a pulsão de agressão, natural dos seres humanos” e que se opõe ao
programa da cultura, é o derivado e o principal delegado da pulsão de morte que
descobrimos junto a Eros, e que compartilha com este o governo do universo” (FREUD,
1930/1986, p. 118). A pulsão de agressão não deriva da pulsão de morte como é
considerada como seu principal delegado, aquele que a representa no domínio psíquico.
No trabalho Análise terminável e interminável, de 1937, Freud escreve que
“estes fenômenos [masoquismo imanente, a reação terapêutica negativa, consciência de
culpa dos neuróticos] apontam de maneira inequívoca para a presença na vida anímica
de um poder que, por suas metas, chamamos de pulsão de agressão ou destruição e
derivamos da pulsão de morte originária, própria da matéria animada” (FREUD,
1937a/1986, p. 244). Apesar da indiscriminação produzida por esse ou, esse trecho
aponta para uma espécie de definição da pulsão de morte, aqui adjetivada como
‘originária’, enfatizando o fato de ela ser “própria da matéria animada”, isto é,
sugerindo que, diante da vida instalada, não encontraríamos mais a pulsão de morte e
sim seus derivados. Esse gancho nos permite concluir que, conforme escrevemos no
capítulo dedicado à pulsão de morte, esse conceito é um constructo, uma inferência
tomada a partir de seus efeitos e que não pode ser encontrado, quando sozinho, no ser
vivo. Isso reforça a posição a favor de um conceito da pulsão de morte e o do fato
ontológico da mesma.
Concluímos a esse respeito que o uso da expressão ‘derivados da pulsão de
morte’ tornou-se comum no linguajar psicanalítico, apesar de não ser uma expressão
comumente usada por Freud em seus textos, até onde nos foi possível pesquisar. Aponta
para a idéia de que se algo primário, originário, esse algo é exatamente a pulsão de
morte. De sua combinação com Eros surgem variados produtos; aqueles em que a meta
é ditada pela pulsão de morte, ou seja, aqueles em que a meta é torcida pela força
disjuntiva das Todestriebe, a esses se o nome de derivados das pulsões de morte.
Trazem sua marca de origem inconfundível, de disjunção, de desligamento, de
desinvestimento e de regressão a modos mais primitivos de obter satisfação. Mas
também de possibilidade do novo: a ruptura que a pulsão de morte introduz possibilita a
novidade de outros e diferentes enlaces.
Usando a etimologia da palavra ‘derivação’, poderíamos dizer que a partir da
intervenção do amor, do Eros inoculado por esse outro capaz de amar, as pulsões de
morte o mais desaguariam como era previsto, como era anteriormente determinado.
Seu curso, monótono e fatal, além de desviado, é amenizado e adiado pela entrada em
cena de Eros. Seus derivados acabarão por atender às exigências de satisfação impostas
pela pulsão de morte mas de forma diferida e alterada, tendo de atender, ao mesmo
tempo, as metas eróticas. Sendo que, convém sempre lembrar, a satisfação das metas
eróticas, no caso dos derivados das pulsões de morte, é secundária; o que não seja
atendida mas a finalidade primeira, aquela que dita a modalidade utilizada, é a dada
pelas pulsões de morte. Ao mesmo tempo, conforme mencionamos acima, as pulsões de
morte também são responsáveis pelo desvio das próprias metas eróticas que, se deixadas
a sós, repetiriam, infinitamente, os mesmos e também monótonos destinos. O segredo
da vida e seus fenômenos se encontra na variedade de combinações entre as duas
pulsões primordiais.
Num trecho de O eu e o isso, acima citado, Freud, escrevendo que as moções
pulsionais se revelam como derivados de Eros, confirma a presença da libido em todos
os produtos psíquicos de forma inequívoca. Acrescenta que se não fosse pelas
considerações desenvolvidas em Além do princípio de prazer, e, por último, pelas
contribuições sádicas a Eros, teríamos dificuldades em manter a intuição básica
dualista” (FREUD, 1923/1986, p. 47). Fatos observados o levaram à sua nova
postulação, é certo, mas ele reafirma que todos os fenômenos psíquicos resultam da
combinação e da oposição das duas forças fundamentais. Jamais poderemos encontrar
um único fato psíquico sem que essas duas forças colaborem, se misturem e lutem por
atingir, cada uma, suas metas específicas, exceção feita ao suicídio que atinge seu
objetivo, momento em que se pode afirmar a ausência total de Eros.
Sobre isso Freud escreve, em O mal-estar na cultura, que, mantida essa única
exceção, nunca, nem na mais cega fúria destrutiva, estaremos diante de pulsões de
morte puras; o fato psíquico em que as duas pulsões primordiais, Eros e pulsão de
morte, não estejam combinadas, conjugadas, intricadas, misturadas, nas mais diversas
proporções e modulações, e ao mesmo tempo opostas, radicalmente opostas em suas
finalidades últimas. Enquanto Eros pugna por produzir unidades cada vez maiores, a
meta das pulsões de morte é o contrário disso: visa desmanchar as grandes unidades, as
complexas, e, ao torná-las mais simples e mais fáceis de se decompor, ficam mais livres
para atingir sua meta última, aliás ultimíssima, a volta ao inorgânico, à quietude do
inorgânico. Enquanto isso não acontece, assistimos a uma luta infinita, um percurso que
bascula para frente e para trás, ao sabor das forças e dos acontecimentos da história do
sujeito, que determinarão seus modos preferenciais de agenciar as excitações que o
acossam, seus pontos de fixação.
Toda vez que houver um predomínio das ‘intenções’ das pulsões de morte,
estaremos diante de um movimento de regressão e da utilização de padrões de
funcionamento mais arcaicos mas capazes de resolver a tensão e obter algum tipo de
satisfação. Toda vez que, ao contrário, Eros vencer, teremos um sentido progressivo e
um avanço para soluções mais “adiantadas”, menos rápidas e rudes, de alcançar a
descarga e a satisfação; em suma, estaremos diante daquilo que Freud chamou de
complexificação, Komplication, dos circuitos, no texto do Projeto, de 1895. Quanto
mais regredida a descarga, mais intensa, extensa e rápida a satisfação. De modo que
talvez possamos concluir que o verdadeiro, o máximo prazer está mais na dependência
de Thanatos do que de Eros.
Paralelamente ao fato de a expressão ‘derivados da pulsão de morte’ ser
raramente encontrada na obra seminal da psicanálise, pouca literatura existe a respeito
destes; enquanto é praticamente inesgotável a bibliografia acerca do conceito de pulsão
de morte, dando testemunho da importância, dificuldade e discordância acerca dele,
poucos títulos foram encontrados que se dediquem, por exemplo, à pulsão de destruição.
Como vimos no capítulo correspondente, o conceito de pulsão de dominação caiu no
esquecimento e com o lançamento do número 24 da Nouvelle Revue de
Psychanalyse, em 1981, voltou-se a refletir sobre ele. Também sobre a pulsão de
agressão pouco foi escrito. Melhor é a situação do sadismo e masoquismo, com
bibliografia bastante numerosa e expressiva, o mesmo acontecendo com a violência e a
crueldade. A maldade geralmente é enfocada sob o prisma do ‘mal radical’, remetendo a
questão à problemática acerca da própria pulsão de morte. Pensamos que a fraca
distinção e categorização desses produtos do enlace das duas pulsões fundamentais
contribuíram para esse relativo silêncio teórico.
No nosso objetivo de estabelecer distinções entre esses produtos, pensamos ser
útil tentarmos, inicialmente, estabelecer as diferenças internas existentes em cada
‘grupo’ deles, separados nos capítulos da tese; assim, por exemplo, pensamos haver
diferenças significativas entre a idéia de destrutividade, a noção de destruição e o
conceito de pulsão de destruição. Como mencionamos, destrutividade aponta para
uma qualidade, uma capacidade ou tendência, uma possibilidade ou proclividade.
Destrutividade designa algo que o homem é capaz de exercer, de pôr em ação, tornando-
se, então, destrutivo. Essa característica humana, digamos assim, se atualiza através de
um ato, de uma ação, a que designaremos como destruição. A destruição pode ser
entendida como a destrutividade posta em ão, a destrutividade exercida por meio de
um gesto, de um ato. Já pulsão de destruição diz respeito não apenas a um dos derivados
das pulsões de morte como à força que subjaz à destruição, o motor da ação de
destruição, aquilo que leva à execução do ato de destruição e estabelece sua meta
específica; ao mesmo tempo, pode ser entendida como aquilo que está por trás da
característica da destrutividade, não precisando, necessariamente, dar origem a um ato
destrutivo, permanecendo na qualidade de um devir. “A pulsão de destruição é um dos
destinos possíveis da pulsão de morte” (MENEZES, 1991, p. 21). Como lemos em O
problema econômico do masoquismo, de 1924, a pulsão de morte é defletida para o
exterior graças à libido narcísica, e volta-se, entre outros destinos, contra o objeto na
forma de pulsão de destruição. Poderíamos considerar que, aqui, a pulsão de destruição
coincide, em suas finalidades, com o objetivo do ódio conforme apresentado na teoria
narcísica desse sentimento.
Propomos o mesmo tipo de análise para a agressividade, a agressão e a pulsão de
agressão. Da mesma forma, agressividade representa uma possibilidade e uma
tendência, a agressão a agressividade tornada ão e pulsão de agressão a força motora
que leva o sujeito a perpetrar atos agressivos, também com seu alvo peculiar.
Diferentemente da pulsão de destruição que, como veremos um pouco adiante, tornou-
se, na segunda teoria pulsional, intimamente relacionada ao sentimento de ódio, a
pulsão de agressão nem sempre é movida por esse sentimento. Pode movê-la, colocá-la
em ação, o desejo de se aproximar e se apropriar do objeto, atacá-lo para tê-lo perto de
si e poder dele usufruir. A agressividade, por sua vez, é o produto resultante da tensão
advinda de uma primeira separação, uma primeira distinção entre eu e não-eu, e, por seu
viés de positividade, é responsável pela manutenção dessa situação, sem a qual o
existiria sujeito psíquico; podemos considerá-la como a contrapartida do narcisismo. A
agressividade é correlata ao narcisismo originário, fundador do sujeito, podendo ser
considerada, da mesma maneira, originária. A agressão aponta para um ataque
perpetrado pelo sujeito contra seu objeto, ou melhor, visando o objeto, tanto num
movimento de defesa quanto originariamente de ataque, cujos motivos não incluem
necessariamente o ódio e a intenção de aniquilamento. A pulsão de agressão é a força
que impele o sujeito a executar, a levar a cabo a agressão. Lembramos que agredir tanto
designa atacar, brigar com, quanto simplesmente se aproximar do objeto. A agressão é
parte importante da aproximação do sujeito ao seu objeto sexual: sem um componente
agressivo a função sexual não se dá.
Recapitulando minimamente o que foi pesquisado acerca da agressão,
observamos que inicialmente ela foi considerada por Freud como um componente da
pulsão sexual, onde se expressa através do sadismo. Nessa mesma chave, que
poderíamos localizar no ano de 1905 e no texto Os três ensaios, o sadismo é, por sua
vez, apontado como o componente agressivo da pulsão sexual, o que beira uma
explicação tautológica. Em 1915, no artigo metapsicológico sobre as pulsões, Freud
distingue o sadismo, ainda entendido como pulsão sexual parcial, do ódio, cuja gênese
se situa na oposição eu/objeto, ou sujeito/mundo. Aqui, convém lembrar, objeto designa
o outro em relação ao eu narcísico, o não-eu, o estranho, estatuto completamente
diferente do objeto da pulsão - parcial, fantasmático e contingente - como apresentado
em 1905. Em relação às fases de desenvolvimento do eu, como postuladas no texto
sobre as pulsões de 1915, o eu-puro-prazer, primeiro eu verdadeiramente psíquico,
imaginário, correlato do eu ideal, projeta e introjeta, mantendo dentro de si somente o
que é prazeroso e lançando para fora de si tudo o que é fonte de desprazer. O ódio é
originariamente uma expressão da hostilidade desse eu contra o outro ameaçador,
prodigador de excitações e desprazer, o sentimento do eu que visa afastar de si,
eliminar, destruir o objeto perturbador. Como Freud nos ensina, a primeira relação com
o objeto é uma relação de ódio, não de amor. São as pulsões sádicas, inicialmente,
aquelas que mostram a Eros o caminho até o objeto. Lacan não concorda com essa
idéia como a reforça com a informação de que, segundo Heráclito, a Discórdia seria
anterior à Harmonia” (LACAN, 1948/1989, p. 108).
As diferenças entre domínio, dominação e pulsão de dominação obedecem à
mesma linha de raciocínio sendo que, dessa vez, a diferença entre domínio e dominação
pode ser determinada com relação ao objeto. O domínio geralmente diz respeito a algo
exercido em si mesmo enquanto a dominação aponta para uma relação do sujeito com
um objeto estranho a ele. Seguindo o mesmo pensamento, a pulsão de dominação
designa a força por trás da ação de dominação, com sua finalidade particular e diferente
das outras mencionadas. Assim como a pulsão de agressão, a pulsão de dominação é
movida por um sentimento diferente do ódio: o desejo que a move é o desejo de poder,
de captura do objeto visado.
As pulsões de destruição, de agressão e de dominação são, portanto, destinos ou
derivados da pulsão de morte, assim como o são as pulsões sádicas e as pulsões
masoquistas. Sempre que falamos de pulsão estamos nos referindo a algo da ordem de
uma força, de um motor, algo que impele a uma ação. Além dessas pulsões derivadas,
temos o sadismo e o masoquismo, mais bem classificados como estados, situações
originados do enlace primordial entre as pulsões de morte e Eros do que propriamente
como derivados pulsionais. Constituem os primeiros resultados da intricação das
pulsões de morte e as pulsões de vida, intricação essa que serve à finalidade de
domesticar, de neutralizar a meta primeira e última das pulsões de morte. Conforme
vimos, o sadismo e o masoquismo podem ser considerados como coincidentes com a
própria intricação pulsional.
O conceito de pulsão de morte aponta para uma força monótona e muda, que
toma emprestado à sexualidade e suas diferentes fases do desenvolvimento as diversas
roupagens psíquicas com que se reveste e com que se apresenta nos rios derivados. A
qualidade desses derivados está na dependência do quanto de Eros está implicado e em
que momento do desenvolvimento psicossexual o sujeito se encontra.
Assim, partindo desse pressuposto sobre a gênese dos produtos compostos,
postulamos que a pulsão de destruição se vincula com a fase oral canibalística do
desenvolvimento, em que o amor de objeto entra em contradição com a ação de
devoramento, de incorporação, protótipo da identificação, fato que, entretanto, não
impede a incorporação de acontecer. Portanto, esse é o modo em que se apresenta a
relação de objeto do sujeito: ao querer o objeto para si, e em si, ele o destrói. À
organização oral corresponde o desejo de incorporação, correlato à angústia de ser
devorado. Acreditamos que nesse modo de relação com o objeto, o eu, quanto ao
aspecto de sua organização e de seu desenvolvimento, se encontra na passagem da
condição de eu-puro-prazer para eu-realidade-definitivo. Podemos considerar que
quando o eu se encontra sob a forma simples de eu prazer purificado, pré-ambivalente, o
sadismo não é considerado em seu movimento incorporativo, sendo, portanto, uma
configuração prévia a que consideramos como o terreno da questão da oralidade dica.
Essa fase precoce da relação do sujeito com seus objetos pode ser considerada como
oral, simplesmente incorporativa; a destruição não é ainda questão, ou melhor, não é
levada em consideração nem cria problema.
Na fase que se segue, a oral-sádica, o conflito de ambivalência está presente
com toda sua força, o que justifica a existência do intensíssimo sentimento de culpa que
encontramos na afecção a ela relacionada, a melancolia. Na fase anterior, o objeto é
igualmente devorado mas isso não constitui um problema para o sujeito, que, na
verdade, mal se distingue de seu objeto; agora, na fase oral canibalística e na
configuração do eu em que a realidade é levada em consideração, o fato de querer
para si o objeto e, conseqüentemente, acabar com sua condição objetal, traz para o
sujeito grande sofrimento. Ao incorporar o objeto em si, o sujeito o destrói; sendo esse
objeto ao mesmo tempo o mais querido, essa destruição cria um impasse para o sujeito.
A solução encontrada é a de identificar-se com o objeto amado e destruído e, desse
modo, todo o ódio antes dedicado ao objeto se volta contra o próprio eu, agora
modificado por essa identificação. O sujeito melancólico se mortifica, literalmente.
Partimos do postulado freudiano que um acréscimo de investimentos eróticos
empurra o sujeito para um estágio mais avançado de sua organização, tendo sempre,
portanto, uma característica progressiva. Ao contrário, uma diminuição dos
investimentos eróticos, um “desfalque” deles, um débito, dota a vida psíquica de uma
direção regressiva e, conseqüentemente, mais primitiva, mais arcaica. Desse modo,
gostaríamos de propor que a agressão e sua pulsão dizem respeito a um estágio mais
avançado com relação à destruição e sua pulsão. A destruição pode ser mitigada por um
acréscimo de investimentos eróticos e ter sua meta transformada em “simples agressão”,
como escreve Freud. A agressão pode ser remetida à fase lica, à genitalidade tanto
infantil quanto adulta, em que a meta é agarrar o objeto para dele usufruir sexualmente e
implica, reflexivamente, na angústia de castração. A meta da pulsão de agressão não
implica causar dor ou sofrimento ao objeto, assim como não visa sua anulação, seu
aniquilamento. Para que a agressão tenha sentido, é necessário que o objeto mantenha
sua objetalidade. À diferença da agressão, a destruição condiciona seu movimento ao
fazer desaparecer o objeto.
Por sua vez, a pulsão de dominação nos faz pensar na fase sádico-anal e no
desejo de submeter o objeto aos desejos do sujeito. Mais uma vez, não se trata aqui de
fazer desaparecer o objeto mas sim subjugá-lo, dominá-lo, exercer o poder sobre ele,
fazê-lo obedecer, privando-o de seu próprio desejo. A pulsão de dominação não implica
necessariamente fazer sofrer o objeto, menos ainda destruí-lo. Apesar da ausência da
destruição, os impulsos sádicos dirigidos ao objeto produzem conflito e culpa; diante
disso, o sujeito transforma seus impulsos no contrário, produz formações reativas, tudo
na tentativa de anular seus impulsos sádicos, mal recebidos por seu eu. Estamos diante
da neurose obsessiva.
A agressividade, sendo uma tendência, uma característica, pode ser entendida
como aquilo que se instala depois do advento da deflexão da pulsão de morte e da
criação simultânea do masoquismo e do sadismo, ambos originários. Aqui percebe-se
um paradoxo: como podemos afirmar a agressividade como originária, contemporânea
do advento do sadismo e do masoquismo, provenientes do originário enlace por Eros e
conseqüente deflexão da pulsão de morte, se também postulamos para seu ‘grupo’, isto
é, também para a agressão e sua pulsão, uma posição mais avançada no
desenvolvimento?
Talvez possamos responder a esse dilema invocando a questão do tempo
psíquico, a atemporalidade do Inconsciente. Dizer que algum modo de funcionamento é
originário designa tão somente uma anterioridade genética e explicativa. Isso não
significa que outros modos venham exatamente depois, dentro de uma concepção do
tempo espacializado, numa série evolutiva: todos existem ao mesmo tempo, o que varia
é a preferência por essa ou aquela modalidade ou utilização, o recurso a que o sujeito
lança mão na falta de algo melhor. Explicando de outra maneira: ao se instalar a
intricação, a agressividade se apresenta como a contra-face dessa primeira separação e
constitui o instrumento através do qual ela poderá ser mantida. Ao mesmo tempo,
apresentam-se ao sujeito outras possibilidades de relação com seus objetos e consigo
mesmo. Pode lançar em direção aos objetos pulsões sádicas, agressivas, destrutivas ou
até mesmo de dominação. Esse raciocínio nos leva a trabalhar com a idéia de um tempo
sempre presente, onde os modos de funcionamento não se substituem uns aos outros
mas coexistem. É certo que temos de levar em conta os aspectos evolutivos: mas todos
os modos persistem como possibilidades a que se lança o sempre que um modo mais
‘adiantado’ não for capaz de proporcionar a satisfação buscada. Não nos esquecemos da
idéia de existir um aparelho psíquico mais evoluído, mais desenvolvido, possuidor de
recursos mais sofisticados na consecução de sua satisfação; mas mesmo esse, diante de
dificuldades, regridirá até onde for necessário para dar conta de uma exigência
pulsional. Apenas estará mais bem equipado e poderá resolver suas tensões de forma
mais diferida e economicamente mais favorável.
Tanto a agressão quanto a destruição podem visar o objeto ou o próprio eu,
sendo então objetais ou narcísicas. A autodestruição pode levar ao aniquilamento do si
mesmo, ou seja, ao suicídio; a auto-agressão se expressa em condutas diversas que vão
desde a sabotagem até o automartírio, a busca de punição, os fracassos repetidos. O
domínio visa tanto controlar quanto conter a excitação, no sentido de efetuar as
primeiras ligações, enquanto a dominação se volta para os objetos alheios ao eu próprio.
Além disso, como vimos, o conceito de pulsão de morte tem, no texto freudiano,
acepções diferentes, o que torna ainda mais difícil extrairmos dele um sentido único.
Ora a pulsão de morte aparece como a essência da pulsão em si, ora como pertencendo
às pulsões de conservação do eu, ora como a tendência para a destruição e para o
retorno ao inanimado. Se o texto Além do princípio do prazer esbarra na dificuldade
teórica de praticamente fundamentar apenas de modo muito especulativo o conceito de
pulsão de morte, o texto O mal-estar na cultura nos a impressão, com toda sua
concretude e eloqüência, de poder torná-lo mais tangível ou de postulá-lo de forma
menos controvertida. Entretanto, como também mencionado no corpo da tese, aquilo
que aparece como pura destrutividade ou agressividade está, segundo o próprio Freud,
sempre vinculado a uma satisfação, narcísica e, portanto, libidinal. Essa característica,
todavia, não cancela a necessidade do conceito de pulsão de morte para o
desenvolvimento da teoria. Segundo certos autores, muito tempo depois de Freud
introduzir o conceito, a pulsão de morte ainda resiste” a uma integração plena e isenta
de ambigüidade na teoria. “Ou talvez o resto da teoria ‘resista’ à inclusão da pulo de
morte” (TRUCCO & ALPEROWITCH, 1991, p. 11).
Paralelamente, sabemos da necessidade do rigor teórico, conceitual.
Concordamos com Deleuze e Guattari quando afirmam ser o conceito “ao mesmo tempo
absoluto e relativo: relativo a seus próprios componentes, aos outros conceitos, ao plano
a partir do qual se delimita, aos problemas que se supõe deva resolver, mas absoluto
pela condensação que opera, pelo lugar que ocupa sobre o plano, pelas condições que
impõe ao problema” (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 33-34). Não podemos fazer
concessões que comprometam a consistência da metapsicologia sob a ameaça de
menosprezarmos não apenas o notável esforço teórico de Freud como as contribuições,
valiosas e permanentes, dos autores pós-freudianos. Nossa proposta de trabalho revelou-
se de difícil consecução ao mesmo tempo em que se abriu para uma persistente
indagação acerca dos diferentes caminhos tomados pelos seguidores de Freud: a nosso
ver, as características do conceito de pulsão de morte e o fato de a obra que o inaugurou
ter sido concebida e executada como um texto aberto foram responsáveis por posições
teóricas radicalmente diferentes e por vezes até antagônicas.
Ao mesmo tempo, ao trabalharmos um tema, um capítulo, nos víamos
envolvidos com o assunto de outra parte de nosso texto; as definições se entrelaçavam,
dificultando a já muito árdua tarefa de tentar ser mais realista que o rei. Parodiando um
trecho de Freud em Introdução ao narcisismo, de 1914, em que ele se pergunta se não
seria mais simples considerarmos “uma energia psíquica unitária” em vez de continuar
no esforço de separar energia pulsional egóica de libido egóica, libido egóica de libido
de objeto” (FREUD, 1914a/1986, p. 74), afirmamos que esse tipo de preocupação
conceitual traduz a “diferença entre uma teoria especulativa e uma ciência construída
sobre a interpretação da empiria (ibid, p. 75). Nosso esforço será justificado se, ao
tentarmos esclarecer as diferenças que acreditamos existir entre os derivados das
pulsões de morte, e entre os afetos e condutas a eles avizinhados, estivermos
contribuindo para um melhor manejo na clínica psicanalítica, essa clínica que
gostaríamos de considerar como clínica pulsional, ou melhor, clínica das pulsões. Como
escrevemos em nossa Introdução, o que motivou esse trabalho foi um impasse surgido
na prática clínica. Acreditamos que esse tenha sido o mesmo e mais forte motivo que
levou Freud a pôr abaixo todo um edifício teórico, bem estruturado, bem alinhavado, e a
se expor à incompreensão e à ira de seus seguidores e detratores. O ofício de
psicanalisar pede que se pense e se repense a teoria, que se considere que todo conceito,
que mereça essa denominação, seja “real sem ser atual, ideal sem ser abstrato”
(DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 35).
Ao contrário da agressividade, que aponta para a tensão entre eu e o-eu mas
que cuida para que essa separação se mantenha, e para isso opera através da pulsão de
agressão, que se aproxima do objeto mas que o mantém como tal, a destrutividade e seu
funcionamento, pela pulsão de destruição, muito mais arcaica, regredida, que a
agressividade, constata a separação mas faz de tudo para apagá-la. Operando dentro da
chave da incorporação oral, a destruição do objeto visa o anulamento da diferença, luta
por uma indiferenciação, um apagamento da tensão que a criação de um eu acarreta. A
“nocividade oral (LACAN, 1948/1989, p. 107) é muito diferente da agressão, que
gostaríamos de considerar, como mencionamos, como um movimento característico
da fase fálica, da genitalidade infantil ou mesmo adulta, em que o objeto já é visto como
aquele capaz de proporcionar uma satisfação, satisfação essa específica dessa fase do
desenvolvimento psicossexual. A pulsão de destruição quer engolir o objeto, tornando-o
si-mesmo; a pulsão de agressão se aproxima e pega o objeto para dele fazer uso.
Paradoxalmente, ao se aproximar tem sempre presente a necessidade do afastamento, da
distância entre eu e não-eu. Uma certa dose de agressão é necessária para a
autoconservação.
Tentaremos discernir, nessa conclusão, os produtos provenientes desses
‘desvios’, resumindo aquilo que resultou de nossa pesquisa. Assim, começaremos pelo
par sadismo-masoquismo. A nosso ver, não podem ser classificados exatamente como
derivados, no mesmo sentido que adquirem as outras pulsões. São antes dois estados,
duas situações; deles provêm, é certo, pulsões sádicas e pulsões masoquistas, estas sim
propriamente ‘derivados’ das pulsões de morte.
Recapitulando aquilo que pesquisamos no texto de Freud, verificamos que o
sadismo e o masoquismo estiveram presentes desde seu início. Mesmo antes do ensaio
sobre a teoria da sexualidade, de 1905, Freud constatou esses estados e logo estabeleceu
uma analogia entre o sadismo, a masculinidade e a atividade, por um lado, e entre
masoquismo, feminilidade e passividade, por outro. Apresentavam-se igualmente
vinculados à agressividade e ao ódio, expressão da articulação entre a sexualidade e a
violência, exercida tanto sobre o outro quanto experimentada como fruição em que um
outro é o agente. Surgem como componentes da pulsão sexual que, quando se tornam
autônomos, configuram quadros de perversão; a seguir, são considerados como as
pulsões parciais dominantes em certas organizações pré-genitais, caracterizando
condutas infantis típicas. Finalmente, a partir de 1920, o sadismo é considerado como
resultado da pulsão de morte afastada do eu; o masoquismo equivaleria à porção de
pulsão de morte que, não defletida, fica retida e ligada eroticamente. Nesse momento,
Freud pode finalmente considerá-lo primário. Ambos se colocam a serviço da função
sexual, fazendo parte da vida sexual comum do ser humano. São sutis porém
observáveis as diferenças entre masoquismo e autodestruição e entre sadismo e
destruição, conforme examinamos longamente no capítulo correspondente e como
retomaremos logo a seguir.
Em 1920, o sadismo, assumindo a definição de ser uma pulsão de morte afastada
do eu pelo esforço e a influência da libido narcísica, vem à luz em relação ao objeto. No
estágio genital, o componente sádico se separa e assume a função de dominar o objeto
sexual. A partir de 1921, com o texto Psicologia das massas e análise do eu, Freud
passa a considerar o ódio frente às diferenças como uma reação à ameaça à integridade
do sujeito. Ainda considera a agressividade como tendo uma origem desconhecida mas
apresentando-se como elementar.
Portanto, conforme a idéia que temos defendido, com a deflexão da pulsão de
morte pela ação de Eros, da libido narcísica, a que Freud chama de Ableitung eines
Todestrieb, teríamos os primeiros produtos dessa estranha e paradoxal combinação: o
masoquismo, originário, erógeno, e seu par, o sadismo, igualmente originário. Essa
deflexão, que constitui, na realidade, uma expulsão para fora daquele sistema do tanto
possível da pulsão de morte, de modo a dar possibilidade à vida de seguir seu curso,
constitui um desvio, uma mudança não de curso como de finalidade. Não
nenhuma possibilidade de determinarmos um começo absoluto nem de datarmos
historicamente o momento em que a intricação teria começado. Apenas gostaríamos de
propor a idéia de uma simultaneidade e de uma identidade de sentido entre intricação
pulsional, por um lado, e masoquismo e sadismo, por outro, além de adotarmos o
pressuposto de um duplo vínculo entre pulsão de morte e o par sadismo/masoquismo,
uma relação recíproca entre eles.
Assim, pensamos poder distinguir, por exemplo, pulsões masoquistas de pulsões
de autodestruição: as primeiras visam o prazer, obtido sob certas condições, a saber, o
sofrimento do próprio sujeito; as segundas visam a destruição do si mesmo, obtendo,
secundariamente, uma satisfação. Se no primeiro caso, a obtenção de prazer é o que se
busca, mesmo através de sofrimento, no segundo o ganho de prazer é subsidiário se
não inexistente, como no caso do suicídio levado a termo, exceção à regra da presença
das duas pulsões em todas as combinações - à meta da destruição. O sujeito portador da
perversão masoquística nunca se mata, ou seja, não é esse o alvo visado; a morte,
se acontecer, será por acidente. O melancólico, onde imperam as pulsões de destruição,
sim. Essa distinção se torna mais difícil entre pulsões masoquistas e pulsões de auto-
agressão; mas pensamos poder estabelecê-la, mesmo assim. Sempre o que muda é a
qualidade da meta primeira: se for primariamente prazerosa, estamos diante de um
“derivado de Eros”; se for prazerosa apenas de forma secundária, estamos diante da
pulsão de agressão que, diferentemente da de destruição, não leva necessariamente à
morte do sujeito mas o conduz a se infligir inúmeras agressões como meta primordial de
suas moções pulsionais. Sempre lembrando que a condição de obtenção de prazer no
caso das pulsões sádicas e masoquistas implica, necessariamente, o sofrimento do
objeto, seja ele um objeto outro, seja o si-mesmo-próprio. As condutas derivadas das
pulsões de auto-agressão não têm o sofrimento próprio como condição primeira: podem
apontar para evitações, boicotes, fracassos repetidos que, se mostram algum tipo de
sofrimento, este é de ordem moral.
A guisa de recapitulação e conclusão - pensemos em um primeiríssimo
momento, naquele em surge a vida. Acreditamos também poder propor uma mitologia,
um mito das origens: Freud toma emprestado o mito de Platão, assim considerado pelo
próprio, nos autorizando a empreender caminhos semelhantes. Consideremos um
sistema, provido da capacidade de se esvaziar de qualquer excitação que a ele chega,
funcionando segundo o arco reflexo proposto por Freud no Projeto. Esse funcionamento
movimento reflexo, “instinto de morte”? - obedeceria à tendência mais universal de
todas, que é a tendência à inércia. O surgimento da vida, e o imediato afã para que esta
se mantenha o desejo do outro? vai começar por contrariar essa tendência,
substituindo-a por um nível ótimo porque mínimo de excitação, regido pelo princípio de
constância, suficiente para que a vida persista. Onde antes só havia, digamos, pulsões de
morte, operadoras desse esvaziamento completo que levaria o sistema, vivo, de volta à
quietude do inorgânico, agora aparece Eros, advindo de um outro domínio, o domínio
de um outro sujeito, que introduz nesse sistema incipiente seus investimentos eróticos.
Esse enlace amoroso e também hostil, posto que desde sempre ambivalente tratará
de expulsar para fora do sistema o que conseguir das pulsões de morte ligadas, para
que a economia interna comece a permitir a manutenção da vida. Esse primeiro
momento seria constituinte de duas situações, duas condições: o masoquismo originário
e o sadismo, também originário. A partir daí, esse sistema, proto-aparelho psíquico,
passará a funcionar no sentido do esvaziamento, que agora parcial, mantendo em seu
interior um mínimo de excitação capaz de mantê-lo funcionando. Voltamos a lembrar,
com Freud, que a pulsão de morte é própria do orgânico, pressupondo uma situação
anterior absolutamente inalcançável pela compreensão, tão irrepresentável quanto o é a
morte. Falamos de uma situação da qual não podemos ter conhecimento, a de um antes
de a vida se instalar. Tanto a morte quanto o estado inorgânico que precede a vida
constituem o incognoscível radical.
Os acontecimentos se sucedem, as marcas das vivências o sendo deixadas
nesse indiferenciado inicial, constituindo as primeiras trilhas, os primeiros caminhos
preferenciais para a passagem das futuras excitações. Essas marcas se aglomerarão em
torno a grupos de traços, constituindo o que poderíamos chamar de proto-eus. O
momento é o do funcionamento auto-erótico e esses ‘eus’ constituiriam o que Freud
postulou como eu-realidade-originário. Com o advento da identificação originária, “uma
primeira captação pela imagem na que se desenha o primeiro momento da dialética das
identificações” (LACAN, op. cit., p. 105), essa primeira captação amorosa, estaríamos
diante do eu propriamente psíquico, ao mesmo tempo eu ideal e eu-prazer-purificado,
único eu real que esse sujeito possui naquele momento. ‘Eu’ se distingue de ‘não-eu’,
dentro de fora, sujeito de objeto. Imediatamente se instala uma tensão entre essas
categorias e, para manter a separação conseguida, surge a agressividade, como uma
primeira expressão do sadismo originário, que compreende o objeto como ameaçador.
Aquilo que das pulsões de morte fora lançado para fora do sistema, em direção ao
mundo externo, agora se encarregará de manter a separação acontecida. Esse o sentido
da agressividade.
Voltamos a insistir: sadismo e masoquismo se caracterizam pela questão do
sofrimento, tanto do objeto quanto do próprio sujeito. Dessas duas situações, partirão
pulsões sádicas em direção ao objeto, visando fazê-lo sofrer, e pulsões masoquistas que
tentarão obter satisfação pelo sofrimento, seja através de ações dos objetos estranhos ao
eu, seja através de um jogo intrapsíquico, entre as instâncias do eu e do supereu.
Enquanto entendemos a agressividade por seu viés positivo, ou seja, aquele de
manter a configuração narcísica, defendendo-a de supostos ataques e invasões por parte
daquilo que ficou de fora, a destrutividade aponta para um aspecto inteiramente
regressivo. Dito de outra maneira: enquanto as pulsões de agressão empreendem uma
aproximação de seu objeto visando atacá-lo e assim defender-se de uma possível
ameaça, talvez de indiferenciação, a destrutividade compreende a anulação das
diferenças. As pulsões de destruição, com sua nocividade oral”, como mencionamos, e
utilizando o modo arcaico de obter sua satisfação através da incorporação do objeto,
visa, imaginariamente, desfazer a diferença entre eu e não-eu, apagar a tensão produzida
pela primeira separação, fazer desaparecer o objeto, causa dessa tensão. Constitui um
primeiro movimento defensivo: visa defender o si-mesmo da dor da separação, da
discriminação, da incompletude. Característico da fase oral-sádica do desenvolvimento
psicossexual do sujeito, o movimento de destruição é regressivo e arcaico. Tenta refazer
o narcisismo absoluto perdido ao nascer; o movimento de agressão é, em certo sentido,
progressivo, e tenta proteger o narcisismo originário, primário, constituinte do sujeito
psíquico, aquele que admite se perceber com falhas, incompleto. Nesse sentido, a
pulsão de agressão é uma pulsão eminentemente egóica pois trata de manter, a todo
custo, o narcisismo instaurado, condição sine qua non da constituição do sujeito
psíquico.
Portanto, não podemos igualar as pulsões de destruição às de agressão. A partir
do texto de 1930, O mal-estar na cultura, a agressividade dirigida ao outro é ela mesma
uma disposição pulsional. Nesse momento de sua construção, Freud começa a tomar
como orientação para teorizar sobre a pulsão de morte as manifestações da maldade
humana: capricha na grandiloqüência e na escolha de exemplos escandalosos e
inequívocos de violência e maldade humanas. É como se em vez de pulsão de morte nos
falasse insistentemente em pulsão de destruição. Entretanto, quando teoriza, também
estabelece a agressão voltada para o exterior como uma das manifestações da pulsão de
morte. Em sua carta a Einstein, examinada em capítulo precedente, lemos que a
pulsão de morte se torna pulsão de destruição quando é dirigida para fora (...); porém,
uma porção da pulsão de morte permanece ativa no interior do ser vivo” (FREUD,
1933[1932]a/1986, p. 192). Entretanto, o atributo espacial para fora/para dentro não
é suficiente para distinguir pulsão de agressão de pulsão de destruição: ambas podem
tanto tomar o outro, estranho ao eu, como objeto, quanto o próprio eu, num movimento
auto. Todavia, nesse texto, Freud grande importância ao destrutivo e ao agressivo
dirigido ao exterior, assim como à maldade e à violência.
Como observamos, a tarefa de especificar a pulsão de dominação apresenta-se
bem mais fácil. Sabemos que o termo escolhido por Freud para designar essa força
Bemächtigungstrieb - evoca sempre alguma violência; refere-se a tomar um objeto
externo para si, à força. À apropriação pela força se junta o aspecto da violência
pulsional. O termo Bewältigung e seus derivados, também usados por Freud em seus
textos, designam o domínio das excitações pela ligação psíquica, muitas vezes anterior
ao princípio de prazer.
Ao longo do texto freudiano, a pulsão de dominação conhece três acepções. A
dominação surge como meta de uma pulsão específica e autônoma, não-sexual,
secundariamente ligada à sexualidade, dirigida sempre para o exterior, relacionada com
a agressividade, único elemento presente na crueldade originária infantil. Primariamente
sem má intenção, apresenta-se muito próxima das pulsões de autoconservação.
O segundo tempo da noção de dominação é aquele em que aparece vinculada
ao sadomasoquismo, como um complemento agressivo da pulsão sexual. Aqui se
inauguram o prazer e a crueldade e, por essa via, tendem a se confundir pulsão de
dominação e sadismo. Finalmente, a dominação torna-se expressão da pulsão de morte,
um de seus derivados; consiste em uma atividade, em um pôr em movimento. O
domínio, por sua vez, pode ser tanto do aparelho na ligação da excitação -, quanto do
eu, em seu esforço de dominar as demandas pulsionais indesejáveis.
Apesar de acolhermos a postulação de Deleuze e Guattari de que um conceito
não tem referência sendo auto-referencial, põe-se a si mesmo e põe seu objeto, ao
mesmo tempo em que é criado” (p. 34) -, também acatamos a idéia de autores que
dizem que existem referentes na produção de um conceito, referentes considerados
como fenômenos ou observáveis clínicos que “pedem”, para sua compreensão, que se
postule um novo conceito, no caso a pulsão de morte (TRUCCO & ALPEROWITCH).
Esta postulação coincide com nossa idéia da “necessidade” da produção de um novo
conceito, que responda a impasses internos ao corpo teórico e, no caso da psicanálise,
problemas incontornáveis no exercício do ofício de psicanalisar. Nossa experiência
cotidiana de psicanalistas torna impossível prescindir do conceito de pulsão de morte.
Se em Além do princípio de prazer Freud nos apresenta como referentes a compulsão à
repetição e a insistência no desprazer, em O mal-estar na cultura, dez anos depois, nos
oferece como referentes essa agressividade e destrutividade universalmente estendidas.
No texto de 1920, o mais notável é a auto-agressão; no texto de 1930, Freud se volta
para a maldade dirigida ao outro, para o desejo de destruir.
Nesse ponto, nos detemos para falar daquilo que classificamos como condutas
humanas, afetos e atuações que implicam fazer sofrer o outro, denegri-lo, maltratá-lo,
espezinhá-lo. Se encontramos grande dificuldade em manter nossa hipótese que os
derivados das pulsões de morte podem ser distinguidos uns dos outros, mais complicado
foi estabelecer alguma diferença entre aquelas situações afetivas escolhidas como tema
de um capítulo, a violência, a maldade e a crueldade. Algumas distinções etimológicas
foram estabelecidas e estas guiaram nossas reflexões. Essas qualidades, ou
características de um sujeito ou de um ato, ou ainda essas ações, se entrelaçam de
maneira ainda mais intricada; aquilo que inicialmente consideramos como sentimentos,
entretanto, dificilmente podem ser enquadrados nessa classificação. São antes aspectos
que caracterizam a vida humana em geral. Ao voltarmos às simples definições
encontradas para cada um dos termos, nos deparamos com traços de uma verdadeira
comunidade. A crueldade pode ser entendida como uma ‘maldade violenta’, a maldade
como uma nocividade, uma perversidade, e a violência, por sua vez mais destacada das
outras, como uma força. A crueldade se especifica como uma ação que obtém prazer em
fazer o mal, em causar dor, e, dessa forma, se articula estreitamente com o sadismo.
Implica, em sua raiz, derramamento de sangue, com que se compraz, mas quando
psíquica se sem esse aspecto. Liga-se à pulsão de dominação e, conseqüentemente, à
pulsão de morte, ao ódio e à destruição. Poderia ser considerada, então, como uma das
características do sadismo: este é sempre cruel.
A maldade, por sua vez, o apresenta necessariamente essa característica da
obtenção de prazer com o ato: pode simplesmente apontar para uma imperfeição, para
algo que prejudica ou mesmo fere, para a noção moral de pecado. Implica, entretanto,
certa nocividade, certa malignidade. Freud articula a maldade com a vingança e
distingue maldade de crueldade dando a entender que a maldade é propriamente
humana. A violência se distingue, minimamente, como impulsos que escapam à
vontade. Consideramos que essas distinções são muito débeis e tênues para estabelecer
uma boa diferença nocional mas tais situações compõem um quadro comum com as
pulsões em questão.
Sempre se poderá teorizar a maldade sem lançar mão de uma pulsão específica,
haja vista o que foi produzido por Freud, nesse sentido, antes de 1920. Todavia, aquilo
que não se consegue, aparentemente, definir de forma convincente é o mesmo de que
não podemos abrir o para a compreensão de fenômenos da vida em geral e da clínica
psicanalítica, em particular: a culpa, o supereu tirânico, as reações clínicas negativas, o
masoquismo, a agressividade e o ódio, e mais outras tantas manifestações desse resto
que jamais poderiam ser explicadas pelo princípio do prazer e seu derivado, o princípio
de realidade. São numerosos fatos, observações constatadas e recolhidas, questões que
se apresentam, a verificação de que para além do prazer algo, um resto que escapa à
captura pelo universo simbólico e que aparece sob a forma da compulsão à repetição,
que insistentemente clamam pela postulação de um outro princípio, que os integre em
uma nova racionalidade. É esse observável clínico irredutível aos recursos das antigas
formulações o que teremos que integrar à nova teoria, criada para dar conta das questões
por ele trazidas à evidência dos acontecimentos.
Chegamos ao fim desta tentativa de conclusão com a sensação de este ser um
trabalho inacabado, aberto como o próprio conceito de pulsão de morte, que foi seu fio
condutor: a pesquisa parece exigir incessantemente revisões, atualizações e novas
interrogações, tanto acerca de seu objeto próprio como sobre os outros, surgidos à
margem, para os quais o trabalho acabou por apontar. Mais do que uma conclusão de
um trabalho que se considere acabado, este final é testemunha de um esforço, um
esforçar do pensamento, regido e conduzido pelo que de pulsional ainda lhe resta,
depois de tudo.
O tema pesquisado permanece inconcluso e se reinterroga constantemente.
Concluímos que as relações entre os conceitos, inseparáveis mas que se procurou
distinguir, são indispensáveis à qualquer teoria que se proponha erigir dentro do campo
da psicanálise. E que se algum caminho foi efetivamente traçado e seguido esse é o da
fidelidade ao texto freudiano. Também acreditamos que toda pesquisa em psicanálise
sempre ganha ao se inspirar no próprio todo de Freud: o de partir de questões
deixadas momentaneamente sem resposta, como em suspenso, até poder, a partir destas,
levantar ainda outras. Talvez nossa questão o seja exatamente uma questão nova,
como tantas outras no já batido chão da metapsicologia: esperamos apenas ter alcançado
algo inédito na maneira com que procuramos fazê-la trabalhar. É possível que alguma
novidade nasça do novo olhar que tentamos lançar sobre ela.
Penitenciamo-nos, mais uma vez, pelas repetições, inevitáveis, justificadas,
entretanto, pelo terreno comum aos conceitos trabalhados. A retomada de temas e
citações freudianos se necessariamente, em contextos ligeiramente diferentes, com
entradas particulares a cada conceito abordado. Como dissemos logo acima, um fio
condutor une os conceitos e esse fato aponta para uma unidade da concepção da pulsão
de morte, que os anima.
IX. Referências bibliográficas
Obras de Freud:
FREUD, S. (1986) Sigmund Freud Obras Completas, Buenos Aires, Amorrortu
editores.
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(1893-95) “Estudios sobre la histeria”, v. 2.
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(1896a) “La herencia y la etiología de las neurosis”, v. 3.
(1896b) “Nuevas puntualizaciones sobre las neuropsicosis de defensa”, v. 3.
(1896c) “La etiología de la histeria”, v. 3.
(1899) “Sobre los recuerdos encubridores”, v. 3.
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(1905a) Tres ensayos de teoria sexual”, v. 7.
(1905b) “El chiste y su relación com lo inconciente”, v. 8.
(1905c) “Fragmentos de análisis de um caso de histeria”, v. 7.
(1905-1906[1942]) “Personajes psicopáticos en el escenario”, v. 7
(1907[1906]) El delírio y los sueños en la ‘Gradiva’ de W. Jensen”, v. 9.
(1908[1907]) “El creador literário y el fantaseo”, v. 9.
(1908a) "Las fantasias histéricas y su relación con la bisexualidad”, v. 9.
(1908b) “La moral sexual ‘cultural’ y la nerviosidad moderna”, v. 9.
(1908c) “Sobre las teorías sexuales infantiles”, v. 9.
(1909a) “A propósito de un caso de neurosis obsesiva”, v. 10.
(1909b) “Análisis de la fobia de un niño de cinco años”, v. 10.
(1910[1909]) “Cinco conferencias sobre psicoanálisis”, v. 11.
(1910a) “La perturbación psicógena de la vision según el psicoanálisis”, v. 11
(1910b) “Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci”, v. 11
(1910c) “Sobre um tipo particular de elección de objeto en el hombre”, in
“Contribuciones a la psicologia del amor, I”, v. 11
(1910, 1912, 1917) “Contribuciones a la psicologia del amor”, v. 11
(1911[1910]) “Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranóia
(Dementia paranóides) descrito autobiográficamente”, v. 12.
(1911) “Formulaciones sobre los dos princípios del acaecer psíquico”, v. 12
(1958[1911]) “Sueños em el folklore (Freud y Oppenheim)”, v. 12.
(1913a) “El motivo de la elección del cofre”, v. 12.
(1913b) “Sobre la iniciación del tratamiento”, v. 12.
(1913c) “La predisposición a la neurosis obsesiva. Contribución al
problema de la elección de neurosis”, v. 12.
(1913[1912-13]) “Tótem y tabú. Algunas concordancias en la vida anímica de los
salvajes y de los neuróticos”, v. 13.
(1914a) “Introducción del narcisismo”, v. 14.
(1914b) “Carta al doctor Frederik van Eeden”, v. 14.
(1914c) “Contribución a la historia del movimiento psicoanalítico”, v. 14.
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(1915a) “Pulsiones y destinos de pulsión”, v. 14.
(1915b) “Lo inconciente”, v. 14.
(1915c) “La represión”, v. 14.
(1915d) “De guerra y muerte. Temas de actualidad”, v. 14.
(1915e) “Un caso de paranoia que contradice la teoria psicanalítica”, v. 14.
(1916) “Algunos tipos de carácter dilucidados por el trabajo
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(1916[1915]) “La transitioriedad”, v. 14.
(1917a[1915]) “Duelo y melancolia”, v. 14.
(1917b[1915]) “Complemento metapsicológico a la doctrina de los sueños”, v. 14.
(1917[1916]) “Conferencias de introducción al psicoanálisis”, v. 16.
(1918[1914]) “De la historia de una neurosis infantil”, v. 17.
(1919[1918]) “Nuevos camiños de la terapia psicoanalítica”, v. 17.
(1919a) “Lo ominoso”, v. 17.
(1919b) “Pegan a un niño. Contribución al conocimiento de la génesis de
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(1920) “Más allá del principio de placer ”, v. 18.
(1921) “Psicologia de las masas y análisis del yo”, v. 18.
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(1923[1922]a) “Dos artículos de enciclopédia: ‘Psicoanálisis’ y ‘Teoría de la
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(1923[1922]b) “Una neurosis demoníaca en el siglo XVII”, v. 19.
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(1924a) “El problema económico del masoquismo”, v. 19.
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*(1925[1924]a) “Las resistencias contra el psicoanálisis”, v. 19.
(1925[1924]b) “Presentación autobiográfica”, v. 20.
(1925[1924]c) “Breve informe sobre el psicoanálisis”, v. 19.
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(1926[1925]) “Inhibición, síntoma y angustia”, v. 20.
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(1933[1932]a) “¿Por qué la guerra ? (Einstein y Freud)”, v. 22.
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FREUD, S (1915/1987) Neuroses de transferência: uma síntese, Rio de Janeiro, Imago
Editora.
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