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ROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA
DO
I
NSTITUTO DE PSICOLOGIA DA
UFRJ
-
A INVENÇÃO DO CORPO NAS PSICOSES: impasses e
soluções para o aparelhamento da libido e a construção da
imagem corporal
Rosa Alba Sarno Oliveira
2008
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A INVENÇÃO DO CORPO NAS PSICOSES: impasses e
soluções para o aparelhamento da libido e a construção da
imagem corporal
Rosa Alba Sarno Oliveira
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários para a obtenção
do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.
Orientadora: Angélica Bastos
Rio de Janeiro
Julho de 2008
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A INVENÇÃO DO CORPO NAS PSICOSES: impasses e
soluções para o aparelhamento da libido e a construção da
imagem corporal
Rosa Alba Sarno Oliveira
Orientadora: Angélica Bastos
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de
Doutor em Teoria Psicanalítica.
Aprovada por:
____________________________________
Presidente, Profa. Angélica Bastos
__________________________________
Profo. Luciano Elia (UERJ)
____________________________________
Profa. Maria Tavares (IPUB-RJ)
____________________________________
Profa. Helena Veloso (Universidade Estácio de Sá - RJ)
____________________________________
Profa. Ana Beatriz Freire (UFRJ)
Rio de Janeiro
Julho de 2008
iv
Ficha Catalográfica
Oliveira, Rosa Alba Sarno
A invenção do corpo nas psicoses: impasses e soluções para o aparelhamento da libido e a
construção da imagem corporal / Rosa Alba Sarno Oliveira.
Rio de Janeiro: Instituto de Psicologia, Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, 2008.
x, 200 p. il
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia.
1 Tese 2 Psicanálise - 3 Psicose - 4 Corpo 5 Localização do gozo 6 Incorporação
significante – 7 Aparelhamento da libido – 8 Unificação da imagem.
I – A invenção do corpo nas psicoses: impasses e soluções para o aparelhamento da libido e
a construção da imagem corporal
v
RESUMO
A invenção do corpo na psicose: impasses e soluções para o aparelhamento
da libido e a construção da imagem corporal.
Rosa Alba Sarno Oliveira
Orientadora: Angélica Bastos
Tomando como ponto de partida a prática com pacientes psicóticos, nós investigamos e
desenvolvemos elementos que, na obra de Freud e no ensino de Lacan permitem argumentar
a favor da invenção do corpo nas psicoses. Nosso objetivo é contribuir para a direção clínica
nestes casos a partir da análise das formulações da psicanálise sobre o corpo. De início,
examinamos a abordagem feita pela psicanálise da questão da psicose e concluímos que esta
pode ser pensada em relação aos efeitos que a determinação simbólica tem para todo
falante, a saber, a exincia de localização do gozo. Em seguida, aborda-se a problemática
do corpo, tomando como referência a experiência freudiana da clínica da histeria. Nesta
perspectiva, é analisada a determinação do sujeito pelo Outro para que a imagem do corpo
possa ser produzida como uma Gestalt e velar a fragmentação pulsional. Deste modo,
consideramos o corpo como resultado de uma operação de perda de gozo e do enodamento
dos registros do Real, do Simbólico e do Imaginário. Sustentamos que este enodamento
promove as operações da incorporação significante e do aparelhamento da libido,
necessárias para a unificação da imagem corporal. Em seguida, examinamos como estas
diferentes dimensões que constituem o corpo podem se apresentar nas psicoses. Nosso fio
condutor é a teoria freudiana da retração da libido na paranóia e na esquizofrenia. Então,
analisamos a leitura que Lacan faz desta teoria, o que nos permite concluir que na paranóia
haveria uma construção corporal mediante o enodamento em forma de trevo, enquanto nos
esquizofrênicos não encontramos nenhum equivalente. Neste campo bastante heterogêneo
que constitui o problema do corpo para os psicóticos, podemos situar desde as situações
extremas da síndrome de Cotard, passando pelos sintomas hipocondríacos até os casos de
anorexia e bulimia. E para desenvolver esta pluralidade que caracteriza os impasses e
soluções concernentes ao corpo nas psicoses, o consideradas algumas situações clínicas
que indicam que estes impasses não são incompatíveis com a invenção do corpo. Por fim,
analisamos três testemunhos que mostram a possibilidade de inventar um corpo, com os
recursos da incorporação simbólica, do aparelhamento libidinal e da unificação da imagem,
fora da clínica das neuroses. Estes são os testemunhos de Schreber, Joey e Wolfson que
revelam inúmeras estratégias para regular o gozo e construir uma imagem corporal.
PALAVRAS CHAVES: Tese, Psicanálise, Psicose, Corpo; Localização do gozo;
Incorporação significante; aparelhamento da libido; Unificação da imagem.
vi
RÉSUMÉ
La invéntion du corps chez las psychosis: impasses et solutions pour
l’apparelleiment de la libido et la construction de l’image corporel.
Rosa Alba Sarno Oliveira
Directrice d’études: Angélica Bastos
En prenant comme point de départ le traitement clinique de patients psychotiques, nous
recherchons et développons les éléments qui, dans l’oeuvre de S. Freud et
l’enseignement de J. Lacan, permettent d’argumenter en faveur de l’invention du corps
dans las psychoses. On se proposes de contribuer par la direction du traitement dans ces
cas, em analysant des formulations de la psychanalyse sur le corps. Dans um premièr
temps, nous étudions l’apport de la psychanalyse à la psychose et on conclut que cette
question ne peut être penser que en rapport aux effets que la détermination symbolique a
pour tous les parlants, a savoir, la exigence de refréner la jouissance. Nous abordons
ensuite la problématique du corps, en prenant pour référence l’expérience freudiènne de
la clinique de l´hystérie. Nous analysons dans cette perspective, la détermination du
sujet pour l’Autre, afin de produire l’image du corps comme une Gestalt qui recouvres
la fragmentation pulsionelle. Ainsi, on prends le corps en tant qu’un résultat de
l’extraction de la jouissance et de la nouage du Rèel, du Symbolique e du Imaginaire.
On proposes que cette nouage engendres les opérations de l’incorporation signifiant et
de régulation libidinale qui sont nécessaires par l’intégration de l’image du corps.
Ensuite, on analyses comment cettes differentes diménsions qui constituient le corps
pouvent se présenter dans las psychoses. Notre fil conducteur c’est la théorie freudiènne
de la rétraction libidinale chez la paranoia et chez la schizofrénie. Donc, on examine
l’apport de Lacan a cette théorie, ce qui nous amenes a concluire que chez la paranoia il
y aurait une construction corporel grâce au noued de trébol, en tant que chez les
schizofréniques nous ne trouvons aucune équivalent. Dans ces champ trés
hétérogéniques relatif au problème du corps chez les psychotiques, on peut observer dès
de la situation extrême de la síndrome de Cotard, passant pour les symptômes
hypocondriaques, jusqu’à les cas des anorexie et des boulimie. Et pour développer cette
plurarité qui caractérises les impasses et solutions concernant au corps chez las
psychosis, nous apprécions quelques situations cliniques que indiquent que ces
impasses ne sont pas incompatibles avec l´invéntion du corps. Enfin, on analyses trois
témoins qui montrent que la possibilité d’invénter un corps, a l’aide de l’incorporation
symbolique, de la régulation libidinale e de l’intégration de la image, hors de la clinique
de la névrose. Ce sont les témoins de Schreber, de Joey de Betthelheim et de Wolfson
qui révèlent plusiers stratégies pour réguler la jouissance et construire une image du
corps.
MOTS CLEF: Thèse; Psychanalyse; psychose; Corps; Localization de las jouissance;
Incorporation signifiane; Régulation de la libido; Intégration de la image.
vii
A meus pais, de quem herdei uma paixão
incômoda e possante pelo pensamento e pela
diferença.
viii
AGRADECIMENTOS
A minha orientadora, a profa. Angélica Bastos a quem voltei a endereçar a minha
insistente teimosia em pensar sobre a clínica na universidade;
Ao Prof. Luciano Elia, por suas preciosas contribuições, tanto na defesa da minha
dissertação de Mestrado como na qualificação do Doutorado;
A Profa. Ana Beatriz Freire, cujas sugestões na qualificação e ao longo dos
seminários de pesquisa sobre autismo e psicose me foram valiosas;
A Prof.a Maria Tavares que me recebeu no IPUB-UFRJ e em outros momentos não
tão sublimes e me permitiu retomar o trabalho com pacientes nas enfermarias, no meu
tempo;
A Prof.a Helena Veloso, por cujos trabalhos acadêmicos e clínicos tenho um enorme
respeito e afinidade;
A Prof.a Salette Barros, uma parceria de trabalho fundamental e que com enorme
generosidade se prestou a ler o meu texto num momento crucial;
A Neusa Santos Souza, a quem devo grande parte do meu desejo por fazer do trabalho
clínico nas instituições um lugar para o pensamento e muito mais;
A Paulo Vidal, sem o qual tudo seria muito mais difícil;
Aos colegas de trabalho e aos alunos da Universidade Veiga de Almeida, com quem
compartilho o desejo de fazer de uma universidade particular um lugar para o pensamento;
Aos colegas de trabalho nas enfermarias do IPUB-UFRJ, nos quais pude encontrar
parcerias indispensáveis para esta tarefa desafiante que é acompanhar pacientes em situação
de internação e em processo de alta;
ix
Aos colegas do PROJAD (IPUB-UFRJ) dedicados a igualmente desafiante clínica das
toxicomanias, dentro de uma instituição pública, sem deixar de lado a preocupação com a
formação e a pesquisa;
Aos colegas do Doutorado que de diversas formas se mostraram cúmplices e solidários
nesta travessia;
Aos pacientes, com quem aprendo muito sobre psicanálise e sobre a vida;
A minha família, em especial a Pina, a Martinha, a meu pais, a meu irmão, a minha
prima, a Zezé e a Euzenir;
A meus amigos, Patrícia, Alexandre, Andréa, Fernanda, Rita, Nancy, Eliane e as
Cristinas e as Alines, cuja presença crucial na minha vida se deu de diferentes formas e em
diferentes momentos nestes últimos tempos;
A Adão e a Daniele, pelo suporte técnico nos últimos minutos do segundo tempo;
A Casa das Palmeiras, para mim, uma experiência fundadora.
x
“Quais são as formas que um corpo
encontra de discutir uma determinada
questão?” (RODRIGUES, L., In: JB, RJ
2004: p.37).
xi
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................................................. 01
Capítulo 1- Psicose: Do gozo desencadeado às tentativas para localizar o gozo ....... 07
1-1- A introdução da psicose no campo da linguagem................................... 09
1-2- A psicose e a foraclusão no Nome do Pai ............................................... 14
1-3- A psicose e a inconsistência do Outro .................................................... 18
1-4- Localizações de gozo na psicose............................................................. 24
Capítulo 2 - O problema do corpo para a psicanálise..................................................... 31
2-1- O corpo a partir da histeria..................................................................... 32
2-2- A importância da imagem na constituição do corpo .............................. 37
2-3 – Alienação e separação: constituição do corpo pulsional ...................... 44
2-4 - O corpo borromeano: não há corpo sem orifícios.................................. 48
2-5- Francis Bacon: o corpo para além da aparência...................................... 54
Capítulo 3 – O problema do corpo nas psicoses............................................................ 65
3-1- O corpo e as psicoses................................................................................ 66
3-2- A hipocondria da linguagem..................................................................... 79
3 -3- O problema dos orifícios do corpo.......................................................... 83
3- 4- O vazio anatomizado............................................................................... 86
Capítulo 4– Fragmentos clínicos: Diferentes dimensões da invenção do corpo............. 91
4-1- Tentativas de incorporação......................................................................... 92
4-2- Aparelhamento da libido ........................................................................... 101
4-3- Construções da função unificadora da imagem ......................................... 111
Capítulo 5 – Inventando um corpo - Três testemunhos: Schreber, Joey e Wolfson......... 117
5 –1 Schreber: um corpo de mulher para um pai............................................... 119
5 –2 Joey: diferentes recursos significantes para ligar o corpo......................... 141
5 –3 Wolfson: procedimentos para dar contorno ao corpo................................ 155
Conclusão ......................................................................................................................... 183
Referências bibliográficas .............................................................................................. 191
1
INTRODUÇÃO
A clínica da psicose é, aqui, novamente a nossa questão de trabalho um trabalho de
pesquisa e de investimento clínico, tomando como ponto de partida esta experiência que é a
psicanálise, em que pesquisa e prática clínica estão intimamente articuladas.
A Casa das Palmeiras, um serviço de emergência psiquiátrica e o setor de atenção
intensiva a crianças autistas e psicóticas do Instituto Philippe Pinel nos permitiram ter os
primeiros contatos com várias nuances desta clínica. A partir da prática exercida nestas
instituições, na graduação, nos propusemos a mapear as formulações sobre as psicoses em
Freud; e depois, desenvolvemos nossa dissertação de Mestrado em torno das questões do
sujeito e da transferência nestes casos.
mais recentemente, os trabalhos realizados num Centro de Atenção Psicossocial e
numa maternidade do município do Rio de Janeiro, somados ao que conduzimos nas
enfermarias e no setor direcionado às toxicomanias do Instituto de Psiquiatria da UFRJ nos
trouxeram outras indagações. Consideramos que foram estas novas experiências clínicas
que nos levaram ao tema desta pesquisa, em que buscaremos nas teorizações da psicanálise
sobre o corpo contribuições para a direção do tratamento nas psicoses.
Sabemos que as possibilidades e os limites da clínica psicanalítica com psicóticos é
ainda hoje foco de muitos debates, gerador de posicionamentos bastante diferentes e até
mesmo opostos entre os psicanalistas. Com o conceito da foraclusão do Nome do Pai, as
psicoses são definidas por uma afirmação negativa, segundo a qual elas se constituem a
partir da ausência do que estrutura as neuroses a operação metafórica do Édipo. No
entanto, o que iremos verificar é que o ensino de Lacan não se esgota na definição das
psicoses pelo o que se constitui como o negativo da neurose.
Discussões mais atuais, dentro da psicanálise, enfatizam cada vez mais as possíveis
construções destes sujeitos que visam localizar o gozo de maneira inédita. A diferença entre
as estruturas clínicas se mantém, mas estas passam a ser tratadas a partir dos impasses que
lhe são próprios e em relação ao que faz problema para todo ser humano a relação com a
inconsistência do campo do Outro.
Abordar a psicose com relação aos problemas gerados pela inconsistência do Outro
2
pode parecer contraditório, sobretudo, quando somos confrontados com situações clínicas,
traduzidas no próprio meio psicanalítico pela presença do gozo de forma excessiva e pela
ausência de mediações na relação como o Outro.
Como temos constatado no grupo para pacientes das enfermarias do IPUB-UFRJ
(2006-8), grande parte das internações são motivadas justamente pelas experiências de
desvelamento, intrusão e mortificação das crises psicóticas. Estas experiências revelam
problemas consideráveis no que diz respeito à localização de gozo, com implicações tanto
para o campo da realidade significante como para a sustentação corporal.
No entanto, entendemos que esta identificação de todo o gozo do lado Outro ou no
corpo, tal como Lacan (1966a) concebe estas implicações tanto na paranóia como
esquizofrenia, não representa uma objeção ao trabalho de localização do gozo. Ao nosso
ver, seria justamente em torno desta tendência em identificar de forma maciça o gozo no
corpo e no Outro que se definem os limites e as possibilidades de uma clínica psicanalítica
com psicóticos.
Assim, pensamos que para tratar a questão das psicoses a partir do referencial
psicanalítico, é fundamental situá-las dentro da perspectiva de que toda formação humana
tem como essência regular o gozo, tal como nos diz Lacan (1967a), no texto Alocução
sobre as psicoses da criança.
Restaria, então, aos que se dedicam a esta clínica abordar a presença maciça do gozo,
como um problema a ser analisado, investigando as possibilidades de refreamento deste,
esboçadas em cada um dos casos pelos próprios pacientes.
O delírio de Schreber tornou-se o paradigma da localização de gozo nas psicoses,
definindo-se como uma tentativa de ordenação do campo da realidade, do corpo e do
próprio sujeito. E embora esta construção seja pautada por uma gica dos extremos e por
uma tendência a constituir um sistema absoluto, é fundamental não perdermos de vista que
se trata de uma tendência, como o faz o próprio Lacan (1954) ao resgatar a noção de delírio
parcial.
No texto da “Questão Preliminar”, a idéia do delírio parcial é proposta a partir da
constatação em Schreber da existência de relações fora do eixo que o ligam de forma quase
ininterrupta a Deus (LACAN, 1957-8a, p.580). É ressaltada neste caso a presença de um
deslocamento na posição do sujeito diante da onipresença divina que é o centro da sua
3
construção delirante.
As “Memórias de Schreber” (1995) demonstram que o processo de sistematização do
delírio implica em muito trabalho e tempo
1
e convive com momentos de desestabilização,
justamente por ser uma construção que tende ao absoluto.
Este parodoxo presente no delírio pode ser identificado à concepção de sujeito do
gozo (LACAN, 1966a, p. 233) apresentada por Lacan no prefácio para as “Memórias de
Schreber”. Tal como propõem Bruno (1990) e Miller (1987), este sujeito se definiria por
gozar de uma considerável proximidade com a posição de objeto e pelo esforço incessante
em produzir um distanciamento desta posição. Vemos, assim, que ainda que em outros
moldes que na neurose, o delírio pode se afirmar como uma via de regulação do gozo, na
medida em que envolve um trabalho constante de localização e produção de algum tipo de
esvaziamento no que se afirma como absoluto.
Nesta construção paradoxal, em que o paranóico articula o gozo e o Outro reside o
lugar de destaque que a sistematização delirante ganha na direção do tratamento nas
psicoses. Entretanto, sabemos que apesar da importância clínica que o delírio sistematizado
passa a ter, nem todos os pacientes farão uso deste sofisticado recurso significante.
Freud e Lacan fazem referências à pluralização dos recursos para localizar o gozo.
Freud (1915) nos fornece indicações a este respeito quando descreve o que chama de etapa
de restauração e retomada do investimento libidinal nas esquizofrenias.
Lacan (1974-5), por sua vez, desenvolverá toda uma teoria em torno da função do
Pai, destacando nela o efeito de produzir a amarração do Real, do Simbólico e do
Imaginário. Ao Pai, enquanto função, caberia produzir sentido, instaurar ordem, estabelecer
limites e dar sustentação para o corpo, sendo que outros operadores além do Édipo
poderiam fazer valer a função paterna.
A elaboração de uma obra teria este efeito para Joyce, articulando os três registros e
funcionado como um dos operadores da função paterna (LACAN, 1975-6).
Dentro desta perspectiva é que situaremos como objeto de nossa pesquisa as
estratégias através das quais os sujeitos remodelam a relação que estabeleciam com seu
corpo, deslocando-o do lugar de pólo de concentração de gozo. Seguindo esta linha de
1
Lacan (1954-5, p.306) chama a atenção que o sujeito leva praticamente um terço de sua vida no bruto
esforço necessário para a sistematização do delírio.
4
pensamento, enfocaremos as tentativas de localização do gozo, em que o corpo torna-se um
veículo importante, senão privilegiado. Com este fim, buscaremos extrair das teorizações
da psicanálise sobre a constituição da imagem corporal elementos que contemplem algumas
possíveis soluções nas psicoses.
O termo solução tem, aqui, o sentido desenvolvido a partir de Kastrup (1999). Nesta
concepção, a solução constitui uma operação processual de composições e recomposições
que longe de extinguir o problema, representa um melhor encaminhamento deste. Esta
concepção nos pareceu estar bastante de acordo com o acento que a psicanálise dá, desde a
noção de trauma, para a relação com o real, não sendo possível extinguí-lo, mas unicamente
produzir véus para esta dimensão que assalta todo sujeito.
Nesta direção, faremos uma releitura de muitos fenômenos envolvendo o corpo
presentes na clínica da paranóia, da esquizofrenia e do autismo como sendo indicadores do
processo de localização de gozo e da direção do tratamento. Estes sujeitos revelariam na
relação que construíram com seu corpo certo encaminhamento do que experimentavam
anteriormente como intrusivo e deslocalizado.
A esquizofrenia é tida como o exemplo dos impasses para a ordenação corporal, mas
também na paranóia e no autismo é possível identificar movimentos no sentido de
construir recursos inéditos para a sustentação do corpo que façam frente às experiências de
fragmentação e excesso.
No processo de estabilização na paranóia, podemos encontrar efeitos significativos de
produção de consistência corporal, em decorrência da própria construção do delírio, como
atesta Schreber. na clínica do autismo, os fenômenos de desordem pulsional podem dar
lugar à construção de próteses simbólicas para o corpo, até mesmo na forma de sofisticadas
máquinas, como vemos no caso Joey, relatado por Bethelheim.
Definido nosso tema de pesquisa em torno das modalidades de localização do gozo
em que a relação com corpo ganha destaque, dividiremos este trabalho em cinco capítulos.
No primeiro capítulo, nos centraremos no próprio tratamento que é dado à questão das
psicoses no ensino de Lacan. Trabalharemos desde a introdução da psicose no campo da
linguagem, passando pela definição dela como uma estrutura distinta da neurose, para
chegarmos às formulações finais, nas quais a psicose será tomada a partir das teorias da
inconsistência do Outro e das suplências. São, sobretudo, estas últimas formulações
5
lacanianas que nos permitem considerar a pluralidade de recursos para circunscrever o gozo
que caracteriza o heterogêneo campo das psicoses.
O segundo capítulo será desenvolvido em torno de como a problemática do corpo é
concebida pela psicanálise. Nele, partiremos do que a clínca da histeria ensina a Freud, para
desenvolvermos teorizações sobre o corpo que correspondem a momentos distintos dentro
do ensino de Lacan.
Notaremos que tanto com as formulações do estádio do espelho e dos modelos óticos,
quanto com a teoria dos nós, Lacan destaca que o advento da imagem corporal decorre da
relação dialética entre o sujeito e o Outro. É partir da incorporação simbólica, das marcas
simbólicas do Outro que o sujeito tem acesso ao corpo, enquanto imagem narcísica. E para
que esta imagem se constitua, caberá ao sujeito se submeter a uma operação de extração de
gozo, na qual deve perder um pedaço de carne dele mesmo, chamado objeto a.
Neste contexto, buscaremos isolar quais são os elementos necessários para a
constituição do corpo, a saber, o aparelhamento da libido pela incorporação significante, a
construção da função unificadora da imagem e uma operação de perda de ser e de gozo,
representada pela extração do objeto a. Visando ilustrar a dimensão real do corpo que a
imagem busca velar, faremos importantes referências à obra de Francis Bacon e à
abordagem singular que este faz da questão corpo em suas pinturas, o que é retomado por
diversos autores que o entrevistaram e se dedicaram a comentar a sua obra.
No terceiro capítulo, nosso interesse será discutir como é que o problema do corpo se
coloca nas psicoses, pretendendo situar como os três elementos que condicionam a
formação de uma imagem corporal, do ponto de vista da psicanálise, operariam nestes
casos. Com este fim destacaremos, em Freud (1914), a tese da retração da libido na
paranóia e na esquizofrenia. A partir desta tese, Freud irá propor que tanto na esquizofrenia
como na paranóia haveria uma etapa subseqüente à retração da libido, na qual o sujeito
tentaria reinvestir a libido retraída do mundo externo.
Em seguida, retomaremos os desenvolvimentos que Lacan faz destas teorizações
freudianas. Num primeiro momento, vamos ressaltar como, especialmente, a partir da teoria
das suplências podemos reconhecer na paranóia a formação de uma consistência corporal,
ainda que através de uma articulação entre o Real, o Simbólico e o Imaginário diferente da
que opera na neurose. Por sua vez, nas teorizações sobre a esquizofrenia, o que vai
6
prevalecer é a idéia da não operatividade da imagem, fazendo véu para a fragmentação
corporal.
Num segundo momento, nos deteremos nos impasses na clínica das psicoses
decorrentes da ausência da montagem do circuito pulsional e da extração do objeto a que a
condiciona. Este será nosso enfoque na abordagem dos sintomas hipocondríacos, da
chamada síndrome de Cotard, assim como dos quadros de anorexia e bulimia que
caracterizam muitos psicóticos.
No quarto capítulo, trabalharemos três dimensões a partir das quais a invenção do
corpo se configura: a incorporação significante, o aparelhamento da libido e a função
unificadora da imagem. Com este fim, analisaremos alguns fragmentos clínicos que trazem
para a discussão a articulação - não apenas nas neuroses - destas dimensões do significante,
do gozo e da imagem, necessárias para o que chamaremos de invenção de um corpo.
Após esta introdução da noção de invenção do corpo, analisaremos três testemunhos
nos quais os sujeitos efetivamente se dedicam a lidar com os impasses gerados quando o
corpo se constitui um problema mais agudo. Os casos de Schreber, Joey de Bethelheim,
assim como os livros em que Wolfson descreve as inúmeras estratégias acessadas para
produzir algum contorno corporal serão examinadas dentro desta perspectiva, no capítulo
final.
Ao longo do desenvolvimento destes capítulos, mencionaremos algumas falas de
pacientes que acompanhamos nos grupos realizados no Instituto de Psiquiatria da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, falas que ilustram com bastante precisão os
impasses da relação com o corpo nas psicoses e que foram fundamentais para esclarecer
muitos dos conceitos e noções necessários para avançarmos nesta pesquisa.
7
- CAPÍTULO 1 -
PSICOSES: Do gozo desencadeado às tentativas para localizar
o gozo
Apresentação
Poderíamos optar por considerar a localização de gozo nas psicoses como um ponto
de partida para o início de nosso trabalho, mas até porque muitas situações clínicas nos
fazem questionar tal possibilidade para alguns pacientes psicóticos, preferimos entender a
localização de gozo nestes casos como um problema mais agudo e como um impasse maior
desta clínica.
Ao nosso ver, é justamente o confronto com esta dimensão de impasse que marca as
primeiras abordagens dos pacientes psicóticos pela psicanálise. E isto torna necessária a
investigação de como a própria questão das psicoses vai se colocar para os analistas. Dentro
desta perspectiva, iremos abordar diferentes momentos do ensino de Lacan em que
reconhecemos justamente o quanto a psicose se impõe como um desafio clínico e fonte de
importantes reformulações teóricas.
Desde Aimée até Joyce, passando por Schreber, assim como pelas “Apresentações de
Doentes de Sainte-Anne”, a psicose foi constantemente uma das principais fontes de
progresso do ensino de Lacan. Podemos dizer, inclusive, que foram os psicóticos que lhe
permitiram se desvincular da orientação clínica freudiana e abrir novas perspectivas para a
psicanálise. Ao longo de seu ensino, Lacan se esforçará por situar o que seria específico das
psicoses, com as ferramentas teóricas de que dispõe a cada momento, definindo de forma
positiva as produções psicóticas.
Assim, a passagem que este faz de uma interlocução inicial com o saber médico-
psiquiátrico para a psicanálise tem nas psicoses - e, mais particularmente, na paranóia -, o
seu estopim
2
. Em sua tese de Doutorado, vemos Lacan (1932) lançar mão da noção de
personalidade para explorar o que o acompanhamento de Aimée lhe demonstrou a respeito
do funcionamento paranóico e de sua suscetibilidade à compreensão.
2
Antes de me interessar pelos psicóticos e antes que eles me levassem a Freud [...] na minha tese eu me
encontrava aplicando o freudismo sem saber [...] Isto foi uma espécie de deslizamento, de maneira que ao
final dos meus estudos de medicina eu fui levado a ver os loucos e a escutá-los e fui assim conduzido a
Freud...” (LACAN, 1975, p. 15).
8
Alguns anos depois, ele se encontra às voltas com a dificuldade em não reduzir a
loucura a uma manifestação de déficits das funções psíquicas. Assim, em Formulações
sobre a causalidade psíquica, Lacan (1946) irá se esforçar por reconhecer na loucura uma
dimensão de escolha e de posicionamento subjetivo, mesmo que insondável. Isto o levará à
construção de uma teoria sobre a causalidade psíquica própria das psicoses, recorrendo às
noções de delírio de presunção e lei do coração de Hegel a fim de tratar da proliferação do
imaginário, identificada com um traço pregnante da paranóia.
Neste período inicial do ensino de Lacan, todos os fenômenos da loucura serão
reportados ao campo do sentido, sendo possível notar um movimento de introduzir os
fenômenos psicóticos dentro da lógica significante da função da fala e do campo da
linguagem. E será em torno da relação peculiar entre psicose e linguagem que,
posteriormente, será definido o que é próprio desta estrutura clínica.
Num primeiro momento, isto se fará opondo a psicose à neurose. ao final de seu
ensino, Lacan tomará como referência para a concepção da estrutura psicótica, não apenas a
relação dos neuróticos com a linguagem, mas o que define a linguagem como uma estrutura
inconsistente para todos os falantes.
Buscando utilizar estas diferentes concepções da questão das psicoses como um ponto
de partida para nosso tema de pesquisa, dividiremos este capítulo em quatro partes.
A primeira parte consiste no início da abordagem das psicoses a partir da psicanálise,
quando seus fenômenos serão traduzidos como pertencendo ao campo do sentido e
revelando uma relação com a linguagem, na sua primazia sobre todo o falante.
Na segunda parte, analisaremos o que consideramos uma sofisticação desta concepção
das psicoses a partir da função da fala e do campo da linguagem que se desdobra numa
teoria sobre a causalidade significante que lhes é própria. Nisto reside a definição da
estrutura psicótica a partir da rejeição de um significante primordial, ou seja, a partir da
foraclusão do Nome do Pai.
Na terceira parte, será retomado o conceito do Nome do Pai, a partir da função que
lhe é devida e que pode ser encarnada por múltiplos operadores. Nisto consiste a teoria das
suplências paternas como atando os registros do Real, do Simbólico e do Imaginário.
Com a definição do campo do Outro como inconsistente e a teoria das suplências, as
9
estruturas clínicas passam a ser situadas em relação aos impasses que se colocam para todos
os falantes no que diz respeito aos limites do tratamento do gozo pelo significante.
Nesta perspectiva, tanto as neuroses como as psicoses podem ser entendidas como
respostas à impossibilidade de tudo simbolizar, o que corresponderia à construção de
modalidades singulares para a localização do gozo. Isto nos impõe considerar as possíveis
vias de regulação do gozo nas psicoses, o que iremos desenvolver na seção final deste
capítulo. Nesta seção, começaremos com o exemplo da metáfora delirante de Schreber para
em seguida explorar colocações de diversos psicanalistas sobre o que a clínica de cada um
deles lhes forneceu a este respeito.
1-1 A introdução da psicose no campo da linguagem
“... na abordagem da psicose, porque em parte alguma o sintoma, se
soubermos lê-lo, está mais claramente articulado na própria estrutura. O
que nos imporá a definir esse processo pelos mais radicais determinantes
da relação do homem com o significante (LACAN, 1957-8a, p.543).
Em sua abordagem da psicose, Freud (1915), ao situá-la a partir do inconsciente,
funda um novo modo de entendê-la, totalmente distinto das concepções de sua época. Desta
maneira, os fenômenos desta, tão bem isolados e descritos pela psiquiatria clássica, serão
inteiramente desvinculados de uma gênese orgânica e/ou relativa a um déficit ou
deficiência de quaisquer funções fisiológicas.
A descoberta do inconsciente deve-se à suposição de que tanto os sintomas como os
“fenômenos da vida cotidiana” não eram da ordem da casualidade e nem desprovidos de
sentido, mas obedeciam a uma certa lei, à qual se acederia a partir da fala dos pacientes. Foi
nesta suposição que se fundou a invenção freudiana, na escuta cuidadosa do discurso de
suas histéricas, um discurso produzido e dirigido a alguém que presumia naquilo que ouvia
uma determinação inconsciente.
Podemos dizer que a abordagem das psicoses seguirá esta mesma orientação: a
análise da fala dos pacientes e a busca do que esta produção discursiva articula nestes
10
casos. Para ilustrar esta abordagem, damos destaque a dois textos em que Freud se propõe a
analisar as peculiaridades da fala, tanto na paranóia como na esquizofrenia. São eles,
respectivamente, “Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de
paranóia” (1911) e “O Inconsciente” (1915), sendo que em ambos é o discurso dos
pacientes que é tomado como ponto de referência. No primeiro deles, com a investigação
do testemunho por escrito deixado por Schreber em suas “Memórias” (1995), é a
articulação discursiva delirante que será valorizada como tendo os efeitos de reinvestimento
na realidade e de estabilização para este sujeito, conforme desenvolveremos na última
seção deste capítulo. no segundo texto, a partir do discurso de uma paciente de Tausk,
são abordadas as caraterísticas da relação com a linguagem na esquizofrenia, no que iremos
nos deter no capítulo 3.
O tratamento das psicoses a partir da fala dos pacientes é retomado por Lacan em
todo seu vigor, na sua releitura dos textos de Freud. É neste sentido que, resgatando as leis
sintáticas e a materialidade dos elementos associativos que regem o inconsciente, ele vai
tratar os fenômenos da psicose como dizendo respeito ao campo da linguagem e à ordem do
sentido.
Deste modo, será suposto a estes fenômenos um sentido, não um sentido unívoco e
transparente, mas um sentido a ser produzido, mediante sua atualização na fala de cada
sujeito. Nesta definição das psicoses, a partir da função da fala e do campo da linguagem
reside, para Lacan, um modo de tratar a psicose conforme a descoberta freudiana.
É dentro desta perspectiva que a psicose será definida a partir de uma causalidade
significante. Assim também seus fenômenos serão entendidos como resultantes do
assujeitamento significante e do trabalho inconsciente - um trabalho a cujos efeitos é
suposto um sujeito advir, tal como Lacan (1966b) nos indica na sua tradução do imperativo
freudiano, Wo Es war, soll Ich werden.
Lacan toma como ponto de partida para o encaminhamento da questão das psicoses a
insuficiência da psiquiatria da época em lidar com a loucura - tratada como um fenômeno
puramente orgânico e irredutível à compreensão. A constatação dos limites do saber
psiquiátrico para abordar esta questão irá nortear tanto sua tese de Doutorado em
Psiquiatria (LACAN, 1932), quanto o texto dos “Escritos” sobre a causalidade psíquica
(LACAN,1946).
11
Em sua tese sobre a paranóia, o saber psicanalítico opera no sentido de ilustrar e
fundamentar a suscetibilidade da psicose à compreensão e a sua dimensão psicogenética,
opondo-se às correntes constitucionalista, organicista e mecanicista, vigentes até então.
Contudo, Lacan (1987)
3
acaba por nos brindar com bem mais do que isso, relatando o
acompanhamento, durante cerca de um ano e meio, da paranóica Aimée, no qual irá
reconhecer, tempos depois, o uso da atenção à fala dos pacientes, tão próprio da
abordagem psicanalítica.
Em Formulações sobre a Causalidade Psíquica (1946), a psicanálise também não é
apenas um mero recurso ilustrativo. Tomando-a como referência maior em sua crítica ao
organo-dinamismo de Henri Ey, Lacan destaca no ‘fenômeno psicótico’ a relação do
sujeito com a linguagem, sendo esta relação elevada ao nível da causalidade essencial da
psicose.
neste momento, o que é privilegiado nos fenômenos das alucinações,
interpretações e intuições, como um caráter mais decisivo do que a crença e a
sensorialidade nestes implicadas, é o fato de que eles visam o sujeito psicótico e, portanto,
situam-se no campo do sentido:
“... todos esses fenômenos, sejam quais forem alucinações,
interpretações, intuições-, e o importa com que alheamento e
estranheza sejam vividos por ele, todos o visam [ao sujeito] pessoalmente:
eles o desdobram, respondem-lhe, fazem-lhe eco e lêem nele, assim como
ele os identifica, interroga, provoca e decifra. E, quando vem a lhe faltar
todo e qualquer meio de exprimi-los, sua perplexidade nos evidencia nele,
mais uma vez, uma hiância interrogativa, ou seja, toda a loucura é vivida
no registro do sentido” (LACAN,1946, p.166)
Esta articulação dos fenômenos da psicose, como dizendo respeito ao campo da
linguagem e ao registro do sentido, é reafirmada com todas as letras no Discurso de Roma,
em que a psicose é definida como comportando uma modalidade de fala radical e um modo
de estruturação da linguagem que carece de dialetização (LACAN, 1953, p.281).
No “Seminário III” (LACAN, 1955-6), a partir da análise do livro de Schreber e das
considerações de Freud sobre este, o tratamento das psicoses é retomado a partir da fala e
3
Mas é inteiramente surpreendente que quando eu fazia este trabalho que foi publicado em 1932 [...]Eu
procedia com um método que não era tão diferente do que eu fiz posteriormente. Se relemos minha tese,
vemos esta éspecie de atenção dada àquilo que era o trabalho, o dicurso do paciente, a atenção que eu dirigi
a ele é algo que não se distingue do que eu pude fazer depois”(LACAN, 1987, p.8).
12
da linguagem. Neste seminário, Lacan irá insistir em que o fenômeno psicótico deve ser
situado no registro da fala, de onde provém toda a riqueza de suas produções, opondo-se à
fenomenologia de Jaspers e sustentando uma abordagem conforme a descoberta da
psicanálise. Para tal, tomará como ponto de partida o discurso de Schreber, definindo as
“memórias” deste paranóico como um testemunho por escrito, o dizer psicótico.
Neste contexto, Lacan irá definir um método de abordagem do delírio, a partir dos
elementos significantes que este mobiliza, pois será unicamente mediante a correlação
entre eles que se poderá alcançar o que a construção delirante articula. Assim, é a própria
teoria do significante e da significação apresentada através do estudo da psicose.
Este rigor na atenção à fala dos psicóticos é novamente apresentado com a
formulação da posição de “secretário do alienado” (LACAN, 1955-6, p.235), através da
qual é proposto que se tome ao pé da letra os dizeres destes pacientes.
Encontraremos, assim, nestes primeiros anos do ensino de Lacan, um interesse
crescente por cernir o que seria específico da psicose e caracterizar a causalidade
significante que lhe é própria. Com este fim, o discurso delirante de Schreber é
minuciosamente analisado e a partir deste é construída a tese da foraclusão do significante
do Nome do Pai, em torno da qual, a partir de então, será situada toda a problemática da
psicose – seu desencadeamento e sua estrutura.
Enquanto no “Seminário das Psicoses” (LACAN, 1955-6) a ênfase cai sobre a
questão do desencadeamento, na “Questão Preliminar” (LACAN, 1957-8a) serão
trabalhados o processo de estabilização e a estruturação da realidade na construção
delirante de Schreber.
Deste modo, a psicose é definida como constituindo uma forma de estruturação da
realidade distinta da neurose, mediante o delírio. E Lacan (1957-8a) apresentará com seu
esquema I as linhas de força da metáfora delirante de Schreber, a partir de uma
transformação do esquema R, elaborado através da experiência analítica com neuróticos.
Neste texto, serão feitas considerações que não se restringem aos preliminares de um
possível tratamento das psicoses, como a da necessidade de uma “submissão inteira e
advertida às posições subjetivas do paciente” (LACAN, 1957-8a, p. 540). Com este termo,
Lacan (1955-6) caracteriza o seu posicionamento na apresentação de pacientes, a partir do
qual foi possível não reduzir o discurso delirante a um processo mórbido e ter acesso à
13
lógica que este apresentava. Isto lhe permitiu chegar ao eixo do delírio de uma paranóica
que ele entrevistou na atividade da apresentação de pacientes que realizava regularmente
em Sainte-Anne.
Conforme entendemos, a novidade da abordagem lacaniana da psicose, a partir da
função da fala e do campo da linguagem, é reforçada pelo exercício contínuo da prática da
apresentação de pacientes, paralelamente a sua clínica particular.
Apesar do lugar polêmico e controverso que esta prática clínica ocupa no meio
psicanalítico até hoje, podemos encontrar algum consenso entre os que pretendem discutir
a insistência de Lacan em exercê-la. Neste sentido, é unânime o destaque dado à
caracterização das apresentações de pacientes como um lugar de transmissão da psicanálise
no que diz respeito, antes de tudo, ao sujeito psicótico - seu interlocutor privilegiado.
As apresentações clínicas têm como orientação a transmissão de um saber sobre a
psicose, mediante o contato com estes sujeitos. E o que iremos observar nas últimas
apresentações de pacientes é que a psicose é tomada como referência maior, servindo,
inclusive, como o modelo a partir do qual Lacan irá se interrogar a respeito da estrutura de
todo falante:
“Acontece que, na última quarta-feira, em minha apresentação de alguma
coisa que geralmente é considerada um caso, tive um caso certamente de
loucura, que começou pelo sinthoma falas impostas [...] Como é que todos
nós não sentimos que as falas das quais dependemos são, de algum modo,
impostas? [...] A questão é antes saber por que um dito homem normal
não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que
a fala é a forma de câncer pelo qual o ser humano é afligido”
(LACAN,1975-6, p.91-2).
Vemos, aqui, que o termo “falas impostas”, que caracteriza com precisão a relação
com o Outro na psicose, deve sua origem às apresentações de pacientes, pois foi tirado da
boca de um dos pacientes que destas participara, sendo que Lacan nomeará este caso de
loucura lacaniana e considerá-lo como um paradigma da condição de todo falante
(LACAN, 1975-6).
14
Assim, apesar das apresentações serem situações localizadas e limitadas no tempo,
elas vão se revelar como produtoras de um ensino clínico e de paradigmas a respeito das
psicoses
4
, sendo explícitas as referências de Lacan a estas em seus seminários e escritos.
É neste sentido que não devemos negligenciar o fato de que dois pacientes que foram
entrevistados nas apresentações clínicas encontram-se dentre os poucos casos de psicose,
trabalhados nos textos de 1955-6 e 1957-8a, nos quais Lacan se detém particularmente
sobre o tema das psicoses. São estes os casos da paciente que ouve a injúria “Porca!”, em
que são analisados os efeitos sobre o sujeito da ruptura da cadeia significante e da
paranóica cuja construção delirante tem seus pontos de referência essenciais constituídos
pelo termo “galopiner”.
Nestes dois casos novamente é enfatizado o peso que os significantes ganham para os
psicóticos, seja afetando-lhes o ser na forma das injúrias, seja constituindo uma
significação que serve de eixo para um sistema delirante.
Nesta perspectiva, incluímos o modo como o discurso dos psicóticos é abordado nas
apresentações de pacientes dentro da introdução das psicoses no campo da linguagem.
Nelas, é possível reconhecer a atenção dada à fala dos pacientes que caracteriza a
psicanálise e o destaque à relação peculiar com a linguagem que é própria dos psicóticos. E
é neste sentido que iremos entender a afirmação de Lacan de que atua nas apresentações de
pacientes a partir do lugar de analista: “O que se manifesta nestas apresentações que são
apresentações caracterizadas pelo fato que é ao título de psicanalista que eu estou [...] e
que é de minha posição atual de psicanalista que eu opero no meu exame” (LACAN,1987,
p.8).
1-2 - A psicose e a foraclusão do Nome do Pai
“É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na
foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora
paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição
essencial, como a estrutura que a separa da neurose” (LACAN, 1957-8a,
p.582).
4
“... vamos perceber que Schreber tem em comum com os outros loucos um traço que vocês encontrarão
sempre nos dados mais imediatos – é a razão pela qual lhes faço a apresentação de doentes” (LACAN,
1955-6, p. 90).
15
O ensino de Lacan da cada de 50 caracteriza-se por um interesse crescente pelo o
que seria específico da psicose, através da definição da causalidade significante desta. Com
este fim, o discurso delirante de Schreber é minuciosamente trabalhado e a partir deste é
construída a tese da foraclusão do significante do Nome do Pai, em torno da qual serão
situados desde o desencadeamento até a estabilização da psicose.
A articulação do significante do Nome do Pai, a partir do “Caso Schreber”, vai
marcar o destino deste conceito na teoria psicanalítica, pois malgrado as retificações que
este sofre posteriormente, sua sorte permanecerá ligada, no pensamento de grande parte
dos leitores, à sua rejeição na psicose. Entretanto, o que se verifica é que esta é uma
concepção datada do Nome do Pai que funciona apenas como uma abertura para sua
compreensão, como também para a abordagem da questão das psicoses, como veremos na
seção seguinte.
Nos anos 50, Lacan (1957-8a) define o significante do Nome do Pai como o
significante do Outro como lugar da lei, sendo responsável pela consistência da ordem
simbólica para os neuróticos. Segundo esta definição, nas neuroses, o Outro seria dotado
de uma consistência própria porque existiria um significante primordial capaz de assegurá-
la - o Nome do Pai.
Assim, inscrito no campo do Outro, o Nome do Pai constitui uma instância
pacificadora que permite ordenar o mundo em sua dimensão significante, instaurando
vínculos entre significante e significado. Para designar estes vínculos, Lacan (1955-6) toma
emprestada a imagem do ponto de basta.
Nesta perspectiva, o Nome do Pai fornece para o sujeito neurótico uma ancoragem
simbólica, através da definição de coordenadas a partir das quais ele pode se situar na
partilha dos sexos. E será a proposição de uma falha na função primordial deste
significante que irá definir a psicose como uma estrutura distinta da neurose.
Temos, então, os elementos que fundamentam a tese lacaniana sobre as psicoses dos
anos 50. Esta irá se basear na suposição de uma lesão no campo do Outro, ali faltaria um
significante que estaria foracluído, de tal forma que, por não estar articulado no simbólico,
este retornaria no real.
Deste modo, a rejeição do significante do Nome do Pai será apresentada como
condicionando a série de fenômenos, reunidos sob a fórmula da emergência do significante
16
no real e do gozo desencadeado. Nestes fenômenos, com o início dos remanejamentos
significantes e do desastre crescente do imaginário, o sujeito ficará exposto justamente à
ausência de lei, de medidas e balizamentos, que o significante que promoveria tudo isto
não está presente.
Em decorrência da rejeição do Nome do Pai, o sujeito psicótico se veria, assim,
confrontado com rupturas de seu mundo e das significações com que ele se sustentava na
existência. Reconhecemos, aqui, o que a clínica até então designava como o crepúsculo do
mundo, “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida do
sujeito” (LACAN, 1957-8a, p. 565) e que Freud (1911) irá conceber em termos de
desligamento da libido e perda da realidade na psicose, um processo silencioso que só pode
ser inferido a partir de acontecimentos subsequentes.
Lacan irá atribuir estes efeitos de desordem na relação do sujeito psicótico com seu
universo significante à ausência de simbolização de algo primordial, pois o que irá se
manifestar no real será o que não foi simbolizado
5
. É neste sentido que ou haveria
Bejahung ou haveria Verwerfung e que serão supostos destinos diferentes ao que é
submetido à Bejahung e ao que cai sob o golpe da Verwerfung.
O termo Verwerfung é cunhado do trecho em que Freud (1918[1914]) relata o
episódio alucinatório do Homem dos Lobos, considerando este episódio como efeito da
não inscrição da castração. E com Lacan, a Verwerfung vai constituir a marca do destino
do sujeito psicótico, definido pela não inscrição simbólica da castração:
“A respeito da Verwerfung, Freud diz que o sujeito não queria nada saber
da castração, mesmo no sentido do recalque. Com efeito, no sentido do
recalque, sabe-se ainda algo daquilo de que nem mesmo não se quer, de
uma certa maneira, nada saber e cabe à análise nos ter demonstrado que
se sabe muitíssimo bem” (LACAN, 1955-6, p.173).
Temos, assim, no início do ensino de Lacan, o Nome do Pai definido como o
operador significante que permite separar as neuroses das psicoses. Deste modo, a
delimitação das estruturas dependeria da entrada em vigor da metáfora paterna.
5
“... o que foi rejeitado do simbólico reaparece no real [...] a maneira como traduzi o doente não quer saber
nada disso no sentido do recalque (LACAN:1955-6, p. 57-8).
17
A metáfora paterna é a formulação com a qual Lacan visa substituir a teoria do Édipo,
isolando o que nela de essencial e estruturante. Segundo esta formulação, o pai,
enquanto um terceiro termo, irá fornecer um significado para o enigma do desejo da mãe: o
falo. Desta forma, a significação fálica, resultante da metáfora paterna, irá ordenar o desejo
da e, nomeá-lo, lhe dar um sentido
6
(LACAN, 1971), funcionando como um ponto de
basta para o seu deslizamento metonímico.
Neste momento do ensino de Lacan, a metáfora paterna é a condição para a operação
da lei no Outro, através da produção de uma significação que ordena em torno de si própria
o conjunto dos significantes, impossibilitando que estes saiam dos limites do simbólico.
Dentro desta perspectiva, Lacan (1957-8b) divide em tempos distintos a estruturação
do sujeito pela linguagem. O primeiro tempo é descrito como sendo aquele em que a
criança está totalmente entregue ao desejo da mãe que encarna a bateria de significantes
primordial, ausente de qualquer lei. O Nome do Pai seria responsável por ordenar esta
bateria, limitá-la. Segundo Lacan (1955-6, p.359), o Pai introduz uma ordem, uma
ordenação matemática, cuja estrutua é diferente da ordem natural”.
O Pai comparece, então, num segundo tempo, fazendo barra o gozo da mãe,
proporcionando a ultrapassagem de um estado de total submissão a um Outro sem lei, na
medida que faz emergir uma significação para responder ao enigma do desejo do Outro
materno. A significação fálica é, assim, produzida, a partir da incidência do significante do
Nome do Pai, sendo responsável pela ordenação da bateria significantes, anteriormente
totalmente desregulada.
É neste sentido que, como efeito da operação do Édipo, é produzida uma ordenação
do campo do Outro, sendo o simbólico restringido a seus próprios limites e os significantes
impedidos de desencadear no real.
“... O complexo de Édipo quer dizer que a relação imaginária,
conflituosa, incestuosa nela mesma está destinada ao conflito e à ruína.
Para que o ser humano possa estabelecer a relação mais natural, aquela
do macho com a fêmea, é preciso que intervenha um terceiro [...] Não é
demais dizer - é preciso uma lei, uma cadeia, uma ordem simbólica, a
6
Sob à luz do que se passava com relação à determinação de Schreber, é na qualidade de significante capaz
de dar sentido ao desejo da mãe que eu poderia situar o Nome do Pai”(LACAN, J, Seminário “D’un discours
qui ne serait pas du semblant”, aula de 19 de junho de 1971, inédito).
18
intervenção da ordem da palavra, isto é, do pai. Não o pai natural, mas do
que se chama o pai. A ordem que impede a colisão e o rebentar da
situação no conjunto está fundada na existência desse nome do pai”
(LACAN, 1955-6, p.114).
Vemos, portanto, que nos anos 50, a função paterna é identificada à ordenação
simbólica, segundo o modelo edípico, em que o Nome do Pai irá instaurar lei, mediante a
metáfora paterna:
“... se trata de uma única e mesma coisa. Não existe a questão do Édipo
quando não existe o pai, e, inversamente, falar do Édipo é introduzir como essencial à
função do Pai” (LACAN, 1957-8b, p.171).
7
Assim, será em decorrência da ausência desta operação metafórica, propiciadora da
ordenação da realidade significante e de pontos de ancoragem para o sujeito, que se daria a
desordem que caracteriza o desencadeamento da psicose.
Nesta perspectiva, a psicose colocaria em manifesto os efeitos da não ação da função
simbólica do pai. Conforme define Recalcati (2003) a premissa fundamental da tese da
década de 50 é que na psicose o simbólico não produziu adequadamente a
“significantização” do real, devido a uma operatividade defeituosa. Isto leva a considerar a
psicose como a expressão dramática da exclusão do Outro enquanto lugar da lei simbólica,
uma exclusão anti-dialética, sem mediações e que corresponde à proliferação imaginária e a
um excesso de gozo.
Estes últimos elementos que definem os psicóticos a partir da ausência de mediação e
dialetização, que haviam sido isolados por Lacan (1953) em formulações anteriores
como designando a relação específica com a linguagem da psicose, agora a caracterizam
como uma estrutura distinta da neurose.
1-3 - A psicose e a inconsistência do Outro
“... não se pode dispor do conjunto de significantes e esta é talvez uma
primeira aproximação do que seria a castração”(LACAN,1971-2).
A introdução do Nome do Pai pelo viés de sua rejeição em Schreber, no seminário
dedicado às psicoses, marca inicialmente o destino deste significante dentro da psicanálise.
7
Grifos nossos
19
Se, num primeiro momento, ele é apresentado, sobretudo, como o objeto de uma rejeição e
condicionando o desencadeamento na psicose, na década de 70 ele vai designar diferentes
modos de amarração dos três registros – os Nomes do Pai.
Diferentemente dos anos 50, em que era um significante primordial e a pedra angular
da ordenação neurótica do campo do Outro, nos anos 70 o Nome do Pai se torna um
elemento suplementar e plural, responsável pelo enodamento dos registros do Real, do
Simbólico e do Imaginário.
Neste segundo momento, o pai edípico torna-se apenas um dos operadores da função
paterna e o acento cai sobre esta função, antes de tudo, uma função de nomeação e de nó.
Na seção anterior, vimos que era suposta à metáfora paterna a função de operadora da
lei sobre o Outro, sendo a partir de sua incidência que o simbólico seria restringido a seus
próprios limites. Entretanto, já nos anos 60, será explicitado que esta regulação do gozo
pela linguagem deixa um resto inassimilável, representado pela presença na própria cadeia
significante de um elemento heterogêneo o objeto a. Isto significa que se uma falta
estrutural no Outro.
Assim, com o conceito do objeto a fica evidenciado que sempre algo do real que
excede à ação simbolizante do Outro e que este resíduo não depende tanto de uma não
eficácia da ordem simbólica, mas sim propriamente de uma falta constitutiva da ordem
simbólica como tal.
A partir de então, é o simbólico que, por sua estrutura, não tem o poder de simbolizar
todo o real, enquanto na tese da década de 50 a exposição do sujeito aos retornos do que
não foi simbolizado completamente é atribuída unicamente à inscrição falha de um
significante primordial na psicose.
A inconsistência do Outro, tomada como um fato de estrutura, produzirá uma virada
decisiva na abordagem do conceito do Nome do Pai. Nesta nova perspectiva, o Nome do
Pai deixa de ser um a priori, assegurado para os neuróticos e que ordenaria integralmente o
conjunto dos significantes. E a função paterna passa a ser referida à inconsistência
fundamental do simbólico, constituindo uma operação de suplência a esta falta significante
estrutural. É enquanto uma suplência que o pai, ao mesmo tempo em que irá constituir um
princípio de resposta com relação à ausência de um significante que faria o Outro completo,
irá preservar sua incompletude.
20
Conforme ressalta Recalcati (2003), o Nome do Pai sofre, assim, um processo de
pluralização, pois não pode mais ser reduzido a um operador da lei sobre o Outro, no
caso o Édipo, mas passa a ser identificado à função de suplência, passível de ser exercida
por múltiplos operadores.
Certamente, já poderíamos encontrar na década de 50 um prenúncio desta concepção
da função paterna, enquanto irredutível ao modelo neurótico da metáfora paterna. Esta idéia
pode ser vislumbrada, por exemplo, no próprio esquema
8
da estabilização de Schreber,
onde a realidade ganha sustentação a partir da construção de uma metáfora outra que a
paterna – a metáfora delirante.
De modo correlato
,
no “Seminário das Psicoses”, Lacan, com certo toque de humor,
vai homologar a tentativa de reconstrução da realidade a partir da qual se define o delírio de
Schreber a uma operação de reconstituição de um pai e à fundação de uma forma original
de filiação: “Após o encontro, a colisão com o significante inassimilável, trata-se de
reconstituí-lo, que esse pai não pode ser um pai bem simples, um pai redondinho, o anel
de ainda pouco, pai que é pai para todo mundo. E o presidente Schreber o reconstituiu
com efeito” (LACAN, 1955-6, p. 360).
E mesmo antes da formalização do Nome do Pai da década de 70, também poderão
ser encontradas referências à sua função de fazer nó, como no seminário “As Psicoses”, em
que Lacan define este significante como “um anel que faz tudo se manter junto”
9
.
Entretanto, será apenas com o recurso do nó borromeano e da passagem para o
plural - do Nome do Pai aos Nomes do Pai - que poderemos verificar realmente uma
ampliação da função paterna, no sentido de que outros significantes que não apenas o pai
edípico funcionem como operadores desta função. É, portanto, a estrutura do nó
borromeu que evidencia as funções de amarração e de nomeação do pai.
Lacan começa a trabalhar com a teoria dos nós especialmente a partir no Seminário
Pire (1971-2), apresentando os registros do Real, do Simbólico e do Imaginário como três
ordens equiparadas. Nenhuma destas ordens tem preeminência sobre as demais, pois o que
é determinante é o enodamento delas.
8
Trata-se do Esquema I, exposto na página 578 do texto “De uma questão Preliminar...” (LACAN, 1957-8a)
9
“... tentamos situar num esquema o que faz manter-se de pé a concepção freudiana do complexo de Édipo,
não é de um triângulo pai-mãe-criança de que se trata, é de um triângulo (pai)- falo-mãe-criança. Onde
estará o pai ali dentro? Ele está no anel que faz manter tudo junto” (LACAN,1955-6, p.358).
21
No Seminário RSI (1974-5), é introduzido o quarto termo, como o que estabiliza a
estrutura do nó borromeano. Como explicita a citação a seguir, o significante do Nome do
Pai comparece enquanto este quarto nó, um significante suplementar que constitui uma
suplência indispensável para a amarração dos três registros, o Real, o Simbólico e o
Imaginário:“...quanto àquilo de que se trata, a saber, o atamento do Imaginário, do
Simbólico e do Real, é preciso, essa ação suplementar em suma de um toro a mais, aquele
cuja consistência seria de referir-se à função dita do Pai”(LACAN, 1974-5, p. 31-2).
Neste mesmo seminário será exposto que esta função de atamento dos três
registros é passível de ser encarnada por múltiplos operadores. É neste sentido que
Lacan se refere aos Nomes do Pai, enfatizando o lugar de uma suplência indispensável
que estes significantes ocupam no enodamento dos três registros e na produção de
consistência.
Nas palavras de Lacan:
... quando comecei a fazer o seminário dos “Nomes do Pai”, e que pus,
como alguns sabem, pelo menos aqueles que estavam lá, pus um termo, eu
certamente tinha - não é por nada que chamara isso de “Os Nomes do Pai
” e não o Nome do Pai, eu tinha algumas idéias da suplência que o campo
toma, o discurso analítico que faz com que esta estréia, por Freud, dos
Nomes do Pai, é porque esta suplência é absolutamente indispensável que
ela tem vez: nosso Imaginário, nosso Simbólico e nosso Real estão talvez
para cada um de nós ainda num estado de suficiente dissociação para que
só o Nome do Pai faça nó borromeano e mantenha tudo isso junto, faça
a partir do Simbólico, do Imaginário e do Real”(LACAN, 1974-5, p.32)
10
.
Neste momento, o pai apresenta-se depurado de qualquer acepção imaginária e
sua função não é mais redutível à operação edípica e nem privilegia um dos registros,
em detrimento dos demais. A função do Pai será identificada à função de nomeação, por
meio da qual são constituídas as coordenadas que vão permitir ao sujeito se sustentar na
existência: “... reduzo o Nome-do-Pai à sua função mais radical que é a de dar um
nome às coisas com todas as consequências que isto comporta” (idem, p.46).
Conforme entendemos, dar nome, aqui, tem o valor de produzir um modo de
amarração e ordenação do universo significante e, assim, fornecer pontos de ancoragem na
existência para o sujeito.
É inevitável, aqui, fazer uma referência a Bispo do Rosário que, através da construção
de detalhadas miniaturas, ao lado de cada uma das quais bordava o nome que lhe era
correspondente, construiu um mundo e um lugar para si mesmo. O próprio Bispo
10
grifos nossos.
22
denominou este seu empreendimento de reconstrução do mundo e, em meio às palavras que
bordava, enunciou o quanto estas palavras lhe eram necessárias, o quanto precisava delas,
destas “palavras escrita” (HIDALGO, L., 1996, p. 151).
Posteriormente, no seminário O Sinthoma (1975-6), Lacan indica que a ausência do
quarto que mantém unidos os três registros em Joyce dá lugar para a construção de uma
suplência. E irá considerar que a escrita funciona neste caso como um recurso para
remediar a falha do enodamento borromeano, cumprindo assim a função do que ele
chamará de sinthoma.
Deste modo, tal como esclarece Skriabine (2006), ao final de seu ensino, Lacan nos
expõe que a experiência humana se estrutura em referência aos registros do Real, do
Simbólico e do Imaginário. São estas categorias, fundamentalmente heterogêneas, que o
sujeito deve manter articuladas para sustentar e fazer consistir a realidade humana.
A realidade humana define-se, assim, como não tendo nenhuma existência intrínseca,
mas como uma consistência produzida através da construção de um véu tecido de
imaginário e simbólico que serve para recobrir o real. Esta construção implica numa
contrapartida, que é a localização do gozo. E esta localização procede da função do pai, na
forma de uma interdição que coloca em ação a lei simbólica, cabendo a cada sujeito fazê-la
operar.
Dentro desta nova perspectiva, podemos afirmar que a função do Nome-do-Pai é a de
fazer consistir, para cada sujeito, uma realidade sem existência prévia e que não existe outra
escolha senão se servir dele, já que não há uma amarração a priori dos três registros.
Vemos, assim, que nos anos 70, o Nome do Pai passa a ser relacionado à função de
localização do gozo, a ser produzida por cada sujeito mediante o enodamento dos três
registros. Desta maneira, a função paterna consistiria em tornar possível uma coordenação
entre a linguagem e o gozo, mediante distintos operadores e a partir de invenções singulares
- vários modos de fazer suplência e colocar em ação o enodamento dos três registros.
Esta redefinição do Nome do pai promove uma reformulação da teoria anterior do
‘defeito’ de simbolização como definindo as psicoses. Esta é a tese de Recalcati (2003) que
sustentará que não é mais um ‘defeito’ de simbolização que caracteriza o campo das
23
psicoses, mas sim a carência de um princípio regulador de gozo que pode dar lugar à
construção de uma suplência.
Seguindo esta mesma linha de raciocínio, Maleval (2002) irá propor uma nova
maneira de entendermos o desencadeamento na psicose. Para ele, o desencadeamento da
psicose, não mais podendo ser reduzido a um efeito de uma falha inaugural, passa a ser
situado em relação ao próprio confronto do psicótico com a inconsistência do Outro. A
crise psicótica representaria, assim, a falência do que até então permitia alguma localização
do gozo, mesmo que mediante compensações imaginárias.
É dentro desta perspectiva que este autor irá afirmar que a noção do desencadeamento
psicótico se verá cada vez mais suplantada pela questão da não localização do gozo, o que
não impede a invenção de outros recursos, diferentes do neurótico.
Estas novas formulações dos anos 70 tornam impossível qualquer concepção da
psicose em termos de déficit, pois situam os psicóticos em relação aos impasses que se
colocam para todos falantes, no que diz respeito aos limites do tratamento do gozo pelo
significante e à construção de suplências.
Sabemos que a forma fundamental de tratamento do gozo é a linguagem, mas o gozo
não respeita integralmente a ação de linguagem. Disto resultam os problemas dos distintos
modos secundários de tratar os retornos do gozo as suplências - modalidades plurais de
tratar esses retornos de gozo não simbolizado.
Tal como expõe Recalcati (2003), na psicose, temos acesso a um trabalho incansável
para encontrar modos de tratamento do gozo, seja por uma compensação imaginária à falta
da metáfora paterna, seja por uma suplência que ofereça um tratamento significante do
gozo. Em torno da discussão destas modalidades de tratamento do gozo dos psicóticos
centraremos a seção a seguir, intitulada “Localizações de gozo nas psicoses”.
1-4 – Localizações do gozo nas psicoses
“Toda formação humana tem, por essência, e não por acaso, refrear o gozo”
(LACAN, 1967a, p.362).
24
Como vimos na seção anterior, as modificações na concepção do Nome do Pai,
promovidas ao final do ensino de Lacan, afetam o sentido do termo de foraclusão, como
exclusão de um significante primordial que tende a ser substituído pela noção de carência
de um princípio regulador de gozo.
As psicoses passam, assim, a ser situadas em relação aos impasses que a
inconsistência do simbólico apresentam para todo falante. Deste modo, restará também ao
sujeito psicótico construir um recurso para localizar o gozo, ainda que distinto da suplência
edípica.
Neste sentido, pensamos que, como contrapartida dos fenômenos de desordem, caos e
dissolução da crise psicótica, o sujeito será convocado a lançar mão dos mais diversos
esforços para ordenar o seu mundo significante. Então, o que se coloca como uma
necessidade e, até mesmo como uma espécie de obrigação
11
nestes casos é a construção de
um instrumento regulador do gozo que forneça para o sujeito pontos de ancoragem na
existência. Conforme entendemos, são estas as indicações de Lacan (1957-8a), feitas a
título de uma questão preliminar a todo tratamento possível na psicose.
Neste texto, Lacan não se furta a reconhecer, na psicose, a luta por criar um novo
mundo de significações: “... seria assim concebível como contornando o furo cavado no
campo do significante pela foraclusão do Nome-do-Pai. É em torno desse buraco [...]
que se trava toda a luta em que o sujeito se reconstrói” (LACAN, 1957-8a, p. 570).
Da mesma forma, Freud (1911) irá afirmar a existência de uma fase de construção
da realidade na psicose, a que ele irá conferir o estatuto de uma tentativa de
restabelecimento e até mesmo de um processo de cura.
O delírio é situado dentro desta perspectiva como constituindo o reinvestimento
libidinal na realidade, uma etapa de caráter ruidoso que se segue à fase silenciosa e
propriamente patológica de desligamento da libido, à qual só se tem acesso por meio de
inferências posteriores.
Conforme esta formulação, o delírio é homologado a um processo de reconstrução
do mundo em sua dimensão significante, sendo assimilado em termos de ordem,
elegância e eficiência (LACAN, 1957-8a, p.578), em oposição ao caráter de dissolução,
11
Bispo, criador de uma obra de enorme beleza com a qual visava reconstruir o mundo em miniaturas para
apresentá-lo no Juízo Final, nos oferece relatos falados e escritos (bordados) sobre o caráter de exigência e
necessidade desta reconstrução. Abaixo do mapa em que bordara o corpo humano, ele faz o seguinte registro:
EU PRECISO DESTAS PALAVRAS – ESCRITA. E relata, para uma de suas testemunhas escolhidas, a
missão da qual era responsável: “ – Não faço porque quero, é uma obrigação.” ( HIDALGO, L., 1996, p.
151).
25
caos e desordem que define a crise psicótica. Deste modo, é conferido à construção
delirante o estatuto de um dos Nomes do Pai, um dos operadores desta função
propiciadora de um ponto de sustentação na existência para o sujeito.
Assim, mediante este trabalho de reconstrução de um operador da função paterna,
o sujeito psicótico pode retomar o recurso da fala e ordenar o campo da linguagem,
segundo uma nova “ordem do mundo”
12
. É desta forma que Lacan (1975-8a, p. 579)
define a construção delirante de Schreber representada no esquema I que ele vai
equivaler às respostas frente às diferentes etapas de dissolução imaginária, visando
restabelecer ali uma “ordem de sujeito”.
“Esse esquema demonstra que o estado terminal da psicose não representa
um caos petrificado a que levam as consequências de um sismo, porém,
muito antes, essa evidenciação de linhas de eficiência que faz falar, quando
se trata de um problema de solução elegante (LACAN,1957- 8a, p. 578)
13
.
É neste sentido que a construção delirante irá operar como uma suplência, pois o
paranóico, diante do horror que significa para todo falante a impotência do simbólico de
tudo simbolizar, vai fundar um Outro, onde irá situar todo o saber que lhe concerne.
É nesta perspectiva que Lacan (1966a), quando elabora o prefácio a uma nova edição
das Memórias de Schreber, nos oferece uma definição da paranóia como identificando todo
o gozo no lugar do Outro.
No entanto, é preciso entender esta concentração do gozo no Outro que define a
paranóia como efeito da construção do sujeito, sendo por ele suportada, nas duas
acepções deste termo, no sentido de que é o sujeito que a ela oferece suporte e que terá,
assim, de tolerar e lidar com as conseqüências disto:
“Quando lermos mais adiante na pena de Schreber que é na medida em
que Deus ou o Outro goze de seu ser apassivado, que ele mesmo confere o
suporte, enquanto que ele se aplica em nunca deixar uma cogitação
articulada nele afrouxar, e que basta que ele se abandone ao nada pensar
para que Deus, esse Outro feito de um discurso infinito, furte-se...”
(LACAN, 1966a, p. 22).
14
Deste modo, não devemos perder de vista que se, por um lado, a metáfora delirante
veicula uma absolutização de saber, isto não elimina o seu caráter de uma construção do
sujeito e de resposta à inconsistência do Outro, enquanto lugar do simbólico.
Além disso, não podemos negligenciar o fato de que a definição do delírio como a
construção de um saber que se quer pleno, representado na figura do Outro absoluto,
12
Schreber, na sua língua fundamental, dá destaque a este termo ‘ordem do mundo’, segundo ele, uma
construção prodigiosa que define as relações de Deus e a criação nomeada por Ele de vida, sendo impessoal e
tendo um valor normativo até para o próprio Deus ( SCHREBER, 1995, p.70, nota 35).
13
grifos nossos.
14
grifos nossos
26
ganha sentido a partir da parcialidade que esta construção comporta. Referimo-nos, aqui, ao
caráter parcial do delírio, no qual Lacan insistiu, nos textos em que se dedica à estrutura e à
estabilização psicótica.
Esta afirmação do caráter parcial do delírio também é feita em Resposta ao
comentário de Jean Hyppolite, quando Lacan (1954) diferencia a paranóia da
esquizofrenia, caracterizando a primeira como uma longa e penosa organização discursiva
do universo sempre parcial do delírio.
Com a pluralização dos Nomes do Pai, outros recursos que não o delírio passam a ser
considerados para a regulação do gozo nas psicoses. Neste sentido, será feita toda uma
teorização em torno da obra de James Joyce e de sua função de fazer suplência. Assim, a
escrita para Joyce será definida como um artifício para recompor o borromeano
(LACAN, 1975-6, p.148).
Encontramos inúmeras referências de psicanalistas a este respeito, considerando a
construção de outros recursos para a regulação do gozo nas psicoses. Para Soler (2002), por
exemplo, a ausência de um princípio regulador de gozo na psicose é suscetível de ser
compensada em seus efeitos com formas que não se reduzem exclusivamente à elaboração
delirante. Soler define este trabalho nas psicoses através da invenção de uma maneira de
tratar os retornos do que surge fora da cadeia significante e das emergências de gozo que
lhe são correlatas. Nestes casos, o sujeito lançaria mão de recursos, buscando localizar o
gozo e torná-lo suportável.
Os recursos mais identificáveis seriam os que se servem do simbólico na forma de
uma suplência que consiste em construir uma ficção diferente da ficção edipiana com a qual
o sujeito localiza o gozo antes excessivo.
Esta autora destaca, sobretudo, a criação de uma obra em Rousseau e em Joyce, mas
irá considerar também outras modalidades menos sofisticadas de tratamento do gozo.
Dentre estas, ela inclui algumas passagens ao ato como modalidades para localizar o gozo
no real do próprio corpo, como no caso acompanhado pelo casal Lefort, o do menino
Robert que tenta cortar o próprio pênis, o que analisaremos no capítulo 4. Estas
intervenções sobre o próprio corpo serão por nós melhor apreciadas quando
desenvolvermos os casos clínicos no capítulo 5.
Também abordando outras formas de tratamento do gozo, Calligaris (1989) um
27
importante destaque a errância psicótica. Este autor discute dois casos em que, em
decorrência da ausência de uma significação ordenadora da realidade, o sujeito se dedicaria
a um percurso infinito de uma significação para outra.
Para ele, o que chama a atenção na errância psicótica é a enorme disponibilidade dos
pacientes para seguir qualquer direção, como se qualquer estrada fosse possível, na
ausência da estrada principal: “O significante ser pai é o que constitui a estrada principal
entre as relações [...] Se a estrada principal não existe, a gente se diante de um certo
número de caminhos elementares...” (LACAN, 1955-6, p. 330).
Esta presença na vida de sujeitos psicóticos de mudanças repentinas de rumo,
transformações que podem se configurar inclusive como metamorfoses contínuas da
própria imagem, será traduzida nas Conversações de Arcachon (MILLER, 1998) como uma
desconexão do sujeito na sua relação com o Outro.
Conforme entendemos, o que está em jogo na errância na psicose é o confronto com a
dimensão de inconsistência do Outro, restando ao sujeito o recurso da desconexão, a partir
do qual se lança na busca de algo em que supostamente identificaria consistência.
A este respeito nos remeteremos ao relato de um paciente que participou de um dos
grupos feitos nas enfermarias do IPUB-UFRJ (2006-8). Numa das sessões, ele nos
confidencia a razão de suas peregrinações por alguns estados do Brasil. Diz ele que toda
vez que faz isso é internado, mas seu grande problema é morar ao lado do Instituto Médico
Legal (IML). Muitas vezes aquilo lhe náuseas, não consegue se alimentar e fica
limpando toda a casa para se proteger das doenças, sujeiras e baratas do IML. Existem
muitas doenças sem cura no mundo, diz ele em total desespero, então começa a falar de
outros aspectos que são também para ele signo da desordem do mundo, diante dos quais
encontra-se sem defesas e frente ao que lhe resta sair às ruas, falar as pessoas sobre isso,
ou, inspirado por algum trecho da bíblia ou alguma lembrança nostálgica do passado, ir à
procura de algum elemento que supostamente ordenaria e daria consistência ao seu mundo.
Para este sujeito, o IML, com seus cadáveres, assim como as doenças sem cura
representariam àquilo para o que lhe faltam palavras, a dimensão de inconsistência
simbólica, diante da qual ele se sem defesas e sem respostas, e por isso se lança, através
de suas peregrinações pelo Brasil, em busca de alguma consistência para sua própria vida.
Estas situações de errância caracterizam-se, assim, por uma espécie de alternância
28
entre momentos de ligação com o Outro e de desligamento deste. Ao nosso ver, isso
também constituiria uma estratégia para localizar o gozo que se apresenta sem nenhuma
mediação e perante o qual o sujeito se vê sem defesas.
Cottet (1999) é outro psicanalista que chama a atenção para a heterogeneidade das
formas de localização do gozo na psicose. Para ele, uma discussão contemporânea e
revisada sobre as psicoses torna mais perceptível uma variedade de soluções elegantes e
inéditas.
Viganò (2001) propõe que o uso de substâncias psicoativas também pode servir como
um recurso para localizar o gozo experimentado como invasivo no corpo nas psicoses.
Nesta perspectiva, as drogas funcionariam como uma maneira de intervir no real do
corpo, buscando criar uma consistência corporal que sirva de ponto de ancoramento para o
sujeito. Assim, em muitos destes casos, o uso das drogas teria como objetivo regular o
funcionamneto do corpo como uma espécie de máquina em regime de urgência, conforme
iremos expor em um dos fragmentos clínicos, trabalhados no capítulo 4.
A partir de uma extensa experiência clínica, Recalcati (2003) proporá que os quadros
de anorexia e bulimia, presentes em alguns casos de psicose, podem constituir uma
manobra de tratamento do gozo desregulado. Nestes casos, o sujeito buscaria com os rituais
anoréxicos e bulímicos neutralizar o que experimenta como excessivo, inclusive no próprio
corpo, como veremos mais detalhadamente no capítulo 3.
Este autor também vai dar destaque à compensação imaginária dentre as operações
que comprovam a possibilidade de uma localização do gozo na psicose. Esta é
precisamente a função assinalada por Lacan (1955-6) da compensação identificatória: uma
espécie de prótese imaginária que estabiliza o sujeito numa relação especular. Esta
identificação tem como característica de fundo ser adesiva, integral, imediata, mimética,
não dialética. Nesta relação sem qualquer mediação simbólica do que na neurose constitui o
Ideal do eu, o sujeito supõe no outro um semelhante, totalmente idealizado. Daremos um
destaque a esta modalidade de localização do gozo, no capítulo 4.
Maleval (2002) desenvolverá uma argumentação na mesma direção que Recalcati
(2003), reconhecendo nas identificações imaginárias formas com que o sujeito busca
remediar as confrontações com o real. Além disso, dará um enorme destaque à função de
certas passagens ao ato e de fantasias perversas como vias para a regulação do gozo, o que
29
iremos ilustrar quando formos discutir os recursos acessados por Wolfson no último
capítulo.
Para este autor, a foraclusão deve ser entendida como um conceito dinâmico que
coloca em relevo os recursos inventivos do psicótico e abre novas possibilidades para o
tratamento, porque destaca as capacidades destes sujeitos para elaborar suplências.
Podemos entender a estrutura psicótica, portanto, a partir dos efeitos de desordem,
ausência de medida, de regulação e de lei que lançam o sujeito em esforços desmedidos
para construir de forma inédita algum balizamento, algum tipo de ordenação que lhe
assegure um ponto de ancoragem na existência.
Assim, o delírio e os vários protocolos de ação que esboçam regras, distâncias,
interdições, como também os fracassos mais ou menos trágicos destas empreitadas,
definiriam o heterogêneo campo das psicoses.
Como vimos, o gozo não respeita integralmente a ação de linguagem; disto
resultam impasses para todo sujeito falante. Daí a invenção de modalidades plurais para
localizar o gozo, sendo o sujeito psicótico aquele que melhor encarna esse impasse de
encontrar uma solução ao retorno real do gozo.
Este enfoque nos recursos inventados pelo psicótico para lidar com os efeitos do real
nos coloca diante de uma direção clínica muito mais pautada pelas possibilidades de
localização do gozo próprias a cada sujeito. E a sustentação por diferentes psicanalistas de
outras formas de tratar o gozo que não pelo delírio nas psicoses nos fornece mais elementos
para avançarmos na reflexão sobre aquelas em que se destacam os efeitos de ordenação
corporal.
Antes de adentrarmos nesta discussão, abordaremos, no capítulo a seguir, o que a
psicanálise nos ensina a respeito da estruturação do corpo e das operações necessárias para
a sua ordenação.
30
CAPÍTULO 2
O PROBLEMA DO CORPO PARA A PSICANÁLISE
Apresentação
Tal como desenvolve Alberti (2004), ao fundar a ciência moderna no culo XVII,
Descartes (1644) promove uma separação entre pensamento res cogitans e corpo res
extensa. Segundo a gica cartesiana, enquanto o corpo teria como atributos exclusivos o
comprimento, a largura e a profundidade, o pensamento representaria a única garantia de
existência, mesmo que não absoluta.
Contrariamente a Descartes, a psicanálise demonstra que o corpo não pode ser
entendido sem o suporte do pensamento, uma vez que não corpo sem simbólico. É isto
que revela a descoberta freudiana: que o corpo é algo intrínseco ao pensamento, ou seja, é
simbólico, pois subsiste por meio da incorporação da linguagem.Neste sentido, a
psicanálise promove o retorno do exílio do corpo em relação ao pensamento, como diz
Lacan (1966c) em Psicanálise e Medicina.
Neste seu retorno do exílio, podemos dizer que o corpo interroga a psicanálise de
diversas formas. Desde a clínica da histeria, com seus sintomas conversivos que desafiam
as leis da anatomia, até o contato com os fenômenos corporais na esquizofrenia.
Pensamos que, tanto para Lacan como para Freud, não foi possível escapar a estas
interrogações. Deste modo, eles irão tratar o corpo como uma questão a ser examinada em
relação aos fundamentos da teoria psicanalítica, seja a partir dos conceitos de inconsciente,
pulsão e objeto a, assim como considerando as operações da alienação e da separação e os
registros do Real, do Simbólico e do Imaginário, com os quais o corpo não pode deixar de
ser associado.
Neste capítulo, veremos que desde suas primeiras experiências clínicas, Freud é
interpelado por um corpo irredutível ao conhecimento médico e pólo de atualização da
realidade inconsciente. Num primeiro tempo, iremos trabalhar estes efeitos produzidos no
corpo histérico pelo inconsciente, o que articularemos, a partir de Lacan, à primazia da
linguagem sobre todo sujeito. Em seqüência, será abordada a importância que a imagem
31
tem na formação do corpo, como antecipação de uma forma mediante a qual este será
apreendido.
Buscaremos, então, esclarecer que a consistência corporal que a imagem promove
decorre de um ponto de carência, de algo que não pode ser transposto em imagem. Esta
concepção do corpo como uma configuração em torno de um vazio será apresentada em
diversos seminários de Lacan, ganhando seu formato final com a elaboração da escritura
borromeana.
A abordagem do corpo a partir do Real, do Simbólico e do Imaginário torna mais
evidente a constituição deste por buracos e orifícios. Uma breve menção à ndrome de
Cotard também nos servirá neste enfoque do corpo, privilegiando os orifícios que o
constituem. Visando ilustrar o que estrutura o corpo como um véu tecido de imaginário e
simbólico que serve para recobrir o real, faremos algumas referências às pinturas e
considerações sobre o corpo de Francis Bacon.
2-1 - O corpo a partir da histeria
De fato, o sujeito do inconsciente toca na alma através do corpo, por
nele introduzir o pensamento: desta vez, contradizendo Aristóteles. O homem
não pensa com sua alma como imagina o filósofo. Ele pensa porque uma
estrutura, a da linguagem – a palavra comporta isso -, porque uma estrutura
recorta seu corpo, e nada tem a ver com a anatomia. A histérica o atesta.
(LACAN, 1974a, p.511).
Podemos dizer que a questão do corpo se apresenta a Freud associada à própria
descoberta do inconsciente, mediante o deciframento dos sintomas histéricos. Esta
descoberta lhe permitiu entrever articulações entre corpo e pensamento, em que a anatomia
respondia às regras vigentes na linguagem.
As queixas de suas pacientes histéricas eram queixas corporais, referentes a sintomas
físicos, como por exemplo, dores, paralisias, cegueiras, para os quais a medicina da época
não encontrava respostas eficazes.
Foram as histéricas que colocaram em evidência o que singulariza o corpo humano.
Com a decifração dos seus sintomas, foi observado que era como se a anatomia não
existisse, que o valor que era atribuído a certas partes do corpo devia-se muito mais às
32
relações simbólicas em que elas estavam inseridas e que representavam as fantasias
inconscientes das pacientes.
É desde muito cedo que Freud se conta disso, ao fazer um estudo comparativo
entre os casos de paralisia orgânica e histérica, através do qual ele pôde observar que
diferentemente do quadro orgânico, “A histérica ignora a distribuição dos nervos [...] Ela
toma os órgãos pelo sentido comum, popular, dos nomes que eles têm: a perna é a perna
até sua inserção no quadril, o braço é o membro superior tal como aparece visível sob a
roupa...” (FREUD, 1893 [1888-1893], p. 212).
Esta passagem é relevante porque ilustra muito bem os efeitos da determinação
simbólica do corpo na paralisia histérica, na qual é o nome pelo qual um órgão é tomado
que irá decidir a extensão da paralisia.
Freud (1901[1905]) atribuirá estes efeitos do significante sobre os órgãos a um
processo psíquico no qual fantasias inconscientes encontram uma saída no domínio do
corpo. Este processo que ganhará o nome de conversão histérica torna explícitas as relações
entre os pensamentos inconscientes e o corpo.
Entretanto, estas relações transcendem largamente o campo da histeria, revelando a
estrutura simbólica do corpo humano em geral. Desta maneira, a presença de sintomas
corporais vinculados a fantasias inconscientes ocorrerá também em outras psiconeuroses,
como por exemplo, nas perturbações intestinais apresentadas pelo Homem dos Lobos
(FREUD,1918 [1914]).
Já nos anos 50, Lacan chamará atenção para esta relação da linguagem com as
imagens do corpo, indicando os efeitos disso sobre todas as neuroses:
“... a linguagem não é imaterial. É um corpo sutil, mas é corpo. As
palavras são tiradas de todas as imagens corporais que cativam o sujeito;
podem engravidar a histérica, identificar-se com o objeto do Penis-neid,
representar a torrente de urina da ambição uretral, ou o excremento retido
no gozo avarento” (LACAN,1953, p.302).
Essa prevalência das relações simbólicas no que diz respeito ao corpo revela que o
significante pode operar sobre este, onde havia incidido desde a sua constituição. Serão
estes efeitos de “transgressão anatômica” (FREUD, 1905, p. 141) os responsáveis pela
descoberta do corpo como uma via de manifestação do discurso inconsciente.
33
O texto “Estudos Sobre a Histeria” (FREUD,1893-5) apresenta inúmeros exemplos
desta manifestação do discurso inconsciente no corpo. No caso de Frau Cecília Von M, o
sintoma apresentado é de uma dor de cabeça num ponto da testa sem nenhum fundamento
orgânico. Será ao longo da decifração analítica que Freud verá se tratar de uma conversão
somática do olhar penetrante da avó da paciente que lhe perfurava a testa, o que operava
como uma metáfora escrita em seu corpo.
De modo correlato, a partir da análise do discurso de sua paciente Elizabeth Von R.,
Freud chegaàs expressões linguísticas “não avançar um passo” ou “não ter apoio” que
constituem a ponte para o entendimento dos sintomas conversivos, relacionados à
dificuldade que Elizabeth apresentava para andar.
Outra referência clínica importante do assujeitamento do corpo ao inconsciente é
apresentada no Fragmento da Análise de uma Histeria” (FREUD, 1901[1905]). A análise
da paciente que Freud irá chamar de Dora ganha em sua obra um lugar de destaque dentre
os casos de histeria relatados.
Dora apresentava sintomas vinculados à zona oral: tosse, afonia, catarro, entre outros.
A análise destes sintomas demonstrará que estes são, na verdade, reflexos de uma fantasia
inconsciente da paciente a respeito da enigmática relação amorosa de seu pai impotente
com a Sra. K. Ao longo da discussão deste caso, Freud diz sem rodeios que um sintoma
significa a realização de uma fantasia, chegando à inevitável conclusão de que a irritação da
zona oral de Dora representava a cena de felação que ocupava a mente desta jovem tão
insistentemente.
Estes casos evidenciam o quanto o corpo está marcado pelas fantasias inconscientes
de cada sujeito, o que nos permite entender a definição de Lacan (1953, p. 260) dos
sintomas histéricos como “monumentos do inconsciente”, decifráveis como uma inscrição
pela interpretação analítica.
A histeria, portanto, torna explícito que é a anatomia fantasmática que rege a
constituição do sujeito, através da forma como os significantes marcam e determinam os
pontos de fixação corporais, assim como imprimem os contornos do próprio corpo.
Deste modo, a clínica psicanalítica revela que o corpo é resultado de uma operação
simbólica, efeito da relação dialética entre o sujeito e o Outro. É a linguagem que recorta e
34
constitui o corpo humano tal como um leito, uma superfície onde se inscrevem as primeiras
marcas simbólicas.
Afirmar que o corpo é o lugar do Outro significa, com efeito, distinguir o corpo do
sujeito, ou seja, ultrapassar o entendimento que o senso comum tem do corpo como uma
intimidade especial para o sujeito. Isto caracteriza o corpo como algo expropriado, marcado
e subordinado numa alienação estrutural – no lugar do Outro.
Lacan insiste nesta expropriação do corpo pela linguagem, o que ele sustenta com
bastante clareza, quando resgata, nos estóicos, o termo incorpóreo.
O incorpóreo ou incorporal seria o simbólico, o primeiro corpo que, ao ser
incorporado pelo sujeito, dá origem ao corpo propriamente dito:
Volto ao corpo do simbólico que convém entender como nenhuma
metáfora. Prova disso é que nada senão ele isola o corpo, a ser tomado no
sentido ingênuo, isto é, aquele sobre o qual o ser que nele se apóia não
sabe que é a linguagem que lho confere, a tal ponto que não existiria, se
não pudesse falar. O primeiro corpo faz o segundo, por se incorporar nele.
Daí o incorpóreo que fica marcando o primeiro, desde o momento seguinte
à sua incorporação. Façamos justiça aos estóicos, por terem sabido, com
esse termo o incorpóreo - assinalar de que modo o simbólico tem a ver
com o corpo [...] No que se revela que, quanto ao corpo, é secundário que
ele esteja morto ou vivo” (LACAN, 1970, p. 406).
Deste modo, vemos que para ter um corpo, o sujeito toma de empréstimo da ordem
significante a sua matéria e a sua própria realidade. Zizek (2004) vai utilizar a imagem dos
pacientes que fazem hemodiálise, no seu desamparo frente aos aparelhos que regulam o
funcionamento renal, o que nos pareceu bastante apropriado, para ilustrar esta determinação
do sujeito pelo aparelho da linguagem. Neste sentido, o que se colocaria como condição
para todos é estar na dependência de um aparelho simbólico de diálise uma espécie de
prótese para o corpo.
Esta constituição simbólica do corpo não é uma simples aquisição no sentido de
acrescentar ao corpo o significante, pois implica numa operação de subtração. A ão do
significante sobre o sujeito comporta um roubo, roubo de gozo, mas também uma doação,
em que o sujeito terá acesso ao campo do sentido e ao que escapa a este campo, o desejo.
O acesso ao sentido refere-se à própria cadeia significante que permitirá ao sujeito ser
por ela representado, sendo que para tanto sofrerá uma perda de ser, o que podemos
35
entender também como perda de gozo. No entanto, nem tudo no campo do Outro é sentido.
um furo no sentido, uma falta no Outro que é o que se coloca de forma enigmática
em termos do desejo do Outro, mediante o qual o sujeito se tornará desejante.
Um roubo de ser e de gozo se afirma, portanto, como fundamental, tanto para que o
sujeito se torne desejante como para que tenha um corpo animado libidinalmente, efeito da
regulação do gozo pelo significante.
Esta é a formulação de Recalcati (2003) que vai propor pensarmos a incorporação
significante como um intercâmbio: o sujeito cede um pouco de vida, de substância, de ser,
de gozo para obter sua inscrição simbólica, para adquirir sentido, para ser incluído no
campo do Outro e se tornar desejante.
Nesta perspectiva, para o corpo se constituir, ao sujeito é exigida uma perda de gozo.
Esta perda promove uma separação entre corpo e gozo, através da qual o gozo passa a ser
regulado pelo significante, se distribuindo pelas partes periféricas do corpo. É, portanto,
mediante a inscrição significante e a regulação libidinal que um corpo torna-se um suporte
para um sujeito.
É neste sentido que Lacan (1972-3) introduz o termo afecção, indicando que o
significante afeta o corpo do ser falante, tornando-o fragmentado em zonas de gozo, as
chamadas zonas erógenas. Deste modo, o corpo define-se por uma série de bordas
anatômicas investidas que circundam uma falta, instaurada por esta perda de gozo
fundamental para a introdução do sujeito na dialética libidinal.
O significante é, portanto, agente de um processo de territorialização que separa o
gozo do corpo, conferindo ao corpo um acabamento e tornando-o marcado pela finitude.
Deste modo, ele “fecha” o corpo, ao dar a este um contorno, circunscrito nas zonas
erógenas. Entendemos, assim, porque para o ser humano é fundamental estar ligado,
“plugado, conectado ao circuito dos significantes.
O dicionário Houaiss (2006) define “corpo fechado” como um corpo supostamente
imune, invulnerável a perigos ou males físicos ou morais, pelo uso de amuletos, bentinhos
ou quaisquer objetos defensivos, ou ainda por se haver submetido a qualquer rito de
proteção. Poderíamos dizer, então, em anuência com Lacan, que ter um corpo, “ter o corpo
fechado”, é ter um corpo ligado, “plugado”, a um amuleto significante que o desloca do
lugar de um corpo aberto ao gozo e inteiramente exposto à fragmentação pulsional.
36
A este respeito tivemos um importante relato de uma paciente psicótica em um dos
grupos que coordenamos no IPUB-UFRJ (2004-8). Esta esbelta mulher que se dedicou de
maneira excessiva ao balé clássico durante anos, desde que interrompeu suas atividades de
dança, por não poder mais realizá-las com a dedicação de antes, passou a sentir-se ‘velha’,
‘cheia de banhas’, ‘sem forças’, mórbida’, ‘um trapo’, uma mendiga’, ‘ao Deus dará’,
‘congelada no negativo’. Desde então, ela recorre a um pai de santo, alguém que supunha
que teria poderes especiais e passa a usar, primeiro, um ane e depois, um colar que lhe
dariam a força de que necessitava. Chama atenção neste caso que diante de um corpo que
se encontrava desvitalizado, o sujeito recorra a objetos que serviriam como amuletos e
assim o fariam recobrar a vivacidade de antes.
Conforme entendemos, este caso ilustra muito bem a busca por esta ex-bailarina
profissional de algo que opere como um amuleto significante, lhe permitindo ter um corpo
animado libidinalmente e, deste modo, “fechado” ao gozo desregulado que para ela tem
efeitos mortificadores.
2-2 - A importância da imagem na constituição do corpo
“... A relação do homem, do que chamamos assim, com seu corpo se
alguma coisa que sublinha bem que ela é imaginária, é o impacto que ela
tem sobre ele. [...] esta preferência pela imagem surge do que ela antecipa
a sua maturação corporal” (LACAN, 1974b, p. 91).
Para compreender melhor as relações apontadas por Lacan entre o corpo e a
linguagem que abordamos na seção anterior é preciso destacar o valor do corpo como
imagem.
Nos artigos A agressividade em Psicanálise (1948) e O Estádio do espelho como
formador do Eu (1949), Lacan enfatiza o jogo dialético entre o corpo despedaçado e a
antecipação da imagem totalizada do corpo.
Os pilares desta teoria são os que se seguem: o corpo em fragmentos se reconstitui
como uma unidade formal e imaginária somente graças à função da imagem especular que,
precisamente, brinda o real do corpo fragmentado com uma solução formal do tipo ideal,
com uma Gestalt.
37
O cerne desta teoria é que o corpo é originariamente despedaçado e é somente a partir
da ligação simbólica que o sujeito poderá se apropriar da função unificadora da imagem.
Trata-se de uma identificação com um corpo idealmente organizado, a partir da qual
o sujeito antecipa numa miragem a sua própria totalização. Nas palavras de Lacan: “Pois a
forma total do corpo pela qual o sujeito antecipa numa miragem a maturação de sua
potência lhe é dada como Gestalt, isto é, numa exterioridade em que essa forma é mais
constituinte do que constituída...” (LACAN, 1949, p.98).
Vemos, aqui, porque para a psicanálise não há corpo sem imagem e muito menos sem
significantes. São os significantes que organizam para o sujeito a sua relação com a
imagem do corpo, pois a própria imagem provém do exterior, a partir da mediação do
Outro que lhe serve de matriz simbólica.
É neste sentido que também com relação à constituição do corpo, o sujeito e o Outro
não podem ser pensados autônomamente. O sujeito está submetido ao Outro, na forma de
uma dependência simbólica fundamental. E deve sua existência à inscrição simbólica e à
subordinação ao Outro; daí a sua condição de desamparo, da qual decorre o impacto que a
imagem tem para ele, sobretudo no que diz respeito ao corpo.
O corpo é, por excelência, fragmentário, as pulsões o despedaçam, mas é num
segundo tempo que o sujeito, a partir da ligação simbólica com o Outro, se apropria de uma
imagem que lhe dá a ilusão de ter um corpo unificado.
Assim, a imagem servirá de véu para a dimensão real do corpo, caracterizada pela
fragmentação pulsional. A isto se deve a predominância da imagem para o homem, ao fato
de que ela vela a falta simbólica que lhe é constituinte.
Além de dar forma ao corpo, a imagem é o princípio de toda unidade que o sujeito
supõe nos objetos que estão sempre mais ou menos estruturados conforme sua imagem
corporal. No Seminário do Sinthoma (1975-6), Lacan afirma que o homem apreende seu
corpo como uma forma, uma aparência, uma imagem que ele adora. E será através da
unidade que o seu corpo representa para ele que o homem irá apreender o mundo e o seu
semelhante.
Os esquemas óticos de que Lacan se utiliza em pelos menos três de seus Seminários
destinam-se a mostrar de que maneira funciona a determinação do sujeito pelo Outro,
sobretudo no que diz respeito à constituição do corpo.
38
Analisemos uma das etapas mais simplificadas da construção do esquema ótico,
apresentada no Seminário I (1953-4, p.94) que reproduzimos na figura 1:
FIGURA 1
Este esquema se baseia no experimento do buquê invertido de Bouasse. Neste
experimento, sobre uma caixa oca colocada no centro de um espelho esférico, coloca-se um
vaso. E embaixo da caixa, é disposto um buquê de flores.
O buquê reflete-se sobre a superfície do espelho esférico. Em virtude da propriedade
da superfície esférica, todos os raios emanados de um ponto dado vêm ao mesmo ponto
simétrico, formando uma imagem real. Neste caso, é a imagem real das flores que é
produzida pela convergência dos raios no gargalo do vaso que estava sobre a caixa oca.
Aqui, para que a imagem real do buquê de flores se produza nitidamente no gargalo
do vaso, comportando-se como um objeto que pode ser tomado como os demais, é preciso
que o olho se situe no interior do espelho esférico. Quando isso não se dá, em lugar de uma
imagem real de um buquê de flores projetada sobre o vaso, as coisas serão vistas no seu
estado real, como um pobre vaso vazio, ou flores isoladas, segundo os casos.
Temos, assim, a posição do olho identificada como a própria posição do sujeito, seu
lugar no mundo simbólico, do que depende a constituição do corpo como continente para as
pulsões, representadas neste experimento pelas flores.
39
É neste sentido que nesta época Lacan lembra que para constituir um corpo são
necessárias incorporações simbólicas, no estilo de destruição e separação, resgatando em
Melanie Klein a figura do outro materno, enquanto primordial. Em outros termos, é na
dialética do sujeito com o Outro que a imagem corporal pode se formar.
São, portanto, as marcas do Outro que tem o poder de, ao circunscreverem-se na
realidade como insígnias, constituir para o sujeito um lugar onde ele possa se situar para
obter, entre outros efeitos, sua imagem corporal. Aqui, fica bastante evidenciado que é a
partir do Outro que o sujeito tem como regular seu corpo que vem a se constituir como uma
consistência imaginária.
O esquema do buquê invertido fornece a Lacan a mais preciosa metáfora para falar
que é a imagem que faz a unidade do sujeito e que a ele o sentimento de ter seu próprio
corpo, sendo que o caráter mais ou menos satisfatório desta estruturação dependerá da
relação simbólica instaurada. Nas palavras dele: “A imagem do corpo, se a situarmos no
nosso esquema, é como o vaso imaginário que contem o buquê de flores real”
(LACAN,1953-54, p. 96).
Este mesmo esquema que expusemos na figura 1 é retomado e modificado no texto
dos Escritos, Observação sobre o relatório de Daniel Lagache (1960a).
Neste texto, são expostas várias versões do esquema ótico. Procuraremos nos deter no
modelo apresentado na gina 681, um esquema descrito no Seminário I (1953-4, p.147)
e que será desenvolvido posteriormente no Seminário da Angústia (1962-3, p. 40). Esta
versão corresponde à imagem reproduzida na figura 2, a seguir:
40
FIGURA 2
Nesta nova versão do experimento, sob uma caixa oca colocada no centro de um
espelho esférico, é colocado um vaso de flores. Este, refletido na superfície do espelho
esférico, dará origem a uma imagem real de um vaso, circundando as flores com seu
gargalo. Lacan acrescenta, neste modelo, um espelho plano, de maneira que um suposto
observador, no qual está representada a função do Ideal de eu, possa ver a imagem virtual
do vaso com flores, produzida a partir do reflexo da imagem real neste espelho. Assim,
nessa experiência, num ponto simétrico ao ponto onde se encontra a imagem real i(a), o
sujeito verá aparecer a imagem virtual, i’(a).
Conforme entendemos, neste esquema, Lacan ressalta a pregnância do simbólico na
projeção das imagens, sobretudo a partir da função primordial do espelho plano, como Ideal
de eu, que irá permitir que o sujeito tenha acesso à imagem virtual, resultante do reflexo da
imagem real, produzida pelo espelho côncavo.
Quanto à importância do espelho plano, Lacan (1953-4, p.147) esclarece que o
motivo que o fez acrescentá-lo ao modelo vaso/flores do espelho côncavo foi garantir que o
olho veja “a imagem do vaso contendo o buquê, em condições ótimas”. Quando Lacan
afirma que o espelho plano está ali colocado para que se tenha garantia de ver em condições
ótimas, podemos pensar que a função de tal espelho plano não é outra senão a função de
suporte simbólico da imagem narcísica.
41
É neste sentido que Lacan (1953-4, p.148), a partir da introdução do espelho plano,
falará em identificação narcísica, ressaltando que é a identificação ao outro que irá
“permitir ao homem situar com precisão a sua relação imaginária e libidinal ao mundo em
geral”.
Neste novo modelo, em que, como vimos, é destacada a existência de duas imagens
uma real e outra virtual - fica evidenciada a captura imaginária a que está submetido o
sujeito na constituição de seu corpo. E seentre o continente narcísico da libido, i(a) e
i’(a) que se a oscilação comunicante do que Freud chama de reversão da libido do corpo
próprio para os objetos.
as flores ocupam o lugar de objeto a, fundamento da relação do homem com a
imagem de seu corpo, sendo que estes pequenos a, não regulados pela imagem,
corresponderiam àquilo que conhecemos por auto-erotismo.
Recordemos que Freud, em 1914, no texto “Introdução ao Narcisismo”, observa
que o eu não está constituído desde sempre, pois é uma construção. E isto pode ser
reafirmado, com Lacan, sobretudo a partir dos modelos óticos, nos quais é retratada
justamente esta operação de construção em que a consistência narcísica regula a desordem
auto-erótica dos objetos a. Diz ele: Antes do estádio do espelho, aquilo que será i(a)
encontra-se na desordem dos pequenos a que ainda não se cogita ter ou o ter. Esse é o
verdadeiro sentido, o sentido mais profundo a ser dado ao terno ‘auto-erotismo’
(LACAN,1962-3, p.132).
Tal como demonstra nosso modelo da figura 2, a imagem do corpo só pode ser
constituída quando nos apoderamos da multiplicidade de objetos a, nele representados pelas
flores reais. Para Lacan, os objetos a são constitutivos do corpo, pedaços do corpo que
devem ser extraídos para que i(a) tenha a oportunidade de se constituir.
Esta relação de interdependência entre i(a) e a ganha um melhor esclarecimento no
Seminário da Angústia (1962-3). Neste texto, Lacan irá referir-se ao esquema ótico como a
expressão da ligação inaugural entre a relação com o Outro e o advento da função da
imagem especular; irá também afirmar que o investimento da imagem especular é um
tempo fundamental da relação imaginária, justamente por ter um limite. Nesse ponto de seu
ensino, Lacan (1962-3, p.225) está elaborando seu conceito de objeto a, enquanto um resto
não especularizável, algo que se desprende da imagem narcísica, como efeito da castração
42
primordial. E vai designar o falo como o que vai representar a castração primordial, a partir
da presença de uma lacuna que opera garantindo uma falta na imagem do corpo próprio.
Aqui, o objeto a é definido como um resíduo, um objeto cujo estatuto escapa ao
estatuto de objeto derivado da imagem especular e por não poder ingressar nela é o pivô de
toda essa dialética. Neste sentido, Lacan destaca no objeto a uma função estruturante do
corpo, na medida em que este se desprende da imagem narcísica e constitui o que ele
chama do fenômeno de borda, responsável pela instauração de uma forma e pela
demarcação de um conteúdo e um continente. Diz ele:
“... a, objeto do desejo, tem sentido para o homem depois de ser virado
no vazio da castração primordial [...] a castração pode produzir-se a
partir do narcisimo secundário, isto é, do momento em que o a se
desprende, cai de i(a), a imagem narcísica. Há nisso um fenômeno que é o
fenômeno constitutivo do que podemos chamar de borda.Como eu lhes
disse no ano passado, a propósito de minha análise topológica, não
nada mais estruturante do que a forma do vaso, a forma de sua borda, o
corte pelo qual ele se isola como vaso” (LACAN, 1962-3, p. 225).
Vemos, assim, que para a formação da imagem do corpo, é necessária uma operação
de corte e cisão entre i(a) e a. É neste sentido que Lacan recorre à embriologia, para fazer
uma analogia entre o que é separado dos envoltórios embrionários com o corte do embrião
e a separação do objeto a que opera como um resto, uma libra de carne, um pedaço carnal
arrancado de nós mesmos.
O modelo ótico da figura 2 (cf página 41) retrata muito bem o quanto a imagem do
corpo se constitui a partir da colocação entre parênteses do objeto a, que é assim subtraído
de seu campo. A beleza da imagem, isto é, da imagem do corpo, seu poder intrinsecamente
cativante e ao mesmo tempo sua variabilidade e sua diferenciação nos limites de uma
forma, são obtidos desse objeto com o qual a imagem se relaciona, metaforizando sua
ausência.
Temos então representado, nesta segunda versão do modelo ótico, uma figuração em
que a imagem do corpo alcança seu pleno valor da relação de distância que ela
estabelece com os objetos a, a partir do suporte simbólico do Ideal do eu que a condiciona.
Esta articulação entre imagem, objeto a e o suporte simbólico do Ideal do eu também
pode ser encontrada na esquematização do campo de realidade que Lacan apresenta num
texto contemporâneo de “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache” (1960a) o
43
texto da “Questão Preliminar” (1957-8a). Enquanto no modelo ótico, o Ideal de Eu é o que
permite a sustentação da imagem corporal, na forma de um véu para a fragmentação
pulsional, neste segundo esquema ele dá suporte ao campo da realidade na neurose.
No seu chamado esquema R, Lacan representa o Ideal de eu, I, como um dos vértices
do triângulo simbólico que sustenta o campo da realidade, como reproduzimos a seguir:
Neste esquema, o Ideal do eu surge como efeito da metáfora paterna, operando como
o pólo de identificação paterna do neurótico. E como ressalta Lacan numa extensa nota de
rodapé nas páginas 59-60, trata-se aqui da realidade fantasmática que funciona como uma
tela que barra o objeto a. Vemos novamente nesta representação gráfica a importância do
Ideal do eu para que as construções fantasmáticas possam operar enquanto uma
consistência, colocando em parênteses e servindo de enquadre para o objeto a.
2-3 – Alienação e separação: constituição do corpo pulsional
“A realidade da distância cart] freudiana cria uma barreira ao saber,
assim como o prazer impede o acesso ao gozo. [...] O estranho é aquilo ao
que o corpo se reduz nesta economia. Tão profundamente desconhecido,
por ser reduzido por Descartes à extensão, esse corpo precisará dos
excessos iminentes de nossa cirurgia para que se evidencie ao olhar
comum que dispomos dele se o fazemos ser seu próprio
despedaçamento, se o desarticulamos do gozo” (LACAN, 1967b, p.356).
Como procuramos desenvolver, toda constituição do corpo enquanto imagem
libidinizada dependerá de um resto, cortado da imagem especular, um elemento
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heterogêneo, tanto em relação ao significante como em relação à imagem, o que chamamos
de objeto a.
Trata-se daquilo que o sujeito deve perder para se inscrever na ordem pulsional e ter
um corpo animado pela libido. Conforme mencionamos, é a cessão desse objeto que
comanda a unificação imaginária do corpo, como um lugar ordenado pelo significante, no
qual a pulsão vai inscrever seu circuito. É a partir desta operação de corte que serão
demarcadas no corpo as zonas erógenas.
Deste modo, para ter um corpo pulsional é preciso que o falante se submeta a uma
operação de perda e fragmentação, responsável pela inscrição da libido nas bordas
anatômicas. É neste sentido que a relação do homem com esta função chamada desejo, só
adquire toda a sua animação na medida em que é concebível o despedaçamento do próprio
corpo.
Lacan (1964a) constrói o mito da lamela para falar desta operação fundamental para
que o sujeito se torne alguém que fala, que deseja, dito de outra maneira, alguém animado
pela libido.
A lamela representa a parte do vivo que se perde por meio da qual o sujeito pode
integrar a ordem do sexual. Os objetos a seriam apenas seus representantes, suas
figurações, desta parte de si que o sujeito deve perder para se tornar desejante.
Podemos, assim, distinguir três tempos lógicos na estrutura: um primeiro tempo,
mítico do vivido, do ser, do gozo pleno; um segundo tempo em que a extração do objeto a
no campo do Outro recai do lado do sujeito; e um terceiro da constituição do corpo pusional
e do sujeito desejante.
A partir das operações da alienação e da separação, Lacan (1964ab) irá tratar destes
três tempos. Estas operações traduzem os meios pelos quais um sujeito definido enquanto
puro efeito da linguagem, falado pelo Outro, pode tornar-se desejante e animado pela
libido.
A alienação representa a primazia da linguagem em relação ao sujeito. A entrada do
sujeito no campo linguagem decorre de uma inevitável perda de ser, justamente para que o
sujeito se constitua como sendo representado na cadeia significante. É neste sentido que a
inscrição no campo do Outro comporta os efeitos de petrificação e morte do sujeito,
decorrentes do seu assujeitamento à linguagem.
45
Na separação, Lacan reconhece o que Freud (1940 [1938]) denomina de Ichspaltung
ou fenda do sujeito, através da qual o sujeito se realiza mediante a falta que produz no
Outro. Este segundo tempo completa o tempo lógico da alienação e introduz precisamente o
sujeito como produto da separação da cadeia significante que, sem dúvida, lhe condiciona.
Para definir esta segunda operação, Lacan (1964ab) recorre a todos os sentidos
possíveis para o termo separação, como se vestir, se defender e munir-se do necessário para
se pôr em guarda, assim como o termo se engendrar, retirado dos latinistas.
Conforme entendemos, estes múltiplos significados do termo separação revelam que
para se tornar desejante, o sujeito deve ornar-se e proteger-se com os significantes,
advindos do campo do Outro. E serão estes mesmos significantes responsáveis pela
constituição do corpo enquanto leito, uma superfície onde se inscrevem as primeiras marcas
simbólicas.
Esta concepção da linguagem como ornamento será mantida mesmo 10 anos depois,
quando Lacan (1974-5) isola como um dos efeitos do fato do sujeito se servir dos
significantes como ornamento, o estabelecimento de uma relação de paixão com o corpo
que desde então passa a ser erotizado e tomado narcisicamente como objeto de amor e
cuidados.
Na separação, ao se enfeitar com os significantes sob os quais sucumbe, o sujeito
ataca a cadeia e se depara com algo além dos efeitos do sentido. Este ponto de falta
percebido na cadeia significante coloca em cena o enigma desejo do Outro. E o sujeito irá
responder a esta dimensão enigmática, localizando sua falta-a-ser na falta do Outro.
Esta identificação da sua própria falta como respondendo ao desejo do Outro
confronta também o sujeito com o que nele não se reduz a campo do sentido e que fará dele
um ser desejante. Ao nosso ver, é este o significado da afirmação de Lacan (1964b) de que,
por sua partição, o sujeito procede a sua parturição e conquista um estado civil.
Vemos, assim, que o que está em jogo nas operações da alienação e da separação é
também a relação de dependência com o Outro e a necessidade de uma perda fundamental
que irá ter conseqüências tanto para o sujeito como o Outro. E dentre estas conseqüências o
que se destaca é a consitituição do sujeito como desejante e do corpo, enquanto pulsional.
Lacan retoma neste momento a analogia feita no Seminário da Angústia (1962-3)
entre esta perda fundamental e a cisão do embrião, desprendendo-se dos envoltórios
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embrionários, em relação aos quais não se encontrava diferenciado, mas sim como um
corpo parasita, incrustrado na superfície uterina.
Esta analogia explicita que é de um pedaço carnal arrancado de s mesmos,
chamado objeto a, de que devemos nos separar, sendo que este se torna algo irrecuperável
para sempre e virá constituir o suporte, o substrato autêntico de toda e qualquer função de
causa – causa do desejo.
É neste sentido que Lacan (1962-3, p. 259) irá resgatar a afirmação freudiana de que a
anatomia é o destino, sustentando que esta afirmação se torna verdadeira se atribuirmos ao
termo ‘anatomia’ seu sentido etimológico que valoriza a função do corte. Nesta releitura de
Freud, o que é sublinhado é que o destino, ou seja, a relação do homem com o desejo,
ganha toda a animação em decorrência do despedaçamento do próprio corpo e da produção
de um resto que lança o sujeito numa busca incessante por esta parte arrancada dele mesmo.
É em torno do objeto a, perdido e irrecuperável para sempre, que se orienta o circuito
pulsional. A pulsão é sempre ativa e só se satisfaz parcialmente, nas partes do corpo
erógeno: seio, fezes, olhar e voz; é em revolver esses objetos para neles resgatar, para
restaurar em si sua perda original que se empenha a sua atividade.
A partir destas formulações do Seminário XI, Lacan (1964a, p.168) propõe que o
corpo pode ser concebido como um aparelho lacunar, algo que se estrutura e se aparelha a
partir do vaivém pulsional em torno das zonas erógenas. É na lacuna, representadas nestas
partes periféricas do corpo que o sujeito instaura a função do objeto a, enquanto objeto
perdido, sendo em relação a esta lacuna que a imagem corporal ganha toda a sua
importância.
Vemos, então, que com as operações de causação do sujeito desenvolvidas por Lacan
(1964ab) é possível distinguir o que é necessário para a montagem do corpo pulsional. E,
quando formos trabalhar, no capítulo 3, o problema do corpo nas psicoses, teremos acesso
aos impasses decorrentes, justamente, da não intauração do circuito da pulsão.
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2-4 - O corpo borromeano - não há corpo sem orifícios
“... o que interessa ao corpo, pelo menos na perspectiva analítica, é o
corpo enquanto orifício que aquilo pelo que ele se ata a algum Simbólico
ou Real de que se trate, é justamente por este nó, a evidenciação de um
círculo, de um orifício, que o imaginário é constituído (LACAN, 1974-5,
p.70).
Até o momento nos esforçamos por situar quais são os elementos indispensáveis para
a constituição do corpo, que desde o encontro de Freud com a histeria foi descoberto que
o corpo não tem uma existência prévia, nem se reduz a um suporte biológico. E Lacan
evidencia isso, ao definir o corpo como uma unidade narcísica, produzida a partir de uma
operação simbólica.
Conforme desenvolvemos, nesta operação simbólica, o sujeito tem arrancado um
pedaço de si mesmo, representado pelo objeto a. E será em relação a este objeto que surge
como um resíduo, ao metaforizar sua ausência, que o sujeito poderá dispor de um corpo,
enquanto uma imagem narcísica. Assim, o que é apresentado como necessário para que o
corpo seja construído são estes três elementos heterogêneos o suporte do significante, a
consistência da imagem e o objeto a extraído.
Lacan manterá esta concepção do corpo, mesmo depois das formulações do estádio do
espelho, dos esquemas óticos e das operações da alienação e da separação nos quais nos
detemos anteriormente. Podemos dizer, inclusive, que ele, ao final de seu ensino, irá
aperfeiçoar estas formulações.
Com o recurso do borromeano, Lacan torna ainda mais explícito o fato do corpo
não ter uma existência prévia, pois só poderá se constituir mediante a articulação dos
registros do Real, do Simbólico e do Imaginário. É, portanto, a partir da amarração destes
registros que o corpo será concebido ao final do ensino de Lacan, como o que resiste à
dissolução do Real, do Simbólico e do imaginário.
Este deslocamento da noção de corpo decorre da própria estrutura do nó borromeano.
Nesta estrutura, o Real, o Simbólico e o Imaginário se ligam de uma só vez a três, sem que
se estabeleça qualquer hierarquia entre eles, sendo que, se qualquer um destes registros se
separar, o nó se desfaz.
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O borromeano define-se, assim, neste mínimo de três, de maneira qu,e caso um
dos anéis seja rompido, os demais anéis também se soltarão, como apresentamos na figura a
seguir que reproduzimos da página 147 do Seminário O Sinthoma de Lacan (1975-6):
Com o recurso dos três registros, o que é colocado em evidência é a impossibilidade
de se reduzir o corpo a um a priori. O corpo, desde então, passa a ser caracterizado como
uma consistência produzida através da construção de um véu tecido de imaginário e
simbólico que serve para recobrir o real, como ilustram muito bem as metáforas de uma
bolsa ou a de um saco que são a ele associadas.
Nesta nova perspectiva, é acentuado que o que suporte ao corpo é uma linha, a
linha da consistência estabelecida pelo imaginário através da relação mantida com os outros
dois registros. A formação de uma linha de consistência nos permite, assim, a experiência
de ter um corpo, como algo que nos suporte e tem o aspecto de ser o que resiste, o que
consiste, antes de se dissolver.
É a consistência do imaginário que faz com que creiamos ter um corpo e que este
subsista durante o tempo de sua inexorável consumação. Consistência, aqui, quer dizer o
que permite que todos os registros façam nó para que o corpo subsista. E, mais
precisamente no que se refere ao corpo, é a consistência da pele retendo os órgãos em seu
interior que Lacan (1975-6) irá destacar.
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A respeito da relação do falante com seu corpo, diz Lacan (1975-6) que a consistência
corporal decorre do próprio pensamento que torna o corpo uma unidade narcísica, objeto de
amor e cuidados. O estatuto primeiro do corpo é o de um corpo em pedaços e ganhará
sustentação a partir da ligação com o significante, tornando-se um objeto de adoração para
aquele que fala. Este seria o sentido do corpo enquanto uma consistência, sustentada
unicamente porque o falante crê que tem um corpo para adorar, fazendo-lhe curativos e o
sexualizando.
Pensamos que, com a definição do Imaginário como uma forma de grude
(LACAN,1974-5, p. 54), temos reafirmada a função deste registro de promover uma
unidade, enquanto o Simbólico seria o que faz buraco e o Real o que ex-siste, sendo
irredutível tanto à articulação significante do Simbólico, como ao ‘grudento’ Imaginário.
Esta concepção do corpo a partir do enodamento dos três registros será representada
na figura topológica do texto A terceira (1974b) que reproduzimos a seguir:
Neste esquema, a constituição do corpo está referida ao enodamento dos três registros
em torno de um pequeno resto, do objeto a que resiste a ser assimilado por qualquer um
deles. O corpo situa-se na linha do registro imaginário, cuja consistência se faz a partir
da articulação com os outros dois registros.
50
A localização do objeto a como uma exterioridade, nesta figura topológica, reflete a
função deste na separação do gozo em relação ao corpo. Como vimos, é a extração deste
objeto que permite que o gozo se concentre nas bordas corporais, como gozo fálico, Jφ.
O gozo fálico, Jφ, caracteriza-se, portanto, por ser fora do corpo, exteriorizado, efeito
da demarcação significante sobre o corpo, ordenado pela castração simbólica. Este gozo se
define como periférico, distribuindo-se pelas zonas erógenas e percorrendo fragmentos e
pedaços do corpo. Nas Conferências Americanas (1975, p. 41), Lacan define o gozo fálico
como uma reunião entre simbólico e real, fora do imaginário, do corpo.
Entendemos, assim, porque para a psicanálise a relação do sujeito com seu corpo não
é uma relação de posse, mas sim de exterioridade, sendo que o sujeito encontra sua
satisfação não em seu corpo, mas somente pela interposição do significante, em um fora do
corpo.
Na figura topológica do texto A terceira (1974b) é exposto que a consistência
corporal resulta, portanto, da regulação fálica do gozo que é parcial, existindo uma
dimensão do gozo que está fora do regime fálico, representada neste esquema pelo
enigmático gozo do Outro, J(A).
O gozo do Outro é definido como enigmático, pois não passaria pelo simbólico, sendo
fruto da articulação entre Real e Imaginário. Este gozo é definido como louco, impossível
de circunscrever, pois não estaria regido pela lei significante.
Conforme compreendemos, ele corresponderia ao caráter autista do gozo, o gozo do
Um da relação sexual que Lacan (1972-3) afirma ao final de seu ensino como sendo
impossível de ser estabelecido em qualquer parte do enunciável.
Na nossa leitura, o campo do sentido que figura no esquema acima diz respeito à
operação da linguagem sobre o organismo, do sacrifício da dimensão do ser e do vivo
necessário para que o sujeito possa ser representado na cadeia significante e se torne
desejante, conforme Lacan (1964ab) expôs anteriormente.
Lacan (1974b) nos propõe, então, uma figura topológica que apresenta o corpo como
uma estrutura que advém da amarração do Real, do Simbólico e do Imaginário, a partir da
extração do objeto a. Esta representação pode ser lida da seguinte forma: para ter um corpo
de que possa gozar, é preciso que o sujeito se sirva das insígnias do simbólico. Em
decorrência disso, será possível apreender o corpo, enquanto uma consistência fornecida
51
pelo imaginário. Mas nem tudo do corpo pode se encarnar nesta imagem, da função do
que é da ordem do vivo e do real pulsional que a imagem busca velar.
Deste modo, mais uma vez é afirmado que o corpo se introduz na economia de gozo
pela imagem, cuja consistência se estabelece numa relação de ex-sistência que mantém,
com o que, do corpo, faz buraco.
Tal como percebemos, esta dimensão de ex-sistência será sempre situada por Lacan
(1974-5) em relação ao que é da ordem da consistência uma não existirá sem a outra.
Neste sentido, ele irá definir a ex-sistência como sendo um fora que não é um não dentro,
mas sim aquilo em torno do qual uma substância se sustenta.
O termo ex-sistência ganha aqui o significado, portanto, dos buracos do corpo, em
torno dos quais a pulsão traça seu percurso.
Pensamos que, com a noção de ex-sistência, Lacan nos indica o quanto o corpo é por
nós pouco conhecido. Nós o assimilamos como uma superfície, uma figura, no que consiste
o imaginário como a forma privilegiada pela qual é feita a primeira apreensão do mundo e
do semelhante. Assim, é por sua aparência que o corpo é apreciado e adorado por nós,
como indica o conceito freudiano do narcisismo.
Nossa ignorância quanto ao que se passa no corpo deve-se ao que está para além desta
aparência narcísica. Para além desta forma, este se afirma como composto por buracos,
constituindo um saco vazio, que sua consistência se dá em relação a um material que
se coloca como ex-sistente, isolado como sendo o real.
Com esta referência ao corpo como um saco, Lacan (1974-5) busca destacar a função
estruturante dos orifícios em torno dos quais se estabelecerá o circuito pulsional. Nas
palavras de Lacan: “As pulsões em questão provém da relação com o corpo, e a relação
com o corpo não é uma relação simples em homem nenhum, além disso, o corpo tem furos”
(LACAN, 1975-6, p.144).
Deste modo, o que a estrutura borromeana destaca na constituição do corpo são os
orifícios em torno dos quais se define o movimento da pulsão, sendo que a libido
constituirá seus objetos por uma espécie de evasão, de prolongamento, resultante do próprio
movimento em torno dos pedaços do corpo.
52
Desta ênfase no corpo a partir do investimento da libido, contornando seus buracos,
ao final do ensino de Lacan (1974-5), decorre a concepção daquele como um saco, no qual
o mundo entra pelos buracos:
“É no saco do corpo que se encontra figurado o eu, o que, aliás, induz a
especificar esse eu, alguma coisa que justamente faria buraco aí, por
deixar entrar o mundo por aí, por necessitar que esse saco fosse, de
alguma forma, fechado pela percepção; é enquanto tal que Freud não
designa mas trai não ser o eu mais do que buraco. Quais são os buracos
que constituem, por um lado, o Real, e por outro, o Simbólico?”
(LACAN, 1974-5, p. 12).
A importância dos orifícios na constituição do corpo é muito bem retratada pelo
conjunto de fenômenos que a clínica psiquiátrica isolou sob o nome de síndrome de Cotard.
Nesta síndrome vemos, pelo seu negativo, o papel crucial que os orifícios têm na formação
da imagem corporal.
Estes pacientes nos informam que não têm uma série de órgãos, o que nos revela uma
identificação à imagem a que falta toda e qualquer hiância. Nos casos extremos, quando
temos o Cotard constituído, nos deparamos com um sujeito obstruído por toda parte, o que
induz uma disfunção tanto pulsional como fisiológica global.
Sabemos que os orifícios corporais decorrem da extração de um objeto que funda um
campo vazio, em torno do qual se atam os três registros. Deste modo, nesta clínica tudo vai
se desenrolar em torno da tirania do objeto a não extraído. As negações hipocondríacas que
incidem sobre todos órgãos refletem isso e o cotardizado vai apresentar os mais extremos
impasses com relação ao corpo, como veremos com mais detalhes no capítulo 3.
Ao longo do percurso de investigação de como o problema do corpo se coloca para a
psicanálise, fomos presenteados com valiosas referências à obra de Francis Bacon, nas
quais é sublinhado o quanto encontraremos nas telas deste pintor da segunda metade do
século XX representações do corpo como irredutível a uma boa forma, na qual o sujeito se
reconhece. E, como temos visto, é justamente esta dimensão real do corpo que a psicanálise
não se furtará de nos mostrar, especialmente ao final do ensino de Lacan. Assim, iremos
concluir este capítulo sobre o corpo, recorrendo à obra de Bacon, algumas entrevistas que
ele concedeu e a comentadores da potência de suas telas.
53
2-4- Francis Bacon: o corpo, para além da aparência
“A gente vive quase o tempo todo encoberto de véus [...] É uma existência
velada. E às vezes penso, quando as pessoas dizem que meus quadros
parecem violentos, que eu consigo de vez em quando levantar algum véu
ou afastar algum biombo”
(BACON, F. in SYLVESTER, D., 1995, p. 82).
Encontraremos também dentro do campo das artes ilustrações daquilo que singulariza
o corpo humano para além do enquadre da imagem. É justamente esta dimensão que faz do
corpo tão pouco conhecido para nós que será retratada por Francis Bacon.
54
“Penso sempre em mim, não como um pintor, mas como um instrumento do acaso ou
da sorte” (
BACON
in SYLVESTER, 1995, p.140). Assim se definia esse fantástico pintor
irlandês, autodidata, falecido em 1992, aos 83 anos de idade.
Durante muito tempo Bacon foi considerado um artista marginal e maldito, por tratar
com uma extraordinária coragem alguns temas que ainda hoje continuam a chocar a muitas
pessoas, dentre eles: as fantasias masoquistas, a pedofilia, o desmembramento de corpos e
as práticas de dissecação forense.
A primeira exposição individual de Bacon na Lefevre Gallery, em 1945, provocou
uma reação bastante negativa, não sendo bem recebida pelo público. Nesta época, todos
estavam fartos da guerra e de seus horrores e se falava da "construção da paz" e as
imagens de entranhas dos quadros de Bacon, com os seus tons sanguíneos, provocaram
mais repulsa do que admiração.
Muitos aspectos cruciais da pintura deste artista podem ser relacionados à dimensão
real do corpo humano, à realidade da carne e à violência das sensações, que ele
seguidamente retoma por meio da pintura quando retrata, por exemplo, a fragmentação do
corpo, a fusão dos corpos no ardor do desejo, sua tensão no auge das sensações e corpos
revelados pelos raios X ou despidos para o sacrifício.
Nestes trabalhos, Bacon demonstra um verdadeiro fascínio pelos fluxos e fluídos da
matéria, como o sangue, a bílis, a urina, o esperma, expondo, ao mesmo tempo, o lado
efêmero, fugaz e perecível do corpo. Desta maneira, com sua abordagem singular do corpo,
ele nos remete ao modo como Lacan (1962-3, p.139) irá se referir ao corpo, como sempre
comportando algo inerte - a libra de carne.
Dentro desta abordagem singular do corpo, em muitas de suas pinturas, ele retrata a
selvageria de uma orgia de carnes dilaceradas e em constante movimento de luta, como se
fossem uma única substância, um amontoado de carne, sendo impossível a distinção dos
corpos, como vemos nos “Três estudos de figuras numa cama” (1972) que reproduzimos a
seguir.
55
Para este artista, a pintura toca numa dimensão da qual não se pode falar, embora se
tente; por isso, ele não busca explicar o ato de pintar e apenas o realiza. E vai considerar
este ato muito mais como um acidente, cujos resultados não podem ser previstos,
comparando a realização de suas pinturas com um trabalho de um médium que aceita as
imagens que lhe chegam por acidente.
Na sua concepção, no início de uma pintura, embora tenha alguma idéia do que quer
fazer, esta se modifica continuamente e as imagens vão aparecendo. Daí sua dificuldade de
entender seu trabalho como motivado por uma inspiração. A este respeito ele nos diz o
seguinte: Acho que em meu caso é uma sorte que as imagens venham a mim como se me
fossem dadas de presente; realmente eu me vejo como um fazedor de imagens” (BACON
in SYLVESTER ,1995, p. 166) . Ou ainda vai afirmar: Quando se deixa o acaso agir,
certos níveis mais profundos da personalidade vêm à tona [...] eles vêm à tona sem que o
cérebro interfira na inevitabilidade de uma imagem. [...] É isso que lhe dá vigor” (idem, p.
120) .
De acordo com este modo de conceber seus trabalhos, é para ele incompreensível a
definição de suas pinturas como violentas e macabras, conforme diz no trecho da entrevista
(BACON, 1990) que reproduzimos a seguir
15
: “- Te aborrece que insistam no aspecto
violento, macabro [...] de sua pintura? – Não entendo isso. Quando se pensa isso da minha
pintura é porque não se pensou na vida... não pode ser tão violenta como a própria vida”.
15
diponível na revista de literatura e cinema Tijeretazos no site
www.iespana.es/tijeretazos
56
Archimbaud (1996), nas entrevistas com Bacon, realizadas no período de outubro de
1991 a março de 1992, irá retomar esta total incompreenssão do artista ao ter seu trabalho
definido como violento. E irá ressaltar que a potência da obra deste não pode ser reduzida
apenas à violência fascinante e repulsiva de suas imagens.
Para aquele autor devemos fazer, assim, uma diferença entre o que é reconhecido à
primeira vista como violento e os efeitos de intensidade das telas de Bacon, nas quais são
retratados, num mesmo gesto, o horror e a beleza, o obsceno e o sublime.
É neste sentido que entendemos as afirmações de Bacon nas entrevistas que concedeu
a David Sylvester (1995) quando diz que ao artista caberia a missão de remeter o
espectador à vida, tentando fazer a imagem atingir o sistema nervoso de uma maneira mais
penetrante. Seguindo esta mesma linha de raciocínio, ele fará, posteriormente,
(ARCHIMBAUD, 1996) uma equivalência entre o que visa com suas pinturas e os efeitos
de provocar emoções e purgar paixões que o teatro clássico grego produzia.
Entendemos, deste modo, porque para Bacon, na pintura, assim como em qualquer
outra produção humana, se tentaria refazer o que chamamos de realidade, a partir da
deformação desta, buscando lhe dar força. Refazer a realidade, através da pintura, significa
para ele ir em busca da essência das coisas, da paisagem, da água, das pessoas, aquilo que
delas emana, sua substância, porém sem qualquer dimensão psicológica ou de
personalidade.
Archimbaud (1996) vai captar esta particularidade das telas de Bacon, ao descrevê-las
como surpreendentes transformações operadas na própria pintura, nas quais toda
consistência parece escapar. Segundo este autor, como efeitos destas operações, estas
pinturas mostrariam o horror sem renunciar a harmonia, tentariam dar forma ao que nunca
teve e fariam uma figuração da angústia.
Bacon absorveu imagens de numerosas fontes visuais: não as pinturas de outros
artistas que ele enfrenta e reformula, mas também fotografias, pranchas de compêndios de
medicina e de ciências naturais, e fotografias de jornal. Tudo isso era capaz de estimulá-lo,
de nutrir sua imaginação e de inspirar respostas em suas pinturas.
Este artista pintou a si próprio em dúzias de pequenos auto-retratos, bustos ou meios-
corpos e, mais raramente, a partir de 1956, fez cerca de dezessete auto-retratos de corpo
inteiro; além de pintar também amantes e amigos íntimos, nus masculinos, femininos,
57
algumas vezes de sexo indeterminado e, ocasionalmente, de modo chocante, corpos em
união íntima.
Para elaborar seus auto-retratos, Bacon utilizava tanto o espelho como fotografias e
para pintar seus amigos recorria a estas últimas, juntamente a lembranças e associações, o
que achava preferível à presença física deles em seu espaço de trabalho. Dizia que ficava
mais livre assim: "Eles me inibem porque, se gosto deles, não quero praticar diante deles
as ofensas que lhes inflijo em meu trabalho" (
BACON
in SYLVESTER, 1995, p.41).
O uso das fotografias tem aqui a função de um documento, algo que permita ao artista
lembrar dos traços da pessoa que ipintar. E a ofensa, a distorção, é feita em relação à
imagem pintada; mas, se não fosse uma imagem, não haveria distorção visível.Ele não
considera suas distorções como sendo uma agressão, e sim uma forma de imprimir mais
força à imagem e levar às últimas consequências seu desejo de transmissão.
Deste modo, quando Bacon distorce e transforma voluntariamente a figura, ele
questiona não a imagem, mas a própria pintura enquanto arte da representação, pois
considera a imagem como sendo mais importante do que a beleza do quadro.
Em outras palavras, não se trata unicamente de uma questão de manusear a tinta com
violência, pois para ele é vital que o dano seja feito à imagem, porque o que é buscado por
Bacon é a essência, enquanto o que não está encoberto por véus.
Desta maneira, nos retratos dos que compõem seu círculo de amizades, Bacon
ressaltava os traços mais marcantes, desprezando e distorcendo todo o resto, sem que, no
entanto, deixemos de identificar quem é a pessoa retratada.
Podemos dizer que nestes seus trabalhos é como se Bacon se perguntasse sobre o que
há por trás da aparência, como ele próprio nos indica: a maior parte de um quadro sempre
é convenção, aparência e isso é o que tento eliminar de meus quadros. Busco o essencial
[...] Minha maneira de deformar imagens me aproxima muito mais do ser humano que se
me sentasse e fízese o seu retrato”(BACON in DELEUZE, 2007, p.198).
Essa busca pelo essencial está presente, sobretudo, nos retratos de amigos e nos auto-
retratos que constituem a produção mais abundante da obra de Bacon. Para a tradição
pictórica, o retrato é um nero de segunda ordem e tem ainda uma função emblemática:
expressar a condição social ou profissional de um personagem. os retratos de Bacon
seriam esta tentativa de capturar algo para além dos emblemas.
58
Deste modo, ele pinta insistentemente retratos e auto-retratos, introduzindo, segundo
seu estilo, torções e distorções dos eixos espaciais que têm como resultado a deformação
dos rostos.
Segundo Rocca (2004), os retratos de Bacon podem, assim, ser descritos como uma
tentativa de transformar o estereótipo de um retrato convencional que unicamente simula a
individualidade concreta em uma imagem processo. Com este fim, o rosto humano aparece
nos limites de sua dissolução, justamente antes de começar a deixar de ser reconhecido, o
que abre a possibilidade de múltiplas leituras, como veremos na ilustração a seguir.
Auto- retrato,1971
Neste auto-retrato, feito com uma fria objetividade e distanciamento
16
, Bacon expõe o
quanto o que lhe interessa é a distorção do objeto, no caso ele próprio, até um nível muito
além da aparência. E este nível muito além da aparência é brilhantemente descrito por ele
(BACON in SYLVESTER, 1995, p.118): “O que chamamos de aparência se mantém
16
Nas entrevistas que deu a Archimbaud (1996), Bacon revela que a escolha da própria imagem para compor
suas telas se fazia somente na ausência de uma alternativa melhor. O seu próprio rosto serve, assim, apenas
como um instrumento mediante o qual ele pode realizar suas operações de desorganização da imagem, nas
quais visa transpor as aparências, diz ele: “Num dado momento, quando eu não podia mais achar outros
modelos, eu retratava a mim mesmo nas minhas pinturas, mas isso se dava na ausência de algo melhor, não
porque eu achasse isso interessante” (BACON in ARCHIMBAUD, 1996, p. 119).
59
momentaneamente como aparência. Num segundo, com um piscar de olhos ou uma ligeira
inclinação da cabeça, a aparência já se terá transformado”.
Deleuze (2007) define como projeto de Bacon nestes retratos desfazer a organização
espacial estruturada do rosto. Com este fim, ele submetia o rosto a operações de limpeza e
escovamento que o desorganizam, fazendo-o perder a forma. Estas operações ocorrem
sempre no próprio lugar, na figura que é subordinada à força imprimida pelos atos da
limpeza da imposição de traços, não se reduzindo nem a uma transformação da forma, nem
a uma decomposição dos elementos.
As deformações pelas quais o corpo passa são também os traços animais
acrescentados à figura humana. Deste modo, limpeza e inclusão de traços animais também
compõem este projeto de desorganização da imagem do corpo.
Nestes quadros em que traços animais servem como recurso para a deformação
humana, podemos apreciar a influência dos açougues e matadouros dos bairros operários
que Bacon visitava. Para Deleuze (2007), nestes trabalhos, Bacon constitui uma zona de
indiscernibilidade, de indecidibilidade entre o homem e o animal.
Vemos, aqui, no projeto de Bacon de desfazer a organização da imagem do corpo, não
demarcando fronteiras entre o corpo e outras imagens, mesclando características humanas à
de animais, uma perfeita retratação dos efeitos da não operatividade dos orifícios do corpo
para a produção de uma imagem unificada.
Muitos dos pacientes psicóticos internados que acompanhamos no IPUB-UFRJ
(2006-8) vão descrever experiências no corpo nestes moldes, em que não limites entre
eles e o que os circunda, o que pode levá-los a assumir a imagem dos mais variados
animais, com é o caso da paciente que inquere a toda à equipe da enfermaria se estaria
virando diabo ou passarinho.
É neste sentido que entendemos a aproximação que Deleuze (2007) faz entre Bacon e
Artaud, admitindo a existência de uma correspondência entre as pinturas do primeiro e o
corpo sem órgãos proposto pelo segundo, como algo que se opõe à organização dos órgãos.
Para ele, a figura em que Bacon insiste é a da pura carne e dos nervos que rompe os limites
da atividade orgânica; por isso este nunca teria deixado de pintar corpos sem órgãos.
O corpo enquanto carne, pintado por Bacon, representaria esta zona de
indiscernibilidade em que ossos e carne se confrontam localmente, em vez de se comporem
60
estruturalmente. Em suas pinturas, o corpo se revelaria quando deixa de ser sustentado
pelos ossos, ou quando a carne deixa de recobrir os ossos.
Deleuze (2007) entende estas operações de deformação que Bacon realiza em suas
pinturas a partir da ação de forças invisíveis, definindo-o como um pintor da força, da
intensidade. E ressalta que em muitos dos trabalhos deste artista é como se o corpo tentasse
escapar por um de seus órgãos, na forma de um espasmo, para se juntar à superfície plana
que compõe o fundo da tela. A isto ele relaciona a importância que Bacon dava à presença
da sombra, como algo que escapou do corpo por um ponto localizado no contorno.
Deste modo, nestes quadros a figura não é o corpo isolado, mas sim o corpo
deformado que escapa, o que faz da deformação um destino necessário, já que o corpo deve
se juntar à estrutura material e dissipar-se.
As pinturas em que uma figura humana se dissipa em direção ao espelho retratam
muito bem o processo de deformação do corpo de que se trata aqui, como vemos a seguir,
com a pintura do reflexo no espelho de uma pessoa escrevendo:
Figura escrevendo refletida num espelho, 1976
Deleuze (2007) sublinha que os espelhos de Bacon poderiam ser tudo menos uma
superfície que reflete. Pelo contrário, o espelho se apresenta como uma espessura opaca,
por vezes preta. Como vemos na figura acima, em que o corpo passa para o espelho, nele se
alojando, ele mesmo e sua sombra. É como se não houvesse nada atrás do espelho, mas sim
dentro dele e o corpo se alongasse e se contraísse nesta direção.
61
Esta presença na obra de Bacon de pinturas em que o corpo se dissipa, escapando por
um dos órgãos, nos remeteu à referência que Lacan (1975-6) faz a uma das produções de
James Joyce. Trata-se do episódio narrado em O retrato do artista quando jovem”
(JOYCE,1992).
Reproduzimos este episódio a seguir. Stephen Dedalus, protagonista deste romance,
discorda da opinião dos colegas sobre quem seria o maior poeta. Em resposta a esta
provocação de Stephen, os colegas avançam sobre ele, o agredindo a golpes de bengala e o
lançando sobre uma cerca de arame farpado. Joyce narra que seu personagem, ao retornar
para casa, ainda que não pudesse esquecer a crueldade dos colegas, a lembrança que
guardara da surra não lhe despertava nenhum afeto. Na ocasião, este sentira apenas que sua
raiva havia sido despojada, assim como um fruto é despojado de sua casca madura e macia.
No seminário sobre Joyce (1975-6), tal testemunho não passará desapercebido a
Lacan que destacará, nesta relação com o corpo, efeitos da ausência de revestimento
narcísico. Desta forma, com este testemunho, Joyce indicaria ter com o próprio corpo uma
relação de estranheza, deixando cair a relação como o próprio corpo, que a imagem do
corpo, a idéia que se faz dele, não tinha para ele nenhum peso. É isto que vai assinalar a
ausência do revestimento narcísico, como aquilo que suporta o corpo como uma imagem
que experimentamos como nossa, pois acreditamos tê-la.
Para Lacan, quando Joyce diz que, após a surra, seu corpo se desprega como uma
casca, ele indicaria que o ego tem para ele uma função inteiramente particular. Assim,
Lacan retoma a noção de ego - pois se dizemos que ele é narcísico, é porque alguma coisa o
suporta enquanto imagem -, para indicar que, neste caso, esta imagem não está implicada.
Deste modo, poderíamos dizer que em Joyce o imaginário escorrega e a prova disto é
que ele não nutre nenhum ressentimento por nenhum daqueles que o agrediu. É então esse
imaginário desatado o que nos permitirá falar da indiferença narcísica de Joyce com relação
ao seu corpo após a surra. E onde não esse fundamental que é a imagem narcísica
17
,
veremos Joyce fabricar um outro tecido, uma outra textura à qual dedicará toda uma vida. É
este o lugar que a escrita tem para ele, enquanto suplência paterna que permite a amarração
dos três registros e, segundo Lacan, opera enquanto um sinthoma.
17
Lacan (1975) define o narcisimo como um nó fundamental nas “Conferências Americanas”, o que
retomaremos no capítulo 3.
62
Este exemplo de Joyce só vem a reforçar o quanto a presença marcante nas pinturas
de Bacon do corpo deslizando, se esvaindo e se confundindo com outras imagens, nos serve
para avançarmos em nossa argumentação sobre o que vem a constituir um corpo, do ponto
de vista da psicanálise. Vimos nesta espécie de marca registrada das pinturas deste artista
um contraponto importante em relação à operatividade da imagem e a sua função
unificadora que é o que permite ao corpo ser tomado como uma totalidade, uma Gestalt na
qual o sujeito se reconhece.
Outro autor que irá abordar a especificidade com que Bacon retrata o corpo humano é
Rocca
18
(2004). Este pesquisador irá destacar os seguintes aspectos nas representações do
corpo humano deste pintor: a ausência de qualquer domínio sobre o corpo, a falta de
estabilidade da existência humana e a superação e reconstrução das fronteiras do corpo.
Além disso, ele vai chamar a atenção para a presença nos trabalhos deste pintor sobre
o corpo de uma regressão à animalidade que desconstrói as convenções de gênero. Desta
maneira, Bacon traz a cena um homem despojado de sua humanidade e não encoberto pela
civilização. Neste sentido, Rocca (2004) vai compará-lo a um cirurgião que disseca o corpo
em suas pinturas para mostrar a vulnerabilidade da condição humana.
Vemos, assim, como, em oposição ao corpo enquanto imagem narcísica, uma
aparência por nós adorada, Bacon, durante mais de meio século, criará uma série de corpos
crucificados, contorcidos, mutilados, deformados, com rostos no limite do
desaparecimento, criaturas que copulam, defecam, vomitam, ejaculam, sangram e se
desmembram.
Em suas pinturas, é como se a carne em desintegração se reconstruísse como corpo, o
que retrata uma das obsessões nomeadas por ele de a beleza do colorido da carne’. Para
Bacon, fazer uma imagem com o corpo implica em abordar este enquanto carne e cadáver.
É neste sentido que ele irá afirmar que o corpo é carne: “Bom, claro, nós somos carne,
somos carcaça em potencial. Sempre que entro num açougue penso que é surpreendente eu
não estar ali no lugar do animal” (BACON in SYLVESTER, 1995, p.140).
18
Doutor em Filosofía pelo Curso de Pós-Graduação da Universidade Madri, no Departamento de Filosofía
IV, Estética e Pensamento Contemporâneo.
63
Conforme desenvolvemos, na ausência do véu imaginário, ter-se-ia acesso a esta
dimensão do corpo, enquanto carcaça ou carne, exposta no açougue, o que nos faz pensar o
quanto Bacon expõe em sua obra algo da morte e do real da incompletude, como ele
mesmo diz: “Existe sempre um sentimento de morte nas pessoas quando elas vêem meus
quadros (...). Talvez eu carregue esse sentimento de morte o tempo todo (...). Sempre me
surpreendo quando acordo de manhã” (idem, p.78).
Entretanto, isto não nos autoriza a reduzir a complexidade dos trabalhos deste artista a
uma posição mórbida e pessimista, tal como ele mesmo salienta, ao final das entrevistas
que concedeu a Archimbaud (1996), definindo-se como um otimista desesperado. Este
otimismo, a partir do qual ele define a si mesmo e a seus trabalhos, se aproximaria muito do
que podemos reconhecer como um traço marcante da obra freudiana, da qual Bacon diz ser
um grande adimirador, na medida em que ele concebe a morte como caminhando lado a
lado com a vida: De toda maneira a vida e a morte estão de braços dados, não é? A morte
é como a sombra da vida” (BACON in ARCHIMBAUD, 1996, p.126).
É neste sentido que a estética de Bacon é difícil, porque nela algo da verdade se
revela, sem apaziguamento. Bacon atira-nos o real na cara, retrata a brutalidade dos fatos e
a violência íntima das coisas reais. O efeito de suas distorções é o de burlar a rotina do
olhar, capturando inesperadamente o espectador e fazendo do aversivo algo convidativo ao
olhar. É justamente por esse convite que sua obra porta que faz com que Bacon se aproxime
de como Lacan vê o pintor como “fonte de algo que pode passar ao real, e que o tempo
todo, se assim posso dizer, nós arrendamos” (LACAN, 1964a, p. 109).
Até este momento fizemos o percurso de extrair, sobretudo do ensino de Lacan, os
elementos que estão implicados na constituição do corpo que demonstramos estar
indissociada da amarração dos registros do Real, do Simbólico e do Imaginário. Num
segundo tempo, recorremos à obra de Bacon e aos comentadores desta, visando explicitar o
quanto os registros simbólico e imaginário buscam ordenar e velar o real, enquanto uma
dimensão irredutível do corpo e da realidade humana.
Agora, nos caberá, a partir desta concepção do corpo como referido a uma imagem, à
articulação significante e à extração do objeto a, esclarecer como estes elementos se
apresentarão quando o problema do corpo torna-se mais agudo, o que identificamos ao
campo das psicoses.
64
-
CAPÍTULO 3 -
O PROBLEMA DO CORPO NAS PSICOSES
Apresentação
Encontraremos desde os rascunhos de Freud referências ao problema do corpo na
psicose, mas será com a teoria da libido que ele delimitará os modos distintos como este
problema se coloca na paranóia e na esquizofrenia. Conforme entendemos, a definição da
relação com o corpo nas psicoses, a partir da retração narcísica da libido, servirá de ponto
de partida para a maioria das considerações de Lacan a este respeito. Neste capítulo
examinaremos justamente estas considerações, nas quais Lacan torna patente o que de
estrutural no lugar que o corpo ocupa nas psicoses. Em seguida, nos deteremos no destaque
que os fenômenos hipocondríacos ganham dentro desta discussão, buscando situar nestes
fenômenos a relação peculiar com a linguagem e com o objeto a de que aí se trata.
A síndrome de Cotard será por nós retomada por representar o extremo da particular
relação com a linguagem e com o objeto apresentada nos sintomas hipocondríacos. Nosso
interesse por esta síndrome é ressaltar os impasses resultantes da precariedade dos orifícios
corporais. Seguindo esta mesma linha de raciocínio, abordaremos o que da relação com o
corpo nas psicoses se coloca quando estes sujeitos apresentam sintomas de anorexia e de
bulimia.
A análise dos sintomas hipocondríacos, da síndrome de Cotard, da anorexia e da
bulimia, como reveladoras da relação peculiar com o significante e com o gozo nas
psicoses, será fundamental quando formos trabalhar os casos clínicos no capítulo 5.
65
3-1 - O Corpo e as Psicoses
“O neurótico é o normal na medida em que para ele o Outro com o
maiúsculo tem toda importância. O perverso é o normal na medida em que
para ele o falo, o grande
Ф
, que nós identificamos ao ponto que a peça
central do plano projetivo toda sua consistência, o falo tem toda
importância. Para o psicótico, o corpo próprio, que se distingue do lugar
que não lhe convém nesta estruturação do desejo, tem toda a importância
(LACAN, 1961-2, lição de 13-06-62).
19
O acesso que a psicanálise tem ao problema do corpo não se esgota na via simbólica e
metafórica dos sintomas histéricos, como demonstram, sobretudo, as referências aos
fenômenos corporais da esquizofrenia.
Estes fenômenos evidenciam que aquilo que experimentamos acerca do nosso próprio
corpo como relativamente habitável, íntegro e estável não é um dado biológico. Como diz
Lacan (1961-2), a psicose explicita que o acesso do sujeito ao corpo não é algo que se
realize de forma automática, mas sim tributário da operação do significante sobre o gozo.
Conforme desenvolvemos no capítulo anterior, a constituição do corpo mostra-se
comandada pela cessão desse estranho objeto que Lacan chamou de a. E dela decorre a
amarração dos três registros e a formação do corpo, enquanto uma consistência que se
sustenta em torno de orifícios. Pensar como o problema do corpo se coloca nas psicoses
implica, portanto, em situá-las em relação a esta operação do significante e aos efeitos que
ela promove.
Se Freud foi interpelado pela paranóia, e em particular pela demência paranóide de
Schreber, não significa que ele ignorasse os trabalhos de Jung e de outros clínicos sobre a
esquizofrenia. Neste sentido, Freud irá propor o uso do termo parafrenia, aproximando
desta forma a esquizofrenia da paranóia. E adotará a tese de Abraham (1908) sobre o
mecanismo de retração da libido para definir tanto a esquizofrenia como a paranóia.
Jung teve um papel central para que Freud se aprofundasse no estudo das psicoses.
Foi através daquele que As memórias de um neuropata, publicadas em 1903, chegaram às
mãos de Freud. E sabemos que a principal teorização freudiana a respeito da psicose é
elaborada graças a este documento excepcional que ele recebe com bastante entusiasmo,
conforme ele expressa em uma de suas cartas a Jung: “... o maravilhoso Schreber que
19
grifos nossos.
66
deveria ter sido nomeado professor de psiquiatria e diretor de um asilo (FREUD &
JUNG,1910-14, p.44).
Dando continuidade às elaborações feitas sobre o caso Schreber, em 1914 Freud irá
considerar as psicoses como um dos principais temas para a discussão do narcisismo,
definindo a gênese destas a partir do processo de retração da libido. Na paranóia, a libido se
retrairia até o narcisismo, constituindo ao final a megalomania, enquanto na esquizofrenia,
a retração libidinal teria um alcance ainda maior, chegando ao auto-erotismo e
concentrando-se no corpo.
Na teoria freudiana, a retração da libido, na forma de uma estase, corresponde à etapa
do surto psicótico. Em contraposição a este momento do surto, haveria uma etapa de
restauração, considerada como uma tentativa de cura, em que através de alucinações,
delírios e estereotipias motoras, o sujeito buscaria retomar o investimento libidinal.
Freud (1914) aproxima o mecanismo de restauração na paranóia ao da neurose
obsessiva e propõe na esquizofrenia a ocorrência de um processo análogo ao da conversão
histérica. Embora, não desenvolva esta equivalência entre as neuroses ditas narcísicas e as
de transferência, nos pareceu interessante que ele tenha suposto que nos esquizofrênicos a
tentativa de ligar a libido teria como meio o próprio corpo, enquanto na paranóia é a esfera
do pensamento, assim como no obsessivo, que seria explorada.
O estudo da hipocondria também levará Freud ao conhecimento do processo de estase
da libido. Neste caso, o corpo se converte em pólo de concentração libidinal, o que pode se
apresentar mediante um quadro catatônico ou em experiências de mortificação do sujeito.
Freud (1914) enfatiza o quanto a libido se apodera do corpo hipocondríaco, usando para
ilustrar esta situação clínica a imagem do pênis intumescido, em ereção.
A hipocondria se caracterizaria, assim, por concentrar a libido nos órgãos que se
converteriam em fonte de sensações aflitivas e desprazerosas. Seguindo este raciocínio, em
1914, Freud chega a classificá-la, juntamente com a neurastenia e as neuroses de angústia,
dentre as neuroses ‘reais’, nas quais o aparelho psíquico teria fracassado na sua função de
dominar as excitações.
Nesta perspectiva, a hipocondria, por se caracterizar por uma falha no domínio
psíquico da libido, se distinguiria da paranóia e da esquizofrenia, nas quais Freud supõe
uma etapa de elaboração psíquica ulterior, quando a libido é retomada.
67
O problema do narcisismo é, assim, o eixo da teoria freudiana a respeito das
psicoses. Como vimos, Freud afirma a existência de um nexo estrutural entre as psicoses e
a libido narcisista, definindo a nese destas a partir da retração da libido. E dará um
destaque à existência de uma tentativa de restauração, nos esquizofrênicos e nos
paranóicos, enquanto nos hipocondríacos é o resultado extremo do processo de regressão
narcisista que será sublinhado.
Pensamos que Lacan (1957-8a) segue a mesma linha de raciocínio de Freud, ao
definir as psicoses como uma regressão tópica ao estádio do espelho, assim como quando
caracteriza (1966a) a paranóia e a esquizofrenia a partir de uma concentração de todo o
gozo, seja através da localização no Outro ou no próprio corpo.
As primeiras abordagens de Lacan das concepções freudianas sobre estes dois tipos
clínicos podem ser examinadas a luz dos textos em que os esquemas óticos (LACAN,1953-
4) e o estádio do espelho (LACAN,1949) são trabalhados.
Como desenvolvemos, o estádio do espelho e os modelos óticos nos dão acesso ao
tema da constituição do corpo para o falante que se funda no campo do Outro. Ambos
colocam em evidência o caráter fragmentário do corpo, originariamente despedaçado pelas
pulsões e expõem que somente a partir da ligação simbólica será possível se apropriar da
função unificadora da imagem.
Segundo esta perspectiva, a consistência do corpo decorre de sua ligação com o
Outro, daí o impacto que a imagem tem frente à fragmentação corporal. A imagem corporal
se configura como uma totalidade antecipada que se sobrepõe e serve de véu para a
dimensão real e de fragmentação pulsional do corpo.
A dinâmica através da qual o sujeito se identifica com esta unidade ideal que é a
imagem está especialmente representada no estádio do espelho. Este esquema mostra que o
revestimento narcísico, ao mesmo tempo, que é fundamental para o sujeito, anuncia para
ele o caráter irremediavelmente alienante de sua constituição.
No texto dos Escritos, Variantes do tratamento- padrão (1955), Lacan tratará deste
caráter constitutivo e de alienação que imagem tem para todo sujeito:
68
Somente ao homem essa imagem revela o seu caráter mortal e de morte
ao mesmo tempo: que ele existe. Mas essa imagem só lhe é dada como
imagem do outro, ou seja, lhe é arrebatada. Assim o Eu nunca é senão
metade do sujeito; e é ainda aquela que ele perde ao encontrá-la.
Compreende-se, pois, que faça questão dela e procure conservá-la em tudo
o que parece reproduzi-la nele mesmo ou no outro e que lhe ofereça, com a
efígie, a semelhança...” (LACAN,1955, p.348).
Podemos entender, assim, porque o acesso que o sujeito tem à imagem corporal se
constitui para ele como uma encruzilhada estrutural. De uma parte, lhe é fornecida uma
realização positiva, ainda que fatalmente antecipada de uma identidade narcisista e, de
outra parte, ele terá que se haver com a intrusão de uma alteridade que, no lugar de suturar
a dispersão do seu corpo, mostra seu estatuto irremediável.
Haveria, portanto, uma discordância primordial entre o real do corpo despedaçado e o
ideal produzido pela imagem. Esta discordância que marca a história toda do sujeito, desde
a dialética transitivista das crianças às reações de rivalidade das relações humanas em geral,
também pode ser traduzida pela divergência entre o ser e o eu. É em torno desta
divergência que Lacan situará a paranóia no início do seu ensino.
Lacan irá supor na paranóia a produção de uma coincidência ilusória entre o ser e o
eu. Esta é a teorização sobre as psicoses presente nos artigos Formulações sobre a
causalidade psíquica (1946) e A agressividade em psicanálise (1948).
A partir da análise do caso Aimeé e seguindo os rastros deixados pela teoria da libido
de Freud, Lacan, em 1946, define a paranóia como uma estase do ser em uma identificação
ideal. Lembremos: Freud falava de estase da libido no eu. Lacan pensará a paranóia a partir
de um processo de estase, no qual o ser do sujeito ocupa o lugar de um ideal, explicitando o
traço humano universal que é o apego pela consistência da própria identidade.
O paranóico, com sua pretensão de se constituir como idêntico a si mesmo, colocaria,
assim, em evidência, a paixão indômita do sujeito por sua própria imagem que é o
narcisismo. Esta crença verdadeiramente delirante do ego de ser indiviso é o que Lacan
designará neste momento como delírio de presunção e a discordância em que o sujeito se vê
frente a este ideal narcísico terá como repercussões atos de agressão.
São estes os elementos que compõem a discussão do caso Aimée. A crença delirante
desta paranóica se apóia no apego à consistência ideal da própria identidade, em que se
destaca o ideal de ser uma mãe perfeita. E tudo o que escapa a este ideal, Aimée não
69
reconhece como seu, reportando à sucessão de perseguidoras do seu delírio para as quais irá
dirigir sua agressividade.
É seguindo esta gica que Lacan vai considerar a agressão à atriz famosa realizada
por Aimeé uma agressão suicida do narcisismo, já que com o golpe que desfere contra esta
personificação de um ideal de malignidade, Aimée atinge a parte de si mesma que não
corresponde ao seu ideal de perfeição narcísica. É neste sentido que Lacan define este caso
pelo não reconhecimento da manifestação do próprio ser na desordem do mundo.
Esta abordagem do caso Aimeé evidencia a tendência da paranóia à intensificação da
dimensão narcísica, na qual predominam as relações de agressão erótica, tese que será
mantida nos anos 50, no texto da “Questão Preliminar” (1957-8a). E também ao final de
seu ensino (1975-6, p.52), que Lacan afirma que a paranóia e a personalidade são a mesma
coisa, identificando o paranóico com o grude do registro imaginário (LACAN, 1974-5, p.
57).
Nesta tendência do paranóico, é a relação de verdadeira captação pela imagem do
outro que se revela como estrutural, tornando manifesta a dimensão de agressividade
constitutiva de todo sujeito:
“O que o sujeito encontra nessa imagem de seu corpo é o paradigma de
todas as formas de semelhança que levarão para o mundo dos objetos um
toque de hostilidade, projetando nele a transformação da imagem
narcísica, que, de efeito jubilatório de seu encontro no espelho,
transforma-se, no confronto como semelhante, no escoadouro da mais
íntima agressividade” (LACAN, 1960b, p. 823).
Para Lacan (1948), a agressividade é a tendência correlativa à identificação narcísica
que irá atualizar-se toda vez que a falta de adequação do outro impossibilitar uma
identificação resolutiva, o que fará deste outro objeto da hostilidade.
Esta tendência não se resume a atos agressivos, podendo ganhar diversos formatos na
paranóia, desde qualquer postura beligerante e desafiadora até quando o sujeito atribui um
caráter nocivo ao que lhe é exterior, ou refere estar sob a ameaça de envenenamento, sob
influência telepática, ou ainda sofrer qualquer tipo de intrusão física, violação da intimidade
ou mesmo uma perseguição.
Uma das pacientes que freqüenta assiduamente o grupo direcionado às enfermarias do
IPUB-UFRJ (2006-8), cuja história continha diversos episódios de agressividade, tendo
70
desgastado as relações familiares a tal ponto que se encontrava morando na rua, nos fala
desta tendência paranóica de forma bastante sintética. Disse ela: “Meu problema é que eu
amo demais e quando amo, fico agressiva”.
Se em Formulações sobre a causalidade psíquica (1946) Aimée permite a Lacan
constatar a intensificação da dimensão narcísica nos paranóicos, na cada de 50 será a
partir da análise do delírio de Schreber que ele irá ressaltar a proliferação do imaginário e
formular a tese da regressão tópica ao estádio do espelho na paranóia.
Lacan destaca no discurso de Schreber diversos fenômenos em que predominam as
relações especulares, como a redução do mundo em sua dimensão significante a puras
miragens, presente na vivência de fim do mundo, assim como os aspectos da agressividade
e da falência do sujeito, reveladoras do caráter mortífero das identificações narcísicas.
Serão sublinhados no início do delírio de Schreber os fenômenos de captura
imaginária, quando a imagem não se inscreve em nenhuma dialética ternária, fazendo surgir
toda sorte de relações de rivalidade, agressividade e temor. Assim, num primeiro momento,
é a partir da alienação na imagem do outro que este sujeito consegue algum tipo de
enganchamento que lhe sirva de sustentação na existência.
Neste momento inicial, a ausência de um princípio regulador de gozo faz com que
sejam buscadas compensações em uma rie de identificações conformistas, na forma de
muletas imaginárias que emprestarão a Schreber algum aspecto viril. É neste sentido que
Lacan irá afirmar neste momento a ocorrência de uma regressão tópica à hiância mortífera
do estádio do espelho, na ausência da mediação simbólica do Ideal do eu.
Tal como representa o esquema R (cf p. 44), é a função apaziguadora do Ideal do eu,
instalado pela identificação edipiana, que permite ao sujeito transcender a agressividade
constitutiva de seu eu, instaurando uma distância entre o sujeito e o Outro.
Conforme entendemos, esta prevalência da dimensão narcísica no paranóico pode ser
estendida ao final do ensino de Lacan e traduzida pela amarração em continuidade dos três
registros. A partir dos anos 70, para captar a estrutura da psicose paranóica, Lacan (1975-6,
p. 89) propõe esta modalidade de enodamento original em forma de trevo.
71
O nó de trevo, que reproduzimos acima, se caracteriza pela aglutinação dos três
registros, de maneira que estes constituirão uma única e mesma consistência. Neste tipo de
enodamento, os registros encontram-se articulados, o que resulta numa consistência; no
entanto não se trata da mesma consistência produzida pelo nó borromeamo que
descrevemos no capítulo 2 (cf p. 49). Tal como explicita a figura topológica do corpo (cf
p.50), no borromeano o Real e o Simbólico se reúnem fora do campo do registro
Imaginário, a partir da regulação fálica do gozo.
no de trevo, esta reunião não se verifica, pois todos os registros estão em
continuidade. No entanto, sobretudo a partir do último ensino de Lacan, é possível supor
que o nó de trevo, na medida que enoda os três registros, também produziria efeitos
significativos de regulação de gozo. E isto terá importantes implicações para a ordenação
do corpo, com veremos na análise do caso Schreber realizada no capítulo 5.
Como expusemos, a teoria das suplências nos permite considerar, fora da neurose,
efeitos de localização de gozo que Lacan (1966a) apontava com a definição da paranóia
como identificando todo o gozo do lado do Outro. E conforme desenvolvemos no capítulo
1, esta tendência a localizar de forma maciça o gozo no Outro, que para Lacan caracteriza a
suplência delirante de Schreber, pode ser pensada como promovendo uma modalidade de
regulação de gozo distinta da fálica.
A este respeito, Miller (2003) nos traz alguns esclarecimentos importantes, quando
propõe uma distinção, em Schreber, de duas fases: uma de regressão e outra de restauração.
72
A primeira delas é a fase de regressão pica ao Estádio do Espelho, em que
prevalecem os efeitos mortíferos da ausência de qualquer regulação do gozo. Neste período
inicial, tudo que Schreber experimenta é uma conseqüência da disjunção entre simbólico e
imaginário e da dispersão do gozo por diferentes partes de seu corpo.
A outra fase viria em seguida a este perído de regressão e Miller (2003) vai definí-la
como um processo de restauração imaginária, em que é produzida uma modalidade de
regulação de gozo distinta da fálica, chamada volúpia. Tal como ele sublinha, esta
regulação do gozo é de ordem fundamentalmente narcisista e imaginária. A volúpia será
descrita como a produção de um prazer sensual, quando Schreber contempla a imagem de
um corpo de mulher no espelho, em decorrência de uma relação quase contínua com Deus
que lhe exige um gozo permanente
20
.
Miller (2003) nos mostra, assim, como nesta fase de restauração de Schreber é
possível identificar a promoção de um enodamento dos três registros em continuidade, no
qual, ao invés do Real e o Simbólico se reúnirem fora do Imaginário, o que o vai prevalecer
é uma certa tendência a fazer o gozo aderir às formações imaginárias.
Como vimos na última seção do capítulo 1, isto é o que nos indica a construção
delirante de Schreber. Nela, vemos o sujeito se esforçar por suturar o Outro,
estruturalmente inconsistente, colocando em curso um processo em que sabemos que o
registro imaginário é preponderante. E, como consequência destas contruções em que
identifica o Outro como todo consistente, o sujeito tenderia a se confundir com a instância
paranóica do ego.
É nesta perspectiva que entendemos a afirmação de Lacan, no Seminário RSI (l974-5,
p.57) de que o paranóico seria o grude imaginário. E, do mesmo modo, será possível
compreender porque no Seminário do Sinthoma (1975-6, p. 52), ele propõe uma
reformulação do título de sua tese de doutorado, quando declara que a paranóia e a
20
Deus exige um gozo permanente, correspondente às condições de existência de almas, de acordo com a
Ordem do Mundo; é meu dever proporcionar-lhe este gozo, na forma de um abundante desenvolvimento da
volúpia da alma [...] se, ao fazê-lo, tenho um pouco de prazer sensual, sinto-me justificado a recebê-lo, a
título de um pequeno ressarcimento pelo excesso de sofrimentos e privações que há anos me é imposto; há
nisto uma compensação ínfima pelas múltiplas situações dolorosas e adversidades que tenho de suportar até
hoje, principalmente nos momentos em que reflui a volúpia de alma”(SCHREBER, 1995,p. 219).
73
personalidade são a mesma coisa, uma vez que o sujeito insiste em ter uma identidade sem
furos e toda consistente.
no pólo esquizofrênico das psicoses, Lacan não irá reconhecer nenhum tipo de
enodamento, mesmo que em forma de trevo, mas sim a carência de um princípio regulador
de gozo, do qual, como já vimos, a imagem corporal é tributária.
Deste modo, os três registros ficam soltos e o real do gozo, não regulado pela
amarração do Real, do Simbólico e do Imaginário, atormentaria os órgãos do sujeito que
tentaria entrelaçá-los.
A análise destes fenômenos de despedaçamento corporal resultará na proposição da
regressão a um tempo lógico, anterior à formação da própria imagem corporal em que
predominam os efeitos desastrosos da ausência da função unificadora do narcisismo. É
neste sentido que a esquizofrenia será definida a partir da fragmentação corporal pelas
pulsões auto-eróticas
Sabemos que um corpo se estrutura mediante o suporte da imagem que é o que
remenda os fragmentos do corpo, oferecendo ao sujeito uma forma positiva. A experiência
do corpo despedaçado na esquizofrenia evidencia a falta de acesso a este revestimento
narcísico.
Com Freud (1914) aprendemos que para que o eu se constitua é necessária uma nova
ação psíquica que, acrescentando-se ao auto-erotismo, vai dar forma ao narcisismo.
Podemos dizer que Lacan (1949) assinala a importância dessa nova ação psíquica a que
Freud havia se referido dando a ela o nome de ‘Estádio do Espelho’. A partir do Estádio do
Espelho o vivente teria, assim, acesso a uma forma ortopédica que virá a retirá-lo de um
estado de puro despedaçamento, antecipando-lhe uma imagem com a qual virá se jubilar.
Na esquizofrenia, não obstante, algo diferente parece acontecer: o sujeito se
encontraria congelado num momento gico em que as pulsões recortam o corpo na
modalidade auto-erótica. Deste modo, teríamos neste caso, as conseqüências dessa falha na
função psíquica deste “nó fundamental” chamado narcisismo, assim como Lacan (1975,
p.54) o denomina nas conferências americanas.
No “Seminário da Angústia” (1962-3), Lacan aborda esta ausência de revestimento
narcísico que caracteriza a fantasia do corpo despedaçado com que se deparam muitos
esquizofrênicos. Neste texto, ele afirma que é a constituição de uma imagem que permite a
74
instituição de uma certa relação do homem com seu corpo e com os objetos que os
constituem. Na ausência desta imagem, o que se apresenta é desordem dos pequenos a, o
verdadeiro sentido do termo auto-erotismo um sentir falta de si, de uma ponta a outra, tal
como define Lacan (1962-3, p.132).
Como vimos, gozar de um corpo implica na ação do significante que pela via da
identificação constituiria uma espécie de hábito, uma roupa sob o resto que é o objeto a, em
torno do qual a imagem vai se sustentar. E para que isto ocorra, é indispensável a produção
de uma distância do sujeito em relação ao corpo, sendo que o que cumpre tal função é o
objeto a. Este objeto mantém o sujeito à distância de seu corpo como lugar do gozo do
Outro, pois orienta o gozo em direção ao exterior do corpo, permitindo, assim, a inscrição
do circuito pulsional nas zonas erógenas.
Na clínica da esquizofrenia, encontraremos inúmeros exemplos de quando esta
distância do sujeito em relação a seu corpo não se produz e Lacan irá insistir neste ponto,
ao longo de seus seminários.
Neste sentido, para abordar os determinantes da não superação do estágio anterior ao
surgimento da imagem narcísica na esquizofrenia, Lacan (1962-3) irá referir-se à retratação
do filho esquizofrênico como não sendo nada além de um incômodo no ventre materno.
Vemos nesta referência uma retomada da analogia na qual ele insistiu para falar da
importância da queda de um pedaço da libra de carne, a saber, do corte do embrião dos
envoltórios que o afixavam ao útero.
Deste modo, o que é ressaltado na esquizofrenia é a ausência de uma distância entre
imagem e os objetos do corpo. Esta ausência pode ser considerada responsável por uma
série de elementos presentes na clínica das psicoses, como é o caso dos famosos objetos
invasivos de que muitos pacientes nos falam. Estes objetos invasivos nos fornecem um belo
retrato desta ausência de distanciamento do sujeito em relação aos objetos de seu corpo que
é o fundamento da constituição de um corpo erotizado.
A respeito disso nos fala com muita clareza uma das pacientes que acompanhamos
nos grupos do IPUB-UFRJ (2004-8). Ela diz literalmente que seu problema são os
pensamentos invasivos que incidem de tal modo sobre ela que a fizeram acreditar que
teria algum colapso cerebral e a impedem de fazer qualquer atividade que a faça sentir viva,
como os exercícios físicos que sempre realizou com prazer, ou mesmo qualquer movimento
75
espontâneo, como, por exemplo, mudar de lugar os objetos de sua casa, conforme seu
próprio gosto. Diante da presença destes pensamentos, ele se sente paralizada, sem vida,
vazia.
A importância da função da imagem para a sustentação do corpo é demonstrada por
Lacan (1953-4) na primeira versão do esquema ótico que trabalhamos no capítulo 2 (cf p.
39). Desta versão, ele se serve justamente para abordar a constituição do corpo,
representada pela formação da imagem real de um vaso, fazendo continente para um buquê
de flores. A não formação desta imagem corresponde à ausência da consistência corporal, o
que colocaria o sujeito diante da não regulação pulsional, representada pelas flores
dispersas ou por um vaso vazio. Estes dois casos retratariam a ausência do revestimento
narcísico da esquizofrenia.
Conforme entendemos, na concepção de que para o esquizofrênico todo o simbólico é
real, Lacan (1954) reafirma o quão problemática é a falta de acesso à função que a imagem
tem de velar o real da dispersão pulsional. Vimos a partir da escritura borromeana que o
imaginário, na articulação com os demais registros, se caracteriza pela função de
consistência e até mesmo por promover um certo grude, o que não é sem conseqüências
para a estruturação do corpo. E será justamente com relação a operatividade maior ou
menor da imagem que a esquizofrenia se diferencia da paranóia.
O despedaçamento do corpo na esquizofrenia também pode ser concebido a partir de
Lacan (1972-3) como efeito da ausência do significante mestre, aquele que promoveria a
unificação corporal, a partir de uma identificação constituinte. Desta ausência, podemos
pensar que decorreria a vivência fundamental do esquizofrênico que é a do corpo em
fragmentos. Daí o esforço de muitos sujeitos por constituir uma marca significante no corpo
que sustente a relação com o Outro simbólico.
A questão da fragmentação da imagem do corpo será abordada novamente no
Aturdito (1973), quando Lacan define a esquizofrenia pela impossibilidade de recorrer a um
discurso estabelecido. Se pudermos entender o discurso como uma articulação entre
significante e gozo, a concentração do gozo no corpo, neste caso, nos remeteria à ausência
de um aparelhamento significante para o gozo. É neste sentido que Lacan (1973) afirma
que para os esquizofrênicos a função dos órgãos constitui um problema mais agudo, por
76
não disporem da regulação do gozo neurótica e nem da delirante, o que mobilizará muitos
sujeitos no sentido de barrar esta intrusão no corpo.
A teoria das suplências nos autoriza a supor que, no paranóico, a localização do gozo
no Outro permite que ele tenha acesso a alguma unidade corporal, que a libido será
tratada pela estrutura significante do delírio. Conforme entendemos, seria este o significado
da concepção do delírio proposta por Lacan em 1954, como um universo sempre parcial,
constituído por uma organização discursiva.
Nesta perspectiva, diferentemente da paranóia, a aparelhagem do delírio não
proporcionaria ao esquizofrênico o princípio de uma possível unidade identificatória-
narcísica; assim, todo o corpo tenderia a ser dominado por um gozo sem norma, o que
corresponde ao retorno da libido no real do corpo no corpo próprio. Desta concepção da
esquizofrenia a partir da concentração de todo o gozo no corpo resulta a suposição de uma
afinidade desta com a angústia.
Vimos anteriormente que é a operação simbólica da separação que instaura uma
distância entre o sujeito e o corpo próprio, que a partir dela torna-se corpo do Outro, um
corpo marcado pelos significantes. E sabemos que esta distância é fundamental, pois
quando o sujeito se confunde com seu corpo, - em outros termos, quando o gozo domina o
corpo -, a angústia se instala.
Lacan (1962-3) chama a atenção para a importância desta distância, ao definir a
angústia como o sentimento que surge quando suspeitamos que nos reduzimos a nosso
corpo. E Freud, no Rascunho B (1893) definirá a hipocondria justamente por esta ausência
de distância, quando a angústia permanece relacionada ao corpo.
Nestes casos, a angústia de fragmentação real do corpo pode alcançar o ápice de uma
autêntica angústia de desintegração, passando pelas experiências de desregulação pulsional,
dissociação, despersonalização, transformação, desmaterialização, influenciabilidade,
ausência de um princípio de unidade e de síntese, além do apagamento do próprio
sentimento de vida.
No Seminário da Identificação (LACAN,1961-2), a angústia é definida a partir do
efeitos de dissolução do eu, quando o sujeito experimenta o desabamento momentâneo de
todas as referências identificatórias, já que o Outro que lhes dá suporte se esvai.
77
Neste seminário, Pierra Aulagnier faz toda uma argumentação em torno das psicoses,
ressaltando justamente o quanto o corpo próprio será o palco dos dramas destes sujeitos.
Assim segundo esta autora, diferentemente dos neuróticos e perversos, para os psicóticos é
o corpo que tem toda importância, como citamos na epígrafe desta seção (cf p. 67).
Concluímos, assim, que o que ganha destaque para Lacan na teorização freudiana
sobre a esquizofrenia são os efeitos de despedaçamento e angústia no corpo, cujos
fenômenos podem ser traduzidos pela ausência de um princípio regulador que amarre os
três registros.
Como desenvolvemos no capítulo 2, o corpo animado pela libido tem como condição
a inscrição do significante e a produção de um resíduo que é o permite ao sujeito não se
confundir com seu próprio corpo, enquanto dispersão das pulsões. Assim, a imagem do
corpo não se constitui sem a entrada do sujeito numa relação dialética com o Outro, em que
lhe é exigida perda de ser e de gozo.
Deste modo, na esquizofrenia, a não formação do contorno corporal seria uma
conseqüência da posição destes sujeitos na linguagem. Como efeito desta posição, os
significantes passam a incidir no real do próprio corpo, a ponto de provocar experiências de
incessante incômodo e embaraço.
A imagem usada por Lacan (1962-3) de que a mãe do esquizofrênico só o apreenderia
como um corpo inversamente incômodo encontra aqui todo seu valor. Conforme
entendemos, esta indica que os esquizofrênicos se encontram numa posição embaraçosa
diante da linguagem, sendo ditos por isso que fala deles sem se dirigir a eles, nada
nomeando os traços que o constituíram. Temos, aqui, uma das conseqüências da ausência
da separação, enquanto uma operação simbólica que desloca o sujeito da posição de puro
objeto do capricho do Outro para ter um corpo animado pela libido.
Examinamos, até aqui, o alcance clínico que a fórmula freudiana que caracteriza as
psicoses pela retração narcísica da libido passa a ter com Lacan: o de ressaltar a posição
peculiar diante da linguagem destes sujeitos.
Em torno desta posição peculiar, iremos situar as seções a seguir. Usaremos a
terminologia ‘hipocondria da linguagem’ para designar a incidência parasitária da
linguagem no corpo como a dimensão estrutural nestes casos.
78
3-2 - A hipocondria da linguagem
“Há provavelmente uma origem verbal em certas idéias hipocondríacas,
assim como uma origem alucinatória em certos delírios. Esse
automatismo verbal, que ainda não é alucinação, é como esta, sugestivo de
sensações variadas e, devido a esse conjunto de sensações mais ou menos
coordenadas que fazem corpo com ele, a palavra tende a assumir um
valor substancial; ela se materializa, conforme a expressão de Dumont de
Monteux. Talvez esteja a explicação do valor, da significação particular
que os hipocondríacos e os alucinados atribuem a certas palavras, e de sua
tendência a transformar abstrações em entidades substanciais e ativas
(COTARD,1899, p 405)
21
.
No estudo psicanalítico da esquizofrenia, os sintomas hipocondríacos ganham todo
destaque, como vemos na análise feita por Freud da fala de uma paciente esquizofrênica de
Vitor Tausk. No caso desta paciente, chamada Emma, o que se coloca para Freud (1915) é
justamente a relação bastante peculiar entre o corpo e a linguagem.
Emma queixava-se de estar sendo influenciada de uma forma insólita por quem
amava. Ela dizia que seus olhos não estavam situados corretamente no rosto, pois estavam
tortos. Para ela, seu amante era o responsável por isso, pois ele era um mentiroso, “um
entortador de olhos” (FREUD, 1915, p. 226).
Numa outra ocasião, Emma comunica a Tausk que um dia, na igreja, quando estava
de pé, sentiu um abalo em seu corpo e teve que mudar de posição, “como se alguém a
tivesse feito mudar de posição” (FREUD, 1915, p. 226). Em seguida, revela pensar que seu
noivo muda de posição, por ser um hipócrita e também querer que ela o faça.
Neste caso, a fala se caracteriza pela prevalência de referências ao corpo, o que ganha
a forma de uma fala afetada” e “preciosa”, quando uma única palavra pode assumir a
representação de todo o encadeamento do pensamento. É isto que conduz Freud a falar de
linguagem hipocondríaca ou de órgão, indicando que na esquizofrenia o significante se
traduz através de uma sensação num dos órgãos, o que é experimentado pela paciente no
real do corpo.
Esta ausência do uso metafórico da linguagem opõe a esquizofrenia à histeria. Na
histeria haveria uma conversão metafórica de um elemento significante do corpo, esta
paciente toma esta expressão no sentido físico do termo, o que lhe dá a impressão
21
grifos nossos.
79
hipocondríaca de um efeito produzido no próprio corpo.
Com Lacan (1966a), aprendemos que no esquizofrênico, a não localização do gozo no
campo do Outro, como na paranóia, faz esse gozo permanecer ou retornar ao corpo
despedaçado pelo real das pulsões. É o que nos mostra este caso, quando a paciente relata
que era como se alguém tivesse introduzido a mão no globo ocular dela, virando-lhe os
olhos, o que é efeito do retorno dos significantes no real do corpo.
Este destaque dado aos fenômenos hipocondríacos na psicose como reveladores de
uma relação muito singular entre a linguagem e corpo é anterior ao próprio Freud, estando
presente na obra de clássicos da psiquiatria.
Em seu artigo Sobre a hipocondria, Cotard (1899) refere-se a esta relação com a
linguagem de que se trata na hipocondria, antes mesmo que Freud o estabelecesse. Para ele,
o hipocondríaco estaria submetido a um “automatismo verbal”, o equivalente estrito do
conceito de automatismo mental de Clérambault, como um desenrolar automático,
incoercível dos significantes.
No automatismo verbal, o sujeito enunciaria puros significantes, representantes reais
do corpo; ou seja, aquilo que Cotard exprime pelo “valor substancial”, a “materialidade de
certas palavras” que assumiriam uma conotação “ativa”, o que sublinhamos na epígrafe
desta seção (cf p. 80).
Lacan (1975-6) chama a atenção para a existência de uma singular atração pela
linguagem nos sujeitos psicóticos, quando se interroga porque, diferentemente deles, os
neuróticos não perceberiam que a linguagem é uma forma de câncer, de um parasita.
No Seminário do Sinthoma (1975-6), Lacan retoma em Freud (1915) a idéia de que na
fala esquizofrênica, uma única palavra pode assumir a representação de todo o
encadeamento. Esta fala afetada que se caracteriza por abstrações vazias, na qual o
significante se apresenta isolado da cadeia associativa será concebida por Lacan (1957)
como letra.
A letra se define por ser um elemento isolável, uma estrutura essencialmente
localizada, opondo-se ao significante que somente pode ser apreendido por seu valor
diferencial, na relação com outro significante dentro do encadeamento associativo.
80
Isto nos permite entender porque Lacan (1957-8a) afirma que na psicose se
presentificam os determinantes mais radicais da relação do homem com o significante,
expressos nas alucinações, mesmo as ditas cinestésicas.
Estas alucinações, relacionadas com as sensações corporais, seriam decorrentes da
particular relação entre psicose e linguagem. O corpo hipocondríaco se revela, assim, como
um corpo colado aos significantes, um corpo moldado e, portanto, pólo de concentração de
gozo. Tal redundância de puros significantes na forma de letra traduz uma verdadeira estase
de libido, o retorno no real de um estorvo insuportável, o que ganha expressão na fala dos
psicóticos, nas colocações sobre alterações no próprio corpo que estes fazem
insistentemente.
É neste sentido que poderíamos definir os sintomas hipocondríacos como expressão
da hipocondria da própria linguagem. A hipocondria da linguagem traduz, por um lado, a
relação do psicótico com a linguagem e, por outro lado, a onipresença do objeto a na cadeia
significante, objeto não destacado e encarcerado.
Nestes casos, o objeto a sobrecarrega a cadeia significante e sua presença é
perfeitamente sensível clinicamente com o hipocondríaco que se mostra tão obcecado por
sua saúde. As insistentes reivindicações médicas, nestes casos, testemunham a tirania deste
objeto que martiriza os hipocondríacos. Assim, esses sujeitos, submetidos à loucura do
corpo, teriam demanda de serem descompletados, esvaziados.
Não podemos deixar de mencionar aqui a fala de uma paciente que freqüentou um dos
grupos do IPUB-UFRJ (2004-8). Para ela, é no corpo que reside seu problema. Ela se opõe
a qualquer mudança na medicação para evitar efeitos nocivos no seu corpo, o que refere
acontecer também sempre que ingere água ou café. Além disso, relata o abuso de
calmantes, laxantes e álcool para limpar o corpo; num dado momento, solicita à equipe
médica uma cirurgia, pois haveria algo em seu abdômen que deveria ser retirado. Chama
atenção, aqui, a necessidade de limpar e esvaziar o corpo, assim como de tentar evitar um
aumento da sobrecarga deste, especialmente com mudanças em sua medicação.
Vemos, assim, que numa leitura psicanalítica, é menos a ausência de suporte
biológico do que o encarceramento do objeto a no corpo que deve ser valorizado nestes
casos. Freud (1915) detectou previamente o que está em jogo aqui, com a noção de
81
“linguagem de órgão” do hipocondríaco, que ele fez equivaler ao que se passa na
esquizofrenia.
Deste modo, o hipocondríaco estaria submetido a uma tirania do objeto a, estando
sitiado por dentro e entregue a paixão devoradora deste objeto. Reconhecemos, aí, a
identificação do gozo no corpo que Lacan (1966a) indicou na esquizofrenia, esse traço
clínico tão manifesto de um paciente, cuja preocupação com o corpo passa de uma parte a
outra e dá a impressão de girar em círculos.
Nestes casos, diferentemente da queixa neurótica em que a dimensão de
endereçamento é essencial, é o objeto a que assalta o sujeito, induzindo um imperativo que
o submete a uma série de constatações e falas sobre o corpo de um corpo não
metaforizado e no qual são os significantes do Outro que desfilam de um modo direto e
automático.
Na Convenção de Antibes (MILLER, 1999), os fenômenos hipocondríacos são
tratados sempre como sendo da ordem da psicose. Dentro desta discussão, Sauvagnat
sublinha dois tipos de hipocondria a indeterminada e a localizada. A hipocondria
indeterminada abrangeria desde o sentimento de estar doente até as dores generalizadas e a
localizada tomaria um órgão em especial. Este autor relaciona a indeterminação da primeira
à ausência de um princípio regulador do gozo na psicose e supõe na localização em um
órgão específico da segunda uma tentativa de suplência.
Seguindo esta linha de pensamento, também podemos incluir dentro da hipocondria
da linguagem as chamadas psicoses não desencadeadas, em que são evidenciáveis
preocupações com corpo, mesmo sem reivindicações manifestas, quando os pacientes
revelam estar presos nessa mesma dinâmica da tirania do objeto.
Nestes casos, são freqüentes os dizeres de pacientes, em que se sucedem temas de
cortes irreparáveis, de expulsão, de retenção, de encarceramento. Assim como podem ser
feitas referências a intervenções médicas anteriores que transformaram o corpo em um
objeto agora essencial às trocas do sujeito ou que provocam desordens secundárias,
contaminando a vida cotidiana, mesmo quando o objeto se torna insituável.
82
3-3 - O problema dos orifícios do corpo
“Não tenho boca. Elas nos informam que tampouco têm estômago, e
que, ademais, não morrerão nunca. Em suma elas têm uma relação
muito grande com o mundo das luas. A única diferença é que, para
estas senhoras, vítimas da síndrome de Cotard ou delírio de negação,
no final de contas, é verdade. Aquilo a que elas se identificaram é uma
imagem à qual falta toda e qualquer hiância, toda e qualquer
aspiração, todo o vazio do desejo, o que constitui propriamente a
propriedade do orifício bucal” (LACAN, 1954-5, p.299).
Vimos na seção anterior que a hipocondria da linguagem tem uma tradução
fenomenológica variada, comportando desde os casos típicos de hipocondria psicótica até
alguns casos de psicose não desencadeada. No seu extremo, encontraremos o Cotard
constituído que nos revela a radicalidade de uma relação não metaforizada com a
linguagem e nos esclarece ainda mais a respeito dos efeitos da tirania do objeto a.
Czermak (2006) descreve que a síndrome de Cotard pode ser dividida em três etapas
principais: a primeira delas, composta pelas negações hipocondríacas, referentes aos
objetos corporais, a segunda constituída pela chamada anestesia afetiva, em que predomina
a negação dos laços com a vida que precederia a terceira fase, definida pela “morte do
sujeito”.
Primeiramente, a negação incidiria sobre os órgãos. Nesta fase inicial, os pacientes
informam que não têm boca, nem estômago ou muitas vezes nada falam. E essa negação já
testemunha aquilo que se anunciará de maneira crua e dramática como a “morte do sujeito”,
exprimindo-se num primeiro momento de modo hipocondríaco, isto é, no corpo.
Czermak (2006) acrescenta que o delírio de negação dos órgãos evolui para uma
segunda etapa, em que os pacientes se queixam do fato de que os objetos mais familiares
a cidade em que viviam, a casa onde nasceram, o rosto de seus pais, o amor por seus filhos,
etc tudo começa a se dissolver. Neste momento, eles não dispõem mais da lembrança das
imagens ligadas aos laços mais familiares e ordinários.
Haveria ainda uma terceira etapa, em que a negação não incide mais sobre os objetos
orgânicos, nem sobre as representações mentais dos objetos queridos, tampouco sobre a
significação das palavras, mas sobre o próprio sujeito. Neste terceiro tempo da evolução
delirante, o paciente afirma que está morto e, mesmo que continue a falar, é um morto-vivo.
83
Esta é a experiência de morte do sujeito, em que a angústia se afirma como um fenômeno
fundamental.
Vemos, aqui, novamente, a necessidade de nos reportarmos a uma das pacientes que
participou do grupo das enfermarias do IPUB-UFRJ (2006-8). A gravidade da situação
desta jovem senhora nos obrigou a realizar o grupo excepcionalmente na enfermaria
feminina, nos deslocando da sala onde este costumava acontecer. Ela dizia, a princípio,
estar muito fraca para caminhar conosco para fora da enfermaria. Em seguida, nos explicou
de forma bastante direta o teor desta fraqueza: “Doutora, eu falando com a senhora, mas
não consigo comer, dormir, nem ir ao banheiro, pois estou morta!”
Na perspectiva psicanalítica, desde a fase inicial da síndrome de Cotard, é possível
reconhecer os efeitos da falta de toda e qualquer hiância na imagem corporal, que a
funcionalidade dos órgãos se deve à montagem do circuito pulsional em torno dos orifícios
corporais e da constituição destes enquanto zonas erógenas.
Nestes casos, fica evidenciado o quanto a dinâmica pulsional não está condicionada
pela subtração do objeto a que é o que permite o funcionamento de todo o corpo. Vimos
que é em torno dos buracos do corpo que se inscreve a pulsão que é aquilo que ao corpo
um contorno, não apenas nos sentidos de um limite, mas também por torná-lo animado pela
libido e, portanto, um corpo vivo.
Assim, nestes pacientes, é a identificação a uma imagem sem furos que não lugar
para a operatividade da pulsão, enquanto responsável pela funcionalidade dos órgãos do
corpo. Deste modo, o sujeito fica de tal modo no pleno que não ouve, o vê, não respira,
não evacua, chegando inclusive a ter muita dificuldade mesmo para falar e andar.
Se como aprendemos com Lacan, a pulsão se organiza em torno dos furos no corpo,
para depois, em seu trajeto, contornar o objeto a antes de retornar ao corpo, tudo aqui se
passa como se o objeto a estivesse encarcerado no corpo, arrolhando seus furos.
Assim, estes sujeitos encontram-se embaraçados no seu corpo por algo que dificulta o
livre jogo das pulsões, impedindo a circulação do sangue, até mesmo do ar e dos próprios
alimentos. As negações com que eles se referem ao corpo, com a característica lingüística
que conhecemos, “eu não tenho...”, expressam muito bem isso.
Para Czermak (2006), a vida do cotardizado se define em torno do paradoxo entre
uma vigilância para ficar completo com os orifícios fechados e a busca de uma saída, de um
84
furo, tal como enuncia um de seus pacientes: “se eu não presto atenção, me fazem sair um
monte de coisas”, e, tocando a organização de sua doença: “eu procuro um monte de
portas de saída” (CZERMAK, 2006, p.22).
Um outro paciente de Czermak retrata com precisão a importância das fases em que
consegue realizar alguma expulsão no próprio corpo, suplantando o encarceramento do
objeto a. Diz ela o seguinte: “Imediatamente após a diarréia dar uma eliminação fecal, eu
me sentia muito melhor, até o momento em que, no dia seguinte, acontecia de me constipar
de novo, e eu me sentia muito pior” (idem, p.24).
E, por fim, um caso em que o encarceramento do objeto no corpo se desdobra num
percurso em círculos emergindo, desaparecendo para se espalhar insidiosamente, o que é
traduzido pela paciente em termos de meros impactos: “É de saída uma doença intestinal,
mas há provavelmente uma história no plexo-solar [...] também uma questão de
ovários. Eu tenho um ovário direito sensível ao exame, ao toque [...] eu tenho seios que
incham [...] Algumas vezes tenho a glândula tireóide muito forte. Eu não mandei fazer
nada à glândula tireóide, tudo isso, devem ser os impactos...” (idem, p.27). Esta paciente
tenta localizar algo no seu corpo e parece estar em busca de alguma articulação significante
que dê sentido ao que, para ela, não é senão impactos.
Vemos, assim, que nos casos da chamada síndrome de Cotard, evidencia-se o malogro
da tentativa de um corte constituinte do corpo. E os impasses que disto decorrem giram em
torno do problema da operatividade dos orifícios corporais. Estes não funcionam enquanto
buracos ativos, visto que estão cheios. E muitos destes pacientes vão tentar produzir algum
furo no real do próprio corpo.
85
3-4 – O vazio anatomizado
“Para que a ilusão se produza, para que se constitua, diante do olho que
olha, um mundo em que o imaginário pode incluir o real [...] é preciso que
uma condição seja realizada eu o disse a vocês, o olho deve estar numa
certa posição, deve estar no interior do cone. Se estiver no exterior do
cone, não verá o que é imaginário, pela simples razão de que nada do
cone de emissão virá bater nele. Verá as coisas em estado real,
inteiramente nu, quer dizer, o interior do mecanismo, e um pobre vaso
vazio
22
, ou flores isoladas, segundo os caso” (LACAN, 1953-4 p.97).
A clínica psicanalítica é originalmente uma clínica da falta que constitui o sujeito
como desejante, tal como define Freud (1895) a partir da mítica experiência de satisfação,
no início de sua obra. É a partir da falta que fica marcado no aparelho psíquico a ausência
de um objeto determinado que satisfaria plenamente o sujeito e o que iorientá-lo em
busca de objetos substitutivos.
Uma das teses capitais de Freud é a de que o objeto que causa o desejo humano está
perdido desde sempre, sendo em torno desta falta que se constitui o sujeito. O paradigma da
perda deste objeto é a perda do seio como objeto mítico de satisfação, o qual deixaria um
vazio em torno do qual a pulsão orienta seu movimento. Haverá sempre uma discordância
entre o objeto que se busca e o encontrado, sendo esta discordância atualizada na repetição
pulsional.
No entanto, as psicoses nos confrontam com experiências de um vazio que aparece
dissociado da falta, um vazio que é expressão de uma dispersão do sujeito, de uma
inconsistência radical e de vivências de constante inexistência e angústia. Este vazio se
apresenta na relação com o próprio corpo que caracteriza clinicamente a dimensão psicótica
da anorexia e da bulimia.
Esta é a tese formulada por Recalcati (2003) a partir de sua extensa experiência
clínica. Ele nos propõe situar a estrutura psicótica em meio a alguns sintomas de anorexia e
de bulimia, em que o vazio está encarnado no próprio corpo e, portanto, anatomizado.
Nestes casos, as experiências de aniquilação ou desvitalização do sujeito, tão comuns na
psicose, são vividas no corpo.
22
grifos nossos
86
Temos visto que o corpo se constitui a partir do suporte simbólico e mediante uma
imagem que vela o vazio, sendo que, nestes casos, será justamente esta função da imagem
colocada em questão. A conseqüência disto é que o próprio corpo é reduzido a um vazio,
não metaforizado, deste modo, nadificado, por não estar vitalizado nem pela imagem, nem
pelo significante.
Este vazio pode desdobrar-se na forma de uma nadificação do sujeito, como é o caso
da anorexia ou na avidez compulsiva da bulimia. Nelas, diferentemente dos anoréxicos e da
bulímicos neuróticos, o que se destaca é o corpo não velado pela imagem, na dimensão de
um puro vazio real.
Assim, podemos afirmar que também será em torno da problemática do objeto que
vão se constituir as psicoses com sintomas anoréxicos e bulímicos. O objeto a é o resíduo
da operação do significante sobre o gozo, a partir da qual esse se separa do corpo. O gozo
passa, assim, a se inscrever nas bordas de um corpo, agora animado pela libido, e, portanto,
erotizado, vitalizado, mediante a montagem do circuito pulsional em torno de uma espécie
de buraco ativo.
As zonas erógenas se constroem, de fato, a partir da perda deste objeto, como uma
cavidade, uma lacuna, um ponto vazio, cujo contorno organiza todo o movimento da
pulsão. Mas se a zona erógena não se constitui como tal, devido a não subtração efetiva de
gozo, o que se impõe ao sujeito é um buraco real no corpo, tal como nos expõe Recalcati
(2003) na sua clínica com pacientes psicóticos anoréxicos ou bulímicos.
Como temos visto, nestes sujeitos, o corpo comparece como não erotizado e não
vitalizado, revelando uma dimensão de mortificação real e não simbólica do sujeito.
É dentro desta perspectiva que Recalcati (2003) vai definir a clínica da anorexia na
psicose como uma clínica da metamorfose do corpo, em que o sujeito tem a experiência de
ter seu corpo extraviado, como consequência da não operatividade dos orifícios do corpo e
da imagem narcísica.
É a imagem do nosso corpo, a idéia que temos dele, que faz com que ele tenha para
nós algum peso e consistência. E a partir disto estabelecemos uma relação de adoração com
o que supomos nos pertencer. Na ausência deste revestimento narcísico, o que vai se
instaurar é uma relação de estranheza com o próprio corpo. Neste tipo relação, o corpo é
87
passível de ser perdido e extraviado, podendo desprender-se como uma casca, tal como
testemunha Joyce, conforme desenvolvemos na seção 2-5 (cf p. 62).
Na anorexia psicótica, a angústia de engordar decorreria desta sensação de não
pertencimento do corpo e de sua suscetibilidade de ser perdido pelo sujeito. Nestes casos,
engordar representaria o deslizamento do corpo que se separa do vínculo com a imagem e
se esvai precisamente como corpo.
A dimensão catastrófica e angustiante da gordura reflete, assim, a posição do sujeito
de um alheamento fundamental com relação à imagem narcísica de seu próprio corpo. Em
decorrência disso, se dariam as sensações reais de devastação da própria imagem, assim
como de deformação e metamorfose do corpo. Deste modo, vomitar, emagrecer e manter-se
magro seriam recursos acessados pelo sujeito para recuperar o corpo, tentativas de ter um
corpo.
Seguindo esta linha de pensamento, Recalcati (2003) irá supor que os ossos teriam a
função de garantir para estes pacientes alguma consistência corporal, funcionando como um
centro de gravidade e provendo uma espécie de conexão do corpo com uma imagem ideal
positiva.
Assim, a clínica da anorexia psicótica giraria em torno desta paixão pelos ossos. Nesta
clínica, o sujeito manipularia a imagem de seu corpo, fazendo com que sobressaíssem os
ossos ou o estriado dos músculos, justamente para recuperar um corpo que, de outro modo,
o abandonaria.
Segundo Recalcati (2003), os ossos deixados à mostra representariam, portanto, uma
espécie de vestimenta para o corpo, um meio para remendar o descosido da imagem do
corpo, o que se aproxima do remendo que o delírio pode constituir para o campo da
realidade, esquematizado por Lacan (1975-8a) no seu Esquema I.
Vemos que nestes casos os ossos proporcionam uma nova imagem narcísica do corpo
que ocupa o lugar do vazio anatomizado, liberando o sujeito do vazio aniquilador e tendo
efeitos de apaziguamento para ele.
Nesta perspectiva, a anorexia constituiria uma modalidade de tratamento do vazio que
se encontra anatomizado, visando impedir a dissolução da imagem do corpo.
A este respeito faremos uma referência a uma paciente acompanhada em um dos
grupos do IPUB-UFRJ (2004-8). Desde a adolescência, esta moça situa seu mal estar no
88
próprio corpo, magérrimo, todo esculpido devido aos anos em que ela se dedicou
exaustivamente ao balé clássico profissional. Ela diz que tudo piorou, quando em
decorrência de uma ruptura de ligamentos, após realizar um salto de afro-jazz, não pôde
mais dançar. No entanto, tinha uma preocupação excessiva com a alimentação e o ganho
de peso na adolescência, quando chega a ter de fazer uma cirurgia de descolamento das
paredes intestinais, por não estar se alimentando. Atualmente, ela insiste, com muita
dificuldade, em realizar seus exercícios diários para limpar o corpo e perder peso, pois não
pode tolerar nenhum acúmulo de gordura, por menor que seja, tendo inclusive usado uma
quantidade absurda de laxantes com o mesmo objetivo. Também relata ocasiões em que
chega a comer uma torta de chocolate inteira para em seguida provocar o próprio mito e
ficar sem comer. Além disso, queixa-se de pouca vitalidade, o que tem buscado por
diversos caminhos: as caminhadas, a ginástica, os remédios e outras substâncias químicas,
como o álcool.
Este caso confirma o quanto nos quadros de anorexia e bulimia na psicose tudo gira
em torno do excesso de gozo experimentado no próprio corpo. É este o significado das
práticas e atuações realizadas sobre o próprio corpo que nestes casos constituem estratégias
para lidar com este vazio anatomizado.
Como temos visto, a privação anoréxica introduz, efetivamente, no real do corpo, uma
tentativa de esvaziá-lo de gozo. na bulimia, o mesmo processo se a partir das formas
reais de vômito ou do abuso de laxantes, como atuações que permitem ao sujeito
exteriorizar o gozo nocivo de seu corpo. Todas estas práticas para não ganhar peso que
caracterizam estes quadros clínicos podem garantir uma estabilização imaginária que reduz
a existência do sujeito a uma metódica para garantir a ligação com um corpo.
Também como efeito desta não ligação do significante com o corpo, aderências
identificatórias podem estar presentes na vida destes sujeitos, na forma de pares
imaginários que funcionam como suportes narcisistas.
Nestas compensações imaginárias, a partir do corpo do outro especular, é almejado
um suporte que sirva de regulação para o próprio corpo. Assim, esta identificação maciça
representa a tentativa de preencher o vazio do corpo, decorrente da ausência da função
unificadora da imagem, tal como Lacan (1953-4) nos indica com a figura de um vaso vazio,
conseqüência da não constituição do corpo.
89
Nestes casos, o uso de substâncias psicoativas, inicialmente, com intuito de controlar
o apetite e promover perda de peso também pode se tornar uma estratégia que ao sujeito
psicótico um certo domínio sobre o gozo que, de outra forma, retornaria sobre o corpo sem
mediação. Como já vimos no capítulo 1, estas substâncias também pode servir como um
recurso para regular o gozo experimentado como invasivo no corpo nas psicoses.
Certas formas de anorexia e bulimia vão revelar, portanto, um funcionamento
psicótico do sujeito na ausência de um autêntico desencadeamento. E encontraremos, nas
experiências corporais vividas por estes sujeitos, uma relação com a linguagem e com o
gozo própria da estrutura psicótica.
90
- CAPÍTULO 4 –
FRAGMENTOS CLÍNICOS
- Diferentes níveis da invenção para o corpo -
Apresentação
O discurso de muitos pacientes psicóticos faz referência à ausência de limites no
corpo que pode se tornar objeto dos mais variados fenômenos de dissolução, invasão,
influência, transformação e mortificação. Alguns minutos numa enfermaria psiquiátrica ou
em outros dispositivos de tratamento nos brindarão com inúmeros outros exemplos de o
quanto o corpo pode se tornar um problema mais agudo nestes casos. Entretanto, parece-
nos que, se somos bastante sensíveis a esta dimensão do corpo despedaçado na psicose,
muitas vezes nos escapam os diversos esforços empreendidos por estes sujeitos, buscando
gozar, mesmo que momentaneamente, de um corpo. Assim, as estratégias mais
rudimentares ou mais elaboradas criadas para produzir algum tipo de regulação do gozo e
ordenação corporal podem passar desapercebidas, até porque estas produções diferem em
muito do modo como neuróticamente apreendemos o nosso próprio corpo.
Neste capítulo, abordaremos estes recursos inéditos para aparelhar a libido, incorporar
o significante e unificar o corpo, através dos quais muitos sujeitos se dedicam a um
processo que chamaremos de invenção do corpo.
Com este fim, analisaremos alguns fragmentos clínicos que trazem para a discussão a
articulação, não apenas nas neuroses, destas dimensões do significante, do gozo e da
imagem necessárias para a sustentação corporal. Indicações a respeito deste trabalho de
invenção do corpo estão presentes dentro do próprio ensino de Lacan.
Até mesmo fora da psicanálise, no contato com outros campos de saber iremos
encontrar formulações que se mostram bastante apropriadas para definir o processo de
invenção de que se trata aqui. Stengers (1993), por exemplo, apoiando-se na etimologia da
palavra latina invenire irá distinguir invenção de um processo de descoberta e iluminação
súbita e instantânea, definindo-a com uma operação que envolve tempo e trabalho com
restos. Esta definição se assemelha muito com o modo que o próprio Lacan (1954) concebe
91
a sistematização do delírio como envolvendo muito tempo e tendo como base os fenômenos
elementares presentes na crise psicótica.
Dando destaque à dimensão processual presente no trabalho de invenção, num
primeiro momento, retomaremos em Lacan teorizações que apontam justamente para este
trabalho inédito, em que muitos sujeitos buscam acessar os elementos necessários para ter
um corpo. Em seguida, alguns fragmentos que compõem a clínica dos seguidores do seu
ensino serão explorados, com o mesmo objetivo de abordar os recursos e as estratégias
inventados quando o corpo representa um problema mais agudo.
As três dimensões a partir das quais o corpo se ordena - a incorporação significante, o
aparelhamento da libido e a função unificadora da imagem - serão desmembradas, porque
entendemos que muitas vezes, fora da clínica da neurose, uma delas pode se sobressair
sobre as demais no processo de invenção do corpo. Em alguns casos, o que será revelado é
uma estratégia para regular a libido no próprio corpo, enquanto em outros, o que ganhará
destaque é o recurso à dimensão unificadora de uma imagem; e em outros, tudo pode girar
em torno do apelo ao significante em busca de efeitos de ordenação corporal, como
veremos nas seções a seguir.
4-1 - Tentativas de Incorporação
“O mundo da criança, diz-nos Melanie Klein, produz-se a partir de um
continente - seria o corpo da e – e de um conteúdo do corpo dessa mãe.
Ao longo do processo das suas relações instintivas com esse objeto
privilegiado que é a mãe, a criança é levada a proceder uma série de
incorporações
23
imaginárias Nesse corpo materno, a criança espera
encontrar um certo número de objetos, providos, eles próprios, de certa
unidade ...” (LACAN,1953-4, p.98-9).
“... a equação simbólica que redescobrimos entre esses objetos surge de
um mecanismo alternativo de expulsão e introjeção, de projeção e de
absorção, quer dizer de um jogo imaginário. É esse jogo que,
precisamente, tento simbolizar para vocês no meu esquema, pelas
inclusões imaginárias de objetos reais, ou inversamente, pelas tomadas de
objetos imaginários no interior de um recinto real. Em Dick, vemos bem
que há esboço de imaginificação...” (idem, p.99).
.
A teoria das suplências paternas nos permite considerar, também fora do campo das
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grifos nossos.
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neuroses, efeitos de localização do gozo. E, ao nosso ver, este seria o sentido das tentativas
de incorporação significante esboçadas por muitos pacientes psicóticos.
Esta incorporação ou corporização define-se pelo efeito do significante no corpo
próprio, afetando o ser falante e promovendo alguma ordenação corporal.
Nesta perspectiva, podemos afirmar que haveria uma corporização codificada,
normalizada, à qual se somariam as situações onde o corpo tende a ser deixado abandonado
pelas normas, e então é retomado. Este último caso é a sede das invenções de corporização,
quando o corpo constitui um problema mais agudo para o sujeito.
Lacan (1953-4) faz indicações a este respeito no início do seu ensino, quando
retoma os casos Dick de Melanie Klein e Robert de Rosine Lefort, justamente quando
trabalha a constituição do corpo através dos modelos óticos.
nesta época, ele afirma que para um corpo se constituir são necessárias operações
de incorporação, a partir de uma relação de alteridade, o que em Melanie Klein
corresponderia à relação com a mãe, como outro primordial. Seria preciso, portanto, uma
separação deste primeiro continente universal, imagem fantasiada do corpo da mãe, império
total da primeira realidade infantil, através de uma equação simbólica.
Retomando estas formulações a partir de textos posteriores, podemos reconhecer
nesta equação simbólica as operações de alienação e separação, cujo efeito é a própria
constituição do sujeito como animado pela libido e, portanto, como desejante. E mesmo
esta referência à teoria kleiniana da necessidade de expulsão do corpo materno encontra
ressonâncias na analogia que Lacan (1964b) faz entre a cisão do embrião dos envoltórios
pelos quais está preso na mucosa uterina e a operação de separação simbólica.
Para Lacan (1953-4), no caso Dick, esta operação só terá lugar ao longo do tratamento
da criança por Melanie Klein, sobretudo após uma brincadeira com um trenzinho, na qual a
oposição continente e o conteúdo é reduzida aos signos mínimos que permitem exprimir o
dentro e o fora do corpo. Ele irá propor que o caso deste menino deve ser analisado a partir
da relação de espelho, leque de todas as equações imaginárias que permitem ao ser humano
ter um número infinito de objetos a sua disposição.
Alguns aspectos da história deste menino serão valiosos para nossa discussão. Dick
sofre de sérios problemas digestivos desde muito cedo. Por exemplo, para ele, era um
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verdadeiro horror defecar e urinar, assim como ingerir qualquer alimento sólido que não
tivesse a consistência de um mingau.
Vemos, assim, apresentar-se na relação de Dick com os objetos destacáveis de seu
corpo um reflexo da ausência de uma imagem corporal unificada, o que marcará os seus
primeiros encontros como Melanie Klein.
Em seu encontro inicial com esta analista, o menino parecia ignorar inteiramente os
objetos que o cercavam, desde móveis, brinquedos e até as pessoas presentes. Desta forma,
ele irá correr pela sala, não demonstrando nenhuma reação ao afastamento de sua babá,
nem ao fato de estar num novo ambiente, diante de uma pessoa desconhecida.
Além disso, seu corpo desajeitado fará lembrar um fantoche desarticulado e,
posteriormente, ele não expressará sentir nenhuma dor. Seu próprio controle motor estava
prejudicado, deste modo Dick não saberá usar uma tesoura.
Sabemos que a consistência dos objetos está condicionada pela própria constituição
do corpo, enquanto uma unidade narcísica. E esta criança que apresentava sérios problemas
referentes às funções da alimentação e da eliminação, à falta de controle motor e ausência
de reação a quase tudo que a cercava nos provas de impasses consideráveis no que diz
respeito à função unificadora da imagem.
Nasio (2001) ireportar tudo isso a uma relação peculiar com a linguagem, usando a
imagem para nós bastante interessante, pois tem ressonâncias importantes no que diz
respeito ao corpo, de que para Dick, a linguagem era como uma casca vazia.
Entendemos assim que, da mesma forma que esta criança não se servia da linguagem
no sentido de se apropriar de maneira singular dos significantes, estes também não vão
constituir para ela um suporte corporal, promovendo o aparelhamento da libido que é o que
faria de seu corpo erotizado, vivo, relativamente estável e não algo desarticulado, tal como
um corpo de marionete, como será descrito por Melanie Klein.
Neste sentido, Lacan (1953-4) irá afirmar que Dick estaria na linguagem, mas sem
fazer apelo. E também i sublinhar nesta criança a pobreza do mundo imaginário e a
incapacidade de estabelecer uma relação efetiva com os objetos.
Contudo, ao longo das sessões com Melanie Klein, importantes mudanças serão
produzidas, como por exemplo, quando Dick pede que ela corte os pedacinhos de carvão
que estão dentro de um carrinho, jogando-o longe e dizendo que este foi embora. Esta seção
94
traz à cena elementos cruciais, a partir da seqüência que vai desde o pedido para que a
analista fragmente o conteúdo de um carrinho até o ditanciamento deste brinquedo. Em
seguida, há o relato do choro de Dick com o afastamento do babá, o que até então não tinha
se produzido. Identificamos, aqui, efeitos de corte e separação que sabemos serem cruciais
para a constituição de um corpo.
É a partir deste novo contexto que será feita a famosa brincadeira com o trenzinho e a
estação, quando Lacan sustenta que tudo se desencadeia. Nesta brincadeira, em que Dick
mostra interesse por aqueles objetos, Melanie Klein intervém da seguinte forma: dá ao trem
pequeno o nome de Dick, referindo o maior ao pai dele e a estação à mãe dele, para fazer
em seguida o trem que representava a criança entrar na estação, dizendo a Dick que se
tratava dele entrando em sua mãe.
Para Lacan (1953-4) neste momento se faz uma demarcação de um interior e de um
exterior, o que possibilita a esta criança começar a fazer apelo, um apelo relacionado à
ausência de sua analista que antes lhe era indiferente. Ele vai considerar este segundo
momento como a abertura das portas do inconsciente, o que permite ao sujeito colocar em
curso as primeiras equivalências, num sistema em que os objetos se substituem uns aos
outros.
É a partir de então que Dick desdobra e articula todo o seu mundo, delimitando a
variedade de objetos humanos, isto é, nomeáveis e assim humanizando-se, o que se
certamente em paralelo a efeitos consideráveis de consistência para seu corpo que não
poderá mais ser comparado a de um marionete e não mais padecerá diante das funções da
eliminação.
Não é por acaso que Lacan (1953-4) fará esse deslocamento de posição de Dick
equivaler em importância à posição do olho no esquema ótico que apresentamos no
capítulo 2. E também afirmará que este deslocamento corresponde, portanto, ao acesso a
uma posição na ordem simbólica que permite ao sujeito fazer um certo número de
deslocamentos imaginários, o que lhe possibilita estruturar seu mundo.
Skriabine (2006) também identifica efeitos importantes das intervenções de Melanie
Klein na relação que Dick estabelecia com o mundo, o que ele vai chamar de nominação do
real como enxertos do simbólico. Para este autor, a partir do enxerto de simbólico associado
à brincadeira do trenzinho, Dick, que estava fixado e petrificado num significante
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primordial, pode formular um apelo e aceder à cadeia significante. A fala de Melanie Klein
resultaria num esvaziamento de gozo e num processo de separação, o que sabemos ter
conseqüências importantes na relação do sujeito com seu corpo. Para este autor, neste caso,
foi necessária uma espécie de empurrão da analista para que Dick saísse de seu impasse e
tivesse acesso ao Outro.
Outro caso abordado por Lacan (1953-4) nos seus primeiros seminários, dentro desta
mesma lógica, é o do menino Robert, atendido por Rosine Lefort.
Este caso será retomado posteriormente por diversos seguidores de Lacan, dentre eles,
a própria Rosine Lefort (1988) e Colette Soler (2002) que irão destacar no tratamento deste
menino os efeitos que o levaram a assumir uma imagem humana.
O processo de humanização pelo qual Robert passa terá como eixo justamente a
própria posição que Rosine Lefort (1989) toma na relação com esta criança que ela mesma
caracterizou nos primeiros encontros como sendo um garoto para o qual era impossível
olhar.
Será a oferta de uma presença atenta e silenciosa que irá definir o tratamento de
Robert, ao que ele irá responder com brincadeiras de dar e tomar. Conforme destaca Soler
(2002), isto levará progressivamente à produção por Robert dos primeiros nomes do Outro,
petrificados, não dialetizáveis, mas, ainda assim, como efeitos significativos. Temos, então,
a série ‘Madame’, ‘mamãe’ e ‘ lobo’.
Retomemos alguns elementos que são destacados da história de Robert e a descrição
de que como ele se encontra quando Rosine vai conhecê-lo. Aos seis meses de idade,
Robert é internado em estado de grave desnutrição, provocado por maus tratos. Seu corpo
se encontra hipertrofiado e desvitalizado, sendo submetido a uma cirurgia sem anestesia,
quando lhe furam os ouvidos e é colocada uma mamadeira com água açucarada em sua
boca para lhe impedir de gritar.
Além de uma patente dificuldade de deambulação, três fenômenos testemunham a
vinculação do corpo deste menino ao gozo sem mediação: a falta de coordenação motora,
as crises de violência e o terror de despir-se.
Como conseqüência dos efeitos da não localização do gozo em seu corpo, Robert não
tem a sua disposição os próprios movimentos. E cada vez que lhe tiravam o uniforme com
que o vestiam durante o dia, entrava em pânico como se estivesse sendo esfolado vivo. Esta
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situação de total angústia deve-se ao fato que o uniforme neste caso não serve apenas como
uma roupa que pode ser tirada e substituída, mas sim como um anteparo ao gozo, um
envelope do qual esta criança irá se desvencilhar posteriormente.
Neste primeiro momento do tratamento, o que predomina é a ausência de coordenação
dos movimentos e o uso restrito da linguagem. Robert inicialmente dispunha de três
palavras: ‘Madame’, ‘sim-não’ e ‘bebê’. E quando Rosine entra no aposento em que ele
estava, Robert grita pela primeira vez ‘Madame’. Para Soler (2002), o ‘Madame’
representaria o nome de um Outro que nunca está ausente, a tal ponto que é sempre
alucinado atrás da porta, o que impede Robert de encontrar um lugar para si.
Esta fase preliminar também se caracteriza por crises de pânico frente à mamadeira e
a bacia de água e pela atividade de empilhar objetos sobre Rosine Lefort. Ocorrerá nesta
mesma época uma passagem ao ato, quando Robert tenta cortar próprio pênis. Este episódio
de auto-mutilação pode ser entendido como uma tentativa de introduzir o corpo no
simbólico, o que, neste caso, é efetuado mediante uma operação de subtração no real do
próprio corpo.
Num segundo tempo, vemos surgir um outro significante: ‘mamãe’. Soler (2002)
assinala que diante deste dois significantes petrificados, ‘Madame’ e ‘ mamãe’, só restaria a
Robert uma alienação sem dialética, na qual ou o sujeito se propõe como espelho do Outro,
ou cai num abandono absoluto.
Contudo, estes dois significantes com os quais Robert não consegue se representar
darão lugar num segundo tempo para o surgimento de um significante novo, produzido pelo
tratamento. O ‘lobo’ é este novo significante que Robert grita pela primeira vez diante dos
buracos dos vasos sanitários, onde as matérias do corpo correm o risco de desaparecer.
Para Soler (2002), o significante ‘lobo’, por estar referido a um buraco que era
considerado perigoso, funcionando como um meio através do qual o gozo pode ser
localizado e parcializado. Será, então, a partir deste momento que vai se instaurar a
dialética dos objetos corporais. Esta dialética se formula com brincadeiras de dar e tomar
objetos.
A criação deste significante, ‘o lobo’, demarcará os efeitos da incorporação simbólica
sobre Robert, inclusive sobre seu corpo. Isto será evidenciado quando ele bebe a metade do
conteúdo da mamadeira com satisfação, jogando no chão o restante com pesar, para dizer
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em seguida, olhando para a janela: ‘o lobo’. Nesse momento, Rosine lhe significa que ele
bebera o lobo como leite. A partir de então, Robert se torna ‘o menino do lobo’ e passa a
imitá-lo para outras crianças.
Podemos entender que a interpretação de Rosine, “beber o lobo”, teve como efeito
uma espécie de incorporação significante e até mesmo a sua encarnação. O significante
‘lobo’ passou de uma pura exterioridade a uma espécie de traço identificatório para Robert
que irá encarná-lo.
Até então, a relação que Robert estabelecia com o leite da mamadeira, com o cocô e o
xixi era de total indistinção destes como conteúdos de seu corpo; do mesmo modo, não
havia nenhuma mediação no contato com outras pessoas. Como vimos, suas próprias
roupas lhe serviam de continente, não tolerando ficar despido, o que gerava uma grande
depressão, quando ele buscava consolo no colo da enfermeira chefe.
Inicia-se, então, uma fase em que Robert começa a inserir e retirar estes objetos de
recipientes, como penicos e bacias, introduzindo intervalos entre o preenchimento e o
esvaziamento destes. E torna-se suportável para ele perceber os recipientes vazios.
Sabemos que o que torna consistente a imagem corporal é um resto, o
especularizável. Para Lefort (1988) é justamente isto que é colocado em questão para
Robert: produzir este resto, o que inicialmente ele tentará fazer no real do próprio corpo.
Numa retomada deste caso que Rosine acompanhou com enorme dedicação, ela
assinala que todo o trabalho do menino residiu em não deixar de empregar grande energia
para instaurar este objeto residual entre ele e o Outro. É este o significado da manipulação
de diversos objetos-produtos de seu corpo para dentro e para fora de recipientes.
Num terceiro momento, o significante “lobo” é incluído no Outro. Neste caso é
referido a Rosine, a quem Robert coloca na posição de beber o lobo e ser o lobo, quando
inclusive a tranca num quarto. Em seguida, ele derrama a água de uma bacia sobre o corpo
nu, pronunciando o próprio nome; e tenta riscar com um lápis o próprio nome na parede e
na sua imagem refletida no espelho. Lefort (1988) i propor que nestas duas últimas
situações, Robert não deixa de concluir uma superfície de corpo esboçada.
Haverá, a partir de então, uma intensificação da relação com Rosine: ele passa a
comer em seu colo e a alimentá-la, dizendo “não Robert”, além de interagir com as outras
crianças.
98
Lacan (1953-4) destaca neste caso a instauração do sistema continente-conteúdo que
se encontra no primeiro plano da significação que ele dá ao estádio do espelho.
Vemos, assim, na análise dos casos destes dois meninos, o reconhecimento do uso de
um recurso simbólico, de incorporação significante que permite a realização de um apelo,
assim como de uma imagem corporal esboçada, a partir do reconhecimento da oposição
continente-conteúdo. Isto viabilizará tanto a relação com os objetos que ganham a
consistência de acordo com o contorno corporal, como a mediação da relação com outras
pessoas.
Em Dick, o jogo significante do trenzinho na relação com Melanie Klein seria o
recurso utilizado, enquanto Robert lança mão do significante “o lobo na atividade de
preenchimento e esvaziamento de recipientes com objetos relacionados ao seu corpo.
Assim, podemos afirmar que, nos seus primeiros seminários, Lacan nos fornece
indicações acerca do processo de incorporação significante fora do campo da neurose,
apontando para a possibilidade de produção de recursos para a ordenação do corpo, a partir
de invenções inéditas.
Esta é a tese formulada por Miller (2003) ao propor o termo invenção como
representando o trabalho da construção de um corpo, bastante presente na clínica da
esquizofrenia. Este trabalho de invenção é ilustrado com o caso de um paciente que
mediante a confecção de anéis e faixas para a cabeça tenta suprir a ausência de unidade
corporal. Segundo este autor, desta maneira o próprio sujeito cria recursos com o intuito de
dar ao corpo uma sustentação, através de uma modalidade mínima e elementar de invenção
– a confecção de anéis e faixas.
Seguindo este mesmo raciocínio, Miller (2002) fará uma distinção entre
acontecimentos de corpo e fenômenos de corpo, que nos pareceu bastante oportuna nesta
discussão das diferentes operações que podem ter lugar quando o corpo constitui um
problema mais agudo.
Acontecimento do corpo é a noção usada por Lacan (1979) para definir o sintoma
como um corpo investido e afetado por traços significantes, efeito perturbador da
linguagem sobre todo o falante. Já os fenômenos de corpo estariam relacionados a
estratégias bastante complexas para regular o gozo, em que o instrumento do significante
99
serve para a elaboração de um modo de defesa muito particular, fora do campo das
neuroses.
Dentre os casos enquadrados por Miller (2002) na produção de fenômenos do corpo,
está o do significante “Ponderal”. Este é o nome de um remédio prescrito a uma paciente
psicótica, o que resulta numa cifragem de gozo. Assim, este significante permaneceu
aparelhando o gozo com uma relativa estabilidade durante muitos anos, o que regulava a
vida desta moça.
Esta paciente que antes padecia de dores inexplicáveis, nomeadas por ela como a
própria ausência de sentido encarnado em seu corpo, ficará estabilizada pela incorporação
cotidiana do “Ponderal”, o que lhe permite ter o que ela chama de um “modus vivendi
ponderado” que regula suas relações de trabalho e afetivas.
Num segundo caso, também exposto por Miller (2002), são assinalados dois tempos
em que um menino busca dar conta da ausência da imagem corporal. No primeiro, a partir
do mimetismo com outras crianças, colando-se à imagem delas e a da analista. Em seguida
será mediante o uso de um significante com o qual retoma aspectos cruciais de sua história.
Trata-se do significante “afogamento” que para este menino é primordial devido aos
tratamentos a que teve que se submeter para limpar seus pulmões de secreções, quando
mais novo.
Em torno deste significante serão feitas diversas encenações na piscina, envolvendo o
salvamento de um bebê do ataque de um tubarão, nas quais a analista será colocada no
lugar de uma espécie de salva-vidas. Também neste caso é possível notar um movimento
em direção ao simbólico, com a elaboração de cenário e a invenção de nomes, como bebê e
tubarão. Assim, vão se inscrevendo as estratégias significantes, como assinala Miller.
O uso de fantasias com rendas é também um recurso utilizado num outro caso
descrito por Miller (2002). Embora gerador de conflitos na convivência com as outras
crianças, para o menino, Pierre, serão estas fantasias que vão lhe permitir inicialmente ter
um contorno corporal e não mais tentar constituir um corpo pela apreensão e mímica das
expressões alheias. Posteriormente, Pierre encontrará uma solução mais sofisticada, o que
ele chamará de uma fantasia mental. Assim, imaginando ser George XIV, ele poderá gozar
de um corpo, não precisando mais deixar de se vestir como os outros meninos de sua idade.
100
Neste caso, poderíamos falar de um percurso do imaginário ao simbólico, quando
Pierre aproxima-se inicialmente da imagem dos outros, em seguida das fantasias com
rendas e finalmente elabora um nome e constrói uma fantasia só na própria mente, como ele
mesmo diz.
Temos, aqui, vários exemplos de como alguns sujeitos vão se servir do corpo, mesmo
quando este representa um problema mais agudo, nos quais podemos isolar a operação de
incorporação significante que aparece em primeiro plano, demonstrando a primazia da
ligação ao Outro na constituição do corpo.
4-2 - Aparelhamento da Libido
“O psicótico será sempre obrigado a alienar seu corpo enquanto suporte
do eu ou alienar uma parte do corpo enquanto suporte de uma
possibilidade de gozo [...] Na psicose, o Outro e seu desejo, é ao nível da
relação fantasmática do sujeito com seu corpo próprio que é preciso
defini-lo. (AULAGNIER in LACAN,1961-2,lição de 02 de maio de 1962).
Nosso interesse nesta seção é abordar algumas situações da clínica do autismo e da
esquizofrenia como trazendo à tona operações através das quais estes sujeitos promovem
algum aparelhamento da libido que antes se apoderava de todo o corpo. Enfocaremos,
portanto, os recursos de que estes lançam mão, que nestes casos trata-se de uma relação
muito peculiar com a linguagem e com o objeto a.
Como vimos no capítulo 1 a respeito do fenômeno da errância psicótica, até
peregrinações pela cidade podem ser uma tentativa de delimitar e organizar este campo do
Outro infinitizado e, portanto, um recurso para o aparelhamento da libido. Da mesma
forma, a internação psiquiátrica muitas vezes tomará o lugar de um continente para o corpo
que faria margem ao real do gozo, como nos relatam muitos dos pacientes que buscam
voluntariamente as enfermarias do IPUB-UFRJ (2006-8).
Sabemos que é como efeito da incidência do significante, enquanto condensador de
gozo que se produz um corpo. A linguagem separa corpo e gozo e assegura, ao mesmo
tempo, a “aparelhagem de gozo” (LACAN, 1972-3 p.75), sem a qual a satisfação da pulsão
seria inconcebível. Na ausência desta operação de separação é que vão se colocar os
fenômenos de estranhamento, mortificação e desagregação corporal.
101
Nestes fenômenos que com Lacan (1948) podemos reunir sob o nome de corpo
despedaçado, o que está em jogo é a ausência do aparelhamento libidinal, pois é a libido
que constitui uma imagem corporal erotizada para o sujeito e, por ele, experimentada como
uma consistência, estável, com limites demarcados onde ele pode se reconhecer
minimamente.
Desta maneira, o corpo é sentido pelo sujeito como desmembrado, sem princípio de
coesão, desobjetivado, em fragmentos, desprovido de centro de gravidade.
No Seminário da Identificação, Lacan (1961-2) faz toda uma argumentação em torno
das psicoses, ressaltando justamente o quanto o corpo próprio seo palco dos dramas
destes sujeitos. Assim, segundo Lacan, diferentemente dos neuróticos e perversos, para os
psicóticos é o corpo que tem toda importância, como citamos na epígrafe do capítulo 3 (cf
p. 67).
A partir de um debate travado com Lacan também no Seminário da Identificação,
Aulagnier (LACAN, 1961-2, lição de 02 de maio de 1962) trará considerações bastante
preciosas a respeito das psicoses. Segundo esta autora, em decorrência de uma coincidência
entre real e simbólico, os psicóticos estariam alienados no corpo próprio que lhes serviria
de suporte para o ego ou até mesmo de um recurso na tentativa de se constituir como
sujeito, tomando uma parte do corpo como possibilidade de gozo. Esta discussão nos
pareceu bastante valiosa, pois situa na relação com o corpo nas psicoses, tanto o que se
coloca no nível do despedaçamento do corpo, correlato do despedaçamento do ego, como a
busca de meios para regular o gozo.
Uma parte docorpo, assim, pode se tornar uma via para a localização do gozo que
antes se apoderava do corpo do sujeito. Diversas ações sobre o corpo perpetradas pelos
esquizofrênicos, como ablações, cortes parecem evidenciar essa tentativa de localização de
um órgão que funcione como condensador de gozo, como vimos no paciente de Lefort,
analisado na seção anterior (cf p. 97). De modo correlato, a função de algumas dores
relatadas por psicóticos pode ser a de organizar uma ficção acerca do gozo do Outro,
aproximando-se da estrutura dos delírios na paranóia.
Esta é a tese defendida por Laurent na Convenção de Antibes (MILLER,1999) quando
irá afirmar que, muitas vezes, busca-se uma unidade corporal, tomando o corpo por inteiro
ou parte dele como meio através do qual o sujeito fará conexão com o Outro. Ainda em
102
Antibes, Laurent vai supor certa linha de continuidade entre os arranjos esquizofrênico e
paranóico do corpo, propondo na esquizofrenia a construção de uma espécie de delírio
sobre o corpo. O delírio esquizofrênico se apoiaria num órgão, sendo para ele suficiente
encontrar uma função para esse órgão, enquanto que na paranóia seria necessário mobilizar
um amplo sistema de saber.
Esta tese se aproxima bastante da concepção de hipocondria localizada proposta por
Sauvagnat (MILLER,1999) também na Convenção de Antibes que mencionamos
anteriormente. Neste tipo de hipocondria, o sujeito toma um órgão em especial nas suas
construções e esta localização em uma parte específica do corpo será assimilada em termos
de uma tentativa de suplência.
Bruno (1999) vai tratar da relação paradoxal com o corpo suposta à esquizofrenia a
partir da argumentação de que o gozo é engendrado mediante uma incorporação mínima
do simbólico, esteja ela fora ou dentro do regime fálico. Vemos, aqui, a idéia de que a
regulação fálica do gozo não é a única possibilidade de ordenação simbólica do corpo.
Para este autor, haveria duas modalidades de regulação do corpo: uma na qual o gozo
é exteriorizado, tornando-se fálico, a partir da operação de interdição edípica e outra em
que tem lugar uma modalidade de regulação do gozo inédita, como por exemplo, a partir da
construção de máquinas que servem de suporte corporal.
Miller (1985) faz uma argumentação nesta mesma direção, afirmando que algumas
máquinas inventadas por esquizofrênicos teriam a mesma função do corpo simbólico. Para
ele, estes dispositivos maquínicos caracterizam-se por um uso peculiar do significante, no
qual ocorre uma mecanização da linguagem em último grau.
Esta idéia de um aparelho ou máquina que funciona como um instrumento de
sustentação simbólica do corpo na esquizofrenia pode ser aproximada da noção de aparelho
de influência, desenvolvida por Vitor Tausk (1990).
Vitor Tausk foi o pioneiro na exploração de novos domínios clínicos da experiência
psicanalítica, sendo a psicose o seu objeto de investigação por excelência. Inclusive, o caso
Emma, através do qual Freud (1915) aborda a peculiar relação com a linguagem da
esquizofrenia, é de uma das pacientes de Tausk, tal como mencionamos no capítulo 3 (cf p.
80).
Dentre as produções de Tausk, destacaremos o seu magistral ensaio “Da gênese do
103
aparelho de influenciar no curso da esquizofrenia” (1990). Neste livro, a partir dos
conceitos freudianos da época, são abordadas a origem e finalidade psíquica do aparelho de
influência.
O aparelho de influência é uma máquina cuja estrutura produz efeitos sobre o corpo e
sobre toda a vida dos pacientes, como por exemplo, ações motoras, sensações e outros
fenômenos somáticos.
Para Tausk (1990), o aparelho de influência teria a função de tornar inteligíveis as
sensações e modificações corporais imprecisas e difusas que caracterizam o
desencadeamento da esquizofrenia. É, portanto, o ponto final da evolução dos sintomas.
Deste modo, este aparelho seria uma sistematização dos fenômenos deste momento
de total desorganização do sujeito e um recurso a partir do qual ele encontrará explicações
para o que experimentava anteriormente com bastante perplexidade.
Sabemos que a crise psicótica, tão bem descrita pela psiquiatria, caracteriza-se pela
dispersão dos significantes com os quais o sujeito se sustentava na existência até então, o
que nos impõe a pensar se este aparelho não seria um meio de aparelhar os significantes
que se apresentavam fora da cadeia no momento da crise.
O próprio texto de Tausk nos fornece indicações nesta direção quando aproxima a
construção do aparelho de influência da elaboração de um delírio, o que nas palavras dele
seria uma invenção de um objeto, a partir de um processo intelectual. No seu ensaio, esta
máquina é definida como representação simbólica da imagem do corpo no discurso do
esquizofrênico, permitindo a este localizar nela o que experimentava de forma dispersa e
com estranheza no próprio corpo.
Tausk (1990) resgata a tese freudiana de que na esquizofrenia a libido retorna de
maneira auto-erótica, para propor que a máquina de influência representaria a fase final que
se segue à etapa de estase da libido no corpo que caracteriza os esquizofrênicos.Assim,
poderíamos dizer que a construção do aparelho se numa tentativa de contornar a
fragmentação corporal, como ilustra o caso de sua paciente, Natália. Esta moça de 31 anos
relata estar seis anos sob a influência de um aparelho elétrico que tem a forma de um
corpo humano, sendo que tudo o que ocorre ao aparelho também se produz no seu próprio
corpo; como efeitos desta ligação, são provocadas secreções, odores, sonhos, pensamentos,
sentimentos e sensações, inclusive sexuais.
104
Vemos neste caso uma enorme proximidade com o processo de aparelhamento da
libido pelo significante que, como vimos, não se esgota nem na versão neurótica da
metáfora paterna nem na paranóica.
Temos, assim, em meio aos psicanalistas importantes considerações a respeito da
invenção de recursos para aparelhar a libido, mesmo na esquizofrenia. Nestas, o que parece
ser indicado é que todo o trabalho dos sujeitos residirá em improvisar um recurso que se
interponha ao apoderamento de todo o corpo pelo gozo, seja até mesmo na forma de um
órgão regulador de gozo.
A improvisação de um recurso regulador de gozo em torno do qual gira toda a
dialética libidinal se faz também presente na clínica do autismo. Não são poucos os
analistas que vão supor uma certa continuidade entre a esquizofrenia e o autismo,
justamente no que diz respeito aos possíveis encaminhamentos dos impasses na relação
com o corpo. Dentre eles, destacamos os trabalhos de Soler (2002), Bruno (1999) e Baio
(1993).
Podemos situar a clínica do autismo em torno da ausência de uma mediação
simbólica que é o que também define a particular relação com a linguagem dos
esquizofrênicos. Assim, por tomarem em sua absoluta substância a palavra, os autistas se
aproximariam da esquizofrenia.
Soler (2002) define o autismo partir de uma espécie de perseguição pelos signos da
presença do Outro, muito particularmente por dois objetos: o olhar e a voz. Segundo ela,
para os autistas, tudo o que se mexe do lado do Outro, tudo aquilo que multiplica suas
demandas, tudo que se mostra como instável, imprevisível, tem um impacto direto e
imediato. Nestes casos, na relação com o Outro se buscará manter uma espécie de
homeostasia, freando a dialética da fala e estabelecendo uma relação com algumas
demandas de forma absolutamente estereotipada e repetitiva.
Para esta autora, a perturbação na relação com o Outro no autismo também terá
conseqüências no corpo, em que o corpo do simbólico se incorpora. Deste modo, inúmeras
serão as perturbações corporais nestes casos, desde a falta de coordenação dos movimentos,
da marcha e dos olhos, até ao que é descrito como déficits na aprendizagem da continência.
E a ausência de qualquer fundo orgânico nestas perturbações corporais é bastante
105
compreenssível, se nos lembrarmos do que Lacan nos ensina: que a ordem das pulsões
corresponde à sucessão de demandas do Outro.
Desta maneira, os diversos fenômenos corporais a que temos acesso nesta clínica
também podem ser concebidos nos mesmos moldes do que denominamos no capítulo
anterior de ‘hipocondria de linguagem’. Por hipocondria da linguagem, definimos a
incidência dos significantes no real do corpo que caracteriza, por exemplo, os sintomas
hipocondríacos, como reflexo de um corpo colado aos significantes e, portanto, pólo de
concentração de gozo.
Como vimos, esta incidência de puros significantes no corpo, sem nenhuma
mediação, traduz uma verdadeira estase de libido, o que ganha expressão na clínica do
autismo nas experiências de intrusão de que estes sujeitos parecem estar se defendendo
insistentemente.
Esta relação peculiar com os significantes que aproxima o autismo da esquizofrenia
pode se apresentar através de diversos efeitos no corpo, enquanto passível de adoecer e
experimentar a dor, como sublinha Baio (1993).
Uma das constatações bastante freqüentes na clínica do autismo é a resistência à dor e
às doenças que caracteriza estes sujeitos. Numa leitura psicanalítica, estes fenômenos
podem ser considerados um efeito da não incidência do significante que não teria tocado o
corpo, no sentido de erotizá-lo, o que em muitos casos pode ser alterado com início de um
tratamento analítico.
Além disso, podemos verificar a especificidade da relação com a linguagem dos
autistas, no modo como eles tomam seu próprio corpo refletido no espelho. Muitas vezes,
eles ignoram a própria imagem no espelho; outras vezes, apresentam no lugar de uma
atração pela imagem, uma atração pelo buraco. Todas estas situações nos indicam os
impasses decorrentes da não operatividade da função unificadora da imagem, o que
sabemos ser um efeito de uma operação simbólica e que, portanto, pode sofrer
modificações decorrentes de intervenções clínicas.
Na clínica do autismo, também chama a atenção a relação com os objetos que do
corpo são destacáveis, como os alimentos e excrementos que são os objetos da demanda do
Outro. Estes objetos serão experimentados, na ausência de uma mediação simbólica, de
forma bastante intrusiva, o que resultará na montagem de um verdadeiro arsenal de defesas
106
pelos sujeitos. Dentro deste arsenal, estão as diversas alterações presentes na alimentação,
assim como na eliminação, desde a não realização destes atos até a sua conversão em rituais
inéditos.
Entendemos, assim, que a peculiar relação com a linguagem do autismo tem inúmeras
repercussões no corpo e pode dar lugar à construção de algo que cumpra a função de uma
mediação simbólica, como, por exemplo, o recurso de empreender sucessivas ligações e
desligamentos do Outro.
Este recurso em que, para localizar o gozo, o sujeito promove uma desconexão do
Outro foi por nós apreciado quando analisamos o fenômeno da errância psicótica no
capítulo 1 (cf p. 27) e aqui ganha relevo com o exame do caso Stanley, de Margaret Malher
(1973).
Como atesta Stanley, no autismo, quando o corpo se liga ao Outro, as relações do
corpo e do gozo são profundamente remodeladas.
Stanley é uma criança que oscila entre dois estados. No primeiro estado, ele
permanece completamente amorfo, como um trapo ou qualquer outra coisa colocada no
chão. Já no segundo estado, quando certas palavras são pronunciadas ou quando sua
analista o toca, seu corpo ganha animação.
Soler (2002) chama a atenção para este tipo de ordenação presente nos autistas, em
que estes oscilam entre dois estados: a hebetude, isto é, estado em que o sujeito se apresenta
como uma massa amorfa - quase como um objeto entre os objetos -, e o que ela chamará de
animação do autômato.
No caso de Stanley, ele não apenas fará a brincadeira on-off, acendendo e apagando
luzes, interessando-se por um boneco mecânico e pelo interfone do consultório de sua
analista, mas também ligará e desligará a si próprio. Soler (2002) observa que quando ele
fica inerte isto significa libidinalmente inerte, porque o corpo como organismo continua
funcionar. É a animação libidinal que não se coloca neste estado e irá se apresentar quando
Stanley funciona como um autômato, fazendo uma espécie de semblante de máquina.
Stanley ise ligar de duas maneiras. Ele se ligará e ganhará corpo, de um lado, pela
via do significante. Neste caso, basta que uma palavra seja pronunciada por outra pessoa ou
por ele próprio, ou até mesmo que ele veja uma imagem, como a de um bebê ou de um urso
panda. No momento em que surgem esses significantes, Stanley desperta e se aparelha
107
libidinalmente. Vemos, assim, que é no Outro, como máquina significante, no corpo da
linguagem que ele se liga.
Sua segunda maneira de se ligar consiste em tocar no corpo do analista que parece
estar, para ele, no lugar do corpo incorpóreo do significante. Aqui, o aparelhamento da
libido e a sustentação do corpo se dão a partir da ligação do sujeito com sua analista, no
caso Margaret Malher.
Notamos, neste caso, que através do recurso da desconexão do Outro, da alternância
entre momentos em que Stanley se conecta e se desconecta do Outro, ele tem seu corpo,
oscilando entre os estados de aparelhamento e desaparelhamento libidinal.
No autismo, o aparelhamento da libido também pode se dar pela via de um objeto-
prótese, tal como o que Eram (STAVY, 2004) constrói. Para este menino, é a invenção de
um assento de bicicleta, único em seu gênero, que fornece ao seu corpo alguma sustentação
e consistência. Como efeito desta invenção, Eram terá seu corpo menos desordenado e
passa a não apresentar mais as dificuldades que tinha para urinar e defecar.
Desde então, passará a circular pelas redondezas do hospital dia de Aubervilliers,
construindo um percurso em torno tanto dos carros que funcionam como daqueles que estão
quebrados e parados no ferro-velho. Posteriormente, Eram vai pedalar por um
estacionamento condenado que está sempre vazio. Os analistas o que acompanham chamam
a atenção para este circuito em torno do vazio que Eram inicia, como tendo efeitos de
delimitação sobre o modo como ele se relacionava com o mundo, tornando-o
particularmente sensível ao que estava a sua volta.
Outro caso de autismo que podemos entender como um exemplo de uma forma
inédita de aparelhamento da libido é o de Temple Grandin (1994). Em sua autobiografia,
ela se apresenta com um dos casos raros de autismo com genialidade, justamente por ter
concebido um equipamento para tratar o gado, o que lhe uma considerável notoriedade
dentro desta área científica.
Temple concluiu o doutorado em biologia animal, sendo consultada por diversos
países por seu domínio nesta área. Em decorrência disso, ela escreve em revistas e jornais
especializados e participa de congressos. E o que faz com que se considere Temple como
estruturalmente uma autista é sua solidão afetiva, seu olhar vazio, a falta de timbre na sua
voz e consistência corporal.
108
Ela mesma se descreve como tendo na infância um funcionamento muito mais
característico do autismo. Temple (1994) conta que não falou antes de completar três anos e
meio; até então se comunicava urrando e gritando, além de apresentar acessos de cólera
durante os quais jogava e destruía objetos.
Numa visita ao rancho de sua tia, Temple terá um encontro com o que provocará uma
virada em sua vida: uma máquina que imobilizava o gado para realizar uma série de
procedimentos, como a vacinação, a castração e o próprio abate. Nesta ocasião, sente-se
atraída pelos efeitos de acalmar o gado que esta máquina promove e decide experimentá-la
em si mesma.
Temple (1994) vai concluir que esta máquina tem as funções de lhe fornecer uma
estimulação, a sensação de limites, além de um ambiente caloroso, doce e confortável, o
que produziria nela efeitos pacificadores. E começará, então, a idealizar uma máquina
mágica, o que vai conduzí-la até suas atividades profissionais futuras e a invenções
sucessivas de diversos exemplares de uma máquina que comprima o corpo do gado,
preparando-o para o abate.
Vemos acima a descrição de efeitos produzidos sobre o próprio corpo de Temple,
indicando uma localização do gozo que antes parecia não estar assegurada para ela. Sua
máquina lhe permite ter um corpo com limites, estimulado, ou conforme entendemos,
animado libidinalmente, promovendo sensações de conforto e prazer que supõem uma
regulação de gozo.
O gozo de Temple se encontra, assim, pacificado a medida que ela vai se dedicando à
construção de sua máquina reguladora, conforme demonstra a atenuação de suas crises e de
sua agressividade. Nisto podemos reconhecer uma contenção e localização do gozo, com o
uso adjuvante da imipramina.
Esta é a tese de Maleval (1998) que considera a construção da máquina para o abate
do gado uma defesa bastante elaborada com efeitos incontestáveis, através da qual Temple
elabora um Outro, representado por sua máquina reguladora. Segundo este autor, a partir
desta máquina, Temple estabelece uma relação com a linguagem com alguma mediação.
Temple teria, assim, a vida orientada em torno da máquina reguladora, o que lhe permite se
fazer representar no campo do Outro, mesmo que com o custo de uma certa petrificação.
109
Entendemos esta construção de Temple Grandin como uma modalidade de
aparelhamento da libido, o que ela indica com seu interesse e seus estudos em torno dos
efeitos de bem estar e apaziguamento que suas máquinas produziriam no sistema nervoso
do gado.
A respeito da relação do falante com seu corpo, diz Lacan (1975-6) que a consistência
corporal decorre do próprio pensamento que torna o corpo uma unidade narcísica. É na
medida em que o falante crê que tem um corpo e o adora, erotizando-o, que este subsiste,
enquanto sua única consistência.
Sabemos que esta crença do falante é fundamental, mesmo que o corpo seja para ele
uma apreensão bastante precária, marcado pela decadência e pela finitude, como bem
afirma Freud (1930) ao definir o corpo como uma das fontes de mal estar.
De acordo com Lacan (1975-6), com a crença de que tem um corpo, objeto de seu
amor e cuidados, o qual irá tratar e enxugar, o ser humano de alguma forma vela este
caráter inexorável da consumição do corpo. Podemos entender nesta formulação que os
verbos tratar e enxugar correspondem às operações que promovem a sustentação do corpo
enquanto uma consistência. Neste contexto, tratar diria respeito a uma operação de
tratamento e de localização do gozo, enquanto enxugar teria o significado de aparelhar a
libido e, desta forma sexualizar o corpo, tornando-o simbólico.
Baseando-se nesta concepção da relação do falante com seu corpo e na prática
desenvolvida em instituições de saúde mental infanto-juvenil, Elia (2004) faz algumas
proposições bastante relevantes acerca da clínica do autismo.
Para este analista, o autismo se definiria por tentar não reconhecer de forma radical o
caráter inexorável da consumição do corpo. A partir da constatação na clínica com autistas
de atos em que as secreções são ingeridas, manuseadas e espalhadas pelo espaço físico que
os rodeia, Elia (2004) se interroga se esses atos também não estariam inseridos na relação
de todo o falante com seu corpo que, como vimos, para se constituir como uma consistência
necessita de cuidados, de ser enxugado e, deste modo, erotizado. E prosseguindo nesta
argumentação, ele irá propor como direção do tratamento justamente oferecer, por meio de
palavras e atos acompanhados de palavras, outros modos de tratar o corpo que viabilizem
outras formas de enxugamento, o que definimos aqui em termos de aparelhamento da
libido.
110
Podemos notar, a partir tanto dos casos clínicos que examinamos como das
elaborações teóricas abordadas acima que, no autismo e na esquizofrenia, os processos de
invenção do corpo vão constituir um campo bastante heterogêneo, cujo fator em comum
parece ser a construção de um suporte simbólico inédito para aparelhar a libido.
Como vimos, isto pode se dar em diversos níveis, desde os recursos mais
elementares, incluindo também a produção das mais sofisticadas máquinas que funcionam
como objetos destacados do corpo que promovem a regulação do gozo.
4-3 - Construções da função unificadora da imagem do corpo
“Um trabalho de comentários sobre o discurso do nosso amigo Daniel
Lagache [...] Eu lhes rogo que se reportem a ele [...] para ver a
importância que na exposição dela [ de Aulagnier] toma normalmente a
função de i(a), dito de outro modo, a imagem especular, que não está
totalmente ausente de seu relato de caso, porque no final das contas é com
uma cena diante do espelho que ela conclui para nos trazer seu
psicótico” (LACAN, 1962-2, lição de 02 de maio de 1962)
A teoria lacaniana do estádio do espelho expõe o quanto a constituição do corpo é
uma encruzilhada estrutural para o sujeito. Segundo esta teoria, o corpo humano é
originariamente fragmentado e somente graças à função da imagem especular do outro que
irá se reconstitui como uma unidade formal, mediante uma solução do tipo ideal.
Como desenvolvemos no capítulo anterior (cf p. 73-4), as últimas formulações de
Lacan (1975-6) nos permitem identificar também na paranóia a construção de uma Gestalt
para barrar o real do corpo despedaçado, fazendo uso do imaginário para limitar este real e
promovendo um enodamento em continuidade dos três registros.
De modo correlato, entendemos que a não operatividade da função unificadora da
imagem sobre o corpo nos esquizofrênicos pode animar alguns sujeitos até o uso do recurso
de máscara, conforme desenvolve Recalcati (2003).
O recurso da máscara fornece uma identidade para o sujeito na forma de uma
compensação imaginária que funciona como uma espécie de tela que demarca distâncias
entre o sujeito e o Outro.
Para Recalcati (2003), através da máscara o sujeito pode colocar em curso o
tratamento do gozo, que com ela passaria a dispor de uma espécie de centro imaginário
para o seu corpo que o mantém unido, impedindo a sua fragmentação.
111
Diferentemente das construções fantasmáticas da histeria que velam o vazio do ser a
partir de um valor acrescentado - conferindo ao corpo um a mais do brilho fálico -, na
esquizofrenia a máscara faria existir o próprio corpo, mantendo-o unido e impedindo seu
desmembramento.
Assim, a máscara na psicose serviria para dar sustentação ao próprio ser do sujeito,
como cobertura justamente para um vazio de ser fundamental, podendo compensar a
ausência de revestimento narcísico do sujeito. Esta unidade artificiosa que sustentação
ao corpo do psicótico, propicia a este uma espécie de pacificação e constitui um meio para
a regulação do gozo.
Nestes casos, o risco da fragmentação corporal é reabsorvido pela identificação
proporcionada pela máscara, como demonstram os estudos fundamentais de Helene
Deutsch (1968) sobre as personalidades como se” e de Winnicott (1982) sobre o falso
self” como máscaras sociais que marcam uma distância em relação ao gozo do Outro.
O mecanismo do como se também chama a atenção de Lacan (1955-6) quando
analisa o caso Schreber. No início do delírio de Schreber, predominam os fenômenos de
captura imaginária, quando a imagem não se inscreve em nenhuma dialética ternária,
fazendo surgir toda sorte de relações de rivalidade, agressividade e temor.
Assim neste período inicial, é a partir da alienação na imagem do outro que o sujeito
consegue algum tipo de enganchamento que lhe sirva de sustentação na existência. A busca
das chamadas muletas imaginárias teria lugar na ausência do recurso edípico que faz com
que o sujeito procure compensações em uma série de identificações conformistas.
Lacan (1955-6) recorre a um caso de Katan para ilustrar este recurso a personagens
que darão ao sujeito o sentimento do que é preciso fazer para ser homem. Trata-se de um
rapaz na puberdade, em quem mesmo antes da crise psicótica seria possível notar os
efeitos da ausência de um elemento significante que lhe permitisse situar na partilha dos
sexos. Diante deste impasse, ele tentará conquistar uma atitude viril por intermédio da
imitação, o que Lacan chamará de um atrelamento, na esteira de um de seus amigos.
Uma identificação com um amigo em particular marcará as primeiras manobras
sexuais deste rapaz, assim como a renúncia a elas. Com este duplo narcísico, ele se
comporta como tendo um pai severo e irá se apaixonar pela mesma garota que este amigo.
112
E quando esta que é colocada no lugar do objeto de amor de ambos, escolher um deles, no
caso o paciente de Katan, é que eclodirá a sua psicose.
Na identificação com a qual este rapaz sustenta uma posição viril, Lacan vai assinalar
precisamente a função da compensação imaginária: a compensação imaginária seria uma
espécie de prótese imaginária que estabiliza o sujeito numa relação especular. Esta
identificação tem como característica de fundo ser adesiva, integral, imediata, mimética,
não dialética, a partir da qual o sujeito, sem mediação simbólica alguma, supõe um outro
semelhante, totalmente idealizado.
Uma outra referência à importância que o recurso da compensação imaginária pode
ter nas psicoses é a das irmãs Papin, autoras de um duplo homicído nos anos 30 que será
extensamente comentado por Lacan (1932), ganhando um lugar privilegiado entre os
psicanalistas até os dias atuais. Christine e Léa Papin eram empregadas domésticas
exemplares na casa da família Lancelin. E embora tecessem inúmeros elogios a sua patroa,
elas irão pôr fim à vida desta e da filha dela, de forma extremamente violenta e feroz, o que
vai ganhar todas as manchetes dos jornais de época.
Será a maneira através da qual estas damas da sociedade serão cruelmente assasinadas
por suas criadas que chamará atenção de todos. Elas foram subitamente surpeendidas por
suas empregadas quando chegavam em casa, não tendo nenhuma chance para se defender,
conforme comprovam e descrevem os boletins policiais. Assim, sofreram diversos golpes e
mutilações, tendo inclusive os olhos arrancados das órbitas. É importante ressaltar que
neste ataque furioso à senhora e à senhorita Lancelin, Christine foi quem fez a maior parte
do trabalho, enquanto Léa se contentou em imitá-la.
Nasio (2001) retomará este caso, justamente para destacar como um dos fatores
desencadeantes deste crime realizado pelas irmãs Papin o fato delas estabelecerem uma
relação totalmente especular, o que exprime a que ponto podem chegar as identificações
imaginárias, enquanto adesivas, miméticas e não dialéticas.
Para este autor, o pano de fundo destas identificações seria um delírio, uma
construção delirante persecutória que era compartilhada por Christine e Léa, assim como
tudo mais era para elas um elo de ligação sem qualquer abertura e ou possibilidade de
vacilação. Elas viviam num mesmo ambiente, totalmente isoladas e alheias em relação aos
113
demais e cultivavam os mesmos interesses; dentre eles, ocuparem o lugar de empregadas
perfeitas perante os olhos da patroa, a quem chamavam secretamente de ‘mamãe’.
Assim, a compensação imaginária neste caso é sustentada pelo delírio de perseguição
de Christine, considerada como a autêntica psicótica deste par, enquanto Léa se encontrava
totalmente submetida a esta irmã, funcionando como um duplo para esta.
Este delírio de perseguição expressava como Christine se posicionava na linguagem,
sentindo-se constantemente ameaçada e totalmente atingida no próprio ser por um Outro
que lhe dirigia críticas ferozes, encarnado inicialmente por sua prórpia mãe e depois pela
madame Lancelin. E na ausência de qualquer mediação simbólica, só lhe restava proteger a
si mesma e àquela que era para ela um duplo, sua irmã, afastando-se da mãe e buscando
sustentar uma imagem de perfeição perante os olhos da patroa. Násio (2001, p. 200)
descreve da seguinte forma este par imaginário: Era Christine quem protegia, ensinava,
ordenava, mimava e consolava, enquanto Lea se deixava amar. Não estamos diante de dois
seres idênticos, mas antes, da roupa e seu forro, da original e sua cópia, da voz e seu eco”.
Com a prisão e a separação de ambas, veremos os efeitos na irmã mais velha da
dissolução forçada do recurso da compensação imaginária, quando ela, em total desespero,
vai implorar pela presença da irmã a quem estaria vendo morta, com o corpo mutilado,
conseguindo convencer uma carcereira a trazê-la para sua cela às escondidas. E mesmo
depois disso, quando não mais fará apelo ao par imaginário, mas se entregará a um
delírio místico, passando horas rezando, beijando a terra e fazendo o sinal da cruz com a
língua.
Assim, tal como nos diz Násio (2001) diante do fracasso da identificação imaginária
com Léa e de algo que viesse em seu lugar fazendo operar algum ponto de ancoragem na
existência, Christine terá seu corpo reduzido ao simples real da carne, deslizando
progressivamente para um quadro de esquizofrenia:
“Afinal, foi uma com identidade frouxa que as duas irmãs tiveram que
enfrentar a vida. Elas se confrontaram, desarmadas, com o enigma do sexo
e do amor. Então perplexas, reclusas, encolheram-se num amor absoluto e
de uma pela outra, num universo fechado do qual o masculino estava
excluído. Podemos imaginar os tormentos que as levaram, um dia, a
eliminar suas infelizes patroas, supondo estar eliminando o mal que as
consumia. Relembrando o crime, Christine falou ingenuamente, mas com
pertinência, do “mistério da vida”. O assasinato não pôde trazer-lhe uma
114
resposta para essa indagação, e ela mergulhou na sideração
esquizofrênica” (NÁSIO, 2001, p.214).
Como vimos, o recurso das compensações imaginárias também pode estar presente na
anorexia e na bulimia psicótica. Recalcati (2003) irá supor que nestes casos de psicose, da
mesma forma que todos os rituais para manter um corpo reduzido a ossos, as identificações
imaginárias teriam a função de garantir alguma consistência corporal, tal como
desenvolvemos no capítulo 3 (cf página 90).
Com Lacan (1955-6, p.330), podemos entender que, nas psicoses, o sujeito não dispõe
das coordenadas simbólicas edípicas para se situar na partilha dos sexos. Esta é a tese
lacaniana do “Seminário III”, a de que, na ausência de uma estrada principal, o que se
coloca para o sujeito é um certo mero de pequenos caminhos elementares, pequenos
letreiros, pequenas estradas para ir de um ponto ao outro. Mas podemos dizer também que,
a partir da teoria das suplências, ficará salientado que esta estrada principal, termo com que
Lacan se refere ao significante do Nome do Pai nos anos 50, não está assegurada para
ninguém, cabendo a cada um fazê-la operar.
Esta reformulação que o conceito do Nome de Pai sofre ao final do ensino de Lacan
nos autoriza a pensar que caberá a todos os falantes construir um recurso para se situar na
partilha dos sexos. Neste sentido, é possível reconhecer nas psicoses, a constituição dos
significantes homem e mulher, apenas sob o ângulo da aparência.
Tyszler (2006) vai situar dentro desta perspectiva os casos de transexualismo na
psicose, a partir do que ele vai chamar de um gozo próprio da pele e da vestimenta. Nestes
casos, o empuxo à mulher ficaria reduzido à produção de uma imagem que unifica o corpo.
A referência a Schreber é aqui inevitável, mesmo que a sistematização delirante configure o
cerne de sua reconstrução do mundo e o termo transexualismo seja aqui excessivo.
Este autor sublinha que, aqui, é a pele em sua totalidade, em toda a sua superfície, que
é investida e que o tema da beleza, de ser uma mulher bela, se apresenta constantemente
ligado à questão da vestimenta. As problemáticas da beleza e da harmonia estão associadas,
assim, com o recobrimento imaginário da categoria da feminilidade.
Deste modo, para estes sujeitos, não haveria, nem fingimento, nem montagem, pois a
pele e a vestimenta teriam a propriedade específica de promover uma unificação da imagem
corporal, fora de uma ancoragem fantasmática usual e perversa.
115
Estes casos de transexualismo na psicose configurariam, assim, uma operação de
busca de um equilíbrio imaginário do próprio sujeito, identificado nos aspectos físicos do
outro sexo em que a superfície da pele ganha destaque. E esta operação com a qual o sujeito
tratará de encontrar, sem descanso, sua consistência imaginária, se caracterizaria por uma
tendência a uma totalidade única.
Neste momento, concluímos nossa discussão em torno das diferentes dimensões em
que se desdobra o processo de invenção do corpo nas psicoses. Vimos que este processo
pode se dar privilegiando diferentes vias, seja a da incorporação significante, a do
aparelhamento da libido e ou a da função unificadora da imagem.
Nosso objetivo com esta discussão foi fazer uma introdução à análise que faremos no
capítulo a seguir de três testemunhos nos quais os sujeitos efetivamente se dedicam a dar
um encaminhamento para os impasses gerados quando o corpo se constitui um problema
mais agudo. Os casos Schreber, Joey - de Bethelheim -, assim como os livros em que
Wolfson descreve os diversos procedimentos a que recorre para contornar os efeitos do
gozo desregulado, especialmente em seu corpo, serão examinados dentro desta perspectiva.
116
- CAPÍTULO 5 –
INVENTANDO UM CORPO
Três testemunhos: Schreber, Joey e Wolfson
Apresentação
Apresentaremos neste capítulo três relatos clínicos do que consideramos distintos
processos de invenção do corpo, na ausência do recurso edípico. Nestes relatos, nos
interessa destacar o caráter processual das invenções acessadas por cada um destes sujeitos,
acompanhar os diferentes momentos que nelas se sucedem e distinguir quais são os
recursos presentes em cada um dos casos. Os casos do presidente Schreber, Joey e os livros
em que Wolfson descreve os procedimentos que construiu para se defender dos efeitos do
gozo desregulado, especialmente sobre seu corpo, serão analisados com este enfoque.
Pensamos que mesmo as exaustivas abordagens das “Memórias de Schreber” (1995)
não esgotam a análise deste caso, sobretudo com o recorte que pretendemos fazer, aqui, em
que enfocaremos o processo da construção de um corpo de mulher para um pai como o eixo
do delírio deste sujeito. Por sua vez, as inúmeras referências ao caso Joey não diminuem a
importância de pensarmos, a partir das teorizações do ensino de Lacan sobre o corpo, qual
o papel que as máquinas e outras produções desempenham na direção do tratamento desta
criança.
Da mesma forma, quando optamos por considerar o relato minucioso de Wolfson de
todas as estratégias e defesas empreendidas para neutralizar os efeitos danosos do
significante, é por identificarmos nos testemunhos por escrito que este nos legou um
material precioso para a discussão das diferentes modalidades de tratamento do gozo que se
apodera do corpo.
É importante ressaltar que mesmo Wolfson não tendo atribuído explicitamente a seus
livros o valor de memórias - assim como o fez Schreber (1995) -, reconhecemos,
juntamente com diversos comentadores de sua obra que, nela, o autor se dedica a relatar as
tentativas de localização de gozo que tomavam o seu cotidiano. Dentro desta perspectiva,
Morel (1986) irá sustentar que a tela de fundo de todos os escritos de Wolfson são os
117
recursos que ele cria para dar conta de um gozo que se apoderou de seu corpo. Bergé
(1986), por sua vez, dirá que o fio condutor destes escritos é o lugar que a ngua materna
ocupa neste caso. E, de modo correlato, André (1986) proporá que a obra de Wolfson é um
testemunho dos esforços que ele empreende para se separar do Outro materno.
Dividiremos este capítulo em três seções. Na primeira delas, examinaremos o
processo de invenção em Schreber, destacando o lugar de objeto dos mais variados abusos
que o seu corpo ocupa inicialmente, sofrendo danos físicos constantemente e encontrando-
se posteriormente sob a ameaça de abusos sexuais por parte de uma série de perseguidores.
Em um segundo momento, trataremos do deslocamento significativo que a
sistematização delirante promove com relação ao lugar de dejeto que o corpo de Schreber
ocupava anteriormente.
Na segunda seção, serão analisadas as construções de Joey, a partir dos efeitos que
elas têm sobre este menino. Nesta análise, partiremos das máquinas com as quais ele
aparelha a libido em seu corpo. Estas máquinas constituem mecanismos simbólicos que
Joey constrói para recuperar as funções do seu corpo, chamados, por ele, de prevenções.
Em seguida, abordaremos as teorizações sobre o corpo que ele cria e a identificação
que estabelece com uma outra criança, o que neste caso tem grande importância, que
Joey, no início, se referia aos outros de forma bastante impessoal, chamando as crianças de
“pessoas pequenas” e aos adultos de “pessoas grandes”, não estabelecendo quase nenhum
contato com todos estes. Concluiremos com as produções por ele feitas, ao se servir do
recurso significante de maneira diferenciada, através da elaboração de estórias, da criação
de personagens, do recurso da escrita e de desenhos que giram em torno dos temas do corpo
e do nascimento.
na última seção investigaremos as inúmeras estratégias de defesa frente aos efeitos
nocivos da língua materna, que Wolfson (1970) descreve no primeiro dos seus livros, em
cujo título chama a atenção para uma certa atração do esquizofrênico pela linguagem, o
que, como vimos em capítulos anteriores, é bastante reconhecido pela psicanálise.
Com este fim, examinaremos os atos de Wolfson sobre o próprio corpo, desde as
autoflagelações até a série de ações que este realiza para não ouvir a língua inglesa,
sobretudo quando pronunciada com o sotaque nova-iorquino de sua mãe. Também
discutiremos a relação que ele estabelece com os alimentos e suas embalagens, nas
118
chamadas orgias alimentares. Posteriormente, daremos destaque para o procedimento
lingüístico que ele inventa a partir de uma paixão pelo estudo de línguas estrangeiras que
lhe permite neutralizar os efeitos do significante sobre o seu corpo, o que ele nos descreve
em detalhes no seu livro. E, por fim, analisaremos os desdobramentos do delírio de ruína
que representa o recurso significante que predomina em seu último livro.
5-1 - SCHREBER: Um corpo de mulher para um pai
Culto à feminilidade: uma via para a localização do gozo
“A partir de então, inscrevi em minha bandeira, com plena consciência, o
culto da feminilidade [...] Gostaria de ver qual homem que, tendo de
escolher entre tornar-se um idiota com aparência masculina ou uma
mulher dotada de espírito, não preferiria a última alternativa. Mas é desse
modo e apenas desse modo que a questão se coloca para mim. [...] Sem me
preocupar com o julgamento dos outros, permito-me tomar como guia um
sadio egoísmo, que justamente me prescreve o culto da feminilidade de um
modo que depois descreverei mais precisamente. assim consigo
proporcionar ao meu corpo durante o dia um estado suportável [...]
Comportando-me desse modo, sirvo ao compreensível interesse dos raios
e, portanto, ao do próprio Deus” (SCHREBER, 1995, p.148).
Dentre as modalidades das psicoses para remediar as confrontações com o real, a
sistematização delirante é a mais conhecida e discutida dentro do meio psicanalítico que
toma como ponto de partida nestas discussões o estudo das “Memórias” de Schreber que
Jung fez chegar às mãos de Freud.
Sobretudo a partir do último ensino de Lacan, o delírio de Schreber é definido como
um processo de localização do gozo através de sua articulação ao significante. Neste caso, a
angústia e os sintomas hipocondríacos que predominavam inicialmente serão contornados
através da elaboração de uma solução mais sofisticada que é o delírio de ser a mulher de
Deus.
No Seminário da Identificação, Lacan (1961-2) define a angústia a partir dos efeitos
de dissolução, quando o sujeito experimenta o desabamento de todas as referências
identificatórias, já que o Outro que lhe dá suporte se esvai. Não seria justamente a retomada
119
deste Outro como suporte simbólico do sujeito, que para Schreber se consolida na figura de
Deus, que impede que ele fique entregue aos efeitos da angústia?
Esta é a tese que Maleval (2002) nos propõe. Para ele, quando o gozo do Outro é
identificado, o que corresponde neste caso ao momento em que a emasculação é entendida
como um dos desígnios de Deus, o sujeito é capaz de recuperar um certo ponto de apoio
na existência e se tornar organizador do que está lhe ocorrendo. Como nos diz Lacan: “Em
relação à cadeia do delírio, se assim se pode dizer, o sujeito nos parece ao mesmo tempo
agente e paciente. O delírio é tanto mais sofrido por ele quando mais ele não o organiza”
(1955-6, p.247).
Entendemos que será exatamente esta virada na sua relação com o gozo que Schreber
nos expõe quando afirma que com plena consciência inscreveu em sua bandeira o culto da
feminilidade ao qual irá se dedicar a partir de então.
Retornemos a alguns aspectos do culto da feminilidade apresentados na citação da
epígrafe acima (cf p. 119). Schreber define este culto como a única escolha possível para
proporcionar ao seu corpo um estado suportável e servir aos interesses de Deus. Para ele,
esta escolha se colocaria da seguinte forma: tornar-se uma mulher inteligente como a única
alternativa para não permanecer um homem idiota. E diante deste impasse, ele toma como
guia o que vai chamar de um sadio egoísmo, no qual o que se mostra como decisivo é a
possibilidade de deslocar-se da posição de idiota e de objeto de danos físicos. É neste
deslocamento que situamos a virada na relação com o gozo que Schreber realiza.
No “Seminário das Psicoses”, Lacan (1955-6) reconhece em Schreber diferentes
etapas de reconstrução em direção a uma atitude de consentimento progressivo, através da
qual este vai admitir, pouco a pouco, que a única forma de sair da situação em que se
encontra é a de aceitar a transformação em mulher. Com esta concepção do delírio como
uma atitude de consentimento progressivo, Lacan nos revela o caráter processual da
construção delirante de Schreber que pode, assim, ser entendida como uma sucessão de
diferentes posições frente ao gozo.
No princípio, predominavam as experiências de mal estar, inquietude, perplexidade,
fortemente relacionadas com os transtornos hipocondríacos, cuja principal característica é a
concentração do gozo no corpo. Diante desta situação inicial, Schreber teria feito uma
primeira tentativa para reduzir estas experiências de angústia extrema com a qual não tem
120
muito êxito, pois fica exposto às iniciativas de um perseguidor onipotente, seu médico
Flechsig. Ele mesmo escreve que não lhe ocorreu imediatamente que o próprio Deus
participava do plano para que ele fosse colocado na posição de uma mulher, sendo
justamente isto o que fará toda diferença.
Esta elaboração posterior é fundamental para que a exigência abominável de ser uma
mulher se torne um compromisso razoável, que estaria de acordo com os desígnios
divinos. Neste segundo tempo, através do trabalho significante, Schreber construirá uma
explicação própria mais suportável para as experiências de excesso que o assolavam.
A emasculação é o centro do delírio de Schreber. Inicialmente ela se apresenta apenas
esboçada, seja na fantasia de ser uma mulher no ato da cópula que precede sua primeira
crise ou, posteriormente, quando ela imputa a seu médico e a série de perseguidores a
ameaça de fazê-lo sofrer abusos sexuais.
Num segundo tempo, consolida-se a idéia de que lhe é exigido tornar-se mulher, o
que constitui, para Schreber, um objeto de horror a princípio. nesta fase é produzido um
deslocamento importante, pois não se trata mais de ter o corpo, assaltado pelos mais
variados danos à integridade física, nem objeto de abusos sexuais, mas sim de ter um corpo
de mulher.
A idéia de ter um corpo feminino ganhará um significado positivo num terceiro
tempo, tornando-se um compromisso razoável, passível de ser aceito por Schreber, que
serve aos propósitos divinos de uma redenção futura que interessará a toda a humanidade.
A partir da distinção destas diferentes fases no delírio de Schreber e apoiando-se no
esquema I, no qual Lacan, em 1957-8a, expõe o campo da realidade que - neste caso é
decorrente da foraclusão do significante do Nome do Pai -, Recalcati (2003) divide esta
construção delirante em quatro períodos: P0, P1, P2 e P3.
O primeiro período, P0, corresponde aos efeitos de perplexidade angustiada
decorrentes da ausência de um princípio regulador da realidade e do corpo. O segundo
período, P1, diz respeito à tentativa de significantização do gozo do Outro, iniciada por
Schreber, a partir da série de perseguidores com os quais estabelece uma relação de
agressão-erótica. o terceiro período, P2, consiste na identificação do gozo do Outro,
representado pelo próprio Deus, ao qual é imputada a exigência de que Schreber se torne
uma mulher. Por fim, no último período, P3, o que ocorre é o consentimento com o gozo do
121
Outro, quando Schreber faz daquela exigência divina a sua própria bandeira na forma do
culto à feminilidade.
Temos, assim, antes da formalização final do delírio, P3, um sujeito imerso num gozo
que ainda não pôde localizar nos marcos do culto da feminilidade e na sua relação com
Deus. Quando esta localização é feita, o que era experimentado como não tendo limites se
converte num gozo reservado aos momentos de solidão. Schreber descreve estes momentos
como sendo aqueles em que fica sozinho frente ao espelho, contemplando sua imagem
feminina e concentrando-se em não deixar de pensar em algo feminino.
Como se vê, Schreber consegue seguir com êxito, tratando o gozo pela via do
significante que, ainda que não seja o falo, passa a desempenhar algumas de suas funções,
como o fim de elaborar uma solução delirante. Podemos reler, assim, a afirmação de Lacan
(1957-8a, p. 572) de que na impossibilidade de ser o falo que falta a mãe, resta a Schreber
ser a mulher que falta a Deus.
Soler (2002), em sua leitura, vai propor que Schreber constrói uma ficção que o leva a
um ponto de estabilização, na forma de uma versão do casal original diferente da versão
edipiana. Na versão de Schreber, o gozo excessivo encontra um sentido e uma legitimação
na fantasia de procriação de uma humanidade futura. Desta maneira, Schreber inventaria e
se dedicaria a sustentar uma ordem do mundo curativa das desordens do gozo, cujos efeitos
ele sofreu.
André (1986) também irá reconhecer o delírio de Schreber como comportando uma
luta entre as posições de ser o objeto de Deus ou existir enquanto sujeito nesta relação. O
ponto chave da argumentação deste autor é o de que neste caso o delírio ganha o valor de
um escrito no qual é possível reconhecer uma modalidade de ordenação do gozo, pela via
da construção de uma sintaxe e do endereçamento a possíveis leitores. Neste caso, o delírio,
enquanto escrita, constitui o instrumento inventado para localizar o gozo maciço,
permitindo a Schreber não ser reduzido a puro objeto do gozo divino.
A redação das “Memórias” (1995) acompanha e sustenta a construção do delírio. O
recurso à escrita inicia-se após o período que posteriormente Schreber irá descrever como a
morte do sujeito. A coincidência entre o início da elaboração das “Memórias” e a retomada
do investimento no mundo nos é relatada pelo próprio Schreber:
122
“Ao querer tentar dar ainda neste capítulo outros pormenores relativos à
época que pouco chamei de meu período sagrado, estou bem ciente das
dificuldades que se me antepõem [...] remeto-me exclusivamente à
memória, uma vez que naquele período eu não estava em condições de
fazer qualquer anotação [...] - eu acreditava que a humanidade inteira
tinha desaparecido, não havendo, portanto, nenhum sentido visível em
fazer anotações escritas” (SCHREBER, 1995, p. 74).
É deste modo que Schreber, na sua reconstrução do mundo, empenha-se num trabalho
árduo da escrita do que virão a ser as “Memórias de um doente de Nervos”. Um trabalho
que tem início em 1896, com notas em pedaços de papel, ganhando o formato de relatos
num diário em 1897, para tornar-se, posteriormente, um conjunto de rascunhos para as
futuras Memórias, reunidos dentro de um caderno e intitulados “Minha Vida”. Em seguida,
ao conteúdo deste caderno serão acrescentados pequenos estudos, elaborados à parte, aos
quais, mais adiante, virão somar-se os complementos, redigidos entre 1901 e 1902
(SCHREBER, 1995, p. 74).
Este trabalho, elaborado minuciosamente ao longo de todos estes anos, tem para
Schreber um papel capital na sua luta para não se reduzir à posição de objeto do gozo
divino. A escrita torna-se, para ele, um instrumento do qual ele pode se valer perante aos
fenômenos alucinatórios que se impõem de forma invasiva, como demonstra parte da
argumentação por ele sustentada para reaver seus direitos civis: “... diante da expressão
escrita do pensamento todos os milagres se revelam impotentes [...] e as tentativas de
distrair meu pensamento são facilmente superáveis quando posso me expressar por
escrito” (SCHREBER, 1995, p. 312).
Neste sentido, ao longo da elaboração das “Memórias”, as alucinações, por muitas
vezes são reduzidas a meros chiados, visto que Schreber, ao ocupar a posição do narrador
de experiências muito particulares, promove o encadeamento significante do que se
encontrava na forma de alucinação:
“As conversas das vozes mudam continuamente e até mesmo nesse período
relativamente curto em que me ocupo da realização desse trabalho, elas
sofreram diversas modificações. não se ouvem muitas das expressões
que antigamente eram habituais [...] de modo que o falar das vozes, em
grande parte, pode ser definido como um simples zumbido na minha
cabeça...” (SCHREBER, 1995, p. 210-11).
123
A escrita do delírio funciona, assim, como um recurso para a localização do gozo, no
entanto, cabe destacar o quanto a precariedade deste recurso ficará à mostra na ausência de
alguém que verdadeiramente acolha o seu endereçamento, como aspira Schreber em sua
carta aberta à Fleschsig (SCHREBER, 1995, p. 27). André (1986) irá propor que esta
ausência de reconhecimento de alguma verdade no escrito concluído interrompe o
processo de substituição das letras da alucinação pelo encadeamento significante, posto em
marcha durante a elaboração das Memórias”, o que, somado a uma constelação de acasos,
resultou numa nova crise seguida por uma internação até o final de seus dias.
Certamente é possível fazer alguma relação entre esta nova crise, a conclusão do livro
e o desfecho do processo para reaver seus direitos civis, visto que com ambos Schreber
ocupava o lugar de narrador de suas experiências, não se reduzindo à posição de objeto. E
devemos retomar estes eventos biográficos a partir do que, neles, é estrutural. Por
estrutural, aqui entendemos o que é próprio das psicoses, a tendência a se identificar com o
lugar de objeto na relação com o Outro. E esta tendência, como nos ensina Schreber, tem
como conseqüência colocar o sujeito às voltas com a invenção de estratégias para produzir
algum distanciamento desta posição de objeto.
Nesta virada que se opera na relação de Schreber com o gozo, que é destacada por
diferentes psicanalistas, o corpo tem um lugar central, como examinaremos a seguir. Num
primeiro momento, nos deparamos como um corpo morto, dilacerado, em putrefação,
cadáver. Em seguida, o que se coloca é um corpo sob a ameaça de abusos sexuais dos
perseguidores. E ao final da elaboração do delírio, o que se apresenta é um corpo em
processo de tornar-se um corpo da mulher de Deus, vindo a constituir um veículo para a
reconstrução da humanidade.
Corpo cadáver
“Desde os primórdios da minha ligação com Deus até o dia de hoje, meu
corpo vem sendo ininterruptamente objeto de milagres divinos. Se eu
quisesse descrever em minúcias todos esses milagres, poderia encher um
livro inteiro. Posso afirmar que não há um único membro ou órgão do meu
corpo que não tenha sido durante um tempo prejudicado por milagres...”
(SCHREBER, 1995, p.127).
124
“... quero recordar ainda apenas o esôfago e os intestinos, que muitas
vezes foram dilacerados ou desapareceram, a laringe, que mais de uma vez
degluti junto com o alimento [...]Além desses, devo ainda mencionar um
outro milagre que atingia todo o baixo ventre, a chamada putrefação do
baixo ventre [...] tanto que mais de uma vez acreditei estar apodrecendo
vivo, e o odor da podridão emanava de minha boca do modo mais
repugnante” (idem, p.130).
No caso Schreber, o corpo e o que se passa nele são assinalados tanto nos momentos
de dilaceramento de que testemunha o sujeito, como naqueles que merecem ser
qualificados como de invenção do corpo.
Schreber dedica pelo menos três capítulos de suas “Memórias” (1995) ao relato de
suas experiências corporais, sendo que o que chama atenção é que elas se dividem em dois
grupos diferentes. O primeiro grupo é composto pelos danos físicos causados pelos
milagres de Deus e pela ameaça de abusos sexuais por parte de seus perseguidores, no
período em que Schreber ainda não havia se reconciliado com as injunções divinas. o
segundo grupo engloba as sensações no corpo na forma de volúpia provocadas pelos raios
divinos, o que se em conformidade com a Ordem do Mundo e com o processo de
emasculação.
No início da construção do seu delírio Schreber descreve um corpo invadido por um
gozo intrusivo e anômalo que chega até a perturbar suas funções vitais como a alimentação
e a excreção. Crises de hipocondria, manifestações delirantes não sistematizadas e
tentativas de suicídio marcam este momento. Nesta época, o corpo e o sujeito como um
todo se tornam objetos dos mais variados prejuízos, todos eles relatados no capítulo
intitulado “Danos à integridade física por meio dos Milagres” (SCHREBER, 1995, p. 127-
36).
Estes danos ao corpo ocorrem no período em que as exigências divinas são tomadas
por Schreber como contrárias à Ordem do Mundo e, portanto, como inadimísseis e que
antecedem o trabalho de escrita das “Memórias”. Neste período, todos os seus membros,
órgãos e músculos são passíveis de serem prejudicados das formas mais ameaçadoras,
fazendo-o temer quase continuamente por sua vida, sua saúde e seu entendimento e
considerar a possibilidade do suicídio.
Diversas partes de seu corpo são, assim, objeto de destruição, apodrecimento,
125
desaparecimento, diminuição, amolecimento, dilaceração, dissolução, transplante,
devastação, extração, pulverização, despedaçamento, paralisação e corrosão. Além disso,
Schreber relata um momento de forte excitação sexual, na forma de poluções noturnas em
que parte do seu corpo se autonomiza. Todos estes fenômenos retratam muito bem a
ausência em Schreber de um princípio regulador do gozo, e que, portando, ordene seu
corpo.
Conforme desenvolvemos anteriormente, nestes sintomas hipocondríacos, o que está
em jogo é a precariedade do revestimento narcísico do corpo. Vimos que a imagem
corporal com a qual o sujeito se identifica tem, para ele, valor de vida a partir do
aparelhamento libidinal, sendo que se ela não se constitui, se farão presentes estes
fenômenos de morte e de destruição do corpo.
Soma-se a estes sintomas no corpo, um momento em que Schreber lê no jornal a
notícia de sua própria morte e uma ocasião em que se sente compelido a dizer em voz alta
que é o primeiro cadáver leproso que conduzia outro cadáver leproso.
Temos, aqui, uma descrição brilhantíssima de uma identidade reduzida ao confronto
com seu duplo psíquico e que deixa patente a relação com o outro especular reduzido a seu
gume mortífero. Lacan (1955, p.348) trata deste caráter mortal a que pode ficar reduzida a
imagem: Somente ao homem essa imagem revela o seu caráter mortal [...] essa imagem
lhe é dada como imagem do outro, ou seja, lhe é arrebatada. Assim o Eu nunca é senão
metade do sujeito; e é ainda aquela que ele perde ao encontrá-la”.
E a respeito destas vivências de morte de Schreber, ele chama a atenção para a
coincidência temporal entre o relato destas e o registro médico de sintomas catatônicos.
Assim, o que Schreber experimentou através das alucinações auditivas que lhe informaram
de que ele havia morrido, dando-lhe a data e a localização de sua morte na coluna
necrológica, é confirmado pelos atestados médicos da época.
Esta dimensão mortífera da captação narcísica é ainda indicada quando Schreber
revela que o seu corpo constituía um agregado de colônias de nervos estrangeiros, uma
espécie de depósito de fragmentos soltos das identidades de seus perseguidores. Temos,
aqui, explicitada a dimensão do corpo despedaçado, cujos fragmentos não foram revestidos
pela imagem narcísica que viria conferir ao real do corpo uma forma positiva. Assim, ao
126
invés de ser experimentado como uma unidade pelo sujeito, este se colocará como um
vazio, uma dispersão, algo não vivo, como é o caso.
No que concerne à relação do falante com seu corpo, Lacan (1975-6) diz que a
consistência corporal decorre do próprio pensamento que torna o corpo uma unidade
narcísica. É na medida em que o falante crê que tem um corpo e o adora, o erotizando, que
este subsiste, enquanto sua única consistência.
Sabemos que esta crença do falante é fundamental, mesmo que o corpo seja para ele
uma apreensão bastante precária, marcado pela decadência e pela finitude como bem afirma
Freud (1930) ao definir o corpo como uma das fontes de mal estar.
Com a crença de que tem um corpo, objeto de seu amor e cuidados, o ser humano de
alguma forma vela este caráter inexorável da consumição do corpo. Nesta perspectiva, o
que se verifica, neste momento, em Schreber, são os efeitos da ausência do que promoveria
a sustentação do corpo enquanto uma consistência narcísica. Em decorrência disto, não
será, possível para ele, ter a experiência de possuir um corpo vivo, que não se constitui
um aparelhamento da libido em seu corpo, tornando-o erotizado. Pelo contrário, ele i
testemunhar, em diversas ocasiões, situações de morte e apodrecimento do corpo, assim
como quando partes deste lhe escapam, seja a laringe juntamente com a deglutição de
alimentos ou os pulmões que ele tenta recuperar após cada caminhada que realiza.
No capítulo 3 (cf p. 85), o estudo da síndrome de Cotard nos permitiu fazer uma
análise mais aprofundada dos sintomas hipocondríacos elevados a esta situação extrema de
morte do sujeito que também encontramos em Schreber. Nesta análise, o que nos foi
apontado como o caráter estrutural destes sintomas foi a não operatividade dos orifícios do
corpo enquanto zonas de circulação da pulsão. Esta impossibilidade do circuito pulsional se
instalar nas partes periféricas do corpo corresponde à estase da libido no corpo, o que pode
desde perturbar as funções vitais até tomar a forma da experiência de morte do sujeito, o
que se coloca tão pungentemente para Schreber.
É neste sentido que estas experiências serão traduzidas em termos da regressão tópica
ao estádio do espelho, que um excesso de excitação no corpo-próprio, um
superinvestimento. Em outros termos, o gozo todo no corpo de forma desregulada resulta
em sensações hipocondríacas e mortificadoras que Schreber apresenta em profusão.
Relacionadas a estes transtornos hipocondríacos, apresentam-se as experiências de
127
mal estar, inquietude e perplexidade que correspondem aos efeitos de ausência de um
princípio regulador da realidade. Assim, como contraponto das experiências de não
operatividade da imagem corporal, ocorrerá uma deslibidinização da imagem dos outros em
que é a própria realidade que se encontra desinvestida.
Novamente aqui é possível fazer um paralelo com a síndrome de Cotard, quando
Schreber relata um período em que teria tido visões concernentes ao fim do mundo,
chegando a crer ser o único homem vivo em meio a sombras. Observamos precisamente
nas psicoses esta deslibidinização da imagem dos outros, o que nos indica que a
consistência do mundo, das pessoas e dos objetos decorre da constituição da imagem
corporal.
Vimos que é o registro imaginário o que dá consistência ao corpo e aos objetos, sendo
que na experiência de fim de mundo é justamente a ausência da função unificadora da
imagem que vai se colocar.
Descrito este período inicial em que Schreber sofre os efeitos da deslocalização do
gozo, sobretudo, em seu próprio corpo, podemos entender, porque, mesmo paralelamente
aos sintomas paranóicos, é proposto o diagnóstico de demência paranóide neste caso.
Diante de todos estes efeitos de desagregação e mortificação, tanto no corpo como na
realidade, Schreber fará uma primeira tentativa de significantizar o gozo deslocalizado
através de relações especulares. E seu médico, Flechsig, terá um lugar de destaque em meio
aos duplos especulares deste período. Schreber atribui aos antepassados de Flechsig o
desequilíbrio causado na ordem do mundo que coordenava o universo. Estes teriam
provocado um desequilíbrio tamanho que deixaram sob ameaça a integridade do próprio
Deus que em decorrência disso precisou estabelecer uma ligação direta com Schreber.
Supomos, aqui, já no início da construção delirante de Schreber, uma semelhança com
a estrutura do delírio de Aimée que examinamos no capítulo 3 (cf p. 70). Na crença
delirante desta paranóica, é revelado um apego à consistência ideal da ppria identidade,
sendo que tudo o que escapa a este ideal será reportado à sucessão de perseguidores para os
quais ela irá dirigir sua agressividade. De modo similar, no início de seu delírio, Schreber
não reconhece a manifestação do próprio ser na desordem do mundo e irá atribuí-la a seus
perseguidores, sendo tomado pela lei do coração e pelo delírio de presunção, tal como
Lacan (1946) define Aimée a partir de Hegel.
128
Neste período, o que irá se consolidar como idéia principal dos perigos que rondam
Schreber é ter seu corpo submetido a abusos sexuais. Neste sentido, ele seria “deixado
largado”, sendo que por diversas vezes reagirá a esta ameaça com atos violentos, na
tentativa de sustentar uma posição masculina. Neste momento, tomar uma posição feminina
entra em conflito com seu orgulho viril, o que ele sustentará a duras penas, lançando mão
de toda uma série de esforços ao nível de identificações imaginárias.
A este respeito, Lacan (1955-6) esclarece que a ausência do recurso edípico fará com
que Schreber busque compensações em uma série de identificações conformistas, na forma
de muletas imaginárias através das quais visa tomar de empréstimo de um outro especular
algum aspecto viril.
Deste modo, neste início da sistematização delirante, Schreber se encontra exposto às
identificações narcísicas e a toda sorte de relações de rivalidade, agressividade e temor. Seu
médico encabeça uma série de perseguidores que ameaçam fazê-lo sofrer abusos sexuais e
contra os quais reage com violência, estando totalmente a mercê de uma relação de
agressão-erótica.
Vimos que a agressividade na psicose não se reduz a atos de violência, mas pode se
atualizar a partir de situações em que o sujeito se sente sob a ameaça moral ou física, o que
vem a caracterizar este momento inicial em que Schreber tem seu corpo submetido aos
mais variados riscos e vive a experiência de poder sofrer diversos abusos, inclusive sexuais.
Assim, da mesma forma que em Aimeé, também poderemos observar neste primeiro
tempo da sistematização delirante de Schreber uma verdadeira captação pela imagem do
outro, o que, na ausência da função apaziguadora do Ideal do eu, torna manifesta a
dimensão de agressividade constitutiva de todo sujeito.
Desta forma, o recurso às identificações narcísicas se revela precário para localizar o
gozo e reduzir a angústia, pois, como vimos, deixa Schreber exposto às iniciativas de
perseguidores onipotentes. No entanto, será em torno da ameaça de sofrer abusos sexuais
que começa a ser elaborado o delírio de ser a mulher de Deus.
Retomemos os principais elementos que compõem este delírio. Partiremos da
definição da ordem do universo. O ser humano tem um corpo e uma alma. A alma situa-se
nos nervos; quanto a Deus, é constituído tão somente de nervos, uma quantidade infinita de
nervos que são chamados de raios e estão na origem da criação. Deus, portanto, é todo alma
129
e se constitui em duas unidades: um Deus inferior (Ariman) e um Deus superior (Ormuzd).
Cabe esclarecer que, uma vez concluída sua obra de crianção do universo, Deus
retirou-se para uma distância imensa, abandonando o mundo a suas próprias leis, limitando-
se a atrair para si os nervos defuntos, correspondentes à parte espiritual do homem. Além
disso, Ele intervinha na história do universo, através dos sonhos das pessoas adormecidas,
ou para inspirar os grandes homens e os poetas. Todas as intervenções de Deus, boas ou
más, são chamadas de ‘milagres’.
No entanto, este equilíbrio que constituía a lei que coordenava o universo irá
apresentar uma falha. Seriam os antepassados do médico de Schreber, Flechsig, os
causadores do desequilíbrio nesta ordem, ameaçando a integridade do próprio Deus que
precisou estabelecer uma ligação direta com Schreber.
Esta ligação coloca um homem comum numa posição desconfortável, em que lhe são
exigidos esforços inusitados para garantir a sua própria integridade. A partir deste
desequilíbrio na ordem do universo é estabelecida uma ligação inédita entre um Deus que
entende de cadáveres e um homem vivo. Um homem que, por se encontrar num estado
de grande excitação nervosa, teria exercido uma atração irresistível sobre Deus, de modo
que a própria existência de Deus ficava comprometida.
Então, ameaçado em sua integridade, Deus fomenta um complô contra Schreber,
visando sua aniquilação física ou a sua destruição mental. Assim, temos Deus dedicando-se
a infligir a nosso homem as provações mais desumanas, seja por ação direta, seja por
intermédio do professor Flechsig, seja, ainda, através de tudo o que cerca Schreber:
animais, objetos e outras coisas.
Desse momento em diante, tudo o que acontecer na vida dele será um ‘milagre’. Era
assim que estava Schreber por ocasião da segunda crise que começou com episódios de
insônia e com a fantasia de ser uma mulher submetendo-se ao coito, uma idéia tão indigna
que nunca teria lhe ocorrido sem uma intervenção externa.
Não esqueçamos que Deus é composto de nervos de defunto, o que fará com que
Schreber tenha em sua cabeça acumuladas as almas dos mortos, sob a forma de
homúnculos de alguns milímetros de altura que falam sem parar, não poupando este de sua
cacofonia monstruosa.
Todos os sofrimentos que o atingem m o objetivo de destruí-lo ou idiotizá-lo, para
130
que Deus possa se introduzir em sua cabeça e recuperar seus raios, impedindo assim que
Schreber se aproprie deles. Então, nenhuma parte de seu corpo é poupada.
Para escapar aos ‘milagres divinos’ que tendem para seu aniquilamento mental,
Schreber lançará mão de algumas estratégias. Por exemplo, ele vai adquirir o hábito, no
inverno, de enfiar os pés através das barras de uma janela e deixá-los sob a chuva gelada,
sendo que a dor produzida deste modo, torna os milagres impotentes para reduzir seu
espírito. Mas desconhecendo essas precauções, os dicos fecham as janelas. Em
decorrência disso, será exigido de Schreber, a princípio, submeter seu corpo e pensamento
aos raios divinos para, posteriormente, através do processo da emasculação tornar-se a
mulher de Deus e dar origem a uma nova raça de homens.
Neste resumo dos principais componentes do delírio Schreber, vemos que o
testemunho que ele nos lega está longe de se esgotar nas experiências de decomposição
hipocondríaca do corpo e de mortificação real do sujeito. Soma-se a isso, todo o processo
de elaboração do delírio de ser a mulher de Deus, o que produz um deslocamento
considerável no lugar de objeto de danos físicos e de ameaças sexuais que o corpo de
Schreber ocupava anteriormente.
Deste modo, podemos notar que ao longo da sistematização do delírio, estas
experiências relatadas detalhadamente nos primeiros capítulos das “Memórias”, vão ceder
espaço para a descrição da construção de um corpo de mulher, com efeitos de
reposicionamento tanto para Schreber como para Deus.
Seguindo este raciocínio, iremos propor que neste caso a ausência de um princípio
regulador de gozo que forneceria um revestimento narcísico para o corpo de Schreber dará
lugar para uma suplência na forma da invenção de um corpo de mulher para um pai, como
iremos desenvolver a seguir.
131
Emasculação: invenção de um corpo de mulher
...vemos nosso sujeito entregar-se a uma atividade erótica que ele ressalta
ser estritamente reservada à solidão, mas cujas satisfações ele confessa.
Quais sejam, as que lhe são dadas por sua imagem no espelho, quando,
revestido com as bugigangas da ornamentação feminina, nada, diz ele, na
parte superior de seu corpo, lhe parece ser de feitio a não poder convencer
qualquer amante eventual do busto feminino. Ao que convém ligar, cremos
nós, o desenvolvimento, alegado com percepção endossomática, dos
chamados nervos da volúpia feminina em seu próprio tegumento,
nomeadamente nas zonas onde se supõe que eles sejam erógenos na
mulher [...] ocupando-se incessantemente da contemplação da imagem da
mulher, jamais desligando seu pensamento do suporte de algo feminino,
a volúpia divina é ainda mais satisfeita”
(LACAN, 1957-8a, p.575).
24
Neste trecho que Lacan reproduz das “Memórias”, é a relação que Schreber
estabelece com Deus e com seu próprio corpo que ganha destaque, porque esta se mostra
totalmente distinta do que vinha sendo relatado por ele anteriormente.
Temos, aqui, não mais um sujeito imerso num gozo deslocalizado que se apodera de
todo o seu corpo ou ainda a mercê dos abusos de seus perseguidores. Pelo contrário,
Schreber nos fornece nesta época uma descrição de um gozo reservado aos momentos de
solidão, quando fica sozinho diante do espelho, contemplando sua imagem feminina e
concentrando-se em não deixar de pensar em algo feminino. Ele irá denominar este gozo
de volúpia, uma forma de satisfação relacionada ao sexo feminino.
Esta forma de gozo chamada volúpia se caracteriza por se concentrar nas zonas
supostamente erógenas na mulher, ou seja, localizar-se em partes do corpo,
e por estar
limitada no tempo, reservando-se aos momentos de solidão. Entendemos que esta
circunscrição do gozo em zonas do corpo, assim como sua delimitação temporal, são
efeitos do trabalho significante operado pelo delírio de Schreber.
A volúpia seria, assim, promovida pela articulação do gozo com o significante e
corresponde a um processo de invenção de um corpo. O próprio Schreber relata o quanto o
funcionamento do seu corpo está agora regido por este processo que ele irá chamar de
emasculação. Ele define a emasculação como um dever seu de submeter corpo e
pensamento aos raios divinos como o fim de tornar-se a mulher de Deus e dar origem a
uma nova raça de homens, sendo a volúpia a parte de gozo que lhe cabe deste latifúndio.
24
Grifos nossos.
132
Como consequência desta localização do gozo, o corpo que ele mesmo viu como
morto e a que se referiu como um cadáver leproso, ganha o lugar de um instrumento onde
se darão as transformações necessárias para reinstaurar o equilíbrio do mundo. É dentro
desta nova gica delirante que Schreber irá ter experiências de satisfação, cujo sentido
seria promover algum tipo de ressarcimento pelos danos sofridos.
Para obter esta quota de satisfação, ele deverá se dedicar a uma atividade erótica, nas
palavras de Lacan (1955-6, p. 575), que se trata de uma erotização do corpo, que tem
duas condições como necessárias: a contemplação da imagem feminina no espelho e o
pensamento ligado ao suporte de algo feminino. Esta referência a um gozo localizado que
tem como suporte a relação entre pensamento e imagem nos chamou a atenção, na medida
em que é justamente assim que Lacan (1975-6) irá definir o corpo de todo o falante.
Em diversos momentos do seu ensino, Lacan aborda está articulação fundamental
entre pensamento e imagem na constituição do corpo. Para ele, a consistência corporal
decorre do próprio pensamento que torna o corpo uma unidade narcísica. O corpo
subsiste como uma consistência para o falante, porque este crê que tem um corpo para
adorar, o erotizando. Não seria justamente disto que Schreber nos o testemunho nesta
passagem que citamos na epígrafe acima (cf p. 132)?
Retornemos a esta epígrafe. Schreber nos fala que para que a volúpia tenha lugar é
preciso não desligar jamais o pensamento do suporte de algo feminino para assim poder
contemplar e, por que não dizer adorar, a imagem de seu corpo - um corpo feminino
refletido no espelho. E iinsistir que a consistência desta imagem se coloca de tal forma
que nenhum amante
poderia deixar de se convencer do feitio de um corpo de mulher.
Vemos, aqui, uma descrição do modo inédito através do qual Schreber pode
experimentar ter um corpo, enquanto uma consistência produzida pela articulação entre
uma imagem feminina e o pensamento em algo feminino.
Nos esquemas óticos que trabalhamos no capítulo 2, Lacan (1953-4) expõe os
elementos necessários para a constituição do corpo. É precisamente através do reflexo de
uma imagem no espelho que ele irá apresentar como uma forma positiva e consistente se
sobrepõe à dispersão e à fragmentação originária do corpo. Pensamos que é exatamente
desta experiência que Schreber se aproxima quando contempla o reflexo de um corpo de
133
mulher no espelho e não mais um amontoado de nervos, nem mesmo um corpo cujas partes
estão sob constantes ameaças.
Miller (2003) afirma que os fenômenos da volúpia de alma indicariam um
investimento numa nova imagem corporal. Para sustentar esta afirmação, ele retoma o
trecho das “Memórias” em que estaria descrito um corpo regulado perfeitamente de
maneira significante, através das marcas de feminilidade que fluem e refluem sobre o corpo
de Schreber:
“Devo ainda acrescentar, com relação às marcas de feminilidade que se
apresentam no meu corpo, que ocorre uma certa periodicidade, e,
recentemente, a intervalos cada vez mais breves. Tudo o que é feminino
exerce uma atração sobre os nervos de deus; por isso, toda vez que se quer
retrair de mim, tenta-se recuar, por meio dos milagres, os sintomas de
feminilidade presentes no meu corpo; a conseqüência disso é que a
estrutura que denominei ‘nervos de volúpia’ é empurrada para dentro, não
ficando, portanto, mais perceptível na superfície da pele e meu busto se
achata, etc. Por isso, quando, depois de pouco tempo, se tem necessidade
de se aproximar de novo, aparecem novamente os ‘nervos de volúpia’
(para conservar a expressão) e meu busto fica abaulado de novo etc. Essa
periodicidade, na maioria das vezes, ocorre com o transcurso de poucos
minutos” (SCHREBER, 1985, p. 216).
Com esta passagem, podemos fazer uma equivalência entre o vaivém periódico das
marcas de feminilidade sobre o corpo de Schreber e o deslocamento da libido pelas partes
do corpo. Vimos que a pulsão incide nas partes periféricas do corpo do falante para vir, em
seu trajeto, percorrer as partes periféricas do corpo e constituí-los enquanto zonas erógenas.
É a partir desta montagem do circuito pulsional que é conferido ao corpo um contorno, não
apenas no sentido de um limite, mas também de torná-lo animado pela libido e, portanto,
um corpo vivo.
Pensamos que Schreber experimenta algo muito próximo disso, a partir da inscrição
periódica das marcas da feminilidade ou nervos de volúpia em seu corpo e do inchaço e
desinchaço dos seios, o que ele insiste em dizer que se faz cada vez mais em intervalos
menores.
Miller (2003) chama a atenção que o movimento regulado do inchaço e desinchaço
alternativo dos seios traduziria a junção e disjunção do Schreber com o Outro divino.
Neste sentido, mesmo que Schreber faça referência a uma exigência por parte do
Deus de um estado contínuo de gozo, isto não se sustenta senão como uma tendência. Esta
134
tendência à continuidade é amenizada pela alternância periódica que é a lei da própria
libido. Nas palavras do próprio Schreber: “A volúpia de alma nem sempre está presente em
toda plenitude, mas de tempos em tempos diminui, em parte porque Deus empreende ações
de retirada, em parte porque nem sempre eu posso me dedicar ao cultivo da volúpia”
(SCHREBER, 1995 p. 219).
Como mencionamos, Lacan (1955-6) reconhece em Schreber diferentes etapas de
reconstrução em direção a uma atitude de consentimento progressivo em relação a sua
transformação em mulher. Diz ele que o centro deste processo é a conversão do corpo em
suporte de imagens de identificação feminina, a partir das quais Schreber reconstitui seu
mundo no plano imaginário. A nosso ver, deste modo ele nos fornece uma perfeita
definição do processo de invenção de um corpo que se trata neste caso. Nas palavras de
Lacan:
Seu corpo é, assim, progressivamente, invadido por imagens de
identificação feminina, às quais ele abre a porta, deixa apoderar-se, faz-se
possuir por elas, remodelar [...] E é partir desse momento que ele
reconhece que o mundo não parece aparentemente ter mudado a tal ponto
desde o início e sai da crise” (LACAN,1955-6, p.290).
A medida que seu mundo se reconstrói no plano imaginário [...] a palavra
desse Deus interior com qual ele tem esta singular relação que é uma
imagem da copulação [...] entra no universo do repisamento, da
banalidade repetida, do sentido vazio [...] Há aí um deslocamento na
relação do sujeito com a palavra falada” (Ibidem).
Vemos nas citações acima que além dos efeitos do trabalho significante na relação de
Schreber com seu corpo, Lacan reconhecerá também a ocorrência de um deslocamento na
relação de Schreber com Deus. Assim, o recurso significante que é aqui o delírio promove
alterações tanto ao nível do corpo, assim como com relação ao lugar que Deus ocupava
para ele.
Se podemos entender que o Deus de Schreber é, ao final do delírio, um veículo para a
reconstrução da humanidade, não é difícil perceber o deslocamento que Lacan nos indica.
Neste momento, a relação de Schreber com Deus é reduzida à copulação para dar origem a
uma nova raça de homens, o que ele define como uma operação espiritual que iocorrer
num futuro indeterminado. Será somente quando Schreber houver terminado sua
transformação em mulher que ocorrerá esse ato da fecundação divina.
135
Com efeito, o fato da emasculação ter se tornado um ideal a ser atingido promove
uma virada essencial, pois situa a copulação com Deus num adiamento indefinido. Em
decorrência disso, o lugar que Deus ocupava até então sofre uma espécie de esvaziamento e
o próprio Schreber se reposiciona frente a isto que se coloca como identificação ideal.
Ser a mulher de Deus situa-se assim como uma identificação ideal, uma espécie de
referência simbólica, o que tem para Schreber efeitos de apaziguamento e mediação.
Neste sentido, Schreber atribui o enfraquecimento do antagonismo hostil de Deus ao
aumento da volúpia no seu corpo, o que define como um bem estar de nervos, de resto
condenados à extinção. Para ele, as sensações de volúpia funcionam, assim, como uma
alternativa a ter o corpo deixado largado e o entendimento destruído, o que torna a vida o
mais agradável possível, dentro das necessidades impostas pela atração divina.
A Ordem do mundo, como instrumento de regulação do gozo divino, tem aqui um
papel fundamental. Ela tem um valor normativo, mediando as exigências até então
insuportáveis que passam a fazer parte do reino do que é possível e se tornam uma via de
solução para o que se apresentava como um conflito incontornável. Todas estas
formulações são expostas nas “Memórias”:
“... uma emasculação para um outro fim em conformidade com a
Ordem do Mundo é algo que está no reino da possibilidade, e talvez
contenha a provável solução do conflito” (SCHREBER, 1995 p. 70).
“a medida que a Ordem do Mundo, portanto algo impessoal, é indicada
como superior a Deus, ou algo mais poderoso que Deus, ou ainda um
valor normativo para o próprio Deus” (Ibidem).
Desse modo, torna-se possível uma conciliação entre as exigências divinas que são
para Schreber um dever e a razão de seu próprio bem estar sensorial, através da obtenção de
um prazer sensual e de uma condição física suportável. Esta conciliação é definida em
termos de uma arte de viver, a partir da qual Schreber adota um caminho intermediário e
adequado para as duas partes envolvidas.
Vemos, assim, que ao longo da elaboração das “Memórias”, algo passa a mediar a
intenção abusiva de Deus que não mais ataca o corpo de Schreber com milagres, o que
permite uma reconciliação deste com as exigências divinas. Esta reconciliação será
condicionada pela significação da mulher de Deus e com ela os fenômenos no corpo
ganham um outro valor, bastante distinto do sentido abusivo que tinham inicialmente.
136
É tomando como base este novo significado que ganha o empuxo-a-mulher que se
coloca para Schreber desde a fantasia de como seria belo ser uma mulher no ato de cópula,
o que definimos este caso como um processo invenção de um corpo de mulher para um pai.
O corpo que Schreber crê ter e se dedica a adorar está referido totalmente ao Deus de
seu delírio que é o suporte simbólico para a localização do gozo e encarna a função paterna
neste caso. Mesmo nos anos 50, Lacan reconhece em Schreber a função do pai, ainda que
esta se coloque de forma inédita, tendo efeitos de sustentação da realidade para o sujeito, ao
que acrescentaríamos os de ordenação do seu corpo:
Após o encontro, a colisão, com o significante inassimilável, trata-se de
reconstituí-lo, já que esse pai não pode ser um pai bem simples, um pai
redondinho, o anel de ainda há pouco, o pai que é pai para todo mundo. E
o presidente Schreber o reconstitui com efeito” (LACAN,1955-6, p.360).
O Deus de Schreber que não poderia ser um pai bem simples, um pai redondinho, um
pai que é pai para todo mundo, tem como característica não saber nada dos vivos e lidar
com cadáveres, cabendo a Schreber ser este veículo de ligação com o vivo a partir da
manutenção de uma conexão quase ininterrupta com Deus.
Deste modo, Schreber, por não dispor do recurso edípico e de seus efeitos de
separação, lança mão da metáfora delirante, em que Deus funciona como um corpo
simbólico que ele mesmo tem que sustentar, com a submissão do próprio corpo e do
pensamento à atração dos raios divinos. E esta ligação com Deus parece ter restabelecido o
próprio élan vital, o elo libidinal que ao mundo seu estatuto de existência, como nos diz
Freud: “E o paranóico constrói-o de novo, não mais esplêndido, é verdade, mas pelo menos
de maneira a poder viver nele mais uma vez. Constrói-o com o trabalho de seu delírio [...]
uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução(FREUD, 1911, p. 94).
Examinamos até aqui os principais elementos que vão compor a reconstituição do
mundo de Schreber o gozo transexualista chamado volúpia, a relação com Deus e o
processo de emasculação. Esta reconstituição do mundo de Schreber será representada por
Lacan (1957-8a) no esquema I que reproduzimos a seguir:
137
Lacan vai definir esta figura como a esquematização das respostas de Schreber a
diferentes etapas da dissolução imaginária por reestabelecer uma ordem de sujeito, ao que
poderíamos acrescentar um modo inédito de ordenação corporal.
Como vimos, é a estrutura significante do delírio de emasculação que irá garantir
alguma sustentação do campo da realidade e da própria imagem narcísica de Schreber,
representada neste esquema como a imagem da criatura.
O esquema I expõe a complexidade dos efeitos significantes produzidos para
responder à ausência de um princípio regulador da realidade e do corpo.
Dentre estes efeitos, Lacan destaca o gozo transexualista ou volúpia, mediante o qual
Schreber experimenta um esboço do processo de emasculação e que aparece neste esquema
no vértice correspondente ao eu ideal, representado em i. No capítulo 2, expusemos que o
eu ideal é o que promove o revestimento narcísico do corpo, a partir da ação estruturante da
imagem que impede que o corpo do sujeito fique reduzido a total dispersão, operação esta
que, conforme desenvolvemos anteriormente, é possível reconhecer em Schreber.
Para Soler (2002), na fase final de seu delírio, Schreber no espelho atesta um gozo
que pode ter conseguido se inscrever como feminino e passa a se ligar à imagem e à pulsão
escópica. Com isso se restabelece uma versão sexuada do gozo, que, embora não seja
edipiana, nem por isso é menos regulada.
138
Erotomania divina é uma das expressões usadas por Lacan (1957-8a) para situar esta
posição final de Schreber, na qual ele consente em ser a esposa de Deus, o que implica na
sua feminização, na feminização de sua imagem, de seus sentidos e de seus pensamentos.
Soler (2002) sustenta que esta erotomania tem a função de religar ao significante do
sexo o gozo que inicialmente retornou no real e sobre o corpo de Schreber. Para ela, a
regulação do gozo em Schreber se em torno de um roteiro transexual. Ela vai resgatar o
termo indenização, com que Schreber define estas experiências de ter um corpo com
imagem de mulher, para indicar que o efeito de moderação não é desprezível neste caso,
apontando para a instauração de uma função limite do gozo como direção clínica nas
psicoses.
Convém assinalar o restabelecimento correlato de sua relação com a realidade. Esta
volta a se tornar visível para ele, na medida da estabilização e da pacificação de sua relação
com o Outro.
Podemos assim deduzir, a partir do Esquema I, o quanto a articulação significante do
delírio da mulher de Deus permite que Schreber volte a se enganchar a sua imagem no
espelho e construa alguma estabilidade, mesmo que delirante.
Toda a argumentação que estamos desenvolvendo até agora tem nos levado nesta
direção; no entanto sabemos que uma imagem não faz corpo apenas com a articulação
significante que aqui se apresenta na forma delirante, sendo igualmente necessária uma
operação de perda de gozo. E em torno do que situamos com uma operação de subtração de
gozo dentro do discurso de Schreber nos centraremos a seguir.
Conforme desenvolvemos no capítulo 2, o sujeito cede um pouco de vida, de
substância, de ser, de gozo para obter sua inscrição simbólica e se tornar desejante. É neste
sentido que para o corpo se constituir, lhe será exigida a perda de uma “libra de carne”.
Esta perda promove uma separação entre corpo e gozo, através da qual o gozo passa a ser
regulado pelo significante, se distribuindo pelas partes periféricas do corpo.
Schreber descreve a volúpia como uma quota de gozo reservada ao homem vivo,
localizada em partes de seu corpo e fornecida pela contemplação de sua própria imagem
feminina no espelho e pelo pensamento em algo feminino. Além dela, ele irá falar da
beatitude, um gozo que por, direito, apenas as almas podem desfrutar, pois só pode ser
alcançado após a morte.
139
A beatitude é relacionada a um gozo masculino, diferentemente da volúpia que estaria
associada ao gozo feminino. Isto nos chamou a atenção, que assim Schreber faz
indicações em direção a diferentes modos de localização do gozo que correspondem aos
sexos masculino e feminino, também nos revelando um modo próprio de circunscrever a
diferença sexual.
Esta referência a um gozo para além da vida se mostra aqui fundamental, que
Schreber ao considerar em seu delírio uma porção de gozo não localizada no corpo e que
não é acessível aos mortais, a beatitude, apontaria para a existência de algum limite em seu
gozo no corpo e para a existência de uma modalidade de gozo que envolve uma perda do
vivo.
Sabemos o quanto a formação do corpo está condicionada por uma operação de
subtração, perda de ser, do vivo e de gozo, o que aqui certamente não se faz do mesmo
modo que para os neuróticos. Entretanto, ainda assim é possível identificar esta operação de
subtração com relação a esta forma de gozo masculino que é a beatitude, a qual estaria
interditada a Schreber, enquanto homem vivo.
Nesta perspectiva, cremos ser possível reconhecer em Schreber uma operação deste
porte, ainda que em moldes distintos da neurose. Ele mesmo para justificar ter inscrito em
sua bandeira o culto à feminilidade, explica que teve que escolher entre ter uma aparência
masculina e se submeter ao processo de emasculação, o que lhe permitiu não ter mais o
corpo assolado por sensações desagradáveis. Seguindo esta sua explicação de uma escolha
pela feminilidade, sendo a beatitude uma modalidade de gozo masculino só acessível após a
morte, não estaria ela representando esta quota de gozo separada do corpo a qual ele teve de
perder para ter um corpo regulado por marcas de feminilidade, como ele mesmo afirma?
Cremos que esta equivalência entre perda de gozo e a beatitude é bastante plausível,
que Schreber, no início de seu delírio, explicita o quanto teve que se confrontar com seu
orgulho viril, sustentado a duras penas a princípio, do qual num momento posterior terá que
abrir mão em troca desta forma de gozo feminino, que é a volúpiam que ele define como
um ressarcimento pelos danos sofridos.
Feito este percurso de resgatar as referências que Schreber faz ao novo estatuto que
tem seu corpo ao submeter-se ao processo da emasculação, pensamos ter destacado os
elementos indicadores do processo de invenção de um corpo. Encontramos estes elementos
140
em diversos momentos do texto das “Memórias”, desde quando são revelados os motivos
da decisão pelo culto à feminilidade, até quando Schreber descreve as circunstâncias em
que contempla uma imagem feminina no espelho, o que lhe dá sensações de satisfação em
partes do corpo que nomeia de volúpia, ou mesmo quando ele fala que marcas de
feminilidade fluem e refluem pelas zonas de seu corpo, supostamente erógenas numa
mulher. Neste caso, é na forma da metáfora delirante que ocorre o aparelhamento da libido
no corpo que pudemos supor aqui, através da incorporação do significante mulher de Deus,
como conseqüência da perda de uma quota de gozo, arrancada dele mesmo, referente ao
gozo masculino do qual ele teve que se privar.
5- 2 - JOEY: diferentes recursos significantes para ligar o corpo
Apresentação
Se em Schreber reconhecemos no processo da sistematização delirante a sucessão de
diferentes posições frente ao gozo, também em Joey podemos isolar diferentes etapas para
localizar o gozo em seu corpo. E a primeira destas etapas é a da construção de máquinas
que fazem o seu corpo funcionar através de um aparelhamento inédito da libido.
Estas máquinas que representam um modo muito particular de se apropriar do corpo
simbólico nos remetem à concepção da esquizofrenia como revelando um problema mais
agudo na relação com o corpo, por estar sem socorro do discurso estabelecido.
O caso Joey (
BETTELHEIM,
1987) tem, assim, um lugar privilegiado em nossa
discussão sobre os impasses e soluções para a ordenação do corpo, por conter uma
descrição do percurso que uma criança realiza no sentido de inventar um corpo, através do
uso de diferentes formas, do significante.
Em linhas gerais, podemos caracterizar processo de invenção de um corpo de Joey
como tendo início com a construção de máquinas que servem de suporte simbólico para o
seu corpo. Em seguida, o que ganha destaque é uma teoria sobre o corpo em torno das
funções da alimentação e da eliminação. A partir desta teoria, ele criará um personagem no
qual identifica a desregulação do gozo, representada na dispersão de fezes por toda parte,
para num terceiro tempo, dispor de uma imagem do corpo mais unificada, através de uma
141
identificação imaginária com outro menino. Este menino que lhe serve como um duplo, ao
sair da instituição de Bettelheim, lhe permitirá tematizar a questão da localização de gozo,
por meio de um novo personagem, ao qual será atribuído um papel regulador. Em
seqüência, o que ganha a cena é a criação de significantes que permitirão a esta criança se
reposicionar frente ao gozo antes situado de forma maciça, seja nas máquinas ou em
personagens que ele constrói.
Em Joey, o recurso simbólico vai deixando, assim, de ser identificado a máquinas
todo poderosas, das quais ele dirá não precisar mais, para ser relacionado a significantes
que possibilitam que ele tenha um outro tipo de relação com seu próprio corpo. E isto
lugar a uma trajetória em que é possível reconhecer as operações de subtração de gozo e de
separação simbólica, fundamentais para ele ter acesso a um corpo vivo e consistente, não
mais em fusão com o significante ‘máquina’.
Este percurso pode ser reconstituído a partir do retorno de Joey, com vinte e um
anos completos, à instituição de Bettelheim, trazendo um objeto que ele quer mostrar
àqueles que cuidaram dele - uma máquina elétrica que ele construiu. Para Dominique e
Gérard Miller (1984), este objeto é a chave do tratamento que permite definir a trajetória
subjetiva de Joey da seguinte forma: do menino em fusão com a máquina ao menino com
sua máquina.
Como temos desenvolvido, ter um corpo é o resultado de uma operação significante
cujo efeito é a localização de gozo. E os fenômenos da ausência de consistência corporal,
em que o corpo comparece como fragmentado, uma exterioridade estranha, exposto as mais
diversas invasões e manipulações ou mortificado nos ensinam o quanto esta operação é
necessária.
Na seção anterior, nos esforçamos por demonstrar com Schreber que estes fenômenos
decorrentes da carência de um princípio regulador do gozo podem ser suplantados pela
invenção de uma suplência com efeitos consideráveis para o corpo. De modo correlato
entendemos que Joey se engajará num trabalho nesta mesma direção, no qual diversos
recursos vão se suceder ao longo de um processo de invenção de um corpo.
Na trajetória desta criança, as máquinas têm destaque, seja como mecanismos
simbólicos para garantir o funcionamento do seu corpo que ela cria inicialmente, no papel
que desempenham na sua teoria sobre o funcionamento do corpo e nas estórias e
142
personagens que ela elabora, seja na incubadora e no retificador construídos por Joey para
regular a temperatura dos ovos e a eletricidade, respectivamente.
Podemos fazer uma equivalência com o caso de Temple Grandin que mencionamos
no capítulo anterior (cf p.109-10), no qual Maleval (1998) vai reconhecer justamente a
construção de uma máquina reguladora de gozo; mas trata-se aqui de seguir passo a passo à
trajetória singular traçada por Joey.
Novamente, reafirmamos nosso interesse de destacar a dimensão processual que
caracteriza a invenção de um corpo para Joey e os recursos de que ele lança mão, sejam
eles predominantemente imaginários ou mesmo distintas operações com o significante.
Prevenções: mecanismos para aparelhar a libido no corpo
“Há pessoas vivas e há outras que precisam de lâmpadas”
(
JOEY, in
BETTELHEIM, 1987, p.275).
Na época em que Bettelheim conhece Joey, o corpo deste menino se tornava
animado estando conectado às máquinas. Quando não se vinculava a elas, nenhuma parte
do corpo desta criança conseguia realizar as funções fisiológicas a que estava associada.
Neste momento, seu corpoé posto em funcionamento com a condição de se inserir
numa destas máquinas simbólicas e permanecer plugado a elas, o que nos remete a
metáfora da dependência dos aparelhos de hemodiálise, usada por Zizek (2004) para
retratar o quanto o funcionamento do nosso corpo está condicionado pelo Outro. É como se
Joey construísse diversos aparelhos simbólicos que dão suporte para todas as suas funções
orgânicas, da mesma forma que o aparelho de hemodiálise serve para compensar a falência
renal.
Com este fim, Joey se munia sem cessar de ampolas elétricas, lâmpadas e de outros
recursos maquínicos. Todas as suas necessidades vitais deviam ser satisfeitas mediante
estes recursos simbólicos: para respirar ele tinha o seu carburador, para comer um motor e
para dormir um aparelho complexo instalado ao pé da cama.
Neste primeiro tempo, Joey faz corpo com máquinas super potentes e funciona por
tele-comando, sendo os músculos de seus braços e joelhos controlados pelas engrenagens
destas. Ele subsiste, assim, com um suporte destas máquinas que estão no lugar do corpo
143
simbólico às quais ele se liga para apreender-se como vivo. Poderíamos dizer que sua
relação com o Outro neste momento está representada por estas engrenagens que servem a
ele como uma espécie de amuleto significante que permite o aparelhamento da libido em
seu corpo.
As máquinas estão presentes na vida de Joey desde muito cedo. Mesmo antes de
entrar na instituição de Bettelheim, ele se interessava por imitar ventiladores e aviões
desde os sons aos movimentos característicos destes. Nesta mesma época, ele deixa de usar
os pronomes e qualquer pensamento abstrato, referindo aos alimentos por suas
características físicas. Por exemplo, ele chama úcar de areia, manteiga de gordura e água
de líquido.
Desde então, ele passa a proferir palavras relacionadas aos mecanismos de diversas
máquinas, como de hélice’, ‘correia de ventilador’ e ‘regulador de velocidade’. Além
disso, monta e desmonta ventiladores com uma habilidade que impressiona a todos.
Tudo isso parecia lhe permitir alguma sustentação na existência, tendo efeitos
apaziguadores de regulação de gozo para Joey, pois quando ele não imitava as máquinas
ficava extremamente desorientado e passava ao ato, com ataques de fúria e de violência.
Inclusive há o registro nesta época de uma tentativa de suicídio.
na instituição de Bettelheim a importância que as máquinas passam a ter irá se
intensificar ainda mais e estas se tornam o recurso para regular o gozo e ordenar o corpo, o
que ele irá chamar de prevenções.
As prevenções eram uma série de aparelhagens que controlavam e interferiam em
todas as áreas de sua vida. Neste sentido, todo um ritual relacionado a estas máquinas de
viver é posto em prática por Joey em seu dia-a-dia.
Todo este ritual de ligações ‘elétricas’ do corpo ao significante era necessário para
que ele pudesse comer, já que somente por meio delas seu aparelho digestivo funcionava.
Para entrar na sala de jantar, ele estendia um fio imaginário que o ligava com sua fonte de
energia elétrica e depois esticava este fio desde uma tomada elétrica imaginária até a mesa
de jantar para conectá-lo à tomada. Da mesma forma, ele só poderia beber através de
complicados sistemas de tubos feitos de canudinhos que bombeavam o líquido até ele.
De modo similar, antes de começar a ler, mesmo antes de poder sentar-se, tinha de
ligar a carteira a uma fonte energia. Depois, tinha de ligar a si próprio a ela, ligar o livro ou
144
o lápis à carteira e depois se regular. E mesmo para ir ao banheiro, ele se cercava de
complicadas prevenções e eram as lâmpadas que lhe forneciam energia tanto para urinar
como para defecar. O terror que experimentava quando algo lhe saía do corpo é revelador
do quanto, na ausência de uma consistência corporal, o ato da eliminação colocava em risco
a sua própria existência.
Esta complexa aparelhagem simbólica chega a ganhar a forma de um carro que dirigia
Joey enquanto ele dormia e de uma máquina respiratória construída com fita isolante,
cartão, pedaços de fio e outras bugigangas.
Estas conexões com o significante eram, assim, responsáveis pelas funções do seu
corpo e por sua própria existência, o que implicava em muita cautela da equipe para não
danificar seus fios imaginários. A importância das máquinas para Joey mobilizava tanto
cuidado por parte de todos na instituição que elas foram registradas em fotos quando
haviam se tornado desnecessárias e abandonadas.
Podemos dizer que a função destas engrenagens era servir de suporte simbólico para a
produção de uma certa consistência corporal. Sabemos que a imagem corporal com a qual o
sujeito se identifica, por ser revestida pela libido, tem para ele um valor de vida. Quando
esta não se constitui, o sujeito se confrontado com toda a sorte de experiências de
desfalecimento e mortificação do corpo, o que neste caso parece ser contornado pelas
conexões maquínicas, mesmo quando estas se tornam mais simples, como na substituição
de um dos aparelhos por um pedaço de cartão vazio. E tal como vimos (cf p. 143), Joey,
neste primeiro momento, para se sentir tendo um corpo vivo, precisará desta maquinaria
significante.
Com relação ao que escapava ao mundo das prevenções, Joey se mantinha em
isolamento, atribuindo a este outro mundo um valor de ameaça. Os próprios brinquedos da
instituição eram tratados com se fossem destruidores. Assim, ele se referia aos balanços
como máquinas demolidoras e algumas cores eram consideradas perigosas, pois podiam
desligar a corrente elétrica que o sustentava. Por sua vez, tratava as pessoas que o cercavam
de maneira bastante impessoal, referindo-se a estas por “aquela pessoa”, “pessoa grande” e
“pessoa pequena” e raramente permitia que se associassem a ele em suas montagens.
Vemos, assim, que neste momento o que predominava era o funcionamento do corpo
regulado a partir de aparelhagens simbólicas que Joey constrói e às quais vai imputar força
145
e potência superiores as do ser humano. Muitas vezes alardeava a inferioridade do corpo
em relação às máquinas: “... as máquinas são melhores do que os corpos. Não quebram.
São muito mais duras e fortes” (JOEY, in BETTELHEIM, 1987, p.292).
Conforme expusemos anteriormente, diversos autores vão chamar a atenção para
estas construções maquínicas como um recurso para a regulação do gozo, antes não
localizado, na esquizofrenia. Bruno (1999) sustentará a existência de modalidades plurais
de regulação do corpo, dentre as quais estariam máquinas que servem de suporte corporal.
Miller (1985) vai afirmar que estes dispositivos maquínicos se caracterizam por um uso
peculiar do significante que, quando levado ao extremo, pode fazer do corpo simbólico um
‘corpo-máquina’. E esta idéia de um aparelho que funciona como um instrumento de
sustentação simbólica do corpo se aproxima em muito da noção de aparelho de influência
desenvolvida por Vitor Tausk (1990). Para este autor, a função deste aparelho seria conferir
uma certa organização ao corpo, anteriormente tomado por sensações de influência e
modificações imprecisas e difusas.
Percebemos, portanto, que a peculiar relação com a linguagem que Joey estabelece
através de suas prevenções pode ser considerada como equivalente ao que estes autores
descrevem a respeito das funções de aparelhamento da libido e de sustentação simbólica do
corpo que a máquina pode ter na esquizofrenia.
É neste sentido que podemos entender porque a presença das máquinas na vida de
Joey se de maneira maciça, sendo que quando estas se ausentam, ele é tomado por uma
forte angústia e cólera e ameaça quebrar o próprio corpo, tendo inclusive quebrado o vidro
de uma janela com o próprio braço.
A partir de Dominique e Gérard Miller (1984) é possível identificar nesta presença
maciça das máquinas uma tendência à fusão com o significante. Esta leitura nos permite
esclarecer porque ocorriam as chamadas explosões. Nas explosões, Joey quebrava partes
das máquinas, como lâmpadas e válvulas eletrônicas, assim como qualquer outro objeto que
estivesse ao seu alcance. Estas situações podiam ser acompanhadas por gritos do tipo
“BUM! BUM!” ou “Explosão!”, e, em seguida, Joey voltava sem qualquer transição a um
estado de desligamento e desaparelhamento libidinal.
146
Estes autores vão reconhecer que as explosões ocorrem quando a tendência à fusão
com o significante chegava ao extremo e refletem uma forte necessidade de esvaziar o que
era experimentado como uma plenitude excessiva.
Aqui observamos o mecanismo de desconexão com o Outro, proposto em Antibes
(1999), no qual o sujeito se liga e se desliga do Outro. Em Joey, esta oscilação entre estes
estados de aparelhamento e desaparelhamento libidinal não é tão freqüente como no caso
Stanley que vimos no capítulo anterior (cf p.107-8). Nele, trata-se de alternâncias mais
pontuais entre os momentos de fusão e destacamento em relação ao significante que
corresponderiam a diferentes posicionamentos em relação ao Outro, chamados, por ele, de
prevenções e explosões.
Construindo uma teoria em torno dos orifícios anais, fezes e o
personagem Ken – o garoto lâmpada
Hoje aconteceu uma coisa. Vi uma das pessoas pequenas no banheiro [...]
Eu estava espiando por baixo da porta. Quando ele estava defecando,
houve um clarão e uma explosão” (
JOEY, in
BETTELHEIM, 1987,
p.324).
Se o recurso significante é colocado em cena neste primeiro tempo a partir de um
modo inédito de aparelhamento da libido, chamado prevenções, num segundo tempo será
uma sofisticada teorização sobre o funcionamento do corpo que vai ganhar destaque.
Para Joey, as funções da alimentação e da eliminação se encontravam ligadas de
maneira bastante peculiar. O comer existia simplesmente para a eliminação, tendo como
único objetivo fornecer energia para esta função. Em decorrência disto, diversas precauções
eram tomadas buscando garantir que o fluxo de energia não fosse interrompido durante a
alimentação e dificultasse a eliminação, como por exemplo, isolar o corpo com papel.
Segundo sua teoria, para a eliminação, ele tinha que se despir inteiramente. E não
podia se sentar sobre o vaso sanitário, segurando suas lâmpadas, fechando o ânus quando
urinava e contraindo o pênis quando evacuava. Num de seus desenhos ele retrata o corpo
como um longo e único tubo em cujo topo as máquinas introduziam coisas, assim como as
extraíam do outro extremo (BETTELHEIM, 1987, p.287).
Novamente, aqui, está presente a idéia de que os processos metabólicos do seu corpo
são dirigidos por máquinas e de que uma série de precauções é necessária para não
147
interromper o fluxo de energia. Este lugar das máquinas de responsáveis pela sustentação
do fluxo de energia vem a confirmar a função que elas tem para o aparelhamento da
libido no corpo deste menino. E podemos apreender desta teoria sobre o funcionamento do
corpo que é em torno dos genitais e das regiões oral e anal que se buscará aparelhar a libido
e produzir alguma consistência corporal neste caso.
Ao longo do acompanhamento de Joey, algumas intervenções da equipe vão produzir
importantes efeitos no sentido de restringir o uso de máquinas, na medida em que ele
começa a estabelecer novas relações com as pessoas que o cercavam.
Conforme desenvolvem Dominque e Gerard Miller (1984), a segunda fase do
tratamento é marcada por um não, é a primeira oposição da equipe técnica às prevenções
alimentares de Joey. Uma verdadeira parafernália era trazida por Joey para sala de jantar.
Este conjunto de motores, lâmpadas e fios elétricos acabava dificultando em muito que ele
comesse, pois quase sempre algo saía do lugar e necessitava ser consertado.
A equipe, então, passa a permitir que Joey trouxesse para a sala de jantar apenas parte
de suas maquinarias, apenas um símbolo do aparelho real. E após algumas explosões e
outras reações, ele acaba comendo, mantendo apenas o uso dos canudos e nomeando o local
de “vagão-restaurante” ((BETTELHEIM, 1987, p.279).
Desde então, Joey passa a recorrer a objetos menores, como o uso da lanterna para a
eliminação, por exemplo, e começa a incluir técnicos e outras crianças em suas atividades.
Talvez possamos situar nestas substituições de enormes parafernálias por objetos menores
um prenúncio do que acontecerá posteriormente, quando as máquinas não se farão mais
necessárias.
Neste período em que Joey começa a substituir suas complexas máquinas por objetos
mais simples, reconhecemos uma abertura para o estabelecimento de uma relação com o
significante menos fusional. E será neste novo contexto que ele começa a fazer uma
diferenciação entre as máquinas boas e as más, refinando, assim, a sua taxonomia, ao
multiplicar as diferenças no seu sistema simbólico maquínico.
Nesta segunda etapa de seu tratamento, ele passa a ver materiais fecais por toda parte.
Assim esta etapa irá se referir a poços de petróleo, a petróleo jorrando, a sistemas de esgoto
e ao tubo de escoamento de oleodutos, a partir de então. O petróleo é extraído da terra em
148
grande quantidade, um petróleo poderoso e preto. Deste modo, entendemos porque ele
fechará o ânus para não deixar nada sair, já que as matérias fecais jorram por toda parte.
Neste momento, o que Joey nos mostra é que está às voltas com os impasses de não
ter a montagem pulsional assegurada. A partir disso é possível explicar o ritual de
eliminação que ele realiza em torno da contração e do relaxamento do ânus e do pênis, não
deixando de recorrer a lâmpadas. Este ritual explicita o quanto as máquinas ainda ocupam
o lugar de suporte simbólico para a sustentação do corpo e uma espécie de erotização de
partes destes, garantindo as mais corriqueiras das funções vitais - a evacuação.
Seu relato sobre fezes e petróleo em total desmesura também traduz o quanto ele tem
que se haver com os efeitos da não aparelhagem da libido no corpo, que é quando esta se
verifica que se dá a montagem do circuito pulsional, regulando o corpo e seus objetos.
É neste contexto que Joey vai estabelecer uma relação com uma outra criança,
Kenrad. Kenrad é o nome de um outro menino, apelidado de Ken, um caso bastante grave
de psicose por quem Joey se interessa, após observá-lo no banheiro, conforme
reproduzimos na epígrafe acima (cf p. 147). A partir deste episódio, tem início uma relação
de veneração, na qual Kenrad ganha a forma de um personagem o rapaz-lâmpada com
quem Joey compartilha seu interesse pelo fenômeno anal e seus derivados.
Toda uma pantomima é dramatizada por ele, retratando uma cena em que auxiliava
Kenrad a defecar, cabendo-lhe extrair as fezes dele. Nesta dramatização, trata-se da
extração de fezes, justamente daqueles objetos que estavam por toda parte, o que pode ser
entendido como uma tentativa de esvaziamento e regulação do que se apresentava como
pleno e desregulado.
Kenrad ocupa o lugar da lâmpada toda potente de Joey, sendo que tudo o que
acontecia a sua volta era atribuído a este personagem. Ele teria nas próprias mãos todos os
poderes, sobretudo os destrutivos: ele podia mutilar, atear fogo, ou mesmo destruir a escola.
Nesta época, Joey estava convencido de que as ruas e as calçadas de Chicago estavam
cobertas pelas fezes de Kenrad.
Entendemos a criação deste personagem tão poderoso como um outro movimento no
sentido de separar o gozo do corpo, o localizando neste Outro. Entretanto, foi observado
que, na medida em que Joey reportava a Kenrad a capacidade de influenciar o mundo
externo, ele próprio vai se tornar alguém sem forças, chegando a se descrever como um
149
lixo, um inútil. Em decorrência disso, muitas vezes ele vai solicitar que partes de seu corpo
sejam trocadas ou jogadas fora por estarem estragadas.
Neste momento, é como se Kenrad passasse a ocupar o lugar das máquinas todo
potentes chamadas prevenções; no entanto, enquanto estas asseguravam alguma ordenação
corporal para Joey, a construção deste personagem não produzia estes mesmos efeitos,
tornando o corpo deste menino desvitalizado. Deste modo, a relação com Kenrad parece
não obter êxito, reduzindo-se a uma tentativa mal sucedida de localização do gozo.
Podemos dizer, então, que neste período Joey, por não poder situar o gozo como
limitado, é confrontado com um gozo para ele não situável, turbilhão de excrementos, um
mundo que será invadido por dejetos. É neste sentido que a superfície da escola é tomada
por fezes, o que é atribuído ao personagem Kenrad.
Para Dominque e Gerard Miller (1984) estes seriam os rastros do caminho do menino
em fusão com a máquina em direção a uma nova modalidade de localização do gozo, o que
nos remeteu a formulação de Lacan (1955-6, p. 330) de que na psicose, na ausência da
estrada principal, de um princípio regulador de gozo, o sujeito ficaria diante de uma série
de letreiros e pequenos caminhos elementares.
Deste modo, podemos supor nesta presença da analidade por toda parte uma tentativa
de destacar objetos do corpo, de maneira inédita certamente. Assim, este lodaçal de fezes
que caracteriza a relação com Kenrad constituiria um apelo lançado em direção ao Outro,
um movimento buscando se separar do significante com o qual ele se encontrava fundido
inicialmente.
De uma compensação imaginária à invenção de um significante
“Eu estava no banheiro dos rapazes com Mitchell. Ele estava sentado no
vaso e evacuava e eu estava ajoelhado na frente dele (
JOEY, in
BETELHEIM, 1987, 335).
Podemos demarcar o início de uma terceira fase em que a implicação do simbólico se
estende até um novo personagem e à função unificadora da imagem o bebê pele
vermelha. Dominque e Gerard Miller (1984) situam aqui o momento em que Joey constrói
o personagem do bebê pele-vermelha, passando a envolver seu corpo num cobertor e
produzindo, assim, uma espécie de vestimenta imaginária. Em seus desenhos, o bebê pele-
150
vermelha aparecia quase sempre ligado a fios elétricos e dirigido por máquinas.
O bebê pele vermelha será retratado em alguns desenhos e dois deles chamaram a
nossa atenção porque neles, este personagem se apresenta associado de forma diferente às
máquinas. Num primeiro desses desenhos, o bebê pele vermelha aparece, se confundido
com a máquina que ele mesmo aciona (BETELHEIM, 1987, 332) e no segundo ele está no
lugar do chofer do vagão, separado da máquina (BETELHEIM, 1987, 332).
É neste contexto que Joey aproxima-se de uma outra criança, Mitchel. Esta relação
gira em torno do interesse comum pelo fenômeno anal e seus derivados. Mitchel é mais
velho e mais organizado que Joey que tem um sonho com este defecando.
O primeiro sonho relatado de Joey refere-se a Mitchel, conforme reproduzimos na
epígrafe acima (cf p. 150). Neste sonho, eles se olham sobre o mesmo eixo imaginário,
Mitchel levemente acima de Joey que está ajoelhado.
Mitchel não é uma máquina humana como Kenrad, mas um verdadeiro ser humano.
Aqui estamos justificados a falar em uma relação especular. Ocorre todo um movimento de
imitar Mitchell e querer ser como ele, sobretudo em seus aspectos físicos como roupas e
altura. Chamou-nos a atenção que neste caso são os aspectos corporais os elementos que
condicionam a identificação imaginária.
Sabemos que é a partir de um processo identificatório com a imagem do outro que
temos acesso ao corpo enquanto uma Gestalt, uma unidade narcísica na qual nos
reconhecemos. Deste modo, pensamos que é justamente o acesso a este função unificadora
da imagem que se coloca para Joey na sua relação com Mitchel.
São muitos os psicanalistas que vão tratar da função das identificações imaginárias na
sustentação corporal. Conforme desenvolve Recalcati (2003), através destas identificações
o sujeito pode dispor de uma consistência imaginária para o seu corpo, o que tem efeitos
pacificadores, pois constitui um meio para ele se defender do gozo intrusivo.
A compensação imaginária seria uma espécie de prótese que estabiliza o sujeito numa
relação especular. Esta identificação tem como característica de fundo ser adesiva, integral,
imediata, mimética, não dialética, a partir da qual o sujeito supõe um semelhante, situado
como seu eu ideal. Neste sentido, Joey irá reportar a Mitchel todos os poderes antes
atribuídos a Kenrad com a ressalva dele só poder realizar boas ações.
151
Com a saída de Mitchel da instituição, Joey constrói um novo personagem, Valvus,
com quem se identifica, situando-o entre os extremos que eram para ele Ken e Mitchel. Nas
palavras de Joey, Valvus era um menino como ele, não era nem totalmente bom, nem
totalmente mau, nem totalmente indefeso nem todo-poderoso. Como uma válvula, ele se
ligava e se desligava quando fosse necessário e apropriado. Em resumo, Valvus podia
regular a si próprio.
A partir de então este personagem e sua família, a família Carr, passam a
desempenhar um papel fundamental na vida de Joey. Através deles, Joey alcançou o
domínio da própria eliminação. Seu corpo não era dirigido por um instrumento
mecânico, mas era regido por ele próprio, de acordo com suas necessidades e desejos.
Valvus situa Joey em relação à família Carr, controlando a entrada e a saída do
sistema de esgoto deles. Ele coloca em cena o inverso do sistema on-off que caracterizava
Joey, dando a ele o controle lá onde ele estava preso numa armadilha de um círculo vicioso.
A própria família Carr passa a ser menos mecanizada, que seus membros nem
sempre vivem num carro e nem têm suas fezes extraídas por máquinas, mas podem habitar
uma casa em que um complexo sistema de esgoto é controlado por Valvus. Aqui, se trata de
uma regulação dos objetos destacáveis do corpo, muito diferente das fezes e do petróleo
espalhados e jorrando por toda parte que caracterizam o momento anterior.
Vemos, assim, na criação deste novo significante, Valvus, um exelente exemplo do
processo de incorporação simbólica que está na base da constituição de um corpo. Este
significante é forjado após a partida de Mitchel que servia para Joey como um outro
especular e será através da relação estabelecida com este significante que Joey alcança uma
ordenação corporal, sem recorrer a nenhuma máquina.
É em decorrência disso que todo o interesse que as lâmpadas e, posteriormente, os
faróis lhe causavam vai diminuindo. Paralelamente, ele começa a falar mais de si mesmo,
recorrendo a aparelhos para fazer algum tipo de mediação como rádios imaginários e
telefones de brinquedo.
Joey chega a desligar a maquinaria imaginária que alimentava as lâmpadas, dizendo:
“As válvulas estão ardendo muito tempo. Não preciso mais delas” (BETTELHEIM,
1987, p.344). Conforme entendemos, esta fala é de grande importância no percurso que
estamos descrevendo de invenção de um corpo. Ela indica como se colocou para Joey a
152
experiência de perda do que servia como lo de concentração de gozo, “ardendo muito
tempo”. Como temos visto, estas lâmpadas lhe permitiam ordenar seu corpo, mas ao preço
de uma relação de fusão com o significante, sendo que o que restava como possibilidade de
separação deste Outro todo poderoso das prevenções maquínicas eram as explosões.
Esta referência à perda de algo muito valioso e intenso nos pareceu crucial na
trajetória de Joey, que sabemos que o sujeito deve perder o corpo como substância viva
para estabelecer a ordem pulsional e ter um corpo animado pela libido. Fazemos, assim,
uma equivalência entre os efeitos da perda das mpadas para Joey e esta operação
fundamental de subtração de gozo que é condição para a contrução de um corpo para todo o
falante, descrita por Lacan (1964a).
Incorporações significantes: da parturição a um objeto extraído
“Eu próprio botei um ovo, choquei ele e me fiz nascer”
(
JOEY, in
BETTELHEIM, 1987, p. 350).
Falaremos de uma quarta etapa na medida em que ela vem promover um fechamento
em todo o relato sobre Joey enquanto freqüenta a instituição de Bettelheim.
Neste período, aos empreendimentos mais flexíveis que ele começa a realizar no
mundo, soma-se um crescente interesse pelos ovos, galinhas e frangos, sobre o que Joey
passa a querer ler e acumular conhecimento. Neste contexto, Bertha, a única mulher da
família Carr, torna-se capaz de botar ovos.
Podemos dizer que esta quarta etapa tem início quando Joey se apropria de um novo
significante, chickenbox, através do qual ele passa a se identificar com as galinhas.
Chickenbox é a doença de pintinhos ou também caixa de pintinhos. Antes mesmo de
conhecer Bettelheim, Joey já havia feito uma série de desenhos em torno disto.
na instituição de Bettelheim, ele começa a escrever, declarando que a palavra mais
importante do mundo é chickenbox. Numa outra ocasião, ele irá construir uma grande
incubadora, sendo sua maior preocupação a regulação desta, de maneira que os ovos não
ficassem nem muito frios nem muito quentes. Reconhecemos nesta preocupação a presença
do que sempre foi para Joey um problema mais agudo, a regulação da libido de maneira
que permita uma sustentação e subsistência do corpo e do sujeito.
153
Joey passa a imitar as galinhas e num determinado momento declara ter chocado um
ovo e assim ter nascido, conforme relatamos na epígrafe acima. Como conseqüência deste
auto-engendramento, ele impõe a si próprio a tarefa de pôr fim às caixas de frango e se
segue um período de maior aproximação física das pessoas. Então, volta para casa e
recomeça a vida com sua família. E vai completar sua educação numa escola técnica,
traçando planos de prosseguir os estudos em eletrônica.
Duas falas de Joey que antecedem sua saída da instituição de Bettelheim chamaram a
nossa atenção. Uma delas é quando ele diz que chickenbox é a palavra mais importante do
mundo e a outra e quando ele relata ter nascido.
Na primeira fala, pensamos poder identificar o destaque que ele a chickenbox,
enquanto um significante que é especial para ele, diferenciando-o dos demais, o que revela
o uso de um recurso simbólico, no qual o que predomina não é mais a relação de fusão que
antes era pregnante.
É a partir desta outra forma de se servir da linguagem que acreditamos poder situar a
constituição de um corpo pulsional em Joey, mediante uma operação de separação
simbólica. Vimos que com as operações da alienação e da separação, Lacan (1964a) busca
tratar justamente do que ela vai chamar da parturição do sujeito, do que lhe permite ter um
estado civil e poder se deslocar do lugar de puro efeito da linguagem, falado pelo Outro, e
se tornar desejante.
Conforme entendemos, neste último tempo do tratamento, Joey nos expõe exatamente
como para ele se esta operação, no caso a partir da incorporação do significante
chickenbox, da identificação com as galinhas e do que ele descreve como o seu próprio
nascimento.
Segundo Lacan (1964ab), para se ter um corpo animado pela libido, é necessário
estabelecer uma relação com a linguagem, em que se possa se ornar e vestir com os
significantes, numa espécie de defesa que permite o engendramento do próprio sujeito. E,
na nossa leitura, Joey realiza este percurso, com seus escritos, desde o significante do bebê
pele-vermelha, do qual ele se apropria inclusive para cobrir o próprio corpo e tentar lhe
fornecer uma consistência até chegar a chickenbox, a palavra mais importante do mundo e
através da qual ele irá traçar seu próprio nascimento.
154
Dominque e Gerard Miller (1984) farão aqui uma equivalência com a construção
fantasmática – a pequena história que o sujeito forja para fazer tela à questão impossível de
sua relação com o Outro. E chamarão atenção para o fato de que é a partir de uma relação
diferenciada com as máquinas, enquanto um objeto extraído e separado de seu corpo, que
Joey retomará o contato com os técnicos da instituição de Bettelheim.
Quando Joey terminou a escola secundária, pediu aos pais, como presente, que o
deixassem visitar a instituição de Bettelheim. Nesta visita, faz importantes declarações.
Dentre elas revela ter construído um transformador para tornar corrente alternada em
corrente contínua. É a partir do entendimento da função desta nova máquina que Dominque
e Gerard Miller (1984) buscam esclarecer a natureza de todo o percurso de Joey do
menino em fusão com a máquina ao menino com a máquina.
Nesta visita, Joey retrata esta máquina que construiu como uma coisa muito pesada,
mostrando sua invenção a todos com quem cruzava, com uma satisfação visivelmente
triunfante. Como não evocar o valor de suplência desta máquina? Corpo estranho e pesado,
totalmente relacionada ao gozo de Joey, um gozo bem diferente daquele das máquinas toda-
poderosas de antes, um gozo localizado num objeto destacado de seu corpo.
Com esta invenção, Joey se coloca como quem controla a eletricidade louca da qual
ele era uma espécie de joguete. Antes, estar conectado a suas máquinas era condição para
ter seu corpo funcionando, com esta nova máquina, agora ele se reconecta ao Outro, de
maneira diferenciada.
5- 3 –
WOLFON: procedimentos para dar contorno ao corpo
Apresentação
Dois livros de Wolfson serão examinados nesta seção com o objetivo de colher nestes
testemunhos por escrito que ele nos legou o que Deleuze (1970) vai chamar de um
protocolo de atividade ou de ocupação. Conforme entendemos, todos os registros feitos por
ele Le schizo e les langues(1970) e em “Ma mére, musicienne, est morte de maladie
maligne mardi a minuit au milieu du móis de mai de Mille 977 au mouroir Memorial á
Manhattan” (1975) dizem respeito aos esforços que ele empreende para localizar o gozo
que não apresentava nenhuma forma de regulação. Ao nosso ver, esta seria a função das
155
atividades ou ocupações protocoladas por ele nestes livros a função de procedimentos
para regular o gozo.
Como dissemos, mesmo Wolfson não tendo explicitado o valor de memórias de
seus livros, assim como Schreber (1995) o fez, reconhecemos juntamente com diversos
comentadores de sua obra que, neles, ele se dedica a relatar as tentativas de localização de
gozo que tomavam o seu cotidiano.
Assim, podemos afirmar que especialmente em seu primeiro livro, da mesma forma
que Schreber, ele nos apresenta as estratégias de que lança mão para construir um corpo.
No entanto, ele não exporá os elementos de um sistema delirante que, como vimos
anteriormente, é o que permite a Schreber dar um outro lugar para seu corpo. Se para este
último é a metáfora delirante da Mulher de Deus que tem efeitos consideráveis de
consistência corporal, no caso de Wolfson, uma variedade de recursos é que será acessada
com este mesmo fim, buscando lidar com os impasses da ausência de contornos corporais.
Será sobretudo em Le schizo e les langues(1970) que Wolfson vai nos apresentar
as inúmeras ações de que lança mão para produzir bordas em diversas regiões de seu corpo,
seja os ouvidos, a boca ou o ânus, enquanto no livro em que relata a evolução do câncer que
culminou com a morte de sua mãe - já munido com seu “walkman” que em alguns
momentos o protege dos efeitos desastrosos da língua inglesa -, ele irá revelar elementos
dispersos de um delírio ainda em construção.
Neste segundo livro, diferentemente do anterior, ele fará um relato na primeira pessoa
do singular e se refere a sua mãe pelo nome desta, Rose. E será a malignidade da doença
dela que vai servir de base para a elaboração do um delírio de ruína. Neste delírio, serão
feitas inúmeras referências ao caráter maligno da Terra, cujo único destino plausível seria a
explosão com o extermínio de toda população.
Encontraremos, então, nos livros de Wolfson, a narração dos impasses decorrentes do
que é experimentado como pleno de gozo e como tendo efeitos devastadores para o sujeito,
seja a ngua inglesa, os alimentos dos quais não consegue se esquivar quando sua mãe se
ausenta de casa, os vermes que ameaçam entrar pela sua boca e por seu ânus, ou a própria
Terra, um planeta povoado por cadáveres, condenado à completa destruição.
Diante destes impasses, ele será chamado a criar algumas respostas. Dentre elas estão
diversos atos que ele realiza sobre seu própio corpo, assim como o estudo sistemático de
156
línguas estrangeiras que lhe permitirá direcionar suas intervenções para o significante,
buscando estabeceler uma relação menos danosa com a linguagem.
Dentro desta perspectiva, André (1986) vai reconhecer em Wolfson uma série de
comportamentos típicos da esquizofrenia, através dos quais o paciente se dedica a se servir
de seu corpo ou de partes dele. Para este autor, isto resultaria em tentativas de isolar uma
borda e produzir uma fronteira sobre a qual a pulsão possa se fundar como tal.
Como já vimos, a instauração do circuito pulsional decorre de uma operação de
extração simbólica que funda um vazio em torno do qual a pulsão irá traçar o seu circuito.
A função deste vazio é abordada por Lacan, no Seminário XI (1964a, p.298) quando
afirma que no que diz respeito ao ouvido, é o vazio do tubo acústico que condiciona a
própria organização deste aparelho sensorial, como uma caixa de ressonância no formato de
um tubo. É, portanto, este vazio que realmente impõe uma ordem a tudo que virá ressoar na
caixa acústica. E Wolfson nos mostra uma série de operações com as quais busca
produzir algum esvaziamento no que se coloca para ele como pleno.
Que o vazio, representado pelos orifícios do corpo erotizado, seja fundamental para
que este funcione como tal foi por nós tratado, sobretudo, no capítulo 2. E Wolfson
parece testemunhar o contrário disso nos remetendo ao trabalho de Recalcati (2003) sobre
as anorexias psicóticas em que o vazio não é positivado, permanecendo anatomizado, signo
de ausência de mediação simbólica e da carência da imagem em sua função unificadora.
Como desenvolvemos anteriormente, a borda corporal fornece um contorno para o
corpo, ao mesmo tempo que faz um corte, promovendo uma separação. E para Wolfson,
isso não está assegurado, que o que ele experimenta é estar em total continuidade com o
Outro. Para ele, é como se ao invés de uma borda houvesse uma ponte e ele faz diversas
referências ao quanto à relação com sua mãe lhe parece estar organizada desta maneira,
diante do que ele tentará desesperadamente demarcar uma borda.
Desde o início do seu livro, Wolfson revela não suportar o inglês de Nova York que
lhe penetra pelas orelhas, sem qualquer mediação. Ouvir a língua materna é para ele o
equivalente a ser tocado em seu corpo. A menor palavra em inglês, proferida por sua mãe
ou outrem, tende a ressoar em seus tímpanos.
157
Ele se refere muitas vezes ao caráter insuportável da voz de sua mãe que se
aproximaria dele de tempos em tempos para dizer coisas sem nenhuma utilidade, injetando
palavras nas orelhas de sua única posse.
Em resumo, é como se ele experimentasse a si mesmo como uma ramificação desta,
como se estivesse totalmente conectado a este Outro. É neste sentido que ele chega a
considerar a si próprio como a prótese de vidro que sua mãe, zarolha, carrega e abandona
conforme lhe interessar. E mesmo ausente, ela não é menos tirânica, sua partida tem como
efeito colocar Wolfson em face de um comando para comer. É, então, diante do armário e
da geladeira, abarrotados de comida que ele vai vivenciar a ausência de uma borda
corporal, permanecendo como uma boca aberta, uma máquina voraz submetida às orgias
alimentares.
Têm início assim as crises de angústia desencadeadas pela partida da mãe e sua
vontade “que ele coma!”, em relação às quais ele tenta, como ele mesmo diz, achar um
princípio de limitação. Mas não é apenas a orelha e a boca que permanecem abertas,
também toda uma problemática em torno do ânus e da obsessão de Wolfson pela idéia de
ser infectado por larvas ou vermes parasitas.
Será neste sentido que André (1986) vai afirmar que o modelo do corpo de Wolfson
como sendo o de um cano aberto nas duas extremidades, sobre o qual este se apoiará para
tentar realizar suas diferentes montagens, nas quais nos deteremos mais detalhadamente nas
seções a seguir.
Atos sobre o corpo: para produzir limites, marcas e localizar o gozo
“E quando as pessoas passavam, ele poderia certamente posicionar um
dedo de uma de suas mãos no ouvido, do lado correspondente, e um dedo
de uma de suas mãos no outro ouvido, isto para evitar o tormento
provocado frequentemente nele quando escutava a língua inglesa, e tudo
isto continuando a ler um livro em francês ou alemão aberto sobre o seu
colo...” (WOLFSON, 1970, p. 36).
Reunimos sob o nome de atos sobre o corpo os diversos esforços empreendidos para
produzir alguma borda corporal, a partir de intervenções sobre o próprio corpo. São eles
todas as ações realizadas no corpo com o fim de impedir a audição da ngua inglesa e seus
158
efeitos devastadores, assim como aqueles com os quais Wolfson produz dor em si mesmo
com o intuito de circunscrever numa parte do próprio corpo, o que ele chama de o
insuportável do sofrimento humano.
As chamadas orgias alimentares também compõem estes atos, que nelas ele busca
se empanturrar de tal forma que algum fechamento no corpo seja produzido. E, por fim, as
contrações anais espontâneas, com as quais Wolfson obtém sensações de prazer que ele
localiza no segmento retal.
Entendemos que o que está em jogo nestes atos é o aparelhamento da libido no corpo,
mesmo que circuscrito em uma determinada parte deste. Trata-se nestas intervenções sobre
o corpo, portanto, de tentar aparelhar a libido para fazer consistir uma determinada região
do corpo, enquanto uma imagem com limites demarcados e com valor de vida.
Como expusemos a clínica da esquizofrenia traz para discussão situações diversas
em que o corpo se torna uma via para a localização do gozo. Esta é a tese defendida por
Laurent na Convenção de Antibes (MILLER,1999) quando irá afirmar que, muitas vezes,
busca-se uma unidade corporal, tomando o corpo por inteiro ou parte dele e não a
construção de um saber como meio através do qual o sujeito fará conexão com o Outro.
O primeiro grupo destes atos sobre o corpo é composto por uma seqüência de
medidas e precauções para evitar o tormento que a audição da língua inglesa lhe provocava,
conforme expusemos na epígrafe acima (cf p.158). Esta seqüência inclui a memorização de
uma frase em língua estrangeira, tampar os ouvidos com os dedos, ler livros estrangeiros,
ou ouvir programas em outras línguas no rádio, assim como emitir grunhidos e barulhos
com a garganta e rangidos com os dentes.
Tal como o próprio Wolfson nos revela para não ouvir a voz da própria mãe, ele fazia
ruídos contínuos simultaneamente a um movimento oscilatório dos polegares contra a
superfície interior dos canais auditivos e a vibrações das cordas vocais
. Estes
murmúrios e
grunhidos provindos da laringe tinham a função de, ao percorrer os canais auditivos e
chegar à extremidade dos ouvidos, neutralizar o som de qualquer palavra em inglês
.
Qualquer exposição à ngua inglesa suscitava a montagem destas variadas estratégias
em que ele busca de diversas maneiras produzir algum aparelhamento da libido para fazer
do canal auditivo uma região do corpo com os limites demarcados, separando-o do Outro
materno.
159
Wolfson explica que precisa dispor de todos esses recursos e expedientes e ficar
perpetuamente à espreita. A mãe, com quem ele mora, mais do que qualquer outra pessoa
faz com que ele se dedique a uma espécie de combate à língua inglesa, seja por querer curá-
lo de sua demência ou triunfar sobre ele. Ela, assim, se moveria no cômodo ao lado,
fazendo soar seu rádio ou abrindo a porta do quarto dele silenciosamente para gritar uma
palavra em inglês, motivada por agressividade e autoridade ou por qualquer outra razão
mais obscura.
Nos lugares públicos a situação é tanto mais complexa, quando todo arsenal do
estudante se faz necessário e ele tem a certeza de ouvir falar em inglês, correndo o risco de
ser interpelado a cada instante. Por isso, ele irá, em seu segundo livro, descrever um
dispositivo mais perfeito que pode ser usado enquanto ele se desloca: trata-se de um
estetoscópio nos ouvidos, ligado a um gravador portátil no qual pode recolocar os tubos ou
retirá-los, diminuindo ou aumentando o volume. Se for exato que ele montou este
dispositivo já em 1976, bem antes do surgimento do walkman, podemos considerá-lo seu
verdadeiro inventor, como ele mesmo o diz.
Vemos, assim, que através de todos estes atos Wolfson tenta produzir algum
aparelhamento da libido, colocando em ação algo que serviria de barreira para os efeitos
insuportáveis da língua inglesa, tal como destaca Morel (1996, p. 83). E neles, é sobre a
região do ouvido que se tentará produzir alguma borda.
Práticas masoquistas
Então e ainda muito ironicamente, não seria de agora em diante ao
menos inútil continuar a queimar-se na pele aqui e ali, e expor-se ao frio e
bloquear a própria respiração, tudo isto na esperança pareceria agora
de provar para ele mesmo que o sofrimento não é de tal modo
horrível’‘de tal modo insuportável’ mesmo que a existência da humanidade
não fosse um fenômeno criminoso!?” (WOLFSON, 1970, p.252).
Estão descritas na epígrafe acima algumas das práticas que Wofson chamará de
masoquistas. Pensamos que através destas, ele se infringe dor, na tentativa de reunir, fazer
consistir seu corpo, ao menos sobre um ponto.
160
Com Lacan (1975-6) podemos dizer que a experiência da dor física é um dos sinais da
consistência narcísica do corpo, na medida em que nela o sujeito nos provas de que crê
ter um corpo, como algo que tem peso para ele.
Deste modo, novamente se trataria nas práticas masoquistas de uma tentativa de fazer
com que um órgão funcione como condensador de gozo. É este o argumento de Laurent em
Antibes (MILLER,1999), quando irá propor que a função de algumas dores relatadas por
psicóticos pode ser a de organizar uma ficção acerca do gozo do Outro, aproximando-se da
estrutura dos delírios na paranóia. Segundo ele, o delírio esquizofrênico se apoiaria num
órgão, sendo para ele suficiente encontrar uma função para esse órgão, enquanto na
paranóia seria necessário mobilizar um amplo sistema de saber.
Esta tese se aproxima bastante da concepção de hipocondria localizada proposta por
Sauvagnat (MILLER,1999) também na Convenção de Antibes que mencionamos
anteriormente (cf p.103). Neste tipo de hipocondria, o sujeito toma um órgão em especial
nas suas construções e esta localização em numa parte específica do corpo será assimilada
em termos de uma tentativa de suplência.
Assim, podemos entender que o que Wolfson procura com estas práticas em que
produz dor em si mesmo, ao expor diversas partes do seu corpo a algum suplício, é o
aparelhamento da libido sobre uma parte de seu corpo.
Com este intuito, ele vai se desdobrar em ações que nomeia de masoquismo
asexuado’. Dentre estas, estão os banhos de ducha com água congelada, a exposição ao
vento gelado no inverno, as queimaduras de cigarro e prender a respiração, através do que
ele busca circunscrever em seu próprio corpo o gozo que ele vai chamar do insuportável e
de tal modo horrível sofrimento.
Estas práticas de autoflagelação, em que seu corpo torna-se o cenário para os
questionamentos que ele faz sobre o sofrimento humano, mostram-se assim como soluções
extremas as quais Wolfson recorre. Nelas, é a produção da dor e de cicatrizes o veículo
mediante o qual se busca promover efeitos de aparelhamento da libido e de unificação e
consistência do corpo em diversas partes deste.
Encontramos em Schreber, o uso de um recurso similar, antes mesmo da
sistematização delirante (cf p. 131). Neste período, uma das estratégias das quais ele lança
mão para escapar dos ‘milagres divinos’ que visavam seu aniquilamento mental, era enfiar
161
os pés através das barras de uma janela e deixá-los sob a chuva gelada, no inverno. Nestas
situações, a dor que era produzida tornava os milagres impotentes, o que vem a
confirmar o quanto a produção de dor pode ter o papel de circunscrever numa parte do
corpo o gozo desregulado.
Contrações voluntárias do ânus
“Neste meio tempo, ele havia começado um de seus tiques, aquele onde,
sobretudo, seus esfíncters anais, mas geralmente os músculos do períneo
eram contraídos e relaxados ritmicamente em conjunto, provocando um
certo prazer erótico que parecia ter origem no ânus e no reto na fase de
relaxamento e ter sido produzido pela separação das superfícies destes
órgãos instestinais e inúmeras destas sensações sensuais parecem produzir
uma espécie de orgasmo nervoso (WOLFSON, 1970, p.110).
Wolfson vai denominar as contrações voluntárias do ânus também de ‘epilepsia
sensorial esquizofrênica’ ou ‘ano-retal’, atribuindo a estas a obtenção de um prazer erótico
e de sensações de orgasmo, o que nos leva a supor que estas lhe permitiriam algum
aparelhamento da libido, mesmo que circunscrito à região anal.
Estas contrações do ânus podem chegar a mais de trinta por dia e estão muito
freqüentemente associadas aos encontros com as prostitutas, se produzindo após a partida
delas. E Wolfson será impelido a gritar a palavra lavagem repetidamente, após a obtenção
do orgasmo anal.
Morel (1986) irá propor que a emergência da palavra lavagem nestes momentos
marca bem a espera do objeto anal como localizador de gozo, uma tentativa de limitação de
gozo. Como mencionamos no capítulo I, outros autores, como Maleval (2002), vão
reconhecer em certas fantasias perversas, associadas ao prazer restrito a uma parte do
corpo, como sendo um dos recursos para localizar o gozo nas psicoses. E este seria o
sentido das sensações de prazer que, aqui, estão relacionadas às contrações anais.
Estas práticas são descritas como uma obsessão erótica e relacionadas ao tratamento
médico da lavagem, em particular quando realizado por uma enfermeira, ou seja, por uma
mulher. E Wolfson nos fornece a matriz inicial desta obsessão. Trata-se de sua mais antiga
lembrança da infância de um tratamento para a garganta a que ele se submeteu, no qual foi
medida sua temperatura retal, com a inserção de um termômetro no último segmento de seu
162
intestino.
Chama a atenção que a partir destas práticas é construida uma espécie de
representação delirante da relação sexual. Esta gira em torno de uma concepção do órgão
feminino como um tubo inserido por uma mulher no primeiro segmento do intestino.
Temos, aqui, um belo exemplo de como para alguns psicóticos, a localização do gozo em
uma parte do corpo serve para organizar uma ficção acerca do gozo do Outro. Neste caso
parece ser suficiente encontrar uma função para a região anal para promover alguma
regulação do gozo.
Deste modo, não podemos deixar de identificar as sensações prazerosas que estas
intervenções sobre o corpo promovem a efeitos de aparelhamento da libido na região anal,
na medida em que com estas práticas este segmento do corpo que Wolfson experimentava
como estando sob a ameaça constante de germes e parasitas, deixa de ocupar este lugar de
objeto de um gozo desregulado e torna-se um fonte de prazer.
Orgias alimentares
“... ele estava, contudo, muito fortemente atraído pelos novos alimentos
[...] e ele saltaria de seu escritório, de sua poltrona, quase no momento
que ela [sua mãe] tinha saído da casa e ele comeria até estar de repente
num estado moral muito deprimido, tendo esquecido seus estudos e não
podendo dar continuidade a eles, ao menos de forma eficaz, durante talvez
horas (WOLSON, 1970, p. 45).
As orgias alimentares descritas acima por Wofson ocorrem quando a mãe dele se
ausenta de casa, e ele se compelido a comer descontroladamente os alimentos mais ricos
em gorduras e pobres em proteínas, inserindo-os em sua boca.
Wolfson as considera como uma provação, indicando o grau de esforço a que se
expõe nestes momentos, caracterizados pelas dimensões de excesso e terror.
Nestas ocasiões ele imagina ter se tornado repentinamente uma máquina automática
devoradora, abrindo todos os pacotes de alimentos, um após o outro, comendo vorazmente,
compulsivamente tudo até a última fatia. E, ao final, encontra-se mentalmente e fisicamente
exaurido, não tendo forças nem para escovar os dentes.
As orgias alimentares podem durar duas horas ou mesmo mais, pois se trata de
esvaziar diversas embalagens, caixas, garrafas, tornando-as todas vazias. É de chamar a
163
atenção, aqui, esta necessidade imperiosa de produzir um vazio, mesmo que nas
embalagens dos mais variados alimentos, que, como temos visto, é em decorrência da
produção de um vazio que se dá a montagem da pulsão, contornando os buracos do corpo.
Nestas situações, a ingestão de alimentos era feita com tanta pressa e violência que
resultava num total preenchimento da boca ou mesmo do espaço entre os dentes sem
qualquer mastigação, produzindo um bolo alimentar duro e seco. Novamente, identificamos
nestas situações um esforço por marcar e fechar o corpo, seja com o prenchimento da boca
e do espaço entre os dentes, seja com a produção de um bolo alimentar de difícil eliminação
pela região anal.
Deste modo, as orgias alimentares também trazem à tona os impasses da ausência de
limites corporais, já que a boca parece estar à mercê de todos os alimentos que estão à vista.
O próprio Wolfson explica que enche a boca de comida por não poder fechá-la, revelando
mais uma vez como experimenta o próprio corpo uma espécie de amontoado de órgãos
que não podem ser fechados. Aqui, é a boca que parece ser a extremidade do corpo sobre a
qual se tentará produzir alguma borda e colocar em ação o aparelhamento da libido.
Os alimentos escolhidos eram os de mais fácil e mais rápida ingestão, como por
exemplo, aqueles que podiam ser comidos direto da embalagem, sem necessidade de
aquecimento. Assim, eram introduzidos na boca grandes pedaços de comida, de maneira
que eles não tocassem em seus lábios para que não fosse infectado por larvas ou parasitas.
Vemos, então, que as orgias alimentares colocavam Wolfson diante de um dos seus
maiores temores: contaminar-se com vermes e larvas. A sua preocupação com estas
criaturas foi um dos principais motivos de suas internações psiquiátricas e dos tratamentos
insulínicos e com choque elétrico a que foi submetido. Normalmente, ele se esforçava por
tomar determinadas precauções contra a contaminação, como ferver alguns alimentos,
esterilizar talheres e restringir ao máximo o contato destes com seus lábios, no entanto isto
se tornava insustentável durante as orgias alimentares.
Percebemos que nestas ocasiões o perigo era múltiplo, seja porque as caixas de
comida apresentam etiquetas em inglês que ele se proíbia de ler, seja porque, ao comer, a
digestão se tornava mais pesada e assim o desviava do estudo de nguas, seja porque os
pedaços de comida, mesmo nas condições ideais de esterilização das caixas, possuiam
larvas, pequenos vermes e ovos tornados ainda mais nocivos devido à poluição do ar.
164
Estas orgias lhe causavam uma sensação de adoecimento e o deixavam deprimido,
impedindo que ele retomasse os estudos interrompidos, mesmo após algumas horas. Então,
ele ficava totalmente prostrado física e psiquicamente, pois o seu cérebro se encontrava
vazio e paralisado, que, segundo Wolfson, o sangue ainda circulava nos órgãos
digestivos.
Com esta exposição dos efeitos que as orgias tinham sobre ele, Wolfson nos dá acesso
ao modo bastante particular como ele experimentava seu corpo. Era como se para fazer
consistir o sistema digestivo fosse necessário se entregar a estas práticas avasssaladoras, o
que resultava na perda da consistência cerebral que era promovida com a sua dedicação
não menos excessiva ao estudo de línguas estrangeiras.
Destacamos, aqui, que com a ingestão desenfreada de alimentos, é a boca a
extremidade do corpo sobre a qual se buscará fazer valer o aparelhamento da libido e o que
resulta disto é a produção de alguma consistência no sistema digestivo, ao preço da
prostração mental de Wolfson. É neste sentido que a vontade de estudar, não se deixando
cair tão profundamente na melancolia e na covardia, não era suficiente para superar o
estado que se seguia às orgias alimentares.
Deste modo, durante algumas horas ele se recriminava com estupefação por ter
novamente feito a grande besteira de comer tanto; e se perguntava como poderia evitar
fazê-lo novamente, não mais repetindo o que era o inverso do que ele costumava ser, uma
criatura tão inteligente e conhecedora de muitas línguas. O grau de culpa e sofrimento
diante da idéia de ter comido demais eram tamanhos que ele chega a fazer uma tentativa de
suicídio.
Novamente, temos representado nas sensações de paralisia e vazio que as orgias
produziam em Wolfson os impasses que se colocam para ele no que diz respeito à
montagem da pulsão, como aquilo que promove o aparelhamento da libido e constitui o
corpo enquanto uma consistência, erotizada, íntegra e viva.
Outro aspecto das orgias alimentares ressaltado pelo próprio Wolfson é o da
equivalência do trabalho que elas exigem com o que é realizado por ele na memorização de
palavras estrangeiras. Ele mesmo faz este paralelo, ao diferenciar as bulimias de comida
das bulimias de dicionário.
André (1986) retoma esta equivalência entre a ngua inglesa que invade os ouvidos
165
de Wolfson e as comidas com as quais ele é obrigado a empanturrar sua boca. Para este
autor, os alimentos teriam o valor de significantes pelo viés das inscrições que compõem as
embalagens destes. Podemos reconhecer também nos vermes e parasitas que ameaçam
penetrar no ânus e na boca de Wolfson esta mesma dinâmica dos significantes que incidem
sem nenhuma mediação sobre seu corpo.
Desta maneira, percebemos que tanto a ingestão de comida a ponto de poder fechar a
boca, como a realização de todos os atos sobre o corpo para se defender da incidência
parasitária da língua inglesa e as precauções tomadas contra os vermes, demonstram o
quanto Wolfson terá que se haver com o fato de seu corpo não ter seus limites demarcados
simbolicamente.
Em torno disso também serão realizadas intervenções sobre o significante,
representado pelas palavras inglesas insuportáveis. Estas intervenções vão ter lugar a partir
do aprendizado de línguas estrangeiras. Nelas, ele lançará mão da reunião de várias línguas
estrangeiras, na tentativa de construir um suporte simbólico para seu corpo.
Ao nosso ver, o que está em jogo para Wolfson no que ele vai chamar de um
procedimento linguístico, como um ideal a ser alcançado, é realizar uma grande descoberta
científica, fazendo contribuições verdadeiramente importantes à soma do conhecimento
humano. E é a partir de sua posição na linguagem que podemos entender o que representa
para ele esta grande descoberta científica. Trata-se, aqui, de inventar uma nova relação com
os significantes que, neste caso, incidiam de forma direta sobre o corpo, a partir da criação
de um novo código, calcado em diversas línguas estrangeiras, como que veremos em
detalhes a seguir.
O procedimento lingüístico – O esvaziamento de gozo da língua inglesa -
“Prosseguindo com uma verdadeira mania estes estudos, ele buscava
sistematicamente não escutar sua língua materna que era empregada
exclusivamente no seu entorno e falada por muitas pessoas [...] Portanto,
como se fosse quase possível não escutar sua língua natal ele tentava
desenvolver meios de converter suas palavras quase instantaneamente [...]
em palavras estrangeiras cada vez que aquelas penetrassem em sua
consciênca a despeito de seus esforços de não percebê-las” (WOLSON,
1970, p. 33).
166
Wolfson inicia seu livro Le schizo e les langues(1970) contextualizando o que ele
chamou de um enamoramento repentino pelos idiomas estrangeiros. Mesmo antes de ter
sua primeira internação, no colegial, e posteriormente nos primeiros anos em que cursou a
universidade, ele tinha interesse pelas línguas romana e alemã, tendo um progresso
considerável nestes estudos. Este interesse juvenil só tornou-se um enamoramento, após sua
última evasão de um dos hospitais psiquiátricos em que foi internado.
Nesta ocasião, ele decidiu aperfeiçoar e ampliar seus conhecimentos de línguas
estrangeiras em estudos diários. E vai demonstrar surpresa com esta decisão, uma vez que
teve muita dificuldade para aprender o próprio inglês, o que conseguiu numa idade
muito posterior que a maioria. Mas diante do tamanho padecimento que a escuta da língua
inglesa lhe provocava, o estudo de outras nguas lhe pareceu uma nova medida defensiva
que viria ao auxílio de outras mais rudimentares, como tapar os ouvidos, ler livros em
francês ou alemão e ligar seu rádio num volume ensurdecedor para escutar uma sinfonia ou
um programa em língua estrangeira.
Esta nova estratégia para neutralizar os efeitos devastadores do inglês terá
conseqüências importantes e passar a regular a sua vida de relações. Com o avanço dos seus
estudos, Wolfson passa a exigir que seu pai lhe falasse em yiddish, língua materna deste
último, ao que ele respondia em alemão. Desde então, ele não cede a nenhuma das
tentativas do pai de desencorajá-lo em seus estudos, sendo que o yiddish e o alemão
tornam-se os únicos meios verbais de comunicação entre eles.
No seu dia-a-dia, ele preferia em geral a segurança parcial da casa de sua mãe aos
locais públicos, pois quando ela e seu padrasto estavam ausentes, ele podia dedicar-se aos
seus estudos, sem o risco de ouvir nenhuma palavra em inglês. No entanto, com freqüência,
sua mãe o interrompia no escritório de trabalho, dirigindo-se a ele na língua inglesa e
oferecendo-lhe alimentos recém trazidos da rua.
A presença materna forçava-o a acessar todo o arsenal defensivo de que dispunha para
evitar que as palavras inglesas penetrassem em sua consciência. A aproximação dela era
tida como geradora de muito sofrimento, obrigando-o a precaver-se ao perceber o menor
sinal da presença dela, o que era experimentado por ele como um desejo por parte de sua
mãe de triunfar sobre ele.
167
Reproduziremos a descrição de uma destas ocasiões: sua mãe, tomada por uma
espécie de gozo macabro queria injetar palavras saídas de sua própria boca nos ouvidos
dele, sua única posse, como esta mesma dizia. Em conseqüência disto, tanto seu tímpano
como os ossos de seu ouvido médio vibravam em total uníssono com as cordas vocais dela.
Percebemos assim que o lugar que a presença materna tem para Wolfson. Era como se
sua mãe quisesse atingí-lo simultaneamente com a língua da própria boca e a língua
inglesa. Diante disso, lhe restava empenhar-se na atividade compulsiva de converter,
neutralizar, transmutar ou mesmo destruir as palavras proferidas, desembaraçando seu
cérebro destas que o bestificavam e ecoavam em sua cabeça.
Esta posição de objeto do triunfo materno retrata muito bem a relação com a
linguagem muito própria das psicoses que denominamos no capítulo 3 de ‘hipocondria da
linguagem’. Nesta relação, o sujeito, por não dispor de nenhuma mediação simbólica, vai
experimentar os efeitos dos significantes no real do próprio corpo.
Assim, Wolfson nos o testemunho dos efeitos nocivos que os significantes têm
para ele, de forma muito semelhante ao caso da paciente ‘dos olhos entortados’ de Tausk
com que Freud (1915) ilustrará a particularidade da fala na esquizofrenia.
No entanto, distinguindo-se de Emma, ele vai recorrer, dentre outros recursos, a um
procedimento lingüístico, visando neutralizar estes efeitos e produzir limites e mediações
para seu corpo. Aqui, diferentemente das intervenções anteriores em que se buscava
aparelhar a libido, agindo sobre algum segmento corporal, são os próprios significantes que
sofrerão as ações do sujeito que irá realizar um processo de conversão simbólica, no qual o
que interessa é produzir alguma extração de gozo.
Este procedimento obedece ao seguinte protocolo: diante de uma palavra em inglês
que se apresenta, Wolfson deverá achar o mais rápido possível uma palavra estrangeira com
sentido semelhante, mas que também tenha um som e fonemas em comum.
Deste modo, utilizando dicionários interlínguistos, ele irá procurar as palavras mais
apropriadas, seja pela semelhança fonética ou semântica, para neutralizar e anular os efeitos
da língua inglesa.
Esta operação deve ser feita o mais rápido possível, em virtude da urgência da
situação, mas também exige muito tempo, tendo em vista as resistências próprias de cada
168
palavra, as inexatidões de sentido que surgem a cada etapa da conversão e, sobretudo, a
necessidade de extrair em cada caso regras fonéticas aplicáveis a outras transformações.
Uma ocasião que retrata muito bem este uso do procedimento lingüístico no combate
aos efeitos nocivos da ngua iglesa é a da escuta de músicas em inglês no órgão elétrico,
comprado por seu padrasto. Wolfson se refere à canção popular inglesa Good night
ladies” que o irritava profundamente, atacando sua cabeça, penetrando no seu cérebro,
mais particularmente em seus ossos temporais, o que fazia vibrar em um bloco a caixa
craniana. A própria palavra ladies” o aborrecia de tal maneira que chegava a ferir seus
olhos.
Nesta ocasião, ele lança mão do processo de conversão que faz com que esta palavra
em inglês não exista mais, tornando-se imediatamente uma palavra russa bastante similar
foneticamente e permitindo, assim, que a canção Good night ladies”, ouvida
constantemente por sua mãe, não lhe irritasse mais como antes e nem lhe dificultasse os
estudos. Vemos, aqui, claramente, o quanto a conversão de uma palavra em inglês em uma
outra língua realmente neutralizava os efeitos desastrosos da incidência do significante
sobre o seu corpo.
Conforme entendemos, esta neutralização não se fará sem que alguma perda de gozo
tenha lugar, o que nos leva a compreender porque as conversões simbólicas não podem ser
definidas como uma mera tradução. Se fosse este o caso, bastava recorrer aos dicionários e
substituir uma palavra em inglês por outro com o mesmo significado. Assim, Wolfson, com
seu procedimento, ultrapassa esta operação sobre o significado das palavras que é a
tradução, na qual não haveria nenhuma forma de perda, para promover uma espécie de
cirurgia sobre os significantes da língua inglesa, através da qual estes são esvaziados de
gozo.
Nestes esforços e manipulações para aniquilar a língua materna, a conversão das
palavras é quase sempre acompanhada por uma atenção nos movimentos labiais, da língua
e dos dentes necessários para a pronúncia tanto da palavra em inglês como da que vai
substituí-la. Nota-se, aqui, uma preocupação com a relação entre o som das palavras e o que
lhes suporte corporal, o que novamente explicita que neste caso trata-se sempre da
relação entre o significante e o corpo.
169
Apesar do horror provocado pela língua inglesa, por vezes eram lidas nesta língua
intencionalmente partes das inscrições nas embalagens e caixas de alimentos. Numa destas
ocasiões, foi possível estabelecer uma relação menos ameaçadora com idioma inglês, mais
particularmente com as palavras vegetable oil. Isto só ocorreu, por estas palavras terem sido
associadas a um artigo de jornal sobre os efeitos deste óleo na prevenção de tromboses
coronarianas, da arteriosclerose e de outros problemas de saúde que ele supunha ter.
Deste modo, a associação destas palavras com o texto do jornal resultou numa certa
perda de gozo por parte destes significantes, o que neutralizou seu efeito mortificador.
Como diz o próprio Wolfson, que os estudos por si não eram benéficos para a pressão
arterial, substituir a ingestão da gordura animal pela vegetal poderia ser.
Esta situação revela o uso de uma outra operação para neutralizar os efeitos das
palavras em inglês. Nesta operação, a palavra inglesa é colocada na relação com outras
palavras numa cadeia associativa, o que promove um esvaziamento de gozo desta.
Assim, as palavras vegetable oil”, quando associadas ao texto lido no jornal sobre a
prevenção de doenças, tornam-se inofensivas, não ecoando em sua cabeça como as demais
que lhe penetravam por qualquer via sensorial, nem exigindo que ele recorresse ao método
habitual da conversão para línguas estrangeiras. Deste modo, estas palavras vão ser
consideradas mágicas e até mesmo encantadoras, pois quando Wolfson as reconhece nas
embalagens, evita comer alimentos muito calóricos e pouco protéicos.
Vemos neste exemplo que os efeitos gozosos dos significantes foram aniquilados
quando foi possível colocá-los em associação com outros significantes, presentes no texto
do jornal.
Dentre as inúmeras estratégias de defesa empreendidas contra esta língua que, como
vimos, parasita seu corpo da mesma forma que os vermes, ele mesmo vai dar um lugar
especial ao procedimento lingüístico. É, inclusive, a partir deste, que Wolfson poderá
ocupar a posição de um estudante de línguas, o que afirma ser em diversos momentos de
seu livro, se autodenominando “o estudante de línguas esquizofrênico”, “o estudante doente
mental”, “o estudante de línguas demente”.
Entendemos que estas autodenominações, assim como as conversões lingüísticas, lhe
permitem não ser reduzido à posição de objeto com que muitas vezes é confrontado,
quando fica reduzido a sentimentos de incapacidade, adoecimento, paralisia ou melancolia.
170
Do mesmo modo, nos pareceu que a predominância do uso da terceira pessoa do
singular nos seus relatos permitiria a Wolfson obter um certo distanciamento das
experiências de excesso em seu corpo que assolavam seu cotidiano.
É indiscutível a importância do lugar que o conhecimento de línguas estrangeiras dá a
Wolfson, um lugar mais ativo e, mais do que isso, um lugar na existência, como ele mesmo
nos indica ao relatar uma conversa que teve com seus vizinhos. Nesta conversa, diante das
perguntas que lhe foram feitas sobre suas ocupações, Wolfson responde: “Eu apenas
estudo algumas línguas: francês, alemão, hebreu e russo” e, mesmo reconhecendo que
estas atividades não lhe davam nenhum retorno financeiro, destaca o quanto é a partir delas
que ocupa um lugar na existência: “... não me dão nenhum dinheiro por isto [...], mas eu
existo!” (WOLSON,1970, p.191-2).
O estudo sistemático de línguas então tem um lugar central numa luta diária contra
experiências de aniquilamento e mortificação, vividas por Wolfson justamente por não
dispor do corpo enquanto uma consistência, erotizada e com valor de vida. É neste sentido
que vamos supor no uso que ele faz das línguas estrangeiras, se apropriando e se servindo
delas de forma inédita, efeitos significativos de localização do gozo e ordenação do corpo.
Neste procedimento lingüístico que ele inventa, Wolfson vai se engajar num trabalho
de opor aos significantes tomados como plenos de gozo do idioma inglês, significantes
advindos de diversas línguas por ele minuciosamente estudadas.
Estes significantes que funcionam como restos de diversas línguas, usados para
neutralizar o idioma inglês ganham a função do que em psicanálise conhecemos por letra,
aproximando o procedimento linguístico do uso peculiar da linguagem feito por muitos
psicóticos.
Para Wolfson interessa o significante, ele mesmo, completamente isolado em relação
à cadeia significante, e, portanto, convertido em letra. É essa operação que caracteriza as
conversões que ele realiza: tornar os significantes da língua inglesa, que para ele se
colocam como não esvaziados de gozo, elementos isolados e irredutíveis.
Morel (1986) também vai considerar que o se busca com o procedimento lingüístico é
isolar o elemento material mínimo que suporta o significante a letra. Quando a letra se
separa do significante, ele se torna um objeto dejeto que pode se deixar cair. Para esta
autora, é isto que Wolfson almeja fazer, chegando a propor uma reforma da ortográfica,
171
baseada da supressão de certas consoantes, consideradas parasitas. E no lugar da letra
suprimida, viria o asterisco, um elemento isolado, convertido em objeto e potencialmente
dejeto.
Recalcati (2003) também chama a atenção para esta primazia da letra na linguagem
dos psicóticos que se manifestaria geralmente através de um trabalho sobre a sonoridade
das palavras. E vai resgatar na clínica psiquiátrica clássica do final do século XIX algumas
descrições do uso por alguns pacientes de uma ortografia e uma caligrafia completamente
especiais, o que se assemelha muito ao procedimento linguístico que Louis Wolfson (1970)
descreve em seu livro “Le schizo e les langues”.
Faremos, aqui, uma breve menção ao conceito de alíngua desenvolvido por Lacan no
Seminário 20 (1972-3), pois reconhecemos no procedimento de Wolfson um uso do
significante, fazendo prevalecer esta dimensão mais primária da linguagem.
Diferentemente da linguagem, em alíngua não se produzem efeitos de sentido, nem
interessa a comunicação, mas se trataria de uma articulação entre gozo e significante. Deste
modo, o que se destaca neste manejo singular de diversas línguas que reconhecemos em
Wolfson é uma tentativa de gozar do significante. Tal como ele mesmo declara: ... é
agradável estudar línguas, mesmo que de uma maneira louca, senão imbecil! [...] muito
raramente as coisas na vida seguem deste modo: pelo menos um pouco ironicamente”
(WOLFSON, 1970, p. 69).
Miller (2003) subllinha que alíngua é composta por qualquer coisa, detritos e restos e
tem como motor a homofonia entre os significantes e é justamente isto que vai caracterizar
o procedimento lingüístico que, aqui, descrevemos. Com vimos, a matéria prima deste
são os restos de outras línguas que apresentam semelhança fonética com as palavras
inglesas.
Com um pensamento bastante semelhante aos desenvolvidos pelos autores acima,
Deleuze (1970) sustenta que a psicose é inseparável de um procedimento lingüístico
variável. Este procedimento seria o próprio processo da psicose.
Neste sentido, Deleuze irá comparar Wolfson, com Raimond Roussel e Pierre Brisset.
Nestes três casos, o elemento em comum seria a extração de uma espécie de língua
estrangeira da língua materna, sob a condição dos sons ou fonemas continuarem sempre
semelhantes. Mas no caso particular de Wolfson, como ele mesmo diz, se trata de seguir
172
agindo para matar a língua materna, tornando-a uma miscelânia de restos de diversos
idiomas.
Seu objetivo é, portanto, destruir esta exterioridade gozosa que representa o inglês,
nomeado por Wolfson como a própria peste. A língua materna lhe penetra por todos os
lados, pois é uma língua viva que se introduz nele, sem que dela ele possa se servir, mesmo
que eventualmente essa possibilidade se coloque no seu horizonte. Empregar o idioma
inglês como as demais pessoas surge como uma possibilidade, numa ocasião em que ele
constata que as conversões linguísticas tornavam o inglês cada vez mais suportável, o
fazendo considerar que um dia se entediaria de seu procedimento com línguas estrangeiras:
“O esquizofrênico, tendo se dado conta aos poucos que não podia
praticamente em nada mudar o mundo [...]procurou se habituar a este fato
e fazer o melhor do mundo triste, impessoal e macabro [...] Além disso,
parecia, felizmente que a medida que o jovem homem alienado insistia em
seus jogos linguísticos baseados nas semelhanças ao mesmo tempo de
sentido e de som entre as palavras inglesas e as palavras estrangeiras, sua
língua materna, aquela de seu entorno, tornava-se para ele mais e mais
suportável. E mesmo esperança depois de tudo mas isto pode bem ser
somente quando ele teria, entre outra coisas, verdadeiramente se tornado
entediado deste jogo (e pareceria de algum modo que ele se tornaria) de
que o jovem homem doente mental será um dia capaz, de novo, de
empregar normalmente esta língua, o famoso idioma inlgês” (WOLFSON,
1970, p. 247).
Acompanhamos, assim, passo a passo, no livro Le schizo e les langues(1970), a
descrição de uma dedicação exaustiva a operações sobre o significante que permite a
Wolfson a localização do gozo que invadia o seu corpo, representado nos efeitos daninhos
do idioma inglês especialmente sobre seus tímpanos, ouvidos e cérebro.
Ao recorrrer ao que ele vai chamar de suas armas verbais, nosso estudante de idiomas
estrangeiros busca tratar o que se impõe como totalmente invasivo, transformando uma
língua que se apresenta como viva, que plena de gozo - como ele mesmo diz uma língua
parasita -, numa língua morta. E nos mostra claramente que este tratamento consiste na
destruição deliberada da língua inglesa, a partir da decomposição fonética dos vocábulos,
nas palavras dele, uma aniquilação combinada, um dessossamento.
Estes termos que ele emprega para definir o que seria o seu procedimento nos remete
a alguns desenvolvimentos que fizemos anteriormente. Primeiro, retomando Elia (2004)
quando propõe que muito do que observa da relação com as secreções na clínica do autismo
173
pode ser entendido como um processo de enxugamento, em outros termos, de localização
de gozo, para fazer consistir um corpo, não seria isso que Wolfson coloca em ão com o
seu procedimento, buscando enxugar e esvaziar de gozo as palavras em inglês? De modo
correlato, Recalcati (2003), quando aborda os casos de anorexia nas psicoses, nos quais se
buscaria produzir alguma consistência para o corpo, mesmo que o reduzindo praticamente a
ossos, também nos permite supor uma equivalência com o processo de aniquilação e de
dessosamento realizado por nosso estudante sobre sua língua natal.
Pensamos assim que Wolfson procura esvaziar a língua inglesa de gozo para fazer
consistir um corpo, visando desta maneira se servir, certamente de maneira inédita, da
linguagem, como ele mesmo o diz: “Mas mesmo, de sua maneira louca, senão imbecil, era
agradável estudar línguas” (WOLSON, 1970, p. 70).
As línguas estrangeiras são a matéria prima usada para produzir algum esvaziamento
no idioma inglês e localizar, mesmo que momentaneamente, o gozo que se encarnava em
seu corpo. É neste sentido que entendemos que as palavras estrangeiras serão um recurso
privilegiado, um suporte simbólico para o seu corpo.
Deste modo, poderíamos dizer que aqui não se dá uma ordenação do corpo, a partir da
regulação simbólica das máquinas viver, tal como observamos no caso Joey, mesmo que
Wolfson revele um desejo de construir um coração artificial
25
, mas ocorre uma espécie de
mecanização da própria linguagem que é submetida a todo um processo de esvaziamento,
fragmentação e redução dos significantes a seu suporte material mínimo, nos termos de
Wolfson, de dessosamento e destruição.
Esse processo de dessosamento então seria uma tentativa de construir uma
consistência corporal, a partir de uma operação de extração e perda de gozo, mediante
conversões simbólicas.Wolfson nos ensina, assim, que alguns psicóticos, por não disporem
da possibilidade de sustentar seu corpo pelo aparelhamento da libido neurótico ou mesmo
delirante, como vimos em Schreber, buscarão alternativas, como por exemplo, a construção
de um Outro código que funcione para o aparelhamento libidinal do corpo. Nas palavras
25
“O esquizofrênico [...] tinha por longo tempo sonhado contruir ele mesmo um coração artificial, mas há
muito caminho entre o sonho e o fato... De todo modo, quanto a tal órgão, uma verdadeira prótese, este será
operado por ar comprimido, havendo, felizmente, grande progresso ultimamente e esperamos de produzi-lo
em grande série talvez daqui a 2 anos” (WOLFSON, 1970, p. 143).
174
dele: “... sua língua materna, mas ele não queria se servir deste idioma, parecendo preferir
fazer assim uma verdadeira original ele mesmo...” (WOLFSON, 1970, p.221).
Conforme entendemos os trechos que reproduzimos do livro de Wolfson, é a partir do
lugar de narrador que ele nos faz um relato descritivo do procedimento lingüístico que
inventou para regular as experiências de excesso no corpo com que se defrontava no
cotidiano.
Deste modo, o estudo de línguas estrangeiras mostra estar intimamente relacionado à
redação do livro na terceira pessoa do singular. E como é revelado pelo próprio Wolfson,
no apêndice de seu livro, ele escreve sua obra com o pensamento de que estudar línguas
poderia ter algum valor e utilidade para outros.
Vemos aqui esboçado o ideal de realizar uma grande descoberta científica, fazendo
contribuições verdadeiramente importantes à soma do conhecimento humano que vai
permear seu pensamento sempre que obtém êxito em suas operações de conversão
lingüística. Como já dissemos, este anseio só ganha pleno valor se entendermos que se trata
de um desejo por estabelecer uma relação com a linguagem menos danosa que lhe
permitisse se distanciar efetivamente da posição de objeto de gozo de Outro.
É isto que nos expõe o próprio Wolfson:
“Algumas vezes nas suas reflexões sobre como livrar rapidamente seu
cerébro ecomático ou mais precisamente ecolálico de certas palavras
inglesas [...] o estudante de línguas esquizofrênico se dava conta de uma
certa generalização de um fenômeno fonético que ele havia suposto estar
antes limitado a um ou talvez dois casos [...], e fazendo estas descobertas
lingüísticas por assim dizer, ele se sentia muito inteligente, muito capaz,
muito dotado, talvez como se ele tivesse feito contribuições
verdadeiramente importantes a soma do conhecimento humano”
(WOLFSON, 1970, p. 140).
A elaboração do livro é por ele definida com uma reação em cadeia, uma vez que teria
sido o estudo de idiomas que o fez começar a bater à máquina e a escrever o seu livro. E a
produção do livro, por sua vez, reforçava o estudo, pois quanto mais ele escrevia mais ele
tinha novas idéias, o que o estimulava a seguir adiante neste projeto.
Esta relação indissociável entre o estudo e línguas e a redação de um livro nos
pareceu fundamental, sobretudo, a partir da definição da escrita feita por Lacan (1971, p.
22.) em “Lituraterre”. Neste texto, Lacan define a escrita como o ravinamento do
significado. Ravinamento significa o processo de escavação, provocado por uma enxurrada,
175
o que produziria um buraco na terra, uma depressão no solo. Deste modo, o que é destacado
na escrita é a abertura de uma vala, um canal, ou seja, a produção de uma fissura, de um
corte que ela faz operar. E como temos desenvolvido, fazer um buraco ou promover uma
marca tem para Wolfson um valor especial, pois ganha o sentido de uma tentativa de
extração de gozo e ordenação corporal.
Notamos, assim, que também a escrita reflete, de modo similar a outras estratégias
acessadas neste caso, uma necessidade por produzir um vazio, um corte, uma marca ou
borda na própria relação sem mediação estabelecida com a linguagem. Reconhecemos,
portanto, na redação de seus livros, um recurso de que Wolfson se serve para estabelecer
uma relação mediada simbolicamente com a linguagem, o que tem efeitos de ordenação
para seu próprio corpo.
Temos exposto em vários trechos desta seção o quanto, mesmo que
momentaneamente, o procedimento lingüístico anula todas as formas de intrusão no corpo.
É possível verificar, após as operações de conversão, uma certa neutralização das sensações
de tristeza, impotência, covardia, paralisia e insucesso geral, gerados quando não foi
possível reagir corretamente aos contratempos gerados pelo inglês.
Com por exemplo quando Wolfson converte a palavra “early” no vocábulo alemão
“urliche” e tem a impressão de que era fácil ou mesmo natural transformar o inglês
instantaneamente e mentalmente, através de suas próprias invenções. Nestes momentos ele
chega a crer que a palavra inglesa havia sido apagada da superfície da terra e durante um
tempo se sente verdadeiramente brilhante, pleno de inventividade e realizado.
Nestas ocasiões, mesmo as idéias iniciais, não usadas no processo de conversão final,
eram tratadas como podendo ser úteis no futuro, servindo para as novas palavras que ele
viria a inventar, além de melhorar seu estado de espírito no momento.
Para percebermos o alcance do que seriam estes efeitos de localização de gozo neste
caso, basta nos reportarmos às situações em que ele apresenta de forma bastante explícita o
grau de mortificação que experimenta habitualmente e com o qual tem que conviver, em
relação a si mesmo e aos outros que estão a sua volta, o que ele descreve a seguir:
“... o jovem homem não quer sair, mesmo para o jardim dos fundos,
porque ele estava mais deprimido e mais apreensivo que de hábito, tendo
saído o dia anterior e tendo retornado num triste estado psíquico com
sentimentos de impotência, preguiça, frustração, de não ter reagido
176
corretamente às coisas enquanto estava fora, fracasso geral! [...] ele não
podia se impedir de pensar em coisas inúteis e com um tal empenho que ele
estava completamente paralisado mentalmente e também fisicamente [...]
obcecado com a idéia que todos os outros, como ele, eram essencialmente
animais assustados de um grande rebanho, sem falar de serem ao mesmo
tempo estúpidos, hipócritas, inconseqüentes, mais ou menos abjetos”
(WOLFSON, 1970, p. 181).
O próprio Wolfson reconhece uma diferença entre os efeitos das palavras inglesas no
início dos seus estudos de línguas e após ele ter avançado nestes. A este respeito, ele chega
a dizer que no começo era muito mais fanaticamente contrário à ngua inglesa, seja ela
lida, escutada ou mesmo pensada, porque tinha menos capacidade de se defender dela,
dissecando e aniquilando este idioma que permanecia mesmo contra sua vontade por muito
tempo no seu cérebro.
Além disso, quando falava em outras línguas, ele impressionava sua mãe, seu
padrasto, os vizinhos e todos aqueles que o conheciam como doente mental e o
consideravam um imbecil.
Muitas vezes, suas reflexões sobre como desembaraçar seu cérebro de certas palavras e
seus esforços de se habituar a substituí-las instantaneamente por palavras estrangeiras,
fazem com que ele se conta de uma certa generalização de um fenômeno fonético.
Nestes momentos, Wolfson descreve ser tomado por uma sensação de alegria e verdadeira
realização, como se ele tivesse feito uma grande descoberta científica. Então ele sente-se
satisfeito consigo mesmo, já que quando confrontado com a língua materna, pode convertê-
la em outra língua mentalmente, seja “cientificamente, metodicamente, imediatamente”
(WOLSON,1970, p.70).
Além disso, a conversão de línguas permite que ele experimente a sensação de triunfo
que comumente era reportada à figura materna que com palavras inglesas triunfava sobre
seu corpo. Não nos faltam, portanto, provas da eficácia desta nova estratégia de Wolfson
para dar um outro lugar para si e para seu corpo, bastane distinto do lugar de objeto de
invasão da língua materna, de vermes e dos mais diversos alimentos durante as orgias
alimentares:
177
Se o esquizofrênico não experimentava alegria como resultado de seus
achados, naquele dia, as palavras estrangeiras para neutralizar uma
palavra de sua língua materna (porque talvez seria ele incapaz deste
sentimento), claramente ele se sentia muito menos miserável do que se
sentia habituamente. Isto ao menos durante pouco tempo
(WOLSON, 1970, p. 212-3).
Neste sentido, a partir destas operações lingüísticas, da escrita e do lugar que ocupa
de narrador de um livro é possível constatar a produção de um distanciamento considerável
da posição de objeto dos efeitos parasitários do significante, assediando um corpo sem
bordas. E o que aparece como um ideal esboçado é justamente a construção de uma outra
relação com a linguagem na forma de um conhecimento científico que sirva a toda a
humanidade, o que Wolfson apenas ivislumbrar quando experimenta a generalização de
um fenômeno fonético ou o reconhecimento de seu conhecimento de línguas por poutras
pessoas.
Deste modo, identificamos, tal como Deleuze (2004), que o procedimento nguistico
não tem êxito no que realmente almeja, o que vai dar lugar para a contrução delirante que
iremos expor nesta última seção que consiste na transposição da malignidade da doença que
causou a morte da mãe de Wolfson para todo o planeta Terra, cujo destino inelutável seria a
total destruição.
Deleuze (2004) chama a atenção para o fato das operações lingüísticas de Wolfson
não terem se tornado verdadeiramente um procedimento científico, mas terem permanecido
coladas às suas circunstâncias acidentais e efetuações empíricas.
Para este autor, portanto, o procedimento continuaria sendo um protocolo, pois gira
em falso, o que teria como efeito a produção de um vazio existencial que coloca como
única solução possível para Wolfson no seu combate aos efeitos daninhos do significante, a
explosão atômica do planeta Terra.
Em diversos momentos que citamos do seu livro, Wolfson nos faz indicações do que
realmente almeja com seu procedimento. Quando, por exemplo, revela o desejo de inventar
uma verdadeira língua original (cf p. 174), ou mudar o mundo triste, impessoal e macabro,
podendo, inclusive, vindo a se entediar de seus jogos línguísticos (cf.173). E se
reconhecermos estes como diferentes aspectos do que era para ele um ideal, estabelecer
uma relação menos danosa com a linguagem, o fato dele não ter conseguido realizá-los
torna ainda mais evidente o fracasso de sua empreitada.
178
Então, o que veremos é que o combate, visando matar a língua inglesa fica em
segundo plano, diante do que se torna para Wolfson uma necessidade imperiosa: destruir o
planeta, cujos habitantes são todos cadáveres, como veremos a seguir.
Ponto final de um planeta infernal: um delírio em construção
“Como dizia o próprio papa João Paulo II: ‘A humanidade é uma grande
doença’ Concordo com isso, e o tratamento escolhido é a eutanásia
planetária completa e definitiva. Uma explosão supercolossal coletiva!”
(Wolfson, 1975, p.22).
Se com o procedimento lingüístico tratava-se de esvaziar de gozo as palavras inglesas
através de conversões simbólicas, o que se opera mesmo que momentaneamente, mais tarde
não será apenas este idioma identificado como pólo de concentração de gozo, mas sim todo
o planeta Terra, para o qual restará o extermínio e a completa destruição. E será em
torno deste destino inelutável do planeta que irá girar o delírio relatado em “Ma mére,
musicienne, est mort...” (1975).
Wolfson diz ter escrito este livro para incorporar a mensagem materna os cadernos
que ela preencheu durante a doença, mensagem cujo conteúdo é pouco significativo, mas
que para ele o momento em que esta voz que tanto o incomodou é golpeada é decisivo.
Deste modo, ele vai dedicar este livro à morte de sua mãe, destacando com euforia o fato de
ter podido se exprimir de modo quase perfeitamente aliterativo na elaboração de seu título -
“Ma mére, musicienne, est morte de maladie maligne mardi à minuit au milieu du móis de
mai de Mille 977 au mouroir Memorial á Manhattan”.
A aliteração é um recurso lingüístico de repetição de fonemas no início e final de
vocábulos em uma ou mais palavras. E, conforme entendemos, vai representar para
Wolfson uma espécie de retorno de sua ambição de estabelecer uma relação com a
linguagem menos danosa, lhe permitindo a partir desta atenção especial que dá à dimensão
sonora do significante, gozar deste, obtendo uma sensação de triunfo.
Neste sentido, este recurso lingüístico o faz valer-se desta dimensão primária da
linguagem que é alíngua, tal como destaca Bergé (1986). No entanto, neste segundo livro, o
179
que vai se destacar como o veículo dos impasses para a localização de gozo, é uma
contrução delirante que se impõe para ele, em meio à evolução do câncer de sua mãe.
Nesta contrução, não é apenas o corpo ou a língua inglesa, mas sim o planeta Terra
todo que deve ser esvaziado de gozo; como ele diz, limpo – tal é a certeza delirante que lhe
restaura sua dignidade de sujeito: “A maior verdade, é que o planeta deve ser limpo, e eu a
conheço”, declara Wolfson, numa entrevista, “porque este planeta, o que ele é, é uma
fábrica de cadáveres” (apud MOREL, 1986, p.82).
É em torno desta certeza que se constituirão os elementos de seu delírio, como se o
que restasse como única medida a ser realizada contra o gozo desregulado fosse a
esterelização do planeta Terra, o mais rápido possível, usando a radioatividade.
Certamente é possível observar, aqui, um deslocamento em relação ao lugar que o
gozo ocupava anteriormente, incidindo na forma de uma intrusão perpétua sobre várias
partes do corpo de Wolfson e transformando a vida dele em um pesadelo.
Neste sentido, Morel (1986) irá identificar neste delírio a transposição para todo o
planeta dos impasses da montagem do circuito pulsional, que a tela de fundo de todos os
escritos de Wolfson seria um gozo do corpo não esvaziado pela incorporação simbólica.
Conforme expusemos, o que se passa com o corpo deste sujeito são os efeitos da
produção de um vazio não positivado e, portanto, anatomizado, signo de ausência de
mediação simbólica e da carência da imagem em sua função unificadora. Assim,
encontraremos no livro em ele que expõe seu delírio, uma descrição feita pelo próprio
Wolfson (1975) da condição humana, nestes mesmos termos: um vazio tão radical que
padeceria diante da presença de qualquer vírus.
Deste modo, a proposição da extinção do planeta é a resposta que ele ao enigma
humano: “Depois de tudo, havia achado a chave para o enigma do fenômeno inumano da
humanidade terrestre [...]As forças nucleares! Bum ! (mas nós o podemos ajudar os
outros [...] Nós devemos então nos ajudar. Bum!”
(WOLFSON, 1975, p.110).
A extinção da Terra é tão ardentemente defendida, a ponto de serem feitas críticas
severas ao movimento desarmamentista que é visto como um obstáculo ao processo
inelutável de limpeza radical da Terra: “Então, ao contrário de suprimir as bombas,
devemos fabricá-las em maior quantidade e mais potentes [...] e utilizá-las no final das
180
contas para tornar impossível qualquer vida sobre este maldito planeta”
(WOLFSON,
1975, p.110).
A partir deste segundo livro, nos sentimos autorizados a fazer um paralelo entre
Wolfson e a construção delirante de Schreber que, como desenvolvemos, teve para este
efeitos de aparelhagem da libido e de unificação da imagem corporal. É o Deus do delírio
de Schreber que, ao funcionar como um suporte simbólico, lhe confere um novo lugar na
existência e, ao mesmo tempo, o acesso a uma imagem corporal feminina, além de colocar
no horizonte a reconstrução de toda a humanidade, a partir da união espiritual de ambos.
Esta união espiritual que, como vemos, tem valor de vida, é o que se coloca como o
destino inelutável para Schreber. para Wolfson é da destruição de um planeta canceroso,
povoado por cadáveres da qual ele não pode escapar. Por isso, ele dirá para um rabino que
“... ‘Deus é a bomba!’, o que quer dizer evidentemente o conjunto de bombas nucleares
necessárias para esterelizar por radioatividade nosso planeta (ele mesmo extremamente
canceroso, como se diz: quatro milhões e meio de células malignas)”
(WOLFSON, 1975,
p.170).
Então, diante desta certeza que envolve todo o planeta, não é à toa que após a
comunicação da morte de sua mãe, Wolfson irá afirmar que, para ele, isto não significava
nada, que nada mais tinha sentido. E insistirá dizendo, sem nehuma hesitação, que assim
como sua mãe chegou ao paraíso, outros quatro milhões e meio deveriam seguir esta
mesma rota predestinada a eles, de pessoas mortas, habitantes de um planeta infernal e
muitíssimo canceroso.
E é mantendo esta mesma posição que concluirá seu livro, afirmando que o
verdadeiro dia da paz será o do apocalipse, citando o trecho correspondente da bíblia: “ ... a
morte não semais nada, não haverá mais nem luto, nem choro, nem dor, porque as
primeiras coisas desapareceram” (WOLFSON, 1975, p. 200).
Entendemos que neste segundo livro Wolfson explicita o caráter paradoxal da
construção delirante que, ao mesmo tempo em que representa uma tentativa de localizar o
gozo, tende a fazê-lo de forma maciça. Neste caso, isto ocorre a partir da ampliação dos
efeitos mortíferos do gozo desregulado para todo o planeta.
181
Assim, ele nos fornece a descrição de uma tentativa de regulação do gozo na qual a
paz e o paraíso serão possíveis com a destruição do planeta Terra e o extermínio de
todos seus habitantes.
Novamente, isto nos leva a comparar a construção delirante de Wolfson com a de
Schreber. Vimos que o delírio da mulher de Deus representa uma mudança na relação com
os significantes que antes incidiam sobre o corpo de Schreber de forma intrusiva, a partir da
invenção do Outro divino, juntamente com o qual o sujeito dará origem a uma nova raça de
homens. Wolfson conseguirá muito pouco deslocamento na sua relação com os
significantes, permanecendo à mercê de seus efeitos danosos que ganham uma dimensão
planetária.
Deste modo, talvez possamos dizer que Wolfson segue inventando recursos
significantes para promover um esvaziamento de gozo e conferir tanto à realidade como ao
seu próprio corpo, um valor de vida, tornando ambos relativamente habitáveis e estáveis.
Como vimos no capítulo 3 (cf p. 73-4), para Schreber, isto foi possível quando ele
ultrapassou a fase de regressão à dimensão mortífera do estádio do espelho, ingressando
num período de restauração imaginária do mundo, o que fez, não tão mais esplêndidamente,
é verdade, mas ao menos de maneira a poder viver neste mundo mais uma vez, como nos
diz Freud (1911, p. 94).
Concluímos, portanto, que o testemunho de Wolfson, mais do que qualquer outro,
aponta para a dimensão processual da invenção do corpo enquanto um u imaginário para
o real, colocando em cena aquilo que Lacan, nos anos 50, notara a respeito do delírio:
“Em relação à cadeia do delírio, se assim se pode dizer, o sujeito nos parece ao mesmo
tempo agente e paciente. O delírio é tanto mais sofrido por ele quando mais ele não o
organiza” (1955-6, p.247).
182
CONCLUSÃO
Nosso interesse maior com a elaboração deste trabalho foi fazer uso de alguns
conceitos e noções da teoria psicanalítica enquanto instrumentos clíncos que nos
auxiliassem a pensar a clínica das psicoses, sem deixar de lado a complexidade e a
heterogeneidade que a caracteriza. Nosso ponto de partida foi, justamente, a pluraridade das
experiências que tivemos, a partir do contato com pacientes grávidas e puérperas, na prática
exercida em serviços-dia infanto-juvenis e para adultos, assim como nas enfermarias e no
setor direcionado às toxicomanias do Instituto de Psiquaitria da UFRJ.
Consideramos que foi a partir do entrecruzamento entre o que a clínica nos
apresentou e o nosso percurso pelos textos de Freud e Lacan que pudemos eleger, como
tema de pesquisa, as vias de localização de gozo que promovem uma ordenação do corpo
nas psicoses. Uma escolha que, como qualquer outra, não foi sem conseqüências.
Dentre as inúmeras conseqüências desta escolha, destacamos o que se tornou uma
exigência para o desenvolvimento deste trabalho: a abordagem das teorizações da
psicanálise sobre o corpo. Assim, foram as formulações sobre o corpo que se colocaram
como nosso principal instrumento clínico, nos oferecendo subsídios para contribuirmos
para a direção do tratamento com psicóticos.
Falar, aqui, em direção clínica, talvez seja um tanto quanto excessivo, pois sabemos
não existir um único posicionamento a este respeito, o que nos fez retomar dentro do ensino
de Lacan os pressupostos teóricos do quais partiríamos para tratar da questão das psicoses.
Com este fim, sublinhamos como o elemento diferencial na abordagem das psicoses a
introdução destas dentro da função da fala e do campo da linguagem. Em seguida,
desenvolvemos o alcance que isto ganha ao final do ensino de Lacan, situando tanto a
neurose como a psicose como diferentes respostas à inconsistência do simbólico.
A reformulação que o conceito de linguagem sofre nos anos 60 foi o que nos permitiu
investigar as possíveis vias de localização de gozo nas psicoses. E a definição destas a
partir da carência de um recurso para regular o gozo - o que pode dar lugar à contrução de
uma suplência - foi fundamental para avançarmos na nossa argumentação em torno dos
recursos em que o corpo ganha destaque.
Ao analisarmos as teorias da inconsistência simbólica e das suplências, constatamos
183
que, da mesma forma que na perspepctiva da psicanálise, que reconhece nada garantir a
existência da realidade, que deverá ser construída por cada sujeito, também o corpo não
pode ser reduzido ao seu suporte biológico, nem entendido como um a priori. Assim, nos
dedicamos a explorar quais seriam as condições necessárias para um sujeito ter um corpo,
experimentado como algo vivo, relativamente estável, íntegro e habitável.
Neste momento, a pergunta “o que faz um corpo?” tornou-se nosso objeto de
investigação. E, para respondê-la, recorremos ao que a clínica da histeria ensinou a Freud
sobre a estrutura simbólica do corpo, o que com Lacan relacionamos à determinação da
linguagem no advento da imagem corporal. Com este fim, foram analisados as formulações
do estádio do espelho, os esquemas óticos e a teoria dos nós que demonstram que não se faz
um corpo sem imagem e muito menos sem significantes.
O corpo revela-se, assim, como resultante da construção de um véu imaginário para a
fragmentação pulsional, ao qual temos acesso com a mediação do Outro. E esta
construção terá lugar a partir de uma operação de perda de gozo, na forma da extração
do objeto a.
Neste percurso, a escritura borromeana veio explicitar o quanto o corpo não se
reduz ao suporte biológico e só se sustenta a partir do enodamento dos registros do Real, do
Simbólico e do Imaginário em torno de um objeto extraído, o objeto a.
Deste modo, definimos como condições necessárias para se ter um corpo a
incorporação significante, o aparelhamento da libido e o objeto a extraído. Em seguida,
direcionamos nossa pesquisa, na busca destes elementos dentro da clínica das psicoses.
Antes de abordarmos diversas situações clínicas que procuram expor como o
problema do corpo ganhará diversos matizes no campo das psicoses, retomamos a teoria da
retração da libido na paranóia e na esquizofrenia e a leitura que Lacan faz desta teoria em
seu retorno a Freud.
Nesta investigação, passando pelos desenvolvimentos que Lacan realiza sobre a
intensificação narcísica em Aimée e Schreber, foi possível reconhecer na paranóia os
elementos necessários para a construção de um corpo. A estrutura do de trevo
representaria a modalidade de aparelhamento da libido pelo significante, responsável pela
formação de uma imagem corporal nos paranóicos. Por sua vez, não encontramos nada
equivalente na esquizofrenia, na qual predominam os fenômenos de fragmentação e
184
despedaçamento, o que pode mobilizar muitos sujeitos em tentativas de unificação
corporal.
Constatamos que estes fenômenos do corpo despedaçado são um efeito da não
extração do objeto a, uma operação simbólica que condiciona a montagem do circuito
pulsional pelas bordas do corpo, as chamadas zonas erógenas. Em seguida desenvolvemos
como, na ausência desta operação, ao invés de aparelhar a libido, os significantes vão
inicidir no real do próprio corpo, vindo a caracterizar tanto os quadros de hipocondria
quanto da síndrome de Cotard, como reveladores do que designamos por ‘hiponcondria da
linguagem’.
Demonstramos também que nos quadros de anorexia e bulimia, os mesmos impasses
relativos à operação de extração de gozo se colocam e como as tentativas de contorná-los se
resumiriam às compensações imaginárias e aos rituais em torno do corpo, buscando
esvaziá-lo de gozo e dar-lhe alguma consistência.
Desta forma, em um primeiro momento nos detivemos nos impasses decorrentes de
quando o problema do corpo se torna mais agudo; em seguida, destacamos fragmentos
clínicos que indicam a presença de tentativas para incorporação do significante,
aparelhamento da libido e unificação da imagem corporal, na ausência dos recursos
neuróticos.
Em torno destas três dimensões do que definimos como invenção do corpo, nos
centramos na abordagem dos casos Dick - de Melanie Klein; Robert - de Rosine Lefort;
Stanley - de Margareth Mahler. Com este mesmo enfoque, analisamos os relatos sobre o
menino Eram, Temple Grandin e sobre o duplo homicídio realizado pelas irmãs Papin,
assim como as referências feitas aos casos de transsexualismo, anorexia e bulimia na
psicose.
Nosso interesse na exposição do que a experiência clínica de vários analistas lhes
mostrou a respeito dos impasses e das soluções para a construção de um corpo, fora do
campo da neurose, foi evidenciar o quanto as psicoses se constituem como um campo
heterogêneo e plural.
A questão do corpo, então, se revelou como um instrumento teórico-clínico fecundo,
o que veio se intensificar ainda mais com a análise dos processos de invenção de um corpo
relatados por Schreber e Joey e Wolfson. Estes três testemunhos nos deram a oportunidade
185
de não apenas trazer à cena conceitos e noções importantes na teoria psicanalítica, como
também de acompanhar o surgimento de novas hipóteses teóricas e de direção clínica.
Schreber nos permitiu sustentar que o delírio pode ser uma via de aparelhamento da
libido pelo significante. E foi possível acompanhar, passo a passo, na construção delirante
deste sujeito, como o se sucedendo diferentes posições em relação ao gozo que
correspondem a um remodelamento da própria relação com o corpo, até então condenado a
sofrer danos físicos variados e abusos sexuais.
Neste caso, foi possível fazer equivaler o processo de emasculação, no qual Schreber
se dedica ao culto à feminilidade, a um processo de invenção de um corpo para um pai. Em
decorrência deste processo, Schreber passa a dispor de uma imagem corporal feminina, a
partir de sua ligação simbólica com Deus.
Expusemos que a construção de um corpo de mulher não se faz sem uma operação de
subtração de gozo, mesmo que de forma diferente da neurose. Em Schreber esta operação
se em relação à modalidade de gozo masculina, chamada beatitude, da qual ele teve que
abrir mão para aceder a um gozo regulado na forma de uma imagem corporal feminina.
Neste sentido, o culto à feminilidade é definido como a única escolha possível para
proporcionar ao corpo um estado suportável e não permanecer um homem idiota.
Entendemos, assim, que, neste caso, o que se coloca como condição para ter um corpo
é a perda de um gozo masculino que estaria interditado a Schreber, enquanto homem vivo.
Seguindo este raciocínio, desenvolvemos que a ausência de um princípio regulador de
gozo que forneceria um revestimento narcísico para o corpo de Schreber dará lugar para
uma modalidade de regulação de gozo distinta da fálica, chamada volúpia. Uma
modalidade de regulação do gozo de ordem fundamentalmente narcisista e imaginária,
que Schreber vai reportar a produção de um prazer sensual e de alguma consistência
corporal aos momentos em que contempla a imagem de um corpo de mulher no espellho,
mediante uma relação quase contínua com o Outro divino de seu delírio.
Concluímos, portanto, que em Schreber estariam presentes todas as dimensões
necessárias para a invenção de um corpo: a incorporação siginificante, o aparelhamento da
libido e a unificação da imagem corporal. De modo correlato, sustentamos que Joey
também colocará em curso um processo no qual inventa um corpo, fazendo uso, de
diferentes formas, de recursos imaginários e simbólicos.
186
Conforme apresentamos no percurso deste menino o manejo do significante se
inicialmente na forma de máquinas que servem de suporte simbólico, fazendo seu corpo
funcionar. E posteriormente se utilizado na elaboração de teorias sobre as funções da
alimentação e da eliminação, trazendo à tona os temas do nascimento e da subsistência do
corpo.
Explicitamos que ao longo deste percurso, Joey fará uma experiência de perda de
gozo, representada pelas lâmpadas que serviam de suporte simbólico para seu corpo, às
quais ele estava fundido anteriormente. Tal como desenvolvemos, a fala de Joey de que não
precisava mais das lâmpadas - pois elas já teriam ardido demais -, indicaria como se
colocou para ele a perda do que servia como pólo de concentração de gozo.
A partir desta experiência equivalente à subtração de gozo, reconhecemos como
possível uma operação de separação simbólica que foi o que permitiu a Joey estabelecer
uma outra relação com a linguagem. É isto que nos demonstrou o último tempo do seu
tratamento, quando ele nos expõe exatamente como se esta operação, no caso a partir da
incorporação do significante chickenbox, da identificação com as galinhas e do que ele
descreve como o seu próprio nascimento.
Joey fecha com chave de ouro este percurso que lugar a uma relação diferenciada
com a linguagem e com o gozo, quando, numa visita à instituição de Bettelheim, vai
mostrar ao todos, com uma satisfação visivelmente triunfante, o seu retificador de energia.
Com esta máquina que construiu, Joey nos expõe uma mudança na própria relação
com o gozo, agora um gozo localizado num objeto destacado de seu corpo. Definimos esta
máquina como o ponto final do processo de invenção de um corpo, sendo neste caso
possível identificar as operações de incorporação significante, o aparelhamento da libido e
unificação da imagem corporal.
Por fim, nos detivemos nos livros de Wolfson, reconhecendo também nestes relatos
escritos diversas tentativas para dar um encaminhamento aos impasses decorrentes da
ausência de unidade corporal.
Dividimos a análise das estratégias acessadas por Wolfson em três subgrupos. O
primeiro composto pelas estratégias nas quais ele intervém sobre o próprio corpo, visando
impedir a audição da língua inglesa, produzindo cicatrizes e dores, obtendo prazer na região
anal e submetendo-se à orgias alimentares. Em todos estes atos sobre o corpo, identifica-se
187
a busca de produzir algum fechamento e fazer consistir o corpo, mesmo que numa
determinada parte dele, como os ouvidos ou a boca, sendo que, tanto nas contrações anais
quanto nas práticas masoquistas, Wolfson consegue alguma localização de gozo, mesmo
que circunscrita a um segmento de seu corpo.
No segundo subgrupo de estratégias, é sobre o próprio significante - representado nas
palavras da língua inglesa - que Wolfson irá intervir, a partir de um procedimento
lingüístico com o qual busca esvaziar de gozo os significantes do idioma inglês.
Neste procedimento lingüístico que inventa, ele vai se engajar num trabalho de opor
aos significantes tomados como plenos de gozo de sua língua natal, outros significantes
advindos de línguas estrangeiras, por ele minuciosamente estudadas. Estes últimos que
funcionam como restos de diversas nguas ganham a função do que em psicanálise
conhecemos por letra, aproximando o procedimento linguístico do uso peculiar da
linguagem feito por muitos psicóticos.
Com a conversão das palavras inglesas em restos de línguas estrangeiras, Wolfson
experimenta mesmo que pontualmente efeitos de localização de gozo. Por isso, para
Wolfson interessa isolar o elemento material mínimo que suporta o significante, tornando-o
um objeto dejeto que pode se deixar cair.
O procedimento linguístico de Wolfson nos levou a fazer uma breve menção ao
conceito de alíngua, por reconhecermos nele um uso do significante, fazendo prevalecer
esta dimensão mais primária da linguagem. Deste modo, o que se destacaria neste manejo
singular de diversas línguas é uma tentativa de gozar do significante.
Demonstramos que também a escrita de seus livros reflete de modo similar a outras
estratégias acessadas neste caso, uma necessidade por produzir um vazio, um corte, uma
marca ou borda na própria relação que se apresenta sem mediação com a linguagem.
Neste sentido, a partir das conversões lingüísticas, da escrita e do lugar que ocupa de
narrador de um livro, é possível constatar a produção de um distanciamento considerável da
posição de objeto dos efeitos parasitários do significante. E o que irá aparecer como um
ideal a ser alcalçado é justamente a construção de uma outra relação com a linguagem, na
forma de um conhecimento científico que sirva a toda a humanidade, o que Wolfson apenas
irá vislumbrar quando experimentar a generalização de um fenômeno fonético ou o
reconhecimento de seu conhecimento de línguas por outras pessoas.
188
Concluímos, então, que por não obter êxito no que realmente visa com o seu
procedimento sobre os significantes, Wolfson fica na dependência de seus efeitos pontuais
de regulação de gozo, o que vai dar lugar a uma contrução delirante que ele irá expor em
seu segundo livro. Com sua contrução delirante, ele propõe um novo procedimento para o
esvaziamento do gozo, a extinção do planeta com a morte de toda população; só assim seria
possível ajudar a raça humana e alcançar a paz e o paraíso.
Desta maneira, Wolfson seguirá inventando recursos significantes para promover um
esvaziamento de gozo e conferir, tanto à realidade como ao seu próprio corpo, um valor de
vida, tornando ambos relativamente habitáveis e estáveis. Assim, o testemunho de Wolfson,
mais do que qualquer outro, nos deu acesso à dimensão processual da invenção do corpo,
enquanto um véu imaginário para o real.
Até aqui, retomamos os principais pontos que constituíram nossa pesquisa e, neste
momento que somos chamados a concluir, dois tipos de pensamentos nos ocorrem. O
primeiro deles diz respeito aos resultados que alcançamos com nossa trajetória na qual,
conforme entendemos, foi possível nos servirmos dos conceitos para fazer consistir a clínca
das psicoses em sua complexidade e heterogeneidade.
Nesta trajetória, fomos inclusive surpreendidos com descobertas preciosas, como a
possibilidade de podermos nos reportar à fala de pacientes que atendemos, que muitas
delas foram esclarecedoras de aspectos cruciais de nossa pesquisa. Além disso,
consideramos um verdadeiro presente o contato que tivemos com a potência da obra de
Francis Bacon e seus comentadores, o que também se mostrou fundamental na abordagem
de conceitos e noções verdadeiramente espinhosos.
Por outro lado, neste momento de conclusão também nos vem à mente diversos
pontos de nosso texto que decididamente merecem ser desenvolvidos futuramente. É
importante dizer que, se por um lado, foi possível avançar em alguns aspectos, fazendo
articulações teóricas mais consistentes e coerentes, em outros nos deparamos com maior
dificuldade para nos apropriarmos da teoria, enquanto instrumento de reflexão sobre a
clínica. Deste modo, nos permitiremos fazer aqui uma analogia entre o processo de
construção de um texto e a constituição do corpo que vimos estar associada à articulação
entre o simbólico e o imaginário em torno dos buracos do real.
Pensamos que na elaboração do texto de uma tese estamos diante de uma operação
189
similar, na qual a partir do arcabouço teórico e da estrutura significante de uma língua
somos levados a produzir sentido, consistência e coerência e a lidar com os buracos mais
diversos. Assim, prosseguindo com nossa analogia, entendemos que os buracos de uma
tese, assim como os do corpo, são buracos ativos que operam como causa de desejo. E,
diante disso, nos sentimos justificados a retomar na forma de questões o que ao longo do
desenvolvimento deste trabalho se colocou como insuficiente, obscuro e inconsistente.
Portanto, lançamos aqui algumas questões a serem investigadas futuramente. A
primeira delas diz respeito às peculiaridades dos efeitos de localização de gozo que o de
trevo promove; a segunda delas está relacionada a esta dimensão primária da linguagem
que é alíngua e seus efeitos reguladores do corpo e da realidade; e a terceira se refere à
análise do recurso ao delírio de ruína como veículo de localização de gozo.
Curiosamente, e talvez não seja por acaso, estas três questões que lançamos, à título
de conclusão deste percurso, nos remetem a um tema que havia se colocado para nós na
ocasião da escolha dos relatos clínicos que compõem o último capítulo deste trabalho:
analisar quais seriam as diferenças no manejo do significante em Schreber, Joey e Wolfson.
190
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