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IRIS NEIVA DE CARVALHO
A PRÁTICA DO SERVIÇO SOCIAL NO COMPLEXO DE DEFESA DA CIDADANIA:
UMA REFLEXÃO À LUZ DO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO PROFISSIONAL
MESTRADO EM POLÍTICAS PÚBLICAS
UFPI
TERESINA / 2007
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1
IRIS NEIVA DE CARVALHO
A PRÁTICA DO SERVIÇO SOCIAL NO COMPLEXO DE DEFESA DA CIDADANIA:
UMA REFLEXÃO À LUZ DO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO PROFISSIONAL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Universidade Federal do Piauí, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre em
Políticas Públicas, sob a orientação da Professora
Doutora Maria D’Alva Macedo Ferreira
UFPI
TERESINA / 2007
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A PRÁTICA DO SERVIÇO SOCIAL NO COMPLEXO DE DEFESA DA CIDADANIA:
UMA REFLEXÃO À LUZ DO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO PROFISSIONAL
IRIS NEIVA DE CARVALHO
Dissertação de Mestrado submetida à Coordenação do Curso de Mestrado em
Políticas Públicas do Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Piauí
– Área de Concentração: Estado, Sociedade e Políticas Públicas
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Maria D’Alva Macedo Ferreira
Professora Doutora
Universidade Federal do Piauí
Orientadora e Presidente
_____________________________________________
Professor(a) Doutor(a)
Instituição
______________________________________________
Professor(a) Doutor(a)
Instituição
TERESINA / 2007
3
AGRADECIMENTOS
À Secretaria de Assistência Social e Cidadania – SASC, e ao Complexo de Defesa
da Cidadania - CDC, em especial às Assistentes Sociais da Ação Social Especializada – ASE,
que oportunizaram não apenas o acesso aos diferentes espaços da instituição, mas também ao
acervo de informações sem as quais não teria sido possível a realização deste trabalho.
Ao diretor do Fórum Central II, Dr. Oton Mário José Lustosa Torres e à
Coordenadora do Centro de Apoio Psicossocial, CAPS Norte, Cleonice de Castro Teles, que
por diversas vezes viabilizaram a liberação das atividades laborais.
À professora Maria D’alva Macedo Ferreira, pela competência, paciência e
serenidade com que conduziu a orientação deste trabalho.
À minha família (pais, irmãos e sobrinhos), pela compreensão nos inúmeros
momentos que deixamos de compartilhar de companheirismo mútuo.
À querida amiga Maxshuellma Rufino, pelo incondicional apoio desde o primeiro
momento em que aceitei assumir esta empreitada e, em especial, pelo ardoroso trabalho de
transcrição das entrevistas.
Aos fiéis e inestimáveis companheiros Edilson Lima, Giovana Nunes e Iolanda
Paulo, pelas inúmeras palavras de incentivo que não me deixaram desistir diante de tantos
obstáculos, pois, assim como eu, experimentaram e souberam compreender o que representa
esse desafio.
4
RESUMO
O trabalho apresenta o resultado da pesquisa sobre a prática dos assistentes sociais
no Complexo de Defesa da Cidadania de Teresina - PI – CDC, órgão vinculado à Secretaria
de Assistência Social e Cidadania – SASC, destinado ao atendimento inicial do adolescente a
quem se atribui a autoria de ato infracional. Para isso percorre o processo de construção do
projeto ético-político do Serviço Social, que busca, através de princípios éticos fundamentais,
a definição de um perfil profissional compromissado com os interesses dos usuários dos
serviços sociais. Discute, nesse contexto, os avanços introduzidos pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente nos tratos com o adolescente autor de ato infracional, tendo por base o
esgotamento histórico-jurídico e social do Código de Menores de 1979. À luz dos princípios
éticos do projeto ético-político profissional, a análise desvenda que, apesar da postura de
defesa dos direitos do adolescente postulado pelos assistentes sociais do Complexo de Defesa
da Cidadania, na prática, a materialização dos princípios éticos se faz num contexto tenso e
heterogêneo, muitas vezes limitador de uma prática voltada para a lógica do direito.
Palavras-chave: ética; projeto ético-político; prática profissional; sistema sócio-jurídico de
proteção.
5
ABSTRACT
This work shows the result of a research project about the practice of the social
workers at the Citizenship Protection Complex of Teresina - PI – CDC. Organ attached to the
Department of Social Assistance and Citizenship – SASC, created to provide the initial
treatment of adolescents who performed an infringement. For this, it goes through the
construction process of the social assistance ethical-political project. This project aims to find
a definition, using ethical principals, for a professional profile committed to the interests of
those who use the social assistance services. In this context, it also discusses the advances
introduced by the Children and Adolescent Statute when dealing with adolescents who
performed an infringement, based on the social, juridical and historical exhaustion of the
Minors Code 1979. The analysis shows that, despite the attitude towards protecting the rights
of the adolescents stated by the social workers at the Citizenship Protection Complex, it
actually happens in a very tense context. And many times limits the practice of a work in the
logic of law.
Key words: Ethics, ethical-political project, professional practice, social-juridical system of
protection.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................07
CAPÍTULO I REFLEXÃO SOBRE A PRÁXIS ÉTICO-POLÍTICA DO SERVIÇO
SOCIAL.....................................................................................................12
1 Fundamentos ontológicos da ética....................................................................................12
2 O rebatimento da ética na prática do Serviço Social brasileiro: a prática profissional
desnudada através dos códigos............................................................................................20
3 Refletindo sobre os princípios éticos da profissão ...........................................................36
4 Os princípios éticos e a contra-ofensiva neoliberal..........................................................49
CAPÍTULO II O SISTEMA DE PROTEÇÃO JURÍDICO-SOCIAL: ENTRE A
GARANTIA LEGAL E A VIOLAÇÃO INSTITUCIONAL...............55
1 O direito à proteção jurídico-social no Estatuto da Criança e do Adolescente. ..............55
2 O sistema de proteção jurídico-social no Complexo de Defesa da Cidadania.................64
2.1 A violação dos direitos no cotidiano institucional: relato de uma tragédia.......67
2.2 Os efeitos da tragédia na reforma institucional .................................................74
CAPÍTULO III A PRÁTICA DO SERVIÇO SOCIAL NO COMPLEXO DE
DEFESA DA CIDADANIA E OS PRINCÍPIOS ÉTICO-POLÍTICOS
DA PROFISSÃO..................................................................................85
1 O Serviço Social na equipe interdisciplinar: atribuições e instrumentos de intervenção.85
2 A interlocução dos assistentes sociais com os demais órgãos do sistema de justiça para a
infância e juventude ............................................................................................................96
3 O assistente social na relação com o adolescente.............................................................99
4 Limites à prática segundo a leitura dos profissionais.......................................................103
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................106
REFERÊNCIAS.BIBLIOGRÁFICAS................................................................................111
7
INTRODUÇÃO
A década de 1980 representa, a nível nacional, um contexto de reorganização
política da sociedade civil, marcado pelo processo de transição político-democrática. Como
parte desse amplo movimento, presencia-se a conquista da Constituição Federal de 1988 e o
Estatuto da Criança e do Adolescente, que sob o ponto de vista histórico e social representam
avanços significativos no campo dos direitos humanos e da cidadania.
Acompanhando esse clima de efervescência política e social, o Serviço Social
evidencia a construção de um novo projeto profissional caracterizado pela recusa ao
conservadorismo da profissão, que até então orientava as práticas dos assistentes sociais.
O resultado desse processo se consolida com o Código de Ética de 1986, que
surge claramente posicionado a favor dos interesses da classe trabalhadora, trazendo em seu
bojo a recusa da ética da neutralidade e o reconhecimento da dimensão política da prática
profissional.
O amadurecimento teórico da profissão, tendo como pressuposto o acúmulo
anterior desta, especialmente respaldado na apropriação da reflexão ética marxista, vai ocorrer
na década de 1990, quando o Serviço Social passa a ser pensado não mais exclusivamente na
prestação de serviços, mas na promoção e capacitação, aprofundando a relação com os
usuários.
Como parte desses avanços institui-se o Código de Ética de 1993, que aprofunda o
trato político da questão ética, explicitando as implicações ético-políticas da intervenção
profissional. Juntamente com a Lei de Regulamentação da Profissão (Lei 8.8862/93),
consolida o chamado projeto ético-político da profissão, buscando aprimorar o perfil do
assistente social frente a princípios éticos fundamentais como liberdade, democracia,
cidadania, equidade e justiça social.
Objetivando analisar como esses princípios se materializam na prática dos
assistentes sociais, buscamos enfocar neste trabalho a prática profissional do Serviço Social
no Complexo de Defesa da Cidadania, órgão vinculado à Secretaria de Assistência Social e
Cidadania – SASC, voltado para o atendimento inicial do adolescente a quem se atribui a
autoria de ato infracional.
Nesse sentido, a pesquisa procurou atingir os seguintes objetivos:
- Identificar e analisar as atividades constitutivas da prática do assistente social na
instituição;
8
- verificar como os assistentes sociais desenvolvem a sua prática no cotidiano
institucional;
- identificar nas ações, discursos, pareceres e relatórios até que ponto a prática dos
assistentes sociais se relaciona com os valores e princípios referendados no Código de Ética e
na Lei de regulamentação da profissão, bem como no conjunto de garantias processuais
definidos no ECA;
- analisar a interlocução dos assistentes sociais com os adolescentes e com os demais
órgãos que atuam na instituição;
- identificar os fatores que favorecem ou limitam a concretização dos valores e
princípios éticos no cotidiano institucional;
- proporcionar a socialização e o debate dos resultados da pesquisa com vistas a
contribuir com uma prática voltada para a garantia dos direitos dos adolescentes na
instituição.
Partimos da compreensão de que existe uma tensão entre a lógica neoliberal redutora
do papel do Estado e as conquistas democráticas, de afirmação de valores emancipatórios, que
se firmaram no final da década de 1980 e início de1990 (Constituição Federal de 1988,
Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e Código de Ética Profissional dos assistentes
sociais, de 1993). Acreditamos que, nesse contexto, a defesa dos direitos e da lei como pilar
central e eixo da atuação do Serviço Social encontra-se ameaçada, afetando sobremaneira a
prática do assistente social, de modo que a pesquisa foi conduzida tendo por base a hipótese
de que deve existir uma dualidade entre os princípios consignados no projeto ético-político e a
prática profissional no Complexo de Defesa da Cidadania.
Sobre o percurso metodológico utilizado, a pesquisa realizada durante os meses de
fevereiro e abril de 2007, iniciou com o levantamento de dados sobre o Complexo de Defesa
da Cidadania, com objetivo de compreender a sua dinâmica, composição e serviços.
Para a análise da prática das assistentes sociais da Ação Social Especializada que
elegemos como sujeitos da pesquisa, fizemos uso de instrumentos que pudessem facilitar na
análise dos processos interativos inerentes às ações desenvolvidas pelos profissionais.
Assim, iniciamos pela análise dos documentos utilizados no cotidiano profissional
(leis, programas, projetos, planos de ação, relatórios – sociais, “situacionais” e
multiprofissionais, fichas de atendimento, livros de registros das atividades, livros de registro
das entradas de adolescentes e relatórios das atividades mensais encaminhados à SASC).
Além desses aspectos, a investigação analisou os discursos dos sujeitos participantes.
9
Estabelecemos como amostra de análise os documentos elaborados no período de
janeiro a abril de 2007, com exceção apenas dos relatórios das atividades encaminhados à
SASC, que abrangeram os anos de 2004 a abril de 2007 para efeito comparativo da dinâmica
institucional, durante e após o período que sucedeu a tragédia na qual sete adolescentes
morreram carbonizados no interior da unidade.
A pesquisa utilizou também como instrumentos a observação da dinâmica
institucional, procurando compreender a dinâmica cotidiana das assistentes sociais no espaço
físico de trabalho (rotinas, funções, atividades), bem como a entrevista junto aos sujeitos da
pesquisa, com o uso de gravador.
A análise e interpretação dos dados obedeceu aos seguintes procedimentos:
- estudo e organização dos documentos que continham informações sobre a
instituição (aspectos históricos e técnico-administrativos);
- leitura de documentos utilizados no cotidiano das atividades desenvolvidas pelos
assistentes sociais;
- transcrição das fitas gravadas (entrevistas e atividades observadas);
- leitura do material transcrito e do anotado no diário de campo com a finalidade de
identificar as categorias de análise (ética, valores, princípios, prática profissional, direito,
cidadania e sistema de proteção jurídico-social);
- audição das fitas gravadas com a finalidade de capturar a dinâmica das atividades,
identificando peculiaridades muitas vezes não reveladas pelo material transcrito.
Apesar de inicialmente as assistentes sociais terem se prontificado em colaborar
com a pesquisa, apenas duas, no universo de seis profissionais, concordaram em participar da
entrevista, o que não trouxe, porém, nenhum prejuízo para a análise qualitativa. Percebemos,
porém, que tal postura ainda se encontra associada ao constrangimento do profissional de se
expor a críticas e avaliações, o que não é positivo, haja vista que o olhar do outro é que muitas
vezes nos ajuda a repensar posturas e práticas.
Com o intuito de ajudar na compreensão da prática do Serviço Social e da
construção do projeto ético-político da profissão, o primeiro capítulo, intitulado “Reflexão
sobre a práxis ético-política do Serviço Social”, resgata os fundamentos ontológicos da ética,
tomando o trabalho como pressuposto da existência humana, da reprodução do ser social, cuja
realização cria valores e costumes, tornando o homem um ser moral e ético. Em seguida,
discute os rebatimentos da ética na prática do Serviço Social brasileiro, resgatando
historicamente as concepções de homem e de mundo que legitimaram a prática profissional,
10
trazendo à tona os enfoques éticos que permearam os sucessivos Códigos de Ética da
profissão.
O capítulo destaca a função de legitimação da ordem social, que durante muitos
anos a profissão cumpriu em razão dos aportes teóricos que utilizava, até a chegada de um
movimento de contestação das bases conservadoras da profissão, conhecido na América
Latina como Movimento de Reconceituação; que ensejou os primeiros alicerces da construção
do projeto ético-político profissional, que se consolida com o Código de Ética de 1986 e
amadurece com o Código de Ética de 1993.
A penúltima seção discute cada um dos onze princípios postulados no Código em
vigor, como forma de ajudar a compreender a auto-imagem da profissão que o projeto ético-
político pretende legitimar socialmente, mesmo em face da contra-ofensiva neoliberal,
desregulamentadora de direitos, que é abordada na última seção.
O segundo capítulo, com o tema, “O sistema de proteção jurídico-social: entre a
garantia legal e a violação institucional”, apresenta, na primeira seção, os avanços
introduzidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente no que diz respeito ao sistema de
atendimento sócio-jurídico destinado ao adolescente a quem se atribui a autoria de ato
infracional, para na segunda seção, enfocar a forma de implementação desse sistema pelo
Complexo de Defesa da Cidadania, uma instituição que, em contraposição aos princípios
normativos do Estatuto, durante muito tempo operou um sistema de justiça autoritário e
conservador que resultou na morte de sete adolescentes na unidade (a “tragédia do oito de
maio”, como ficou conhecida).
A partir desse episódio, e diante da ampla mobilização de setores organizados da
sociedade civil e de organismos de defesa da criança e do adolescente, gradativas mudanças
passaram a ser operadas, reorientando algumas posturas e práticas.
É no interior dessa dinâmica complexa, tensa e contraditória que o último
capítulo, denominado “A prática do Serviço Social no Complexo de Defesa da Cidadania e os
princípios ético-políticos da profissão”, procura situar a prática dos assistentes sociais da
Ação Social Especializada – ASE, vinculadas à Secretaria de Assistência Social e Cidadania –
SASC, responsável pela custódia dos adolescentes que permanecem na unidade durante o
processo de apuração do ato infracional.
Nesse sentido, a prática profissional será abordada no interior da dinâmica da
equipe interdisciplinar da ASE, na relação com os outros órgãos que compõem o sistema de
atendimento institucional e na relação com o adolescente, procurando identificar de que modo
11
as ações, posturas, discursos e metodologias de trabalho dos assistentes sociais se encontram
articulados com os princípios éticos da profissão.
Nas considerações finais, concluímos que uma prática profissional comprometida
com a defesa dos princípios postulados pelo projeto ético-político profissional não depende
somente da posição política, teórica e ideológica assumida pelo assistente social, depende
também das condições objetivas presentes no contexto histórico.
12
CAPÍTULO I
REFLEXÃO SOBRE A PRÁXIS ÉTICO-POLÍTICA DO SERVIÇO SOCIAL
Compreender a prática do Serviço Social e a trajetória de construção do seu
projeto ético-político profissional demanda a compreensão da gênese da profissão em suas
determinações éticas e políticas fundantes, em seus desdobramentos históricos, em sua relação
com o processo de reprodução das relações sociais na sociedade capitalista e com o esforço de
superação do seu ethos de origem.
Para isso, é necessário que se resgate a base de fundamentação ontológica da ética
na vida social, com vistas a apreender as possibilidades de superação da ética presente na
sociedade contemporânea no contexto dos valores e princípios éticos defendidos pelo projeto
ético-político do Serviço Social, tomando como ponto de partida o dado ontológico primário
da totalidade social: o trabalho, como pressuposto da existência humana e forma privilegiada
de práxis.
1 Fundamentos ontológicos da Ética
Segundo Marx & Engels (1989), a relação com a natureza está na raiz do processo
de autocriação do homem, quando dela se utiliza para a satisfação de suas necessidades
básicas. Por outro lado, a característica mais original da práxis humana reside no fato de que o
homem opera a partir do prévio conhecimento do objeto de seu operar. Diferentemente dos
animais, cujas respostas às necessidades são imediatas, limitadas e instintivas, o homem
ultrapassa o determinismo natural, estabelecendo com a natureza uma relação mediada pela
consciência, por um processo de assimilação ativa do real, que torna possível um agir
intencional em face do objeto conhecido. Daí porque Marx (1980) assinala uma diferença
abismal entre o trabalho da abelha que transforma a natureza fabricando o mel, e o trabalho do
mais inábil artesão. Enquanto a primeira não recria outras formas de atividades e nem projeta
finalidades, o segundo estabelece uma ação criadora face à natureza, agindo teleologicamente,
autoconstruindo-se como um ser de projetos, conquistando a sua humanidade.
O conhecimento humano apresenta, com efeito, a propriedade singular de ser um
processo de acumulação qualitativa segundo o qual a realidade se reorganiza na
mente numa rede de relações abstratas e em série classificatórias que tornam o
conhecimento para o ser humano o mais eficaz e poderoso instrumento de acesso ao
mundo exterior e de presença ativa em meio às coisas. Acumulado qualitativamente
e organizado, o conhecimento assume a forma de saber
(VAZ, 2002, p. 45,
grifos do autor).
13
Nessa perspectiva, ao destacar o papel fundante da produção material na
reprodução da vida social e na incessante recriação de novas necessidades, Marx & Engels
apontam o trabalho como o eixo mediador da ultrapassagem do mero condicionamento
natural para a criação. É por meio do trabalho que o homem se autoproduz, transforma a si
mesmo, estabelecendo relações com a natureza, com os outros homens e consigo mesmo.
Nesse sentido, Lukács (apud BARROCO, 2000, p. 44), destaca que
com justa razão se pode designar o homem que trabalha, ou seja, o animal tornado
homem, através do trabalho, como um ser que dá respostas [...] na medida em que
[...] ele generaliza transformando em perguntas seus próprios carecimentos e suas
possibilidades de satisfazê-los (grifo do autor).
Essa característica ontológico-social do trabalho na reprodução do ser social é o
que dá ao homem um caráter universal e sócio-histórico; e permite o desenvolvimento de
categorias que operam dialeticamente, como sociabilidade, consciência, universalidade e
liberdade, que, por sua vez, instituem a diferença entre o ser social e os outros seres da
natureza. Para Arendt (1993, p.31),
a atividade do labor não requer a presença de outros, mas um ser que “elaborasse”
em completa solidão não seria humano mas um animal laborans no sentido mais
literal da expressão. Um homem que trabalhasse e fabricasse e construísse num
mundo habitado somente por ele mesmo não deixaria de ser um fabricador, mas não
seria um homo faber: teria perdido a sua qualidade especificamente humana e seria,
antes, um deus – certamente não o criador, mas um demiurgo divino como Plantão o
descreveu em um dos seus mitos. Só a ação é prerrogativa exclusiva do homem;
nem um animal nem um deus é capaz de ação, e só depende inteiramente da
constante presença de outros.
Através da sociabilidade o homem recria necessidades e novas formas de
satisfazê-las, transformando a si mesmo e ao mundo natural. A consciência surge na medida
em que o trabalho implica um dado conhecimento da natureza e a valoração dos objetos
necessários ao seu desenvolvimento. Por meio do trabalho, o homem se autodetermina,
evidenciando sua capacidade racional e valorativa, podendo escolher entre alternativas por ele
criadas, traçar seu destino, fazer escolhas, fundando, assim, o núcleo gerador da liberdade
1
(BARROCO, 2003).
É por meio desse agir racional, direcionado a um resultado, que se efetiva a
práxis, concebida como “uma ação consciente sobre a natureza, criando um produto antes
1
Apesar desse caráter emancipador, Marx (1980) analisa que no contexto da sociedade capitalista, o trabalho se
realiza de modo a negar suas potencialidades socializadoras e emancipadoras, de modo a subsumir-se com os
componentes de alienação, fetichismo e reificação, invertendo seu caráter de atividade livre, consciente,
universal e social, de modo que os homens não se reconhecem nele como sujeitos. Cria-se uma relação de
“estranhamento” entre o sujeito e o objeto, de modo que a riqueza socialmente produzida não é apropriada
materialmente e espiritualmente pelos sujeitos que a construíram.
14
inexistente. A práxis desenvolve-se fundamentalmente através do trabalho, assegurando a
(re)produção material e espiritual da vida humana” (BARROCO, 2000, p.44).
Segundo Castoriadis (apud AMORIM, 2006, p. 235) a práxis constitui
este fazer no qual o outro ou os outros são visados como seres autônomos e
considerados como o agente essencial do desenvolvimento de sua própria
autonomia. [...] Poderíamos dizer que para a práxis a autonomia do outro é, ao
mesmo tempo, o fim e o meio; a práxis é aquilo que visa o desenvolvimento da
autonomia como fim e utiliza para este fim a autonomia como meio.
Assim, a práxis “busca o bem coletivo e aposta na potencialidade da coletividade
como instância capaz de se transformar na convivência com o outro e em direção à autonomia
coletiva” (AMORIM, 2006, p. 236).
Como atividade social, cuja realização cria valores e costumes, ou seja, cria a
cultura e sua própria história, o trabalho produz a moral, cuja origem é dada pela capacidade
ética de criar valores que regulamentam a conduta dos indivíduos em sua convivência social.
A moral origina-se do desenvolvimento da sociabilidade; responde à necessidade
prática de estabelecimento de determinadas normas e deveres, tendo em vista a
sociabilidade e a convivência social. Faz parte do processo de socialização dos
indivíduos, reproduzindo-se através do hábito e expressando valores e princípios
socioculturais dominantes, numa determinada época histórica. Possibilita que os
indivíduos adquiram um “senso moral” (referido a valores, por exemplo, a justiça),
ou seja, tornem-se conscientes de valores e princípios éticos. Ao serem
internalizados, transformam-se em orientação de valor para o próprio sujeito e para
os juízos de valor em face dos outros e da sociedade (BARROCO, 2003, p.42).
Nessa direção, Adam Smith (2002) observa que o homem somente é capaz de
julgar sua própria conduta por estar em constante interação com outros homens, de modo que
suas paixões e interesses somente podem se tornar objeto de reflexão a partir dos juízos de
valor dos outros ao seu redor, tornando o homem seguro, se aprovado, ou inseguro, se
desaprovado socialmente. Assim, quando o indivíduo não é capaz de controlar seus
sentimentos passivos, suas paixões extravagantes, pode causar desordem na vida social, daí a
necessidade de se estabelecerem regras gerais que servem como padrão de conduta. Nesse
sentido, a moral origina-se quando o homem passa a ser parte de uma coletividade.
Em apoio a essa concepção, Chauí (1995) observa um ponto em comum entre as
duas principais correntes da tradição racionalista – a concepção intelectualista (segundo a qual
a vida moral depende do conhecimento, pois é somente por ignorância que fazemos o mal) e a
concepção voluntarista (que considera a vida moral como dependente de nossa vontade e da
disciplina para forçá-la rumo ao bem).
15
Nas duas correntes [...] há concordância quanto à idéia de que, por natureza, somos
seres passionais, cheios de apetites, impulsos e desejos cegos, desenfreados e
desmedidos, cabendo à razão (seja como inteligência no intelectualismo: seja como
vontade, no voluntarismo) estabelecer limites e controles para paixões e desejos
(Ibidem, p.251).
Assim, a moral aparece como trabalho da inteligência e/ou vontade para dominar
e controlar as paixões. Nesse processo, a relação associativa assentada no trabalho, para
viabilizar a existência humana, objetivou a moral como um meio de regulação das relações
dos homens, presente ao longo da história. Desse modo, divergindo de concepções que a
situam como um mero conjunto de princípios formais, intemporais e abstratos, a moral é
produto do homem concreto, ser real e histórico, representando uma forma de regulação das
relações dos indivíduos em uma dada comunidade (FORTI, 2006). Nesse sentido, Vásquez
(2004, p.70) aponta que “a moral cumpre uma função social bem definida: contribuir para que
os atos dos indivíduos ou de um grupo social desenvolvam-se de maneira vantajosa para toda
a sociedade ou para uma parte”.
No entanto, no cumprimento de sua função social, a moral pode servir também
como mecanismo a serviço daqueles que detém o poder, fazendo com que interesses
particulares apareçam como uma representação da coletividade. Em consonância com essa
análise, Marx & Engels (1989, p.98), ao examinarem a formação do Estado moderno a partir
da propriedade privada burguesa, concluem que o Estado “é a forma na qual os indivíduos de
uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a
sociedade civil de uma época”.
Na análise sobre o poder, Michel Foucault (1979) denomina de assujeitamento o
crescente controle do Estado na vida subjetiva dos indivíduos, por meio de técnicas e
instituições de controle cada vez mais eficazes. Para o autor, porém, existe lugar para
resistências ao poder em razão de nossa condição ontológica de seres livres, de modo que toda
ação de resistência é pela ampliação da liberdade e autonomia, sempre lutas que se
transmutam e modificam em razão da própria dinâmica social e dos processos históricos.
Por ser histórica
2
, a moral não pode ser tratada como um sistema normativo único,
válida para todos os tempos e para todos os homens, uma vez que o comportamento humano
prático-moral está sujeito a variação, de uma época para outra e de uma sociedade para outra.
2
Segundo Vásquez (2004), quando se procura a origem e a fonte da moral fora do homem concreto, ou seja, do
homem como ser histórico e social, segue-se três direções fundamentais: 1) procura-se fora do homem, num ser
que o transcende (Deus); 2) na natureza; 3) no homem em geral, enquanto ser abstrato, irreal, situado fora da
sociedade e da história.
16
Embora os atos morais sejam condicionados socialmente, não se reduzem à sua
forma social, coletiva e impessoal. Para que se possa falar propriamente do
comportamento moral de um indivíduo, é preciso que os fatores sociais que nele
influem e o condicionam sejam vividos pessoalmente, passem pela sua consciência
ou sejam interiorizados, porque somente assim poderemos responsabilizá-lo por sua
decisão e sua ação. Exige-se efetivamente que o indivíduo, sem deixar de ser
condicionado socialmente, disponha da necessária margem individual para poder
decidir e agir: somente com esta condição poderemos dizer que se comporta
moralmente (VASQUEZ, 2004, p. 31).
Portanto, é sujeito ético moral “somente aquele que sabe o que faz, conhece as
causas e os fins de sua ação, o significado de suas intenções e de suas atitudes e a essência dos
valores morais” (CHAUÍ, 1995, p. 241).
Quando refletida ontologicamente, a moral dá origem à ética. Embora, do ponto
de vista da procedência terminológica, os dois termos sejam sinônimos, ambos designando
fundamentalmente o mesmo objeto, seja o costume (ethos) socialmente produzido, seja o
hábito (hexis) do indivíduo de agir segundo o costume estabelecido e legitimado pela
sociedade,
a filosofia moderna pressupõe uma nítida distinção ou mesmo uma oposição entre as
motivações que regem o agir do indivíduo, impelido por necessidades e interesses, e
os objetivos da sociedade política, estabelecidos segundo o imperativo de sua
ordenação, conservação, fortalecimento e progresso. Foi provavelmente no clima
intelectual formado sob a influência dessa distinção que a significação do termo
Moral refluiu progressivamente para o terreno da práxis individual, enquanto o
termo Ética viu ampliar-se seu campo de significação passando a abranger todos os
aspectos da práxis social, seja em suas formas históricas empíricas, das quais se
ocupam as ciências humanas (Etnologia e Antropologia cultural); seja em sua
estrutura teórica, da qual segundo pensamos, deve ocupar-se a filosofia
(VAZ,
2002, p.15, grifos do autor).
De acordo com Vásquez (2004, p. 23), a ética “é a teoria ou ciência do
comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é ciência de uma forma específica
de comportamento humano”. Nesse sentido, cabe à ética explicar uma forma de
comportamento humano, tomando a prática da humanidade em seu conjunto como objeto de
sua reflexão.
A ética, portanto, não pergunta pelo ser, mas pelo dever-ser, relacionando-se à
tomada de posição em relação à realidade. Nesse sentido, a ética depara com uma série de
práticas morais já em vigor, de modo que ela não prescreve a moral, cabendo-lhe procurar a
essência desta, fornecendo a compreensão racional e objetiva de um aspecto real do
comportamento dos homens. Nesse processo, entram em discussão as diferentes formas e
concepções de mundo, homem e sociedade, bem como os diferentes valores, normas e
padrões de conduta que lhe são peculiares.
17
Vista desse modo, a ética “diz respeito ao comportamento moral, à reflexão sobre
os valores e princípios que orientam tal comportamento e à possibilidade de – através de uma
prática consciente – realizar escolhas e criar alternativas de valor que objetivem a liberdade”
(BRITES; BARROCO, 2000, p. 28).
Enquanto espaço de reflexão da moral e também um espaço da filosofia, a ética
deve buscar um “saber inteiro”, de totalidade; deve “ir às raízes”, buscando apreender a
essência dos fenômenos, indagando sempre o significado dos valores e para onde levam os
indivíduos, o que implica dizer que a reflexão ética pressupõe uma crítica dialética
(BARROCO, 1998).
Aplicada às profissões, a ética é percebida como reflexão que uma dada categoria
profissional pode fazer sobre si mesma, relativamente à sociedade. Nesse sentido, Simões
(1998) observa que nas sociedades pré-capitalistas não existia uma moral do trabalho, pois
não havia um sistema de normas especializadas, uma lei específica do trabalho, uma vez que
não existia a separação entre a vida privada e a comunitária, mas à medida que a divisão do
trabalho avançou, a moral passou a se revelar como forma de controle dos grupos de trabalho
sobre os indivíduos, via Estado. O fordismo e o taylorismo, por sua vez, já implantavam um
rígido controle pela própria natureza técnica e seriada do trabalho fabril, de modo que foi
sobre os processos de trabalho em que os profissionais desfrutavam de grande autonomia
técnica, os chamados profissionais liberais (médicos, engenheiros, advogados, assistentes
sociais
3
etc.) que os códigos de ética foram editados como instrumentos de controle via órgãos
estatais.
Os próprios profissionais começam a refletir e tomar consciência de que têm ou
devem ter certa moral, que existe difusamente entre eles, consciência de que há
certos padrões morais. Tomam ciência, fazem dela objeto de sua ciência, de sua
consciência; passam a estudá-la, a pesquisá-la, a apreender os comportamentos e
condutas profissionais, a tentar dissecá-los, a ver onde é que estão sendo
corporativistas, onde têm especificidade, e a perceber que aquela moralidade tem um
efeito de reunificação espiritual daqueles grupos de trabalhadores, quer dizer, que é
fundamental. A partir daí começam a apreender essas regras, a estudá-las [...] E
nesse nível de críticas sobre elas, passam a apreender o essencial e a sistematizar
3
Segundo Iamamoto & Carvalho (2003), embora no Brasil o Serviço Social seja regulamentado como uma
profissão liberal, não possui uma tradição de prática peculiar às profissões liberais na acepção que se utiliza do
termo. Ou seja, o assistente social não exerce autonomamente suas atividades, seja na disposição das condições
materiais e técnicas para o exercício do trabalho, ao estabelecimento da jornada de trabalho, ao nível de
remuneração ou ao estabelecimento do público que será atingido. Por outro lado, isso não exclui integralmente
alguns traços que caracterizam uma prática liberal, dentre os quais se destacam: a reivindicação de uma
deontologia (Código de Ética); o caráter não rotineiro da intervenção, possibilitando uma certa margem de
liberdade no exercício da funções institucionais; a existência de uma relação singular no contato direto com os
usuários, favorecendo a possibilidade se reorientar a forma de intervenção, conforme a maneira de se interpretar
o papel profissional e, ainda, a indefinição do “que é” ou do “que faz” o Serviço Social, o que pode ampliar o
campo de autonomia profissional de acordo com a concepção social do agente sobre sua prática.
18
padrões. Isso passa a ser a ética como uma ciência, cujo objeto é a moral. E, nesse
momento, já é o seu oposto, o seu contrário, porque uma é concreta e difusa, e a
outra é formal, científica, sistematizada (SIMÕES, 1998, p. 69).
Desse modo, o código de ética passa a ser uma exigência legal de regulamentação
da profissão, uma necessidade de legislar sobre o comportamento dos profissionais. A ética,
por sua vez, serve como um método de direcionamento em relação à vida e aos interesses da
coletividade, pois dá à sociedade visibilidade acerca da direção e da qualidade do exercício
profissional, requerendo a sistematização do posicionamento e compromissos com
determinados valores e princípios. Vincula-se aos projetos sócio-políticos em sua luta pela
hegemonia, daí porque tem uma função política.
Paiva et al.(1998) identificam duas dimensões da ética: como espaço de reflexão
teórica sobre os fundamentos da moralidade e como resposta consciente de uma categoria
profissional face às implicações ético-políticas de seu agir profissional. Nesse sentido, como
reflexão crítica, a ética consegue apreender, na realidade concreta, as tendências e
possibilidades para fazer vigorar valores que servem de orientação para uma intervenção
consciente, capaz de operar projetos transformadores. Quando, porém, não exerce essa
função, pode contribuir para a reprodução de componentes alienantes; fundamentar projetos
conservadores; não conseguir ultrapassar a imediaticidade dos fatos e ainda fortalecer a
dominação, impedindo que os homens se auto-reconheçam como sujeitos éticos. Em suma:
“se a reflexão ética perder o seu compromisso com valores, ela deixa de ter sentido [...]; se
abrir mão da crítica, deixa de se constituir numa reflexão ética para se tornar uma doutrina”
(BARROCO, 2003, p.56).
Sendo assim, a reflexão ética supõe a suspensão da cotidianidade; uma vez que a
vida cotidiana é um campo privilegiado da reprodução da alienação, dada a repetição acrítica
dos valores, a assimilação acrítica de preceitos e modos de comportamento e pensamento
repetitivo e ultrageneralizador, fundamentado em juízos provisórios
4
.
Partindo desse panorama geral, refletiremos a seguir sobre os rebatimentos da
ética na trajetória do Serviço Social brasileiro e, de modo particular, na prática profissional,
levando em conta que; no campo profissional a ética recebe determinações que antecedem a
escolha pela profissão, uma vez que fazem parte de uma socialização primária que tende a
reproduzir determinadas configurações éticas dominantes e se repõem no cotidiano por meio
das relações sociais mais amplas.
4
Heller (1989) aponta quatro formas de suspensão da vida cotidiana, de passagem do meramente singular ao
humano genérico: o trabalho, arte, a ciência e a moral.
19
É oportuno, porém, esclarecermos o que compreendemos por prática profissional,
antes de iniciar o percurso pela gestão e desenvolvimento do Serviço Social no Brasil, num
esforço particular de trabalhar as referências ético-morais que configuraram a sua prática no
movimento de reprodução da sociedade do capital, até a construção do projeto ético-político
profissional.
Ao se falar em “prática profissional” usualmente tem-se em mente “o que o
assistente social faz”, ou seja, o conjunto de atividades que são desempenhadas pelo
profissional. A leitura hoje predominante da “prática profissional” é de que ela não
deve ser considerada “isoladamente”, “em si mesma”, mas em seus
condicionantes” sejam eles “internos” – os que dependem do desempenho do
profissional – ou “externos” – determinados pelas circunstâncias sociais nas quais se
realiza a prática do assistente social. Os primeiros são geralmente referidos a
competências do assistente social como, por exemplo, acionar estratégias e técnicas;
a capacidade de leitura da realidade conjuntural, a habilidade no trato das relações
humanas, a convivência numa equipe interprofissional etc. Os segundos abrangem
um conjunto de fatores que não dependem exclusivamente do sujeito profissional,
desde as relações de poder institucional, os recursos colocados à disposição para o
trabalho pela instituição ou empresa que contrata o assistente social; as políticas
sociais específicas, os objetivos e demandas da instituição empregadora, a realidade
da população usuária dos serviços prestados, etc. Em síntese, a prática profissional é
vista como a atividade do assistente social na relação com o usuário, os
empregadores e os demais profissionais. Mas como esta atividade é socialmente
determinada, consideram-se também as condições sociais nas quais se realiza,
distintas da prática e a ela externas, ainda que nela interfiram (IAMAMOTO,
1998, p. 94, grifos da autora).
Assim, a interpretação com a qual lidamos ultrapassa a mera análise do exercício
profissional em si mesmo, antes busca situar o trabalho do assistente social no âmbito dos
processos e relações de trabalho, que se organizam de acordo com os interesses econômicos,
sócio-políticos e institucionais; em função dos quais as relações sociais se configuram e se
realizam, cujos rebatimentos incidem na profissão.
2 O rebatimento da ética na prática do Serviço Social brasileiro: a prática profissional
desnudada através dos códigos
Enquanto profissão, o Serviço Social surge configurado como um tipo de
especialização do trabalho coletivo no interior da divisão sócio-técnica do trabalho, inerente à
sociedade industrial. Trata-se, portanto, de uma profissão historicamente determinada,
construída no seio de relações sociais mais amplas
5
, o que significa dizer que suas referências
5
Iamamoto & Carvalho (2003) afirmam que, na perspectiva do capital e do trabalho, a reprodução das relações
sociais não se restringe à reprodução da força viva de trabalho e dos meios objetivos de reprodução. Envolve,
também, a reprodução da produção espiritual, ou seja, das formas de consciência social: jurídicas, religiosas,
artísticas ou filosóficas, por meio das quais se toma consciência das mudanças ocorridas nas condições materiais
20
teórico-metodológicas, filosóficas e técnico-operativas vão sendo definidas a partir do próprio
movimento histórico, associando-se a implicações de ordem ética e política. Ética, porque
supõe escolhas de valores; política porque se buscam criar condições para a defesa desses
valores.
Nesse sentido, a profissão deve ser considerada sob dois ângulos, enquanto
expressões do mesmo fenômeno: a) como realidade vivida e representada na e pela
consciência de seus agentes profissionais, manifestada através do discurso teórico-ideológico
sobre o exercício profissional; b) como atividade socialmente determinada pelas
circunstâncias sociais e objetivas que vão configurar a direção social adotada pela prática
profissional, que tanto condiciona como ultrapassa a vontade e/ou consciência do profissional
(IAMAMOTO; CARVALHO, 2003).
No contexto de seu desenvolvimento no Brasil, nas primeiras décadas do século
XX, o Serviço Social surge como um prolongamento da Ação Social Católica, funcionando
como um veículo de doutrinação e propaganda do pensamento social da Igreja; cuja posição
política era de luta constante contra o socialismo e o liberalismo, bem como a defesa
intransigente das relações sociais vigentes. Desse modo, o Serviço Social tem por objetivo
remediar as deficiências dos indivíduos e das coletividades, decorrentes de certas
circunstâncias e não de um problema estrutural. O discurso é, então, doutrinário e apologético,
tendo por base o pensamento católico europeu, que, desde o século XIX, na Europa, havia
iniciado a sua intervenção na “desordem” decorrente da industrialização e desenvolvimento
do capitalismo, o qual passava do estágio concorrencial para o estágio monopolista e acirrava
as condições de miséria e exploração da classe operária
6
. Tal situação conferia uma
importante dimensão à “questão social”
7
, levando a Igreja a se posicionar em face dos riscos
que esse fenômeno poderia trazer à “moral e aos “bons costumes”. Dessa forma, sob o
imperativo ético do comunitarismo cristão e lutando ainda por sua legitimação dentro do
de produção. Nesse processo são desenvolvidas e recriadas as lutas sociais entre os agentes sociais envolvidos na
produção, que expressam a luta pelo poder, pela hegemonia das diferentes classes sociais sobre o conjunto da
sociedade.
6
No Manifesto do Partido Comunista Marx & Engels (1988) já defendiam que o preço médio que se paga pelo
trabalho assalariado é o mínimo de salário necessário para que o operário viva como operário, para que conserve
e reproduza sua vida. Embora não defendessem a abolição dessa apropriação pessoal dos produtos do trabalho,
indispensável à manutenção e reprodução da vida humana, os autores chamam a atenção para o caráter miserável
desta apropriação que faz com que o operário só viva para aumentar o capital e só viva na medida em que o
exigem os interesses da classe dominante.
7
Por “questão social”, compreendemos as expressões do processo de desenvolvimento da classe operária e de
seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo o seu reconhecimento como classe por parte do
empresariado e do Estado. Representa a manifestação da contradição entre o proletário e a burguesia, a qual
passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade e repressão (IAMAMOTO; CARVALHO,
2003).
21
aparato do Estado, a Igreja impõe uma ação doutrinária baseada na justiça e na caridade, com
o objetivo de livrar o proletariado da influência socialista presente no movimento operário,
procurando harmonizar as classes em conflito.
O trabalho do assistente social consiste, assim, na adaptação do indivíduo ao meio
e do meio ao indivíduo, procurando detectar as causas do desajustamento social a partir das
deficiências acidentais, e não a partir de problemas estruturais.
Tais iniciativas atendiam a necessidades materiais concretas de doentes, órfãos,
viúvas, idosos, desocupados etc. A prática se fazia com a criação de equipamentos,
tais como orfanatos, patronatos, abrigos, centros assistenciais etc, configurando-se
como uma ajuda dos ricos aos pobres diante da impossibilidade de acabar com a
miséria (MOTA, 1998, p. 31).
As primeiras escolas de Serviço Social (1936, em São Paulo, e 1937, no Rio de
Janeiro) aparecem como exigência de preparo adequado e metódico na evolução dos métodos
de assistência, levando-se em conta quatro pontos: formação científica (dada através de
disciplinas como Sociologia, Psicologia, Biologia e Moral); técnica (estudo da natureza do
Serviço Social, noções de técnicas auxiliares e da moral profissional); prática (a
aprendizagem do “como fazer”) e pessoal (o curso deveria dar ao assistente social uma
formação moral muito sólida). Existiam ainda os círculos de estudo e a orientação individual
(AGUIAR, 1989).
Nesse período, a intervenção do assistente social não consegue ultrapassar o
imediatismo das demandas institucionais colocadas à sua prática em razão dos aportes
teóricos utilizados para explicar a realidade social, a saber: o neotomismo, o pensamento
conservador e o positivismo.
O neotomismo, que havia se tornado a base filosófica da doutrina social da Igreja
Católica a partir do final do século XIX, retomava as idéias centrais de Tomás de Aquino,
cuja ética voltava-se para a perfeição e a ordem.
Essas duas categorias de natureza filosófica mostram-se como fundamentais na
Ontologia tomásica, encontram em sua Antropologia uma realização exemplar e, por
conseguinte, orientarão em profundidade a construção da ética. Perfeição e ordem
como categorias ontológicas são noções correlativas, pois a ordem não é senão a reta
disposição dos seres segundo a escala do grau de perfeição que compete a cada um.
Essa concepção da ordem, herdada de Santo Agostinho e de proveniência
neoplatônica, é conjugada em Tomás de Aquino com a noção aristotélica de
perfeição como ato, e é assim que encontra uma realização privilegiada na ação
humana que recebe o selo de sua perfeição – ou de sua plena realização como ato –
ao inserir-se livremente na ordem do universo – ou na ordem da natureza – que é a
norma objetiva da ação. Ela é, então, por excelência, ação ética (VAZ, 2002, p. 216,
grifos do autor).
22
A ética de Tomás de Aquino é, portanto, a ética das virtudes pensada num
horizonte metafísico. O neotomismo, por sua vez, passa a ser um expoente intelectual de
renovação do pensamento da Igreja com vistas a fazer rebater as pressões liberais e científicas
e o projeto comunista, presentes na virada do século XIX para o século XX.
O neotomismo [contribui] para quebrar a resistência do trabalho à nova
racionalidade produtiva quando difunde a idéia de que a construção do “bem
comum” depende da boa conduta de todos e de cada um como medida para
conquista da perfeição e da liberdade. Naturaliza as desigualdades sociais como
parte inerente da natureza humana, porque derivadas do pressuposto da propriedade
privada como necessidade – que para a análise marxista é fundamento dessa
desigualdade; para o neotomismo é uma extensão da pessoa, e como tal, necessária
para sua proteção. Deste modo, o neotomismo defende um modelo cristão de
sociedade, que se consubstancia nas condições históricas da ordem burguesa, tendo
em vista torná-la “mais justa e fraterna”, cuja concretização passa por um trabalho
de evangelização das massas, como exigência para o desenvolvimento, na vida
social, do senso de liberdade e fraternidade. Sob esse ponto de vista, a questão social
traduz-se como deterioração dos valores morais, colocando-se a necessidade de
recuperá-los mediante uma ação humanizadora dessas relações (ABREU, 2004,
p.51).
O conservadorismo, por sua vez, ganha força no pensamento contemporâneo, em
oposição ao racionalismo e ao individualismo que se vinculavam à autonomia do indivíduo e
ao progresso social e moral. Com um olhar voltado para o passado, valorizam-se elementos
como: hierarquia, status, tradição, corporativismo, autoridade, simbologismos da religião e de
pequenos grupos, como a família e a comunidade (BRITES; SALES, 2003).
Já o positivismo, sistema teórico inaugurado por Augusto Comte, opera uma
rígida separação entre a sociologia e a filosofia. Para essa corrente de pensamento, a
sociologia positiva deve ocupar-se com a investigação dos fatos, com conhecimento
utilizável, com a organização e com os fatos da ordem social vigente, ao invés de se ocupar
com ilusões transcendentais, com a contemplação ociosa. Embora não rejeite a necessidade de
correção e aperfeiçoamento, exclui qualquer possibilidade de superação ou negação dessa
ordem, pois, pela sua natureza, tende “a consolidar a ordem pública, pelo desenvolvimento de
uma sábia resignação, ante as conseqüências das desigualdades sociais, apreendidas como
fenômeno inevitável” (IAMAMOTO, 1998, p. 222, grifo da autora).
Portanto, as concepções de homem e sociedade legitimadas por essa tríade
eliminavam, no âmbito da formação e do exercício profissional, a compreensão das
desigualdades da sociedade capitalista e suas condições de exploração; o caráter contraditório
da prática profissional e a dimensão ético-política da profissão, em nome de uma neutralidade
axiológica, que legitimava a suposta face humanitária do Estado e do capital (BRITES &
SALES, 2003).
23
Com base nessa mesma tríade, a formação profissional fornecida nas primeiras
escolas de Serviço Social vai enfatizar a necessidade do estudo da filosofia e da ética como
fornecedores da base moral do comportamento profissional, reproduzindo, por meio desses
aportes teóricos, os princípios éticos que balizarão a prática profissional.
Esse arranjo teórico doutrinário, matizado em sua evolução por influências
específicas, é o fio que percorre toda a trajetória do conservadorismo profissional,
estreitamente imbricado ao bloco sócio-histórico que dá sustentação política ao
Serviço Social na sociedade brasileira. Esse fio conservador coesiona tanto as bases
de interpretação da sociedade, o campo dos valores norteadores da ação
profissional, assim como o aperfeiçoamento de seus procedimentos operativos.
Permite à profissão ir evoluindo seus fundamentos científicos e técnico-
interventivos, sem questionamentos que atinjam os pilares da ordem burguesa.
Enquanto esta é naturalizada, no campo dos valores preservam-se as suas raízes na
filosofia metafísica, alimentando um programa de ação de cunho conservador,
voltado para reformas parciais no nível dos indivíduos, grupos e “comunidades”, na
defesa da pessoa humana, do seu desenvolvimento integral e do bem comum
(IAMAMOTO, 1998, p. 219, grifos da autora).
Sob tais condições, institui-se um ethos profissional cuja moral e sustentação
filosófica se expressarão formalmente nos primeiros Códigos de Ética.
Uma constatação inicial desse fato se dá na primeira formulação ética do Serviço
Social brasileiro, datada de 1947, com a elaboração do primeiro Código de Ética, o qual é
marcado por um profundo conservadorismo visível na preocupação centrava nos deveres e na
formação moral dos profissionais, revelando a função ideológica da ética na busca de
legitimação de um modo de ser passivo, subalterno e reprimido, fruto do pensamento católico
tradicional.
Sobre as principais noções teórico-filosóficas presentes nesse documento, Brites
& Sales (2003) observam que, sob a forma de princípios e diretrizes ético-morais estão traços
como: “respeito à lei de Deus”, “bem comum”, dignidade da pessoa humana” e “caridade
cristã”. Nas relações profissionais, a orientação era que se evitasse “fazer quaisquer alusões
ou comentários desairosos sobre a conduta de colega”.
Nesse período, a profissão é tratada como algo homogêneo, e a ação profissional é
tida como “vocação” a ser exercida por indivíduos dotados de um perfil ético-moral. A ética é
concebida como a “ciência dos princípios e das normas que devem seguir para fazer o bem e
evitar o mal” (BARROCO, 2003, p.96).
Os usuários são vistos como pessoas humanas desajustadas e a ação profissional
tem como objetivo eliminar esses “desajustes sociais”, através de uma intervenção
24
moralizadora de caráter individual e psicologizante, uma vez que as demandas por direitos
sociais eram consideradas “patologia”. Agindo assim, o Serviço Social reproduzia uma ética
profissional preconceituosa e deixava de viabilizar o que, do ponto de vista ético, seria de sua
responsabilidade: concretizar, objetivamente, os direitos dos usuários.
Nesse mesmo período, meado da década de 1940, no bojo do processo de
desenvolvimento das grandes instituições sociais geridas ou subsidiadas pelo Estado Novo,
sobre as quais se centralizava a política assistencial, cria-se um mercado nacional de trabalho
para os assistentes sociais. A partir de então, o Serviço Social se institucionaliza e se legitima
como profissão, avançando em relação à sua origem no interior da Igreja. O pano de fundo
para o desencadeamento desse processo é a chamada “questão social”, ou seja, o ingresso do
operariado no cenário político, exigindo com suas lutas e reivindicações, o reconhecimento
como classe por parte do Estado e do empresariado.
Gisálio Filho (1982) observa que, até 1930 a “questão social” não aparecia no
discurso dominante senão como fato excepcional e episódico. Essa problemática se
expressava apenas nas aspirações pelo reconhecimento das entidades sindicais e por uma
legislação de proteção ao trabalho e de assistência ao trabalhador. Tudo isso, porém, era
repelido como caso de polícia, daí porque se popularizou, para a 1ª República das oligarquias
agrárias, a sentença “a questão social é um caso de polícia”, aspecto que, segundo Otávio
Ianni (1992), nunca deixou de ocorrer, mesmo depois da década de 30, já nos anos do
populismo e do militarismo.
Quando a “questão social” ganhou as ruas e um número cada vez maior de
operários se encarregou de dar visibilidade a real dimensão do problema, o Estado viu-se
obrigado a incorporar, ainda que subordinadamente, alguns interesses das classes subalternas,
de modo a não afetar os interesses da classe capitalista. Assim, a intervenção do poder público
nas questões trabalhistas crescerá continuamente visando à desmobilização/despolitização da
classe operária, culminando com a Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943.
A partir de 1930, portanto, a “questão social” se transforma em questão política,
requerendo soluções mais sofisticadas de dominação, para além do poder de polícia. Desse
modo,
Passam a lançar mão de técnicos qualificados na área de “relações humanas” – entre
eles o Assistente Social – para a implementação de políticas de pessoal, diante da
necessidade de racionalização da produção e do trabalho, exigidas pelo
aprofundamento do processo de industrialização nos moldes do grande capital. À
vigilância dos operários no interior da fábrica passam a ser articulados mecanismos
de persuasão que contribuam para a garantia da organização e regulamentação das
relações de trabalho, no sentido de adaptar o trabalhador aos novos métodos de
25
produção que potenciam a extração de trabalho excedente (IAMAMOTO &
CARVALHO, 2003, p. 82, grifo nosso).
Nesse contexto, o assistente social passa a atuar junto à classe trabalhadora, tendo
a sua demanda, porém, advinda do patronato, que é quem o remunera, estabelecendo uma
disjunção entre intervenção e remuneração. Daí decorre também uma das linhas divisórias
entre uma atividade social voluntária e a atividade profissional que se estabelece por meio de
um contrato, mercantilizando a força de trabalho.
Como profissão, o Serviço Social vai situar-se como “uma atividade auxiliar e
subsidiária no exercício do controle social e na difusão da ideologia da classe dominante
entre a classe trabalhadora (Idem, 2002, p. 100, grifo da autora). Assim, por meio de um
posicionamento moralizador face às expressões da “questão social”, o Serviço Social capta o
homem de maneira abstrata e genérica e aceita, sem nenhum questionamento, o significado da
sua “função social” atribuídos pelo Estado e pelo empresariado no processo de expansão
monopolista do capital.
O conjunto dessas influências leva o Serviço Social a pautar-se por uma crítica
romântica à sociedade capitalista, uma coordenação de ordem moral ao mundo
burguês, incapaz tanto de compreender o caráter histórico-progressivo da ordem
estabelecida quanto de criticá-la em suas bases históricas, porque estas são
soterradas pela análise (Idem, 1998, p. 220, grifos da autora).
Nesse contexto, a prática do Serviço Social é visceralmente permeada por um
jogo de forças, subordinando-se, historicamente, àqueles que são dominantes do ponto de
vista político, econômico e ideológico. A tutela social que os assistentes sociais irão manter
com os usuários dos serviços será vista como um ato de humanismo, como necessidade cristã,
sem qualquer ligação com a correlação de forças sociais e com os confrontos de classes. Do
ponto de vista ético, tal particularidade vai se explicitar nas noções presentes na primeira
formulação ética discutida anteriormente (Código de Ética de 1947), as quais “conformam um
amálgama de humanismo cristão abstrato e incipiente positivismo, condensados por uma
lógica formal e profundamente conservadora” (BRITES; SALES, 2003, p.27).
Desconhecendo o antagonismo de classes, a prática profissional se caracteriza
como uma forma de intervenção ideológica na vida da classe trabalhadora, com base na
atividade assistencial, visando ao enquadramento dos trabalhadores nas relações sociais
vigentes, dispensando-lhes um tratamento sócio-educativo, de cunho doutrinário e
moralizador. Nessa lógica, o assistente social cumpre função legitimadora, uma vez que a
26
orientação político-ideológica de sua prática, desprovida de qualquer criticidade, restringia-se
à superfície, reiterando pretensos atos técnicos a alienação do trabalhador.
A profissão não se caracteriza apenas como nova forma de exercer a caridade, mas
como forma de intervenção ideológica na vida da classe trabalhadora, com base na
atividade assistencial: seus efeitos são essencialmente político: o enquadramento dos
trabalhadores na ordem social vigente, reforçando mútua colaboração entre capital-
trabalho (IAMAMOTO, 2002, p. 20).
Em linhas gerais, o Serviço Social emerge como atividade de bases mais
doutrinárias que científicas, mantendo seu caráter técnico-instrumental voltado para uma ação
educativa entre o proletariado urbano, articulando o discurso humanista aos princípios da
modernização presente nas Ciências Sociais. Nesse sentido,
As questões defrontadas na prática são remetidas à solução de situações-problema,
de casos individuais ou, quando muito, de grupos ou segmentos da população de
baixa renda. Com isto, muitas vezes, os insucessos da ação são compreendidos como
uma deficiência técnica do desempenho profissional (SPOSATI, 2003, p. 44).
A partir daí, é possível identificar algumas características da prática profissional
que vão conformar um perfil peculiar ao assistente social: trata-se de um profissional que se
dedica ao planejamento, operacionalização e viabilização de serviços sociais à população;
exerce funções tanto de suporte à racionalização do funcionamento de organismos estatais,
paraestatais ou privados, como funções técnicas propriamente ditas; dispõe de poder,
atribuído institucionalmente, de selecionar os que têm ou não direito de participar dos
programas propostos, devido à incapacidade da rede de atender a todo o público (age como
“fiscalizador da pobreza”, por meio de “triagens”, “seleções sócio-econômicas” e “visitas
domiciliares”); age no sentido de persuadir, mobilizando o mínimo de coerção explícita para o
máximo; e adesão (ao que se soma a “ação educativa” que incide sobre valores,
comportamentos e atitudes dos usuários dos serviços, como também a estratégia de
individualização dos atendimentos, com vistas a aliviar tensões e insatisfações, submetendo a
população ao controle institucional); e realiza a distribuição de materiais, sendo a solicitação
do usuário vista como manifestação de carência e não como direito (IAMAMOTO, 2002).
O cumprimento das normas burocráticas passa a compor a lógica do Serviço
Social e o objeto do profissional passa a ser não o problema social, mas a ordem institucional.
Os direitos à cidadania são vistos como verdadeiros favores que se prestam aos indivíduos
necessitados das instituições, sendo que os profissionais passam a acomodar-se a elas,
27
identificando-se com os seus objetivos. Transformam-se, assim, em simples executores,
acomodando-se totalmente às funções determinadas pelas normas institucionais (FALEIROS,
2001).
No contexto da década de 1960, período em que, a nível mundial, se assiste ao
declínio do crescimento da economia capitalista e amplos movimentos sindicais se
entrecruzam com movimentos sociais e culturais diversificados, o Serviço Social latino-
americano, em consonância com esse contexto, vivencia a crise da profissão. Questiona-se seu
nível de qualificação no mundo acadêmico; a inadequação de sua metodologia (Serviço Social
de caso, grupo e comunidade) e dos procedimentos tradicionais na prática profissional; o
papel da profissão em face das expressões da “questão social” e a pertinência de seus
fundamentos teóricos.
Surge, assim, um movimento social crítico das bases conservadoras da profissão,
conhecido como Movimento de Reconceituação, que traz em seu bojo a proposta de ruptura
com o “Serviço Social Tradicional” e a análise crítica do capitalismo, propiciando alterações
nas concepções adotadas de Homem/Sociedade/Estado e, por conseguinte, mudanças nos
referenciais teóricos e éticos para a profissão. Estes, porém, somente vieram a ser objetivados
no Código de Ética de 1986, em razão de o movimento ter sido asfixiado pelas ditaduras
latino-americanas, conforme observa Netto (2005).
Uma clara constatação desse fato pode ser observada em 1965, quando em plena
efervescência do Movimento de Reconceituação, é sancionado um novo Código de Ética
profissional imbuído de noções e valores tradicionais, de cunho conservador e cristão. Assim
como o Código que o precedeu, tratava-se de um instrumento que buscava a adequação da
prática profissional à ordem estabelecida, na defesa do status quo. Na prescrição moralista
imposta, o assistente social devia aceitar passivamente a autoridade institucional, intervindo
em face das transgressões à ordem social. Cumpria, portanto, ao profissional contribuir para o
bem comum, capacitando indivíduos, grupos e comunidades para uma melhor integração
social, estimulando a participação desses no processo de desenvolvimento (referida à
ideologia desenvolvimentista).
Embora conservando a base filosófica tomista e não considerando criticamente as
contradições sociais, é possível identificar alguns avanços desse Código em relação ao que o
precedeu. Nele a ética é relacionada às demandas decorrentes do mundo moderno, onde a
profissão adquire amplitude técnica e científica. Desse modo, o Serviço Social já não é mais
tratado como uma atividade humanista, mas como profissão liberal, de natureza técnico-
científica. Também os deveres profissionais já não se apresentam como decorrência de um
28
compromisso religioso, mas de uma obrigação formal estabelecida pela legislação à qual a
profissão é submetida (a regulamentação da profissão se efetivara em 1957). Outro avanço é o
reconhecimento do pluralismo profissional, ao se explicitar que o Código destinava-se a
profissionais de diferentes credos e princípios filosóficos, devendo ser aplicável a todos. Há
ainda a defesa dos princípios democráticos, embora na perspectiva de luta pelo
estabelecimento de uma ordem social e justa. Desse modo, crenças e expectativas
desenvolvimentistas na justiça e no projeto modernizador do Estado, predominantes à época,
se fizeram presentes nesse instrumento normativo.
Enquanto isso [...] a prática do Serviço Social inscrevia-se nas organizações
predominantemente (não exclusivamente) como prática burocrática, formal,
institucionalizada, marcada por relações estritamente burocráticas e tecnocráticas,
dentro do processo que podemos chamar de taylorista / clientelista da atuação.
Taylorista porque exigia a obediência às normas estabelecidas e clientelista na
relação com os de baixo, atendendo a demandas de forma muitas vezes
assistencialista, no “caso a caso” (FALEIROS, 2006, p. 27, grifo do autor).
Assim, durante a ditadura militar acentuou-se o processo tecnocrático no exercício
profissional. Durante todo o final da década de 1960 e início da década de 1970 a metodologia
do Serviço Social, predominante nas práticas institucionalizadas, foi marcada pelo processo
de planejamento, evidenciado na elaboração de relatórios, avaliação de metas, de eficiência de
resultados, construindo o que Netto (2002) denomina Perspectiva Modernizadora do Serviço
Social.
A racionalidade burocrático-administrativa com que a “modernidade conservadora”
rebateu nos espaços institucionais do exercício profissional passou a requisitar do
assistente social uma postura ela mesma “moderna”, no sentido da compatibilização
do seu desempenho com as normas, fluxos, rotinas e finalidades dimanantes daquela
instituição. A prática dos assistentes sociais teve de revestir-se de características –
formais e processuais – capazes de possibilitar, de uma parte, o seu controle e sua
verificação segundo critérios burocrático-administrativos das instâncias hierárquicas
e, doutra, a sua crescente intersecção com outros profissionais [...]. Sinteticamente, o
fato central é que, no curso deste processo, mudou o perfil dos profissionais
demandado pelo mercado de trabalho que as condições novas postas pelo quadro
macroscópico da autocracia burguesa faziam emergir: exige-se um assistente social
ele mesmo “moderno” – com um desempenho onde traços “tradicionais” são
deslocados e substituídos por procedimentos “racionais” (Ibidem, p.123).
As diretrizes conservadoras da profissão novamente serão verificadas no Código
de 1975, que não somente reafirma o conservadorismo tradicional, como o faz na direção de
uma adequação às demandas da ditadura, consolidada a partir de 1968. Nesse sentido, são
excluídas as duas referências presentes no Código de 1965: a democracia e o pluralismo.
29
Aprofundam-se, sobretudo, os vínculos teórico-metodológicos do Serviço Social
com o estrutural-funcionalismo, expressando o adensamento da lógica racionalista,
cientificista, asséptica e a-histórica, como parâmetros técnico-operativos ao
desencadeamento da prática profissional (BRITES ; SALES, 2003, p.34).
Desse modo, até o Código de Ética de 1975, as configurações do ethos
profissional condicionam a imagem e auto-representação do Serviço Social tradicional,
atrelado aos princípios norteadores da profissão pré-movimento de reconceituação: uma
profissão mediada por valores, com forte apelo ético-moral. A prática profissional permanece,
assim, inteiramente preocupada em “educar” os que não se encontram ajustados à sociedade,
havendo certa tendência a solucionar os problemas sociais numa perspectiva centrada no
indivíduo, desconectada da estrutura social.
De acordo com Netto (2002), até o final de década de 1960, entrando pelos anos
1970, a autocracia burguesa, sob o comando do grande capital, continuou investindo na
reintegração das formas tradicionais de profissão.
Tudo indica que este componente atendia a duas necessidades distintas: a de
preservar os traços mais subalternos do exercício profissional, de forma a continuar
contando com um firme estrato de executores de políticas sociais localizadas,
bastante dócil e, ao mesmo tempo, de contrarrestar projeções profissionais
potencialmente conflituosas com os meios e os objetivos que estavam alocados às
estruturas organizacional-institucionais em que se inseriam tradicionalmente os
assistentes sociais (Ibidem, p.118).
É somente na transição dos anos 1970 aos anos 1980, no contexto de
reorganização política da sociedade civil, que o Serviço Social vai evidenciar a construção de
um novo projeto profissional de recusa e crítica ao conservadorismo da profissão; até então
caracterizada por uma prática “empiricista, reiterativa, paliativa e burocratizada, orientada por
uma ética liberal-burguesa que [...] visava enfrentar as incidências psicossociais da ‘questão
social’ sobre indivíduos e grupos” (NETTO, 2005, p.6).
As bases históricas para o adensamento da oposição ao conservadorismo
profissional são dadas pela crise da ditadura brasileira no final da década de 1970, e,
nos anos 1980, pelas lutas democráticas e reorganização política dos trabalhadores e
movimentos populares, nos partidos, sindicatos, associações, instituições culturais e
profissionais (BARROCO 2004, p. 28).
30
O III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado em São Paulo no ano
de 1979, vem marcar essa postura de ruptura com a tradição, sendo chamados para compor a
mesa do evento, não os representantes do governo, mas os dos trabalhadores. Promoveu-se ali
um amplo debate sobre a atuação dos assistentes sociais no âmbito institucional, bem como
sobre as dificuldades de se criar uma nova prática voltada para os interesses dos usuários dos
serviços para a democratização e para a ampliação dos direitos sociopolíticos e civis.
No que se refere à prática do assistente social, um dos pontos abordados no
Congresso tratou da importância do trabalho conjunto com outros profissionais, sendo que a
prática precisava ser compreendida como prática histórica, não ser clandestina e nem
composta por “brechas”. Desse modo, era necessário à profissão ter um projeto político
próprio, voltado para os interesses da população, buscando superar o empirismo e tendo
clareza do que estava presente no interior da classe profissional (SILVA, 2004).
A partir daí, setores críticos do Serviço Social, respaldados na teoria marxista,
assumem a vanguarda da profissão, fazendo avançar um perfil crítico e transformador capaz
de trazer alterações tanto na produção quanto na prática profissional.
À medida [...] que os assistentes sociais foram se dando conta da leitura crítica da
sociedade, passaram a questionar o seu aparato técnico de trabalho, mostrando como
o “racionalismo” usado na profissão criava um ocultamento da exploração social e
do engodo, implícitos numa ilusória busca de concretização do Estado de Bem-Estar
Social (SPOSATI, 2003, p. 50).
Inaugura-se, nesse contexto, a construção de um projeto de profissão crítico e
questionador, que resultou na aprovação do Código de Ética de 1986; claramente posicionado
a favor de uma prática profissional vinculada aos interesses da classe trabalhadora, que
aparece como valor ético-central, trazendo em seu bojo a recusa da ética da neutralidade e o
reconhecimento da dimensão política da prática profissional. Busca-se instituir, no plano
ético, uma nova legitimidade social, descortinando para a categoria o caráter histórico e
político dos valores éticos, o que marca a ruptura ética e ideopolítica do Serviço Social com a
perspectiva do neotomismo e do funcionalismo, influências tradicionais da profissão até
aquele momento.
Uma nova concepção de homem é instituída, alargando-se os horizontes éticos do
Serviço Social, na medida em que se afirma o caráter desse homem enquanto ser histórico,
social, prático e criador, deixando com isso de ser percebido como determinação da vontade e
autoridade divinas (PAIVA, 1998).
31
Superando a concepção do “técnico imparcial”, o Código de 1986 buscou garantir a
ação profissional pautada nos parâmetros de capacitação para pesquisar, elaborar,
gerir e decidir a respeito das políticas sociais e programas institucionais, o que
expressou um movimento do real, isto é, a busca de capacitação técnica, teórica-
ética e política desencadeada no processo de pós-reconceituação (BARROCO, 1988,
p.119
).
Tal opção refletia uma nova direção da profissão, oriunda da organização sindical
da categoria, do apoio aos movimentos e organizações da classe trabalhadora e da formulação
de um novo currículo mínimo para o Serviço Social, aprovado em 1983, que propiciou uma
formação marxista nas universidades. Tratava-se, portanto, de pensar o Serviço Social a partir
das classes, apontando para a necessidade de ruptura com uma prática controladora e
neutralizadora das lutas sociais, bem como para a necessidade de instrumentalização científica
e acadêmica com vistas a um profissionalismo de melhor qualidade em termos de
conhecimento e prática.
Entretanto, apesar desses avanços, com que se buscou instituir, no plano ético,
uma nova legitimidade profissional, o Código de Ética de 1986 mostrou-se insuficiente para
embasar a operacionalização jurídica e política dos pressupostos valorativos ali contidos, uma
vez que havia uma ênfase maior nas instruções teórico-metodológicas de como conduzir a
prática profissional. Era quase um ensinamento de como fazer e não do dever ser, ou seja, de
como a prática pode ser realizada de acordo com os princípios éticos defendidos no projeto
político-profissional (PAIVA; SALES,1998).
Disso resultou a revisão do Código, em 1993, com propostas de alterações que
evidenciam o amadurecimento teórico da profissão em seu trato político da questão ética,
explicitando o real significado social da profissão, e as implicações ético-políticas de sua
intervenção. Nesse mesmo ano é aprovada a Lei 8.862/93 regulamentadora da profissão, a
qual, juntamente com o Código; consolida o chamado projeto ético-político profissional,
compreendido como “um conjunto de valores e concepções ético-políticas por meio das quais
setores significativos da categoria dos assistentes sociais se expressam, tornando-o
representativo e, por vezes, hegemônico, quando democraticamente detém e direciona os
espaços fundamentais da profissão no país” (BRAZ, 2004, p.56).
Tratava-se de um esforço coletivo destinado a redimensionar o significado dos
valores e compromissos ético-políticos, na perspectiva de assegurar ao assistente social um
respaldo efetivo na operacionalização do Código enquanto referência e instrumento normativo
para o exercício profissional; por meio do qual a ética passa a indagar e nortear sobre as
32
condições objetivas no espaço de trabalho que favorecem ou limitam a concretização dos
valores e princípios éticos no cotidiano profissional.
A partir daí, dá-se o amadurecimento no campo da ética, tendo como pressuposto
o acúmulo anterior e o avanço possibilitado, dentre outros, pela apropriação da reflexão ética
marxista, orientados pela ontologia social de Marx. Nesse sentido, pensa-se nas funções do
Serviço Social não mais voltadas exclusivamente para a prestação de serviços, mas também
para a promoção e capacitação, mantendo e aprofundando o contato com os usuários. O
avanço da pesquisa passa a ser uma exigência tanto para a formação como para o exercício
profissional do assistente social.
Intenciona-se uma prática profissional crítica, consciente e participativa, baseada
no conhecimento da realidade em sua totalidade, compreendendo-a como um complexo de
fenômenos de conexão mútua e em movimento, como também se busca o conhecimento das
contradições ocorridas no âmbito da sociedade. Entende-se, portanto, que a prática do
assistente social deve estar articulada a projetos interdisciplinares mais amplos, no contexto
de uma sociedade de classes, e, a partir da aproximação com o marxismo, nota-se certa
motivação política pelas lutas populares ocasionadas pelo sentido ético.
É com a aprovação do Código de Ética Profissional de 1993 que a ética passa a
ser explicitamente reconhecida como componente do projeto profissional, assegurando-se
maior efetividade na operacionalização cotidiana do Código; enquanto referência e
instrumento normativo para o exercício profissional, com a explicitação de valores criados
historicamente, como a liberdade, a sociabilidade e a universalidade. Nesse sentido, a ética
passa a ser apreendida para além da profissão e de seu aspecto normativo.
A reflexão ética passa então a buscar uma base de fundamentação filosófica que
desvele a natureza ética do ser social e as diversas interpretações dessa natureza em diferentes
matrizes filosóficas. Nesse sentido, volta-se para temas como método crítico-dialético,
cultura, alienação, práxis, trabalho, colocando em evidência, pensadores como Sartre, Heller,
Arendt, Habermas, Lukács, Marx, autores da teoria política moderna e contemporânea.
Desse modo, privilegia-se uma formulação ética embasada no comprometimento
com a inserção do Serviço Social na totalidade concreta. O homem é apreendido como sujeito
ético (ou seja, sujeito racional capaz de escolher valores e ações que conduzam à liberdade,
entendida como um bem), autoconstruído através do trabalho (aqui concebido como principal
forma de práxis e base fundamental do processo de humanização) e da cultura, sendo que a
ética, como capacidade humana essencial objetivadora da consciência e da liberdade (que
funda o agir ético), não é entendida como um valor abstrato pois, para existir, “é preciso que
33
os homens tenham, objetivamente, condições de intervir conscientemente na realidade,
transformando seus projetos ideais em alternativas concretas de vivência da liberdade”
(CARDOSO, 2000, p, 21).
Quando a ética é tratada ontologicamente, de modo histórico e crítico, como saber
interessado e radical, pode propiciar uma elevação acima da cotidianidade,
permitindo a escolha consciente diante de contradições, possibilitando a um grupo
social, em determinado momento, uma sistematização/representação de seus valores
e projetos, contribuindo para fortalecer suas conquistas (BARROCO, 2004, p.31).
Assim, embora a característica dominante da vida cotidiana seja a espontaneidade,
é possível que a atividade cotidiana se eleve ao nível da práxis quando é atividade humana
genérica consciente, possibilitadora de transformação do cotidiano singular e coletivo
(HELLER, 1989). Afinal, como refere Iamamoto (2002, p. 102), “o cotidiano não está apenas
mergulhado no falso: está referido ao possível, e desvendá-lo é também descobrir as
possibilidades de transformar a realidade”.
É a partir do Código de 1993 que o projeto profissional passa a ser tratado
nacionalmente como “projeto ético-político”, sendo o ético e o político compreendidos como
uma unidade, embora seus componentes tenham naturezas ontologicamente distintas. Desse
modo, a dimensão política do projeto
nega o projeto societário, hoje hegemônico, e posiciona-se a favor da construção de
uma nova ordem sem dominação e exploração de classe, gênero e etnia. Tem ainda,
como princípios, a defesa dos direitos humanos, a recusa ao autoritarismo e ao
preconceito, e o reconhecimento do pluralismo. (SANT’ANA, 2000, p. 81).
Paiva & Sales (1996) identificam duas preocupações que nortearam a produção
desse novo Código: torná-lo um instrumento efetivo no processo de amadurecimento político
da categoria e de defesa da qualidade dos serviços prestados, e, complementarmente,
constituí-lo mecanismo eficaz de defesa do exercício profissional, fornecendo respaldo
jurídico à profissão.
O projeto profissional se inscreve nos chamados projetos societários, pois se trata
daqueles projetos que apresentam a auto-imagem da sociedade a ser construída, trazendo em
seu bojo determinados valores para justificá-lo e privilegiando certos meios para concretizá-
la. São, portanto, projetos coletivos (para o conjunto da sociedade). Em nossa sociedade, são
projetos de classe, por isso há uma dimensão política, envolvendo relações de poder.
34
Constituem ainda estruturas flexíveis e mutáveis porque se renovam segundo as conjunturas
históricas e políticas.
Enquanto projetos coletivos, os projetos profissionais
apresentam a auto-imagem da profissão, elegem os valores que a legitimam
socialmente, delimitam e priorizam os seus objetivos e funções, prescrevem normas
de comportamento dos profissionais e estabelecem as balizas de sua relação com os
usuários de seus serviços, com outras profissões, com as organizações e instituições
privadas e públicas (NETO, 1999, p. 95).
A dimensão ética do projeto profissional não se limita a normatizações morais
e/ou prescrições de direitos e deveres, mas envolvem escolhas teóricas, ideológicas e políticas
da categoria. Daí a importância do Código de Ética Profissional para o assistente social que
pretende desenvolver uma prática voltada para a defesa do projeto ético-político profissional.
O Código reafirma a defesa dos direitos sociais e da participação dos usuários no
contexto democrático, com uma definição mais clara dos direitos e deveres do profissional,
orientando-o quanto aos princípios fundamentais éticos e políticos em que deve se basear a
sua prática, sobre os quais discorreremos a seguir.
3 Refletindo sobre os princípios éticos da profissão
O Código de Ética de 1993 aprimora o perfil do assistente social em sua
competência teórica, ético-política, e prático-operativa, sendo resultado do significativo
acúmulo profissional desencadeado a partir da década de 1960 e consolidado na década de
1980, o qual se refletiu tanto no Código de 1986 como nas revisões curriculares de 1982 e
1996. Por meio dele se sistematizam o posicionamento e compromissos políticos da categoria
frente aos seguintes princípios fundamentais:
- Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas a ele
inerentes: autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais.
O contratualismo clássico, ao inaugurar o debate em torno do ideal da razão como
orientação para o comportamento político; e do acordo político como fundamento da
legitimidade do Estado, manifestou uma busca de garantias básicas para o exercício da
liberdade, de modo que a grande maioria apresentou argumentos de oposição e resistência ao
absolutismo. Em Rousseau (1978), por exemplo, a liberdade aparece como o mais
35
fundamental direito natural. Para ele, o homem nasce sob o signo da igualdade e da liberdade
e nesse estágio, a liberdade do homem se expressa através de suas escolhas, sendo que o
advento da propriedade é que transforma a liberdade em domínio.
Ao renunciarem ao estado de natureza em nome de uma liberdade formal, os
homens constituem o Estado como um eu comum unificador da sociedade, representante da
vontade geral, do qual cada homem toma parte na formulação e ao qual obedecerão; mas
permanecendo tão livres como antes, porque só obedecem à sua própria vontade,
transformada em geral. Assim, Rousseau pensou numa comunidade política que resgatasse os
contornos do que foi a comunidade de homens no estado de natureza e o seu mais básico
direito: a liberdade. Renunciar a ela seria o mesmo que renunciar à qualidade de homem.
John Rawls (2003), por sua vez, postula a liberdade como princípio fundamental
para a justa distribuição de bens. Segundo ele, cada pessoa deve ter um direito igual ao mais
abrangente sistema de liberdades básicas que seja compatível com o mesmo esquema de
liberdades para todos. Ser livre é poder ter acesso a todos os bens que, do ponto de vista do
reconhecimento público, todos precisam ter sob pena de perderem sua condição de humanos
sociais. Desse modo, a humanização da vida do homem passa pela eliminação de qualquer
tipo de opressão do outro e se efetiva enquanto reconhecimento recíproco da liberdade.Vista
desse modo, enquanto capacidade humana, a liberdade é o fundamento da ética. Agir com
liberdade
é poder escolher conscientemente entre alternativas, é ter condições objetivas para
criar alternativas e escolhas. Por sua importância na vida humana, a liberdade é
também um valor, algo que valoramos positivamente, de acordo com as
possibilidade de cada momento histórico. Por tudo isso, podemos perceber que a
liberdade é também uma questão ética das mais importantes, pois nem todos os
indivíduos sociais têm condições de escolher e de criar novas alternativas de escolha
(BARROCO, 2004, p.48).
Com base nesses pressupostos, a liberdade não pode ser tomada em seu sentido
absoluto, mas como a “construção de uma nova sociabilidade capaz de concretizar a liberdade
para todos os homens, sem exploração, sem discriminação, sem alienação” (BARROCO,
2000, p. 59). Assim, a plena realização da liberdade de um requer a plena realização de todos,
por isso, é que autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos estão a ela
associados.
Assim, o conceito de liberdade a que o Código de Ética dos assistentes sociais faz
referência resgata a dimensão do homem como ser livre, na perspectiva do reconhecimento
36
mútuo da liberdade, ou seja, somente o reconhecimento do outro como ser livre pode realizar
o indivíduo como ser humano.
Do ponto de vista da prática profissional
a liberdade é a capacidade para darmos um sentido novo ao que parecia fatalidade,
transformando a situação de fato numa realidade nova; criada por uma ação. Essa
força transformadora, que torna real o que era somente possível e que se achava
latente apenas como possibilidade, é o que faz surgir [...] um movimento anti-
racista, uma luta contra a discriminação sexual ou de classe social, uma resistência à
tirania e a vitória contra ela (CHAUÍ, 1994, apud PAIVA; SALES,1996, p.183).
Isso significa que mesmo em face de obstáculos, o assistente social não deve
aderir à visão fatalista de que “nada pode fazer”; antes deve ser capaz de tornar a liberdade
uma realidade para aqueles que estão excluídos da sociedade, o que exige, por sua vez, uma
estreita articulação entre o saber técnico e a competência política.
- Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do
autoritarismo.
Foi no interior da luta pela contenção dos excessos que surgiram os direitos
humanos. Trata-se de um processo histórico de afirmação de um valor: o da dignidade da
pessoa humana. Lafer (2006) identifica quatro etapas no processo de afirmação dos direitos
humanos: positivação, generalização, especificação e internacionalização.
A positivação é a conversão dos direitos humanos em direito positivo. É o que
permite a tutela jurídica dos valores da dignidade da pessoa humana, daí a associação desses
direitos com o Estado de Direito.
A primeira geração dos direitos positivados foram os civis e políticos, legado do
mundo liberal do século XIX, que considera o governo para o indivíduo e não o indivíduo
para o governo; e que a liberdade requer a distribuição de poder econômico, cultural e político
entre os governados, como também exige limitações impostas pelo Direito à
discricionariedade do poder dos governados.
A segunda geração dos direitos positivados englobou os econômicos, sociais e
culturais, legado do socialismo e dos imperativos da justiça social, que se iniciaram no século
XIX e adentraram o século XX. Trata-se do reconhecimento do valor da pessoa humana como
“pessoa moral” e “pessoa social”. Daí decorre a idéia de que o indivíduo deve participar
daquilo que é produzido e acumulado num processo coletivo pela pessoa humana. Este é o
fundamento do chamado “Estado de Bem-Estar Social”.
37
A terceira geração de direitos surge no plano internacional: são os direitos de
titularidade coletiva. O antecedente desses direitos é o princípio das nacionalidades, que, tanto
no Direito Internacional Público como na Carta da ONU, foi formulado como o direito da
autodeterminação dos povos. O ponto de partida é o modelo da Revolução Francesa, que tem
a sua origem na afirmação da soberania popular.
Lafer explica que a etapa da generalização converge com a forma inicial da
positivação, tendo como característica a tutela jurídica dos destinatários genéricos, ou seja, a
pessoa humana, o cidadão. Um exemplo típico dessa etapa é o princípio da igualdade perante
a lei e o seu corolário: o princípio da não discriminação.
A especificação representa a passagem do tratamento do ser humano em abstrato
para o ser humano em situação (ex. criança, adolescente, mulher, idoso, homossexual,
deficientes físicos). É a etapa que melhor define os destinatários da tutela jurídica dos direitos
e garantias.
A internacionalização, por fim, representa a positivação no plano internacional.
Surgiu como uma reação ao problema do mal que se manifestou com o totalitarismo no poder,
por meio do qual se fundem o poder, a lei e o saber, subsumindo-se todas as dimensões da
vida social à autoridade política.
Teoricamente, é em Kant que se encontra a antecipação do tema dos direitos
humanos no plano internacional. Parafraseando a Metafísica dos Costumes, obra de 1797, de
Kant, Pinheiro (2006) enfatiza que uma ação para ser justa em conformidade com o direito
deve permitir que cada um coexista com a liberdade de todos segundo uma lei universal. É o
que Kant chama de princípio universal do direito.
Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos aparece como um
“direito novo”, tanto pela abertura a uma razão abrangente da humanidade como porque
desenha a possibilidade de um direito cosmopolita.
Aplicado ao Serviço Social, esse segundo princípio do Código de Ética torna
imperativo que o profissional não faça vistas grossas às mais variadas e sutis formas de
violação dos direitos humanos, as quais alimentam o arbítrio, o autoritarismo. Consiste em
“empreendermos uma recusa e um combate nos espaços institucionais e nas relações
cotidianas, diante de todas as situações que ferem a integridade dos indivíduos e que os
submetem ao sofrimento, à dor física, à humilhação (PAIVA; SALES, 1996, p.185)”.
Disso resulta que a prática do profissional deve refletir uma postura assentada
numa cultura humanística e essencialmente democrática, sendo o Código de Ética um
38
instrumento que oferece respaldo às decisões e atitudes profissionais, especialmente em face
das situações que ferem a integridade dos indivíduos.
- Ampliação e consolidação da cidadania, considerada tarefa primordial de toda
a sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis, políticos e sociais das classes
trabalhadoras.
O conceito de cidadania, enquanto direito a ter direitos, foi abordado de variadas
perspectivas. Entre elas, tornou-se clássica a concepção de Thomas H. Marshall (1967), que,
no seu famoso ensaio Cidadania, Classe Social e Status, propôs a primeira teoria sociológica
de cidadania ao estabelecer os direitos e obrigações inerentes à condição de cidadão. Centrado
na realidade britânica da época, em especial no conflito frontal entre capitalismo e igualdade,
Marshall estabeleceu uma tipologia dos direitos de cidadania: os direitos civis, conquistados
no século XVIII, após a instituição da monarquia constitucional, os direitos políticos,
alcançados no século XIX - ambos chamados direitos de primeira geração - e os direitos
sociais, conquistados no século XX, com o desenvolvimento da educação primária pública,
chamados direitos de segunda geração.
8
Segundo Marshall, os direitos civis referem-se ao direito à vida, à liberdade de
pensamento, de fé, de locomoção e ainda ao direito à propriedade; os direitos políticos dizem
respeito ao direito de participar no exercício do poder político, de votar e ser votado, o direito
de associação e de organização; os direitos sociais são aqueles que possibilitem um mínimo
da riqueza material e espiritual produzida pela coletividade.
De acordo com a nova acepção ético-política do Serviço Social, a cidadania
consiste na universalização desses três níveis de direitos, na direção de uma sociedade mais
igualitária, baseada no reconhecimento de seus membros como sujeitos portadores de direito,
cuja efetivação, porém, exige a superação dos limites impostos pelo capitalismo e sua política
neoliberal, que, ao restringir o papel do Estado, estabelece uma intervenção precária na
satisfação das necessidades básicas dos indivíduos.
O compromisso com a cidadania, contudo, exige do assistente social o não
contentamento com esse limite mínimo, mas a ampliação do atendimento às necessidades dos
usuários dos serviços sociais. Postula-se uma prática engajada na potencialização das
reivindicações e interesses existentes nos conflitos entre a universalização dos direitos e os
8
Cabe salientar que a referida seqüência histórica registrada por Marshall na Europa não tem validade universal,
uma vez que sofreu alterações ou mesmo inversões em outras partes do mundo. Além disso, os estudos do autor
têm sido objeto de muitas críticas e complementações.
39
limites impostos pelo capital, o que vai exigir “a produção de estratégias teórico-
metodológicas de políticas que não devem se distanciar dos fins e princípios éticos” (PAIVA;
SALES, 1998, p.188).
- Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da
participação política e da riqueza socialmente produzida.
Segundo o pensador francês Alexis de Tocqueville (2000) a democracia consiste
na igualdade de condições, sendo democrática a sociedade em que todos os indivíduos são
socialmente iguais. A igualdade social significa a inexistência de diferenças hereditárias, o
que significa que todas as ocupações, profissões, dignidades e honrarias são acessíveis a
todos, dando aos homens o gosto pelas instituições livres. Desse modo, os homens que
conseguiram a liberdade recusam-se a aceitar o autoritarismo, pois amam a liberdade política
e desejam instituições livres.
Em consonância com esse raciocínio, Vieira (2004, p.134) salienta que uma
sociedade democrática
é aquela na qual ocorre real participação de todos os indivíduos nos mecanismos de
controle das decisões, havendo, portanto, real participação deles nos rendimentos de
produção. Participar dos rendimentos da produção envolve não só mecanismos de
distribuição da renda, mas, sobretudo, níveis crescentes de coletivização das
decisões principalmente nas diversas formas de produção
.
Assim, diretamente ligada à noção de cidadania, a concepção de democracia que o
Serviço Social reclama consiste em romper com as tradicionais práticas de controle, tutela e
subalternização. Isso significa lutar pela igualdade de acesso à riqueza socialmente produzida,
o que implica exercitar o direito ao trabalho, moradia, saúde, educação, lazer, segurança,
assistência, previdência social, dentre outros direitos sociais constitucionalmente assegurados.
- Posicionamento em favor da equidade e justiça social, de modo a assegurar a
universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais,
bem como sua gestão democrática;
Na obra Justiça como Equidade, John Rawls (2003) analisa dois princípios de
justiça equitativa voltados para as sociedades vinculadas à tradição democrático-
40
constitucional: o valor equitativo das liberdades políticas e a igualdade equitativa de
oportunidades.
O primeiro é o princípio da igual liberdade, segundo o qual cada pessoa deve ter
um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades que seja compatível com o mesmo
esquema de liberdade para todos. Aqui a liberdade é o princípio fundamental para a justa
distribuição de bens, abarcando os elementos constitucionais essenciais.
O segundo princípio está associado a duas condições: à igualdade equitativa de
oportunidades e ao princípio da diferença, o qual, em sentido estrito, traduz-se como princípio
de justiça distributiva.
A igualdade equitativa de oportunidades (uma igualdade liberal, segundo o autor)
exige que, independente da classe social, deve haver as mesmas oportunidades de acesso a
cargos e posições para aqueles que possuem motivações e dotes similares. Para isso, é preciso
estabelecer um sistema de mercado livre no contexto das instituições políticas e legais, o qual
ajuste, a longo prazo, as tendências das forças econômicas a fim de impedir a concentração
excessiva da propriedade e da riqueza, sobretudo daquela que leva à dominação política.
O princípio da diferença é essencialmente um princípio de reciprocidade. Exige
que as desigualdades sociais e econômicas devam ser ordenadas de tal modo que as
desigualdades beneficiem os menos favorecidos; caso contrário, as desigualdades não são
permissíveis.
Desse modo, o modelo da justiça equitativa proposta por Rawls ordena que as
instituições básicas da sociedade distribuam os bens de modo que ninguém obtenha menos do
que necessita para poder desempenhar com eficiência a sua atividade, como também que todo
acúmulo extra de bens produzidos pelo homem seja considerado um bem público, devendo-se
criar regras para a sua justa distribuição, de modo que todos, e não uma pequena parcela da
sociedade tenham acesso a eles.
Verifica-se, portanto, que justiça social e equidade encontram-se intimamente
ligadas à democracia e à liberdade, pressupondo a dignidade de cada um e a equivalência a
partir do reconhecimento da igualdade do outro. Há, assim, a necessidade de atribuir, a cada
um o que é seu, tentando corrigir as insuficiências resultantes da maneira como os homens se
organizam e produzem socialmente.
No que se refere aos assistentes sociais, esse princípio exige o compromisso com
a universalidade de direitos e de acesso ao atendimento e à cobertura social nas mais
diferentes áreas (saúde, educação, saneamento básico, transporte coletivo, previdência,
41
assistência, moradia, trabalho); posto que, é em nome desses direitos que o Estado justifica a
coleta de impostos proporcionais sobre a renda, a propriedade e o consumo.
- Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, o respeito à
diversidade, a participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das
diferenças.
Esse resgata o princípio discutido anteriormente que defende no Serviço Social a
construção de uma nova sociabilidade, capaz de concretizar a liberdade para todos os homens,
sem exploração, discriminação e ou alienação; o que implica no reconhecimento, valorização
e tolerância aos direitos e preferências individuais dos usuários, assistentes sociais e demais
categorias com as quais o profissional se relaciona no espaço institucional. Chama-se a
atenção para a desinformação, ignorância e irracionalismo presentes nos preconceitos e juízos
provisórios, que terminam por alienar os indivíduos.
Isso significa que, na prática profissional, o assistente social não deve atuar com
parâmetros e crivos meramente pessoais, muitas vezes permeados por uma moral
conservadora que conduz a uma sociabilidade fundada na repressão dos sentimentos, desejos
e capacidades humanas, negadora do fundamento primeiro da moral que é a liberdade
(BARROCO, 1999). Portanto, é dever do assistente social “incentivar o respeito à
diversidade, a participação dos grupos discriminados e a explicitação e o debate das
diferenças” (SALES; PAIVA, 1998, p. 196).
- Garantia do pluralismo, por meio do respeito às correntes profissionais
democráticas existentes e suas expressões teóricas, e do compromisso com o constante
aprimoramento intelectual.
Esse princípio vem referendar uma importante conquista do Código de Ética de
1986: o reconhecimento do pluralismo profissional. Em contraposição à concepção
conservadora de que a profissão seria um todo homogêneo, o Código de 1986 avança ao
reconhecer a coexistência de diferentes credos e princípios filosóficos no âmbito da categoria
profissional, explicitando que seus dispositivos se destinam a todos os profissionais,
indistintamente.
Fruto dos profícuos debates acumulados pelo Serviço Social na década de 1980, o
pluralismo surge como parte da maturidade teórica do projeto ético-político profissional
evidenciado pela produção teórica, pela capacidade crítica e interlocução da profissão com
42
outras áreas do conhecimento; o que permitiu a evidência de concepções teóricas e
metodológicas, especialmente no campo da tradição marxista, sintonizadas com os projetos
societários das classes trabalhadoras.
O pluralismo surge como superação do mito da neutralidade, desmistificando a
pretensa homogeneidade e harmonia no terreno das idéias. É o reconhecimento da
coexistência, numa mesma sociedade, de uma diversidade de expressões de ordem teórica,
doutrinária, política e filosófica, que tanto repercute como exerce diferentes influências na
própria categoria.
O pluralismo é, assim, uma característica da cultura pública das sociedades
democráticas, pois quanto mais desenvolvidas são as instituições democráticas, menor a
chance de uma concepção de mundo vir a ter predomínio sobre as demais. Ou melhor, maior a
chance de o pluralismo se ampliar. Assim, para que ocorra a supremacia de uma concepção,
só mesmo através da eliminação forçada das instituições democráticas, o que representaria
“limpar do mapa” ou não reconhecer a coexistência de diferentes aportes teóricos, filosóficos,
políticos e doutrinários na sociedade.
Em conformidade com o princípio anterior, este exige, no âmbito profissional, a
superação de preconceitos e intolerância às diferenças, supondo a convivência respeitosa e
produtiva com todas as correntes que perpassam a sociedade e o Serviço Social, com vistas à
redução de tensões e conflitos. Importa lembrar que idéias e concepções políticas devem ser
debatidas sem dar a conotação de combate (no sentido de rivalidade ou agressividade) àqueles
que as defendem. Isso tanto se aplica na relação com o usuário como com outros
profissionais.
- Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de
uma nova ordem societária, sem dominação – exploração de classe, etnia e gênero.
Oliveira (1993) caracteriza o momento presente como de profunda crise de nosso
ethos, sendo que uma das manifestações da crise se dá pelo confronto entre as diferentes
formas de solidariedade e comunhão, e o exacerbado individualismo que molda a mentalidade
e comportamentos das pessoas a nossa volta. Nesse contexto, cada vez mais se difunde a idéia
de que o homem é um ser isolado, marcado por diferentes desejos e impulsos que precisam
ser satisfeitos; de forma que a socialidade se legitima na consecução de fins individuais, os
quais se traduzem em corrupção generalizada, clientelismo, autoritarismo, oportunismo,
violência, prepotência e exploração do homem, grupos e classes.
43
Tal postura faz acirrar uma atitude particularista que se opõe a toda perspectiva
universalista na convivência dos homens entre si, o que compromete o respeito, a
solidariedade e tolerância ao outro. A sociabilidade, porém, somente é possível quando cada
um reconhece o outro como portador dos mesmos direitos fundamentais. Significa reconhecer
a dignidade pessoal do homem como ser livre, de modo a substituir as relações de dominação
por relações que promovam a autonomia e a emancipação.
No âmbito do Serviço Social, esse princípio sustenta-se na busca de uma
sociedade justa e igualitária, com a construção de um projeto societário respaldado por uma
concepção de sociedade que preconiza o fim da exploração e da dominação; em oposição ao
modelo que privilegia o individualismo e a dominação de classes, etnias e grupos.
- Articulação com os movimentos sociais de outras categorias profissionais que
partilhem dos princípios desse Código e com a luta dos trabalhadores.
Como serviço, a profissão vincula-se historicamente às políticas e aos programas
sociais destinados aos diversos segmentos sociais de excluídos e trabalhadores. É no Código
de 1986 que a categoria claramente assume o compromisso com a classe trabalhadora, num
processo de ruptura com a ética tradicional, buscando construir uma nova identidade no
engajamento político e na ação educativa junto aos movimentos populares.
Rompendo com a visão endógena da profissão, isto é, com a compreensão de um
Serviço Social voltado para si mesmo, esse processo foi gestado paralelamente às
transformações pelas quais passou o país nos planos político e econômico, desde os anos 60,
com a ditadura militar; e que configuraram uma luta pela democratização da sociedade
brasileira.
Como saldo desse processo de deciframento e potencialização da dimensão
política da prática profissional, o Serviço Social dispõe hoje de um projeto profissional
sintonizado com a defesa dos direitos políticos, civis e sociais da população brasileira;
cabendo a cada assistente social o compromisso de concretizá-los no cotidiano do exercício
profissional, articulando-se aos movimentos sociais de outras categorias profissionais que
igualmente partilham dos princípios desse projeto.
44
- Compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o
aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional.
O projeto profissional radica num compromisso com a qualidade dos serviços
prestados à população, o que implica uma abertura das decisões institucionais à participação
dos usuários. Para isso, é necessário romper com o voluntarismo, com o isolamento
profissional e com as falsas interpretações acerca da direção social do projeto ético-político
profissional. Como referem Sales & Paiva (1998, p.203),
isto significa que vem se efetivando uma aposta cada vez maior na relação entre
técnica, política e ética, como condição mesma da proficiência, no caso, de uma
profissão como a de Serviço Social, a qual está inserida no âmago dos conflitos das
esferas de produção e reprodução. Se nos anos 80, uma das principais conquistas foi
a descoberta e a ênfase da dimensão política da prática profissional, cresce agora a
visualização do papel de mediação e articulação desempenhado pela ética entre o
saber e a práxis política.
Segundo esse princípio, compete ao assistente social mostrar presteza no
oferecimento dos programas institucionais e na realização do próprio Serviço Social. Tal
garantia encontra-se inclusive contemplada no artigo 5°, Título III, do Código de Ética de
1993, sendo considerada infração grave bloquear o acesso dos usuários aos serviços
oferecidos pelas instituições, conforme dispõe a alínea c do artigo seguinte.
Outro aspecto desse princípio está relacionado ao aprimoramento intelectual, o
que exige uma constante capacitação profissional, uma aguçada sede de conhecimento, com
vistas a desenvolver um trabalho criativo e competente, direcionado para além do imediatismo
da demanda. Nesse sentido,
exige-se um profissional qualificado, que reforce e amplie a sua competência crítica;
não só executivo, mas que pensa, analisa, pesquisa e decifra a realidade [...]. O novo
perfil que se busca construir é de um profissional afinado com a análise dos
processos sociais, tanto em suas dimensões macroscópicas quanto em suas
dimensões quotidianas; um profissional criativo e inventivo capaz de [...] moldar os
rumos da sua história (IAMAMOTO, 1997, p. 31).
- Exercício do Serviço Social sem ser discriminado, nem discriminar por
questões de inserção da classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, opção sexual,
idade e condição física.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos consagrou diversos valores que
passaram a ser adotados por diferentes diplomas, sistemas e ordenamentos jurídicos. Dentre
esses valores se destacam a liberdade, a solidariedade, a justiça social e o respeito à
45
diversidade cultural, religiosa, étnico-racial, de gênero e de orientação sexual, cuja
concretização se consubstancia em uma prática que garanta, a todo e qualquer indivíduo, a sua
condição de pessoa humana. Negar esses valores representa a perpetuação de preconceitos e
de práticas discriminatórias e intolerantes. Desse modo,
a retomada da crítica ao preconceito deve garantir, pela substantivação da dimensão
do direito, o exercício do Serviço Social e a relação com os que integram a vida
profissional cotidiana a partir do que são, isto é: de famílias de fazendeiros ou
camponeses, homem ou mulher, negro, índio ou branco, petista ou pefelista,
evangélico ou umbandista, brasileiro ou estrangeiro, homo ou hetero, jovem ou
idoso, portador de deficiência ou não, enfim, um indivíduo como outro qualquer
com manias, atributos, características que o particularizam exclusivamente, mas que
em nada justificam qualquer tipo de exclusão ou privilégio, que extrapolem o âmbito
da competência profissional (PAIVA; SALES, 1998, p. 206).
Esse princípio exige, portanto, uma atuação consciente, libertária e democrática
por parte do assistente social, com respeito às diferenças e banimento da discriminação onde
quer que se concretize a sua prática profissional.
Conforme podemos observar, esse conjunto de princípios apresenta, no campo
ético, a auto-imagem da profissão; elegendo valores que a legitimam socialmente,
determinando e priorizando seus objetivos e funções; formulando os requisitos para o seu
exercício, prescrevendo normas para o comportamento profissional e estabelecendo as balizas
da sua relação com os usuários de seus serviços, com as outras profissões e com as
organizações e instituições sociais, privadas e públicas.
Esses mesmos princípios vão constituir os eixos fundantes das diretrizes
curriculares, aprovadas em 1996, cuja proposta de formação profissional se inscreve no
sentido de viabilizar a capacitação teórico-metodológica e ético-política, enquanto requisito
fundamental para o exercício de atividades técnico-operativas, ainda no campo de estágio.
Trata-se de um contexto em que a ética é retomada como um dos eixos fundantes da
profissão, de modo que começa a ocupar lugar nos debates em torno do processo de
reformulação curricular do curso de Serviço Social.
A partir desse entendimento e da maturação da profissão, desencadeia-se, em
escala nacional, um amplo debate no seio da categoria, cujo objetivo central é o de repensar
os rumos da formação, bem como a prática profissional em direção ao século XXI. Entidades
representativas da profissão, tanto na esfera da formação como da fiscalização do exercício
profissional (CFESS - Conselho Federal de Serviço Social; Conselhos Regionais de Serviço
Social; Abeps - Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social; ENESSO -
Executiva Nacional dos Estudantes de Serviço Social) incorporam a concepção de que tanto a
46
formação quanto o exercício profissional devem estar intimamente sintonizados com o tempo
presente e com as exigências que este nos faz.
Com base nisso, as diretrizes curriculares de 1996 assim definem e orientam o
perfil do profissional que se quer formar:
um profissional que atua nas manifestações da questão social (entendida como um
conjunto de expressões de desigualdade social cujas raízes estão na produção
socializada e na apropriação privada de seus frutos), formulando e implementando
propostas para seu enfrentamento por meio de políticas sociais públicas,
empresariais, de organizações da sociedade civil e movimentos sociais, na
perspectiva de sua ampliação e garantia como direitos sociais e não como
mercadorias. Um profissional dotado de formação intelectual e cultural generalista
crítica, competente em sua área de desempenho, com capacidade de inserção criativa
e propositiva no conjunto das relações sociais e no mercado de trabalho. Um
profissional comprometido com os valores e princípios norteadores do Código de
Ética do Assistente Social (FERREIRA, 2000, p.92).
A formação profissional, portanto, deve viabilizar, dentre outros elementos
constitutivos da prática profissional, a apreensão crítica dos processos sociais, numa
perspectiva de totalidade; fortalecer os valores e princípios legitimados no Código de Ética
profissional; instigar a análise do movimento histórico da sociedade brasileira, apreendendo
as particularidades do capitalismo e situando o Serviço Social nessas relações sociais; garantir
a compreensão do significado social da profissão e de seu desenvolvimento histórico;
possibilitar a identificação das demandas presentes na sociedade e consolidar o entendimento
da prática profissional como trabalho socialmente determinado. Nesse sentido, a competência
profissional implica uma formação acadêmica qualificada que viabilize a análise concreta da
realidade social imprescindível ao desenvolvimento de procedimentos adequados. Para isso, a
autoformação permanente e o exercício de uma postura investigativa revelam-se
fundamentais.
Além do Código de Ética e das diretrizes curriculares para o curso de Serviço
Social, o projeto possui ainda a Lei de Regulamentação da Profissão (Lei 8662/93) como
diretriz norteadora; apresentando também uma dimensão político-organizativa, assentada nos
fóruns de deliberações quanto às entidades representativas da profissão, como o conjunto
CFESS/CRESS, a ABEPSS (Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social),
e, no âmbito estudantil, a ENESSO (Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social).
No que se refere à capacitação ética profissional, são de notório destaque duas
iniciativas tomadas por essas entidades: o Programa de Capacitação Continuada para
Assistentes Sociais, com início em 1999, promovido pela Abepss/CFESS, em convênio com a
47
UNB/Cead, com três modalidades de curso à distância: extensão, aperfeiçoamento e
especialização; contemplando em seu conteúdo programático abordagens éticas articuladas ao
projeto ético-político profissional, e o Curso de Capacitação para Agentes Multiplicadores;
parte do Projeto Ética em Movimento, iniciado em 2000 pelo Conselho Federal de Serviço
Social – CFESS, organizado para capacitar assistentes sociais de todo o país, com vistas a
servirem de multiplicadores em suas regiões de origem. O objetivo é reafirmar a inserção da
ética no projeto profissional coletivo, buscando materializá-la, para além de sua expressão
normativa no cotidiano profissional, possibilitando o entendimento do Código de Ética como
instrumental crítico, filosófico e político que norteia a prática do assistente social.
De modo geral, do ponto de vista profissional o projeto implica o compromisso
com a competência, que tem como base o aprimoramento intelectual do assistente social;
alicerçado em concepções teórico-metodológicas capazes de viabilizar uma análise concreta
da realidade social, com vistas a encontrar formas de operacionalização que viabilizem os
princípios éticos na prática profissional.
4 Os princípios éticos e a contra-ofensiva neoliberal
É no cotidiano da prática institucional que o assistente social se depara
diariamente com problemas relativos aos princípios éticos, sendo que muitas vezes os
objetivos profissionais entram em choque com os institucionais, ocasionando a supressão dos
primeiros. Tal aspecto merece mais do que a detida atenção, em face da conjuntura atual onde
as configurações do neoliberalismo atingem duplamente o assistente social: como trabalhador
assalariado, cujo maior empregador é o Estado, e como profissional comprometido com a
realização dos direitos sociais.
Perry Anderson (1996) analisa que, enquanto fenômeno distinto do simples
liberalismo clássico, o neoliberalismo é uma reação teórica e política contra o Estado
intervencionista e de bem-estar. Seu objetivo é combater o solidarismo reinante e preparar as
bases de um capitalismo duro e livre de regras, pois, segundo os seus defensores, o Estado de
Bem-Estar
9
destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência. Para combater a
9
Sobre a emergência e desenvolvimento do Welfare State, ou Estado de Bem-Estar Social, Marta Arretche
(1995) identifica os principais argumentos analíticos que distinguem o tipo de causalidade que orientam o
entendimento dessa questão. Segundo a primeira causalidade, de ordem econômica
, o Welfare State seria uma
resposta ou um desdobramento necessário das profundas transformações desencadeadas a partir do século XIX
com o processo de industrialização e modernização das sociedades. Compartilham dessa causalidade, teóricos
como Harold Wilensky, Richard Titmus, T. H. Marshall, James O’ Connor e Claus Offe. Na segunda
causalidade, de ordem política ou institucional
, o Welfare State seria: a) o resultado de uma ampliação
progressiva de direitos: dos direitos civis aos políticos, dos políticos aos sociais, tendo como defensores T. H.
48
crise
10
e reanimar o capitalismo avançado mundial seria necessário um Estado forte, na
capacidade de romper o poder dos sindicatos, mas parco nos gastos e nas intervenções do
mercado.
Apresenta-se, então, a tese do Estado mínimo (redução do Estado no seu tamanho,
papel e funções), enquanto o mercado aparece como o melhor e mais eficiente mecanismo de
alocação de recursos. Nesse sentido, o neoliberalismo critica a forma estatizada de produção e
operação dos serviços sociais, assim, descentralizar, privatizar e concentrar esses serviços
aparece como vetores estruturantes das reformas e programas sociais preconizadas por esse
modelo.
Mesmo em países latino-americanos como o Brasil, que nunca experimentaram
uma intervenção estatal nos moldes do Welfare State, vivenciado no máximo experiências
populistas, as experimentações neoliberais têm sido conduzidas de acordo com a política
econômica em vigor.
Atendendo ao receituário neoliberal, o Estado passa então a intervir apenas
residualmente, com o intuito de garantir um mínimo para aliviar a pobreza. Nesse contexto, as
políticas públicas assumem um caráter eventual e suplementar, resgatando práticas
fragmentárias compensatórias. De um lado, cria-se um sistema privado de serviços sociais de
alto nível, financiados pelos extratos mais elevados de renda e, de outro, há a prestação de
serviços públicos de baixo orçamento, destinados aos extratos sociais mais baixos; os quais
devem comprovar a condição de indigência para ter acesso aos benefícios, deixando de fora
parcelas consideráveis da população que não se enquadram no perímetro de pobreza definido
Marsahll, Pierre Rosavalon e François Ewald; b) o resultado de um acordo entre o capital de trabalho
organizado, dentro do capitalismo, defendida por Ian Gough; c) o resultado de configurações históricas
particulares de estruturas estatais e instituições políticas, segundo Ann Shola, Theda Skopol e Margareth Weir;
e d) os diferentes welfare states são resultado da capacidade de mobilização de poder da classe trabalhadora no
interior de diferentes matrizes de poder, defendida por Gosta Esping-Andersen.
10
A discussão em torno da crise do Estado de Bem-Estar teve início na metade dos anos 70 com os primeiros
sintomas da perda de dinamismo econômico das principais economias ocidentais. De acordo com Draibe e
Henrique (1988), alguns autores tendem a dar um tratamento mais autônomo a essa questão em relação à crise
econômica em geral. A tese comum aos progressistas consiste em que o Welfare State não passa por uma crise;
sofre apenas uma mutação em sua natureza e operação. Os problemas enfrentados pelo Estado estariam muito
mais relacionados a pressões por sua mudança que propriamente ao esgotamento de uma dada forma de
intervenção social. Para os conservadores, o Welfare State é uma estrutura perniciosa e corresponde a uma
concepção perversa e falida do Estado. O argumento gira em torno de três questões: 1) os gastos sociais e sua
forma de financiamento são responsáveis pela inflação, declínio dos investimentos e aumento do desemprego; 2)
os programas sociais tendem a provocar desestímulos para o trabalho; 3) no plano político, argumenta-se contra
a ampliação dos programas sociais, pois além de revelar um grau insuportável de intervenção do Estado na vida
social, estariam introduzindo elevados índices de autoritarismo, tendendo ao totalitarismo. Progressistas e
conservadores concordam, porém, que a crise do Welfare State é, principalmente, uma crise produzida pela
burocratização excessiva dos programas sociais e a centralização exagerada dos elementos decisórios, enquanto
fatores que inibem ou obstacularizam a democracia.
49
oficialmente. Além disso, vão surgindo propostas e programas governamentais pautados em
apelos ético-morais, que buscam envolver a sociedade civil, cuja lógica de funcionamento,
situada num “terceiro setor”, não corresponde nem à do Estado e nem à do mercado, mas à da
“solidariedade”.
Do ponto de vista da justiça social, tem-se o confronto entre a tradição
universalista, de garantia de direitos inalienáveis do cidadão pelo Estado, e os preceitos
neoliberais, concebidos segundo os princípios da seletividade e da focalização das ações
públicas. Nessas condições a ênfase está voltada para estender o mercado a nível global,
aumentando as transações internacionais, não se necessitando, para isso, de um Estado
interventivo, forte em políticas sociais que expanda o mercado local e reverta a tendência
nacional ao subconsumo. Outro aspecto particularmente grave, identificado por Ianni (1996),
é o chamado “desemprego estrutural”, que implica a expulsão mais ou menos permanente das
atividades produtivas, decorrente da contínua e generalizada tecnificação dos processos de
trabalho que acompanha o atual processo de reestruturação produtiva.
A substituição do padrão de acumulação fordista/taylorista pela forma
flexibilizada de acumulação capitalista, o toyotismo, não resultou simplesmente na expansão
do capitalismo mundial. Além do enxugamento do Estado em suas responsabilidades sociais,
trouxe também enormes conseqüências no mundo do trabalho. Antunes (1995, p. 28) analisa
que “o toyotismo estrutura-se a partir de um número mínimo de trabalhadores, ampliando-se
através de horas extras, trabalhadores temporários ou subcontratados, dependendo das
condições de mercado”. Cria-se, portanto, uma classe trabalhadora mais fragmentada,
complexificada e heterogeneizada, sem sindicato e sem direitos, com remuneração e emprego
precários. Os sindicatos, por sua vez, se distanciam cada vez mais dos movimentos sociais
autônomos pelo próprio abismo existente entre os trabalhadores estáveis, que são em número
minoritário, e os trabalhadores precarizados em seus empregos e remunerações.
A análise desse fenômeno no Brasil, país de economia periférica, de tradição
colonialista e escravocrata, aponta para graduações bem maiores dos processos de exploração
e exclusão da maioria da população, a qual nem de longe, possui qualquer possibilidade de
interferência ou participação na riqueza produzida pelo capitalismo mundial.
Acerca dos problemas que retardam a vivência da cidadania plena na sociedade
brasileira, Carvalho (2001, p. 26) nos diz que “o período colonial no Brasil chegou ao fim
com a grande maioria da população excluída dos direitos civis e políticos”. O legado deixado
pela colonização portuguesa foi uma sociedade escravocrata, latifundiária, de população
analfabeta, dominada por um Estado absolutista. Nada havia que propiciasse a formação de
50
uma consciência de direitos, especialmente civis. Mesmo o surgimento de uma classe operária
não significou de imediato a possibilidade de formação de cidadãos mais ativos, pois os
operários tinham que enfrentar a repressão comandada pelo patrão e pelo Estado.
A ditadura implantada em 1964, fruto da ausência de organizações civis fortes e
representativas que pudessem refreá-la; ampliou a máquina de repressão, negando direitos
civis e políticos. A democracia política iniciada na Nova República, por sua vez, não
conseguiu resolver os problemas econômicos mais sérios, como desigualdade e desemprego.
A concentração da riqueza nacional, nas mãos de poucos, tem como conseqüência o
agravamento dos níveis de pobreza e miséria, fenômenos que o padrão de acumulação
capitalista tem feito acirrar. Desse modo, conceitos como “direitos sociais”, “universalização”
e “equidade”, que constituem categorias-chave norteadoras de um novo padrão de política
social a ser adotada no país, a partir da Constituição Federal de 1988, parecem sem efeito
diante dessa conjuntura.
A exclusão ganha forma de genocídio no contexto da nação brasileira; de violência
urbana nas grandes cidades. Tem também a forma da migração de grandes
contingentes populacionais dos espaços de produção agrícola, agropecuária e
agroindustrial encontrados nos assentamentos à beira das estradas, nas favelas, nos
cortiços, nos habitantes das ruas, sua objetivação imediata (CACCIA-BAVA
JÚNIOR, 1999, p. 139).
Assim, atendendo aos ajustes estruturais propostos pelo programa neoliberal
globalizante, sucessivas políticas de reajustes têm sido realizadas, a exemplo da franca
abertura da economia e adoção de dispositivos compatíveis com a atuação de capitais
especulativos como elemento básico para a concretização da proposta modernizante.
Nesse ínterim, surgiram as privatizações, que num primeiro momento se
restringiam apenas às empresas estatais, mas terminaram por se estender aos campos da
educação, saúde e previdência social, sob a justificativa da expansão do crescimento
econômico, da redução dos custos e aumento da competitividade das exportações.
Por outro lado, do ponto de vista dos direitos e garantias sociais, o que se tem
presenciado é o desassalariamento e o desemprego, acompanhados de uma acelerada
desintegração das classes sociais. Dessa forma, o capitalismo produz uma ética utilitarista,
que se expressa no individualismo, na descrença da convivência pública e democrática entre
os diferentes, no acirramento das desigualdades sociais e nas diversas formas de exclusão
(moral, social, econômica, cultural). Trata-se de um processo que tem levado ao rompimento
de todas as referências societárias, morais e institucionais, colocando em xeque aspectos
fundamentais do projeto profissional do Serviço Social, relacionados à cidadania, à
51
democracia, aos direitos humanos e à ampliação do acesso universal às políticas públicas de
responsabilidade do Estado.
É especialmente nesse contexto que se exige do assistente social o compromisso
com uma prática competente, teórica, técnica e politicamente, viabilizando a “previsão,
projeção e, conseqüentemente, a realização de um trabalho que seja de ruptura com práticas
conservadoras” (VASCONCELOS, 2002, p. 416). Nessa direção, entendemos que debater e
refletir sobre a prática profissional do ponto de vista dos princípios éticos que norteiam o agir
profissional é essencial, uma vez que a reflexão ética “é um dos espaços onde encontraremos
suporte pela busca de respostas às questões impulsionadoras da ação, a partir dos desafios
colocados pelos projetos sociopolíticos e nossa realidade social” (BONETTI, 1998, p.127).
Partindo dessa compreensão, analisaremos, no capítulo que se segue a prática dos
assistentes sociais da Ação Social Especializada – ASE, do Complexo de Defesa da Cidadania
de Teresina-PI, unidade da Secretaria de Assistência Social e Cidadania – SASC – destinada
ao atendimento inicial ao adolescente a quem se atribua a autoria de ato infracional,
procurando identificar de que maneira a prática profissional se relaciona com os princípios
consignados no projeto ético-político profissional no cotidiano da instituição.
A postura que assumimos baseia-se na convicção de que as políticas públicas
voltadas para o adolescente a quem se atribui a prática de ato infracional devem basear-se na
concepção de que esse jovem, não diferentemente de qualquer outro, é um sujeito concreto,
inserido num contexto sócio-histórico-político e que, de acordo com os dispositivos do
Estatuto da Criança e do adolescente, deve ser colocado a salvo de qualquer forma de
negligência, exploração, discriminação, crueldade e opressão, garantias diretamente
articuladas aos princípios fundamentais defendidos pelo projeto ético-político do Serviço
Social.
52
CAPÍTULO 2
O SISTEMA DE PROTEÇÃO JURÍDICO-SOCIAL: ENTRE A
GARANTIA LEGAL E A VIOLAÇÃO INSTITUCIONAL
Neste capítulo faremos uma breve discussão sobre os avanços trazidos pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente no que se refere aos direitos e garantias processuais
assegurados aos adolescentes a quem se atribui a autoria de ato infracional. Em seguida,
situamos a implementação dessa política no Complexo de Defesa da Cidadania, responsável
pelos procedimentos e serviços jurídicos que envolvem o processo de apuração do ato
infracional, os quais, de acordo com a normativa legal, devem estar fundamentados em
princípios como liberdade, justiça social, responsabilidade e respeito à diversidade cultural,
religiosa, étnico-racial, de gênero e orientação sexual, que também se encontram postulados
no projeto ético-político do Serviço.
Nessa discussão, porém, situaremos a histórica violação desses princípios pela
instituição, dando ênfase especial a “tragédia do oito de maio”, conforme ficou conhecida a
morte de sete adolescentes no interior da unidade, no ano de 2004.
Consideramos que, além de ter representado o mais cruel dos resultados da
política conservadora e autoritária implementada na instituição, a tragédia exigiu o repensar
das práticas ali operadas, de modo que algumas mudanças somente passaram a ocorrer depois
desse episódio.
1 O direito à proteção jurídico-social no Estatuto da Criança e do Adolescente
Na conjuntura nacional da década de 1980, o Brasil vivencia um clima de
efervescência com o processo de transição político-democrática, tendo como marco a Nova
República, que reclama o exercício da democracia, da cidadania e da regulamentação do
Estado de direito.
A sociedade já não se contentava em participar politicamente, apenas através do
voto, a fim de expressar sua cidadania. Clamava por uma atuação mais direta na formulação e
na execução das políticas sociais, exigindo para tanto uma nova forma de participação política
por meio da qual pudesse controlar os atos do poder público. O Estado, por sua vez, ao
reconhecer que sua forma de organização era ampla demais para a resolução de pequenos
53
problemas e, ao mesmo tempo, pequeno para os graves, termina por repartir o monopólio do
poder.
Como reflexo desse processo, presencia-se a conquista de dois instrumentos legais
que, sob o ponto de vista histórico e social, representam avanços significativos na luta pela
defesa dos direitos humanos, consolidação da cidadania e aprofundamento da democracia: a
Constituição Federal de 1988 que, além de estabelecer direitos civis, políticos e sociais, passa
a reconhecer o papel do Estado e da sociedade na garantia dos direitos dos grupos mais
vulneráveis as situações de discriminação, exploração e violência; e o Estatuto da Criança e
do Adolescente - ECA (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990), que surgiu a partir da
participação de representantes da sociedade civil e de entidades governamentais, com o apoio
de um grupo de juristas, como norma reguladora dos artigos 227 e 228 da Constituição
Federal
11
; inaugurando as condições de exigibilidade dos direitos de toda criança e
adolescente no âmbito de cada unidade federativa.
Além de regulamentar o paradigma constitucional, esse novo diploma legal
baseia-se em aprimoradas normativas internacionais tais como a Convenção das Nações
Unidas sobre os Direitos da Criança; Regras Mínimas das Nações Unidas para a
Administração da Justiça de Menores; Regras Mínimas das Nações Unidas para Proteção dos
Jovens Privados de Liberdade (Regras de Riad); Diretrizes das Nações Unidas para a
Prevenção da Delinqüência Juvenil (Regras de Beijing) - que juntas compõem a “Doutrina das
Nações Unidas de Proteção Integral à Infância”.
Inovador, o Estatuto catalogou os direitos fundamentais das crianças e
adolescentes e estabeleceu a municipalização do atendimento, convocando a participação da
sociedade civil organizada, tanto na formulação das políticas públicas para a infância e
juventude, como no controle das ações por meio dos Conselhos de Direito e Tutelares.
Ao adotar a Doutrina da Proteção Integral, o Estatuto deslegitima, política e
juridicamente, o velho Código de Menores de 1979 e sua chamada “doutrina da situação
irregular”
12
, que colocava sob a absoluta disponibilidade estatal crianças e adolescentes
oriundas dos setores mais débeis da sociedade, dos quais indiscriminadamente retirava a
liberdade, um dos direitos fundamentais da pessoa humana.
11
O artigo 227, caput, versa que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, todos os direitos fundamentais (vida, saúde, alimentação, educação, lazer,
profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária), além de colocá-
los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O artigo
228, por sua vez, afirma serem penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos.
12
O Código enumerava seis hipóteses para a chamada “situação irregular”: abandono material, abandono moral,
menor vítima, abandono jurídico, desvio de conduta e infração penal. Nesse sentido, tratava fundamentalmente
de abandonados e infratores.
54
A doutrina da proteção integral tem como alicerce “a convicção de que a criança e
o adolescente são merecedores de direitos próprios e especiais que, em razão de sua condição
específica de pessoas em desenvolvimento, necessitam de uma proteção especializada,
diferenciada, integral” (VERONESE, 1997, p.34).
De acordo com essa doutrina, o que define uma criança (segundo o Estatuto,
pessoa até doze anos de idade incompletos) e um adolescente (aquela entre doze e dezoito
anos de idade) é a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento; sujeito pleno de
direitos civis, humanos e sociais, que goza de prioridade absoluta, “a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”
(ECA, art. 3º). Por pessoa em condição peculiar de desenvolvimento, entende-se que
além de todos os direitos de que desfrutam os adultos e que sejam aplicáveis à sua
idade, a criança e o adolescente têm ainda direitos especiais decorrentes do fato de:
- não terem acesso ao conhecimento pleno de seus direitos;
- não terem atingido condições de defender seus direitos frente a omissões e
transgressões capazes de violá-los;
- não contarem com os meios próprios para arcar com a satisfação de suas
necessidades básicas;
- por se tratar de seres em pleno desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e
sociocultural, a criança e o adolescente não podem responder pelo cumprimento das
leis e demais deveres e obrigações inerentes à cidadania da mesma forma que os
adultos (COSTA, 1993, p.27).
Como sujeito pleno de direitos, crianças e adolescentes “deixam de ser objetos de
medidas judiciais e procedimentos políticos, quando expostos aos efeitos da marginalização
social decorrentes da omissão da sociedade e do Poder Público, pela inexistência ou
insuficiência das políticas sociais básicas” (LIBERATI, 1995, p. 17). A prioridade absoluta,
por outro lado, é entendida como:
- primazia em receber proteção e socorro em qualquer circunstância;
- precedência no atendimento por serviço ou órgão público de qualquer poder;
- preferência na formulação e execução das políticas sociais públicas;
- destinação privilegiada de recursos públicos às áreas relacionadas com a proteção
da infância e juventude (COSTA, 1993, p.27).
Nesse sentido, o conceito de criança e adolescente no Estatuto é ontológico, ou
seja, leva em conta a própria essência do ser humano (biopsico-sócio-econômico-ambiental),
utilizando-se de aperfeiçoados princípios da pedagogia social, que consistem em respeitar o
ser humano em todas as fases de seu desenvolvimento, o que eleva o Estatuto a uma norma de
promoção e proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes.
55
A doutrina da proteção integral subsidia toda a política de atendimento à criança e
ao adolescente, incluindo a área do ato infracional, que figura entre os pontos essenciais do
Estatuto. A esse respeito, convenciona o artigo 105 que ao ato infracional praticado por
criança corresponderão as medidas de proteção observadas no artigo 101:
I – encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;
II – orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III – matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino
fundamental;
IV – inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e
ao adolescente;
V – requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime
hospitalar ou ambulatorial;
VI – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e
tratamento a alcoólatras e toxicômanos;
VII – abrigo em entidade;
VIII – colocação em família substituta.
Ao Conselho Tutelar, órgão municipal permanente, autônomo, não-jurisdicional,
composto de cinco membros escolhidos pela comunidade, caberá o atendimento de crianças a
quem se atribui a autoria de ato infracional, aplicando as medidas acima descritas, dos incisos
I a VI.
Quanto ao adolescente, o Estatuto proíbe qualquer detenção ilegal ou arbitrária,
sendo-lhe extensivo o princípio constitucional (artigo 5º, incisos LXI, da Constituição Federal
de 1988) de que ninguém poderá ser detido a não ser em flagrante delito
13
ou por ordem
escrita e fundamentada da autoridade judicial competente. Por outro lado, para que ocorra um
processo de apuração de ato infracional, é necessário ser atribuído ao adolescente, uma ação
definida como crime ou contravenção penal (qualificada como crime menor ou delito menos
importante, de menor gravidade).
No livro II, título III está consignado que nenhum adolescente perde a liberdade
sem o devido processo legal, devendo a qualquer fase do procedimento ter pleno e formal
conhecimento da infração que lhe for atribuída; igualdade na relação processual; defesa de
13
De acordo com o teor do artigo 302 do Código de Processo Penal considera-se em flagrante delito quem está
cometendo a infração penal; acaba de cometê-la; é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por
qualquer outra pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; é encontrado, logo depois, com os
instrumentos, armas, objetos ou papéis, que façam presumir ser ele autor da infração.
56
advogado; assistência judiciária gratuita e integral aos necessitados; direito de ser ouvido
pessoalmente pela autoridade judiciária e de solicitar a presença dos pais ou responsáveis.
Com isso o Estatuto introduz direitos que representam garantias constitucionais de
todo o cidadão, diferenciando-se consubstancialmente da lei que o precedeu, o Código de
Menores de 1979, no qual crianças e adolescentes, apreendidos por suspeita de ato infracional
eram submetidos a privação de liberdade sem que a materialidade dessa prática fosse
comprovada e tivessem direitos para sua devida defesa. O tempo da internação era
indeterminado, podendo permanecer nessa condição depois de atingida a maioridade, somente
sendo liberado pelo juiz das execuções penais.
A internação, estritamente repressora e punitiva, baseada no modelo da
criminalização da pobreza, do controle e da culpabilização do adolescente, reafirmava junto a
sociedade a necessidade do afastamento e do isolamento desses jovens do convívio social,
postura intimamente associada à idéia de “patologia”, motivo pelo qual a intervenção médica
e terapêutica era recomendada como uma das formas de mudar o comportamento “anti-social”
desse segmento. Buscava-se proteger a sociedade por colocar atrás dos muros aqueles que, na
realidade, deveriam ser protegidos dos abusos, omissões e violações dos seus direitos.
O Estatuto, por sua vez, estabelece que o adolescente apreendido por força
judicial deverá, desde logo, ser encaminhado à autoridade judiciária, e aquele apreendido em
flagrante de ato infracional, encaminhado à autoridade policial competente, que dará início
aos procedimentos necessários à comprovação da materialidade e autoria da infração.
Comparecendo qualquer um dos pais ou responsável, o adolescente será prontamente liberado
sob termo de compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao representante do
Ministério Público, no mesmo dia, ou no primeiro dia útil imediato, cabendo à autoridade
policial a remessa da cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência.
Nos casos em que, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, o
adolescente não seja liberado para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem
pública, a autoridade policial deverá, desde logo, encaminhá-lo ao representante do Ministério
Público; ou no prazo de 24 horas, quando isso não for possível, juntamente com cópia do auto
de apreensão ou boletim de ocorrência. Deverá enviar também relatório das investigações ou
demais documentos, quando afastada a hipótese de flagrante, mas houver indícios de
participação do adolescente na prática do ato infracional.
Ao representante do Ministério Público compete três caminhos: a) promover
arquivamento dos autos; b) propor a remissão, acompanhada ou não de alguma medida; e c)
representar. Com a representação, cabe a autoridade judiciária a aplicação de qualquer uma
57
das medidas sócio-educativas previstas no artigo 112 do Estatuto: advertência; obrigação de
reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime
de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional ou qualquer uma das medidas
previstas no artigo 101, incisos I a VI.
Podendo ser aplicadas cumulativamente ou isoladamente, as medidas sócio-
educativas visam, em primeiro plano, a reintegração familiar e comunitária do adolescente,
devendo a sua aplicação levar em conta a capacidade do adolescente em cumpri-la, as
circunstâncias e a gravidade da infração. Desse modo, as medidas não têm sentido de pena, ao
contrário, estão sedimentadas no caráter educativo, e em nenhum momento podem perder de
vista esse aspecto.
Mesmo a medida privativa de liberdade (internação), aplicada em última
hipótese
14
, deve obedecer aos princípios de brevidade, excepcionalidade, e respeito à
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Tais prerrogativas remetem ao que
expressou Foucault (1987, p.196) sobre os perigos da prisão no seu suposto papel de
modificação dos indivíduos por meio da privação da liberdade: “[conhecemos] todos os
inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa, quando não inútil”.
A equipe interdisciplinar (assistente social, psicólogo, pedagogo), prevista no
artigo 151 do ECA, poderá ser chamada a opinar desde o início do procedimento, seja
mediante laudos, ou verbalmente nas audiências, assim como por meio de trabalhos de
aconselhamento, orientação e encaminhamentos.
Nesse sentido, o assistente social é requisitado a trabalhar em equipe, saindo de
uma atuação mais isolada para uma atuação de maior parceria com os demais profissionais no
espaço institucional. Nesse âmbito de intervenção, a perícia social
15
aparece como
metodologia de trabalho de domínio específico e exclusivo do Serviço Social, por meio da
qual o profissional deverá fornecer à autoridade judiciária o conhecimento de aspectos
intrapessoais; relacionais da situação e dinâmica familiares e das circunstâncias culturais do
adolescente e sua família, a fim de subsidiar a definição da medida que lhe seja mais
14
A medida privativa de liberdade somente poderá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes. Além
disso, o artigo 122 do Estatuto prever a sua aplicação somente quando se tratar de infração cometida mediante
grave ameaça ou violência à pessoa, por reiteração no cometimento de outras infrações graves ou por
descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.
15
Na obra O estudo social em perícias, laudos e pareceres técnicos (2003, p. 43), organizada pelo CFESS, a
perícia social “diz respeito a uma avaliação, exame ou vistoria, solicitada ou determinada sempre que a situação
exigir um parecer técnico ou científico de uma determinada área do conhecimento, que contribua para o juiz
formar a sua convicção para a tomada de decisão”.
58
adequada, como base mínima para que seja visto além de simples objeto de intervenção
jurídica.
Outro importante aspecto do reordenamento jurídico-social previsto no ECA diz
respeito à garantia de defesa técnica por advogado durante toda a fase do procedimento. Aos
que necessitam de assistência judiciária gratuita, a lei prever a nomeação de Defensor Público,
de modo que nenhum adolescente a quem se atribua a prática de ato infracional poderá ser
processado sem o direito a ampla defesa.
Esses preceitos expressam que o sistema de proteção jurídico-social integrado aos
marcos referenciais da política de promoção e proteção dos direitos humanos, procura
potencializar a efetivação da liberdade; da justiça; da equidade; da solidariedade e da
cidadania nos tratos com o adolescente autor de ato infracional, aspecto diretamente
articulado aos princípios fundamentais defendidos pelo projeto ético-político do Serviço
Social.
Recentemente, em 2006, em comemoração aos dezesseis anos de publicação do
Estatuto da Criança e do Adolescente; visando efetivar a doutrina da proteção integral,
reafirmar a natureza sancionatória e o caráter pedagógico das medidas sócio-educativas, a
Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e o Conselho Nacional
de Direitos da Criança e do Adolescente, apresentaram o SINASE - Sistema Nacional de
Atendimento Sócio-educativo.
Resultado de uma construção coletiva que envolveu as diversas áreas de governo,
representantes de entidades e especialistas na área; além de vários debates desencadeados no
país em encontros regionais com os operadores do Sistema de Garantia de Direitos, o
SINASE é um “conjunto ordenado de princípios, regras e critérios jurídico, político,
pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração do ato
infracional até a execução da medida sócio-educativa” (BRASIL, 2006, p.23, grifo nosso).
Constitui-se de uma política pública destinada à inclusão do adolescente com
prática de ato infracional, que se correlaciona e demanda iniciativas dos diferentes campos
das políticas públicas e sociais (educação, trabalho, saúde, previdência social, assistência
social, esporte, lazer, cultura, segurança pública, dentre outras); tendo como plataforma os
acordos internacionais sobre os direitos humanos, especificamente na área infanto-juvenil. Em
consonância com os dispositivos gerais do Estatuto, defende, dentre outros, os seguintes
princípios:
1- Respeito aos direitos humanos: preconiza que todos os valores defendidos pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos devem ser conhecidos e vivenciados durante o
59
atendimento sócio-educativo, com vistas à superação de práticas ainda corriqueiras que
resumem o adolescente ao ato a ele atribuído.
2- Responsabilidade solidária da família, sociedade e Estado pela promoção e
defesa dos direitos de crianças e adolescentes: em consonância com os artigos 227 da
Constituição Federal e o 4º do ECA, a sociedade e o poder público devem propiciar condições
para que as famílias possam se organizar e se responsabilizar pelo cuidado e acompanhamento
de seus adolescentes, especialmente quando estiverem em cumprimento de medida sócio-
educativa. Por outro lado, a família, a comunidade e a sociedade devem fiscalizar e
acompanhar o atendimento sócio-educativo, zelando para que o Estado cumpra com suas
responsabilidades.
3- Adolescente como pessoa em situação peculiar de desenvolvimento, sujeito de
direitos e responsabilidades: rebate a visão tutelar do revogado Código de Menores que
colocava o adolescente numa posição de inferioridade, negando-lhe a condição de sujeito de
direitos.
4- Prioridade absoluta para a criança e o adolescente
: a situação de adolescente em
conflito com a lei não restringe a aplicação desse princípio constitucional, de modo que cabe
ao Estado, à sociedade e à família dedicar-lhe a máxima atenção e cuidado, devendo ainda,
todos os direitos garantidos no ECA, estarem contemplados na elaboração das políticas
públicas direcionadas a esse segmento;
5- Legalidade: nenhum agente público poderá suprimir direitos que não tenham
sido objeto de restrição imposta por lei ou decisão proferida por Juiz competente, sendo
vedada qualquer interpretação extensiva ou analogia que implique em qualquer cerceamento
de direito, além da previsão legal.
6- Respeito ao devido processo legal: inclui, dentre outros direitos e garantias, a
fundamentação de toda e qualquer decisão realizada no curso do processo; presunção da
inocência; direito ao silêncio; defesa técnica por advogado ou assistência judiciária gratuita;
informação sobre os seus direitos e direito de ser acompanhado pelos pais ou responsáveis.
7-Excepcionalidade brevidade e respeito à condição de pessoa em
desenvolvimento: toda medida sócio-educativa não pode se desenvolver em situação de
isolamento do convívio social. Além disso, deve ser aplicada somente quando for
imprescindível, nos exatos limites da lei e pelo menor tempo possível. Até mesmo o
atendimento inicial integrado e a internação provisória, aplicada somente nos casos em que a
gravidade ou a repercussão social do ato infracional justificarem a medida, devem garantir a
observância desses princípios.
60
O atendimento inicial previsto no documento, refere-se
aos procedimentos e serviços jurídicos que envolvem o processo de apuração de ato
infracional atribuído ao adolescente. Esses diferentes atos que compõem a ação
judicial sócio-educativa realizados por diferentes órgãos (Segurança Pública,
Ministério Público, Defensoria Pública, Juizado da Infância e Juventude e
Assistência Social) denominam-se de Atendimento Inicial. Assim, após sua
apreensão em flagrante de ato infracional, deverá ser apresentado à autoridade
policial, liberado aos pais ou apresentado ao Ministério Público, apresentado a
autoridade judiciária, encaminhado para o programa de aplicação de medida sócio-
educativa. O adolescente acusado de prática de ato infracional deve ter o seu
atendimento agilizado, reduzindo-se oportunidades de violação de direitos, devendo
para tanto haver a integração entre os órgãos envolvidos. Ressalte-se [...] que os
procedimentos e ações desenvolvidas no Atendimento Inicial realizado até a decisão
judicial da aplicação da internação provisória estão devidamente fundamentados nos
princípios dos direitos humanos (Ibidem, p. 52, grifo nosso).
O SINASE consigna, portanto, que os parâmetros norteadores da ação e gestão
dos programas de atendimento devem favorecer ao adolescente o acesso aos seus direitos
ainda na “porta de entrada” do sistema sócio-educativo, aqui representado pelos serviços e
procedimentos relativos ao processo de apuração inicial do ato infracional. Ao ressaltar a
defesa intransigente dos princípios relativos aos direitos humanos, destaca a substancial
dimensão ético-pedagógica inerentes a esse conjunto de ações.
2 O sistema de proteção jurídico-social no Complexo de Defesa da Cidadania.
Visando assegurar o cumprimento das garantias processuais ao adolescente a
quem se atribui autoria de ato infracional, o ECA prevê no artigo 88, inciso V, a integração
operacional dos órgãos do Judiciário, Ministério Público, Segurança Pública, Defensoria e
Assistência Social, preferencialmente num mesmo local, para efeito de agilização do
atendimento inicial a esse segmento.
Com o objetivo garantir o cumprimento desse dispositivo, o extinto Serviço Social
do Estado - SERSE, atual Secretaria de Assistência Social e Cidadania – SASC, durante a
primeira gestão do então governador Francisco de Assis Moraes Sousa, o “Mão Santa”,
(1995-1998), inaugurou, no dia trinta e um de julho do ano de mil novecentos e noventa e
cinco, em um prédio alugado no centro da cidade de Teresina-PI, em parceria firmada com a
Segurança Pública e o Ministério Público, o então chamado Centro Integrado de Atendimento
a Crianças e Adolescentes Vitimizados – CIACA, com o objetivo de, segundo o projeto
original,
61
buscar agilidade e eficiência nos encaminhamentos de crianças e adolescentes em
situação de risco, mediante alternativas para um atendimento individualizado em
que garantam a sua dignidade. Desta forma, atuará como “porta de entrada” para a
recepção, triagem, encaminhamento e acompanhamento a crianças e adolescentes
vítimas de qualquer tipo de violação de seus direitos fundamentais e ainda o
atendimento ao adolescente a quem se atribua ato infracional (PIAUÍ, 1993, p. 02,
grifo nosso).
Conforme se pode observar, o Centro foi inicialmente criado para atender a
demandas diferenciadas. Abrangia tanto o atendimento de crianças e adolescentes vítimas (de
negligência, abuso, exploração e outras formas de violação de sua integridade física,
psicológica e moral) como vitimadores (aqueles a quem se atribui autoria de ato infracional).
Destaca-se como objetivos específicos do projeto:
1 – Realizar triagem estudo de caso de crianças e adolescentes encaminhados ao
Centro Integrado de Atendimento à Criança e ao Adolescente;
2 – Proceder encaminhamento dos casos triados para a família, programas de
retaguarda do SERSE e outras instituições;
3 – Prestar atendimento inicial ao adolescente a quem se atribua autoria de ato
infracional através da integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério
Público, Defensoria Pública e Assistência Social;
4 – Prestar acompanhamento dos casos registrados e encaminhados, com vistas à
obtenção da garantia de continuidade de atendimento;
5 – Propiciar a integração operacional de uma rede interinstitucional de retaguarda
com vistas a resultados mais efetivos;
6 – Implantar um serviço de coleta de dados que possibilite a sistematização e
informatização desses dados (ibidem, p. 03, grifo nosso).
Visando atingir os objetivos propostos, o projeto previa a formação de quadro de
pessoal necessário por meio de processo seletivo e capacitação técnica profissional; a
articulação com órgãos governamentais e não-governamentais com vistas a reforçar a criação
de uma rede de retaguardas; a desativação da Delegacia de Segurança e Proteção ao Menor –
DSPM
16
; a capacitação dos recursos humanos das polícias civil e militar, com vistas a
substituir uma prática repressiva e violenta, por outra de respeito aos dispositivos estatutários
e ainda, a criação de pelo menos um cargo de Juiz de Menores Auxiliar voltado
especificamente para os casos de infração penal; com vistas à viabilização de um plantão
permanente e realização de audiências diárias, pois até então, Teresina-PI contava apenas com
16
A medida previa a criação de uma Delegacia Especializada em substituição à DSPM, reconhecida por suas
práticas arbitrárias e violentas contra adolescentes. Note-se que era necessário mais do que a mudança de
nomenclatura, exigia-se também a substituição do corpo funcional identificado com essas práticas. Na prática, a
mudança de nomenclatura jamais ocorreu e ainda hoje a Delegacia conserva parte do seu corpo funcional.
62
uma Vara da Infância e da Juventude, que acumulava tanto as demandas da área cível (guarda,
adoção e tutela) como infracional.
Ao inaugurar seus trabalhos, a unidade inicialmente congregava, em suas bases
físicas, apenas a Delegacia de Segurança e Proteção ao Menor – DSPM, o Ministério Público,
representado pela Coordenadoria do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da
Infância e da Juventude e a assistência social promovida pelo SERSE, através da Ação Social
Especializada – ASE, composta por uma equipe técnica de assistentes sociais e servidores
denominados “educadores sociais”, responsáveis, no seu conjunto, pela custódia dos
adolescentes de ambos os sexos encaminhado pela Delegacia, aspecto que até os dias atuais
envolve não apenas a garantia de segurança, mas também de alimentação, higiene, vestuário,
cuidados médicos (neste caso através da rede de saúde estadual ou municipal) quando
necessários, bem como a entrega do adolescente, conforme decisão da autoridade policial e/ou
judicial, para a família ou a outras medidas, seja de proteção ou sócio-educativas.
Funcionando diuturno e ininterruptamente, o Centro se destinava, dentre outras
atribuições, a operacionalizar a proposta prevista no artigo 88, inciso V, do Estatuto da
Criança e do Adolescente, que dois anos depois, em fevereiro de 1997, se tornaria o objetivo
precípuo da unidade, que passava a funcionar sob a denominação de “Complexo de Defesa da
Cidadania”, localizada em sede própria, no bairro Redenção, na capital.
Com o objetivo de agilizar o processo de recepção e encaminhamento de
adolescentes envolvidos em ato infracional, o Complexo passa a atuar como “porta de
entrada” do sub-sistema sócio-educativo, que envolve programas voltados à execução das
medidas sócio-educativas, sejam aquelas a serem cumpridas em meio aberto (obrigação de
reparar o dano, advertência, prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida), ou as
que implicam a institucionalização do adolescente em regime de semiliberdade ou privação de
liberdade.
Naquele mesmo ano, 1997, o Tribunal de Justiça do Estado designa um Juiz
Auxiliar para o atendimento exclusivo, no interior da unidade, das demandas relativas aos atos
infracionais. Antes disso, havia a necessidade de deslocamento dos adolescentes do Complexo
para as oitivas e apresentações ao Juiz, o qual continuava despachando na sede original, o
que, porém, nem sempre era possível ser prontamente viabilizado devido a ausência de
transporte na unidade, trazendo como resultado o confinamento prolongado de adolescentes e
o conseqüente desrespeito ao prazo máximo de cinco dias, determinado pelo Estatuto, para a
conclusão dos procedimentos relativos à apuração do ato infracional.
63
No entanto, nem a designação de um juiz auxiliar substituto, nem a criação oficial
da 2ª Vara da Infância e da Juventude, ocorrida em 2001, representou maior agilização nos
procedimentos, haja vista que a precária integração operacional entre os órgãos, aliada à
resistência de assimilação dos dispositivos estatutários pela maioria dos agentes que ali
operavam, resultavam em práticas abusivas e autoritárias que desenhavam um cotidiano de
severas violações dos princípios e garantias processuais no âmbito institucional.
2.1 A violação dos direitos no cotidiano institucional: relato de uma tragédia
Sobre a operacionalização do sistema de justiça desenvolvido no Complexo de
Defesa da Cidadania, Ferreira, M. (2006) observa que em agosto de 1998 um “Grupo Tarefa”
constituído pela Presidente do SERSE (na ocasião, a Primeira-Dama do Estado) chegou à
conclusão de que o Complexo experimentava um processo de descaracterização de sua
finalidade, uma vez que atendia demandas diferenciadas da proposta de atendimento ao
adolescente infrator, o que contribuía para a sobrecarga de trabalho e permanência prolongada
e indevida dos adolescentes apreendidos, remetendo a uma situação de inobservância das
garantias processuais previstas no ECA. Além de contribuir para a superlotação dos
alojamentos, tal situação remetia a outra ilegalidade: a não apresentação do adolescente ao
representante do Ministério Público, e a conseqüente aplicação de medida sócio-educativa
sem a representação do Órgão.
O relatório ainda observou a ausência de clareza de papéis/atribuições nos
diversos serviços, o que terminava gerando transtornos operacionais e constrangimentos no
relacionamento da equipe interprofissional; a ausência de prestação de assistência judiciária e
gratuita aos adolescentes economicamente carentes, embora ali houvesse cinco profissionais
da área do Direito remunerados pelo SERSE para este fim; a prática de atendimento coletivo
de adolescentes pela Delegacia, expondo os adolescentes a situações vexatórias; a realização
de oitivas por escrivões, sem a presença da autoridade competente; a negação do direito de
expressão do adolescente; apreensões irregulares, feitas por mera suspeição, perambulância,
“distúrbio”, ou simplesmente para definir a natureza do ato infracional, que muitas vezes se
tratava de infração de norma ética e não de norma jurídica.
Tais fatos, além de denunciar a desarticulação dos serviços, revelam uma
compreensão desvirtuada do ato infracional por parte dos operadores da justiça, fazendo
perpetuar uma rotina de transgressões de direitos individuais e coletivos em prol da
manutenção de uma ética de privilegiamento do cárcere como forma de conter a proliferação
64
de sujeitos considerados perigosos a coesão social, tornando a intervenção do Estado
irracional, violenta e controladora, à semelhança das práticas interventivas operadas no
Código de Menores.
Embora tal situação tenha sido diagnosticada, a violação dos direitos continuou
fazendo parte da dinâmica da instituição. Ferreira, M. (2006, p.132) verifica que do total de
13.145 adolescentes atendidos no Complexo no período de 1995 a 2001,
boa parte da população infanto-juvenil que chega ao órgão encaminhada tanto pela
sociedade, quanto pela família ou pela polícia, se constitui de crianças e
adolescentes que “vadiam” nas ruas da cidade, em situação de abandono, ou por
razões de conflitos ocasionados na escola, na família ou em outros espaços da
cidade. É bastante significativa a presença de crianças menores de 12 anos que não
praticaram delitos conforme o ECA/90 estabelece, mas que são encaminhadas como
autores de ato infracional, demonstrando um certo desconhecimento da lei por parte
das instituições, da família e da sociedade que os encaminham para este Órgão
.
Esse diagnóstico revela a constante ocorrência de inúmeras apreensões ilegais de
adolescentes (e inclusive de crianças) durante aquele período
17
. Casos de inadaptação social,
familiar ou escolar; permanência nas ruas (“vadiagem”); afastamento do lar; uso de drogas
(geralmente substâncias alucinógenas como cola e solvente); e indisciplina, foram tratados
como “delinqüência” e, portanto, passíveis de recolhimento e confinamento temporários,
numa demonstração da eficácia do procedimento (i)legal a serviço da mentalidade punitiva
em torno daqueles que, na sua maioria, eram vítimas da omissão e negligência da família, do
Estado e da sociedade.
Outra particularidade, na estatística apresentada pela autora, refere-se à baixa
ocorrência de apreensões por infrações graves (aquelas cometidas mediante grave ameaça ou
violência contra a pessoa). Parte das práticas que de fato poderiam ser configuradas como
infração naquele período encontra-se tipificada no Código Penal, de 1940, como “crime
contra o patrimônio” (furtos e roubos), o que, além de comprovar ser um mito o
hiperdimencionamento que a mídia e a sociedade fazem em torno da participação de
adolescentes em atos infracionais, revela também a influência negativa da sociedade de
consumo no comportamento de adolescentes, que muitas vezes buscam reconhecimento e
senso de pertencimento, por meio da aquisição de bens e produtos inacessíveis à maioria
17
Segundo a pesquisa, do total da demanda compreendida naquele período, 297 adolescentes receberam a
medida privativa de liberdade, sendo que desse número, 57 praticaram homicídios; 42, furtos; 15, lesões
corporais; 17, assaltos; 11, arrombamentos. Os demais estão distribuídos em categorias como: estupro, fuga do
CASA (Centro de Apoio Social ao Adolescente, destinado ao cumprimento da medida privativa de liberdade,
atualmente denominado CEM – Centro de Educação Masculino), “distúrbio”, baderna, desobediência, vadiagem,
danos materiais, uso de “tóxico”, dentre outros.
65
deles. Nesse sentido, a criminalidade passa a ser um produto inevitável da sociedade de
consumidores.
De modo geral, são situações que demonstram a crassa violação dos princípios
consignados na normativa legal a serviço de uma política de controle; seja pelas apreensões
arbitrárias executadas pelo aparato policial – considerando que a maioria das apreensões se
deu por motivo de “vadiagem”, “desobediência” e “baderna”, (que de acordo com a lei, não
configuram atos infracionais, nem mesmo “desvios”) - seja pelo uso arbitrário e
indiscriminado da medida privativa de liberdade, por parte do representante do judiciário, em
comparação ao número de infrações graves cometidas durante aquele período, indicando uma
conservação da mentalidade encarceradora por parte dos operadores da justiça.
O resultado da baixa efetivação da normativa legal e da insuficiente
operacionalização da política de atendimento no órgão, conseqüência da prevalecente
operação da justiça sob a lente encarceradora do Código de Menores, eclodiu numa forma
explícita de violência, quando no dia oito de maio de dois mil e quatro sete adolescentes
morreram carbonizados, após atearem fogo nos colchões do alojamento em que se
encontravam recolhidos, aguardando deliberação da Delegacia e/ou do Juizado, numa
tentativa fracassada de fuga.
De acordo com o levantamento documental realizado, o alojamento continha oito
adolescentes, o que significa dizer que funcionava com o limite máximo de lotação. Duas das
vítimas já se encontravam a doze dias na unidade – respondiam por assalto à mão armada -
aguardando deliberação da Delegacia e do Juizado. Outro, oriundo do abrigo masculino –
administrado e mantido pela SASC, permanecia no local já a seis dias devido ao porte de um
vidro de cola; um quarto adolescente, aprendido pelo mesmo período de tempo, ali estava por
ter provocado uma rebelião na Casa de Punaré
18
. Assim como o anterior, aguardava
deliberação do Juizado. Um quinto adolescente que respondia por prática de homicídio, se
encontrava a dois dias na unidade. Outro, apreendido por furto, chegara no dia anterior, e o
sétimo, apreendido por roubo, chegara na manhã do dia oito de maio (o incêndio ocorreu no
período da noite). Aguardavam deliberação da Delegacia. O óbito ocorreu no dia seguinte, nas
18
A “Casa de Punaré” é um abrigo da rede municipal voltado para o atendimento de
adolescentes do sexo masculino em processo de rompimento dos vínculos familiares e
expostos a situações de violência. Possui capacidade de atender a seis adolescentes a cada três meses,
tempo em que os mesmos são submetidos a acompanhamento psico-social e pedagógico. As famílias, por sua
vez, também são acompanhadas por assistentes sociais, que buscam fortalecer os vínculos e preparar o ambiente
familiar para receber o jovem novamente
.
66
dependências do Hospital Getúlio Vargas, para onde foram encaminhados, conforme registro
no livro de controle de entradas de adolescentes da equipe técnica da Ação Social
Especializada.
O único sobrevivente chegara ao Complexo no dia 28.04.2004, por prática de
roubo qualificado e formação de quadrilha. Estava a onze dias na unidade aguardando
deliberação da Delegacia e do Juizado.
Conforme é possível observar, duas das sete vítimas fatais, oriundas de abrigos,
ali se encontravam por práticas que não justificavam a apreensão e muito menos a
permanência na unidade aguardando deliberação do Juizado, instância à qual deveriam ser
encaminhadas apenas demandas infracionais que necessitam da aplicação de medida sócio-
educativa.
O que torna a situação ainda mais grave, é que uma das vítimas ali estava por
“porte de um vidro de cola”. Há muito se sabe que uma questão de saúde não pode ser tratada
como caso de polícia. Mesmo quando o uso da droga ou da substância alucinógena ou
psicoativa está associado a prática de infrações, é necessário considerar o problema não
isoladamente, mas relacionando-o a outros fatores resultantes do abandono, da ausência de
cuidados especiais, da desorganização pessoal e familiar, com vistas a perceber o ato a partir
do entendimento da problemática, que na maioria das vezes está relacionada a condições de
vida precárias e extenuantes.
Além desses, outros dois adolescentes, apreendidos por infração passível de
medida sócio-educativa (assalto à mão armada), jamais deveriam ter permanecido por duas
semanas numa unidade (situação análoga ao do sobrevivente) que serve apenas como “porta
de entrada” do sistema sócio-educativo, tendo em vista que o Centro de Internação Provisória
- CEIP, onde o adolescente pode permanecer pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias
antes da sentença, já funcionava desde o início do ano de 2003.
19
Tudo isso leva a crer que a tragédia poderia ter sido evitada se as garantias
processuais tivessem sido respeitadas pelos operadores da justiça. Nesse sentido, bastava
apenas que pelo menos duas das garantias processuais tivessem sido observadas: a liberação
do adolescente a qualquer um dos pais ou responsável sob termo de compromisso e
responsabilidade ao representante do Ministério Público, ou o respeito aos princípios da
19
Cabe lembrar que mesmo a internação provisória - medida excepcional de privação de liberdade - deve ser
determinada em decisão fundamentada, como todo provimento de natureza judicial, o que significa dizer que
requer indícios suficientes de autoria e materialidade, além de comprovada necessidade de aplicação da medida.
67
excepcionalidade e brevidade no atendimento, de modo a impedir que o adolescente
permanecesse privado de liberdade por período superior ao estritamente necessário.
O resultado do inquérito aberto pela polícia civil para apurar os fatos que
envolveram o incêndio
20
, apontou como responsáveis indiretas pela tragédia: a Secretária
Estadual de Assistência Social e da Cidadania - SASC, por não oferecer condições adequadas
de funcionamento do Complexo; a Coordenadora do Complexo na época, por não fazer
gerência junto à SASC para garantir a adoção das medidas de segurança necessárias e a
Delegada da DSPM, por deixar de fazer a devida comunicação à autoridade judicial
competente sobre a situação dos adolescentes que lá se encontravam.
Foram indiciados como responsáveis diretos: a mãe de um dos adolescentes
mortos, que teria dado ao filho uma caixa de fósforos e uma carteira de cigarros, durante uma
visita; e um dos policiais militares responsável pela segurança, que não realizou a vistoria do
adolescente após a visita da mãe, conduzindo-o de volta ao alojamento com os instrumentos
causadores da tragédia.
Cabe notar, porém, que o inquérito nada fala acerca da responsabilidade do
Ministério Público, do Juizado da 2ª Vara da Infância e Juventude ou da Defensoria Pública, o
que torna o procedimento de apuração parcial e incompleto. Vejamos por que:
- o Estatuto estabelece que o Ministério Público funciona como “guardião” dos
direitos da criança e do adolescente, cabendo, dentre as suas competências, instaurar
sindicâncias e requisitar diligências investigatórias para apuração de ilícitos ou infrações às
normas de proteção à infância e juventude. Então, como isentar da responsabilidade o
representante de um órgão que se omitia diante de apreensões e confinamentos arbitrários no
interior do Complexo, quando reunia poderes para inclusive pedir a interdição da unidade em
face da comprovação de irregularidades?
- quanto ao juizado, não diferentemente do Ministério Público, o Estatuto define
que também cabe zelar pela defesa dos direitos infanto-juvenis, podendo inclusive aplicar
penalidades administrativas nos casos de infrações contra norma de proteção a criança ou
adolescente. Assim sendo, como deixar de fora das investigações um órgão que legitimava o
cárcere de adolescentes na medida em que dele dependia a autorização de liberação ou a
aplicação de outras medidas? Pois, conforme comprovam os encaminhamentos de entrega dos
adolescentes pela Delegacia à ASE, parte deles encontrava-se na unidade “à disposição do
20
Disponível no site www.acessepiaui.com.br/arquivo/200408/81b024c001b2f46.doc
68
juiz”, inclusive aqueles oriundos dos abrigos, que por seis dias aguardavam a liberação pelo
órgão.
É como se o Complexo devesse ter a representação de “castigo”, cuja duração
dependia do olhar daqueles que julgam sob a lente de uma moral subjetiva, preconceituosa,
eivada de estereótipos. Nesse caso, conforme observa Passetti (1999, p. 61), “o circuito
punitivo se faz e refaz em torno da noção de prevenção, que supõe persuadir as pessoas a não
cometerem determinados atos com base na aplicação do castigo. Funda-se, com isso, uma
ontologia do crime”.
- acerca da Defensoria Pública, informações revelam que na época da tragédia
havia apenas um Defensor designado para atuar na unidade, mas na prática registrava-se
apenas uma tímida atuação de um estagiário. Somente após o incêndio é que foram
designados dois defensores concursados para trabalhar na defesa de adolescentes, o que vem
comprovar a omissão do órgão, e mais uma vez do Estado, haja vista que a prestação de
assistência judiciária integral e gratuita àqueles que dela necessitam, é uma prerrogativa
constitucional prevista no Estatuto.
Essa realidade remete à análise de Oliveira, S. (1999) sobre o sistema penalizador
voltado para adolescentes com prática de ato infracional. Segundo a autora, o tempo de
confinamento do adolescente responde de maneira estratégica a uma política de controle. Para
mantê-la, o promotor (Ministério Público) simboliza não a figura do guardião do adolescente,
mas do Bem-Comum, que nesse caso representa a garantia dos bens (dos outros) em
particular. Age, assim, como o interceptador de indivíduos que ousam investir contra a
propriedade, já que a maioria das infrações registradas é contra o patrimônio.
O juiz aparece no espectro da defesa da ordem pública como a incorporação da
lei, cuja prescrição valoriza o cárcere em nome do Bem-Comum, percorrendo um caminho
que vai pela via oposta dos princípios propugnados pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente, justificando pela via moral a interceptação desses jovens.
Disso resulta, conforme revela a experiência do Complexo, que mesmo as
instituições que no plano sócio-jurídico-legal deveriam promover a garantia dos direitos
humanos e sociais, terminam por favorecer a idéia da negação da liberdade como mecanismo
de preservação do “Bem-Comum”, não importando se esse aparato repressivo nega a plena
expansão e emancipação desses indivíduos sociais.
Tal situação reflete a perpetuação de um círculo vicioso perverso, de caráter
punitivo-repressivo, o qual encontra expressiva adesão da mídia e da opinião pública, que
passam a reclamar o uso da violência pelo Estado como forma de garantir a segurança da
69
sociedade, o que, conforme observa Passetti (1999, p. 60), “elucida a importância da
naturalização do castigo numa sociedade incapaz de lidar com situações adversas, de modo
que expulsá-las passa a ser o meio de se chegar a purificação do mal”.
Em contraposição a essa “cultura da punição”, Foucault (1987) observa que a
prisão não só fracassou na sua suposta função de transformação do indivíduo, como não
consegue diminuir a taxa de criminalidade, ao contrário pode aumentá-la, multiplicá-la,
transformá-la.
A prisão não pode deixar de fabricar delinqüentes. Fabrica-os pelo tipo de existência
que faz os detentos levarem: que fiquem isolados nas celas [...], é de qualquer
maneira não ‘pensar no homem em sociedade’. [...] A prisão fabrica também
delinqüentes impondo aos detentos limitações violentas; ela se destina a aplicar as
leis, e a ensinar o respeito por elas; ora todo o seu funcionamento se desenrola no
sentido do abuso de poder. [A prisão] favorece a organização de um meio de
delinqüentes, solidários entre si, hierarquizados, prontos para todas as cumplicidades
futuras [...] E nesses clubes é feita a educação do jovem delinqüente que está em sua
primeira condenação. O primeiro desejo que nele nascerá será de aprender com os
colegas hábeis como se escapa aos rigores da lei; a primeira lição será tirada dessa
lógica cerrada dos ladrões que o leva a considerar a sociedade como inimiga [...] ele
agora rompeu com tudo o que o ligava à sociedade
(Ibidem, p. 222).
Em linhas gerais, a prisão, no interior de uma sociedade cuja ética é disciplinar e
de controle, não se mostra orientada pelos critérios universais da cidadania; antes, traz
consigo efeitos perversos que desumanizam o homem e justificam o seu alijamento do tecido
social, impedindo o seu reconhecimento como pessoa, classe, gênero ou raça. No caso do
adolescente, pode representar a perda de sua identidade e a assimilação de estereótipos que
comporão o seu ethos e que, por conseguinte, inviabilizarão a construção de projetos capazes
de recuperar a dignidade e a liberdade desse jovem.
Assim, ao invés de promover a ressocialização, a prisão funciona como espaço de
aprimoramento da delinqüência e de acelerada corrupção humana. Vista desse ângulo, “a
tolerância com reclusões para adolescentes é mais do que a expressão da moral diante do
inaceitável; é também o atestado, no Brasil, de que o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao
pretender garantir a formação do futuro cidadão, não passa de letra morta” (PASSETTI, 1999,
p.64).
Numa leitura macroscópica dessa realidade, observa-se que, além da prevalecente
cultura da punição legitimada pelo Código de Menores, tanto a Constituição Federal como o
ECA foram conquistas que se efetivaram concomitante à diminuição do Estado social, que
trouxe consigo a progressiva desregulamentação do sistema de garantia de direitos, exigindo
cada vez mais que o indivíduo sobreviva com seus recursos, sem a proteção social pública.
70
Autores como Wacquant (2001) observam que a diminuição do Estado social veio
acompanhada da ampliação do Estado penal, revelado pela tendência mundial de ampliação
das populações carcerárias, especialmente nos países marcados por fortes desigualdades
sociais, como é o caso do Brasil, onde nunca houve uma efetiva constituição do Estado de
Bem-Estar Social.
Com base nisso, é relevante pensar sobre o efeito que órgãos transgressores de
suas responsabilidades têm sobre o adolescente. Teixeira (2004, p. 104) analisa que tal
situação cria “um círculo vicioso perverso sem rupturas: o mundo produz estes adolescentes
que devem ser responsabilizados por suas ações, e quando vão cumprir aquilo que é
designado pela lei, encontram uma situação de violência que os produz mais violentos”. É
como se estivessem condenados a viver com o estigma da delinqüência, reproduzindo,
reiteradas vezes, práticas delituosas, numa comprovação de que a detenção, principalmente se
arbitrária, provoca a reincidência (FOUCAULT, 1987).
Nesse contexto em que direitos são violados, a ética voltada para a dignidade dos
adolescentes como seres livres é negada pela perpetuação de preconceitos e práticas
discriminatórias e intolerantes; que tanto justificam a manutenção dos dispositivos carcerários
para aqueles adolescentes produtores de mal-estar na sociedade, como perpetuam a moral do
ressentimento ligada ao ideário de periculosidade.
2.2 Os efeitos da tragédia na reforma institucional
Depois da tragédia, o funcionamento do Complexo, que já vinha sendo discutido
por setores públicos e entidades ligadas à área da criança e do adolescente, ganha maior
evidência. A ampla repercussão social que adquiriu, provocando a imediata reação dos
organismos de defesa da criança e do adolescente, mobilizando inclusive o meio acadêmico,
fizeram com que os efeitos da tragédia atingissem repercussão internacional. Através do
Fórum dos Direitos da Criança e do Adolescente – Fórum DCA, o programa internacional,
projeto desenvolvido em parceria pelo GAJOP
21
- Gabinete de Assessoria Jurídica às
21
O GAJOP - Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares, criado em 1981, é uma entidade da
sociedade civil voltada para a promoção e defesa dos direitos humanos, com Status Consultivo Especial no
Conselho Econômico e Social (ECOSOC) da ONU. Possui atuação especializada na área da justiça e segurança
com abrangência nacional. Sua missão institucional é contribuir para a democratização e o fortalecimento da
Sociedade e do Estado, como condição essencial para a plena validade da cidadania. Tem como objetivos: a)
contribuir para a efetivação do direito à segurança e à justiça, b) contribuir para a garantia e a preservação da
vida, da integridade física e psicológica e da liberdade dos cidadãos; c) dar atenção especial a promoção dos
71
Organizações Populares - e MNDH-NE - Movimento Nacional de Direitos Humanos -
Regional Nordeste, encaminhou, na época, uma comunicação para o Relator Especial da ONU
denunciando o que denominou de “massacre” de sete adolescentes no Complexo de Defesa da
Cidadania
22
.
A denúncia enfatiza algumas falhas no atendimento aos adolescentes dentro da
estrutura de responsabilidade do Estado, como a precariedade da infra-estrutura; a ausência de
profissionais qualificados; a retenção de adolescentes por um período maior à duração legal e
a falta de programas adequados de acompanhamento.
O levantamento realizado junto aos relatórios mensais elaborados à SASC pelas
assistentes sociais da Ação Social Especializada, durante o ano de 2004, ratifica parte dessas
denúncias. Neles se apresenta como dificuldade permanente durante todo aquele ano a
morosidade dos demais órgãos que compõem o Complexo no atendimento dos adolescentes,
trazendo como grave conseqüência a superlotação dos alojamentos, que na ocasião eram
apenas no número de três para o atendimento de toda a demanda.
Outra dificuldade apresentada está relacionada à própria SASC, que segundo os
relatórios, passava por graves dificuldades financeiras, o que terminava por comprometer o
suprimento regular de recursos materiais (expediente, alimentação, higiene) à Ação Social
Especializada, contribuindo para a morosidade e comprometimento da qualidade dos serviços
prestados. Além disso, foi apontada em todos os relatórios a necessidade de supervisão
mensal pela SASC para discussão das dificuldades e melhoria do atendimento. No último
relatório, do mês de dezembro, é sugerida inclusive a contratação de uma psicóloga para
compor a equipe técnica.
Uma terceira dificuldade, diz respeito à inexistência e/ou precariedade dos
programas de proteção e de medidas sócio-educativas, que terminava por comprometer ou
mesmo inviabilizar o encaminhamento dos adolescentes a medidas compatíveis com as suas
especificidades.
Um balanço crítico desses relatórios aponta para a posição de denúncia dos
assistentes sociais diante desse quadro tenso, contraditório e de violação de direitos, no qual o
direitos das crianças e adolescentes; d) garantir o foco da construção de uma cultura dos Direitos Humanos nas
diferentes formas de intervenção. É filiado ao Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), à
Associação Nacional de Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (ANCED), à Plataforma
DHESCDireitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, e à Associação Brasileira de Organizações Não
Governamentais (ABONG). É também registrado no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e
reconhecido como de interesse público por lei estadual e federal
22
Disponível no site boletimgajop.blogspot.com/2004_06_01_archive.html - 24k -
72
profissional não detém poder de gerência e de decisão sobre o destino dos adolescentes sob
sua custódia.
Isso se dá porque o traço predominante nos campos requisitantes da atuação desse
profissional é a sua subalternidade técnica, em razão, muitas vezes, do autoritarismo presente
no meio institucional. No caso do Complexo, a autonomia do assistente social apresenta-se
especialmente limitada pela coexistência de outros agentes presentes no campo de ação,
tornando um grande desafio fazer com que esse campo de correlações de força se mantenha
direcionado para a garantia de direitos. Nesse caso, a denúncia apresenta-se como o
mecanismo possível e viável.
Esse mecanismo, porém, não foi suficiente para alterar as abusivas práticas de
disciplinamento e regulação dos adolescentes no interior da unidade. Foi necessário que a
tragédia ecoasse como força maior de denúncia junto à sociedade local e a organismos
internacionais, numa comprovação de como adolescentes eram submetidos a um poder
institucional autoritário e violento.
Foi somente a partir dessa repercussão que gradativas alterações começaram a se
processar na dinâmica institucional. Aparecem como mudanças, logo no mês da tragédia –
sem qualquer associação, porém, com o contexto em questão - a troca dos extintores
vencidos; a limpeza e pintura de um dos alojamentos (provavelmente o que fora danificado
pela chamas); a criação de um livro de registro das atividades da equipe técnica da ASE;
mudanças no relatório de entrada do adolescente; recebimento de lanternas para melhoria das
vistorias noturnas e capina do mato, tornando a área externa visível e dificultando o acesso de
estranhos.
No mês de junho é registrada a mudança da Coordenação da Unidade; o
levantamento do muro (fundo e lateral direita) e colocação de arames para reforçar a
segurança; recebimento de um alicate de pressão, para ser usado em situações emergenciais
23
,
além de uma inspeção pelo Corpo de Bombeiros. Reunião da equipe técnica da ASE com a
equipe da Delegacia com o objetivo de reavaliar e melhor estruturar o atendimento na
unidade.
Em julho a unidade recebeu vinte colchões não inflamáveis, para uso dos
adolescentes; a instalação de seis holofotes na área externa com a finalidade de iluminar os
alojamentos; o encaminhamento de ofícios da Coordenação da unidade ao Ministério Público
e à Defensoria informando a situação dos adolescentes apreendidos; mudança de Delegado na
23
Segundo relatos, o calor das chamas, no dia da tragédia, dificultou a abertura dos cadeados que fechavam as
grades do alojamento, o que gravemente comprometeu a intervenção de socorro às vítimas.
73
Delegacia, o que na avaliação da equipe técnica da ASE aparece como tendo parcialmente
contribuído para a agilização dos encaminhamentos.
No geral, porém, não foram mudanças que interferiram na operacionalização dos
serviços, haja vista que o ano de 2004 registrou um total de 3.072 adolescentes encaminhados
a unidade, sendo que mais de 10% das apreensões (o total de 321 adolescentes) ocorreu por
“distúrbio”, uma categoria que, conforme já discorremos, não configura ato infracional, antes
são resultantes da postura valorativa conservadora dos agentes que operam o sistema.
No relatório do mês de abril do ano seguinte, 2005, encontramos o registro do
início da reforma do Complexo, que consistiu, dentre outras mudanças, na ampliação do
número de alojamentos. A partir de então, a estrutura passou a contar com seis alojamentos
com capacidade para quatro adolescentes do sexo masculino cada um, e três com capacidade
para dois adolescentes, o que equivale a um espaço com capacidade geral de acomodação para
trinta adolescentes do sexo masculino. Para o sexo feminino estão destinados dois
alojamentos com capacidade de acomodação de quatro adolescentes cada um, perfazendo o
total de oito leitos.
Assim como no projeto original, os alojamentos consistem em pequenos espaços
equipados com camas de concreto, banheiro e grades. A diferença reside no material
empregado nas paredes. Após o incêndio, os tijolos envernizados receberam reboco de areia e
cimento, uma constatação tardia de que o material anterior tornava o ambiente inflamável em
caso de incêndio. Com a reforma, o acesso ao local, que antes se dava através do corredor
central, onde ficam localizadas as salas da Coordenação, da equipe técnica da ASE e do apoio
administrativo; atualmente se dá por uma entrada interna lateral por onde trafegam apenas os
servidores da unidade, de modo que não há qualquer visibilidade do espaço. Ali os
adolescentes ficam sob a supervisão dos “educadores sociais” e policiais militares da Ação
Social Especializada.
O discurso predominante é que a área de acesso sofreu alterações com o objetivo
de preservar a segurança dos adolescentes, haja vista que o espaço podia ser visualizado por
quem estivesse na recepção da unidade. O fato é que, com a reforma os adolescentes
permanecem longe dos olhos dos operadores da justiça, tornando-se como que “invisíveis” ,
favorecendo a ausência de perturbação da ordem institucional .
No mês de maio de 2005 registrou-se nova mudança no Delegado Titular da
Delegacia. Foram realizados dois cursos pela SASC: um de capacitação continuada
denominado “Projeto Educar, Reflexão, Contextualização e Prática com os Educadores”,
voltado para os servidores lotados nas unidades da Secretaria que trabalham com o segmento
74
juvenil, e outro promovido pelo Corpo de Bombeiros voltado exclusivamente para os
Educadores Sociais do CDC. Houve também a contratação pela SASC de um técnico na área
do Serviço Social para trabalhar no período noturno na Ação Social Especializada.
No mês de junho, encontramos um dos principais registros que apontam para as
primeiras mudanças na Delegacia no que se refere aos procedimentos operacionais. Por
determinação do novo Delegado Titular, membro do Conselho Estadual dos Direitos da
Criança e do Adolescente, torna-se expressamente proibida a apreensão de adolescentes,
senão em flagrante de ato infracional ou por ordem judicial, realizando nada mais do que o
cumprimento das garantias constitucionais e estatutárias, mas que analisada à luz da histórica
prática de violência do órgão representa um significativo avanço.
Os efeitos da medida podem ser vistos pela estatística de apreensões registradas
naquele ano. Apesar de a mudança ter sido implementada no final do primeiro semestre de
2005, houve uma redução em 40% (quarenta por cento) no número de adolescentes
apreendidos em relação ao ano anterior. Em outras palavras, registrou-se 1.862 apreensões
contra 3.072 do ano de 2004.
Em 2006 registrou-se o total de 1.026 apreensões, o que representa uma redução
de 45% (quarenta e cinco por cento) em relação ao ano anterior, e de aproximadamente 67%
(sessenta e sete por cento) em relação a 2004
24
. Já no ano de 2007, durante os meses de
janeiro a abril, compreendidos pela pesquisa, foram registradas 216 apreensões, sendo 52 em
janeiro; 50 em fevereiro; 43 em março e 71 em abril.
Com base nesses dados, a Delegacia é, portanto, o Órgão que mais apresentou
significativas mudanças no Complexo, conseguindo alterar a própria dinâmica institucional.
Como “porta de entrada” da unidade, tem funcionado como uma espécie de “filtro” das
demandas que chegam, colaborando para um melhor fluxo do atendimento em todo o sistema.
É o que revela a fala de uma assistente social da ASE.
Antes [havia] um delegado que tinha uma visão boa em termos de teoria do Estatuto,
mas ele não procurava, na prática, efetivar aquilo, o que tava lá na lei, mas hoje o
Delegado atual se preocupa muito com isso, ele está fazendo as coisas dentro da lei,
e acho assim, se nós perdermos esse Delegado, se ele for remanejado pra algum
lugar, pode acontecer a mesma situação. [A melhoria] também se deve ao fato desse
24
Dados apresentados no Plano Estadual de Atendimento Sócio-educativo elaborado pela SASC (quadriênio
2003-2007), informam a redução em 71% no índice de apreensões irregulares de adolescentes no período de
2003 a 2006, como parte do reordenamento sócio-jurídico realizado no Estado. Esse índice tem por base a
ocorrência de 8.859 apreensões no Complexo de Defesa de Cidadania de Teresina, e de 2.557 no Complexo de
Defesa da Cidadania de Parnaíba-Pi, que funciona desde 1998, entre janeiro de 2003 a dezembro de 2006. Não
há dados sobre a unidade de Picos-Pi, inaugurada em maio de 2007
75
bom relacionamento, da postura dele enquanto profissional, ele procura tá
trabalhando de forma articulada, quando ele tem assim, qualquer dúvida com relação
a alguma coisa, ele procura a Ação Social, ele tem essa humildade de tá conversando
com a gente, procurando como melhor proceder (A. Social “A”).
Isso prova que se o conhecimento teórico da lei não vier acompanhado de
mudanças nas posturas valorativas, os operadores da justiça jamais produzirão mudanças na
conduta de seus procedimentos e, portanto, a materialidade da lei não será efetivada. A fala da
assistente social revela ser esse o fator preponderante na efetivação das mudanças
experimentadas até o momento, de modo que a perda desse referencial pode representar um
retrocesso nos ganhos obtidos até o momento.
Outro aspecto apontado, diz respeito à favorável interlocução entre os órgãos que
compõem o sistema. Nesse caso, o Serviço Social tornou-se um espaço de referência para a
Delegacia, nas discussões sobre encaminhamentos a serem adotados, oportunizando ao
assistente social colocar o seu saber-poder a serviço da defesa dos direitos dos adolescentes.
Como conseqüência dessa reestruturação operacional, verificamos, no
levantamento realizado, que as 217 apreensões ocorridas no período de janeiro a abril de
2007, foram principalmente referentes a infrações tipificadas como homicídio (o total de 06),
tentativa de homicídio, assalto à mão armada, ameaça, lesão corporal, danos materiais,
receptação de objetos roubados, tráfico de drogas, estupro, roubo, furto e porte de arma
branca e/ou de fogo, sendo a maior incidência relativa às três últimas modalidades (o total de
99 apreensões). Não há registros de apreensões por categorias como “baderna”,
“desobediência” ou “vadiagem”. Além disso, o número total de apreensões inclui também
adolescentes oriundos de comarcas do interior, encaminhados para cumprimento de medidas
sócio-educativas.
Para os casos em que o ato infracional não exige a abertura de procedimento, em
razão da irrelevante gravidade ou ausência de materialidade, o Delegado procede a imediata
liberação, encaminhando o adolescente à ASE que providencia o retorno dele à família,
conforme se verifica nas declarações de duas assistentes sociais da Ação Social Especializada:
Todos os adolescentes que entram pela Delegacia, não tendo ocorrido a gravidade do
ato, ele [o Delegado] coloca logo à disposição da ação Social Especializada. Sempre
é colocado à disposição para que nós possamos viabilizar o remanejamento dele [do
adolescente] pra casa (A. Social “A”).
Na Delegacia [...] geralmente quando configura um caso, por exemplo, de conflito
familiar, um caso que não seja perfil daqui da instituição, eles colocam à disposição
da ASE, no próprio encaminhamento; eles sempre colocam à disposição e aí nós
articulamos o carro, o transporte, o educador, um termo da ASE, pra deixar o
adolescente em casa, junto à família. [...] eu tenho percebido que o Delegado
76
“filtra” muito, quando chega [o adolescente] [...] se foi mesmo um furto, um roubo,
mas não tem nem procedimento, não tem vítima, não tem denúncia, nem objeto, na
Delegacia, ele [o Delegado] libera o adolescente. Muitas vezes o adolescente nem
entra aqui pra a ASE, pros alojamentos (A. Social “B”).
Verificamos, no entanto, que continua sendo uma prática comum o
encaminhamento de adolescentes do CEM e do CEIP para o Complexo de Defesa da
Cidadania, sempre que algum comportamento agressivo (contra o corpo funcional ou contra
outros internos) se manifesta. Os relatórios da ASE referentes aos meses de janeiro a abril de
2007, por exemplo, informam o total de 15 adolescentes daqueles centros encaminhados ao
Complexo.
Tal situação remete à mesma discussão tratada anteriormente, que não somente
passa pela questão do preparo e capacitação do corpo técnico e funcional das unidades para
lidar com o adolescente, mas também pela própria identidade do profissional com a natureza
do serviço a que é chamado a executar. Nesse caso, além do despreparo, valores e
preconceitos subjacentes a cada um terminam por influenciar fortemente as posturas e
concepções que serão adotadas. A fala de uma assistente social da ASE traz à tona esse grave
aspecto:
Têm profissionais do concurso agora [realizado pela SASC] que foram colocados
pra trabalhar em medidas sócio-educativas que se trancam em suas salas com medo
dos adolescentes, porque não foram preparadas para estarem trabalhando com esse
público. Eu acho isso gravíssimo (A. Social”A”).
Disso presume-se que deveria haver um criterioso processo de seleção para esse
tipo de atividade, com vistas a assegurar um trabalho efetivamente educativo, afinado com a
proposta pedagógica que esse tipo de atividade requer. O processo de seleção deveria começar
indagando sobre a identidade do servidor chamado a operar a proposta de trabalho; o seu
perfil sócio-cultural e profissional; suas crenças, valores e convicções; suas expectativas e
temores em relação à atividade a que é chamado a executar.
Infelizmente essas questões não aparecem como critério pelo Órgão empregador,
onde muitas contratações [ainda] ocorrem por indicação política partidária, e não por
afinidade ou competência para com o tipo de trabalho a que se é chamado a executar. É o que
revela o seguinte depoimento:
Uma coisa que eu acho que dificulta [o trabalho] é essa “enxurrada” de educadores,
prestadores de serviço que entram sem serem capacitados. Eles entram sem o menor
preparo, sem ter conhecimento de nada, com os valores deles muitas vezes
77
distorcidos, e aí pegam esses educadores e colocam com os adolescentes. Eles não
têm essa postura educadora. Se as medidas são sócio-educativas, eles têm que ter
essa postura de estarem ali, mesmo no dia deles, no momento em que vão oferecer
um alimento pra os adolescentes, conduzir os adolescentes para o banho de sol, têm
que ter essa postura. Tinha que ter mais seriedade na contratação e, se esses fossem
contratados tinha que haver um preparo antes pra eles estarem assumindo. Não é
assim, porque aqui tem suas especificidades e elas têm que ser levadas em conta (A.
Social “A”).
A partir disso, cabe indagar sobre o compromisso e o respeito que a instituição
empregadora possui em relação aos direitos do adolescente ao inserir, em seu quadro
funcional, pessoas que não possuem qualquer preparo e, muitas vezes nem identidade, para o
trabalho ao qual é chamado a executar. Entendemos que a desconsideração desses critérios
pode comprometer ou mesmo tornar inexeqüível qualquer proposta pedagógica, e o pior, pode
dar lugar a atitudes preconceituosas que mascaram formas sutis de violência.
Defendemos que a filosofia institucional deve priorizar como linha de ação, que o
momento de permanência do adolescente na unidade, apesar de sua curta duração, como é o
caso do Complexo, deve oportunizar uma vivência positiva, na perspectiva da promoção
humana e social desse adolescente.
De todos os órgãos, o último a ser incorporado ao Complexo foi a Defensoria
Pública. Conforme vimos, no período anterior à tragédia de 2004 não havia uma efetiva
participação de um defensor na assistência jurídica gratuita aos adolescentes.
Durante o levantamento realizado no mês de fevereiro de 2007, o Núcleo da
Criança e do Adolescente, instalado no Complexo, contava com duas defensoras e mais uma
equipe formada por estagiários do Serviço Social e Psicologia.
Com base no levantamento realizado, o núcleo desenvolve ações de assistência
judicial e extrajudicial no Complexo de Defesa da Cidadania. As ações judiciais envolvem o
acompanhamento do adolescente nas fases pré-processual (quando ingressa no Complexo),
processual (no acompanhamento das audiências), execução e desligamento das medidas
sócio-educativas. Realiza também pedido de incidentes durante a execução, como a
progressão de medidas, por exemplo.
Durante o período de cumprimento da medida sócio-educativa o Núcleo visita os
programas, realiza palestras e faz a avaliação das atividades através dos relatórios das
unidades; a fim de verificar se as medidas estão sendo positivas para a reintegração do
adolescente à sociedade e, em especial, à família que acompanha o caso.
As ações extrajudiciais compreendem o apoio social a crianças e adolescentes em
situação de risco, envolvidos ou não em práticas de atos infracionais. Nesse caso, realizam
78
atendimento a famílias que buscam espontaneamente o Núcleo, bem como os familiares de
adolescentes que passam pelo Complexo, mas não respondem a procedimentos. Para esses
casos, o Núcleo trabalha em parceria com a rede de serviços públicos (estadual e municipal) e
privados nos encaminhamentos das demandas de acordo com as suas especificidades.
Quanto à SASC, que através da Unidade de Atendimento Sócio-Educativo –
UASE – é responsável pela elaboração, coordenação e execução do atendimento de medidas
sócio-educativas no Piauí, a tragédia serviu para a elaboração do Plano Estadual de
Atendimento Sócio-educativo para o quadriênio 2003-2007. Esse dado não teria relevância
alguma se o Plano Estadual de Assistência Social para o triênio 2000-2003 tivesse
apresentado propostas voltadas para os adolescentes envolvidos com atos infracionais.
Segundo Ferreira, M. (2006) o Plano contemplou ações setoriais destinadas a crianças,
adolescentes, idosos, portadores de deficiência, mas nenhuma proposta voltada
especificamente àquele segmento e sua família.
O Plano Estadual de Atendimento Sócio-educativo surge como proposta de
intervenção direcionada a adolescentes em conflito com a lei, buscando responder todos os
aspectos que envolvem a operacionalização das medidas sócio-educativas, tendo por respaldo
as propostas aprovadas nas V e VI Conferência Estadual da Criança e do Adolescente
25
e as
diretrizes do SINASE
26
– Sistema Nacional de Atendimento Sócio-Educativo, ao qual nos
referimos no início deste capítulo.
25
A V Conferência Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, promovida pela Secretaria de
Assistência Social e Cidadania (SASC) e pelo Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente,
realizada no período de 25 a 27 do mês de setembro do ano de 2003, teve por objetivo avaliar e propor novas
ações e estratégias para a concretização do pacto pela paz. A Conferência Magna teve como tema: Os Direitos
Infanto-Juvenis e a Justiça-Pacto Pela Paz. Contou ainda com a apresentação de três painéis: Políticas Públicas;
Violência Social e Controle Social. A VI Conferência, ocorrida no período de 03 a 05 de outubro teve como
tema central a “Participação, Controle Social e Garantia de Direitos: por uma Política para a Criança e o
Adolescente”. Três painéis foram apresentados no evento. O primeiro abordou o tema “Papel da Sociedade e do
Estado na Formulação, Execução e monitoramento de uma Política para a Criança e o adolescente”. Teve por
objetivo esclarecer a importância da participação complementar de entidades de classe, população e do poder
público para o avanço das políticas do setor. O segundo painel, “Participação Social na Elaboração,
Acompanhamento e Fiscalização do Orçamento Público” mostrou a importância de projetos voltados ao público
infanto-juvenil serem contemplados com as verbas necessárias para sua execução e manutenção. O último painel
abordou a “Participação Social na Promoção da Igualdade e Valorização da Diversidade: Gênero, Raça e Etnia,
Deficiência, Orientação Sexual e Procedência Regional”.
26
Levando-se em conta a data dos eventos e do documento que respaldaram a elaboração do Plano Estadual de
Atendimento Sócio-educativo, percebe-se claramente que o Plano, apesar de compreender o quadriênio 2003-
2007, somente foi elaborado muito depois da “tragédia do oito de maio” de 2004 e após a apresentação do
SINASE, em 2006.
79
O Plano informa que no ano de 2004 foi elaborado o primeiro projeto de
municipalização das medidas de Prestação de Serviço à Comunidade e Liberdade Assistida,
em parceria com o UNICEF; junto aos municípios-pólos do estado (Teresina, Picos, Floriano
e Parnaíba), obtendo como resultado final a adesão dos municípios de Parnaíba e Floriano.
Em vista disso, a operacionalização de tais medidas em Teresina e Picos continua sendo de
responsabilidade do poder estadual.
Em Teresina, a SASC possui como unidades para o atendimento sócio-educativo:
o Complexo de Defesa da Cidadania (“porta de entrada” do sistema); o Centro de Internação
Provisória – CEIP; o Centro Educacional Masculino – CEM (internação masculina); o Centro
Educacional Feminino – CEF (internação feminina); a Unidade Operacional de Liberdade
Assistida - LA e Prestação de Serviços à Comunidade – PSC, além da Unidade de
Semiliberdade masculina.
Apesar de a Secretaria contar com unidades destinadas a aplicação de todas as
medidas sócio-educativas previstas no ECA, é possível observar, nos relatórios da ASE, a
prevalência da medida privativa da liberdade sobre as demais. Na realidade, quase não se
observa o encaminhamento de adolescentes para medidas alternativas como LA e PSC. É o
que nos mostra a fala de uma das assistentes sociais da ASE:
Uma coisa que a gente questiona muito no juizado é exatamente isso, que a maioria
das medidas são de internação. Portanto, que as outras medidas, a liberdade
assistida, a prestação de serviços são pouco utilizadas, é mais a internação, ou a
provisória ou a sentenciada, quando o adolescente vai ficar no CEM (Assistente
Social).
Esse dado é significativo em face da 2ª Vara da Infância e da Juventude contar
com uma equipe de assistentes sociais cujas atividades estão voltadas para o acompanhamento
das medidas sócio-educativas, começando com a articulação junto ao Centro de Internação
Provisória, com vistas a fornecer subsídios a autoridade judiciária sobre aplicação da medida
mais adequada.
Decerto que não voltamos a atenção para a análise da prática desses profissionais,
pois, para efeito deste trabalho, vale lembrar, estamos interessados na prática das assistentes
sociais da Ação Social Especializada, vinculadas à Secretaria de Assistência Social e
Cidadania, por considerar que é especificamente nesse espaço da unidade, responsável pela
“custódia” do adolescente, que se encontram as maiores especificidades e complexidades que
diretamente rebatem na efetivação dos princípios consignados pelo projeto ético-político do
Serviço Social.
80
No entanto, ao levarmos em conta o privilegiamento da medida de internação em
detrimento das demais medidas sócio-educativas, a análise de Oliveira, S. (1999) parece se
ajustar a essa realidade em particular, quando afirma a autora que o padrão dos pareceres
técnicos geralmente mostra-se favorável à internação, o que, por conseguinte, coloca o
assistente social em flagrante oposição aos princípios ético-políticos da profissão, em especial
ao princípio considerado valor ético central: a liberdade.
81
CAPÍTULO III
A PRÁTICA DO SERVIÇO SOCIAL NO COMPLEXO DE DEFESA DA CIDADANIA
E OS PRINCÍPIOS ÉTICO-POLÍTICOS DA PROFISSÃO
No presente capítulo temos por desafio discutir, à luz dos princípios éticos do
Serviço Social, a prática dos assistentes sociais do Complexo de Defesa da Cidadania de
Teresina-PI, vinculados à Secretaria de Assistência Social e Cidadania - SASC, órgão
executor do atendimento de medidas sócio-educativas voltadas aos adolescentes que
respondem juridicamente pela prática de ato infracional.
Além de procurar identificar as atividades que vêm sendo desenvolvidas pelos
assistentes sociais nesse espaço heterogêneo, complexo e contraditório, objetivamos analisar
nas ações, discursos e procedimentos metodológicos, até que ponto a prática profissional
apresenta-se coerente com os princípios defendidos pelo projeto profissional, ao tempo em
que buscaremos identificar os fatores que favorecem ou limitam a concretização desses
princípios no cotidiano institucional.
1 O Serviço Social na equipe interdisciplinar: atribuições e instrumentos de intervenção
O Serviço Social da Ação Social Especializada faz parte de um quadro técnico
interdisciplinar composto por seis assistentes sociais (incluindo a Coordenadora da unidade),
uma psicóloga e uma pedagoga. As assistentes sociais encontram-se distribuídas em número
de duas, para cada turno (manhã e tarde), e uma para cumprimento de carga horária
abrangendo os dois turnos durante os finais de semana (sábados e domingos).
Do ponto de vista dos serviços, a interdisciplinaridade é salutar na medida em que
possibilita a troca de informações e conhecimentos entre diferentes áreas, promovendo uma
fecunda interlocução entre elas, além do alargamento e flexibilização dos conhecimentos.
“Sob este ângulo, a interdisciplinaridade não pretende a unidade de conhecimentos, mas a
parceria e a mediação dos conhecimentos parcelares na criação de saberes” (RODRIGUES,
2000, p. 128, grifo da autora).
82
Esse tipo de intervenção, que tem sido uma requisição cada vez mais freqüente no
mundo do trabalho
27
; tanto é adequada quanto se justifica no Complexo de Defesa da
Cidadania, em face da natureza e da proposta de trabalho ali desenvolvida, que exige
conhecimentos específicos de outras áreas, com vistas a melhor compreender o contexto em
que está inserido o adolescente que responde por prática de ato infracional.
Apesar do caráter provisório do adolescente na unidade, limitar as possibilidades
de apreensão da situação como um todo; essa intervenção envolve o estudo de suas condições
sócio-psico-pedagógicas e familiares, com vistas a levar ao conhecimento da autoridade
judiciária informações relevantes que auxiliarão na escolha das medidas que deverão ser
adotadas, sobretudo as relacionadas às medidas sócio-educativas previstas no ECA, com
vistas a reduzir a prática de erros ou injustiças.
Foucault (1987, p. 211) aponta, porém, que é a título de aplicação de mecanismos
punitivos que o infrator se constitui objeto de saber técnico, de modo que na elaboração do
inquérito criminal, a observação do delinqüente
deve remontar não só às circunstâncias, mas às causas de seu crime; procurá-las na
história de sua vida, sob o triplo ponto de vista da organização, da posição social e
da educação, para conhecer e constatar as inclinações perigosas da primeira, as
predisposições nocivas da segunda e os maus antecedentes da terceira. Esse
inquérito biográfico é essencial da instrução judiciária para a classificação das
penalidades antes de se tornar uma condição do sistema penitenciário para a
classificação das moralidades.
Sendo assim, a interdisciplinaridade tanto pode criar uma interface de saberes
voltados à problematização do contexto em que vive o adolescente, como pode ter a sua
funcionalidade voltada à lógica da institucionalização.
Conforme discorremos no início deste capítulo, o artigo 151 do Estatuto da
Criança e do Adolescente, prever a necessidade da assessoria da equipe interdisciplinar no
fornecimento de subsídios à autoridade judiciária. Por outro lado, a perícia social, é
reconhecida como uma especificidade do Serviço Social pelo Código de Ética da Profissão.
No Capítulo VI – “Das relações do Assistente Social com a Justiça” - o artigo 19 postula
como dever do Assistente Social “apresentar à justiça, quando convocado na qualidade de
perito ou testemunha, as conclusões de seu laudo ou depoimento, sem extrapolar o âmbito da
competência profissional e violar os princípios éticos contidos nesse código”. A lei que
27
Segundo Netto (1996), o período histórico em que nos situamos é marcado por transformações societárias que
afetam diretamente o conjunto da vida social, e diretamente incidem sobre as profissões, suas áreas de
intervenção, seus suportes de conhecimento e de implementação, suas funcionalidades.
83
regulamenta a profissão, outra diretriz norteadora do projeto ético-político profissional,
estabelece, por sua vez, como atribuição privativa do assistente social a realização de
vistorias, perícias técnicas, laudos periciais, informações e pareceres sobre a matéria do
Serviço Social.
A intervenção do assistente social nesses serviços caracteriza-se por uma prática
de operacionalização de direitos, de compreensão dos problemas sociais enfrentados pelos
sujeitos no seu cotidiano e suas inter-relações com o sistema de justiça. Por isso, a prática
profissional deve estar baseada em premissas éticas e precisa considerar a complexidade da
vida desses indivíduos, respeitando-os como sujeitos de direitos, não os reduzindo a uma
mera medida jurídica, colaborando, desta forma, para o reencontro de sua dignidade e de sua
cidadania, o que significa, que se trata de uma intervenção com implicações ético-políticas.
Embora tenha por objetivo a interação entre profissionais que buscam a
construção de um trabalho comum; a interdisciplinaridade, como opção teórico-metodológica
de trabalho, supõe, por sua vez, a elaboração de conceitos e práticas distintas, exigindo do
profissional a realização de estudo e avaliação de aspectos que considere relevante à prática
profissional.
No Complexo de Defesa da Cidadania, porém, observamos que a intervenção do
assistente social aparece diluída junto às demais atividades dos profissionais que integram a
equipe interdisciplinar. Inexiste no plano formal a construção de uma proposta de intervenção
específica da área, de modo que aparece no plano de ação, como parte do trabalho da equipe
técnica como um todo, e inclusive da coordenação, as seguintes atividades:
- entrevistar adolescentes e familiares ou responsáveis;
- localizar os pais ou responsáveis com a urgência necessária;
- articular permanentemente com os diferentes órgãos, visando o procedimento
sumário de cada caso;
- garantir atendimento e encaminhamento individualizado, mediante formas de
abordagem e de assistência que preservem a dignidade do adolescente atendido;
- oferecer atendimento sócio-psico-pedagógico especializado ao adolescente,
levando-o a refletir sobre as implicações da situação em que está envolvido e a iniciar a
construção de um novo projeto de vida;
- esclarecer e orientar os adolescentes sobre os direitos e garantias que a lei lhe
concede, e sobre as medidas sócio-educativas que lhe poderão ser aplicadas ao final do
procedimento;
84
- realizar investigação social através de visitas em domicílios, escolas e
comunidade, conforme solicitação da autoridade judicial de uma avaliação precisa do
contexto sócio-histórico em que está inserido o adolescente;
- elaborar relatório social do adolescente a fim de subsidiar o Ministério Público e
o poder judiciário;
-prestar atendimento às famílias que comparecerem à unidade, orientando-as
quanto à questão de problemáticas relacionadas à educação, relacionamentos familiares,
atitudes anti-sociais do adolescente, uso de entorpecentes e outros;
- desenvolver atividades pedagógicas que favoreçam a criação de um clima de
confiança, dignidade e respeito entre adolescentes e funcionários, visando o início do
processo educativo de sua reabilitação;
- promover contatos com a família, através de visitas domiciliares, no sentido de
orientá-la quanto à situação do adolescente e quanto ao papel de reinserção social do mesmo,
na circunstância em que se encontra e, posteriormente, no seu retorno à convivência familiar e
comunitária;
- efetuar, quando possível, o encaminhamento do adolescente para a rede de
atendimento local;
- trabalhar a auto-estima e o exercício da cidadania do adolescente;
- atender à demanda espontânea da sociedade fazendo o devido encaminhamento
à rede de atendimento local, como forma de promoção e prevenção a partir do caso
apresentado dos adolescentes em situação de risco pessoal e social.
- desenvolver atividades lúdico-pedagógicas como palestras, jogos, dinâmicas de
grupo, apresentação de vídeos, sessões de relaxamento, musicoterapia, sessões de pintura,
oficinas temáticas, leitura, reflexão de textos, dentre outras, proporcionando ao adolescente a
oportunidade de reflexão sobre o seu projeto de vida e ao mesmo tempo promovendo
entretenimento.
A diversidade de ações e atribuições que aparecem, assim, genericamente diluídas
no cotidiano da equipe interdisciplinar, dificulta ao assistente social a definição do que seja
específico ao seu espaço de intervenção, aspecto possível de ser observado na seguinte
declaração:
Bem, o que eu considero que seja privativo do serviço social aqui é justamente esse
contato [com o adolescente]. Nós temos uma ficha aqui, de entrevista social onde a
gente coleta dados sociais, econômicos do adolescente, então esse instrumento é
privativo nosso, não a entrevista em si, porque os psicólogos também fazem essa
entrevista. O pedagogo já trabalha mais a questão das atividades, que até existe uma
85
confusão muito grande aqui de papéis. Então, o psicólogo fazia o atendimento, a
pedagoga também fazia o atendimento e o serviço social também fazia o
atendimento, então ficava uma confusão, ninguém sabia o que era específico de uma
determinada área. Então foi feita uma reunião e a coordenadora, motivada pelo
próprio questionamento, eu mesma questionei muito, inclusive os relatórios. Você
pegava os relatórios do assistente social, do pedagogo, do psicólogo, eram idênticos.
Então a coordenadora decidiu junto com a equipe que o pedagogo ficaria
responsável pelas atividades pedagógicas. São palestras, dinâmicas, discussão de
temas com os adolescentes que ficam aqui por um determinado tempo, pra tentar
diminuir a questão da ociosidade, então, a pedagoga já fica responsável por isso. A
psicóloga já faz um atendimento onde hoje nosso relatório, ele é dividido numa parte
do assistente social onde ele vai tratar dos aspectos sociais, econômicos da família e
ela, a psicóloga vai trabalhar mais a parte comportamental do adolescente. Então
isso já foi feito (A. Social).
Apesar da referida definição de papéis, observamos que não existe, no plano
operacional, um critério acerca do uso de alguns procedimentos e instrumentos pela equipe,
de modo que, mesmo aqueles que fazem parte de uma metodologia de trabalho de domínio
específico e exclusivo do assistente social, são apropriados por profissionais das outras áreas,
como o relatório social, que durante o levantamento documental relativo aos meses de janeiro
a abril encontramos um significativo número assinado exclusivamente pela psicóloga, sem
que houvesse, pela própria natureza do documento, qualquer abordagem específica dessa área
de intervenção. É como se houvesse uma apropriação genérica do adolescente por toda a
equipe.
O relatório social é um documento que “se traduz na apresentação descritiva e
interpretativa de uma situação ou expressão da questão social, enquanto objeto da intervenção
[do assistente social], no seu cotidiano laborativo” (CFESS, 2003, p.44). Tem a função de
subsidiar, informar, esclarecer, documentar um procedimento relativo à aplicação de alguma
medida de proteção ou sócio-educativa. No geral, deve apresentar o objeto de estudo, um
breve histórico da problemática, os procedimentos utilizados e a análise da situação.
Permitir, portanto, a sua utilização por profissional de outra área representa para o
assistente social não somente a perda de seu espaço ocupacional, como também compromete
a própria identidade profissional, aqui referida
como um processo que se verifica a partir de pressupostos que consideram tanto as
exigências e as habilidades pessoais requeridas para o exercício profissional (o que
fazem), quanto aos elementos sociopolíticos estruturantes dos significados sociais (o
que são); assim como os sentidos subjetivos mobilizados pela profissão (como se
sentem) – (GENTILLI, 1997, p. 129).
86
No Complexo, o modelo de relatório utilizado enfoca a identificação do
adolescente, filiação, endereço, informações relativas ao ato infracional (inclusive se existe a
participação no cometimento de outras infrações), aspectos relacionados a renda e a dinâmica
familiar (com quem mora, relação com pais/irmãos/colaterais), a vida comunitária, a educação
(nível de escolaridade, evasão, freqüência), ao trabalho e ao uso de drogas, aspectos que, no
seu conjunto, pretendem focar a pessoa do adolescente e o contexto sócio-familiar em que
está inserido, mas que se não forem devidamente problematizados poderão resultar na
criminalização do adolescente e, não raro, de sua família.
Em face da permanência provisória do adolescente na unidade, um aspecto
observado nos relatórios sociais, destinados apenas aos adolescentes que responderão a
medidas sócio-educativas, é que eles contêm parcialidades da situação em estudo, que será
conhecida de forma mais completa no conjunto de relatórios seqüenciais que as equipes que
diretamente operam as medidas sócio-educativas encaminharão à justiça da infância e da
juventude.
Embora não busque dar ênfase ao ato infracional, observamos que tanto o
discurso dos assistentes sociais como o conteúdo dos relatórios costumam reproduzir um
caráter estigmatizante quando valorizam aspectos do meio sócio-familiar e cultural do
adolescente no contexto do ato infracional. Nesse sentido, o uso da categoria “família
desestruturada” aparece como fator preponderante no comportamento delinqüente do jovem;
de modo que, numa percepção bastante simplificada, não apenas se desqualifica a família,
como se estabelece um crivo valorativo acerca da concepção (burguesa) de modelo familiar,
não se levando em consideração o modo de viver e sobreviver de cada grupo.
Intimamente associado a esse aspecto, encontra-se a criminalização da pobreza.
Não raro a precariedade das condições materiais de vida aparece associada à concepção de
marginalidade, “explicitando o olhar e a palavra que incrimina” (OLIVEIRA, S. 1999, p. 80).
É o que, de modo geral, pode ser evidenciado nos seguintes enunciados:
esse adolescente que dá entrada aqui, é um adolescente que veio de uma família
onde a mãe é a chefe da família, onde existe a ausência do pai, onde a família é
numerosa e, geralmente não têm uma renda, não têm uma renda formal, então a mãe
vai trabalhar, os filhos ficam e aí eles mantêm contato com pessoas, com traficantes,
pessoas de má índole, que estão ali na comunidade pra corromper esses
adolescentes, eles se deixam influenciar por isso, então a gente vê assim, que vem de
uma família onde a luta maior é pela sobrevivência (A. Social “A”).
Ao chegar aqui, veja só, na minha visão, na minha perspectiva eu vejo assim, que é
um adolescente que tem uma série de fatores que contribuíram para que ele
praticasse um ato infracional. Quando ele chega aqui a gente não pode, aahhh ele é
culpado, ele fez isso, ele fez aquilo, é aquela visão meramente legalista. Fazemos
87
uma leitura de toda a vivência do adolescente, do meio em que ele vive [...]. A
maioria vem de uma família de baixa renda, famílias desestruturadas, famílias que
de certa forma, é tipo assim, um ciclo vicioso, um negócio que é passado de pai para
filho, tem essa vivência também, é um ciclo vicioso. A gente caracteriza isso como
família de baixa renda [...] às vezes aquela criança e adolescente não é criada pelo
pai, filha de mãe solteira, uma família desestruturada (A. Social “B”).
Quando não, o adolescente é qualificado em descompasso ao perfil familiar,
aparecendo as más companhias e o uso de drogas como elementos geradores do ato
infracional.
Além de revelar uma visão imediatista, carente de fundamentos críticos, o perigo
subjacente a esse olhar valorativo é a justificação da internação do adolescente perante o
representante do Juizado, o qual, geralmente atuando sob o espectro da defesa da ordem
pública, costuma valorizar o cárcere como instrumento a favor do “bem-comum”. É
importante lembrar que foi através do Código de Menores de 1979 que se atribuiu a um Juiz
de Menores o poder de encaminhamento de todos os casos de pobreza; de deficiência de
proteção pelo Estado; de ação ou omissão da família; crianças e adolescentes considerados
anti-sociais; de modo que esse ranço conservador permanece entranhado nas posturas e
concepções da maioria dos operadores da justiça.
De modo geral, os relatórios sociais são apresentados de maneira muito descritiva,
parecendo cumprir apenas uma exigência institucional, especificamente uma obrigação junto
ao Juiz, mostrando ser um dispositivo que pouco ajuda na eficácia do atendimento ou na
definição de uma medida sócio-educativa. Nesse sentido, não tem a pretensão de emitir um
parecer, ou seja, de “apresentar esclarecimentos e análises com base em conhecimento
específico do Serviço Social, a uma questão ou questões relacionadas a decisões a serem
tomadas” (CFESS, 2003, p. 47); de modo que pode desempenhar a função de aparelho
ideológico na medida em que traduz em termos especializados o discurso do senso comum
(LIMA, 1996).
Outro aspecto que também pode favorecer uma leitura míope acerca do contexto
em que vive o adolescente é a desqualificação da sua fala, especialmente quando traz
subjacente um forte apelo moral. Encontramos num relatório social a emissão do seguinte
juízo de valor: “A respeito das drogas o mesmo [o adolescente] diz que não faz uso de
nenhum tipo, porém, suas atitudes não condizem com o seu depoimento”.
Temos visto no decorrer deste trabalho, com ênfase no primeiro capítulo, que, de
acordo com o projeto ético-político do Serviço Social, a luta pelo acesso aos direitos é parte
da prática cotidiana do assistente social; e que o conceito de liberdade propugnado pelo
88
Código de Ética Profissional resgata a dimensão do homem como ser livre, sendo a liberdade
o valor ético central defendido no Código.
Assim, como qualquer outro processo metodológico no âmbito da profissão, a
elaboração do relatório social exige que os princípios éticos orientem o assistente social na
escolha do que é pertinente ou não de se registrar; com vistas à sua “devida utilização para a
garantia e ampliação de direitos dos sujeitos usuários dos serviços sociais e do sistema de
justiça” (CFESS, 2003, p.43). Nesse sentido, é necessário o profissional estar atento às
implicações de seu discurso e ações, sob pena de negar a materialização dos princípios éticos
no cotidiano de sua prática. A superação de valores pessoais, em prol dos valores defendidos
pelo Código, é condição precípua para a superação de atitudes preconceituosas e
estigmatizantes, como a que enunciamos anteriormente.
Ainda acerca dos processos metodológicos utilizados pelo Serviço Social,
verificamos a existência de dois outros relatórios, tipificados como “Situacional” e
“Multiprofissional”. Sobre a aplicação e diferenciação de cada um deles, incluindo o relatório
social, observamos uma compreensão muito mais no plano subjetivo do que uma apropriação
teórico-metodológica por parte dos assistentes sociais; de modo que os objetivos de um
terminam por se confundir com os objetivos do outro, conforme podemos observar nas duas
falas que se seguem:
o relatório social, eu vejo como um relatório mais abrangente, que retrata todo o
histórico de vida do adolescente inserido naquele contexto. Então, ele retrata toda a
situação do adolescente, tanto familiar quanto a pedagógica, com relação se ele é
usuário de drogas. É um relatório completo no sentido de que aquele relatório vai
subsidiar as informações, vão subsidiar pra o processo. E o relatório situacional, é, a
própria palavra diz, retrata uma situação daquele momento, a situação do contexto
dele [do adolescente] com a infração, mas sempre está montado no caso de
adolescente reincidente, adolescente que teve três, quatro entradas ou então com um
outro probleminha que o adolescente causou transtorno numa outra Unidade de
internação. Eu tô vendo por esse lado [...], então ele chega aqui apreendido e com
pouco tempo ele é liberado, acontece dele cometer uma outra infração lá fora, ele
vem aqui e se faz um relatório situacional daquele dado momento. É pra ser um
relatório assim como mais pra resolver a situação dele, ali, processual naquele
momento e já tem casos que já tem até mesmo relatório social daquele adolescente,
mas, por outros motivos que aconteceu naquele momento, depois de seu
encaminhamento, sua transferência ou sua liberação e ele retornou pra cá, então [o
juiz] pede esse relatório situacional. O relatório psicossocial ou multiprofissional,
ele antigamente era chamado de relatório psicossocial, mas nós estudamos aqui e
vimos que era melhor colocar “relatório multiprofissional”. Eu achei no meu ponto
de vista que era melhor multiprofissional porque não tem só o psicólogo e o
assistente social, e não se enfatizava muito a questão pedagógica do próprio
adolescente e muitas vezes se fazia o relatório com a assinatura de um técnico, se é
necessário, se é um relatório que se faz necessário ter essa abordagem,
socioeconômica, psicológica, a pedagógica, então que todos os três técnicos assinem
o relatório, que cada um coloque, retrate a situação do adolescente na sua área
específica e esses relatórios [...] foi mais pra casos de adolescentes que a gente
89
percebia essa necessidade, porque nem pra todos os adolescentes é possível se dar,
fazer um relatório multiprofissional, até porque só tem uma psicóloga e uma
pedagoga e têm mais assistentes sociais, então tem essa dificuldade. O bom seria
que se fizesse pra todos, mas devido a essa dificuldade de recursos humanos, de
profissionais... Tem casos, que a problemática é bem maior, a própria situação de
vida do adolescente, a situação de risco social, a vulnerabilidade dele e da família,
então requer um relatório multiprofissional onde há a participação de toda a equipe
(A. Social “A”).
O multiprofissional é aplicado quando o ato infracional em si é muito violento, ou
quando a gente percebe que o adolescente foi vítima da situação. Por exemplo, nós
tivemos um adolescente que cometeu um homicídio, mas foi em legítima defesa. A
gente quer fazer um relatório com mais elementos, para que o Juiz possa tomar
conhecimento e possa fundamentar melhor sua decisão, dar mais elementos pra que
ele possa decidir qual seria a melhor medida a ser aplicada para aquele adolescente,
porque existem adolescentes que não têm um perfil, se você colocar ele numa
medida de internação, ele não vai melhorar, não é a melhor, não é a mais adequada
pra ele [...]. O relatório social é geralmente feito pela assistente social, o serviço
social é que faz esse relatório, onde ele coloca informações que são conseguidas
através do próprio adolescente ou com os familiares, às vezes a gente faz visita
domiciliar, visita escolar, também, junto com a pedagoga, pra poder fornecer melhor
os elementos [...]. No relatório multiprofissional, a gente coloca mais essa
informação, não fica só no depoimento da família e do adolescente, a gente vai à
comunidade também pra poder fundamentar melhor esse relatório. Enquanto que o
social, não, é só o depoimento do adolescente e da família. O situacional é quando a
gente não tem contato com a família, então a gente só coloca as informações do
adolescente. Ou porque o adolescente já não tem mais vínculos familiares ou porque
a família mora em outro lugar ou porque ele não mora aqui ou porque a família
mesmo se omitiu a vir aqui prestar informações e, às vezes por dificuldades de
transporte, a gente não dá pra fazer essa visita, porque o carro aqui é só um pra tudo,
então às vezes inviabiliza pra esse procedimento (A. Social “B”).
.
Conforme se observa, não existe no discurso profissional uma clareza acerca de
cada um desses instrumentos. Especialmente o relatório social e o multiprofissional se
confundem em conteúdo e em metodologia de abordagem. Embora o multiprofissional se
apresente como aquele elaborado com maior riqueza de detalhes, com a participação de toda a
equipe interdisciplinar (assistente social, psicólogo e pedagogo), encontramos pelo menos um
deles elaborado apenas com a abordagem do Serviço Social e da Psicologia, o que lhe dá a
configuração de um relatório “psicossocial”.
Por outro lado, encontramos pelo menos três relatórios denominados
“psicossociais”, sendo que dois fatos chamam a atenção em todos eles: nenhum contou com a
participação do assistente social (pelo menos constava apenas a assinatura da psicóloga) e o
conteúdo em nada se diferencia do relatório social, ou seja, não apresenta nenhuma
abordagem específica da área da psicologia. Mais uma comprovação de que a ausência de
clareza na utilização dos instrumentos, aliada à indefinição de papéis, geram intervenções
difusas e contrapostas.
90
O instrumento, porém, que reúne maior indefinição em utilidade e aplicabilidade é
o chamado “relatório situacional”, predominantemente elaborado pelas assistentes sociais.
Nas falas anteriormente transcritas das profissionais, a finalidade desse documento aparece de
maneira muito genérica: é voltado para adolescentes reincidentes; para aqueles que não foi
possível a abordagem familiar, seja porque a família reside noutra localidade, seja porque se
omitiu a comparecer ao Complexo; para aqueles egressos das unidades privativas da liberdade
(CEM e CEIP), que causaram “problemas” nas respectivas unidades operacionais, ou
simplesmente para informar acerca da infração ou do histórico de outras infrações cometidas.
De modo geral, “é voltado para resolver a situação do adolescente naquele
momento”, conforme expressa uma das assistentes sociais. O que não fica claro, porém, é o
que significa “resolver a situação do adolescente”. Além de serem poucos elucidativos em
finalidade e conteúdo, observamos que o objetivo primário de dois desses relatórios era
informar à autoridade judiciária sobre o comportamento indisciplinar e desrespeitoso do
adolescente para com funcionários da unidade. Num terceiro, encontramos a seguinte
transcrição: “o adolescente proferiu palavras de baixo calão e exibiu os órgãos genitais para
educadores. Policiais tiveram que contê-lo. Reagiu à contenção”, revelando uma intervenção
de cunho moralizador e disciplinador, que em nenhum momento aparece questionado ou
problematizado criticamente pelo assistente social, que pelo discurso presente no documento
parece legitimar o elemento repressivo dessa forma de intervenção em face do componente
moralizante presente na leitura da situação.
Para ser um profissional comprometido com a defesa dos princípios ético-
políticos da profissão, o assistente social precisa colocar-se acima da cotidianidade, ou seja,
daquela esfera mais propensa à alienação, das motivações efêmeras e particulares, que opera
num nível da aproblematicidade em detrimento da razão e das intimações humano-genéricas
(HELLER, 1989).
Num cotidiano tenso, complexo, que preserva ranços conservadores, a privação
da liberdade já constitui uma medida imposta, portanto, não é possível a emissão de juízos de
valores diante de condutas consideradas “anti-sociais” daqueles cujas histórias de vida
negaram a aprendizagem de valores e comportamentos esperados pelo conjunto da sociedade.
Enquanto profissional detentor de um saber técnico específico, o assistente social
não pode querer impor a sua moral individual, pois qualquer intervenção, objetivando
mudanças, deve ser feita de forma educativa, respeitando a condição peculiar do adolescente.
Do ponto de vista da ética que defendemos, nenhum registro documental pode ser
realizado a partir do imediatismo, da primeira impressão, daquilo que é posto aos olhos; sob
91
pena, novamente repetimos, do profissional não conseguir avaliar as conseqüências do saber-
poder presentes em sua ação, “correndo o risco de desviar o atendimento para concepções
psicologizantes ou moralizantes que podem levar à estigmatização” (LIMA, 1996, p. 80).
Percebemos por meio da linguagem escrita e falada que os assistentes sociais
apresentam uma leitura parcial da fragmentação das políticas públicas e da maneira como
atingem o contexto sócio-familiar do adolescente, manifestando no discurso uma análise
bastante generalista; haja vista quem nem todos os adolescentes envolvidos em práticas de ato
infracional estão eminentemente inseridos em situações de precarização dos meios de vida:
[...] as políticas públicas faltaram para esses adolescentes, faltou a saúde, a
educação, o trabalho, o lazer, a habitação, faltou a própria assistência social [...],
faltou a proteção especial pra ele e pra família e o nosso grande problema é esse, ou
seja, faltou tudo. (A. Social “A”)
Por outro lado, apresentam um discurso bastante pessimista no que se refere à
ausência de proposições, tanto na instituição em que atuam, quanto nas demais que operam o
sistema sócio-educativo, utilizando indicadores psicologizantes na avaliação da estrutura
sócio-familiar:
[o adolescente] chega aqui [no Complexo] e nós não temos nada a oferecer. Quando
ele entra, ele vai estar ali, dependendo da infração que cometer, cumprir uma medida
sócio-educativa. Essa medida sócio-educativa vai focar ele, não vai focar a família,
vai ser de forma desarticulada, aí ele volta pra família, a família continua a mesma,
não tem a estrutura pra tá trabalhando esse adolescente, ressocializando de fato, aí
ele volta pra cá de novo, aí tem vários casos de reincidências. (A. Social “A”).
Desse modo, os diagnósticos elaborados pelos assistentes sociais estão
intrinsecamente relacionados à maneira como o profissional percebe o adolescente, à relação
deles com o sistema jurídico-institucional e à concepção que possuem do próprio trabalho
(LIMA, 1986).
2 A interlocução dos assistentes sociais com os demais órgãos do sistema de justiça para
a infância e juventude
Apesar do enfoque dado até o momento à prática do assistente social, percebemos
na rotina institucional a existência de um conjunto de demandas que tornam patente a
utilidade do profissional nos processos coletivos de trabalho.
92
Embora a dinâmica da unidade revele a existência, muitas vezes sutis, de conflitos
e confronto de poderes e saberes, e em alguns aspectos o assistente social pareça possuir uma
relação de subalternidade frente à autoridade e ao poder de decisão que os outros órgãos se
revestem; o profissional tem conseguido utilizar a correlação de forças para colocar-se como
agente de interlocução do adolescente com as demais categorias de agentes sociais que
operam o sistema.
Nesse sentido, o assistente social realiza sua prática através de uma rede de
mediações, o que no plano metodológico significa a captura de articulações que se processam
entre as instâncias envolvidas na trama institucional.
Concernente a isso, por exemplo, o Serviço Social fornece diariamente aos
órgãos que compõem o sistema de atendimento a relação dos adolescentes que se encontram
apreendidos. O objetivo, segundo os profissionais, é colaborar com a dinâmica do
atendimento, com vistas a impedir que permaneçam confinados além do tempo necessário à
apuração do ato infracional. Nesse ínterim, costumam buscar informações acerca dos
procedimentos que estão sendo adotados, o que tanto permite manter o adolescente e sua
família informados, como serve de mecanismo de cobrança das ações que necessitam ser
tomadas. A ficha utilizada contempla os seguintes dados:
a ficha tem o nome do adolescente, a infração que ele cometeu, tem o endereço, tem
o telefone pra contato, a hora que ele entrou, a data, se ele é daqui de Teresina ou de
outras Comarcas, porque a gente recebe também adolescentes de outras Comarcas
como passagem provisória pra que ele possa ir pra alguma medida de internação,
CEM ou CEIP. Então diariamente é informado pra esses órgãos, através do
fornecimento desse controle de entrada de adolescentes. (A. Social “B”).
Outra particularidade, é que embora cada órgão seja autônomo e estruturado em
torno de normas e objetivos específicos, o assistente social tem conseguido gradativamente
penetrar nesses espaços; substituindo as correlações de forças por relações de parcerias,
possibilitando o manejo de estratégias voltadas aos interesses dos adolescentes, conforme
pode ser observado na seguinte fala:
[a relação com os outros órgãos] eu considero boa, de respeito, conseguido a duras
penas, até pelo posicionamento dos próprios profissionais, tanto os que estão aqui
como os que já passaram [...]. Embora exista divergência de opiniões, de pontos de
vistas, no geral é uma boa relação. [...] muitas vezes nós conseguimos mudar uma
medida [sócio-educativa], porque geralmente [o Juiz] chama a Ação Social pra saber
qual seria o melhor procedimento. [...] A outra promotora, a que foi substituída,
nunca dava um parecer sem antes falar com o Serviço Social, isso eu digo porque eu
mesma fui chamada várias vezes na sala dela, onde a situação era colocada e ela
93
perguntava qual seria o melhor procedimento para aquela situação, aí a gente
discutia junto o que seria melhor (A. Social “A”).
De modo geral, observamos, porém, que a maior parte das interlocuções com os
órgãos que compõem o sistema acontece por meio da assistente social que responde pela
coordenação da unidade. É como se no interior do sistema hierárquico da instituição a
coordenadora, no âmbito da ASE, fosse o profissional com maior status para negociar junto às
relações de saber – poder presentes na dinâmica institucional. Esse aspecto, no entanto, além
de gerar uma postura de comodismo nas outras profissionais, termina por reduzir a ocupação
de espaços onde o saber-poder do assistente poderia avançar ainda mais rumo à defesa dos
direitos dos adolescentes.
Noutras situações, em que as correlações de forças se apresentam frontalmente em
choque com a proposta da instituição, a intervenção profissional, quando incisivamente
posicionada a favor dos direitos dos adolescentes, tem conseguido produzir respostas;
viabilizando até mesmo a forçada desocupação de espaços por parte de atores sociais
desarticulados com a proposta de trabalho, cuja metodologia de intervenção propugna uma
pedagogia de violência nos tratos com o adolescente:
Nós tivemos aqui com a Delegacia um desentendimento com uns agentes que
pediram até pra sair daqui, justificando que não toleravam assistentes sociais, que
eram as “babás” dos meninos, utilizaram até essa terminologia, porque em algumas
vezes eles chegavam a agredir ou fisicamente ou com palavras os adolescentes e a
gente intervinha, e eles diziam abertamente que odiavam assistentes sociais. [Eles]
saíram chateados com a equipe justamente porque a gente nunca deixava passar isso
despercebido, a gente sempre era incisiva no respeito que tem que ter com o
adolescente porque ele é um adolescente que já lhe foi negado tudo e ele chega aqui
ainda vai ser agredido? [...] Então, eles não têm essa visão que a gente tem, eles não
conseguem perceber que aquela situação do adolescente foi fruto de muitas,
múltiplas determinações sociais [...]. Eles só conseguem ver o adolescente enquanto
infrator, adolescente que cometeu o ato porque quis, porque é vagabundo, que é
irresponsável. E nós, acham eles, que nós estamos só reforçando a atitude do
adolescente, a continuidade dele naquela situação. Que adolescente tem que ser
encarado é como bandido mesmo, e o que deve ser feito com bandido é “porrada”
mesmo (A. Social “A”).
Essas idéias revelam que o profissional é consciente das contradições concretas
que precisam enfrentar no cotidiano da prática profissional para fazer valer os direitos dos
adolescentes consignados no Estatuto, os quais encontram plena articulação com os princípios
éticos da profissão.
Nesse sentido, o exame de corpo de delito é um instrumento amplamente utilizado
pelos assistentes sociais sempre que situações de violências são percebidas ou relatadas pelos
94
adolescentes sob a sua custódia. Geralmente são formas de violência que se manifestam
durante a apreensão do adolescente, tanto pelo aparato de segurança civil (quando realizado
por distritos policiais) ou militar. Embora, segundo a avaliação dos profissionais, tenha
havido nos últimos anos uma redução desse tipo de ocorrência, em razão da pressão exercida
pelos órgãos de defesa dos direitos da criança e do adolescente e pelas sucessivas
capacitações ocorridas ao longo dos anos, a apreensão violenta ainda se manifesta, muitas
vezes pela utilização de métodos sutis, que não permitem ser apreendidos a olho nu, restando
a fala do adolescente como mecanismo de denúncia.
Desse modo, uma das primeiras providências adotadas, é a verificação conjunta,
envolvendo um representante da Delegacia, um educador social e um policial militar da ASE,
da presença de alguma lesão interna ou externa no adolescente. Caso a ocorrência se
manifeste, o adolescente deverá ser prontamente encaminhado à rede de saúde local e à
realização de exame de corpo de delito junto ao Instituto Médico Legal, que enviará o laudo à
Delegacia para abertura de inquérito.
O mesmo procedimento é adotado sempre que o adolescente é transferido do
Complexo para qualquer uma das unidades de aplicação da medida sócio-educativa. Segundo
os assistentes sociais, trata-se de uma forma de comprovar que a integridade física dele foi
resguardada durante o período em que ficou sob a custódia da ASE. Ambas as situações
foram verificadas durante a nossa presença na unidade.
Outra particularidade é que a Ação Social Especializada é o único setor da
instituição que conta com um sistema de informatização de dados do adolescente, a qual
permite ter o controle de todas as apreensões, natureza da infração e encaminhamentos que
foram adotados. O programa foi implantado no início de 2004, como resultado da inquietação
de um funcionário do apoio administrativo, o qual, com a ajuda da equipe técnica e
estagiários, conseguiu, ao longo de seis meses, cadastrar todos os dados registrados em
fichários desde o início dos trabalhos em 1995.
Esse programa tem sido colocado a serviço de todos os órgãos que compõem o
sistema de atendimento, permitindo, segundo os assistentes sociais, maior celeridade nos
encaminhamentos. Observamos, porém, que apesar desse aspecto, o sistema pode exercer
também forte influência na maneira de olhar o adolescente, especialmente aquele com
histórico de reincidências no cometimento de atos infracionais; sobre o qual posturas
moralizantes podem definir formas de encaminhamentos com forte estigma disciplinador,
como o encaminhamento para a medida privativa de liberdade, por exemplo, pois de modo
95
geral, não existe por parte dos operadores uma leitura crítica acerca dos fatores que
concorreram para as situações de reincidências.
3 O assistente social na relação com o adolescente
Nas ações e interlocuções que se processam no cotidiano do Complexo,
percebemos que o assistente social é o profissional, através do qual, as primeiras informações
e discussões acerca das possibilidades e conseqüências das situações apresentadas, são
acessadas pelo adolescente e sua família, viabilizando o conhecimento dos recursos que
poderão ser utilizados tanto em relação aos aspectos jurídicos relativos à área infracional,
como noutras demandas subjacentes a esse campo. Neste aspecto, os encaminhamentos
geralmente estão voltados para atendimentos psicossociais, tratamento de álcool e outras
drogas e colocação dos adolescentes em abrigos, nos casos relativos à fragmentação ou
rompimento dos laços familiares.
É o Serviço Social quem geralmente informa a família sobre a apreensão do
adolescente (observamos essa prática ser realizada também por educadores sociais),
requisitando a presença dos pais ou responsáveis para discussão da problemática e dos
encaminhamentos.
Trata-se de uma intervenção, que não somente contempla os adolescentes
envolvidos em práticas infracionais, mas abrange também um grande número de demandas
que se apresentam espontaneamente em busca de respostas para questões que geralmente
envolvem aspectos da dinâmica relacional com o adolescente; que terminam por imprimir à
prática uma intervenção psicologizante, com ênfase nos distúrbios afetivos e comportamentais
do meio familiar.
Verificamos, porém, que o contato do assistente social com os adolescentes
custodiados geralmente fica restrito à abordagem inicial ocorrida na chegada dele a unidade.
É o momento em que o assistente social executa uma função de oitiva e de registro das
informações que são repassadas. Dependendo da necessidade, essas informações tanto
poderão ser utilizadas na elaboração dos relatórios, já discutidos neste capítulo; ou
simplesmente, nos casos reincidentes, permanecer genericamente registradas nas fichas de
atendimento, sem qualquer abordagem analítica da situação, tornando a ação meramente
burocrática.
O fato de o adolescente permanecer a maior parte do tempo confinado no
alojamento, numa área, conforme já referimos, afastada do olhar dos técnicos e demais
96
operadores do sistema, termina por favorecer uma posição de comodismo e de ausência de
uma interlocução mais abrangente do assistente social, reduzindo os espaços que poderiam ser
utilizados no conhecimento mais abrangente do adolescente, com vistas à ampliação de acesso
às políticas públicas.
Nos casos em que o adolescente reclama respostas sobre os procedimentos que
estão sendo adotados, usando para isso da força da voz, quebrando a simbólica “ordem
institucional”; geralmente existe uma requisição dos próprios assistentes sociais para que a
profissional responsável pela coordenação da unidade assuma o papel de mediação,
interferindo e fornecendo respostas às questões suscitadas.
Verificamos que essa postura tem sido assimilada inclusive pelos demais membros
do corpo funcional (educadores e policiais militares) que terminam por requisitar a presença
da coordenação não somente nessas situações, mas em todas aquelas em que encontram
dificuldade em lidar com alterações comportamentais do adolescente.
Ouvimos, durante a pesquisa, uma profissional verbalizar que havia tentado fazer
semelhante intervenção, porém, os adolescentes requisitaram a presença da coordenadora.
Noutra situação, a coordenação relatou ofensas verbais sofridas por uma assistente social
durante uma tentativa de intervenção; revelando a existência de frágeis construções inter-
relacionais, pois se a prática profissional fosse caracterizada pela permanente aproximação
com os adolescentes, o assistente social, qualquer que fosse, seria prontamente identificado
como o agente capaz de fornecer respostas.
Esse aspecto parece remeter à discussão trabalhada anteriormente, no que diz
respeito à identidade e subjetivações pessoais que o profissional possui em relação à natureza
dos serviços e dos usuários aos quais é chamado a intervir.
Sobre os objetivos que pretende atingir na intervenção junto ao adolescente, assim
respondeu uma das assistentes sociais:
O objetivo maior é responsabilizar o adolescente [...] o objetivo geral é esse, que ele
se conscientize de seus atos, da situação de vida e que ele também se veja como
sujeito de direito, que ele é um cidadão, que ele tem todos os direitos sociais [...] e,
assim, resumindo é o fortalecimento, é o empoderamento. Eu vejo assim, que a
família saia daqui fortalecida, elas chegam muito fragilizadas e, é fortalecer essa
família, os laços familiares, nas próprias condições de vida deles e, com relação aqui
ao Complexo mesmo, é agilizar esse atendimento (A. Social “B”).
Trata-se de um discurso difuso, que expressa valores e uma dimensão
psicologizante de intervenção. Ao tempo em que a profissional expressa que o objetivo da
intervenção é possibilitar a identificação do adolescente como “sujeito de direito”, aparece na
97
linguagem a “responsabilização” ou “conscientização” do adolescente como objetivo maior
ou geral da intervenção. Tal postura remete ao viés conservador da profissão, quando o
assistente social buscava responsabilizar o sujeito da ação profissional por seu
“comportamento desviante”, dissociado de uma análise crítico-analítica do contexto sócio-
político e econômico no qual estava inserido.
A responsabilização ou culpa pelo ato infracional é um aspecto que a visão
meramente legalista dos operadores da justiça se encarregará de imputar ao adolescente. Ao
assistente social compete informar sobre os direitos e garantias processuais que permitirão ao
jovem as condições de minimamente exercer a sua cidadania em meio a uma situação em que
a liberdade, na maioria das vezes, deixará de ser exercitada.
Não se trata, aqui, de uma visão “paternalista” ou “protetora”, conforme é peculiar
à leitura do senso comum, antes é a propugnação da defesa dos princípios éticos e normativos
que devem orientar a prática no cotidiano institucional.
Quanto ao “empoderamento” do adolescente e de sua família, é necessário o
adequado entendimento dessa categoria para avaliar com clareza a sua aplicabilidade. Para
Foucault (1979), o poder é constituído numa rede de relações sociais entre pessoas que têm
algum grau mínimo de liberdade. A liberdade, como valor ético central, como vimos, é a
possibilidade de fazer escolhas diante de alternativas.
Desse modo, como podemos falar de “empoderamento” num cenário sócio-
político e econômico onde se ampliam e agudizam as situações de pobreza e de violação de
direitos civis, políticos e sociais? Como é possível trabalhar essa categoria no interior de uma
prática institucional onde o fluxo da demanda termina por inferir um caráter imediatista nas
formas de intervenções, reduzindo as proposições geradoras de alternativas?
Outro aspecto merecedor de reflexão encontra-se inserido no seguinte enunciado:
De modo geral, [o objetivo] é garantir, pra esse adolescente que entra [na unidade],
os seus direitos, mesmo enquanto infrator, mesmo enquanto adolescente que
cometeu ato infracional, que de alguma forma lesou a sociedade, mas isso não quer
dizer que porque ele está nessa situação os direitos deles tem que ser negados, mais
ainda do que já foram. Então o objetivo é esse, o de garantia de direitos (A. Social
“A”).
Temos visto que para ser um profissional comprometido com a defesa dos
princípios ético-políticos da profissão, a prática profissional deve estar voltada para a
viabilização da garantia de direitos; e que o fato do adolescente cometer um ato infracional
não deslegitima o uso de instrumentos e mecanismos que promovam a sua dignidade
enquanto pessoa humana. No entanto, referir-se ao ato infracional como uma conduta que
98
“lesa a sociedade”, traz subjacente a idéia de que o comportamento desviante interfere em
todo o funcionamento social. É com base nesse discurso moralizante, conservador e
discriminatório que ainda nos dias atuais, apesar dos avanços introduzidos pelo Estatuto,
recomenda-se a contenção e controle de adolescentes oriundos dos estratos sociais mais
baixos e se justifica a ampliação do sistema carcerário para esse segmento.
Outro aspecto é que, embora a defesa dos direitos seja a tônica dos discursos das
assistentes sociais, observamos que diante das situações em que o adolescente permanece
confinado para além do prazo legal, o saber-poder do representante do judiciário ainda é um
preponderante fator de resignação dos profissionais.
4 Limites à prática segundo a leitura dos profissionais
Sobre os fatores que interferem ou limitam a prática profissional, os assistentes
sociais apontam as seguintes determinações:
a) ausência de recursos que viabilizem maior conhecimento da dinâmica sócio-
familiar do adolescente na elaboração dos relatórios sociais. A Ação Social Especializada
disponibiliza, por exemplo, de um único veículo para o atendimento do conjunto das
demandas, inviabilizando, portanto, o uso desse instrumento no cotidiano das intervenções
junto aos adolescentes;
b) tímido conhecimento da dinâmica institucional pelas assistentes sociais que
atuam no turno da tarde; haja vista que é no período da manhã que, em termos práticos se
materializa a proposta de integração operacional de todos os órgãos que compõem o sistema.
A Delegacia e a ASE são os únicos espaços onde as atividades ocorrem sem interferência de
continuidade durante os dois turnos. No período da tarde, esporadicamente é possível contar
com a representante do Ministério Público:
[o Complexo funciona] vinte e quatro horas, mas a Defensoria e o juizado não
funcionam à tarde, então à tarde a gente fica sem saber muito bem direito, como é
que funciona, porque a gente só sabe na teoria, de ouvir falar, mas a gente não
vivencia essa experiência, então fica difícil também pra gente ter essa clareza (A.
Social “A”).
c) ausência de articulação com as unidades que operacionalizam as medidas sócio-
educativas, o que, por conseguinte, não permite o conhecimento das ações desenvolvidas e do
modo como repercutem na realidade do adolescente:
99
Eu acho que o assistente social daqui do Complexo tinha que ter uma noção, uma
clareza, como é que funcionam todas as medidas socioeducativas, até assim mesmo
de visitar, de ver como é de verdade, com é que é o CEIF, como é que é o CEM, O
CEIP, qual é a dinâmica, qual é a proposta. Então eu acho que falta assim uma
articulação maior do Complexo, de toda essa rede ou o sistema todo das medidas
sócio-educativas. Eu acho que poderia ser feita uma troca de experiência, a gente
poderia fazer um dia, eu sei que é difícil porque tem a questão de 24 horas, não dá
pra reunir todos os técnicos, todos os coordenadores no mesmo dia, mas poderia ser
feito por etapa. Eu acho que poderia ter um diálogo maior, pra gente saber qual o
trabalho que ta sendo feito lá no CEM, qual o trabalho que tá sendo feito lá na semi-
liberdade, da gente poder ter uma clareza melhor, pra gente saber o que poderia tá
iniciando aqui. A gente ver que a maioria desses adolescentes são reincidentes.Pra
gente ter a noção do que foi feito com ele lá, como é que ele foi trabalhado, porque
que ele retornou, pra gente poder ter isso, porque o adolescente entra, sai e a gente
fica sem saber o que foi que aconteceu com ele, e é uma coisa, que eu,
particularmente, tenho essa preocupação. Será que eles vão conseguir se
ressocializar? (A. Social “A”).
d) ausência de capacitação direcionada aos profissionais diretamente articulados
às atividades nas unidades e dificuldades no emprego de recursos próprios voltados à
qualificação em razão dos baixos salários:
Outra coisa que dificulta é a questão da capacitação, eu acredito que a capacitação
tem que ser continuada e tem que ser é o pessoal que tá aqui, é quem tá na ponta, é
que trabalha com o adolescente, é que conhece, é quem ta com ele mesmo, é quem
vivencia essa experiência mais próximo do adolescente [...] não é só sentar,
capacitou e pronto, tem que ter uma mudança de atitude por parte [de todos]. A
capacitação que eu faço é de leitura em casa, agora mesmo eu tô com esse material
aqui foi esse curso de ação social socioeducativa que a gente fez [pela SASC] e eu tô
sempre lendo pra melhor fundamentar minha prática, até porque o salário do
assistente social, não é segredo pra ninguém, é mal remunerado [...] Hoje existe uma
luta pra ver a questão da produtividade e também do salário porque o salário é muito
pouco é muito pouco pra a dedicação que tem que ser feita e até assim pra você tá se
qualificando pessoalmente você tem que ter recursos, porque se você não tiver
dinheiro fica difícil pra você está investindo, pra você tá motivado, porque a gente
não pode negar que o salário é uma motivação pra você tá trabalhando (A. Social
“A”).
e) ausência de autonomia nas tomadas de decisões relativas aos adolescentes,
poder que, na maioria das vezes, fica concentrado nas mãos do Juiz;
f) ausência de estrutura física compatível com a manutenção do sigilo profissional
postulado pelo Código de Ética:
Você sabe que a gente tem que ter o sigilo profissional. Infelizmente a gente não tem
uma sala individual pra tá atendendo o adolescente. A gente atende em uma sala
onde ficam todos os profissionais, mas já aconteceu de estar atendendo um
adolescente e [uma colega] ficar conversando, atrapalhando a minha entrevista com
o adolescente (A. Social “A”).
100
Em relação aos aspectos mencionados, concordamos que o desempenho de um
serviço de qualidade pressupõe a disponibilidade de condições materiais objetivas, o que nem
sempre é viabilizado nos espaços ocupacionais do assistente social. No entanto, afora os
aspectos suscitados, queremos chamar a atenção para outro, em particular, que consideramos
preponderante em meio a essas questões.
Percebemos que os princípios do Código de Ética não aparecem claramente
postos na fala dos assistentes sociais. De modo geral, que os profissionais apresentam uma
compreensão muito abstrata desse instrumento, que não aparece como elemento norteador das
ações. O mesmo se dá com a Lei de Regulamentação da Profissão, que assume papel ainda
mais secundário.
Quando questões éticas são suscitadas na prática interventiva, as postulações que
se fazem aparecem muito mais no campo subjetivo, à maneira como cada profissional
consegue interpretar as intercorrências apresentadas. É o que permite ser revelado no seguinte
enunciado:
A ética, ela de fato acontece, principalmente porque nós somos uma equipe
multiprofissional. Nós sabemos o fazer de cada um, nós respeitamos os limites e, ela
existe. Agora ela nunca foi discutida em termos de colocar assim em assunto, em
pauta na reunião, mas é sempre vista assim, é realizada, é praticada internamente,
conscientemente a gente já pratica agora, assim pra discutir como tema de estudo.
[...] O Código mesmo em si, não [discutimos]. Geralmente na equipe técnica a gente
trata dessa questão da ética, com relação ao adolescente, com relação à própria
equipe, com os usuários, com a família, do trabalho ético de cada profissional, agora
pra gente chegar a abordar profundamente esse assunto, discutir a questão do
Código, são pontuais, não são sistemáticas [...]. Assim, de forma abstrata, no meu
pensamento, na minha prática, um pouco na minha visão, tenho sim procurado
praticar a ética no meu fazer profissional, na minha prática (A. Social “B”).
O momento em que a prática aparece como campo de reflexão é durante a
presença das estagiárias na instituição. Geralmente imbuídas pela sede de articular o conteúdo
teórico assimilado na academia, as estagiárias costumam levar para o campo de estágio
propostas interventivas inovadoras que permitem a reciclagem de conhecimentos e práticas:
[o estágio supervisionado], ajuda muito na reflexão do nosso fazer. Ao tempo em
que as estagiárias estão aqui com os projetos pra serem executados, então,
geralmente tem capacitação, tem oficinas, isso promove a articulação, a integração
entre os Órgãos [...] isso contribui muito pra o fazer profissional, o intercâmbio (A.
Social “B”).
Infelizmente, porém, os profissionais utilizam a rotina institucional como motivo
justificador para a descontinuidade das práticas interventivas introduzidas pelas estagiárias,
reinserindo-se nas demandas rotineiras da dinâmica institucional.
101
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos que o processo histórico do Serviço Social experimentou uma diversidade
de alterações nas formas de atuação do assistente social, por vezes assumida de maneira
acrítica, assistemática, seguindo as exigências do capital, para assumir-se pensada, refletida,
posicionada a favor da classe trabalhadora e dos grupos sociais mais vulnerabilizados. Nesse
mesmo processo, os princípios e valores que nortearam a profissão também se modificaram,
modificando com eles a forma de inserção do Assistente Social na sociedade.
Atualmente o Código de Ética Profissional instituído, pela Resolução CFAS nº
273/93 de 13 de março de 1993 e a Lei de Regulamentação da Profissão são expressões do
consenso, indicam o rumo ético-político da profissão, mostrando um horizonte para o
exercício profissional.
Consideramos também que o Código de Ética, juntamente com a Constituição
Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente representam um marco histórico
importantíssimo na trajetória da conquista de direitos humanos, sociais e políticos. No
entanto, são instrumentos que foram institucionalizados no mesmo período em que, a nível
mundial se assistia à construção do projeto neoliberal, que dramaticamente reduz o papel do
Estado na área das políticas de proteção social e na regulação das condições de produção
material; favorecendo o aumento da pobreza e das desigualdades sociais, de modo que
princípios como liberdade, democracia, cidadania, equidade e justiça social parecem
ameaçados.
Nesse sentido, embora o Estatuto da Criança e do Adolescente defina instrumentos
que normatizam a política de atendimento ao adolescente autor de ato infracional, estes
permanecem sendo um dos grupos mais expostos a todo tipo de violência no Brasil.
Extermínio, torturas, ameaças de morte, segregação em instituições fechadas são formas
comuns de lidar com a problemática em várias partes do país. Sem falar nas pressões sociais e
os argumentos para o rebaixamento da inimputabilidade penal para dezesseis anos em face do
hiperdimencionamento que a mídia e a sociedade constroem em torno da participação de
adolescentes em atos infracionais.
Com esta pesquisa verificamos que embora a Constituição Federal, o Estatuto da
Criança e do Adolescente e o Código de Ética Profissional sejam dispositivos garantidores de
direitos político-sociais legalmente instituídos; não podemos atribuir a esses instrumentos a
garantia de um novo projeto ético-político para o conjunto da sociedade e nem que as
instituições operem em função dos princípios referenciados por ele.
102
Nesse sentido, compete ao assistente social assinalar a sua prática na direção das
balizas propugnadas no Código de Ética em vigor e na Lei de Regulamentação da profissão, a
fim de que os princípios éticos profissionais não sejam vistos como algo abstrato, sem ligação
com o processo social.
Assim, é importante que o assistente social perceba que a ética permeia o
cotidiano da sua prática, desde a intencionalidade até o produto final da ação; de modo que
cabe ao profissional reconstruir as mediações e buscar, com base no projeto ético-político
profissional, desenvolver iniciativas que aproximem sua prática das necessidades reais dos
usuários, caso contrário, não terá condições de captar as possibilidades de ação contidas nas
realidades às quais se inscreve a sua intervenção.
Isso significa que não é apenas a instauração de um novo Código de Ética que
possibilita concretamente a apreensão e realização dos princípios e valores do projeto ético-
político da categoria. Remete, por sua vez, à necessidade de “compreender o cotidiano
profissional em suas contradições e conflitos institucionais, de forma a perceber as possíveis
mediações e estratégias que possam contribuir para um maior compromisso ético-político
profissional” (TORRES, 2001, p. 90).
É importante lembrar que projeto profissional é um processo contínuo que se
constrói no quotidiano e que assenta numa proposta de resgate da centralidade da ética na
formação profissional. A defesa e a materalidade dos princípios e valores éticos que lhe estão
subjacentes exigem sujeitos profissionais ativos e autônomos. Como referem Barroso &
Brites (2000, p.26)
a formação ética, pela sua natureza filosófica, é pressuposto essencial, tanto para o
desvelamento crítico do significado das escolhas individuais em face dos projetos
coletivos, quanto para orientar a construção de respostas profissionais que, diante
dos desafios cotidianos, tenham a capacidade objetiva de romper, em algumas
situações, ou de resistir aos limites da ordem burguesa.
O presente trabalho possui a tímida pretensão de servir como instrumento de
discussão, análise e reformulação da prática cotidiana; não somente dos assistentes sociais do
Complexo de Defesa da Cidadania, mas de todos aqueles dispostos a refletir a prática
profissional no sentido de materialização dos princípios defendidos no projeto ético-político
da profissão.
A pesquisa que realizamos permitiu revelar alguns elementos presentes na prática
cotidiana do assistente social no Complexo de Defesa da Cidadania que merecem ser
discutidos pelo conjunto dos profissionais:
103
- a prática profissional se inscreve num conjunto de relações complexas, em que a
relação de saber e poder dos demais agentes envolvidos no trabalho podem comprometer a
autonomia profissional;
- a prática profissional caracteriza-se por uma diversidade de atribuições e ações
que aparecem diluídas no cotidiano institucional;
- o ritmo do cotidiano tende a limitar o processo reflexivo do assistente social
sobre a própria dinâmica das suas ações, sobre as decisões e os resultados de seu trabalho,
produzindo desmotivações e intervenções que reproduzem o julgamento moral e os estgmas
presentes nas relações sociais em geral;
- a dinâmica do trabalho pouco tem favorecido a realização de práticas
inovadoras, favorecendo a reprodução de ações corriqueiras e por vezes burocráticas;
- tímida apropriação de referencial teórico com qualidade suficiente para uma
análise teórico-crítica da realidade;
- necessidade de maior engajamento das assistentes sociais tanto na interlocução
com os adolescentes como com os órgãos que compõem o sistema, aspecto que possui maior
centralização na profissional que responde pela Coordenação da unidade;
- reduzida participação das assistentes sociais em capacitações, e desmotivação no
uso de recursos próprios na qualificação em função dos baixos salários;
- apreensão abstrata do Código de Ética, da Lei de Regulamentação da Profissão e
dos princípios consignados no projeto ético-político da profissional, o que confere à prática
um caráter imediatista, desprovido de reflexões.
Apesar de algumas das ações profissionais encontrarem forte sintonia com a
defesa dos direitos dos adolescentes, percebemos que nesse cotidiano de relações dúbias
(defesa de direitos x resignação com práticas violadoras de direitos), o profissional não tem
tido cuidado para que o ritmo do cotidiano não limite o processo ético reflexivo sobre a
própria dinâmica de suas ações; de modo que as atividades fiquem limitadas ao imediatismo
das demandas e termine por reproduzir, valores e posturas dissonantes aos princípios éticos
profissionais.
Nesse sentido, é necessário que o profissional consiga problematizar o atual
contexto histórico em que vivemos. Entender as tensões presentes entre o Estado executor de
políticas públicas e promotor de direitos, e a lógica neoliberal voltada para a contenção de
recursos. Entender a influência do mercado individualista, competitivista, excludente e
consumidor sobre os adolescentes e suas famílias, para saber entender e problematizar as
104
diversas manifestações da questão social e a maneira como incidem nos grupos familiares e,
de modo especial, no comportamento dos jovens.
Por outro lado, o profissional não pode esperar que as respostas para cada atitude
e comportamento, em face dos dilemas éticos presentes no cotidiano, se encontrem prontas e
acabadas no Código, antes, deve saber desvendar a direção ética, política e social da prática
profissional que nele se encontra resguardada.
É na própria realidade institucional que o profissional encontra pistas para a
implementação de propostas de ação voltadas para a defesa dos direitos dos usuários. Nesse
sentido, apontamos algumas delas, especialmente voltadas aos assistentes sociais do
Complexo de Defesa da Cidadania
- participar de forma competente da equipe interdisciplinar, definindo seu espaço
de intervenção e valorizando os procedimentos e instrumentos que fazem parte de uma
metodologia de trabalho de domínio específico e exclusivo do Serviço Social;
- aprofundar as análises acerca das relações de saber e poder na interlocução com
os demais profissionais e saber usar esses espaços de mediações na defesa dos direitos dos
usuários;
- desconstruir a reprodução de noções e preconceitos típicos da cotidianidade,
tanto no discurso falado como transcrito nos relatórios e demais instrumentos metodológicos,
como forma viabilizar a defesa da liberdade, da cidadania, da justiça social, dentre outros
princípios éticos fundamentais na relação com o adolescente;
- articular seu trabalho aos interesses e necessidades dos usuários a partir de uma
leitura crítica da realidade social;
- avançar na capacitação profissional em termos teóricos, técnicos e ético-
políticos;
- tornar o Código de Ética e a Lei de Regulamentação da profissão instrumentos
eficazes na defesa de direitos e na reflexão da prática no cotidiano institucional.
Acreditamos, a partir dessas reflexões, que por meio do constante aprimoramento
intelectual, político e ético o assistente social terá condições de operacionalizar a sua prática
na direção dos princípios assinalados no Código de Ética em vigor e na Lei de
Regulamentação da profissão, instrumentos por meio dos quais mudanças podem ser
operadas.
105
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