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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS
UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
A NEGRA FORCA DA PRINCESA:
Polícia, Pena de morte e Correção em Pelotas (1830-1857)
Caiuá Cardoso Al-Alam
São Leopoldo, abril de 2007.
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1
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS
UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
Caiuá Cardoso Al-Alam
A NEGRA FORCA DA PRINCESA:
Polícia, Pena de morte e Correção em Pelotas (1830-1857)
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em História da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos como requisito
parcial para obtenção de grau de Mestre em
História, na área de concentração em
Estudos Históricos Latino-Americanos.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira
São Leopoldo, abril de 2007.
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Caiuá Cardoso Al-Alam
A NEGRA FORCA DA PRINCESA:
Polícia, Pena de morte e Correção em Pelotas (1830-1857)
Dissertação apresentada à Universidade do Vale do Rio dos Sinos como requisito
final para obtenção do título de mestre em Estudos Históricos Latino-Americanos.
Aprovado em 18 de abril de 2007.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Professora Drª. Sandra Jatahy Pesavento
Professora Drª. Eliane Fleck / UNISINOS
_______________________________________________________________
Professor Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira / UNISINOS
3
In Memorian a Cleber Al-
Alam, meu querido “Tio
Bébe”.
Para Julia, Clayr e Tauê.
Aos homens e mulheres
invisíveis na sociedade e
na história. E para todos
aqueles que acreditam
nos seus sonhos, e que
vão a luta!
4
AGRADECIMENTOS
Neste espaço, escreverei em primeira pessoa; não há nada mais pessoal do
que os agradecimentos. Tudo começou com a professora da UFPel, Lorena Gill. Os
primeiros agradecimentos são dirigidos a ela, pelo incentivo contagiante que
implantou tanto em mim, como em outros colegas para tentarmos este sonho que
agora se materializa
__
a dissertação de mestrado. Agradecimentos ao professor
Adhemar Lourenço por todo apoio e incentivo acadêmico. Queria agradecer também
a meu amigo Lúcio Alves e a Cláudia Tomaschewski, pois juntos viemos a Porto
Alegre de carona, na beira da estrada com muita chuva, na garra, para passarmos
pelo processo seletivo da UNISINOS. Aqui está o espaço para agradecer a todos os
caminhoneiros, cujos nomes infelizmente se perderam na memória, mas com
certeza seus rostos ficaram. Estes, incontáveis vezes superaram o temor aos
assaltos nas estradas, e, sem conhecer-me, me deram carona nas idas e vindas de
Porto Alegre a Pelotas e vice-versa.
Queria agradecer também a todos os meus amigos da Casa de Estudante
Universitário Aparício Cora de Almeida, que me acolheram, dando-me muita alegria
e conforto na solidão e tristeza que a cidade grande nos acarreta. Meu muito
obrigado de coração ao André, Piqui, Eliane, Luciano, Camila, Fabiane, Fernanda,
Francisca, Elias, entre tantos outros. Esta Casa de Estudante, a famosa CEUACA,
tem hoje mais de setenta anos, e é responsável por, de forma autônoma, acolher os
estudantes do interior que não têm condições financeiras para alugar apartamentos
ou casas. Por último, em relação à Casa, foi um prazer imenso ter, junto com meus
colegas, organizado o Arquivo Histórico daquela instituição e ter efetuado uma
5
exposição sobre sua trajetória, que chegou inclusive a ser exibida na Casa de
Cultura Mário Quintana.
Agradecimentos a Capes pelo financiamento da bolsa. Dentro da UNISINOS,
gostaria de agradecer profundamente à Janaína, da Secretaria do Pós-Graduação
da História, por ter alertado sempre sobre as burocracias acadêmicas, e ter tido um
relacionamento atencioso e humano comigo. Agradeço muito às professoras Eliane,
Maria Cristina, Marluza, Ieda, que me provocaram com seus profundos
conhecimentos da área da História; com certeza há muita influência delas neste
trabalho. Agradeço a meus colegas e amigos Rodrigo, Marlon, Alejandro, Mauro,
Márcia, Aninha, Ney, por termos partilhado de amizade em nossa sala de aula,
diferente deste mundo acadêmico individualista que parece não ter fim. Meu muito
obrigado também ao Vinícius e à Daniela, que me deram um grande apoio, seja em
relação a empregos, à pesquisa, como também pela amizade que adorei formar e
espero que se perpetue.
Este agradecimento é muito especial, e vai para uma pessoa maravilhosa,
pena que seja gremista
__
meu orientador Paulo Moreira. Minha prefrência pela
UNISINOS teve como eixo central a escolha pela orientação do Paulo, por este ser
não só um grande pesquisador, mas uma grande pessoa. Um “cara” humilde, bem
diferente dos indivíduos que ultimamente circulam pelas universidades, preocupados
apenas com seus umbigos acadêmicos. Ele é aquele tipo de figura que quando fala
de História seus olhos brilham, e consegue empolgar a todos que estão à sua volta.
Vale lembrar que sempre que seus alunos enfrentam dificuldades, seja em relação à
pesquisa ou em relação à vida, essa personalidade extraordinária estende a mão, e
comigo não foi diferente. Paulo, desculpe a extensão do agradecimento, mas,
sinceramente, muito obrigado.
6
Meu muito obrigado à minha família do bairro Simões Lopes, mamãe
Camima, Béia, Ana, Leandra, Vó Xica, Vô Osmar, por me terem feito uma pessoa
feliz; com certeza este trabalho teve muitas influências de vocês. Obrigado à Dinda
Gilce, pelo apoio na revisão deste trabalho e pelos incentivos perante a vida,
sempre. Agradecer também a toda minha família, e a todos os meus amigos que
suportaram meu mau humor e me deram incentivos permanentes. À Aline Lima,
mulher que fez parte de meu coração nestes últimos anos, muito obrigado pela paz
que me passou, pelo companheirismo, pela vida compartilhada comigo.
Queria agradecer a uma pessoa muito especial, que admiro muito, uma
pesquisadora muito qualificada, e um ser humano incrível. Débora, muito obrigado
por tudo.
Por último, queria agradecer à minha família nuclear, a de casa, meu pai
Clayr, minha mãe Julia e meu irmão Tauê. Não há palavras que possam definir o
que sinto por vocês, não há palavras também para exprimir meus agradecimentos a
todo incentivo estrutural que me deram nesta etapa e sempre. Pessoas
maravilhosas, aquele tipo de família oposta às tradições, que sempre incentivaram e
me provocaram para que meus sonhos criassem asas; e gente, não é que consegui!
Amo vocês.
7
“Eu falo, falo, mas quem me ouve retém
somente as palavras que deseja. Uma é a
descrição do mundo a qual você empresta a
sua bondosa atenção, outra é a que correrá os
campanários de descarregadores e gondoleiros
às margens do canal diante da minha casa no
dia do meu retorno, outra ainda a que poderia
ditar em idade avançada se fosse aprisionado
por piratas genoveses e colocado aos ferros na
mesma cela de um escriba de romances de
aventuras. Quem comanda a narração não é a
voz: é o ouvido.”
(Trecho da fala do personagem Marco Polo no livro de
Ítalo Calvino, chamado “As cidades invisíveis”).
8
RESUMO
Nesta dissertação abordamos a cidade de Pelotas durante o final da primeira
metade do século XIX (1830-1857), a partir da perspectiva das práticas de justiça.
Utilizamos os mais variados tipos de fontes, desde processos-crimes, percorrendo
jornais, e documentos administrativos da Província e do município. Primeiramente
buscamos estudar a forma como foi imposta a questão da pena de morte na cidade;
logo partimos para a análise dos projetos e da construção da primeira Casa
Correcional da localidade. Paralela a estas instituições, nascia também a Polícia,
primeiramente como Guarda Municipal Permanente, depois como Força Policial.
Procuramos observar, então, como foram postos em prática estes “modelos
europeus de civilização” no que concerne às práticas de justiça, mais
especificamente as de punição e disciplina, dando ênfase para as reações das
pessoas que viviam na cidade, principalmente a chamada camada “popular”.
Palavras-chave: Pena de Morte. Casa Correcional. Polícia. Pelotas. Populares.
9
ABSTRACT
The present dissertation approaches Pelotas city during the middle of the
XIXth century (1830-1857), from the perspective of justice practices. It makes use of
several kinds of sources, since criminal lawsuits, journals, and administrative
documents deriving from the Province and from the municipal district. In first place, it
approaches the imposition of death penalty, then analyses projects to construct the
first “Correction Place” in the area. The birth of the police came with these
institutions, at the beginning as Permanent Municipal Guard, later as Police Force. It
observes the imposition of these “European civilization models” to the justice
practices, specifically the punishment and disciplinary measures, with focus on
people´s reactions, mainly the so called “popular” layer of the society.
Key words: Death penalty. Correction Place. Police. Pelotas. Popular.
10
SUMÁRIO
RESUMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
8
ABSTRACT . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
9
SUMÁRIO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
10
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
12
ÍNDICE DE TABELAS. . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
13
ÍNDICE DE GRÁFICOS . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
15
ÍNDICE DE ANEXOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
16
ABREVIATURAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
17
INTRODUÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
18
1º CAPÍTULO - A CIDADE QUE ME CONTARAM, A CIDADE QUE
CONHECI E A CIDADE QUE PASSO A NARRAR. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
.
33
1.1. Pelotas: Uma ilha de costumes europeus cercada de penitenciárias
escravocratas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
34
1.2. Pelotas Insubmissa: Escravos e peões de tropas como sujeitos do
caos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
52
2º CAPÍTULO - CIDADÃOS INDUSTRIOSOS NÃO DEVEM SER
CONSTANTEMENTE DISTRAÍDOS DE SEUS MISTERES: A
ORGANIZAÇÃO DO POLICIAMENTO EM PELOTAS. . . . . . . . . . .
71
2.1. A Guarda Nacional não basta, eles “[...] não podem arrostar-se, sem
apoio, com criminosos adestrados as armas, e assassinato” . . . . . .
72
2.2. Disse “que não era escravo para lhe gritar”: A formação da Guarda
Municipal Permanente em Pelotas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
77
2.3. Nasce o Corpo Policial da Província. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
93
3º Capítulo – CASA AMARELA: TEORIA E REALIDADE CARCERÁRIA
EM PELOTAS NO SÉCULO XIX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
111
11
3.1. O nascimento da Casa de Correção de Pelotas. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
116
3.2. A beira do Santa Bárbara: local de escravos, vadios e Correção. . . .
120
3.3. Sem aprendizado em oficinas e escolas, o que sobrou foi mão-de-
obra barata para o Estado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
132
3.4. Entre fugas e arrombamentos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
139
3.5. Os presos padecem: A cadeia carece de tudo quanto a Constituição
recomenda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
144
3.6 A prisão segrega: uma invenção chamada crise prisional. . . . . . . . . .
161
4º Capítulo – PELOTAS ENFORCA: ALGUMAS PROVOCAÇÕES A
RESPEITO DA PENA DE MORTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
165
4.1. A Junta de Justiça: o Judiciário Rio-grandense antes do Código
Criminal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
174
4.2. Na Princesa do Sul, a forca tinha cor, era negra! . . . . . . . . . . . . . . . . .
176
4.3. Recursos de Graça, escravo João e o escritor Victor Hugo. . . . . . . . .
181
4.4. Forca em Pelotas: cartografia e rito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
193
4.5. Algumas histórias dos enforcados. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
202
4.5.1. Fevereiro de 1847: tempo de revolta escrava nas águas de Pelotas
202
4.5.2. A procura de senhor: o enforcamento de Belizário. . . . . . . . . . . . . .
216
CONCLUSÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
228
REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
232
FONTES PRIMÁRIAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
243
ANEXOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
246
12
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 – Presos bebendo dentro da cadeia. . . . . . . . . . . . . . . . . .
84
Ilustração 2 – Vista frontal da Casa de Correção de Pelotas. . . . . . . .
122
Ilustração 3 – Desenho da Casa de Correção no início do século XX.
122
Ilustração 4 – Preso rezando sendo vigiado pela torre central. . . . . .
125
Ilustração 5 – Presos na cela. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
126
Ilustração 6 – Presos escravos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
138
Ilustração 7 – Ratos e baratas como cotidiano das celas. . . . . . . . . . .
160
Ilustração 8 – Escravos Marinheiros no Porto de Rio Grande. . . . . . .
208
13
ÍNDICE DE TABELAS
Tabela 1: População Livre - Pelotas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
66
Tabela 2: Gastos Provinciais com o Corpo Policial (1835/1845). . . . . . . . .
95
Tabela 3: Faixa etária dos policiais internados na Santa Casa de
Misericórdia de Pelotas (1849/1855). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
100
Tabela 4: Origem dos Policiais internados na Santa Casa de
Misericórdia de Pelotas (1849/1855) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
102
Tabela 5: Cor dos Policiais internados na Santa Casa de Misericórdia de
Pelotas (1849/1855) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
104
Tabela 6: Estado Civil dos Policiais internados na Santa Casa de
Misericórdia de Pelotas (1849/1855). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
108
Tabela 7: Quadro comparativo dos crimes cometidos na Província de
São Pedro do Rio Grande do Sul, no decênio de 1851 a 1860, e
143
14
ano de 1861 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Tabela 8: Crimes no Rio Grande do Sul em que foram capturados ou
condenados os réus. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
143
Tabela 9: Relação das enfermidades contraídas pelos presos entre 1848
a 1853 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
153
Tabela 10: Relação de presos que morreram na Santa Casa de
Misericórdia de Pelotas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
156
Tabela 11: Qualificação dos presos internados – Item Cor . . . . . . . . . . . .
157
Tabela 12: Qualificação dos presos internados – Item Naturalidade. . . . .
157
Tabela 13: Idade dos presos internados. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
164
15
ÍNDICE DE GRÁFICOS
Gráfico 1: Idades dos Policiais Internados na Santa Casa de
Misericórdia de Pelotas (1849/1855) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
101
Gráfico 2: Cor dos Policiais internados na Santa Casa de Misericórdia
de Pelotas (1849/1855). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
105
Gráfico 3: Quantias destinadas pela Presidência da Província ao
sustento dos presos pobres da cidade de Pelotas (1847-57).
150
Gráfico 4: Idade dos presos internados. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
164
16
LISTA DE ANEXOS
Anexo 1 – Mapa de Pelotas em 1835. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
246
Anexo 2 – Ata de enforcamento dos escravos Salvador, Bento e João.
.
247
Anexo 3 – Ata de enforcamento do escravo Belizário. . . . . . . . . . . . . . .
248
Anexo 4 - Ata da negativa do Recurso de Graça ao escravo Belizário
condenado a morte. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
249
17
ABREVIATURAS
AHRGS - Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (Porto Alegre/RS).
AHCMP – Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Pelotas.
AMU – Fundo Autoridades Municipais.
APERGS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.
BPP – Biblioteca Pública Pelotense.
CEDOV – Centro de Documentação e Obras Valiosas
MSCM – Museu da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas.
MCSHJC – Museu da Comunicação Social Hipólito José da Costa (Porto
Alegre/RS).
BRG – Biblioteca Rio-Grandense (Rio Grande/RS).
18
INTRODUÇÃO
Enquanto o pobre operário
Do sono o espectro afugenta,
- Rasgando um porvir aos filhos
Aos golpes da ferramenta;
Enquanto – cortando os mares
Batidos pelas procelas,
O nauta sonha o futuro
Ao surdo bramir das velas;
Enquanto o triste soldado,
Prostrado junto à espingarda,
Vela da pátria o sossego...
Sentindo orvalhos na farda...
Enquanto em calma vigília
Pensa o sábio – noite fora
Sonhando o porvir do povo
Sem mesmo dormir um’hora;
Enquanto em fria senzala,
Sobre a trapeira atirado,
Sonha o escravo a liberdade
Como um cão acorrentado...
O rico, o nobre, que nunca
Teve da glória a emoção,
Dorme... e entre sonhos murmura:
Que tolos! Que tolos são!
1
Desde agora, nesta parte introdutória do trabalho assumimos que esta
pesquisa foi feita com muita paixão. O fazer história, pesquisar, interpretar, não
existe para nós sem o sentimento da paixão, do entusiasmo. Evidente que devemos
controlar este sentimento para não deixá-lo tomar conta de nossas narrativas, por
exemplo, mascarar com finais felizes aquelas histórias dramáticas de grupos ou
indivíduos com quem simpatizamos. Mas devemos ter motivos para pesquisar,
devemos ter questões subjetivas que nos fazem perguntar, e descobrir as respostas.
1
Poema sem título de Francisco Lobo da Costa escrito por volta do ano de 1888. In: Auras do Sul.
Porto Alegre: Martins Livreiro, 1981.
19
O fazer história, para nós, tem como pano de fundo alguns interesses sejam
eles coletivos ou individuais. Talvez não mais aqueles que determinavam nosso
futuro, baseados na visão de uma história evolutiva em que bastava a nós seguir
fórmulas que chegaríamos ao mundo perfeito, ou então aquelas que insistiam na
desistência do mundo, pois ele já estava destinado.
Acreditamos nas palavras já envelhecidas de um pensador de barba branca
da área da educação chamado Paulo Freire: “O mundo não é, ele está sendo”. A
história também, ela não foi, e nem é, ela está sendo - a tarefa do historiador é a de
um eterno interpretar. Evidente que a disciplina histórica construiu uma forma
específica de pensar, com métodos que se diferenciaram conforme os tempos, mas
que seguem na busca de interpretações. E esta é a questão central, a história se
apresenta para nós como um jogo de interpretações. Este tipo de posicionamento
não é novo; advém de reflexões de escritores já consagrados no campo da
historiografia, como, por exemplo, Michel de Certeau, e Paul Ricoeur, que
evidenciaram a pertença da história ao gênero da narração - para eles os
historiadores escrevem textos.
Hayden White, mais radical nesta interpretação, considerou que as narrativas
históricas de certa maneira compartilhariam dos mesmos métodos da literatura,
seriam “[...] ficções verbais cujos conteúdos são tão inventados quanto
descobertos”
2
. Concordamos com Chartier quando este afirma que mesmo que o
historiador escreva de forma literária, ele não faz literatura, e isso se deve ao fato de
sua dupla dependência: “Dependência em relação ao arquivo, portanto, em relação
ao passado do qual este é a pegada”
3
.
2
White Apud CHARTIER, Roger. Uma crise da história? A história entre narração e conhecimento. In:
PESAVENTO, Sandra Jatahy. (Org). Fronteiras do milênio. Porto Alegre: Ed. Universidade UFGRS,
2001. P. 134.
3
CHARTIER, 2001, op. cit. P. 135.
20
História é uma disputa de poder, onde direcionamos nosso olhar, nossa
análise para aquilo que achamos mais interessante, fazemos escolhas, por outro
lado excluímos questões, contamos o que de fato pode ser importante para nós
pesquisadores. E o que é importante para nós, pode não ser para o outro; esta
questão da escolha, da seleção, deve ser assumida como um ponto de partida da
tarefa do historiador. Estes “mestres artesãos dos relatos do passado”, como
chamou Ricoeur, são herdeiros desse mesmo passado, que de certa maneira
perpetua-se e os afeta. O presente trabalho se apresenta assim, como
interpretações de acontecimentos do passado que nos parecem importantes para
compreender, por exemplo, a construção da cidade de Pelotas, as permanências
desse passado nos dias de hoje, assim como as suas descontinuidades.
De certa forma, trabalhamos na história com imaginação, mas como diria
Chalhoub, com uma imaginação “controlada” pela pesquisa em fontes, pela procura
e pela contraposição dos vestígios deixados pelos antepassados
4
. Em nossa
pesquisa, nos debruçamos nos mais variados tipos de fontes, pesquisados em
múltiplos arquivos e lugares de memória. Percorremos as cidades de Pelotas, Rio
Grande e Porto Alegre, na busca desses “papéis velhos”, que ao serem analisados
parecem encher-se de vida, como se no momento da leitura eles nos
arremessassem ao passado. Um passado, chamamos a atenção, que não existe
mais, impossível tentar reconstruir, ou resgatá-lo; ambas as palavras
“reconstruir/resgatar” são perigosas. Dão a entender que quando lidamos com
história é como se pegássemos o passado na mão, trazendo para o presente
exatamente a representação do ele foi. Não concordamos com isso, portanto,
insistimos neste princípio de texto na idéia da interpretação. Nas palavras de Walter
4
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. P. 18.
21
Benjamin, “Articular historicamente o passado, não significa ‘conhecê-lo como ele de
fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no
momento de um perigo”
5
. A tarefa do historiador se aproxima de uma certa
invenção, mas como já chamamos a atenção, “[...] uma invenção construída pela
atenta escuta das vozes do passado”
6
, ou seja, na atenta análise dos documentos.
Assumimos esta responsabilidade, de que, de certa maneira, reinventamos o
passado, para que o leitor perceba os campos de combate em que se insere a
disciplina; para que assim este mesmo leitor possa se sentir provocado a saber
mais, para que perceba que as abordagens dos objetos a serem pesquisados na
história são inesgotáveis assim como as possibilidades de interpretação. E de
nenhuma forma isto pode desmerecer o trabalho do historiador, pois seu olhar, como
o de qualquer profissional, é treinado, ele se qualifica ao buscar referenciais
bibliográficos, ao buscar nas fontes não só o que está escrito, mas também os
silêncios que podem ser ainda mais esclarecedores.
Nosso interesse por este trabalho despertou a partir das primeiras reflexões
ainda no percurso da graduação. Ocasião esta em que trabalhávamos num Museu
Municipal da cidade de Pelotas, chamado Museu Municipal Parque da Baronesa.
Como o próprio nome indica, o museu foi durante o século XIX a moradia de uma
família que teve como seu patriarca a figura de Anníbal Antunes Maciel, o Barão de
Três Cerros. Trabalhamos neste museu durante quase quatro anos, do ano de 2001
a 2004, tendo como parceiros muitos outros “trabalhadores da memória”. No período
que realçamos, o Museu da Baronesa teve uma redefinição de sua prática
museológica. Prática esta provocada por um novo grupo que então assumia a
gestão daquele espaço de memória.
5
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. P. 224.
6
DAVIS, Natalie Zemon. O Retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 21.
22
O museu surgiu no início da década de 80, através de uma parceria entre a
família Antunes Maciel e a prefeitura da época. No pano de fundo, o que estava em
jogo era uma autorização para o loteamento do hoje conhecido bairro residencial
Baronesa, loteamento com sua negociação obstaculizada na época, devido ao não
pagamento de impostos por parte dos Antunes Maciel. Em troca do abatimento
desta dívida, a família doaria a antiga casa de seus antepassados para o futuro
museu da cidade que se instalaria ali. Efetuada esta transação, logo se construiu
uma instituição de memória calcada nos velhos conceitos de museu e patrimônio.
Naquele espaço então constituído o que se mostrava eram as grandes coleções, os
objetos dos grandes homens, as peças exóticas, exaltava-se ali os grandes fatos da
elite dominante seja no passado, como no presente
7
. Ou seja, as histórias dos
barões, dos coronéis, da elite branca agrária e urbana da cidade de Pelotas eram
glorificadas, como um modo de legitimação das desigualdades do presente.
Quem entrava no Museu da Baronesa saía com a sensação de que não havia
nenhum outro grupo que teria tido uma participação importante na história da cidade.
Como se quem fizesse as práticas domésticas, as tarefas da pecuária, do charque
fossem os próprios barões, e mais ninguém. Uma sensação de uma história linear,
sem conflitos, uma história doce como as hoje famosas guloseimas pelotenses.
Mas este modo de pensar a museologia, na década de 80, especificamente
no ano de 82, já era considerado “velho”. Dez anos antes acontecia no Chile de
Allende, chefe do governo popular, um seminário intitulado Mesa-Redonda de
Santiago, que entre outras coisas redefiniu o papel dos museus. Este evento
organizado pela UNESCO, a partir daquele momento passou a entender os museus
7
LARA, Sílvia. História, Memória e Museu. Revista Memória e ação cultural. São Paulo: Arquivo
Municipal, 1991. p. 101.
23
como “[...] instrumentos dinâmicos de transformação social”
8
. Em acordo com essa
idéia, os museus levariam em conta nas suas práticas os problemas das sociedades.
Enquanto isso, em Pelotas, nascia o “novo” museu da cidade, como diria José de
Souza Martins
9
, no Brasil, o novo já nasce velho.
Durante trinta anos, Pelotas pouco avançou nas suas práticas museológicas,
tirando de fora, é claro, algumas atividades isoladas, geralmente incentivadas por
ONGS, ou outros grupos dissociados dos poderes estatais. Em 2001, foi empossada
uma nova direção do Museu da Baronesa, estabelecendo, no final deste ano, uma
parceria com a Universidade Federal de Pelotas, especificamente com o curso de
História. A partir disso, estudantes passaram a formular e praticar as atividades
daquele espaço de memória. Logo, este grupo, através de atividades de qualificação
interna, interagiu com os diferentes conceitos de memória e patrimônio, definindo
suas práticas em acordo com os postulados da corrente teórica chamada Nova
Museologia, que entendia o Museu como um espaço com função social, um espaço
de educação, construído através da interação das diferentes visões de história. O
patrimônio passou a ser entendido como um “[...] terreno em construção, fruto de
eleição e campo de combate [...]”
10
entre os grupos sociais, patrimônio como um
lugar de poder.
Durante estes quatro anos passaram por lá vinte e quatro bolsistas; eram
estudantes do curso de História, Ciências Sociais, Letras, Artes, entre outros. Mas
também outras pessoas contribuíram com aquele trabalho
__
músicos, mães-de-
santo, designers, artistas visuais, pedreiros, motoristas, trabalhadores da limpeza,
8
VARINE, Hugues de. A respeito da Mesa-Redonda de Santiago. IN: ARAUJO, Marcelo Mattos &
BRUNO, Maria Cristina. A memória do pensamento museológico Contemporâneo: Documentos e
depoimentos. Comitê Brasileiro do ICOM, 1995. P. 18.
9
Ver MARTINS, José de Souza. O poder do atraso: Ensaios de Sociologia da história lenta. São
Paulo: HUCITEC, 1994.
10
CABRAL, Magaly. Comunicação, educação e patrimônio cultural. In: Comunicação no 8º Fórum
estadual de museus do Rio Grande do Sul. Rio Grande: 2002. P.1.
24
etc. Todos, de alguma forma, construíram um museu diferente. Este espaço de
memória realizou exposições temporárias, efetuou a inserção da história do negro na
exposição permanente (para muitos esta ação foi tida como absurda), construiu uma
reserva técnica, um centro de documentação. Também praticou os sábados de
passe-livre para receber aqueles que não podiam pagar o ingresso, efetuou festas
no parque durante alguns domingos, e, principalmente, provocou a comunidade
pelotense com projetos de educação patrimonial. Foram três projetos: um projeto
com a terceira idade, um projeto com as escolas noturnas, e outro com as terceiras
séries do ensino fundamental das escolas da rede municipal. Infelizmente, com a
troca de direção do Museu da Baronesa, no início do ano de 2005, aquele espaço de
memória voltou a ter uma compreensão e prática tradicional da museologia.
E foi neste contexto que passamos a elaborar esta dissertação que agora se
apresenta. Não entendíamos na época o porquê das histórias dos escravos, dos
trabalhadores livres pobres, das pessoas comuns não serem realçadas. Este
sentimento, pelo que observamos, é compartilhado nos dias de hoje por muitas
pessoas. A cidade se caracterizou, tanto internamente como externamente, a se
representar, em nossa visão, de um modo vicioso, como um lugar de um passado
opulento, de barões e baronesas bem vestidas. Há uma certa alienação no sentido
de que não se problematiza as relações travadas no passado, apesar de os
movimentos sociais, como o movimento negro, insistirem já há pelo menos trinta
anos nas críticas a estes tipos de representação. Aqueles que não descendessem
da estirpe dos baronatos estariam condenados a não terem passado, salvo se
persistissem as histórias dos velhos que passam nas rodas de conversa das famílias
de geração em geração.
25
Este trabalho tem talvez o trunfo de poder levantar aos olhos desta sociedade
atual as histórias da população pobre pelotense da primeira metade do século XIX,
como os policiais, presos, escravos, trabalhadores livres, etc. Utilizando uma
metáfora já bastante conhecida de Walter Benjamin, mas que continua atual, neste
trabalho, escovamos a história da cidade a contrapelo
11
. Viramos e reviramos a
documentação atrás destas histórias de pessoas esquecidas, de estratégias de
sobrevivência que ainda perpetuam pelas ruas no cotidiano de Pelotas. Nas
palavras de Mário Quintana “O passado não reconhece o seu lugar: está sempre
presente...”
12
.
Observamos, de uma maneira geral, que assim como na poesia de Lobo da
Costa que descrevemos inicialmente aqui, enquanto os grupos dominantes
perpetuavam a dominação econômica e social sob as camadas populares, estes
reinventavam suas vidas, reacendiam seus sonhos, rasgavam o porvir aos golpes
das ferramentas como dito nas palavras do poeta.
Primeiramente o trabalho teve como objeto central de estudo os
enforcamentos na cidade de Pelotas durante a vigência da pena de morte na época
do Império brasileiro. Mas ao revirarmos a documentação passamos a notar que as
histórias encontradas começaram a extrapolar nosso objetivo primeiro. Encontramos
uma cidade de Pelotas na primeira metade do século XIX completamente diferente
do que os discursos tradicionais reconheciam. Pelotas não apareceu para nós como
uma cidade apenas opulenta, onde a vida se resumia às famílias abastadas; Pelotas
também apareceu como uma cidade popular.
Nesta dissertação usaremos muitas vezes o termo “populares”, que de certa
forma aproxima-se da discussão da categoria de subalternos. Conforme opinião de
11
BENJAMIN, 1994, op. cit. p. 225.
12
Poema chamado “Intrusão” In: QUINTANA, Mário. Na volta da esquina. Porto Alegre: Globo, 1979.
p. 29.
26
Sandra Pesavento, utilizar este conceito nos leva a reconhecer as relações de
subordinação e dominação, “[...] em exclusão política, em inserção por baixo na
estrutura social, em ausência ou presença pouco significativa de direitos frente o
grande acúmulo de deveres”
13
. A escritora busca esta referência nos escritos de
Gramsci, que os definiu como as classes excluídas do sistema hegemônico,
entretanto encontramos dificuldades em ver estes grupos enquanto unidade, apesar
de encontrar solidariedades entre eles, como nos casos dos policiais, presos,
escravos; havia algo que os unia, que os faziam agir algumas vezes em conjunto, a
situação de pobreza. Esta idéia de poder visualizar o conceito no plural, como
“populares/subalternos”, ou seja, poder entender que dentro desta mesma categoria
haviam diferenças culturais fundamentais, surge com as contribuições entre a
história e a antropologia durante a década de 60, 70 do século XX. Principalmente a
partir das discussões entre Bakhtin e Ginzburg sobre os usos dos conceitos de
cultura na área da história
14
. Para estes, no campo das representações simbólicas
da área da cultura, os populares ou subalternos “[...] tanto incorporam valores,
crenças, ritos e hábitos da classe hegemônica (por efeitos de coerção e/ou
aquiescência) quanto exportam elementos culturais ‘populares’ para a cultura
dominante, que os absorve e metaboliza”
15
. Haveria então, uma circularidade entre
as culturas, uma troca, e não simplesmente uma imposição.
Este tipo de compreensão do conceito de cultura utilizado na história nos leva
a perceber que a imposição de um conceito sobre o popular, que possa ser
transportado de uma época a outra de uma forma rígida, pode generalizar os
13
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os pobres da cidade: vida e trabalho – 1880-1920. Porto Alegre:
UFRGS, 1998. P. 13.
14
Para esta discussão da área da historiografia sobre o conceito de “populares” é interessante ver
além de PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os pobres da cidade: vida e trabalho – 1880-1920. Porto
Alegre: UFRGS, 1998; também ver: CARVALHO, Daniela Vallandro. “Entre a solidariedade e a
animosidade”: Os conflitos e as Relações Interétnicas Populares Santa Maria – 1885 a 1915. São
Leopoldo: UNISINOS, 2005. Dissertação de mestrado.
15
PESAVENTO, 1998, op. cit. p. 15.
27
estudos sobre a compreensão de mundo destes grupos. Martha Abreu nos alerta
que:
[...] a cultura popular não se conceitua, enfrenta-se. [...] O conceito emerge
na própria busca de como as pessoas comuns, as camadas pobres ou os
populares (ou pelo menos o que se considerou como tal) criavam e viviam
seus valores [...] considerando sempre a relação complexa, dinâmica,
criativa e política mantida com os diferentes segmentos da sociedade:
seus próprios pares representantes do poder, setores eruditos e
reformadores
16
.
Não devemos esquecer, também, que a categoria popular é uma categoria
erudita, construída por indivíduos interessados em delimitar, caracterizar, nomear
práticas, que nunca são designadas por seus atores como pertencendo a “cultura
popular”
17
.
E é uma cidade de Pelotas, do ponto de vista de alguns grupos populares,
que tentamos mostrar no primeiro capítulo. Primeiramente contrapondo a
historiografia que apenas demonstrava uma visão de Pelotas como uma cidade
sofisticada e europeizada. Este tipo de olhar simplificou a formação social da cidade,
ao desprezar amplos e majoritários setores ali habitantes. Logo depois, partimos ao
contraponto de alguns argumentos construídos nas narrativas de um viajante,
especificamente Nicolau Dreys. Este, dentre outras questões, construiu a idéia de
que os trabalhadores escravos não tinham nenhum tipo de circulação na cidade,
apenas o caminho da senzala ao trabalho e vice-versa. De alguma forma este
discurso do viajante “retumbou” nos escritos de autores contemporâneos como, por
exemplo, Mário Maestri
18
, que legitimaram este imaginário de que o negro escravo
teve sua vida centrada apenas neste caminho, do charque a senzala, reduzindo
16
ABREU Apud CARVALHO, 2005, op. cit. p. 28.
17
CHARTIER, Roger. “Cultura Popular”: revisitando um conceito historiográfico. In: Revista Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 16, 1995. P. 179.
18
Ver por exemplo: MAESTRI, Mário. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre:
EST, 1984
28
suas experiências de vida, suas histórias, trajetórias, que nos parecem serem mais
complexas.
A cidade de Pelotas, como iremos mostrar, pareceu ser tanto ou mais
“cosmopolita”, no que concerne ao movimento de pessoas e idéias no campo dos
populares, do que no campo das elites como a historiografia tradicional sempre
gostou de demonstrar. Nesta cidade circulavam peões de tropa, marinheiros,
carreteiros, que de alguma forma traziam e levavam informações, modos de vida,
causando muito desconforto às autoridades conforme os surgimentos de conflitos.
Pelotas foi um grande cruzamento de indivíduos vindos de todas as partes do Brasil
e do mundo, um lugar de passagem, uma encruzilhada.
Alertarmos o leitor que nosso objetivo não foi de maneira nenhuma esgotar as
análises destes grupos na cidade, apenas demos um ponta-pé inicial para, quem
sabe, a provocação de futuras pesquisas. Não podíamos passar indiferentes perante
estas histórias que surgiram; a cidade contemporânea precisa disso, de uma
provocação por parte destas memórias, precisa reconhecer como viviam estas
pessoas, suas estratégias de sobrevivência, para assim reinventar seu futuro.
No segundo capítulo abordamos a primeira Casa de Correção da cidade,
contrapondo as teorias que legitimavam a sua construção com o que foi colocado
em prática. E por que fizemos isso? O motivo foi que não havia como pesquisar a
pena de morte sem as idéias de correção. Estas idéias surgem no contexto europeu
como uma das soluções para o fim da pena de morte, debate que caracteriza muito
bem as transformações do Antigo Regime para o Liberalismo. E talvez seja este o
grande fio que liga o nosso estudo, ou seja, as transformações no Brasil,
especificamente em Pelotas no que concerne ao avanço do liberalismo no campo da
idéias, principalmente nas de justiça. O Brasil Império enfrentou durante as duas
29
primeiras regências um avanço dos ideais liberais; sua força é demonstrada, por
exemplo, na criação do Código Criminal. E é este o contexto que escolhemos para
efetuar a pesquisa, o recorte foi entre os anos de 1830 e 1857. O primeiro porque foi
o ano da criação do Código e, portanto da delimitação de um novo tipo de lógica
para a pena de morte, e o segundo por ser o ano do último enforcamento na cidade
de Pelotas. O objetivo desta dissertação é analisar o funcionamento da pena de
morte na cidade, e também acompanhar os surgimentos da Casa de Correção e da
Polícia. Ambas as instituições construídas como alternativas ao cadafalso. Não
podíamos deixar as análises sobre elas de fora de nosso estudo, pois fazem parte
do mesmo contexto, da mesma discussão.
A questão do avanço do liberalismo no Brasil Império gerou muita polêmica
entre os historiadores, principalmente quanto ao debate da adequação ou não
destas idéias a um país escravocrata. Foi famoso o debate em torno do texto de
Roberto Schwartz sobre as idéias fora do lugar, em que este afirmava a
incompatibilidade dos ideais liberais no Brasil escravocrata
19
.
Acreditamos, porém, conforme o trabalho de Jurandir Malerba, que o
liberalismo teve seu uso no Brasil de forma tópica e funcional
20
. As elites
econômicas escravistas adequaram conforme seus interesses os ideais liberais ao
mundo da escravidão; não houve a implantação de uma ordem burguesa.
Construíram a igualdade civil, mas excluíram os escravos, assim como garantiram o
direito à defesa do cidadão em júri por seus pares, mas quanto aos escravos,
passaram a serem julgados por indivíduos de outra hierarquia social, seus senhores.
19
Schwartz, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social do romance brasileiro.
São Paulo: Duas cidades, 1981. Um dos contrapontos a este texto de Schwartz foi o de: FRANCO,
Maria Sílvia de Carvalho. As idéias estão no lugar. Caderno de debates, São Paulo, v. 1, p. 61- 65.
1976. E para se ter idéia dos debates em torno das “idéias” ver: MALERBA, Jurandir. Os brancos da
lei: liberalismo, escravidão e mentalidade patriarcal no Império do Brasil. Maringá: EDUEM, 1994.
Sobre a compreensão do pensamento de liberdade no Império, ver: MACEDO, Ubiratã Borges. A
Liberdade no Império. São Paulo: Convívio, 1977.
20
MALERBA, 1994, op. cit. p. 113.
30
O liberalismo surgiu no Brasil com sua alma calcada na defesa da propriedade, e o
escravo era uma propriedade de seu senhor. O liberalismo garantia a ordem,
garantia o direito à propriedade, garantia a dominação escravista.
Um outro debate que demonstra estas adequações foi o contraponto de
Leonardo Monastério
21
aos argumentos de Fernando Henrique Cardoso
22
, quando
este afirmava a irracionalidade do processo produtivo e a impossibilidade de
modernização das charqueadas gaúchas. Monastério demonstrou que mesmo os
charqueadores tendo como mão-de-obra os escravos, alguns incentivaram
recompensa monetária para aqueles que ultrapassassem suas cotas produtivas
diárias, assim como demonstrou também que havia incentivos dos senhores na
especialização do trabalhador escravo, havia uma divisão técnica do trabalho.
Características que se mostravam inspiradas nos emergentes ideais burgueses
relativas às transformações dos processos de produção, mesmo quando da mão-de-
obra escrava.
Os ditos políticos liberais brasileiros, primeiramente adotaram o liberalismo
pelo motivo da adequação das idéias ao processo de independência, e no segundo
momento, ser liberal significou posicionarem-se criticamente as atividades
centralizadoras do Império. Para estes políticos brasileiros, o liberalismo econômico
“[...] tinha o significado básico de romper monopólios e estabelecer o livre comércio,
enquanto que a sua contrapartida política se orientava para a entrega do poder de
direito aos seus representantes de fato na sociedade brasileira: os proprietários de
escravos e terras”
23
. Não havia tantas diferenças entre os políticos liberais e
21
MONASTÉRIO, Leonardo. FHC errou? A economia da escravidão no Brasil Meridional. 2003.
Extraído em: http://www.anpec.org.br/encontro2003/artigos/A40.pdf.
22
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na
sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
23
PESAVENTO, Sandra Jtahy. Farrapos, Liberalismo e Ideologia. In: DACANAL, José Hildebrando
(Org.). A Revolução Farroupilha: história e interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997. p. 20.
31
conservadores no tocante ao período aqui estudado, os conflitos prenderam-se
principalmente entre “[...] as tendências de centralização e descentralização do
poder, corporificadas nas leis descentralizadoras de 1832 e 1834 e nas leis do
regresso de 1840 e 1841”
24
. Os liberais entre outros pontos, lutavam pela maior
autonomia provincial, pela justiça eletiva e pela redução das atribuições do poder
moderador. Já os conservadores eram pelo fortalecimento do poder central, do
poder moderador, e pelo controle centralizado da magistratura.
Um bom exemplo destes embates foi o episódio da Guerra dos Farrapos. O
conflito representou uma rebelião de senhores de terra e de gado contra a
dominação da oligarquia do centro do Império, principalmente no tocante aos altos
impostos cobrados ao comércio do charque. Os farroupilhas, emergentes dos ideais
liberais, construíram um projeto elitista e excludente, tanto legitimando a escravidão,
como também reafirmando o sistema censitário de voto
25
. Ou seja, seus interesses
centravam-se na reivindicação de uma maior participação nas decisões do Império
brasileiro.
José Murilo de Carvalho aproximou a prática política do Império a uma
dialética da ambigüidade, para o autor, éramos “[...] uma sociedade escravocrata
governada por instituições liberais e representativas; uma sociedade agrária e
analfabeta dirigida por uma elite cosmopolita voltada para o modelo europeu de
civilização”
26
. E este, como comentado, foi um dos nossos objetivos, observar como
foram postos em prática estes “modelos europeus de civilização” no que concerne
às práticas de justiça, mais especificamente as de punição e disciplina.
24
CARVALHO, José Murilo de. A composição social dos partidos políticos imperiais. In: Cadernos do
Departamento de Ciência Política. Universidade Federal de Minas Gerais: Dezembro, 1974, nº 2. P.
5.
25
PICCOLO, Helga. A Guerra dos Farrapos e a construção do Estado Nacional. In: DACANAL, José
Hildebrando (Org.). A Revolução Farroupilha: história e interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1997. p. 59.
26
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de Sombras: a
política imperial. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. p. 383.
32
No terceiro capítulo, abordaremos o nascimento da polícia na cidade de
Pelotas, primeiramente enquanto Guardas Municipais Permanentes e logo depois
como Força Policial. Quem eram os soldados? Como reagiam os populares a este
novo tipo de mediação na área da disciplina? Por quem e para quem era utilizada a
instituição da polícia? Foi também interessante poder comparar o nascimento desta
instituição em outras províncias e cidades brasileiras, o que gerou algumas
discordâncias.
Enfim, no quarto capítulo abordamos o funcionamento da forca em pelotas, os
lugares da forca, o seu ritual, quais foram suas vítimas, seu significado político.
Também partimos para a análise de alguns casos de processos criminais que
culminaram em enforcamento, como que para dar eco às histórias destes
enforcados. Ou seja, do ritual da morte, tentamos demonstrar um pouco de suas
vidas, provocar suas trajetórias, e o que acabamos descobrindo foi um pouco mais
das experiências escravas na cidade.
Enfim, este é um trabalho que não se propõe estar encerrado; ele está em
aberto para contribuições, discussões, para contrapontos. Devemos encará-lo como
uma provocação. Sabemos dos riscos tanto metodológicos como teóricos que
enfrentamos pela juventude enquanto pesquisador, pois para o historiador, a
experiência de vida, o tempo vivido é de fundamental importância para o treino de
seus olhos perante a leitura das fontes, para o treino de seus ouvidos perante as
escutas das vidas passadas. Para você leitor, uma ótima viagem para uma certa
Pelotas da primeira metade do século XIX; que depois da leitura deste trabalho,
sinta-se motivado a saber cada vez mais do que passou, e aí, quem sabe, também
analisar mais do que ainda passa.
33
CAPÍTULO 1 – A CIDADE QUE ME CONTARAM, A CIDADE QUE CONHECI E A
CIDADE QUE PASSO A NARRAR
Será sempre o nosso melhor patrimônio a glória dos nomes
excepcionais e radiosos dos pelotenses perspícuos, de
nascimento e de coração... os redivivos heróis, os sábios, os
notáveis, os estadistas e parlamentares, os poetas e
prosadores, os homens de ação e pensamento útil, os
artistas...
27
.
Na historiografia, seja regional, nacional ou internacional, sempre existem
aquelas afirmações que são continuadamente repetidas sem uma problematização -
as coisas são ditas tantas vezes que se tornam um novo tipo de verdade. Quando
falamos na história da cidade de Pelotas algumas questões marcam profundamente
o imaginário relativo ao processo histórico desta região. Uma destas questões é
sobre o passado municipal, glorificado através das idéias da opulência e da riqueza
cultural da sociedade pelotense.
Neste primeiro capítulo, questionaremos algumas visões da história sobre a
cidade, que se perpetuam há tantos anos. A primeira, uma visão de Pelotas como
uma cidade sofisticada e europeizada; este tipo de olhar simplificou a formação
social da cidade, ao desprezar amplos e majoritários setores ali habitantes, como os
setores populares.
Entre os populares estão os escravos, que uma outra visão historiográfica (de
orientação marxista) – ao tentar denunciar o despotismo que os subjugava, acabou
27
OSÓRIO, Fernando. A cidade de Pelotas, volume 2. Pelotas: Armazém Literário, 1998. p. 345.
34
por invisibilizá-los em parte, ao destacar apenas sua existência passiva como coisas
escravizadas ou ativas como quilombolas ou “criminosos”.
1.1 Pelotas: Uma ilha de costumes europeus cercada de penitenciárias
escravocratas
Desde o século XIX até os dias atuais, temos escritores, ou memorialistas
empenhados em demonstrar aos homens do futuro a importância desta hoje
populosa cidade da zona sul do estado do Rio Grande do Sul. Importância esta
capitalizada através das riquezas de uma sociedade escravocrata proprietária de
charqueadas, olarias e de uma grande rede comercial com o Brasil e com várias
regiões do mundo. Para estes memorialistas
28
, a história local prescindia de notas e
dados sobre a vida dos populares, das pessoas ditas comuns. O que importava
eram os grandes homens, os grandes fatos – descartava-se a vida cotidiana das
ruas. A história se apresentava como um campo linear, sem conflitos, sem
problematizações, como num memorial
29
. E quando a vida das pessoas ditas
comuns apareciam nestes relatos descritos como históricos, aparecia carregada de
uma visão relacionada ao exótico, ao folclore, o dito “primitivo”, de valoração
negativa, ou seja, aquilo que não merece fazer parte da “grande cultura”. Como
exemplo temos as referências que Fernando Osório fez aos “tipos populares” da
28
Destacamos alguns autores como: OSÓRIO, Fernando. A cidade de Pelotas, volume 1 e 2.
Pelotas: Armazém Literário, 1998; CUNHA, Alberto Coelho da. As antigualhas de Pelotas. Jornal “A
Opinião Pública”, 1928; LEÓN, Zênia de. Pelotas, casarões contam sua história. São Lourenço do
Sul: Hofstãtter, 1998; NASCIMENTO, Heloisa Assumpção do. Nossa cidade era assim: Crônicas
publicadas na imprensa nos anos de 1980 a 1987. Pelotas: Livraria Mundial, 1989;, entre tantos
outros. Evidente que alguns destes escritores são filhos de seu tempo, devemos respeitar isso, não
podemos julgá-los pelos nossos conceitos atuais, mas suas visões continuam fazendo eco nas
escolas, nas instituições de memória, e principalmente em outros autores, como as duas últimas
citadas.
29
Nos dias atuais este tipo de visão da história, preocupada apenas com os fatos das elites da
sociedade pelotense, é facilmente reconhecida em uma visita à exposição permanente do Museu
Municipal Parque da Baronesa. E é de Sílvia Lara que retiramos a idéia do ato de olhar o passado
sem reflexões dos conflitos entre os grupos sociais, de que existiriam “homens, coisas e fatos que se
distinguem dos outros e por isto merecem um tratamento especial”, ação esta tida como memorialista.
Ver: LARA, 1991, op. cit. p. 101.
35
cidade. Ao falar de Roberto Macacão, disse o escritor “era feio como uma indigestão
de charque”; ainda, ao referir-se à esposa deste indivíduo, a dita Macacoa, ele disse,
“[...] era uma verdadeira cariátide, uma espécie de megera de Macbeth, feia como
um caco de granada, elegante como uma cama de vento, perfumosa como um
murrão apagado, clara como o fundo de uma chaleira de chimarrão”
30
. Estes
populares que perambulavam pelas ruas, em situação de miséria, eram vistos pelo
autor como “trapos de gente”. Sabemos que não podemos julgar os autores antigos
com os olhos contemporâneos, mas temos que problematizar seus escritos, pois é
este tipo de material que embasa até hoje muitos escritores, assim como o trabalho
de professores, e de escolas.
Reis faz um comentário acerca de uma visão sobre a história construída sob o
olhar científico do século XIX, sob o paradigma positivista, muito parecido com os
discursos deste grupo sobre o qual estamos falando:
[...] a “ciência histórica” ao mesmo tempo recusa e executa uma
verdade moral: há povos mais morais e mais livres, superiores. Essa
verdade moral, alerta Koselleck, ao mesmo tempo esconde e
executa um projeto político: os povos mais morais têm direito ao
poder e até a violência
31
.
“Esses povos morais e livres são as nações européias”, conclui ele “se são
obrigados à violência é por obra da ‘astúcia da razão’, que faz o bem através da
violência”
32
.
Pelotas passou a ser vista no final do século XIX, como a “Princesa do Sul”,
cidade caracterizada por uma vida cultural sofisticada, gerada pela intensa relação
com a Europa, através das viagens dos filhos das classes abastadas, que, indo
estudar neste continente, voltavam com as novas tendências da moda, seja do
30
OSÓRIO, 1998, op. cit. p. 316.
31
REIS, José Carlos. História e teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de
Janeiro: FGV, 2003. p. 39.
32
REIS. Idem. Ibidem.
36
vestuário, da literatura, das artes cênicas, e mesmo da política. O conceito de cultura
usado por alguns destes escritores reflete bem suas visões sobre a história; a cultura
é vista como um referencial a uma civilização hierarquizada, onde os outros, “sem
cultura”, desempenham o papel de bárbaros, não evoluídos em comparação ao
refinamento da sociedade pelotense.
Concordamos com Da Matta, que conceitua cultura como sendo um:
[...] mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de
um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o
mundo e a si mesmas [...] um conjunto de regras que nos diz como
o mundo pode e deve ser classificado
33
.
Na mesma linha afirma Geertz “a cultura consiste em estruturas de
significados socialmente estabelecidas”
34
. Claro que o debate a cerca do conceito
de cultura é mais complexo, mas neste momento não vamos nos deter nisto. Muitos
autores contestaram a velha idéia da cultura como sendo algo fixo, acabado,
demonstrando esta ser dinâmica, circular, sendo seus significados construídos e
desconstruídos no processo histórico, através dos contatos dos mais diferentes
grupos sociais
35
.
Evidente que nestes textos dos ditos memorialistas observamos uma idéia de
hierarquização entre as culturas, que nasce justamente das hierarquias sociais
impostas pela sociedade, pois “as culturas nascem de relações sociais que são
sempre relações desiguais”
36
, ou seja, mesmo inconsciente (apesar de acreditarmos
que há uma escolha consciente disto) há uma legitimação das desigualdades sociais
33
DA MATTA, Roberto. Você tem cultura?. In: Suplemento Cultural do Jornal da Embratel. Edição
especial. Setembro de 2001. p. 2.
34
GEERTZ, Cliford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 23.
35
Ver sobre o debate do conceito de cultura na história: SAHLINS, Marshall. Ilhas da história. Rio de
Janeiro: Zahar, 1990; BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O
contexto de François Rabelais. São Paulo: UNB, 1987; THOMPSON, E. P. Miséria da teoria. Rio de
Janeiro: Zahar, 1981; GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Cia das Letras, 1987;
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 2002.
36
CUCHE, 2002, op. cit. p. 143.
37
do presente através da glorificação do passado. Os brasileiros descendentes de
africanos, de índios, ou de outros grupos étnicos, que não pertencem na sua maioria
às classes abastadas, se hoje são invisíveis econômico-socialmente para uma
grande parcela da população do país, continuam invisíveis na história,
marginalizados no presente e na representação do passado.
Mas este tipo de visão já vem sendo combatida por muitos historiadores, que
passaram a se preocupar com outros temas, diferentes daqueles tidos como os
grandes fatos, as grandes personalidades. Surgiram trabalhos referentes ao século
XIX tratando da escravidão em Pelotas
37
, da participação de imigrantes europeus na
história da cidade
38
, das epidemias
39
, dos trabalhadores livres
40
, entre tantos outros
trabalhos construídos em artigos e monografias das Universidades da cidade.
Se prestarmos atenção aos textos a cerca da história da cidade de Pelotas,
veremos uma certa linha de relatos repetidos desde as afirmações de José Vieira
Pimenta
41
no século XIX, passando por João Simões Lopes Neto
42
e Fernando
Osório (1997) no início do século XX, até chegar aos textos dos memorialistas aqui
citados. Os fatos são os mesmos, apesar de alguns escritores, como Alberto Coelho
37
Ver GUTIERREZ, Ester. Barro e Sangue: mão-de-obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas (1777-
1888). Pelotas: Universitária, 2004; GUTIÉRREZ, E. Negros, Charqueadas e Olarias: Um estudo
sobre o espaço pelotense. Pelotas: Ed. UFPEL, 2001; ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Pelotas:
escravidão e charqueadas (1780 – 1888). Porto Alegre: PUC/RS, 1995. [Dissertação de mestrado].
Pontifícia Universidade Católica do RS; MELLO, Marco Antonio Lírio de. Reviras, batuques e
carnavais: a cultura de resistência dos escravos em Pelotas. Pelotas: Universitária UFPel, 1994;
MAESTRI, Mário. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984; SILVA,
Roger Costa de. Muzungas: consumo e manuseio de químicas por escravos e libertos no Rio Grande
do Sul (1828-1888). Pelotas: EDUCAT, 2001; entre outros.
38
Ver SANTOS, Marcos Hallal dos. Estrangeiros e Modernização: a cidade de Pelotas no último
quartel do século XIX. Pelotas: Universitária, 2001.
39
Ver GILL, Lorena Almeida. Um mal de século: tuberculose, tuberculosos e políticas de saúde em
Pelotas (RS) 1890-1930. Porto Alegre, 2004. Tese (Doutorado em História). Pontifícia Universidade
Católica do RS.
40
Ver LONER, Beatriz Ana. Construção de classe: operários de Pelotas e Rio Grande (1888-1930).
Pelotas: Universitária, 2001.
41
BPP. Centro de Documentação e Obras Valiosas. NETO, João Simões Lopes. Revista do
Centenário de Pelotas. N° 7 e 8, 1912.
42
BPP. Idem. Ibidem.
38
da Cunha
43
, terem-se aprofundado em outras questões. Segundo Gill, Cunha
abordou em seus escritos, o crescimento disforme da cidade, ressaltando “[...] os
interesses diversos e muitas vezes antagônicos, de empreiteiros e da população de
baixa renda”
44
.
Parece-nos que uma certa seqüência de fatos (envolvendo personagens de
relevo, atualmente representados em nomes de ruas e praças) têm presença
obrigatória em todos os relatos. É como se uma estrutura narrativa engessasse a
história local, encadeando linearmente acontecimentos diversos e hierarquizando os
grupos sociais através de sua importância nos relatos.
Entretanto, algumas destas afirmações repetidas há muito tempo acabaram
encontrando eco na produção de profissionais da área da história acadêmica.
Algumas destas afirmações, na qual nos deteremos neste trabalho, diz respeito à
história das vidas escravas em Pelotas. Alguns historiadores, de certa maneira, ao
se preocuparem com as dificuldades impostas à vida dos trabalhadores
escravizados nas charqueadas, acabaram diminuindo a participação destes no
processo histórico. Então vamos pensar.
Em 1839, Nicolau Dreys publicou sua obra Notícia Descritiva da Província do
Rio Grande de São Pedro do Sul, onde relatou suas memórias a cerca do tempo em
que viveu nesta Província, e em Pelotas. Dreys, em seus relatos, fez referências às
diferenças do tratamento dos escravos no Rio Grande, mais especificamente nas
charqueadas; dizia ele:
[...] nas charqueadas, o trabalho é mais exigente, sem ser nem
pesado nem excessivo; é uma ocupação regular distribuída segundo
43
BPP. Centro de Documentação e Obras Valiosas. CUNHA, Alberto Coelho da. As antigualhas de
Pelotas. Jornal “A Opinião Pública”, 1928. Alberto Coelho da Cunha nasceu em Pelotas no dia 13 de
setembro de 1853. Foi escrevente municipal, e colaborou com vários jornais, publicando contos,
crônicas e estatísticas (Gill: 2006, p. 46).
44
GILL, Lorena. Labirintos ao redor da cidade: as vilas operárias em Pelotas (1890-1930). Revista
História UNISINOS. Vol. 10, n. 1 – janeiro/abril de 2006. p 52.
39
as forças do negro, e no desempenho da qual o negro entra com
tanto mais vontade que não se pode dissimular que alguma coisa
tem de conforme o trabalho com suas inclinações (sic)
45
.
O autor enfatiza a idéia de uma natureza negra, e aqui, neste texto, a
natureza negra estaria relacionada aos trabalhos pesados, que de acordo com o
autor não seriam nem pesados e nem excessivos, estariam conforme a resistência
física dos trabalhadores. O autor fala de “inclinações”, como se o negro escravo
tivesse um tipo de inclinação para efetuar este tipo de serviço que os seus senhores
brancos mandavam fazer. Trabalho muitas vezes visualizado como cruel por
trabalhar com matança, sangue, cadáveres. Dreys, em nossa opinião, emitia nas
entrelinhas uma opinião mais ou menos assim, um trabalho bárbaro, efetuado pelos
negros selvagens, bárbaros da África. Quanto a este argumento do viajante,
contrapomos com um ofício da Câmara Municipal da ainda Vila de São Francisco de
Paula do dia 27 de fevereiro de 1835, em que o poder público demonstrava seu
medo em relação à venda em Rio Grande de escravos envolvidos no Levante dos
Malês na Bahia
46
. Os vereadores justificavam a venda dos revoltosos em Rio
Grande, por ser “[...] esta Província o receptáculo dos escravos de má conduta que
de outras Províncias do Império vem a vender principalmente depois que o
Maranhão deixou de os receber”
47
.
Outro vestígio documental que podemos arrolar para contrapor à citação
muito usada de Dreys, é um processo criminal. Em 1847, alguns escravos
marinheiros foram acusados pela suspeita de terem assassinado (justiçado) seu
senhor e patrão, sendo um dos réus o africano João Pernambuco. O Cassanje João
45
DREYS, Nicolau. Notícia da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Rio de Janeiro: J.
Villeneuve & Comp., 1839. In: MAGALHÃES, Mario Osório. Pelotas toda a prosa. Pelotas: Armazém
Literário, 2000. p. 93.
46
Ver SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
47
AHRGS. A.MU-103. Fundo: Câmaras municipais. Câmara Municipal de Pelotas. Dia 27 de fevereiro
de 1835.
40
provavelmente recebeu a sua alcunha (ou sobrenome) quando viveu na província de
Pernambuco, provavelmente sua primeira morada depois de sua diáspora africana.
No desenrolar das investigações judiciárias, testemunhou o marítimo Francisco
Bucceli, de 30 anos, natural da Itália, que afirmou que João Pernambuco, na
província que lhe serviu de batismo em sua nova vida, agora como escravo, possuía
antecedentes criminais graves – ele havia ajudado a matar um feitor e por este
motivo fora surrado por três dias seguidos. O réu João, africano, mas conhecido por
Pernambuco – um pequeno exemplo das reinvenções étnicas promovidas pela
escravidão transatlântica – não se mostrou disposto a esconder seu passado e –
quem sabe orgulhoso – assumiu seu passado homicida
48
.
Estes indícios nos possibilitam confirmar a idéia de que as charqueadas
constituíam-se em um dos espaços para onde eram destinados os escravos
revoltosos do país, como punição, como castigo, e confirma a idéia das charqueadas
como um purgatório, ou seja, um lugar de péssimas condições de trabalho.
Maestri
49
e Gutierrez
50
já demonstraram a horrenda realidade dos trabalhos
dos escravizados, obrigados a labutar cerca de 16 horas por dia, de pés descalços,
suscetíveis à umidade do ar muito grande, na beira dos arroios e canais; muitos
acabavam não chegando à média de expectativa de vida, que era de 5 a 7 anos de
trabalho efetivo. Perspectiva diferente da do viajante, que comentou em seus relatos
a idéia de que seria uma invenção da opinião pública a questão do “purgatório para
negros”, pois “[...] tão pouco cansados ficam os negros que não é raridade vê-los
consagrar a seus batuques as horas de repouso que decorrem desde o fim do dia
48
O Cassanje João Pernambuco vai reaparecer no quarto capítulo desta dissertação - sua trajetória
começou na África e encerrou-se na ponta da corda em que foi enforcado, na sofisticada cidade de
Pelotas. APERGS. Estante 36, Processo 207, Maço 5A. Cassanje era um “grupo de procedência” da
região de Angola. THORNTON, John. A África e os Africanos na Formação do Mundo Atlântico.
1400/1800. Rio de Janeiro, Elsevier, 2004: p. 60/61.
49
MAESTRI, 1984, op. cit.
50
GUTIERREZ, Ester. Negros, Charqueadas e Olarias: Um estudo sobre o espaço pelotense.
Pelotas: Ed. UFPEL, 2001.
41
até o instante da noite
51
em que a voz do capataz se faz ouvir”
52
. Para Dreys, o
negro trabalhador escravizado não tinha nada do que reclamar, tinha roupa, comida,
e quando ficava doente era bem tratado pelos seus senhores.
Se estes trabalhadores escravizados optavam se consagrar aos batuques em
vez de descansar isso não ocorria porque lhes sobrava vitalidade, mas sim pela
importância destes momentos como fator humanizador. A questão relativa ao
batuque está ligada à religiosidade. Para muitos trabalhadores escravizados,
durante os rituais religiosos, é que compartilhavam as dores e sofrimentos do
cotidiano do trabalho, era o momento de reafirmar suas tradições culturais, momento
também de tramar revoltas, conflitos, ou mesmo laços de parentesco e de
solidariedade. Mas, o trecho que nos interessa em nossa reflexão é o que está
destacado na citação abaixo:
Numa charqueada ou numa estância há menos facilidade de
nascerem e de se alimentarem os vícios comuns entre os negros;
excetuando alguns estabelecimentos longínquos, onde ás vezes se
vê uma miserável pulperia (sic), em todas as outras partes o negro
não pode satisfazer seu gosto pelos licores espirituosos; além disso,
pouco ou nada tem que roubar ao redor de si; seus divertimentos
são caseiros, e raras ocasiões furtivas se lhe oferecem de figurar
nesses ajuntamentos ruidosos onde ordinariamente vai encontrar as
rixas, as seduções, o ciúme e os apetites da vingança. Uma
charqueada bem administrada é um estabelecimento penitenciário;
e também devemos confessar que, em todo o tempo que nos
demoramos no Rio Grande, não tivemos exemplo de um crime
público cometido por um negro das charqueadas
53
(Grifo nosso)
O viajante deixa transparecer a idéia de que os trabalhadores escravizados
não tinham outro papel a não ser trabalhar e ir pra senzala. Como se o sistema
conseguisse de fato deixar o escravo imóvel, da senzala para o trabalho, do trabalho
para a senzala. O historiador Maestri é um dos pesquisadores que mais insistem em
51
De acordo com Dreys, na época de sua viagem pela Província, o trabalho na charqueada
começava à meia noite e terminava ao meio dia.
52
DREYS Apud MAGALHÃES, op. cit. 2000, p. 93.
53
DREYS Apud MAGALHAES, 2000, op. cit. p. 94..
42
defender a visão deste viajante; diz ele, sem fazer citações, ou seja, apropriando-se
do discurso como verdadeiro “As charqueadas eram verdadeiros estabelecimentos
penitenciários”, depois ele complementa “Nas poucas horas de repouso noturno,
eram encerrados nas sinistras senzalas”
54
.
Maestri faz parte de uma tradição historiográfica, próxima, por exemplo, de
Clóvis Moura
55
, marcada pela ênfase dos estudos da resistência escrava através da
violência, ou seja, através das revoltas, dos justiçamentos, das fugas, das formações
de quilombos, etc. Resquícios de uma interpretação da história do negro que
remonta às décadas de 50 e 60, com os trabalhos da chamada Escola Paulista
56
,
que, indignados com as idéias de Gilberto Freyre sobre os argumentos de que no
Brasil vivíamos uma democracia racial, passaram a estudar os movimentos de
resistência de negros e índios em face ao colonizador branco. Estudos, esses,
muito interessantes, responsáveis por levantar o debate a cerca dos entraves
econômicos, sociais e culturais, bem como o racismo, colocados a tais grupos
étnicos. Mas tanto Florestan Fernandes
57
, como Fernando Henrique Cardoso
58
,
representantes dessa época, partiram de uma concepção limitada de cultura,
fazendo a oposição entre resistência e aculturação, ou seja, ou o sujeito resiste, e
quase sempre pela violência, ou ele é totalmente destruído pelo senhor ou
colonizador, tornando-se um aculturado, perdendo totalmente suas bagagens
culturais. Em relação aos escravos, eles seriam simples “joguetes das circunstâncias
54
MAETRI, M. O Negro no Sul do país. In: SANTOS, J. (Org.). Revista do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. 1997. p.234.
55
MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
56
Como Escola Paulista compreendemos neste trabalho as obras de Fernando Henrique Cardoso,
Florestan Fernandes, dentre outros durante a década de 50 e 60 do século XX a partir da
Universidade de São Paulo.
57
Ver: FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática,
1978.
58
CARDOSO, 1997, op. cit.
43
criadas e definidas pelos objetivos e interesses” dos senhores
59
, não teriam
nenhuma margem de ação no sistema, a não ser, como colocou Gorender
60
, através
do crime, das fugas ou dos aquilombamentos. E aqueles que não compactuassem
com este tipo de ato, a rebeldia violenta ou de ruptura, foram considerados,
principalmente por este último, como “submissos”. Muitos pesquisadores, sejam eles
antropólogos, historiadores ou sociólogos, já contestaram o binômio
aculturação/resistência, colocaram em cheque a idéia de que os sujeitos perdem
totalmente seus padrões culturais quando sofrem um processo de espoliação, de
violência física e moral; temos de pensar que eles se apropriavam dos signos
culturais impostos, mas os adaptando de acordo com suas leituras de mundo, suas
perspectivas, suas experiências de vida, a cultura seria constantemente recriada.
Almeida provoca um pouco mais:
A compreensão da cultura como produto histórico, dinâmico e
flexível, formado pela articulação contínua entre tradições e
experiências novas dos homens que a vivenciam, permite perceber
a mudança cultural não apenas enquanto perda ou esvaziamento de
uma cultura dita autêntica, mas em termos do seu dinamismo,
mesmo em situações de contato, quando as transformações se
fazem com muita intensidade e violência
61
.
A autora argumenta que aqueles sujeitos explorados, vivendo muitas vezes
em condições de sub-humanidade, como na escravidão, não seriam submissos,
acomodados, apenas por não se oporem ao sistema através da resistência armada,
59
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias
coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. p. 28.
60
Gorender em seu livro “A Escravidão Reabilitada”, lançada em 1990, enfatizou a idéia da
coisificação do escravo, ou seja, perante o sistema, o escravo era uma coisa, pois era uma
mercadoria. Assim, só se tornava homem quando cometia o crime, pois para ser julgado pela Justiça,
o escravo finalmente era reconhecido como pessoa. Só que para este autor, qualquer ato que fugisse
da idéia da violência física, como assassinatos, ou quilombos, não poderia ser considerado como
resistência. Para ele, a historiografia da escravidão surgida na década de 80, ao enfatizar outros tipos
de projetos de vida dos escravos que extrapolavam o mundo dos senhores a não ser apenas a
violência física, estaria reabilitando o paternalismo, a idéia de uma escravidão mais branda. Como o
leitor verá neste trabalho, não concordamos com as idéias deste autor. Ver: GORENDER, Jacob. A
escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990.
61
ALMEIDA, 2003, op. cit. p. 33.
44
através da guerra. Haveria outras formas de resistência, o que ela chamou de
resistência adaptativa, onde estes sujeitos procurariam outras maneiras de
sobrevivência e de melhorias de suas condições de vida dentro do próprio, no caso
aqui, do próprio sistema escravista. Contribui Silva e Reis
62
:
[...] abre-se um leque de opções que vão das formas explícitas de
resistência física (fugas, quilombos e revoltas), passando pela
chamada resistência do dia-a-dia – roubos, sarcasmos, sabotagens,
assassinatos, suicídios, abortos -, até aspectos menos visíveis,
porém profundos, de uma ampla resistência sócio-cultural.
Mas este tipo de argumento por muito tempo, e ainda nos dias de hoje, é
contestado; historiadores como os citados aqui, Gorender, Maestri, Assumpção,
Simão ainda compartilham um tipo de visão em que o negro escravo estava
totalmente aniquilado pela violência da escravidão, não conseguiria reagir perante o
sistema. Diz assim Cardoso:
[...] a consciência do escravo apenas registrava e espelhava,
passivelmente os significados sociais que lhe eram impostos [...] era
possível obter a coisificação subjetiva do escravo: sua auto-
concepção como a negação da própria vontade de libertação: sua
auto-representação como não-homem
63
.
Ou seja, o negro durante o passado colonial e imperial, não teve vontade
própria; se levarmos em conta estes argumentos, o negro não existiu para ele
próprio de acordo com Fernando Henrique Cardoso.
A partir do final da década de 70, início da de 80, muitos historiadores
passaram a demonstrar em suas pesquisas a multiplicidade de experiências negras
durante o sistema escravista, evidenciando como aqueles que estiveram submetidos
ao cativeiro tinham valores e projetos diferentes dos de seus senhores, lutando por
62
SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 62.
63
CARDOSO, 1997, op. cit. p. 125 e 143.
45
eles de variadas formas
64
. Surgiram trabalhos relacionados à “brecha camponesa”
que comprovava o desejo e a capacidade dos escravos de cultivar e vender seus
próprios alimentos
65
; estudos sobre família escrava, provando que em regiões de
economias mistas, onde a importação de trabalhadores era baixa, prevaleciam
famílias mais estáveis
66
; trabalhos abordando as manifestações culturais negras;
trabalhos sobre quilombos, etc.
67
A população negra escravizada construiu
alternativas de vida, conquistando pequenos espaços de autonomia econômica,
social e cultural, e suas ações – individuais ou coletivas – transformaram as próprias
relações de dominação a que estavam submetidos.
Este tipo de abordagem não surge do nada, é fruto de uma aproximação da
história com as outras ciências sociais, mais particularmente com a antropologia.
Esta aproximação causou grandes transformações no fazer história, ainda na
década de 70, com as crises dos modelos de compreensão, das categorias
analíticas. Os historiadores passaram a tentar recuperar o papel dos indivíduos na
construção dos laços sociais. Houve uma série de deslocamentos nas análises
históricas, “de estruturas a redes, de hierarquias a inter-relações, de normas
coletivas a estratégias singulares”
68
.
Reis ajuda-nos a compreender:
O olhar sobre o estrutural é que muda. Não se buscam as séries
homogêneas, a ordem quase imutável, as “prisões de longa
64
Podemos citar CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; LARA, Sílvia Hunold. Campos da
violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750 – 1808. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988; AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda Negra, Medo branco: o negro no imaginário
das elites século XIX. São Paulo: Annablume, 2004, entre tantos outros.
65
Ver por exemplo SILVA; REIS, 1989, op. cit.
66
Ver dentre tantos outros SLENES, Robert. Na senzala, uma flor. Esperanças e recordações na
formação da família escrava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
67
Sobre a historiografia da escravidão é interessante ler SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e
rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001; e XAVIER, Regina. Biografando outros sujeitos, valorizando outra
história: estudos sobre a experiência dos escravos. In: SCHMIDT, Benito Bisso. (Org.). O biográfico:
perspectivas interdisciplinares. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000.
68
CHARTIER, 2001, op. cit. p. 118.
46
duração”, mas as ordens negociadas, instáveis, as lutas, as
apropriações seletivas, as circularidades culturais diferenciadas, as
representações particulares do estrutural. O sujeito retorna como
problema histórico. Um sujeito mais limitado em sua ação, menos
central e heróico, mas criativo e combativo, ágil e eficiente, vivo,
negociando a representação que fará do mundo lá em seu nicho
social
69
.
Uma das representantes deste olhar que muda, foi a Micro-História, surgida
na Itália no final dos anos 70. De acordo com Revel, não seria nem uma escola,
menos ainda uma disciplina autônoma, mas uma prática historiográfica com um
caráter extremamente empírico em sua abordagem
70
. A Micro-História nasceu como
uma reação ou tomada de posição frente à história social da década de setenta,
presa às concepções macro-teóricas. Carlo Ginzburg
71
um dos representantes desta
prática historiográfica, proporia, na década de 1980, o chamado Paradigma
Indiciário, onde o autor faz uma comparação entre os métodos dos médicos e dos
historiadores. O conhecimento histórico para ele seria indireto, conjetural, indiciário,
baseado nos sinais e indícios que permitiriam decifrar a realidade. Assim, a proposta
seria reduzirmos a escala de observação, através das análises de uma
multiplicidade de documentos.
Este tipo de prática historiográfica iria dedicar-se ao estudo das histórias dos
ditos grupos “subalternos”, das histórias dos grupos populares, das pessoas tidas
por muito tempo como não importantes, dos “de baixo”
72
. E um dos documentos que
nos ajudariam na tentativa de chegar às vozes silenciadas por falta de registros
69
REIS, 2003, op. cit. p. 61.
70
REVEL, Jaques. Microanálise e construção do social. In: REVEL, Jaques. (Org.) Jogos de Escalas.
Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 16.
71
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: Morfologia e História. São Paulo: Cia das Letras,
1989. p. 177.
72
Para o leitor inteirar-se mais sobre os debates a cerca da Micro-História, ler NEGRO, Antonio Luigi.
O fragmento como via de acesso à História Social. In: Diálogos, UEM, 01: 111-136, 1997; SERNA,
Justo; PONS, Anaclet. El ojo de la aguja. De qué hablamos cuando hablamos de microhistoria? In:
TORRES, Pedro Luiz (Org.). La historiografia: Madri: Marcial Pons, 1993. p. 93-133; REVEL, Jaques.
(Org.) Jogos de Escalas. Rio de Janeiro: FGV, 1998; e LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória
de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
47
documentais, seriam os Processos Criminais. Temos clareza de que os Processos
eram construídos por uma elite letrada, que, na maioria das vezes enxergava o
outro, o réu, como um “criminoso”, um “bandido”, distorcendo seus discursos e
interpretações do ocorrido. Diz Foucault “a existência destes homens e destas
mulheres reconduz-se exatamente ao que dela foi dito; daquilo que eles foram ou
daquilo que fizeram nada subsiste, salvo em algumas frases”
73
. Mas mesmo assim
podemos tentar obter algumas possibilidades sobre os aspectos da vida cotidiana
dos indivíduos, pois em outros tipos de fontes, como jornais, ofícios de governo, esta
tarefa é mais difícil ainda. Monsma justifica estas possibilidades:
Como a justiça criminal não é simplesmente o julgamento de atos,
mas também se preocupa, de maneira central, com a motivação e a
intencionalidade dos atores, as justificativas e desculpas dos
envolvidos e as versões das testemunhas necessariamente entram
nos processos, mesmo quando distorcidas pelas categorias,
preconceitos e estratégias das autoridades e dos advogados
74
.
Este tipo de documento pode nos revelar algumas noções e sentimentos de
justiça, dignidade, honra, como também de política, não a política formal, reservada
para as elites, e sim a política informal, construída nas relações cotidianas.
Agora podemos voltar à análise da frase do viajante Dreys. O longo desvio
discursivo que empreendemos foi uma tentativa de desconstruir este argumento tão
citado e embasar nosso argumento de que a história da cidade de Pelotas, na
primeira metade do século XIX, é muito mais complexa do que já foi escrita. Sem
querer desprezar a crueldade do escravismo, devemos salientar que, conforme nos
mostrou a historiadora Michelle Perrot
75
, mesmo nos locais mais inusitados
encontramos vida e resistência - até mesmo nos estabelecimentos penitenciários.
73
FOUCAULT, Michel. O que é um autor. São Paulo: Passagens, 1992. p. 101.
74
MONSMA, Karl. Histórias de violência: inquérito policiais e processos criminais como fontes para o
etudo de relações interétnicas. In: DEMARTINI, Zélia de Brito Fabri. (Org.). Migrações: perspectivas
metodológicas. São Carlos: EDUFSCAR, prelo. P. 3.
75
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1988.
48
Criticando um viajante que em seus escritos defendia a animalidade dos seres
humanos sujeitos ao cativeiro, o historiador Robert Slenes
76
contrapõe seu estudo
sobre família escrava defendendo que mesmo nas senzalas existiam flores. Flores,
na perspectiva deste historiador norte-americano, simbolizam os sentimentos
humanos, as esperanças e os projetos do povo africano em cativeiro.
Quando nos debruçamos sobre os documentos, os mais variados possíveis,
encontramos a todo momento homens e mulheres dos mais variados grupos étnicos,
sejam os latino-americanos, os africanos, os europeus, envolvendo-se em
transgressões das normas impostas pelas autoridades. Existia em Pelotas, como em
outras localidades, “[...] um espaço entre a norma e o vivido, entre a injunção e a
prática, entre o sentido visado e o sentido produzido, um espaço onde podem
insinuar-se reformulações e deturpações”
77
.
É importante lembrar que aqueles trabalhadores escravizados, empregados
nos trabalhos das charqueadas, não ficavam neste tipo de atividade o ano inteiro. As
charqueadas funcionavam num sistema de safras, que no caso era no verão. No
inverno estes trabalhadores eram empregados em outras atividades, seja em olarias,
em trabalhos especializados urbanos, trabalhos relacionados às chácaras da Serra
dos Tapes, enfim, os senhores deslocavam sua mão-de-obra para não sofrerem
prejuízos. Inclusive muitos senhores alugavam seus escravos a terceiros. Ou seja,
em determinados momentos, estes escravos das charqueadas saíam da
“penitenciária”, e conviviam com outros escravos, relacionados a diferentes
senhores, conviviam também com outros grupos de populares, como os
trabalhadores pobres livres, fossem ex-escravos ou não. O próprio Dreys destacava
em seu relato que em torno de cada uma das charqueadas, formava-se “[...] um
76
SLENES, 1999, op. cit.
77
CHARTIER, 1995, op. cit. p. 182.
49
círculo de população especial, tão vasto às vezes e encerrando um número tal de
brancos, de agregados e de negros de serviço que parece, à primeira vista, uma
verdadeira aldeia com suas ruas e sua capelinha”
78
. Também é interessante lembrar
a relativa pouca distância das charqueadas, na beira, tanto do canal São Gonçalo
como do Arroio Pelotas, em relação ao centro da cidade.
Outrossim, a idéia das charqueadas como estabelecimentos penitenciários –
onde a violência do sistema teria produzido existências efêmeras e bestializadas -,
acabou cobrindo toda a formação social escravista de Pelotas, recobrindo todas as
atividades desempenhadas pelos cativos com o manto da coisificação.
Demonstraremos durante todo este trabalho argumentos e situações que
embasam empiricamente nossas afirmações. Quando utilizamos fontes para
trabalhos acadêmicos de história, sejam de qualquer tipo
__
ofícios governamentais,
atas de reuniões, jornais, relatos de viajantes
__
é imprescindível que
problematizemos a feitura destes registros. Ou seja, quem escreveu o documento, o
porquê da escritura, qual era seu objetivo, o público a que se dirigia. Estas críticas
internas das fontes documentais a nosso ver não foram feitas por alguns autores,
principalmente em relação aos relatos do viajante citado acima. Não queremos aqui
colocar que estas fontes deveriam ser rechaçadas, o que propomos é o seu uso,
mas com uma maior problematização.
Magalhães, em seu livro que concentra relatos de viajantes que escreveram
sobre Pelotas, informa que Dreys seria um viajante comercial francês e seu livro foi
publicado em 1839, contendo relatos de suas viagens pelo Rio Grande do Sul entre
1818 e 1828
79
. O mesmo autor ressalta a grande empatia do viajante por Pelotas,
demonstrando os elogios à cidade, e também faz a afirmação de que o relato de
78
DREYS Apud MAGALHAES, 2000, op. cit. p. 86.
79
MAGALHAES, 2000, op. cit. . P. 94.
50
Dreys: “[...] abandona a preconceituosa visão eurocêntrica para explicar a realidade
a partir do próprio contexto onde ela ocorre”
80
.
Todavia, considerando o contexto que o viajante pôde vivenciar, não
podemos perder de vista a idéia de que Dreys era um europeu, homem livre e, como
comerciante, muito interessado nos avanços da indústria do charque no Rio Grande
do Sul. A sua empatia poderia justificar-se pelo potencial econômico da região. Mary
Pratt
81
, pesquisadora de relatos de viagens, lembra que estes relatos não se
encerram apenas na idéia do exótico, eles expõem projetos políticos ideológicos,
como, por exemplo, os projetos associados ao expansionismo imperial europeu,
onde os discursos legitimavam a autoridade burguesa. Realidade burguesa
enfatizada por Dreys, quando este fala das mudanças tecnológicas no processo
produtivo das charqueadas, chamando os charqueadores de homens “esclarecidos
e justificando este adjetivo pelo fato de muitos serem liberais; ou quando fala dos
edifícios urbanos “ornados de todo o luxo da Europa”; das senhoras “que não cedem
em elegância e boas maneiras às mais graciosas parisienses” e finalizando seu
discurso afirmando que: “[...] é difícil fazer-se uma idéia do ar de vida e de opulência
que respira então a cidade de Pelotas”
82
.
O relato de Nicolau Dreys é interessante, mas não podemos generalizá-lo
para abordar algumas questões relativas às experiências escravas e livres na cidade
de Pelotas durante a primeira metade do século XIX
83
.
80
MAGALHAES, 2000, op. cit. p. 96.
81
PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: Relatos de viagem e transculturação. São Paulo:
EDUSC, 1999.
82
DREYS Apud MAGALHAES, 2000, op. cit. 84.
83
No primeiro capítulo de seu livro intitulado “Visões da Liberdade”, Chalhoub debate os usos que
Fernando Henrique Cardoso fez dos relatos de Dreys, mostrando que este estava embutido de uma
visão racista e preconceituosa sobre a população negra, reafirmados de certa forma pelo sociólogo
(1990, p. 39).
51
É interessante lembrar que na década de 30 do século XIX vivíamos um
momento de tensão política muito grande. Vivíamos sob o governo de uma
Regência, que, após a independência do Brasil, tentava fortalecer o Estado
Nacional, enfrentando muitos conflitos fosse com alguns setores das elites regionais,
fosse com os grupos populares. O fator principal de unidade neste período era o de
manter o status quo socioeconômico, principalmente a mão-de-obra escrava
84
.
Nos primeiros anos da Regência, os liberais conservadores, então lideranças
do Império, empenharam-se em espalhar pelo Brasil bases institucionais de controle
da população pobre, vista como perigosa. Em Pelotas vemos os reflexos destas
ações. Por exemplo, foi na década de 30 que tivemos o surgimento dos Guardas
Municipais Permanentes, da Guarda Nacional, a criação da Casa de Correção, bem
como o direcionamento da pena de morte aos escravos a partir da criação da lei de
10 de junho de 1835, onde, ao invés da unanimidade dos votos dos jurados para o
crime do escravo, bastava dois terços para que este fosse à forca. Ainda no início
da década de 30, tivemos a criação dos Códigos Criminal e Penal, que
descentralizavam o controle dos cargos judiciais e policiais para as elites locais,
acumulados nos cargos de Juízes de Paz, que eram eleitos pelas aristocracias
rurais, legitimando o poder local em detrimento da Coroa
85
. Não bastasse isso, ainda
tínhamos Posturas Municipais que legislavam as proibições no âmbito municipal.
Veremos, contudo, que mesmo com todo este aparato estatal e também
alguns aparatos repressivos particulares (na verdade neste momento tanto o
interesse particular e o estatal se confundiam
86
), os grupos populares circulavam
84
WERNET, Augustin. O período Regencial (1831-1840). São Paulo: Global, 1982. p. 10.
85
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. p.
72.
86
Durante o Brasil Imperial, conforme era construído o Estado Nacional, paralelemanete se construía
o aparelho burocrático, com a criação de empregos públicos. Estes empregos públicos geraram uma
elite dirigente chamada patrimonialista que vivia das rendas do Estado e não mais das rendas da
52
pela cidade de Pelotas, transgredindo as normas, provocando muitas vezes nas
elites discursos relativos ao caos social.
1.2 Pelotas Insubmissa: Escravos e peões de tropas como sujeitos do caos
Vamos destacar neste sub-capítulo algumas referências a dois grupos sociais
que preocupavam as autoridades e que chamaram muito a atenção durante a leitura
das fontes: os peões de tropas (que eram descritos na maioria das vezes como
“índios”) e os escravos. Ambas categorias se fundiam (ou se confundiam) e aqui
serão analisadas brevemente, com a finalidade de problematizar as leituras da
cidade da Pelotas da primeira metade do século XIX, mostrando alguns dos
tencionamentos sociais ali existentes.
No dia 26 de fevereiro de 1832, um domingo, pelas dez horas da manhã, a
patrulha municipal fazia sua ronda na rua das Flores, quando encontrou um dito
“índio” a cavalo com uma pistola na mão. Ao ouvir a voz de prisão, o “índio”,
chamado Pedro Souto passou a dar tiros em direção à patrulha, que revidou
atirando também. Após ser atingido, Pedro disparou em seu cavalo, sendo agarrado
na saída da povoação quando caiu. Ele foi acusado de no dia anterior ter ferido a
tiros um guarda de outra patrulha que o tentava agarrar. Pedro Souto foi descrito no
terra, tornando-se uma classe dominante na política imperial brasileira. Diz Faoro sobre os cargos
públicos “[...] a velha realidade do estamento, será o único foco de poder, poder que dá prestígio,
enobrece, propicia e legitima a riqueza” (FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do
patronato político brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1984. p.310). Sobre o patrimonialismo, contribui
Pereira “[...] patrimonialistas porque os critérios de sua escolha não eram racional-legais e porque
construíram um complexo sistema de agregados e clientes em torno de si, sustentado pelo Estado,
confundindo o patrimônio privado com o estatal” (PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Do Estado
Patrimonial ao gerencial. In: Brasil: Um século de transformações. Org. Inacy Sachs et al. SP:
Companhia das Letras, 2001. p.230). Patrimonial porque deriva do patrimônio do Estado, misturando
os interesses privados, individuais, com os interesses públicos.
53
auto de prisão
87
como sendo um índio trabalhador do campo, peão de tropas que
vinha negociar nas charqueadas, oriundo da Colônia do Sacramento.
O seu defensor perante a justiça declarou que o réu foi confundido com um
capanga de um considerado criminoso chamado Barbacena, e que reagiu a patrulha
pelo motivo de estar bêbado e de ser um homem rústico não conhecedor das leis.
Dois meses depois, em um ofício da Câmara Municipal à presidência da Província,
datado de 11 de maio de 1832, ainda víamos as seqüelas das confusões que Pedro
Souto e outros indivíduos haviam armado com as autoridades. Estas, no ofício,
justificavam a criação de guardas municipais, pois:
[...] sendo esta Vila pela sua posição sujeita ao geral trânsito do
povo de toda a fronteira, e onde diariamente aparecem pessoas
desconhecidas, e malfeitoras, além de ter em seu distrito numerosa
escravatura, e que por isso é indispensável à autoridade
encarregada da polícia ter a sua disposição uma força com que
possa contar para diligências rápidas; por quanto os cidadãos
guardas nacionais não adestrados ainda nas armas, não podem
arrostar-se
88
, sem apoio, com criminosos adestrados as armas, e
assassinato; como a pouco tempo incendeu (sic) com uma patrulha
de cidadãos municipais quererem prender de dia, a uns indivíduos,
que apareceram armados, os quais fizeram fogo a dita patrulha,
conseguindo-se apenas a prisão de um, e ultimamente outra
patrulha acudindo a uns tiros dados pelas dez horas da noite, sofreu
um vivo fogo dos malfeitores, retirando-se estes impunemente [...].
O ofício mostra também a ineficiência do controle por parte das autoridades
sobre os populares, tanto devido à inexperiência dos indivíduos da Guarda Nacional,
tanto quanto a admitida experiência nas armas dos “criminosos”, acostumados a
conflitos diários pela sobrevivência. Percebemos que se as elites regionais queriam
que a força repressiva ficasse em suas mãos – daí a criação da milícia cidadã da
Guarda Nacional em 1831 -, ao mesmo tempo não queriam o ônus e o risco que isso
87
APERGS. Fundo: Comarca de Pelotas. Sub-fundo: Júri. Processos Crimes de Pelotas. Nº 2, Maço
1A, Estante 36.
88
Arrostar: “Empreender, acometer. [...] Arrostar os perigos, ou com os perigos; encará-los sem
medo.” SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portuguesa. Tomo 1, Lisboa, Tipografia
Lacerdina, 1813: p. 197.
54
representava. O controle dos setores populares carecia de instituição especializada,
que isentasse os proprietários e seus familiares (e também seus trabalhadores de
confiança, como os capatazes e feitores) do enfrentamento com os perigosos
setores sociais que perambulavam quase impunemente pela província
89
.
Este processo de 1832 é muito esclarecedor para nossos propósitos, pois
aparecem várias questões relativas à cidade de Pelotas, na primeira metade do
século XIX. Pedro Souto era um dos muitos peões de tropas que em época de
matança dos gados, período de safra do charque, traziam estes para os vender na
cidade
90
, e que após receberem seu pagamento, em sua grande maioria iam
freqüentar as vendas, os botequins, as tabernas e outros estabelecimentos
comerciais de Pelotas
91
. Chama a atenção como Pedro é descrito
__
como um índio.
Em outros processos também encontramos esta classificação
92
, mas observamos
que o “índio”, na maioria das vezes é relativo aos homens da fronteira, geralmente
da, na época, Província Cisplatina, hoje Uruguai. A palavra “índio” serviria, em nossa
opinião, como uma definição desqualificadora da pessoa, assim como notado na fala
do defensor de Pedro, que dizia ser ele rústico e que não conhecia nada das leis. Ou
seja, aqueles homens vindos da fronteira carregavam estereótipos de selvagens,
que não conheciam as leis porque não as respeitavam, homens que quando
circulavam pela cidade só podiam trazer desordens. Era uma expressão pejorativa
voltada aos habitantes de uma região – a fronteira - vista como incontrolável e
mestiça. Os discursos de uma elite que se auto-representava como branca (o que
89
Sobre a Guarda Municipal, depois Força Policial, nos deteremos com mais detalhes no capítulo 2.
90
Sobre os peões de tropas na região de Pelotas é interessante ver: MARQUES, Alvarino da
Fontoura. Episódio do ciclo do charque. Porto Alegre: EDIGAL, 1987.
91
GUTIERREZ, 2004, op. cit. p. 144.
92
São os casos de Guilherme, preso por atirar em uma diligência da Guarda Nacional em 1835
(APERGS Nº64/M2A/E36); Valeriano e Guilherme presos por atacar e roubar nas estradas em 1835
(APERGS N60/M2A/E36); João Pires preso por atacar companheiro de trabalho com uma faca
(APERGS N19/1A/E36); entre outros. Todos são classificados como índios, oriundos da Província
Cisplatina, geralmente trabalhadores do campo.
55
raramente era) fortificava-se na projeção de rótulos étnicos vistos como negativos
sobre os outros.
O Juiz de Paz da região na época do conflito era Domingos José de
Almeida
93
; ele ajudou a prender o Pedro Souto por estar a andar pela Rua das
Flores na manhã do dia 10 de fevereiro. Dizia ele em seu testemunho, que o “índio”
não tinha domicílio e vivia de roubar. Chama a atenção o fato de Domingos de
Almeida se preocupar em enfatizar no seu testemunho a idéia de que Pedro não
tinha domicílio.
De acordo com Fraga Filho (1996), os indivíduos ditos “vadios” pela
sociedade, na época, eram aqueles homens e mulheres livres e pobres, que
ocupavam-se em algumas atividades de trabalho sazonalmente, mas que
preocupavam as autoridades justamente por não terem regularidade no tempo de
serviço, inclinados, na visão destes, ao ócio e a vadiagem. O caso do peão de
tropas Pedro dá evidências disso, o Juiz de Paz justificava o conflito pelo indivíduo
não ter domicílio:
[...] os vadios violavam o ideal patriarcal segundo o qual todo o
homem devia ter seu lugar, sua família e seu senhor. A vida
itinerante dava ao homem livre pobre um sentimento de autonomia
que era visto como inconveniente às relações sociais e de poder
existentes
94
.
É certo que um trabalho sobre a população pobre e livre em Pelotas, durante
a primeira metade do século XIX, seria bastante elucidativo quanto aos valores
projetados pela sociedade da época a estes grupos, quanto à sua procedência, suas
características étnicas, suas formas de sobrevivência. Sabemos que muitos deles
trabalhavam como agregados nas estâncias, sendo na maioria das vezes
93
Importante comerciante da região, que anos mais tarde ficaria muito conhecido na história do Rio
Grande do Sul por tornar-se Ministro da República Rio-grandense.
94
FILHO, Walter Fraga. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo / Salvador:
HUCITEC / EDUFBA, 1996. p. 79.
56
dependentes politicamente dos grandes fazendeiros. Eles trabalhavam como peões
de tropas, carreteiros, aprendizes de profissão, enfim, um estudo deste tipo poderia
aprofundar e complexificar as formas de representação da história de Pelotas
95
.
Por muito tempo, o termo “fronteira” ficou relacionado aos limites da relação
oposicionista entre a civilização e a barbárie. A partir das construções dos estados-
nações, houve a necessidade da expansão dos territórios, que, dentro dos contextos
da América Latina, foram sendo conquistados através da dizimação dos grupos
étnicos indígenas. Assim, as ditas “civilizações” legitimavam suas conquistas com o
argumento da civilização de povos bárbaros, atrasados
96
, visão supostamente
compartilhada pelas autoridades da Vila de São Francisco de Paula.
Um ofício do sub-delegado de polícia em 1847 pode nos mostrar isso. Ele
reclamava um segundo suplente para seu cargo alegando que existia no distrito
“uma imigração considerável, a maior parte de gaúchos desordenados que difícil tem
sido contê-los”. Continuava ele “sendo a entrada para esta cidade franca para todos
os andantes que vem da campanha pelo muito tráfico de tropas aonde necessita
uma completa pesquisa, não há de quem lançar mão para conter a ordem”
97
.
95
Sobre este assunto além de FILHO, Walter Fraga. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do
século XIX. São Paulo / Salvador: HUCITEC / EDUFBA, 1996, ver: FRANCO, Maria Sylvia de
Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Kairós, 1983. SOUZA, Laura de Mello e.
Desclassificados do Ouro. A pobreza mineira no século XVIII. 2ª edição, São Paulo, Graal, 1986.
SCHWARCZ, Roberto (org.). Os Pobres na Literatura Brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1983.
CHALHOUB, Sidney . Trabalho, Lar e Botequim. São Paulo, Brasiliense, 1986.
96
Lídia Xavier nos traz reflexões sobre as idéias construídas pelo Historiador norte-americano
Frederick Jackson Turner, no final do século XIX, a cerca do processo de formação do território
norte-americano, que de acordo com ela, “[...] acompanhou a produção de uma ideologia nacionalista
e expancionista, que procurou explicar as origens e características nacionais, tendo como referência
os efeitos de uma constante fronteira de colonização” (XAVIER, Lídia de Oliveira. Fronteira: reflexões
sobre teorias e historiografia. In: Em tempos de Histórias. Revista dos alunos de Pós-graduação em
História. Nº 5, ano5, 2001. p. 114). Mais informações a respeito das discussões historiográficas sobre
o termo “fronteira”, ver CLEMENTI, Hebe. El espacio libre e a descobrir y el concepto de frontera. La
frontera como clave integradora. In: La frontera em América. Uma clave interpretativa de la Historia
Americana. Buenos Aires: Leviatan, 1987; LOPEZ, Claude. A fronteira. Uma explicação da história
americana? In: A América Anglo Saxônica de 1815 à atualidade. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1981;
PRADO, Maria Lígia Coelho. Natureza e identidade Nacional nas Américas. In: América Latina:
Tramas, Telas e Textos. Bauru: EDUSC, 1999, p. 179-216.
97
AHRGS. Fundo: Polícia. Sub-delegacia de polícia. Correspondência expedida. Pelotas, 2 de junho
de 1847.
57
Outra questão que não podemos deixar de fora, e que deve ter levantado
desconfianças com os sujeitos oriundos da “fronteira”, seriam os conflitos no Prata,
tanto em torno da Guerra Cisplatina (1825-1828), quanto em torno da Guerra
Grande. Quanto aos temores das autoridades em relação ao Prata, foi uma
constante o medo de indivíduos envolvidos nos conflitos enviarem soldados para
provocar caos e desordens junto aos trabalhadores das charqueadas. Em um ofício
de 28 de agosto de 1834, a Câmara de Pelotas agradecia à Câmara de Jaguarão
por avisar que emissários do general Rivera estavam no Brasil a fim de provocar
sublevações na escravatura
98
.
Em 1832, a Vila de São Francisco de Paula já demonstrava algumas
transformações em relação ao crescimento urbano que se intensificava. Arriada
99
,
através das análises das posturas municipais da Vila de Rio Grande (1829), as quais
Pelotas utilizou até compor legislação própria (1834) por depender enquanto
freguesia desta última, analisou algumas transformações demonstrando a passagem
do mundo rural para o urbano.
Pelotas, neste período, para Arriada era uma cidade “Rururbana”. Uma das
questões seria a proibição da permanência de cavalos amarrados na frente das
casas, bem como a proibição para o ato de correr a cavalo dentro do mesmo
perímetro urbano. Esta última proibição, a do ato de correr a cavalo, foi uma das
questões transgredidas por Pedro Souto em 1832. Naquela data, Pelotas já contava
com 500 prédios urbanos e uma população total de livres em torno de 4.300
pessoas, sendo 3.000 no perímetro urbano e 1.300 no perímetro rural
100
. Em 1833,
de acordo com censo feito pela Câmara Municipal, haviam 10.873 pessoas, sendo
98
AHRGS. A.MU-103. Câmara Municipal de Pelotas 1832-36.
99
ARRIADA, Eduardo. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano. Pelotas: Armazém Literário, 1994.
100
GUTIERREZ, 2004, op. cit. p. 145.
58
5.623 escravos, 1.137 libertos, 3.911 brancos e 180 índios
101
. Estes dados são
números aproximados, mas demonstram o quanto a cidade já contava com uma
movimentação considerável de pessoas.
Os escravos eram a maioria da população, e, também, preocupavam
intensamente as autoridades. Como em um dos ofícios comentados neste capítulo, a
preocupação era quanto à proximidade daqueles, devido a concentração das
charqueadas nos arredores da cidade, propiciando as condições objetivas para uma
revolta.
Em Pelotas, tivemos muitos tipos de transgressões cometidas pelos escravos,
fossem fugas, assassinatos, roubos e aquelas resistências do cotidiano nem sempre
notadas pelos senhores, porém, neste momento, aqui, o que vai nos interessar é o
pavor (medo) criado a partir das atuações do grupo quilombola de Manuel Padeiro
entre os anos de 1834 e 1835. Ele foi um exemplo para as elites de Pelotas de como
suas forças eram insuficientes na hipótese real de que, um dia, os escravos
intentassem uma revolta em massa.
Podemos observar a organização do grupo quilombola de Manuel Padeiro
através do Processo Crime formulado para os julgamentos de Mariano e Simão
Vergara
102
. O primeiro era um dos integrantes do grupo quilombola, preso após uma
delação por parte de um escravo e condenado a pena de morte após julgamento do
dia 9 de dezembro de 1835. Já o segundo, um forro casado, natural de Angola e
Congo, de 48 anos de idade, foi acusado de vender pólvora aos quilombolas,
condenado a quinze anos, seis meses e vinte dias de prisão simples.
Mariano declarou, em seu interrogatório, ser solteiro, de mais ou menos vinte
e cinco anos, natural de Santa Catarina, escravo de Domingos de Castro Antiqueira,
101
AHRGS. A.MU-103. Câmara Municipal de Pelotas 1832-36. Ofício de 7 de janeiro de 1834. ao
Presidente da Província.
102
APERGS. Processo Crime, número 81, Maço 3A, estante 36.
59
o na época Barão de Jaguari. Ele foi preso após ter seu grupo quilombola sido
desfeito pelo motivo de uma batida policial num dos matos da Serra dos Tapes.
Mariano, após a batida, havia se dirigido a um engenho do Comendador Boaventura
Rodrigues Barcellos para buscar comida e depois seguir viagem até a localidade do
Boqueirão, como indicada, para reencontrar o grupo. Chegando ao engenho pediu
ajuda ao preto Luiz; este o convidou a entrar num quarto a fim de se acobertar da
chuva. Era uma cilada. Mariano foi trancado no quarto e preso pelos capatazes da
propriedade. O quilombola já andava a cinco ou seis meses junto ao grupo, desde
os meses de outubro e novembro de 1834.
Andava Mariano sob o comando de Manuel Padeiro, segundo o testemunho
de Maria, de 25 anos, escrava de Jerônimo Lopes Garcia, que havia sido raptada
pelos quilombolas. De acordo com a mulher, o grupo se dividia, no princípio, em
número de doze: Manuel Padeiro, governador de todos; João considerado juiz de
paz; Alexandre, preto moçambique; Antonio preto, escravo de Joaquim José da
Costa Campello; Francisco, preto da costa, escravo de Maria Theodora; Francisco
Moçambique; Benedito Moçambique; João, preto da costa, cozinheiro e escravo
como João de Joaquim Ribeiro Lopes; Manoel, preto da costa; Matheus escravo de
Boaventura Rodrigues Barcellos assim como Roza, escrava do mesmo senhor.
Chegaram, até o momento da prisão de Mariano e a conseqüente separação do
grupo, ao número de dezoito.
Os quilombolas de Manuel Padeiro circularam pela Serra dos Tapes armados
de facões, armas de fogo
103
, facas, saqueando e queimando senzalas e casas que
encontravam, fossem de lavradores pobres como de senhores abastados. Nos
saques, se apossavam desde comida como feijão, farinha, graxa, até estribos e
103
Interessante a forma como os quilombolas faziam algumas de suas munições. De acordo com os
relatos, estes, em um determinado momento, com a ajuda de um canudo de taquara, derreteram um
peso de arroba e fizeram balas.
60
colheres de prata, fazendas, roupas. Também aprisionavam mulheres livres ou
escravas, estas últimas declaradas forras quando capturadas, recrutando escravos
fosse por vontade própria ou na força.
Segundo os testemunhos das mulheres que ficaram seqüestradas pelo grupo,
Padeiro e seus companheiros previam um assalto à Câmara Municipal e aos
quartéis de Pelotas. Entretanto, antes, estavam-se empenhando em recrutar
escravos das propriedades da área da Serra dos Tapes, planejando principalmente
a busca de mulheres negras nas propriedades do Dr. Mascarenhas, de José da Cruz
Secco e Gonçalves Chaves. Segundo Maestri (1997 p.236), isto poderia evidenciar
uma procura por parte dos escravos de companheiras sexuais, já que o número de
homens e mulheres escravos na cidade era desproporcional para os primeiros.
Alguns militares da época, como nos demonstrou Ribeiro, viam as mulheres que
viviam em bandos nos matos, como potenciais lideranças, assim como um elemento
a mais de atração aos homens, fazendo estes integrarem-se aos grupos de
bandoleiros
104
. Acreditamos também, que este pode ser um indício de que Padeiro
poderia estar cogitando uma estruturação do quilombo, poderia estar pensando
nestas mulheres, além de companheiras, como trabalhadoras.
Havia uma consciência política nos atos do grupo; os escravos avaliavam o
mundo à sua volta, e montavam estratégias. Organizavam vários ranchos
construídos à base de palha de giribá, a fim de poderem rodar sem residência fixa
pelos matos da Serra dos Tapes. A tática militar que exerciam era uma tática de
guerrilha, de movimento, assim como em outros grupos quilombolas brasileiros.
Maestri ressalta que os quilombolas de Pelotas não eram agrícolas, mas
evidenciamos, conforme os relatos das testemunhas, que os escravos quilombolas
104
RIBEIRO, José Iran. O mato como local de (in)segurança. In: Anais do VI Encontro Estadual de
História - ANPUH. Passo Fundo: 16 a 19 de julho de 2002. p. 4.
61
plantavam couve, pimenta, feijão, entre outros gêneros alimentícios nos ranchos por
onde passavam. Contavam, então, além dos saques, e das negociações de
mercadorias, com comerciantes da região, com alimentos produzidos por eles
mesmos nas paradas momentâneas para descanso nos ranchos. Havia uma
economia de subsistência alternativa aos saques.
O medo dos senhores de escravos da região foi ainda mais incrementado
pelo fato dos quilombolas não viverem isolados, pois além de dominarem a região
dos matos da Serra dos Tapes, eles mantinham contato com escravos de diversos
estabelecimentos charqueadores. O principal elemento de informação para os
quilombolas, segundo o Processo Criminal, era um homem chamado José
Pernambuco, escravo de Boaventura Rodrigues Barcellos. Segundo as
testemunhas, Padeiro ía constantemente conversar com José, ficando o grupo
acampado seguidas vezes ao pé da roça do Comendador Barcellos. Na verdade,
Manuel Padeiro havia sido escravo de Boaventura e já não era a primeira vez que
estava fugido da propriedade. Seu senhor havia proposto sobre sua cabeça a
recompensa de duzentos mil réis. Além dele, a preta Roza, que andava vestida de
homem, armada de duas facas, e Matheus, também eram escravos de Boaventura
Barcellos. Vale lembrar que o Comendador era o Juiz de Paz da região, ou seja, do
terceiro distrito, demonstrando a ousadia das ações quilombolas. Os escravos deste
senhor mantinham um relacionamento com os fugidos, informando-os das partidas,
recebendo em troca, como dito por uma testemunha, sacos de farinha e roupas.
Numa noite, conforme os relatos de Maria, escrava de Jerônimo Lopes
Garcia, de 25 anos, também seqüestrada pelos quilombolas, Padeiro mandou
indivíduos do seu grupo buscar José Pernambuco para uma conversa, e se não o
encontrassem, mandava trazer outros escravos que encontrassem na roça de
62
Boaventura. Os quilombolas trouxeram cinco escravos que, de acordo com os
relatos, ficaram a noite inteira conversando com Padeiro, e depois dançando e
cantando. No dia seguinte voltaram à propriedade. Conforme o relato de Maria,
Manuel Padeiro negociava a compra de pólvora com um castelhano que vivia na
casa de uma viúva chamada Joaquina. Segundo Senhorinha Alves, mulher livre, de
16 anos, o tal castelhano chamado Manoel, que teve sua prisão decretada pelas
autoridades, certo dia teria chamado o Padeiro às escondidas. Prometia Manoel ao
chefe quilombola meia arroba de pólvora no período de três semanas, não aceitando
pagamento, recebendo em troca uma arma. Além destes contatos com escravos e
homens livres da roça de Boaventura Rodrigues Barcellos e dos arredores, o grupo
contava com as informações da viúva Joaquina, moradora da Serra, que além de
lhes vender aguardente, informava sobre os movimentos das partidas policiais. Em
troca, Joaquina tinha respeitada sua propriedade dos ataques quilombolas. Roza, a
mulher escrava que andava vestida de homem, em determinado momento das
andanças quilombolas, haveria dito a Maria que eles sabiam tudo o que ocorria,
fosse na Vila como nas charqueadas.
Havia uma rede de solidariedade, uma rede de contatos, que demonstra para
nós, pesquisadores, o quanto os trabalhadores das charqueadas, ou de outros locais
de produção, não viviam isolados do resto da sociedade. Como abordou o
historiador Flávio Gomes
105
, os quilombolas não viviam apartados da sociedade
escravista, eles viviam inseridos na mesma, pois dependiam de redes de comércio,
tanto de alimentos como de munições, de trocas de informações, de aliados. A estas
redes de solidariedade, o mesmo historiador deu nome de “Campo Negro”. Inclusive
muitos quilombolas preferiam fixar-se perto de unidades produtivas, como, por
105
GOMES, Flávio dos Santos. Experiências Atlânticas: ensaios e pesquisas sobre a escravidão e o
pós-emancipação no Brasil. Passo Fundo: UPF, 2003. p. 112.
63
exemplo, neste caso, perto das chácaras localizadas na Serra. Na Serra dos Tapes
é que eram produzidos um número variado de gêneros alimentícios que abasteciam
a cidade, assim como era de lá que provinha a madeira utilizada nas construções,
nos estaleiros, e, logo após nas máquinas a vapor.
O grupo do Padeiro negociava as mercadorias originadas de saques nas
plantações, como no caso do episódio de Simão Vergara. Mariano e outro
companheiro quilombola saquearam o milho da roça de Boaventura Barcellos e
foram negociá-lo com Simão, proprietário de uma venda na Boa Vista. Os
quilombolas obtiveram, com a venda do milho, quantidades de pólvora, de chumbo,
fumo, pimenta do reino, cominho e açúcar. De acordo com Gomes, para o
comerciante que atravessava as mercadorias negociadas com os quilombolas, a
margem de lucro era muito maior na venda, pois pagavam menos valor na compra
pelos motivos da ilegalidade da transação
106
. Um dos motivos talvez para os
arriscados negócios de Simão Vergara tivesse sido esse, além da solidariedade, na
troca de informações e mercadorias, prevalecia a perspectiva de lucro.
Vários documentos ilustram esta densa rede de solidariedades que existia no
cotidiano escravista. Em um ofício de 30 de maio de 1835 a Câmara de Vereadores
informava à Presidência da Província da ineficiência da Guarda Nacional no
combate aos quilombolas. Segundo os vereadores, isso ocorria “em razão dessas
diligências se fazerem à vista dos escravos desses mesmos guardas nacionais, que
sem dúvida se comunicavam com os outros quilombolas”
107
. Ou seja, no confronto
com os quilombolas os cidadãos arregimentados na Guarda Nacional eram
atraiçoados por seus próprios cativos, que certamente informavam dos planos de
106
GOMES, Flávio dos Santos. Quilombos do Rio de Janeiro no século XIX. In: Liberdade por um fio:
história dos quilombos no Brasil. Org: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996. p. 275.
107
AHRGS. A.MU-103. Câmara Municipal de Pelotas 1832-36. São Francisco de Paula 30 de maio de
1835.
64
ataque aos esconderijos, da existência de patrulhas pelas estradas e trilhas. O
mundo da senzala não estava separado do mundo dos quilombos, antes, pelo
contrário, a comunicação entre cativos e quilombolas potencializava a resistência
enfraquecendo o controle social.
Através da análise de alguns aspectos do processo montado contra o
“perigoso” Manoel Padeiro
108
, queremos mostrar que a Vila, depois cidade de
Pelotas, na primeira metade do século XIX, era uma espécie de “barril de pólvora”
prestes a explodir, fato este percebido pelas elites, que focaram suas práticas no
controle e disciplinarização tanto de escravos como de populares livres.
Complementando o controle social pretendido, principalmente nos
emergentes espaços urbanos (que mais se caracterizavam pelo crescimento
inesperado do trânsito de pessoas e mercadorias, do que do que uma urbe
propriamente), foram implementados os Códigos de Posturas Municipais, normas
que estendiam e complementavam o Código Criminal e o Código de Procedimento
Criminal.
A colocação em prática das Posturas Municipais era papel da polícia e um
aspecto que evidencia o quanto era difícil para as autoridades controlarem a
circulação de escravos pela cidade é o crescido número de prisões efetuadas pelo
motivo de estarem os cativos na rua fora de horas, sem autorização de seus
senhores. Esta transgressão era ainda mais perigosa, pois havia o costume dos
taberneiros consentirem escravos no interior de seus estabelecimentos. Não
encontramos, na documentação sobre Pelotas, a hora precisa do toque de recolher.
108
Sobre a história do quilombo de Manuel Padeiro, ver: MAESTRI, M. O Negro no Sul do país. In:
SANTOS, Joel Rufino dos. (Org.). Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Negro
Brasileiro Negro nº 25, 1997; MOTTA, Flávia de Mattos. Pelotas e o quilombo de Manuel Padeiro na
conjuntura da Revolução Farroupilha. In: Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Porto
Alegre, v. 13, p. 111-115, 1985; MARSICO, Dilson. Escravidão e Resistência: Quilombo na Serra dos
Tapes. In: BARRETO, A. (Org.) Cadernos do Isp n°10. Pelotas: Ed. UFPEL, 1986.
65
Mas através dos estudos de Bakos, visualizamos que na década de trinta do século
XIX, tanto em Porto Alegre como em outras cidades da Província, o toque de
recolher se dava às nove horas da noite
109
.
Nunca é demais comentar o fato de que as posturas são construídas para
coibir acontecimentos que são considerados desordeiros, imorais, prejudiciais pelo
menos para a elite formadora deste tipo de legislação. Mas o fato da construção
deste tipo de legislação leva-nos a pensar que existe uma demanda a ser
combatida, um problema a ser solucionado, ou seja, a postura vem combater
pequenos delitos que incomodavam por acontecer regularmente. Em 20 de julho de
1835 a Câmara Municipal enviou uma proposta de postura municipal ao Presidente
da Província:
Artigo primeiro: os escravos, que forem encontrados nas ruas desta
cidade depois do toque de recolher, à noite, sem bilhete de seus
respectivos senhores, ou pessoas deles encarregados, serão
conduzidos a prisão, e castigados com cinqüenta açoites,
verificando-se, que tais escravos não andavam em serviço de seus
respectivos senhores, ou pessoas deles encarregados.
Segundo: Nenhum escravo, cujo senhor for morador na cidade, ou
distritos do termo da mesma, poderá transitar de uns para outros
lugares, sem consigo levar uma cédula datada, e assinada por seu
senhor, administrador, feitor, ou quem suas vezes fizer, em a qual
se indiquem o nome e naturalidade do escravo, seus mais salientes
sinais, o lugar para onde se encaminha, e o tempo, pelo qual deva
valer a referida cédula.
Terceiro: O escravo que se acha fora dos lugares designados no
precedente artigo, sem a sobredita cédula, será imediatamente
preso, a disposição de seus senhores, aos quais, os juízes
territoriais farão constar da maneira, que se acharem mais
conveniente
110
.
Esta proposta veio a ser efetivada em meio aos conflitos com os quilombolas
do grupo de Manuel Padeiro e surge como uma reação a já relatada circulação dos
109
BAKOS, Margareth. A escravidão negra e os farroupilhas. In: DACANAL, José Hildebrando (Org.).
A Revolução Farroupilha: história e interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997. p. 86.
110
BBP. Atas da Câmara Municipal da Vila de São Francisco de Paula (de 16 de maio de 1832 à
1833). Sessão de 20 de julho de 1835.
66
escravos pela cidade, precedida pela capacidade organizativa destes mesmos em
torno do grupo quilombola. Com a eclosão da chamada Revolução Farroupilha,
infelizmente temos uma lacuna na documentação que prejudica nossa análise sobre
as transgressões em torno desta postura. Mas, após a Revolução, principalmente
nos primeiros anos da década de 50, constantemente escravos foram presos por
estarem a andar pelas ruas da cidade fora de hora, à noite. Naquele período a
cidade já se transformara, mas de acordo com Arriada (1994) a população livre da
zona urbana permanecia a mesma em seu número:
Tabela 1 - População Livre - Pelotas
População
urbana
População Rural
Ano
Nº % %
Total
1835
5.467 44,00 6.958 66,00
12.425
1846
5.229 46,50 6.015 53,50
11.244
1858
7.000 65,07 3.757 34,93
10.757
1859
11.401 88,43 1492 11,57
12.893
1860
8.838 65,29 4699 34,71
13.537
1872
????
21.248
Fonte: ARRIADA, 1994, op. cit; GUTIERREZ, 2004, op. cit.
67
Estes dados devem ser relativizados, pois, por exemplo, em 1859, um ano
depois, o autor registrou 12.893 pessoas no total, sendo 11.401 na zona urbana,
para em 1860 registrar 13.537 sendo 8.838 na zona urbana. Independente destes
números, podemos visualizar que da década de 30 para a de 50, a população da
zona urbana de Pelotas teve um pequeno crescimento. Durante o período da Guerra
dos Farrapos, a cidade teria ficado deserta, mas logo teria retomado o crescimento
urbano, regido pelas lucrativas atividades econômicas
111
. Monastério calculou que
dentro do período de 1814 e 1860, a população de Pelotas tivera um crescimento de
754%, enquanto que a Província obtivera um crescimento de 286%
112
. Este fato
demonstra-nos o quanto a antiga Freguesia de São Francisco de Paula, depois Vila,
mais tarde cidade de Pelotas, emergia durante a primeira metade do século XIX,
destacando-se como centro urbano. Vale lembrar que em 1861, três quartos das
exportações gaúchas eram compostas pelo charque e pelo couro.
Através de uma fonte interessantíssima, o jornal “O Pelotense”, conseguimos
visualizar um grande número de prisões de pessoas escravas ou livres por estarem
à noite pelas ruas de Pelotas. Este jornal é o primeiro registro deste tipo relativo à
cidade, pelo menos que chegou até nós. De 1852 à 1855 são constantes na coluna
do Delegado de Polícia os anúncios de prisões de indivíduos por estarem fora de
hora nas ruas. Por exemplo, no dia 17 de janeiro de 1852, eram relatadas as prisões
de José, escravo de D. Francisca da Luz, Augusto, escravo do Dr. Maia, José,
escravo do Comendador Faria, e Manoel, escravo de Joaquim Gomes, todos por
andarem fora de horas
113
.
Se levada em conta a postura de 1835, provavelmente cada um tenha levado
cinqüenta açoites como punição. No dia 3 de março de 1852, o jornal louvava a ação
111
MAGALHAES, 2000, op. cit. p. 102.
112
MONASTERIO, 2003, op. cit. p. 2.
113
BRG. Jornal “O Pelotense”. Estante 062, número 3045, P2. Terça-feira 17 de janeiro de 1852.
68
do Delegado pelo fato de este ter criado um calabouço específico no quartel de
polícia para os indivíduos presos por estarem a vagar nas ruas fora de horas. Afinal,
como a maioria dessas pessoas, muitos dos quais escravos, como ressaltava o
jornal, era posta em liberdade no dia seguinte à apreensão, evitariam assim: “[...] a
despesa que, no ato de saída, teriam de fazer tantos desgraçados que vagam por
essas ruas, se tivessem eles de recolher-se a cadeia”
114
.
Ou seja, a demanda de prisões diárias como estas era tão grande que o
delegado se viu obrigado a construir um espaço de detenção específico para
aqueles detidos que vagavam pelas ruas em horas indevidas. Se levarmos em conta
as notícias deste jornal, de 1852 até 1855 são quase diárias as prisões por este
motivo.
Mesmo que apoiando a iniciativa da Delegacia de Polícia em regularizar as
detenções cotidianas, o jornal não concordava com o uso abusivo e descontrolado
de violência. No dia 8 de março de 1853 o jornal reclamava dos excessos com que
os policiais abordavam os escravos que estavam fora de horas nas ruas da cidade:
“para cumprir a ordem da autoridade, não há necessidade de dar pancadas,
mormente em pobres pretos velhos que não resistem”
115
.
Este discurso do jornal, além de referendar o que viemos argumentando
sobre a circulação da população escrava pela cidade demonstrada através das
análises dos meios de repressão, vem também demonstrar algo já afirmado pela
historiografia da escravidão. Ou seja, muitos escravos já com idade avançada,
quando começavam a adoecer, não prestando mais para o trabalho na visão do
senhor, muitas vezes eram abandonados nas ruas, como uma forma de os senhores
não mais arcarem com as despesas de alimentação, assim como as despesas
114
BRG. Jornal “O Pelotense”. Estante 062, número 3045, P2. Quarta-feira 3 de março de 1852.
115
BRG. Jornal “O Pelotense”. Estante 062, número 3045, P2. Terça-feira 8 de março de 1853.
69
relativas ao combate das doenças. Era neste momento que muitos escravos
conseguiam sua alforria, numa maneira do senhor livrar-se dos problemas
financeiros, lembrando que muitas vezes a alforria era paga pelo escravo. Mas
Fraga Filho chama a nossa atenção, pois em alguns momentos na “[...] perspectiva
dos homens e mulheres que envelheciam na escravidão, mais valia viver mendigo
do que morrer escravo”
116
.
A questão é complicada e não podemos deixar de lado as múltiplas
possibilidades de interpretações dos fatos: os indivíduos tinham escolhas a fazer e
as faziam a partir das suas experiências de vida
117
.
Além de vagarem pelas ruas da cidade, muitos indivíduos freqüentavam
vendas, tabernas e botequins durante a noite, sendo também os donos destes
estabelecimentos punidos como responsáveis por permitirem as aglomerações.
Como no caso relatado no mesmo jornal no dia 22 de março de 1855, em que o
Delegado de polícia “impôs a competente multa a Francisco José Tavares, por
consentir, de noite, dentro de sua venda, grande reunião de pretos escravos a cantar
e bailar”
118
.
A multa, de acordo com a Postura Municipal relativa aos taberneiros
119
, pode
ter sido de seis mil réis, ou se as portas estivessem fechadas para encobrir os fatos,
a multa pode ter aumentado para dois mil réis. Os casos relativos a tabernas são
também costumeiros nas páginas do jornal “O Pelotense”; apenas no dia 22 de
março de 1853, foram relatados quatro casos de prisões e multas relativas a
taberneiros que estavam com as portas abertas depois do toque de recolher.
116
FILHO, 1996, op. cit. 72.
117
Sobre a proposta da micro-história do uso estratégico e das agências humanas na história, ver
LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Para observar as diversas formas de como os escravos
avaliavam e agiam no mundo a sua volta, é interessante ver: OLIVEIRA, Vinícius Pereira de. De
Manoel Congo a Manuel de Paula: um africano ladino em terras meridionais. POA: EST, 2006.
118
BPP- Jornal O PELOTENSE (AP200). Ano II, terça-feira 22 de março de 1855
119
BPP. Revista do Centenário de Pelotas. 1912, n]7 e 8. p. 109.
70
No dia 11 de janeiro de 1853 é relatada a prisão do escravo Antonio, de
Desiderio Antunes, por este ser “[...] encontrado fora de horas, com uma carroça,
insistindo para que um taverneiro lhe abrisse a porta”
120
. A insistência de Antonio
não deveria ser encarada na época como algo incoerente; a questão seria a decisão
do taverneiro em arcar com as conseqüências ou não de burlar a lei, vontade esta
que acreditamos ser medida conforme as possibilidades de lucro do negociante. Se
por um lado as tabernas eram vistas como lugares subversivos pelas autoridades,
por outro, as tabernas eram essenciais para a economia doméstica das famílias
populares. Moreira argumenta que os taberneiros serviam como fiadores de gêneros
diversos, usurários e compradores das pequenas produções familiares
121
. Pensando
assim, Antonio poderia estar carregando produtos em sua carroça para a
negociação com o taverneiro, ou talvez procurando apenas um lugar para beber.
Pretendemos, neste capítulo, problematizar um pouco as representações em
torno da história da cidade de Pelotas na primeira metade do século XIX. Não nos
propúnhamos aqui a esgotar reflexões sobre as ações e representações de grupos
populares na cidade, pois acreditamos que para este assunto é necessário um
trabalho específico. Quisemos mostrar aqui a complexidade das relações sociais
naquele momento, através das medidas repressoras das elites pelotenses a partir do
receio da perda do controle social sob as populações pobres. A partir da
independência e da formação do Estado Nacional, esta será uma das maiores
batalhas do Império - a tentativa do disciplinamento das classes populares através
de seu controle cotidiano.
120
BRG. Jornal “O Pelotense”. Estante 062, número 3045, P2. Terça-feira 11 de janeiro de 1853
121
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Entre o Deboche e a Rapina. Os cenários sociais da
criminalidade popular em Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 1993. (Dissertação de Mestrado). P.
71.
71
CAPÍTULO 2 CIDADÃOS INDUSTRIOSOS NÃO DEVEM SER
CONSTANTEMENTE DISTRAÍDOS DE SEUS
MISTERES: A ORGANIZAÇÃO DO POLICIAMENTO
EM PELOTAS
Neste capítulo observaremos as várias formas do fazer policial, percebendo
as diferenças dos projetos das elites para o controle e disciplinamento da população,
das práticas cotidianas, do fazer autoridade no cotidiano dos policiais.
Entre as décadas de 30 e 50 do século XIX, visualizamos importantes
mudanças relativas à institucionalização da polícia no Brasil. Primeiramente na
Regência, tivemos a criação de dois novos grupos responsáveis pela manutenção
da ordem e disciplina da população, a Guarda Nacional, e a Guarda Municipal
Permanente. Neste período o que observamos é uma descentralização dos poderes
políticos, ou seja, houve um maior controle das atividades policiais pelas elites
regionais. A partir de 1841, com a reforma do Código Criminal, observamos uma
centralização por parte da Coroa dos poderes policiais e judiciais; neste sentido,
ocorreram maiores investimentos em corpos policiais provinciais. Nascia, então,
entre a década de trinta e cinqüenta do século XIX, a polícia brasileira, com
regimentos e atividades próprias, instituição esta que no seu processo de criação
acabou acompanhando a construção do Estado Nacional brasileiro.
Wellington Silva, muito influenciado por Marcos Bretas, argumenta que o
surgimento da polícia não pode ser explicado apenas como necessidade de controle
da população:
[...] ele também é parte da própria expansão da burocracia estatal.
Por isso, posteriormente, a formação de um Corpo de Polícia
profissional, de tempo integral, também passou a refletir uma certa
72
preocupação das autoridades governamentais com a burocratização
da máquina administrativa do Império
122
.
Assim, a institucionalização da polícia propiciaria a criação de empregos,
alguns remunerados como os cargos inferiores, e outros não, como os cargos
superiores. Estes últimos, apesar de não receberem salários, usufruíam muito de
suas posições através de conchavos, de apoios políticos. Num império onde o
clientelismo era a base de sustentação da política, as indicações para cargos
estatais era um dos meios cruciais para a obtenção de ascensão do status político-
econômico
123
. E é nesse momento de burocratização do Estado brasileiro,
influenciado pelas idéias liberais, que analisaremos as reações por parte dos
policiais e da população em geral em face dos projetos de criação do aparato
policial.
2.1 A Guarda Nacional não basta, eles “[...] não podem arrostar-se, sem apoio,
com criminosos adestrados as armas, e assassinato”
No Brasil do período regencial, tivemos em 1831 a criação da Guarda
Nacional. Era uma espécie de milícia cidadã, organizada por proprietários de terras
“[...] ansiosos por conter a influência desestabilizadora de um exército indisciplinado”
124
. Sua criação foi uma reação dos liberais moderados, então no poder da regência
até 1837, às forças do exército, como uma forma de descentralizar o controle militar,
122
SILVA, Wellington Barbosa da. Entre a Liturgia e o Salário: a formação dos aparatos policiais no
Recife do século XIX (1830-1850). Recife: Ufpe, 2003b. (Tese de doutorado). P. 260.
123
CARVALHO, 1996, op. cit.
124
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. p.
50. Sobre a Guarda Nacional ver: URICOECHEA, Fernando. O Minotauro Imperial - A burocratização
do estado patrimonial brasileiro no século XIX. Rio de Janeiro, DIFEL, 1978; CASTRO, Jeanne
Berrance de. A Milícia Cidadã: A guarda nacional de 1831 a 1850. São Paulo, Companhia Editora
Nacional / Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1977.
73
fortalecendo as aristocracias locais, distinguindo nitidamente em suas fileiras as
classes sociais. Os soldados da guarda deveriam ser todos os homens com idade
entre 18 e 60 anos, com renda anual superior a duzentos mil réis nas grandes
cidades, e cem mil réis nas demais regiões do país, que fossem convocados
legalmente se eleitos nas paróquias locais
125
. A maioria dos integrantes era oriunda
das camadas médias da população livre, pois “[...] o montante de renda exigido
situava-se num nível suficientemente baixo da hierarquia econômica – o que permitia
a inclusão da maioria dos artesãos, comerciantes e assalariados independentes”
126
.
Ficavam de fora da Guarda Nacional os escravos e os conceituados como vadios.
De acordo com Fraga Filho, os indivíduos ditos “vadios” pela sociedade na época
eram aqueles homens e mulheres livres pobres, que se ocupavam em algumas
atividades de trabalho sazonalmente, mas que preocupavam as autoridades
justamente por não terem regularidade no tempo de serviço, inclinados, na visão
destes, ao ócio e à vadiagem
127
.
O historiador José Iran Ribeiro, em sua dissertação de mestrado,
contextualiza a criação da Guarda Nacional e os papéis que desempenhou na
Província de São Pedro. Ribeiro lembra que a Guarda Nacional foi criada para ser
uma força de “cidadãos em armas”, substituindo as Milícias e as Ordenanças,
criadas em 1796 como forças de 1
a
e 2
a
linhas do Exército
128
.
Os elementos desta “milícia cidadã” passavam por uma qualificação, o que
significa que pertencer aos seus quadros denotava a atribuição de status.
Entretanto, a carência dos recursos públicos fez com que várias vezes a Guarda
Nacional fosse utilizada em serviços diários de polícia nas vilas (guarda das cadeias,
125
WERNET, Augustin. O período Regencial (1831-1840). São Paulo: Global, 1982.
126
SILVA, 2003b, op. cit. p. 65.
127
FILHO, 1996, op. cit.
128
RIBEIRO, José Iran. Quando o Serviço os Chamava: os Milicianos e os Guardas Nacionais
Gaúchos 1825-1845. Santa Maria, Editora da UFSM, 2005b.
74
rondas), na escolta de prisioneiros para outras localidades e, o que era ainda mais
perigoso, para bater matos e redutos atrás de quilombolas, criminosos e desertores.
Assim, o capital simbólico gerado pelo alistamento (ou melhor, qualificação) na
Guarda Nacional muitas vezes envolvia consideráveis riscos, principalmente para os
indivíduos enquadrados no serviços ordinário da mesma.
Em Pelotas, então Vila de São Francisco de Paula, a Guarda Nacional passou
a ser organizada em 1832; um ofício da Câmara relatava ao Presidente da Província
que a força se compunha de 457 soldados no serviço ordinário, e 95 de reserva.
Dividia-se assim a guarda:
[...] em duas companhias de cento e doze praças cada uma para
esta vila, onde designou a sua parada; uma companhia na costa de
Pelotas até a Serra dos Tapes com cento e treze praças, sendo a
sua parada na povoação denominada Boa Vista e uma companhia
no Serro da Buena de noventa e cinco praças, cuja parada se
designou na povoação da mesma freguesia: repartindo-se da lista
de reserva vinte e três para a primeira companhia, vinte e dois para
a segunda, dezesseis para a terceira, e nove para a quarta por
serem pessoas moradoras nesses lugares
129
.
A primeira e a segunda companhia relatadas no ofício seriam de infantaria, a
terceira e quarta descritas seriam de cavalaria, pois atenderia ao hábito dos
indivíduos da Serra dos Tapes e do Serro da Bueno de andarem a cavalo e dizerem-
se inábeis ao serviço a pé. A freguesia de Nossa Senhora do Boqueirão ficaria
também como cavalaria pelas mesmas razões, com 25 de serviços e 25 de reserva,
e com parada na igreja local. Colocamos estes números para podermos mostrar o
quanto era grande o número de indivíduos mobilizados na Guarda Nacional. Vale
lembrar que os altos postos desta milícia, os comandantes, geralmente os homens
mais abastados da região, na insuficiência de recursos por parte do Estado Imperial,
sustentavam as despesas da Guarda, e muitas vezes passavam a visualizar os
129
AHRGS. A.MU-103. Câmara Municipal de Pelotas 1832-36. Ofício do dia 11 de maio de 1832.
75
Nacionais como um exército particular. Passavam a utilizar os serviços da Guarda
Nacional para “[...] garantir vitórias eleitorais, promover desforras contra adversários
políticos ou mesmo contra simples desafetos e para manter inalterada, ou até
mesmo para aumentar, a sua área de influência na sociedade”
130
.
Nos primeiros anos de formação da Guarda, foi fato corrente o problema
relacionado ao fornecimento de armas aos soldados. Este fornecimento era
responsabilidade do Ministério da Guerra, que por todo o Brasil distribuiu armas
velhas com defeitos, oriundas de antigas milícias, que estavam armazenadas nos
armazéns reais. Em Pelotas, em um ofício de 27 de fevereiro, a Câmara Municipal
pedia um novo armamento para a sua Guarda Nacional, já que o armamento antes
enviado era “[...] velho e precisava de conserto”
131
.
Contudo, mesmo visualizando o grande número de pessoas engajadas na
manutenção da ordem, a Câmara municipal queixava-se do despreparo dos oficiais
da Guarda Nacional em se tratando do manuseio de armas, pois “[...] não podem
arrostar-se, sem apoio, com criminosos adestrados as armas, e assassinato”
132
. Os
“criminosos” seriam, de acordo com a Câmara, homens da fronteira, pessoas
desconhecidas, e escravos. Para então dar apoio para a Guarda Nacional nos
serviços da ordem, a Câmara pediu para a presidência da Província a criação de
vinte a trinta postos de soldados para a Guarda Municipal Permanente, a fim de
atuar em diligências rápidas. Entretanto, nos relatórios da Presidência da Província
vemos a informação de que o aumento do número de Guardas Municipais não está
associado apenas ao despreparo dos Guardas Nacionais, mas também ao fato de
que como afirmou o Dr. Antônio Rodrigues Fernandes Braga em 1835:
130
SILVA, 2003b, op. cit. p. 35.
131
AHRGS. A.MU-103. Câmara Municipal de Pelotas 1832-36. Ofício do dia 27 de fevereiro de 1835.
132
AHRGS. A.MU-103. Câmara Municipal de Pelotas 1832-36. Ofício do dia 11 de maio de 1832
76
[...] a Guarda Nacional não é própria para o serviço de guarnição e
polícia porque cidadãos industriosos não devem ser constantemente
distraídos de seus misteres. A economia que se faz com os
Permanentes, não é compensada com os prejuízos que sofrem as
classes industriosas, prejuízos que sempre revertem sobre as
rendas públicas
133
.
Ou seja, havia um critério de classe e de prestígio nestas mobilizações de
contingentes para o controle social – os cidadãos da Guarda Nacional queriam
manter o capital simbólico que era reservado aos oficiais da mesma, mas ao mesmo
tempo não queriam envolver-se no arriscado trabalho diário de vigiar e reprimir os
setores subalternos, principalmente os cativos e os “servidores de ninguém”
134
que
perambulavam pela fronteira
135
. Aos Permanentes, primórdios da força polícial
posteriormente organizada, é que caberia o controle dos populares insubmissos.
Ainda de acordo com o relatório do presidente, na época haviam duas
companhias de Permanentes responsáveis pelas vilas e freguesias da província;
uma em Porto Alegre com 168 praças, e outra em São Francisco de Paula, hoje
Pelotas, com 120 praças.
Como mostramos no capítulo um, as preocupações das autoridades com os
grupos populares eram constantes, devido a difícil tarefa de controlá-los,
principalmente no que concerne aos deslocamentos constantes destes segmentos
populacionais – seja por motivos lúdicos ou profissionais -, pelos diferentes lugares,
vilas, cidades.
O início da década de 30 para os soldados Permanentes foi um período de
difícil adaptação às hierarquias impostas pelas autoridades. Além das dificuldades
133
AHRGS. A.7.01. Relatório do Presidente da Província. 1835-37-46. Discurso na Assembléia no
ano de sua instalação em 1835, do Ex. Sr. Doutor Antônio Rodrigues Fernandes Braga. 20 de abril de
1835.
134
Expressão utilizada por Paulo Moreira em sua dissertação (1993, p. 178). O autor referia-se aos
ditos vadios, homens sem governo, aqueles que não obedeciam às regras vigentes de dependência
pessoal.
135
RIBEIRO, 2005b, op. cit.
77
com os mandos e desmandos dos comandantes, veremos neste capítulo, várias
razões para a não-adaptação com os serviços policiais, como os baixos soldos, a
proibição de outro tipo de serviço além da guarda, entre outros.
2.2 Disse “que não era escravo para lhe gritar”: A formação da Guarda
Municipal Permanente em Pelotas
As Guardas Municipais foram criadas em 1831
136
para fazer o
assessoramento das atividades dos Juízes de Paz, que tinham como
responsabilidade as funções policiais, como garantir o cumprimento das Posturas
Municipais, prisão e interrogatório de delinqüentes, a feitura do auto do corpo de
delito, obrigar ao trabalho indivíduos considerados como vadios através dos Termos
de Bem Viver, entre outras atividades
137
.
Os postos das Guardas Municipais seriam compostos por cidadãos eleitores,
com idade entre 18 e 40 anos, de “boa conduta moral e política”. A idéia era a
formação de um grupo de soldados elitizados, que estivessem longe das camadas
populares, mas que de acordo com Moreira foi logo abandonada em 1835, quando o
Presidente da Província ao se defrontar com a pouca procura de pessoas para os
engajamentos nas Guardas, passou a determinar recrutamento compulsório para
sanar a falta de voluntários
138
.
As dificuldades encontradas pelo governo provincial e municipal para
abastecer a Guarda Municipal de voluntários podem ser encontradas num ofício
136
AHRGS. Coleção de Leis nº 49. Decreto de 14 de junho, 10 e 22 de outubro de 1831.
137
JÚNIOR, João Mendes de Almeida. O Processo Criminal Brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos
S.A., 1959. p. 162.
138
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. E a rua não é do rei: Morcegos e Populares no início do
policiamento urbano em Porto Alegre século XIX. In: Sobre a rua e outros lugares: reiventando Porto
Alegre. Org: HAGEN, Acácia Maria Maduro; MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Porto Alegre: Caixa
Econômica Federal, 1995. p. 57.
78
encaminhado pela Câmara da Vila ao presidente da Província em 1834, onde a
instituição reivindicava o pagamento dos soldos atrasados que na época já durava
dois meses. Este seria um dos fatos de:
[...] não se ter completado o engajamento dos trinta Guardas
Municipais Permanentes que foram concedidos para este município,
e que talvez a força das precisões faça desmoralizar os que estão
engajados, e que não podem empregar-se em outros trabalhos para
ganharem o sustento
139
.
Então se imagina a situação desses sujeitos: o engajamento no serviço das
Guardas causava-lhes penúria em suas subsistências, com o freqüente atraso dos
soldos, que já eram baixos. Empobrecidos, os Guardas eram humilhados
socialmente, o que provocava problemas no desempenho de sua função de controle
dos desclassificados e mesmo no engajamento de novos policiais. Mas alguns
soldados, mesmo com as proibições, deveriam manter outros tipos de atividades,
como no caso excepcional do soldado Permanente José Ramos Pereira da Silva,
que ao ser interrogado sob acusação de deserção, disse que foi preso ao chegar na
cidade para vender duas carretas de carvão
140
. É evidente que, neste caso, José
andara fugido, já não fazia parte do corpo dos Guardas Municipais, mas demonstra
as possibilidades de serviço destes sujeitos frente às situações adversas que
encontravam; deveriam haver formas variadas de complementação de renda.
José Ramos Pereira da Silva era filho de Jozé Joaquim, tinha 25 anos de
idade, altura de 60 polegadas, cabelos crespos castanhos, olhos pardos, era natural
de Pelotas, solteiro e não tinha ofício ao se alistar no dia 13 de março de 1835 pelo
tempo de 2 anos, “muito de sua livre vontade” como dito no seu interrogatório. Ele foi
acusado de deserção, arrombamento da prisão do quartel dos permanentes, e
139
AHRGS. A.MU-103. Câmara Municipal de Pelotas 1832-36. Ofício do dia 7 de janeiro de 1834.
140
AHRGS. Fundo Polícia. Maço P-147. N 191-1. Autos do Conselho de investigação feito a José
Ramos Pereira da Silva, soldado da Companhia de Guardas Municipais Permanentes desta cidade.
1835.
79
insubordinação ao sargento Jozé Gomes da Cruz. Em seu depoimento, o sargento
Jozé Gomes relata que no dia 26 de abril de 1835, ao partir para a revista das 9
horas da noite, mandou chamar o soldado Jozé Ramos em seu rancho, e que este
haveria dito que não importava a ele revistas:
[...] o soldado me respondeu com vozes arrogantes, e a vista desta
insubordinação Ilustríssimo Senhor, todos me podem perder o
respeito; o qual prendi a ordem de Vª Sª, e logo que lhe intimei a
ordem de prisão, tratou de me ameaçar para quando saísse solto, e
depois de estar na prisão me insultou com palavras injuriosas.
Dizia o sargento que o soldado estava sempre embriagado depois de se
alistar na companhia, e que em dias anteriores, após a debandada da companhia da
revista do sol posto, Jozé Ramos o teria ameaçado com uma pistola.
Interessantíssimo que o rancho do soldado havia sido concedido pelo Capitão
Comandante da Guarda Municipal Sebastião Xavier de Souza. Não sabemos o
motivo, mas pode ser visto como um certo tipo de apadrinhamento, um tipo de
clientelismo em troca de lealdade, que poderia ser necessário para o cotidiano da
atividade policial. A situação privilegiada de apadrinhado talvez justifique a
arrogância demonstrada.
Richard Graham analisou com profundidade as práticas políticas clientelistas
no Brasil do século XIX. Dizia este autor que o clientelismo político era o que
sustentava a parafernália do Estado, e ao mesmo tempo era a sua razão de ser
141
.
Pensando também que os cargos públicos das autoridades policiais eram atividades
não remuneradas, sabemos que sua principal remuneração era o acúmulo de capital
político, a ampliação das lealdades políticas; assim, podemos pensar a concessão
deste rancho ao soldado como uma forma de proteção, que teria que ser respondida
com apoio político. Bretas, mesmo analisando outra realidade, a de uma polícia do
141
GRAHAM, 1997, op. cit. p. 299.
80
século XX, pode nos ajudar, ao argumentar que com as dificuldades de
recrutamento policial, as autoridades tiveram que incorporar elementos de favor,
assim:
[...] a inserção dos policiais nos quadros do controle pela elite
permanecia então vinculada a acordos pessoais e à busca de
recompensas, dependendo das relações de favor, e não de qualquer
forma de implantação de uma racionalidade burocrática
142
.
O certo é que o sargento Jozé Gomes não havia gostado nem um pouco da
falta de subordinação do soldado, principalmente pelo fato de este o ter insultado na
frente de outros praças. A irritação do sargento prende-se à questão de não ser um
fato isolado, mas ser parte de uma seqüência de atos de insubordinação praticados
pelos policiais, o que mostrava o despreparo dos voluntários (recrutados entre os
desempregados e vadios) e a incompetência do serviço público em montar e manter
um aparelho razoável de controle e manutenção da ordem pública.
Jozé Ramos Pereira da Silva, em seu interrogatório, disse primeiro que
sempre teve seu soldo em dia, e que a razão pelas injúrias ao sargento devia-se ao
fato de que “[...] sendo chamado para o serviço na noite em que fora preso, veio a
dormir, e não ouviu os primeiros chamados do seu sargento, a qual gritando-lhe
depois, ele réu respondera, que não era escravo para se lhe gritar, pelo que foi
então preso”
143
. Chama a atenção o fato de Jozé Ramos indignar-se a ser tratado
como escravo; podemos enxergar nesta resposta a insistência das camadas mais
pobres da população em desvincular-se/diferenciar-se da imagem da escravidão,
pois na sociedade escravista da época, os indivíduos que tivessem a pele mais
escura, os mulatos, pardos, eram considerados eternamente suspeitos, tanto quanto
142
BRETAS, Marco Luiz. A Polícia carioca no Império. In: Revista Estudos Históricos, vol.12, nº 22.
Rio de Janeiro: 1998. p. 231.
143
AHRGS. Fundo Polícia. Maço P-147. N 191-1. Autos do Conselho de investigação feito a José
Ramos Pereira da Silva, soldado da Companhia de Guardas Municipais Permanentes desta cidade.
1835.
81
os escravos ou libertos.
144
Após ser preso, no dia 2 de maio, Jozé Ramos arrombou
a prisão do Quartel da Guarda Municipal, fugindo para a Serra dos Tapes. Dizia ele
que:
[...] havia fugido da prisão do quartel arrombando o xadrez, por
padecer algumas fomes, e foi então para a Serra dos Tapes, onde
se conservou, até o dia em que foi preso, vindo ele réu a esta
cidade, vender duas carretas de carvão, quando foi encontrado
pelos soldados.
Interessante pensar que a Serra dos Tapes servia não apenas para os
escravos fujões (os quilombolas), mas também neste caso para desertores das
atividades policiais, devido ao difícil acesso das autoridades àquelas matas. Se para
as autoridades os matos eram vistos como perigosos, por abrigarem escravos fujões
e desertores, para outros, o mato era visto como um local de segurança, local de
esconderijo, da fuga, por exemplo, do recrutamento militar forçado
145
. Pode ser que
estes desertores entrassem em contato com a cultura quilombola, trocando
informações a cerca das patrulhas que rondavam aquelas matas, mas não temos
comprovação
146
. O fato mais contundente neste relato do soldado é quando ele
afirma que o motivo da fuga seria o de padecer de fome, demonstrando mais um
motivo para a decepção com o serviço da Guarda. O soldado Jozé Ramos foi punido
na acusação de desobediência de prisão com dois meses de detenção, e na
acusação de deserção sofreu mais três meses de detenção
147
.
144
Ver ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de
Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1988.
145
RIBEIRO, 2002, op. cit. p. 8.
146
Trabalhos realizados nos últimos anos sobre as atividades quilombolas, têm salientado que os
agrupamentos de escravos fugidos não se caracterizavam pelo isolamento e que se constituíam por
uma formação multiétnica. Ver:
BARCELLOS, Daisy Macedo de (e outros). Comunidade Negra de
Morro Alto. Historicidade, Identidade e Territorialidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004;
GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de Quilombolas. Mocambos e comunidades de senzalas
no Rio de Janeiro - século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995.
147
Quando os policiais envolviam-se em processos judiciais, respondiam por estes em uma estância
jurídica específica, no chamado Conselho de Investigação. Informa-nos Wellington da Silva que o
Conselho de Investigação era “[...] composto de um primeiro comandante, como presidente, e de dois
subalternos como vogais. O processo organizado por este conselho seria submetido a um Conselho
82
O leitor deve estar pensando o que levava um jovem a se voluntariar à
Guarda Municipal. De acordo com Moreira, seria o fato de escapar do recrutamento
do exército e da Marinha, que eram vistos como punições extremas, pelo fato de
afastar os indivíduos dos lugares de origem, muitas vezes para locais de fora da
província
148
. Chama a atenção o mesmo autor ao enfatizar que a profissão policial
era tida como temporária, não como uma profissão oficial.
José Ramos, o desertor acima citado, provavelmente escapou do
recrutamento no Exército ou na Marinha por ter residência fixa – um rancho, que
mesmo que não fosse seu, sabiam onde encontrá-lo. Portanto, não era um
vagabundo (vivia arranchado), nem vadio (certamente ocupava-se de seus afazeres
rurais). Estes dados fragmentados que temos sobre este sujeito do século XIX, nos
faz valorizar o seu acesso à terra (sonho de milhares de famílias rurais até hoje),
garantido pelo seu relacionamento com o Comandante da Guarda. Zé Ramos não
era um “servidor de ninguém”.
O Quartel dos Guardas Municipais Permanentes ficava na rua Augusta, hoje
General Osório, entre a rua das Torres, hoje Major Cícero, e a rua do Padeiro, hoje
Dr. Cassiano
149
. Mas seu quartel nem sempre foi ali. Primeiramente funcionou no
mesmo prédio da Casa de Correção, na atual rua Barão de Santa Tecla, esquina
Sete de Setembro. Os motivos da mudança seriam o da falta de espaço e pelo fato
de terem “[...] ocorrido circunstâncias desagradáveis, pela falta de moralização de
Criminal, composto de um presidente, de um auditor (no caso, o promotor público do lugar em que
estivesse o Estado maior do corpo) e de cinco oficiais. A convocação e nomeação destes conselhos
seriam feitas pelo comandante geral, quando o réu fosse praça, e pelo presidente da Província,
quando o réu fosse oficial, sendo o presidente e os vogais de graduação superior ou igual à dos réus.
Uma vez proferida a sentença pelo Conselho Criminal, o processo seria remetido ao comandante
geral para o seu efetivo cumprimento. Mesmo assim, ele teria que obedecer a algumas diretrizes.
Quando a pena excedesse a dois meses de prisão ou determinasse a demissão do réu, o referido
comandante teria que encaminhar o processo para a Junta de Justiça, que o julgaria em última
instância” (2003b, p.118).
148
MOREIRA, 1995, op. cit. p. 66.
149
Ver o mapa de Pelotas de 1835 em anexo nº 1. In: GUTIERREZ, 2001, op. cit. p. 211.
83
alguns dos ditos soldados”
150
, assim, “não convindo a boa moralização dos presos a
sua residência ali”
151
. Então vamos às análises desses conflitos.
Os soldados Permanentes, Joaquim da Cruz Ferraz, e José Carlos da Silva,
estavam presos por faltarem à formatura da revista da tarde do dia 27 de outubro de
1834. Na manhã do dia 28, o segundo sargento Faustino de Mello passou na cela
onde estavam e perguntou aos dois soldados se estavam prontos para montarem
guarda, ao que Ferraz respondeu que não, pois enquanto estivesse preso, não
montaria guarda, nem serviço algum. Pela segunda vez, na mesma manhã, o
sargento Faustino retornou e, após fazer a mesma pergunta, Ferraz repetiu o
mesmo argumento, já José respondeu que estava doente. Os questionamentos às
hierarquias policiais não param. O Comandante da Cadeia Civil, o soldado Joaquim
Francisco de Lima relata em um ofício que na noite do dia 28 os soldados foram
soltos por ordem de seu Tenente, e que na tarde do dia 29, ao mandar o soldado
Francisco de Souza Gusmão render a sentinela,
[...] este não fez caso algum, e pegando em uma garrafa foi à venda
e trouxe-a cheia de vinho, entregando-a no xadrez aos presos,
motivo porque o prendi, e perguntando-me o dito soldado a ordem
de quem estava preso lhe respondi que a ordem do nosso tenente:
neste tempo puxa ele da espada, e vem sobre mim a ponto de ferir-
me em um dedo, ao que avancei-me a ele, e o desarmei
152
.
Interessante pensar na simbologia da entrega do vinho aos presos feito por
Gusmão, como que demonstrando que ele, soldado, estava mais próximo dos
presos da cadeia, do que da oficialidade, no caso o comandante da Companhia.
Lembremos que trocar bebidas, ou seja, oferecer bebidas uns aos outros era sinal
150
AHRGS. A.MU-103. Câmara Municipal de Pelotas 1832-36. Ofício do dia 11 de julho de 1834.
151
BPP. CEDOV. Livro de Atas da Câmara Municipal de Pelotas, Nº004. Ata do dia 11 de julho de
1834.
152
AHRGS. Fundo Polícia. Maço P-147. 1834 – Guardas Municipais Permanentes Comando São
Francisco de Paula. Correspondências expedidas.
84
de solidariedade étnica, social e de gênero entre os populares
153
. E essa
proximidade poderia ser muito afetiva se pensarmos que o quartel era dentro da
cadeia, ou seja, estes indivíduos conviviam diariamente, se conheciam, talvez
inclusive compartilhassem os desgostos em relação às autoridades, aos
representantes das forças da ordem das elites. A atitude de Gusmão parece ter
ressonância com as punições do dia anterior aos colegas, pois tanto Gusmão, como
os outros soldados negaram-se a montar sentinela.
Ilustração 1 – Presos bebendo dentro da cadeia
154
.
O Comandante informou ainda que, após a prisão, ele se retirou para um
armazém, por não conseguir fazer a escrita da queixa que faria ao seu superior pelo
motivo de Gusmão não parar de xingá-lo, mesmo preso. Ao chegar à porta do
armazém “[...] observei não estar a sentinela no seu lugar, volto a guarda, e
encontrei tanto a sentinela, com que era o soldado Bernardo José Fernandes com o
dito Gusmão, que se tinha tornado a armar com as mesmas armas ambos de
153
JARDIM, Denise. De Bar em Bar: Identidade masculina e auto-segregação entre homens de
classes populares. Porto Alegre, PPGAS - UFRGS, 1992 (Dissertação de Mestrado) e MOREIRA,
1993, op. cit. Principalmente o terceiro capítulo.
154
BPP. CEDOV. AP-018. Livro de ilustrações de Herrman Rudolf Wendroth, publicado pelo governo
do Rio Grande do Sul.
85
espadas desembainhadas, acrescentando mais ter o dito Gusmão partido a pistola,
e amassado toda a bainha da espada, prendendo eu a dita sentinela por deixar seu
posto”, e só quando auxiliado pelo Juiz de Paz do primeiro distrito e pelo Major dos
Guardas Nacionais é que o Comandante conseguiu resolver a situação, prendendo
Gusmão.
Outro símbolo de questionamento de hierarquia aparece neste relato, no fato
de Gusmão ter danificado a pistola, e amassado a bainha da espada; aqui o
Comandante sentiu sua autoridade ameaçada, tanto que realça em seu relato estas
atitudes do soldado. Interessante também, é que o outro soldado se solidarizou com
os questionamentos do colega, oferecendo armamento para este enfrentar o
Comandante
__
pareciam compartilhar os questionamentos sobre as ordens dos
oficiais superiores. Infelizmente, a fonte para esta nossa análise são apenas ofícios
de oficiais de postos superiores ao dos soldados; não temos interrogatórios feitos
com os soldados, que poderiam nos demonstrar as insatisfações com as
autoridades. E no último ofício deste conflito, vemos que Gusmão continuou
desafiando os oficiais superiores da Guarda Municipal. O Capitão Comandante
Sebastião Xavier de Souza faz uma representação ao presidente da província, onde
pede soluções relacionadas à disciplina militar. Disse ele que ao chegar na Guarda
da Cadeia, após os conflitos, encontrou o Major da Guarda Nacional, o Juiz de Paz
do primeiro distrito e grande número de cidadãos, e que:
[...] procurando eu com brandura dar corte aos desacertos do dito
soldado Gusmão, foi então quando por ele fui injuriado com as mais
picantes e inauditas expressões a vista, e face das autoridades
referidas, de todos os soldados que compunham as patrulhas
naquela tarde, e do povo que testemunhou os puzetivos(sic)
ataques de palavras, com as quais tanto ofendeu o meu melindre,
reputação e emprego, por tanto o prendi.
86
Talvez não teremos condições nem de imaginar o que o soldado disse para
seu Capitão; o fato é que este se sentiu desmoralizado pelas palavras do soldado,
realçando nas entrelinhas as dificuldades que iria enfrentar relacionadas à imposição
da autoridade e disciplina militar.
Outro caso em 1836 ilustra bem a continuidade das insubordinações por parte
dos soldados da Guarda Municipal. Euzébio Jozé Pereira alistou-se no dia primeiro
de outubro de 1835, no dia 9 já foi preso por faltar à revista do toque de recolher;
sendo solto no dia seguinte, foi novamente preso:
[...] a 23 por faltar o respeito ao inferior do dia no quartel, solto a 25
do corrente do mesmo mês, preso a 4 de novembro por faltar a
revista do sol posto e do recolher, solto a 7 do mesmo mês, preso a
18 de dezembro por queimar o seu camarada, e recusar sair para a
patrulha, solto a 22, preso a 23 do mesmo mês por retirar-se da
Guarda sem licença, solto a 24, preso a 23 de janeiro do corrente
ano por faltar ao grito de armas estando de guarda, escondeu a
chave do xadrez e saiu da prisão
155
.
Transcrevemos na íntegra o documento mandado pelo Capitão Comandante
Sebastião Xavier de Souza, o mesmo que se sentiu afetado em seu “melindre e
emprego” no caso anterior, para o leitor visualizar o tamanho da confusão montada
pelo soldado Euzébio a seus superiores. Pelo que vimos, o soldado negava-se a
manter regularidades em seu serviço. Fraga Filho (1996, p.78) nos lembra que a
compreensão da idéia do trabalho regular em oposição à idéia da vadiagem,
chegará com as idéias liberais, ou seja, a polícia tentava incutir em seus soldados
um ritmo de trabalho ao qual talvez eles não estivessem acostumados
__
as noções
de tempo poderiam ser diferentes. É exemplar esta idéia das elites, através do
Estado, querendo incutir a idéia da lógica do trabalho contra o ócio, por meio das
Casas de Correção, onde o preso cumpria pena trabalhando sob vigilância
155
AHRGS. Fundo Polícia. Maço P-147. 1836 – Guardas Municipais Permanentes Comando São
Francisco de Paula. Correspondências expedidas. Documento nº 959
87
constante e tempo controlado, bem como os Termos de Bem Viver, quando os
Juízes de Paz buscavam o comprometimento das pessoas no sentido de procurarem
um trabalho regular.
O que mais impressiona no caso do soldado Euzébio é que ele, ao ser preso
pela última vez, foi levado para a Cadeia Civil, e de acordo com o ofício do Capitão,
“[...] serviu-se de uma faca que ali achou e cortando toda a farda em pedaços bem
como o boné, atirou contudo na frente da guarda, dizendo aos soldados da mesma
que levassem ao Capitão dos Permanentes que era mais um soldado que eu (ele)
tinha”. O soldado atacou com insubordinação um dos símbolos dos Guardas, a
farda, assim como Gusmão fez com a bainha da espada. A farda, enquanto
vestimenta impunha um certo respeito, um certo grau de hierarquia, “[...] por meio de
suas roupas, os atores exibiam seu status e autoridade, a superioridade de alguns e
a inferioridade de outros”
156
. Mas Euzébio, no caso, abriu mão dela, abriu mão do
status da farda, talvez por este status não lhe dar benefício algum, ou que valesse a
pena. Diz Moreira que o fardamento era um símbolo e instrumento de poder, como o
chicote para o feitor, pois ele permitia e legitimava certas arbitrariedades, assim
como podia causar ódio. Comenta ainda o autor que muitos populares, quando
recrutados para o exército, comercializavam os fardamentos por eles recebidos, ou
furtados, gerando uma vulgarização do fardamento, que certamente incomodava às
autoridades, “[...] a farda só deveria ser usada no teatro das ruas por atores
previamente legitimados pela chancela estatal”
157
. Acreditamos que um dos motivos
para o uso de fardas roubadas pode ter sido para despistar as patrulhas quando
esses populares circulavam à noite fora de horas nas cidades. Como no caso do
156
GRAHAM, 1997, op. cit. p. 160.
157
MOREIRA, 1993, op. cit. p. 51.
88
escravo José, de Antonio Joaquim Caetano da Silva, que foi preso por andar fora de
horas “[...] e trajava a militar”
158
.
Podemos perceber as insatisfações dos soldados com os serviços no
policiamento da vila, pela grande quantidade de pedidos de demissão encontrados.
Em 3 de janeiro de 1834, Francisco Antonio pediu a demissão do Corpo da
Guarda
159
, em 20 de maio de 1834 foi a vez de Hipólito Joze Domingues
160
, em 15
de julho de 1834, a vez de Miguel Martins de Amorim
161
. Não aparecem as
qualificações dos soldados Permanentes, nem os motivos das demissões, mas os
pedidos são constantes no ano de 1834; estes são só alguns exemplos que
relatamos. Entretanto, havia outros pedidos de demissões relacionados às
insubordinações, onde as autoridades policiais mostravam seus descontentamentos.
Em 5 de abril de 1834 há um requerimento para demissão de Manoel Jozé Pereira,
onde o Capitão Comandante Sebastião Xavier justifica que a nação ganharia com a
demissão, pela irregular conduta do soldado
162
.
Evidenciamos que as autoridades demonstravam um certo tipo de tolerância
com as insubordinações, no sentido de tentar poupar as demissões. Vimos nos
casos de insubordinação acima relatados, que os soldados eram continuadamente
presos, como que numa insistência das autoridades numa potencial regeneração
dos soldados. Um fato determinante para pensarmos isso era a falta de voluntários
para os serviços de polícia, comprovados pelas constantes reclamações da Câmara
ao Presidente da Província
163
.
158
BRG. Jornal “O Pelotense”. Estante 062, número 3045. Terça-feira 18 de janeiro de 1853.
159
AHRGS. Fundo Polícia. Maço 147. Doc. Nº 134.
160
AHRGS. Fundo Polícia. Maço 147. Doc. Nº 153-1.
161
AHRGS. Fundo Polícia. Maço 147. Doc. Nº 161.
162
AHRGS. Fundo Polícia. Maço 147. Doc. Nº 140.
163
AHRGS. A.MU-103. Câmara Municipal de Pelotas 1832-36. Ofício do dia 30 de maio de 1835.
89
No mês de maio de 1834, houve um conflito entre o Capitão Comandante dos
Permanentes Sebastião Xavier, e a Câmara Municipal de Rio Grande, onde a última
reclamava que o Capitão, sabendo das dificuldades de alistamento em Rio Grande,
convocou um Corneteiro daquela localidade para o trabalho na Vila de São
Francisco de Paula
164
. As localidades da região sul da Província estavam
subordinadas ao Comando de São Francisco de Paula.
O fato é que no dia 17 de maio de 1834, o Capitão Comandante demitia o
corneta, Jeruíno José Baptista, que “[...] tem se tornado relaxado nas suas
obrigações, nos seus uniformes, ébrio, incapaz inteiramente de continuar no
serviço
165
”. As atividades, e atitudes dos Guardas Permanentes também eram
controladas, de certa maneira vigiadas pelas pessoas moradoras da vila. Em 4 de
setembro, o Capitão Comandante requeria a demissão do 1º Sargento da
Companhia Jozé Vicente de Almeida, através de acusações do “paisano”
166
, João
Rodrigues de Lima, justificando o Capitão a veracidade das acusações por ter sido o
Sargento preso no dia 19 de agosto ao andar armado estando licenciado por
motivos de doença, acompanhado de alguns paisanos, habituados a “[...] bilhares e
outros jogos por casas indecentes”
167
. Os soldados compartilhavam das diversões
na época tidas como populares: tabernas, jogos de azar, casas de prostituição,
dialogando com outros grupos sociais a respeito, quem sabe, da vida cotidiana, das
experiências vividas.
Depois da narrativa destes casos podemos afirmar que a implantação e
afirmação da instituição policial na cidade de Pelotas enfrentou muitos problemas em
relação às insubordinações. A polícia no século XIX, como afirma Mauch, é uma “[...]
164
AHRGS. Fundo Polícia. Maço 147. Doc. Nº 149.
165
AHRGS. Fundo Polícia. Maço 147. Doc. Nº 152-1.
166
Paisano seria o civil, em contraposição ao militar.
167
AHRGS. Fundo Polícia. Maço 147. Doc. Nº 139.
90
instituição nova, que surge com a sociedade burguesa e sua ética do trabalho”
168
.
Aos trabalhadores da polícia foi imposta uma nova lógica de trabalho, acompanhada
de mudanças nas normas de comportamento. Marcos Bretas comenta estas novas
formas de comportamento através de citações de análises sobre a polícia na
Inglaterra, onde o Estado Inglês, durante o século XIX, controlava todos os passos
dos policiais, lugares que freqüentavam, pessoas que se relacionavam, ditando uma
vida de modelo do trabalhador considerado padrão, submisso, sóbrio, morigerado.
Ou seja, o Estado Inglês queria construir um tipo de moral policial. Mas o mesmo
Bretas argumenta que a moral policial era construída na prática, no seu cotidiano,
pois no século XIX ainda não tínhamos sistemas de treinamento militar formal para
os policiais. Diz ele “[...] os valores do policial eram criados ou elaborados a partir
dos limites que lhe eram dados pelos eventos mais comuns”, continua o autor, “[...]
as experiências que vivenciava e os resultados que obtinha dos possíveis cursos de
ação era como ele aprendia seu trabalho”
169
. Ou seja, por mais que o Estado
tentasse criar modelos para esses trabalhadores se adequarem, era durante sua
prática que eles construíam sua moral, era da sua prática que eles distinguiam o que
era certo, e o que era errado. E destas relações tiravam proveitos próprios, se
favoreciam do uso do poder policial. Mauch, através de diálogo com os argumentos
de Thompson, argumenta que a polícia tinha decisão própria, deixava de ser apenas
agente política do Estado, passava a ser ator, “assim sendo, vê-se que a prática
cotidiana do policial é balizada tanto pela lei e normas da própria instituição, como
168
MAUCH, Cláudia. Ordem Pública e moralidade: imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre
na década de 1890. Santa Cruz do Sul: EDUNISC/ANPUH-RS, 2004. p. 30.
169
BRETAS, Marco Luiz. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de
Janeiro, 1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 145.
91
pela sua própria avaliação do acontecimento e dos indivíduos nele envolvidos”
170
;
este tipo de relação criava um tipo de autonomia na decisão de suas ações.
Sobre o cotidiano policial é interessante o que o jornal “O Pelotense”
171
nos
traz. No dia 8 de março de 1853, o jornal chama a atenção do Delegado para:
[...] o abuso escandaloso, desumano, e impróprio de nossa
civilização, que cometem os soldados da polícia, no ato de
prenderem os escravos fora de horas, embriagados ou em
desordem. Para cumprir a ordem da autoridade, não há necessidade
de dar pancadas, mormente em pobres pretos velhos que não
resistem.
Ou seja, o jornal denuncia algo que parece ser corriqueiro, o abuso da
violência nas abordagens dos policiais, principalmente com escravos. Os policiais,
inseridos num determinado contexto na época, que era escravista, que visualizava o
negro como inferior, perigoso, na hora de tratar com estes indivíduos reproduziam a
ideologia dominante escravista através duma prática violenta, ainda mais quando
associado o negro ao “vadio”, ao “vagabundo” que perambulava pelas esquinas,
embriagado, como relata a notícia. A partir desta relação, encontramos um indício
que parece nos mostrar que as relações violentas dos policiais com escravos que
eram presos fora de horas poderia extrapolar inclusive para a morte destes
indivíduos.
Por outro lado, por que o jornal sensibilizou-se com as agressões físicas
cometidas contra “pobres pretos velhos” inofensivos? Como sabemos da gangorra
partidária que predominou no sistema político Imperial – Conservadores e Liberais
sendo chamados alternadamente para comporem gabinetes – temos noção de que
170
MAUCH, 2004, op. cit. p. 37.
171
Este jornal foi criado por Candido Augusto de Mello, ex-militante da imprensa de Rio Grande,
circulando por Pelotas entre 1851 e 1855. Candido lançou ainda O Grátis (1854-55), um jornal de
anúncios, e o Diário de Pelotas (1859-1860). Ver: RÜDIGER, Francisco Ricardo. O nascimento da
imprensa no Rio Grande do Sul. Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, v. 13. Porto
Alegre: UFRGS, 1985. p. 130.
92
vários documentos jornalísticos que temos visibilizando a ação policial foram
originalmente montados como armas políticas contra partidos adversários. Liberais,
quando deslocados do poder, tornavam-se críticos tenazes das autoridades
conservadoras e denunciavam irregularidades diversas – e vice-versa. Isso não quer
dizer que os acontecimentos fossem inventados, mas a sua existência muitas vezes
nos chegou graças a estes atribulados embates político-partidários.
Em um Processo Judicial
172
, vemos alguns questionamentos em torno da
morte de um escravo de Francisco Carneiro em abril de 1853, ou seja, um mês
depois da notícia. Infelizmente, no processo não consta o nome do escravo,
mostrando a pouca importância que davam as autoridades ao sujeito cativo,
bastando o nome do senhor. Dizia assim o documento policial relatando o
acontecido: que no dia 3 de abril de 1853, após policiarem dia e noite com quatro
patrulhas de infantaria e duas de cavalaria, os soldados prenderam alguns
indivíduos por andarem a noite fora de horas, e um:
[...] negro cujo nome ignoro escravo de Francisco Carneiro que a
Patrulha de Infantaria trouxe pelas 10 horas da noite, também por
estar ébrio e a dormir na rua dos Canários, cujo negro metendo-se
dentro da prisão d’este Quartel a aquelas horas, junto com aqueles
indivíduos que já ali se achavam, e indo pelas três horas da noite o
comandante da Guarda do Quartel a ver se havia ali alguma
novidade como é de costume quando há ali presos, encontrou o dito
negro enforcado servindo-se de um lenço que atou nas grades da
porta da mesma prisão onde foi encontrado já morto.
O processo foi montado para esclarecer se o negro ébrio havia se suicidado
ou se ocorrera homicídio, e no final, as autoridades, aliviadas, decidiram pela
primeira alternativa. É claro que são apenas interpretações, possibilidades que
estamos levantando aqui, mas acreditamos que possa ter havido um abuso das
autoridades em torno deste escravo, sendo ocultado depois o crime com o álibi do
172
APERGS. Processo nº 382, Maço 9A, Estante 36. Júri de Pelotas.
93
suicídio. Lembramos que um mês antes do ocorrido o jornal O Pelotense chamava a
atenção da brutalidade com que eram tratados os escravos quando presos, e,
durante os interrogatórios dos presos, todos diziam que depois de o escravo entrar
na cela, todos dormiram sem verem nada. Apareceu nos relatos uma linearidade nos
discursos como que se ocultasse alguma coisa, talvez os presos não quisessem se
intrometer, pois podiam sofrer retaliações.
O fato é que quatro anos antes, em 1849, encontramos um processo criminal
também relativo a arbitrariedades com um morador de rua, um mendigo.
Provavelmente este indivíduo fosse branco, já que não houve preocupação em
descrever, ou justificar sua cor. O que mostra que não apenas os escravos que
estavam fora de horas sofriam com a violência policial, e sim também a população
pobre livre. Eram enquadrados pelos policiais no mesmo tipo de categoria, de
“vadio”, sem ocupação. Registrava o delegado que no dia 18 de agosto de 1849, na
rua do padeiro, “[...] as oito horas mais ou menos da noite passada um soldado de
polícia de nome Luccas Valeriano da Silva, dera uma bordoada no mendigo Ramão
da Silva, de que resultou a morte deste”
173
. Durante os interrogatórios das
testemunhas, todas diziam não ter visto nada, apenas o mendigo morto na frente de
uma taberna. Aqui aparece novamente o silêncio como característica. Talvez,
insistimos, a omissão estivesse ligada ao medo de retaliações. O fato é que o
soldado foi absolvido.
2.3 Nasce o Corpo Policial da Província
Durante as décadas de quarenta e cinqüenta, já passamos a falar de um
Corpo Policial, e não mais de Guarda Municipal, e o porquê disso seria o fato da
173
APERGS. Processo nº 252, Maço 6A, Estante 36. Júri de Pelotas.
94
centralização dos poderes sob a polícia por parte da Coroa, retirando-se assim o
caráter local que aparecia no Código de Processo Criminal de 1832. Não que elas
não existissem mais, mas as Guardas passaram a um segundo plano, em
detrimento dos Corpos Policias da Província. Em 1834, com o Ato Adicional
174
, as
Assembléias Legislativas foram criadas, e passaram a legislar sobre as atividades
policiais. Mas em 1837, com a Regência de Araújo Lima, ocorreu o chamado
regresso conservador, responsável por implantar as bases para o Ato Adicional, a lei
nº 261 de 3 de dezembro de 1841. A lei reformou o Código de Processo Criminal,
criando o cargo de Chefe de Polícia, escolhidos entre os desembargadores e juízes
de direito, “[...] com os delegados e subdelegados necessários, que tinham jurisdição
policial criminal, os quais eram nomeados pelo Imperador ou pelos presidentes das
Províncias”
175
. Retirava-se assim os poderes das Assembléias e dos Juízes de Paz
para centralizá-los nas mãos da Coroa, “[...] as Assembléias estaduais deixavam de
ter jurisdição sobre funcionários do governo central; todo o funcionalismo da justiça e
da polícia passou a ser controlado pelo Ministro da Justiça; o único Juiz eleito, o Juiz
de Paz, perdeu boa parte de suas atribuições em benefício dos delegados e
subdelegados de polícia”
176
.
No relatório do Presidente da Província de 1837, visualizamos esta atividade
de centralização da polícia. Estava lá a lei nº 7 de 18 de novembro de 1837, que
dizia em seu artigo quarto que a Força Policial da Província estaria “[...] sujeita
diretamente ao Presidente da Província, que a poderá dissolver quando a segurança
pública assim o exigir”
177
.
174
AHRGS. CL nº 57. Lei 16 de 12 de agosto de 1834. Artigo 10, Parágrafo 4º, página 17.
175
JUNIOR, 1959, op. cit. p. 258.
176
CARVALHO, 1996, op. cit. p. 235.
177
AHRGS. A.7.01. Relatórios dos Presidentes da Província 1835-37-46.
95
Comenta José Murilo de Carvalho que durante a Regência os gastos com a
segurança interna foram menores, as políticas em relação às forças policiais foram
direcionadas aos investimentos na Guarda Nacional, devido aos interesses
descentralizadores. A criação deste tipo de Guarda nasceu da Revolução Francesa,
uma reação liberal aos exércitos tidos como representantes dos regimes absolutistas
autoritários. Diz ainda o autor que “A Guarda Nacional era quase totalmente auto-
financiada, constituía um baratíssimo mecanismo de controle da população. Ao final,
dava até lucro graças à venda das patentes de oficiais. A guarda dispensava a
existência de fortes polícias provinciais”
178
. Assim, o Estado podia dar-se ao luxo de
não se militarizar porque a sociedade era militarizada, principalmente a Rio-
grandense, acostumada aos constantes conflitos demarcatórios de fronteiras
políticas. Ao observarmos os gastos da Província com o Corpo Policial, constatamos
um aumento gradativo a partir do final da Regência. Vejamos a tabela:
Tabela 2: Gastos Provinciais com o Corpo Policial (1835/1845)
Ano financeiro Corpo Policial
1835 13:547$713
1837-40 Sem verbas
1840-41 3:716$117
1841-42 39:880$712
1842-43 51:032$081
1843-44 73:173$039
1844-45 135:289$063
Fonte: BPP. Appenso ao quadro estatístico e geographico da Província de São Pedro do Rio
Grande do Sul. Organizado pelo Bacharel Antônio Eleutério de Camargo, Engenheiro da Província.
Porto Alegre: Typographia do Jornal do Commercio, 1868.
178
CARVALHO, 1996, op. cit. p. 252.
96
Talvez os aumentos estejam relacionados à reação por parte do Império às
forças farroupilhas, no sentido de aumentar o controle central sobre as forças locais,
provinciais. Lembramos que em 1850, a Guarda Nacional passou a ter seus postos
oficiais indicados pelo governo central, e não mais pelo modo das eleições,
demonstrando esta tendência de centralização política e militar.
Um bom argumento para visualizarmos que estes aumentos talvez
estivessem relacionados com o fim da Guerra dos Farrapos, é quando observamos
que os gastos do ano financeiro de 1848-49 na Província
179
com a Força Policial
foram de 125:808$125, ou seja, já houve uma diminuição em comparação com o
ano de 1844-45. E em 1853
180
eram previstos os gastos de 102:492$200 réis, mas
foram despendidas apenas 83:570$937. Apesar de observarmos estas quedas em
relação às verbas, que podem estar relacionadas a crises econômicas da Província,
a Força Policial passa sim a ser mais incentivada economicamente do que na
Regência, e talvez o fundo principal desta tarefa seja o fundo político.
Ao examinarmos a tabela vemos verbas despendidas ao Corpo Policial em
1835, não sendo repetido nenhum tipo de verba nos anos seguintes até o ano de
1840. O motivo é a Guerra dos Farrapos. Em manifesto no ano de 1835, Bento
Gonçalves condenava o presidente da Província por ter criado um Corpo Policial
através de decreto, sem autorização da Assembléia Legislativa. A criação do Corpo,
de acordo com o líder farroupilha, estaria relacionada aos temores do Império de um
levante contra a criação de um imposto de dez mil réis sobre cada légua quadrada
de campo. Dizia Bento Gonçalves que o presidente, sabendo que a Guarda Nacional
179
AHRGS. Relatórios dos Presidentes da Província, ano de 1848. A.7.02.
180
AHRGS. Relatórios dos Presidentes da Província de 1853-57. A.7.03.
97
passaria a engrossar o levante, achou necessário a criação de um Corpo Policial
ligado aos interesses da Coroa.
181
Mas nos anos seguintes à Guerra dos Farrapos, para os governantes
provinciais e demais autoridades relacionadas à polícia, os gastos sempre foram
insuficientes, inclusive esta, a falta de verbas, seria uma das razões para as queixas
no relatório da presidência da Província em 1855, para a relutância com que os
cidadãos nomeados delegados ou sub-delegados terem em aceitarem os empregos,
“[...] com dificuldade alguns cidadãos aceitam as nomeações, mas desgostam-se
logo, e abandonam os empregos, ou pedem demissão”
182
. Os motivos, de acordo
com o presidente, seriam as faltas de verbas, sendo assim a impossibilidade do
aumento do número de policiais. Como no caso do delegado de Pelotas, Alexandre
Vieira da Cunha, que já em 1853 pedia demissão do cargo pelo mesmo motivo,
cansaço em relação aos pedidos de mais policiais não serem atendidos
183
.
As autoridades policiais, porém, tentavam de alguma forma driblar as faltas de
verbas. Em outro relatório de presidente da Província, encontramos algumas
alternativas sendo colocadas para as Forças Policiais. Dizia o presidente, em 1849,
que em São Francisco de Paula, a despesa com a cavalaria “[...] reduz-se a ração
de milho, que não precisa nem ser ferrada, nem receber quantia nenhuma para
capim, que os mesmos soldados cortam em lugares públicos, como me informou o
atual Comandante da Companhia, que ali se acha”
184
. As autoridades buscavam
também amparo em outras instituições, como na Santa Casa de Misericórdia. Em
Pelotas, não havia Hospital Militar nas décadas de quarenta e cinqüenta do século
181
A Guarda Nacional constituída pelos proprietários locais, estaria claro, do lado rebelde. Manifesto
de Bento Gonçalves da Silva em 25 de setembro de 1835. In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL,
Roberto. Textos Políticos da História do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2002. p. 972.
182
AHRGS. Relatórios dos Presidentes da Província de 1853-57. A.7.03.
183
BRG. Jornal “O Pelotense”. Nº 3045, E 062, P 2.
184
AHRGS. Relatórios dos Presidentes da Província, ano de 1849. A.7.02.
98
XIX, e a alternativa tida na época foi uma parceria com a Irmandade da Santa Casa.
Em ofício de 5 de maio de 1849 a Irmandade registrava o atendimento dos enfermos
do Corpo Policial em troca de meio soldo e etape
185
diários. A Santa Casa recebia
também um auxílio anual da Assembléia Provincial no valor de quatro contos de réis,
para assim fazer os atendimentos de policiais, presos pobres, e expostos
186
. Esta
parceria da Santa Casa com a polícia iria durar durante quase todo o século XIX.
Claro que estas relações eram colocadas em base de auxílios recíprocos; a
Santa Casa dizia aceitar o atendimento não por achar que o dinheiro pago era
suficiente, e sim fazia os atendimentos por caridade. Mas em ofício de 23 de junho
de 1850
187
, vemos as contrapartidas do delegado. Neste ofício, a Santa Casa
agradecia ao subdelegado Antônio Rafael dos Anjos por ordenar aos presos da
cadeia que fornecessem água ao hospital e retirassem os despejos, assim como por
convocar os Inspetores de Quarteirão
188
para tirarem esmolas junto com o Irmão
Escrivão, totalizando as esmolas em mais de dois contos de réis.
A Santa Casa era uma instituição de caráter privado, orientada para fins
públicos, subvencionada pelo Poder Público, que tinha sua prática direcionada à
185
Diz Silva, “Etape ou etapa era o termo militar pelo qual se designava a ração diária de provisões,
em comida e bebida, que era distribuída às tropas por ocasião de campanhas ou marchas, em dias
extraordinários como os de gala e paradas etc.” Segundo o mesmo autor, em Pernambuco, no Recife
de acordo com a Lei de 24 de setembro de 1828, as rações de etape para as tropas de linha foram
estabelecidas na seguinte base: “[...] farinha 1/40 de alqueire, 1 libra de carne fresca, 4 onças de
arroz e toucinho, 2 onças de toucinho, 1 onça de sal, 24 onças de lenha. A ração de carne fresca
podia ser substituída por 1/2 de carne seca. Por sua vez, a ração de vinho e aguardente era fornecida
somente quando os batalhões estavam em exercício” (SILVA, 2003b, op. cit. p.86). Não encontramos
dados relativos as etapes no Rio Grande do Sul, assim, após o relato destes dados podemos
visualizar o modo como era feito o cálculo do valor da comida diária, tida aqui com o hoje estranho
termo “ração”.
186
MSCM. Registros de ofícios e documentos da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas 1847-
69.Ofício dirigido ao Dr. Manoel Pereira da Silva Ubatuba, 21 de dezembro de 1853.
187
MSCM. Registros de ofícios e documentos da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas 1847-69.
188
Os Inspetores de Quarteirão estavam submetidos aos Juízes de Paz, e ficavam responsáveis pelo
policiamento de no mínimo 25 casas. Auxiliavam na manutenção da ordem muitas vezes intimidando
os moradores através dos recrutamentos (GRAHAM, 1997, op. cit., p 89).
99
caridade e filantropia
189
. Como a direção desta instituição era formada por elementos
da elite pelotense, como charqueadores, criadores de gado e comerciantes,
justamente os mesmos que estavam no comando da Câmara, da polícia como
também da cadeia, era de interesse de todos eles manter estas instituições
funcionando e ao mesmo tempo se auxiliando mutuamente nesse próprio
funcionamento. Assim, um dos maiores objetivos destas instituições seria almejado,
o de tirar da circulação das ruas os indesejados, os desordeiros, os pobres.
Gastando pouco, colocando os ditos “criminosos” no trabalho, e assim a
delinqüência a que se referia Foucault passou a ser útil, gerou lucro, e manteve as
justificativas para o domínio político
190
. Ou pelo menos estes eram os ideais de
controle social desejados pelos grupos que administravam a urbe.
O atendimento hospitalar aos policiais tinha similitudes com o direcionado aos
dos presos pobres e aos loucos, ambos tratados gratuitamente pela Santa Casa. No
segundo semestre de 1850, em um relatório da Santa Casa, consta a demanda para
novas obras relacionadas a “[...] grades de ferro nas portas das enfermarias dos
presos, policiais, e doidos para melhor ventilação no verão e segurança”
191
. Ou seja,
havia um receio de fugas ou outras questões de insubordinação relacionadas entre
estes três grupos.
Nos registros de enfermos da Santa Casa vemos um desses conflitos. Em 18
de agosto de 1849, João Alz. da Silva, policial, branco, solteiro, de Portugal, com 21
anos, dava entrada no hospital para o tratamento de úlceras. No dia 30 de agosto do
mesmo ano registrava sua saída por insubordinação dentro da enfermaria, saindo
189
TOMASCHEWSKI, Cláudia. “Caridade Pública”: A Santa Casa de Misericórdia, o Estado e a
Assistência em Pelotas-RS (1847-1913). Artigo inédito gentilmente cedido pela autora, 2005. p. 3.
190
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p. 132.
191
MSCM. Registros de ofícios e documentos da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas 1847-69.
“Exposição feita à nova Mesa de todos os negócios da Santa Casa desde o seu fundamento pela 2º
Mesa feita em junho de 1847 até 30 de junho de 1850 que a terceira termina”
100
quase bom do tratamento
192
. Este pode ter sido um de tantos casos, quem sabe,
que levou o hospital a colocar grades nas janelas das enfermarias. Usando o livro de
registros de entrada e saída de enfermos, conseguimos obter muitas informações.
Voltando para o regulamento de 1837, no artigo quinto, encontra-se algo
muito interessante, a respeito de quem poderia ser engajado nos serviços policiais.
Diz assim:
Artigo 5º - Será preenchida por meio de engajamento de nacionais
ou estrangeiros, de 18 a 40 anos, com boa conduta moral e civil,
atestada pelo Juiz de Paz respectivo, tendo preferência dos que
serviram na primeira ou extinta segunda linha do exército. Na
insuficiência do engajamento, para o qual o Presidente marcará um
prazo razoável, terá lugar o recrutamento, na forma das leis em
vigor, os recrutados servirão por 4 anos, os engajados por dois, ao
menos.
Ao analisarmos os internamentos do ano de 1849 ao ano de 1855, contando
com uma lacuna no ano de 1851, devido ao estado deplorável que se encontrava a
documentação, observamos que quase a metade dos policiais eram jovens, com
menos de 20 anos. Vejamos a tabela abaixo:
Tabela 3: Faixa etária dos policiais internados na Santa Casa de Misericórdia
de Pelotas (1849/1855)
Faixa Etária N
o
de Internados %
16 / 20 anos 54 48,6
21 / 30 anos 45 40,5
31 / 40 anos 12 10,9
Total 111 100,0
Fonte: Registro de entrada e saída de enfermos da Santa Casa de Misericórdia de
Pelotas 1847-57.
192
MSCM. Registro de entrada e saída de enfermos da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas.
101
Na ausência de podermos contar com os livros de matrícula, onde eram
registrados os indivíduos alistados, podemos usar esta fonte hospitalar para
descrevermos com pouco mais de detalhes o contingente policial. Como vemos
acima, era majoritariamente composta a força policial de adultos jovens. Quase 50 %
tinha entre 16 e 20 anos. Chegamos a encontrar um soldado de 15 anos servindo na
polícia; é o caso de Lucas Valeriano da Silva acusado de matar o mendigo Ramão
Silva, contrariando o regulamento que previa engajamentos de pessoas acima de 18
anos. Ainda encontramos três pessoas de dezesseis anos e cinco de dezessete
anos, conforme gráfico abaixo.
0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
20
16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 28 29 31 32 33 34 35 37 40
idade
Gráfico 1: Idades dos Policiais Internados na Santa Casa de Misericórdia de
Pelotas (1849/1855)
Fonte: Registro de entrada e saída de enfermos da Santa Casa de Misericórdia de
Pelotas 1847-57.
A necessidade de recrutamento levava as autoridades a cometer desvios
legislativos. Lembramos também que um dos motivos para os jovens serem
alistados tanto podia ser o recrutamento forçado, sem escolha, onde as autoridades
102
preferiam os jovens robustos
193
ou também uma opção de fuga dos recrutamentos
do exército, que levavam os jovens para longe de seus lugares de origem. Assim era
preferível alistar-se num Corpo local.
Talvez esta questão da permanência no lugar de origem também fosse
relativa, pois quando olhamos os locais de procedência dos soldados, encontramos
o maior número de pessoas de Rio Grande.
Tabela 4: Origem dos Policiais internados na Santa Casa de Misericórdia de
Pelotas (1849/1855).
Nacionais
N
o
%
Desta Província
Total
194
66 59,46
Rio Grande 32
Pelotas 10
Porto Alegre 02
Mostardas 01
Outra Província Total 17 15,32
Santa Catarina 04
Pernambuco 04
Bahia 03
Minas Gerais 03
Maceió 01
Maranhão 01
São Paulo 01
Estrangeiros
27 24,33
Corrientes 04
193
BRETAS, 1998, op. cit. p. 227.
194
Sendo 21 apenas mencionado como “Desta Província”.
103
Estado Oriental 12
Alemanha 03
Portugal 03
Escócia 02
Buenos Aires 01
Entre Rios 01
Porto 01
Ilegível 01 0,9
Fonte: Registro de entrada e saída de enfermos da Santa Casa de Misericórdia de
Pelotas 1847-57.
Quando verificamos a idade de algum desses soldados de Rio Grande,
vemos que muitos haviam nascido antes de Pelotas tornar-se cidade, em 1835, e
antes de tornar-se independente enquanto Vila em 1832. Ou seja, os moradores
daquela região, de Pelotas, antes Vila de São Francisco de Paula, dependiam
politicamente de Rio Grande, e poderiam ser considerados nos registros como
moradores desta. E quando verificamos os dados, visualizamos exatamente isto, de
1849 a 1851, não encontramos nenhum soldado declarando-se de Pelotas, apenas
a partir de 1853 que passam a declararem-se moradores da cidade, ao mesmo
tempo em que cessam os registros de Rio Grande.
Ainda em relação às procedências, vemos um número alto de estrangeiros
como soldados de polícia; chegam a totalizar o número de 27, 24,5% dos
internamentos. Chamamos a atenção que 18 destes 27 estrangeiros eram oriundos
da região platina, o que reforça o que já apontamos anteriormente para a grande
circulação de indivíduos pela região fronteiriça. Além disso, muitos destes aqui se
instalavam e podiam ser “vítimas” do alistamento.
De qualquer forma, 74,78 % dos policiais eram desta província, o que destaca
que, preferencialmente, os mais indisciplinados, os “mais” vadios, os incorrigíveis,
104
eram compulsoriamente remetidos para o Exército ou Marinha e despachados para
outras províncias.
Quanto às qualidades, ou condicionamentos sociais pela cor, vemos uma
predominância de brancos, seguidos pelos pardos. Vejamos a tabela e o gráfico:
Tabela 5: Cor dos Policiais internados na Santa Casa de Misericórdia de
Pelotas (1849/1855)
Cor Número
Branca 48
Caboclo 2
Cabra 2
China 1
Índia 11
Parda 44
Preta 3
Total 111
Fonte: Registro de entrada e saída de enfermos da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas
1847-57.
105
0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
20
22
24
26
28
30
32
34
36
38
40
42
44
46
48
branco caboclo cabra china índio pardo preto
número de
soldados
Gráfico 2: Cor dos Policiais internados na Santa Casa de Misericórdia de
Pelotas (1849/1855)
Fonte: Registro de entrada e saída de enfermos da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas
1847-57.
Não sabemos se eram os funcionários da Santa Casa, ou se eram os
indivíduos policiais que identificavam sua cor, algo que relativiza muito os dados,
assim como as outras informações. Mas no caso das informações virem dos
soldados, é interessante pensar que os sujeitos declaravam as informações
conforme gostariam de ser vistos, tanto em seus nomes, como em outras
informações. Assim, poderiam evitar leituras de seus passados, livrarem-se de
estigmas, como no caso dos libertos, a escravidão, enfim, a nomeação também era
uma estratégia política dos indivíduos
195
.
É confuso pensar também os parâmetros para a classificação, no caso, quais
seriam as diferenças do índio para o china, para o caboclo, ou para o cabra?
195
WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Nominação e identificação de ex-escravos através de processos
criminais. São Francisco de Paula, RS, 1880-1900. Anais do II Encontro Escravidão e Liberdade no
Brasil Meridional. Porto alegre: UFRGS, 2005.
106
Entretanto, historiadores como Hebe de Mattos
196
já nos deixaram ver com clareza
que denominações de cor, não descreviam simplesmente a tonalidade da pele.
Pardos, pretos, brancos são também indicativos de classificação social e simbólica.
Evidentemente esta força policial descrita pelo livro de pacientes da Santa Casa de
Pelotas possui composição étnica positiva, pelo menos na visão das autoridades
municipais. Vejamos que temos 48 brancos e 44 pardos, totalizando 92 policiais, ou
82,89 % do total. “Denegrindo” este grupo defensor dos bons costumes, temos 3
pretos e 11 índios, apenas 12,62 %. Ou seja, apesar dos pesares, os oficiais
recrutadores conseguiram compor um contingente de policiais majoritariamente
brancos ou quase-brancos
197
.
Além dos soldados da Força Policial receberem baixos salários, em 1849 o
soldo diário era equivalente a 160 réis
198
, o mesmo pago aos presos pobres; além
dos soldados receberem recrutamento forçado, eram tratados no hospital da Santa
Casa como numa prisão da mesma forma como os presos e loucos, os soldados da
polícia também recebiam castigos corporais de seus oficiais. Encontramos nos livros
de registro de enfermos quatro casos de internamentos por ferimentos de castigos:
Manoel Ferreira de Souza, filho de José Antonio de Souza e
Joaquina Cardozo de Souza, da Bahia, pardo, 34 anos, solteiro, Soldado de
polícia, internado em 12 maio de 1854, alta em 16 maio 1854, motivo da baixa:
Contusão por castigo, Observação: Saiu curado;
Antonio Jozé Pereira, filho de Manoel Pereira e Lourença Pereira,
nascido em Pelotas, pardo, 22 anos, solteiro, Soldado de polícia, internado em
12 maio 1854, alta em 14 maio 1854, motivo da baixa: Contusão por castigo,
observação: Saiu curado;
196
CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das Cores do Silêncio; os significados da liberdade no sudeste
escravista (Brasil - século XIX). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
197
A definição de pardos e pretos pode significar várias coisas, mas entre estes policiais talvez
indique distância/proximidade com a escravidão. Seriam os pretos negros forros e os pardos já
nascidos livres? Apesar de não podermos avançar mais nesta questão, não resistimos a dividi-la com
os leitores neste breve pé-de-página.
198
AHRGS. Relatórios dos Presidentes da Província, ano de 1849. A.7.02.
107
Luiz Vergara, filho de Jozé Luiz e Maria da Conceição, Desta Província,
preto, 19 anos, solteiro, Soldado de polícia, baixa em 5 janeiro 1852, alta em 14
janeiro 1852, motivo da baixa: Contusões nos ombros procedido de castigo,
observação: Saiu curado;
Pedro Martins, Pedro Antonio e Maria Joanna, natural de Pelotas, branco,
23 anos, solteiro, Soldado de polícia, baixa em 12 fevereiro 1854, alta em 21
fevereiro de 1854, motivo da baixa: Contusões por castigo, observação: Saiu
curado.
As condições de serviço da Força Policial da Província aproximavam-se cada
vez mais do exército, que era temido pelos castigos, e pelos soldos baixos. Isso se
ratifica a partir de uma reformulação do regulamento de 1837, exposta no relatório
da presidência da Província em 1849, onde se excluía do Corpo Policial os oficiais
da 1ª e 2ª classes do exército, passando somente a pertencer ao Corpo os da 3ª e
4ª linha. O presidente da Província, indignado, relatava com furor seus
descontentamentos com esta medida:
Os oficiais que procuram a 3ª e 4ª classe do exército, e os que para
elas vão impelidos, ou são oficiais que, pelas suas moléstias, nem
um serviço podem dar, ou são daqueles que, por seus defeitos
morais, convém repelir para longe, ou são enfim de uma classe
muito freqüente de mandriões, que antes querem viver com soldos
diminutos e sem consideração alguma, do que trabalhar para
merecer e obter uma sorte melhor. De nenhuma destas três
qualidades de indivíduos se pode esperar um bom Comandante de
Corpo
199
.
Nota-se a forma como eram visualizados os integrantes das forças policiais e
do exército, se os oficiais eram vistos como “mandriões” possuidores de “defeitos
morais”, imaginem como seriam concebidos os soldados. Isso justifica o porquê dos
castigos, das internações com grades nos hospitais. As elites dirigentes destas
199
AHRGS. Relatórios dos Presidentes da Província, ano de 1849. A.7.02.
108
forças tinham um grande medo, temor, transformado em tratamento violento, muitas
vezes desumano.
Segundo nossos dados, além de jovens, os soldados eram solteiros. Apenas
8,2% eram casados, contrastando com 91,8% de solteiros, como assinalado na
tabela abaixo:
Tabela 6: Estado Civil dos Policiais internados na Santa Casa de Misericórdia
de Pelotas (1849/1855)
Estado Civil
Número %
Casados 9 8,1
Solteiros 100 90,0
Não consta 1 0,9
Total 111 100,0
Fonte: Fonte: Registro de entrada e saída de enfermos da Santa Casa de Misericórdia de
Pelotas 1847-57.
Evidente que durante o Brasil colonial e imperial, os casamentos
considerados oficiais não eram costume entre os populares
200
. O que predominava
eram os amasiamentos; as pessoas passavam a morar juntas, casavam no âmbito
social, não oficialmente
201
. Talvez aí encontremos um motivo para relativizarmos os
dados. O fato é que havia uma alta rotatividade de soldados na polícia, como
achamos ter demonstrado aqui, devido tanto aos salários baixos, como também ao
200
MOREIRA, 1993, op. cit. p. 147.
201
Silvia Arend, pesquisando a vida conjugal dos populares Porto-alegrenses no final do século XIX,
identificou três fatores que eram fundamentais na identificação de uma relação de amasiamento. De
acordo com a autora, “[...] os indivíduos deviam encontrarem-se com alguma regularidade; a
existência de ‘responsabilidades mútuas’ entre o homem e a mulher; e a relação deveria ser pública,
ou seja, parentes, vizinhos, amigos e outros tinham conhecimento da sua existência” (AREND, Silvia
Maria Fávero. Casar ou Amasiar: a vida conjugal dos populares Porto-alegrenses no final do século
XIX. In: MOREIRA, Paulo Staudt; HAGEN, Acácia Maria Maduro (Orgs.). Sobre a rua e outros
lugares: Reinventando Porto Alegre. Porto Alegre: Caixa Econômica Federal, 1995. p. 10).
109
baixo status, seja social como econômico da profissão. Assim, o ingresso na polícia
era feito por trabalhadores não qualificados, muitas vezes jovens solteiros, como
também soldados do exército
202
.
A partir de 1854, o recrutamento forçado para a Força Policial passou a ser
proibido, e no mesmo relatório presidencial onde apareceu a medida, o presidente
da Província falou de seu receio quanto aos futuros engajamentos. Em seu discurso
ele deixou transparecer as dificuldades que os soldados deviam enfrentar para
sobreviverem com seus baixos salários. Dizia o presidente que, a partir daquele
momento, deveriam haver algumas mudanças em torno das vantagens em ser
policial, para que a atividade não se tornasse “tão repugnante” a fim de afastar os
futuros voluntários, pois “[...] na atualidade em que os gêneros de alimentação tem
subido a preços extraordinários, é impossível que uma praça se mantenha, ainda
mais em, destacamentos remotos”
203
.
Acreditamos ter demonstrado aqui que a polícia que encontramos na primeira
metade do século XIX era uma instituição em construção. Instituição que serviu na
tentativa de imposição da ordem aos populares, aos escravos, à cidade, que
passava a crescer.
Tivemos algumas diferenças durante o período. Na Regência, a instituição foi
caracterizada pelos ideais liberais, com um perfil descentralizador. Encontramos,
naquele tempo, muitas ações de insubordinação por parte dos populares que eram
engajados nas Guardas Municipais. Um dos motivos desta resistência seria a nova
lógica de trabalho, a nova lógica de tempo de trabalho que estava sendo imposta a
esses indivíduos. Quando passamos ao ano de 1837, com a última Regência, e
após, com o golpe da maioridade do Imperador, visualizamos uma polícia
202
Mauch comenta estas características da profissão (MAUCH, 2004, op. cit.). Ver páginas 189-90-
91.
203
AHRGS. Relatórios dos Presidentes da Província de 1853-57. A.7.03. 1854.
110
centralizada nas mãos da Coroa. Uma polícia com soldados jovens, solteiros, de
salários baixos, sujeitos a castigos, que construía sua visão do fazer policial na
prática, no relacionamento com aqueles indivíduos que muitas vezes
compartilhavam a mesma categoria social. Pudemos mostrar as diferenças da
constituição da polícia no contexto macro-político, relacionando-a às duas vertentes
políticas, a descentralizadora, representada pelos liberais, e a centralizadora
representada pelos conservadores. E, finalizando, acreditamos que o mais
importante foi ver como estes soldados, populares, reagiram aos projetos políticos
policiais das elites, demonstrando seu perfil constituinte, onde tanto uma vertente,
quanto outra, tinha uma finalidade, cercear os movimentos e a vida das camadas
sociais populares.
111
CAPÍTULO 3 - CASA AMARELA: TEORIA E REALIDADE CARCERÁRIA EM
PELOTAS NO SÉCULO XIX
Primeiramente gostaríamos de realçar as dificuldades que nos deparamos ao
acesso das fontes. Não que não houvesse registros sobre a trajetória desta Casa
Correcional, pois a necessidade de vigiar e punir levou as autoridades a um intenso
controle sobre estas atividades. Intenso, mas ainda assim insuficiente na
mentalidade dos “dirigentes” da nação como veremos ao longo deste texto. Nos
referimos ao caráter incompleto dos ofícios das autoridades, pois sempre quando
encontrados estavam sem os anexos, talvez por políticas de arquivos ou até mesmo
políticas de segurança por parte do Estado, como, por exemplo, em relação ao
desaparecimento de grande parte da documentação da cidade de Pelotas durante o
período da Revolução Farroupilha, desaparecendo inclusive a planta da Casa
Correcional, que tanto poderia contribuir para o nosso trabalho.
Podemos cogitar, com certo sucesso, que muitos destes documentos foram
destruídos em conturbações sociais (revoluções, motins) ou naturais (enchentes,
incêndios). Ou então que preciosos anexos foram remetidos para o governo central
no Rio de Janeiro e devem estar sob a custódia do Arquivo Nacional. Mas,
certamente, o que deve ter contado para o descaso com a preservação deste
patrimônio histórico documental foi o investimento persistente de nossas
administrações públicas na amnésia social
204
. Trata-se, sem dúvida, de uma
memória seletiva que descartou os traços dos desclassificados, dos delinqüentes,
dos pobres em geral. Junto com os documentos destes integrantes das classes
204
Sobre amnésia social, ver: BURKE, Peter. O Mundo como Teatro - Estudos de antropologia
histórica. Lisboa, DIFEL, 1992.
112
perigosas, as autoridades procuravam, quem sabe, aniquilar as pistas de seus
projetos frustrados de controle social.
Superando essas lacunas empíricas, que os historiadores estão acostumados
a enfrentar, procuramos pesquisar num número variado de tipos de fontes, desde
ofícios e atas da Câmara Municipal de Pelotas, processos criminais, relatórios dos
Presidentes da Província, atas e registros de internações de enfermos da Santa
Casa de Misericórdia de Pelotas, entre outros.
Nesta pesquisa, um dos objetivos seria o de encontrar um perfil dos presos,
mas infelizmente os registros de entrada e saída da Casa de Correção se perderam;
os únicos que existem compreendem o início da década de setenta do século XIX
205
.
Perrot argumenta que a pouca existência de documentos relativos à singularidade
dos presos seria resultado da tentativa de esquecimento imposta a eles
206
. Tanto
pela sociedade que os via pelo estigma da vergonha, como por eles próprios,
preocupados em apagar o passado pensando numa reinserção nessa mesma
sociedade. Mas a mesma autora adverte que esta chamada reinserção é em vão,
pois “Em lugar do indivíduo regenerado, sóbrio, submisso, trabalhador, com que
sonham os textos, é um homem destroçado em seus mecanismos físicos e morais,
profundamente desadaptado, que sai da prisão, isto quando ela não o destrói”
207
.
Foucault também nos provoca, “Em torno dela (prisão) e dos que para lá vão ou de
lá saem, a burguesia construiu uma barreira ideológica (que diz respeito ao crime, ao
criminoso, ao roubo, à gatunagem, aos degenerados, à sub-humanidade) que tem
estreita relação com o racismo”
208
. A idéia de Correção está intimamente ligada à
ascensão do capitalismo. Para a sociedade pós Antigo Regime, o ideal seria
205
Este documento está passível para acesso no Centro de Documentação e Obras Valiosas da
Biblioteca Pública Pelotense.
206
PERROT, 1988, op. cit. p. 238.
207
PERROT. Idem. P. 269.
208
FOUCAULT, 1979, op. cit. p. 52.
113
converter o infrator em um trabalhador dócil, disciplinado, modelo para os outros
operários.
As teorias das Casas Correcionais apareceram na Europa no final do século
XVIII e início do século XIX através do advento dos ideais liberais, onde “a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e a publicação, em 1764, pelo
Marquês de Beccaria
209
, do livro Dos Delitos e das Penas, marcaram o início da fase
européia de humanização da pena”
210
. A partir daquele momento, a prisão passou a
ser vista não mais como um depósito de presos, e sim como um espaço de
regeneração do “criminoso”
211
; espaço onde se exerceria uma ação ininterrupta
sobre o indivíduo, através de uma disciplina incessante. O “criminoso” passaria a
regenerar-se através do exercício do trabalho, transformando-se este preso em um
operário dócil, em “[...] indivíduos mecanizados segundo as normas de uma
sociedade industrial”
212
. Este tipo de pena, a com trabalhos, na Europa era vista
como oposta às penas de suplício. O que Perrot chamou de “transferência do físico
para o moral
213
. Para os intelectuais da área jurídica daquele momento, a pena de
morte não teria mais o efeito desejado, o de alerta, o respeito das leis através do
medo, do terror. Em contraposição a este tipo de pena, Beccaria cutucava a favor da
pena com trabalhos: “O espetáculo atroz, porém momentâneo, da morte de um
209
O livro de Beccaria foi um marco contra a pena de morte e outras penas que evidenciavam os
castigos corporais. Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, nasceu em 15 de março de 1738 em
Milão. Formou-se em Direito na Universidade de Parma, em 1758. Em 1791, participou da junta que
elaborou uma reforma no sistema penal em Milão. Morreu em 24 de novembro de 1794. Ver:
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das Penas. São Paulo: Martin Claret, 2002.
210
WOLFF, Maria Palma. Evolução do sistema penitenciário do Rio Grande do Sul. História: Debates
e Tendências. V. 4, N 2, p. 24-39. Dezembro 2003.
211
A palavra “criminoso” está em parênteses, pois acreditamos conforme THOMPSON, que esta
categoria é histórico e socialmente construída, variando seu significado e os indivíduos enquadrados
conformes os tempos e as interpretações passadas. A categoria “criminoso” como desumanizadora,
preconceituosa, “Eles são vistos como uma ameaça à propriedade, à autoridade e a ordem.”
(THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987. p. 252). Ainda neste mesmo debate, Foucault nos provoca: “Não há então natureza criminosa,
mas jogos de força que, segundo a classe a que pertencem os indivíduos, os conduzirão ao poder ou
a prisão” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 240)
212
FOUCAULT, 1987, op. cit. p. 204.
213
PERROT, 1988, op. cit. p. 308.
114
criminoso, é um freio menos poderoso para o crime, do que o exemplo de um
homem a quem se tira a liberdade, tornado até certo ponto uma besta de carga e
que paga com trabalhos penosos o prejuízo que causou à sociedade”
214
. Beccaria
entendia que a aplicação das penas não deveria manifestar a vingança coletiva da
sociedade, mas sim ter como referência a justiça, a prevenção dos crimes, e a
recuperação do criminoso.
Para os Estados Modernos, a fundamentação do Direito de punir deslocou-se
da vingança do soberano para a defesa da sociedade, que devia ter como garantias
as liberdades individuais e sociais. Este tipo de compreensão deriva dos ideais do
liberalismo, tendo sua expressão máxima em Rousseau, onde o sujeito que
efetuasse qualquer crime não romperia mais com a fidelidade do rei, e sim com o
contrato de bem social. Assim, o indivíduo deveria ser julgado e punido, já que à
sociedade, os sujeitos delegam o poder de legislar e punir em nome de uma
harmonia social; aí estaria o fundamento do Contrato Social, o cumprimento das
regras para o bem geral. Chies contribui:
A origem do trabalho como pena está vinculada a um contexto no
qual os valores emergentes condenam o ócio das massas (a
mendicância e a vadiagem chegam a alcançar o status de condutas
criminosas), onde as novas conquistas econômicas e tecnológicas,
expansionismo ultramarino e industrialismo, necessitam muito mais
de braços e corpos “domesticados” do que de mutilados e
supliciados pelas penas corporais
215
.
Na França
216
, como em alguns outros países, ao surgir as penas com
trabalhos, bem como as Casas Correcionais, aboliram-se as penas de morte.
Veremos no capítulo quatro que, no Brasil, houve tanto a existência da pena de
214
BECCARIA, 2002, op. cit. p. 53.
215
CHIES, Luiz Antônio Bogo. Prisão e Estado: a função ideológica da privação da liberdade.
Pelotas: EDUCAT, 1997. p. 82.
216
A abolição da pena de morte na França se deu em 24 de fevereiro de 1848 (PERROT, 1988, op.
cit. p. 308).
115
morte como das penas com trabalhos, efetuadas nas casas correcionais. Qual seria
o porquê disto?
Para nós a resposta estaria na escravidão; para as elites era algo muito
preocupante abolir a pena de morte enquanto houvesse esse tipo de sistema. Elas
enquanto classes dirigentes assumiram alguns ideais liberais, mas os remodelaram
ao sistema escravista de acordo com seus interesses, pois quando precisavam
destas idéias para conquistar autonomia em relação à metrópole, aí sim às
assumiram, mas quando foi para estender a cidadania para a maioria da população,
elas a negaram. Abolir a pena de morte poderia ser perigoso no sentido de perder a
dominação, perder o controle perante os trabalhadores escravizados, pois apesar de
este tipo de pena ser para alguns desumana, para outros ainda era a forma
exemplar de demonstrar para estes grupos as conseqüências das insubordinações e
das revoltas.
Mais interessante ainda é que quando estes ideais das casas correcionais
chegaram ao Brasil, o país vivia um momento muito conturbado, que foi o momento
das Regências. O Império enfrentava dificuldades contra as revoltas populares, de
escravos e livres pobres, bem como também enfrentava problemas entre as elites,
no tocante aos debates sobre autonomia das províncias. Mas por mais que entre as
elites estivesse havendo discordâncias, uma concordância era fundamental
__
a
continuação e a garantia da ordem escravista. Então, quando surgiram revoltas
escravas como as de Carrancas na atual Minas Gerais, em 1833, e a dos Malês na
Bahia, em 1835, nossos legisladores modificaram a pena de morte. A partir de 1835,
os processos que julgassem crimes de escravos sobre senhores ou feitores seriam
julgados com mais rapidez, onde ao invés de unanimidade de votos por parte dos
116
jurados, o tribunal poderia ter apenas dois terços dos votos para as condenações,
proibindo também as apelações
217
.
Como escrevemos acima, este debate será melhor explicado e aprofundado
no próximo capítulo, mas o que chamamos a atenção é que no momento em que as
novas idéias sobre Justiça estavam levando os países europeus a abolições das
penas capitais, no Brasil houve um maior rigor referente aos crimes dos escravos. E
nada disso é surpreendente, pois como dissemos aqui, a demanda das elites
políticas e econômicas do país era a produção sob a lógica escravista, e manter a
ordem social era requisito fundamental para a sobrevivência do sistema. Assim é
que surgem as Casas de Correção tanto em Pelotas, como no resto do Império e
nos parece interessante observar este processo mundial numa escala reduzida –
municipal. Assim, é sobre o processo de construção deste mundo correcional que
analisaremos aqui neste capítulo, mais precisamente na famosa “Princesa do Sul”.
3.1 O nascimento da Casa de Correção de Pelotas
218
Em 1829, momento em que a cidade de Pelotas chamava-se ainda Freguesia
de São Francisco de Paula e fazia parte da cidade de Rio Grande, a reivindicação
de uma Casa Correcional já aparecia nas posturas daquele município.
Art. 40. Em cada Freguesia se erigirá uma Casa de Correção, e
trabalho com um repartimento que sirva para detenção aos presos do
217
RIBEIRO, João Luiz. No meio das galinhas as baratas não têm razão: a Lei de 10 de junho de
1835: os escravos e a pena de morte no Império do Brasil: 1822-1889. Rio de Janeiro: Renovar,
2005a.
218
Um pouco das reflexões contidas neste texto foram primeiramente publicadas em : AL-ALAM,
Caiuá Cardoso. Casa de Correção em Pelotas: teoria e realidade carcerária no século XIX. In: Anais
do VIII Encontro Estadual de História – História e Violência. Caxias do Sul: ANPUH-RS, 2006. p. 1-9.
117
Juiz de Paz. A Câmara ocorrerá a estas obras à proporção das
rendas do município.
219
Mas seria em 1832, através da participação da Sociedade Defensora da
Liberdade e Independência Nacional que o projeto da Casa de Correção de Pelotas
tomaria força, destacando-se a participação do Dr. Mascarenhas
220
e de Domingos
José de Almeida
221
, líderes liberais, ambos representantes na Câmara Municipal
naquele momento. Esta Sociedade, criada primeiramente no Rio de Janeiro pelo
movimento liberal quando da abdicação de Pedro I
222
, esteve presente tanto nos
projetos da Casa de Correção da Corte no Rio de Janeiro
223
, como também na de
Pelotas. Ela representava a fração moderada dos grupos liberais, compostos por
uma aristocracia rural interessada na monarquia nacional e na constituição jurada,
oposicionista à restauração do trono, e às idéias federativas dos liberais exaltados.
De acordo com Wernet, as Sociedades Defensoras, representadas
principalmente pela do Rio de Janeiro, governaram o Brasil durante os primeiros
quatro anos da Regência, correspondendo-se entre si transmitindo e retransmitindo
palavras de ordem, redigindo petições coletivas, intervindo assim na vida
administrativa do estado imperial. Diz o autor “a Sociedade foi ao mesmo tempo,
uma força do partido moderado local e um poder público oficioso a serviço de e em
sincronia com o governo central moderado”
224
. E é muito interessante como havia
219
BBP. CEDOV. NETTO, João Simões Lopes Netto. Revista do 1º Centenário de Pelotas. nº 7 e 8.
Pelotas: 1912. p. 115.
220
João Batista de Figueiredo Mascarenhas era mineiro, médico formado pela Universidade de Pisa
na Itália, um dos fundadores da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, fora vereador e deputado
provincial. (Magalhães:1993, p. 70)
221
Oriundo das Minas Gerais, charqueador, vereador e deputado provincial, e Ministro da Fazenda,
Do Interior e da Justiça da República Rio-Grandense.(Magalhães: 1993, p.60)
222
OSÓRIO, 1997, op. cit. p. 96.
223
REIS, Sergio Ricardo Magalhães. Casa de Correção da Corte: verso e anteverso de um projeto
de ordem e civilização. Anais do XVIII Simpósio Nacional de História – História: Guerra e Paz.
Londrina: ANPUH/UEL, 2005, p. 1.. A Casa de Correção da Corte só terá terminada sua construção
em 1850, hoje o local chama-se Complexo Frei Caneca. Ver: THIESEN, Icleia. Imagens da clausura e
marcas de identidade: o corpo (in)formado pela prisão. Anais do Encontro Estadual da ANPUH. Rio
de Janeiro: 2004. p.2.
224
WERNET, 1982, op. cit. p. 30.
118
uma rede de informações e troca de projetos políticos, pois logo que as idéias aqui
tratadas, as correcionais, chegaram ao âmbito da Corte na década de 30, elas já
ecoaram por esta cidade do sul do Rio Grande.
Em ofício encaminhado pela Câmara Municipal à Presidência da Província em
1832, visualizamos a participação da Sociedade:
A Câmara Municipal da Vila de São Francisco de Paula recebendo,
em sessão de hoje, uma comunicação da Sociedade Defensora da
Liberdade e Independência Nacional nesta Vila, exigindo a
cooperação desta Câmara para o andamento das obras da Casa
Correcional, que a dita Sociedade tem promovido com subscrições
voluntárias dos cidadãos deste município; e tendo esta Câmara
nomeado uma comissão de seu Fiscal, Procurador, e um Vereador
para tratar de acordo com a dita Sociedade os meios adequados
para a conclusão da parte da referida Casa, em que se trabalha
para receber os presos, que existem em uma imunda, e mal segura
prisão [...]
225
.
Em 1º de junho de 1832
226
, a Câmara Municipal de Pelotas recebeu uma
resposta do Presidente da Província dispondo a cota de dois contos e quatrocentos
mil réis para a continuação da Casa de Correção. E estas cotas continuaram
pingadas, como registra Alberto Coelho da Cunha
227
, chegando a um total de oito
contos de réis em 1834. A obra havia sido orçada em vinte e dois contos,
novecentos e quatorze mil e seiscentos e oitenta réis.
228
Com a lei nº 4 de 27 de
junho de 1835, as obras passaram a receber quatro contos de réis anuais, mas com
a eclosão da chamada Revolução Farroupilha, as obras pararam. Em 1844
encontramos ofícios da Câmara informando o estado de ruínas em que se
225
AHRGS. Ofício enviado à Presidência da Província em 14 de maio de 1832. (A.MU-103).
226
BPP. CEDOV. Atas da Câmara Municipal da Vila de São Francisco de Paula. Nº 005. Dia 1 de
junho de 1832.
227
BPP. CEDOV. CUNHA, Alberto Coelho da. Antigualhas de Pelotas. Jornal “A Opinião Pública”, 5
de dezembro de 1928.
228
BPP. CEDOV. Atas da Câmara Municipal da Vila de São Francisco de Paula. Nº 005. Dia 16 de
agosto de 1832.
119
encontrava a Casa Correcional após o término destes conflitos, motivo este que fez
retornar os pedidos contínuos de verbas para o melhor estabelecimento da Casa.
Para exemplificar que a demanda de novas cadeias não era caso apenas do
Rio Grande do Sul, e sim do país inteiro, encontramos um outro ofício
229
remetido à
Câmara. Neste documento, o Ministro de Estado dos Negócios e da Justiça faz um
questionamento se existia ou não alguma cadeia em construção na Vila, e se
haveria necessidade de verbas para a devida construção. Havia uma necessidade
por parte das elites dirigentes do país em controlar as classes populares. O Estado
Nacional estava em formação com a recente independência e já que a tentativa de
unidade perante as elites provinciais já era difícil, mais difícil ainda era combater as
desordens nas ruas provocadas pela profunda desigualdade do sistema escravista
brasileiro
230
.
O liberalismo, adequando-se ao Brasil, acabou justificando a própria
escravidão que condenava nos países europeus, pois “[...] baseou-se especialmente
na manutenção da escravidão como direito de propriedade, estruturando-se toda a
legislação e o corpo jurídico para restrição dos direitos aos negros escravos e
restrição do exercício pleno dos direitos civis e políticos do Império”
231
. Defender a
ordem era defender o poder político e de propriedade dos proprietários de terra e de
escravos como também dos grandes negociantes.
Assim, em 1835, a Assembléia Legislativa da Província aprovou a Lei nº 2 de
27 de junho exigindo a construção de duas Casas Correcionais na Província, uma
229
BPP. CEDOV. Atas da Câmara Municipal da Vila de São Francisco de Paula. Nº 005. Dia 29 de
maio de 1832.
230
REIS, 2005, op. cit. p. 2.
231
MARTINS, Mônica de Suza Nunes. Os caminhos da lei e da “ordem” no Brasil Império. Revista
Justiça e História, volume 3, nº 6. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul /
Departamento de artes gráficas, 2003. p. 53.
120
em Porto Alegre e outra na Vila de São Francisco de Paula
232
, dispondo o envio de
verba para cada construção. Nessa mesma lei estava uma exceção que se
comprovou; a Casa de Porto Alegre deveria ser primeiramente construída e só após
o término desta é que seria autorizada a construção da Casa de São Francisco de
Paula, salvo se a Câmara desta última não levantasse fundos que compusesse um
terço do orçamento da construção, e foi o que aconteceu. Na realidade alguns
membros da Câmara Municipal, como os já citados aqui, através da Sociedade
Defensora, arrecadaram fundos, ou como dito “subscrições voluntárias dos cidadãos
deste município”.
233
A sociedade pelotense mobilizava-se contra os vadios,
conturbadores da ordem.
3.2 A beira do Santa Bárbara: local de escravos, vadios e Correção
Como vimos, a Casa de Correção da Vila de São Francisco de Paula, atual
cidade de Pelotas, já estava sendo construída em 1832, e logo no mesmo ano
passou a receber presos em salas recém construídas. Esta Casa foi construída na
esquina das ruas do Açougue (atual Barão de Santa Tecla), e do Poço (atual Sete
de Setembro). Informa-nos Alberto Coelho da Cunha, que a Casa Correcional ficou
conhecida na memória da cidade após o seu funcionamento como “Casa Amarela”,
devido à cor de suas paredes externas
234
.
232
AHRGS. Índice das leis promulgadas pela Assembléia Legislativa da Província de São Pedro do
Rio Grande do Sul. Desde o ano de 1835 até o de 1851. Porto Alegre, 1872. L-0570. Lei n°2 de 27 de
junho de 1835
233
AHRGS. Ofício enviado à Presidência da Província em 14 de maio de 1832. (A.MU-103).
234
BPP. CEDOV. CUNHA, Alberto Coelho da. Antigualhas de Pelotas. Jornal “A Opinião Pública”, 6
de dezembro de 1928.
121
A escritora Zênia de León
235
escreveu que a Casa Correcional só passou a
funcionar a partir de 1835 naquele local, afirmação que questionamos a partir da
apresentação de um ofício encaminhado ao Presidente da Província em 7 de julho
de 1832, em que a Câmara agradece a verba destinada para a construção e afirma:
Em uma sala, que se aprontou, estão recolhidos comodamente os
infelizes presos que até agora jaziam em uma imunda, arruinada e
mal segura prisão, e brevemente se concluirão dois quartos para
melhor comodidade [...]
236
.
O orçamento geral da obra levantado em 1832, como dito anteriormente, foi
de vinte e dois contos, novecentos e quatorze mil seiscentos e oitenta réis como
citado anteriormente. Junto com o orçamento, era remetida em anexo a planta da
Casa Correcional ao Presidente da Província, planta esta que foi perdida durante o
período da Revolução Farroupilha, junto com outros documentos relativos à Câmara,
como relatam as fontes. Mas ficaram para nós algumas ilustrações da Casa,
algumas delas são relativas a Herrman Rudolf Wendroth, mercenário alemão
contratado para a luta contra Rosas, que na sua passagem por Pelotas, em 1851,
teria se excedido nas farras e bebidas, acabando por parar na cadeia. Uma dessas
figuras (ver ilustração 2) mostra um prédio em forma de um quadrado, com um
portão pequeno, guardas em sentinelas, e janelas pequenas no alto que dariam para
a rua.
235
LEON, 1998, op. cit. p. 218.
236
AHRGS. Ofício enviado à Presidência da Província em 7 de julho de 1832. (A.MU-103).
122
Ilustração 2 – Vista frontal da Casa de Correção de Pelotas
237
.
Em outra imagem colhida pela escritora Zênia de León junto a um ex-
proprietário do prédio
238
, evidencia-se este formato então relatado, mas com uma
abertura nos fundos do prédio (ilustração 3).
Ilustração 3 - Desenho da Casa de Correção no início do século XX
239
237
BPP. CEDOV. AP-018. Livro de ilustrações de Herrman Rudolf Wendroth, publicado pelo governo
do Rio Grande do Sul.
238
O prédio da antiga Casa Correcional foi vendido pelo Intendente Antero Victoriano Leivas em 1897
para Antonio Pereira de Araújo Aguiar. Este transformou as antigas celas em quartos de aluguel, e
construiu no espaço da antiga cadeia, a Vila Aguiar, que funcionou no local até 1956, ano de sua
destruição. Ver: LEÓN, 1998, op. cit. p. 221.
239
LEÓN, 1998, op. cit.
123
Carlos Von Koseritz
240
, outro soldado que deixou relatos sobre sua
experiência de vida no Rio Grande do Sul, esteve preso junto com Wendroth na
mesma cadeia, e comentou em seu livro de memórias que durante esta estada, eles,
juntos com outros soldados alemães teriam se empenhado em encher as paredes
das celas com caricaturas e outras produções literárias
241
.
Seguindo esta pista deixada por Kozeritz é interessante pensar as paredes
das celas como espaço de diálogo com outros presos que tiveram, ou que teriam a
mesma experiência naquele espaço então vivenciado, pensar as paredes das celas
como cicatrizes, como memórias dos condenados. As tatuagens que marcavam os
corpos e os desenhos deixados nas paredes das celas constituíam estranhos livros
onde os condenados procuravam deixar a história de suas desgraças, preciosas
lembranças ou outros detalhes que lhes eram caros, procurando, quem sabe,
individualizar e humanizar aqueles tétricos recantos
242
. Traços existenciais tão
esclarecedores não passaram despercebidos pelos intelectuais seus
contemporâneos. O Dr. Sebastião Leão, por exemplo, em seu relato etnográfico
sobre a Casa de Correção de Porto Alegre, de forma desinibida examinou os corpos
dos presos em busca de tatuagens e esquadrinhou as paredes de suas celas atrás
de indícios da inclinação dos condenados pelas belas artes.
240
Carlos Von Koseritz (1830-1890), fixou-se em Pelotas no ano de 1852, empregando-se como
professor e escriturário. Era um desertor dos Brummer, uma legião alemã que o Império brasileiro
contratara para lutar contra Rosas (MAGALHAES, 2000, op. cit. p. 170). Publicou e dirigiu o jornal O
Brado do Sul (1858-1861), a primeira folha diária da cidade (RUDIGER, 1985, op. cit. p. 130).
241
BPP. CEDOV. AP-018. Livro de ilustrações de Herrman Rudolf Wendroth, publicado pelo governo
do Rio Grande do Sul.
242
Victor Hugo, em seu romance “O último dia de um condenado à morte”, faz essa reflexão:
“Levantei e dirigi a luz da minha lâmpada para as quatro paredes da minha cela: estão cobertas de
coisas escritas, de desenhos, de figuras estranhas, de nomes que se misturam e se apagam uns aos
outros. Parece que cada condenado tenha querido deixar marca, aqui pelo menos. [...] Certamente,
se eu tivesse o espírito mais livre, me interessaria por este livro estranho que se desenrola sob meus
olhos, página a página em cada pedra desta cela. Gostaria de recompor um todo a partir desses
fragmentos de pensamentos, espalhados na laje; de devolver o sentido e a vida dessas inscrições
mutiladas, dessas frases desmembradas, dessas palavras truncadas, corpo sem cabeça como
aqueles que as escreveram.” (HUGO, Victor. O último dia de um condenado à morte. Curitiba:
Posigraf, 1997. p. 52)
124
No terreno das bellas artes, a minha observação é diminuta. Além
de 3 ou 4 desenhos (um busto de mulher, um crucifixo, um cavalo,
um figura obscena), que encontrei nas paredes de um xadrez dos
presos em processo, nada mais observei
243
.
A Casa Correcional de Pelotas deve ter recebido muitas influências da
estrutura da Casa da Corte; evidenciamos este fato através de outro registro nas
atas da Câmara:
Do Excelentíssimo Presidente, datado de onze do mês próximo
passado enviando um exemplar da exposição da planta da Casa de
Correção que se está construindo na corte o qual deliberou a
Câmara que se remetesse à comissão encarregada da obra da
Casa de Correção desta vila para se utilizar daquilo que for possível
aplicar-se à dita obra, devendo depois ser restituída a dita exposição
para se guardar no arquivo da Câmara
244
.
A Casa de Correção da Corte, seguiu o modelo do Panóptico, idealizado por
Jeremy Bentham, que tinha como estrutura em sua arquitetura,
[...] na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre, esta
é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do
anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma
atravessando toda a espessura da construção; elas tem duas
janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre;
outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de
lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada
cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou
um escolar (FOUCAULT: 2005, p.165-166).
De acordo com Reis, a Casa Correcional da Corte só foi concluída após
dezesseis anos de obras, em 1850, mas, mesmo assim, em apenas um quarto da
243
A narrativa do Dr. Sebastião José Affonso Leão foi escrita em 1897 e encontra-se como anexo nº 6
do Relatório apresentado ao Dr. Julio Prates de Castilhos, Presidente do Estado do Rio Grande do
Sul, pelo Dr. João Abbott, Secretário de Estado dos Negócios do Interior e Exterior, em 30.07.1897.
AHRS - SIE.3.-004: 183/247.
244
BPP. CEDOV. Atas da Câmara Municipal da Vila de São Francisco de Paula. Nº 00A. Dia 7 de
janeiro de 1835.
125
planta original
245
. A idéia do Panóptico era a de que o indivíduo estaria sob vigilância
total, um estado consciente e permanente de visibilidade (ilustração 4), este modelo
arquitetural seria “uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico,
se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser
visto”
246
. Assim, “o prisioneiro deveria ser observado em um sistema de vigilância
sistemática, em suas virtualidades, com auxílio da reforma penal e da instauração do
trabalho e do silêncio, enquanto mecanismos de correção”
247
.
Ilustração 4 - Preso rezando sendo vigiado pela torre central
248
.
245
REIS, 2005, op. cit. p. 6.
246
FOUCAULT, 1987, op. cit. p. 167.
247
THIESEN, 2004, op. cit. p. 2.
248
FOUCAULT, 1987, op. cit.
126
Contudo, quando observamos os registros pictóricos da Casa Correcional de
Pelotas, constatamos que não existia nenhum tipo de torre central. Mas, todas as
celas eram frontais a um pátio, onde um soldado, a caminhar por ele, enxergaria
tudo o que se passaria entre os presos, mas este também seria visto pelos detentos.
Já na questão da claridade, observamos através de outro desenho de Wendroth
(ilustração 5), que as celas possuíam duas janelas, uma grande para o pátio central,
e outra pequena para a parte exterior da prisão, provocando a entrada de
luminosidade, idéia ligada à contraposição das prisões antigas, escuras, infectadas,
as masmorras.
Ilustração 5 - Presos na cela
249
Nas prisões pós Iluminismo, a luz, a claridade, toma papel central, como
disciplina, como higienização, como vigilância sistemática. Portanto, a Casa
Correcional de Pelotas pode ter recebido algumas influências do Panóptico, mas
estava longe do sonhado por Betham e seus contemporâneos. Infelizmente, pelo
249
BPP. CEDOV. AP-018. Livro de ilustrações de Herrman Rudolf Wendroth, publicado pelo governo
do Rio Grande do Sul.
127
motivo da planta ter desaparecido na Revolução Farroupilha, não poderemos saber
como foi o projeto inicial da Casa Correcional, já que a construção nunca foi
terminada, talvez no projeto estivessem mais evidências do Panóptico
250
.
Ainda tratando do prédio da cadeia de Pelotas, tomando como base as
ilustrações já citadas, podemos refletir sobre as janelas e a circulação de ar que elas
permitiam. Idéias de higienização que circulavam no período parecem ter marcado
mais esta construção do que as exclusivamente punitivas. Obviamente que as
janelas – uma grande voltada para um pátio interno e uma menor para o exterior -,
também garantiam luminosidade e auxiliavam na vigilância. Todavia, principalmente,
talvez almejassem impedir a estagnação atmosférica, a concentração de miasmas,
não tanto pela atenção que as autoridades dirigissem à saúde dos presos, mas pelo
risco que as cadeias apresentavam – com sua aglomeração de pessoas em exíguo
espaço – como foco de epidemias que poderiam alastrar-se pela urbe.
Durante o início do século XIX houve três tipos dominantes de sistemas
penitenciários, o Auburn, o Filadélfia, e o chamado Sistema Irlandês. O sistema
chamado de Filadélfia bancava o isolamento total do prisioneiro em sua cela, seja de
dia e de noite. O sistema de Auburn previa o isolamento noturno, e o trabalho diurno
em comum nas oficinas com outros presos, mas predominando o silêncio. O terceiro,
um sistema europeu, diferente dos dois primeiros, que eram americanos, previa
recompensas aos presos de acordo com o desempenho destes no trabalho. No
Brasil, segundo Wolff, não tivemos a definição de um sistema, tivemos sim a
experimentação dos dois modelos chamados de Auburn e Filadélfia
251
. Na Casa de
Correção da Corte, segundo Thiesen, tivemos a adesão ao sistema de Auburn, o
250
Talvez exista alguma cópia da planta nos arquivos do Rio de Janeiro, já que aos Ministérios da
Coroa que se dependia para as autorizações das obras. Infelizmente por falta de apoio financeiro,
não pudemos pesquisar aqueles arquivos, mas quem sabe um dia.
251
WOLFF, 2003, op. cit. p. 26.
128
sistema de isolamento celular à noite
252
. Em Pelotas, pelo que constatamos através
das fontes, não havia um sistema de isolamento dos presos. Quando observamos
imagens feitas sobre a prisão, que mostram os presos em grande número dentro das
celas, assim como quando observamos os documentos relativos às fugas dos
presos, que serão detalhadas posteriormente, também observamos que não havia
uma prática de isolamento através da prisão celular. Poderia haver uma separação
entre escravos e homens livres, mas foi algo que nossa pesquisa não conseguiu
encontrar vestígios. De acordo com Perrot, a prisão celular generalizou-se na
Europa do século XIX, mas passou a sofrer muitas críticas pelos altos gastos que
eram disponibilizados para a estruturação deste tipo de pena
253
. Talvez possa ter
sido um dos motivos por Pelotas não ter praticado esta forma de sistema
penitenciário.
Também temos que relativizar a proporção desta Casa Correcional, com os
outros projetos implantados no país. Por mais que Pelotas tivesse uma importância
naquele momento que se evidenciava pela maior atividade econômica da Província,
o charque, ainda assim se constituía como uma cidade interiorana, ou seja, os
investimentos para a capital, o centro político da Província, eram maiores, inclusive
também pela maior demanda de números de presos. Ao longo do século XIX, a
Casa de Correção de Porto Alegre iria receber a maioria dos presos do interior
devido às más condições das cadeias daquelas regiões, mas suas obras também
nunca foram concluídas. Além disso, a ida de presos à capital, “[...] funcionava no
sentido de cortar as relações dos mesmos com sua comunidade de origem, o que
252
THIESEN, 2004, op. cit. p. 2.
253
PERROT, 1988, op. cit. p. 262.
129
equivalia a romper com suas redes familiares e de amizade, minando as
possibilidades de fuga e reforçando o caráter punitivo da prisão”
254
.
Veremos, ao longo da análise de nosso texto, que a distância entre os
projetos das elites para a Casa Correcional sempre estiveram aquém das verbas
destinadas na prática. E para a Casa de Porto Alegre parece ter ocorrido o mesmo,
pois sua estrutura sempre foi insuficiente para o número de pessoas presas, bem
como também a precariedade de seus espaços para as oficinas, tendo início a
construção destas apenas em 1876.
A Casa Correcional Pelotense ficava à beira do antigo arroio Santa Bárbara.
Não encontramos nenhum tipo de documento que caracterizasse a escolha daquele
espaço. Contudo, temos algumas pistas. Moreira encontrou um ofício muito
interessante no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
255
. Evidenciava esta fonte os
resultados de uma comissão encarregada de encontrar um local propício para a
construção da Casa Correcional da capital. O local escolhido foi a beira do Rio
Guaíba, tendo como algumas das justificativas: 1º o local ser arejado, de fácil asseio
e limpeza; 2º o lugar ser isolado, evitando o “derramamento de qualquer epidemia”;
3º o lugar facilitava a aquisição de água para o consumo. Estas três justificativas
estavam ligadas às idéias de higienização como bem salientou o historiador. As
cidades passavam a se preocupar com as doenças, com os focos de epidemia, na
verdade este tipo de idéia estava intrinsecamente ligado às noções de saneamento
moral; as elites justificavam a retirada dos pobres dos centros urbanos para áreas
254
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Recordações da Casa dos Mortos: Introdução ao Relatório do
Dr. Sebastião Leão. In: Anais do 1º Seminário de pesquisas do Arquivo Histórico do Rio Grande do
Sul (4 a 6 de outubro de 2001). p. 4 e5.
255
MOREIRA. Idem. p. 3.
130
periféricas, ligando as doenças a um ideal de marginalidade. Bastava removê-los de
seus antigos locais de moradia e não discutir suas situações de pobreza
256
.
A proximidade com o Santa Bárbara deve ser explicada não apenas através
desta comparação com Porto Alegre, mas também com o auxílio da análise da
legislação. Na lei nº 2 de 27 de junho de 1835, que autorizava as construções tanto
das Casas de Porto Alegre como a da São Francisco de Paula, depois cidade de
Pelotas, dizia no seu primeiro artigo que estas construções deveriam estar situadas
“[...] sendo possível na proximidade do rio navegável e de águas potáveis”
257
.
Naquele arroio os presos recolheriam água, lavariam roupas, e talvez lançariam
seus dejetos. Outro ponto levantado pela comissão da capital seria o fato de o lugar
ser distante do movimento geral da população, o que evidenciava o receio das
autoridades relacionadas a idéias do contágio dos vícios do crime; os presos
deveriam ficar distantes do núcleo populacional.
O arroio Santa Bárbara, em 1835, poderia ser considerado como um limite
para a área urbana. Diz assim Cunha:
[...] em ponto em que a rua do Açougue fazia o seu encontro com a
rua do Poço, havia um terreno devoluto
258
, que a diversos pertencia.
A cidade, indo a aquele rumo, terminava num descampado deserto
que pendia para o arroio Santa Bárbara. Dele adquirido um primeiro
trecho, teve início a construção da Casa
259
.
256
Em 1855 temos o surto da cólera em Pelotas, que fez avançar as políticas higienistas, no mesmo
ano se deu a remoção do cemitério da cidade da hoje avenida Bento Gonçalves com General Osório
para o atual Bairro do Fragata (GUTIERREZ, 2004, op. cit. p. 214). Enterrar os mortos fora do
perímetro urbano passou a ser o ideal, o cheiro dos cadáveres era considerado perigoso. Ver: REIS,
João José. O cotidiano da morte no Brasil Oitocentista. In: História da vida privada no Brasil: Império.
Org: Luiz Felipe de Alencastro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.134).
257
AHRGS. Índice das leis promulgadas pela Assembléia Legislativa da Província de São Pedro do
Rio Grande do Sul. Desde o ano de 1835 até o de 1851. Porto Alegre, 1872. L-0570. Lei nº 2 de 27
de junho de 1835.
258
Devoluto: “Desocupado, vago, baldio (terreno)” (LUFT, Celso Pedro. Mini Dicionário Luft. São
Paulo: Ática/Scipcione, 1991. p. 211).
259
BPP. CEDOV. CUNHA, Alberto Coelho da. Antigualhas de Pelotas. Jornal “A Opinião Pública”, 5
de dezembro de 1928.
131
O arroio foi um local freqüentado por populares, fossem escravos como livres
pobres, sendo mal visto pelas autoridades, um “foco de imoralidades, fundição (sic)
de crioulos e entretenimento de escravos” como diria Domingos José de Almeida na
década de 60
260
. Era principalmente o espaço das lavadeiras, um local ideal de
sociabilidade dos trabalhadores, pouco freqüentado por seus senhores
261
. Estes
indivíduos que freqüentavam este espaço podem ter entrado em contato com os
presos, relativizando a idéia de isolamento da instituição perante a sociedade.
Provocaremos esta questão com um indício.
No dia catorze de novembro de 1832, no princípio da noite, ancorava na
então vila de São Francisco de Paula, um iate chamado Joze Boa Sorte, de
propriedade do capitão Joze Gomes, estancieiro das Pedras Brancas. Um dos
indivíduos a desembarcar, foi Joze Antonio de Magalhães Bastos, um português,
que vinha de Porto Alegre com destino a Rio Grande. No dia seguinte, pela manhã,
antes de embarcar novamente, Joze Antonio resolveu ir à casa de Antonio Soares
Paiva, talvez um amigo, ou um comerciante. No trajeto, ele passou pela cadeia,
onde houve um chamado. Era o preso Manoel Joze da Costa, solteiro, natural de
Lisboa, de 28 anos, marinheiro, conhecido como Manoel das Correntes, o malvado.
Ao aproximar-se das grades, Joze Antonio, foi perguntado se havia novidades em
Porto Alegre a seu respeito. Joze, ao negar a pergunta, virou-se de costas para a
grade no intuito de continuar seu caminho, quando Manoel saltou contra ele na
tentativa de cortar seu pescoço com uma navalha. Joze pôde-se esquivar saindo
com sorte desta empreitada, apenas com um rasgo na jaqueta.
O preso Joze Ferreira Coelho, solteiro, morador da vila, marinheiro de 25
anos, disse em seu testemunho que Manoel recém havia feito a barba, e que após o
260
GUTIERREZ, 2004, op. cit. p. 255.
261
SIMAO, 2002, op. cit. p. 129.
132
atentado teria gritado, “Ah ladrão o pesar que tenho é não te apanhar as goelas!” .
Manoel em seu interrogatório, disse ter chamado Joze para cobrar uma dívida de 20
patacões de cobre, e que depois de ser xingado por Joze, lhe desferiu o golpe com
um vidro. E a saga deste marinheiro, com a alcunha de Manoel o malvado, não
acabou por aí. Ao ser transferido para Porto Alegre no intuito de ser julgado, Manoel
fogiu do iate que o escoltava no momento do desembarque
262
. Este caso demonstra-
nos a proximidade que os presos tinham com a rua. Evidente que isto seria na
primeira fase da Casa, até o estouro da Guerra Farrapa, pois como visto nas
ilustrações antes citadas, após a década de 40, a estrutura da prisão haveria de
dificultar estes contatos. Outra questão interessante seria o fato de o preso estar
armado dentro de sua cela, seus companheiros de cárcere diziam ser com uma
navalha, e Manoel, talvez para fugir da repreensão dos guardas da prisão,
argumentou ser um pedaço de vidro. Esta questão do armamento dos presos em
suas celas não é problema apenas do mundo contemporâneo, como visto aqui.
3.3. Sem aprendizado em oficinas e escolas, o que sobrou foi mão-de-obra
barata para o Estado
Como dito na lei que havia criado as Casas Correcionais na Província de São
Pedro do Rio Grande do Sul, os prédios deveriam ser suficientes para o
recolhimento e trabalho de todos os presos. Este era um dos diferenciais da Casa de
Correção, a pena com trabalhos em oficinas.
Na mesma Lei n°2 de 27 de junho de 1835, consta nos artigos 4º e 9º, que no
prédio deveria haver uma escola para ensinar as primeiras letras aos presos, bem
262
APERGS. Processo Crime, Júri Pelotas, número 39, Maço 2A, estante 36.
133
como espaço para dez oficinas em que estes se dedicassem aos trabalhos de
marceneiro, alfaiate, sapateiro, entre outros que a Câmara requeresse. Não
encontramos nada nas fontes que nos demonstrassem que estes espaços foram
criados. León registrou que na época em que o antigo prédio da cadeia foi demolido,
em 1956, constavam 20 espaços de antigas celas
263
. Em relação às oficinas e à
escola, também nada foi encontrado, pelo menos até o período que compreende a
pesquisa, de 1832 à 1855. Cunha
264
argumenta que a planta original nunca foi
concluída, sendo a Casa construída por partes devido aos poucos e demorados
recursos provinciais.
O Código Criminal Brasileiro previa em seu artigo 49 que enquanto não se
estabelecessem prisões com condições necessárias para o trabalho dos réus, as
penas de prisão com trabalho seriam substituídas pela de prisão simples, com
acréscimo da sexta parte do tempo da penalidade prevista
265
. Em Pelotas, podemos
perceber através das fontes que a pena de trabalhos pode ter sido direcionada para
cobrir a demanda de mão-de-obra por parte do estado, na verdade nenhuma
surpresa, pois esta era uma prática comum no Brasil Império. Dizia uma notícia do
jornal O Pelotense de quinze de janeiro de 1853, “Consta que o Sr. Delegado de
Polícia mandou que os presos sentenciados a trabalhos, derrubassem um enorme
mato que existia nas proximidades do quartel de polícia”
266
. O mesmo jornal, dez
dias depois, questionava um dos fiscais da Câmara:
Lembra-se ao Sr. Fiscal, que solicite concessão do Sr. Delegado
para que os presos sentenciados a trabalhos façam a limpeza das
ruas, como se costuma em outras cidades. Faça este serviço Sr.
263
LEON, 1998, op. cit. p. 222.
264
BPP. CEDOV. CUNHA, Alberto Coelho da. Antigualhas de Pelotas. Jornal “A Opinião Pública”, 5
de dezembro de 1928.
265
TINOCO, Antonio Luiz. Código Criminal do Império do Brazil annotado. Ed. Fac-sim. Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. p. 79.
266
BRG. Jornal O Pelotense. N 3045, E 062, P 2. Dia 15 de janeiro de 1853.
134
Fiscal, que o Sr. Delegado há de sem dúvida atendê-lo. Que fazer
os presos, no caso acima, metidos na prisão? Estudar o meio de
cometer mais algum arrombamento, sendo o último deles de data
bem moderna?
267
.
É interessante visualizar que a pena com trabalhos passa a ser direcionada à
idéia de utilidade do estado de uma mão-de-obra barata
__
os presos são úteis se
colocados ao serviço do estado; a própria sociedade reconhecia isto. O trabalho
público não tinha nada de regenerativo, o trabalho era a exploração por parte do
estado de uma mão-de-obra prisional. Diz Noronha que para o Império, “[...] a
grande massa de ‘indesejáveis’ era bastante útil para manter uma reserva de mão-
de-obra para as obras públicas como calçamento, iluminação, etc., as quais
colocariam as cidades brasileiras em uma posição mais ‘civilizada’, mais próxima
das metrópoles européias”
268
.
Encontramos outras referências ao trabalho dos presos. Por exemplo, em
ofício datado de 12 de janeiro de 1848, a Câmara justificava ao Presidente da
Província a diminuição dos gastos com a cadeia através do emprego dos presos nos
serviços de limpeza, fornecimento de água, entre outros
269
. O mesmo tipo de serviço
em que estes mesmos presos faziam na Santa Casa de Misericórdia, ou seja, o
Delegado autorizara o carregamento de água, e retirada de despejos do hospital
270
.
Estes documentos nos dão evidências para afirmar que enquanto na teoria os
presos teriam que aprender ofícios especializados, como requisito para uma possível
reinserção a sociedade, na prática não acontecia estas aprendizagens, sendo estes
colocados em trabalhos comuns, não especializados.
267
BRG. Jornal O Pelotense. N 3045, E 062, P 2. Dia 25 de janeiro de 1853.
268
NORONHA, Fabrícia Rúbia. O Império dos Indesejáveis: uma análise do degredo e da punição no
Brasil império. Revista Em Tempo de Histórias, n°. 8, 2004. p. 15.
269
AHRGS. A. UM-104. Ofícios da Câmara Municipal de Pelotas 1844-50.
270
MSCM. Registro de ofícios e documentos da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas 1847-1869.
Ofício remetido ao Delegado Antônio Rafael dos Anjos em 23 de junho de 1850.
135
Este universo não foi, no entanto, apenas um contexto pelotense. Na Casa de
Correção de Porto Alegre
271
, também foram frustrantes as tentativas de montagem
de oficinas. Avisava o Ato de 4 de fevereiro de 1856, que as oficinas da cadeia de
Porto Alegre não funcionavam por falta de condições do prédio
272
. Moreira
demonstra-nos em seu trabalho que na capital, mesmo após trinta anos, ou seja, na
década de 80 do século XIX, as oficinas ainda não haviam ficado prontas
273
. Mas os
presos dedicavam-se a algumas atividades que lhes possibilitassem adquirir
pequenos recursos em dinheiro. Argumenta o autor que estes indivíduos talvez
tivessem com estes trabalhos uma ilusão de liberdade, pois assim compravam
bebidas, tabaco, e quem sabe outras coisas que pudessem suprir as carências
colocadas pelo mundo prisional.
Para os trabalhadores escravizados, não existia pena com trabalhos. A eles
eram destinadas as penas mais rigorosas do Código Criminal, como as de galés, de
açoites e de morte
274
. Informa-nos Ribeiro, que na década de 30, as penas de galés
impostas aos escravos muitas vezes eram transformadas em açoites
275
. Na década
de 40 e de 50, voltaria a pena de galés, mas a partir da década de 60 retornariam os
açoites. Esta prática de transformação da pena de galés para a de açoites tem no
fundo um interesse dos senhores de escravos, pois muitos escravos condenados a
galés perpétuas, passariam ao controle do estado, dando prejuízos à camada
senhorial. Assim, com a pena de açoites, caso o escravo sobrevivesse, voltaria para
o domínio de seu senhor.
271
Sobre a Casa de Correção de Porto Alegre, é interessante ver: PEDROSO, Rita de Cássia Ribeiro.
“Treze anos estou contando nas grades da correção” – Um estudo em memória dos “infelizes
sentenciados” da Casa de Correção de Porto Alegre, 1896-1913. Porto Alegre: PUCRS, 2003.
(Dissertação de mestrado em História).
272
AHRGS. Coleção dos Atos, Regulamentos, Instruções e outras disposições expedidas pela
Presidência, desde que teve execução a Lei de 14 de agosto de 1834, até fim de dezembro de 1856.
Porto Alegre: Tipografia do Correio do Sul, 1859. A. L. 568.
273
MOREIRA, 2001, op. cit. p. 12.
274
MALERBA, 1994, op. cit. p. 35.
275
RIBEIRO, 2005a, op. cit. p. 462.
136
Outro argumento muito utilizado foi o de que estando os escravos servindo
como galés, estes prefeririam este tipo de trabalho a permanecer sob posse do
senhor; para estes últimos, ser galé não era punição, era viver livremente sob
condições melhores que as encontradas em cativeiro privado. Devemos relativizar
estes argumentos senhoriais, pois ser galé não era nada fácil, ser galé era
submeter-se a uma parca alimentação, muitas vezes estragada, trabalhar muitas
horas no dia, contar com pouca ou quase nenhuma roupa, e ainda sofrer com as
possíveis arbitrariedades das sentinelas
276
. Dizia Azevedo que “[...] o escravo
condenado às galés continuava a viver em ambientes miseráveis, semelhantes aos
das senzalas ou talvez piores; durante o dia era do mesmo modo obrigado a
trabalhos (públicos), com o agravante de trabalhar permanentemente acorrentado
aos outros presos, mediante calcetas e golilhas”
277
. A mesma autora adverte,
também, que estes escravos mesmo enfrentando estes tipos de dificuldades,
mantinham uma relação muito próxima, muitas vezes íntima, com os guardas
responsáveis em sua vigilância. Assumiam papéis ativos no sentido de procurarem
burlar a lei, trabalhando menos, obtendo vantagens dos guardas, chegando até
mesmo a freqüentarem tabernas e prostíbulos juntos
278
.
No Código Criminal, em seu artigo 60, estava escrito que o escravo não
poderia levar por dia mais de cinqüenta açoites
279
. Se seguirmos este raciocínio,
Matheus, escravo de Joaquim Jose, que em 1847 foi condenado a quinhentos
açoites, levaria dez dias de punição
280
. Esta punição podia significar para alguns
276
Para integra-se mais sobre este debate a cerca dos galés ver: CHALHOUB, 1990, op. cit. ;
AZEVEDO, 2004, op. cit. ; MOREIRA, 2001, op. cit. ; MALERBA, 1994, op. cit..
277
AZEVEDO, 2004, op. cit. p. 167.
278
MOREIRA, 1993, op. cit.
279
TINOCO, 2003, op. cit. p. 95.
280
APERGS. Processo Crime. Júri de Pelotas. Número 199, Maço 5, Estante 35.
137
uma pena de morte, devido ao rigor do castigo, apenas uma das tantas
perversidades do sistema escravista.
Quanto ao trabalho de presos escravos também encontramos registros. Dizia
um ofício de 11 de agosto de 1834:
Existindo na prisão dois pretos escravos condenados a galés
perpétuas, que segundo a lei devem ser empregados em serviço
público, à disposição de V. Exª; A Câmara Municipal desta Vila em
sessão que hoje fez extraordinariamente deliberou que se rogasse a
V. Exª a concessão devida, a fim de que os ditos dois presos se
ocupem no serviço da dita prisão
281
.
Os municipais ainda pediam, no mesmo ofício, a compra ou a remessa de
seis correntes e seis calcetas de ferro, “[...] pois são indispensáveis para os dois
sentenciados, e para segurança de alguns escravos fugidos, e apanhados em
quilombos, que podem ser empregados nos trabalhos da obra da prisão, em quanto
não forem reclamados por seus senhores”. Dizia assim o artigo 44 do Código
Criminal, “A pena de galés sujeitará os réus a andarem com calceta no pé e corrente
de ferro, juntos ou separados, e a empregar-se nos trabalhos públicos da província
onde tiver sido cometido o delito, à disposição do governo”
282
. Aos galés era
destinado o teatro das ruas, a demonstrar à sociedade o quanto desmoralizante
poderia ser o pagamento das infrações violadas
283
. Em agosto de 1850, o presidente
da Província remetia um ofício autorizando a compra de vestuário para sete presos
condenados a trabalhos públicos, “[...] que se achavam na cadeia da cidade de
Pelotas em completo estado de nudez”
284
.
281
AHRGS. A.MU-103. Câmara Municipal de Pelotas.
282
TINOCO, 2003, op. cit. p. 69.
283
Aos presos escravos que saíam acorrentados para fazerem os serviços públicos, foi dado o nome
de Libambos (ARAUJO, Carlos Eduardo Moreira de. O Duplo Cativeiro: Escravidão urbana e o
sistema prisional no Rio de Janeiro, 1790-1821. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2004. (Dissertação de
mestrado em História). p. 20). O termo Libambo é originário do Quimbundo, e era o nome dado as
correntes de ferro que eram amarradas aos pescoços dos prisioneiros. (ALGRANTI, 1988, op. cit. p.
77).
284
AHCMP. Correspondências recebidas. Ofício de 3 de agosto de 1850.
138
Ilustração 6 – Presos escravos
285
Para o estado, era muito interessante que os presos escravos fizessem os
serviços gerais da prisão, bem como a continuação da construção desta. Esta
questão da intromissão do estado nas relações escravistas, que seria uma tônica
durante o século XIX com a ampliação dos aparelhos repressivos públicos, geraria
muitos conflitos entre senhores de escravos e autoridades. Algranti chegou a referir-
se que nas grandes cidades, foi ao estado que coube o papel do feitor, “[...] embora
o feitor de fato estivesse ausente”
286
. Como citado acima, para os senhores, era
preferível açoitar o escravo e tê-lo de volta, do que amargar com prejuízos, e perder
sua dita mercadoria para o estado. Alguns faziam de tudo para tirar seus escravos
da prisão, inclusive retirar queixas nos processos que rolavam na justiça.
285
BPP. CEDOV. AP-018. Livro de ilustrações de Herrman Rudolf Wendroth, publicado pelo governo
do Rio Grande do Sul.
286
ALGRANTI, 1988, op. cit. p. 198.
139
3.4 Entre fugas e arrombamentos
Um arrombamento acontecido na década de 30 pode nos mostrar um tipo de
serviço efetuado pelos presos escravos na prisão. No início de setembro de 1835, os
escravos Silvano e Manoel fugiram da Casa de Correção através de um buraco feito
por estes no muro, mesmo estando “[...] entregues a vigilância da sentinela do
portão de entrada”
287
. Os dois aproveitaram uma pilha de tijolos que estava sendo
usada por escravos galés em reparos na cadeia, para esconderem o buraco que
estavam construindo para fugir. O que chama a atenção neste caso, para nós, nesse
momento de análise, é o tipo de serviço que os dois faziam na cadeia; o de cozinhar
para o resto dos presos em um fogão no pátio daquela instituição. Manoel não foi
mais encontrado, pelo menos no processo, já Silvano, de vinte e cinco anos,
também galé, foi capturado. Podemos observar, então, que os escravos galés
trabalhavam tanto na construção da cadeia, como em serviços gerais da mesma
prisão, seja na limpeza, no despejo de dejetos, como na cozinha.
Esta questão dos arrombamentos e das fugas foi algo constante nas cadeias
do Brasil imperial, mesmo nas tidas como seguras Casas de Correção. No caso
acima, é bem provável que possa ter havido uma solidariedade por parte dos galés
responsáveis pelos reparos na cadeia, em acobertar o buraco feito por Silvano e
Manoel no muro. Este caso traz algo mais interessante ainda, o fato de uma das
testemunhas, o preso Redugerio Pereira dos Santos, solteiro, que vivia da lavoura,
287
APERGS. Processo Crime nº 66, maço 2A, estante 36.
140
ter dito que não havia visto nada, pois estava sentado no portão da cadeia à vista da
sentinela. Não sabemos o motivo para este sujeito estar fora da cela, talvez possa
ter sido algum tipo de benefício negociado com o carcereiro e a sentinela, pois as
outras testemunhas haviam dito que não teriam visto nada pelo motivo de estarem
dentro das celas. Outra questão relevante é que este indivíduo pode ter despistado a
sentinela enquanto os escravos fugiam.
Na madrugada do dia 7 de abril de 1845, uma segunda-feira, o preso Jose
Pinheiro, um pescador espanhol de quarenta anos morador da cidade, acordou em
sua cela com barulhos fortes. Ao abrir os olhos, viu outros três presos a abrir um
buraco por baixo de uma das janelas através do uso de uma trincha
288
. Enquanto um
trabalhava, os outros dois armados de facas ameaçavam de morte ao resto dos
presos se estes contassem o ocorrido. Após a feitura do buraco, os indivíduos
fugiram pela porta da frente. Na declaração do carcereiro, no qual informava o
acontecido, há as qualificações dos fujões:
- Manoel do Nascimento Siqueira, natural da Laguna, idade de 27
anos, pardo claro, alto, de pouca barba, recolhido à cadeia em 11 de
fevereiro do corrente ano a ordem da delegacia, remetido de Porto
Alegre, acusado de haver assassinado nesta cidade o Francês
Paulo Henrique Reis em 1843, achando-se o dito preso em ferros,
teve de limá-los e os deixou.
- José Joaquim, natural desta Província, idade de 20 anos, branco
de cores morenas, entrou para esta cadeia a 15 de janeiro a mesma
ordem por crimes políticos.
- José Pedro, natural da Bahia, idade de 45 anos, altura regular,
homem pardo pouca barba, este tem de menos o dedo grande
polegar da mão esquerda. Recolhido a cadeia a 25 de fevereiro a
mesma ordem da delegacia, por ter roubado uma peça de brim a
bordo, no porto desta cidade
289
.
288
Trincha: Ferramenta para arrancar pregos, espécie de enxó (instrumento de carpinteiro para
desbastar madeira). (LUFT, 1991, op. cit. p 613).
289
APERGS. Processo Crime N99/M3A/E36.
141
Não conseguimos encontrar o crime político efetuado por José Joaquim, mas
talvez estivesse relacionado ainda aos conflitos da Guerra dos Farrapos, pois em
1845, os conflitos estavam muito vivos nas memórias da população e das
autoridades.
Os presos haviam arrombado uma parede que tinha três palmos e meio de
comprimento, e Manoel havia limado as duas argolas e correntes que o prendiam,
segundo o Auto de Exame e Corpo de Delito. Diz o testemunho de Manoel Brás da
Luz, baiano, de vinte e seis anos de idade, um das sentinelas, que naquela noite o
portão da cadeia havia ficado aberto, mas não sabia o motivo. Uma semana depois,
o delegado Alexandre Vieira da Cunha de posse de algumas informações, mandava
um mandado de busca à casa em que morava o preto Domingos Crioulo, escravo de
Pedro Nunes Baptista, onde supostamente estariam acobertados os fujões. Após a
revista do lugar, nenhum vestígio dos presos foi encontrado. Interessante que neste
documento aparece, nas entrelinhas, uma possível rede de solidariedade entre
escravos e homens livres pobres. Ao compartilharem condições marginais em
relação às autoridades, assim como a pobreza, estes sujeitos acabavam tecendo
estratégias e auxílios mútuos. O Promotor Público encerrou o processo, isentando o
carcereiro e as sentinelas de qualquer responsabilidade em relação às fugas.
Três anos depois, em 1848, outra fuga. O ajudante de carcereiro, um
uruguaio de quarenta e três anos, chamado Martim Theodoro Ferrão, disse que por
volta das três horas da manhã, quando chegou à prisão, ao abrir o portão, verificou
que a cela número cinco estava arrombada. Encontrou dentro da cela uma lima e um
lençol feito em tiras com uma pedra na ponta para atirar sobre o muro, que havia
servido de escada. Haviam fugido dois indivíduos: Joaquim Machado e Joaquim
Dias. Disse o ajudante Martim, que há cerca de seis dias antes do ocorrido, o preso
142
Joaquim Machado havia recebido uma visita de sua tia chamada Paula, recaindo a
suspeita de ter trazido a lima, sobre a mulher.
Muito interessante o depoimento do carcereiro, onde este demonstrava
surpresa em relação a fuga, já que o local do muro onde os presos haviam pulado,
teria todas as noites “[...] uma sentinela a oito passos de distância, e uma outra a
trinta e sete notando-se que a noite esteve de luar e a mais clara possível”
290
.
Ninguém foi interrogado além de Martim; o caso foi encerrado sem indiciados.
Moreira argumenta que entre os presos e as sentinelas, que eram tanto indivíduos
da polícia como do exército, existia uma experiência em comum, a pobreza. Este
autor encontrou em documentos relativos à Casa de Correção de Porto Alegre,
muitos vestígios de suborno relacionados às fugas dos presos. Havia assim uma
rede de troca de favores entre essas pessoas, que se tornava mais densa no mundo
extramuros da cadeia, quando os galés iam trabalhar em serviços públicos, sendo
vigiados pelas sentinelas
291
.
Ao observarmos as tabelas 6 e 7, podemos visualizar mesmo relativamente,
os números levantados pela Província, relacionados às fugas de presos.
290
APERGS. N230/M6A/E36.
291
Moreira encontrou processos na justiça relacionados a fugas de presos que estavam bebendo e se
divertindo nas ditas casas de tolerância, acompanhados dos guardas da prisão. Muitos casos que
indicavam que fora da prisão os guardas e os presos se relacionavam, compartilhando os espaços de
diversão. Dizia o autor, “[...] a distância da Casa de Correção e o contato íntimo com os sentenciados
fazia diluir-se a instituição, aparecendo o indivíduo” (MOREIRA, 2001, op. cit. p. 7).
143
TABELA 7 - Quadro comparativo dos crimes cometidos na Província de São
Pedro do Rio Grande do Sul, no decênio de 1851 a 1860, e ano de 1861.
292
ANOS
Crime
51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61
Fuga de
presos
2 1 1 1 2 5 1 2 2 4 2
TABELA 8 - Crimes no Rio Grande do Sul em que foram capturados ou
condenados os réus
293
.
ANOS
Crimes
47 48 50 51 52 53 54 55 57 58 59
Total
Arrombamento
de cadeia
1 1
Fuga de
presos
1 7 2 2 1 2 1 5 5 1 27+2
294
Infelizmente não podemos afirmar nada em relação ao sucesso ou não dos
presos nas suas fugas. Apenas expomos estas duas tabelas, para quem sabe,
incentivar outros pesquisadores a efetivarem pesquisas relacionadas a este assunto.
292
BBP. CEDOV. “Appenso ao quadro estatístico e geographico da Província de S. Pedro do Rio
Grande do Sul” organizado pelo Bacharel Antônio Eleutério de Camargo, engenheiro da Província.
Porto Alegre, 1868. Typographia do Jornal do Commercio, de L. F. Cavalcanti de Albuquerque.
293
BPP. Idem. Ibidem. Os anos de 1842, 1843, 1844, 1845, 1846, 1849 e 1856 constam na tabela
mas em branco, indicando a inexistência de casos.
294
Observação: Número sublinhado faz referência aos “que foram enviados pelos Juízes de Direito e
não foram colocados juntos com os outros nº, por não se saber o ano do crime”.
144
3.5 Os presos padecem: A cadeia carece de tudo quanto a Constituição
recomenda
No hospital da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas eram atendidos
gratuitamente os presos pobres, menos os escravos presos, pois tanto as contas do
hospital como as das despesas de alimentação e vestuário na cadeia eram
efetuadas pelos seus respectivos senhores. Havia inclusive um Mordomo, um
fiscalizador especialmente criado para cuidar dos presos tratados na instituição
295
.
Em contrapartida, desde a fundação da Santa Casa de Misericórdia em Pelotas no
ano de 1847, o Delegado ordenava aos presos para que fizessem os despejos, e o
fornecimento de água ao hospital
296
. Este trabalho efetuado pelos presos na Santa
Casa insere-se como uma forma de troca de apoio político entre os diretores tanto
da própria Irmandade como dos órgãos de Polícia e Casa Correcional. Todas estas
instituições contribuíam com a idéia de combate à vadiagem. A Santa Casa exercia
um papel ligado à caridade com os desvalidos, lá “[...] eram recebidos pobres e
escravos adoentados, velhos, inválidos, loucos, presos doentes, praças da polícia,
além das crianças abandonadas”
297
. O objetivo fundamental era tirar da circulação
das ruas estes sujeitos miseráveis, tidos como vadios. O hospital tinha como uma de
suas funções a segregação dos indivíduos, pois estes eram tidos como perigosos
para a saúde geral da população, uma escaramuça da pobreza
298
. Diz Witter que as
pessoas que tinham família, uma moradia, ou seja, que tinham quem cuidasse de si,
tratavam suas doenças em casa, não iam ao hospital. Continua a autora, “O
295
Um exemplo, para o ano de 1850-51, foi nomeado para ser Mordomo dos presos, Joaquim
Guilherme da Costa. MSCM. Registro de ofícios e documentos da Santa Casa de Misericórdia de
Pelotas 1847-1869.
296
MSCM. Registro de ofícios e documentos da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas 1847-1869.
Ofício do dia 23 de junho de 1850.
297
TOMASCHEWSKI, Cláudia.. Hospital: “Máquina de curar”. Sobre a medicalização do hospital da
Santa Casa de Misericórdia 1887-1906. Artigo gentilmente cedido pela autora, 2006. p. 1.
298
FOUCAULT, 1979, op. cit. p. 102.
145
significado de ter de ir ao hospital estava ligado tanto à ‘sina da pobreza’ quanto à
da desvalia, isto é, ao fato de não ter ninguém por si”
299
. Segundo Tomaschewski,
somente nas últimas décadas do século XIX, o Hospital de Pelotas passaria a
exercer uma função mais específica de cuidado e terapêutica de doentes com o
propósito de cura.
Pertencer à Irmandade da Santa Casa era sinônimo de status. Os indivíduos
das elites estavam interessados em ganhar prestígio e salvar suas almas. De acordo
com Tomaschewski, como uma das maneiras de sobrevivência da Irmandade vinha
através da renda de doações, “[...] o nome dos doadores saia publicado em jornais
locais, além de serem rezadas missas em favor de suas almas”
300
. Ou seja, a
prática da filantropia e da caridade não estava ligada restritamente ao mundo
extraterreno, estas práticas tinham um fundo marcadamente político. Inclusive
muitos indivíduos da sociedade repassavam quantias para o sustento dos ditos
desvalidos, principalmente no momento da morte. Em 1854, o jornal O Pelotense,
registrava a doação, por parte de João Caetano dos Santos, de quantias de dinheiro
tanto para o Asilo de Órfãs desvalidas, como para os presos da cadeia, sendo que
estes últimos receberam 19 patacões
301
.
Antes da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia ser fundada,
conseguimos constatar através da documentação que o cuidado dos presos
enfermos era efetuado por cirurgiões que se disponibilizavam ao trabalho
gratuitamente. Em ata de 11 de julho de 1834, a Câmara agradecia ao cirurgião
Machado pela assistência gratuita aos presos
302
. Em julho de 1832, o cirurgião
299
WITTER, Nikelen Acosta. Dos cuidados e das curas: a negociação das liberdades e as práticas de
saúde entre escravos, senhores e libertos (Rio Grande do Sul, século XIX). Revista História
UNISINOS. Vol. 10, n. 1 – janeiro/abril de 2006. p 21.
300
TOMASCHEWSKI, 2006, op. cit. p. 1.
301
BRG. Jornal O Pelotense. Nº3045, E62, P2. Dia 25 de setembro de 1854.
302
BPP. CEDOV. Livro de Atas da Câmara Municipal de Pelotas. N 004.
146
Antonio Caetano da Silva recebia agradecimentos da Câmara Municipal por ter-se
disposto a tratar gratuitamente de todos os presos e expostos que estavam à guarda
desta
303
. Poderíamos conjeturar e pensar nesse cirurgião como alguém que, como
diz a própria Câmara, estava com “patrióticos e humanos sentimentos”. Mas
visualizamos aí a possibilidade de uma prática no sentido de benefício político
próprio, pois muitos dos homens que ocuparam cargos públicos foram justamente os
homens que tinham a prática das curas, das cirurgias, muitas vezes sem titulação
nenhuma, ou principalmente, aqueles que obtinham os diplomas, os médicos.
Resende informa-nos que em 1808 no Rio de Janeiro, foi criado um órgão
chamado Fisicatura, que definiu as diversas formas da arte de curar no Brasil, na
tentativa de fiscalizar tais atos
304
. Sua função, de acordo com a autora, na verdade
era hierarquizar as práticas da cura, definindo-as como popular, tida como inferior,
que englobava sangradores, curandeiros, parteiras, entre outros, e a erudita, que
englobava a elite ilustrada, sendo médicos, cirurgiões e boticários. Vemos, então,
que estes cirurgiões sobre os quais estamos falando, que não haviam freqüentado
as universidades como os médicos, poderiam fazer parte de um grupo político
emergente, que através de favores, do clientelismo, poderiam estar almejando um
determinado status.
Este tipo de questão é difícil de ser afirmada enquanto não encontrarmos a
trajetória de vida de cada um dos cirurgiões, principalmente suas trajetórias políticas,
pois eles poderiam estar simplesmente demonstrando, como disse a Câmara,
sentimentos de caridade. O que nos parece evidente é que nesta sociedade a
caridade era, além de uma manifestação de sentimento humanitário, um
303
BPP. CEDOV. Livro de Atas da Câmara Municipal de Pelotas. N 005.
304
RESENDE, Maria Leônia Chaves de; SILVEIRA, Natália Cristina. Misericórdias da Santa Casa:
um estudo de caso da prática médica nas Minas Gerais oitocentista. Revista História UNISINOS. Vol.
10, n. 1 – janeiro/abril de 2006. p. 7.
147
investimento político e profissional. Político, pois os que se ofereciam graciosamente
para tratar dos pobres enfermos, mais tarde poderiam usar estes serviços como
reforço em suas pretensões (requerimentos) aos órgãos públicos. Profissional, pois
nos Hospitais e Prisões os médicos e cirurgiões poderiam testar seus
conhecimentos sem grandes riscos, já que cura era uma expectativa longínqua e
pouco esperada. Por outro lado, quem sabe se na Santa Casa de Misericórdia, ao
conviverem estes médicos com indivíduos de tradições culturais indígenas e
africanas, não ocorria uma circulação cultural de práticas de cura e concepções de
doença.
O certo é que durante o século XIX, temos a construção da imagem do
profissional da medicina, erudito, sábio, abnegado e humanitário, características que
acabaram formando através do atendimento gratuito da população mais pobre, de
presos e expostos, influenciando assim o reconhecimento desta população,
capitalizando politicamente espaços de representação nas vilas e cidades. Uma das
principais bandeiras levantadas por estes profissionais quando da ocupação de
cargos públicos foi o combate ao curandeirismo, combate este que legitimava o seu
poder político, construindo uma hierarquia nas práticas de cura, incutindo na
sociedade o ideal de civilidade burguesa, representando, no médico, a face de um
país civilizado
305
. Sobre esta questão relativa à saúde, retomaremos a seguir.
Os presos pobres passaram a ser sustentados na Vila de São Francisco de
Paula desde o ano de 1832, após a criação da Câmara Municipal, conforme as atas,
recebendo diariamente da Presidência da Província até julho daquele ano 80 réis,
após aumentou-se para 100 réis
306
. Na década de 40 subiu para 160 réis
307
, e em
305
WITTER, Nikelen Acosta. Dizem que foi feitiço: as práticas da cura no sul do Brasil (1845 a 1880).
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. p. 82-83.
306
BPP. CEDOV. Livro de atas da Câmara Municipal de Pelotas. N005. Ofício do dia 7 de agosto de
1832.
148
1849, passaram a receber 180
308
, o mesmo pago, por exemplo, aos soldados do
Corpo Policial. No início da década de 50 começaram a receber 200 réis diários
309
.
Estes valores eram aumentados segundo os protestos dos carcereiros que
reclamavam dos preços altos dos gêneros alimentícios, como o feijão e a carne. Mas
algo nos chama a atenção nestes protestos; o que motiva as reclamações dos
carcereiros não era apenas a piedade com os presos e sim também os
constrangimentos que estes enfrentavam dia-a-dia em terem que com os poucos
réis disponíveis negociar alimentos para todos os condenados. Talvez uma das
alternativas do carcereiro fosse a de repassar pouca ou quase nenhuma comida,
como exemplificaremos a seguir.
Em 15 de setembro de 1851, a Câmara, ao reclamar dos preços altos dos
alimentos, principalmente da carne e do feijão, e pedir o aumento da diária dos
presos pobres de 180 para 240 réis, manda anexada uma reclamação do carcereiro
colocando a impossibilidade de dar almoço e janta aos presos, que de acordo com
ele, padecem
310
. Situação esta que já aparecia nas décadas de 30 e 40. Ficava a
cargo do carcereiro a distribuição da comida, dependendo assim os presos das
posições individuais, das vontades destes para poderem alimentarem-se. Pedroso
argumenta:
[...] os órgãos públicos pouco se interessavam pela administração
penitenciária, que ficava entregue ao bel-prazer dos carcereiros,
que por sua vez, instituíam penalidades aos indivíduos privados
de liberdade. Assim, a implantação dessas casas foi mascarada
por uma realidade brutal, possível de ser observada só pelas
pessoas que lá conviviam diariamente. Utopias carcerárias
307
AHRGS. Ofício enviado à Presidência da Província em 12 de outubro de 1849. (A. MU-103)
308
AHRGS. Ofício enviado à Presidência da Província em 15 de setembro de 1851. (A. MU-103)
309
AHRGS. Ofício enviado à Presidência da Província em 15 de janeiro de 1856. (A. MU-103)
310
AHRGS. Ofício enviado à Presidência da Província em 15 de setembro de 1851. (A. MU-103)
149
pensadas pelos juristas de época entravam em colisão com os
poderes presentes na realidade penitenciaria
311
.
No gráfico 3, podemos observar as quantias despendidas trimestralmente por
parte da Província a Câmara Municipal, relacionadas ao sustento dos presos pobres.
Estas verbas englobavam a alimentação e o vestuário dos presos. Vemos que
durante a década de 50 as verbas passam a aumentar. Poderíamos conjecturar que
o número de presos aumentaria também. Em inúmeros ofícios, da década de 30 à
60, a Câmara reclamava da demora do repasse das verbas; muitas vezes era a
Câmara que fazia os gastos com recursos próprios e depois passava até três meses
requerendo a restituição das quantias por parte da Província. Encontramos um ofício
datado de 11 de abril de 1854, em que a Câmara reclama o pagamento de seis
meses de sustento atrasados, e pede a exoneração do cargo de arcar e fiscalizar o
emprego das verbas.
A Câmara não deixará de nesta ocasião solicitar igualmente de V.
Exª a exoneração do encargo e trabalho de semelhantes
pagamentos em atenção a lhe não competir ingerência ou
fiscalização alguma nas diárias e modo de seu fornecimento aos
presos pobres vindo por esta razão a carregar unicamente com o
trabalho que lhe parece inútil de pagar despesas que não lhe
cumpre inspecionar, sofrendo o inconveniente de repetidos
desembolsos quando a Coletoria do município por cujo cofre,
vencidas as delongas e reclamações com que sempre lista a
Câmara, é afinal feito este pagamento, poderia com mais proveito
e diretamente inspecionar e satisfazer essa despesa
312
.
Podemos observar que a Câmara visualizava o trabalho de sustento com os
presos como algo oneroso, de prejuízo ao município; argumentava esta instituição
que este tipo de prática seria responsabilidade da Província. A Província muitas
311
PEDROSO, R. Utopias penitenciárias. Projetos jurídicos e realidade carcerária no Brasil. Jus
Navigandi, Teresina, a. 8, n. 333, 5 jun. 2004. Disponível em :
http://www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5300
. p. 3.
312
AHRGS. Câmara Municipal de Pelotas. A. UM-105. Ofício de 11 de abril de 1854.
150
vezes remetia ofícios exigindo da Câmara a fiscalização das atividades de sustento.
As autoridades pareciam empurrar uma para a outra a responsabilidade referente à
cadeia. Neste ofício acima citado, as elites locais, representadas pela Câmara,
pediam maior participação da presidência representada pela coroa; talvez os grupos
políticos usassem as instituições, como aqui no caso a cadeia, para disputarem as
práticas de eficiência e de ineficiência da administração pública. Disputar a idéia de
quem seria responsável em arcar com a fiscalização e o pagamento do sustento dos
presos pobres poderia ser uma forma de pressão, de disputa política, de tentativa de
provocar desgastes através da imagem de ineficiência das administrações.
0
200.000
400.000
600.000
800.000
1.000.000
1.200.000
1.400.000
1.600.000
1.800.000
2.000.000
Trim
Trim
Trim
Trim
total
1847
1848
1849
1850
1851
1852
1853
1854
1855
1856
1857
Gráfico 3 - Quantias destinadas pela Presidência da Província ao sustento dos
presos pobres da cidade de Pelotas (1847-57)
313
313
Números levantados nos ofícios da Câmara Municipal de Pelotas remetidos à Presidência da
Província entre os anos de 1847 e 1857. AHRGS. A. MU-103-104-105. Os terceiros semestres de
1847, 48 e 52, e os quartos semestres de 1852, e 57, foram preenchidos com a média de cada ano
respectivo. O motivo foi não termos encontrado as verbas disponibilizadas.
151
Temos um exemplo; em 1850, a Câmara requeria ao governo provincial o
pagamento do ordenado do carcereiro, desde o ano de 1844 ao ano de 1846. Em
resposta, o Presidente da Província argumentava que o pagamento à Câmara só
seria efetivado se esta apresentasse recibos documentando os gastos diretamente
ao governo imperial.
Encontramos evidências para afirmar que a própria população, principalmente
comerciante, se relacionava com pouca confiança no tocante ao pagamento de
serviços prestados. Em 8 de julho de 1846, a Câmara reclamava ao Presidente da
Província a falta de licitantes para arrematar o sustento dos presos pobres
314
. Talvez
os comerciantes, cansados de os pagamentos referentes aos seus produtos usados
na alimentação dos presos chegarem sempre atrasados, parassem de participar dos
leilões.
A Casa de Correção contava entre os anos de 1847 e 1851, com uma média
de trinta presos; a documentação é escassa e dispersa, mas pelo menos pode nos
dar uma idéia. Nos anos de 1847 a 48 temos 37 presos registrados, entre 1848 e 49
temos trinta, entre 1849 e 50 temos vinte e cinco, e em 1851 oscilou entre trinta e
trinta e cinco. Nesta última informação, o documento que a ilustra é muito
interessante. A Câmara Municipal mantinha uma comissão específica para os
presos, que se responsabilizava em fiscalizar a situação destes na Cadeia. Em
1851, dizia um ofício:
No exame das relações dos presos existentes na cadeia desta
cidade [...], notou a comissão o número de 30 em os meses de
abril a maio e de 35 no mês de junho. Esta Câmara como guarda
da constituição e das leis, deve indagar os motivos por que se
conservam em custódia a tanto tempo 9 homens brancos, 4
pardos, 4 índios, 8 pretos, e 10 indivíduos sem cores qualificadas,
314
AHRGS. Câmara Municipal de Pelotas. A. UM-104. Ofício de 8 de julho de 1846.
152
para acusar as autoridades que não cumpram com seus
deveres
315
Muitos indivíduos, como relatado aqui, ficavam longos períodos dentro das
prisões, passando inclusive do tempo que haviam sido penalizados. De acordo com
Araújo, os galés eram os que mais sofriam
316
. Este autor constatou que no Rio de
Janeiro, o indivíduo condenado a galés nas obras públicas, dificilmente voltaria a
desfrutar da liberdade. Grande parte deles já havia cumprido suas penas e ficavam a
fazer trabalhos braçais para o estado. No ofício citado acima, a Câmara acusava um
grande número de presos que, de acordo com ela, poderiam estar enclausurados há
mais tempo do que as penas impunham. Infelizmente não encontramos mais nada
que pudesse nos oportunizar saber as respostas das autoridades questionadas.
Araújo argumenta que conforme a necessidade por braços nas obras públicas
aumentasse, as prisões eram intensificadas, motivo que pode aparecer como
explicação ao aumento de verbas aos presos pobres na década de 50. Para
analisarmos este tipo de argumento na cidade de Pelotas, seria preciso, em nossa
opinião, estender a análise para a década de 60 e 70 do século XIX, pois seria neste
momento que a cidade conheceria o seu auge arquitetônico, bem como o
aparecimento de novas tecnologias, como bondes, chafarizes, entre outros.
Se a situação dos presos na Casa de Correção quanto à alimentação já era
péssima, em relação à saúde também. Em 1834, os presos remeteram um pedido à
Câmara para poderem dormir com as janelas abertas, pois era pleno mês de janeiro
e o calor era muito forte
317
. Pedido negado. Neste mesmo ano, a Câmara pediu ao
Juiz de Direito Interino que proibisse os presos de lavarem roupas dentro da prisão,
315
AHCMP. Correspondência expedida. CAMP02.
316
ARAUJO, 2004, op. cit. p. 131.
317
BPP. CEDOV. Atas da Câmara Municipal da Vila de São Francisco de Paula. N 004.
153
pois de acordo com este órgão, estariam deteriorando o prédio
318
. Colocamos estas
evidências para contrapormos com os dados levantados pelo registro de enfermos
da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas.
Tabela 9 - Relação das enfermidades contraídas pelos presos entre 1848 a
1853
319
Causa da Internação
Categoria Subtotal
Boubão 1
Bubonocele 1
Desinteira 1
Irritação da bexiga 1
Sífilis 1
Infecto parasítica 05
Cefalalgia (dor de cabeça) 3
Angina 1
Inflamação da garganta 1
Feridas 7
Mal definida 12
Diarréia 2
Diarréia crônica 2
Sistema digestivo 04
Asma 1
Tísica pulmonar 1
Pleurisia 1
Sistema
respiratório
03
Contusões 1
Ferimento 1
Ferida de arma de fogo 2
Violenta e
acidental
04
As “categorias” em que inserimos as causas de internamento dos habitantes
da Casa de Correção de Pelotas foram propostas pela historiadora norte-americana
318
BPP. CEDOV. Atas da Câmara Municipal da Vila de São Francisco de Paula. Ofício de 11 de julho
de 1834. N004.
319
MSCM. Registro de entrada e saída de enfermos da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas. Entre
os anos de 1848 e 1853. Todos estes dados referentes ao Registro de entradas dos enfermos,
possuem uma lacuna entre 1850 e 1851, pois o material pesquisado estava bastante deteriorado.
154
Mary Karasch
320
. Mesmo que a intenção desta autora tenha sido entender as causas
dos óbitos de escravos no Rio de Janeiro, pensamos poder utilizar sua proposta de
classificação como parâmetro. Mesmo que o número de internações não nos possa
autorizar a grandes vôos analíticos, podemos pelo menos apontar que as doenças
relacionadas ao aparelho respiratório reforçam o que vimos falando sobre as
péssimas condições de construção da cadeia (úmida e fria). E as do aparelho
digestivo ilustram a má alimentação fornecida por aqueles que se arriscavam a
concorrer nas licitações do governo imperial.
As doenças descritas por Karasch como “mal definidas” atestam a pouca
certeza que detinha o saber médico, constando muitas mortes descritas como
causadas por sintomas, como diarréia, sem especificação da causa provável. As
causas violentas das internações nos mostram a violenta sociabilidade carcerária,
mas enfermidades como sífilis mostra que nem tudo era resolvido drasticamente,
havendo espaço para trocas amorosas e sexuais.
O que chama a atenção nos dados seria o maior número de feridas seguidas
pelo de diarréia, assim como é grande o número de enfermidades relacionadas ao
sistema pulmonar. Acreditamos que possam ser indícios importantes da falta de
salubridade e higiene, como a de má alimentação na Casa de Correção.
Lima, pesquisando em período anterior, de 1818 a 1830, encontrou nas
cadeias do interior, assim como na da capital, a mesma situação de insalubridade,
levando ao óbito muito indivíduos, dentre eles a maioria escrava
321
. A cadeia de Rio
Grande destacava-se por ser uma das mais estruturadas, mas vivia constantemente
lotada, prejudicando a situação dos presos. De acordo com o autor, enquanto os
320
KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro - 1808 / 1850. São Paulo, Companhia
das Letras, 2000.
321
LIMA, Solimar Oliveira. Triste pampa: resistência e punição de escravos em fontes judiciárias no
Rio Grande do Sul – 1818-1833. Porto Alegre: IEL/EDIPUCRS, 1997. p. 148.
155
julgamentos não eram encaminhados, os escravos presos ficavam nas cadeias das
Vilas. A média de espera desses réus pelos julgamentos nas cadeias chegava a dois
ou três anos; muitos acabavam morrendo neste meio tempo, pois as condições eram
terríveis. Compartilhavam o mesmo lugar com as fezes que eram “esquecidas” nas
celas, provocando muitas doenças e também contavam com pouca ou quase
nenhuma comida. Muitas cadeias eram feitas de pau-a-pique e barro, facilitando as
fugas, fossem feitas por buracos cavados por baixo das paredes, ou pelo
arrombamento puro e simples daquelas paredes frágeis
322
.
A diarréia crônica levou à morte dos escravos João e Maria Preta, o que nos
leva a pensar que na Casa Correcional ocorreriam tratamentos diferenciados. A
diarréia poderia surgir pelo motivo de uma alimentação estragada, ou de baixa
qualidade
323
. A outra morte das três que encontramos também foi de uma pessoa
considerada negra, chamada Alexandrina Maria da Conceição, aparecendo nos
registros como pessoa livre.
322
LIMA, 1997, op. cit. p. 153.
323
Segundo um dicionário médico da época, diarréia: "É um incomodo que consiste nas evacuações
alvinas mais ou menos abundantes e liquidas. A diarréia pode ser sem dor ou outros fenômenos; ou é
acompanhada de sintomas precursores gástricos, dores, tenesmos, ventosidade ou sintomas locais e
gerais, que com a aparição das diarréias diminuem, agravam-se ou conservam-se no mesmo estado”.
(LANGAARD, Theodoro J. H. Dicionário de Medicina Doméstica e Popular. Volume I. 2ª edição, Rio
de Janeiro, Laemmert & Cia., 1872. p. 645).
156
Tabela 10 - Relação de presos que morreram na Santa Casa de Misericórdia
324
Nome Filiação Naturalidade Qualidade Idade Estado Profissão Entrada Morte Enfermidade Obs.
João Escravo
do
falecido
José Lino
de POA
Moçambique preto 40 solteiro pedreiro 21 abril
1849
21
maio
1849
Diarréia
crônica
Faleceu
era
preso
vindo da
cadeia
Maria Preta Escrava
de Luiz
Jozé da
Silva
África Preta 30 solteira presa 4 mar
1850
11
maio
1850
Diarréia
crônica
Faleceu
Alexandrina
Maria da
Conceição
Joaquim
José da
Paixão e
Maria
Francisca
da
Conceição
Rio de
Janeiro
Preta 25 Solteira Costureira 13 abril
1848
23
abril
1848
Phtisica
Pulmonar
Veio
remetida
da
cadeia
por estar
a
cumprir
sentença
Se observarmos os números de internações dos presos veremos uma
predominância dos considerados não-brancos. Os qualificados como pretos têm o
número igual aos de brancos. Na tabela 11 observamos uma grande quantidade de
324
MSCM. Registro de entrada e saída de enfermos da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas. Entre
os anos de 1848 e 1853. Todos estes dados referentes ao Registro de entradas dos enfermos,
possuem uma lacuna entre 1850 e 1851, pois o material pesquisado estava bastante deteriorado.
157
africanos. O grande número de pessoas de Rio Grande está ligada a questão
comentada no capítulo anterior; muitos haviam nascido na época em que Pelotas
dependia legalmente daquela cidade, sendo registrados como Riograndinos.
Tabela 11 - Qualificação dos presos internados – Item Cor
325
Qualidade Branco Preto Pardo Índio Total
Nº. de
presos
10 10 7 2 29
% 34,5 34,5 24,1 6,9 100
Contemplando os dados acima, percebemos que se somarmos os não-
brancos (pretos, pardos e índios) chegamos a 65,6 % do total dos internos, mesmo
sabendo que alguns destes podem ter sido o mesmo indivíduo internado mais de
uma vez.
Tabela 12 - Qualificação dos presos internados – Item Naturalidade
326
Naturalidade
Estado Oriental 3
África 3
Angola 3
Mina 1
Moçambique 1
Estrangeiros
França 2
325
MSCM. Registro de entrada e saída de enfermos da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas. Entre
os anos de 1848 e 1853. Todos estes dados referentes ao Registro de entradas dos enfermos,
possuem uma lacuna entre 1850 e 1851, pois o material pesquisado estava bastante deteriorado.
326
MSCM. Idem. Ibidem.
158
Porto 1
Chile 1
Itália 1
Rio Grande 4 Nacionais /
Desta Província
Desta Província 1
Rio de Janeiro 3
Bahia 2
Pernambuco 1
Brasil 1
Nacionais /
Outra Província
Minas Gerais 1
A quantidade de estrangeiros (16 casos), sendo a metade africanos, reforça o
perfil de Pelotas como foco de atração, como mercado de trabalho e ponto
escravista, principalmente em razão das charqueadas.
O leitor pode estar pensando na seguinte idéia: se poderia haver um
tratamento diferenciado com os presos, porque existiria uma grande quantidade de
pessoas consideradas como “pretas” sendo internadas? Não haveria uma certa
preocupação por parte das autoridades com a sua saúde? Sim, mas talvez a idéia
não fosse relacionada à piedade, pois o carcereiro era obrigado a buscar soluções
para os indivíduos presos. Se este indivíduo não buscasse soluções para as
enfermidades destes, poderia ser responsabilizado, como verificamos nas posturas
da então Vila de Rio Grande, que declarava em seu artigo 33, a responsabilidade do
carcereiro por qualquer omissão em prejuízo da saúde do enfermo
327
. Havia todo um
ritual legal para a fiscalização das mortes relacionadas aos presos, como
observamos na morte de João, caso citado acima. O carcereiro teve que chamar o
327
BPP. CEDOV. NETO, João Simões Lopes. Revista do 1º Centenário de Pelotas. Nº 7 e 8. 1912.
159
subdelegado, que por sua vez levantou o corpo de delito para depois declarar a
morte
328
.
Evidente que estas formas de fiscalização, não deveriam coibir os maus
tratos, e arbítrios dos carcereiros. Em 1847, após cometerem o assassinato de um
patrão do barco onde trabalhavam, e serem acusados do estupro da esposa deste,
os escravos Manoel e Brás são remetidos à cadeia. Não chegaram a ser enviados
ao julgamento perante a Justiça devido a terem falecido naquele local. De acordo
com o Corpo de Delito, haviam morrido pela gravidade dos ferimentos e pelo
tétano
329
. Estes indivíduos devem ter apanhado muito, e provavelmente os seus
ferimentos não devem ter sido suficientemente atendidos pelas autoridades.
No seu artigo 179, a Constituição do Império previa cadeias seguras, limpas e
arejadas
330
. Na prática visualizamos uma realidade bem diferente. Dizia assim um
ofício da Comissão da Câmara Municipal responsável pela fiscalização da Casa
Correcional:
A cadeia carece de tudo quanto a Constituição recomenda; mas não
sendo ainda infelizmente possível dar-se-lhes esse saudável
movimento, chama no entanto a humanidade, que se dê mais
acêo(sic) e espaço as acanhadas prisões, colocando-se tarimbas
331
,
onde repousem as vítimas da justiça, e reparando-se os soalhos de
quase todos os quartos. Com uma meia água onde se destine
quarto para o carcereiro, e outro quarto para cozinha, entende a
comissão, que se consegue algum melhoramento
332
. (grifo nosso)
Como no trecho grifado, a cadeia não era segura, não era limpa, e nem
arejada, conforme os integrantes da comissão. Não havia muito menos camas para
os detentos; estes provavelmente dormiam no chão, num contato extremo com a
328
APERGS. N262/M6A/E36.
329
APERGS Estante 36, Maço 5A, Processo 205.
330
PEDROSO, 2004, op. cit. p. 3.
331
Tarimba seria uma cama simples, estrado onde dormiriam os soldados num quartel (LUFT, 1991,
op. cit. p. 591).
332
AHCMP. Maço 2, envelope 4. Ofício do dia 4 de abril de 1850.
160
umidade, que em Pelotas era e ainda é muito alta. Aparecem em muitos documentos
os relatos de más condições da cadeia.
Repare o leitor que nós abandonamos por algumas vezes nesta narrativa o
nome de Casa Correcional em troca dos nomes, cadeia, ou prisão. O motivo seria o
de que, gradualmente, conforme avançam os anos entre 1830 e 1850, as
autoridades vão deixando de lado o termo Correcional. Como que se assumissem
subjetivamente a situação incoerente daquele espaço com as teorias correcionais
em voga na época. Em ata da Câmara Municipal de 1849
333
, visualizamos uma
reclamação do delegado de polícia em relação às péssimas condições da cadeia
bem como a miséria dos presos. No relatório da Presidência da Província em 1855,
o Barão de Muritiba, ao comentar as situações das obras da cadeia de Rio Grande e
de Porto Alegre, chamava a Casa Correcional em Pelotas de “sofrível”
334
. Uma
imagem pictórica de Wendroth sobre o cotidiano da prisão pelotense parece resumir
a situação daquele espaço, mostrando numa imagem que ele chamou de cotidiana,
ratos e besouros (ilustração 7).
333
BPP. CEDOV. Atas da Câmara Municipal da Vila de São Francisco de Paula. Ofício de 28 de abril
de 1849. N011
334
AHRGS. Relatórios dos Presidentes da Província de 1853-57. A. 7. 03. Barão de Muritiba, na
abertura da Assembléia em 1 de outubro de 1855.
161
Ilustração 7 - Ratos e baratas como cotidiano das celas
335
Acreditamos ter exposto, neste texto, evidências suficientes que comprovam
que os projetos de reinserção dos ditos “criminosos” na sociedade foram marcados
por condições de subumanidade no dia-a-dia da “correção” em que eram submetidos
os presos. Correção que não se manifestou no desejado pelos intelectuais liberais,
em prisões limpas, seguras, através do trabalho dos presos em oficinas e no
aprendizado destes das primeiras letras. A Casa Correcional de Pelotas tinha uma
estrutura péssima, e seus condenados faziam nada mais do que o trabalho dos
galés, ou seja, os trabalhos públicos, servindo de mão-de-obra barata ao estado.
3.6 A prisão segrega: uma invenção chamada crise prisional
O que levou as autoridades imperiais a pensarem em Casas Correcionais,
teria sido uma espécie de crise nas prisões brasileiras, que em sua maioria eram
sujas e inseguras, situação que é afirmada inclusive nas prisões contemporâneas.
Evidente que, como demonstrado neste texto, também acompanharam este
processo as novas idéias de punição surgidas na Europa, que estavam ligadas a um
novo tipo de lógica de sistema, o liberal, dito humanitário, interessados na
disciplinarização dos indivíduos. Segundo Chies, essas chamadas crises do sistema
prisional fariam parte do próprio processo de legitimação do sistema penitenciário,
pois o desejo de almejar “boas prisões” seria uma meta inalcançável
336
. O Sistema
Correcional construiu a imagem do delinqüente; este seria uma espécie de doente,
que teria, através do delito, quebrado a harmonia da sociedade. A sociedade
335
BPP. CEDOV. AP-018. Livro de ilustrações de Herrman Rudolf Wendroth, publicado pelo governo
do Rio Grande do Sul.
336
CHIES, 1997, op. cit. p. 94.
162
portanto não seria culpada pelos crimes, e sim os indivíduos delinqüentes, que
precisavam ser curados nas prisões. A patologia, idéia remetida ao simbolismo do
doente, passaria a imagem de uma sociedade harmoniosa, isenta de conflitos e
contradições, onde não se questionariam, por exemplo, as condições sociais de
miserabilidade da população. Para Chies, este paradigma da prisão, esta eterna
crise e as expectativas que em torno dela se criam, garantem e sustentam as
relações sociais vigentes no sistema capitalista
337
.
Para Foucault, a instituição prisão não fracassou, houve um sucesso na
formação de delinqüentes, tanto que estes seriam um dos motivos para a existência
das prisões até os dias atuais
338
. Se você prende, se você cria cada vez mais
sujeitos suspeitos, sujeitos criminosos, a demanda da prisão não cessa; construir o
delinqüente, construir numa determinada parcela da população o foco da instituição
criminal é garantir a permanência destas instituições. A prisão segrega
__
o que se
quer, na lógica do estado, não é uma ressocialização do apenado, e sim a
legitimação da idéia de harmonia social. Perante este paradigma, não importa ao
estado questionar as grandes mazelas sofridas pela população. É o que aparece no
período estudado, pois as elites, durante o século XIX, em sua grande maioria, não
questionavam as situações de miséria que viviam os escravos, e os pobres livres. As
próprias cadeias passavam a imagem de descaso e indiferença que o Estado tinha
destes indivíduos.
Segundo o Relatório Azul, lançado no ano de 1994, pela Comissão de
Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, o
Brasil tem a segunda maior população carcerária do mundo, sendo que 95% desses
337
CHIES, 1997, op. cit. p. 96.
338
FOUCAULT, 1987, op. cit. p. 230.
163
detentos seriam pessoas extremamente pobres
339
. Um outro dado que demonstra a
crise social, a situação de desigualdade social do país, diz que 72% dos detentos
foram presos por roubo ou furto. Nada diferente se comparado à cidade de Pelotas
no século XIX, onde de acordo com Simão, através de levantamento dos processo
criminais entre os anos de 1832 a 1849, o maior número de registro esteve
relacionado também ao roubo
340
. Segundo Perrot, na França, os roubos cresceriam
de acordo com as demandas sociais, seja pela fome, ou pela sedução das vitrines
que incentivariam a cobiça
341
.
Outro dado, do Relatório Azul, trás a referência de que dois terços dos presos
no país foram considerados negros e mulatos, sendo que 68% do total possuiriam
menos de 25 anos. Quando observamos os registros de enfermos da Santa Casa de
Misericórdia da tabela 10, encontramos 34,5% de brancos, sendo o resto, quase
dois terços dos indivíduos contabilizados como pretos, índios e pardos. Quanto à
idade, também os números se aproximam, como observado na tabela e no gráfico
abaixo, 55,2% dos indivíduos teriam idade entre 21 e 30 anos. Poderíamos
relativizar estes dados da Santa Casa, pois aparecem apenas os detentos
internados, mas estes números podem, sim, dar-nos uma proporção do perfil desses
indivíduos. Notamos uma continuidade nas relações entre prisão e classes sociais
na história do Brasil. Perrot provoca-nos novamente: “Toda a estratégia das classes
dominantes, tal como analisa Foucault, funda-se numa divisão do espaço social,
numa divisão entre classes populares e ilegais fabricadas e geradas, na constituição
do fora-da-lei”
342
.
339
CHIES, 1997, op. cit. p. 12.
340
SIMAO, 2002, op. cit. p. 91.
341
PERROT, 1988, op. cit. p. 251.
342
PERROT. Idem. p. 292.
164
Tabela 13 - Idade dos presos internados
Faixa Etária Nº de presos % do total
19/20
2 6,9
21/30
16 55,2
31/40
8 27,6
41/50
2 6,9
51/60
0 0,0
61/70
1 3,4
Total 29 100
0
1
2
3
4
5
6
7
19 20 25 28 29 30 31 33 38 39 40 45 49 69
idade
Gráfico 4 - Idade dos presos internados
Detentos, seja no século XIX, como na contemporaneidade, são homens
jovens, pobres, estigmatizados pelo ideal de cor.
Utopias correcionais, que tinham como objetivo principal a manutenção da
lógica prisional, a manutenção da instituição prisão. A própria idéia de reforma
aparece como um reforço das funções existenciais deste aparelho.
165
CAPÍTULO 4: PELOTAS ENFORCA: ALGUMAS PROVOCAÇÕES A RESPEITO
DA PENA DE MORTE
Falar sobre pena de morte é sempre difícil, no sentido de que quando
abordamos este assunto, quase sempre nos reportamos a pensar filosoficamente
sobre os valores de uma vida. O problema aparece como questão filosófica, e para
muitos, religiosa. Neste início de conversa, ou melhor, de capítulo, gostaríamos de
ressaltar que o nosso objetivo, ao pesquisar a pena de morte em Pelotas, é observar
a prática desta pena a partir de uma análise político-social. Não nos prenderemos
aos aspectos filosóficos, ou até mesmo religiosos. Tentaremos observar em que
tipos de crimes eram executados este tipo de pena, sobre quem recaía a pena,
assim como analisaremos os rituais do dito cadafalso. Outra questão que não será
abordada pelo menos enquanto objeto central serão os debates sobre as
características jurídicas das execuções; acreditamos que o trabalho de João Luiz
Ribeiro
343
já contemplou esta discussão, pelo menos por enquanto.
Na área do Direito, ocorreram, e ainda ocorrem debates em torno da
legitimidade ou não do uso da morte como pena. Muitos intelectuais da área do
Direito negam-se a aceitar a morte como pena, como se fosse uma
incompatibilidade jurídica
344
. Acreditamos conforme os argumentos de Fragoso
345
,
que a questão da pena de morte é política, sobretudo, cultural. Os argumentos que
são apresentados contra pena de morte estão condicionados pelas realidades, pelos
343
RIBEIRO, 2005, op. cit..
344
Por exemplo, consultar o artigo: REALE, Miguel. Pena de Morte e Mistério. Anais do Colóquio
Internacional Comemorativo do Centenário da Abolição da Pena de Morte em Portugal. Coimbra:
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1967.
345
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Pena de Morte. Anais do Colóquio Internacional Comemorativo do
Centenário da Abolição da Pena de Morte em Portugal. Coimbra: Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, 1967. p. 70.
166
valores culturais e sociais de cada época. É o que observamos nas obras de
Foucault
346
, quando analisa as mudanças das idéias de punir, de acordo com as
novas demandas políticas, a punição se transforma, muitas vezes, como no caso
que verificamos quando da influência do iluminismo, com um discurso carregado da
idéia de humanidade.
É o que acompanhamos na Europa durante o século XIX, quando a pena de
morte passou a ser questionada, pois não estava mais impregnada de positividade.
Esta pena não tinha mais o efeito desejado, o de causar medo, terror, para assim, a
partir do exemplo, desestimular as pessoas ao crime.
O Antigo Regime, anterior à Revolução Francesa, anterior ao estouro dos
ideais iluministas, usava a pena de morte na forma de suplício
__
os indivíduos
condenados eram esquartejados, trucidados em praça pública. Foucault em seu
“Vigiar e Punir” caracterizou os suplícios como um ritual político, carregado de uma
economia de poder:
O suplício tem então uma função jurídico-política. É um cerimonial
para reconstituir a soberania lesada por um instante. Ele a restaura
manifestando-se em todo o seu brilho [...] deve haver nessa liturgia
da pena, uma afirmação enfática do poder e de sua superioridade
intrínseca... se apodera do corpo do condenado para mostrá-lo
marcado, vencido, quebrado
347
.
Os suplícios, ainda de acordo com o autor, não devem ser visualizados como
algo irracional pois existia toda uma técnica pensada no espetáculo. O suplício seria
a arte de reter a vida no sofrimento, um ritual organizado, para a marcação das
vítimas e a manifestação do poder que os pune, no caso do Antigo Regime, o rei.
346
Sobre o aspecto da pena de morte é clássica a referência a Vigiar e Punir (1987) e Microfísica do
Poder (1979), ambas de Michel Foucault.
347
FOUCAULT, 1987, op. cit. p. 42.
167
Como dito nos capítulos 2 e 3, através do advento dos ideais liberais, as
formas de punir passaram a se transformar. Primeiro os argumentos foram
centrados na idéia da humanização das penas, no respeito aos limites da vingança e
da violência. Após, os argumentos tiveram eco nas idéias de correção, na
transformação dos indivíduos através das penas com trabalhos. Mas outros
aspectos provocaram o fim dos suplícios. Um deles foi que aqueles rituais não
causavam mais os efeitos desejados, a população não sentia mais medo, ou ódio do
condenado, passava a sentir pena, se solidarizava com os indivíduos objetos dos
suplícios. Foucault relata que o dia da execução pública, na Europa, passou a ser
um dia de inversão, onde os populares deixavam seus locais de trabalho,
freqüentavam tabernas e enfrentavam a polícia
348
. Cesare Beccaria, como visto
neste trabalho, um dos maiores expoentes das idéias humanistas na área do Direito,
diria no final do século XVIII, que a pena de morte era prejudicial à sociedade “[...]
pelas demonstrações de crueldade que apresenta aos homens”
349
. João Luiz
Ribeiro faz uma interessante escrita ao descrever os quatro principais pontos em
que Beccaria questionava a pena de morte. Assim, Beccaria, discípulo de Rousseau,
contestava:
[...] que o contrato social desse aos outros o direito de matar; quanto
à utilidade da pena de morte, a experiência de vinte séculos de
execuções semanais mostrou que o medo do último suplício jamais
impediu os homens de ofender a sociedade; quanto à
exemplariedade da pena de morte, considerava que a pena capital
não era, para a maioria dos homens, senão um espetáculo, e, para
os outros, o objeto de uma desdenhosa piedade. O espetáculo de
execução capital não provocava o “terror salutar” que pretendia
como exemplo
350
.
348
FOUCAULT, 1987, op. cit. p. 52.
349
BECCARIA, 2002, op. cit. p. 56.
350
RIBEIRO, 2005, op. cit. p. 7.
168
Assim, muitos países passaram a determinar a pena de morte apenas para
crimes graves, como assassinatos, ou sublevações, diminuindo no decorrer do
século XIX as execuções. Muitos países europeus, no final do século XIX, já
manifestavam a extinção definitiva da pena de morte, como Portugal em 1867,
Holanda em 1870, Itália (que iria ao tempo do fascismo fazer a pena retornar),
Noruega, etc.
No Brasil, os reflexos das mudanças dos modos de punir enfrentaram uma
realidade diferente, criando neste país um tipo de adaptação e convívio entre
suplícios e Casas de Correções, liberalismo e escravidão. Os suplícios foram
constantemente usados no Brasil escravista, principalmente em caráter privado, na
forma de castigos de senhores em seus escravos a partir da concepção de que o
respeito, o trabalho sem questionamentos viria através do medo, do exemplo. A
partir da independência, com a contínua formação do Estado Nacional, houve um
deslocamento da responsabilidade da punição aos escravos. A partir do século XIX,
quem devia ser responsável por estes atos era o Estado, o controlador da ordem
social. Yuri Costa alerta que esse deslocamento dos suplícios das casas senhoriais
para as praças públicas, mudava também:
[...] a platéia a ser atingida pelo exemplo e, por conseguinte, o
poder ratificado pelo espetáculo. Se antes era o poder senhorial
afirmado sobre seus escravos, agora havia um outro poder: o do
Estado sobre todos os escravos (e cidadãos)
351
.
Evidente que esta intromissão do estado nas políticas privadas senhoriais
causou muitos conflitos, pois os problemas nas relações entre senhores e escravos
351
COSTA, Yuri Michael Pereira. Entre Civilizados e Bárbaros: transformações nas práticas de
punição ao escravo no Maranhão do século XIX. Extraído::
http://www.uema.br/revista_emfoco/anaisyuri
. p. 6.
169
eram tornados públicos, levando ao juízo o prestígio social dos primeiros. Um
exemplo simples da tomada da responsabilidade por parte do Estado dos castigos
seria o pelourinho, que era o símbolo máximo da autonomia dos municípios
352
.
A legislação vigente durante o Brasil colonial foi as Ordenações Filipinas.
Desde a independência os legisladores do Império já pensavam em um novo Código
de leis, que pudesse corresponder às novas tendências da Justiça, no caso, a
inserção dos ideais liberais, que teria sua efetividade com a criação tanto do Código
Criminal Brasileiro em 1830 quanto do Código de Processo Criminal em 1832. As
Ordenações foram um conjunto de leis portuguesas, que tinham como objetivo,
quando da sua prática aos escravos, puni-los e castigá-los sempre que esses
atentassem contra a ordem e segurança pública, ou seja, principalmente quando
atentassem contra os senhores, seus familiares.
Segundo Norton Naujorks, as Ordenações Filipinas, caracterizavam-se pelo
forte conteúdo religioso de suas disposições, “[...] onde crime e pecado se
confundiam, sendo considerados pecados como crimes muito graves, pois se
opunham à ordem estabelecida por Deus e pelo Rei, que reinava em nome do
primeiro e por Sua vontade”
353
. Com o advento dos Códigos na década de 30 do
século XIX, houve avanços como a retirada de tipos penais como feitiçaria e
sodomia, açoites a homens livres, torturas, mas as penas de morte e as
arbitrariedades contra os escravos continuaram. O Código de Processo Criminal
trouxe inovações como o tribunal do júri e o hábeas corpus, permitindo ao réu
argumentar por sua defesa, bem como buscar recursos. Já o Código Criminal, por
exemplo, limitou o número de açoites em no máximo 50 por dia, mas que na prática
não foi respeitado. Ainda na legislação brasileira, os escravos não poderiam ser
352
MARX, Murilo. Cidade no Brasil: Terra de quem? São Paulo: EDUSP, 1991. p. 73.
353
NAUJORKS, Norton. Aplicação da lei penal na Província de São Pedro. São Leopoldo: UNISINOS,
2001. (Dissertação de Mestrado). P. 39.
170
testemunhas juradas perante aos sete evangelhos como era feito com os homens
livres, ele poderia apenas ser um informante. Segundo Nequete, o Brasil ao efetivar
a feitura dos Códigos, antecipava-se a Portugal, à Espanha e outros países da
América, no tocante as mais avançadas teorias judiciárias da época, embasados na
Escola Criminal Positiva Italiana
354
.
No Livro V das Ordenações encontram-se as regras de direito e processo
penal
355
. Dentro das penas previstas pelo Livro, encontram-se as de prisão simples,
prisão com trabalhos forçados, galés temporárias ou perpétuas, banimento, açoite,
morte simples (sem tortura), morte natural (na forca), morte para sempre (na forca,
ficando o cadáver exposto até se decompor), morte atroz (na forca, o corpo depois
era esquartejado), morte cruel (com tortura), entre outras. Continua Naujorks, “o
Estado usava da ameaça da pena para manter um forte controle social,
disciplinando e reprimindo de forma excessiva condutas sociais que desviavam-se
dos padrões morais impostos pelo Rei e pela Igreja.”
356
.
Chama atenção as diversas formas de penas de morte; talvez a execução
mais popular citada nos livros escolares tenha sido o caso da condenação de morte
atroz a que foi submetido Tiradentes, sendo esquartejado e espalhados os seus
restos corporais pelas estradas de Minas Gerais. Luís Francisco Carvalho Filho
argumenta que foram raras as aplicações da pena de morte a indivíduos
classificados como de qualidade, de prestígio. As penas foram direcionadas aos
pobres, aos escravos, aos populares revoltosos do passado colonial. A forca,
durante o Brasil Colonial, inclusive era tida como uma pena desonrosa, não sendo
aplicada aos ditos fidalgos, aos nobres, que quando condenados
__
raramente o
354
NEQUETE, Lenine. O Poder Judiciário no Brasil a partir da Independência: Império. Porto Alegre:
Sulina, 1973. p. 49.
355
ORDENAÇÕES FILIPINAS. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.
356
NAUJORKS, 2001, op. cit. p. 40.
171
eram
__
perdiam a vida através da degola no patíbulo ou no pelourinho
357
. Como
dito, este tipo de execução, a forca, foi a de maior presença durante a vigência da
pena de morte em nosso país; dizia Daniel Kidder
358
, viajante americano que esteve
nas Províncias do Norte durante o ano de 1840:
No Brasil não se adota o cadafalso de alçapão. A forca ergue-se
sobre três moirões, em forma triangular. A ela se sobe por uma
escada, e, quando a corda já está ajustada ao pescoço do
condenado, este é içado pelo carrasco que, para abreviar a morte,
se pendura nos ombros da vítima
359
.
A partir do Código Criminal foi estabelecida a morte através da forca, com ato
público. Dizia o Código Criminal nos artigos 38 ao 43:
Art. 38. A pena de morte será dada na forca.
Art. 39. Esta pena, depois que se tiver tornado irrevogável a
sentença, será executada no dia seguinte ao da intimação, a qual
nunca se fará na véspera de domingo, dia santo ou festa nacional.
Art. 40. O réo, com o seu vestido ordinario, e preso, será conduzido
pelas ruas mais publicas até a forca, acompanhado do Juiz Criminal
do lugar onde estiver, com o seu Escrivão, e da força militar que se
requisitar. Ao acompanhamento, procederá o Porteiro, lendo em voz
alta a sentença que se fôr executar.
Art. 41. O Juiz Criminal, que acompanhar, presidirá a execução até
que se ultime; e o seu Escrivão passará certidão de todo este acto,
a qual se ajuntará ao processo respectivo.
Art. 42. Os corpos dos enforcados serão entregues a seus parentes
ou amigos, se os pedirem aos Juizes que presidirem à execução;
mas não poderão enterra-los com pompa, sob pena de prisão por
um mez a um anno.
Art. 43. Na mulher prenhe não se executará a pena de morte, nem
mesmo ella será julgada, em caso de a merecer, senão quarenta
dias depois do parto
360
.
357
FILHO, Luís Francisco Carvalho. Impunidade no Brasil – Colônia e Império. Revista Estudos
Avançados 18 (51), 2004. p. 7.
358
Daniel P. Kidder foi um missionário metodista americano que veio ao Brasil entre 1837 e 1840,
fazendo registros das Províncias do Norte do país. Ver: NEQUETE, 1973, op. cit. p. 184.
359
NEQUETE. Idem. p. 181.
360
TINOCO, 2003, op. cit. P. 68-69.
172
O Código Criminal, diferentemente das Ordenações Filipinas, determinava um
tipo específico de morte para todos os indivíduos condenados pela Justiça, fossem
homens livres ou escravos, sem ostentação da marca específica do crime, ou o
estatuto social do criminoso, uma moral nova ao ato de punir.
Com o Código Criminal, assegura Naujorks,
[...] ao menos era dado ao morto o direito a um enterro, embora sem
pompa. Como as famílias quase nunca assistiam as execuções, os
corpos eram recolhidos por autoridades religiosas, e enterrados em
locais fora dos limites de cemitérios religiosos. Era entendimento
dos juízes que enterro sem pompa, referido no artigo 45 do Código
de Processo Criminal, era sem sacramentos e fora dos limites do
campo santo
361
.
Em Pelotas, encontramos em todas as atas pesquisadas referentes ao ritual
dos enforcamentos, o enterro dos condenados em cemitérios públicos pertencentes
à Irmandade do Santíssimo Sacramento. Durante o contexto do Rio de Janeiro do
século XIX, João José Reis argumenta que os escravos buscavam se associar às
Irmandades em busca de um enterro digno, evitando “[...] em serem enterrados nas
necrópoles da Misericórdia, lugares insalubres, onde eram atirados os corpos em
covas rasas”
362
. Dizia assim a ata dos enforcamentos de João, Salvador e Bento,
casos a que daremos ênfase, posteriormente:
Concluída a execução os cadáveres dos enforcados foram em
minha presença sepultados no cemitério público pertencente à
Irmandade do Santíssimo Sacramento desta freguesia
363
.
Concordamos com Etcheverria quando este justifica que a proibição do
enterro com pompa era uma forma de não permitir que a memória do condenado
361
NAUJORKS, 2001, op. cit. p. 74.
362
REIS, 1997, op. cit. p. 132.
363
APERGS. Processo nº 197, Maço 5A, Estante 36. Ata do dia 22 julho de 1847.
173
fosse mantida. Como disse o autor: “Ao rei, a pompa; ao condenado, o degredo da
memória coletiva!”
364
. Interessante também especular as diferentes formas dos
indivíduos daquela época compreender a morte e os rituais de enterro. Ainda
segundo João Reis, a morte no século XIX era vista como uma passagem para um
outro mundo, e o morto precisava ter uma boa viagem. Esta boa viagem só se daria
se o indivíduo tivesse um bom ritual de sepultamento com a presença de grande
número de pessoas, rezas, choro. Muitos, inclusive ex-escravos, deixavam
testamentos com todas as indicações e verbas para o funeral
365
. Como mencionado,
não ter um bom funeral era efetuar uma passagem conturbada ao outro mundo, por
isso muitas pessoas pagavam suas dívidas via testamento pensando no acerto de
contas do além. Então podemos pensar como era difícil tanto para o indivíduo como
para as famílias do condenado enfrentarem o enterro sem pompas; talvez esta seria
a passagem conturbada a qual se referia João José Reis
366
. Impedir os enterros
com pompa dos condenados ao mesmo tempo anulava um momento que poderia
ser usado para a contestação da ordem vigente, e também funcionava como uma
sobrepena, já que espoliava os enforcados da tão desejada boa morte.
O nosso objeto de estudo neste capítulo serão as execuções após a criação
do Código Criminal, que irá limitar a execução capital à morte simples na forca, sem
esquartejamento, ou exposição do corpo do condenado. Enquanto as Ordenações
Filipinas previam a pena capital em mais de 70 casos, o Código Imperial limitava a
364
ETCHEVERRIA, M. Rua da Praia ou Rua da Morte? A pena de morte e a sua representação na
Porto Alegre do século XIX (1818-1857). Porto Alegre: UFRGS, 2000. (Dissertação de mestrado). p.
31.
365
REIS, 1997, op. cit. p. 102.
366
Para outras discussões sobre o significado da morte no Brasil, ver: DA MATTA, Roberto. A morte
nas sociedades relacionais: reflexões a partir do caso brasileiro. In: A casa e a rua: espaço,
cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
174
pena de morte em três infrações penais, eram elas: insurreição de escravos,
homicídio agravado e latrocínio
367
.
4.1 - A JUNTA DE JUSTIÇA: o Judiciário Rio-grandense antes do Código
Criminal
Para podermos entender o funcionamento da forca, em Pelotas, devemos
antes pensar, mesmo que rapidamente, como funcionavam as estruturas judiciárias
no Brasil e no Rio Grande do Sul. Quando do início da ocupação portuguesa neste
estado, existia uma Corte de Recursos, chamada Relação do Brasil, que se situava
na Bahia, respondendo por toda a jurisdição colonial. Mas a distância dos territórios
impossibilitou fortemente os encaminhamentos dos recursos do sul. Assim, a
Relação do Brasil foi dividida em Relação da Bahia, e Relação do Rio de Janeiro,
instalada em 15 de julho de 1752. Esta última ocupou a responsabilidade das
jurisdições das capitanias do Sul, sendo elevada à Casa de Suplicação do Brasil em
1808.
Durante o período colonial, os requerentes deveriam levar suas reivindicações
ao Ouvidor da Comarca, que primeiramente teve sede em Paranaguá, e depois
passou para Laguna, até 1812, quando Porto Alegre assumiu esta responsabilidade.
Franco comenta as dificuldades relacionadas as distâncias:
Sucedia, então, desde o crepúsculo do século XVIII até os albores
do século XIX, que os réus de crimes de maior gravidade devessem
ser conduzidos até Laguna, onde eram julgados em primeira
instância pela Ouvidoria, e eventualmente transportados até o Rio
de Janeiro para enfrentar o julgamento da Relação. Pode-se bem
367
FRAGOSO, 1967, op. cit. p. 73.
175
imaginar a pobre eficácia dessa justiça criminal exercida à longa
distância dos locais dos crimes
368
.
Em 1816, foi criada a Junta Criminal de Porto Alegre, que a partir da
autorização da Coroa Portuguesa, institui-se como Jurisdição Criminal de toda a
Província. Esta passou a trabalhar efetivamente em 1818, e funcionou até “[...] 1833,
apesar de sua extinção ter sido determinada pela Lei Regencial, de 29 de novembro
de 1832. A lei tratava do Código do Processo Criminal de Primeira Instância e no
seu artigo n°8, extinguia as ouvidorias de comarca, juízes de fora, juízes ordinários e
jurisdição criminal de qualquer autoridade”
369
.
Saint-Hilaire, viajante francês, quando de sua passagem pelo Rio Grande do
Sul, registrou em seu diário que a Junta de Justiça passou muitos anos sem se
reunir, e que quando se reuniu, foi por pouco tempo. Fato este questionado pela
pesquisa de Marcelo da Silva Etcheverria, que tendo acesso aos processos,
verificou a constância desses volumes, nem sempre conclusos em
enforcamentos
370
. O interessante é que Saint-Hilaire referia-se aos primeiros anos
da Junta, período de sua viagem no estado (1820/21) e Etcheverria estende sua
análise argumentativa até o ano de 1833. Este autor tem como referência para sua
análise a pesquisa de Solimar Lima já citado aqui.
Durante este período de existência da Junta de Justiça, Lima, ao fazer uma
relação de escravos julgados por esta no Rio Grande do Sul entre os anos de 1818
a 1833, não encontrou nenhum escravo de Pelotas sendo levado à forca
371
; quanto
a indivíduos livres não encontramos informações. Lembramos que muitos processos
podem não ter chegado às mãos do pesquisador, assim como muitos escravos
368
FRANCO, Sérgio da Costa. A Junta da Justiça, primeiro tribunal rio-grandense. In: Caderno de
Literatura. POA: AJURIS, 2000. p.18.
369
LIMA, 1997, op. cit. p. 140.
370
ETCHEVERRIA, 2000, op. cit.
371
LIMA, 1997, op. cit.
176
podem ter sofrido “penas de morte” em propriedades de senhores no seu caráter
privado. Como afirmado anteriormente, foi a partir da criação do Código Criminal e
Código de Processo Criminal que o Estado reivindicou com mais força o papel de
mediador nos casos de crimes e julgamentos destes, fossem de escravos ou livres.
A então Vila de São Francisco de Paula, a partir de 1833, começou a
depender da Comarca de Rio Grande, uma das cinco criadas na Província. Um dos
motivos apontados para o encerramento da Junta Criminal seria a dependência no
que se refere à presença de alguns integrantes para comporem o grupo responsável
para o encaminhamento dos julgamentos dos réus. Especificamente a dos juízes de
Fora
372
de Rio Grande e de Rio Pardo. Esses Juízes de Fora, presentes nas Vilas,
eram bacharéis em Direito e também nomeados pelo Rei. As distâncias desses
lugares para Porto Alegre eram longas, fazendo com que esses juízes retirassem-se
constantemente de suas tarefas locais. Acabava que muitos deles compareciam
apenas aos julgamentos de suas jurisdições.
4.2 Na Princesa do Sul, a forca tinha cor, era negra!
João Simões Lopes Neto
373
é tido para alguns nos dias atuais como um dos
mais destacados escritores pelotenses. As maiores inspirações para seus textos
literários eram as histórias dos peões de estâncias, das mulheres negras, amas-de-
leite, enfim, as histórias populares. Mas além de dedicar-se aos textos literários, o
escritor também se dedicou à história. No ano de 1905, publicava no volume II dos
Anais da Biblioteca Pública um artigo intitulado “A Cidade de Pelotas –
372
Referente aos Juízes de fora da capital da Província.
373
João Simões Lopes Neto nasceu em 1865, falecendo em 1916. Escritor, autor de peças teatrais,
foi conselheiro municipal, capitão da Guarda Nacional, tendo como algumas das suas principais obras
o livro “Lendas do Sul”, e “Contos Gauchescos”.
177
apontamentos para alguma monografia para o seu centenário”
374
. Anos mais tarde,
em outubro de 1911 publicaria novamente estes escritos em forma de fascículos na
chamada Revista Centenária. Foram nestes textos históricos sobre Pelotas que Neto
escreveu sobre o funcionamento da pena de morte na cidade, que haveria de ser
reproduzido também no Almanak Litterario e Estatístico do Rio Grande do Sul.
Em Pelotas, João Simões Lopes Neto, na Revista do 1° Centenário de
Pelotas, registrou quatro casos de enforcamentos: 1834, 1847, 1850, e 1857
375
. Esta
era nossa principal pista referente aos casos de enforcamentos. Insatisfeitos,
atiramo-nos aos “papéis velhos”, às fontes, para verificar estas afirmações.
Deste modo, após pesquisar exaustivamente os processos criminais entre as
décadas de trinta até a de setenta do século XIX, assim como outras
documentações relativas à Câmara Municipal, e a Santa Casa de Misericórdia,
encontramos os seguintes resultados. Foram executados na forca, constando as
atas documentais:
João Pernambuco, Salvador e Bento em 22 de julho de 1847;
André Mina em 1º de julho de 1849;
Belizário em 10 de maio de 1850.
Temos outros dois casos que não encontramos nem seus processos crimes
nem as atas de enforcamento, apenas localizamos ofícios das autoridades judiciais
reivindicando à Câmara Municipal a armação da forca. Foram eles:
Manoel em 1834;
374
DINIZ. Carlos Francisco. João Simões Lopes Neto, uma biografia. Porto Alegre: AGE/UCPEL,
2003. p. 141.
375
BPP. NETTO, João Simões Lopes. Revista do 1° Centenário de Pelotas. n
o
7 e 8, 1912.
178
Ignácio em 1857.
Ainda encontramos um indivíduo condenado à forca, mas não encontramos
nenhum vestígio que indicasse que a execução tenha sido levada a prática, que é o
caso de Mariano, integrante do grupo quilombola de Manuel Padeiro. E outro caso,
mas que é referente a um condenado à forca que teve sua pena comutada, trocada,
para galés perpétuas
__
o caso de João em 1855.
Estes dados podem ser vistos como incompletos, pois, infelizmente, só
pudemos pesquisar no âmbito da documentação municipal e estadual. Não tivemos
oportunidade de pesquisar no Arquivo Nacional localizado no Rio de Janeiro,
guardião da documentação relativa ao Ministério da Justiça, devido à falta de
recursos financeiros. Esta pesquisa poderia nos esclarecer algumas dúvidas, como
estes casos de 1834 e 1857, que não encontramos informações, assim como
poderiam aumentar o número de enforcamentos encontrados em Pelotas.
Existe uma característica que marca todas estas informações acima
relatadas. Todos os indivíduos condenados eram escravos. A forca, na cidade de
Pelotas, tinha cor, era negra! Em Porto Alegre, Sérgio da Costa Franco encontrou,
entre os anos de 1821 e 1857, vinte e dois sentenciados à forca, sendo que
dezesseis eram escravos
376
.
De fato, durante o Brasil Império, houve um direcionamento, ou uma
facilidade maior em condenar à morte os escravos ditos criminosos. Isto aconteceu a
partir da promulgação da lei de 10 de junho de 1835, que dizia em seu primeiro
artigo:
376
FRANCO, Sérgio da Costa. Os enforcados em Porto Alegre: execuções da pena capital entre 1821
e 1857. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Porto A legre: IHGRGS,
2002. P. 38.
179
Serão punidos com a pena de morte os escravos, ou escravas, que
matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem
gravemente, ou fizerem qualquer outra grave ofensa física a seu
senhor, sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua
companhia morarem, ao administrador, feitor e às mulheres que com
eles viverem
377
.
Esta lei teve como motivos a repressão tanto ao Levante dos Malês na Bahia
em 1835, como também à insurreição dos escravos de Carrancas, distrito de São
João del Rei (MG), que chacinaram a família do Deputado Gabriel Junqueira,
mostrando, assim, o receio e medo das elites frente à hipótese de uma insurreição
escrava. No caso de Carrancas houve três dias seguidos de enforcamentos, sendo
doze escravos levados ao patíbulo. A partir desta legislação específica, os escravos
poderiam ser condenados à morte apenas com dois terços dos votos do júri. Antes,
com o Código do Processo Criminal Brasileiro (1832) legislando este tipo de pena,
era necessária a unanimidade de votos. A mesma lei previa que os indivíduos não
podiam apelar para novo julgamento; o réu podia, sim, pedir o Recurso de Graça, ou
seja, o perdão por parte do Imperador, questão que a partir da década de 50 passou
a ser prática comum os aceites. Ainda sobre a lei, ela não determinava graus de
culpa, nem de pena, bastava apenas que o júri considerasse o réu culpado para este
ser condenado à morte. Segundo Goulart, a simples confissão do réu não se
configurava prova bastante para a decretação da pena, era de suma importância a
declaração da existência de outra prova além da confissão
378
.
A lei de 1835 foi vista por João Luiz Ribeiro como
[...] uma lei cujo objetivo era enforcar escravos a miúdo e
rapidamente, “sem delongas nem chicanas”. [...] Horrenda
exceptione (como diriam as próprias autoridades encarregadas de
aplicá-la) que negava os princípios liberais da Constituição e dos
377
RIBEIRO, 2005, op. cit. p. 66.
378
GOULART, José. Da palmatória ao patíbulo. Rio de Janeiro: Conquista, 1971. p. 146.
180
códigos criminal e do processo criminal. Lei bárbara, lei nefanda
(como seus críticos tardios diriam) que bem ilustra as contradições e
os paradoxos do liberalismo em uma sociedade escravista
379
.
Um liberalismo que serviu muitas vezes para reforçar o sistema escravista,
pois este sistema dependente cultural e politicamente da Europa adaptou suas
idéias e reforçou os antagonismos entre as classes aqui no Brasil. Por exemplo, em
relação à pena de morte, antes do Código Criminal Brasileiro, a legislação que regia
o Brasil colônia era a das Ordenações Filipinas, que determinava vários tipos de
morte capital. Com o Código Criminal, a pena passou a ser uma só para todos os
homens, a forca. Ideal de igualdade entre os indivíduos, mas que se “esquecia” de
que, quando os jurados fossem decidir as penas aos escravos, estes mesmos
jurados eram homens brancos e livres, diferentes socialmente dos escravos para os
julgarem, havendo uma desigualdade perante à hierarquia social. Assim, aplicava-se
uma lei a todos, que se dizia igual a todos os homens, mas a própria Justiça só
considerava o escravo como homem, quando de seu crime, na possibilidade de
condená-lo. Então o liberalismo reforçava os antagonismos de classe, como diz
Ribeiro citando Karl Marx, “Um direito fundado sob a desigualdade, como todo
direito”
380
. Usavam-se as idéias liberais, fingindo igualdade num país que tinha
como base de sua existência a escravidão, instituição que prima pela desigualdade
em sua essência.
4.3 Recursos de Graça, escravo João e o escritor Victor Hugo
379
RIBEIRO, 2005, op. cit. p. 5.
380
RIBEIRO. Idem. P. 10.
181
A pena de morte só foi abolida da legislação brasileira na República, mas,
desde a década de 1850, D. Pedro II já concedia Graça aos condenados,
transformando suas penas em penas de galés perpétuas (trabalho forçado). Mas foi
só no ano de 1876 que se viu a última execução de uma sentença capital pela
Justiça civil
381
. Esta questão sobre a possibilidade da última execução da pena
capital no Brasil tem gerado grandes erros. Muitos pesquisadores, na verdade,
quase todos aqueles que tenham escrito sobre a pena de morte, têm afirmado que o
último caso de morte capital no Brasil teria sido o do fazendeiro Manuel Motta
Coqueiro, em 1855. Este foi um rico fazendeiro do norte da Província do Rio de
Janeiro que teria sido enforcado injustamente, a partir das denúncias de adversários
políticos, sob a acusação de mandar matar uma família de oito colonos que viviam
dentro de uma de suas propriedades
382
. Afirmação desfeita a partir dos estudos
aprofundados de João Luiz Ribeiro, que como dito acima, determinou o último
enforcamento no ano de 1876.
O fato é que, realmente, D. Pedro II, após esta suposta condenação injusta,
passou a referendar muitos pedidos de Graças aos condenados. Mesmo nos crimes
mais graves, o Imperador passava a moderar a maioria das penas. Assim, a partir de
1855, a pena de morte passou a ser em muitos casos substituída pela de galés
perpétuas, onde o condenado, preso às correntes, era colocado a fazer trabalhos
em obras públicas, virando uma propriedade do Estado
383
.
O que assegurou o direito aos Recursos, por parte dos condenados, foi a lei
de 11 de setembro de 1826. Em seu texto dizia que depois de intimada a sentença
de morte ao réu, deveria este em oito dias dirigir a petição de Graça ao Poder
381
RIBEIRO, 2005, op. cit. p. 298.
382
Sobre este caso é interessante consultar o romance histórico de: MARCHI, Carlos. Fera de
Macabu: A História e o Romance de um condenado a morte. Rio de Janeiro: Record, 1999.
383
No capítulo III já comentamos sobre os galés e os debates levantados pelos senhores e juristas a
cerca da utilidade deste tipo de pena.
182
Moderador, se este não o fizesse, o juiz de Direito que houvesse presidido o
julgamento deveria fazê-lo. Só após a decisão do Poder Moderador que a execução
poderia ser feita
384
.
Em Pelotas, um exemplo de Recurso de Graça aceito pelo Imperador para um
condenado à morte foi o caso de João. João era escravo do Comendador
Boaventura Rodrigues Barcellos, que no dia 22 de junho de 1853 mandava um
documento dando parte ao subdelegado de polícia do distrito sobre o ocorrido. Dizia
assim:
Dou parte a Vª.Sª. que foi morto esta noite das nove as dez horas
meu capataz Jose Pinto Novo, por um tiro disparado de uma casa
de meu estabelecimento da chácara, que serve de carpintaria, de
onde correra imediatamente um indivíduo que se suspeita ser um
meu escravo fugido o mulato João, sendo ao menos esta a opinião
de Gaspar Treco que se achava presente, porque acompanhava
aquele meu capataz quando se deu o desastre. O mesmo mulato foi
visto pouco depois deste sucesso por vários escravos, e pela parda
forra Theodora, trepado no muro que serve de tapagem do pátio. O
que levo ao conhecimento de Vª.Sª. os fins conseguintes
385
.
Para o Comendador, realmente a morte do capataz pode ter sido um
desastre, como suas próprias palavras relatam, pois o capataz era descrito pelos
depoimentos como seu feitor. A morte de um feitor desestabilizava toda a relação
escravista da fazenda, da charqueada, ou no caso aqui, da chácara. O novo feitor
teria que refazer, evidente que com a participação dos escravos, as relações de
mando, de trabalho. Não estamos aqui relatando que havia uma negociação
democrática, no sentido que conhecemos hoje, entre escravos e feitores, ou
senhores. Contudo, havia, sim, expectativas a serem supridas pelos feitores aos
seus escravos
__
a violência, o uso de castigos por si só não garantiam a produção e
384
FRANCO, 2002, op. cit. p.26.
385
APERGS. Nº 197/5A/E36.
183
a administração de uma propriedade escravista, no caso aqui, uma chácara. O novo
feitor teria que construir o seu respeito, teria que reconstruir as formas de
organização do trabalho, e enquanto isto se sucedia, o senhor poderia ficar a sofrer
os prejuízos, tanto econômicos e financeiros quanto à produção, assim como, no
caso de conflitos por desentendimentos entre escravos e feitor pelo motivo das
novas relações, a morte desses.
Gaspar Treco, um negociante espanhol, disse em seu interrogatório que na
noite do ocorrido, estando junto da casa do capataz morto, este o convidou para
irem à venda de Antonio de Sousa Coimbra. No caminho escutaram ruídos em
direção à carpintaria da casa. O capataz José, ao dirigir-se ao prédio para verificar o
barulho, recebeu um tiro no lado direito do peito. Gaspar Treco disse ter visto um
vulto correr, parecido com o do escravo João.
Outra pessoa citada pela Parte do Comendador e que acabou sendo uma das
principais testemunhas do caso, foi Theodora Ignacia da Silva, descrita como parda
forra, pernambucana de cinqüenta anos. Theodora disse que pelas nove, dez horas
da noite, ao entrar no quarto do capataz José para recolher os pratos da ceia que
havia servido para este e Gaspar, os dois já estavam de saída. Theodora perguntou
aonde iam, “[...] ele lhe disse que ia receber o dinheiro dos pretos quitandeiros da
mesma chácara”. Interessante este indício que comprova o uso de escravos de
ganho por parte de seus senhores, e o momento relatado é o da cobrança do jornal
aos escravos. Se estes quitandeiros não trouxessem a quantia mínima delimitada
pelo senhor, podiam sofrer castigos, represálias, assim como podiam exceder as
vendas e ficar com o pecúlio, o lucro acima do valor senhorial, podendo adquirir
mercadorias que faltassem em seu cotidiano, como outro tipo de alimentação, até
mesmo quem sabe depois de muito tempo, a alforria comprada. Após a saída dos
184
dois homens, Theodora apenas ouviu o tiro. Enquanto esperava Gaspar Treco dar
queixa ao Comendador “eis que vê em cima da casa estar bolindo nas telhas, e sai
ela Theodora para ver que rumor era aquele, conheceu da cintura para cima o dito
mulato João”, este ao vê-la chamar os outros escravos da chácara para agarrá-lo,
fugiu.
Segundo o processo, João teria fugido para Porto Alegre onde foi capturado
por ordem do filho do Comendador, o Dr. Israel Rodrigues Barcellos três meses
depois do crime. No ofício em que a Secretaria de Polícia remete ao delegado de
Pelotas, consta que João, ao ser interrogado e ter declarado que estava fugido pelo
motivo do crime, Israel disse ter ficado surpreso, já que não havia recebido nenhuma
carta da família informando o acontecido. Em setembro de 1853 João era remetido a
Pelotas para ser julgado apenas dois anos depois, em 1855, ficando todo este
tempo na cadeia de Porto Alegre, sobrevivendo às más condições daquele lugar.
E é no julgamento ocorrido no dia 24 de março de 1855 que aparecem
informações que deixam a história de João de ponta cabeça. O réu disse chamar-se
João Damacena, de dezoito anos, escravo de Boaventura Rodrigues Barcellos, filho
natural de Jacintho Francisco e da crioula Francisca, escrava de Dona Josefa
Miranda, tendo como profissão os ofícios de boleeiro e sapateiro. Ao ser
questionado sobre a autoria do assassinato do capataz, João acusou um homem
descrito como crioulo Julio, que o teria aconselhado a assumir o crime para assim
ficar livre do senhor e ir sentar praça no exército.
Seguem os questionamentos do Juiz:
Juiz: Qual a razão por que se atribui esta morte?
Réu: É por causa duma rapariga chamada Theodora.
Juiz: Como é que concorreu essa rapariga para se te
atribuir essa morte?
185
Réu: A rapariga andava constantemente intrigando a Lúcio
com o capataz, eu por duas vezes andei a espreita de que não
houvesse algum desaguisado
386
entre ambos, adverti mesmo ao
capataz a quem por vezes acordei estando deitado de baixo das
laranjeiras para que estivesse acautelado, aconteceu porem ser
morto o mesmo capataz e eu andar fugido, e por isso se atribuiu
ser eu o autor da morte digo e estar eu em uma função em que
Lúcio me deixou; e depois me reduziu para o acompanhar para
fora, indo até a Estância do Coronel Silva Tavares, donde me
deixou e por isso ser me atribuído ser eu o autor da morte.
Juiz: Tu fostes em companhia de Lucio, até a Estância do
Coronel Silva Tavares, e por que razão fostes dali só para Porto
Alegre, e não voltasses para aqui?
Réu: Por conselhos de Lucio, como já referi e ele foi quem
me ensinou o caminho para aquela cidade
387
.
João trazia uma história ao tribunal embasada apenas em seus relatos, não
teve testemunhas. Infelizmente não sabemos qual foi o argumento da defesa do réu,
já que nada foi transcrito no processo. O fato é que em outro momento do
interrogatório, o juiz questionou o escravo do porquê de não ter declarado há mais
tempo que Lucio havia feito a morte. João respondeu que havia feito a declaração
para o delegado Domingos Pinto França Mascarenhas. Durante os documentos do
processo, nada consta sobre a declaração de João. O delegado parece não ter dado
nenhum tipo de importância para a história do escravo, fato este que poderia lhe
custar a vida, já que no oitavo quesito a ser respondido pelo Júri, este, por
unanimidade, declarou que não haviam circunstâncias atenuantes a favor do réu, ou
seja, a história contada sobre o crioulo Lucio não havia sido levada em conta pelos
jurados, assim como, claro, também pelo delegado. João, de pé no tribunal, com
apenas dezoito anos, ouvia no dia 24 de março de 1855 sua condenação à morte
através da lei de 10 de junho de 1835.
Em outubro de 1856, quase um ano e meio depois, o primeiro suplente de
Juiz Municipal, Vicente José da Maia acusava o recebimento de um ofício do
386
Desaguisado: “Injúria, ação desarrazoada, malfeito, fora de razão” (SILVA: 1813, p. 545).
387
APERGS. Nº 197/5A/E36.
186
Império, que comutava a pena de morte imposta a João para a pena de galés
perpétuas
388
. João deixava de ser um escravo de Boaventura Rodrigues Barcellos
para ser um tipo de “escravo” do estado, um condenado a prestar por toda a vida
serviços públicos ao Império.
Mas as concessões de Graça por parte do Imperador não existiram apenas
para os indivíduos condenados à pena de morte. Temos um exemplo de perdão do
Imperador em 1887, já fora do período dos enforcamentos. Concedido à escrava
Maria que havia sido condenada à prisão perpétua em 1854, sob a acusação de
envenenamento dos senhores. O perdão foi concedido pelo motivo do dia da morte
de Cristo
389
. Para o Imperador, o poder da Graça era muito funcional, pois afirmava
ele o caráter patriarcal do Império, o pai que perdoava seus filhos, ao protetor da
nação cabia os perdões de seus protegidos.
Para Jurandir Malerba, este seria o motivo para a continuação da pena de
morte durante todo o Império, reforçar o caráter patriarcal da sociedade e do Estado,
como uma garantia da sobrevivência do poder do rei
390
. Poderia, sim, D. Pedro II,
dotado de idéias humanistas, ter tido um papel singular no fim gradativo da pena
391
,
mas lembramos que para o sistema escravista a repressão aos escravos rebeldes,
que poderiam ter assassinado seus senhores, era essencial, uma tentativa de
sustento da própria lógica da escravidão. Para os senhores, ter dentro da sociedade
os ditos escravos assassinos “livres”, mesmo que essa “liberdade” fosse a de galés,
era de certa forma um incentivo aos outros escravos para que a resistência
continuasse, e o sistema ruísse.
388
AHRGS. Fundo Justiça – Juízo Municipal – Pelotas – Ofício do dia 14 de outubro de 1856.
389
APERGS. Processo nº440. Maço 10, Estante 35.
390
MALERBA, 1994, op. cit. p. 113.
391
Interessantíssimo que no livro “A Fera de Macabú”, Carlos Marchi reproduz a visita de D. Pedro II a
um dos seus maiores ídolos da literatura, nada menos que o militante contra a pena de morte, Victor
Hugo. Neste encontro, teria D. Pedro revelado ao escritor sua posição contrária a pena, mas como
esta era embasada no Código Criminal que não podia ser burlado, este comutava todas as penas a
galés. Ver: MARCHI, 1999, op. cit. p. 319-320.
187
Na Biblioteca Pública Pelotense encontra-se no “Almanak Literario do Rio
Grande do Sul”, escrito em 1903, ou seja, pouco tempo havia passado do fim do
Império, um artigo de Alfredo Ferreira Rodrigues, intitulado “Homens e factos do
passado”. Este escrito traz um debate interessante sobre o uso da imagem do
cancelamento da pena de morte pelo Imperador e que pode confirmar a idéia de que
para os escravos a pena continuou durante a segunda metade do século XIX:
Mais de uma vez tenho ouvido afirmar que o Imperador D. Pedro II,
depois da maioridade, nunca consentiu na execução da pena de
morte, comutando-a sempre na de galés perpétuas. Afirmam outros
que esta resolução do monarca data do reconhecimento da
inocência de Motta Coqueiro, executado no Rio de Janeiro em 1855.
Não sei a época em que foi suspensa a aplicação da pena capital.
Mas a primeira versão não é verdadeira. Muitas foram as execuções
no Brasil durante o 2° reinado e posso apresentar relação de
algumas que se deram no Rio Grande do Sul, convindo notar que,
na grande maioria, foram passiveis da pena ultima míseros
escravos, que haviam atentado contra a vida de seus senhores.
Para eles não conhecia perdão a magnanimidade imperial. De um
deles encontrei notícia do recurso de Graça, que não foi obtida. [...]
o Imperador nos primeiros 16 anos de seu reinado autônomo, não
se condoia da condição do escravo. É certo que mais tarde procurou
resgatar essa falta de sentimento humano, atirando-se abertamente
na corrente abolicionista. Não lhe tire esta glória, mas também não
lhe queira emprestar uma aureola que não mereceu
392
.
Já no início do século XX, escritores contestavam a benignidade do monarca,
contrariando o imaginário construído pela condenação de Motta Coqueiro em 1855,
que continua sendo afirmado.
Conveniente seria indagarmos a quem se dirigia o escrito de Ferreira
Rodrigues. Porque nestes primeiros anos de governo republicano – passado pouco
tempo do fim da Guerra Federalista – Rodrigues procurava deslustrar D. Pedro II?
Certamente se o mito era atacado era porque ele existia com força. Quem sabe o
392
BPP. RODRIGUES, Alfredo. Almanak Literario do Rio Grande do Sul , 1903. p. 219.
188
republicano Ferreira Rodrigues não contrapunha sua argumentação ao carisma que
a família real (deposta) tinha junto aos setores populares, principalmente negros.
393
O fim gradativo da pena foi reivindicado pelos liberais, que durante a segunda
metade do século XIX, buscavam o investimento noutras formas de punição de
caráter burguês, como as Casas de Correção, a educação moral. Alguns juristas,
como Manuel Januário Bezerra Montenegro, justificavam na década de 60 a
inutilidade da pena capital aos escravos, pois estes acreditariam na vida após a
morte, na passagem da alma para um mundo diferente, melhor que o vivido
394
. Os
abolicionistas tiveram grande papel nesta campanha também, pois uniam as idéias
de humanização do sujeito escravo à humanização das penas. Ambas pontuadas na
lógica, segundo José Murilo de Carvalho, dos debates da razão nacional, embasada
nos ideais iluministas. A escravidão apresentava-se como incompatível a indústria e
ao progresso técnico, responsáveis pela construção da nação que surgia durante o
século XIX
395
,
Um escritor que teve grande participação na militância contra a pena de morte
foi Victor Hugo
396
. Sua obra fundamental, na verdade um panfleto político, foi a
história de “O último condenado à morte” lançado no ano de 1832 na França.
Durante vinte anos, até a abolição da pena naquele país, no início da década de 50,
Victor Hugo dedicou-se à militância contra a pena. Esta militância teve ecos em todo
o mundo, como no Brasil, inclusive em Pelotas.
393
CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados. São Paulo, Cia. das Letras, 1987.
394
MALERBA, 1994, op. cit. p. 37.
395
CARVALHO, José Murilo de. Escravidão e Razão Nacional. In: dados – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 3, 1988, p. 297.
396
Victor Hugo nasceu em Besançon no dia 26 de fevereiro de 1802 e morreu em Parias no dia 22 de
maio de 1885. Foi de putado Constituinte no ano de 1848 na França, assim como deputado da
Assembléia Nacional no início da década de 70. Sua obra é vasta, destacando-se Os Miseráveis
(1862), Os Trabalhadores do mar (1866), entre outras. Sua veneração pelo povo francês foi tanta,
respaldada pela sua vida política ativa, que seu velório foi feito debaixo do Arco do Triunfo, onde a
noite inteira fizeram homenagens poetas e milhares de moradores de Paris. Ver: HUGO, 1997, op. cit.
p. 9-10.
189
No dia 2 de maio de 1854, o jornal O Pelotense publicava em três páginas um
artigo de Victor Hugo intitulado “Abolição da Pena de Morte”
397
. No dia 9 do mesmo
mês, o redator justificava ter recebido em meio aos jornais remetidos da corte, uma
carta do homeopata português João Vicente Martins datada de 8 de abril do mesmo
ano. O redator, dando eco a campanha abolicionista da pena, justificava a
publicação no jornal da carta do homeopata para “[...] provar as simpatias que vai
adquirindo a abolição da pena de morte, pena tão horrida(sic) e atroz, quanto anti-
religiosa, e anti-civilizadora”. O homeopata através de pagamento pedia a
publicação do artigo do escritor até o dia da páscoa, pois o assunto seria digno
daqueles dias “[...] em que a Igreja comemora a paixão e a morte de Jesus Cristo”.
Interessante pensar que o redator possa ter-se dedicado de corpo e alma à
campanha abolicionista, pois já havia passado a Páscoa, e talvez possa ter
publicado os artigos do escritor por conta própria. O redator, como argumentado em
outros capítulos, demonstrava um espírito liberal, condenando os abusos da
escravidão, assim como neste momento aqui citado, condenava a instituição da
pena de morte. Ainda nesta carta do homeopata constam argumentos importantes
para nosso trabalho; dizia:
E que santa inveja haveríamos de ter nós de Victor Hugo, se ele
visse terem suas palavras tão feliz êxito, principalmente aqui, no
Brasil, onde para o escravo, sem educação religiosa, é a forca mais
um incentivo ao crime do que um meio de repressão, e onde esse
tão bárbaro quão detestável suplício tem já feito mártires, como
notoriamente fez de um preto cego que a justiça matou inocente! Em
boa hora venha a Sr. Redator, essa publicação do nobre exilado à
terra de Santa Cruz trazer a abolição de uma pena que, inútil,
ineficaz, absurda e bárbara, constitui assassinos todos os que
condenam a ela alguém
398
.
397
BRG. Jornal O Pelotense de 07/01/1854 à 15/12/1854. Nº 3045, Estante 62, Prateleira 2. Dia 2 de
maio de 1854.
398
BRG. Jornal O Pelotense de 07/01/1854 à 15/12/1854. Nº 3045, Estante 62, Prateleira 2. Dia 9 de
maio de 1854.
190
Victor Hugo estava exilado pelo governo de Luís Bonaparte em Jersey na
Inglaterra, país onde também o escritor passou a denunciar a pena capital lá
existente. Fato também noticiado pelo jornal O Pelotense, que publicou no dia 30 de
maio de 1854 outro texto do escritor. Este texto, endereçado a Lord Palmerston,
secretário de Estado do Interior da Inglaterra, protestava contra as execuções
efetuadas na cidade onde Hugo vivia exilado, Jersey, assim como Guernesey, onde
acabou residindo depois
399
.
Voltando ao texto do homeopata português descrito acima, este chamava a
atenção ao fato de que a forca seria mais um incentivo ao crime do que uma
repressão, e colocava um dos motivos no fato de que a população mais se
solidarizava com o executado do que com a execução. Este fato foi analisado como
já falamos aqui neste capítulo, por Foucault na Europa, e talvez como no caso do
jornal local, a imprensa, com uma campanha oposicionista às execuções,
contribuísse para este tipo de manifestação, contrárias a esta espécie de sentença.
A falta de educação religiosa, a qual se referia o homeopata, pode estar relacionada
aos muitos relatos que eram feitos de escravos que, quando subiam ao patíbulo,
pouco caso demonstravam à idéia de estarem perdendo a vida. Muitos juristas,
como descrito em página anterior, relacionavam este descaso às crenças africanas
da morte como partida para outro mundo, em muitos casos o retorno à própria áfrica.
João José Reis afirmou que os africanos acreditavam na imortalidade da alma,
acreditavam numa certa travessia para o além
400
. Para os Iorubás, aqueles que não
tivessem uma boa morte poderiam ficar vagando na terra até que os vivos, através
de rituais os despachassem. O próprio jornal O Pelotense trazia uma notícia do Rio
399
BRG. Jornal O Pelotense de 07/01/1854 à 15/12/1854. Nº 3045, Estante 62, Prateleira 2. Dia 30
de maio de 1854.
400
REIS, 1997, op. cit. p. 99.
191
de Janeiro que se afirmava escandalosa com o comportamento do padecente, dizia
assim:
Foi ontem executado a sentença de pena última imposta ao escravo
José, que assassinara seu senhor José Augusto Cysneiro. Houve
grande aparato religioso; mas infelizmente pouco recolhimento. O
padecente esteve fumando com um crucifixo na mão, e mostrando-
se pouco penetrado da gravidade da circunstância em que se
achava. Era Juiz da execução o Dr. Maia. Consentiu ele, que o
padecente dirigisse ao público uma alocução que nos dizem fora
imprudentíssima, e ainda mais imprudente se tornou pelas
extemporâneas observações com que nos referem a acompanhara
o religioso encarregado de preparar o réu a comparecer perante o
Juiz supremo
401
.
Era costume os juízes deixarem o condenado proferir as últimas palavras,
caso este solicitasse, na expectativa de que os padecentes, na frente de todos,
mostrassem arrependimentos perante os crimes cometidos, legitimando assim todo
o ritual e a ação da justiça. Caso as palavras do condenado fossem subversivas, no
sentido de xingamentos, desprezo pelo rito, era praxe o abafo com os toques dos
tambores policiais, o que deve ter acontecido no caso descrito acima no jornal.
José havia matado seu senhor com um instrumento que horas havia sido
descrito como um formão, horas um compasso. O escravo, após negar-se, de
acordo com seus relatos, a ir ao Sul para fazer uma morte pelo seu senhor, havia
apanhado deste com bengaladas. Além desta atitude, José questionava em juízo as
muitas arbitrariedades de seu senhor. Ao ser pressionado pelo Juiz durante o
julgamento, por, de acordo com este último, estar contando muitas historinhas em
vez de responder às perguntas, José afirmou “[...] no meio das galinhas, as baratas
401
BRG. Jornal O Pelotense de 07/01/1852 à 15/12/1852. Nº 3045, Estante 62, Prateleira 2. Dia 30
de maio de 1854. Dia 31 de janeiro de 1852.
192
não tem razão”. O Juiz logo reagiu sentindo-se questionado em seu espírito de
justiça dita imparcial, “Cale-se! Responda só ao que lhe pergunto”
402
.
Através deste caso, João Luiz Ribeiro constrói todo seu estudo sobre os
enforcamentos no Brasil, trabalho excelente, principalmente no que concerne às
discussões jurídicas. A frase dita por José passou a dar o nome ao livro do autor. O
caso do escravo José é interessantíssimo, pois este questionava em juízo as
arbitrariedades de uma Justiça feita por senhores para senhores, ainda mais drástica
com os escravos pela prática da lei de 10 de junho de 1835
403
. José demonstrava
em juízo o conhecimento de seu destino, demonstrava consciência de que naquelas
alturas já estava enquadrado numa lei que predestinava sua morte, não havia
defesa, como diria o próprio escravo em outro momento do interrogatório, “[...] o que
o branco quiser é o que há de ser... O que o preto diz é mentira”
404
. A justiça não
levou em consideração as acusações do escravo ao seu senhor no tocante aos
mandos assassinos deste último, as palavras do escravo José, citadas acima,
haviam sido prudentíssimas.
Tal qual apontou Ribeiro, talvez estejam aí as palavras do trabalhador
escravo que haviam causado espanto no cadafalso, palavras acusadoras à justiça e
ao mundo senhorial. O fato é que este caso repercutiu em todo o Brasil, chegando
inclusive a ecoar na imprensa da cidade de Pelotas como visto acima. Ao não
402
RIBEIRO, 2005, op. cit. p. 167.
403
Apesar de nossa radicalidade nas referências a justiça, é interessante destacar aqui que não
compreendemos que as leis refletem apenas as dominações de uma classe sobre a outra, nas leis
verificamos os conflitos entre as classes. Acreditamos conforme Thompson, que a mesma lei
construída, por exemplo, no caso dos senhores para disciplinarem os escravos poderia voltar contra
estes mesmos. A lei também impõe restrições aos grupos dominantes, “Se a lei é manifestamente
parcial e injusta, não vai mascarar nada, legitimar nada, contribuir em nada para a hegemonia de
classe alguma. A condição prévia essencial para a eficácia da lei, em sua função ideológica, é a da
que mostre uma independência frente a manipulações flagrantes e pareça ser justa. [...] mesmo os
dominantes tem necessidade de legitimar seu poder, moralizar suas funções, sentir-se úteis e justos
(THOMPSON, 1987, op. cit. p. 354). E esse foi o segredo do liberalismo dentro do Brasil adaptado a
escravidão, fazer parecer as ações dos juristas como algo moderno, e a repressão aos escravos
como algo justo.
404
RIBEIRO, 2005, op. cit. p. 168.
193
demonstrar arrependimento perante a forca, além de soltar acusações aos que
estavam assistindo o terrível espetáculo, José deu armas aos questionamentos à
pena de morte, reforçando os argumentos que contrariavam os efeitos do
arrependimento do condenado perante o patíbulo, assim como os efeitos
relacionados ao terror, o medo, o exemplo! Afirmamos aqui que não foram apenas
os grupos intelectualizados, ou D. Pedro II, que efetivaram o fim gradativo da pena
de morte. Os escravos, os condenados, assim como a população que já não mais
legitimava os ritos também contribuíram para este fato.
4.4 Forca em Pelotas: cartografia e rito
405
Em Pelotas, tivemos, segundo os escritos de João Simões Lopes Neto
406
,
dois locais de execuções. O primeiro local das execuções públicas por meio da
forca, segundo as palavras do autor, foi ao norte da Igreja Matriz, na zona ocupada
hoje pelo Parque Dom Antônio Zattera, antiga Praça Júlio de Castilhos. Se
compararmos os mapas da época com os atuais, veremos que Neto pode ter-se
confundido um pouco; o cemitério ficava ao lado do hoje Parque Zattera. O local da
forca deveria ficar num campo aberto que havia defronte ao cemitério católico, que
de acordo com Fernando Osório, ficava “tendo a frente leste pela rua Andrade
Neves, fundos a oeste até a rua General Osório, face ao sul pela Bento Gonçalves e
405
Algumas considerações já haviam sido expostas em: AL-ALAM, Caiuá Cardoso. Questões acerca
dos enforcamentos de escravos em Pelotas-RS. In: Anais do II Encontro “Escravidão e Liberdade no
Brasil Meridional”. Porto Alegre: 2005. p. 1-18.
406
Ver especificamente o artigo deste autor chamado “A forca em Pelotas” In: RODRIGUES, Alfedo
Ferreira (Org.). Almanak Literário e Estatistico do Rio Grande do Sul para 1917. Rio Grande: Livraria
Americana. Ano 29. p. 165-166.
194
para o norte ao campo aberto que aí havia”
407
. Ainda não existiam as ruas do antes
conhecido Bairro da Luz, que foi criado em 1858. O primeiro local da forca ficava
então nos limites da cidade, em campo aberto. A partir da ata da execução pública
dos condenados Salvador, Bento e João no ano de 1847
408
, confirmam-se estas
evidências, de que a forca funcionou em frente ao antigo cemitério (ver anexo 1).
Pela década de 1850, a forca, segundo Neto, foi transferida para a antiga
Praça da Constituição, depois Praça das Carretas, a atual Praça Vinte de
Setembro
409
. Neste ano, 1850, ainda o ritual do enforcamento seria ao lado do
cemitério, conforme ata da execução do escravo Belizário
410
. De acordo com nossa
pesquisa é possível que possa ter havido apenas um enforcamento neste local; teria
sido o de Ignácio, escravo de José Maria dos Santos Carneiro no ano de 1857.
Como não encontramos o processo crime relativo ao caso, temos apenas a
evidência de um ofício em que a Câmara Municipal recebe a incumbência de armar
a forca “[...] além do Arroio Santa Bárbara na projetada Praça que se acha medida e
demarcada”
411
. A Praça seria a das Carretas.
No livro de Fernando Osório, há a descrição de um manuscrito do Major
Tomás da Costa, que informa a Osório suas memórias dos enforcamentos. O Major
descreve uma execução de 1857 que ele afirma ser de Belizário, possivelmente um
engano de memória deste já que o escravo Belizário havia tido sua execução no ano
de 1850, conforme documentação (ver anexo 3). O enforcamento que o Major
descreve pode ter sido o de Ignácio, mas seu relato confirma o novo local das
407
OSORIO, 1997, op. cit. p. 130.
408
APERGS. Processo número 197, Maço 5A, Estante 36. Ata do dia vinte e dois de julho de 1847.
409
BPP. Centro de Documentação e Obras Valiosas. NETO, João Simões Lopes. Revista do
Centenário de Pelotas. N° 7 e 8, 1912. Ver também sobre a prática da forca em Pelotas em: AL-
ALAM, Caiuá Cardoso. Pelotas: A Forca e o Negro Belisário. Monografia de conclusão do curso de
Licenciatura em História - UFPel. Núcleo de Documentação Histórica. Pelotas, 2005. Esta monografia
apresenta muitos problemas que estão sendo corrigidos nesta dissertação.
410
APERGS. Processo número 307, Maço 7A, Estante 36. Ata do dia dez de maio de 1850.
411
Documento da Câmara Municipal de Pelotas do dia 16 de outubro de 1857. In: Assumpção: 1995,
p. 257).
195
execuções, “[...] à esquerda da antiga ponte de madeira, hoje de cimento armado, à
rua Riachuelo, além do arroio Santa Bárbara, onde existe atualmente uma barraca
de couros, local este onde foi levantado a forca”
412
. Este novo local situava-se na
margem oposta do antigo Arroio Santa Bárbara, na continuação da atual rua Lobo
da Costa. Como comentado no capítulo III, o lugar era visualizado pelas autoridades
como um ambiente mal visto, dos populares, local de trabalho das lavadeiras, de
sociabilidade dos escravos da cidade. Espaço também que demarcava o fim da zona
central, o arroio tornava-se um limite natural da cidade durante a década de 1850.
Interessante notar que em Pelotas a forca era montada em locais distantes do
centro, ou seja, nos limites demarcatórios da cidade
__
fato diferente ocorreu em
Porto Alegre. De acordo com a pesquisa de Etcheverria, as execuções públicas se
davam na antiga Praça do Arsenal, conhecido como Largo da Forca. Local de ampla
visibilidade, pois em seu entorno ficavam muitos prédios ligados ao poder público,
como o Arsenal de Guerra, o Pelourinho, assim como no caso da instituição
religiosa, a Igreja das Dores
413
.
Naquela mesma região da cidade pelotense, à beira do antigo curso do Arroio
Santa Bárbara, localiza-se a atual Praça Cipriano Rodrigues Barcellos, antes
conhecida como Henrique D’Ávila, depois Floriano Peixoto. Popularmente, esta
praça é hoje conhecida como Praça dos Enforcados. No imaginário popular, ela teria
este nome por ser o local do cadafalso, mas através da pesquisa pudemos averiguar
que não. De acordo com informações orais do professor Mário Osório Magalhães,
nesta praça teriam ocorrido por volta da década de 1930, alguns suicídios através de
enforcamentos. Talvez a memória popular, a partir do desvio do Arroio Santa
Bárbara, que hoje não passa mais naquela região, possa ter juntado os dois fatos,
412
OSORIO, 1997, op. cit. p. 132.
413
ETCHEVERRIA, 2000, op. cit. p. 113.
196
os enforcamentos como execução pública, com os suicídios da década de 30 do
século XX. O fim do limite natural do arroio pode ter relacionado as memórias, o que
causa até hoje confusões quanto à localização da forca na época das execuções da
pena de morte.
Conforme escrito no Código Criminal, uma execução de pena de morte
durante o império brasileiro tinha todo um ritual específico. Então, geralmente pela
manhã, saía o cortejo da cadeia pública percorrendo as principais ruas da cidade. O
Major Tomás da Costa registrou em carta, a Fernando Osório, o trajeto na época das
execuções à beira do Arroio Santa Bárbara. O cortejo saía da cadeia, ou Casa de
Correção, que ficava na rua Sete de Setembro com Barão de Santa Tecla, dirigia-se
a atual Marechal Deodoro, pegando a atual Lobo da Costa até o lugar da
execução
414
. Era costume o cortejo passar em frente à Igreja local para assistirem
uma missa, fato que o Major possa ter esquecido em seu relato, já que na ata de
enforcamento do escravo Belizário, em 1850, consta esta informação
__
o cortejo
saiu da cadeia, passou pela Igreja Matriz, hoje Catedral, até chegar à forca montada
à frente do cemitério, na hoje zona da avenida Bento Gonçalves
415
.
O comandante do batalhão liderava dando ordens para o tocador–de-caixa,
que marcava a cadência, seguidos por soldados a pé, e outros a cavalo, que
acompanhavam de perto o condenado vestido com uma toga branca. As togas
brancas dos enforcados poderiam ser vistas com positividade por parte dos
africanos, pois o branco era a cor fúnebre de muitos grupos étnicos da África, como
os Nagôs, Gegês, Angolas, Congos e os muçulmanos. De acordo com João José
Reis, as mortalhas brancas de tecido de algodão ordinário eram populares entre os
africanos e seus descendentes no Rio de Janeiro e em Salvador: “Para os nagôs,
414
OSORIO, 1997, op. cit. p. 132.
415
Ver anexo 3.
197
por exemplo, o branco se relaciona ao orixá Obatalá, ou Oxalá, o criador, que, na
hora da morte, reivindica sua criação, entre os Congos, o mundo dos mortos é o
Reino Branco”
416
. Talvez vestidos com as cores fúnebres de suas nações os
padecentes se sentissem ainda mais audazes para enfrentar o carrasco, zombando
da “gravidade da circunstância em que se achava” e falando ao público de forma
“imprudentíssima”.
Junto, seguiam os irmãos da Santa Casa de Misericórdia. No Livro de Atas da
Santa Casa de Misericórdia, no dia 21 de novembro de 1847, encontramos o registro
do enforcamento de Salvador, João Pernambuco e Bento:
A Irmandade da Misericórdia saiu pela primeira vez em corporação
no dia 22 de julho a acompanhar três pacientes de justiça, fazendo
tudo que manda o compromisso a tal respeito, despendendo em
vestuário e comida para eles quarenta e três mil novecentos
sessenta réis. [...] Mandarão se fazer 16 ópas, 2 batinas, e 2 bolsas
com escudos de prata e o painel da misericórdia do Rio Grande, que
o nosso senhor José Vieira Vianna pediu para empréstimo [...]
417
.
A partir deste documento, constatamos a importância da participação da
Santa Casa neste ritual. A de legitimar, com a justificativa do poder de Deus, aquele
ato de violência, assim reafirmando não apenas no campo religioso, mas também no
campo político, a supremacia da elite senhorial. Tomaschewski, citada já neste
trabalho, argumenta que “A irmandade da Santa Casa foi fundada em Pelotas por
homens da aristocracia rural, e era uma associação voluntária cujos fins manifestos
eram prestar assistência aos pobres através da prática caritativa”. Ainda, segundo a
autora, esta instituição tinha privilégios como “[...] isenção de impostos, facilitação de
crédito para os irmãos, possibilidade de possuir bens, monopólio nos enterramentos,
416
REIS, 1997, op. cit. p. 111.
417
MSCM. Atas da Santa Casa da Misericórdia; de junho de 1847 à outubro de 1856.
198
e mesmo subvenção direta para a prática assistencial.”
418
. Ou seja, os
charqueadores, proprietários rurais, e comerciantes possuíam uma ampla rede de
instituições, além do Estado, que mantinham e justificavam os seus interesses
enquanto grupo hegemônico. O mais curioso é o fato de que o momento do cortejo
era de fundamental estratégia econômica para a Irmandade, no sentido de que em
todo o trajeto os irmãos daquela instituição iam arrecadando esmolas, elemento
importante para o sustento, por exemplo, da Santa Casa de Misericórdia. Algumas
vezes a população não respondia aos apelos das irmandades nos casos das
esmolas nos ritos de enforcamentos, como o próprio jornal O Pelotense alertava ao
descrever uma execução no Rio de Janeiro, “[...] houve grande aparato religioso,
mas infelizmente pouco recolhimento”
419
.
Os condenados eram identificados como “pacientes” de justiça neste
documento, apesar de ser comum chamar os condenados em outros lugares do país
de “padecentes” da justiça. Também chama a atenção o registro no documento da
responsabilidade desta instituição na alimentação e vestuário daqueles sujeitos no
dia do rito, como consta no próprio compromisso da Misericórdia, um tipo de
regimento interno.
Os padres e reverendos eram responsáveis por ouvir as confissões dos
condenados, caso estes concordassem, e os sacerdotes faziam de tudo para que o
condenado se redimisse diante de Deus, como forma de redenção aos poderes
desta instituição. À frente do condenado, os Irmãos abriam passagem no cortejo,
com o Painel da Misericórdia, símbolo, como o próprio nome diz, misericordioso
perante aos enforcados.
418
TOMASCHEWSKI, 2005, op. cit. p. 4.
419
BRG. Jornal O Pelotense, número 3045, prateleira 2, estante 062. Dia 31 de janeiro de 1852.
199
Muitos curiosos acompanhavam o cortejo, incentivados pelas paradas nas
principais esquinas da cidade, onde o meirinho lia a condenação à população.
Chegando ao local da forca, os condenados eram amarrados pelo pescoço e
enforcados pelo carrasco
__
muitas vezes um condenado à pena de morte que havia
trocado sua pena por essa atividade. Na condenação dos escravos marinheiros de
1847, encontramos um pedido do Juiz Municipal de Pelotas:
[...] se oficie ao senhor Juiz Municipal do Rio Grande requisitando-lhe
um preso condenado para servir de executor da Justiça, visto não
haver no termo nem mais circunstâncias de o ser, e depois venham
conclusos
420
.
Era raro haver condenados à morte nas cidades onde ocorreriam os ritos
de enforcamentos, obrigando os responsáveis pela Justiça a requisitar carrascos das
cidades vizinhas que tivessem nas cadeias estes “desgraçados”. Muitos escravos
negavam-se a executar seus parceiros de cativeiro, fazendo com que diversas
regiões tivessem que chamar pessoas de outras províncias para o ato
421
.
Como dito anteriormente neste capítulo, a execução pela forca no Brasil não
tinha o modelo do cadafalso, ou seja, aquele buraco que se abriria nos pés do
condenado. No Brasil, era costume o condenado ser empurrado de uma estrutura de
madeira, como se fosse um palco, e para que a morte fosse rápida, geralmente o
carrasco pendurava-se ficando sentado nos ombros do condenado, quebrando o seu
pescoço. Assim, após a execução, os corpos eram retirados e enrolados em lençóis
brancos da Misericórdia pelos Irmãos da citada confraria, que os levavam ao
cemitério da cidade para encaminhar ao sepultamento, que não poderia ser com
pompa; caso isso acontecesse, estava prevista punição por lei de prisão de um mês
a um ano, conforme artigo 42 do Código Criminal. Por esse motivo, o escrivão do
420
APERGS. Estante 36, Maço 5A, Processo 197.
421
GOULART, 1971, op. cit. p. 157.
200
Júri do termo era responsável em acompanhar e registrar todo o ritual, deixando
anotado em atas a confirmação da execução
422
.
O escrivão também lucrava com as execuções, pois deveria ser ressarcido
pelo trabalho nas intimações, interrogatórios e demais participações nas tarefas
burocráticas da justiça. Por exemplo, na execução do escravo André Mina, em junho
de 1849, no final do processo aparecem as contas devidas ao escrivão Francisco
Jose Ferreira Lagoãz, no valor de 4:245 réis
423
. Os gastos relativos à estrutura da
forca eram despendidos pela Câmara Municipal; já os gastos do processo eram
pagos pelos senhores dos escravos réus, caso estes ainda respondessem pelos
indivíduos condenados, se não, cabia ao estado as custas.
Quanto a estas evidências da economia gerada em torno dos enforcamentos,
os lucros não ficavam restritos às instituições de justiça e religiosas. Como o ritual da
forca envolvia aglomerações de pessoas em um cortejo pelas ruas do centro da
cidade, é possível imaginar um conjunto de pequenos comerciantes, fossem livres,
ou escravos de ganho, vendendo seus produtos. Como era um ritual peculiar, de
apelo popular, poderia transformar-se em um bom momento para negócios.
João Simões Lopes Neto, no final do seu artigo sobre a forca em Pelotas, faz
o seguinte registro:
Posteriormente, quando o poder imperial extinguiu a pena de morte,
a forca foi desmanchada, sendo as suas peças (as madeiras)
recolhidas ao edifício da cadeia pública, instalada então no prédio
da esquina das ruas Paysandú e Sete de Setembro, mais tarde (já
na República) vendido e demolido.
Enquanto se demolia a velha cadeia, os paus da forca foram
removidos e guardados num dos quartos do mercado central, onde
permaneceram longo tempo.
422
Leitores curiosos podem conferir dois exemplos destas atas nos anexos 2 e 3.
423
APERGS. Processo número 255, Maço 6A, Estante 36.
201
Daí foram, um após outro, retirados e utilizados em obras dos
próprios municipais, em ombreira de porta, em arco de janela, em
trave de baia, etc.
424
. (grifo nosso)
Grifamos a última parte do texto por nos parecer a mais importante neste
momento. O escritor parece demonstrar a forma como a população e, por
conseguinte, a cidade havia tratado o fim da pena de morte. O simbolismo dos paus
da forca sendo utilizados como material das casas traz carregada a idéia da
dissolução das memórias da pena no cotidiano popular, como se estas memórias se
pulverizassem nas coisas insignificantes, muitas vezes não notadas, como
ombreiras de porta, traves de baia. Por outro lado, ironicamente, esta passagem nos
parece transmitir a forma como Pelotas trataria o passado, numa dedicada tarefa de
esquecer aqueles episódios que causaram conflitos sociais. Mas conforme os
escritos do próprio escritor, mesmo as memórias do cadafalso não sendo mais
lembradas, ainda assim suas cicatrizes estão presentes, marcadas nas madeiras
das portas, baias e janelas. O escritor Ítalo Calvino nas palavras do viajante Marco
Pólo, reflete sobre as cidades e a memória, “[...] a cidade não conta o seu passado,
ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das
janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das
bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras”
425
.
Com os enforcamentos, os senhores, através das práticas do Estado,
buscavam defender suas propriedades e demonstrar à população, principalmente
aos escravos, o que poderia acontecer se estes subvertessem a ordem existente.
424
Neto, João Simões Lopes. A forca em Pelotas. In: RODRIGUES, Alfedo Ferreira (Org.). Almanak
Literário e Estatistico do Rio Grande do Sul para 1917. Rio Grande: Livraria Americana. Ano 29. p.
165-166.
425
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 15.
202
Através da marca no corpo, o Rei, o Estado, o sistema escravista, demonstravam
toda sua força, sua autoridade legitimadas pela lei, pela idéia da concessão do
direito à vida e à morte.
4.5 Algumas histórias dos enforcados
Neste espaço escreveremos sobre dois casos que abordam as histórias de
alguns enforcados na cidade de Pelotas. O primeiro é sobre os escravos
marinheiros, que no ano de 1847 aterrorizaram as elites charqueadoras com revoltas
nas águas da região sul. O outro caso é o do escravo Belizário, que após discussão
com seu senhor tentou matá-lo juntamente com sua esposa e outro indivíduo
escravo.
Acreditamos que sejam importantes estas descrições, pois será na
abordagem delas que pensaremos um pouco sobre, por exemplo, as experiências
de vidas escravas na região de Pelotas. Para o exercício destas reflexões usaremos
especificamente os Processos Criminais relativos aos casos, rica documentação,
como comentado no capítulo um, para a percepção, mesmo com interferências dos
olhares da justiça, das vidas escravas.
4.5.1 Fevereiro de 1847: tempo de revolta escrava nas águas de Pelotas
426
Neste texto, abordaremos dois casos de criminalidade escrava nas águas do
entorno da cidade de Pelotas, que resultaram na condenação à pena de morte de
426
Sobre este estudo de caso ver também: AL-ALAM, Caiuá Cardoso. Sangue nas águas:
marinheiros escravos e revoltas em Pelotas. In: Anais do I Simpósio Internacional do Litoral Norte
sobre História e Cultura Negra. Osório/RS: 2005. p. 1-9.
203
quatro escravos. Escritos que nos possibilitarão pensar algumas questões a cerca
da experiência escrava nesta mesma cidade.
O mês de fevereiro de 1847 foi um período em que os senhores e patrões dos
iates que circulavam pela Lagoa dos Patos, canais e arroios da zona sul do estado,
tiveram que repensar suas estratégias de dominação escravista. Esse mesmo mês
de fevereiro estava dentro do chamado período de safra do charque, que
compreendia os meses de outubro a maio, tempo de matança do gado. Portanto,
momento de intensa circulação de iates e outros tipos de barcos que levavam o
produto para Rio Grande onde, por sua vez, dali seriam remetidas as mercadorias
para o mundo todo
427
. A dependência a Rio Grande estava relacionada às
dificuldades de existência de um porto capacitado para receber navegações de
grande porte na cidade de Pelotas, devido a pouca profundidade da Lagoa dos
Patos e ao grande volume de bancos de areia no canal São Gonçalo
428
. Desde o
princípio do século XIX, a elite charqueadora já pensava em um projeto de
desobstrução desse canal mas, devido aos conflitos causados pela Revolução
Farroupilha, esse projeto só se efetuaria no ano de 1875. Essa obra “irá permitir a
exportação direta do charque para os Estados Unidos e a Europa, o que até então
era feito através do Rio Grande ou, mais freqüentemente, de São José do Norte”
429
.
No dia oito de fevereiro de 1847, um iate chamado Quibebe de propriedade
de Roberto Barker, vinha de São José do Norte em direção à cidade de Pelotas. A
tripulação deste iate era composta pelo patrão José Antônio de Almeida e por quatro
escravos, Salvador de 16 ou 17 anos, João Pernambuco que achava ter 30 anos,
Bento que não sabia sua idade e Dionizio, descrito como ”moleque crioulo”. Pela
427
ASSUMPÇÃO, 1995, op. cit. p. 59.
428
ROSA, Mário. Geografia de Pelotas. Pelotas: EDUFPel, 1985. p. 108.
429
MAGALHÃES, Mario Osório. Opulência e Cultura na Província de São Pedro do Rio Grande do
Sul: um estudo sobre a história de Pelotas (1860 – 1890). Pelotas: EdUFPel, 1993. P. 49.
204
tardinha desse dia, o patrão do iate tomou a decisão de dar fundo na Baliza do
Mosquito, ou seja, atracar o barco para ali passar a noite. Quando partia para esse
ato, Salvador acertou com o olho do machado em sua cabeça, seguido por uma
pancada de espeque
430
dada por João Pernambuco. Bento estava junto ao leme, e
Dionizio não participou do ato. Após, amarraram o corpo do patrão em ferros e o
jogaram na água. Efetivado o assassinato, os escravos dirigiram-se à câmara do
barco, a fim de se apropriarem do dinheiro que o patrão havia trazido a bordo
quando veio da terra. Mas, de acordo com os interrogatórios dos escravos, havia a
ameaça de Dionizio delatar o crime, já que não quisera participar do mesmo. Assim,
no outro dia, Bento pediu a Dionizio que buscasse cigarros no chamado castelo do
iate. Quando este se virou de costas, Bento o amarrou com uma corda ao pescoço e
os três o acertaram com várias pancadas. Dionizio atirou-se à água e, ao tentar
agarrar-se ao barco, levou uma última pancada que o matou. Bento, João e
Salvador, chegando na estacada de Ignácio Barcellos, charqueador e comerciante
da região, descarregaram mercadorias e contaram a história de que o patrão do
barco havia matado Dionizio, e que teria fugido. Passados alguns dias, os
trabalhadores escravizados desconfiados de que seriam descobertos, iniciaram a
fuga, sendo perseguidos e logo presos. A documentação não comenta o trajeto de
fuga, apenas cita que Bento havia sido preso na Serra, talvez Serra dos Tapes, e
Salvador na Ilha da Feitoria.
431
Outro caso ocorreu no mesmo mês de fevereiro. No dia treze, saiu de Rio
Grande um iate chamado Belizário, que tinha como destino a localidade de
Camaquã, mas esta viagem traria surpresas ao patrão Luís Pinheiro, que era
430
Espeque: “Espécie de alavanca que serve para mover pesos. [...] pau com que se esteia ou se
escora alguma coisa para não cair” (SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portuguesa.
Tomo 1, Lisboa: Tipografia Lacerdina, 1813. p. 758).
431
APERGS.Processo criminal n. 207. Estante 36, Processo 207, Maço 5A.
205
também sócio do barco. Na altura do lugar chamado Quilombo,
432
perto do rio
Camaquã, os escravos marinheiros Manoel e Brás mataram a facadas o patrão do
barco, enquanto André, também escravo, segurava a esposa de Luís Pinheiro que
tentava em vão impedir o crime. Já Simão, outro escravo embarcado, não quisera
fazer parte do crime: sua reação ao ato foi correr chorando aos pés da mulher,
assustado com o que acontecia. De acordo com o depoimento desta mesma mulher,
nesse momento André dizia “mata, mata, bota no mar”. E foi justamente o que
aconteceu: após as facadas, o patrão do iate ainda tentou segurar-se em uma
capoeira, mas foi jogado à água. À noite fundearam na barra de Camaquã e no outro
dia tentaram chegar a Porto Alegre; não conseguindo fundearam mais uma vez, só
que agora na barra de São Lourenço. No dia quinze, a viúva Jozefa convenceu o
grupo de escravos que, caso a largassem no armazém da charqueada de São
Lourenço, ela alforriaria todos eles e diria que a morte de seu marido teria sido um
acidente no mar. Então, à tardinha, lá pelas seis ou sete horas, o iate chegou ao
armazém. Ao invés de Jozefa manter o combinado, logo que ela desceu do barco
pediu a um homem chamado Quintino (outro marítimo) para agarrar aqueles
escravos, pois eles haviam matado seu marido. No momento em que partia o iate
Belizário, cinco homens livres que trabalhavam nos barcos da região prendeeam os
escravos que portavam ainda 121 patacões de prata e seis meias de ouro
433
.
João Simões Lopes Neto narrou, em 1912, o caso
434
. Segundo seu relato,
Jozefa teria sido estuprada pelos escravos, fato também afirmado pelo deputado
Ulhôa Cintra em uma discussão em torno da legislação decorrente desses dois
432
Em muitos lugares do Brasil, assim como no Rio Grande do Sul, alguns locais continuaram
carregando a nomeação de suas antigas ocupações, como neste exemplo, a possibilidade da
existência de um quilombo.
433
APERGS Estante 36, Maço 5A, Processo 205.
434
BPP. CEDOV. NETO, João Simões Lopes. Revista do Centenário de Pelotas. N° 7 e 8, 1912.
206
casos de 1847. No processo criminal, a única questão possível que aparece é
quando o Juiz pergunta a André:
J – Perguntou-lhe se depois de morto o patrão, ele André e os outros
não foram ter com a mulher do mesmo?
R – Respondeu que sim mas, ele, réu, não havia feito nada
435
.
Este último caso, o do iate Belizário, nos traz evidências de como seria
composta a alimentação desses trabalhadores dos barcos. Faustino, um dos
homens brancos que capturara os escravos, declarou que “passando a examinar a
lancha [,] nela encontramos porção de munições de boca, sendo feijão, pão torrado,
açúcar, arroz, charque [...]”. Só que essas “munições de boca” parece que não
chegavam aos escravos, ou, quando chegavam, não supriam as demandas físicas
destes, pois os motivos apontados por André e Simão para o assassinato do patrão
seriam os de que Luís Pinheiro “era muito mau, dando muitas pancadas e que não
dava de vestir e nem de comer aos trabalhadores”.
O depoimento dos cativos deixa transparecer um limite que se estabelecia na
relação entre senhores e escravos, ou patrões e escravos. Os escravos apanhavam
desproporcionalmente, sem justificativa, como também não recebiam o mínimo de
alimento e roupa para manutenção de suas condições de vida. Sílvia Lara
argumenta que no final do século XVIII e início do XIX, jesuítas e alguns senhores
escreveram textos que pregavam um controle dos excessos dos castigos dos
escravos, justamente, na lógica desses senhores, para que não acontecessem
revoltas e crimes por parte dos cativos. O ideal seria “[...] sustentá-los para que não
435
APERGS Estante 36, Maço 5A, Processo 205.
207
perecessem e castigá-los para que produzissem”
436
, uma moral construída em torno
do fazer-se senhor. Ainda em relação ao controle de castigos, afirma a autora:
Uma violência que não fazia parte das paixões humanas, mas que
devia ser medida e controlada a fim de domesticar, ensinar e
preservar o escravo. Uma economia que equilibrava sobrevivência,
submissão e produção, garantindo a dominação senhorial e a
continuidade da exploração escravista
437
.
De alguma forma, os escravos sabiam desses limites, por mínimos que
fossem, em relação aos castigos excessivos como também em relação à
alimentação e vestuário. Entre eles e o patrão existia um jogo no campo das
relações de poder, um poder pulverizado, que não vinha apenas de cima para baixo.
Os trabalhadores escravizados também tencionavam com suas expectativas, tanto é
que, quando o equilíbrio das forças e dos interesses foi desestabilizado, o patrão
acabou morto a facadas e pauladas. É preciso ter em mente que os escravos faziam
política, e quando falamos em política, não abordamos apenas o fazer política da
elite branca, institucional, mas também o fazer política do cotidiano. Havia um
sentido nas práticas dos trabalhadores escravizados, eles avaliavam o mundo à sua
volta, montavam estratégias. Flávio Gomes contribui, “[...] suas ações de
enfrentamentos não foram fruto da irracionalidade, dos castigos e maus tratos.
Cativos faziam política nas senzalas, nos quilombos, nas insurreições e nas cidades”
438
.
O ofício de marinheiro, ou marítimo não era reconhecido como especializado,
mas tinha um certo status de qualificação, mantendo características próprias. Por
exemplo, no primeiro caso analisado, Salvador disse no interrogatório ao Juiz que
436
LARA, 1988, op. cit. p. 49.
437
LARA. Idem. p. 51.
438
GOMES, 2003, op. cit. p. 20.
208
antes fazia o trabalho na “graxeira” e que estava embarcado desde o “princípio de
fevereiro”, e João disse que antes trabalhou como “serrador e falquejador”. Nos
momentos de falta de trabalhadores para a navegação, qualquer sujeito escravizado
poderia assumir essa atividade, desde que comportasse fisicamente o peso dessas
tarefas. Claro que para o cargo de piloto da embarcação era imprescindível que o
indivíduo tivesse experiência nas navegações da Lagoa dos Patos, devido aos
inúmeros bancos de areia, e outras dificuldades como as cerrações que imputavam
grandes perigos de naufrágios. De acordo com Gutiérrez, mais da metade dos
charqueadores possuía marinheiros, e a média era de quatro deles por saladeiro
439
.
Ainda, segundo a mesma autora, o número de charqueadas chegou a trinta em
meados do século XIX. Podemos imaginar o grande número de trabalhadores das
águas que circulavam pela cidade de Pelotas e seus arredores.
Ilustração 8 – Escravos marinheiros no Porto de Rio Grande
440
439
GUTIERREZ, 2001, op. cit. p. 180.
440
BPP. CEDOV. AP-018. Livro de ilustrações de Herrman Rudolf Wendroth, publicado pelo governo
do Rio Grande do Sul
209
Uma das características do ofício de marinheiro era a mobilidade desses
trabalhadores, que transitavam por lugares diversos, trocavam experiências com
libertos e pobres. Talvez se assemelhassem aos tropeiros e carreteiros, que também
tinham uma maior movimentação na sociedade escravista. Não podemos subestimar
os contatos e trocas de experiências entre os escravos e livres embarcadiços.
Alberto da Costa e Silva ressalta que “[...] os contatos através do oceano eram
constantes: os cativos que chegavam traziam notícias de suas nações, e os
marinheiros, os ex-escravos de retorno e os mercadores levavam as novas do Brasil
e dos africanos que aqui viviam”
441
. Na composição profissional do elemento servil
da cadeia de Rio Grande entre 1858 e 59, os marítimos compunham 14% dos
presos, indicando um alto envolvimento destes em ações que subvertiam a ordem
vigente na época, só perdendo para as cozinheiras que somavam 17%
442
. As águas
eram um espaço potencial para a resistência escrava.
O compartilhar de experiências com o mundo de fora do cativeiro fez do
transporte fluvial uma das melhores rotas de fugas. Ademais, para fugas, “um dos
melhores aliados [eram] os trabalhadores da zona portuária que constituíam uma
população parcialmente anônima e em trânsito, características que forneciam
chances de impunidade”
443
. Portanto, havia uma grande possibilidade de êxito nas
fugas, pois estes escravos iriam para lugares longe dos senhores e das
comunidades que o conheciam, muitas vezes embarcando como mão-de-obra nos
navios da Marinha de Guerra, no caso dos trabalhadores do mar, pois havia uma
441
SILVA, Alberto da Costa e. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira: Ed. UFRJ, 2003. a. p. 55.
442
BAKOS, Margareth; BERND, Zilá. O negro: consciência e trabalho / Zilá Bernd e Margaret Bakos.
Porto Alegre: UFRGS, 1998. p. 62. Lembramos que este grande número de cozinheiras presas pode
nos indicar o domínio do espaço doméstico pelas mulheres. O rótulo da profissão poderia também
mascarar outras ocupações, como a prostituição.
443
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no
espaço urbano. Porto Alegre – 1858-1888. Porto Alegre: EST Edições, 2003. P. 69.
210
demanda de serviço nestas embarcações
444
. O historiador Silmei Petiz confirma o
uso de embarcações por parte de escravos para fugas, ressaltando o percurso de
Rio Grande ao Estado Oriental, hoje Uruguai. Cita o caso do escravo Manoel, de
propriedade de Joaquim Marques Lisboa, que após fugir de Pelotas para Rio
Grande, “[...] fez uso de uma embarcação para passar, em 16 de maio de 1849, para
o Estado Oriental, pela fronteira do Chuí”
445
.
Entretanto, nos dois casos aqui analisados, os trabalhadores escravizados
não tiveram êxito em sua fuga, justamente porque permaneceram nos lugares de
influência de seus senhores. O cativeiro não acabava nos limites das propriedades,
pois ele era o sistema escravista por inteiro. É a isso que João José Reis e Eduardo
Silva chamaram de paradigma ideológico colonial: a sociedade escravista se
identificaria como uma gaiola, o passarinho, no caso o escravo, não necessitaria
usar correntes aos pés
446
. Os proprietários contavam com redes de relações
pessoais que reconheciam e reafirmavam seu domínio na região, tornando possível
a captura e punição a esses trabalhadores escravizados
447
.
Outra característica desses trabalhadores das águas era seu sistema de
prestação de serviços, porque alguns eram escravos alugados. No caso do iate
Quibebe, Salvador e Bento tinham como senhor o dono do barco, Roberto Barker,
enquanto João era um escravo alugado de João Rodrigues Barcellos. No caso do
iate Belizário, apenas Manoel era escravo de Luís Pinheiro: os outros três, Brás,
André e Simão eram escravos de Francisco da Gata. Nos jornais, eram comuns
anúncios requisitando escravos para alugar no trabalho de iates, como no caso do O
444
REBELATTO, Maria. A bordo do Higkland Mary of Sag Harbor: uma tentativa de fuga escrava
(Desterro, 1868). Anais do II Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”. Porto Alegre,
2005. P. 2.
445
PETIZ, Silmei de Sant’Ana. Buscando a liberdade: as fugas de escravos da província de São
Pedro para o além-fronteira (1815-1851). Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2006. p.
127.
446
SILVA; REIS, 1989, op. cit. p. 67.
447
LARA, 1988, op. cit. p. 246.
211
Noticiador, da cidade de Rio Grande: “Precisa-se alugar dois pretos para bordo de
um iate, quem tiver poderá falar no Armazém da rua da Boa Vista n.14 ao Sr. Vieira
e Camarim”
448
. Outro exemplo, já diferente, pois este referia-se à venda e não a uma
locação, pode nos demonstrar o quanto um escravo marinheiro recebia destaque
nas negociações, recebendo um certo status de qualificação. Dizia assim o jornal de
Pelotas chamado O Brado do Sul:
Atenção: Vende-se um bom escravo, marinheiro, moço, sabendo
lavar, cozinhar bem, e engomar sofrivelmente, é isento de vícios e
moléstias, e o motivo da venda não deve desagradar ao comprador.
Quem o pretender dirija-se à rua do Commercio, sobrado da
Viscondessa do Jaguary
449
.
A prática de locação de escravos poderia conturbar algumas regras e
mecanismos do regime escravista, já que o controle senhorial era temporariamente
transferido ao locatário. Quando o locatário castigava o escravo, e eventualmente o
feria, poderia incapacitar o trabalhador para outros serviços requeridos pelo
proprietário, gerando, assim, inevitáveis conflitos sobre o direito ao castigo. Assim,
construíam-se limites e contradições no regime de trabalho escravo nas cidades
450
.
O sistema de aluguel já indica algumas mudanças quanto à industrialização no
Império brasileiro, que acompanhava o crescimento das cidades, e Pelotas já sentia
estas mudanças, uma vez que, após a lei de 1831 e a lei Euzébio de Queiroz em
1850, a mão-de-obra escrava encareceria ainda mais, e os senhores poderiam
investir melhor alugando ou pondo em locação os cativos.
448
BPP. CEDOV. O Noticiador, Ano I, Quarta-feira dia 15 de março de 1848. AP066e.
449
MCSHJC. Jornal O Brado do Sul – A162. Dia 2 de dezembro de 1859. O Brado do Sul foi a
primeira folha diária da cidade de Pelotas, funcionado entre os anos de 1858-61, sendo publicado e
dirigido por Carlos Von Koseritz (RUDIGER, 1985, op. cit. p.130).
450
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos e vivências ladinas: escravos e forros em São
Paulo (1850-1880). São Paulo: HUCITEC, 1998. Sobre escravos de ganho ver também ALGRANTI,
1988, op. cit. p. 48 e 49.
212
Agora partiremos para uma análise das condenações recebidas por esses
indivíduos escravos. No primeiro caso, Roberto Barker, dono do iate, desistiu da
acusação, mas o Juiz levou adiante o processo, condenando Salvador, Bento e João
Pernambuco à pena de morte. João Pernambuco em sua antiga moradia, justamente
no estado de Pernambuco, já havia se envolvido com a morte de um feitor, levando
três dias de chibatadas como punição
451
. No outro caso, apenas Simão e André
foram a julgamento, pois Manoel e Brás, logo que chegaram à cadeia da cidade de
Pelotas, morreram. De acordo com os peritos da época, morreram pela gravidade
dos ferimentos e pelo tétano. Possivelmente esses escravos apanharam muito
quando capturados, não só pela atribuída gravidade de seus crimes que, de acordo
com alguns documentos, envolveram um estupro, mas também talvez porque o
primeiro caso de revolta escrava nas águas de fevereiro ainda estava bastante vivo
nas mentes das pessoas da região. Muitos senhores não esperavam a Justiça para
castigarem seus escravos, faziam-no com suas próprias mãos; alguns inclusive se
sentiam ameaçados com as intervenções do Estado, pois estas intervenções
poderiam enfraquecer seu poder senhorial. André foi condenado à morte, já Simão
foi absolvido por entender o júri que ele não havia sido cúmplice do assassinato.
Salvador, Bento, João Pernambuco e André, foram pronunciados na lei de 10
de junho de 1835, como comentado nesta dissertação, uma lei que direcionava o
uso da pena de morte aos trabalhadores escravizados. Enquanto os três primeiros
haveriam de ser executados ainda no ano de 1847, precisamente no dia vinte e dois
451
João Pernambuco pode ter sido um dos inúmeros escravos que foram deslocados do Norte para o
Sul, pelo motivo de envolvimento em revoltas ou outros crimes. Prática esta ligada a idéia de punição,
de castigo, assim, o trabalhador escravizado seria vendido para uma charqueada, lugar de péssimas
condições de serviço. Um ofício da Câmara Municipal da ainda Vila São Francisco de Paula do dia 27
de fevereiro de 1835 nos traz um relato em que o poder público demonstra seu medo em relação à
venda em Rio Grande de escravos envolvidos no Levante dos Malês na Bahia. Justifica a venda dos
revoltosos em Rio Grande, por ser “[...] esta Província o receptáculo dos escravos de má conduta que
de outras Províncias do Império vem a vender, principalmente depois que o Maranhão deixou de os
receber” AHRGS. A.MU-103. Fundo: Câmaras municipais. Câmara Municipal de Pelotas. Dia 27 de
fevereiro de 1835. A respeito dos Malês ver SILVA; REIS, 1989, op. cit..
213
de julho, André Mina tardaria mais dois anos na angústia do corredor da morte, seria
executado apenas em 1849, no dia primeiro de junho. Infelizmente não conseguimos
encontrar documentação que nos explicasse os motivos da demora na execução de
André. É sabido que na maioria dos casos de justiça, durante o século XIX, a
burocracia emperrava os andamentos dos processos e os que mais sofriam com
isso eram os presos lançados às podridões das prisões. Vale ressaltar que este
também é um problema do século XXI.
Estes casos que estamos estudando tiveram tamanha repercussão, que
provocaram a criação de uma legislação própria, a fim de aumentar o número de
trabalhadores livres nos iates na tentativa de acabar com as insurreições nas águas.
Dizia a lei n° 84 de 18 de novembro de 1847:
Art 1°. Nenhuma embarcação, cuja tripulação constar de mais de três
marinheiros escravos, poderá navegar no interior da Província sem
que tenha o patrão e um camarada, que sejam pessoas livres.
Excetuam-se desta disposição as canoas de tolda
452
.
Assim, além do patrão do barco, homem livre, o dono do barco deveria
contratar mais um homem, que também fosse livre. Acreditavam estes legisladores,
que estes dois homens poderiam impedir três ou mais escravos de se rebelar.
Cinco anos depois, em 1852, alguns comerciantes de Porto Alegre pediram a
retirada da lei perante a Assembléia Provincial. O argumento deles seria o de que
esta contratação de mais um homem livre, além do patrão, estaria prejudicando seus
negócios. Outro argumento seria o de que haveria poucos braços livres dispostos a
trabalhar nas águas, pois mesmo com o aumento da população livre pela
452
AHRGS. Indice das leis promulgadas pela Assembleia Legislativa da Provincia de São Pedro do
Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1872.
214
colonização e civilização dos indígenas, a população do país tinha repugnância à
vida do mar, sendo o recrutamento para a marinha o pior castigo
453
.
Outros argumentos na defesa da retirada da lei feitos por alguns deputados,
seriam os de que casos como os de 1847, de revolta escrava nas águas, eram
excepcionais, e de que alguns comerciantes estariam burlando a lei. Como, de
acordo com os comerciantes, as embarcações ficavam vários dias paradas no porto
à procura de um homem livre para embarcar, e para evitar esse prejuízo, “[...]
apresenta este (o comerciante ) um indivíduo, para ser matriculado como camarada,
o qual chegando perto de Itapoã, volta para a terra, e a embarcação segue o seu
destino”
454
.
Ao pesquisarmos no jornal “O Pelotense”, primeiro órgão da imprensa de
Pelotas, observamos que os casos de revoltas dos marinheiros escravos
continuavam nas águas da região sul, mesmo depois dos debates sobre a retirada
da lei. No jornal do dia cinco de março de 1853, encontra-se o registro de que no dia
vinte e oito de fevereiro, o “[...] preto José, marinheiro do iate Vinte e Dois de
Agosto”, havia sido preso por ter ameaçado com um machado o patrão do mesmo
barco.
455
No jornal do dia 17 de março encontra-se o registro de que um marinheiro
escravo chamado Nicoláo, ex-escravo de Joaquim José D’Assumpção, havia matado
o patrão de um iate com procedência de Santa Catarina, que estava atracado em
Rio Grande, pelo motivo deste indivíduo ter castigado a companheira de Nicoláo.
456
A questão em relação à discussão da lei estava relacionada à segurança dos
senhores e patrões dos iates que faziam o comércio fluvial nas águas regionais bem
453
MOREIRA, 2003, op. cit. p. 72. A repugnância seria uma referência aos maus-tratos, ao trabalho
compulsório, ao rompimento das relações familiares, características das profissões do mar.
454
PICCOLO, Helga.(org.) Coletânea de discursos parlamentares da Assembléia Legislativa da
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul: 1835/1889. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do
Estado do Rio Grande do Sul, 1998. p. 524.
455
BRG. Jornal “O Pelotense”. Nº 3045, E 062, P 2. Dia 5 de março de 1853.
456
BRG. Jornal “O Pelotense”. Nº 3045, E 062, P 2. Dia 17 de março de 1853
215
como aos gastos excessivos que estes acreditavam ter com esta atividade. Em
nenhum momento os deputados discutiram a situação dos escravos que
trabalhavam nos iates, não procuraram saber se estavam sendo mal tratados,
castigados excessivamente, enfim, a premissa da discussão partia do conflito e não
dos motivos que poderiam causar estes mesmos.
Havia, contudo, alguns deputados que eram favoráveis à lei, pois vinculavam
a ela o fim gradativo da abolição, diminuindo o emprego do trabalho dos braços
escravos. Outro argumento destes deputados era que, na verdade, o que estava em
jogo era a “decadência do comércio, a escassez da produção e a falta de gênero
para transportar”. E, além disso, diziam os mesmos deputados, que os iates agora
concorriam com os barcos a vapor, fazendo com que seus fretes não cobrissem
suas despesas.
Paulo Moreira contribui para o entendimento deste debate, observando que
estes argumentos para a retirada da lei, demonstram “[...] a acomodação dos
deputados às condições do mercado de trabalho, ou seja, não existia alternativa
nesse caso, a não ser correr o risco de perder parte do patrimônio através das fugas
(e outras formas de resistência) de escravos marítimos, pois afinal praticamente não
havia como evitar se esses quisessem praticar algum ato de insubordinação”
457
..
A ambição pelo lucro levava os senhores a correrem riscos de sublevação por
parte dos escravos: preferiam o silêncio frente aos conflitos com os cativos, mas
recorriam ao castigo exemplar, à forca, quando ameaçadas suas propriedades, seus
lucros, sua autoridade. Os silêncios perante os conflitos e o exercício da autoridade
juntavam-se com o objetivo de mascarar a desigualdade e amenizar as
contradições. Também no caso dos enforcamentos, havia um ritual específico que
457
MOREIRA, 2003, op. cit. p. 72.
216
chamava muito a atenção da população em geral, mas o governo Imperial fazia
questão de não divulgar as execuções pelos jornais, regulando, inclusive, pela
legislação, esse silêncio, armando a máquina da forca apenas no dia da execução,
desmontando-a logo depois
458
. Não encontramos nenhuma notícia em jornais sobre
as descrições dos enforcamentos em Pelotas. Talvez possam ter existido, mas não
as encontramos na documentação que estava disponível para a pesquisa tanto nos
arquivos municipais como estaduais. João Ribeiro chama a atenção que as notícias,
tanto no Rio de Janeiro, como em outras províncias sempre foram sucintas; havia
uma necessidade em colocar nas primeiras páginas os crimes cometidos, agora,
quanto aos rituais da forca os relatos sempre foram breves
459
. Talvez a permanência
das lembranças pudesse provocar um certo temor nas autoridades de uma
possibilidade de revanche por parte dos amigos, familiares ou até mesmo daqueles
que nem conhecessem o condenado, apenas um sentimento de identidade, por
exemplo, quanto à condição de escravo, ou de pobreza. O enforcamento poderia
também trazer mazelas morais aos senhores dos escravos condenados, já que este
momento extremo demonstraria o despreparo, a irresponsabilidade na administração
dos conflitos, na disciplina dos trabalhadores. Não queriam exibir a que ponto
tinham que recorrer para defenderem seus interesses, o lucro, e a propriedade, na
tentativa de evitar o reconhecimento das fraquezas do sistema.
4.5.2 A procura de senhor: o enforcamento de Belizário
Era uma manhã, lá pelas nove horas do dia vinte e sete de setembro de 1849,
quando se ouvira os gritos de socorro saindo de uma casa nas redondezas da antiga
458
Conforme Aviso de 17 de junho de 1835. “A forca só será levantada quando for necessária para
não estar continuadamente às vistas do público”. Ver: TINOCO, 2003, op. cit. p. 68.
459
RIBEIRO, 2005, op. cit. p. 101.
217
Praça D. Pedro II, hoje conhecida como Praça Coronel Pedro Osório. Eram
efetuados por uma trabalhadora doméstica do espanhol chamado Manoel Montaño.
Na rua corria o negro escravo de nação Mina, chamado Belizário. Com as mãos
ensangüentadas, logo se desfez da faca que carregava, e de surpresa, levou um
soco no rosto, sendo agarrado por populares, vizinhos das então vítimas, Manoel
Montaño e Crescencia Echavarry. Além destes dois, sofrera ferimentos menos
graves o escravo chamado Lourenço
460
.
Logo após o assassinato, como de praxe, o subdelegado junto com um
escrivão, seguiu até a casa onde ocorrera o crime para fazer o auto de corpo de
delito nas vítimas. Para este ato, foram convocados três médicos, que após fazerem
o juramento aos santos evangelhos, constataram ferimentos graves feitos por uma
faca no casal de senhores residentes naquela propriedade, e também a um escravo,
que tivera ferimentos leves.
Registrado o corpo de delito junto ao promotor público, foi encaminhada a
notificação das testemunhas para deporem no dia posterior, pela parte da manhã, na
cadeia municipal. Então, na manhã do dia 28, na presença do Subdelegado, do
Promotor Público, do escrivão e do acusado Belizário, foi registrado o responsável
pela defesa do réu. O então Curador jurou perante aos sete evangelhos dizer
apenas a verdade e nada mais. Após, o subdelegado conferiu o ato de qualificação
do réu. O resultado foi que o réu chamava-se Belizário, natural de Geges
461
, com
mais ou menos vinte e seis anos de idade, trabalhador cativo e que não sabia ler,
nem escrever.
460
APERGS. Processo Crime número 28, maço 06, na estante 141.
461
Gegês eram um grupo étnico da região da África Ocidental, mais especificamente do Golfo da
Guiné, antigo Reino do Daomé, hoje Benin. Ver: MAESTRI, Mário.. Pampa Negro: Quilombos no Rio
Grande do Sul. In: Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. Org: REIS, João José;
GOMES, Flávio dos Santos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 330.
218
No total foram chamadas quinze testemunhas, na maioria eram homens de
naturalidade espanhola, vizinhos de Manoel Montaño que viviam de comércio. A
presença de espanhóis e orientais aumentou na cidade de Pelotas a partir do ano de
1842, quando estes indivíduos, moradores do Estado Oriental, hoje Uruguai, vieram
refugiar-se dos conflitos entre Oribe e Rosas, a chamada Guerra Grande
462
.
Quando visualizamos o processo criminal, observamos que estes espanhóis e
orientais dominavam a região central da cidade de Pelotas em meados do século
XIX, a partir da prática comercial, um vestígio interessante para estudos posteriores
sobre imigração uruguaia.
Diziam as testemunhas que o escravo havia matado seu senhor após ter sido
“repreendido por não querer trabalhar”. Lembro que o réu era um escravo,
inferiorizado pelo sistema e que a naturalidade da vítima era a mesma das
testemunhas. Uma característica desses depoimentos seria o de sempre começar
por “ouvi dizer”, Solimar Lima explana que esses depoimentos eram facilitados, “[...]
pela própria legislação que previa a admissão de culpa, fundamentada somente em
depoimentos de “ouvir dizer”. Boatos “pela voz pública” incriminavam, quase sempre,
o suspeito. Formava-se deste modo, uma aliança socialmente identificada com o
interesse dos senhores”
463
.
A criada que gritava por socorro, chamada Franciana, de 37 anos, declarou
que após seus berros, Belizário teria se aproximado dela e dito que já havia matado
dois e que não seria difícil matar o terceiro. As escravas da casa que haviam
observado o crime não podiam testemunhar, pois a legislação as impedia, portanto,
falaram como informantes. Uma delas chamada Desederia, de 26 anos de idade,
disse que Belizário não teria tentado matar o escravo Lourenço, mas que atentara
462
OSORIO, 1997, op. cit. p. 127.
463
LIMA, 1997, op. cit. p. 185.
219
contra a vida de seus senhores. Outra testemunha foi um homem chamado Manoel
Lopes, de 38 anos, natural do Estado Oriental, atual Uruguai, que disse ter visto
Belizário prometer de morte a criada que pedia socorro, logo dando um soco,
prendendo a faca do crime e o escravo acusado.
Após o relato das testemunhas, todos feitos na presença do réu, o
Subdelegado deu início ao interrogatório de Belizário. O acusado respondeu que
estava na cidade há dois meses e que trabalhava para Manoel Montaño em sua
barraca de couros. De acordo com o seu relato, na manhã do crime, Manoel
Montaño mandou-o trabalhar no quintal, fato que obedeceu. Mais tarde, o senhor
perguntou se ele já havia comido, Belizário respondeu que não, assim Manoel
mandou dar de comer ao escravo. Ao chamar Belizário novamente, Manoel mandou
seu escravo outra vez ao trabalho. Belizário contou em seu interrogatório que
demorou para comer, e que ao ouvir o mando de seu senhor, retrucou que ainda
não tinha tido tempo para alimentar-se. Montaño então disse muitos palavrões e
mandou novamente o escravo para o serviço, pois de acordo com este, o escravo já
teria tido tempo para comer. Belizário, ao negar mais uma vez a ida ao trabalho,
pediu para ir embora procurar outro senhor, pois havia vindo da cidade de Bagé para
ser vendido em Pelotas. Montaño se recusou e partiu para a agressão, efetuando,
de acordo com o processo, “bofetões e socos”. O escravo passou a insistir para sair
à rua. Montaño chamou a outro escravo de nome Lourenço, para com uma corda
amarrá-lo, talvez para puni-lo, não o deixando sair de casa; assim o réu disse não
lembrar de nada, apenas de estar com uma faca nas mãos e os três corpos feridos
no chão. Após a fala de Belizário, o Subdelegado perguntou se ele era mal tratado
por Montaño e ele respondeu que não.
220
Ao ler as transcrições do interrogatório no processo criminal, salta aos nossos
olhos, a fragilidade em que Belizário se encontrava, acuado, confuso, talvez
percebendo o corpo de gravidade que seu crime tomava perante aquela justiça feita
por senhores de escravos, o mesmo tipo de gente que obedecera durante sua vida
inteira. Seguiu o interrogatório, e Belizário continuava sendo questionado sobre se
havia ou não efetuado o crime. Suas respostas eram sempre contraditórias. Quando
perguntado sobre o porquê de o senhor o querer vender na cidade de Pelotas, o réu
respondeu que o senhor era muito mau. Ainda, o Subdelegado questionou se
Belizário tinha algum caso com uma preta da casa, e se alguém o havia ajudado no
crime. Ele negou os dois questionamentos.
Acabado o interrogatório, foi encaminhada a documentação ao Promotor
Público, que, antes do Tribunal do Júri, já selara o destino do escravo. Belizário foi
declarado culpado e enquadrado na lei de 10 de junho de 1835, ou seja, a que trazia
a prática da pena de morte, a forca.
Logo após o interrogatório, foi encaminhada a intimação para as testemunhas
comparecerem no paço da Câmara às nove horas do dia 8 de outubro de 1849. O
carcereiro da cadeia pública, intimidado pela Promotoria, levou o réu Belizário até o
Tribunal do Júri. Então, naquela manhã, após o toque da campainha, com a
presença do Juiz de Direito da Comarca e Presidente do Júri, do Promotor Público,
do escrivão, começou o julgamento através do sorteio para a escolha do Tribunal do
Júri. Dentro de uma urna foram depositadas 48 cédulas, onde 12 foram escolhidas,
nomes que acabariam decidindo pela vida do negro Belizário. Citamos alguns como
os de Aníbal Antunes Maciel, futuro Barão de Três Cerros, os ditos doutores João
Jacintho de Mendonça, Antônio José Gonçalves Chaves e Cândido Alves Pereira,
221
entre outros, na maioria senhores de terras e de escravos, respeitados na sociedade
como “pessoas de bem”.
Após, foi encaminhado o interrogatório do réu conduzido pelo Juiz. Logo no
início, Belizário novamente mostrando-se bastante confuso, negou inclusive a sua
idade, que no outro interrogatório afirmara ser de 26. Quando perguntado se era
escravo de Manoel Montaño, o réu respondeu que não, e que seria escravo de
Inácio Rodrigues, que na verdade o havia mandado para Montaño para que o
vendesse em Pelotas.
Esta parece ser a chave do conflito que aqui estamos descrevendo. Junto
com o processo criminal, aparecem anexados recibos de pagamento de infrações,
enquadrados no artigo 17 do capítulo terceiro do regulamento de 11 de abril de
1842. Estes recibos de pagamento eram correspondentes aos antigos donos de
Belizário, mas todos pagos pelo senhor Montaño. No total a quantia chegava a 154
mil réis, soma gerada pelo imposto cobrado sobre as negociações de escravos, a
chamada Meia Siza. Este tipo de imposto, instituído pelo Alvará de 3 de junho de
1809, determinava que em cada transação de escravos, dever-se-ia pagar o
equivalente a cinco por cento sob o preço da primeira venda. Bakos, ao analisar os
Relatórios dos Presidentes da Província, constatou a impopularidade deste tipo de
imposto, principalmente para as classes mais abastadas. Estes grupos propunham
a troca de tal tributo, pelo da terra, justificando que os impostos “[...] deveriam
sempre recair sobre os rendimentos e nunca sobre os ‘fundos’ necessários a
produção”
464
.
Nos registros oficiais do processo crime, os dois indivíduos, tanto Inácio
quanto Manoel, aparecem como donos do escravo. De acordo com os relatos de
464
BAKOS, 1997, op. cit. p. 82.
222
Belizário, Inácio mandara Manoel Montaño vendê-lo na cidade de Pelotas, e no
percurso entre esta cidade e a de Bagé, Belizário teria vindo acorrentado com a
justificativa de que os ferros seriam para não deixá-lo fugir. Parece-nos que o
escravo foi caracterizado como um fugitivo em potencial, motivo talvez de suas
constantes vendas, não esquecendo que o mesmo Belizário acusara seu senhor de
Bagé, Inácio Rodriguez, de ser um “homem mau”.
Belizário, de acordo com a documentação, foi vendido pela primeira vez no
dia 9 de março de 1843 por 770 mil réis ao senhor Victorino Antunes da Silva, em
Rio Grande. O escravo teria na época por volta de vinte anos, e poderia estar
chegando de alguma província do norte, como Bahia e Pernambuco, ou do Rio de
Janeiro
465
.
Berute, através de estudos sobre o tráfico negreiro para a Província de São
Pedro, ressalta que no final do século XVIII e início do XIX, o porto do Rio de Janeiro
foi responsável pela remessa de 75% de escravos
466
. Belizário, um Gegê, era
integrante de grupos étnicos da áfrica Ocidental, minoria no tráfico carioca, e maioria
no tráfico das Províncias do Nordeste
467
. Este pode ser um indício de que este
africano possa ter tido como sua primeira parada nas terras brasileiras, a Província
da Bahia ou Pernambuco. Após esta estadia forçada, o escravo foi vendido para o
senhor Innacio Fernandes, no dia 3 de fevereiro de 1844, tendo seu destino final no
dia 12 de junho de 1849, quando foi vendido pela última vez aos senhores Montaño
e Rodriguez.
465
OLIVEIRA, Vinícius Pereira de. De Manoel Congo a Manuel de Paula: um africano ladino em
terras meridionais. POA: EST, 2006. p. 29.
466
BERUTE, Gabriel Santos. A concentração do comércio de escravos na capitania do Rio Grande de
São Pedro do Sul, c. 1790 – c. 1825. Anais do II Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional”. Porto Alegre: 2005. p. 1.
467
OLIVEIRA, 2006, op. cit. p. 30.
223
Continuado o interrogatório, o réu disse que ninguém o havia informado que
Montaño era seu dono, e que por isso queria ir a rua ser para vendido. Aparece aí, o
tratamento indiferente que o escravo recebia, muitas vezes, sem nem saber a que
senhor pertencia, ou qual era sua condição perante aquelas negociações que para
muitos deveriam ser incompreensíveis.
Prosseguindo, Belizário colocou que o motivo de seu antigo senhor o ter
mandado para Pelotas para ser vendido, seria o de ele andar com uma preta, que
estava na mesma casa na cidade. O Juiz questionou o fato de que se o motivo da
venda fosse o de separá-lo de uma mulher também escrava, por que os dois teriam
sido remetidos para a mesma casa, de acordo com os registros. Perante o
questionamento, o escravo calou-se. O interrogatório acabou quando foi perguntado
ao réu se ele seria maltratado por Montaño, ao que respondeu que não.
Então, após as defesas da promotoria e do curador do réu, o tribunal do Júri
julgou doze quesitos. Para que o leitor possa acompanhar os fatos julgados como
relevantes para a prática da Justiça perante um crime de escravo, em meados do
século XIX, fazemos a descrição dos resultados destes, tal qual a documentação
pesquisada.
1°. O Júri respondeu o primeiro quesito sim, por
unanimidade de votos, o réu Belizário de nação Mina, escravo de
Manoel Montaño, tentou contra a vida de seus senhores Montaño
e D. Crescencia Echavarry.
2°. Ao segundo quesito, sim por onze votos o réu tentou
matar com facadas ao escravo Lourenço seu parceiro.
3°. Ao terceiro quesito, não por unanimidade de votos, o
crime não é justificável, porque foi cometido com má fé, isto é,
com conhecimento do mal e intenção de o praticar.
4°. Ao quarto quesito, sim, por unanimidade de votos, o réu
cometeu os crimes por motivo reprovado e frívo-lo.
5°. Ao quinto quesito, sim por unanimidade de votos, o réu
era superior em armas aos ofendidos, e em sexo a um deles.
224
6°. Ao sexto quesito, sim por unanimidade de votos, dois
dos ofendidos são superiores ao réu, e estavam para com ele em
razão de par.
7°. Ao sétimo quesito, sim por unanimidade de votos,
houve no réu premeditação quando tentou assassinar a Manoel
Montaño.
8°. Ao oitavo quesito, sim por unanimidade de votos,
quando o réu tentou matar a D. Crescencia Echavarry o fez com a
circunstancia agravante de haver premeditado o crime.
9°. Ao nono quesito, não por unanimidade de votos, não
houve designo formado pelo réu pelo menos 24 horas antes de
tentar matar ao seu parceiro.
10°. Ao décimo quesito, sim por unanimidade de votos, o
réu cometeu o crime com abuso de confiança, que nele
depositavam os ofendidos.
11°. Ao décimo primeiro quesito, sim por unanimidade de
votos, o crime foi cometido com surpresa.
12°. Ao décimo segundo quesito, não por unanimidade de
votos, não existem circunstancias atenuantes a favor do réu.
468
Para o Júri, Belizário era claramente culpado pela tentativa de assassinato de
seus senhores e de um escravo parceiro seu de cativeiro. No quinto quesito aparece
que o réu era superior em sexo a um deles. No século XIX, a mulher era vista como
inferior ao homem, frágil, inocente, sendo mais um motivo para a acusação, mesmo
o réu sendo um escravo, inferior perante sua senhora. Concluiu o Júri que o réu
cometeu o crime premeditadamente, abusando da confiança do senhor, sem
circunstâncias a favor. Belizário, então, é condenado a forca.
No dia 4 de março de 1850, em uma das celas da Casa de Correção de
Pelotas, o escravo Belizário recebeu a notícia de que o Imperador em janeiro do
mesmo ano o julgava indigno da “Imperial Clemência”
469
. O escravo não teria sua
pena de morte comutada em galés perpétuas. D. Pedro II reafirmava a decisão do
Tribunal do Júri.
468
APERGS. Processo Crime número 28, maço 06, na estante 141.
469
APERGS. Processo Crime nº 307, Maço 7A, Estante 36. Em anexo nº 4, segue o ofício que
negava a comutação da pena.
225
No mesmo dia, o Juiz Municipal marcava o dia da execução para 8 de março,
como de costume, às dez horas da manhã. Em seu ofício, a autoridade judicial
requeria à Câmara Municipal a construção da forca no lugar de costume, ou seja, ao
lado do cemitério, na hoje atual avenida Bento Gonçalves. Mandava convocar
também a “[...] Mesa da Irmandade da Caridade, ao Pároco desta Freguesia para
prestarem os ofícios de religião e caridade, e aos Comandantes da Ala Esquerda do
Batalhão de Caçadores, e ao de Polícia, despendendo-lhes toda a força disponível”.
Então, no dia da execução, na manhã do oito de março, sendo quase
impossível imaginar os sentimentos de Belizário frente ao espectro da morte, foi
cancelado o enforcamento até novas ordens do Presidente da Província.
João Simões Lopes Neto registraria, no início do século XX, que o motivo do
adiamento da execução de Belizário seria o de um conflito de jurisdição entre o Juiz
Municipal e o Delegado de Polícia
470
. E, de fato, os indícios que a documentação
nos proporciona levam a confirmar tal afirmação. Na verdade, não ficam claros os
motivos do cancelamento temporário da execução, o único documento é um ofício
do Presidente da Província em que este resolve o conflito. Parece-nos que tudo
girava em torno de irregularidades nos serviços da prisão. O responsável pelo
cancelamento, segundo este ofício, assim como pelo protesto, foi o Juiz Municipal da
época Vicente José da Maia. O Presidente reafirmava a responsabilidade da
autoridade policial, o delegado, quanto aos serviços das prisões, recomendando que
“[...] quando dela haver algumas modificações relativas ao regime das cadeias
porque sejam exigidas ou para a execução de uma sentença, ou para qualquer outro
serviço legítimo, convém que a autoridade encarregada deste avise a autoridade
470
Neto, João Simões Lopes. A forca em Pelotas. In: RODRIGUES, Alfedo Ferreira (Org.). Almanak
Literário e Esatatistico do Rio Grande do Sul para 1917. Rio Grande: Livraria Americana. Ano 29. p.
165-166.
226
policial, e que esta se preste prontamente para que o público serviço seja
desempenhado sem delongas ou inconveniente algum”.
Parece-nos que o Juiz Municipal questionava o tratamento dado ao
condenado na prisão, possivelmente, se pensarmos na tradição do rito da pena de
morte, o protesto poderia ser relativo ao estado de saúde do condenado. Havia uma
importância dada para que o condenado no dia de sua execução, estivesse em boas
condições físicas. De que adiantaria para o estado executar um sujeito moribundo,
que não se agüentasse em pé?! O indivíduo executado deveria estar bem de saúde
para legitimar o ritual da execução; a população ao ver aquele indivíduo jovem, de
boa saúde sendo executado por desobedecer a lei, pensaria duas vezes ao cometer
crimes. Não podemos esquecer das péssimas condições de alimentação e de saúde
a que estavam expostos os presos da Casas de Correção de Pelotas, assunto que
abordamos no capítulo 3. Estas são apenas hipóteses; sem outros documentos não
podemos afirmar com certeza os conflitos ocorridos neste caso. Infelizmente, não
encontramos nenhuma notícia em jornais que remetessem a esta execução. Por
exemplo, a disputa poderia ter sido política entre as autoridades, fazendo uso do
momento de tensão e visibilidade que era a execução da pena de morte.
O fato é que o Presidente, após declarar que o conflito surgira da “[...] falta de
prévia e conveniente inteligência das autoridades”, determinava ao Juiz executar
“[...] a mencionada sentença como demanda a lei e até mesmo o princípio da
humanidade que não consente que se reproduzam os sofrimentos preparatórios de
uma execução capital”. É de se refletir a situação de Belizário perante estes conflitos
que apenas tardavam o fim de sua vida. As palavras do Presidente confirmam o
quanto as execuções marcavam a memória das cidades e das populações. Outro
discurso que chama a atenção nesta fala do Presidente é o argumento pela
227
humanização; certamente estas palavras vinham ao encontro das manifestações
contrárias a pena.
No dia dez de maio de 1850, dois meses depois do cancelamento da
execução, Belizário caminhava pelas ruas centrais da cidade de Pelotas, em direção
à forca, em direção talvez, conforme algumas tradições africanas, ao fim do
sofrimento na vida terrena, para a redenção na eternidade do mundo dos mortos.
228
CONCLUSÃO
Primeiramente, para a conclusão deste trabalho, devemos evidenciar a
importância da pesquisa aprofundada em fontes primárias. A partir desse tipo de
pesquisa, de entrega aos papéis velhos, tiramos a primeira conclusão sobre nossa
dissertação. Existe muito ainda a se pesquisar sobre a história da cidade de Pelotas.
Demonstramos aqui que durante a primeira metade do século XIX, a cidade
emergente teve como característica a imensa circulação de indivíduos populares,
trabalhadores livres ou escravos, que participavam e que faziam os negócios tanto
relativos à indústria do charque como também aos negócios paralelos e
dependentes, de certa maneira, a ela.
A cidade de Pelotas, durante este período, portanto, não se caracterizou por
um grande número de pessoas vivendo fixamente nela, e sim pelo número de
pessoas que circulavam, e que usavam a região como ponto de passagem em
determinadas épocas do ano. E quando cruzavam por esta região, acabavam se
confrontando com as autoridades, temíveis aos indivíduos sem residência fixa, sem
vínculos com as políticas de controle disciplinar, os ditos “vadios”. Quisemos mostrar
aqui a complexidade das relações sociais naquele momento, através das medidas
repressoras das elites pelotenses a partir do receio da perda do controle social sobre
as populações pobres. A partir da independência e da formação do Estado Nacional,
esta seria uma das maiores batalhas do Império - a tentativa do disciplinamento das
classes populares por meio de seu controle cotidiano.
Ao mesmo tempo, pudemos constatar os projetos que estas autoridades
criaram para disciplinar e punir aqueles que contrariavam o status quo. Projetos
estes em ressonância com as políticas da Corte, até mesmo com as discussões de
229
parâmetro mundial, como pudemos evidenciar em nossa análise sobre a construção
da Casa Correcional, e os apelos para o fim da pena de morte.
Quanto à Casa Correcional observamos a distância que existiu entre a teoria
e a prática dos projetos prisionais, demonstrando as péssimas condições em que os
indivíduos presos viviam. Levantamos evidências suficientes que comprovam que os
projetos de reinserção dos ditos “criminosos” na sociedade foram marcados por
condições de subumanidade no dia-a-dia da “correção” em que eram submetidos os
presos. Correção, que não se manifestou no desejado pelos intelectuais liberais, em
prisões limpas, seguras, através do trabalho dos presos em oficinas e no
aprendizado destes das primeiras letras. A Casa Correcional de Pelotas tinha uma
estrutura péssima, e seus condenados faziam nada mais do que o trabalho dos
galés, ou seja, os trabalhos públicos, servindo de mão-de-obra barata ao estado.
Mais interessante ainda foi poder ter relacionado esta história que contamos sobre a
Casa de Correção durante o século XIX, com a realidade do sistema prisional atual,
provocando assim uma leitura crítica sobre os discursos da chamada “crise
prisional”.
Acreditamos ter demonstrado neste trabalho, também, que a polícia que
encontramos na primeira metade do século XIX é uma instituição em construção.
Tivemos algumas diferenças durante o período. Na Regência, a instituição foi
caracterizada pelos ideais liberais, com um perfil descentralizador. Encontramos,
naquele tempo, muitas ações de insubordinação por parte dos populares que eram
engajados nas Guardas Municipais. Um dos motivos desta resistência foi a nova
lógica de tempo de trabalho que estava sendo imposta a estes indivíduos. Quando
passamos ao ano de 1837, com a última Regência, e após, com o golpe da
maioridade do Imperador, visualizamos uma polícia centralizada nas mãos da Coroa.
230
Uma polícia com soldados jovens, solteiros, de salários baixos, sujeitos a castigos,
que construía sua visão do fazer policial na prática, no relacionamento com aqueles
indivíduos que muitas vezes compartilhavam a mesma categoria social. Pudemos
mostrar as diferenças da constituição da polícia no contexto macro-político,
relacionando-a às duas vertentes políticas, a descentralizadora, representada pelos
liberais, e a centralizadora representada pelos conservadores. E para encerrarmos o
assunto, acreditamos que o mais importante foi ver como estes soldados, populares,
reagiram aos projetos político-policiais das elites, demonstrando seu perfil
constituinte, quem eram estes indivíduos, como sobreviviam.
Sobre a pena de morte na cidade de Pelotas, algo nos saltou aos olhos na
pesquisa
__
a forca, na região, foi negra. Encontramos apenas trabalhadores
escravos sendo enforcados. Nada estranho quando observamos a legislação do
Império, que com a formulação da famosa lei de 10 de junho de 1835 facilitou ainda
mais a punição. Observamos também como se deu o ritual do cadafalso na cidade,
as ruas pelas quais passavam os condenados, as instituições e indivíduos que
participavam, e quais eram os interesses por trás do ritual da forca. Além disso, a
pesquisa pôde demonstrar, inclusive, que a cidade interagiu com os debates sobre o
fim da pena de morte, seja em relação ao país, como em relação ao mundo.
Pelotas, na primeira metade do século XIX, já demonstrava, seja no campo
das idéias ou no campo das práticas, um cosmopolitismo relacionado tanto às elites
quanto as camadas populares.
Nosso papel, enquanto pesquisador, talvez tenha sido alcançado
__
o de ter
evidenciado que a história da chamada “Princesa do Sul” foi muito mais complexa do
que pensamos, e o quanto pode e ainda deve ser desvendada. Nunca esquecer que
deve haver uma escolha, um posicionamento do pesquisador da área de história
231
para isto, se não apenas reproduziremos as velhas histórias, os mesmos textos, e o
pior, os mesmos posicionamentos políticos, que em nossa opinião alimentam e
sustentam a lógica desigual deste sistema.
232
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Processo número 39, Maço 2A, Estante 36.
Processo número 60, Maço 2A, Estante 36.
Processo número 64, Maço 2A, Estante 36.
Processo número 66, Maço 2A, Estante 36.
Processo número 81, Maço 3A, Estante 36.
Processo número 99, Maço 3A, Estante 36.
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Processo número 205, Maço 5A, Estante 36.
Processo número 207, Maço 5A, Estante 36.
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Processo número 252, Maço 6A, Estante 36.
Processo número 262, Maço 6A, Estante 36.
Processo número 382, Maço 9A, Estante 36.
Biblioteca Rio-Grandense
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Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa
Jornal O Brado do Sul – A162.
246
ANEXOS
ANEXO 1
Mapa de Pelotas do ano de 1835. Extraído de GUTIERREZ, Ester. Barro e Sangue:
mão-de-obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas (1777-1888). Pelotas:
Universitária, 2004. p. 211.
247
ANEXO 2
Francisco José Ferreira Lagoãz, escrivão interino do júri nesta cidade de
Pelotas e seu termo. Certifico e, cumprimento do determinado no artigo quarenta e
um do Código Criminal, e artigo quatrocentos e oito do regulamento número cento e
vinte de trinta e um de janeiro de mil oitocentos quarenta e dois, que no dia de hoje
vinte e dois de julho de mil oitocentos quarenta e sete, nesta cidade de Pelotas
foram executadas na forca as sentenças de morte proferidas em virtude da decisão
do júri pelo Doutor Juiz de Direito desta Comarca Joaquim José da Cruz Sêcco,
contra os réus Salvador, Bento, e João, os quais com seus vestidos ordinários, e
algemados foram da cadeia conduzidos com as formalidades do estilo pelas ruas
mais públicas desta cidade até a Igreja Matriz; e dali ao lugar da forca colocada ao
lado do cemitério, lendo o porteiro do juízo em vozes altas, e inteligíveis as
sentenças em todo o trânsito até o lugar da forca; foram presentes ao ato o Doutor
Juiz Municipal Amaro José D’avila da Silveira, acompanhado de mim escrivão,
Doutor em Medicina Thomaz Rodrigues Pereira, porteiro do Juízo Martins Theodoro
Ferrão, de uma força de primeira linha, parte da companhia de polícia desta cidade,
a Irmandade da Misericórdia, sacerdotes e grande porção de pessoas do povo.
Concluída a execução os cadáveres dos enforcados foram em minha presença
sepultados no cemitério público pertencente à Irmandade do Santíssimo Sacramento
desta freguesia. E de tudo para constar lavrei esta certidão, que assino. Pelotas, 22
de julho de 1847.
Lagoãz
248
ANEXO 3
Certifico em cumprimento ao artigo quarenta e um do Código Criminal, e
artigo quatrocentos e oito do regulamento número cento e vinte de trinta e um de
janeiro de mil oitocentos quarenta e dois, que no dia de hoje dez de maio de mil
oitocentos e cinqüenta, nesta cidade de Pelotas foi executado na forca, a sentença
de morte, proferida em virtude da decisão do júri pelo Doutor Juiz de Direito da
Comarca Joaquim José da Cruz Sêcco, contra o réu Belizario, os quais com seus
vestidos ordinários digo, o qual com seu vestido ordinário e algemado foi da cadeia
conduzido com as formalidades do estilo pelas ruas mais públicas desta cidade até a
Igreja Matriz; e dali ao lugar da forca, colocada ao lado do cemitério, lendo o porteiro
do juízo em altas e inteligíveis vozes, a sentença em todo o trânsito até o lugar da
forca: foram presentes ao ato o segundo suplente do Juiz Municipal João Rodrigues
Ribas, acompanhado de mim escrivão, Doutor em Medicina Jozé do Rego Rapozo,
porteiro do Juízo Martim Theodoro Ferrão, de uma força da ala esquerda do sétimo
Batalhão de Caçadores de primeira linha, parte da companhia de polícia, a
Irmandade da Misericórdia, sacerdotes e grande número de pessoas do povo.
Concluída a execução o cadáver do enforcado foi em minha presença sepultado no
cemitério público pertencente à Irmandade do Santíssimo Sacramento desta
freguesia. E de tudo para constar lavrei esta certidão, que assino. Pelotas, 10 de
maio de 1850.
Francisco José Lagoãz.
249
ANEXO 4
3ª Secção = Rio de Janeiro = Ministério dos Negócios da Justiça em 21 de janeiro de
1850 = Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor = Levei a presença de sua Majestade O
Imperador o ofício número 67 que V. Exª me dirigiu na data de 12 de dezembro
próximo findo como o relatório feito pelo Juiz de Direito da Comarca do Rio Grande e
mais papéis relativos à tentativa de morte contra seus senhores, feita pelo réu
Belizário, que tendo respondido do Júri foi por ele condenado a morte; e não
havendo circunstância alguma pela qual se força o réu digno da Imperial Clemência;
cumpre que V. Exª expeça as precisas ordens para que seja executada a sentença
que lhe foi imposta. Deus guarde a V. Exª. Euzébio de Queiroz Coutinho Mattoso
Câmara = Senhor Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul =
Cumpra-se e registra-se. Rio Grande 20 de fevereiro de 1850.
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