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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA
TESE DE DOUTORADO
VICISSITUDES DA CRENÇA NARCÍSICA:
A DEPRESSÃO NO MUNDO
CONTEMPORÂNEO
ROGERIO ROBBE QUINTELLA
ORIENTADORA: MARIA TERESA DA SILVEIRA PINHEIRO
CO-ORIENTADOR: JULIO SERGIO VERZTMAN
Rio de Janeiro / UFRJ
2008
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2
UFRJ
VICISSITUDES DA CRENÇA NARCÍSICA:
A DEPRESSÃO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
Rogerio Robbe Quintella
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto
de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Teoria
Psicanalítica.
Orientadora: Maria Teresa da Silveira Pinheiro
Co-orientador: Julio Sergio Verztman
Rio de Janeiro
Maio/2008
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VICISSITUDES DA CRENÇA NARCÍSICA:
A DEPRESSÃO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
Rogerio Robbe Quintella
TESE SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DO PROGRAMA DE PÓS-
GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA
DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO COMO PARTE DOS
REQUISITOS NECESSÁRIOS À OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR.
Aprovada em ___ de _________ de 2008 pela Banca Examinadora.
Prof.ª Drª. _________________________________________________
Maria Teresa da Silveira Pinheiro
(Orientadora)
Prof. Dr. _________________________________________________
Julio Sergio Verztman
(Co-orientador)
Prof.ª Drª. _________________________________________________
Josaida de Oliveira Gondar
Prof.ª Drª. _________________________________________________
Regina Herzog de Oliveira
Prof.ª Drª. _________________________________________________
Maria Isabel de Andrade Fortes
Prof. Dr. _________________________________________________
Octavio Domont de Serpa Junior
Rio de Janeiro
Maio/2008
4
FICHA CATALOGRÁFICA
Quintella, Rogerio Robbe
Vicissitudes da Crença Narcísica: a Depressão no Mundo Contemporâneo / Rogerio
Robbe Quintella. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2008.
186 f.
Orientadora: Maria Teresa da Silveira Pinheiro. Co-orientador: Julio Sergio
Verztman. Tese: Doutor em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Programa de
Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, 2008.
Referências Bibliográficas: f. 180-186.
1. Depressão 2. Contemporaneidade 3. Crença Narcísica 4. Perda 5. Linguagem
I. Pinheiro, Maria Teresa da Silveira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título.
5
AGRADECIMENTOS
A Teresa Pinheiro, pela oportunidade. Seu ensino e orientação constituíram as
principais condições de possibilidade de desenvolvimento deste trabalho. Agradeço a
chance de cursar o Doutorado em Teoria Psicanalítica e, além disso, de participar
diretamente das pesquisas do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da
Contemporaneidade (NEPECC/UFRJ).
A Julio Verztman, que prontamente aceitou co-orientar este trabalho, contribuindo
decisivamente em sua organização e circunscrição teórica.
Aos membros do grupo de pesquisa do NEPECC, que participam de maneira coesa
e dedicada das pesquisas ali desenvolvidas e são solidários em todos os momentos.
Ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica e todo o seu corpo docente,
cuja importância na sustentação do Programa é decisiva e, de maneira indireta, foi também
fundamental para o desenvolvimento deste trabalho.
À CAPES que, antes de eu assumir vínculo empregatício em instituição de ensino,
financiou inicialmente a pesquisa, cujo apoio foi fundamental em meu percurso.
À Vanessa Ribeiro Marmo, minha mulher e amiga em todos os momentos de minha
vida, bons e ruins, fáceis e difíceis.
À minha mãe Cristina Robbe, sem a qual não poderia de forma alguma ter
alcançado o curso de doutorado.
A meu pai Roberto Quintella que, apesar dos problemas, prontificou-se a estar perto
em todos os momentos.
A meu amigo Marcelo Magnus, verdadeiro irmão, cuja amizade guardo no coração
desde a adolescência.
6
Dedicado à Vanessa
7
Vicissitudes da crença narcísica: a depressão no mundo contemporâneo
Rogerio Robbe Quintella
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria
Psicanalítica.
RESUMO
Diretamente vinculado ao Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da
Contemporaneidade (NEPECC/UFRJ), coordenado por Teresa Pinheiro e Julio Verztman,
este trabalho aborda o problema do sofrimento depressivo contemporâneo, partindo de uma
análise crítica do seu diagnóstico no campo psiquiátrico. Numa aposta de que a depressão é
um sintoma da contemporaneidade, buscamos o enfoque psicanalítico, problematizando o
olhar médico em sua pura apreensão descritiva, a qual desvincula a depressão dos contextos
subjetivos e mesmo culturais aos quais ela se articula. Nossa hipótese é de que ela apresenta
importantes peculiaridades subjetivas na atualidade que diferem sofrimento melancólico.
Utilizando como instrumental teórico o pensamento de William James, Richard Rorty,
Wittgenstein e Jacques Derrida, tomamos como eixo teórico desta pesquisa a noção de
crença narcísica, no sentido de trabalharmos as diferenças entre essas afecções. Nesse
patamar, localizamos o luto como processo psíquico que difere tanto da depressão quanto
da melancolia, o que faz dessas manifestações psíquicas três formas mutuamente
excludentes de reação à perda (luto, depressão e melancolia). Entendemos que a depressão
assume aspectos novos na clínica psicanalítica contemporânea, os quais diferem também da
depressão histérica e apontam para uma peculiaridade na passagem do eu ideal para o ideal
do eu, bem como na relação do sujeito com o tempo nos dias de hoje.
Rio de Janeiro
Maio/2008
8
ABSTRACT
Directly linked to the Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade
(NEPECC/UFRJ), coordinated by Teresa Pinheiro and Julio Verztman, the present work
approaches the contemporary depressive suffering problem, from a critical analysis of its
diagnosis in the psychiatric field. On a bet that depression is a symptom of the
contemporaneity, we look for the psychoanalytic focus, problematizing the medical look in
its pure descriptive apprehension, which unlinks the depression from the subjective and
even cultural contexts to which it articulates. Our hypothesis is that it presents important
subjective peculiarities in present day that differ melancholy suffering. Using as method the
thought of William James, Richard Rorty, Wittgenstein and Jacques Derrida, we take as
theoretical axis of this research the notion of narcisic belief , in the sense of working the
differences between these affections. On this level, we locate mourning as psychic process
that differs from depression and from melancholy, which makes of these psychic
manifestations three mutually excludent forms of reaction to loss (mourning, depression
and melancholy). We understand that depression assumes new aspects in the
psychoanalytic contemporary clinic, which differ also from the hysterical depression and
point to a peculiarity in the passage from ideal ego to ego ideal, as well as in the relation of
the subject with time nowadays.
Rio de Janeiro
Maio/2008
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................11
1
a
PARTE: O DIAGNÓSTICO DA DEPRESSÃO NO CAMPO
PSIQUIÁTRICO................................................................................................................16
CAPÍTULO I – O ESTIGMA DA DEPRESSÃO EM TEMPOS DE CIÊNCIA E
MÍDIA.................................................................................................................................17
1.1 – Os Manuais Psiquiátricos sob o império do discurso médico: delimitação
nosográfica, ciência e contextualidade...............................................................19
1.1.1 – DSM-IV..........................................................................................19
1.1.2 – CID-10 ...........................................................................................22
1.1.3 – Discussão Crítica ..........................................................................25
2
a
PARTE: A DEPRESSÃO SOB A ÓTICA DA PSICANÁLISE:
CRENÇA NARCÍSICA E SUBJETIVAÇÃO.................................................................44
CAPÍTULO II – NOSSO MÉTODO: A REDE DE CRENÇAS E OS JOGOS DE
LINGUAGEM....................................................................................................................48
2.1 – Considerações preliminares para uma teoria psicanalítica da crença
narcísica....................................................................................................................48
2.2 – A psicanálise e o campo da linguagem: uma leitura antiessencialista do
psíquico.....................................................................................................................53
2.3 – William James: a crença como uma “regra para a ação” ..............................63
2.4 – Richard Rorty: o campo da crença e a questão da realidade............................66
CAPÍTULO III – A CRENÇA NARCÍSICA E A DEPRESSÃO ..................................77
3.1 – Só-depois da linguagem: a crença narcísica sob o empréstimo do outro ........77
3.2 – Os signos da indiferença: crença narcísica e estase depressiva .......................97
10
3
a
PARTE: A DEPRESSÃO E A CONTEMPORANEIDADE ...................................107
CAPÍTULO IV – VICISSITUDES DA PERDA: DEPRESSÃO,
LUTO OU MELANCOLIA...........................................................................................108
4.1 – Problemas e impasses no campo psicanalítico:
algumas questões suscitadas....................................................................................109
4.2 – Luto, depressão e melancolia: por uma distinção ..........................................115
4.2.1 – A melancolia: um paradigma ..........................................................115
4.2.2 – A perspectiva psicanalítica .............................................................119
4.2.3 – Circunscrição do conceito de depressão ........................................ 133
4.2.4 – A depressão e o luto da Criança Maravilhosa ................................135
4.2.5 – Depressão e Melancolia: interfaces e distinções ............................143
CAPÍTULO V – CONSIDERAÇÕES SOBRE A CRENÇA NARCÍSICA E A
DEPRESSÃO NA CONTEMPORANEIDADE ............................................................155
5.1 – Considerações freudianas sobre a relação com a finitude .............................157
5.2 – O luto e a relação com o tempo no discurso depressivo:
tempo do instantâneo X tempo da ação..................................................................161
5.3 – William James com Ehrenberg: o universo da crença e o sujeito sem-ação .164
5.4 – A subjetivação na cultura do narcisismo .......................................................167
5.5 – Os efeitos de uma crença impossível: a depressão e a questão do ideal do eu na
contemporaneidade ................................................................................................ 171
CONCLUSÃO...................................................................................................................175
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................................................180
11
INTRODUÇÃO
A clínica coloca hoje para a psicanálise desafios perante os quais esta, como muito
se tem discutido, é convocada a posicionar-se num movimento interno de permanente
redimensionamento de seu campo investigativo. Nesse âmbito, faz-se necessário discutir de
maneira aprofundada as peculiaridades que se apresentam na clínica, relativas aos modos
atuais de subjetivação.
Se hoje se fala no campo psicanalítico de “novas formas de subjetivação”, ou
“novos sintomas” (Cf. BIRMAN, 1999) é justamente porque a psicanálise não apresenta em
seu conjunto teórico uma concepção solipsista do sujeito, desgarrada do âmbito contextual
e contingencial da experiência. Poderíamos nesse ínterim afirmar que a psicanálise discursa
sobre as diversas formas de enfrentamento do mal-estar na cultura (Cf. FREUD,
1930/1996), este último instanciado pela insígnia do desejo como forma de sustentação
subjetiva na vida perante a transitoriedade, a finitude e a própria morte.
Circunscrevendo-se o mal-estar em questão na cultura, não se trata, portanto, de se
conceber uma disparidade entre sujeito e cultura, dado que é sob as determinações desta
última que o primeiro se constitui. E o que se verifica é um conjunto de formas distintas de
lidar com esse mal-estar na cultura dos tempos atuais.
A depressão é, na clínica contemporânea, uma das mais preponderantes formas de
responder aos impasses da perda e da finitude. A intensidade de seu sofrimento e a
peculiaridade de sua expressão impelem ao desenvolvimento de uma abordagem
direcionada às transformações que se operam em nosso cenário. Nesse contexto, torna-se
pertinente a reflexão sobre seu lugar no campo teórico da psicanálise e, mais do que isso,
sobre a questão de se, de fato, ela ocupa um lugar de relevância nas especificidades do raio
de abrangência da psicanálise.
Considerações históricas da noção de depressão
O termo depressão, tal como outros termos que definem diversas manifestações
psicopatológicas trabalhadas pela psicanálise, não é originário desta, mas da psiquiatria. A
12
depressão é hoje entendida amplamente pela psiquiatria como transtorno circunscrito,
elevado à categoria de entidade clínica. Contudo, não pouco problemático é o conceito de
depressão na psiquiatria, o qual, como se pode verificar mediante levantamento feito por
Verztman (1995), não apresenta em sua evolução um eixo linear de abordagem do ponto de
vista histórico. Veremos também que em seu conjunto nosográfico, o diagnóstico da
depressão nos Manuais psiquiátricos mais recentes (DSM IV e CID 10) apresenta
importantes aspectos que nos colocam em posição de questionamento, os quais serão
discutidos diretamente no capítulo I do presente trabalho.
Historicamente, a noção de depressão começou a aparecer a partir da metade do
século XIX como forma de definir importantes peculiaridades da melancolia, antes não
colocadas em pauta pelos principais pesquisadores desse século, como Pinel e Esquirol.
Estes últimos concebiam a melancolia como idéia fixa, “delírio parcial triste” ou forma de
expressar a intensidade alienada das paixões e dos afetos em seus níveis máximos e em sua
quebra de sociabilidade (ibid.).
O termo “depressão” começou a ganhar destaque quando importantes pesquisadores
como Baillarger voltaram-se para o estudo da melancolia. Numa nova concepção
descritiva, a melancolia passou a ser entendida como afecção depressiva. O termo
“depressão” aparece, assim, a partir dessa época, intrinsecamente ligado à designação da
melancolia (VERZTMAN, op. cit.).
Nota-se a partir da análise de Verztman que a depressão foi abordada historicamente
quer de maneira atrelada à melancolia, quer de maneira atrelada à chamada psicose
maníaco-depressiva (KRAEPELIN, 1976). Nesta última acepção kraepeliana, a depressão
assumiu lugar de destaque como psicopatologia, em meio a uma organização bem mais
sistemática da nosografia psiquiátrica, o que deu início a uma nova configuração deste
campo, já no final do século XIX (ibid.).
Verztman acentua que a evolução do conceito de depressão no campo psiquiátrico
acha-se intrinsecamente ligada à necessidade de delimitação de estados depressivos
diversos, em conjunção às descobertas psicofarmacológicas do século XX após o advento
da Psicopatologia Geral de Jaspers. A partir desse contexto, a depressão começou a tomar
13
estatuto central na construção dos Manuais psiquiátricos. Não obstante ela tenha sido
elevada ao grau de entidade clínica nos últimos manuais, seu lugar tomou corpo a partir do
momento em que se localizou a necessidade de novas circunscrições nosográficas
equânimes aos achados farmacológicos, especialmente aqueles relacionados aos
antidepressivos, tal como aprofundaremos no capítulo I.
Conforme veremos à frente, os aspectos patológicos da depressão e sua relação com
a melancolia começaram nesses últimos manuais a apresentar uma verdadeira inversão em
termos de delineamento teórico. Veremos que, inversamente às abordagens da metade do
século XIX, em que a depressão era concebida como elemento integrante da manifestação
melancólica, hoje é a depressão que tomou corpo como entidade diagnóstica específica,
abarcando a melancolia como uma de suas variáveis. A problematização que se coloca
frente a essas configurações traduz-se precisamente pelo questionamento acerca dos fatores
determinantes na circunscrição psiquiátrica dessas afecções, até seus desdobramentos no
campo da psicanálise, posto que o termo depressão não é originário desta última e que hoje
há ali uma importante dificuldade de distinção entre a melancolia e a depressão.
Definição do problema no campo psicanalítico
No ínterim desta questão situa-se o caráter intenso dessas afecções na clínica
psicanalítica contemporânea, o que exige de nós um mergulho teórico cuja intenção visa
atingir, no próprio cerne da psicanálise, os modos atuais de subjetivação e os principais
fatores a eles ligados. Não sem motivo, a psicanálise detecta hoje fenômenos cada vez mais
intensos de depressão aguda e crônica, o que exige sua definição em relação ao traçado
melancólico. No sentido de demonstrarmos a relevância teórica da depressão para a clínica
psicanalítica, defendemos que as marcas do sofrimento aviltante no qual o paciente
deprimido se situa exigem investigação equânime aos processos sob os quais outras formas
de sofrimento similares se assinalam. De acordo com o aprofundamento e desenvolvimento
deste trabalho, veremos que a depressão é ainda um conceito complexo no campo
psicanalítico na medida em que sua definição se torna difícil, especialmente quando se toca
no tema da melancolia. Veremos que no quadro geral da psicanálise os estudos sobre
14
depressão não alcançam distinção pertinente aos traçados subjetivos de cada uma dessas
manifestações. No mesmo patamar, a depressão tem sido abordada de maneira imbricada ao
conceito de luto, o que acaba por ocasionar uma perda de especificidade teórica deste
último. Muitas vezes tomada como “luto patológico” ou “patologia do luto”, a depressão é
abordada ainda hoje em níveis pouco ou mal delimitados, tanto nas suas fronteiras com o
luto quanto em relação à própria especificidade da dinâmica melancólica.
1
Dividido em três partes, nosso trabalho visa, assim, situar no quadro teórico da
psicanálise as razões para se diferenciar da melancolia – e não menos do luto – esta
importante modalidade de sofrimento da atualidade. Nesse traçado teórico, percorreremos
caminhos que julgamos necessários no interior da investigação em pauta. Na primeira parte
(capítulo I) procuramos discutir sobre os aspectos problemáticos da concepção de
depressão a partir do discurso médico-científico e midiático. A fim de contextualizar a
construção dos manuais mais recentes, demonstramos uma íntima conexão entre esses
discursos, que acirra em nossa análise a separação entre psicopatologia depressiva,
subjetividade e cultura. Na seqüência (segunda parte, capítulos II e III) adentramos o
universo psicanalítico, propondo nessa via que o discurso sobre a depressão deve abarcar a
ótica subjetiva, a partir da qual se localiza clinicamente a singularidade narrativa. Nesse
âmbito, utilizamos como método a concepção Wittgensteiniana de jogos de linguagem,
tomando como eixo a noção de crença narcísica a partir da definição jamesiana de crença
como “regra de ação” (JAMES, 1907/2005). Deslindamos os aspectos do narcisismo sob
essa ótica, numa leitura que toma a crença narcísica como eixo da subjetivação na cultura,
especialmente em referência ao sofrimento depressivo contemporâneo. Partindo desta
definição, procuramos na terceira parte deslindar as diferenças entre o que denominamos
com Pinheiro (2004) “depressão contemporânea” e melancolia, numa perspectiva que
coloca tais dimensões psicopatológicas em destaque quando relacionadas ao afeto do luto.
A distinção entre o luto, a melancolia e a depressão, alvo do capítulo IV (3ª parte),
ensejo à discussão sobre o lugar da chamada crença narcísica no sofrimento depressivo
1
A discussão aprofundada sobre esta problemática se acha desenvolvida no capítulo IV de nossa exposição.
15
atual e seus destinos na contemporaneidade. Tal é o desfecho necessário encontrado no
capítulo V (3ª parte), onde procuramos demonstrar a íntima relação entre a crença narcísica
e a depressão nos dias de hoje. Para tanto, tomamos como referência a obra de Lasch (“A
cultura do narcisismo”) no sentido de apontarmos importantes peculiaridades na relação
com o ideal do eu na construção do sujeito contemporâneo. A abordagem sobre o contexto
depressivo atual contou aqui também com a importante contribuição de Ehrenberg,
pensador que localiza importantes transformações nas formas de sofrimento, distintas da
dinâmica psíquica do final do século XIX, abordada por Freud.
Iniciemos, portanto, com uma discussão crítica sobre o diagnóstico da depressão nos
Manuais mais recentes, o qual se acha intimamente articulado às concepções da psiquiatria
biológica, bem como ao discurso médico-científico no quadro contemporâneo.
16
1ª Parte
O Diagnóstico da Depressão no Campo Psiquiátrico
17
CAPÍTULO I – O ESTIGMA DA DEPRESSÃO EM TEMPOS DE CIÊNCIA
E MÍDIA
O tema da depressão é hoje difundido pelos dispositivos de mídia, bem como pelo
discurso médico, de maneira articulada por premissas e concepções biologizantes. Os
aspectos patológicos da depressão acham-se, sob tal concepção, no domínio do último,
donde se conclama um olhar biologicista, lançado como porta-voz de concepção
vitimizadora pela condição de “Transtorno” na qual a depressão é colocada, sendo o
“indivíduo deprimido” o ponto de incidência do acometimento em questão. A depressão é
entendida como um mal”, tão a gosto da farmacologia que, pautada no cientificismo, não
inclui a dimensão psicopatológica configurada pelo enredo histórico que marca o sujeito em
sua subjetivação e em seu posicionamento perante o outro e o mundo, como situa a
psicanálise. Esta, em contrapartida, é vista pela medicina como um dispositivo inoperante,
bem como problemático no tratamento da depressão (Cf. RODRIGUES, 2000). O
dispositivo analítico, sob a ótica médica, tenderia a agravar os sintomas da depressão, tal
como a “culpabilidade” e a “angústia”. Tomado do ponto de vista de seu epicentro de saber,
o dispositivo analítico é caracterizado como contra-indicado para este “Transtorno”, visto
que não haveria condição sob a qual se pudesse convocar o sujeito a falar, que não se
trataria de introduzir qualquer tipo responsabilização de sua parte. Ademais, grande parte
dos pacientes deprimidos não apresenta pronta inclinação a desdobrar em fala seu
sofrimento, no sentido psicanalítico da associação livre, diferentemente do que acontece
com os pacientes histéricos.
Algumas questões, contudo, quanto à especificidade de um quadro propriamente
depressivo se interpõem nesse âmbito, bem como no âmbito do debate sobre classificação
diagnóstica. Nesse sentido, poderíamos colocar em discussão aspectos importantes
concernentes à circunscrição de uma designação para a depressão ou para o que almejamos
tratar teoricamente em termos de psicopatologia depressiva. Nos manuais de psiquiatria, a
classificação das manifestações depressivas contém aspectos os mais variados, desde
quadros leves, severos ou isolados, até situações nas quais os sintomas depressivos
aparecem associados a outros “Transtornos” o que se observa na maioria dos casos.
18
Nesse sentido, colocamo-nos a indagar sobre o delineamento das classificações
nosográficas, bem como o destaque dado à depressão nos últimos Manuais em
confrontação à abordagem que buscamos no campo psicanalítico. Como definir
especificamente a patologia propriamente depressiva no âmbito da pesquisa teórica que
leva em consideração a subjetividade? É pertinente tomarmos, por exemplo, uma “reação
depressiva” circunstancial como parâmetro para a abordagem teórica que almejamos? A
psicanálise é realmente um dispositivo obsoleto frente às “tecnologias do bem-viver”? O
que definir então como depressão e que parâmetros estão envolvidos nas inferências
diagnósticas, visto que elas têm sido utilizadas nos últimos tempos com extrema freqüência
no âmbito da psiquiatria?
Configura-se, a partir dessas indagações, um direcionamento crítico a respeito da
constituição de idéias e práticas investigativas firmadas a princípio numa “neutralidade”
científica no campo das designações psiquiátricas, aqui relacionadas especificamente ao
problema da depressão. Confrontando esta posição, destacamos concepção profícua de
Rorty (1997) acerca da discussão sobre a produção do conhecimento, a qual passa, de
acordo com o autor, pela formação de idéias remetidas aos contextos nos quais elas se
encontram em determinada prática investigativa. Segundo Rorty, qualquer movimento
investigativo acha-se inevitavelmente atravessado por contextos sócio-culturais presentes
na formação do quadro social e na presença do discurso científico.
Buscamos, nesse ínterim, destacar a importante ralação entre as classificações
psiquiátricas e o movimento midiático que, pautado no discurso médico e nas descobertas
bioquímicas, tende a exacerbar a separação entre a (psico) “patologia depressiva”, a
subjetividade e a cultura. Sobre esse aspecto intentamos expor problemáticas que aparecem
desde a utilização nosográfica do diagnóstico médico relativo à depressão especialmente
quando este elimina de sua apreensão as profundidades de um quadro melancólico até a
definição de elementos relevantes para a especificação do campo psicopatológico sobre o
qual consideramos pertinente a investigação aprofundada.
19
1.1 – OS MANUAIS PSIQUIÁTRICOS SOB O IMPÉRIO DO DISCURSO MÉDICO:
DELIMITAÇÃO NOSOGRÁFICA, CIÊNCIA E CONTEXTUALIDADE
O movimento psiquiátrico de circunscrição diagnóstica preconiza que as linhas
lógicas de seu delineamento devem ser desenvolvidas sob o ponto de vista de uma
apreensão descritiva pura, sem o estabelecimento de pressupostos teóricos. Relativamente à
depressão, encontram-se marcadores que exigem investigação minuciosa, movida aqui pela
questão que se coloca a respeito diluição do quadro melancólico na classificação
depressiva. Ao buscarmos a distribuição nosográfica desenvolvida pela psiquiatria
concernente aos quadros depressivos, pudemos perceber que sua delimitação se concentra
nos chamados Transtornos do Humor”. No DSM-IV, tal classificação subdivide-se em
“Transtornos Depressivos”, “Episódios Depressivos”, “Transtorno Distímico”, “Transtorno
Ciclotímico” “Transtorno Bipolar I e II”; no CID-10, subdivide-se em “Transtorno Afetivo
Bipolar”, “Transtorno Depressivo Recorrente”, “Episódios Depressivos” e “Transtorno
Persistente do Humor” (ciclotimia e distimia).
Essas classificações entrecruzam-se nas descrições nosográficas, como se pode
observar nas relações entre o “Transtorno Depressivo Maior”, o “Episódio Depressivo
Maior” e o “Transtorno Distímico” no DSM-IV. Vejamos, pois, como aparece a
distribuição nosográfica da depressão no DSM-IV.
1.1.1 – DSM-IV
Os chamados “Transtornos de Humor” têm como uma das mais importantes
referências aquilo que, na distribuição nosográfica, é denominado “Transtorno Depressivo
Maior”. Esta denominação, que compõe a classificação dos Transtornos Depressivos, é um
quadro caracterizado por um ou mais Episódios Depressivos Maiores, sem história de
Episódios Maníacos, Mistos ou Hipomaníacos. Os Transtornos Depressivos, segundo o
DSM-IV, devem ser diagnosticados na ausência desses três últimos fatores, ou seja, caso
um ou mais deles apareçam intercorrentemente num Transtorno Depressivo Maior, sem
20
interferência de substâncias antidepressivas ou uso de medicamentos e exposição a toxinas,
o diagnóstico deverá ser transferido para Transtorno Bipolar.
Os Episódios Depressivos Maiores, que compõem o Transtorno Depressivo Maior,
definem-se como episódios de humor deprimido ou perda de interesse e prazer por quase
todas as atividades; alterações no apetite ou peso, sono e atividade psicomotora; diminuição
da energia; sentimentos de desvalia ou culpa; dificuldade para pensar, concentrar-se ou
tomar decisões, ou pensamentos recorrentes sobre morte ou ideação suicida, planos ou
tentativas de suicídio. Distorção na interpretação de eventos triviais é comum nesses
quadros, com senso exagerado de responsabilidade pelas adversidades. Dentre essas
características, o sentimento de desvalia ou culpa nas descrições do DSM-IV pode assumir
proporções delirantes (por exemplo, convicção de ser pessoalmente responsável pela
pobreza que no mundo). O denominado Episódio Depressivo Maior deve apresentar
também prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, profissional ou em
outras áreas importantes da vida do indivíduo. Devem ser classificados, segundo o DSM-IV
como Leve, Moderado, Severo sem aspectos psicóticos, Severo com aspectos psicóticos, em
remissão parcial, ou em remissão completa. Um Episódio Depressivo Maior pode ser
classificado também como Crônico, com Características Catatônicas, com Características
Melancólicas, com Características Atípicas, ou com Início no Pós-Parto.
O Transtorno Distímico, por sua vez, diferencia-se do Transtorno Depressivo Maior
ou de um Episódio Depressivo Maior no DSM-IV pelos aspectos gerais de gravidade,
cronicidade e persistência. Seu humor é descrito como triste ou na fossae, enquanto que
um Episódio Depressivo Maior é diagnosticado na presença de sintomas depressivos de um
período mínimo de duas semanas consecutivas, o Transtorno Distímico representa a
presença de sintomas com prevalência de no mínimo dois anos, com sintomas adicionais de
apetite diminuído ou hiperfagia, insônia ou hipersonia, baixa energia ou fadiga, baixa
auto-estima, fraca concentração ou dificuldade em tomar decisões e sentimentos de
desesperança. O diagnóstico diferencial entre esses dois tipos de transtornos na
classificação psiquiátrica aparece no DSM-IV como de difícil composição. O diagnóstico
de “Transtorno Distímico” pode apenas ser implementado se, no período de 2 anos
21
referentes a um quadro de distimia, não houve nenhum Episódio Depressivo Maior. Estes
são caracterizados por uma freqüente variação no estado de humor habitual do indivíduo,
ao passo que o Transtorno Distímico caracteriza-se por sintomas depressivos crônicos e
menos severos, presentes por muitos anos, sem grandes variações no estado de humor do
sujeito nesse período. Dito de outra forma, o Transtorno Distímico caracteriza-se por um
humor depressivo de longa duração, sem grandes variações e menos severo. No Transtorno
Depressivo Maior (que inclui Episódios Depressivos Maiores), o quadro caracteriza-se
como uma alta variação no estado de humor, em períodos curtos.
No que se refere ao Transtorno Ciclotímico, nele se encontram sintomas
hipomaníacos em determinados períodos e sintomas depressivos em outros. Os sintomas
hipomaníacos, por sua vez, apresentam as mesmas características do Transtorno Maníaco,
com exceção das atividades delirantes ou alucinatórias, as quais aparecem neste último,
mas estão ausentes em um Episódio Hipomaníaco. Na Ciclotimia, os sintomas depressivos
não correspondem ao grau de abrangência ou duração suficientes para a classificação de
Transtorno Depressivo Maior.
O Transtorno Bipolar (I e II), que se apresenta também como uma das classificações
relativas aos chamados “Transtornos de Humor” inclui quadros depressivos, especialmente
o Transtorno Bipolar II. Este se estabelece no DSM-IV pela presença de um ou mais
Episódios Depressivos Maiores, acompanhados por pelo menos um Episódio Hipomaníaco.
O Transtorno Bipolar I é caracterizado pela ocorrência de um ou mais Episódios Maníacos
ou Episódios Mistos (nos quais se satisfazem critérios tanto para Episódio Maníaco quanto
para Episódio Depressivo Maior).
O DSM-IV inclui caracterizações que se diferenciam do CID-10 em algumas
nomenclaturas, mas, em geral, apresentam especificações extremamente similares às do
último, sem grandes variações no modo de distribuição. Vejamos, pois, como isso aparece
no CID-10.
22
1.1.2 – CID-10
Como foi dito, no CID-10 os Transtornos do Humor” subdividem-se em
“Transtorno Afetivo Bipolar”, “Transtorno Persistente do Humor” (ciclotimia e distimia)
“Episódios Depressivos” e “Transtorno Depressivo Recorrente”, sendo que esses três
últimos concentram uma caracterização mais isolada do quadro depressivo.
Os Episódios Depressivos são caracterizados pelo CID-10 como estados de
rebaixamento do humor, redução da energia e diminuição da atividade. A perda de
interesse, a diminuição da capacidade de concentração, fadiga mesmo após um esforço
mínimo, problemas do sono e diminuição do apetite são os sintomas principais dos
Episódios Depressivos. Também são inseridos nesta classificação sintomas como
diminuição da auto-estima e da autoconfiança e idéias de culpabilidade e ou de indignidade,
mesmo nas formas leves. Segundo este Manual, o humor depressivo pode acompanhar um
despertar matinal precoce, várias horas antes da hora habitual de despertar, agravamento
matinal da depressão, lentidão psicomotora importante, agitação, perda de apetite, perda de
peso e perda da libido. São classificados como leve, moderado ou grave sendo que este
último quesito pode ou não vir acompanhado de sintomas psicóticos.
2
Os Episódios Depressivos são delineados de acordo com a gravidade com que
aparecem os sintomas. Nos Episódios Depressivos inclui-se uma categoria chamada
“reação depressiva”, não especificada no CID-10, mas que, conforme se pode depreender
de sua nomenclatura, surge como reação a fatores psicossociais inespecíficos.
O denominado “Transtorno Depressivo Recorrente” (CID-10) é caracterizado por
ocorrência repetida de episódios depressivos comportando possivelmente breves episódios
caracterizados por uma ligeira exaltação do humor e da atividade (hipomania), sucedendo
imediatamente um episódio depressivo. Apresentam segundo o CID-10 “numerosos pontos
comuns com os conceitos da depressão maníaco-depressiva, melancolia, depressão vital e
depressão endógena (ibid.)”. Em caso de ocorrência de um episódio maníaco, o diagnóstico
2
Episódio depressivo leve, Episódio depressivo moderado, Episódio depressivo grave sem sintomas
psicóticos, Episódio depressivo grave com sintomas psicóticos
(Cf. Organização Mundial de Saúde, CID-10,
1996-1997).
23
deve ser alterado pelo de transtorno afetivo bipolar, mas o risco de ocorrência de um
episódio maníaco não pode jamais ser completamente descartado em um paciente com um
transtorno depressivo recorrente, qualquer que seja o número de episódios depressivos
apresentados. Também pode uma “reação depressiva” ser, conforme o Manual,
caracterizada como “Transtorno Depressivo Recorrente”.
O “Transtorno Persistente do Humor” é um conjunto de sintomas persistentes e
habitualmente flutuantes, nos quais os episódios individuais não são suficientemente graves
para justificar um diagnóstico de episódio maníaco ou de episódio depressivo leve. Como
persistem por anos e, por vezes, durante a maior parte da vida adulta do paciente, levam,
contudo a um sofrimento e à incapacidade consideráveis. Em certos casos, episódios
maníacos ou depressivos recorrentes ou isolados podem se superpor a um transtorno afetivo
persistente.
Ciclotimia e Distimia são as duas principais categorias do “Transtorno Persistente
do Humor”, sendo a primeira caracterizada por:
“(...) instabilidade persistente do humor que comporta numerosos períodos
de depressão ou de leve elação, nenhum deles suficientemente grave ou prolongado
para responder aos critérios de um Transtorno Afetivo Bipolar ou de um Transtorno
Depressivo Recorrente. (...) Algumas pessoas ciclotímicas apresentarão elas próprias
ulteriormente um transtorno afetivo bipolar” (ibid.).
A Distimia no CID-10, por sua vez, é classificada por um “rebaixamento crônico do
humor, persistindo ao menos por vários anos, mas cuja gravidade não é suficiente ou na
qual os episódios individuais são muito curtos para responder aos critérios de transtorno
depressivo recorrente grave, moderado ou leve”.
No CID-10 a distribuição dos Transtornos de Humor passa também pela
classificação dos “Transtornos Afetivos Bipolares”, nos quais a depressão aparece
associada ao que se denomina “psicose maníaco-depressiva” (na qual aparece a mania com
sintomas psicóticos). Os “Transtornos Afetivos Bipolares” são caracterizados por um nível
de atividade profundamente perturbada, sendo que este distúrbio consiste em elevação do
24
humor e aumento da energia e da atividade (hipomania ou mania) em algumas ocasiões e,
em outras, de um rebaixamento do humor e de redução da energia e da atividade
(depressão).
Apesar de se concentrarem nos chamados Transtornos do Humor”, os sintomas
depressivos fazem-se verificar em diversas outras classificações nosográficas, podendo ser
identificados de maneira imbricada a tantas outras patologias. Como se constata, por
exemplo, através da caracterização presente na classificação dos “Transtornos Alimentares”
(DSM-IV), a Anorexia Nervosa contém, na grande parte dos casos, fortes sintomas de
depressão. Tal sintomatologia satisfaz as exigências para a classificação de Transtorno
Depressivo Maior, ou mesmo um Transtorno Distímico. No CID-10 a “Depressão ansiosa
persistente” apresenta sintomas de depressão na Distimia intimamente associados à
ansiedade crônica. No mesmo Manual encontramos uma categoria de transtorno ansioso
caracterizada por “Transtorno Misto Ansioso e Depressivo”. O indivíduo apresenta ao
mesmo tempo sintomas ansiosos e sintomas depressivos, sem predominância nítida de uns
ou de outros, e sem que a intensidade de uns ou de outros seja suficiente para justificar um
diagnóstico isolado.
Tanto no CID-10 como no DSM-IV esses “transtornos depressivos” ou os sintomas
diversos que lhes correspondem associam-se freqüentemente a muitos outros: se
enfocarmos o DSM-IV em sua totalidade, verificaremos sintomas ou transtornos
depressivos presentes no Transtorno Obsessivo-Compulsivo; na Anorexia Nervosa; na
Bulimia Nervosa; no Transtorno de Pânico; no denominado Transtorno do Ajustamento;
nos Transtornos de Ansiedade; nos Transtornos Psicóticos; na Esquizofrenia; na
Tricotilomania; no Transtorno Ciclotímico; no Transtorno Bipolar; no Transtorno de
Estresse Agudo; na Cleptomania; no Transtorno de Aprendizagem; no Transtorno
Conversivo; no Transtorno de Somatização; no denominado Transtorno Doloroso; no
Transtorno de Sonambulismo; nos Transtornos do sono; na Agorafobia; na Narcolepsia; na
Fobia Social; no Transtorno Dismórfico Corporal; nos Transtornos de Ansiedade em geral;
em todos os Transtornos de Personalidade.
25
Sendo tal enfoque extremamente importante para uma análise das configurações
classificatórias na distribuição nosográfica, os campos de reflexão sobre o destaque dado à
depressão se dirigem para uma discussão que parte das apreensões concernentes ao
cruzamento dos transtornos como um todo e da relação entre eles e a depressão o que,
como podemos ver, se estabelece de maneira freqüente.
1.1.3 – Discussão crítica
O levantamento criterioso das classificações psiquiátricas é de extrema relevância
para a análise de determinados fatores que incidem como pontos problemáticos quando da
confrontação de tais classificações com o discurso psicanalítico. Em primeira instância, o
que podemos constatar da apreensão exposta referente aos Manuais é a clara dispersão do
quadro melancólico em tais caracterizações. Percebe-se nitidamente que a melancolia
encontra-se dissolvida na classificação da depressão. Ao verificarmos os chamados
“Episódios Depressivos”, tanto no CID-10, como no DSM-IV, encontramos alguns
fenômenos subjetivos específicos ao quadro melancólico, similares àqueles abordados em
diversos textos psicanalíticos. No chamado Episódio Depressivo Maior (DSM-IV),
identifica-se sintomatologia depressiva que inclui tanto quadros de humor deprimido
intenso quanto sofrimento moral extremo com sinais delirantes:
“Em alguns indivíduos que se queixam de se sentirem indiferentes ou
ansiosos, a presença de um humor deprimido pode ser inferida a partir da expressão
facial e do modo de portar-se. Alguns indivíduos salientam queixas somáticas (por
ex., dores ou mazelas corporais) ao invés de sentimentos de tristeza. Muitos referem
ou demonstram irritabilidade aumentada (por ex., raiva persistente, uma tendência
para responder a eventos com ataques de ira ou culpando outros, ou um sentimento
exagerado de frustração por questões menores). Em crianças e adolescentes, pode
desenvolver-se um humor irritável ou rabugento, ao invés de um humor triste ou
abatido. Esta apresentação deve ser diferenciada de um padrão de "criança mimada",
que se irrita quando é frustrada. A perda de interesse ou prazer quase sempre está
presente, pelo menos em algum grau. Os indivíduos podem relatar menor interesse
26
por passatempos, "não se importar mais", ou a falta de prazer com qualquer atividade
anteriormente considerada agradável. Os membros da família freqüentemente
percebem retraimento social ou negligência de atividades agradáveis”.
3
Adiante, o Manual aponta:
O sentimento de desvalia ou culpa associado com um Episódio Depressivo Maior
pode incluir avaliações negativas e irrealistas do próprio valor, preocupações cheias
de culpa ou ruminações acerca de pequenos fracassos do passado. Esses indivíduos
freqüentemente interpretam mal eventos triviais ou neutros do cotidiano como
evidências de defeitos pessoais e têm um senso exagerado de responsabilidade pelas
adversidades. Um corretor imobiliário, por exemplo, pode culpar-se pelo seu fracasso
em fazer vendas, mesmo quando há um colapso geral no mercado e os outros
corretores também não conseguem vender. O sentimento de desvalia ou culpa pode
assumir proporções delirantes (por ex., convicção de ser pessoalmente responsável
pela pobreza que há no mundo). (ibid.).
Nesse contexto, a psicanálise se indagaria sobre o lugar da patologia
especificamente melancólica nos manuais psiquiátricos mais recentes. Como fica indicado
nesta passagem, seu lugar se desvanece sob o emblema da depressão.
Se, contudo, para a psiquiatria a melancolia deixa de assumir especificidade clínica,
para a psicanálise sobram motivos no sentido de destacá-la como patologia específica, tanto
em suas características discursivas, quanto nos aspectos psicodinâmicos e mesmo
metapsicológicos presentes em sua descrição e abordagem teórico-clínica (Cf.
LAMBOTTE, 1997).
No contexto desta discussão estamos necessariamente tocando não apenas na
questão da especificidade do quadro melancólico, mas também na perspectiva psicanalítica
relativa ao quadro depressivo não circunscrito à patologia melancólica. A essa altura,
indagamo-nos pois: o que é afinal a depressão? razão para não se distinguir quadros
3
Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – Episódio Depressivo Maior/DSM-IV, PsiWeb
Psiquiatria Geral, 1995.
27
depressivos diversos de uma organização melancólica propriamente dita? A que quadro
está referida esta denominação que, nos tempos atuais, é tomada pela sociedade e
endossada pela mídia – como “mal do século”?
A psiquiatria apresenta uma definição extremamente ampla da depressão. Não
obstante os problemas de sua classificação, bem como a imprecisão desta noção tal como
veremos adiante –, acreditamos que o conceito da depressão aponta para um tipo de
sofrimento ou arranjo sintomático que não deve ser negligenciado. Nossa hipótese é de que
fatores importantes que aparecem na clínica psicanalítica contemporânea, relativos a
determinadas formas de sofrimento depressivo, que se distinguem da melancolia esta
última intensamente trabalhada no campo da psicanálise.
Problemas acerca do diagnóstico psiquiátrico da depressão
Em primeiro lugar, é necessário que se coloque em discussão determinados
contextos problemáticos que aparecem na difusão midiática do tema da depressão em
associação com o discurso médico-científico e psiquiátrico. Para tanto, partimos do próprio
delineamento psiquiátrico no âmbito das classificações nosográficas. Conforme pudemos
constatar, no DSM-IV e no CID-10 existem inúmeras referências a quadros depressivos,
desde os mais isolados e severos, até aqueles que se acham imbricados com outros
indicadores patológicos.
4
Ao verificarmos as classificações da depressão, identificamos
enquadres nosográficos e indicadores estatísticos que suscitam para nós importante questão.
Nesse sentido, apontamos:
1. Aquilo que se denomina “Transtorno Depressivo Sem Outra Especificação” (DSM-
IV), definido como “(...) transtornos com características depressivas que não
satisfazem os critérios para Transtorno Depressivo Maior, Transtorno Distímico,
Transtorno de Ajustamento com Humor Deprimido ou Transtorno de Ajustamento
Misto de Ansiedade e Depressão” (ibid.), refere-se a um quadro que poderia ser
4
O que se faz notar na enorme maioria das patologias.
28
tomado, por exemplo, como uma “reação depressiva” qualquer, sem maiores
indicadores crônicos ou agudos (a “reação depressiva” é identificada no CID-10
como uma das categorias dos chamados “Episódios Depressivos”). Tal conjuntura é,
contudo, incluída também sob a categoria de Transtorno, mesmo que “Sem Outra
Especificação”.
2. Verifica-se nas estatísticas do próprio DSM-IV que 40% das pessoas diagnosticadas
com “Transtorno Depressivo Maior” não apresentam, após um estudo mais detido e
rigoroso em cada caso, qualquer motivo para um diagnóstico propriamente dito de
“Transtorno de Humor” segundo o próprio Manual
5
. Ou seja, o chamado “Episódio
Depressivo”, que inclui a designação “Transtorno Depressivo Maior Episódio
Único”, ou “Transtorno Depressivo Sem Outra Especificação” pode levar a um
diagnóstico que inclui o indivíduo como portador de transtorno depressivo”.
Mesmo que de curto período, tal “transtorno” acaba por ser tratado e medicado
como tal, ainda que não confirmado como patologia crônica e perene (“Transtorno
de Humor”) no transcorrer do tempo
6
.
3. Constata-se também, a partir de verificações a manuais anteriores, que a
classificação da depressão tomou corpo e atingiu de maneira crescente designações
específicas e isoladas nos Manuais mais recentes, onde se encontra vasta subdivisão
dos Transtornos de Humor em quadros depressivos isolados. Nos manuais
anteriores ao DSM-III e IV, as designações relativas aos Transtornos Ciclotímicos e
Distímicos não existiam. Quadros relacionados a sintomas depressivos
5
No DSM-IV, tal indicador aparece da seguinte forma: “Estudos naturalistas de seguimento sugeriram que,
um ano após o diagnóstico de Episódio Depressivo Maior, 40% dos indivíduos ainda têm sintomas
suficientemente severos para satisfazerem os critérios para um Episódio Depressivo Maior completo,
aproximadamente 20% continuam com alguns sintomas que não mais satisfazem todos os critérios para
Episódio Depressivo Maior (isto é, Transtorno Depressivo Maior, Em Remissão Parcial) e
40% não têm
Transtorno do Humor
” (Grifo nosso).
6
O mesmo se pode verificar a respeito do “Transtorno Depressivo Recorrente Sem Especificação” no CID-
10.
29
encontravam-se distribuídos em outras patologias como “Psicose Maníaco-
Depressiva”, “Melancolia de Involução” (CID-06) “Psicoses Afetivas” (CID-09)
7
,
etc. Tais Transtornos (Ciclotímicos e Distímicos) surgiram no DSM-III,
conjuntamente à categoria das “Desordens Afetivas”, subdivididas ali em quadros
depressivos diversos. O destaque dado aos Transtornos Depressivos acirrou-se no
DSM-IV e no CID-10, nos quais a melancolia, como pudemos constatar, dissolveu-
se definitivamente.
4. Ao fazermos um cruzamento entre as designações para a depressão e as demais
definições nosográficas observamos nessas últimas uma alta incidência de sintomas
depressivos. Este fenômeno – aparecimento de um transtorno na grande maioria dos
demais não se faz notar com esta veemência quando feito o mesmo cruzamento
entre outras patologias. O Transtorno Obsessivo-Compulsivo, por exemplo, aparece
também em Transtornos de Ansiedade, Transtornos Alimentares e Transtorno de
Tourette, mas não é localizado em mais nenhuma outra patologia, permanecendo
restrito a tais enquadres. Verifica-se que a depressão se acha presente em um
número extremado de transtornos, de maneira muito mais acentuada do que na
relação cruzada de outras patologias entre si.
O que estamos problematizando com estes apontamentos é um conjunto de fatores
do campo médico-científico deflagradores de um movimento – apreendido a partir da
análise da classificação psiquiátrica da depressão, bem como da distribuição de sua
sintomatologia nos referidos Manuais cuja conjuntura expressa um amplo procedimento
nosográfico que leva a uma priorização do diagnóstico de depressão em casos diversos.
Como apontamos acima, 40% das pessoas diagnosticadas como deprimidas (Episódio
Depressivo) não são posteriormente diagnosticadas com “Transtorno de Humor” numa
investigação mais apurada. Ou seja, esses pacientes, apesar de não apresentarem uma
7
Organização Mundial de Saúde, CID-06, 1948; Organização Mundial de Saúde, CID-09, 1978.
30
patologia crônica, são também diagnosticados e tratados sob a denominação de “Transtorno
Depressivo Maior”, mesmo que “de Episódio Único” se feita uma observação posterior
mais detida (ou sob a denominação de “Transtorno Depressivo Sem Outra Especificação”).
Nesse âmbito, desejamos colocar em questão dois pontos problemáticos presentes
nos Manuais. O primeiro deles é a inclusão de fenômenos depressivos sem grandes
especificações ou de episódio único, caracterizados previamente como “Transtornos”,
diagosticados e tratados pela psiquiatria como tal. O segundo ponto refere-se a algo mais
radical, a saber, a vaga distinção entre fenômenos depressivos e fenômenos melancólicos.
Indagamos-nos, sob esse contexto: o que motiva, no campo psiquiátrico, uma proeminência
tão veemente da classificação da depressão, categorizando-a como Transtorno circunscrito,
dissolvendo-se patologias tão específicas e importantes como a melancolia? Por que diluir a
melancolia na depressão? Está presente apenas uma pretensão empirista em tais
classificações? Afora o inegável aumento nas últimas décadas de pacientes que procuram
tratamento apresentando a preponderância clínica de sintomas depressivos, haveria um
movimento diretivo por parte dos dispositivos médicos para o diagnóstico de depressão?
Que fatores foram decisivos para a constituição dos Manuais mais recentes? Que elementos
poderiam nos servir de parâmetro para uma análise mais aprofundada dessas questões que
nos leve a uma resposta a respeito da relação entre tais definições e os contextos nos quais
elas são constituídas?
Os problemas referentes a tais indagações podem ser visualizados a partir do
momento em que se considera a existência de vetores que ultrapassam a pura observação
empírica e que ao mesmo tempo atravessam a apreensão dos fenômenos incluindo-se
concepções sobre transtorno, doença, depressão, subjetividade, etc. Considera-se sob esse
aspecto que tais vetores acham-se condicionados por questões de concepção. Caberia
indagar que dispositivo de intervenção e tratamento toma destaque privilegiado sob a
configuração aqui problematizada.
Bogochvol (2001) assinala que a medicina serve-se preponderantemente da
farmacologia, aplicando terapia de pressupostos biológicos e neuroquímicos. Inscreve-se
nessa condição a possibilidade ou não de indicação, em um caso ou em outro, de um
31
procedimento psicoterápico “de apoio”, ou “associado” geralmente a psicoterapia
cognitivo-comportamental como elemento coadjuvante ao tratamento químico (Cf.
EHRENBERG, 1998). Nesta concepção, identificam-se dois pressupostos de base para a
explicação fisiológica ou genética da depressão (seja ela melancólica ou não). Um
pressuposto defende que sua causa fundamental encontra-se na diminuição do
neurotransmissor denominado Noradrenalina, outro aponta a diminuição da Serotonina
como base funcional da depressão (BALLONE, 2007). Tais pressupostos apoiam-se nos
estudos das alterações neuroquímicas nos contextos em que os chamados “transtornos
depressivos” se apresentam.
Faz-se absolutamente necessário frisar, contudo, que os próprios pressupostos
neuroquímicos não apresentaram até hoje a consistência esperada para sua positivação,
permanecendo ainda tal perspectiva alicerçada em hipóteses e indicativos incertos,
conforme encontramos na seguinte fonte de informação:
“Outro achado que suscitava dúvidas sobre a causa exclusiva da hipofunção de
neurotransmissores, foi que a deficiência de noradrenalina e/ou de serotonina, assim
como de seus metabólitos no líquido cefalorraquidiano (LCR), no sangue ou na
urina, nunca foi consistentemente demonstrada em pacientes depressivos, apesar dos
múltiplos esforços nesse sentido. Os trabalhos que atestavam eventual deficiência de
catecolaminas e metabólitos em pacientes deprimidos não eram confirmados por
outros estudos.” (BALLONE, op. cit).
Rodrigues (op.cit.), por sua vez, não deixa de frisar a precariedade da premissa
fisiopatológica para a explicação dos “Transtornos Depressivos” e para a legitimação de
uma terapia eminentemente química pautada em pressupostos biologizantes. Nesse sentido,
afirma:
“(...) nenhum dos dois neurotransmissores pode ser utilizado como um marcador
biológico seguro, uma vez que a alteração não é nem constante e nem sempre
envolve o mesmo neurotransmissor. Não faltaram tentativas de se buscarem outros
32
marcadores biológicos (teste de Dexametasona, marcadores fisiológicos,
endocrinológicos, etc.), mas nenhum deles mostrou-se suficientemente específico e
sensível para esse transtorno.”
A Teoria das monoaminas (WIKIPÉDIA, 2008), base da perspectiva investigativa
pautada no pressuposto fisiopatológico, afirma que a depressão crônica ou profunda poderá
apresentar pequenas diminuições na utilização dos neurotransmissores monoaminas
(noradrenalina e dopamina) e da serotonina. Os antidepressivos agiriam na inibição da
recaptação da serotonina ou da noradrenalina.
Nessas apreensões subjazem correlações entre estados definidos como
“depressivos” e alterações neuroquímicas que constituiriam, sob esse contexto, a base da
concepção fisiopatológica. A análise mais minuciosa acerca dos achados bioquímicos e
farmacológicos revela, contudo, alguns problemas na concepção fisiopatológica que
derivam da aplicação nem sempre bem sucedida dessas substâncias. Tais problemas
derivam também dos pressupostos não confirmados com exatidão quando da investigação
aprofundada sobre tais alterações fisiológicas. Tal campo investigativo não apresenta
positivação de tal conjuntura específica em termos de previsibilidade, controle e certeza.
“(...) na depressão unipolar mesmo profunda, na maioria das vezes não há alterações,
e na depressão unipolar moderada estas diminuições, quando existem, não são
significativas. Contudo os todos os fármacos eficazes no tratamento da depressão
aumentam os níveis de alguns desses neurotransmissores. É sabido que a dopamina é
importante nas vias da satisfação, e a adrenalina e serotonina produzem efeitos de
satisfação” (WIKIPÉDIA, 2008).
Fica claro que não é a alteração fisiológica em si o que justifica a utilização do
fármaco, mas seus efeitos posteriores. Como se constata, não há aqui indícios claros de uma
etiopatogenia química no sofrimento depressivo.
Uma outra linha de frente que se pauta na busca pela explicação fisiopatológica dos
estados depressivos norteia atualmente, de maneira mais preponderante, as pesquisas
33
relacionadas a este campo psicopatológico. Estas pesquisas apontam hipóteses relacionadas
a neuroreceptores, mais do que neurotransmissores, apesar de também não terem sido
confirmadas estas hipóteses no campo científico.
“(...) as hipóteses da desregulação no número e na sensibilidade do neuroreceptor
sugerem que, em síntese, as deficiências funcionais na neurotransmissão podem
ocorrer mesmo com níveis normais de neurotransmissores, e não têm sido
conclusivos os estudos para identificar uma clara evidência entre as deficiências
catecolaminas e indolaminas nos pacientes depressivos” (BALLONE, op. cit.).
Como se pode constatar, a tentativa de se circunscrever etiopatologia depressiva no
campo bioquímico não encontrou confirmação que sustente tal concepção de maneira
definitiva. Sobre isso, Rodrigues (op. cit.) assinala: “(...) ainda que existam alterações
bioquímicas na depressão, como a diminuição de certos neurotransmissores, estas não se
confundem com sua causa.” A existência de alterações bioquímicas no fenômeno
depressivo não constitui base suficiente para a sustentação do pressuposto fisiopatológico
que explique isoladamente tais “transtornos” em termos etiológicos. Os próprios Manuais
classificam a depressão como transtorno. Não podem classificá-la como doença dado que
não definição de etiologia fisiopatológica específica que a caracterize como tal. Este
apontamento problematiza dois pontos fundamentais a respeito do diagnóstico psiquiátrico:
o enquadre de transtorno dado à depressão, e, na outra ponta do mesmo fio,
contraditoriamente, a terapia preponderantemente química, aplicada com base em
pressupostos fisiopatológicos.
Sonenreich (op. cit.) aponta nesse âmbito a existência de interesse por parte da
medicina no desenvolvimento da quimioterapia, o que estaria na base, pois, das novas
formulações nosográficas, especialmente aquelas relativas ao DSM-III e IV, bem como da
CID 9 e 10:
“Com certeza, tal procedimento foi sustentado pelo interesse despertado pela terapia
com carbonato de lítio, ganhando amplo uso o conceito de desordens afetivas.
34
Grupos de trabalhos, sessões clínicas e de laboratório, revistas, publicações,
dedicam-se especificamente a atividades ligadas a este conceito [“desordens
afetivas”] e o usam para definir-se, nomear-se” (p. 2).
O movimento relacionado ao diagnóstico depressivo toma corpo a partir da lógica
fisiopatogênica, o que é também discutido por Ehrenberg (op. cit.). O autor situa, nesse
ínterim, o surgimento de novas substâncias que agem sobre a ansiedade, a depressão e
praticamente todos os sofrimentos e disfunções mentais.
Ehrenberg problematiza esta conjuntura, apontando que as substâncias químicas são
também utilizadas em casos não tão graves, na contrapartida de casos crônicos, entretanto
refratários a tais procedimentos. É o que faz sobrevir no próprio campo médico uma crise
sobre a idéia de cura, posto que os antidepressivos muitas vezes não incidem da maneira
esperada. Conforme se constatou e o autor aponta 50% dos pacientes recaem depois de
um episódio depressivo, 20% pioram e 15 a 20% não passam de remissões de sintomas. A
maior parte dos pacientes recai ou varia o seu estado crônico, o que inclui a questão da
cronicidade muitas vezes prevalecente dentro da linha química de tratamento. O autor
discute em sua obra sobre a eficácia dos antidepressivos, o que os restringe a um estatuto de
melhora e não de cura. A melhora passa então a ser colocada como um marcador
importante nesses tratamentos. O autor afirma também que a eficácia do antidepressivo vai
depender de cada caso. Em alguns casos observa-se eficácia total, em outros se vê resultado
apenas depois de certo tempo. Esses critérios muitas vezes levam em consideração muito
mais a intuição clínica do que concepções standardizadas e pré-estabelecidas (ibid.), o que
abre contradições severas no que tange ao reducionismo bioquímico na direção do
tratamento da depressão.
Assoma-se a isso, a legitimação de práticas que se afirmam como imparciais ou
puristas por meio de classificações nosográficas, atravessadas, entretanto, por vetores não
restritos ao campo puramente descritivo. A medicina psiquiátrica pauta-se na prerrogativa
de que a classificação dos quadros patológicos é desenvolvida com pretensões “ateóricas”,
restritas fundamentalmente à pura observação e análise descritiva dos fenômenos
35
psicopatológicos. Nessa via, as classificações teriam por objetivo servir à intervenção
médica positiva, o que reiteraria o seu valor de utilidade e operação. De fato, os Manuais,
em sua estrutura, não apresentam as possíveis implicações etiológicas nos diversos
“Transtornos”
8
(aqui enfocando os depressivos) e a descrição classificatória, como
dissemos, tentaria seguir uma linha descritiva pura, sem relação com pressupostos teóricos.
Contudo, a existência de fatores carregados de premissas teóricas inexoravelmente
presentes nesta operação é ponto que não pode deixar de ser considerado. Neste traçado
lógico Bogochvol (op. cit.), aponta que as concepções químicas “(...) nortearam grande
parte da organização das nosografias contemporâneas (o CID-10 e o DSM-IV), que,
ironicamente, são apresentadas como ateóricas, denegando, assim, seus próprios
pressupostos” (p. 45).
Visamos sustentar nesse âmbito que a medicina psiquiátrica, ao construir os
Manuais, não escapa da presença do observador, o qual, segundo uma análise mais
rigorosa, é atravessado por sua doutrina e seu instrumental (Cf. SONENREICH, op. cit.).
Ou seja, por mais que uma nosografia purista busque alcançar existência legítima, ela cai
inevitavelmente em engrenagens teóricas e até mesmo ideológicas.
9
8
A única exceção que se apresenta em termos de etiologia nos Manuais aparece nos chamados “Transtornos
de Humor Devido a uma Condição Médica” e “Transtornos de Humor induzidos por Substancia”, onde se
definem marcadores causais, seja por uma “condição médica” qualquer, seja pela introdução de alguma
substância que altere o estado psíquico do indivíduo.
9
É preciso frisar que não estamos desconsiderando, ao fazermos esta análise, o indiscutível aumento no
número de pacientes que demandam tratamento por fatores clínicos cujo traçado aponta para sintomas
depressivos, o que se faz notar nos últimos tempos de maneira mais preponderante tanto nos institutos de
saúde quanto nos consultórios privados. Questionamos, entretanto, a proeminência de um movimento
classificatório que dilui no diagnóstico depressivo outras especificações importantes como a melancolia,
quando aquela aparece na maioria das vezes de maneira inespecífica ou de maneira associada a outras tantas
patologias. Como veremos, a psicanálise observa casos de depressão tanto na histeria quanto na melancolia.
No presente trabalho definiremos, a partir da linha de pesquisa desenvolvida no NEPECC/UFRJ da qual
participamos, um tipo de depressão que difere da melancolia e da histeria e que é específico à contextualidade
sócio-cultural contemporânea. Destaca-se aqui a importância da subjetividade, bem como da cultura, no
aparecimento de uma depressão crônica ou aguda.
Também não estamos sugerindo, com isso, que a medicina não deva se valer da intervenção química em
determinados quadros cuja cronicidade alcança níveis insustentáveis de suportabilidade. O que se
problematiza sobre isso é a utilização da psicofarmacologia na
legitimação do reducionismo biologizante para
a etiologia da depressão, baseada nos efeitos muitas vezes prodigiosos dos medicamentos bem como nas
análises não muito ainda consistentes sobre as alterações neuroquímicas. Conforme pudemos verificar,
contudo, o índice de pacientes deprimidos não diminuiu nos últimos anos apesar da incisiva intervenção
36
Essas considerações, que colocam em questão o caráter meramente observacional da
medicina na definição noso-gráfica da depressão, relaciona-se ao contexto não menos
problemático daquilo que Clavreul denomina Ordem Médica terreno por excelência do
discurso médico a partir do qual se podem identificar questões de princípio. A “Ordem
Médica”, cujo campo de intervenção alinha-se terminantemente ao olhar objetivante da
ciência, não leva em consideração a subjetividade implicada no contexto da clínica médica.
O pensamento de J. Clavreul (1983), denuncia a presença de uma ideologia própria da
prática médica, cujo paradigma esbarra em problemática crucial ao confrontarmos tal
prática com a dimensão subjetiva que atravessa a condição humana, seja na esfera do
sofrimento físico, seja nos momentos não menos críticos do sofrimento psíquico. Clavreul
discute sobre as incidências do discurso médico no campo do sujeito, quando de sua
intervenção:
Pois é verdade que a medicina nunca fala da morte, a não ser para tentar
adiar sua data de vencimento; ela não fala nunca da vida e do gozo, a não ser para
regulamentá-los; ela nega qualquer outra razão de viver que não seja a razão médica
que faz viver, eventualmente à força. Mas ela, pelo menos, tem contas a prestar com
seus administrados” (p. 47).
Clavreul salienta o caráter totalizador da medicina que, por seus emblemas
ordenadores compõem uma conjuntura inalienável sob a qual a pessoa do médico se acha
inexoravelmente inserida. A Ordem Médica encontra-se na superfície da ação médica, e “os
médicos são seus executantes, seus funcionários, muitas vezes humildes, às vezes gloriosos,
mas a Ordem Médica se impõe por ela mesma” (p. 40).
química, mas aumentou, e 40% dos pacientes não respondem positivamente à quimioterapia, sendo que, após
um ano de interrupção do tratamento, recaída de 50% dos pacientes tratados com quimioterapia (Manual
diagnóstico e estatístico de transtornos mentais Episódio Depressivo Maior/DSM-IV, PsiWeb
PSIQUIATRIA GERAL, 1995).
37
Tal totalização deflagra o lócus de operação do discurso médico. Para Clavreul, o
poder do discurso médico, alicerçado em seu saber supostamente irrevogável, é o que
constitui seu caráter totalitário:
“A Ordem Médica é mais poderosa que o mais poderoso ditador, e às vezes,
tão cruel. Não se pode resistir a ela, porque não se tem nenhuma “razão” a lhe opor.
A queixa do ditador reúne-se aqui à reivindicação do selvagem. Ninguém pode
pretender sair indene de sua relação com a medicina, quer seja médico, doente ou
futuro doente” (p. 47).
A ação médica se acha, sob o olhar instigante de Clavreul, atravessada pela sua
palavra de Ordem, no próprio momento em que nós mesmos nos achamos impelidos à
adesão àquele que, por seu “saber”, detém por momentos a chave da vida (orgânica).
Adiante Clavreul coloca:
“Cada um de nós é seduzido, conquistado, menos por seus resultados
terapêuticos que pela extensão e certezas do saber médico, e menos por estas que
pela permanência de sua ordem no momento em que o nosso próprio corpo nos
abandona. Mas também a medicina nos reduz ao silêncio. Nenhuma razão é objetável
à razão médica, e o médico não recolhe de seu paciente senão o que pode ter lugar no
discurso médico. Não se pode pretender salvar ao mesmo tempo o discurso médico e
o discurso do paciente” (p. 48).
A objetividade do saber médico substitui, assim, as incertezas do espectro subjetivo,
este pronto desde sempre a aviltar seus ditames quando um elemento (subjetivo) extrínseco
ao seu saber e poder de atuação emerge diante de sua visão. Nesta conjuntura, a posição do
médico, alicerçada em seu saber, bem como nas ponderações científicas, toma relevo
diferenciado quando o médico, diante dos impasses gerados pelas questões fantasmáticas
inerentes à própria condição humana, acha-se em posição de pulverizar tal condição
motivo pelo qual Clavreul considera a necessidade de falar da medicina como sendo um
discurso. Nesse âmbito, o caráter objetivo de sua prática é tomado pelo autor como uma
38
questão de Ordem, não exatamente detentora ou perseguidora da verdade que lhe
competiria:
“Falar da medicina como de um discurso nos permite não depender tão
estreitamente da idéia de cientificidade que ela faz de si mesma. É porque a medicina
invoca com justa razão a ciência, e porque ciência tornou-se sinônimo de
verdade, que a medicina constitui um bastião resistente, tanto aos mais vigorosos
ataques quanto aos elogios desajeitados, e que seu próprio totalitarismo é suportado
como um mal do qual é preciso esperar um bem. Mais ainda, sua metodologia, ou
pelo menos a da biologia, tornou-se um modelo de que a epistemologia
particularmente se apropriou. A medicina, não considerando senão os modelos que a
fazem funcionar atualmente, permaneceu incapaz de explicar o que quer que seja
sobre as descobertas que outro a fez, a não ser colocando-as na conta do empirismo.
Por outro lado, a exatidão do saber médico não é a verdade. Ela é o contrário desta:
constituindo o que faz seu objeto (a doença) como sujeito de seu discurso, a medicina
apaga a posição do enunciador do discurso que é a do próprio doente no enunciado
do sofrimento, e a do médico na retomada desse enunciado no discurso médico. É
que teremos de fazer ressurgir a verdade, enquanto ela está mascarada pela própria
objetividade científica” (p. 49-50).
O discurso médico é aqui tomado, assim, como um dos principais motivos de sua
própria formulação questionável, enfatizando-se em nosso estudo o caráter problemático
apresentado acerca da nosografia depressiva. De nosso ponto de vista, o problema inicia-se
no próprio movimento que evoca o espírito empirista, mas cuja pretensão não se restringe a
uma “apreensão” da realidade imune à Ordem Médica e seu totalitarismo e num plano
não menos importante, ao contexto cientificista no qual esta mesma Ordem Médica se
insere. Referimo-nos aqui a contextualidades sócio-culturais que de certa forma alicerçam e
são ao mesmo tempo alicerçadas por este fenômeno. Como dissemos, a mídia veicula o
tema da depressão de maneira fundamentalmente articulada à discursividade médica, sendo
aquele (tema depressão) difundido como um problema de domínio do último (op. cit.).
39
Assim, o que se inscreve sobre o “indivíduo deprimido” é o “transtorno” que o acomete e
vitimiza.
Em contraponto a isso numa dimensão que ultrapassa a psicopatologia e atinge
todo o universo médico Sonenreich considera que o que diz respeito ao “doente” é seu
sofrimento. A doença não diz respeito ao paciente; ela pertence ao médico. Idéia que
aparece também em Verztman (1994), o qual situa a “doença” como “(...) algo inventado
para resolver problemas humanos, antes irrelevantes” (p. 59).
O “transtorno depressivo” difundido pela mídia como sinônimo de “doença”
deflagra a conjuntura cultural feita hoje em torno do sofrimento depressivo. Em
contrapartida a isso, é importante salientar com Sonenreich que a “doença” – tanto quanto o
transtorno” – contém o sistema de avaliação, conceituação, construção de fronteiras, todos
esses elementos sendo delineados pela operação científica e pelo discurso médico nos quais
se localiza a separação radical entre patologia depressiva e subjetividade. Nesse âmbito é
importante salientar, conforme assinalamos, que a apropriação do discurso médico por
parte da mídia acirra ainda mais tal separação, e o médico atravessado pela ideologia que
abrange seu campo de investigação e intervenção (Ordem Médica), aplica tratamento
preponderantemente químico baseado na premissa fisiopatológica – pouco sustentável,
diga-se de passagem (op. cit.) –, servindo-se na maioria das vezes das chamadas terapias
cognitivo-comportamentais estas também atravessadas pelo discurso científico. Em todos
esses movimentos está a exclusão do sujeito, aquele mesmo resgatado pela psicanálise, tal
como aponta Lacan (1969).
No ínterim da questão, podemos concluir que a pretensão purista e empírica da
psiquiatria deve ser problematizada quando o que está em questão é a produção do
conhecimento. Como diz Rorty (1997):
“(...) toda investigação é interpretação, todo pensamento é recontextualização. (...)
Todos os objetos são, em concordância com a terminologia quineana, “postulados”.
Se estivermos dispostos a abdicar da idéia de que podemos identificar alguns
não-
40
postulados, (...) então nós podemos evitar a idéia de que alguns objetos são
constituídos pela linguagem e outros não”
10
(p. 146).
O pensamento de Rorty, pautado no pragmatismo, é tomado aqui como crucial na
abordagem de tais elementos problemáticos, presentes inevitavelmente no contexto de toda
produção de conhecimento. Contextualizar qualquer tipo de pensamento, prática
investigativa ou mesmo intervenção é, na perspectiva pragmática, condição de
possibilidade para a construção do próprio conhecimento. A noção de contexto pensada por
Rorty aponta na direção da necessidade de se desconstruir qualquer configuração estática,
essencial ou metafísica presente em algum tipo pressuposto teórico. Para Rorty (1997), não
nada que preceda o contexto, bem como as condições sociais e históricas, sendo
qualquer tipo de premissa já um postulado que produz ou (re)inventa algum tipo de
realidade. Chauí (op. cit.), nessa linha, aponta:
(...) idéias que parecem resultar do puro esforço intelectual, de uma elaboração
teórica objetiva e neutra, de puros conceitos nascidos da observação científica e da
especulação metafísica, sem qualquer laço de dependência às condições sociais e
históricas, são, na verdade, expressões dessas condições reais. Com tais idéias
pretende-se explicar a realidade, sem se perceber que elas [idéias] que precisam ser
explicadas pela realidade social e histórica (p. 19).
A referência aqui ao pensamento contextualizante e aintiessencialista de Rorty,
diretamente relacionado a este apontamento de Chauí, é elemento central para uma
abordagem crítica acerca do movimento nosográfico encerrado no diagnóstico depressivo.
A questão depressiva se apresenta ainda hoje como um quadro clínico extremamente
enigmático do ponto de vista da psicanálise. Relançamo-nos, sob tais considerações, ao
enfoque crucial aqui almejado, qual seja, o de alcançarmos elementos consistentes para
uma discussão aprofundada acerca do lugar da depressão na psicopatologia humana, bem
como na própria clínica psicanalítica. Nesse âmbito, colocamos em perspectiva a posição
10
Grifos do autor.
41
aqui tomada a respeito da práxis investigativa que se pauta numa perspectiva pragmática,
tanto no enfoque sobre a apreensão da realidade, como também na própria concepção de
subjetividade aqui investigada, a qual, como demonstraremos, deve passar necessariamente
pelo crivo da linguagem.
Quando colocamos em questão, portanto, a pretensão purista da medicina na
apreensão classificatória dos fenômenos depressivos, consideramos que a concepção de
“depressão”, produzida e patrocinada pelos campos médico, científico, midiático e
farmacológico, deve ser a primeira a ser problematizada no campo teórico-clínico, seja na
Psiquiatria, seja na Psicologia, seja na Psicanálise. Podemos afirmar que a medicina exerce
uma prática ideológica quando descontextualiza o fenômeno denominado “depressão” e o
toma como realidade independente do quadro subjetivo e mesmo cultural no qual ela se
insere.
11
A concepção de depressão na psiquiatria, como vimos, é delineada pela
circunscrição médica na aplicação de seu instrumental técnico. O ponto de vista subjetivo e
narrativo fica nesse âmbito excluído aspecto que Verztman (op. cit.) reverbera como
fundamental para a apreensão e tratamento da própria contextualidade do sofrimento
psíquico, sendo o campo teórico e a experiência narrativa elementos imprescindíveis no
âmbito das discussões aqui levantadas.
12
11
O termo “ideologia” é fundamentado por Marx (1867/1999) como aquilo que separa a produção das idéias
das condições sociais e históricas nas quais elas são produzidas
. Marx especifica tal caracterização
afirmando que a ideologia é um mascaramento da realidade social, o qual permite a legitimação da exploração
e da dominação. O filósofo fundamenta a origem da ideologia na operação capitalística de fetichização da
mercadoria, a qual encontra sua máxima definição na idéia de trabalho humano não-pago (mais-valia
acumulada). Em sua definição original, a ideologia se afirma no momento em que a realidade é tomada como
natural, normal, a-histórica e aceitável.
12
Não estamos também com isso afirmando que toda psiquiatria pauta-se num reducionismo biológico e
numa apreensão que toma a depressão como doença, síndrome ou transtorno. importantes campos da
psiquiatria (Cf. BEZERRA, 1999; VERZTMAN, 1994) que constituem modelos de concepção e tratamento
cujo delineamento abarca tanto as questões relativas aos problemas bioquímicos quanto as dimensões
psíquicas e sociais presentes na esfera do sofrimento depressivo. Verztman (2001) demonstra a importância
de se levar em consideração a dimensão subjetiva quando enfatiza o lugar da clínica psicanalítica no campo
melancólico e depressivo.
42
A psicanálise se afirma como teoria e, como tal, não se furta a contextualizar e
recontextualizar seu próprio pensamento. Nesse sentido, a psicanálise se dispõe a pensar o
lugar da depressão no contexto subjetivo e vice-versa. Faz-se pertinente, pois, uma reflexão
que parte das apreensões teórico-clínicas da psicanálise quando esta coloca em pauta a
dimensão subjetiva. Conforme assinalamos, esta não pode deixar de ser considerada no
contexto dos jogos de linguagem relacionados à experiência narrativa singular, bem como
no contexto sócio-cultural no qual o fenômeno denominado “depressivo” está inserido
apreensão que Pinheiro (2005) realiza quando aborda a questão da depressão no quadro
contemporâneo
13
– ponto a ser tematizado no desenvolver do presente trabalho.
Poderíamos concluir nossas considerações iniciais apontando cinco problemas
cruciais que nos movem no sentido de uma apreensão mais apurada do sofrimento
depressivo e sua relação decisiva com o campo subjetivo. São eles:
1. A diluição da melancolia no campo da depressão;
2. A influência dos estudos biológicos e farmacológicos na construção do DSM III
e IV e do CID 9 e 10, que revelam a insustentabilidade da pretensão ateórica dos
manuais;
3. O reducionismo biológico pautado no cientificismo e na ideologia médica;
4. A exclusão da subjetividade na apreensão do sofrimento depressivo;
5. A concepção de “transtorno” que coloca o sujeito em condição de silenciamento
subjetivo e que elimina da cena teórico-clínica a experiência narrativa singular.
Estes apontamentos servem aqui de motor para a pesquisa cuja apreensão desejamos
expor nos próximos capítulos. Tanto o problema da indistinção entre as depressões
contemporâneas e a melancolia a ser aprofundado no capítulo IV quanto a importância
da subjetividade na apreensão desses fenômenos – objeto dos capítulos II e III – constituem
o eixo sobre o qual desenvolveremos nossa perspectiva teórica. De fato, conceber a
13
PINHEIRO, T. “Depressão na contemporaneidade”. Pulsional Revista de Psicanálise, ano XVIII, no. 182,
junho de 2005, p. 101-109.
43
depressão como um “transtorno” não faz parte do movimento teórico da psicanálise, muito
menos da linha de pensamento aqui em curso. Fazer isso significaria ignorar o que de mais
importante se faz presente na constituição subjetiva humana: a relação complexa do sujeito
com suas próprias crenças.
44
2ª Parte
A DEPRESSÃO SOB A ÓTICA DA PSICANÁLISE:
CRENÇA NARCÍSICA E SUBJETIVAÇÃO
45
“[Os pais] se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições
ao filho – o que uma observação sóbria não permitiria – e de ocultar e
esquecer todas as deficiências dele. Além disso, sentem-se inclinados a
suspender, em favor da criança, o funcionamento de todas as aquisições
culturais que seu próprio narcisismo foi forçado a respeitar, e a renovar em
nome dela as reivindicações aos privilégios de há muito por eles próprios
abandonados. A criança terá mais divertimentos que seus pais; ela não ficará
sujeita às necessidades que eles reconheceram como supremas na vida. A
doença, a morte, a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não
a atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão ab-rogadas em seu
favor; ela será mais uma vez o centro e o âmago da criação – ‘Sua
Majestade o Bebê’, como outrora nós mesmos nos imaginávamos. (...) No
ponto mais sensível do sistema narcisista, a imortalidade do ego, tão
oprimida pela realidade, a segurança é alcançada por meio do refúgio na
criança. O amor dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal,
inequivocamente revela sua natureza anterior.”
Freud, Introdução ao narcisismo
46
Ao deslocarmos o eixo de enfoque das classificações nosográficas para a concepção
de subjetividade almejada neste trabalho, estaremos especificando que tipo de sofrimento
psíquico buscamos abordar. Ao mesmo tempo, estaremos invertendo a questão sobre a
concepção de (psico) patologia que desejamos trabalhar. Nosso enfoque partirá, assim, da
idéia fundamental de que a sintomatologia depressiva se
estabelece de maneira fundamentalmente amarrada à dimensão narcísica, o que exigirá
uma apreensão aprofundada a respeito desta última temática. Considera-se o narcisismo
como importante campo de abordagem na presente investigação. Procuraremos neste
trabalho demonstrar a intrínseca relação entre o narcisismo e a depressão pela via de uma
exploração minuciosa dos aspectos mais relevantes de cada um desses conceitos.
Não é por força do acaso que as formulações freudianas acerca do narcisismo a
partir de 1914 assumiram posição de destaque na virada teórica que deu margem a se
pensar determinadas dinâmicas psicopatológicas cujas características não se inscrevem no
modelo do sintoma neurótico stricto sensu. Além disso, Freud não deixa de demonstrar a
importância da experiência subjetiva no campo psi, cuja dimensão tem sido ainda hoje,
como frisamos, reduzida a apreensões cientificistas e biologizantes, tributárias de uma
psiquiatria cujo enredo não encontra sustentação quando o enfoque deveria ser o universo
pluridisciplinar (físico, psíquico e social) referido ao tratamento e à apreensão da
experiência e do sofrimento humanos (Cf. BEZERRA, 1999). No intercurso de nossa
exploração teórica acerca das distinções entre a depressão e a melancolia, visamos
demonstrar a importância do universo da linguagem e da crença no contexto da
subjetivação, passando-se pelas apreensões necessárias ao mapeamento psíquico, em
específico àquilo que denominaremos neste trabalho crença narcísica. Tais apreensões
abrangem tanto a metapsicologia quanto a psicopatologia, cujo destaque é a dimensão da
experiência e, portanto da narrativa para além do reducionismo e do mecanicismo
biologicista. Tomando assim, como eixo de investigação os aspectos mais determinantes da
experiência subjetiva, este capítulo em específico procurará definir o conceito de crença
narcísica mediante uma investigação sobre os processos de subjetivação na teoria
psicanalítica a partir de uma perspectiva pragmática da linguagem (Cf. COSTA, 1994). Na
47
seqüência, demonstraremos a importância da relação entre a crença narcísica e a
experiência depressiva, buscando situar o papel da linguagem no universo da subjetivação.
48
CAPÍTULO II NOSSO MÉTODO: A REDE DE CRENÇAS E OS JOGOS
DE LINGUAGEM
2.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES PARA UMA TEORIA PSICANALÍTICA DA
CRENÇA NARCÍSICA
No texto “Introdução ao Narcisismo” Freud (1914/1996) abriu um campo profícuo
de reflexão acerca da subjetividade humana que abrange tanto suas dimensões constitutivas
quanto a fundamentação teórica acerca da psicopatologia. Freud inscreve em sua obra a
relevância deste ensaio como um marco, não apenas no que concerne ao conceito
psicanalítico de libido e sua especificidade frente à concepção de Jung, mas também no que
diz respeito às conseqüências e desdobramentos possíveis à reflexão sobre a subjetividade e
a psicopatologia a partir deste.
Na época em que escreveu o texto do narcisismo Freud vinha esbarrando no
problema da psicose e, além disso, punha-se a refletir sobre os aspectos intrínsecos à
constituição do sujeito e à importância da sexualidade neste campo, o que o levou a dar
novo passo em relação à questão das pulsões, em específico às pulsões de auto-
conservação, conferindo a elas a operação primária de sua “complementação libidinal”
(ibid.). Abriu com isto, ao mesmo tempo, espaço para se repensar propriamente o além-
sexualidade, o que não poderia ter sido feito sem a intervenção teórica expressa no texto do
narcisismo.
Tal reflexão levou-o à teorização dos aspectos mais primitivos da constituição
psíquica. Freud trabalha no texto sobre narcisismo os movimentos libidinais, as peripécias
da vida amorosa, localizando a partir delas elementos cruciais remetidos a um suposto
momento primordial concernente à formação do eu, conforme se observa especialmente no
trecho destacado na abertura do presente capítulo.
O olhar freudiano inova quando aponta que o infante humano nasce desde sempre
mergulhado no campo do outro, indicando desde já uma contextualidade que define o
nascimento da própria experiência subjetiva no humano.
49
Com relação a isso, sublinha-se o fato de que o eu, em sua experiência primária de
auto-investimento e júbilo marca de sua suposta plenitude, onipotência e opulência é
paradoxalmente dependente do investimento daquele que o ama. A passagem de Freud
acerca do momento relacionado à dimensão narcísica, em referência à expressão “Sua
Majestade o Bebê” mostra em primeira instância o seu apontamento em referência ao
narcisismo dos pais reeditado na relação com o filho cuja natureza, como fica claro nas suas
palavras, diz respeito ao próprio júbilo narcísico perdido dos pais. O que Freud não deixa
explícito na sua análise do narcisismo, mas fica ali fortemente sinalizado, é que a natureza
do laço primordial configurado pelo hiperinvestimento na criança assume importância
implícita para a própria operação do narcisismo nesta criança. Parte-se aqui da leitura de
que, nos termos da psicanálise, a “ação psíquica” concernente ao narcisismo (FREUD,
1914/1996) constitui uma inovação que se fundamenta, contudo, no outro.
A dependência está, pois, no fundamento o que implica em relevantes
conseqüências e alavanca questões teóricas quanto aos aspectos psicopatológicos que o
sujeito pode experimentar a partir disso, visto que a suposta plenitude do eu não se sustenta
no tempo, não vence a imortalidade (Cf. FREUD, op. cit.), e o sujeito aliena-se no discurso
do outro a fim de recuperar imaginariamente sua condição narcísica e, em última análise,
salvar-se a si próprio.
As questões que surgem em torno disso, relativas especificamente aqui ao campo da
depressão, estão fortemente marcadas pela conjuntura problemática na qual o próprio
narcisismo se instala: o eu em seu projeto de onipotência e opulência depende
inexoravelmente da presença de um outro para tal. Ele se constitui a partir da afirmação de
alguém que lhe estatuto de existência e ali permanece, amarrado às suas
determinações, dependente de seu movimento, e salvaguardado por sua existência.
O enfoque no referencial freudiano revela a circunstância dramática na qual a
subjetividade se constitui. Por um lado, a exacerbação de uma “dita” felicidade dita pelo
outro. Por outro lado, sua condição fundamentalmente idealizada quando do encontro com
a transitoriedade, a qual faz retroagir uma “lembrança” um estado de plenitude outrora
vivido. Freud se refere, no texto como um todo, à formação de um ideal, em primeira
50
instância um “eu ideal”, forjado na nostalgia do ser, requerido pela própria imposição do
desencontro, da vacilação, quando o outro é chamado a comparecer, e sem justificativa
prévia, desloca-se para fora do âmbito existencial do infante. Esse ser do eu, idealizado no
desencontro, faz-se possível apenas pelo fato de que é o outro mesmo quem o forja, quem o
inventa. Ser, nesse sentido, é ser para o outro. Outro que não pode, contudo, sustentar tal
invenção como sua.
Pinheiro (2002), apoiada no texto do narcisismo, afirmara sobre esse ponto: “a
subjetividade é uma invenção de dois adultos” (p. 168). Nesses termos, a operação psíquica
a que Freud se refere no texto do narcisismo, nós a lemos, com Pinheiro (ibid.), como um
ato de invenção. Invenção narcísica que, conforme sublinhamos acima, é ancorada no
outro, e pode apenas realizar-se mediante operação da linguagem. Os pais, que investem
acirradamente na criança (ou não) seus próprios anseios perdidos, são fiadores da invenção
narcísica infantil. Suas palavras, que atribuem ao infante existência central e ao mesmo
tempo nomeiam e historicizam tal existência, banham-no de significações nas quais este se
acha desde sempre mergulhado. A crença na rede de significações, em contrapartida,
coloca o sujeito na rota de um destino fundamentalmente referido àquele que sentencia sua
existência, estando o sujeito mesmo “condenado” a alienar-se no discurso do Outro e
firmar-se na imagem estasiada do eu, permanecendo, contudo por conta da dependência
primária – colado à trama outorgada pelo Outro em sua vida. Nesses termos, amor,
identificação e crença são, a nosso ver, indissociáveis no narcisismo, e merecem,
pensamos, todo cuidado e deslindamento teórico.
Ao apoiarmo-nos na perspectiva freudiana, lançamos um olhar sobre esta reflexão
de maneira específica aos contextos nos quais Freud pensou a formação da subjetividade.
Os desdobramentos relacionados à apreensão psicopatológica do ser humano, alinhavados
ao próprio movimento conceitual da psicanálise, afirmam-se na possibilidade de
reconstrução teórica de determinados aspectos envolvidos em tal formação, cruciais para a
concepção que se visa aqui sustentar.
Em primeira instância, destaca-se a afirmação de Pinheiro em que se assinala,
dentre outras coisas, a importância da discussão teórica a respeito da formação do eu e do
51
sujeito, dando enfoque ao ponto de vista antiessencialista que se faz presente no
pensamento de Freud ao abordar o narcisismo:
“Este contexto, considerado um momento de virada importante no corpo
teórico da psicanálise, surge quando a construção freudiana parecia estar
devidamente alinhavada, na costura entre o complexo de Édipo e a sistematização do
inconsciente, tendo o recalque como eixo ordenador. A afirmação de Freud de que a
subjetividade é uma invenção de dois adultos é uma afirmação que recusa qualquer
idéia essencialista e concebe a subjetividade como criada pela fantasia e pela
subjetividade de adultos. Essa formulação vem como conseqüência de sua proposta
de aparelho psíquico entendido como um aparelho de interpretação. Sem isso não
poderia conceber os parâmetros conceituais que constituem o seu aparelho de
linguagem. Para interpretar seus semelhantes esse aparelho terá, necessariamente,
que atribuir a eles uma vida subjetiva como sua” (PINHEIRO, 2002, p. 168).
Se a psicanálise afasta-se do reducionismo biológico, ela nos conduz, na mesma
medida, à linha de pensamento que recusa qualquer tipo de transcendência referida a uma
consistência psíquica que possa centrar-se num estatuto metafísico, realista ou essencialista
de concepção. A psicanálise, ao menos, movimenta-se no sentido de afastar-se de tal
perspectiva, não obstante a existência de desdobramentos teóricos tendentes ao idealismo e
à metafísica no campo psicanalítico (Cf. COSTA, 1994).
Seguindo-se, portanto, numa linha diversa a esta última tendência, faz-se mister
frisar que a contextualidade relativa àquilo que entendemos por crença narcísica deve
passar necessariamente pelo crivo da linguagem e de todas as conseqüências que seu
advento traz para a experiência humana na relação com o outro, referida em princípio ao
discurso dos pais. Note-se que o narcisismo, em sua própria definição a qual
procuraremos aprofundar no desenvolvimento deste trabalho –, subentende o mergulho do
sujeito ao outro, via pela qual a experiência subjetiva constrói seu sustentáculo. Com efeito,
a análise do narcisismo aqui buscada demonstrará a pertinência de se conceber o universo
da linguagem como elemento decisivo na formação da experiência subjetiva humana.
52
No intuito de abordarmos o quadro específico da crença narcísica da forma como a
concebemos, tomaremos como instrumental teórico de nossa abordagem a perspectiva
pragmática da linguagem, a qual articula especialmente a partir de William James e
Richard Rorty – o universo da crença como balizador das ações humanas no mundo
psíquico e social. A contribuição de Derrida é também imprescindível neste percurso
teórico a qual, como veremos, problematiza as idéias de “primariedade” e de “origem” a
partir do pensamento da diferença (Cf. DERRIDA, 2002).
14
Caminharemos primeiramente, assim, na direção de uma reflexão aprofundada
sobre a formação da subjetividade nos parâmetros da escrita freudiana em articulação à
análise da crença em termos filosóficos e metapsicológicos. Procuraremos demonstrar que
se, por um lado, não ação psíquica (subjetividade) sem crença, por outro lado é a uma
determinada categoria de crença que o deprimido se referencia em seu sofrimento a
crença narcísica o que torna importante a análise do narcisismo dentro de nossa
perspectiva teórica.
14
A teoria pragmática constitui, assim, o instrumental metodológico a partir do qual fundamentaremos nossa
concepção de
crença narcísica e sua relação com a depressão. Ela não constitui o objeto de nossa
investigação, mas referencia a leitura que fazemos sobre os processos de subjetivação relacionados a alguns
aspectos do pensamento freudiano que consideramos importantes, destacados nesta pesquisa.
53
2.2 A PSICANÁLISE E O CAMPO DA LINGUAGEM: UMA LEITURA
ANTIESSENCIALISTA DO PSÍQUICO
Fica clara hoje para a psicanálise a importância da linguagem na construção da
experiência psíquica. Se o surgimento do sujeito implica que este se posicione em ato na
fala que o outro lhe atribui, nada de substancialmente essencial faz-se presente na
abordagem freudiana do aparelho psíquico, visto que é sob os parâmetros mesmos da
linguagem e da significação que este sujeito desenvolve suas projeções no passado e no
futuro, bem como sua organização subjetiva no mundo.
A respeito das concepções freudianas, Jurandir Freire Costa (1995a) argumenta que,
em alguns momentos de sua obra,
“(...) [Freud] afirmou que não existe distância entre o que eu sinto e o que eu sou;
entre aquilo que eu represento e aquilo que me representa. Nesta concepção, o sujeito
não é qualquer coisa anterior ao sentido, nem qualquer coisa anterior ao pensar. É
uma pluralidade identificatória; é um conjunto de vários sujeitos formados de
sensações, percepções, representações, imagens etc. Para Rorty, o sujeito é uma rede
de crenças e desejos postulados como causa interior de atos lingüísticos. Na obra de
Freud, certos mecanismos psíquicos, como incorporação, introjeção, internalização,
identificação ou projeção do sujeito no outro, fazem com que sejamos capazes de ter
vários ‘eus’, organizados de diversas maneiras, em função dos sentimentos, das
descrições, das sensações, das razões, das causas ou das justificativas que damos para
funcionar de tal ou qual maneira. Nenhum desses ‘eus’ é mais verdadeiro do que o
outro; nenhum deles detém, é responsável ou porta-voz da verdadeira substância do
sujeito. (...) Freud dizia que ao chegarmos ao núcleo encontramos um vazio. Somos
apenas as ‘camadas’, que são pensadas como sendo ‘mais profundasou ‘mais
superficiais’ em função do que em dada época de nossa vida achamos que é ‘mais
superficial’ ou ‘mais profundo’. Não existe um profundo ou um superficial em si,
assim como não existe um verdadeiro e um falso ‘eu’ em si. Tudo é questão da
economia ou da dinâmica do psiquismo em tal ou qual momento da vida pessoal de
cada um. Cada uma dessas camadas pode ser entendida como teias narrativas de
crenças e desejos. (...) A cada momento da vida, uma dessas redes de crenças e
54
desejos é invocada a assumir a hegemonia de nossas condutas, pensamentos e atos
conscientes, em resposta aos estímulos ambientais, chamados causas de mudanças
subjetivas” (p. 3).
A passagem acima diz respeito, em primeira instância, a uma visão que não concebe
no cerne da subjetividade a existência de um sujeito essencial, último reduto da realidade
psíquica cuja verdade o definiria sob os parâmetros de sua própria existência fundamental.
As ponderações de Costa, ao contrário, sinalizam os importantes aspectos lingüísticos na
formação da subjetividade, ou no que se pode chamar de processos de subjetivação.
Para abordarmos, pois, a questão da linguagem no campo da subjetividade faz-se
necessária uma visita ao pensamento freudiano, relativamente ao conjunto metapsicalógico
circunscrito ao processo de subjetivação stricto senso. Esse termo (subjetivação) será
utilizado em nosso trabalho preferencialmente à noção de “constituição psíquica”, esta
última sugestiva de uma composição permanente e inalienável das afecções subjetivas.
Com efeito, não visamos a uma abordagem essencialista das afecções psíquicas, por
concebermos as diferentes modalidades de sofrimento como formas mais ou menos
prevalecentes de estar no mundo e de enfrentar o mal-estar na cultura, constitutivas de
jogos de linguagem diversos a partir dos quais o sujeito se organiza perante os percalços da
relação com o outro.
Sendo assim, o desenvolvimento que se segue tem por objetivo especificar as razões
que nos levam a conceber a noção de crença narcísica a partir dos seguintes pontos:
1. A desconstrução do conceito de narcisismo primário”, a partir da leitura de Derrida
sobre alguns aspectos da obra freudiana;
2. A concepção pragmática de crença, que a toma como “regra para a ação”. Esta
concepção assumirá lugar importante em nossa abordagem sobre a crença narcísica e o
sofrimento depressivo.
Passemos ao estudo freudiano sobre os processos de subjetivação.
55
A realidade psíquica e os efeitos da ação: Freud e a (re)construção da
experiência
Num período em que debruçava sua reflexão sobre os processos de formação do
aparelho psíquico pensado especulativamente em termos de aparelho neuronal, Freud
(1895/1996) introduziu uma frente teórica que teve como princípio aquilo que poderíamos
conceber como um processo de organização psíquica, ou processo de subjetivação.
Num momento primordial, Freud viu-se inclinado a tocar no tema da realidade de
maneira consistente na tentativa de responder aos impasses deflagrados pela neurose e pela
psicose. No “Projeto para uma Psicologia Científica”, tentou estabelecer costura lógica para
suas hipóteses, dando inicialmente destaque a temas relacionados ao campo das marcas,
traços e inscrições psíquicas que constituiriam ao longo do tempo um arranjo organizado
segundo determinados processos de integração concebidos como o terreno por excelência
daquilo que posteriormente ele denominaria “realidade psíquica”.
Tais processos devem ser caracterizados como a própria base da formação subjetiva.
O aparelho psíquico de Freud trabalhará constantemente em função das experiências de
satisfação geradas pelas intervenções de um outro (Nebenmensch) a partir das quais as
determinações subjetivas presentes no jogo propriamente dito das inscrições psíquicas
inconscientes se assinalam (ibid.).
Cabe aqui lembrar as linhas lógicas de construção de seu pensamento, que concebeu
o aparelho psíquico como efeito de trilhamentos, facilitações ou explorações (Bahnung)
produzidas no sistema , caracterizado como campo de intensidades excitativas cuja
passagem geraria diferentes facilitações no caminho desta intensidade. Partindo desse
princípio, Freud introduziu a idéia de neurônio catexizado, ou seja, investido de energia
(Qn), “excitado”. Na tentativa de elucidar a construção psíquica, Freud estabeleceu, a
princípio, duas classes de neurônios: aquela que apresentaria a característica da
permeabilidade e aquela que tem como pressuposto a característica da impermeabilidade,
respectivamente representadas por ele com os símbolos e . Para esse esquema,
introduziu a idéia da existência de vias de condução e de barreiras de contato, que estariam
56
ligadas à função sistema nervoso de estabelecer resistência à passagem da excitação.
Concomitantemente à característica do aparelho neuronal que toma como alvo a cessação
dos estímulos, encontrar-se-iam as resistências balizadas pela distinção entre os neurônios
permeáveis e impermeáveis. As barreiras de contato far-se-iam sentir no terreno dos
neurônios impermeáveis, que permitem a passagem da Qn com dificuldade ou
parcialmente. Os neurônios (permeáveis) estariam assim ligados às estimulações
externas, enquanto que os neurônios (impermeáveis) estariam ligados às estimulações
endógenas. A partir desse princípio, o psíquico seria caracterizado por uma rede de
facilitações ou explorações produzidas pela passagem das quantidades de excitação no
sistema . Essas quantidades deixariam traços permanentes que facilitariam novas
passagens de Qn no sistema impermeável. Contudo, a diferença nas facilitações é o que
constitui para Freud os “traços de memória”, atestando-se ali as peculiaridades de seus
elementos característicos que, se fossem as facilitações idênticas entre si, não haveria o
fenômeno da memória. O esquema psíquico seria então representado pela diferença entre as
facilitações no sistema impermeável, bem como pela freqüência com que a impressão se
repete nesse sistema. A facilitação é o resultado, assim, da quantidade (Qn) que passa pelo
neurônio no processo excitativo e do número de vezes que isso se repete. Freud diz: “Daí se
vê, portanto, que Qn é o fator operativo e que a quantidade mais a facilitação são ao mesmo
tempo algo capaz de substituir Qn(p. 353). Nessa perspectiva entende-se que os traços
psíquicos constituem-se como evocação a posteriori dos traços que substituem o próprio
estímulo, a força – ou seja, seu fator causal.
15
Freud caracterizou todo o esquema da impermeabilidade, da permeabilidade e da
facilitação, na sua implicação com a quantidade e, ao esbarrar no problema da qualidade
designou um outro sistema neuronal, o sistema . Este último, ligado ao campo da
consciência e das sensações, estaria sujeito a quantidades reduzidas de Qn, e seria
caracterizado pela periodicidade com que as quantidades afluem em direção à descarga. A
característica temporal tornou-se o fator de desfecho das bases do aparelho psíquico de
15
A referência à noção de posteridade ou a posteriori no pensamento freudiano será aprofundada adiante.
57
Freud neste ensaio, sendo que, na consciência (neurônios ) verificar-se-ia o efeito dos
períodos de passagem da Qn em . Tal efeito caracterizaria nos sistemas psíquicos a
chamada qualidade, ligada ao campo da consciência. Dito de outra forma, as sensações de
prazer e desprazer, por exemplo, são caracterizadas como expressão qualitativa em do
aumento ou diminuição das quantidades em . O prazer seria a sensação em da descarga
em (FREUD, 1898/1996).
Esta montagem teórica desenvolvida por Freud deve, no nosso modo de
entendimento, ser concebida de um ponto de vista específico, o que se apresenta como de
imprescindível necessidade para a definição do conceito de crença a ser aqui proposto na
construção de nossa linha de raciocínio.
Na obra “Freud e a cena da escritura” Derrida (2002) entende que as redes psíquicas
produzidas na experiência subjetiva humana pela formação do aparelho psíquico pensado
por Freud devem ser lidas em termos de escrita, e que este mesmo aparelho deve ser
concebido como uma máquina de escrita. Aparelho tomado por Derrida mais em seu
aspecto ativo do que passivo, o qual imprime em seus movimentos os arranjos e rearranjos
de um campo de estimulações a princípio desordenadas, mas transformadas pelo aparelho
em um terreno de força, sentido e princípio pela a constituição de uma escrita. Derrida
atesta que o que está presente no pensamento de Freud nesse momento é uma certa
possibilidade de ruptura com o pensamento logocêntrico e metafísico. O autor localiza nas
entrelinhas do texto freudiano o pensamento da diferença como mola mestra das
concepções sobre a constituição dos processos de subjetivação, bem como sobre a
construção da condição humana nos contextos sócio-históricos, sócio-políticos e sócio-
culturais. Em termos de engrenagem concebida como máquina de escrita, o aparelho
psíquico ordena sua relação com a realidade de modo absolutamente peculiar, singular e
distinto, não sendo concebida qualquer forma de linguagem formal ou transcendente, fora
das relações contextuais experimentadas por este aparelho. Outrossim, este aparelho é
frisado por Derrida como aparelho de linguagem que se organiza imanentemente em torno
das experiências de satisfação e das interações corporais com uma outra pessoa.
58
Derrida caracteriza então os traços psíquicos pensados por Freud como relação
entre forças na constituição das Bahnungen – trilhas através das quais o psíquico se
constitui em termos de diferença entre forças. Nessa ordem de coisas, Derrida não deixa de
enfatizar:
“O traço como memória não é uma exploração pura que sempre se poderia
recuperar como presença simples, é a diferença indiscernível e invisível entre as
explorações [
Bahnungen]. Sabemos portanto que a vida psíquica não é nem
transparência do sentido nem a opacidade da força,
mas a diferença no trabalho das
forças
.
16
Nietzsche dizia-o bem” (p. 185).
O ponto específico desta concepção afirma-se na idéia de que o aparelho psíquico
deve ser pensado em termos de diferença diferença no trabalho das forças. Entende-se
com isto que se trata de algo que não escapa do plano contingencial das forças, as quais
segundo Derrida condicionam a emergência de uma inovação, ou de uma construção. Tal
arranjo configurado em termos de diferença tomará estatuto propriamente psíquico num a
posteriori que se introduz como fator imprescindível nesta montagem, qual seja: a
concepção de uma grade interpretativa, que num segundo tempoconstituirá o plano
específico dos traços psíquicos. É justamente o que, em Freud, fornece princípios
consistentes para uma idéia dessubstancializada do aparelho psíquico. Ou seja, não por
um lado, as inscrições de traços psíquicos em si. o que, nesse movimento nada passivo
de interpretação dos estímulos internos e externos, caracteriza-se como uma rede que
podemos, via de regra, denominar com Rorty (1997) de rede de desejos e crenças. Os
traços não podem ser capturados em si mesmos, visto que, em si mesmos, eles não existem.
Ou seja, os traços se constituem não na experiência em si, na percepção ou no
acontecimento, mas no “segundo momento” da impressão aquele relacionado à
interpretação subjetivada dos estímulos. Nesse sentido, o aparelho psíquico freudiano é um
aparelho de interpretação.
16
Grifo nosso.
59
Para avançar nessas questões, faz-se necessário adentrar alguns aspectos da
experiência subjetiva singular, os quais têm na noção de a posteriori um dos pilares da
teoria freudiana, sem o que não se poderia conceber a formação do aparelho psíquico na
linha que estamos traçando.
Na Carta 52 (FREUD, 1892-1899/1996), podemos visualizar importantes aspectos
desta temática. Ali, o psiquismo é pensado como um terreno de estratificação, uma
formação em “camadas” imbricadas e dinâmicas entre si. Freud salienta:
“O material presente em traços de memória estaria sujeito, de tempos em tempos, a
um
rearranjo segundo novas circunstâncias a uma retranscrição. Assim, o que
de essencialmente novo a respeito de minha teoria é a tese de que a memória não se
faz presente de uma vez, mas se desdobra em vários tempos; que ela é registrada
em diferentes espécies de indicações. (...) Na fronteira entre essas épocas deve
ocorrer uma tradução do material psíquico” (FREUD, op. cit., p. 281- 283).
Para Freud o psíquico é algo subjacente a um processo e não a uma organização ou
estrutura dada a priori. Segundo ele as percepções puras, ligadas à consciência, não
conservam nelas mesmas nenhum traço do ocorrido. Aquilo que ele denomina indicação de
percepção ou signos de percepção é o que se concebe como um primeiro registro das
percepções. Só num “segundo tempo” é que essas “marcas” ou “impressões” anteriormente
desligadas organizam-se entre si formando traços propriamente ditos ao nível dos
processos primários inconscientes (princípio de prazer). O terceiro registro é o das
“representações verbais” (pré-consciência), as quais correspondem ao registro do ego, e que
constituem uma organização subsumida ao que ele denominou posteriormente “princípio de
realidade”. O registro do ego é o que vai dar a posteriori a condição de ligação entre os
diferentes níveis de registros, na formação de uma cadeia associativa.
É de se notar que tais “registros” podem tomar prevalência na medida em que o
aparelho psíquico constrói-se em vários tempos e tem como característica uma posteridade
que vai definir propriamente o processo de subjetivação mediante a organização dos
registros “primários”. Esta configuração tem como ponto de maior relevância aquilo
60
mesmo que Freud denominou “transcrição” ou “tradução” constituindo-se nisso o
movimento por excelência de tal organização.
Entendemos, com Derrida, que a tradução ou transcrição é precisamente o que se
estabelece como elemento decisivo da experiência subjetiva, caracterizada justamente como
uma passagem, uma movimentação ativa que escapa de qualquer pressuposto essencialista.
Derrida demonstra, principalmente, que tal modelo de aparelho psíquico não toma a idéia
de origem como fundamento, donde se conceberia um “anterior” a algo que se sucede em
acontecimento o que Derrida problematiza desconstruindo, mediante o rigor da própria
especificidade do texto freudiano, a concepção de “primariedade” existente em si mesma.
17
Para Derrida é necessário que se reconheça na origem a própria diferença, localizando no
originário o que ele mesmo chama de atraso e, portanto, designando a noção de
posteridade ou a posteriori (Nachtraglichkeit) como central nesta engrenagem teórica.
Derrida (2002) aposta assim na afirmação do próprio Freud (1900/1996) de que a
primariedade é uma ficção teórica, constatando: “É o atraso que é originário” (DERRIDA,
ibid., p. 188). Ou seja, é a diferença e mesmo o próprio secundário da ação ação, por
excelência, de organização – o que inaugura uma “primariedade” não existente numa
temporalidade marcada pela presença, ou numa “temporalidade presente”:
“Diferir não pode portanto significar atrasar um possível presente, adiar um
ato, suspender uma percepção e agora possíveis. Este possível é possível pela
diferencia que é preciso portanto conceber de outro modo diferente de um cálculo ou
de uma mecânica da decisão. Dizer que é originária é ao mesmo tempo apagar o mito
de uma origem presente. É por isso que se deve entender ‘originário’ sob rasura, sem
o que deveríamos a diferencia de uma origem plena. É a não-origem que é
originária” (p. 188).
17
Esta acepção de Derrida será decisiva para a desconstrução do conceito de “narcisismo primário” e para a
nossa abordagem da crença narcísica, a ser desenvolvida no capítulo III motivo pelo qual focamos aqui o
pensamento de Derrida articulado à teoria freudiana do aparelho psíquico.
61
Adiante Derrida salienta:
Estes conceitos de diferencia e de atraso originários são impensáveis sob a
autoridade da lógica da identidade ou mesmo sob o conceito de tempo. (...) Pela
palavra
atraso, é preciso entender outra coisa diferente de uma relação entre dois
‘presentes’; é preciso evitar a representação seguinte: acontece num presente B o
que devia (teria devido) produzir-se num presente A (‘anterior’)” (ibid.).
Nesses termos, Derrida atesta que o “primário” pode apenas ser entendido numa
concepção que toma a idéia de “atraso” e de “posteridade” (Nachtraglichkeit) como pedras
angulares de abordagem no campo da experiência subjetiva. Derrida situa esta apreensão,
portanto, “fora de todo o horizonte teleológico ou escatológico” (ibid., p. 189). Nessa linha
faz oposição à idéia de um absoluto originário ou finalidade em torno da qual o psiquismo
giraria, sob o efeito de um encontro supostamente necessário no campo da experiência de
satisfação. Da mesma forma, o pensador afasta-se de uma concepção de linguagem pautada
numa apreensão idealista, ou numa “metafísica da presença”, que separa a “força” do
“sentido” e que colocaria estes últimos numa condição de transcendência. Derrida aponta:
“A força produz o sentido (e o espaço) apenas com o poder de “repetição” que o
habita originariamente como a sua morte. Este poder, isto é, este impoder que abre e
limita o trabalho da força, inaugura a traduzibilidade, torna possível o que
denominamos ‘a linguagem’ (...)”. (p. 203).
Sob o contexto de tais análises, colocamo-nos, pois, a buscar uma compreensão
apurada a respeito da formação do psiquismo pensado sob esta ótica. Os traços psíquicos
referidos por Freud devem ser entendidos como algo que se organiza a partir de uma
construção contingente de sentido: as impressões tomam estatuto de traço no a posteriori
de sua transcrição, fundando-se traços ligados e, portanto, imbuídos de significação na
medida de sua interpretação – frisando-se aqui o pressuposto lingüístico, fundamental
nesse movimento.
62
É nesse âmbito que Freud, ao descrever seu aparelho psíquico, traz como
característica fundamental desta abordagem a concepção de que, no momento mesmo do
trabalho de tradução (ou transcrição), algo de novo e subjetivo se constrói, não restando a
esta idéia do psíquico qualquer concepção a não ser aquela que o aponta como máquina de
escrita (Cf. DERRIDA, op. cit.), sugestiva de um aparelho de ação. Tampouco isto implica
pensar algo da ordem de uma experiência originária absoluta, fora do trâmite das
diferenças. A noção de “transcrição” em Freud deve ser entendida, portanto, como um
movimento interpretativo (e, portanto, linguageiro) que produz um arranjo subjetivo,
circunscrito a uma singularidade narrativa.
Isto implica dizer que a chamada “transcrição” em Freud é, via de regra, uma ação
psíquica contextual, uma construção passível de novas traduzibilidades, cuja formação
nada de universal comporta, apenas define uma singularidade. Ou seja, se a linguagem é a
condição de possibilidade de inovação e mesmo de renovação no ato de interpretar,
podemos ratificar então que aquilo que Freud denominava cena define-se como uma
construção na qual se encontra imbricada uma relação diacrítica entre os tempos da
tradução, cuja reconfiguração das impressões, transformadas em narrativa, define uma
história singular, uma construção ativa subsumida a um princípio móvel de permanente
atualização.
Entende-se, sob esses parâmetros, que a ação está na própria base da experiência de
subjetivação, não restando sobre isso motivos para uma concepção substancialista,
essencialista ou realista do chamado “aparelho psíquico” freudiano. Veremos ainda, no
avanço desta análise que, segundo William James e Richard Rorty, não ação humana
que se subtraia ao universo da crença.
63
2.3 – WILLIAM JAMES: A CRENÇA COMO UMA “REGRA PARA A AÇÃO
Em seu trabalho sobre Pragmatismo, William James (1907/2005) argumenta que
toda ação se acha sustentada por uma crença ou um conjunto de crenças que fundam sujeito
e realidade em seus aspectos físico, psíquico e social. Citando Pierce, James afirma: “(...)
nossas crenças são, realmente, regras de ação (...)” (ibid., p. 45). E define:
“(...) para resolver o significado de um pensamento, necessitamos apenas determinar
que conduta está apto a produzir: aquilo que é para nós seu único significado. E o
fato tangível na raiz de todas as nossas distinções de pensamento, embora sutil, é que
não nenhuma que seja tão fina ao ponto de não resultarem alguma coisa que não
seja senão uma diferença possível de prática. Para atingir uma clareza perfeita em
nossos pensamentos em relação a um objeto, pois, precisamos apenas considerar
quais os efeitos concebíveis de natureza prática o objeto pode envolver que
sensações podemos esperar daí, e que reações devemos preparar. Nossa concepção
desses efeitos, se imediata ou remota, é, então, para nós, o todo de nossa concepção
do objeto, na medida em que essa concepção tenha afinal, uma significação positiva”
(JAMES, 1907/2005, p. 45).
Isto implica pensar que nossas ações são sustentadas por crenças e que a relação
com objetos, seja de que nível for (cognitivo ou subjetivo), é firmada não menos na crença
acerca de sua significação. É isto mesmo o que define a rota a ser tomada pelo humano na
medida do lugar que o objeto ocupa no universo das relações entre forças e satisfações.
Nessa mesma linha de pensamento, em sua teoria do fluxo e da experiência pura,
James demonstrara a importante relação entre aquilo que se experimenta e aquilo que se
percebe, enfatizando-se o aspecto ativo do sujeito, idéia que leva James a afastar-se
radicalmente do representacionismo filosófico. Para o pensador, a experiência pura não
guarda em si qualquer qualidade ou especificação em termos de predefinição de elementos
existentes no mundo externo ou interno, físico ou mental. James abandona o dualismo
quando concebe no a posteriori toda e qualquer possibilidade de qualificação ou
64
discriminação da experiência, deixando de lado o realismo e o transcendentalismo que se
categorizariam por uma dimensão independente do plano das crenças. Em sua análise
um exemplo esclarecedor sobre esta posição teórica, a saber, o da experiência de percepção
do azul do céu. James indaga-se a respeito da localização do azul experimentado, ou seja,
ele se pergunta se o azul está no céu ou está em nós (na mente). Não predefinindo nenhum
dos dois aspectos (mental ou físico), James problematiza a idéia de um “eu” como
anterioridade ou substância essencial que registra uma realidade vinda “de fora”. Tampouco
prioriza como anterioridade um “fora” como categoria real. Desmonta com isso a oposição
sujeito/objeto, denotando que sujeito e realidade se constituem no a posteriori da
experiência e da significação. Nesse sentido, o azul do céu não chega para nós como uma
essência na relação entre duas realidades distintas, uma física e outra mental, mas como
efeito a posteriori de uma série de contextualidades e crenças que, por conta da posição da
pessoa que percebe em relação ao seu ambiente o ângulo do raio solar, por exemplo é
gerado um efeito específico que não ocorreria em outro contexto ou em outra rede de
relações. Para James, as coisas não guardam em si um estado permanente ou uma essência
ontológica, mas constituem-se em teias de relações contextualizadas pela posição dos
objetos e pelo recorte feito no ato de perceber.
Assim, a idéia de “experiência pura”, que é o primeiro e mais curto momento da
percepção, caracterizada por uma noção de insubstancialidade do mental, leva em
consideração a inexistência de qualquer realidade fixa, transcendente e não contingencial.
Nesse âmbito, William James certamente contribui para uma especificação mais apurada
acerca daquilo que procuramos definir como crença e como relação contingencial entre
sujeito e realidade. A crença como uma regra para toda a ação humana define o raio de
abrangência da experiência, denotando sua insubstancialidade. Com isso, James influenciou
65
todo um campo de pensamento tributário de seu pragmatismo.
18
Richard Rorty, como um
de seus herdeiros teóricos, e seguidor de Wittgenstein na desconstrução do essencialismo
lingüístico, constitui uma de nossas principais referências para a fundamentação de nossa
perspectiva teórica.
18
Em suas reflexões, William James desenvolveu concepções relacionadas especialmente ao ponto de vista
cognitivo da relação do homem com a realidade. Nossa referência a James visa destacar a concepção de
crença no pragmatismo filosófico, definida como
regra de ação. O recorte de seu pensamento tem por alvo
teórico pensar a crença em âmbito subjetivo, a partir de uma leitura de Freud que toma o aparelho psíquico
em seu aspecto ativo, tal como abordamos anteriormente. Ao desenvolver uma teoria do inconsciente, Freud
voltou-se para as dimensões
afetivas da subjetivação, abrindo um campo de investigação especificamente
psicanalítico. Pensar a crença como regra para a ação no universo subjetivo a partir do pragmatismo não
significa sobrepor a filosofia pragmática à teoria psicanalítica, mas abordar a segunda a partir de uma
interlocução com outros registros de pensamento que acreditamos ser fecundos em nossa visada teórica sobre
a crença narcísica e a depressão.
66
2.4 – RICHARD RORTY: O CAMPO DA CRENÇA E A QUESTÃO DA REALIDADE
Como frisamos, Rorty avança no percurso desenvolvido por James acerca do
pragmatismo, especialmente no que diz respeito aos problemas do essencialismo realista de
um lado, e do idealismo representacionista de outro. Para Rorty não há, na relação
sujeito/realidade, relações representacionais, mas sistemas contextuais de crenças e desejos
que fundam os diversos níveis da experiência humana. Tal concepção tem hoje importante
influência, não apenas no campo filosófico, mas também psicanalítico, especialmente a
partir das pesquisas de Jurandir Freire Costa (1994; 1995b).
Para adentrarmos o universo da crença a partir do pragmatismo, tomamos como
referência a ótica rortyana da justificação e da contextualização na relação com a realidade,
visando com isso afastar a psicanálise do erro de situar o conceito de sujeito no idealismo
transcendental, no realismo ou no dualismo. Num combate ao representacionismo presente
no discurso filosófico, e mesmo psicanalítico, Rorty (1997) afirma:
“(...) não nos é reivindicada a afirmação de que nossas descrições [lingüísticas]
representam objetos. (...) Se nós temos relações de justificação entre nossas crenças e
desejos, e relações de causação entre essas e o resto do universo, essas são todas as
relações mente-mundo, ou linguagem-mundo, de que nós precisamos” (p. 139).
A referência de Rorty ao universo da crença constitui aqui uma crítica ao ponto de
vista representacional da linguagem, contrapondo a isso a noção de justificação. A crença é,
para Rorty, elemento decisivo em tal concepção relativista. O autor toma como eixo da
relação entre esses termos a noção de descrição, a qual entende o ato lingüístico como
condição de possibilidade da relação com o outro e com o mundo. Para Rorty deve-se antes
de tudo levar em consideração o conjunto de pressupostos subjacentes a um contexto
específico e mutável no ato da descrição. No âmbito das questões referentes à análise da
crença, Rorty conduz-nos ao caminho da concepção de contexto na relação com a
realidade, seja esta relação de cunho investigativo (cognitivo), seja ela de cunho afetivo:
67
“Para nós, todos os objetos estão sempre contextualizados. Todos eles
chegam em ligação com os contextos (...). Assim, não nenhuma questão que trate
da maneira de retirarmos um objeto de seu antigo contexto e de examiná-lo,
totalmente por si mesmo, para ver que novo contexto pode lhe servir. somente a
questão sobre que outras regiões da trama podemos considerar para encontrar modos
de eliminar as tensões residuais na região correntemente sob pressão. Não há também
nenhuma resposta à questão acerca do que está sendo contextualizado, para além da
que é dada de maneira enfadonha e trivial: “crenças” (p. 136).
A crença como regra para a ação é, portanto, o ato de formulação de uma
determinada contextualidade, referida ao mundo interno-externo. E é nesse sentido que
Rorty une a noção de “contexto” à idéia de crença, demonstrando que não nada de
essencial no mundo externo ou interno que preceda a contextualidade e a
recontextualização. Portanto, não para ele espaço para se falar em representação na
relação com a realidade.
“Um modo de apresentar a posição pragmática é dizer que o pragmático
reconhece relações de
justificação como se sustentando entre crenças e desejos, bem
como relações de
causação como se sustentando entre outros ítens no universo, mas
nunca relações de
representação
19
(p. 135).
Para Rorty não separação entre o contexto e a coisa a ser contextualizada ou
discriminada. Nesse ínterim o autor assinala que em toda apreensão da realidade
subentende-se a presença ativa de um sujeito dotado de capacidade lingüística. Rorty nega-
se a conceber o ato de linguagem e a contextualização como meras “representações” de
uma realidade isoladamente dada ou predeterminada em si mesma. Portanto, a idéia de
justificação no plano das crenças reintroduz o quadro conceitual sobre o que se entende por
sujeito e realidade.
20
19
Grifos do autor.
20
Rorty e outros autores pragmáticos como Davidson, Quine e Derrida desenvolveram um movimento de
desconstrução do psicologismo e de superação da filosofia da consciência centrada no transcendentalismo, no
68
De fato, Rorty sequer aceita manter o termo “representação” em sua análise da
realidade e do sujeito. Ao situá-los no campo da crença e do desejo, Rorty desenvolveu
uma visão que toma a realidade como subsumida terminantemente ao contexto e ao ponto
de vista no qual o sujeito se acha inserido na formação de sua rede de linguagem. Assim, o
autor situa a dimensão da crença em torno, não da existência de sentenças verdadeiras e
falsas, subjacentes a verdades em si seja do sujeito, seja da realidade. Em lugar disso,
Rorty fala de crenças verdadeiras e crenças falsas, dando a esta noção de crença o terreno
por excelência a partir do qual o homem constrói sua relação com a realidade. Sendo assim,
o que distingue para Rorty uma crença verdadeira de uma crença falsa não é propriamente a
suposta verdade que a alocaria num sistema isolado ou transcendente, mas as relações de
diferença e de justificação num sistema de crenças ordinário e circunstancial. Crenças
verdadeiras são, para ele, crenças aprovadas sob parâmetros contextualizados que
satisfaçam o ato da descrição dentro de uma determinada realidade compartilhada entre os
membros de um grupo. São, portanto, crenças compartilhadas e justificadas por um
determinado segmento social ou grupo de seres falantes (COSTA, 1994).
Portanto, para Rorty (1997), as crenças são verdadeiras quando aprovadas em
sentenças justificadas, pertencentes a uma ordem linguageira, ordinária, contextual. Rorty
segue a linha de Wittgenstein (1949/1999) que entende a linguagem como uma ação
delimitada pelos contextos de fala nos quais o sujeito se acha inserido. Em Wittgenstein, a
expressão “jogos de linguagem” (ibid.) denota a pura contingência do sentido, podendo ele
ser reconfigurado em contextos diversos. Os jogos de linguagem designam que o
significado está intrinsecamente atado ao uso que se faz da linguagem num contexto
específico, circunscrito a uma determinada “forma de vida”. Esta acepção abrange toda
uma idéia de prática e de uso que vai definir a forma como o significado se articula.
realismo e no idealismo. Especialmente com a filosofia da linguagem e a teoria dos atos de fala, as quais
tiveram como precursorres o pensamento de Wittgenstein e Austin, combate-se o solipsismo do sujeito,
enfocando-se a necessidade de uma apuração mais rigorosa dos elementos lingüísticos articulados à
experiência, especialmente aqueles que, apesar de serem eminentemente diretivos, revestem-se
ideologicamente de uma aparência puramente descritiva, desatrelada do conjunto de crenças estabelecido no
contexto específico da descrição.
69
Com esta acepção, Wittgenstein ampliou de maneira importante a perspectiva sobre a
concepção de linguagem, concebendo esta como prática social, organizada por contextos
diversos, o que implica que ela seja estudada em âmbito ordinário, respeitando-se o modo
como é aplicada por uma determinada forma de vida. (DELGADO, 1986).
Nesse âmbito, tanto Wittgenstein quanto Rorty, assim como Derrida, não concebem
a linguagem como veículo de representações de coisas ou fatos do mundo externo ou
interno dados a prioristicamente, assim como não a concebem como esquema formal
extrínseco à experiência contingencial. A linguagem é uma ação como outras, é uma
ferramenta a partir da qual o humano se organiza no mundo.
Sob esses parâmetros, a concepção do sujeito e da realidade, numa linha cuja
especificidade se constitui como campo de crenças (Rorty, op. cit.) concerne o estatuto da
produção lingüística no terreno das apreensões propriamente psicanalíticas, cujos efeitos
psíquicos circunscritos à chamada “realidade psíquica” aquele assevera como sendo de
ordem eminentemente ficcional. O campo da crença não abrange contudo apenas a
realidade psíquica. É importante que se especifique o problema da relação crença/realidade
sob os aspectos teóricos da pragmática rortyana, bem como de autores importantes desta
corrente teórica. Torna-se imperativo na análise da crença definir as distinções entre a
realidade “psíquica” e a realidade “externa” para uma apreensão mais consistente no campo
da própria psicanálise.
A relação entre o ficcional e a “realidade propriamente dita” é ainda problema
complexo no campo psicanalítico, condicionado precisamente pelos dualismos entre o
interno e o externo, o mental e o físico, o psíquico e o biológico, dicotomias das quais
Freud parecia se tornar constantemente refém apesar de sinalizar, algumas vezes, saídas
produtivas. No sentido de tentar tornar precisa sua teoria do inconsciente, Freud lançou em
“A interpretação dos sonhos” (1900) o conceito de realidade psíquica, subjacente a tais
dicotomias, fazendo contraponto à chamada realidade material, esta última concebida por
Freud como realidade propriamente dita: “Uma vez que conduzimos os desejos
inconscientes à sua última e mais verdadeira expressão, vemos que a realidade psíquica é
70
uma forma especial de existência que não deve ser confundida com a realidade material
(ibid., p.625).
Mais à frente, na análise do Homem dos Lobos (FREUD, 1918/1996), ao
demonstrar sua busca pelo “verdadeiro” na experiência subjetiva, a cena primária ou o
“núcleo patógeno” referente aos problemas constitucionais da sintomatologia de seu
paciente, Freud encontra nesse núcleo uma fantasia que constitui o próprio cerne da posição
do sujeito em relação à sexualidade. Nessa análise, Freud concebe a cena primária (coito
dos pais) não propriamente como uma lembrança, mas como uma fantasia construída a
posteriori cuja função seria a de responder psiquicamente aos excessos produzidos pelas
exigências pulsionais. “Essas lembranças, antes inconscientes, não têm sequer que ser reais,
podem sê-lo, mas muitas vezes foram deformadas com elementos fantasiados, tal como
ocorre nas lembranças encobridoras” (p. 154).
Tal ponderação parece apontar para uma concepção não definitiva acerca das
dicotomias em seu pensamento. A questão sobre a diferença entre realidade psíquica e
“realidade propriamente dita” aqui discutida leva-nos a um enquadre teórico mais profundo
que visa dar base instrumental para a abordagem da crença que buscamos sustentar - e de
maneira mais específica, da crença narcísica – em relação ao sofrimento depressivo.
Atingimos aqui um aspecto cujo problema reside justamente na concepção de
realidade até então abordada. Para Freud, a relação do sujeito com a realidade do mundo
(realidade externa ou material) deve passar pelos movimentos de organização imprimidos
pela função de inibição (e de ligação) do ego (FREUD, 1926/1996). Nesse sentido,
consideramos importante abordar tais elementos em termos de circunscrição precisa a
respeito dessas caracterizações sobre realidade e crença, em vistas até mesmo de se tentar
dar aqui um passo teórico quanto ao problema das dicotomias entre o psíquico e o material,
o interno e o externo, a partir da abordagem da crença. Para tanto, poderíamos afirmar,
partindo das análises freudianas e avançando com as contribuições de Rorty, que a
realidade aqui pensada fora do campo das dicotomias e, portanto, das separações radicais
pode ser caracterizada como sendo de dois tipos no universo humano: realidade psíquica
e realidade eu-mundo. Poderíamos esquematizar da seguinte forma:
71
psíquica (inconsciente)
Sistema
Realidade ------------------Ego---------------- linguagem de
Crenças
eu-mundo (física e social)
A segunda (realidade eu-mundo), relacionada à realidade psíquica pelo tracejado
tênue do eu, não é uma “realidade em si” com a qual o sujeito se relaciona, mas é uma
realidade compartilhada dentro de um determinado contexto social e lingüístico (Cf.
RORTY, op. cit.). Aqui a palavra contexto assume sua designação mais radical, sendo tal
realidade potencialmente recontextualizável de acordo com a emergência de novos jogos de
linguagem que imprimam apreensões antes inexistentes ou novas formas de descrevê-las,
dados novos contextos lingüísticos que exijam reconfigurações nos diversos níveis de
compartilhamento social. Tais contextos lingüísticos dizem respeito propriamente à
construção das descrições daquilo que se denomina realidade. A forma como se descreve
tal realidade depende, pois, da crença, do contexto no qual se inserem os sujeitos, sendo ela
circunscrita aos limites da linguagem e da descrição, estes abertos à inovação mediante o
seu próprio uso (Cf. WITTGENSTEIN, 1949/1999).
Assim, parafraseando Jurandir Freire Costa (1995b), as descrições da realidade,
apesar de serem definidas pelo quadro contextual de determinado objeto para um sujeito ou
para um grupo de sujeitos num momento histórico-cultural determinado, não produzem
mudanças físicas no objeto descrito (entendido como uma realidade não lingüística), apenas
mudanças subjacentes ao movimento descritivo deste objeto, ou redescrições, de acordo
com os diferentes contextos nos quais ele se inclui, não se subentendendo nisso uma idéia
de essência, verdade ou substância última referida a esse objeto. Costa (op. cit.) salienta:
72
“(...) a idéia de que as realidades não lingüísticas independem de descrições, pode dar
margem a mal-entendidos. Posso ter dado a entender, sem me dar conta, de que
existe algo como “uma realidade independente de descrições” que pode ser
conhecida “naquilo que realmente é”, e, deste modo, ter reafirmado uma tese
“realista” ou ‘essencialista’ como suporte ‘escondido’ de asserções neo-pragmáticas.
A tese seria a seguinte: as pedras, por exemplo, antes mesmo que os homens e as
linguagens existissem, estavam e eram pedras. Por conseguinte, existe qualquer
coisa na pedra, sua essência ou sua verdadeira realidade, que independe das
interpretações que damos dela. A forma de contestar esta afirmação é dizer que uma
‘pedra’ pode ter várias ‘realidades’. Posso ver numa ‘pedra’ realidades diferentes se
sou físico, geólogo, alpinista, pedreiro, decorador, arqueólogo, poeta (Drumond, João
Cabral, Gertrude Stein), religioso (‘atire a primeira pedra’), manifestante político em
combate contra a polícia, ou filósofo. Pode-se argumentar que pouco importa se a
‘extensão’ e a ‘intensão’ da palavra pedra variam conforme os mundos possíveis. O
importante é que a ‘identidade’ da pedra é garantida, em contextos diversos, pela
‘realidade intrínseca’ da pedra. Mas qual é a ‘realidade intrínseca’ da pedra? É a
soma de todos os predicados aplicáveis às entidades às quais o termo pedra se aplica?
Mas, e se, no futuro, a palavra ‘pedra’ vier a aplicar-se às entidades que não
conhecemos, ainda assim a ‘identidade’ ou a ‘intrinsicalidade’ da pedra estará
garantida? Então a ‘intrinsicalidade’ da pedra é verdadeira
a priori e por definição?
Ou seja, é possível decretar: ‘tudo o que vier a ser chamado de pedra pertencerá à
realidade intrínseca da pedra’? Mas e se, numa outra classificação, excluirmos muitas
das coisas que chamamos de ‘pedra’ da noção de pedra, para classificá-las de outra
maneira? Então é porque havíamos classificado ‘erradamente’ aquilo que
chamávamos de ‘pedra’? Mas, neste caso, o que é ‘pedra’, exceto aquilo que
concordamos em chamar de ‘pedra’? Onde está a ‘verdadeira realidade da pedra’?”
(p. 34-35).
Tal consideração não se coaduna a uma concepção na qual se afirma que nada pode
existir fora do âmbito do ato lingüístico. Dizer que não existe uma “coisa em si” não
significa negar a existência de realidades que independem das descrições. Rorty corrige
esta confusão, definindo que a questão não é se “os objetos existem antes da fala”, mas:
como isolamos o objeto?” Nesse sentido, Costa afirma: “Posso não apenas dizer que
73
árvores e estrelas, mas também montanhas e planetas existiam antes dos homens e das
linguagens sem que isto comprometa a noção neo-pragmática de ‘realidade’” (ibid., p. 35).
Para a pragmática, realidade é, no sentido rortyano, aquilo que serve aos propósitos
humanos, sendo ela constantemente realocada e reinserida numa verdade
(re)contextualizada, se assim for necessário no sentido de se acrescentar ou recompor sua
descrição numa apreensão que se coadune com as necessidades mais atuais de seu uso.
Nesse sentido, poderíamos dizer que a realidade se faz presente sob nossos olhos de acordo
com a necessidade que temos de isolá-la no trâmite de nossas perseguições particulares ou
grupais. Assim, uma pedra pode ser concebida apenas como um “pedaço de uma rocha
maior”, ou de uma “montanha”. Damos a esse “pedaço” de alguma coisa, o nome de
“pedra”, no sentido de isolá-lo, circunscrevê-lo, para responder à nossa necessidade de lidar
com essa e com outras realidades a ela ligadas.
A realidade psíquica é por sua vez constituída justamente pelos efeitos
performativos da linguagem (Cf. COSTA, 1995b). Estes têm o poder de causar alterações
efetivas no campo subjetivo. Ou seja, ela é a própria constituição da grade interpretativa na
medida de seu potencial subjetivo transformador. Costa afirma:
“As realidades subjetivas são, portanto, ‘realidades lingüísticas’. (...) Dizer
que alguma coisa é uma realidade lingüística não é o mesmo que dizer que esta coisa
não existe ou é apenas uma ilusão, no sentido corrente da palavra. O sujeito não é
uma ilusão. Sabemos distinguir o que é uma ilusão e o que não é uma ilusão. Na
língua corrente, ninguém aplica as regras de uso da palavra ilusão quando fala do
sujeito ou de um sujeito. Uma ilusão é uma ‘realidade psíquica’ diferente da
‘realidade psíquica’ que chamamos de sujeito. ‘Realidade psíquica’ ou ‘realidade
lingüística’, repito, é simplesmente tudo que tem efeitos performativos sobre as
subjetividades” (p. 42).
A realidade psíquica diz respeito, conforme o exposto, aos movimentos
relacionados ao isso e aos processos primários formação fantasmática, onírica,
alucinatória e sintomática e também à constituição do eu e do supereu como efeitos do
74
universo de linguagem no campo do inconsciente. Poderíamos afirmar então que a
realidade psíquica é a faceta não compartilhada do sistema de crenças que constituem o
sujeito em sua singularidade.
21
Estas considerações sobre a crença e a realidade são importantes para mantermos a
linha teórica a respeito de nossa concepção. A crença abrange de maneira decisiva a
formação dos conteúdos psíquicos, relacionados ao campo ideativo, e dos movimentos
interpretativos que, articulados a posteriori, constituem a especificidade do universo
subjetivo. A crença abrange, contudo, não apenas a realidade psíquica, mas a própria
realidade física e social, que se organiza e se define dentro de um determinado contexto
(Cf. RORTY, 1997). Desta feita, ela abrange a totalidade dos atos de fala na sua relação
com a realidade e em seu aspecto físico, psíquico e social. Ela é o que faz referência direta
à análise antisubstancialista dessas realidades, posto que nada de realístico ou essencial
configura-se em sua constituição como “verdade última do ser”. É a injunção da crença nas
movimentações concernentes aos atos de linguagem e aos contextos relacionais o que
constitui precisamente a relação do humano com a realidade psíquica, física e social.
Portanto, não realidade psíquica separada da realidade “externa”. As duas se constituem
como efeitos dos atos de fala nos encontros e desencontros com o outro.
Do ponto de vista freudiano isto implica que tomemos a decisão de conceber o
aparelho psíquico como um aparelho que se constrói mediante regras de ação. Em sua
análise, Freud salienta o papel do campo ideativo na experiência humana, sem deixar de
enfatizar a importância de se concebê-la como efeito de um investimento. Freud
(1915b/1996) salienta que “(...) idéias são catexias, basicamente de traços de memória” (p.
183), deixando subentendido o papel da ação nos movimentos psíquicos, visto a noção de
investimento e de atividade que as “idéias” (Vorstellungen) compõem. São atos de
21
Por “realidade não compartilhada” não estamos entendendo “realidade não compartilhável”. Caso contrário,
iríamos de encontro a toda concepção pragmática especialmente wittgensteiniana de que é impossível a
existência uma linguagem ou subjetividade privada, separada da realidade social. Consideramos que a
chamada “realidade psíquica” é efeito a posteriori de uma linguagem compartilhada. Ela é, num determinado
aspecto, não compartilhada pelos motivos mesmos que dizem respeito ao inconsciente e à constituição da
cadeia associativa, do recalque, etc. realidades capazes de sofrerem alterações a partir dos efeitos
performativos da própria linguagem (Cf. COSTA, op. cit.).
75
subjetivação que incluem o sujeito como principal participante da construção de sua própria
experiência histórica, soerguendo-se aí uma realidade psíquica, bem como uma forma
contextualizada de relação com o mundo que a cerca. Entendemos que a crença como
regra fundamental para a ação (Cf. JAMES, op. cit.) condiciona portanto, do ponto de
vista psíquico, a plasticidade da qual se originam os atos de subjetivação, não se podendo
pensá-los fora do âmbito da primeira.
Partindo de tais análises, definimos aqui a crença, em âmbito metapsicológico,
como um condicionante da atividade psíquica e, portanto, da subjetivação. Ela tem por
função, em contrapartida, estabelecer a grade do universo ideativo produzido por
interpretação linguageira no contato com o outro. Além de condicionar a ação psíquica,
ela é o que oferece, em contrapartida, estofo para a integração psíquica, para sua
permanência identitária, sua “segurança imaginária” e, de uma maneira mais precisa, sua
condição narcísica; é mediante seu estatuto no âmbito da experiência da relação humana
com a realidade (da maneira como foi aqui definida) que o sujeito sustentará sua forma pré-
consciente ou inconsciente de estar no mundo. Mais do que isso, ela é o que mantém o
sentimento de identidade do eu e sua estampa imaginária, num jogo de linguagem possível
que produz tal sentimento, sustentado pelo anseio constante de perenidade absoluta e estase
identitária plena, esta sim, característica de uma busca sintomática pelo “absoluto” e pela
“essência narcísica” na existência de si e do mundo.
22
De fato, a crença narcísica é terreno complexo, balizado pelas experiências de amor
e satisfação trocadas com o outro. Se, de acordo com Freud (1914/1996), o sujeito constrói
seu mundo psíquico a partir dos investimentos e das atribuições do outro, conforme
aprofundaremos à frente, é a partir das palavras e dos sentidos oferecidos pelo outro que o
sujeito formará em ato sua grade interpretativa. Um ato que tem por inspiração o
movimento não menos crente do outro, cuja fala empresta as significações delimitadas para
22
Com efeito, este é o aspecto mais relevante de nossa busca teórica até aqui. Isto será retomado e
aprofundado adiante para falarmos da experiência depressiva, diretamente relacionada a esses aspectos.
76
a possibilidade de organização do sujeito em suas experiências com a realidade interna-
externa.
Nesses termos, circunscrevendo o caminho aqui traçado desde o pensamento de
Derrida sobre as transcrições psíquicas, até a pragmática da linguagem, entendemos que o
narcisismo não pode ser sem a crença e, em última análise, sem a presença do outro. A
importância do outro na montagem teórica do narcisismo, apesar de não ter sido
aprofundada por Freud, é marca implícita em seu pensamento, especialmente quando se
aborda a formação das instâncias ideais como efeito da impossibilidade de permanência do
investimento amoroso absoluto condicionado pelo movimento discursivo dos pais. É
imprescindível salientar que se há trabalho de ligação psíquica como faceta interpretativa e,
portanto linguageira, da relação com os movimentos do outro, é fundamentalmente este
outro que oferece o campo do sentido e da fala para a capacitação do domínio da linguagem
por parte do infante. De fato, o narcisismo é condicionado pelo outro no jogo de sua
presença/ausência, mediante a formação de uma narrativa sobre tais movimentos. Sendo
assim, concluímos em nossa visada teórica a concepção de sujeito como uma rede
lingüística de crenças e desejos, para tomar a definição de Rorty (1997) e de Jurandir Freire
Costa (1995b).
A apreensão sobre o antiessencialismo que coloca a “primariedade” sob rasura (Cf.
DERRIDA, 2002) implica assim que a própria teoria do narcisismo primário seja revista no
escopo da subjetivação, bem como do sentimento de perda, experimentado pelo sujeito na
relação final com a depressão. Seguiremos, portanto, uma trilha que concebe a crença
narcísica de maneira articulada aos efeitos da linguagem (Cf. Costa, op. cit.), para
alcançarmos então a dimensão teórica aprofundada acerca do sofrimento depressivo.
77
CAPÍTULO III – A CRENÇA NARCÍSICA E A DEPRESSÃO
3.1 SÓ-DEPOIS DA LINGUAGEM: A CRENÇA NARCÍSICA SOB O EMPRÉSTIMO DO
OUTRO
Retomaremos a partir de agora as considerações freudianas em articulação ao ponto
de vista da teoria pragmática. Discutiremos sobre a crença narcísica, uma modalidade
específica de crença cuja característica, como veremos, inclui importantes paradoxos na
vida psíquica. No ínterim dessa discussão, tocaremos nos aspectos cruciais e problemáticos
do conceito de narcisismo primário, tomando como base o pensamento pragmático dos
autores trabalhados, bem como o pensamento da diferença de Derrida (op. cit.). Sendo
assim, o caminho que trilharemos para o entendimento desta complexidade segue o
percurso sob o qual delineamos até aqui a importância e o papel da linguagem na
experiência subjetiva, cuja proposta é conceber o narcisismo de maneira articulada a seu
aspecto lingüístico.
A abordagem do narcisismo pode alcançar diversas formas de leitura teórica a partir
do texto freudiano. Retomaremos, pois, a concepção de que, tal como Freud (1914/1996)
abordou no texto do narcisismo e tal como frisamos no início do capítulo anterior o
infante humano se acha sob dependência psíquica do outro, cuja situação inexorável
constitui a base do processo de subjetivação. Pensar a princípio o narcisismo implica
necessariamente pensar a participação determinante da fantasia do outro que cuida (Cf.
PINHEIRO, 2002) e que, nesse cuidado, imprime em seu ato (carregado de significações
inconscientes) importante quota de satisfação, investimento libidinal, sentimentos
ambivalentes, bem como anseios pela condição perdida de seu próprio narcisismo
(FREUD, 1905/1996; 1914/1996). Nesse plano, pensar a própria emergência do sujeito
falado e inventado em primeira instância pelo outro implica em conceber o campo da
linguagem como importante articulador nessa emergência.
78
Crença narcísica e subjetivação
O narcisismo guarda em suas peculiaridades questões diretamente relacionadas a
um movimento específico de interpretação a partir do qual uma inovação se estabelece de
maneira “definitiva” (frisando-se as aspas). Trata-se aqui de uma ação psíquica (FREUD,
1914/1996) que interpreta os movimentos e discursos do outro, na formação de uma
realidade subsumida ao discurso dos pais, ou daquele que ocupa a posição de cuidador vital
e de investidor (credor).
Tal condição supostamente “definitiva” e “permanente” do eu revela, na
contrapartida, o caráter fictício da indissolubilidade narcísica firmada antes de tudo por uma
posição de preenchimento das expectativas idealizadas do outro. Nesta posição o pequeno
sujeito em formação acha-se na iminência de perder sua própria condição subjetiva, qual
seja: a condição de ser amado, que sustenta a formação do narcisismo e é constitutiva de
uma auto-imagem, base da filiação cujo elo o sujeito encontra na interseção da imagem
com as palavras do outro. Esta condição deflagra a invenção narcísica como um ato
fundamentalmente subsumido a uma crença da unidade, presente em princípio no discurso
dos pais, e para sempre creditada num débito impossível de ser fechado ou quitado, visto
que tal “unidade” não se sustenta no tempo e o sujeito aliena-se nas palavras do outro
apropriando-se delas (internalizando-as), no sentido de manter para si a sensação de um
“assenhoramento de si”, de uma estase sempre sustentada pelo perigo da perda do amor e
das palavras do outro.
Concebemos, nesse sentido, que a formação do eu, idealizada e atribuída pelo outro
como estado de permanência absoluta, consistência imaginária e opulência simbólica, é
constituída, não na formação de um “ego psicológico” (função de síntese), mas pelo
estatuto da crença que os jogos de linguagem sustentam, a partir dos quais a experiência
narcísica realizar-se-á. Nesse sentido, é importante frisar a linha lógica que exerce tal ação
narcísica, ancorada no outro: economia libidinal / investimento / crédito / credo / crença.
Nesse movimento, os pais são os fiadores da invenção narcísica infantil. Do outro, o sujeito
faz-se sumariamente dependente a partir do investimento crente de que, nas suas palavras e
na sua presença, a salvação da morte se afirmará, tomando o sujeito de empréstimo a
79
sensação de um “assenhoramento de si”, e tornando-se, nessa condição, supostamente livre
do desamparo (Cf. FREUD, 1927/1996).
Concebemos, pois, o movimento de “unificação” do eu precisamente como sendo o
efeito subjetivo de um discurso idealizado discurso sumariamente condicionado pelo
“sentimento de desamparo” dos pais quando estes se deparam com a possibilidade de
colocar em suspenso a fragilidade de suas próprias vidas através do novo ser que chega.
Nesse sentido, o traço relacionado à experiência de um eu “consistente” é resultado da
própria fantasia dos pais (PINHEIRO, op. cit.) creditada numa nova possibilidade de
recomposição histórica; é um movimento de interpretação do discurso do outro por parte
desse novo aparelho psíquico que se forma, o qual não pode ser efetuado fora do âmbito
dos atos lingüísticos e que, portanto, encontra sustentação num a posteriori de
idealização. A experiência de um investimento narcísico primário, pleno e absoluto é,
portanto, um momento mítico ao qual o sujeito só-depois se referencia como tendo outrora
desfrutado de uma posição de onipotência no discurso dos pais. O trecho da obra de Freud
inicialmente destacado, no qual o autor assinala o ponto crítico do narcisismo referido à
expressão “Sua Majestade o Bebê” (FREUD, 1914/1996), é referência central desta
contextualidade.
Pensar um momento “em si” denominado “primário” no narcisismo é, portanto
caminho que pode levar a certas armadilhas ou escolhos dos quais se torna bem mais difícil
a retirada ou a solução, sobretudo quando se problematiza a tendência a um certo
“realismo” ou “essencialismo” das instâncias psíquicas. O ego não existe como uma
essência referente a um suposto “narcisismo primário” em si. Pensar sob essa via
significaria aceitar a idéia de que existiu realmente um momento da vida em que toda quota
da libido esteve unificada, investida num absoluto estado de unidade, origem a partir da
qual os movimentos objetais poder-se-iam realizar. O que a clínica identifica e nesse
sentido, o que se articula como fato clínico é o movimento discursivo que deflagra a
condição idealizada do sujeito quando este faz referência a um “si mesmo” anteriormente
absoluto e hoje incompleto, ou mesmo perdido, nas entranhas de um tempo irreversível.
Nesse sentido, enfatizamos que o material por excelência de que dispomos para efetuarmos
80
uma teoria especificamente psicanalítica do “narcisismo primário” é o material discursivo
ou seja, a experiência narrativa. Procuraremos sustentar, assim, que a chamada
“organização psíquica”, ou “organização da libido” bem como a “instância egóica” não são
essências dadas, mas são dinâmicas discursivas condicionadas pelo movimento lingüístico
de idealização e de crença. É nessa direção que procuramos aqui problematizar a noção de
narcisismo como “essência originária” do processo de subjetivação e das relações objetais.
Em questionamento teórico, Michel Balint (1993/1985) aponta o problema da
concepção de narcisismo primário e afirma:
“(...) qualquer idealização depende do narcisismo secundário. Qualquer ideal começa
pela internalização de algo derivado e modelado sobre objetos externos, em geral
sobre as figuras parentais. Tal construção é chamada de introjeção e não podemos
deixar de admitir que podem ser introjetados objetos externos importantes, isto é,
intensamente investidos pela libido” (BALINT, 19931985, p. 44).
Balint faz uma crítica ao conceito de narcisismo “primário” desconstruindo,
mediante análise criteriosa do próprio texto freudiano, as razões de sustentabilidade e
manutenção da idéia de uma primariedade narcísica, um momento absoluto de auto-
investimento e unidade do eu. Nesse âmbito, o pensamento de Balint assume importância
quando demonstra rigorosamente as desvantagens teóricas de se manter o pressuposto de
um acontecimento psíquico isolado desta ordem. Para tanto, ele alguns argumentos cuja
pertinência deflagra um outro olhar acerca dos contextos teóricos sobre esse tema. O
primeiro argumento é o da incompatibilidade teórica entre as noções de narcisismo
primário (FREUD, 1914/1996), auto-erotismo primário (FREUD, 1905/1996) e amor
objetal primário (ibid.). Balint detecta algumas contradições de Freud no que se refere à
dimensão de “primariedade”, problematizando a discussão a respeito daquilo que deve ser
entendido como primário e secundário, num sentido de “antes” e “depois” constitutivos.
Outro argumento de Balint diz respeito ao caráter não observável e pouco
explicativo a respeito do que Freud denominou “nova ação psíquica”. Balint aponta que o
81
chamado narcisismo primário é para o próprio Freud um fenômeno secundário, situado
entre o auto-erotismo e o amor objetal, e demonstra ainda mais uma contradição – a de que,
em “Três ensaios sobre teoria da sexualidade”, Freud (1905/1996) considerou o seio como
um objeto externo primário, anterior a qualquer processo de assimilação ou integração e,
acrescentando, anterior a qualquer movimento de ordem linguageira.
A teoria de Balint (1939/1985) tenta escapar desses escolhos centrando-se na idéia
de que, ao invés de um narcisismo primário, auto-erotismo primário, ou ainda objeto
primário, haveria o que ele denomina “amor primário”, que pode ser entendido como uma
experiência de harmonia absoluta com o entorno, na qual a libido se acha investida, num
espaço fluido de indiferenciação mãe-criança. Para Balint são as perturbações, traumas e
disjunções com o “entorno” que provocam o movimento narcísico, desde já secundário para
o autor. Ele afirma:
“Sempre que a relação desenvolvida com uma parte do entorno ou com um
objeto estiver em doloroso contraste com a anteriormente não perturbada harmonia, a
libido retorna ao ego, que inicia ou acelera o seu desenvolvimento – talvez em
conseqüência da nova adaptação forçada em uma tentativa de recuperar a anterior
sensação de “unidade” dos primeiros estágios. Essa parte da libido seria
definitivamente narcisista, mas secundária ao investimento original do entorno.” (p.
61).
23
Esta acepção deflagra um outro modo de entender as coisas, diferentemente de
alguns aspectos do pensamento de Freud. Aqui o narcisismo é concebido como uma
contingência entre outras, e não o momento “primário” ou “primordial” da construção
subjetiva. Para Balint, o narcisismo é um movimento de retração libidinal que tem como
característica uma ação sintomática na própria subjetivação. Balint considera o narcisismo,
a produção do eu, os movimentos de introjeção, etc. e essa é uma verdadeira inovação
23
Balint caracteriza duas patologias narcísicas relacionadas a traumas precoces na relação com o entorno
denominadas
ocnofilia e filobaitsmo. Estas patologias são formas de responder aos percalços traumáticos do
“entorno”, e à percepção do mundo separado dos objetos. O filobatismo caracteriza-se por um movimento de
dominação e afastamento radical dos objetos, enquanto que a ocnofilia é o movimento inverso de aderência e
dependência radical aos objetos (BALINT, 1987).
82
teórica a respeito do processo de subjetivação – como uma resposta, uma forma de rechaço
da paz interrompida.
Fazem-se necessárias, entretanto, algumas considerações a respeito da teoria
balintiana, as quais se tornam imprescindíveis na linha de raciocínio que aqui está sendo
traçada. Consideramos que o próprio processo de subjetivação, ou seja, a entrada na esfera
das movimentações do mundo humano conjuga a perturbação, a descontinuidade, o
desconforto aos quais todos se acham expostos no contato com o outro o que é desde
um terreno próprio de instabilidades e incertezas. A pertinência do pensamento de Balint
não se situa para nós na existência propriamente dita de um estado absoluto com o
“entorno”. Colocar a noção de “amor primário” no lugar de “narcisismo primário” não
resolve o problema da “primariedade”, visto que toma como referencial para isso a idéia de
origem num absoluto, sobre a qual tendemo-nos ao afastamento e combate neste trabalho.
24
De fato a crítica de Balint ao narcisismo primário traduz, por outro lado, a questão
de se tomar o movimento narcísico como a via mais remota a partir da qual o humano
enfrenta, em atos de subjetivação, as intempéries dos movimentos ambientais. Pensar o
movimento narcísico como uma crença da unidade coaduna-se à idéia balintiana de que o
narcisismo é uma resposta humana às variações desconfortantes, mas inerentes
(retificando), do entorno. O pensamento de Balint é avanço teórico que poderia ser
expresso sob a idéia de que o narcisismo nada mais é do que uma forma sintomática ou
24
Fazemos referência com esta problematização ao ponto de vista derridiano acerca da noção de “atraso” no
pensamento da diferença. Lembramos que para Derrida (2002) “deve-se entender ‘originário’ sob rasura, sem
o que deveríamos a diferencia de uma origem plena. É a não-origem que é originária” (p. 188). Não se trata de
aderir, portanto, a um pensamento de origem (amor primário ou narcisismo primário). As questões que
envolvem as patologias narcísicas estão ligadas a uma circunstância caracterizada pelas injunções que,
relacionadas à configuração do entorno, devem ser analisadas sob o ponto de vista da
condição e da natureza
contingencial de tais injunções
. Nesse ínterim, não se deixa de lado também a relação estabelecida entre tais
injunções traumáticas e as possibilidades (ou impossibilidades) de
sustentação do movimento de idealização
próprio da formação do eu-ideal (Sua Majestade o Bebê).
Verifica-se que, nas patologias narcísicas, as quais
seguem o modelo fantasmático da melancolia (Cf. PINHEIRO, 1995), o movimento de idealização é
extremamente frágil, o que revela a natureza fracassada do investimento narcísico relacionado às figuras
parentais, tal como estamos abordando na constituição do narcisismo. Pinheiro e Verztman (et al, 2006)
abordam estes aspectos de maneira precisa quando fazem menção aos contextos psicopatológicos presentes na
melancolia e nas patologias narcísicas, especialmente no que tange à relação com a temporalidade e com o
corpo. Aprofundaremos estas questões no capítulo IV, onde trataremos mais diretamente do paradigma
melancólico, na busca do estabelecimento das diferenciações entre depressão e melancolia.
83
muitas vezes patológica caso a retração libidinal aconteça num momento muito precoce,
sem as referências ideais de “Sua Majestade o Bebê de burlar a impossibilidade de estase
absoluta com o “entorno”. Dito de outra forma, o “retorno da libido ao eu” (nunca absoluto)
será aqui traduzido por crença num absoluto movimento subjetivo que visa rechaçar as
experiências traumáticas inerentes à relação com o outro. Nesse sentido, o narcisismo é um
sintoma, sempre prestes a mostrar em sua própria face a crença da unidade que visa o
tempo todo sustentar.
Numa linha de pensamento similar, em contribuição teórica sobre o narcisismo,
Kristeva (2000) sublinha:
“Auto-erotismo, narcisismo, fase edipiana se sucedem na vida do indivíduo, e o
narcisismo aparece ali como primeira organização identitária, uma primeira
autonomização que não é ainda nem muito estrita nem muito nítida, já que será
preciso esperar a triangulação de Édipo para que a autonomia psíquica se efetue. O
narcisismo, sublinha Freud a partir de seu texto de 1914, é caracterizado pela
instabilidade; observem de passagem que o emprego ingênuo do termo “narcisismo”
na linguagem corrente é errôneo, que ele designa uma pessoa imbuída e segura de
si própria, triunfal, quando, justamente, o Narciso freudiano não sabe absolutamente
quem é e
investe sua imagem porque não está seguro de sua identidade.
25
Na
realidade, é para um “estado-limite”, devemos dizer, entre segurança e insegurança
identitárias que nos conduz o narcisismo. Por que essa organização é instável,
fronteiriça? Porque ainda é muito dependente do “outro”, que, nesse caso, é a mãe,
de quem o indivíduo está agora se separando. Trata-se de uma pseudo-identidade
ainda em formação, não ainda estabilizada pela triangulação edipiana” (p. 83).
Esta passagem esclarece que, ao nível da atribuição narcísica temos dois lados da
moeda que denunciam um sentimento de desamparo em primeira instância por parte dos
pais, fundador, a posteriori, de um eu narcísico no pequeno sujeito, o qual se utiliza de tal
imagem ideal para rechaçar as instabilidades inerentes ao entorno e à formação do próprio
eu. Nesta perspectiva, retomando Balint, se este peca ao trocar um pensamento de “origem”
por outro com a teoria do “amor primário”, contribui por outro lado demonstrando que não
25
Grifo nosso.
84
narcisismo primário como momento absoluto de unidade, mas apenas narcisismo
“secundário” como resposta sintomática ao fato de que o entorno não conta de manter
sua suposta estabilidade. O narcisismo é uma resposta à instabilidade cujo apoio é
encontrado no discurso idealizado do outro, forjando-se, assim, a sensação de uma
“onipotência do eu”. Desta feita, “Sua Majestade o Bebê” é a capacidade dos pais em
sustentar o movimento de idealização do infante, sem o qual o narcisismo sustenta-se
apenas de maneira extremamente frágil, tal como Balint formula com a ocnofilia e o
filobatismo, e tal como se pode verificar mediante as análises de Pinheiro e Verztman
(2006) sobre as patologias narcísicas e melancólicas.
26
É preciso frisar, além disso, que nem a idéia de narcisismo tampouco a idéia de
desamparo podem ser tomadas a priorísticamente, visto que conceber uma condição
essencial do desamparo ou do narcisismo no campo humano significaria colocar estas
condições em posição ontológica de transcendência, como uma essência ou “coisa
psíquica” em torno da qual o movimento subjetivo se efetua em suas movimentações
fantasmáticas e morais.
Na obra “O mito psicanalítico do desamparo” Costa (1999) faz uma análise a
respeito desta questão, chamando atenção para o problema de se conceber a noção de
desamparo a partir de argumentos biológicos, fisicalistas ou metafísicos. Costa faz uma
diferenciação entre as condições de necessidade física e motora nas quais o humano se acha
inserido (não implicando nisso “desamparo”) e a condição de formação do eu relativa a um
movimento de busca pelo amor perdido do outro. Nesse sentido, o autor salienta que a
questão deve ser analisada do ponto de vista dos atos de linguagem, e não do ponto de vista
da condição natural, física ou metafísica de desamparo. Ele argumenta: “A existência do eu
autoriza o emprego do termo desamparo, pois estamos diante de um ser de linguagem que
26
Como frisamos, a questão do fracasso ou das peculiaridades de “Sua Majestade o Bebê” será retomada no
capítulo IV quando nos debruçarmos sobre o diferencial depressão / melancolia, na retomada dos problemas
teóricos que permeiam tanto as classificações psiquiátricas como até mesmo a abordagem psicanalítica acerca
desses temas.
85
pode saber o que é se sentir desamparado” (ibid., p. 27).
27
uma crítica a concepções
freudianas ou pós-freudianas que tendem a relacionar o sentimento de desamparo à
condição natural humana subjacente às necessidades das ações e cuidados do outro. Na
noção de “desamparo” trata-se propriamente, tal como se concebe neste trabalho, de um
sentimento, de uma relação de dependência subjetiva ao outro, circunscrita ao campo da
significação, bem como às rupturas e perdas relacionadas aos investimentos amorosos eu-
outro condição para o surgimento do “sujeito desamparado”, descentrado e atravessado
por desejos inconscientes.
Discutir, pois, o cerne da própria noção de desamparo, bem como de narcisismo,
específicas ao pensamento psicanalítico, é tarefa que não se pode deixar de lado quando
buscamos a reflexão teórico-clinica. É preciso que se delineie os passos para a
circunscrição de idéias como essa “desamparo” e “narcisimo” no sentido de se colocar
em questão o que isso significa tanto para o campo humano quanto para a própria
contrapartida teórica da psicanálise.
Assim, é no sentido de estabelecermos uma apreensão precisa e não essencialista
para a questão do narcisismo que propomos a noção de crença narcísica. Entendemos
então que esta é um movimento psíquico condicionado pelo sentimento de desamparo do
outro, é um ato interpretativo subjacente à demanda de completude do outro inserido na
cultura demanda remetida ao constante desejo de ser amado e ser reconhecido. A crença
narcísica é efeito mesmo de um desencontro que subjaz a necessidade de sobrepujar e de
burlar a impermanência do “entorno”. Em tais circunstâncias, a visada psíquica em questão
é a de manter uma estase, agora condicionada pela idealização e investimento do outro
mais precisamente dos pais, caracterizado por “Sua Majestade o Bebê”. É precisamente no
(des)encontro com o outro que formar-se-ão os ideais fundando-se nisso uma retroprojeção
que não guarda outra característica a não ser aquela que constitui o germe da crença
narcísica. O narcisismo tem como referência precisamente a articulação de um sentido: o
27
Novamente recorremos à imprescindível noção de a posteriori, sem a qual nenhuma dessas considerações
poderia ser feita. Sentir-se desamparado é poder, antes de tudo, falar sobre isso. O sentimento de desamparo
como referência à formação do ideal narcísico perdido é constituído no processo mesmo de subjetivação
articulada decisivamente pelo ato de linguagem.
86
sentido da onipotência. Onipotência que, via de regra, é do Outro, na medida em que
inventa a subjetividade do infante – um Outro contudo claudicante e desamparado (os pais),
cuja consistência adquire seu estatuto no campo da crença narcísica. Nesse sentido, se o
narcisismo é uma crença na onipotência e na unidade, esta crença pode apenas ser
condicionada pelo outro que, numa posição simbólica de “onipotência” (Outro) é aquele
mesmo que funda a subjetividade no infante, que o inventa. Aqui os pais se servem de tal
“Onipotência Criadora” para, em última análise, sustentarem sua própria majestade. “Se o
filho é príncipe, eu sou o Rei”. O narcisimo é, portanto, investimento que imprime uma
condição na qual o pequeno ser se como opulente, ao tomar de empréstimo do outro a
imagem e as narrativas atribuídas a si, sumariamente sustentadas pela introjeção do sentido
da onipotência.
28
É assumir lugar simbolicamente “essencial” na vida do outro, ou lugar
específico (seja ele qual for) cuja conseqüência se revela nos diversos jogos de linguagem,
bem como nos movimentos sintomáticos e psicopatológicos circunscritos a tal condição
subjetiva.
29
Desta forma, o chamado “narcisismo primário” bem como o “sentimento de
desamparo” devem ser entendidos como fenômenos de ordem lingüística, podendo definir-
se só-depois da experiência de linguagem (COSTA, 1999). Se podemos ainda falar em um
narcisismo “primário”, não podemos concebê-lo fora da noção derridiana de “atraso” como
formação idealizada e retroprojetada no (des)encontro com o outro. O narcisismo
denominado “primário” não passa de uma crença de plenitude atribuída pelo outro, ou
crença numa origem. Esta crença referencia posteriormente para o infante a constituição de
seu eu ideal. O narcisismo “primário” é, portanto, um mito inventado pelo outro, pautado
numa crença da unidade projetada na criança. É um sentimento nostálgico relacionado a
28
O conceito de introjeção será definido adiante.
29
As idéias de encontro e desencontro têm aqui como referência um jogo de presença/ausência que marca a
dimensão constitutiva dos ideais. O eu ideal, nessa medida, constitui precisamente aquilo que se forja
propriamente a partir desse jogo do encontro e do desencontro. Não estamos pressupondo com isso a
existência de uma conformidade absoluta do encontro anterior ao desencontro, mas apenas afirmando que é
nesse jogo de crenças (encontro/desencontro), afirmado na linguagem, que o ego se constituirá como
instância ideal.
87
uma experiência de natureza idealizada, fundada naquilo que definimos como crença
narcísica.
A leitura referente ao suposto momento inaugural relativo ao narcisismo “primário”
coaduna-se à análise de Lacan (1936/1990) a respeito do denominado “estádio do espelho”,
no qual o autor situa um lugar de antecipação da auto-imagem forjada a partir do discurso e
das nomeações advindas do outro. Sua definição do narcisismo, localizada na abordagem
do estádio do espelho, introduz olhar instigante a respeito da experiência cujo resultado
caracteriza-se pela antecipação de uma imagem, ou pelo “forjar” de um estado psíquico que
“se quer” permanente:
“(...) o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno se precipita da
insuficiência à antecipação e que, para o sujeito, apanhado na armadilha da
identificação espacial, maquina os fantasmas que se sucedem, de uma imagem
retalhada do corpo a uma forma que chamaremos ortopédica de sua totalidade e à
armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que vai marcar com a sua
estrutura rígida todo o desenvolvimento mental. Assim, a ruptura do círculo
Innenwelt ao Unwelt engendra a inesgotável quadratura das averiguações do eu” (p.
25).
Tal “precipitação” é o que faz frente à condição de “insuficiência” cujo estatuto
poderíamos traduzir como sendo a condição de “desamparo” atribuída pelo outro.
Apanhado no que Lacan chama de “armadilha da identidade”, o sujeito forja para si uma
imagem que, ancorada nas atribuições do outro, precipita uma estagnação oferecida pelo
júbilo da crença narcísica. A formação do eu assume, então, distinção precisa num
movimento de idealização ao qual esse mesmo eu se vê submetido:
“Essa forma seria antes, de resto, para designar como eu–ideal, se
quiséssemos fazê-la entrar num registro conhecido, neste sentido de que será também
a raiz das identificações secundárias, termo sob o qual reconhecemos funções de
normalização libidinal. Mas o ponto importante é que essa forma situa a instância do
eu, desde antes de sua determinação social, numa linha de ficção, definitivamente
88
irredutível para o simples indivíduo ou antes, que não se ligará assintoticamente ao
devir do sujeito, qualquer que seja o sucesso das sínteses dialéticas pelas quais tem
que resolver enquanto
eu a sua discordância com a sua própria realidade.”
30
(p. 22-
23).
Salienta-se a partir disso, que o que sustenta a quadratura “ortopédica” e “estática”
do eu é a formação do ideal um “secundário” que, conforme a idéia de “atraso”
(DERRIDA, 2002) inaugura uma “primariedade mítica” à qual o sujeito se referencia
quando da iminência constante da perda na esfera amorosa, seja na relação com um objeto
introjetado, seja na relação com um objeto externo. Nesses termos, o que mantém a
“coesão” imaginária, narcísica e identitária do eu é a condição da crença que articula o
sentido da onipotência e o objetivo a ser reconquistado subjacente à condição de perda do
amor inerente a tal posição motor a partir do qual se formam os ideais no campo do
sujeito.
No artigo de Freud sobre o narcisismo (op. cit.), o que aparece, contudo, como
surpreendente é que o próprio Freud acredita num estado absoluto de “armazenamento de
toda cota de libido”, e de formação de um “ego real”. Freud diz: “Esse ego ideal é agora o
alvo do amor de si mesmo (self-love) desfrutado na infância pelo ego real
31
(p. 101).
Esta idéia se mantém em “Esboço de Psicanálise” (1938) segundo a seguinte
afirmação:
“Tudo que sabemos sobre ela [libido] relaciona-se com o ego, no qual, a
princípio, toda cota de libido disponível é armazenada. Chamamos este estado
absoluto de narcisismo primário. Ela perdura até o ego começar a catexizar as idéias
[
Vorstellungen] dos objetos com a libido, a transformar a libido narcísica em libido
objetal” (p. 217).
Apesar disso, o mesmo Freud sinaliza o narcisismo como um movimento cuja
condição de possibilidade é precisamente o elemento decisivo da formação dos ideais, o
30
O último grifo é nosso.
31
Grifo nosso.
89
que implica desde a condição, por um lado de desamparo subjetivo e como que numa
outra face da mesma moeda – as rupturas e experiências fundamentais de perda pertinentes
ao enlace da relação eu-outro.
“O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal, o
qual, como o ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor. Como
acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se mostra
incapaz de abrir mão de uma satisfação que outrora desfrutou. Ele não está disposto a
renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando, ao crescer, se
perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio
julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela perfeição, procura
recuperá-la sob a nova forma de um ego ideal. O que ele projeta diante de si como
sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o
seu próprio ideal” (p. 101).
A partir disso, lançamos as seguintes indagações: o que se pode querer dizer, em se
tratando de subjetividade, ao se mencionar um “ego real”? Freud quer dizer que existe uma
essência verdadeira, mas perdida, do sujeito em seu “ser”? Ou que existiu uma
“concentração absoluta da cota de libido” formadora de uma instância real na mente? Como
afirmamos anteriormente, nosso fato clínico é a discursividade. Sendo assim, por que
permanecer com a idéia de ego real, em oposição a um ego ideal?
O ego narcísico é terminantemente ideal, e é isto mesmo o ego ideal e o ideal do
ego – o que sustenta a dinâmica psíquica em suas diferentes modalidades discursivas,
detectadas pela clínica. Desta feita, a referência de Freud a um “ego infantil”, não há como
a entendermos de outra maneira senão como uma retroprojeção, um sentimento de
onipotência outrora desfrutado como lugar de centralidade no discurso crente dos pais – ou
ainda, um sentido dado pelo outro, extremamente fugidio para o sujeito, entretanto. Esta
“unidade jubilosa”, esta “ortopedia” do narcisismo é contemporânea de uma exigência que
se configura como ideal. É precisamente um anseio do sujeito ao Outro: a unidade
narcísica. Esta unidade, atribuída pelo outro e forjada a partir da imagem e do olhar
90
lançados sobre o pequeno infante como atributo existencial, conduz a um efeito psíquico de
“totalização” – denominada por Lacan “ortopédica” –, e nada mais do que crente, na qual o
investimento irá se concentrar tentando uma estase que visa constantemente ao (re)encontro
do mito da unidade perdida, da paz aviltada, ou do sentido de onipotência movimento
que não encontra qualquer garantia de sucesso na esfera das relações objetais. A perda é
aqui a outra face do narcisismo, visto que o anseio pela unidade – esta última sendo
impossível tem como efeito um sentimento de perda a partir do qual o eu ideal (só-
depois) irá se constituir. Entendemos, no tocante a esta conjuntura, que é precisamente em
função da crença que ego e objeto irão tomar circunscrições próprias em termos de jogos
de linguagem. O eu narcísico (ideal) tem assim como referência fundamental a crença
narcísica.
Este caminho lógico de constituição da referência narcísica especular na formação
do sujeito não diz respeito, portanto, a um simples reconhecimento cognitivo da imagem,
mas antes, a uma invenção de si mesmo que visa ao rechaço de qualquer descontinuidade
experimentada na relação com o outro. São as atribuições discursivas e o investimento
efetuados pelo outro (Sua Majestade o Bebê) as condições de possibilidade para a
assimilação psíquica das significações sustentadas pelo objeto.
Ora, se o movimento de interpretação subjetiva gera uma tal “totalização” (crente),
esta podendo efetivar-se mediante a imago e as determinações do discurso do outro, tais
determinações servem, por outro lado como “sustentáculo” dos sentidos a partir dos quais o
infante se constituirá ulteriormente na medida de sua apropriação. Apropriando-se dos
sentidos nessa especularidade, ele constrói para si uma narrativa sempre capaz, a princípio,
de ser atualizada.
Ferenczi foi um autor que contribuiu de maneira importante para tal entendimento
teórico. O autor aborda a introjeção como um dos processos fundamentais do aparelho
psíquico, entendido por ele como aparelho que trabalha constantemente na direção da
“apropriação” de objetos para sua “introdução” no eu. Para Ferenczi, o psiquismo se
movimenta no sentido da introjeção e, se ele investe de libido um objeto é para, em última
instância, introjetá-lo. A introjeção é, propriamente falando, aquilo mesmo que
91
possibilitade do sujeito inscrever-se no jogo multifacetado do mundo da linguagem. Diz
Ferenczi (1912/1991):
“Descrevi a introjeção como a extensão do mundo externo do interesse,
auto-erótico na origem, pela introdução dos objetos exteriores na esfera do ego.
Insisti nessa “introdução”, para sublinhar que considero
todo amor objetal (ou toda
transferência
) como uma extensão do ego ou introjeção, tanto no indivíduo normal
quanto no neurótico” (p. 181).
A máquina de linguagem é o que justamente vai se desenvolver a partir de tal
empreendimento psíquico. Pinheiro (1995) assinala a importância de se conceber a
introjeção como movimento justificado precisamente pela apropriação dos sentidos dos
quais o outro é portador. Nesse âmbito, o adulto é caracterizado por Pinheiro como
personagem principal na obra de Ferenczi para a constituição do sujeito. Pinheiro (ibid.)
salienta:
“Ferenczi é incisivo: diz que unicamente através da introjeção é que um sentido
torna-se passível de ser apropriado. Dito de outra maneira, é a introjeção que, pela
inclusão do objeto, começa a povoar de representações o aparato psíquico. Neste
caso, no entanto, o objeto nada mais é que o suporte daquilo que visa a introjeção, ou
seja, a apropriação das representações investidas das quais o objeto é portador. São
as representações investidas pelo objeto e, por conseguinte, o próprio mundo
simbólico de que o objeto é portador, que a introjeção visa incluir na esfera psíquica.
O fator primordial para Ferenczi, é o fato de que a introjeção diz respeito à
linguagem, ao mundo de representações do objeto, à ordem de valores, ao
investimento e ao sentido, mais do que ao objeto em si introjetado como parece ser,
por exemplo, a proposta de Klein, quando faz uso de tal conceito. Em Ferenczi,o
objetivo da introjeção refere-se sobretudo á subjetividade; trata-se de trazer para a
esfera psíquica os sentimentos do objeto, este funcionando apenas como suporte das
representações já investidas que traz consigo. Essas representações carregadas de
sentido possibilitam ao aparelho psíquico apropriar-se do que lhe falta: o sentido. Se
tomarmos como exemplo a introjeção do seio, o fundamental deste processo será a
92
inclusão da noção de prazer ou desprazer deste seio em amamentar. O objeto seio
nada mais é que o suporte dos sentimentos, dos sentidos que traz consigo, estes si
essenciais. As primeiras identificações têm como função básica mediar – dando
sentido ao que não tem, possibilitando assim uma circulação interna capaz de
produzir outros sentidos” (p. 45-46).
Nesta leitura, o que o aparelho psíquico visa é a assimilação de novos sentidos, de
novas experiências de linguagem. Isto revela que, em primeira análise, são os sentidos de
prazer e desprazer, ou mais precisamente, seu diferencial, aquilo que é introjetado nesse
jogo narcísico. Acrescenta-se a isso o fato de que, nesse jogo do prazer-desprazer, o
sentimento da onipotência é o sentido por excelência da crença narcísica onipotência
tomada de empréstimo do outro, como demonstramos – levando-se em consideração que, se
o pequeno infante vê-se em posição de onipotência, é porque alguém lhe fala sobre isso e o
coloca simbolicamente neste lugar, a partir também de uma posição não menos
“onipotente” cujo poder produz performativamente a própria superexaltação do sentimento
de existência do infante.
A introjeção é, a partir disso, movimento de interpretação, integração e assimilação
simbólica das movimentações discursivas do outro. Introjetando, o sujeito se constitui. A
introjeção de novos sentidos além da crença narcísica possibilita ao sujeito inscrever-se na
ordem da pluralidade identificatória, constitutiva de um “precipitado de identificações”
(catexias objetais abandonadas) tal como aborda Freud (1923b/1996) em “O eu e o isso”.
Ela possibilita, nesse jogo, as fantasias subseqüentes à formação do sujeito. Pinheiro (ibid.)
esclarece: “Este aparelho que se apropria do sentido dado pelo objeto é necessariamente um
aparelho de interpretação do desejo do outro. Será capaz de forjar as identificações por
traço como as descritas por Freud na etiologia da histeria” (p. 47-48).
É precisamente pela iminência da perda do amor e das palavras do outro que o
sujeito em formação toma para si as significações atribuídas, buscando garantir nesse jogo
o processo identificatório, agora apoiado no ideal do eu.
93
O ideal do eu constitui, a partir da análise de Freud, o sustentáculo psíquico para o
afastamento da crença narcísica. Freud afirma:
“O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narcisismo
primário e margem a uma vigorosa tentativa de recupareção desse estado. Esse
afastamento é ocasionado pelo deslocamento da libido em direção a um ideal do ego
imposto de fora, sendo a satisfação provocada pela realização desse ideal” (p. 106).
O chamado ideal do eu é o que, em Freud, apresenta-se como movimento subjetivo
partir do qual o sujeito se inscreve no universo desejante, na medida em que abandona sua
“megalomania infantil” – esta sugestiva de uma busca pela satisfação sumária e imediata de
todos os anseios narcísicos. Ao abandonar a crença narcísica o sujeito organiza para si uma
forma de satisfação submetida ao ideal do eu, cuja referência acha-se conjugada à própria
organização da cultura. Freud (ibid.) esclarece: “O ideal do ego desvenda um importante
panorama para a compreensão da psicologia de grupo. Além do seu aspecto individual, esse
ideal tem seu aspecto social; constitui também o ideal comum de uma família, uma classe
ou uma nação” (p. 108).
32
O ideal do eu assume a característica de uma assimetria subjetiva, um “modelo” que
funciona como ideal a ser alcançado pelo sujeito num futuro possível, cuja configuração
simbólica se sobrepõe ao eu ideal da crença narcísica. Nessa equação simbólica, o sujeito
toma para si os traços do ideal do eu, diferenciando-se ao mesmo tempo deste último (Cf.
FREUD, 1923b/1996), na constituição de uma “pluralidade identificatória”.
Esses jogos de força, próprios da linguagem, revelam, portanto, um paradoxo: por
um lado, o projeto de unidade concernente à crença narcísica e, por outro lado, ali mesmo,
uma condição inescapável que constitui o sujeito como descentrado (BEZERRA, 1994). O
descentramento de si, o desdobrar-se em vários “eus” (Cf. COSTA, 1995a) a partir da
introjeção do adulto, deflagram a condição polivalente do precipitado de identificações, que
32
Esta idéia Freud retomou em “Psicologia das Massas e análise do eu” (1923a/1996), onde desenvolveu uma
rica reflexão sobre a relação entre o ideal do eu, as identificações e os laços sociais.
94
vai de encontro ao próprio projeto narcísico, nunca realizado, mas sempre idealizado, de
unificação.
Nesse âmbito definimos o eu-ideal como pura crença da unidade, contrapartida
fundamental de arrefecimento da pluralidade, mediante uma retroprojeção idealizada.
33
Aqui, se o sujeito não encontrou uma narrativa que sustente sua condição desejante –
condicionada pelo ideal do eu – o preço a pagar se faz expresso principalmente por
sofrimentos que, na atualidade, como veremos, são prevalecentes. Nesses termos, a relação
dual é definida precisamente pelo movimento de idealização que visa, em última instância,
ao estabelecimento de uma indiferenciação eu-outro. Se o sujeito, contudo, nega a diferença
e aliena-se no par mesmo que inscrito minimamente numa triangulação objetal visando
burlar a diferença e em última instância “retornar” ao absoluto mítico, é unicamente pela
via da própria diferença que ele poderá se salvar do mergulho mortífero de Narciso. Em
outras palavras, o sujeito seduzido pelo “balanço matemático” que fecha o absoluto
impossível do olhar materno jubiloso – é por isso mesmo atraído à estagnação e ao
movimento paradoxal da mortificação, caracterizada como outra ponta do fio da crença na
onipotência narcísica. A crença radical na essência da unidade é, portanto, o que constitui o
jogo narcísico, cujas conseqüências psicopatológicas são as mais variadas na experiência do
sofrimento subjetivo. Ela é impossível de ser sustentada na realização do laço social que
convida o sujeito a deparar-se com as insígnias de seu próprio crepúsculo e de sua própria
finitude no circuito desejante.
É sob os parâmetros desta análise que poderemos definir o lugar da depressão como
um dos principais aspectos psicopatológicos da clínica contemporânea. Como veremos
adiante, a depressão é experiência na qual o sujeito se referencia em seu sofrimento
psíquico, o qual revela o ponto crítico do gozo da indiferenciação fundada numa crença da
unidade, marcada necessariamente pela experiência subjetiva da perda. Esta apreensão será
33
O conceito de eu ideal vai, portanto, se diferenciar do eu como “precipitado de identificações”, discutido
por Freud na segunda tópica. O primeiro se constitui como movimento subjugado à crença narcísica, e o
segundo, como transformação a partir do afastamento desta última no complexo de Édipo. O eu como
precipitado de identificações é efeito da instauração do ideal do eu, tal como caracterizado por Freud
(1914/1996, 1923a/1996, 1923b/1996).
95
aprofundada à frente no sentido de se pensar a experiência depressiva como circunscrita ao
âmbito mesmo da crença narcísica. No presente momento fica frisado que o que está em
jogo nessa circunstância é a sinalização da perda como conjuntura inevitável do narcisismo
humano na ordenação cultural, circunstância pertinente a uma exigência de luto frente à
perda. Ou seja, nos interstícios da própria alienação do sujeito em sua rendição ao outro
por amor de si mesmo (introjeção) produz-se um sentimento de perda como resultado do
impedimento sumário de realização do projeto narcísico de onipotência, plenitude e
unificação.
Tais apreensões levam-nos a tecer considerações indispensáveis ao mapeamento das
questões centrais que envolvem este trabalho no percurso que visa à preservação do
pensamento psicanalítico. Sem isso não se pode aventar qualquer possibilidade de
aprofundamento cujo intuito se definiria pela busca de novos elementos na compreensão
dos movimentos depressivos articulados à dimensão da crença no contexto contemporâneo,
tomando aqui crença narcísica e depressão como os objetos específicos desta investigação,
de acordo com o que sinalizamos anteriormente. Os pontos cruciais a partir dos quais
podemos desenvolver perspectivas de reflexão acerca destas conjunturas no campo
subjetivo subjazem, pois, à condição dramática na qual o sujeito se insere quando de sua
formação, intrínsecas à entrada na ordem da cultura e às vicissitudes presentes, inerentes
ao seu próprio agir. Os apontamentos feitos até aqui revelam principalmente, como
pudemos constatar, que o narcisismo constitui uma dimensão a partir da qual o sujeito visa
assegurar seu sentimento de existência numa busca da certeza prometida pelo “sentido da
onipotência”. Tais apontamentos revelam, na contrapartida que o sujeito, na medida de sua
configuração civilizatória (FREUD 1930/1996), vê-se imbuído a abrir mão parcialmente
das exigências narcísicas e pulsionais, e dar destinação aos excedentes não aplicados, bem
como alcançar patamares sublimados, a partir dos quais a própria civilização se constrói. Se
por um lado, o eu, na sua formação a partir do isso (FREUD, 1923b), sai em busca do
objeto para satisfazer às exigências pulsionais, a formação do eu implica, por outro lado,
que este mesmo faça laço social e, com isso, abra mão da satisfação irrestrita. O
descentramento inevitável desta condição deflagra para o próprio sujeito a inconsistência de
96
sua “unidade” visto que posta em cheque pelos próprios movimentos que a vida
inelutavelmente impõe sob os auspícios da impermanência e da transitoriedade,
complexificadas por situarem-se num universo de significação. Sob o mesmo contexto, o
discurso daquele que outorgou o sujeito como existente pela via do amor narcísico (Sua
Majestade o Bebê) vê-se peremptoriamente em estado crepuscular. Procuraremos
demonstrar sob esta via que a depressão é a contrapartida dramática desta condição. Ela é,
não obstante, uma das mais insidiosas formas de responder patologicamente ao mal-estar na
cultura contemporânea.
97
3.2 – OS SIGNOS DA INDIFERENÇA: CRENÇA NARCÍSICA E ESTASE DEPRESSIVA
Podemos aprofundar estas considerações mediante o estudo de alguns aspectos de
imprescindível importância, relativos à obra freudiana, na depuração dos problemas
concernentes aos paradoxos da depressão.
Em “Uma criança é espancada” Freud (1919/1996) identifica importantes elementos
subjacentes aos movimentos fantasmáticos infantis os quais, guardadas suas
especificidades, revelam a circunstância específica de um momento subjetivo
extremamente relevante no percurso de vida dos sujeitos.
Freud discute ali algumas peculiaridades determinantes da fantasia infantil que
podem revelar aspectos decisivos para a compreensão do modo como o sujeito responde ao
impasse da onipotência narcísica. Freud diz (para tomar a discussão desse texto) que a
primeira fase da fantasia de flagelação infantil corresponde a uma imagem repetitiva na
qual uma criança é espancada por um adulto em geral o pai. A fase subseqüente
corresponde, segundo ele, à posição inconsciente na qual o sujeito se como sendo a
própria criança espancada, em que se faz verificar um retorno ao masoquismo e um
sentimento de culpa remetido ao desejo incestuoso. Na terceira fase, a fantasia se traduz por
um sentido de universalização dos personagens presentes, não havendo nela atribuições
identificatórias, mas uma abrangência que não especifica os atores da cena.
Este resumo serve para nos referenciarmos na discussão introduzida por Freud a
respeito das posições do sujeito frente ao desejo do outro, as quais caracterizam o rechaço
fantasmático de sua falta. Em outras palavras, Freud demonstra que a construção
fantasmática tem como função responder aos movimentos enigmáticos do outro que, ao
revelar sua condição desejante, deixa ao sujeito a tarefa de dar conta da angústia que o
retira de uma posição outrora desfrutada: a onipotência narcísica subjacente à condição
existencial de ser amado, o que introduz para o sujeito uma experiência específica
concernente à dimensão da finitude e da transitoriedade. Nossa análise firmar-se-á, pois,
sobre o primeiro momento da fantasia Uma criança é espancada”, acerca do qual Freud
aponta:
98
“As feições da menina estão fixadas no pai, que provavelmente fez tudo o
que podia para conquistar seu amor e, dessa maneira, propagou as sementes de uma
atitude de rancor e rivalidade da menina em relação à sua mãe. Essa atitude existe
lado a lado com uma corrente de dependência afetiva da mãe, e à medida que os anos
passam, pode atingir a consciência cada vez mais clara e forçosamente, ou dar
ímpeto a uma reação excessiva de dedicação à mãe. Não é, porém, com a relação
entre a menina e mãe que a fantasia de espancamento está ligada. Há outras crianças
à volta, apenas alguns anos mais velhas ou mais novas, de quem não gosta por toda
espécie de motivos, mas principalmente porque o amor dos pais tem de ser
compartilhado com elas, que, ademais, por essa razão, são repelidas com toda a
energia selvagem característica da vida emocional nessa idade. Se a criança em
questão é uma irmã ou irmão mais novo (como em três dos meus quatro casos), é
desprezada e odiada; ainda assim atrai para si a parcela de afeição que os cegos pais
estão sempre prontos a dar ao caçula, e isto é um espetáculo cuja visão não pode ser
evitada. Depressa se aprende que ser espancado, mesmo que não doa muito, significa
uma privação de amor e uma humilhação. E muitas crianças, que se acreditavam
seguramente entronadas na inabalável afeição dos pais, foram de um golpe
derrubadas de todos os céus da sua onipotência imaginária. A idéia de o pai batendo
nessa odiosa criança é, portanto, agradável, independente de ter sido realmente visto
agindo assim. Significa: ‘O meu pai não ama essa criança,
mas apenas a mim’
34
(p,.
202).
Aqui esta fantasia é nada mais que uma saída possível ao impasse da onipotência,
ou a forma subjetivada do sujeito manter, mesmo que na fantasia, sua posição simbólica no
discurso dos pais (onipotência narcísica). Em outras palavras, o sujeito tenta burlar a perda
mediante a fantasia de espancamento, correspondente à primeira fase de “Uma criança é
espancada”. Contudo, faz-se mister retomar esta análise sob os parâmetros até aqui
trabalhados, referentes ao sentido da onipotência e sua relação com a depressão. Uma
consideração que se adiciona às assertivas de Freud faz-se aqui necessária, a qual começa a
configurar o delineamento de nossa investigação. A análise nos mostra que a depressão está
34
Grifo do autor.
99
intimamente relacionada a um sentimento profundo de perda. A fantasia ‘Meu pai bate
numa criança’ é um recurso possível (apesar de não ser necessário, como discutiremos na
abordagem da depressão) para o arrefecimento da perda do lugar de onipotência, numa
tentativa do sujeito desviar-se de um estado depressivo. Esta primeira fase da fantasia é
propriamente uma saída a partir da qual se construirá a rede fantasmática como resposta ao
enigma do desejo lançado ao sujeito quando o outro desloca seu olhar e seu investimento,
expulsando-o da posição de centralidade em seu discurso.
De outra via, numa apreensão profunda acerca do desenvolvimento psíquico –
seguindo a própria linha lógica do pensamento psicanalítico a perda pode resultar numa
experiência de luto, cujo destino será definido exatamente por uma saída não menos
possível ao impasse da onipotência/crença narcísica o que proporciona ao sujeito uma
relação positiva com a com a transitoriedade, a diferença e o descentramento subjetivo.
Nesse âmbito, o agir que se estabelece na configuração existencial do sujeito é marcado por
um trabalho de luto correspondente à experiência da perda. Esse estado psíquico humano de
luto é portanto o “grão de areia no centro da pérola” (para tomar uma das expressões de
Freud em sua obra) a partir do qual o sujeito sustenta suas movimentações desejantes.
Assim como a fantasia de espancamento, o trabalho do luto a ser discutido mais
profundamente no capítulo IV não é também um movimento necessário de reação à
perda. Visamos assinalar aqui, uma possibilidade de reação psíquica que difere do luto,
expressa pelo movimento depressivo cuja incidência caracteriza uma vicissitude
sinalizadora da “crença narcísica”. Diferentemente de um trabalho de luto, a depressão
aguda, por referenciar-se na crença da unidade, constitui em sua própria radicalidade a
segunda face de uma mesma moeda: onipotência narcísica e estase depressiva. Eis,
portanto, o cerne da questão que articula crença, narcisismo e depressão, numa primeira
definição por nós perseguida. A depressão é um efeito da credulidade radical na essência do
perdido (crença narcísica). É o sentido da onipotência (expressão “primária” da estase
narcísica jubilosa, sustentada pelo estatuto retroativo da crença narcísica) que precisamente
estabelece tal ordem de coisas subjacentes à idealização do eu, este último também definido
como objeto sobre o qual o outro lançará (ou melhor, lançaria) seu investimento
100
incondicional. Diante da perda, o “ego infantil” forjado pela crença da onipotência e da
unidade narcísica depara-se com um impasse cuja saída vai definir a rota pela qual o sujeito
trilhará seu caminho.
Esse sentido da onipotência é precisamente o que Serge Leclaire (1975) denomina
“Criança Maravilhosa”. A criança maravilhosa é segundo o autor o fundamento da
experiência “primária” do narcisismo, “(...) é uma representação inconsciente primordial,
na qual se entrelaçam, mais densos do que em qualquer outra, os anseios, nostalgias e
esperanças de cada um” (p. 11). Esta figuração faz toda referência à crença definida como
aquilo que promove o elo narrativo da experiência de si na constituição de um sentimento
de identidade, sustentada pelo discurso e pela imagem tomados de empréstimo do outro.
Ela funciona como um centro de gravidade da experiência psíquica, um motor atrativo que
retrai e expande o universo ideativo.
Tal experiência contorna toda uma complexidade que Leclaire situará como o
paradoxo da existência psíquica: se por um lado esta “maravilha infantil” faz referência ao
júbilo da centralidade narcísica, do “tudo acontece por minha causa” ou “em função de
mim”, por outro lado remete ao inescapável da morte – por isso o paradoxo – na medida da
assunção jubilosa como primeira figuração estática do sentimento de onipotência. É o
sentido da onipotência produzindo, sob as rédeas do discurso, uma fabulação: o absoluto
impossível, desfrutado pela insígnia do outro que empresta o simbólico como matéria-
prima e o imaginário como efeito jubiloso da imagem perdida. Nesse âmbito, nada mais
preciso do que situar a dimensão intrínseca da morte no próprio nascimento da
subjetividade, tal como faz Leclaire. Nascer (psiquicamente) implica em morrer, e morrer
implica em nascer, sob o jugo de se fazer sujeito e sustentar o movimento desejante cuja
condição é a própria morte da “criança maravilhosa”. É o que Leclaire demonstra em sua
análise do mito infantil, aquele mesmo referido por Freud na menção ao ego-ideal, marcado
pela alienação que exige constantemente um trabalho de luto: mata-se uma criança.
Apoiados em Leclaire, poderíamos situar este trabalho psíquico de luto como sendo o mais
derradeiro movimento na experiência do sujeito, e cuja realização é levada até o último
101
momento, até o dia de seu próprio fim. A finitude é, nesses termos, condição paradoxal
para a assunção da própria vida psíquica.
É notável, entretanto, a dificuldade que o sujeito tem de “matar” sua própria criança
interna, ou seja, fazer o luto da criança maravilhosa. Leclaire afirma que o sujeito refugia-
se na “Criança Maravilhosa” (unidade narcísica) sob o risco paradoxal de acelerar o curso
inescapável de sua própria morte, de sua finitude objetiva. O paradoxo que aqui se instala
revela que, para continuar a existir psiquicamente, o sujeito tem de matar não apenas o
outro que o inventou, mas também, e principalmente, a si mesmo, num suicídio sem morte
cujo drama enuncia a trajetória da própria perda narcísica. Ou seja, o sujeito nasce
mergulhado numa crença narcísica sob o risco perene da morte caso não renuncie a esta
mesma crença que o fez existente!
Necessidade que Leclaire situa como função permanente do movimento desejante.
Se o sentimento de perda faz parte da própria experiência narcísica, começamos então, a
partir disso, a circunscrever as diferenças entre os seguintes conceitos: luto ou depressão
como destinos possíveis ao impasse da onipotência narcísica e da perda objetal.
35
Como
veremos, os contextos específicos nos quais a depressão se manifesta de maneira mais
violenta e crítica é a expressão máxima deste paradoxo, situado nos liames da vida e da
morte (subjetivas). Ela não é, como pode parecer, uma aderência direta à morte. Ela é, ao
contrário, a negação mais radical da finitude e do desejo, e a primeira voz de uma crença –
crença no absoluto e na onipotência cujo paradoxo faz-se visível pela outra face desta
moeda: a depressão é recurso do sujeito para não se deparar com a transitoriedade e para
tentar um retorno à experiência fictícia do absoluto figurado pela estagnação e pela
prostração uma parada que exige do tempo aquilo mesmo que ele não pode dar. Como
veremos, é por não renunciar ao absoluto narcísico (eu-ideal) que o sujeito deprime,
lançando-se, paradoxalmente aos liames da morte. Negando a diferença que o constitui, o
35
Não incluímos nesse rol a melancolia por considerarmos justamente que nela não se trata propriamente de
um destino dado ao impasse da onipotência narcísica, mas de uma problemática circunscrita
à própria
constituição do eu e do objeto
. Veremos como isso se quando fizermos a distinção entre esses diferentes
fenômenos subjetivos (luto, depressão e melancolia) de maneira aprofundada.
102
sujeito tenta, nos subterfúgios da crença narcísica, encontrar a condição impossível de seu
narcisismo perdido. Diante da perda, e atado radicalmente, entretanto, à crença da unidade
o sujeito atira-se à estagnação depressiva. A análise feita por Leclaire serve para situarmos
precisamente a circunstância complexa na qual o humano entra no universo não apenas da
subjetivação, mas num contexto mais específico, como veremos, da depressão.
Assim, na medida em que se especifica a condição na qual o sujeito se constitui em
sua contingência, e na medida em que se define a consolidação de uma tal ordem de coisas
através das quais o humano irá desenvolver sua forma de estar no mundo, não se pode
deixar de frisar as implicações da esfera da crença no circuito narcísico, o qual nada de
imperioso comporta, visto que nas amarras do sentimento de um “eu essencial” ou
“oinipotente” encontra-se uma contrapartida subjetiva cuja circunstância declinante faz-se
valer, na prática, como movimento de refúgio. Se, por um lado, o trabalho psíquico de
simbolização das perdas (luto) não pode ser sem dor psíquica, a depressão aponta,
diferentemente, para a contrapartida de uma crença na essência do eu e do objeto. O
trabalho de luto, como veremos, é condição para a elaboração simbólica da perda, e ele se
revela distinto em toda esta conjuntura. As características subjacentes ao luto e à depressão
apontam constantemente para a relação do sujeito com o outro, com a crença e com a
finitude (transitoriedade).
Aqui se começa a delinear, portanto, uma distinção teórica entre o luto, a depressão
e a melancolia. No capítulo IV, como sinalizamos, faremos um apanhado destas
concepções, frisando sua distinção a partir das considerações até aqui realizadas, e rumando
no sentido de atingirmos a especificação teórica do quadro depressivo em psicanálise.
Lançadas as bases para esta definição, consideramos, assim, uma experiência no
processo de subjetivação, marcada pela construção da rede psíquica que inclui um
sentimento de perda. Como dissemos, o sentimento de perda é a outra face da crença
narcísica, visto que o anseio pela unidade absoluta – esta última sendo impossível – tem por
isso mesmo como efeito um sentimento de perda a partir do qual o ego e o objeto (só-
depois) irão se constituir. Esta apreensão como a concebemos, não pode ser entendida fora
do trâmite da linguagem, a qual condiciona a posteriori o campo mesmo da crença
103
narcísica. Conforme salientamos neste capítulo, as implicações referidas à crença narcísica
revelam que sua operação dá-se eminentemente como efeito das movimentações
discursivas, cuja âncora é o narcisismo secundário dos pais. Como dissemos, é a
interpretação subjetiva que dá lugar simbólico e imaginário à crença da unidade, cujo cerne
representa o lugar da opulência, da imortalidade, e do próprio centro de gravidade de tudo
aquilo que existe, “de onde tudo partiu” e “para onde tudo vai”. Essa é a dinâmica mesma
da chamada “libido do eu”. Não é sem razão que Freud lança mão da metáfora da ameba
que, com seus pseudópodos, faz fluir a substância de seu corpo, num movimento de
retração e extensão de suas protrusões.
De Deus à ameba, essas metáforas retratam o que de mais importante impera nesse
circuito. O que deflagra, contudo, a experiência propriamente narcísica é o lugar a partir do
qual o eu, brincando com o discurso do outro de ser Deus, é expulso do paraíso carregando
dentro de si o crédito não quitado e o credo justificado por amor ao próprio discurso do
outro (o que não passa de um amor de si mesmo). Tampouco, sequer a condição de ameba
lhe conferiria o status de uma existência assexuada cuja morte não se faria inscrita pelo fato
de que, na auto-reprodução, esse mesmo ser se configura como “imortal”. O que se faz
valer no drama da cena egóica é a sua condição transitória, visto que tal “unidade” não se
confirma no tempo, não vence a imortalidade, não restando ao sujeito outra coisa senão
inventar alguma forma de estar no mundo, contudo sem as garantias daquele mesmo que, a
princípio, o inventou.
Existir (no discurso) implica, portanto, uma contrapartida subjetiva de sofrimento,
36
condicionado pela crença na essência do eu e do objeto, um movimento psíquico cuja saída
adiantando nosso aprofundamento posterior pode tomar dois destinos possíveis: o da
ação, ou o da estagnação.
37
36
Relembrando que a idéia de sofrimento no campo psicanalítico faz oposição à idéia de “transtorno” no
campo médico.
37
Esta última condição (estagnação) circunscreve-se tanto na tentativa sintomática de suturação das fendas
abertas no narcisismo quanto na forma cristalizada de existência característica das depressões graves, tema a
ser aprofundado no capítulo que se segue.
104
Atingimos assim, os elementos teóricos propriamente ditos para fundamentarmos a
localização da depressão, o que não poderia ter sido feito sem passarmos pelas apreensões
até aqui implementadas sobre a crença e o narcisismo. O enfoque referencial freudiano
fornece, nessas vias, terreno fecundo pertinente aos seus achados mais relevantes, o que faz
desta apreensão um caminho possível para o entendimento do campo psicopatológico
humano.
A justificação teórica aqui em andamento leva a uma dificuldade radical de se
definir um enquadramento nosológico puramente descritivo para um fenômeno cuja
dinâmica encontra nos trâmites subjetivos sua condição de possibilidade. Como ficou
constatado no primeiro capítulo, a investigação sobre as formulações dos manuais
psiquiátricos revela que o fenômeno depressivo navega de maneira importante por quase
todas as psicopatologias, tornando-se imprescindível a definição sobre o seu lugar no
trâmite dessas classificações. Certamente, fazemos oposição à exclusão da singularidade
discursiva, mesmo porque não entendemos que a dor de “ser” especialmente no ponto
mesmo em que a vida apresenta-se como transitória e destituída de qualquer finalidade
38
,
mesmo que isso implique em sofrimentos aviltantes – deva ser tomada como “transtorno”.
Peres (2003) já coloca sobre isso: “Como classificar um sentir que não se descola de
quem sente? Como generalizar a dor de ser que constitui e singulariza?” (p. 8). Seguimos
nessa linha de pensamento, a qual condiz ao estatuto singular de cada discurso. Entendemos
que este último configura-se como cerne da construção da história subjetiva na cultura cujo
alicerce constitui-se numa narrativa específica sobe o existir.
Assim, conforme demonstramos no primeiro capítulo deste trabalho, os quadros
psicopatológicos referentes à classificação psiquiátrica dos distúrbios mentais integram
uma distribuição nosográfica que destaca os chamados “Transtornos de Humor” – inseridos
no campo das “desordens afetivas” em Transtornos Depressivos predefinidos. No nosso
entender a apreensão dessas formas classificatórias não passa, como frisamos, por uma
linha puramente descritiva, ainda que na superfície da observação a pretensão seja esta. Em
38
Motivo mesmo pelo qual o sujeito põe em marcha o movimento de construção de sentidos e de
diagramação da existência em jogos de linguagem possíveis como, por exemplo, o da
teleologia.
105
contrapartida, entendemos os movimentos psicopatológicos humanos como atrelados aos
percalços da relação subjetiva com o outro, donde se concebe a importância inalienável da
subjetividade na constituição de um quadro psicopatológico cujo liame, como vimos, é
condicionado pelo contexto depressivo inscrito na ordem civilizatória humana. A depressão
se encontra imbricada de maneira importante nas psicopatologias em geral. Se ela atinge
níveis insuportáveis e crônicos, relacionados a contextualidades subjetivas contemporâneas,
cabe a nós localizarmos a singularidade do sujeito no drama de sua própria crença
narcísica. Podemos afirmar, nesses termos, que a depressão pode se fazer presente nas
patologias psíquicas em geral, mesmo que não apareça em sintomas explícitos ou agudos.
Basta constatar a predominância da incidência do fenômeno depressivo nas patologias em
geral, o que se faz presente no delineamento dos próprios manuais psiquiátricos, nos quais
aparece um cruzamento acirrado dos sintomas depressivos com a grande maioria das
demais patologias conforme demonstramos. Pensamos que isto não é por simples ordem do
acaso e, se não pretendemos nos localizar em um realismo ingênuo, é necessário que
definamos as linhas da reflexão teórica atadas à sua própria aplicabilidade, sem que
caiamos na ilusão de um delineamento realista e essencialista dos fenômenos psíquicos no
perigo de nos estagnarmos em bases aparentemente sólidas de investigação. De fato, tanto a
histeria, quanto a neurose obsessiva e a melancolia podem apresentar sintomas depressivos
graves, que diferem entre si em termos metapsicalógicos e subjetivos. Veremos que existe
na contemporaneidade, da mesma forma, uma modalidade muito peculiar de depressão,
bem como de relação com o desejo e com a crença que difere da forma histérica, obsessiva
e melancólica. Isto faz com que não nos isolemos num olhar reducionista patrocinado pela
medicina e pela farmacologia quando esta circunscreve o quadro depressivo aos contextos
fisiopatológicos supostamente determinantes. Outrossim, o problema se acirra na
constatação do fato de que nos manuais psiquiátricos a melancolia se acha sumariamente
dissolvida no conceito de depressão o que, do ponto de vista psicanalítico, não procede em
termos de especificação e distinção mais aprofundada das formas de sofrimento narradas
pelo sujeito em sua experiência singular. O apontamento dessas problemáticas não adere,
obviamente, a um radicalismo que entra muitas vezes num movimento inverso de abolição
106
da importância dos fármacos em determinadas circunstâncias clínicas agudas e
insustentáveis. Estamos apenas questionando aqui, como dissemos, um biologicismo
exaberbado, existente e muitas vezes prevalecente no campo médico, que exclui a dimensão
subjetiva do ato clínico. É importante, pois, que não se perca de vista a dimensão subjetiva
aí presente, especialmente no que concerne à importância da retomada ou mesmo da
construção da narrativa. Estas últimas constituem-se como marca específica da experiência
clínica, necessária ao estabelecimento de novas vias de encaminhamento subjetivo quando
o que está em questão para o sujeito é propriamente sua posição ante ao fato inexorável da
vida, da existência e da morte. Aqui, a concepção de sujeito está decisivamente presente.
Tomamos, portanto, a decisão de conceber a depressão não como “transtorno”, mas como
modalidade de sofrimento na cultura contemporânea.
Esta discussão engendra, pois, os parâmetros afirmados no pensamento psicanalítico
cuja reflexão leva a possibilidades positivas de produção teórico-clínica específicas à
proposta freudiana. Na busca de um caminho teórico sobre tais análises, enfocaremos a
partir de agora os contextos críticos do sofrimento humano no sentido de nos voltarmos ao
delineamento aprofundado dos problemas concernentes à depressão, em articulação ao luto
e à melancolia no quadro da teoria psicanalítica.
107
3ª Parte
A Depressão e a Contemporaneidade
108
CAPÍTULO IV – VICISSITUDES DA PERDA: DEPRESSÃO, LUTO OU
MELANCOLIA
A complexidade de coisas que envolvem a relação entre a crença narcísica e a
depressão conjuga a necessidade de definição desta última frente a outras formas de
sofrimento cujas características são muitas vezes similares, contudo distintas. Tal é o
problema teórico-clínico que se apresenta quando nos deparamos com afecções como a
melancolia.
Como sugerimos, o sentido de onipotência narcísica, e sua contrapartida de êxtase /
estase depressiva, são propriamente crenças (constituídas em jogos de linguagem) que
investem na idéia de unidade e essência das coisas e negam a diferença que as constitui
num campo relacional e contextual (Cf. DERRIDA, 2002; RORTY, 1997). Por outro lado,
não psiquismo sem crença, posto que ela define-se como a própria regra para a ação
humana (Cf. JAMES, 1907/2005). A conjuntura específica da crença narcísica é elemento
que complexifica a forma humana de viver ou mesmo sobreviver no mundo da linguagem.
A psicopatologia não poderia estar fora deste quadro complexo, posto que cabe ao
sujeito dar um destino a esta condição de maneira singular. É a partir dessas considerações
que procuraremos estabelecer uma importante distinção no campo psicanalítico: Luto,
Depressão ou Melancolia, conceitos que até hoje são muito freqüentemente confundidos,
ou tomados como paradigmas recíprocos. Como veremos a seguir, os problemas que
envolvem a especificidade de cada um desses fenômenos sugere em larga escala um
delineamento que tende a conceber a depressão sob o paradigma estrito da melancolia, ou
não circunscreve parâmetros aprofundados de análise da primeira. Procuraremos
demonstrar que, ao contrário dessas tendências teóricas, tais categorias psíquicas são
mutuamente excludentes, não restando sobre isso outro caminho senão a análise de seus
problemas teóricos e as saídas para uma abordagem da depressão na clínica psicanalítica
contemporânea.
109
4.1 – PROBLEMAS E IMPASSES NO CAMPO PSICANALÍTICO: ALGUMAS QUESTÕES
SUSCITADAS
O problema da distinção entre depressão, luto e melancolia não é simples, nem
óbvio. Até hoje no campo psicanalítico ocorre, como afirmamos, consideráveis
controvérsias, sobretudo quando se tem como objetivo delimitar clinicamente um quadro
melancólico, em contraste com um quadro depressivo grave e difuso. Como declara
Delouya (2002) num trabalho sobre depressão: “Ainda hoje, a distinção entre depressão e
melancolia se faz com dificuldade” (p. 35).
A isso se soma o movimento psiquiátrico que dissolve problematicamente a
melancolia no diagnóstico da depressão, como também discutimos. Em contrapartida, no
campo psicanalítico a melancolia tende a assumir lugar de destaque dentre os principais
contextos clínicos, diferentemente dos manuais psiquiátricos, apesar da dificuldade que
muitas vezes se faz notar no enquadre de sua especificação em psicanálise. A melancolia
caracteriza-se, colocando aqui de maneira bastante introdutória, por um conflito entre as
instâncias superegóica e egóica, marcando-se nisso a auto-flagelação subjetiva, a culpa
mortificante e a expectativa delirante de punição (FREUD, 1917/1996;1923b/1996).
Por outro lado, a noção de “depressão” passa por problemas complexos no próprio
campo psicanalítico, especialmente quando se coloca em questão a definição de sua
especificidade clínica. Este problema se encontra, por exemplo, na abordagem de Pierre
Fédida (1999) quando, na busca de uma análise realizada à luz do conceito de luto,
relaciona a depressão diretamente ao quadro melancólico, confundindo as três dimensões
psíquicas. Para o autor, a existência de um “agir depressivo” define-se como uma
psicopatologia do luto depressivo diferenciado do luto comum relativamente à perda
do objeto (FÉDIDA, op. cit.). O deprimido agiria segundo o autor sob o signo da repetição
no sentido de colocar em presença o próprio ausente, marcando nisso a tragicidade da perda
num ato imaginariamente suicida que visa, em última instância, ao assassinato do próprio
objeto perdido movimento característico do quadro melancólico segundo Freud
(1917/1996).
110
Fédida pontua sobre isso a existência de um trabalho de luto específico ao que ele
chama de “depressão” em sua obra. Essa característica é entendida por ele como um
paradoxo em relação ao luto comum. Nesse sentido, Fédida entende a depressão como uma
defesa contra a melancolia (ibid.). O luto seria em relação à ausência do objeto, um “luto
de si” na forma do ausente. Haveria nesse plano um momento em que se apresentaria uma
mania o agir que toma imaginariamente o objeto perdido como modelo num
subsequente cair depressivo. A imobilidade corporal propriamente depressiva que se segue
a essa “forma maníaca” surgiria, no entendimento de Fédida, como uma defesa à própria
atividade maníaca que representava o ausente trabalhando o sujeito contra o horror de
uma “presença” maciça do ausente em seus próprios atos.
Ora, Fédida concebe esta configuração definida por um “assassinato de si” num
subseqüente cair depressivo como exemplo de uma relação direta entre a depressão e a
melancolia. Contudo, a existência de casos em que a depressão aguda aparece de maneira
desatrelada de uma configuração melancólica propriamente dita desponta na clínica como
problema de difícil abordagem.
Esta questão leva-nos a questionar aspectos relacionados principalmente à
diferenciação entre casos de depressão crônica e casos de melancolia. A depressão
abordada por Fédida na obra mencionada, por exemplo, é vista sob o parâmetro da
melancolia, não havendo uma distinção teórica precisa entre as duas configurações
patológicas. Nesse âmbito, fica sinalizada a necessidade de circunscrição dos fatores em
jogo numa resposta depressiva em casos nos quais os fatores melancólicos estariam
ausentes. Tal problematização no campo psicanalítico reside no fato de que esses dois
quadros (depressão e melancolia) são por vezes tomados como diferenciados e, por vezes
são abordados de maneira quase indistinta. Na obra de Fédida, a depressão é concebida
como uma defesa circunscrita à dinâmica melancólica, o que não ajuda muito na distinção
entre esses dois quadros psicopatológicos. Ademais, Fédida concebe uma idéia metafísica
de luto quando define a “defesa depressiva” como um luto patológico, idéia que subentende
um “desvio de ordem” na própria experiência do luto, subjacente a um “Bem” apriorístico
relacionado ao seu movimento (PINHEIRO, 2006).
111
Estas questões partem, assim, da detecção de casos de depressão crônica e aguda
que não subjazem ao modelo melancólico do conflito ego/superego, e de discursividades
cujo traçado existencial não revela uma problemática na constituição do eu e do objeto (Cf.
LAMBOTTE, 1997), mas que apresentam um tipo de relação com o desejo, a morte e a
transitoriedade, marcado por fatores ainda não bem explorados pela literatura psicanalítica.
A abordagem psicanalítica da depressão não alcançou ainda a precisão necessária sobre
estas questões. Entendemos que, sob os parâmetros estritos da melancolia, o trabalho
teórico sobre depressão torna-se limitado, principalmente quando nos deparamos com casos
em que a depressão, apesar de crônica, não oferece indícios para uma caracterização
diagnóstica melancólica. Nesse âmbito, faz-se mister assinalar que, no campo psicanalítico
opera-se muitas vezes um movimento inverso ao da psiquiatria: enquanto esta dissolve a
melancolia no diagnóstico da depressão, a psicanálise trata muitas vezes desta última como
problema fundamentalmente circunscrito ao quadro melancólico, ou não apresenta
elementos teóricos para uma distinção precisa. Outrossim, a existência de casos de
depressão crônica assevera exatamente a necessidade de se problematizar a confusão que
muitas vezes se inscreve em nosso campo.
Neste mesmo terreno teórico o problema se desdobra em dificuldades desse tipo,
sobretudo quando se toma o afeto do luto como eixo paradigmático na abordagem dessas
patologias. A questão do luto foi trabalhada de maneira direta em alguns momentos
importantes da obra freudiana, sobretudo em “Luto e Melancolia” (1917/1996), onde é feita
a distinção precisa entre essas duas manifestações psíquicas (afeto do luto e patologia
melancólica).
De uma forma geral, colocando aqui de maneira introdutória, na melancolia o
sujeito identifica-se narcisicamente ao objeto perdido que, por ser frustrante, é odiado, num
movimento de destruição, com todo o peso da ambivalência característica dessas
patologias. Um assassinato de si começa a se configurar nessa dinâmica, sendo muitas
112
vezes o suicídio a única condição de arrefecimento para o movimento de destruição do
objeto.
39
A distinção lançada por Freud entre luto e melancolia pode, por outro lado, servir
como gancho inicial para uma análise mais detida da patologia depressiva, sobretudo
quando se leva em consideração seu lugar na clínica contemporânea (Cf. PINHEIRO,
2005). Apesar de distinguir luto de melancolia, Freud não aborda de maneira aprofundada o
problema da depressão, a não ser quando faz menção à neurose obsessiva, em que a culpa
pelo ódio ao pai constitui o cerne da ambivalência no momento da perda objetal e o eixo
organizador de toda uma esfera sintomática articulada pelo temor do superego. Nesses
casos, Freud afirma, não há uma retirada da libido para o eu, podendo o sujeito deslocar seu
investimento para outro objeto.
Ora, as considerações colocadas revelam que o problema de sua distinção não foi
ainda resolvido. No campo mesmo do narcisismo e da constituição primordial da relação
especular encontramos controvérsias teóricas que acirram exatamente a problemática aqui
em pauta. Identifica-se uma discussão complexa acerca do estatuto metapsicológico no
terreno do narcisismo que conteria em sua especificidade os elementos necessários para tal
distinção. Contudo, sua realização, apesar de tentada, permanece em suspenso. Delouya
(2002) na obra “Depressão estação psique” referencia por exemplo o problema da
depressão na formação do eu-ideal, afirmando que:
“(...) a depressão nos parece associada mais com o Eu-ideal, como primeiro estágio
da perlaboração do narcisismo primário (...). a melancolia vincula-se a uma fase
posterior da constituição do Eu, que diz respeito às identificações secundárias. Tanto
Abraham como Freud nos mostram como a sensibilidade narcísica do melancólico
deve-se à dificuldade em introjetar, integrar e assimilar o objeto para dentro do Eu,
expondo este último a um massacre culposo por parte do supereu” (p. 35-36).
39
Todos estes aspectos serão retomarmos quando aprofundarmos adiante as especificidades da melancolia, do
luto, e da depressão.
113
Delouya tenta definir então a depressão, em contraponto à melancolia, como o
resultado de um problema no movimento de circunscrição imaginária relativa à atribuição
existencial do outro no estádio do espelho (DELOUYA, op. cit.). Para Delouya a
constituição do eu-ideal tornou-se comprometida nesses casos, dado que a relação com a
mãe teria se caracterizado pelo fracasso do investimento narcísico primordial e da
atribuição existencial no campo do sujeito. Ora, esse fator metapsicológico Lambotte
(1997) localiza como sendo justamente aquele que se encontra no cerne da dinâmica
melancólica! Lambotte afirma que o melancólico é justamente um sujeito cujo primeiro
olhar (materno) o teria atravessado sem circunscrevê-lo, sem entrar na função especular de
atribuição existencial e investimento narcísico. Nesse sentido, o melancólico, identificado
ao nada e constituído numa “moldura vazia” (ibid.), seria “absorvido” pelo objeto perdido,
e o aviltamento superegóico relacionado ao ideal do eu seria justamente o resultado
inelutável da identificação narcísica com a mãe “toda-potente”, o objeto não introjetado
porque fracassado em sua função de investimento e formação do eu-ideal. Lambotte afirma:
“Além da criança, o olhar materno se dirigiu para o horizonte que um imaginário
desiludido sem dúvida continuava habitando; e como se substituir este imaginário, tal
como a criança sondando o céu dos humores paternos, com os fantasmas que não
tiveram nem a forma nem a consistência suficientes para exprimir o que teria
permitido à troca mãe-criança inscrever-se em um espaço, tão enganador quanto
fosse? Nada vem delimitar o espaço do sujeito melancólico, nada vem colorir o
reflexo especular com as cores da afetividade; e este nada ao qual o sujeito diz
parecer-se aparenta-se ao nada do aniquilamento, o das pulsões de morte que,
desprovidas de toda ligação libidinal erótica, dão livre curso a sua expansão” (p.
200).
Percebe-se com isso a existência de um problema teórico complexo, não resolvido
por Delouya em sua obra sobre a depressão. A hipótese lançada por Delouya acerca da
relação entre eu-ideal e ideal do eu no diferencial depressão/melancolia não é ali
aprofundada quanto aos fatores que as distinguem efetivamente.
114
Assim, para tocar na relação entre o narcisismo e a depressão, destacamos uma
passagem de Pinheiro (2005) na qual ela afirma:
“O paciente depressivo fala do que perdeu, neste sentido ele, como o
enlutado, sabe o que perdeu. Refere-se a uma perda de quem foi um dia. Fala de
uma perda de si mesmo. Ele já foi alegre, ou espontâneo, ou entusiasmado, ou
orgulhoso de si mesmo. Mas isso foi perdido em algum momento. Nem ele não sabe
precisar quando foi. Nesses relatos, de maneira geral, é possível fazer uma
aproximação desta perda de si como uma perda que remete necessariamente à
questão da identidade e dos ideais. Trata-se da perda de uma imagem de si
geralmente descrita sem possibilidade de metaforização. É uma imagem física de si
mesmo que é trazida ao falar deste passado.” (PINHEIRO, 2005).
Partindo-se deste parâmetro e aprofundando esta questão, procuraremos demonstrar
que a especificidade do quadro depressivo grave revela casos em que o sujeito, apesar de
forjado pelo discurso do outro, encontra-se aderido a uma crença radical na auto-imagem
outrora perdida num passado supostamente irretocável.
Para tecermos a circunscrição necessária e superarmos esses impasses teóricos,
passaremos agora ao estudo de cada um desses fenômenos (luto, depressão e melancolia), a
fim de delimitarmos suas especificidades. Para tanto, procuraremos deslindar exatamente a
relação que o sujeito experimenta com sua própria crença narcísica, na definição da
circunstância específica do estado depressivo crônico em contraste aos esquemas
metapsicológicos da melancolia.
115
4.2 – LUTO, DEPRESSÃO E MELANCOLIA: POR UMA DISTINÇÃO
Nessa via, proporemos aqui uma definição aprofundada que concerne à distinção
entre entre esses fenômenos. Estas distinções, alvo fundamental do presente capítulo, serão
abordadas mediante a sistematização que julgamos necessária no trâmite das questões que
envolvem o sofrimento psíquico humano.
Para efeito de circunscrição temática, tomamos desde o início como eixo a
dimensão discursiva que, conforme vimos salientando, é determinante na montagem da
experiência subjetiva. A investigação que objetivamos realizar sobre tal distinção pauta-se
numa forma do sujeito se situar no discurso cuja referência toma a questão da imagem de si
como cerne do problema. Partimos então da distinção discursiva que se configura por eu
fui algo ou alguém e hoje não sou maispresente depressão (Cf. PINHEIRO, 2005) e
eu não sou nadaou eu não sou nem nunca fui nadacaracterístico da melancolia (Cf.
LAMBOTTE, 2001).
Para atingirmos esta discussão, detalharemos a princípio especificamente o campo
da melancolia a partir das teorizações de Freud, Torok, Pinheiro e Lambotte. Este estudo
servirá para uma confrontação posterior com os principais aspectos teóricos que envolvem
a experiência depressiva grave articulada ao que estamos denominando crença narcísica.
Tais exposições alcançarão no subcapítulo 4.2.5 uma discussão aprofundada sobre os eixos
discursivos destacados acima.
4.2.1 – A melancolia: um paradigma
A melancolia remonta a textos antigos, tanto a textos hipocráticos quanto aos da
filosofia grega, nos quais se delineiam parâmetros de análise relacionados a problemas
circunscritos ao corpo. Supostamente ligada à fisiologia, esta manifestação era encarada
pelos antigos como efeito de distúrbios decorrentes da bílis negra (melaine chole), o que
etimologicamente deu origem ao termo “melancolia”. Lambotte esclarece:
116
“A etimologia grega da melancolia,
melas (negra) e chole (bile), nos indica
a fonte do que temos o hábito de designar antes como um traço de caráter do que
como uma doença propriamente falando, a saber, a bile negra que entrava na
composição do corpo com os três outros humores: o sangue, a linfa ou o fleuma, e a
bile amarela ou a pituíta. Saber-se que esses líquidos correspondiam,
respectivamente, na fisiologia de Hipócrates, aos temperamentos sanguíneo,
fleumático e colérico e a ruptura de seu equilíbrio era devida, na maioria das vezes,
ao aumento de “substâncias negras” nefastas que obscureciam a razão e arrastavam o
sujeito numa espécie de loucura ou frenesi” (LAMBOTTE, 2000, p. 32).
A bílis negra seria o motivo dessa manifestação, apesar das ambigüidades atribuídas
ao termo melancolia, o que se acirrava nos questionamentos dos filósofos a respeito de sua
alta incidência entre aqueles que se punham a indagar sobre a “verdade”, a “existência”, a
“política”, a “poesia” (ibid.). Não obstante, a melancolia era associada pela medicina
hipocrática aos problemas da bílis quando de seus efeitos “nefastos” sobre a atividade
racional, a capacidade de julgamento e o comportamento habitual do indivíduo.
“Por isso, a melancolia reveste-se essencialmente, para os Antigos, do
aspecto de uma excitação furiosa do pensamento, entendido como a capacidade de
raciocinar, que faz parecer com a embriagues do vinho, aquela que faz cair as defesas
e que revela o indivíduo sob uma luz insuspeita, seja acusando grosseiramente certos
traços de caráter, seja, ao contrário revelando um comportamento inteiramente
oposto àquele que lhe era habitual” (ibid., p. 33).
Esta acepção confere à “perda do juízo” ou da “razão” uma idéia de
“congestionamento”, que passaria supostamente pelas complicações da esfera fisiológica
para a esfera da conduta e do pensamento. Tal linha de entendimento deu início a
concepções que sofrem até hoje sua influência, sobretudo no que diz respeito à noção de
intermitência e “transbordamentos” nos estados de humor.
Contudo, os escritos filosóficos (Cf. Lambotte, ibid.) demonstram uma outra
acepção sobre a questão melancólica, dando a entender que esta seria uma manifestação
117
tanto da “alma” quanto do “corpo”, o que abriu possibilidades de se dirigir tais estudos para
outras esferas de compreensão. Aristóteles asseverava uma relação entre a melancolia e a
ordem da natureza, relacionando-a, a umtempo, com o calor físico (concebido como um
princípio regulador do organismo), e com um estado de ânimo. Para Aristóteles, a
melancolia está ligada ao próprio ethos, condição última da natureza humana, o “Bem” para
o qual todas as coisas tendem em sua condição metafísica de perfeição. Em Aristóteles, a
melancolia é a própria contrapartida da idéia de distúrbio: ela é condição de controle e
equilíbrio alcançado na atividade filosófica. Está ligada ao thaumatzén, espanto conjugado
à inquietação do filósofo, momento mesmo em que o homem integra-se definitivamente à
sua própria natureza, seu ethos.
No decorrer do tempo (Idade Média) esta visão modifica-se (KRISTEVA, 1989). A
melancolia começa a ser abordada como problema de ordem mística. Kristeva situa: “Por
um lado, o pensamento medieval volta às cosmologias da Antiguidade tardia e liga a
melancolia a Saturno, planeta do espírito e do pensamento. (...) Por outro lado, a teologia
cristã faz da tristeza um pecado” (p. 14-15).
Entretanto as variações na concepção de melancolia, a utilização de meios
farmacêuticos, além dos meios místicos no combate desse problema esteve sempre presente
de maneira crescente:
“É assim que podemos seguir (...) toda a gama dos remédios administrados
aos doentes que, até a segunda metade do século XVIII, com A. C. Lorry, têm tanto a
ver com as qualidades intrínsecas da poção quanto com uma tradição mágica ainda
potente. É, do heléboro soberano à perigosa mandrágora hipocrática, do ‘abalo
profundo’ de Celso aos cataplasmas de Soranus de Éfeso, dos banhos de águas
termais de Areteu da Capadócia aos ‘alimentos alegres de Galeno, das drogas
compostas de Constantino, o Africano aos remédios básicos ou ácidos de Du Laurens
e até a virtude do leite revalorizada por Sydenham no século XVII, toda uma série de
preparados deixados à iniciativa do receitante e da tradição, que tendem, todos, a
restituir ao doente seu dinamismo ao buscarem aliviá-lo do peso dos líquidos
conservados em profusão excessiva. A crença nos benefícios dos revulsivos para
118
aliviar os melancólicos, segundo J. Starobinski, persistiu mesmo quando se parecia
ter definitivamente revogado a teoria humoral, tal como confirma, por exemplo, o
uso ainda recente de sanguessugas” (LAMBOTTE, op. cit., p. 35-36).
Historicamente, o movimento que se desenvolveu no decorrer das investigações
sobre esta afecção atesta a intermitência constante entre uma teoria “humoral” e uma teoria
“nervosa”. Segundo Lambotte (2000), estas teorias conviveram até a formulação de P. Pinel
a respeito de um “falso julgamento” do melancólico sobre seu próprio corpo. Contudo,
Lambotte (ibid.) salienta:
“(...) os autores do início do século XIX, a fim de romperem inteiramente com a
tradição dos humores, baniram do seu vocabulário a própria palavra melancolia, que
substituíram por “monomania triste” ou “lipemania”. O vocábulo “melancolia” foi
portanto deixado aos filósofos e aos poetas, daí talvez essa suspeita que ele sempre
suscita na psiquiatria quanto à diversidade das formas patogênicas que ele designa e
que a ciência moderna reduziu quase sempre à forma única da psicose maníaco-
depressiva” (p. 37).
40
O movimento que toma a melancolia como uma manifestação eminentemente
patológica se fortalece na Psicopatologia de Kraepelin (2001), apesar de seu descritivismo
rigoroso. Kraepelin abriu ao mesmo tempo espaço para a discussão acerca da bipolaridade
relação entre os fenômenos melancólicos e maníaco-depressivos (estes últimos
distinguidos do quadro melancólico hoje por muitos autores). Este movimento foi
aprofundado nos estudos de Kahlbaum, Griesinger, Falret, Baillarger (Cf. VERZTMAN,
op. cit.), acabando por construir bases fortes para as classificações psiquiátricas atuais,
conforme apontamos na introdução deste trabalho. Contudo, nesse ínterim (início do século
XX), a melancolia era tomada por Bleuler como fenômeno ainda inexplorado
40
Como vimos, a psiquiatria não abandonou esse movimento, mas acirrou-o no fim do século XX,
dissolvendo a melancolia no chamado “Transtorno Depressivo”, sendo a psicose maníaco-depressiva
definitivamente transferida para a categoria de “Transtorno Bipolar”, os dois inscritos no grupo dos
“Transtornos de Humor”.
119
(LAMBOTTE, 2000). Foi precisamente Freud quem desenvolveu um estudo efetivamente
teórico sobre a melancolia, trabalhando eminentemente os aspectos de ordem subjetiva ali
presentes, já havendo nesse tempo iniciado sua teoria do inconsciente, da libido e do
narcisismo.
4.2.2 – A perspectiva psicanalítica
No pensamento de Freud a melancolia foi abordada inicialmente de maneira
conjugada aos seus primeiros delineamentos sobre as neuroses em articulação aos seus
estudos sobre as chamadas neuroses atuais, num período pré-psicanalítico. No “Manuscrito
G” (cartas a Fliess) Freud (1892-1899/1996) relaciona à melancolia estados psíquicos como
“anestesia” “angústia”, “neurastenia”, “anorexia”. Numa tentativa de explicar as relações
entre os níveis de excitação sexual e o arco-reflexo no campo das tensões libidinais, Freud
lançou mão da idéia de frigidez que, em seu tempo, era freqüente nas mulheres, visto a
condição na qual elas se casavam – “sem amor”, em suas palavras. Libido em baixa seria a
fórmula básica da melancolia, em associação com a frigidez e a anestesia.
Nesse ínterim, a melancolia seria a contrapartida inversa da neurose de angústia,
tida nessa época como resultado da libido acumulada e desviada da elaboração psíquica:
“(...) enquanto os indivíduos potentes adquirem facilmente neuroses de angústia, os
impotentes tendem à melancolia” (FREUD, ibid.).
Esta relação causal entre melancolia e aplicação da libido, apesar de abandonada ou
no mínimo revista posteriormente pelo próprio Freud, parece não obstante lançar as
primeiras vias de delineamento propriamente psicanalítico acerca da patologia melancólica.
O estado em questão referente a uma “ausência de libido” na melancolia foi concebido por
Freud nesse texto numa alusão ao problema do luto:
“A neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia. A famosa
“anorexia nervosa das moças jovens, segundo me parece (depois de cuidadosa
observação), é uma melancolia em que a sexualidade não se desenvolveu. A paciente
120
afirma que não se alimenta porque não tem nenhum apetite; não qualquer outro
motivo. Perda do apetite em termos sexuais, perda da libido. Portanto, não seria
muito errado partir da idéia de que
a melancolia consiste em um luto por perda da
libido
41
(ibid., p. 247).
Na seqüência, Freud conclui com relação à melancolia (tendo ainda como eixo de
investigação os movimentos de aplicação das excitações sexuais): “(...) inibição psíquica,
com empobrecimento pulsional e o respectivo sofrimento” (p. 252). Desde já, o problema
residiria no fator inibição. “Com isso, diz Freud, instala-se um empobrecimento da
excitação – uma hemorragia interna, por assim dizer” (idem).
A abordagem da melancolia tomou relevo como patologia psíquica desde o início
das postulações de Freud. Apesar da comparação que ele faz entre ela e outras
manifestações como a neurastenia (relacionada à masturbação excessiva) e a neurose de
angústia (relacionada ao coito interrompido), a melancolia assumiu algumas características
teóricas que se desdobrariam em considerações específicas ao traçado psicanalítico
propriamente dito:
“Há uma semelhança com a neurastenia. Nesta acontece um
empobrecimento muito semelhante, porque é como se, digamos, a excitação
escapasse através de um buraco. Mas nesse caso, o que escapa pelo buraco é a
excitação sexual somática; na melancolia, o buraco é na esfera psíquica” (idem, p.
253).
Em 1897, no “Rascunho N”, Freud (1892-1899/1996) faz uma menção à relação
entre perda objetal e melancolia quando aborda alguns tipos de impulsos existentes na vida
psíquica, especialmente aqueles dirigidos a figuras parentais:
“Estes [impulsos hostis] são recalcados nas ocasiões em que é atuante a compaixão
pelos pais nas épocas de doença ou morte deles. Nessas ocasiões, constitui
41
Grifo do autor.
121
manifestação de luto uma pessoa acusar-se da morte deles (o que se conhece como
melancolia) ou punir-se numa forma histérica (por intermédio da idéia de retribuição)
com os mesmos estados (de doença) que eles tiveram. A identificação que ocorre,
como podemos verificar, nada mais é do que um modo de pensar, e não nos exime da
necessidade de procurar o motivo” (FREUD, 1897/1996, p. 305).
Isto tendo sido abordado, Freud retomou definitivamente quando desenvolveu sua
teoria dos movimentos objetais. Em “Contribuições para uma discussão acerca do suicídio”
Freud (1910/1996) defende a importância de se ter em vista uma “imbricação” entre o afeto
do luto e o fenômeno melancólico – o que foi posteriormente revisto quando fez a distinção
efetiva entre o luto e a melancolia (FREUD, 1917/1996). No texto mencionado sobre
suicídio Freud revela sua posição acerca da relação entre instituições escolares e a
incidência de suicídios adolescentes, afirmando que a escola muitas vezes “toma o lugar
dos traumas com que outros adolescentes se defrontam em outras condições de vida” (p.
243). Aqui ele relaciona a incidência de manifestações melancólicas ao tratamento dado
pela escola, visto que é uma “(...) época da vida em que as condições de seu
desenvolvimento os compelem a afrouxar seu vínculo com a casa dos pais e com a família”
(p. 243). Tal condição revelaria o ponto necessário do estabelecimento de substitutos, papel
da própria “escola secundária” em sua opinião.
É, contudo, no ensaio “Luto e Melancolia” que Freud aponta em termos
introdutórios, mas ao mesmo tempo aprofundados, a necessidade de se deslindar a relação
entre a melancolia e a perda objetal, bem como de situá-la numa esfera subjetiva que
concerne a um modo próprio de organização psíquica, denominada por ele de “neurose
narcísica”. Numa abordagem mais rigorosa sobre a questão do luto, Freud vai pensar a
melancolia como um movimento patológico subsumido a uma “perda de natureza mais
ideal” (FREUD 1917/1996, p. 251), conferindo ao primeiro uma perda efetiva como a
morte de um ente e uma circunstância afetiva passageira que coloca o psiquismo num
122
movimento de substituição do objeto perdido, investindo ao final do processo sua energia
libidinal em um novo objeto.
42
Freud salienta que na melancolia trata-se de uma perda objetal não muito bem
definida no discurso. Em outras palavras, Freud considera que o melancólico pode até
apresentar uma sapiência sobre quem ele perdeu, mas não sabe dizer o que perdeu nesse
alguém (ibid.).
Com efeito, o melancólico vê-se inteiramente absorvido pela perda, e afirma de
maneira violenta sua condição ante ao próprio sofrimento. O melancólico despe-se ao
extremo em seu discurso, não comportando qualquer vergonha a respeito do que fala sobre
si. Refere-se a si mesmo com a violência de quem odeia, rejeita ou deseja vingança. O eu
do melancólico acede a um estatuto de vazio absoluto, no qual é desvelada a condição
mesma da mortalidade, da fraqueza, da desvalia, do desprezo.
“Ele se repreende diz Freud se envilece, esperando ser expulso e punido.
Degrada-se perante todos, e sente comiseração por seus próprios parentes por
estarem ligados a uma pessoa tão desprezível. Não acha que uma mudança tenha se
processado nele, mas estende sua auto-crítica até o passado,
declarando que nunca
foi melhor
.
43
Esse quadro de um delírio de inferioridade (principalmente moral) é
completado pela insônia e pela recusa em se alimentar, e o que é psicologicamente
notável por uma superação do instinto que compele todo ser vivo a se apegar à
vida” (p. 252).
A auto-acusação, a auto-flagelação e o movimento mortífero do melancólico em
direção ao seu próprio eu revelam para Freud uma circunstância psicopatológica específica:
o melancólico não faz o luto da perda objetal; ele identifica-se ao objeto perdido, numa
situação que sinaliza um quadro narcísico peculiar, cujo contexto coloca Freud na direção
de uma abordagem metapsicológica diferenciada acerca desta disposição subjetiva.
42
Aprofundaremos a análise do luto quando definirmos suas especificidades mais à frente.
43
Grifo nosso.
123
Freud entende, assim, que o objeto perdido é o próprio algoz da condição trágica do
sujeito. A ambivalência assume aqui seu caráter violento na medida em que o objeto amado
torna-se um “objeto mau”, porque frustrante, aquele mesmo eleito pelo sujeito para ser
destruído. Identificado contudo ao objeto perdido, o sujeito entra num movimento de
assassinato de si mesmo, deflagrando um jogo de forças que reveste de uma moral aviltante
o ódio de si mesmo. Este é precisamente o momento em que Freud começa a estender seu
sistema teórico para uma análise aprofundada das instâncias ideais (iniciado em
“Introdução ao Narcisismo”), abrindo caminho para uma segunda tópica do aparelho
psíquico na qual se concebe o superego como a instância psíquica que acede ao plano voraz
da experiência subjetiva, constatável sobretudo no movimento melancólico, lá mesmo onde
ele apresenta precisamente sua face mais cruel.
Freud distingue então o trabalho psíquico interno do melancólico ao trabalho de
luto, definindo que, naquele, o que se perdeu foi o ego, e não propriamente o objeto. Isto
por conta da identificação melancólica, na qual o ego é “consumido” pelo objeto perdido
numa identificação maciça. Freud então esclarece sobre a identificação melancólica (ou
narcisista):
“[a identificação] é uma etapa preliminar da escolha objetal , que é a primeira forma
– e uma forma expressa de maneira ambivalente – pela qual o ego escolhe um objeto.
O ego deseja incorporar a si o objeto e, em conformidade com a fase oral
canibalística do desenvolvimento libidinal em que se acha, deseja fazer isso
devorando-o. (...) ao passo que na primeira [identificação histérica] a catexia objetal
é abandonada, na segunda persiste e manifesta sua influência (...). A identificação
narcisista é a mais antiga das duas e prepara o caminho para uma compreensão da
identificação histérica, que tem sido estudada menos profundamente” (p. 255-256).
Para retomar assim parte das explorações teóricas do segundo capítulo, podemos
conferir à identificação histérica o conceito de introjeção de Ferenczi, no qual se pode
localizar o movimento de introdução das diferenciações experimentadas pelo infante como
atribuição de sentidos plurais ao objeto amado (identificação por traços do objeto). Por
124
outro lado, a identificação melancólica caracteriza-se não propriamente por uma
identificação aos traços relacionada ao movimento introjetivo, que tem como efeito a
constituição de um precipitado de identificações tal como abordamos no capítulo anterior.
A identificação melancólica caracteriza-se pela identificação com o objeto total. Na obra
“Trauma e Melancolia” Pinheiro (1993) assevera: “Neste caso, portanto, é como se a
identificação trouxesse o objeto in toto, em bloco. Na ausência da dialética identificatória
feita por traços, o objeto torna-se por assim dizer um posseiro que ocupa o espaço egóico,
num projeto mimético e metonímico levado ao extremo” (p. 53).
Há portanto na melancolia uma verdadeira indiferenciação eu/outro – dado o retorno
do objeto na absorção violenta do eu o que marca a melancolia como psicopatologia
específica.
A especificidade do problema concernente à introjeção na melancolia revela
precisamente que nesta o objeto não foi introjetado, mas foi “incorporado”, tal como se
pode verificar segundo a análise teórica de Abraham e Torok (1968/1995). A incorporação
segundo esses autores é uma “fantasia da não-introjeção”, concerne a um conteúdo psíquico
traumático que permanece “enquistado” e não faz elo com o campo ideativo-associativo.
A incorporação se apresenta na subjetividade como algo que, ligado à experiência
traumática, fica impossibilitado de se incluir, de se articular psiquicamente, manifestando-
se de forma maciça, e não convocando sua inscrição numa cadeia associativa. nesse
ponto o que Abraham e Torok (ibid.) denominaram incorporação do objeto
(correspondente ao que Ferenczi [1931] denominava “identificação ao agressor”). Torok
enfatiza que nesses casos a introjeção propriamente dita não aconteceu. Ou seja, a
instauração do sentido que se inscreveria numa determinada circunstância referida a um
objeto, não funciona. O trauma advém dessa não abertura de sentido referido ao objeto
hostil (segundo Ferenczi, “agressor”). Pinheiro (1995) esclarece:
“A introjeção não se realiza ou porque o objeto de interesse desapareceu, ou porque o
objeto não possui as condições necessárias para servir de mediador. E é aí, neste
último, que reside a própria causa do trauma. O mecanismo de incorporação nos dá a
125
dimensão dramática do que é, num determinado momento, a não realização da
introjeção, a interrupção neste processo” (p. 53).
A fantasia da incorporação é, segundo Abraham e Torok (op. cit), uma recusa da
introjeção. Ao invés de introjetar o objeto perdido, dando-lhe sentido e introduzindo, nesse
ponto, a metaforização característica do universo polissêmico, o que há é uma incorporação
maciça desse objeto (hostil), por fantasia, não havendo rechaço de sentido para tal, ou seja,
não havendo recomposição no campo da linguagem, e permanecendo “enquistado” no
psiquismo. Pinheiro (op. cit.) aponta:
“Se o processo de introjeção iniciado não pode ir até o fim, o fantasma da introjeção
(a incorporação), por seu caráter mágico e instantâneo, acalmará os perigos possíveis
de uma não-introjeção. (...) Não se trata também do recalcado da histérica que é
suscetível de lembrança. A incorporação seria, segundo Torok, algo que é nomeado,
mas proibido de ser dito. Ferenczi dirá mesmo que não existe nenhum traço do
trauma, a incorporação ou a identificação com o agressor é aquilo que ocupa o lugar
dessa não inscrição. A proposta de Torok é de que a incorporação se distingue da
introjeção pelo fato de não consistir num processo, mas num fantasma cuja
característica primeira é o
imediato de sua realização.
44
De alguma maneira mantida
em segredo, nela o objeto não traz consigo os sentidos que enriquecem o ego” (p.
53).
Assim, a incorporação tem por principal característica o fato de que algo foi posto
em realização na relação com o outro, um imediato de realização, que não passou pelo
recalque, não foi interditado, mas “sepultado” e mantido em segredo. Tal realização
(fundamentalmente traumática) pode apenas permanecer enquistada, e o sujeito se
transforma no próprio objeto perdido na identificação melancólica.
Os autores dirão sobre a incorporação:
44
Grifo Nosso.
126
“Este é o caso apenas para as perdas [narcísicas] que
não podem por alguma razão
se confessar enquanto perdas
.
45
Nesse único caso, a impossibilidade da introjeção
chega a proibir até que se faça uma linguagem com sua recusa do luto, a proibir que
se signifique que se está inconsolável. Na falta dessa saída de socorro, resta opor
ao fato da perda uma denegação radical,
fingindo não ter tido nada a perder.
46
Não
se trata mais de relatar diante de um terceiro o luto de que se é portador. Todas as
palavras que não puderam ser ditas, todas as cenas que não puderam ser
rememoradas, todas as lágrimas que não puderam ser vertidas, serão engolidas, assim
como, ao mesmo tempo, o traumatismo, causa da perda. Engolidos e postos em
conserva. O luto indizível instaura no interior do sujeito uma sepultura secreta”
(Abraham & Torok, 1972/1995, p. 249).
A questão do traumático a partir de Ferenczi assume assim, segundo Pinheiro (op.
cit.) o paradigma para a abordagem da melancolia. Pinheiro (1993) considera que a
identificação melancólica e a fantasia de incorporação fazem toda referência à identificação
com o agressor no trauma ferencziano (FERENCZI, 1933/1992), o qual produz segundo ela
a relação do melancólico com um superego absolutamente voraz. Para Ferenczi o
traumático toma seu estatuto propriamente dito não na experiência em si mesma, mas na
forma como o sujeito, apoiado no outro, irá subjetivar o acontecimento marcado pelo
excesso. Nesse sentido, é o desmentido do trauma que introduz sua não integração à rede
de linguagem (PINHEIRO, 1995). O desmentido ferencziano tem na análise de Pinheiro um
efeito devastador sobre a constituição de uma certeza de si capaz de dar ao sujeito condição
existencial no universo subjetivo. A identificação com o agressor em Ferenczi é o modelo a
partir do qual Pinheiro irá construir sua análise da identificação melancólica em relação ao
retorno do objeto ao eu e o aviltamento superegóico presentes na melancolia.
Sob esse aspecto, relevantes indagações aqui se assinalam, especialmente quando se
leva em consideração que o retorno do objeto sobre o eu na identificação melancólica não
deixa nenhum rastro da formação de uma identidade ou de uma singularidade. O que estaria
em jogo num fenômeno como esse, em que o ego é violentamente consumido pela
45
Grifo nosso.
46
Grifo nosso.
127
ambivalência objetal? O que ocorre na constituição subjetiva que coloca o sujeito
melancólico sob tal condição psíquica? Para adentrarmos nesta questão, lançamo-nos às
apreensões de Lambotte cuja abordagem é imprescindível para o avanço do estudo da
melancolia.
Em “O discurso melancólico” Lambotte (1997) conceitua, na designação específica
da melancolia, a incidência de uma relação peculiar na formação da imagem egóica,
incapaz de aceder a um estatuto de preenchimento ideacional narcísico propriamente dito.
Em outras palavras, Lambotte demonstra que o trauma incide num momento pré-especular
da condição psíquica. Para Lambotte, o trauma acontece no momento em que a mãe
fracassa em seu investimento e não mantém para o sujeito a subjetivação de sua própria
existência. Segundo a autora, o olhar da mãe não atingiu o sujeito ao ponto de este forjar
para si uma auto-imagem capaz de desfrutar de um amor de si mesmo jubilatório no
narcisismo.
Nesses termos, se a auto-depreciação parece ser uma das mais importantes
características do discurso melancólico, Lambotte, assim como Pinheiro, dirá que esta se
apresenta apenas como problema secundário. A autora aponta algo de muito mais
importante e fundamental, a saber, a questão das origens no discurso melancólico
(entendida por nós como função da crença). Este tema (origem) aparece de maneira
extremamente peculiar na profundidade do discurso melancólico, o qual denuncia de
maneira violenta e mesmo insuportável a sua própria insustentabilidade existencial. A não
certeza de si mesmo, ou de sua própria existência é então substituída por um desvelamento
absoluto do fato da morte, discurso do qual o melancólico utiliza-se constantemente no
sentido de sustentar sua própria referência subjetiva. O melancólico, em grande parte das
vezes, denuncia a tragicidade do existir cujo cerne constitui exatamente a única certeza da
vida. O fato da morte é referência do discurso melancólico, o qual se reveste de um
absolutismo irredutível acerca da crueza das coisas e da crueldade da finitude. Esses
sujeitos revelam-se como detentores fiéis da verdade trágica da morte, tornando-se dela
seus maiores aliados e, nesse movimento, atirando-se vertiginosamente a ela como que
numa apropriação radical da verdade da qual os outros seres humanos tentam desviar-se em
128
suas “inúteis ilusões”. A certeza de sua miserabilidade, revestida de uma auto-tirania e
culpabilidade, aponta em última instância – e esta é uma das mais importantes constatações
de Lambotte para uma busca das origens de si mesmo jamais encontrada. Nessa
circunstância o sujeito, atirado ao limbo de sua própria existência, não se reconhece a si
mesmo nem atribui a si algo de consistente que o coloque a afirmar-se.
Nesses casos, Lambotte então afirma que:
“(...) aquém da autodepreciação tão freqüentemente designada como uma das
características essenciais da atitude melancólica, é a questão das origens que a acossa
permanentemente, como o desconhecido de uma equação para a qual se tentaria
achar as variáveis pertinentes. E, sem dúvida, uma delas remeteria a este fator
excepcional que o sujeito parece ter herdado, tanto em relação a sua capacidade
intelectual quanto a sua posição marginal. Igualmente as expressões
não ter lugar,
ser irremediavelmente diferente dos outros, ou ainda não ter os mesmos direitos que
os outros
indicam, sob as cores de uma aparente culpabilidade, uma busca das
origens jamais reconhecida, nem mesmo simbolicamente, cujas fontes, sob o golpe
da fatalidade, caem nas mãos do destino” (p. 157).
Lambotte salienta então que a aniquilação de si, nesse sentido, está diretamente
relacionada a uma problemática na própria constituição do narcisismo, no qual o olhar do
outro (mãe) não preencheu a circunscrição imaginária do corpo. A mãe aparece no discurso
melancólico como “toda-potente”, objeto absoluto que, com seu olhar, atravessa a silhueta
corporal da criança, emprestando a ela a possibilidade de formação de um esquema
corporal, desinvestido contudo da libido que lhe pudesse conferir um preenchimento
narcísico e um sentimento positivado de existência no campo do outro.
Assim, aquém da passagem do eu-realidade para o eu-prazer no narcisismo
(FREUD, 1915a/1996), a “toda-potência” da mãe, caracterizada por um discurso sem
investimentos, e atribuindo apenas uma existência pontual e descontínua, é para Lambotte o
que configura propriamente o cerne do trauma e da ambivalência melancólica. Aqui, o
129
desmentido está relacionado à própria referência existencial do sujeito, restando a este
apenas colar-se a um discurso sumariamente destrutivo e sem predicados. A autora
esclarece sobre o discurso melancólico: “(...) na maioria dos pacientes melancólicos que
encontramos, sempre se tratava de maus tratos de que eles foram objeto por parte de sua
mãe, tais como chantagem, depreciação e humilhação de todo tipo” (p. 178).
Será, portanto, na problemática especular que a autora localizará o cerne da
constituição melancólica:
“(...) a fase especular apresentaria as condições necessárias para a
emergência da melancolia na função desfalecente do olhar materno que, muito mais
do que cernir a silhueta da criança em um prazer de troca, atravessaria o corpo da
criança como se dirigisse para alhures, ou se perderia na direção de um distante sem
limite. É o sonho do ‘olhar vago ou perdido’ que se busca desesperadamente, o do
rosto que se interpela e que não responde nada” (p. 198).
Se para Freud, ou em suas observações introdutórias, existe na melancolia uma
perda de objeto com subseqüente identificação e aviltamento superegóico, Lambotte
afirmará que o que falta para o sujeito melancólico não é propriamente um objeto, não se
trata de perda, justamente porque nesses casos o objeto não atingiu circunscrição própria
cuja função seria a de laço desejante. Na melancolia o objeto não chegou a constituir-se
visto que, nas amarras da relação especular, algo de estruturante fracassou e colocou o
sujeito num circuito existencial absolutamente peculiar. O que falta para o melancólico é
um estatuto narcísico de atribuição. Aqui assilana-se uma especularidade incapaz de
preenchimento narcísico. O melancólico é atingido não pelo olhar que o filiaria ao Outro
mediante a pluralidade identificatória na qual o sujeito deslizaria fundando-se na metonímia
do desejo e na polissemia da linguagem. O que o sujeito melancólico revela é seu
mergulho, não na imagem perdida de Narciso, mas numa deserção (LAMBOTTE, 2001).
Sendo assim, o outro cujo olhar e discurso inventariam um sujeito, e atribuiriam
uma existência preenchida de investimentos eróticos inconscientes mediados pela
revivescência de um narcisismo perdido (Sua Majestade o Bebê), coloca de outra via o
130
sujeito numa outra condição específica, a saber, a de referenciar sua própria existência num
vazio insuportável. Aqui retomamos exatamente o cerne da crença narcísica a partir da qual
o sujeito construiria, em outras condições, seu narcisismo: sob o fracasso do primeiro
investimento, a figuração ortopédica da imagem ideal não chega a se constituir, ou se
firmar como perdida e retroprojetada. É o que se poderia caracterizar como um olhar que
não circunscreve objeto, mas que produz precisamente uma deserção de desejo. Desejo do
Outro que, desertado, não inclui o sujeito na dinâmica da pluralidade identificatória, mas
num vazio sem precedentes (op. cit.).
No eixo desta análise, Herzog e Pinheiro (2003) afirmam: “É justamente na
dimensão de uma ‘situação psíquica primordial’ que consideramos a utilização da figura da
moldura vazia como o que existência sem predicar, tarefa que será concluída pelo ‘eu-
prazer’”.
47
Desta feita, o sujeito absorve-se num absoluto irredutível cujo efeito, como
dissemos, seria o retorno sobre si de uma imagem a partir da qual o sujeito inicia um
movimento ambivalente. Nesse sentido, se movimento de crença na dinâmica
melancólica, ela constitui-se como crença no vazio ou no nada. A subjetividade
melancólica afirma sua existência, contudo a afirma no nada. O melancólico afirma-se num
absoluto trágico cuja condição o coloca a aderir sumariamente ao único ponto inescapável
da existência: a própria finitude. A relatividade das coisas é inaceitável para o melancólico,
estando esse sujeito atrelado, não a uma “falta de identificação”, mas mais precisamente a
uma identificação ao nada (Cf. LAMBOTTE, ibid.).
O “todo-potente” da mãe é o que vai dar lugar ao objeto um objeto que sequer
chegou a se constituir cuja insígnia se faz sentir por sua aderência discursiva. Desfalecer-
se num ideal do eu absoluto, conflagrado por um jogo suicida caracteriza o que de mais
importante se pode extrair do discurso auto-recriminativo do melancólico: por existir no
nada do olhar materno, ou numa “moldura vazia” (ibid.), o outro se apresentando como
absoluto não pode ser perdido. Renunciá-lo significaria desmoronar sob o risco do
47
HERZOG, R. & PINHEIRO, T. (2003). Impasses na clínica psicanalítica: a invenção da subjetividade.
Estados Gerais da Psicanálise: Segundo Encontro Mundial, Rio de Janeiro.
131
espedaçamento total e da alucinação sem precedentes. O melancólico consegue contudo,
pela via da identificação narcísica (Cf. FREUD, op. cit.), manter num jogo arriscado de
morte o objeto dentro de si. Lambotte salienta:
“(...) saído de um supereu arcaico tornado presente através da imago
materna, se impede o sujeito de derivar para a esquizofrenia, assegurando-lhe a
imagem especular do outro (i(a)) e a referência simbólica necessária ao manejo da
linguagem, comporta-se, no entanto, como uma instância tanto mais cruel e tirânica
quanto mais ela figura o único modo possível de comunicação do sujeito” (p. 217).
Por outro lado, impossível se faz o reinvestimento num substituto, que, para ele,
isso consistiria num movimento impossibilitado pela sua condição pré-especular. O olhar
do outro que atravessa o sujeito não atribuindo a ele qualquer sentido de existência ou
predicação deflagrou para ele uma existência no nada. A sombra do objeto (a mãe toda-
potente) recai sobre o eu sob a primazia da ambivalência, consumindo-o num jogo
superegóico de morte do qual o próprio sujeito melancólico passa a ser aliado.
A análise que se realiza sob o jugo das formações ideais remete diretamente ao fato
de que a idealização, por não se cumprir na formação do eu-ideal, subjaz a uma potência da
imago materna caracterizada como ideal do eu que impede o sujeito de deslocar-se. Por isso
mesmo, um ideal do eu avassalador, absoluto e destrutivo. Lambotte (ibid.) esclarece:
“O melancólico se assemelharia a um ladrão que não acabaria de apropriar-
se dos traços de outrem e que os abandonaria a partir do momento em que se desse
conta de sua imperfeição em relação ao modelo ideal que ele traz nele. Da mesma
forma, para responder à interrogação freudiana concernente ao que o sujeito
melancólico perdeu através do objeto que ele recrimina, podemos facilmente
imaginar que, sob o constrangimento de um modelo irredutível que o recobre
inteiramente, o objeto sempre parece aquém das pretenções do sujeito melancólico,
ameaçando assim a existência deste, num questionamento do ideal do eu em que ele
não pode resolver-se” (p. 219).
A autora conclui:
132
“Condenado à traição pela falta de um modelo ideal com o qual nenhum
outro pode rivalizar, o sujeito melancólico justifica sua impotência por uma lógica
negativista abstrata e / ou erra de objeto em objeto, apagando de si o duplo frágil com
que tentava inutilmente recobrir outrem; mas, no lugar do duplo (eu-ideal), é com o
modelo superegóico inatingível (ideal do eu) que ele deve confrontar-se, no qual se
acham como que aspirados os traços de sua própria imagem” (p. 221).
Na melancolia, o momento especular de formação da imagem de si revela que o
sujeito assume um lugar negativizado no discurso do outro, o qual imprime uma existência
vazia de investimento narcísico. Não atingido pela idealização narcísica que de outra sorte
o colocaria numa posição de centralidade (eu ideal), o eu se precipita, destituído, contudo
da ilusão de sua própria onipotência. Se onipotência na melancolia, esta se configura
por um discurso enquistado, clivado, incorporado (Cf. Torok, op. cit.), expresso pela
formação de um ideal do eu absolutamente rígido. Nesses termos, o discurso que faz do
outro o detentor irredutível da onipotência, caracteriza precisamente um traumatismo pré-
especular (LAMBOTTE, 1997) cuja incidência colocou o eu numa condição absolutamente
frágil perante um ideal do eu avassalador. O discurso onipotente do outro que, numa
configuração negativizada produz um sujeito identificado ao nada passa exatamente por sua
desapropriação. O sentido da onipotência ficou aqui enquistado, isolado de qualquer
referência narcísica ou representação de si mesmo, e o sujeito passa a referenciar-se no
nada. O discurso melancólico apela para uma existência no nada e revela uma única saída
no simbólico “eu não sou nada”, frase que caracteriza a construção narrativa por
excelência desses sujeitos (Cf. LAMBOTTE, 2001).
Como Lambotte afirma, o ladrão melancólico diferentemente do ladrão neurótico
não acaba de apropriar-se dos traços constitutivos do modelo do duplo ideal, sequer
atingindo a conflagração de Sua Majestade o Bebê. Nesses casos nada do que os outros
digam produz efeito, arrefecimento narcísico ou suplência ideal. A fala do outro não serve
de suporte para o drama da desilusão melancólica. Se serve em alguns momentos, conforme
pode-se constatar em alguns casos clínicos, não passa de um rechaço frágil sobre o qual o
133
melancólico se atira o tempo todo para confirmar sua própria existência. De outra sorte, o
sujeito melancólico mergulha numa desilusão da qual a princípio nenhum discurso o
salvará, visto que sempre destituído de desejo, remetendo-se o próprio sujeito à verdade
inelutável de que não há subterfúgio possível para o fato da morte. Aqui começam a
delinear-se os primeiros passos para uma distinção entre a configuração melancólica
relacionada ao discurso não atributivo da imagem de si e a formação ideal dos pacientes
deprimidos não melancólicos. Nessa linha, o enfoque para uma apreensão dessas
configurações encontra seu principal referencial na análise da formação dos ideais em
conjunção ao mergulho narcísico cuja crença aparece como balizador. Passemos ao estudo
da depressão.
4.2.3 – Circunscrição do conceito de depressão
Feitas essas considerações acerca da melancolia, passaremos agora ao estudo mais
apurado da depressão tal como a entendemos no contexto da investigação em pauta. Para
tanto, faz-se necessário abordar questões de cunho teórico que perpassam a circunscrição
daquilo que pretendemos abordar em termos de sofrimento depressivo grave e não
melancólico.
Em primeira instância, e de acordo com os caminhos que vimos traçando, não
estamos tomando a depressão como uma função diagnóstica em psicanálise. Tomado das
classificações psiquiátricas atuais, este caminho a colocaria numa dimensão isolada de
outras afecções no que concerne à sua configuração sintomática. Deixamos desde
assinalado que a depressão configura-se como um estado, que pode se manifestar em
qualquer organização psíquica. Neste traçado teórico, damos destaque a um tipo de
depressão que se manifesta cada vez mais nos dias de hoje e que se diferencia tanto da
depressão melancólica, quanto da depressão histérica e obsessiva. Diferentemente da
melancolia e não menos das depressões histérica e obsessiva nossa hipótese é de que a
depressão é uma das mais importantes vicissitudes da crença narcísica na
134
contemporaneidade e deflagra um estado psíquico peculiar quando da incidência de uma
perda objetal.
A clínica tem trazido inquietantes manifestações que revelam a circunstância
dramática da posição do sujeito perante a transitoriedade quando do mergulho radical e
irredutível na crença narcísica. A depressão revela que o sujeito, referenciado nas
vicissitudes da crença narcísica, se desfalece num sofrimento marcado pela dificuldade de
colocar a termo sua própria condição transitória. Esses quadros, referenciados num apelo
narcísico ideal, se acirra na contemporaneidade (cultura do narcisismo)
48
como forma
peculiar de relação com o desejo e como forma de responder aos impasses da onipotência
perdida e da exigência de performance que deflagra a emergência de uma imagem de si
outrora vivida e impedida de metaforização (Cf. PINHEIRO, 2005).
O deprimido referencia-se a si mesmo como num retrato em que se reconhece uma
imagem parada, bidimensional e prescindida de movimentação afetiva. Nessa conjuntura, a
depressão aparece como uma forma de negação do desejo, do descentramento de si e da
diferença. Esta forma de negação apresenta-se na contemporaneidade como mais poderosa
e radical do que na histeria e na neurose obsessiva as quais, como se constata, fracassam em
seus movimentos defensivos. Não se trata nesse tipo de depressão de um sentimento vago
de tristeza “sem se saber por que” como acontece na histeria. Como veremos, esses
pacientes deprimidos sabem o que lhes aflige, sabem o que está perdido (PINHEIRO,
2005). Algo acontece nessas subjetividades que marca o sujeito numa desgraça quase que
materializada sem qualquer possibilidade aparente de mudança.
Esta configuração revela a circunstância na qual esses sujeitos se encontram em
termos subjetivos. Para estabelecermos uma análise aprofundada desta circunstância
procuraremos localizar a questão sob o ponto de vista da crença narcísica, cuja referência
deflagra, nos interstícios do sentimento de perda, uma denegação do desejo e da própria
finitude (distinta do desmentido melancólico). Esta questão se acha vinculada à relação
48
Aprofundaremos este ponto posteriormente.
135
específica com a imagem perdida de si mesmo que aparece nessas formas de sofrimento.
Veremos a seguir como esses aspectos se articulam.
4.2.4 – A depressão e o luto da Criança Maravilhosa
A experiência depressiva toma como referência, assim, uma imagem centralizada de
si, colada às insígnias do narcisismo infantil (Sua Majestade o Bebê). Referenciados num
sentimento profundo de perda, esses pacientes falam de uma perda de si, de uma perda da
referência narcísica outrora desfrutada como insígnia de uma condição ideal impedida de
transformação. Esses pacientes permanecem radicalmente atados à crença narcísica e
projetam (apenas para o passado) um eu-ideal forjado na configuração familiar do discurso
dos pais, contudo sumariamente perdido. É uma retroprojeção que, como eles mesmos
sabem, nunca será recuperada ou alcançada.
É preciso frisar, sob esse parâmetro, que não é a perda em si que determinará um
estado depressivo crônico ou agudo; o que vai precisamente definir ou não o mergulho em
uma estagnação depressiva grave ou crônica é a forma como o sujeito dará
encaminhamento subjetivo à experiência de perda, é precisamente a relação que o sujeito
estabelece com sua própria crença narcísica, ou com seu próprio sentido de unidade e
onipotência perdida.
Nesses termos o deprimido, diferentemente do melancólico, afirmou-se
narcisicamente como existente, guardou uma certeza de si, contudo se nega a aceitar as
transformações inerentes à vida e toma o objeto como necessário, como uma essência em
torno da qual o sujeito mantém sua alienação. O deprimido, diferentemente do melancólico
conforme aponta Pinheiro (2005), foi fisgado pelo desejo. Contudo, atado à crença
narcísica, ele instaura para si uma denegação que revela desejo e finitude como duas pontas
do mesmo fio.
136
Num estudo sobre a obra literária de Tchekhov (SACEANU, 2004)
49
realizado pelo
grupo de pesquisa que integra o NEPECC/UFRJ
50
do qual participamos, identifica-se esta
forma violenta de sofrimento que assume relevantes níveis de incidência na
contemporaneidade. Ivanov, personagem principal da obra, fala de uma imagem de si
perdida e impedida de transformação no tempo. É um discurso que se debruça sobre um eu-
ideal irrecuperável
51
, tal como um ego que pranteia sua própria ruína narcísica. Não se trata
aqui de um desmoronamento narcísico como na melancolia, mas mais precisamente de uma
nostalgia que retira o sujeito de sua capacidade de transformação e metaforização. É uma
história fixa cuja narrativa não cessa de recair sobre ela mesma, não restando ao sujeito
outra coisa senão deprimir ante a imagem narcísica perdida.
No último ato da peça, Ivanov se nega a relançar-se ao desejo e ao novo, dizendo à
Sacha (sua noiva) que não pode se casar por causa da prova que o tempo outorgou como
impeditivo de união com ela. Diz que não conseguiria recuperar o vigor perdido ante aos
cabelos brancos que viu pouco antes da cerimônia de casamento. Ao deparar-se com sua
imagem no espelho e com a marca da temporalidade, o personagem desiste não apenas de
seu casamento, mas de qualquer movimento desejante. Ivanov sofre violentamente pelo
findar absoluto de seu passado, não fazendo elo entre ele e seu presente. Sua fala representa
o cerne do discurso depressivo, que se remete apenas a uma imagem de si perdida num
passado irretocável e impedido de ser metaforizado mediante narrativa tecida pelos arranjos
49
Apresentação de Patrícia Saceanu da obra “Ivanov” no II Encontro de Itatiaia “Patologias narcísicas e
mundo contemporâneo depressão e melancolia”, coordenado por Teresa Pinheiro e Julio Verztman, que
contou com a presença da Prof. Marie-Claude Lambotte da Universidade de Paris VII, em 2004. O tema de
Ivanov foi também trabalhado por Teresa Pinheiro em seu artigo “Depressão na Contemporaneidade”, ao qual
fazemos referência, publicado em Pulsional Revista de psicanálise, ano XVIII, no. 182, junho de 2005, p.
101-109.
50
NEPECC: Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade. Este núcleo é Coordenado
por Teresa Pinheiro e Julio Verztman. As pesquisas nele desenvolvidas constituem o principal referencial
teórico do presente trabalho.
51
O chamado ego infantil da crença narcísica (eu ideal) é, por definição irrecuperável, posto que, como
vimos, é fundado numa crença retroprojetada e num discurso (Sua Majestade o Bebê) que não se sustenta no
tempo. A especificidade desta questão traduz-se mais precisamente pela forma como o sujeito irá se defrontar
com esta realidade transitória, como ele irá subjetivar e dar encaminhemento à impossibilidade de sua
perfeição bem como à mutabilidade de sua condição.
137
fantasmáticos presentes, por exemplo, no discurso histérico. Pinheiro (op. cit.) destaca a
lamúria de Ivanov pela perda de seu entusiasmo e investimento nas coisas, bem como de
sua imagem jovial, sublinhando que a depressão e o subseqüente suicídio de Ivanov
sobrevêm da não ligação entre a imagem de si no passado, no presente e no futuro – ligação
esta que suportaria o tempo de espera e a manutenção do desejo. A autora salienta: “Se o
sujeito dispõe da imagem do presente e uma imagem de si no futuro, mas não dispõe de
uma narrativa que articule um flash com o outro, seu desejo está fadado a não se realizar e
lhe resta deprimir” (p. 104) E conclui: “Na depressão é possível às vezes esboçar um
desejo que rapidamente se esvanece” (ibid.).
um corte subjetivo violento que lemos como uma aderência radical à crença
narcísica, à crença numa essência do eu que se nega a reaparecer transformado, ou que não
assimila simbolicamente numa construção narrativa sua própria transitoriedade.
Desejamos sublinhar que, se a crença na consistência egóica é radical e intransponível,
esse eu pode aparecer como perdido e impossibilitado de transformação. Da mesma
forma, a morte de seu narcisismo vê-se denegada, e o sujeito centraliza-se no ego-ideal
perdido, subtraindo-se como sujeito desejante, e deprimindo violentamente. Os pacientes
característicos desta configuração subjetiva não fazem o luto de sua “Criança Maravilhosa”
(crença narcísica); Sublinha-se na depressão o naufrágio do desejo e o afogamento de si na
imagem perdida do eu-ideal irrepreensível. Nessa circunstância, o sujeito cai numa
estagnação e num sofrimento depressivo sem precedentes. A obra de Tchekhov ilustra o
que nessas depressões aparece como trágico. A nova imagem de Ivanov no espelho não é
subjetivamente atualizada, não sendo integrada a uma nova teia narrativa; ela funciona
como trauma, num desligamento psíquico e numa irrupção pulsional cuja violência culmina
no ato do suicídio.
A figuração literária de Ivanov serve como exemplo para se pensar essas
modalidades depressivas que se diferenciam tanto da melancolia como das depressões
histéricas e obsessivas. Na histeria a negação do desejo fracassa, e o sujeito se mantém,
ainda que sintomaticamente, no circuito desejante. O retorno do recalcado, tanto na histeria
138
quanto na neurose obsessiva são marcas desse fracasso, a partir do qual o sujeito constrói
uma circunstância sofrida como expressão de um dizer inconsciente sobre o desejo.
Como se verifica na histeria, o sintoma representa o laço desejante com o outro que,
figurado pela posição de um pai claudicante, situa para o sujeito a condição de insatisfação
permanente perante o objeto sempre em falta. Já na neurose obsessiva, o sujeito se encontra
sumariamente submetido ao ideal do eu paterno, e a ambivalência depressiva resultante da
perda do objeto, como assevera Freud (1917/1996), faz referência precisamente a tal
submetimento simbólico. É nesse sentido que a culpa pelo ódio ao pai constitui o cerne da
esfera sintomática articulada pelo temor do superego, sobrepujando-se o deslocamento
sintomático como índice do fracasso defensivo.
Na depressão contemporânea, a denegação do desejo é radical e bem sucedida, e o
sujeito acha-se fadado à sua própria estagnação. Como ficou constatado a partir das
apreensões de Pinheiro, de Lambotte e do grupo de pesquisa que integra o NEPECC,
Ivanov representa no momento atual da investigação psicanalítica o paradigma desse
fenômeno depressivo, próprio da contemporaneidade.
52
Mediante a análise acerca da relação entre a crença, o luto e a finitude nessas formas
de sofrimento, é importante frisar que, na linha mesma da formação narcísica, a morte que
se apresenta para esses pacientes como efeito da perda inevitável, assume o destino vil de
sua antecipação. Esses pacientes, por negarem a transitoriedade, impedem para si mesmos a
possibilidade de constituir-se em novas vias desejantes e atiram-se terminantemente à
repetição e à mortificação.
Como vimos em Leclaire (op. cit.), a vida subjetiva exige um trabalho paradoxal de
morte constante, o “luto da Criança Maravilhosa”. No sentido de retomarmos esta
discussão, destacamos a seguinte passagem de seu texto:
52
A discussão sobre a relação entre essas formas de depressão e o contexto cultural contemporâneo será
aprofundada no Capítulo V deste trabalho, permanecendo o presente capítulo reservado para a definição das
questões que envolvem o discurso e o sofrimento depressivo em contraste ao luto e à melancolia.
139
“(...) é extraordinário que, até hoje, nos tenhamos detido com maior boa-vontade em
seus satélites, dispostos na constelação edipiana, fantasias da morte do pai, de posse
ou espedaçamento da mãe, deixando de lado a tentativa de extermínio do Édipo-
menino cujo fracasso garantiu e determinou o destino trágico do herói” (p. 14).
A passagem acima considera que, antes de qualquer movimento para a execução
fantasística dos pais no complexo de Édipo, é preciso um encorajamento mais primordial
para a execução da própria maravilha interna que constituiu o ego em sua “plenitude
narcísica”, e que contudo mata o sujeito caso a crença primordial não seja exterminada. A
morte da Criança Maravilhosa torna-se difícil, justamente porque cruel: o narcisismo
levantou-se mediante o discurso de sua suposta imortalidade! Trata-se da “crença narcísica”
que, num movimento paradoxal de impulso à vida, faz de sua própria morte a condição de
possibilidade da sobrevivência psíquica no universo desejante. Como sinalizamos no
capítulo anterior, a abertura ao jogo da vida e do desejo exige que o sujeito inscreva-se
como transitório, mutável, descentrado e mortal. É certo que Freud foi o primeiro a apontar
de maneira genial o caráter dramático destes paradoxos com a figuração de “Sua majestade
o Bebê” (FREUD, 1914/1996), quando apontou a não sobriedade do credo infantil, reflexão
que culminará em sua análise sobre a questão da morte na esfera subjetiva, subjacente ao
texto “Sobre a Transitoriedade” (1915d/1996).
Nesses termos, situamos o estado depressivo grave como resultado vil da negação
do desejo e não menos da finitude. E aqui a negação do desejo e da finitude ganha
expressão pela mesma linha lógica daquilo que se afirma sob negação: negando-me morrer
ante a morte de mim mesmo, eu morro. Ou seja, o mito da Criança Maravilhosa sendo
impossível, e sendo desde efêmero, transitório, não passa de um lampejo de perfeição
que se apaga no tempo, mas cuja finitude, se não é aceita pelo sujeito numa construção
narrativa, o reduz, paradoxalmente, a um natimorto. A depressão como primeira voz da
crença narcísica é o último refúgio para o arrefecimento da perda. A estagnação depressiva
(e seu sofrimento intrínseco) é, portanto, a via pela qual o sujeito nega a morte de seu
narcisismo e a própria transformação subjetiva que ela proporciona mediante a inserção no
140
circuito desejante. Aqui o sujeito é convocado, na trama da cena narcísica e da perda
objetal, a reposicionar-se perante a finitude; nessa circunstância, o deprimido parece
encapsular-se nos subterfúgios da crença narcísica a qual, em sua face de estase depressiva,
sinaliza a busca pelo retorno da onipotência do eu, ainda que num movimento inverso de
silenciamento absoluto e denegação radical do descentramento de si. É a contrapartida
oposta àquela subjacente à ação e ao desejo, sendo o luto o principal balizador desta
conjugação entre a morte e a vida.
A questão sinaliza, portanto uma relação de exclusão, não apenas entre o luto e a
melancolia como apontamos anteriormente mas também entre o luto e a depressão.
Constata-se a partir desta análise que o luto é justamente um movimento de elaboração
psíquica da perda, não restando a este conceito outra apreensão que não seja a de reinserção
do sujeito no universo desejante. Portanto, não há luto na depressão. Não há uma “patologia
do luto” ou um “luto patológico” nessas formas de sofrimento. A depressão guarda em si a
característica mesma de uma organização sintomática ante a negação desejo (e, portanto,
ante a negação da própria transitoriedade). Não se trata de uma “patologização” do luto,
como se este existisse como transcendência e contivesse em si mesmo um conjunto de
características que, tomadas a priori, só deflagram um movimento pautado no juízo de valor
sobre um “certo e errado” do qual a psicanálise tende a se afastar. Nesse contexto, é preciso
conceber o luto como uma forma que o homem civilizado tem encontrado para lidar com a
questão da finitude, do trauma, da perda e da morte. Vejamos como Freud abordou a
questão do luto para então demonstrarmos essa relação de exclusão entre luto e depressão.
O luto na obra freudiana
Na obra de Freud, o luto aparece especialmente em referência à análise de
patologias ligadas à melancolia, assim como no estudo das sociedades primitivas, ligadas
aos tabus que as organizam (FREUD, 1913/1996). No que diz respeito ao primeiro aspecto,
as correspondências trocadas com Fliess, por exemplo, revelam especialmente no
“Rascunho G” (FREUD, 1892-1899/1996) uma idéia de luto ainda nessa época muito
misturada à melancolia. Freud situava-o como um afeto ligado à perda de um ente querido,
141
mas também à perda da libido relacionada à melancolia: “a melancolia consiste em um luto
por perda da libido” (ibid., p. 247).
No amadurecimento de suas teorias, Freud caminha numa distinção bem mais
rigorosa entre o luto e a melancolia, como foi sinalizado. Em “Totem e Tabu”
(1913/1996), Freud considera a importância do luto na subjetivação, afirmando: “O luto
tem uma função psíquica definida que consiste em estabelecer uma separação entre, de um
lado, os mortos e, de outro, as lembranças e esperanças dos sobreviventes” (p. 113).
Nesse trecho ele sinaliza que o luto é vivido como forma de aceitar a finitude,
num movimento mesmo de separação; é um trabalho psíquico que termina por fazer com
que o sujeito consiga abandonar aquilo mesmo que se findou e estabelecer novas ligações
afetivas. Em “Luto e Melancolia” (1917/1996) ele descreve então as características do
processo de luto. Ali ele considera que no luto prevalece uma inibição da atividade e do eu
e sua absorção, uma “perda [temporária] da capacidade de adotar um novo objeto de amor”
(p. 250). Adiante esclarece:
“Normalmente, prevalece o respeito pela realidade, ainda que suas ordens
não possam ser obedecidas de imediato. São executadas pouco a pouco, com grande
dispêndio de tempo e de energia catexial, prolongando-se psiquicamente, nesse meio
tempo, a existência do objeto perdido. Cada uma das lembranças e expectativas das
quais a libido está vinculada ao objeto é evocada e hipercatexizada, e o desligamento
da libido se realiza em relação a cada uma delas. Por que essa transigência, pela qual
o domínio da realidade se faz fragmentariamente, deve ser tão extraordinariamente
penosa, de forma alguma é coisa fácil de explicar em termos de economia. É notável
que esse penoso despazer seja aceito por nós como algo natural. Contudo, o fato é
que, quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido” (p.
251).
O enlutado mantém-se temporariamente num estado de rebaixamento libidinal e
sofrimento ante a morte ou à perda cujos efeitos se fazem valer pela possibilidade de
finitização da dor. O luto é assim evocado pelo sujeito no sentido de fazer com que a dor
142
não se eternize. Nesse sentido, o luto configura-se efetivamente como um trabalho.
Ratifica-se neste artigo que o trabalho do luto tem a função de assimilação da perda e de
possibilitar que o sujeito se separe do objeto perdido e reinvista sua energia num substituto.
O enlutado martiriza-se pela perda, recorda-se constantemente do morto, trabalhando no
sentido mesmo de dar a isso um estatuto efetivo de perda e assimilação simbólica da perda.
Circunscrição teórica do luto
O luto tem como função, portanto, (re)inserir o sujeito no circuito desejante. O luto
é uma movimentação psíquica, é um trabalho de ligação e integração daquilo que solapa o
sujeito e fica momentaneamente sem construção narrativa. É mola propulsora da
simbolização e afirmação narrativa da perda mediante reconstrução da dor psíquica. Em
outras palavras, o luto tem por função matar o morto, e dar a ele um lugar no simbólico
subjacente à elaboração, também simbólica, da perda.
O luto como insígnia da elaboração psíquica da perda, constitui assim um doloroso
caminho sobre o qual o humano percorre a fim de assimilar a transitoriedade da vida. Por
outro lado, como Fédida aponta e concordamos com esta análise além de proporcionar
tal assimilação simbólica, o enlutado se protege de seu próprio desmoronamento mediante
um momento passageiro de acirramento da dor psíquica: a lembrança do objeto perdido, o
pranteamento, a inibição passageira, etc. É exatamente o que o melancólico, marcado pela
precariedade de sua formação narcísica (Cf. LAMBOTTE, 1997) e sobrepujado pela
crueldade do supereu (Cf. HASSOUN, 2002), não consegue evitar. Na melancolia, um
desmentido da perda, e a renúncia ao objeto é também recusada. O melancólico não pode
perder o objeto ao qual se rendia, visto que nele o sujeito encontrava sua única forma
ainda que extremamente frágil – de manutenção do próprio sentimento de existência. Nessa
circunstância o sujeito, identificado ao vazio deixado pelo outro, entra num conflito de
forças que revela a precariedade narcísica e o risco de seu desmoronamento.
Tal como o melancólico, o deprimido não faz o trabalho do luto. Contudo, o
deprimido, diferentemente do melancólico, fala sobre a perda, estabelece um discurso e
uma sapiência sobre o que ficou perdido. Não obstante a afirmação, ele protesta contra ela,
143
não se permitindo lançar-se a novas inserções desejantes. No mesmo patamar, o eu,
referenciado na crença narcísica perdida, não se abre à sua própria modificação tal como
acontece na identificação ao ideal do eu (Cf. FREUD, 1923a/1996). Há, como na
melancolia, uma perda de ordem narcísica na depressão. Entretanto, a referência
fundamental do deprimido é o eu ideal (infantil) da crença narcísica. Não ali retorno do
objeto sobre o eu, posto que o deprimido foi fisgado pelo investimento dos pais e pela
formação de uma imagem de si. Nesse âmbito, o deprimido tece uma narrativa sobre a
perda, contudo não sustenta a assimilação da transitoriedade e a transformação do eu. A
transitoriedade é tão insuportável para o deprimido quanto impossível é a realização de sua
crença narcísica. O luto se acha, portanto, em suspenso na depressão. Sua função de
separação e elaboração da perda não se acha ali presente. A crença narcísica, objeto por
excelência do sofrimento depressivo, deflagra a especificidade deste último, marcando-o
como forma distinta de destinação à dor da perda.
Dado que a análise da depressão e da melancolia demonstra uma relação de
exclusão com o trabalho de luto, faz-se necessário aprofundarmos a partir de agora as
especificidades de seus campos respectivos, levando-se em consideração que a depressão
parece revelar importantes similaridades e diferenças em relação à melancolia, as quais
precisam ainda ser circunscritas. Debruçar-nos-emos agora sobre esse aspecto.
4.2.5 – Depressão e Melancolia: interfaces e distinções
Tendo sido sinalizado o cerne da diferença entre a depressão e a melancolia
mediante o estudo de cada uma delas nos últimos subcapítulos, procuraremos no presente
momento aprofundar suas minúcias a fim de mapear e circunscrever os campos subjetivos
que as distinguem mediante sua confrontação teórica. Para efeito de circunscrição dessas
modalidades subjetivas, suas interfaces e contrastes, buscaremos então defini-las sob o
ponto de vista do universo discursivo, a ser aqui retomado no sentido de traçarmos um eixo
final de distinção. Como dissemos, esta análise caracteriza-se como linha de frente para o
estabelecimento de uma distinção em termos subjetivos. Nosso estudo aborda formas
144
distintas do sujeito se situar no discurso, cuja referência toma a questão das origens e da
imagem de si como cerne do problema. Retomaremos assim, a distinção discursiva que se
configura por eu fui algo ou alguém e hoje não sou maispresente depressão (Cf.
PINHEIRO, 2005) e eu não sou nadaou eu não sou nem nunca fui nadacaracterístico
da melancolia (Cf. LAMBOTTE, 2001).
Seguindo na linha que vimos traçando até aqui se identifica, tanto na depressão
como na melancolia, uma relação peculiar com o desejo e a finitude que as coloca em
condição de dificuldade radical de se separar do objeto. Tal dificuldade, como apontamos,
sobrepuja-se ao o movimento do luto.
Nessa circunstância identifica-se, tanto no discurso melancólico quanto no discurso
depressivo formas de defesa ante a perda que poderíamos entender como maneiras distintas
de negá-la, ou de não renunciar ao objeto.
53
A aderência à crença narcísica na depressão é o que vai situar sua especificidade,
tal como procuramos demonstrar anteriormente. O deprimido é um nostálgico absoluto, e
sua rendição ao narcisismo é de tal espécie que ele nega qualquer possibilidade outra que
não seja aquela conflagrada pela crença narcísica (eu-ideal). O deprimido, como dissemos,
denega o desejo apesar de ter sido por ele fisgado, assim como denega a finitude defrontada
na experiência da perda e da transitoriedade.
Na melancolia a questão da morte apresenta-se de maneira distinta. O melancólico,
ao desmentir a perda, adere a um discurso mortífero a princípio sem saída, justamente por
não inserir-se num universo desejante. Como aborda Pinheiro (1993) na melancolia “a
questão da morte não é apenas teorizada [pelo melancólico], vista sob o ângulo da questão
existencial, ou como metáfora, mas no seu aspecto mais cru e brutal. A morte faz parte do
cardápio deles tanto quanto o feijão com arroz” (p. 51).
Esta faceta é inerente ao problema mesmo da melancolia relacionado à constituição
do eu e do objeto. Como ficou frisado, o melancólico não pode perder o objeto pelo motivo
53
Como sinalizamos, na melancolia a questão da perda é ainda mais complexa, visto que nela o objeto
propriamente jamais chegou a se constituir. Aprofundaremos esse ponto adiante.
145
mesmo de que ele sequer chegou a tomar uma circunscrição. Nessa condição, o sujeito se
desfacela, e é absorvido pelo objeto in toto”. Não no melancólico registro simbólico da
perda, pelo fato mesmo de que a deserção do Outro assinala para esse sujeito sua própria
identificação ao nada. Não houve ali sequer a circunscrição psíquica de um objeto de
desejo. Hassoun (2002), em sua análise da melancolia, e refletindo sobre as possibilidades
de tratamento desses pacientes, assevera: Fazer advir, na melancolia, o objeto como
“perdido” supõe que é como não-perdido (logo, “não advindo”) que ele se apresenta no
melancólico (...)” (p. 50).
Hassoun considera, na mesma linha de pensamento de Lambotte, a existência de
uma falha na constituição do objeto, que ele chamará de “falha do desmame”. O autor
aponta:
“Não haverá, nessa trajetória (do desmame) comum à criança e à mãe, uma
experiência de luto compartilhado? Para que este advenha, não é preciso que a mãe
tenha tido tempo tempo psíquico de compreender que o seio dado é uma parte
separada dela e oferecida à criança? A erotização da esfera oral, não é esse o seu
preço? Não é o perdido do Outro, reconhecido nesse
status, que permite que essa
zona seja erotizada na criança, quer dizer, marcada, picotada, selada com a chancela
do significante
perda? Não é quando o Outro se como suscetível de perder essa
parte de si que permite ao bebê um enlaçamento das pulsões parciais à pulsão de
morte? O objeto perdido (...) não pôde aqui se representar como modelo primeiro de
constituição do objeto. Na falta do objeto perdido em conseqüência do Outro, vítima
da falta de privação, o melancólico, na sua acepção clássica ou em suas equivalências
sintomáticas (anorexia, bulimia, toxicomania) tenta ressuscitar, pela degradação e
pelo suplício do seu corpo (até o ponto de se sujeitar à perversão de um outro), um
corte ou uma perda que não teve lugar” (p. 48).
Como se constata segundo Hassoun, não lugar para a perda objetal à medida que
o outro se subtrai de sua função de investimento erótico e narcísico. O que falha aqui, em
outras palavras, é o acompanhar da mãe na circunscrição do objeto – sua presença
sustentada (e acrescentada) pelo próprio movimento atributivo de “Sua Magestade o Bebê”
o qual, nessa circunstância, deixa de imprimir para o infante um espaço psíquico capaz de
146
dar encaminhamentos simbólicos à dor da perda. O não-objeto (Hassoun) marcado
propriamente por uma “deserção do Outro” (Lambotte) e por um “não registro psíquico da
perda”, é precisamente o que constitui o cerne do trauma pré-especular na melancolia, o
“desmentido” sobre a existência do objeto, da perda e principalmente o desmentido da
própria existência de si mesmo. Nesse âmbito, a formação da imagem de si fica
comprometida, visto a descontinuidade e o atravessamento do olhar materno na
constituição da chamada “moldura vazia” (Cf. LAMBOTTE, op. cit.).
A apreensão sobre a melancolia, que deflagra sobre ela a abertura de um enfoque
teórico consistente sobre as patologias narcísicas (Cf. PINHEIRO e VERZTMAN, 2006),
revela-se clara especialmente em circunstâncias que incluem o corpo e a doença física
como saída para a constituição de uma imagem de si. As pesquisas desenvolvidas no
Núcleo de Estudos e Pesquisas da Clínica Contemporânea (NEPECC) coordenadas por
Pinheiro e Verztman (2006) demonstram que pacientes melancólicas portadoras de Lúpus
Eritematoso Sistêmico (LES) conseguem forjar uma composição narcísica mínima a partir
do corpo doente e a partir das nomeações efetuadas pelo corpo médico, o que possibilita,
mediante a clínica psicanalítica, a construção de uma historicidade para essas pacientes
(PINHEIRO, VERZTMAN et al, 2006).
É a partir do corpo doente e do discurso sobre a doença física que o sujeito
consegue organizar uma forma de existir. É interessante notar principalmente a partir dessa
amostra que as pacientes lúpicas constroem uma narrativa de si, o que as pacientes
melancólicas não lúpicas não conseguem desenvolver, a não ser mediante uma
identificação maciça ao nada. Esta análise ajuda de maneira profunda a se pensar a
especificidade do quadro melancólico especialmente no que diz respeito ao sentimento de
existência, problemático em sua própria constituição na melancolia.
Considera-se, nessa linha, que as chamadas “patologias narcísicas” e as depressões
que nelas aparecem, circunscrevem o modelo fantasmático da melancolia (ou depressão
melancólica), tal como aborda Pinheiro ao fazer menção ao terceiro tempo de “Uma
criança é espancada”. Pinheiro (1993) propõe que o fantasma ali situado seja tomado como
paradigma de uma positivação fantasmática não na melancolia stricto senso, mas nessas
147
patologias narcísicas, em que o modelo ideal do narcisismo apresenta-se comprometido, ou
não assume função.
54
No âmbito, por exemplo, das concepções balintianas pode-se
apreender que o caráter filobata ou ocnofílico dos pacientes de sua clínica aparece de forma
acirrada nas modalidades de sofrimento que permeiam a configuração melancólica.
55
A
chamada “falha básica” relacionada a um sentimento de descontinuidade existencial que
referencia especialmente a abordagem winnicottiana das subjetividades “falso self”
(WINNICOTT, 1960) situam o problema da relação de objeto cujas características
revelam uma dificuldade vital de abrir mão do objeto. No filobatismo, localiza-se um
movimento de resposta patológica à incidência precoce da separação objetal que,
conflagrada como trauma não integrado psiquicamente, constitui uma forma de defesa
caracterizada por um movimento de dominação e afastamento radical dos objetos. Na
ocnofilia defesa inversa cuja referência traumática é a mesma uma dependência
maciça ao objeto que revela a extrema dificuldade do sujeito de permanecer sozinho num
ambiente qualquer. Segundo Balint, tanto a ocnofilia quanto o filobatismo são patologias
narcísicas que respondem ao trauma da separação precoce dos objetos e de sua não
sustentação simbólica. Essas patologias caracterizam-se precisamente pelo
comprometimento na formação do narcisismo, o qual responde ao trauma com uma
formação patológica, sempre subsumida à presença maciça do objeto (ocnofilia) ou pela
sua ausência e dominação (filobatismo) as duas fazendo referência segundo Balint à mesma
dependência objetal. Nesses termos, o modelo circunscrito à constituição subjetiva das
patologias narcísicas tem como referencial o modelo da melancolia (PINHEIRO, 1993),
cuja formação do eu (imagem de si) e do objeto ficam comprometidas. Novamente localiza-
se aqui o fracasso de “Sua Majestade o Bebê” a partir do qual o sujeito referencia-se num
certo “limbo existencial”.
54
Pinheiro destaca que o terceiro tempo da fantasia “Uma criança é espancada” traduz-se por um sentido de
universalização dos personagens presentes, não havendo nela atribuições identificatórias, mas uma
abrangência que não especifica os atores da cena. A autora salienta que este modelo fantasmático é aquele que
se acha em voga na melancolia e nas patologias narcísicas.
55
Os conceitos de ocnofilia e filobatismo aparecem no capítulo III deste trabalho, e são também abordados
de maneira mais específica nas linhas que se seguem.
148
Estas considerações nos levam, assim, ao delineamento teórico aqui especificado
sob o ponto de vista do discurso que imprime os destinos aos quais o sujeito circunscreve
sua própria existência. Se na depressão temos uma negação do desejo, na melancolia temos
mais precisamente um desmentido de existência. Vejamos como isso se articula em cada
uma dessas modalidades de crença.
Denegação de desejo e desmentido de existência
Como demonstramos, em sua abordagem da melancolia, Pinheiro situa o problema
do sofrimento melancólico de maneira articulada à noção ferencziana de desmentido. Esta
noção, como vimos relacionada ao trauma, sinaliza que este último toma especificidade,
não no acontecimento em si, mas no que se diz sobre ele. Em Ferenczi, como vimos, o
desmentido provoca uma dificuldade do sujeito integrar psiquicamente a idéia relacionada a
um acontecimento sofrido, levando esse psiquismo a uma clivagem que separa o conteúdo
traumático o sentido da culpa da rede de significações do ego. Esse conteúdo
traumático, como assevera Pinheiro, será a matéria-prima da identificação melancólica ao
superego voraz (identificação ao agressor) entrando o sujeito numa ambivalência sem
precedentes. Pinheiro assinala também que o desmentido tem como efeito a não inscrição
de um “sentimento de si”, ou do “sentimento de existência”, posto que o discurso do outro
desmente a certeza daquilo mesmo que o sujeito viveu, o que coloca o eu numa condição
absolutamente frágil.
Lambotte, por sua vez, situa a questão do trauma num momento pré-especular,
propriamente naquilo que ela vai definir como uma “denegação de intenção” por parte do
outro (LAMBOTTE, 1997). O outro que não investe a existência subjetiva do infante e que
não sustenta o movimento de idealização narcísica é esse mesmo que produz, numa
intencionalidade denegada, a falta de referência imagética para o auto-investimento
narcísico e a possibilidade de circunscrição simbólica de um objeto de desejo. A denegação
de intenção é o que, segundo Lambotte, tem como efeito a deserção do desejo no
melancólico, ou seja, esse não chega sequer a ser fisgado pelo desejo. Desmentido do fato,
desmentido da existência. O melancólico desmente a perda de objeto pelo fato mesmo de
149
que sua própria existência foi desmentida, não havendo espaço subjetivo que suporte no
simbólico tal experiência de perda. Essa identificação ao nada na melancolia é o espaço
mesmo sobre o qual o supereu ao nível do ideal do eu absoluto vai infligir toda sua
crueldade.
De maneira que podemos situar esta questão numa fórmula:
denegação de intenção desmentido de existência (melancolia)
Vimos que nas depressões, por outro lado, não há denegação de intenção do lado do
outro, há uma referência narcísica que sustenta o sujeito numa imagem de si. Contudo, aqui
é o desejo que é denegado. O desejo se esvaece na mesma medida em que o transitório se
torna para o deprimido fator fundamental de sua própria insuportabilidade.
Nessa medida, a depressão configura-se como uma denegação radical de desejo que
coloca o sujeito num circuito contra-desejante. A irredutibilidade da crença narcísica acirra
nesse contexto uma mortificação característica da estagnação depressiva grave.
O discurso da “perda de si”
Fica frisado então que nada mais específico do que situar no contexto da relação
com a experiência narcísica as diferenças entre as depressões não melancólicas em
discussão nesse trabalho e o modelo melancólico tal como foi desenvolvido até aqui. Com
efeito, o discurso da perda de si na depressão apontado por Pinheiro (op. cit.) ganha
contornos próprios que diferem da “perda do eu” na melancolia, conforme preconizou
Freud (1917/1996). Na melancolia, segundo Freud, o que se perdeu foi o ego, mas esta
perda diz respeito ao próprio movimento constitutivo da imagem ideal de si no narcisismo
primário que fracassou. O ego “perdido” refere-se, na melancolia, à identificação ao nada.
Se, na melancolia, “o que se perdeu foi o ego” é porque – Freud o diz – a sombra do objeto
o consumiu, tomou seu lugar que era, precisamente, um espaço vazio, uma referência no
150
nada. O melancólico, como demonstramos, nunca desfrutou de uma imagem jubilosa de si,
nunca se lançou ao enamoramento narcísico (eu ideal) condicionado pelo discurso
idealizado dos pais. A barreira para a enunciação mesma de um “eu”, cuja narrativa
construiria esta possibilidade, se levanta paradoxalmente como tentativa nunca alcançada
de construção do sentimento de si na melancolia.
Nas depressões agudas não melancólicas, ao contrário, o discurso é de uma perda de
si, mas mais precisamente a perda de uma imagem perfeita subjugada ao assombro de sua
própria transitoriedade. Nela não se encontra a ambivalência, tampouco o conflito
superegóico que sinaliza a fragilidade do ego melancólico e a identificação maciça com o
objeto. Nessas depressões não melancólicas, portanto, o sujeito pranteia o que foi, numa
reinvindicação do objeto perdido, que em última análise constituiu seu próprio modelo
narcísico ideal.
Conforme dissemos, a depressão revela que o sujeito, diferentemente do
melancólico e das patologias relacionadas a este paradigma, constituiu uma imagem de si
no narcisismo, mas nela se centralizou como possibilidade única de soerguimento do
universo subjetivo. Aqui, o gozo da indiferenciação na depressão diz respeito precisamente
a uma aderência à crença narcísica perdida ou crença num absoluto da qual o sujeito não
consegue abrir mão. A indiferenciação eu / outro é tanto no narcisismo quanto na depressão
um anseio; é sedução do mito maternal (eu-ideal), chave da satisfação sumária de todas as
urgências infantis. Anseio que não pode ser atingido, mas pode ser forjado pela via do gozo
depressivo. Nele o sujeito encontra alguma forma de degustar a estase narcísica perdida,
pelo sabor amargo da indiferença afetiva. O depressivo em sua amargura faz referência à
imagem ideal perdida (“eu fui e não sou mais”) como se, pela via da estagnação, o gozo
da indiferença e mesmo da onipotência – fosse recuperável ou mesmo possível. Portanto,
na depressão, é como se o sujeito dissesse: “se não sou mais o que fui (em outras palavras,
se não sou o todo da relação ego-ideal), então não quero mais nada”. A queda ladeira
abaixo é contudo vertiginosa, e se o sujeito não encontra possibilidades de aceitação da
151
transitoriedade numa narrativa capaz de relançá-lo a uma “reinvenção de si mesmo”, corre
o grave risco da aceleração de sua própria morte.
56
A idealização na depressão e na melancolia: eu ideal e ideal do eu
Numa retomada das considerações de Lambotte sobre a melancolia, podemos
referenciar tais distinções mediante a própria lógica da idealização fator especifico a
partir do qual cada uma dessas afecções se manifesta e se constitui.
Conforme consideramos na investigação do traçado subjetivo da melancolia, a
idealização se constitui no ponto de evanescência do olhar da mãe, o qual se dirige a um
modelo cuja exterioridade representa um ideal inacessível para o sujeito. Sem chances de
alcance, o ideal torna-se a própria raiz do aviltamento superegóico. Lambotte (1999)
esclarece:
“(...) a questão da perda, na melancolia, mais que ao objeto, dirige-se de fato ao
modelo original, inacessível em sua exterioridade, senão mesmo em sua estranheza;
(...), a própria perda só faz suceder à identificação defeituosa do eu-ideal que, em sua
evanescência, permaneceu confusamente suspenso aos traços de um ideal do eu todo-
potente” (p. 224).
Nesse Sentido, Lambotte fala numa “(...) ruptura do transitivismo especular que
chega ao isolamento e ao reforço do ideal do eu, às expensas de um eu-ideal que não pôde
elaborar-se na origem” (p. 224).
56
Essa questão do “tudo ou nada” na depressão é, portanto, a medida objetiva de uma auto-imagem
irreconciliada. Ivanov, por exemplo, nega-se a tal conciliação entre passado e presente marca da
transitoriedade mergulhando numa depressão aguda. Na melancolia o “tudo ou nada” apresenta-se de outra
forma. Ali, o sujeito
recrimina-se a si mesmo pela impossibilidade do “tudo” que o objeto, agora posseiro do
eu, deveria comportar
como que num aviltamento à imperfeição do objeto. O melancólico denuncia, revela
e desvela a imperfeição, tornando-se seu senhor e fazendo dela sua única condição existencial. A diferença
fundamental entre a melancolia e esse tipo de depressão é que se o deprimido referencia-se num eu ideal
perdido, o melancólico afirma nunca ter vivido qualquer experiência parecida, localizando a verdade trágica
de seu desvalor num
sempre infindável, tanto para frente como para trás no tempo.
152
Esta afirmação marca a idealização melancólica como apartada de qualquer
possibilidade de referência narcísica, cuja construção, a partir da idealização parental
fracassada, carece de um si mesmo em sua própria “origem”, e o sujeito vai buscá-la num
ideal do eu inatingível, no olhar atravessado da mãe toda-potente. Nesse nível, nenhum
objeto se acha à altura de cumprir a função do ideal melancólico: num julgamento
superegóico atroz à imperfeição do objeto, as acusações voltam-se para o próprio eu
marca da identificação narcísica.
A melancolia revela, portanto, uma idealização subsumida ao ponto absoluto do
olhar materno, nunca encontrado porque onipotente em sua máxima exterioridade – a “mãe
toda-potente”. Constituído em sua rigidez, o ideal do eu inatingível, assevera aqui a
evanescência do eu ideal, conforme aponta Lambotte quando sublinha especialmente, na
fala melancólica, uma “falta de imagem singular”, ou uma “transparência”. Podemos
afirmar que essa evanescência narcísica faz do eu um vácuo sempre capaz de ser
preenchido pela “sombra do objeto” (Cf. FREUD, op. cit.).
A depressão manifesta, de outra sorte, uma forma de idealização cujo registro, não
obstante tender ao absoluto, como na melancolia, acha-se vinculado ao eu ideal. Como
vimos, ali a referência acha-se concentrada no eu-ideal da Criança Maravilhosa. O que vai
distinguir na subjetivação dos pacientes deprimidos, bem diferente dos melancólicos, é uma
peculiaridade na passagem do eu ideal para o ideal do eu. Quase numa inversão que
define o traçado diferencial entre essas patologias, a evanescência na subjetivação dos
pacientes deprimidos não é do eu ideal, mas do ideal do eu.
O sujeito deprimido se acha centralizado na imagem perdida de si (crença
narcísica); ele é, nesse sentido, o próprio perdido de si mesmo. É um sujeito centrado na
essência do eu que somente a crença narcísica pode sustentar, conforme dissemos. Nessa
perspectiva, o deprimido nega seu próprio descentramento, por não aceitar o jugo da
transitoriedade, da diferença, da mutabilidade e do desejo. Nesse âmbito, por não encontrar
espaço psíquico no sentido de forjar para si um ideal do eu constituído numa figura
“superior” que lhe dê sustentação para as identificações secundárias, o sujeito acha-se
fadado a sucumbir na imagem parada e absoluta de seu passado irrecuperável (eu-ideal),
153
centralizando-se em seu próprio narcisismo perdido. Por isso mesmo deprime. Aqui a
questão das origens retorna para o sujeito como crença num absoluto irretocável que nega a
diferença, a qual constitui, na leitura de Derrida (op. cit.), o próprio campo da constituição e
movimentação psíquica (desejante) no mundo subjetivo, conforme apontamos no segundo
capítulo.
Com efeito, ante ao fato de que o sujeito centraliza-se na imagem perdida, é a
questão do ideal do eu o qual, numa dialética desejante, sustentaria a possibilidade de
movimentação objetal que se acha comprometida. O ideal do eu acha-se desvanecido na
depressão ou, quando muito, intimamente imbricado ao eu ideal. Aqui o sujeito encontra
grandes dificuldades de lançar-se a uma projeção no futuro que suporte o jogo da
polissemia; quando se lança no futuro, projeta-o numa idealização similar a “Sua Majestade
o Bebê”. Aqui é o próprio eu ideal jubiloso da crença narcísica que se lança como
possibilidade única de projeção no futuro, um futuro idealizado, forjado como “substância
narcísica” impossível de recuperar, e fora de uma referência assimétrica que, de outra sorte,
apresentar-se-ia como ponto de enlace tomado do ideal do eu, referenciado numa figura
simbolicamente superior; o sujeito fica amarrado à crença narcísica do eu pleno, contudo
perdido. Esta circunstância se situa num nível em que a formação ego-ideal se firmou, mas
fracassou em inscrever as possibilidades de transformação (próprias do universo
polissêmico) que sustentam a ação ou o elo entre o presente e o futuro projetado pelo
sujeito em suas movimentações desejantes. O que se peculiariza nessas discursividades, em
que a idealização narcísica se sobrepuja à movimentação desejante levando o sujeito à
depressão, é portanto a passagem do eu ideal para o ideal do eu.
Verifica-se nesse âmbito que o ideal do eu na depressão constitui-se numa
precipitação do eu-ideal, a qual impede qualquer possibilidade de reconstrução da história
narcísica e o conseqüente afastamento de sua crença. O que marca o sofrimento nessas
depressões é a relação com um ideal do eu colado à imagem perdida de si mesmo. O ideal
do eu se confunde com o eu ideal na depressão, fica colado a uma dimensão de passado que
não faz ligação com o futuro, ou que, quando muito, como dissemos, o faz sob as insígnias
do eu ideal. O sujeito aqui, desprovido de um modelo externo capaz de construir um ideal
154
do eu ao qual poderia se apoiar, abandonando sua própria imagem narcísica e abrindo-se à
movimentação desejante, vê-se na condição peremptória de construir sozinho e para si
mesmo seus próprios valores e seus próprios ideais (Cf. EHRENBERG, 1998), sem dispor
de uma narrativa sustentada por um Outro assimétrico.
57
O deprimido martiriza-se, portanto, pela impossibilidade da onipotência narcísica e
vai com isso mitigar-se do fracasso de sua performance, porque atado à crença no
narcisismo perdido. O deprimido reclama o narcisismo e o objeto perdido, negando
radicalmente o desejo e mortificando-se num eu-ideal impedido de transformação.
A depressão nos leva assim, a voltarmo-nos para reflexões relativas ao
aprofundamento da discussão sobre a relação do sujeito com a finitude e com a crença no
absoluto narcísico, bem como sobre a especificidade do sofrimento depressivo na
contemporaneidade. No próximo capítulo discutiremos sobre a especificidade da relação
paradoxal entre a vida e a morte, que conjuga em seu cerne as condições e caminhos pelos
quais o sujeito trilha no rumo de sua subjetivação, cuja seqüência tomará como direção a
questão relativa à passagem do eu ideal para o ideal do eu na contemporaneidade. Esta
discussão faz toda referência a pontos de imprescindível abordagem que constituirá o
desfecho necessário de nossa investigação sobre essas formas de depressão, circunscritos
aos destinos da crença narcísica na contemporaneidade.
57
Veremos no próximo capítulo que este é um dos principais aspectos da condição subjetiva do homem no
universo cultural contemporâneo.
155
CAPÍTULO V CONSIDERAÇÕES SOBRE A CRENÇA NARCÍSICA E A
DEPRESSÃO NA CONTEMPORANEIDADE
O estudo da depressão contemporânea assume importância não apenas no que diz
respeito ao seu estatuto teórico-clínico, mas também no que concerne à abrangência da
crença narcísica e seus destinos na atualidade. Partindo da diferença entre a depressão, o
luto e a melancolia, e tomando como eixo para esta análise a crença narcísica, tocaremos
em alguns pontos que consideramos relevantes para um mapeamento do lugar da depressão
em nosso universo contemporâneo.
As discussões sobre as formas de subjetivação na contemporaneidade têm tomado
força no campo psicanalítico, à medida que as manifestações clínicas de hoje diferem dos
sintomas que preponderavam no início do século XX. O objetivo deste capítulo, contudo,
não é o de esgotar as discussões sobre a contemporaneidade, mas de situar alguns
elementos culturais que consideramos importantes, articulados à subjetivação depressiva.
Como discutimos, o sintoma depressivo relaciona-se a uma posição subjetiva que
retira o sujeito da possibilidade de inscrever-se em novas vias desejantes. No mesmo
patamar, o sujeito, na condição depressiva, encontra grandes dificuldades de ação. Entende-
se, assim, que o deprimido revela uma forma singular de lidar com os paradoxos do próprio
narcisismo, permanecendo encapsulado, não no narcisismo propriamente dito como
vemos na paranóia, ou na megalomania mas na crença narcísica. O deprimido, atado à
credulidade numa essência perdida e impedida de atualização, parece não abrir para si
novas possibilidades de subjetivação, ou novas possibilidades de ação. Nesse viés, é
importante salientar que, se a crença é uma regra para a ação (Cf. JAMES, 1907/2005), o
que se acha em questão para o deprimido é o estatuto da crença como abertura de novas
possibilidades de ação, para além da crença narcísica.
O que aparece aqui como crença que instaura para o sujeito uma experiência
específica, traduz-se como crença narcísica: esta constitui a forma que o infante encontra
para tentar garantir sua própria existência subjetiva, tomando o discurso e a imagem do
outro como matérias-primas para sua estase psíquica. Entendido desta forma, o narcisismo
156
implica, portanto, uma movimentação psíquica cuja preponderância situa-se na introjeção
de um sentido dado pelo outro o sentido de onipotência. A crença da onipotência
narcísica situa o paradoxo do narcisismo no âmbito mesmo da ação do sujeito: perante a
perda, o sujeito continuaria agindo à medida que a crença narcísica fosse sendo suplantada.
O deprimido parece apresentar-se, de maneira distinta, como aquele que agiria sob o
signo da onipotência narcísica, negando qualquer possibilidade outra de ação que não seja
esta.
58
Considera-se aqui, portanto, o momento em que o sujeito, perante a transitoriedade
no drama de sua perda narcísica, não construindo novas crenças, perde, junto com o objeto,
sua própria capacidade de ação.
A circunstância em questão direciona três pontos a serem discutidos no âmbito da
depressão. O primeiro é a relação com a finitude e os destinos dados ao impasse da
transitoriedade; o segundo diz respeito ao problema do tempo, bem como da ação,
circunscrito ao drama da crença narcísica; o terceiro relaciona-se à questão do sujeito
fundado na cultura do narcisismo (LASCH, 1979). Esses três pontos estão intimamente
relacionados, tal como veremos adiante.
58
Como vimos no capítulo anterior, a questão da onipotência que aparece na subjetividade depressiva acha-se
subjugada à constituição do eu-ideal, ou à ilusão de onipotência infantil “Sua Majestade o Bebê”. Ciente da
impossibilidade de onipotência ou de plenitude, mas queixoso dela, o sujeito deprime como resposta subjetiva
à dor da perda, atirando-se a uma condição atroz de
impotência. É nesse sentido que dizemos que, atado à
crença narcísica, o deprimido se dispõe a agir sob o signo da onipotência impossível. Na melancolia, a
questão da onipotência aparece de outra forma. Nela, o fracasso da constituição narcísica e da formação do eu
ideal coloca para o sujeito um sentido de onipotência situado no modelo ideal absoluto a mãe toda-potente.
Conforme demonstramos no capítulo IV, com Lambotte, o
outro é o detentor irredutível da onipotência, cuja
incidência coloca o eu numa condição absolutamente frágil perante um ideal do eu avassalador.
157
5.1 – CONSIDERAÇÕES FREUDIANAS SOBRE A RELAÇÃO COM A FINITUDE
Em “Sobre a transitoriedade”, Freud (1915d/1996) aborda uma questão relevante
acerca da finitude no âmbito da experiência humana. O autor considera ali uma forma de
reação à transitoriedade presente no discurso dos seus companheiros de caminhada, que se
exprime pela idéia de que, se as coisas acabam, seu valor se destitui num presente absoluto:
triste e trágico.
Partindo desta circunstância, Freud define, então, duas formas de reação perante a
transitoriedade. Ele afirma:
“Um [impulso] leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo
que outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda
essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo
externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por
demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser
capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição” (p. 137).
Mais à frente em suas considerações, Freud aponta que tais reações subjetivas
perante a transitoriedade acham-se vinculadas a um dos mais preponderantes anseios
narcísicos: a exigência de imortalidade (ibid.). Freud, nessa via, considera:
“essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos
desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não
obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas,
nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei,
porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do
que é belo implica uma perda de seu valor” (p. 317).
Como se percebe, Freud apresenta uma concepção que faz frente a essa “revolta
subjetiva” em relação à finitude das coisas. Numa acepção de que a transitoriedade não
reduz, mas ao contrário, aumenta o valor das coisas, Freud não deixa de situar seu ponto de
vista: “O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo” (p. 137).
158
Freud revela-se aqui como um otimista do tempo. Discordando de seu interlocutor,
defende que é por conta da própria transitoriedade que as coisas ganham seu valor, na
medida em que sua finitude futura é o que destaca e potencializa sua existência presente.
Freud deixa nas entrelinhas, além de tudo, que a dificuldade a dar valor ao que a finitude
instaura diz respeito ao anseio narcísico da imortalidade. Nesse sentido Freud deixa
subentendido que, numa temporalidade eternizada, o próprio desejo se desvanece.
Assim, para Freud o tempo é a marca do valor da vida. Sua inscrição abre para o
sujeito a condição do desejo. Nesses termos, as duas reações apontadas por Freud – tanto o
desalento do poeta, quanto a negação fantasiosa da transitoriedade – dizem respeito à
negação da própria condição desejante esta nada fácil de sustentar subjugada à referida
exigência narcísica de imortalidade, cuja desconstrução é tão cara para o humano.
Não é por acaso que esse texto foi escrito em torno da época em que Freud lançou a
teoria do narcisismo. Entendemos que ali Freud começa a refletir sobre as questões que
surgem a partir do momento em que se aborda o narcisismo e sua relação com a
temporalidade.
Nesse ínterim, torna-se imprescindível situar o estudo da depressão à luz das
reflexões freudianas. Salientamos a partir desta análise de Freud que, para a crença
narcísica, a finitude é incompatível ao projeto de unidade e permanência no discurso
narcísico da perfeição. A realidade em voga à qual o sujeito é convocado a aderir em seu
percurso subjetivo diz respeito precisamente à impermanência, à descontinuidade e à
incerteza inerentes ao movimento da vida fatores aos quais o ego rende-se quando não
sucumbe à sua própria ilusão (psicose) ou quando não pranteia sua perda numa queda livre
e vertiginosa (depressão). Esta última condição acha-se radicalmente atada à questão da
transitoriedade. Pensamos que isto assume lugar de importância na análise sobre os
processos contemporâneos de subjetivação e suas contrapartidas sintomáticas: a depressão
aparece hoje como signo radical de defesa contra a finitude e o desejo.
159
Narciso entre o amor e a morte
É nesse patamar que discutimos anteriormente (capítulo III) as condições complexas
que o sujeito enfrenta ao deparar-se com os paradoxos da crença narcísica. “Sua Majestade
o Bebê” caracteriza o momento em que a vida psíquica é inaugurada a partir de jogos de
linguagem, dentre os quais se podem detectar regras determinadas pela posição que o outro
ocupa na relação amorosa infantil. O investimento do outro, que inventa a subjetividade no
âmbito do narcisismo, deflagra para o infante um mundo de maravilhas sob o qual este
mesmo infante sustentará seu próprio ideal narcísico. Amar-se a si próprio significa aqui
render-se ao discurso embalsamador da mãe, que empresta a silhueta necessária para o
advento de uma imagem de si “plena” de investimento amoroso materno. Como vimos a
respeito desta modalidade de crença, a plenitude que o discurso do outro inventou subjuga
um traçado paradoxal expresso de certa forma pelo próprio mito de Narciso. Entre o amor
e a morte, o enamoramento absoluto de Narciso pela própria imagem ideal é o que o leva à
sua própria ruína. A paralisação é de tal ordem que qualquer movimento no sentido da
mudança torna-se impossível, o que o faz sucumbir à prisão de seu amor mítico. Narciso é a
própria expressão do mito, e a paralisação da imagem é aqui a própria insígnia da
paralisação no tempo. Nesse traçado, é a denegação do desejo o algoz imediato e paradoxal
da própria destruição de Narciso.
No capítulo IV evocamos a análise de Leclaire sobre os paradoxos da “morte da
Criança Maravilhosa”, subjugada ao mito narcísico experimentado no caminho da
subjetivação humana. Como vimos, “Sua majestade o Bebê” afirma-se nos jogos de
linguagem que o discurso do outro empresta tal como a psicanálise concebe. A
pertinência de Leclaire retorna novamente como referência em nossa abordagem sobre a
crença narcísica e os paradoxos marcados por Freud ao falar dos contextos presentes na
reação humana à dor da finitude e da transitoriedade. É exatamente nesse âmbito que
Leclaire aponta a “morte da criança maravilhosa” como via à abertura subjetiva ao campo
do desejo e sua sustentação. Como dissemos, o luto não aparece na depressão, e esta
exprime a dificuldade do sujeito relacionar-se com a finitude e o próprio desejo. O
160
paradoxo deflagrado desde Freud demonstra que o trabalho do luto caracteriza-se como a
superação psíquica da crença narcísica primordial.
É a partir desta via que, inserido no circuito desejante, o sujeito abandona seu ideal
narcísico (eu ideal), numa tentativa de encontrar sustentação para seu desejo, articulado a
um ideal assimétrico (ideal do eu), a partir do qual se afirmarão as identificações
secundárias. O que parece interpor-se na depressão é uma peculiaridade no estabelecimento
do ideal do eu. Vejamos como se configura tal peculiaridade a partir de uma importante
análise sobre a relação desses sujeitos com o tempo, numa perspectiva que situa aquilo que
denominaremos “tempo do instantâneo” como corolário da crença narcísica, em contraste
ao que chamaremos de “tempo da ação”.
161
5.2 O LUTO E A RELAÇÃO COM O TEMPO NO DISCURSO DEPRESSIVO: TEMPO
DO INSTANTÂNEO
X TEMPO DA AÇÃO
Com Freud, o luto caracteriza-se como um processo. Numa acepção mais ampla, o
luto, diferentemente do sintoma depressivo, é um processo psíquico que sinaliza a inscrição
do sujeito na temporalidade: um tempo escasso a partir do qual o sujeito coloca-se na
condição de agir e desejar para além da idealização. Se afirmamos que na depressão não há
trabalho de luto, é porque nela há uma destinação peculiar à dor da perda, ou ao fracasso da
projeção ideal. O deprimido encontra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num
processo psíquico de integração que filiaria o sujeito, no caso do luto, a uma ação descolada
da idealização. Como abordamos, o que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos é
a projeção no futuro de um eu ideal impossível de se realizar e isso, quando uma
projeção no futuro. Sem estabelecimento de qualquer construção narrativa a partir da qual o
sujeito dispor-se-ia a agir, a idealização de si mesmo no futuro é similar à própria
idealização de ‘Sua Majestade o Bebê’. Ela é de tal ordem que o sujeito deprime como
expressão de seu próprio fracasso narcísico. A imagem de si no presente é sempre
insuficiente perante a exigência de um eu-ideal “absoluto” e “perdido”. Tal insuficiência
beira, numa similaridade inversa, o mesmo absoluto irredutível da Criança Maravilhosa. O
deprimido situa-se num flash que liga diretamente presente e futuro, sem constituir um
tempo de ação no sentido da realização, ou um tempo de espera (tempo do desejo) cujo
processo psíquico, de outra sorte, integraria presente e futuro, numa “costura” entre dois
momentos. O tempo desses pacientes é o puro tempo presente, é o tempo do imediato, do
instantâneo, da pressa, da satisfação absoluta – e, portanto, da crença narcísica. Nesse
sentido, sinaliza-se aqui uma forma de subjetivação que faz do tempo uma estagnação do
eterno presente, em que o “passado perdido” (Criança Maravilhosa) torna-se
instantaneamente o “futuro inalcançável”. Nessa circunstância, não aparecem referências a
um ideal do eu que sustente a transformação subjetiva no tempo, e o que prevalece é, no
máximo, um eu ideal lançado como possibilidade única de existência no mundo psíquico.
Perante as mudanças da imagem de si no tempo, subjugadas à insustentabilidade do ideal
162
narcísico, sobrevém o sintoma depressivo, figurado anteriormente pela obra de Tchecov
(“Ivanov”).
A abordagem sobre esse modo de sofrimento concebe, assim, uma forma peculiar
de relação com o tempo, fator crucial de diferenciação acerca do próprio trabalho do luto,
como vimos salientando. O luto é, como dissemos, um trabalho ou processo psíquico; ele
se realiza dentro de um tempo que tem como resultante a identificação por traços com uma
modificação no eu sustentada pelo ideal do eu tal como aborda Freud em “O ego e o
id”. Como dissemos anteriormente, o luto conduz o sujeito a uma reinserção desejante, e a
uma reconstrução da capacidade de ação. O trabalho do luto abre caminho para a
possibilidade de transformação do eu, para a constituição de novas crenças e para a
aceitação da transitoriedade. Inserido no tempo, o sujeito elabora sua perda numa
construção narrativa. Por outra via, o sintoma depressivo potencializa-se na constituição do
tempo psíquico contemporâneo. Como veremos, é o tempo da pressa contemporânea o que
acirra os modos de satisfação não mediados pelo desejo: aqui não estamos falando de
escassez no tempo a transitoriedade, como aborda Freud mas de negação subjetiva da
própria dimensão temporal. Hoje a negação do tempo da espera e da ação se acirra numa
cultura em que a norma é agir (Cf. EHRENBERG, 1998), e agir no sentido de uma
performance muitas vezes inalcançável porque imediata em sua própria exigência. Esta
conjuntura, como veremos adiante, faz do desejo algo ainda mais insuportável na
contemporaneidade. É nesse sentido que afirmamos que a inscrição da escassez temporal é
o que potencializa o desejo (Cf. FREUD, 1915d/1996), enquanto que o tempo “eternizado”
da subjetividade depressiva, tem como efeito o evanescimento do desejo, sob a prevalência
da crença narcísica.
59
Não obstante a afirmação da perda objetal numa fala queixosa sem
muitos adereços simbólicos, os pacientes deprimidos instituem seu projeto narcísico como
possibilidade quase única de existência no mundo da linguagem, num circuito mortífero
59
Na melancolia, ao contrário, o discurso é o de uma aderência radical à questão da finitude. O absoluto da
prostração melancólica acha-se referenciado num ponto em que a própria morte é, em última análise, o cerne
da identificação melancólica. Não referenciado na crença narcísica, o melancólico adere sumariamente à
morte como seu indelével aliado. Não podendo falar sobre a perda, o melancólico torna-se o próprio objeto
perdido, identificado em última análise à morte mesma desse objeto.
163
conduzido por sua crença no absoluto narcísico. Centrado na imagem perdida de Narciso, o
sujeito perde, como dissemos, sua capacidade de ação.
Com esta análise, poderemos avançar nas questões que envolvem a depressão dos
dias de hoje a partir de autores que a pensam de maneira articulada à cultura
contemporânea. A questão que se coloca, nesses termos é que se o ideal do eu caracteriza o
movimento do sujeito no sentido de se afastar da crença narcísica, afastando-se com isso do
denominado tempo do instantâneo e inserindo-o no chamado tempo da ação ou do desejo,
o que se interpõe na subjetivação desses pacientes para que o eu ideal prevaleça como
referência subjetiva, e qual a relação entre esse fenômeno e o contexto contemporâneo? No
ínterim da definição jamesiana de crença, tomaremos a seguir Ehrenberg como guia, no
sentido de definirmos as principais características desta forma de sofrimento no contexto
atual.
164
5.3 WILLIAM JAMES COM EHRENBERG: O UNIVERSO DA CRENÇA E O SUJEITO
SEM-AÇÃO
Conforme propomos a partir de James e Rorty, o que se considera aqui é o
pressuposto de que toda ação humana tem como condição o movimento da crença
sustentada em jogos de linguagem possíveis que permitem a organização do homem no
mundo e na realidade. Consideramos, nesse ínterim, que a crença narcísica é um jogo de
linguagem possível, a partir do qual a criança investe numa forma de ser (ser-imagem para
o outro) e inventa sua própria subjetividade.
A acepção de que a crença narcísica aparece como marca preponderante da
depressão contemporânea nos leva a investigar os fatores ali envolvidos, do ponto de vista
das formas de subjetivação que se inscrevem na atualidade. Numa consideração mais
ampla, a dificuldade do sujeito agir mediante reconstituição de crenças que sustentem o
desejo perante a transitoriedade da vida e, especialmente, da imagem de si, revela a
preponderância mesma dessa imagem ideal perseguida a todo custo nos dias de hoje.
Ehrenberg (1998) situa a depressão como uma das mais insidiosas manifestações
patológicas da contemporaneidade, distinguindo-a das neuroses organizadas em torno do
conflito e da angústia, da identificação simbólica e do recalque. Ehrenberg caracteriza a
depressão como uma patologia da ação. O autor discute a preponderância, na atualidade,
de demandas por tratamento psíquico distintas daquelas que se acham na base da invenção
da psicanálise (histeria e neurose obsessiva) e observa que o paradigma de subjetivação e
de sofrimento hoje não se acha mais tão vinculado à questão do conflito, mas da ação.
Nesse âmbito Ehrenberg aponta que tais demandas clínicas estão muito mais voltadas para
questões factuais como desemprego, precariedade econômica, insegurança, etc. sendo a
depressão o principal elemento articulador da sintomatologia e do sofrimento em pauta. A
depressão é segundo Ehrenberg uma patologia da ação, num mundo em que a norma é
agir, e agir no sentido de uma eficácia individual imediata que confira ao sujeito o status de
sua posição sócio-econômica. Tal exigência de performance configura o que o autor
considera como uma mudança na forma de subjetivação no cenário atual. Ele afirma que o
165
que de mais significativo nessa conjuntura é uma substituição de questões ligadas à
interdição, à identificação simbólica e à falta por questões que envolvem a perda de objeto
e a identidade narcísica (imaginária). Aqui Ehrenberg situa que, exigidos constantemente
de uma performance irrestrita, esses pacientes parecem prisioneiros de um eterno presente.
Nessa prisão da performance cada vez mais inalcançável, o sujeito deprime como expressão
radical de sua dificuldade de agir.
Podemos considerar, nesse âmbito, que o apelo pela imagem impossível se assinala
como ponto em que o sujeito, imerso em suas perseguições narcísicas, coloca-se a si
mesmo em cheque perante a exigência de performance que, na atualidade, constitui cultura.
Assim, a perfeição de si mesmo (crença narcísica) aparece na contemporaneidade como
coisa em torno da qual o humano deve agir.
Como uma norma vigente de acordo com Ehrenberg a ação irredutível impele o
sujeito no mundo contemporâneo a um paradigma deflagrado numa exigência de perfeição
narcísica sem apelo ideal externo, ou assimétrico (ideal do eu).
60
Como aponta Ehrenberg, o
sujeito acha-se hoje na condição de construir para si sua própria história, seus próprios
valores e ideais, em que a norma é aquela que impõe ao sujeito uma constante necessidade
de construção de si mesmo, sem modelos simbólicos (ou crenças) estabelecidas pelo
aparelho social e mesmo cultural. Ehrenberg afirma ainda que o sujeito contemporâneo é
um sujeito “soberano de si mesmo”, não determinado por um Outro que se acha na base de
sua própria história. Tal “soberania” é o fator insustentável nessa equação da performance,
tornando-se este mesmo sujeito, no fundo, um deprimido e um dependente radical do olhar
e da palavra dos outros que confirmem e mantenham seu “status soberano”. Pode-se
considerar que, tal como a criança que confunde onipotência com dependência na relação
com a mãe, esse sujeito “soberano” apresenta-se como um dependente radical na
contemporaneidade.
60
A exigência de perfeição aparece também na neurose obsessiva, mas com uma diferença: nela tal exigência
acha-se subjugada ao ideal do eu. Na neurose obsessiva o ideal do eu se constitui a partir de uma figura
superior ou assimétrica que funciona como modelo para a formação de valores estabelecidos, e para a
exigência obsessiva de perfeição.
166
Nas bases de seu próprio alicerce se acha uma inquietude identitária permanente que
aponta para a insuficiência da ação e da imagem. Numa aspiração a ser, o sujeito sucumbe
a seu ideal narcísico, perdido numa nostalgia depressiva cujo eixo constitui a crença
narcísica em sua face paradoxal de não-ação. O sujeito, fatigado pela exigência de
construção de si sem dispor de modelos simbólicos que funcionem como ideal do eu,
muitas vezes deprime e pranteia seu desvalor num drama que enuncia a imagem narcísica
perdida como possibilidade única de soerguimento subjetivo. O deprimido parece negar
qualquer possibilidade de crença que não seja a crença narcísica – não obstante a ciência de
sua impossibilidade. A cultura atual é, portanto, aquela mesma que exacerba o narcisismo,
e aponta para uma perseguição constante do eu ideal no lugar do ideal do eu. Nesse âmbito,
a negação do desejo é precisamente o que se radicaliza na cultura atual do narcisismo, e o
culto à imagem é o que faz da aparência o espetáculo ao qual o sujeito se sustenta em sua
busca narcísica.
167
5.4 – A SUBJETIVAÇÃO NA CULTURA DO NARCISISMO
Podemos aprofundar as considerações acima a partir da análise de Cristopher Lasch
(1979/1983) sobre a cultura do narcisismo a qual, segundo o autor, se assinala e se expande
desde a segunda metade do século XX. Em “A cultura do narcisismo a vida americana
numa era de esperanças em declínio” Lasch aponta que a cultura atual investe no
narcisismo como nova forma de lidar com as questões do mal-estar na civilização. Lasch
aponta um fenômeno cultural em que a projeção num futuro se desfaz em nome do
imediatismo das satisfações sexuais, do culto à imagem, do afastamento da idéia de finitude
e do não comprometimento com a história e a política. Tais facetas subjetivas aparecem
segundo o autor num momento em que o interesse pelo futuro e pela história acham-se em
declínio, fazendo advir nesse contexto um eterno presente cujos limites o culto ao
narcisismo transpõe sem grandes dificuldades em seu paradoxal auto-aniquilamento.
Assinala-se a partir disso que este modelo de cultura está na base de um auto-
centramento subjetivo (Cf. BIMAN, 1999) o qual poderíamos situar como sendo a
superexaltação do eu ideal configurado pela crença narcísica. Esta prevalência da imagem
de si subjugada à “plenitude narcísica” ou ao “narcisismo onipotente” parece substituir
qualquer possibilidade de projeção num futuro possível, porquanto o descentramento
subjetivo e o remetimento a uma história cuja narrativa percorre os espaços mais insólitos
do inconsciente tornam-se, nessa configuração, absolutamente intoleráveis. A condição
desejante sustentada pela internalização do ideal do eu tal como abordamos no capítulo
III aparece na contemporaneidade como a mais insuportável condição, especialmente
numa cultura em que a exacerbação da imagem e a pressa pelas satisfações imediatas
evidenciam-se como cena fundamental da existência humana.
Psicanalistas da atualidade como Joel Birman e Teresa Pinheiro apontam que as
formas de subjetivação sustentam-se hoje muito mais numa construção imagética do que
numa internalização de ideais rígidos e bem delineados, oferecidos por representantes da
cultura, tal como acontecia até a primeira metade do século XX. Birman aponta:
168
“Na cultura do espetáculo, o que se destaca é a exigência infinita de
performance. De novo aqui se confunde o ser com o parecer, de maneira que o
aparecimento ruidoso do indivíduo faz acreditar no seu poder e fascínio. Nessa
performance, marcada pelo narcisismo funesto em seus menores detalhes, o que
importa é que o eu seja glorificado, em extensão e intenção. Com isso, o eu se
transforma numa majestade permanente, iluminado que é o tempo todo no palco da
cena social” (p. 168).
Essa questão da performance sublinhada por Birman é precisamente o que convoca
o sujeito a construir individualmente, e por si mesmo, uma forma de ser não mais
sustentada por um ideal do eu representado por uma figura superior (na maioria das vezes,
o pai). Em muitos casos na clínica atual, de nada o sujeito pode lançar mão a não ser de
uma imagem de si fugaz que, traduzida pela “sociedade do espetáculo”, caracteriza a
sustentação subjetiva do homem na contemporaneidade: a narrativa atual constitui
preponderantemente a oferta de imagens fugazes articuladas à exigência de performance,
diferentemente daquela que sustentava, nos tempos de Freud, uma “interioridade”
modelada por ideais pré-estabelecidos na cultura. Nessa mesma linha, Pinheiro, Venturi e
Barbosa (2006) salientam:
“Na ausência de um referencial ‘terceiro’, verticalizado, portador de um
código coletivo, que seria capaz de afiançar um estofo narrativo interno, o sujeito
poderá se reconhecer na exterioridade de uma imagem refletida no olhar do outro.
Num regime desta ordem, as nuanças que separam o ser do parecer tendem a se
dissipar. O ser passa a se confundir com o parecer” (p. 114).
A superexaltação do eu ideal circunscreve hoje o quase desaparecimento de um
código ou uma narrativa que funcione como espaço de construção de ideais coletivos, bem
como de prescrições sobre os valores determinados socialmente. Se podemos afirmar, esta
conjuntura aponta para uma evanescência dos modelos de cultura que balizam a relação
com o tempo e com o desejo. A pressa contemporânea e a busca pela performance
individual parecem proclamar o próprio declínio do ideal do eu, numa relação social em
169
que o olhar do outro deflagra uma relação simétrica que exige constantemente a instauração
do “sujeito soberano” apontado por Ehrenberg, aquele mesmo que é convocado a superar,
em sua competência individual, não apenas o outro, mas a si próprio.
Um autor que também pensa a contemporaneidade de maneira profunda é Lyotard,
que assinala uma relação com o saber no campo da ciência destituída de uma busca pela
verdade na cultura atual. Lyotard discute sobre a configuração da denominada
“modernidade”, situando no “grande relato” a forma como o saber narrativo articulava os
diferentes jogos de linguagem (prescritivos, avaliativos, performativos, denotativos,
conotativos, etc.). O relato tem a característica de ser transmissível segundo um código
coletivo fixo e predeterminado que faz com que o eixo da narrativa se encontre no próprio
relato, este garantindo por si mesmo a competência ou a performance do narrador. O autor
aponta a existência de uma “pragmática do saber científico” que gerou na
contemporaneidade uma “deslegitimação” dos grandes relatos em lugar de um discurso que
se legitima por si mesmo o discurso científico. Em seu jogo de linguagem estritamente
denotativo, a ciência destitui qualquer outra forma de articulação de saber que não seja a
sua. Lyotard situa ali, o declínio do grande relato na contemporaneidade, em que o que se
verifica é um deslocamento do metadiscurso (desconstruído nos séculos XIX e XX) para a
prevalência da performance e da competência individual como via de organização cultural.
Ele aponta ainda o caráter exclusivamente prático do desenvolvimento do saber, sem
qualquer indício de uma busca pela verdade. São os avanços tecnológicos e informacionais
o que legitima a produção do saber e o eixo em torno do qual a cultura vai se organizar, em
que nenhuma performance se acha garantida por códigos prescritivos, mas pela
competência individual de cada um em exercer seu saber e construir sua própria grade de
valores.
“A novidade é que, neste contexto, os antigos pólos de atração formados
pelos Estados-nações, os partidos, os profissionais, as instituições e as tradições
históricas perdem seu atrativo. E eles não parecem dever ser substituídos, pelo menos
na escala que lhes é própria. (...). As ‘identificações’ com os grandes nomes, com os
heróis da história atuas, se tornam mais difíceis. Não é entusiasmante consagrar-se a
170
‘alcançar a Alemanha’, como o presidente francês parece oferecer como finalidade
de vida a seus compatriotas. Pois não se trata verdadeiramente de uma finalidade de
vida. Esta é deixada à diligência de cada cidadão. Cada qual é entregue a si mesmo.
E cada qual sabe que este
si mesmo é muito pouco” (p. 28).
É importante salientar aqui que esta consideração de Lyotard sobre o declínio das
metanarrativas, em articulação à queda dos modelos ideais de cultura, aponta na direção
mesma da evanescência do ideal do eu como vimos considerando, na medida em que os
valores que sustentavam uma figura em posição de ideal – como o entusiasmo pelo modelo
a ser alcançado (a Alemanha, conforme o exemplo acima) – não aparecem hoje. Na
contemporaneidade o sujeito é lançado a uma exigência atroz de construção de valores sem
referências simbólicas. Ele é lançado, consequentemente, a uma instabilidade extrema
muitas vezes insuportável –, posto que os antigos modelos ideais alicerçados por um código
bem definido sobre os caminhos a serem trilhados se acham desvanecidos em nome do
desenvolvimento tecnológico, da prática e da performance individual. Pode-se afirmar que
se, na época de Freud, o sujeito padecia de um código moral rígido em seu percurso
subjetivo, culpabilizando-se pelos furos desse código (neurose obsessiva) ou apontando e
queixando-se desses furos (histeria), cabe sublinhar aqui que não hoje sequer um código
que assuma valor de ideal a não ser em suas variações mínimas aparecendo na
contemporaneidade uma forma peculiar de se organizar e se estabilizar perante tais
instabilidades radicais: as modalidades de subjetivação centradas na “cultura do
narcisismo”.
61
61
A abordagem de Lyotard sobre a contemporaneidade abrange especificamente a postulação da pós-
modernidade e a ruptura entre esta e a chamada “modernidade”. A discussão sobre esta questão é
extremamente profunda, não sendo nosso objetivo adentrá-la. Buscamos aqui, ao citarmos Lyotard, destacar
sua abordagem sobre importantes transformações na forma de constituição narrativa nos dias de hoje. O autor
baseia-se especialmente na teoria de Wittgenstein sobre os jogos de linguagem, o que constitui também nossa
base metodológica, tal como trabalhamos no segundo capítulo. Não é nossa intenção, portanto, aprofundar as
discussões circunscritas à relação entre ciência, narrativa e pós-modernidade. Pretendemos apenas situar os
principais motivos pelos quais pensamos um desvanecimento do ideal do eu e uma exaltação do eu ideal na
contemporaneidade.
171
5.5 – OS EFEITOS DE UMA CRENÇA IMPOSSÍVEL: A DEPRESSÃO E A QUESTÃO DO
IDEAL DO EU NA CONTEMPORANEIDADE
A depressão é, assim, o signo de uma dificuldade de lidar com o transitório na
cultura contemporânea. A busca pelo imediatismo no campo da satisfação e pela perfeição
imagética traduz a face mais radical dos discursos atuais. Em sua configuração, a técnica e
o desempenho visam, dentre outras coisas, à supressão da finitude. A cultura atual parece
apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade, cuja característica é
situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderes tecnológicos do
adiamento ou mesmo dissipação da morte, numa suposição de que abrir mão da idéia de
degradação intrínseca à vida seja possível. A cultura contemporânea parece enunciar em
suas entrelinhas uma nova negação da finitude. Nesse contexto a morte poderia ser
suplantada com a garantia prometida dos avanços tecnológicos a partir dos quais o mundo
hoje se organiza (ibid.). A nova salvação para a finitude centraliza-se no aparato
tecnológico, o qual se associa terminantemente à perseguição narcísica do bem-estar e da
satisfação imediata – bem como da auto-imagem perfeita e não atingida pelo tempo.
O autocentramento subjetivo contemporâneo faz do eu ideal, portanto, a referência
do sujeito na atualidade. Na depressão o sujeito acha-se centrado no eu ideal perdido, em
que a negação do desejo aparece como outra ponta do fio da negação da finitude. Pode-se
perceber isso claramente no desenvolvimento cotidiano de tecnologias que lutam contra o
envelhecimento, bem como de obsessões relacionadas à manutenção do ststus corporal na
atualidade (vigorexia). Nesse ínterim, o que a cultura atual parece emitir em suas
enunciações é o discurso mesmo da imortalidade impossível, do imediatismo, pela via das
promessas de extensão da vida, de permanência da beleza relacionada à imagem corporal, e
da perseguição atroz pela perfeição imagética do eu.
Tal ordem de coisas aponta para uma modificação na relação com o ideal do eu na
cultura atual. Em “Psicologia das Massas e análise do eu” Freud delineou, numa dimensão
social, aquilo o que a própria clínica de sua época revelava. Enquanto a paciente histérica
via-se seduzida e hipnotizada pelo saber do Outro com a ulterior queixa sintomática de
172
sua falta o paciente obsessivo fatigava-se por manter o Outro a qualquer custo em seu
lugar impossível de gozo e plenitude, buscando, num sofrimento atroz, tamponar todos os
seus furos e arestas. Nessa via, Freud detectava um movimento similar de enamoramento,
em versão coletiva, no âmbito dos grupos ou mesmo das massas, endereçado a um Outro
assimétrico – o líder. Ele afirma a partir disso:
“(...) estamos em perfeita posição de fornecer a fórmula para a constituição
libidinal dos grupos, ou pelo menos, dos grupos que até aqui consideramos, ou seja
aqueles grupos que têm um líder e não puderam, mediante uma ‘organização’
demasiada, adquirir secundariamente as características de um indivíduo. Um grupo
primário desse tipo é um certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo
objeto no lugar de seu ideal do ego e, consequentemente, se identificaram uns com os
outros em seu ego” (p. 126).
O esquema teórico apresentado por Freud sugere que o ideal do eu individual é
substituído por um ideal coletivo, ocupado por uma figura externa o pai, o líder, o padre,
o juiz, o presidente, o professor (o hipnotizador, o analista), etc. – cujo estatuto delineia, em
última análise, uma mesma ordem de coisas. Ali o que se acha presente é a instauração bem
definida do ideal como marca da prevalência de uma imago “superior” que sustenta a
coesão, tanto grupal, quanto psíquica. Na cultura atual, como apontamos, esses modelos
simbólicos parecem declinar, instaurando de maneira mais radical o sentimento de
desamparo. Como aponta Herzog (2004), trata-se de “Transformações que incidem sobre o
modo como se organiza o socius e cujo efeito maior se mostra no colapso das convenções
coletivas, provocando um esfacelamento da autoridade simbólica. Somos lançados assim
numa era de incertezas uma vez que perdemos toda a garantia de uma referência” (p. 42).
É nesse patamar que em muitos casos o sujeito só pode encontrar sua própria
referência no eu da crença narcísica. E se Freud (1923b/1996) situava o corpo como
superfície em torno da qual o eu funda sua existência subjetiva, é este mesmo corpo
cultuado pelo narcisismo individual que se acha na base da cultura contemporânea.
Detecta-se nisso uma precariedade circunstanciada pela crise identitária do sujeito
“soberano de si mesmo” apontado por Ehrenberg (op. cit.).
173
A depressão é, assim, uma das principais modalidades de sofrimento da atualidade.
Ela aponta a existência de uma configuração subjetiva própria dessa dinâmica que
constitui-se numa precipitação do eu ideal em relação ao ideal do eu. Dito de outra forma,
uma prevalência da crença narcísica, e o sujeito coloca o eu ideal no lugar do ideal do
eu. A depressão contemporânea revela o desvanecimento do Outro – este último definindo-
se como lugar de determinação simbólica do sujeito em suas idealizações parentais no
complexo de Édipo (LACAN, 1959/1985). Fala-se, nesse âmbito, em um declínio da
função paterna na contemporaneidade (Cf. LEBRUN, 2004). Por razões que, contudo,
ultrapassam os objetivos deste trabalho posto que nosso raio de abrangência na presente
investigação não se situa nas dimensões teóricas aprofundadas que esta questão suscita,
mas na diferença entre a depressão, o luto e a melancolia considera-se que o sujeito não
parece encontrar uma sustentação narrativa que possibilite o afastamento da crença
narcísica. O sujeito, como dissemos, não dispõe de uma narrativa que sustente seu desejo
perante a perda. O que podemos sinalizar aqui é um eu ideal colado ao ideal do eu na
contemporaneidade (Cf. PINHEIRO, 2004).
Assim, o sujeito apresenta hoje dificuldades extremas de se constituir a partir de
modelos ideais que sustentem uma narrativa capaz de relançá-lo ao desejo bem como a
outras possibilidades de crença para além da crença narcísica.
O conjunto de questões aqui colocado conduz-nos ao movimento teórico cujo
desenvolvimento aponta para a pertinência das considerações sobre os modos de
aculturação que vigem na atualidade. Do ponto de vista psicanalítico, a depressão
apresenta-se como faceta inerente do circuito que o mundo contemporâneo inscreve em sua
configuração. Pensamos que a própria psicanálise acha-se na condição de abordar esses
temas, a partir de contribuições não restritas a seu próprio campo, na medida em que abre
perspectivas de interlocução profícua com outras formas de pensamento. Não é sem motivo
que suscitamos autores como Lasch e Ehrenberg, os quais, numa visão enriquecedora de
nossa condição cultural e subjetiva, fortalecem as próprias entradas psicanalíticas sobre a
subjetividade contemporânea, à medida que esta possibilita sua própria reconstrução
174
teórico-clínica como resultado do diálogo com diferentes esferas de pensamento – tal como
é feito por Birman, Pinheiro, Costa e outros. Tal é o nosso intuito ao propormos uma leitura
da subjetivação no mundo atual, alicerçada muito mais no eu ideal da perfeição narcísica,
do que no ideal do eu subjugado às figuras que engendram e determinam os modelos de
afiliação do sujeito no mundo. De fato, a análise sobre a crença narcísica visa apontar nessa
direção, de modo a tentar definir os parâmetros para a abordagem da depressão no mundo
contemporâneo, bem como de suas diferenças em relação ao sofrimento melancólico.
175
CONCLUSÃO
O objetivo desta pesquisa foi o de investigar as principais características da
depressão sob a ótica da clínica psicanalítica contemporânea, no sentido de marcar sua
diferença em relação ao luto e à melancolia. Para tanto, nos servimos do instrumental
teórico do pragmatismo lingüístico, tomando como método a concepção de linguagem e de
crença a partir do pensamento de James, Wittgenstein e Rorty. Situando o sofrimento
depressivo sob o contexto da crença narcísica, partimos do pressuposto de que na
idealização o sujeito encontra suas primeiras vias de organização psíquica a partir do
discurso parental, em especial daquele que engendra o caráter impossível, mas
paradoxalmente fundamental, de “Sua Majestade o Bebê”. Apontamos que o paradoxo do
narcisismo, alicerçado nesse jogo de linguagem da onipotência narcísica infantil, situa-se
justamente na condição de sua própria destituição. A destituição dessa modalidade de
crença a crença narcísica é o que se acha na base da inscrição de novas crenças e
desejos (Cf. RORTY, op. cit.) no âmbito mesmo do estabelecimento da narrativa que
estabelece para o sujeito a sustentação do desejo. Nessa via, delineamos a depressão como
forma contemporânea de reação à perda, que difere do luto, à medida que a primeira
apresenta-se como defesa contra o desejo, e o segundo aparece como processo psíquico que
promove sua sustentação.
As considerações sobre os destinos da crença narcísica na contemporaneidade,
trabalhadas no capítulo V, ajudam de maneira importante na marcação de sua diferença
também em relação ao sofrimento melancólico. Como ficou frisado, na subjetivação
depressiva não aparece uma narrativa que funcione como ideal do eu e sustente sua
renúncia à crença narcísica. Na melancolia, diferentemente, o sujeito apresenta em sua
discursividade um código moral rígido, uma instância superegóica atroz que o define de
maneira precisa: o sujeito acha sua identificação num nada infinitizado, reduzido a um
desvalor incomensurável e a uma miserabilidade existencial absoluta. Ali o sujeito acha-se
desvelado pelo próprio discurso, dado que nada pode suplantar a tragédia inominável na
qual o melancólico se insere em seu discurso.
176
Assim, os vetores que diferenciam a depressão da melancolia acham-se
circunscritos no germe mesmo do investimento parental a partir do qual o sujeito encontra
suas formas de identificação.
Quanto à crença narcísica, ela é um elemento importante na formação do eu,
conquanto revele sua face sintomática quando o domínio de si acha-se intimamente soldado
à condição de onipotência. O narcisismo quando da decisiva e sintomática tomada do eu
pela libido – é em si mesmo problemático à medida que o sentido da onipotência subjugado
ao eu ideal se torna condição sine qua non de existência subjetiva e deão no mundo e na
vida. Nesse sentido dizemos que, perante a impossibilidade de sustentação do lugar de
onipotência infantil, o sujeito deprime como forma sintomática de resposta à perda desse
lugar.
Nossa pesquisa considera, assim, a importância de se levar em consideração a
subjetividade na abordagem da depressão, para além do biologicismo e do reducionismo
contidos no diagnóstico psiquiátrico, tal como discutimos no primeiro capítulo. O termo
depressão, apesar de advir do vocabulário médico, é hoje tomado pela psicanálise como
elemento de importância para se discutir os impasses da clínica e dos modos atuais de
subjetivação.
Sob os aspectos cruciais da existência humana na linguagem, procuramos salientar
seu lugar decisivo não apenas no que diz respeito aos processos de subjetivação, mas
também na formação dos respectivos campos de saber. Estes últimos, não desprovidos de
significações contextualizadas pela via mesma da crença (Cf. RORTY, op. cit.), organizam
seus modos próprios de abordagem e recorte da realidade. Procuramos demonstrar o
atravessamento de vetores não circunscritos à pura descritividade médica, contextualizando
a construção dos manuais psiquiátricos à necessidade contemporânea de definição
nosográfica sustentada especialmente pelos achados farmacológicos. Articuladamente a
isso, o discurso científico, cuja operação sumariza um saber tendente à verdade absoluta
por isso sedutor (Cf. CLAVREUL, op. cit.) –, não deixa de operar seus efeitos na própria
cultura. Este último, conforme consideramos anteriormente, opera um efeito de exclusão da
177
subjetividade (ibid.), desvinculando a depressão dos aspectos afetivos, ambientais e
culturais.
A depressão não pode estar apartada dessas realidades, na medida em que aparece
como índice sintomático da não sobriedade do projeto narcísico, discutido no capítulo III.
Se a cultura contemporânea constrói seu sustentáculo numa verdadeira superexposição do
corpo e intensa denegação da dimensão de futuro, bem como de finitude e de desejo, a
psicopatologia depressiva, nos termos da subjetivação na cultura, aparece como resposta à
inviabilidade de imediatismo, esta última imposta pela própria vida sob os auspícios da
temporalidade. Na cultura de hoje, contudo, o que se preconiza é o tempo do instantâneo, e
a exigência maciça de ação acha-se descolada dos processos psíquicos subjacentes ao
trabalho de articulação e elaboração simbólica (metaforização, diferenciação, “trilhamento
psíquico”, etc.). Consequentemente, a reação às perdas ou às frustrações narcísicas
aparecem hoje como resposta automática não metabolizada pelo aparelho psíquico, e a
depressão se apresenta como uma das facetas sintomáticas desse fenômeno.
A psicanálise, como dissemos, não se furta a contextualizar sua própria teoria, por
apresentar em seu arcabouço a possibilidade de movimentação necessária à construção de
novas concepções, e por constituir seu campo num universo de investigação e intervenção
sobre os processos de subjetivação na cultura. Nessa via, propomos que a depressão na
contemporaneidade deve ser discutida como tema relevante para a psicanálise, à medida
que a configuração do sofrimento estabelece para a própria neurose os sinais de sua
constituição cultural.
A distinção entre a depressão e a melancolia aqui proposta realiza-se, assim, dentro
do raio de abrangência da teoria psicanalítica. A melancolia, tal como se entende no campo
psicanalítico, apresenta uma organização circunscrita àquilo que Freud (1923c/1996)
denominou neurose narcísica. Como ficou frisado no capítulo III, as depressões em geral,
por outro lado, não se caracterizam como entidade clínica específica do ponto de vista da
psicanálise. Elas podem aparecer em qualquer psicopatologia e caracterizam-se como
estados subjetivos, relacionados à dinâmica de cada uma delas. Apontamos neste trabalho
um modo privilegiado de reação perante a perda que aparece na contemporaneidade e que
178
ocorre especialmente no campo da neurose. A depressão de que estamos falando é
preponderantemente uma depressão neurótica e, vale a pena afirmar, ela empurra a neurose
na contemporaneidade para aspectos narcísicos antes não preponderantes. Os aspectos
discutidos neste trabalho acerca da contemporaneidade apontam que os vetores narcísicos
da subjetivação se acirram dentro do próprio campo da neurose. Por outro lado, as
chamadas “patologias narcísicas” (não circunscritas à neurose), nas quais se encontram
fortes indícios de fragilidade psíquica própria da melancolia, constituem também
importante esfera de investigação na clínica atual. Assim, a modalidade de depressão aqui
estudada aponta que hoje a própria neurose se aproxima dessas patologias, tornando-se
ainda mais difícil sua delimitação clínica. Isso fica claro justamente quando
problematizamos sua especificidade em relação ao sofrimento melancólico.
Esses vetores narcísicos aparecem hoje em privilégio das questões edipianas que
preponderavam na subjetividade do final do século XIX e início do século XX. Com efeito,
a abordagem sobre os fatores apontados acerca das transformações no mundo
contemporâneo subentende que a própria psicanálise não apresenta de forma alguma, como
apontamos na introdução, uma concepção essencialista, metafísica ou a-histórica do sujeito.
Tampouco ela lida com uma visão solipsista a respeito deste. O sujeito abordado pela
psicanálise é, portanto, um sujeito que se constitui a partir de laços ambientais, amorosos e,
principalmente, culturais.
O conjunto de patologias que preponderam hoje em nosso cenário faz assim, do
narcisismo, a marca atual da clínica contemporânea. A depressão é um dos mais
importantes signos desse fenômeno na atualidade, especialmente porque inclui a própria
neurose nesse paradigma. Nessa linha lógica, identificamos nas depressões aqui discutidas
uma nova forma de defesa ante a perda, uma maneira distinta de negá-la. A depressão é,
pois, uma forma contemporânea de negação do desejo, um sintoma da contemporaneidade.
Concluindo, se o luto é um processo psíquico que promove a renúncia ao objeto, se
na melancolia o sujeito identifica-se narcisicamente ao objeto perdido, e se a depressão é
uma defesa bem sucedida em relação ao desejo, concluímos que luto, depressão e
melancolia são, da maneira como foram abordadas, três formas mutuamente excludentes de
179
reação à perda, detectadas pela clínica psicanalítica. Esta revela sem dúvida modos de
subjetivação e sofrimento que exigem de nós um constante redimensionamento teórico
acerca dos contextos clínicos que se impõem na atualidade.
180
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